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Brasília, 2012

Esclarecimento

A UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da


igualdade de gênero, em todas as suas atividades e ações. Devido à
especificidade da língua portuguesa, adotam-se, nesta publicação, os termos
no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras
menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados
no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino.

Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem
como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem
comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste
livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da
condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da
delimitação de suas fronteiras ou limites.
Informações do título original:
International Handbook of Comparative Education
ISBN 978-1-4020-6402-9 e ISBN 978-1-4020-6403-6
Springer Dordrecht Heidelberg London New York
Library of Congress Control Number: 2008932354
© Springer Science + Business Media B.V. 2009
Informações da versão em português:
Esta versão em português é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no
Brasil e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

© UNESCO 2012. Todos os direitos reservados.

Coordenação editorial: Maria da Consolação Magalhães Figueiredo


Tradução: Elizabeth Bonfanti e Ana Maria Carvalho
Revisão técnica: Célio da Cunha
Revisão gramatical e atualização ortográfica: Valderes Las Casas Gouveia Moreira e
Reinaldo de Lima Reis
Revisão editorial e diagramação: Unidade de Comunicação, Informação Pública e
Publicações da Representação da UNESCO no Brasil

Educação comparada: panorama internacional e perspectivas; volume um / organizado por


Robert Cowen, Andreas M. Kazamias e Elaine Ulterhalter. – Brasília: UNESCO,
CAPES, 2012.
2v.

Título original: International Handbook of Comparative Education.


ISBN: 978-85-7652-060-3 (volume um)
ISBN: 978-85-7652-061-0 (volume dois)

1. Educação Comparada I. Cowen, Robert II. Kazamias, Andreas M. III.


Ulterhalter, Elaine. UNESCO IV. CAPES

Representação no Brasil Setor Bancário Norte,


SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Quadra 2, Bloco L, Lote 6,
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar 70040-020 – Brasília – DF
70070-912 – Brasília – DF – Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500
Site: www.unesco.org/brasilia Fax: (55 61) 2106-3967
E-mail: grupoeditorial@unesco.org.br Site: http://www.capes.gov.br/

Impresso no Brasil
SUMÁRIO

Seção 5: Pós-colonialismo
41 Introdução editorial da Seção 13
Elaine Unterhalter

42 Reflexões sobre pós-colonialismo e educação:


tensões e dilemas de uma vivenciadora 15
Vinathe Sharma-Brymer

43 Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 31


Vimala Ramachandran

44 A reforma do currículo na África Subsaariana:


quando o local encontra o global 51
Linda Chisholm e Ramon Leyendecker

45 Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento:


reflexões pós-coloniais sobre a África 73
Deevia Bhana, Robert Morrell e Rob Pattman

46 Reinventando espaços educacionais, construindo


uma cidadania atuante: duas experiências brasileiras 89
Tristan McCowan e Luís Armando Gandin

47 Perspectivas em relação a crianças e violência 111


Jenny Parkes

48 Um discurso autóctone para estimular nossa herança cognitiva


e registrar nossas aspirações: reflexões sobre a Índia e a África 129
Anita Rampal

49 Os direitos humanos e os limites na libertação


das vozes subalternas na África do Sul pós-apartheid 147
Nazir Carrim

v
vi Sumário

50 Justiça social, teoria do desenvolvimento


e a questão da educação 165
Elaine Unterhalter

Seção 6: Culturas, conhecimento e pedagogias


51 O conhecimento educacional: um tema
negligenciado na educação comparada 193
Andreas Kazamias

52 Qual conhecimento é mais relevante?


Uma antiga questão reexaminada na Inglaterra 205
Denis Lawton

53 Iluminismo e religião, conhecimento e pedagogias na Europa 217


Thyge Winther-Jensen

54 A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil:


conhecimento, religião e pedagogia 233
Maria C. M. de Figueiredo-Cowen e Silvina Gvirtz

55 Confucionismo, modernidades e conhecimento:


China, Coreia do Sul e Japão 253
Terri Kim

56 Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 273


Joseph W. Elder

57 Reflexões sobre transições educacionais


no Egito, no Líbano e na Turquia 293
Jennifer Ashkenazi

58 Cristianismo, modernidades e conhecimento 313


Gerald Grace

59 Por uma pedagogia comparada 331


Robin Alexander

60 Mudança pedagógica e educacional para


sociedades do conhecimento sustentáveis 353
Andy Hargreaves

Seção 7: Uma nova maneira de pensar


61 Introdução editorial: uma nova maneira de pensar 377
Robert Cowen
Sumário vii

62 O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 383


Rolland G. Paulston

63 Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 415


Michael W. Apple e Wayne Au

64 O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 435


Jagdish S. Gundara

65 Feminismo, libertação e educação 457


Nelly P. Stromquist

66 Educação comparada, pós-modernidade e


pesquisa histórica: honrando os antepassados 479
Marianne A. Larsen

67 Aspectos da transferência educacional 497


David Phillips

68 Agamenon contra Prometeu: globalização, sociedades


do conhecimento/da aprendizagem e paideia na nova cosmópole 517
Andreas M. Kazamias

69 Além dos “ismos” metodológicos na educação


comparada em uma era de globalização 555
Roger Dale e Susan Robertson

70 Educação, filosofia e a perspectiva comparativa 573


Terence H. McLaughlin

Seção 8: Na vanguarda: questionando o futuro


71 Comparação: quo vadis? 591
Gita Steiner-Khamsi

72 Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 611


Andrew Brown

73 Repensando o contexto em educação comparada 629


Michael Crossley

74 Pequenas e grandes estórias: para além


de teorias em disputa, rumo ao “multiálogo” 647
Sonia Mehta
viii Sumário

75 Educação comparada em dois contextos asiáticos:


uma justaposição e algumas questões 671
Chengxu Wang, Jianhong Dong e Masako Shibata

76 Identidades culturais nacionais,


análise de discurso e educação comparada 689
Eleftherios Klerides

77 Tempos de revolução científica? Da educação


comparada à ciência comparada da aprendizagem 717
Patricia Broadfoot

78 Reivindicando uma herança perdida:


a visão histórica humanista na educação comparada 739
Andreas M. Kazamias

79 Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 749


Robert Cowen

80 Conclusão 771
Robert Cowen e Andreas M. Kazamias
SEÇÃO 5

PÓS-COLONIALISMO
41

INTRODUÇÃO EDITORIAL DA SEÇÃO

Elaine Unterhalter

Todos os capítulos desta seção tratam de questões relacionadas a pós-


colonialismo e educação e esclarecem algumas das contestações que marcaram o
surgimento da teorização sobre a condição da pós-colonialidade.
Sugerem-se pelo menos três significados para “pós-colonial”. Primeiramente, o
termo invoca a análise de Estados-nação e sociedades que surgiram de passados
coloniais e que lutam com essa herança para moldar novas formas de educação. Os
capítulos de Chisholm e Leyendecker sobre a África Subsaariana e de
Ramachandran sobre a Índia são bons exemplos de trabalhos que consideram
alguns dos limites da realização das aspirações pós-coloniais no âmbito da educação.
Um segundo significado vê o pós-colonialismo menos como um momento
histórico e mais como uma condição de entendimento. Diz respeito a vozes
subalternas, invisibilidades e silêncios, e os modos pelos quais a experiência de pós-
colonialismo pode ou não ser conhecida. Neste trabalho, a educação é um processo
de fragmentação, mistura, negação e afirmação. Implica lutar para encontrar novas
linguagens e novas formas para o conteúdo curricular. Os capítulos de Sharma
sobre experiências híbridas de educação, de Rampal sobre conhecimento autóctone,
de Bhana/Morrell/Pattman sobre gênero, de Parkes sobre pesquisa a respeito de
experiências infantis de educação e violência, e de Carrim sobre percepções
subalternas sobre o discurso de direitos, consideram a pós-colonialidade como um
processo de negociação de identidades na educação e por meio da educação.
Um terceiro significado considera o pós-colonialismo como afirmação de uma
visão particular de cidadania que intensifica os significados de igualdade e justiça.
Os capítulos de McCowan/Gandin sobre o Brasil e de Unterhalter sobre a teoria
do desenvolvimento tratam de questões de cidadania e igualdade.
Alguns capítulos desta seção exemplificam algumas das características de novas
formas de construção do conhecimento associadas à produção escrita em um contexto
pós-colonial. Dessa forma, escritores como Ramachandran, Rampal e Sharma usam
sua própria experiência pessoal como recurso importante na sua análise. Muitos deles
(Ramachandran, Carrim, McCowan/Gandin, Bhana/Morrell/Pattman, Unterhalter)
deixam claro seu compromisso com ideias normativas sobre igualdade ou direitos,
enquanto outros (Chisholm/Leyendecker, Parkes) exploram as limitações da literatura
existente em seus campos. Esses posicionamentos diversos dos autores com relação

13
14 Unterhalter

às teorias examinadas e à análise de dados também são típicos dessa área de


investigação, na qual as fronteiras de um novo paradigma não estão firmemente
estabelecidas e não há ortodoxias com respeito a epistemologias e metodologia.
O caráter mutável dos significados do pós-colonialismo utilizados nesta seção
mescla-se com uma variedade de visões com relação ao desenvolvimento da teoria
pós-colonial. Assim, Sharma e Carrim aproximam-se muito de alguns dos cânones
relativos a vozes subalternas e identidades híbridas ao examinar sua importância
em ambientes educacionais. Outros autores tomam elementos de discussões pós-
coloniais, como descrições do Estado ou de subjetividade, e os entrelaçam em uma
análise multifacetada que, em alguns momentos, critica as posições pós-coloniais.
Muitos dos autores que trabalham com a teoria pós-colonial em estudos
literários e história têm antecedentes marcados por migrações, o que é o caso,
especialmente, de Gayatri Spivak, Stuart Hall e Homi Bhabha. Os autores desta
seção não são exceções. Suas autobiografias são marcadas por migrações entre países
por circunstâncias de trabalho (Unterhalter, Sharma, Pattman, McCowan), por
ligações com universidades em diferentes países (Bhana, Rampal, Gandin, Parkes)
e entre diversos locais em função de trabalho intelectual. Assim, Chisholm, Rampal,
Ramachandran, Morrell e Unterhalter trabalharam em universidades e
desempenharam funções de consultoria para governos e organismos multilaterais.
A complexidade da experiência profissional dos autores que tratam do pós-
colonialismo é uma característica do trabalho vinculado à produção dos textos desta
seção. Enquanto alguns foram escritos em tom claramente acadêmico, inspirando-
se nas convenções da produção escrita, outros desenvolveram-se a partir de
discussões ou relatos pessoais. Ao editar os capítulos, tentei manter um pouco da
textura da linguagem escrita em que foram originalmente desenvolvidos.
As preocupações centrais nos contextos pós-coloniais de educação são a
identidade e o idioma, a formulação e a reformulação de políticas e regimes pós-
coloniais, termos pós-coloniais de contestação discursiva, mudanças na natureza
do Estado e novas teorias de direitos. A perspectiva sobre a educação observa
violência, desigualdades e aspirações não concretizadas. Apesar disso, muitos dos
capítulos postulam agendas de pesquisa, aberturas conceituais e indicadores para
estratégias políticas de mudança educacional que expressem altos níveis de aspiração
a um projeto pós-colonial ainda não realizado, mas que, de algum modo, é
imanente a ideias, relações sociais e contestações atualmente em curso.
42

REFLEXÕES SOBRE
PÓS-COLONIALISMO E EDUCAÇÃO:
TENSÕES E DILEMAS DE UMA VIVENCIADORA

Vinathe Sharma-Brymer

Introdução
Não estamos usando o idioma inglês em lugar algum, a não ser na escola. Assim, vi-me diante
deste dilema: por que nos obrigavam a aprender essa língua que praticamente não era usada em
minha vida? Tinham me dito que o inglês seria o meio de instrução na faculdade. Mas eu me
perguntei: não podemos continuar nossa educação em nossa própria língua? Por que essas pessoas
nos obrigam a aprender essa língua? Desde o começo, desenvolvi uma aversão pelo inglês. Eu
também tinha esse complexo de inferioridade com relação à língua. Até hoje hesito para falar
inglês (Nirmala, mulher indiana de 38 anos).

Duas perspectivas muito distintas são evidentes nos objetivos educacionais


contemporâneos. O foco de uma delas é a criação de mão de obra capacitada para
adaptar-se às necessidades da industrialização: nesse caso, a educação está vinculada
à economia. A outra perspectiva procura enriquecer a busca do estudante com
relação a si mesmo e à sua identidade. Ambas criam tensões e dilemas no estudante
em uma sociedade pós-colonial. Compreender e discutir as experiências
educacionais desses estudantes no tempo presente e sua abordagem demandam
uma sensibilidade particular com relação a híbridos educados e migrantes
deslocados. Referindo-se em particular ao gênero e ao feminismo, Chandra Talpade
Mohanty (2003) coloca o ônus do desenvolvimento dessa sensibilidade por meio
da pedagogia para entender tais complexidades:
Minha pergunta recorrente é: de que modo as pedagogias podem suplementar e consolidar a
lógica dominante da globalização ou resistir a ela? Como os alunos aprendem sobre as
desigualdades entre mulheres e homens em todo o mundo? Por exemplo, as pedagogias feminista
liberal e liberal tradicional rejeitam o pensamento histórico e comparado, as pedagogias
feministas radicais muitas vezes singularizam o gênero, e a pedagogia marxista silencia quanto
a raça e gênero em seu foco no capitalismo. Espero criar pedagogias que permitam aos alunos
ver as complexidades, singularidades e interconexões entre comunidades de mulheres, para que
as questões de poder, privilégio, ações e dissidência possam ser identificadas e tratadas
(MOHANTY, 2003, p. 523).

Suas opiniões repercutem na reflexão sobre educação e pós-colonialidade de


modo geral, indo além das questões de gênero.

15
16 Sharma-Brymer

As abordagens pós-coloniais da educação enfatizam a exploração da


complexidade, da discordância e das vertentes híbridas das experiências do
estudante. Incentivam os teóricos e práticos da educação a examinar um quadro
amplo e lhes recomendam que deem especial atenção às nuanças. O teórico e o
prático devem, portanto, utilizar um conjunto diferente de critérios para expor as
diversidades que se manifestam quando o estudante experimenta poder, controle,
identidade, autoconsciência e as complexidades envolvidas.
Neste capítulo, em primeiro lugar, discuto a teoria e a educação pós-coloniais
levando em conta como tratar, abordar, estudar e entender a opinião do estudante
na condição de “outro”. O outro está em toda parte ao nosso redor – ela é culta,
diplomada por uma universidade do Sri Lanka, que luta para exprimir seus
pensamentos em inglês em uma universidade australiana; ele é um consultor
indiano especializado em TI que vive na Califórnia e se esforça ao máximo para
encontrar um lugar na comunidade branca; um terceiro pode ser um africano que
se debate com um dilema quanto a seguir os hábitos culturais de seus pais em casa.
Em minha discussão, esclareço algumas dessas tensões, mostrando como estão
entrelaçadas com qualquer abordagem utilizada para considerar o pós-colonialismo
e a educação. Os diversos efeitos da globalização aumentam essas tensões. Meu
foco principal ao longo deste capítulo é apresentar a voz do outro. Preocupada em
revelar o outro pós-colonial (TIKLY, 1999), apresento ideias sobre o que se perde
e o que se ganha no processo de tornar-se um híbrido em tempos de globalização;
de que forma os híbridos tentam relocalizar-se (ou talvez alguém já tenha feito isso
por eles) em um terceiro espaço em casa e no exterior, que não é estável ou
determinado; as tensões e contradições na experiência desse terceiro espaço de
deslocamento e busca por conexão é um projeto educacional desafiador
(BHABHA, 1994; DAS GUPTA, 1999).
Na seção seguinte, conto a estória de uma pessoa marginalizada cuja experiência
de vida é marcada pelas influências do pós-colonialismo e da globalização. Essa é a
estória de uma mulher com profunda vivência de uma situação, que registra as
realizações e também a angústia de transição de uma pessoa instruída. É a realização
e a angústia de uma mulher de classe média de um país em desenvolvimento que se
beneficiou de sua educação formal, mas tem consciência das contradições e dos
conflitos a isso relacionados e do impacto sobre sua identidade. Esse relato objetiva
comentar a influência contínua de questões de cultura e idioma em sistemas
educacionais eurocêntricos. Tomarei por base os relatos de experiências educacionais
de mulheres indianas instruídas, coletados por Sharma-Brymer (2007).

A interpretação do pós-colonialismo por uma participante ativa


O pós-colonialismo trata dos efeitos da colonização (HICKLING-HUDSON;
MATTHEWS; WOODS, 2004, p. 2); é um processo que revê e explora a estrutura
de desigualdade (LOOMBA, 1998, p. 18), indicando também que é possível
Reflexões sobre pós-colonialismo e educação 17

explicar os efeitos do colonialismo que persistem no presente mostrando os dilemas


e conflitos envolvidos. A exclusão, a dominação e a resistência deram forma à
relação entre poder e conhecimento e influenciaram a compreensão e as
representações do mundo (BHABHA, 1994; SAID, 1978). O pós-colonialismo
tem um compromisso profundo com a reflexão sobre o trabalho que envolve a
construção do Oriente, como abordado por Edward Said (1978).
O autor mostrou de que modo o Oriente foi constituído a partir de sistemas
orientais de conhecimento que acarretaram supremacia política e econômica. A
construção e a representação do Oriente mantiveram ideias, imagens e palavras do
Ocidente, refletindo, consequentemente, um conjunto particular de crenças
associadas a uma formação particular de poder.
As novas formações de poder associadas à globalização geram avaliações
contraditórias. Alguns pesquisadores mencionam muitos aspectos positivos de
novas tecnologias (CROSSLEY; WATSON, 2003; TIKLY, 2001). Autores que
tratam da educação de adultos relatam que os educadores internacionais de adultos
sentem-se “à vontade ao transcender fronteiras de raça e classe [...] sabendo que
suas identidades nunca são estáveis” (ENGLISH, 2003, p. 68). Contudo, os críticos
da globalização apontam efeitos negativos que incluem deslocamento de povos em
movimentos migratórios, exclusão e discriminação, desinformação e ignorância
seletiva de culturas pelos impérios capitalistas (por exemplo, ROY, 2004). A
construção de barragens e pontes e a expansão de cidades levam a deslocamentos
humanos em massa. Os proprietários de grandes corporações frequentemente
ignoram a riqueza cultural das populações e distorcem seu rico conhecimento local.
Aparentemente, o uso da educação eurocêntrica em populações em
desenvolvimento parece silenciar sua voz interior. Gayatri Spivak afirma:
Parece-me que encontrar o subordinado não é difícil; na realidade, a parte realmente difícil é
ingressar com o subordinado em uma estrutura de responsabilidade, com respostas que fluem
em duas direções: aprender a aprender sem esse frenesi de encontrar uma solução rápida e certa,
com o pressuposto implícito de supremacia cultural que é legitimizado por uma romantização
não analisada (SPIVAK, 1996, p. 293).

Uma abordagem pós-colonial da educação leva em conta o modo como os aspectos


da educação afetam a autoconsciência e o crescimento do aprendiz, indepen-
dentemente de níveis de alfabetização e de resultado. Esclarece a experiência de vida
de um indivíduo, o que oferece um campo muito rico para analisar a localização do
indivíduo em um contexto social, histórico e cultural passado e presente. Permite que
o teórico/prático reflita criticamente sobre esses fenômenos e questione os dilemas
criados pelas redes e aumento do poder. O questionamento de aspectos críticos
possibilita que o teórico/prático elucide opiniões. Em condições de globalização, é
preciso comprometimento para ouvir as vozes marginalizadas (SPIVAK, 1999).
Para uma pessoa como eu, que experimenta tanto os efeitos positivos como os
negativos do pós-colonialismo e da globalização, esses processos são, ao mesmo tempo,
18 Sharma-Brymer

uma agonia e uma realização. Afirmo a importância de ouvir o outro e de responder


às complexidades crescentes. Os contextos de exploração econômica, marginalização
social e dominação cultural passaram por mudanças enormes na última década. Para
alguns, a mudança foi positiva e possibilitou a realização de sonhos que eram
impossíveis para a geração de seus pais. Para outros, os sonhos levaram a dilemas e
conflitos. Uma análise do pós-colonialismo é enriquecida por estórias de muitos outros.
As estórias registram suas angústias e suas realizações, e revelam as contradições de ser
um cidadão instruído e participante de um sistema tradicional. Ao tratar dessa questão,
o pesquisador ultrapassa fronteiras e limites, dicotomias e preconcepções (PAREKH,
2000). A análise pós-colonial já não se restringe apenas à exploração e à impotência
(HALL, 1996): em vez disso, precisa esclarecer de que modo processos econômicos,
sociais e culturais de exploração são perpetuados ao lado de esforços para conseguir
extirpar o colonialismo (LOOMBA, 1998).
Inúmeros críticos sustentam que a colonização não é exclusivamente ocidental
ou o resultado do imperialismo (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 1995). Por
exemplo, as inúmeras invasões políticas e culturais ocorridas no subcontinente
indiano colonizaram repetidamente as comunidades autóctones. A Índia, embora
seja hoje politicamente unificada e democrática, ainda é um caldeirão fervilhante
de muitos conflitos internos. As comunidades tribais dos estados do nordeste da
Índia, por exemplo, são vítimas de diferentes modalidades de exclusão, separação
e exploração aguda (DEVI, 1995). Uma análise pós-colonial investiga questões de
dominância, poder e controle entre elites não europeias e no interior delas. Examina
as maneiras como se discriminam outros grupos, recorrendo a uma organização de
casta, classe, gênero e etnia. O domínio e o poder muitas vezes estão relacionados
ao controle sobre os sistemas de educação. Contudo, a análise pós-colonial diz
respeito também à dominação ocidental, sua abrangência global, sua complexidade
e as influências capitalistas sobre os sistemas de valores de sociedades colonizadas.
Entretanto, mais uma vez, o dilema de um vivenciador do pós-colonialismo é
manter os valores tradicionais ou fazer concessões e adaptar-se aos modos do
mundo multicultural contemporâneo, em constante mudança (PAREKH, 2000).
Esses dilemas apontam para outra crítica por vezes dirigida à teorização pós-
colonial: como generalizações feitas a partir da análise do discurso podem fazer justiça
às experiências associadas a diferentes culturas, regiões geográficas e idiomas? É
possível, por exemplo, analisar a Índia, a África e a Austrália utilizando os mesmos
critérios? Será imprecisa qualquer tentativa de classificar esses países pós-coloniais tão
diferentes entre si. As experiências de povos de países pós-coloniais são tão distintas
quanto os efeitos do pós-colonialismo. Consequentemente, pesquisar os efeitos,
explorar pontos em comum e envolver-se com estórias específicas constituem
abordagem mais criativa para um pesquisador do pós-colonialismo do que
desenvolver generalizações. Em países africanos, os efeitos do pós-colonialismo em
termos de iniquidades relativas a poder, pobreza, deslocamentos geográficos e rupturas
Reflexões sobre pós-colonialismo e educação 19

nas relações sociais são amplamente difundidos, assim como o são os efeitos da
educação moderna sobre culturas locais na Índia, no Sri Lanka, na Austrália, na África
e no Sudeste Asiático. Mesmo assim, apesar dessas similaridades, é preciso ouvir o
outro em cada país. Estórias de experiências complexas podem ser únicas, mas revelam
camadas mais profundas e dão voz a preocupações ocultas ligadas a classe, casta,
gênero e raça (PIETERSE; PAREKH, 1995).
Uma perspectiva pós-colonial procura estudar as divisões e iniquidades
socioeconômicas associadas a controle do conhecimento, restrição de acesso à
educação e dominação/poder resultante desses controles. Assim, a disseminação de
trabalhos nos quais a ciência é escrita como a história do progresso do Ocidente, e
a história é vista como um relato da ascensão bem-sucedida do capitalismo e do
colonialismo, é associada à discriminação e opressão do outro (SAID, 1978). Isso
fica evidente em textos recentes sobre conservação e consciência ambiental em
lugares nos quais as múltiplas formas de comunicação simbólica e os conceitos de
convivência harmoniosa das comunidades autóctones foram pouco compreendidos
(DEVI, 1995; SHARMA, 2002; SMITH, 1999). As abordagens pós-coloniais
sugerem que é preciso examinar os diferentes fatores do passado e do presente para
analisar o modo como ocorrem a apropriação e a negação do conhecimento.
Consequentemente, um pesquisador do pós-colonialismo expõe tensões, dilemas
e contradições com relação a educação e mudanças.

Pós-colonialismo e educação: tensões, contradições e dilemas


Um dos dilemas que se apresentam a um indivíduo originário de um país do
terceiro mundo é encontrar a via ética adequada para apropriar-se do conhecimento
adquirido a partir do modelo ocidental de educação. Esse indivíduo deve reconhecer
suas qualificações educacionais formais e sua mobilidade ascendente, ou refletir sobre
o que se perdeu nesse processo? Qual é a alternativa disponível, em caso de rejeição
do modelo ocidental? Até que ponto essa escolha é boa para o indivíduo que quer
cruzar as fronteiras de estados, províncias e nações, ou mesmo ultrapassar a barreira
idiomática de sua língua local para ter acesso a informações que são apresentadas
no idioma global, o inglês? Devemos sentir raiva das injustiças cometidas pelos
governantes coloniais contra nosso país ou embarcar na onda da educação moderna
e de seus benefícios? Devemos responder à internacionalização da educação ou
permanecer excluído das melhores oportunidades materiais que a educação ocidental
moderna propicia? Esses dilemas estão entrelaçados à vida quotidiana de pessoas
instruídas nos países de baixa renda, e levam a diversos níveis de contradições.
A estrutura das relações de poder social e dos mecanismos de controle de
recursos reforçada pelo colonialismo resultou em discriminação contínua contra
indivíduos de determinadas classes, castas, etnias e do sexo feminino, com a negação
de seus direitos fundamentais. Alguns pesquisadores analisaram dominância racial
e questões de gênero, elucidando a manifestação pós-colonial, com observações
20 Sharma-Brymer

sobre globalização e internacionalização, além de apresentarem considerações sobre


o modo de questionar o desenvolvimento e de responder a ele (MOHANTY, 1990,
2003; SHARPE, 2003; SPIVAK, 1999, entre outros).
Nas estruturas patriarcais, as mulheres têm sido sujeitas a vários níveis de
submissão. Suas lutas, tensões interiores, conformidade e resistência, seus conflitos
e contradições estão relacionados a múltiplas identidades. Suas experiências, quando
interpretadas sob o prisma pós-colonial, revelam o movimento de mentes, pessoas,
e identidades. O momento intermediário revela a influência da educação moderna
sobre a tradição e a cultura. A luta de um indivíduo que recebe educação e que se
situa na confluência entre um sistema educacional colonial, sua própria cultura e
a globalização elucidam como ocorre o hibridismo e de que forma a identidade
migra do local para o global.
Na seção seguinte, analiso as experiências de mulheres instruídas, tomando-as
como ponto focal para discutir aspectos da educação em tempos pós-coloniais.
Baseio-me em relatos de mulheres indianas instruídas que fazem parte de um estudo
fenomenológico amplo realizado por mim (SHARMA-BRYMER, 2007). Minha
intenção é usar a perspectiva de alguém que viveu pessoalmente a experiência pós-
colonial para interpretar a mulher instruída híbrida, que deve receber educação e
que, por meio dessa educação, torne-se os “olhos para sua família”. Há mudanças
positivas nesse movimento da mulher para a esfera pública. Entretanto, uma
mudança de localização não significa que ela adquira poder, passe a tomar decisões
ou a controlar sua vida. O que fica claro é a natureza de sua experiência em diferentes
camadas, associada a melhores condições materiais e a conflitos mais intensos.

Mulheres, educação e participação em sociedades pós-coloniais


Embora muitos argumentem que a educação ocidental moderna é necessária para
que as opiniões das mulheres sejam ouvidas, frequentemente relacionando essa ideia
ao trabalho que alia direitos humanos e direitos da mulher (por exemplo, AFSHAR,
1998; FOX, 1999; GHOSH; TALBANI, 1996; HEWARD; BUNWAREE, 1998;
HOWELL; CARTER; SCHIED, 2002; KABEER, 1999; STROMQUIST, 1998;
UNTERHALTER, 2000; WAZIR, 2000), afirma-se também que a educação não faz
nenhuma diferença no sentido de mudar as condições de vida da mulher (por exemplo,
BHASIN, 1994; LONGWE, 2001). Sarah Longwe (2001) é uma voz ativa na África
ao discutir os resultados da educação moderna na vida das mulheres. Observa que as
mulheres instruídas adaptam-se aos sistemas patriarcais e deles se beneficiam. Ao
assumir cargos superiores no governo, reforçam a subordinação feminina. Sarah
Longwe refere-se a essas mulheres como membros honorários do clube masculino, e
mostra como elas mesmas discriminam mulheres ativistas nos movimentos populares.
O propósito da escolarização é inculcar nas meninas a aceitação da ‘normalidade’ da supremacia
masculina […] a crença de que é ‘tradicional’ e ‘natural’ que seu papel esteja restrito a cuidar das
crianças, tomar conta da casa e apoiar seus maridos (LONGWE, 2001, p. 68).
Reflexões sobre pós-colonialismo e educação 21

A partir de seus estudos sobre a educação de adultos em Zâmbia, a autora


observa uma diferença significativa entre o que se acredita e o que se pratica em
termos de escolarização e educação. Ao preconizar uma mudança, Sarah Longwe
enfatiza que “a educação das mulheres para a governança democrática precisa estar
associada com desaprender (grifo meu) todas as mensagens antidemocráticas e
opressoras implícitas nas crenças e atitudes inculcadas durante a escolarização”
(LONGWE, 2001, p. 71). Essa recomendação para desaprender contrasta com as
exigências de uma expansão da educação.
Da crítica de Longwe decorrem duas questões. Em primeiro lugar, há formas
de educação com potencial para aumentar os níveis de consciência e conhecimento,
mesmo que isso nem sempre se realize na prática? Em segundo lugar, a alfabetização
básica ou a educação básica possibilitam às mulheres melhor participação e
cidadania igualitária? Não existe concordância quanto a esses dois pontos. Assim,
Nelly Stromquist (1990, 1996, 2005) enfatiza o resultado da alfabetização para
alcançar níveis mais elevados de consciência e conhecimento; porém muitos
ativistas, como Bhasin (1994), mostram que isso nem sempre ocorre. É necessário
um número maior de pesquisas para explorar o conhecimento que as mulheres
obtêm com a escolarização e o significado que atribuem à sua educação quando
adultas. Essa exploração coincide com a preocupação de Elaine Unterhalter no
sentido de ouvir os relatos pessoais de mulheres (UNTERHALTER, 2005).
Dois relatos feitos por mulheres indianas instruídas mostram claramente esses
contrastes. Uma delas sustenta que a educação valorizou sua vida. A outra destaca
o papel importante da tradição e as limitações em sua ação.
Podemos fazer tudo, tudo o que queremos… temos coragem, confiança… essa coragem provém
da educação. Se você não tem educação, você não sai, você fica sentada em casa o tempo todo
(Rani, professora de física, 36 anos).

Assim, eu estava um pouco consciente demais de nossa vida, de nossas dificuldades. Havia
contentamento, satisfação… Eu estava orgulhosa, feliz. Tornei-me determinada a fazer alguma
coisa a mais em minha vida e alterar meu estilo de vida, estudar, arrumar um emprego, tornar-
me alguém notável… Sim, eu me opus. Eu me opus, disse que não queria esse casamento. Eu
não queria me casar com meu próprio cunhado. Mas eu tinha que respeitar os mais velhos. Eu
não sou exigente, não espero que ele realize todos os meus desejos… Aprendi a rir para espantar
o sofrimento (Vinoda, antiga professora de ensino médio).

Os resultados da educação são muito diferentes, e as aspirações decorrentes da


educação não são uniformes. Um estudo anterior sobre mulheres da zona rural na
Índia evidenciou que a maioria delas sentia que suas filhas precisavam ser educadas.
Entretanto, por diversas razões pessoais, econômicas e sociais, essas meninas não
podiam ir além do certificado de conclusão do curso primário ou do ensino médio
(SHARMA, 2001). O interesse pela educação de suas filhas estava ligado à obtenção
de prestígio social ou à negociação de noivo pertencente a uma família em melhor
22 Sharma-Brymer

situação. Porém, famílias economicamente menos favorecidas, que viviam em áreas


semiurbanas ou urbanas, encorajavam as meninas a estudar pelo menos até obter o
certificado de conclusão do ensino médio, a fim de conseguir empregos em fábricas
cujos salários fossem melhores do que os baixos salários pagos aos trabalhadores
diaristas de áreas rurais. As famílias em melhor situação econômica tendem a
incentivar uma educação mais avançada, inclusive universitária, para valorizar o
status de suas filhas na sociedade e ampliar as oportunidades, sobretudo no que diz
respeito ao casamento (CHANANA, 2001). Dessa forma, as pessoas de áreas
urbanas e semiurbanas tendem a considerar a educação das meninas mais como um
fator positivo em termos de perspectivas de emprego e casamento do que como um
elemento de aumento de poder nos planos psicológico ou cognitivo do
desenvolvimento, como analisado por Stromquist (1996).
Entretanto, aparentemente é necessário examinar o ganho obtido com a
educação e o que efetivamente é internalizado em comparação com os resultados
tradicionalmente proclamados da educação (desenvolvimento pessoal,
conhecimento formal de uma disciplina, visão de mundo e igualdade), em
quaisquer estudos que questionem as experiências de escolarização de mulheres.
Isso é confirmado pelas opiniões de algumas mulheres instruídas em
circunstâncias pós-coloniais. Nirmala revela o quanto sua própria experiência
educacional foi conflitante, e de que maneira ela tenta agora garantir para sua filha
uma experiência melhor de aprendizagem. Rani e Vinoda, ao contrário, falam dos
efeitos positivos de sua própria educação:
Tudo o que pode ter faltado em minha educação, em minha vida, estou tentando preencher essas
lacunas, aperfeiçoar-me e dar a minha filha o que é necessário para seu desenvolvimento. O que
vim a conhecer na época do meu curso de graduação ela já sabe mesmo na 2a e na 3a série (Nirmala).

[…] você aprende algo com qualquer coisa que você leia… Estou contente por estar usando o
que estudei para o bem de minha vida (Rani).

Veja, todo esse conhecimento, essa consciência sobre a condição feminina, a história… tudo isso
veio da minha educação (Vinoda).

Em outro trecho, porém, Rani relata sua posição submissa:


Se uma mulher não é casada, isso passa a ser o maior fracasso de sua vida. Meus próprios irmãos
não me respeitam porque eu ainda não me casei. Quando comprei minha motocicleta, eles me
perguntavam por que eu queria um veículo, o que é que ia fazer com ele… Eu não tinha marido
nem filhos. Essas são as únicas vezes em que eu me sinto muito triste e penso: para que tanta
educação? (Rani).

Não existe consenso sobre a relação entre o conhecimento das mulheres e sua
educação. Alguns trechos de dois relatos revelam perspectivas diferentes:
Reflexões sobre pós-colonialismo e educação 23

Eu penso primeiro em meus filhos e em meu marido e ajo de acordo com as necessidades deles;
é raro que eu tenha uma hora para mim mesma, para minhas próprias coisas. Essa é a realidade
da vida (Nirmala, mulher que não trabalha fora de casa).

Ele disse, ‘Faça o que você quiser. Eu lhe darei toda a liberdade. Mas só depois de ter cumprido
os deveres em casa. Cuide bem dos meus pais, você não precisa procurar um emprego’. Eu aprendi
muito com ele. Sinto-me feliz de poder corresponder a suas expectativas com minha educação
(Deepa, mulher que não trabalha fora de casa).

A literatura reflete essas diferentes perspectivas. Ampofo, Beoku-Betts, Nijambi


e Osirim (2004), autores que examinam estudos relacionados à mulher e à questão
do gênero em países anglófonos da África Subsaariana, afirmam que estudiosos e
ativistas feministas africanos são sensíveis ao impacto de sistemas educacionais
formais impostos durante o período colonial. Entretanto, eles também observam
os efeitos da discriminação de gênero em diferentes níveis da escolarização no
momento atual, tais como acesso, retenção e conclusão; conteúdo curricular;
feminização de alguns setores de emprego; questões de assédio sexual. De acordo
com esses autores, alguns pesquisadores que estudam mulheres e questões de gênero
argumentam que,
com o desenvolvimento de iniciativas estatais voltadas à promoção de gênero e desenvolvimento,
esses programas poderiam perder sua força política e acabar prestando serviços convencionais ou
de natureza conservadora no âmbito do treinamento e da defesa relacionada a gênero (AMPOLO
et al., 2004, p. 698).

Mesmo com programas de ação positiva em favor das minorias, “a educação


não se traduz em postos de trabalho equitativos para as mulheres no mercado de
trabalho” (AMPOLO et al., 2004, p. 698). Em outras palavras, a educação não
melhora necessariamente as chances das mulheres na esfera pública.
Por outro lado, referindo-se ao programa de Educação Básica Universal na
Nigéria, Okiy (2004) destaca a relação positiva entre a educação e a maior
participação feminina no desenvolvimento nacional. A autora afirma que a postura
desfavorável da sociedade com relação ao desenvolvimento educacional de meninas
é o fator causal de sua escassa participação no desenvolvimento nacional. Sua
conclusão é que “o programa produzirá mulheres instruídas que terão absorvido a
cultura por meio da leitura em bibliotecas escolares […] criando assim o veículo
necessário para um desenvolvimento nacional acelerado” (OKIY, 2004, p. 48).
Aparentemente, essa afirmação apoia o slogan público bastante difundido na Índia:
uma mulher instruída aumenta o bem-estar de um país. Uma questão interessante
que surge da leitura das observações acima é a confusão entre o que se espera que
as meninas e mulheres experimentem e o que realmente acontece.
Fazer com que as experiências femininas sejam importantes e significativas e
preservar suas características distintivas em sociedades pós-coloniais é uma tarefa
24 Sharma-Brymer

desafiadora. Gail Kelly (1992, 1980) destacou a necessidade de concentrar-se mais


na exploração das particularidades das experiências educacionais das mulheres do
que nas generalizações. Pesquisadores como Mohanty (1991, 2003) questionaram
a hegemonia do conhecimento feminista ocidental com relação à vida de mulheres
dos países em desenvolvimento (ver também AFSHAR, 1998; HEWARD;
BUNWAREE, 1998; JAYAWARDENA, 1986; THIRUCHANDRAN, 1999),
enquanto Bell Hooks destaca a importância das interseções de raça, gênero e classe
nas pesquisas sobre a vida de mulheres (HOOKS, 1994).
Embora se considere que a educação em tempos pós-coloniais propicie reformas
na vida pública, argumenta-se também que a educação não muda o status das
mulheres como cidadãs de segunda classe (BHASIN, 1994; GHOSH; TALBANI,
1996; GHOSH; ZACHARIAH, 1987; LONGWE, 2001; REDDY, 1991;
SINGH, 2002; TALBANI, 2001). Mesmo assim, uma mulher instruída que tem
um emprego é vista como um patrimônio para a família. Os papéis múltiplos de
uma mulher instruída, como esposa, mãe, trabalhadora e boa gestora/construtora
da família, podem ser valorizados. Essa imagem de mulher instruída é contraditória,
dando origem a questões críticas sobre ação e autoexpressão.
Eles queriam uma menina para ser uma dona de casa. Se uma esposa é boa, se ela é instruída,
adaptável, a paz é mantida e existe harmonia, o que é importante. Um pouco para o emprego,
muito para nossa família, filhos, e um mínimo para nós… isso é o que eu sou, como mulher
instruída! (Kanaka, professora, 42 anos).

Na Índia atual, existe um slogan promocional para a educação de meninas e


mulheres: “mulheres instruídas são os olhos da comunidade”; ela é uma riqueza
para sua família e para a nação. As políticas nacionais de educação introduziram
mudanças positivas para a maior participação de meninas e mulheres. Entretanto,
argumenta-se com frequência que ainda não foi possível alcançar uma educação
feminina que contribua para o progresso nacional (GUHA, 1974; PROBE, 1999;
SEN, 1999, 2005; WAZIR, 2000). A igualdade de gênero na educação ainda é
uma ilusão. Mesmo as mulheres instruídas que ocupam cargos elevados nas
universidades têm menos poder que seus pares do sexo masculino, e atuam em um
ambiente que restringe sua autoridade (CHANANA, 2001, 2003). O relato de
Deepa aponta alguns problemas e sugere soluções:
Entretanto, por mais que uma menina aprenda, instrua-se ou equipare-se aos meninos em termos
de desempenho nos planos educacional ou profissional, existe a sensação de que ela é uma menina,
portanto, vem em segundo lugar. Embora possa ganhar mais do que os meninos, ela continua
sendo a segunda. Essa preferência por meninos vem de longe. Em uma família, essa menina tem
um desempenho perfeito em todas as áreas – currículo, outras atividades, tudo, enfim – e, em
comparação, aquele menino tem um desempenho inferior. As pessoas dizem que ele deveria ter
um desempenho igual ou superior ao dela, e param de incentivá-la. Mesmo que ela ingresse em
um curso de engenharia, os pais dirão que seus filhos homens devem ser matriculados em
engenharia. Eles não têm planos para sua filha. Eu estou tentando criar em meu filho maior
sensibilidade quanto a gênero, que ele deve respeitar as meninas. Deveria haver uma mudança
Reflexões sobre pós-colonialismo e educação 25

total na educação, desde o início. Como tornar a menina economicamente independente, por
exemplo… O que eu quero dizer é que não diz respeito só à educação, deve haver uma mudança
total de atitudes (Deepa, mulher que não trabalha fora de casa).

As mulheres indianas têm uma posição singular em uma interseção de classes,


castas, gênero, raças, etnias e nacionalidades (JEFFERY; BASU, 1998;
MANKEKAR, 1999; MOHANTY, 1991, 2003). É comum esperar que as
mulheres de classe média sejam as preservadoras de sua tradição e cultura (THARU;
LALITA, 1993). Embora as influências culturais ainda sejam fortes, a
democratização, a modernização, a participação da mulher e a inclusão educacional
afetam a vida das mulheres de diversas maneiras (CRANNEY, 2001; GANGULY-
SCRASE, 2002; HANCOCK, 1999; TABER, 2007). Assim, a educação e a
cidadania em um ambiente pós-colonial trazem muitos desafios. Na Índia, onde
existe um sistema de governança local descentralizada (o panchayat, espécie de
conselho comunal), a mudança no envolvimento e na expressão da atuação das
mulheres foi limitada (VIJAYALAKSHMI; CHANDRASHEKAR, 2001). Estudo
realizado por Sooryamoorthy e Renjini (2000) revelou que, no nível da comunidade
local, as mulheres interessam-se muito pela ideia de tomar as rédeas do poder em
organizações administrativas descentralizadas. Entretanto, os homens tendem a
intervir e atuar como tomadores de decisão. Vijayalakshmi e Chandrashekar (2002)
observam que, embora as mulheres com representatividade na governança local
tenham autoridade, não houve mudança de poder. Os autores enfatizam a
necessidade de “uma concepção alternativa de poder centrada no indivíduo, e não
na posição” (VIJAYALAKSHMI; CHANDRASHEKAR, 2002, p. 1). O relato de
Kanaka elucida de maneira muito apropriada de que modo a tradição reprime as
intenções de uma educação formal para uma menina:
Ela pode realizar algo apenas se seu marido, seus filhos, os membros de sua família
compartilharem seus sonhos… caso não cooperem, ela sente-se desorientada. O menor deslize,
seja ele qual for, a falta é dela, e ela não pode ser bem-sucedida. Em nossa sociedade, a menina
tem seus limites estabelecidos desde seu nascimento. Sendo menina, ela está sob o controle de
seu pai; ao casar-se, pertence ao marido; e, mais tarde, é subordinada a seu filho. Nós, mulheres,
construímos nossa vida entre quatro paredes (Kanaka).

As questões de poder e controle são muito evidentes mesmo na vida de uma


mulher instruída, independentemente do fato de ela ter emprego. Uma educação
formal moderna e uma carreira não resultam em equidade e controle. Kanaka deixa
isso muito claro:
Uma de minhas turmas tem cerca de 15 meninas e 25 meninos, e há o caso específico de um
menino. Seus pais chegam e me dizem: ‘Veja, senhora, tudo vai bem com minha filha. Ela está
nessa turma. Tudo o que temos que fazer é pagar um dote e casá-la. Mas, no caso do nosso
menino, estamos particularmente atentos. Ele tem que ser muito bem educado e enviado à
América. Então, dê mais atenção ao nosso filho’. Mas a realidade que eu conheço, como
professora, é que falta a esse menino a capacidade para ter melhor desempenho, enquanto a
26 Sharma-Brymer

menina é muito esperta, inteligente. Ela tem um bom desempenho. Mas nossa administração
obriga os professores a promover esses meninos aos níveis mais elevados, mesmo que eles não
tenham condições para isso. Veja, com a administração nos pressionando, mesmo que estejamos
plenamente cientes, nada podemos dizer. Não podemos dar curso à nossa percepção (Kanaka).

É muito importante e necessário delegar poder às mulheres por meio de um


conhecimento que lhes possibilite negociar melhor em um mundo dominado pelos
homens (RAMACHANDRAN, 2000). Entretanto, é possível dizer que a educação
capacitou as mulheres para negociar equidade e adquirir habilidade para agir? A
imagem que as mulheres instruídas têm de sua própria vida privada reflete a imagem
de sua vida pública. As “guardiãs domésticas das emoções” (BENHABIB, 1987) não
podem assumir o papel de “guardiãs do conhecimento crítico” em uma sociedade
tradicional.1 A educação nessas condições está transformando as circunstâncias de
vida do aprendiz por meio de conscientização crítica? Ou a realidade das expectativas
sociais de subordinação feminina tem maior influência? As duas são diametralmente
opostas? Ou as mulheres podem encontrar um terceiro espaço?

Conclusão: as tensões e contradições de uma vivenciadora


Aparentemente, as mulheres instruídas em países pós-coloniais vivem na
fronteira entre o mundo dos objetivos educacionais formais, das realizações e das
identidades profissionais, em uma confusão “sob a superfície” que tem a ver com
“por que eu estudei tanto?” ou “qual é o propósito de ser uma mulher instruída
nesta sociedade tradicional?”. Sem apoio por parte de um membro masculino de
sua família, após obter seu diploma de graduação, Vinathe teve que abandonar a
família e seu estilo de vida tradicional, e lutar para poder usar sua educação e
encontrar uma qualidade de vida alternativa. No decorrer dessas mudanças,
enfrentou uma série de conflitos pessoais e experiências de ruptura com mudanças
em suas posições culturais e um confronto entre tradição e modernidade. Em seu
caso, a luta fortaleceu a ação individual na escolha de alternativas.
A educação de meninas e mulheres foi um tópico controverso nas culturas locais
de muitos países no período pós-colonial. Sen (1999) observa que só por meio da
educação da mulher um país pode progredir. Dessa ideia de progresso surgem
algumas questões: trata-se de progresso em termos de quê? Progresso econômico ou
social? Essas questões refletem as tensões e conflitos diários de “ser uma mulher
instruída”. Ser instruída significa também estar informada, ser uma cidadã mais
participante e ter mais poder para tomar decisões na vida cotidiana. Entretanto, nos
tempos atuais, uma pessoa instruída e informada é impelida a tornar-se adequada

1. NRTT: A expressão inglesa housekeepers of the emotions (guardiãs domésticas das emoções) diz respeito às
donas de casa em termos de emoções, de relações entre os familiares e as harmonias domésticas. Critical
knowledge-keepers são as mulheres envolvidas com a manutenção, exploração e recriação de importantes
sistemas simbólicos de sociedades (religião ou ciência contemporânea, por exemplo).
Reflexões sobre pós-colonialismo e educação 27

para um emprego e uma carreira. O fato de uma mulher conseguir trabalhar fora
de casa e sustentar-se por própria conta não garante que ela se exprima como uma
mente humana livre (SEN, 2005; TAGORE, 1961) que celebra sua ação e sua
identidade individuais. No dia a dia, na maioria das sociedades pós-coloniais, os
indivíduos tendem a dar grande importância à educação formal, mas separam a
educação da cultura cotidiana. A situação intermediária decorrente do fato de ser
instruída é um espaço pós-colonial de muitos conflitos, tensões e contradições
constantes. E essa situação persistirá entre os efeitos da globalização.

Agradecimentos: Quero agradecer à Dra. Christine Fox por sua participação na geração
de ideias para este capítulo, e ao Dr. Eric Brymer por seu apoio e incentivo constantes.

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43

DESIGUALDADES DEMOCRÁTICAS:
O DILEMA DA EDUCACÃO PRIMÁRIA NA ÍNDIA

Vimala Ramachandran1

Cidadania, participação e educação


Quando fui solicitada a escrever um artigo sobre democracia e educação na
Índia, comecei por me perguntar sobre a ligação entre ambas. A Índia testemunhou
mais de 20 eleições gerais nacionais e inúmeras eleições estaduais e locais. Uma
grande parte das mulheres e dos homens vota. Frequentemente, um eleitorado
predominantemente semianalfabeto e analfabeto faz ouvir a sua voz e destitui
governos do poder. E isso não é pouca coisa. Se tal é o caso, qual é a relação entre
educação e democracia? O filósofo John Dewey apresenta uma correlação positiva
entre elas, e argumenta que a educação é um requisito fundamental para um regime
democrático e inclusivo. Mas a experiência da Índia com política eleitoral poderia
levar a dizer que a doutrina clássica não se aplica nesse país. Seria verdade? Como
a educação – ou a falta dela – e a desigualdade inerente na qualidade e no acesso a
ela impactam a prática democrática? Começarei por uma trajetória pessoal,
explorando em seguida as reviravoltas no discurso sobre educação, equidade e
democracia.
Comecei meu trabalho com mulheres, convencida de que individualmente elas
têm pouca voz na nossa democracia, e que o fato de reunirem-se em grupo,
coletivamente, lhes possibilitaria lidar com o mundo ao seu redor a partir de uma
posição de fortaleza – quer elas fossem alfabetizadas ou analfabetas, instruídas ou
sem instrução. Trabalhei então com pessoas com as mesmas ideias em um programa
governamental (Mahila Samakhya: “Educação para a Igualdade das Mulheres”)
que facilitava a formação de grupos de mulheres, envolvendo-as em processos que
as ajudavam a refletir sobre sua experiência de vida, compartilhar problemas
pessoais e discernir padrões de opressão. Eu acreditava que isso criaria
oportunidades para que pudessem transcender sua situação pessoal de vida e ver a
opressão, a discriminação e a violência como um fenômeno social, um produto das

1. Este artigo foi preparado originalmente sob a égide do projeto Estado da Democracia na Ásia Meridional,
do Lok Niti Institute for Comparative Democracy, Centre for Studies in Developing Societies, Nova Déli em
2005. Gostaria de agradecer a Peter de Souza e Yogendra Yadav do Instituto Lok Niti pela oportunidade de
refletir e escrever sobre esse tema.

31
32 Ramachandran

relações sociais e de gênero na sociedade, das dinâmicas de classe e de casta que


estruturam a vida das pessoas. Estava convencida de que isso iniciaria um processo
de educação verdadeira – desenvolver habilidades para um pensamento crítico, a
confiança para articular problemas e questões e fazer escolhas mais esclarecidas.
No entanto, enquanto avançávamos com nossa agenda de aumento de poder,
chegamos a uma barreira. O próprio fato de que, em sua maioria, as mulheres com
quem trabalhávamos eram analfabetas ou pouco alfabetizadas inibia sua capacidade
para assumir o controle das instituições que haviam criado, o que afetava sua
capacidade de participar em condição de igualdade. A liderança dos grupos e da
federação de grupos de mulheres era invariavelmente transferida para pessoas
instruídas – aquelas que poderiam lidar com a palavra escrita, ler, escrever e
compreender a matriz complexa das instituições sociais e políticas – tanto grupos
de autoajuda voltados para meios sustentáveis de subsistência, como grupos sociais
lutando pela participação nas instituições autônomas locais ou grupos de
desenvolvimento tentando ter acesso a recursos para a sua comunidade. O próprio
fato de que as mulheres pobres não iam à escola, ou iam a escolas que ensinavam
pouco, constituiu-se em barreira à participação nos processos institucionais. O
fenômeno era palpável onde as mulheres concorreram e ganharam as eleições do
Panchayat: ser analfabeta ou semianalfabeta era evidentemente uma barreira para
um funcionamento eficaz. Ainda mais inquietante era o fato de que seus filhos e
netos também eram privados de acesso a uma educação significativa. O ciclo
intergeracional de educação insuficiente/analfabetismo e pobreza mantinham-nos
na camada mais baixa. Sua casta, a localidade, a comunidade e a situação econômica
determinavam ou não a sua participação.
O que isso tudo tem a ver com democracia?
Todos nós sabemos que os eleitores indianos comparecem às urnas em larga
escala e destituem governos que não correspondem a suas expectativas. Sabemos
também que alfabetização e educação têm pouco a ver com a capacidade das pessoas
para exercer seu direito de voto (exceto em lugares onde são impedidas de votar).
Ou em que as escolhas são restritas em função da natureza do sistema político.
Mesmo assim, por mais limitada que seja a escolha, as pessoas exercem seu direito.
Formalmente, a democracia é um exercício de escolha. Tem a ver com direito
de voto, com a relação uma-pessoa um-voto, e com um-voto um-valor. Em um
nível um pouco mais profundo, associamos também a democracia ao Estado de
direito e às instituições. Esperamos que as sociedades democráticas respeitem as
liberdades civis e os direitos humanos, e valorizem a imparcialidade nos processos
judiciais – mecanismo por meio do qual cada pessoa pode aspirar à justiça.
Orgulhamo-nos de um Poder Legislativo que formula as leis e de um sistema
executivo e um administrativo que as cumprem. Damos importância ao direito à
liberdade de expressão e a uma mídia que funcione em um ambiente competitivo.
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 33

E, acima de tudo, valorizamos o nosso direito à igualdade e queremos ser tratados


como iguais. Reconhecemos que a existência de instituições democráticas é um
pré-requisito para uma democracia vibrante.
Os estágios subsequentes são um pouco mais complexos. A mera existência de
instituições democráticas não é uma garantia de práticas democráticas. A
Assembleia Constituinte entendeu que os direitos só poderiam ser concretizados
se criássemos uma situação onde todos têm chances iguais. Reconhecendo os
séculos de discriminação baseada no sistema de castas, iniciamos políticas de ação
afirmativa e, em reação à bagagem histórica de exclusão social e exploração
econômica, introduzimos quotas nas instituições educacionais e nos empregos
públicos. Pelo menos no nível formal, havia consenso de que a ação afirmativa
estava em harmonia com o espírito da democracia e da igualdade de oportunidades.
Nesse sentido, a educação foi considerada como ferramenta primordial para a
execução da obrigatoriedade constitucional de igualdade de oportunidades. Os
debates na assembleia constitucional trataram com certo detalhe essa questão, e a
utilização da ação afirmativa como um mecanismo eficaz para reagir a séculos de
discriminação e exclusão era consenso nacional.
Uma primeira reviravolta na nossa narrativa de democracia e igualdade veio
com o fracasso em fazer da Educação Primária Universal (EPU) um direito
fundamental das crianças, em vez de relegá-lo aos Princípios Diretrizes –
orientações não sujeitas à jurisdição, no lugar de um direito judicialmente
obrigatório. Fazer da educação primária universal um direito fundamental teria
tido implicações de longo alcance. Primeiramente, (do ponto de vista do governo
naquele momento), teria envolvido um enorme investimento em infraestrutura de
ensino. Em segundo lugar, fazer da educação um direito judicial significaria que
os cidadãos poderiam processar o governo, caso não houvesse disponibilidade de
acesso à escola.2 Consequentemente, mesmo sendo a EPU aceita como condição
mínima não negociável para garantir uma prática real da democracia, os pais
fundadores da Índia democrática não fizeram dela um direito fundamental. Por
isso, cinco décadas e meia depois de nos declararmos uma república democrática
soberana, ainda não cumprimos a promessa feita em 1950.
A educação talvez não tenha uma relação direta com a democracia formal. No
entanto, a experiência das últimas seis décadas mostrou que a ausência de educação
afetou a capacidade dos cidadãos para envolver-se com as instituições associadas à
prática da democracia. A falta de instrução afeta a capacidade das pessoas para
transcender a situação em que se encontram quando nascem, prejudica sua
capacidade para lidar com o labirinto de instituições que as cercam, rouba a
autoestima e a confiança e silencia a voz do marginalizado e do menos favorecido.

2. É muito interessante, de fato, que essa questão continue a nos acossar em 2007! O projeto de lei detalhando
as implicações de tornar a educação um direito fundamental ainda não foi implementado.
34 Ramachandran

Em última análise, a ausência de educação empurra as pessoas sem voz para guetos
– ressuscita identidades comunitárias, religiosas, linguísticas e de castas – e cria
novas formas de exclusão e segregação social. A educação, embora tenha o poder
de atuar como agente de mudança, de “neutralizar as distorções acumuladas do
passado” (INDIA, 1986, cap.IV, p. 6, par. 4.2 e 4.3) não poderia desempenhar
esse papel. A Índia de hoje tem diferentes tipos de escolas, atendendo a diferentes
grupos da população. Há escolas de diversas formas e tamanhos – meio vernáculo
versus meio inglês; escolas públicas versus escolas privadas; escola regular versus escola
de transição; escolas com um único professor versus escolas onde cada classe tem
um professor, e assim por diante. Infelizmente isso reforçou as identidades sociais
e comunitárias existentes. A trajetória educacional da Índia parece confirmar a
apreensão do professor Partha Chatterjee sobre a natureza das sociedades pós-
coloniais, onde o sistema colonial de desigualdades é perpetuado.3
Uma jornada pessoal que começou com a mobilização e o aumento de poder
das mulheres levou-me, com o passar do tempo, ao campo da educação primária
– o campo de batalha onde a política de inclusão e exclusão acontece de uma
geração para a outra, reduzindo os marginalizados à situação de espectadores
silenciosos do grande teatro das eleições periódicas que trazem poucas mudanças
na estrutura básica de opressão e exclusão.
A relação entre educação e democracia é como uma espiral invisível graças à qual
quem detém o controle pode mantê-lo e quem se encontra na base ali permanece
alienado e sem voz. Da maneira como se manifestou na Índia independente, a
educação produz mais impacto sobre a prática substantiva da democracia, por seu
potencial para aumentar a capacidade das pessoas, do que sobre o sistema formal de
eleições. A educação tem o potencial para aumentar a capacidade das pessoas. Como
Dreze e Sen (2002) afirmam de maneira convincente:
A ‘capacidade’ refere-se às combinações alternativas de funcionamento entre as quais uma pessoa
pode escolher. Assim, a noção de capacidade é essencialmente uma noção de liberdade – um
conjunto de opções que uma pessoa tem para decidir o tipo de vida que quer levar. Sob esse
ponto de vista, a pobreza não reside apenas no estado de pobreza em que a pessoa vive realmente,
mas também na falta de oportunidades reais para escolher outros modos de vida – em decorrência
de restrições sociais e circunstâncias pessoais (DREZE; SEN, 2002, p. 35-36).

A falta de acesso à educação de qualidade aceitável inibe de maneira importante


o desenvolvimento da capacidade dos cidadãos para envolver-se com instituições
democráticas, enfraquecendo com isso a prática da democracia.
Este artigo analisa de que forma o nosso sistema de educação criou novas
hierarquias e formas de exclusão e inclusão social, com isso desafiando os próprios

3. Ver os livros de Partha Chatterji: CHATTERJI, P. The Nation and Its Fragments: colonial and post-colonial
histories. New Jersey: Princeton UP, 1993; CHATTERJI, P. Nationalist Thought in the Colonial World: a
derivative discourse? Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1998.
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 35

fundamentos de igualdade e equalização de oportunidades, deixando uma marca


indelével na prática da democracia, como observam as palavras proféticas do Dr.
B. R. Ambedkar:
No dia 26 de janeiro de 1950, entraremos em uma vida de contradições. Teremos igualdade na
política, mas na vida social e econômica teremos desigualdade. Na política reconheceremos o
princípio de um homem/um voto e um voto/um valor. Na nossa vida social e econômica, em
razão da nossa estrutura socioeconômica, continuaremos e negar o princípio de que todos os
homens têm o mesmo valor. Por quanto tempo continuaremos a negar igualdade na nossa vida
social e econômica? Se continuarmos a negá-la por mais tempo, acabaremos por colocar em perigo
a nossa democracia política. (AMBEDKAR, 1949, apud KHILNANI, 1997, p. 35).

O fardo cumulativo da exclusão


Em 2003, eu estava envolvida em um projeto de pesquisa qualitativa
multissetorial interessante. O objeto: analisar os fatores que facilitam ou impedem
a conclusão da escola primária entre as pessoas do quartil de mais baixa renda da
população em Karnataka, Uttar Pradesh e Andhra Pradesh. Esse estudo analisou
diferentes fatores – a criança, a família, a comunidade e as instituições
(particularmente a escola primária, os Serviços de Desenvolvimento Integrado da
Criança (SDIC) e outros serviços relacionados à saúde) – que têm impacto sobre
a saúde, a nutrição, a educação da criança, e suas interconexões, tanto positivas
como negativas (RAMACHANDRAN, 2004). Passamos um tempo considerável
em vilas e bairros urbanos pobres, conversando com as mulheres, interagindo com
as crianças, observando escolas e creches e entrevistando professores e cuidadores.
A estória era a mesma em todos os lugares: mães pobres e fragilizadas que davam
à luz crianças que crescem em um ambiente de privação extrema. A total ausência
de suporte institucional ativa um ciclo intergeracional de carência em termos de
saúde, nutrição e educação. A subnutrição endêmica, a imunização parcial ou nula,
o saneamento e a higiene insatisfatórios e os episódios frequentes de doenças tiram
a energia das crianças e afetam seu desenvolvimento intelectual. Quando as crianças
das comunidades mais pobres chegam à idade de frequentar a pré-escola, sua casta,
a localização e a situação econômica passam a ser variáveis determinantes que
delimitam suas chances de acesso a serviços como a alimentação complementar e
educação pré-escolar. Ao atingir a idade de frequentar a escola, a única coisa
garantida é que o nome da criança será inscrito no registro escolar, como uma prova
formal de matrícula. O acesso à escola formal ou de transição é determinado por
seu status econômico, lugar de residência, casta, comunidade ou religião. Nada
garante, porém, que elas poderão frequentar a escola sem interrupção – não
somente por problemas de saúde, mas também porque pouca coisa acontece nas
escolas destinadas aos muito pobres. A atitude dos professores com relação a cada
criança é, na melhor das hipóteses, de indiferença, e o problema é ainda mais
36 Ramachandran

agravado pelo fato de que a maioria das crianças (especialmente as meninas)


trabalha antes e depois do horário escolar. Não existe garantia de que elas
aprenderão a ler e a escrever – especialmente quando frequentam escolas
superlotadas e com um único professor, ou onde a razão professor/alunos é elevada
(chegando a 1:120). Se elas moram longe ou vêm de comunidades empobrecidas,
é bem provável que tenham aulas com uma pessoa da comunidade com pouca
qualificação (conhecidos popularmente como professores contratados ou
paraprofessores).
Apesar disso, os pais permaneciam ansiosos para enviar seus filhos à escola, e as
próprias crianças continuavam cheias de esperança. No entanto, suas aspirações
eram moderadas pela existência ou não de oportunidades. O entusiasmo inicial
em participar transforma-se gradualmente em resignação e apatia – as crianças são
menos assíduas, ficam em casa ou na rua e frequentemente começam a trabalhar
com suas famílias – e, na maioria dos casos, abandonam os estudos sem ter
aprendido qualquer coisa. Os poucos que podem arcar com os custos transferem
seus filhos para escolas privadas ou para um acompanhamento particular. O ciclo
intergeracional é perpetuado, com uma nova geração semialfabetizada (no melhor
dos casos), enfraquecida e apática ou, em muitos casos, exasperada com um sistema
que a trata com tamanha indiferença. Algumas das nossas constatações mais
inquietantes relacionam-se ao péssimo estado em que se encontram os programas
criados pelo governo para fornecer aos mais pobres entre os pobres uma rede de
segurança social.
O ciclo de privação começa com o casamento precoce. A idade média de
casamento é 13 anos, em Uttar Pradesh, e 15 anos, em Karnataka e Andhra
Pradesh.4 A maioria das mulheres jovens é anêmica e fraca. A maioria dos bebês
entre os seis e os 36 meses de idade, aproximadamente, recebem pouca alimentação
complementar – e uma proporção impressionante de crianças apresenta sinais de
desnutrição grave ou moderada. Elas são constantemente amamentadas ao peito,
choram muito e mordiscam pedaços de roti (pão indiano) ou um pouco de arroz.
As doenças frequentes – mesmo simples resfriados ou tosse – afetam a capacidade
da criança para procurar alimento por si mesma, alimentar-se e absorver o alimento.
Na maioria das famílias, o óleo e a gordura são raramente utilizados, mesmo na
alimentação das crianças. Uma descoberta chocante em Uttar Pradesh mostrou que
a maioria das crianças das famílias mais pobres estava apenas parcialmente
imunizadas (vacina antipólio). A situação em Karnataka e em Andhra Pradesh era
um pouco melhor. Quase todas as crianças haviam recebido as gotas de vacina
antipólio e aproximadamente 40%, as doses de BCG, porém outras vacinas contra
doenças evitáveis (DTP, sarampo) aparentemente não constavam da lista de
prioridades dos prestadores de serviços de saúde.
4. A média de idade de casamento da população em geral é de 19 anos (Uttar Pradesh), 20 anos (Karnataka) e
18 anos (Andhra Pradesh) – NFHS, 1998.
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 37

Embora o principal programa do SDIC seja destinado a prevenir a desnutrição


infantil nas famílias mais pobres, as discussões com os trabalhadores de Aanganwadi
revelaram que não havia um sistema para identificar os que sofrem de desnutrição
severa, para que recebessem rações duplas. O acesso era determinado pela casta a
que pertencia o trabalhador e pela localização do centro. Consequentemente, a
maioria das famílias de Uttar Pradesh e Andhra Pradesh incluídas na pesquisa não
se beneficiava do complemento de nutrição fornecido pelo governo. Na verdade,
em Uttar Pradesh, o suplemento nutricional reforçado era fornecido aos centros
do SDIC somente durante cerca de cinco meses por ano, e a maior parte desse
estoque era desviada para venda em lojas locais.
Considerando-se tais adversidades, as crianças que sobrevivem e chegam aos
seis anos de idade são fracas, desnutridas e apáticas. Meninos e meninas, mesmo
aqueles de apenas seis anos de idade, são encarregados de diversas tarefas –
pastoreio, coleta de forragem e combustível, tarefas domésticas, cuidar dos irmãos
e armazenar água. Talvez não seja possível estabelecer uma relação tangível entre a
pobreza endêmica, a desnutrição e o desempenho/sucesso educacional, mas o fato
de as crianças não receberem nutrição adequada e terem pouco acesso aos cuidados
de saúde é preocupante.
Saúde, nutrição e educação têm um impacto decisivo sobre o desenvolvimento
da criança. O estado de saúde e de nutrição da mãe e da criança é evidentemente
mais importante nos primeiros anos, tendo em vista seu efeito sobre o
desenvolvimento cognitivo. A negligência persistente e cumulativa é garantia de
não consecução dos patamares apropriados em termos de etapas de
desenvolvimento. Os resultados de saúde e de nutrição de cada fase passam para a
seguinte, em uma transferência intergeracional de atrasos que resulta, para as
crianças, em uma espiral descendente de pobreza, enfermidade, desnutrição e
resultados de aprendizagem insuficientes.
A questão fundamental não é a persistência da miséria, mas o fato de que os
esquemas governamentais voltados para a população carente raramente alcançam
os mais necessitados. Crianças que começam a vida em situação de desvantagem
não trazem bons augúrios para a democracia. É o caráter cumulativo da exclusão
social, política e econômica que enquadra a vida das crianças pobres e influencia
sua futura capacidade para participar da educação e da vida social e política.
As crianças que experimentam uma carga cumulativa de fracassos de todos os
tipos (saúde, nutrição, educação) entram na vida adulta com pouca confiança e
baixa autoestima. São essas as crianças que, na idade adulta, trabalham como
diaristas, frequentemente forçadas a migrar em busca de trabalho e a continuar
vivendo na pobreza. São aquelas que, para todos os efeitos, são privadas de direitos:
não o de votar, mas aqueles ligados a praticamente todos os demais aspectos da
vida social e política. São aquelas crianças que não têm voz.
38 Ramachandran

Acesso desigual e novas hierarquias


A década de 1990 é frequentemente aclamada como a grande década – pelo
menos em termos de educação primária. Essa década presenciou um salto sem
precedentes nos níveis de alfabetização e em taxas de matrículas, principalmente
entre os grupos sociais menos favorecidos. A alfabetização de mulheres passou de
32,17%, em 1991, a 45,84%, em 2001 – um salto de 13,67% na década de 1990.
A taxa bruta de alfabetização no nível elementar em meio aos grupos tribais subiu
de um patamar mínimo de 40,7%, em 1991, para 75,76%, em 2004; em meio às
castas repertoriadas5, passou de 52,3% para 71,86%. O reverso desse cenário mostra
que 53,7% das crianças matriculadas (57,7% no caso das meninas) abandonam a
escola antes de atingir a sétima série. Essencialmente, isso indica que, embora haja
um grande número de crianças matriculadas, o número de crianças que abandonam
a escola antes de completar o nível elementar é extremamente preocupante. A
maioria esmagadora das crianças que abandonam a escola é pobre (tanto da zona
rural como da zona urbana), vem de comunidades socialmente menos favorecidas
e faz parte da primeira geração a frequentar uma escola.
Apesar da criação de 67 mil novas escolas primárias, a década de 1990
também viu a institucionalização de diferentes categorias de escola, destinadas a
atender diferentes grupos da população. Como mencionado anteriormente, há
diferentes tipos de escolas públicas – a escola pública regular atende
essencialmente os pobres, em áreas urbanas e rurais; as escolas da política de
garantia de educação atendem as crianças que não têm acesso à escola formal em
razão da distância geográfica ou social; as escolas alternativas devem atender as
crianças que não têm acesso à escola formal (por exemplo, as escolas noturnas
no Rajastão); as escolas em regime de internato atendem as crianças de grupos
tribais; e escolas privadas e semiprivadas, a classe média urbana e rural. Estudos
recentes (PROBE, 1999; RAMACHANDRAN, 2002, 2004) revelam que, em
diferentes locais da mesma comunidade, as escolas diferem em termos de
infraestrutura, razão professor/alunos e de professores habilitados. Há também
diferenças significativas de qualidade entre as escolas que dependem diretamente
do departamento de educação e as escolas administradas por departamentos de
bem-estar social ou tribal.
Outra dimensão importante da desigualdade diz respeito aos professores. É de
conhecimento geral que escolas remotas e inacessíveis enfrentam problemas de
indisponibilidade ou absenteísmo frequente de professores. Os professores formam
um grupo altamente organizado, que exerce uma influência considerável na cena
política – afinal, são eles os escrutinadores durante as eleições. Nomeações,

5. NRTT: Os grupos tribais, chamados tribos repertoriadas, representam 7% da população da Índia. As castas
repertoriadas, os dalits, representam 16% da população. São os intocáveis, os impuros e estão abaixo da
última das quatro castas.
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 39

transferências e designações para um cargo de professor são altamente politizadas.


E o que fez então o governo para tratar desse problema?
Em 1987, o Rajastão foi o precursor de uma nova estratégia. O projeto
Rajasthan Shiksha Karmi (SKP) foi criado para tratar do problema da falta de
professores em zonas rurais remotas. O projeto possibilitou o recrutamento de um
professor local – conhecido como shiksha karmi (agente educacional) – porém com
menor qualificação educacional. A ênfase estava no recrutamento local, em
colaboração com a comunidade. O indivíduo contratado recebia treinamento
intensivo de dois meses. Esse novo professor – denominado subsequentemente
paraprofessor – recebia uma fração do salário dos professores públicos. Esse modelo,
embora criado para responder a necessidades específicas das escolas de zonas
remotas, despertou o interesse dos administradores. Havia ali um modelo de baixo
custo e eficaz, que poderia resolver dois problemas de uma só vez – reduzir o custo
da contratação de mais professores em um sistema educacional em expansão
(reduzindo o passivo financeiro recorrente) e garantir a disponibilidade de
professores em escolas até então problemáticas. Esse esquema oferecia uma
oportunidade de promoção aos professores, permitindo que os shiksha karmis
fossem regularizados como professores formais caso preenchessem determinados
padrões acadêmicos.
A grande inovação seguinte veio do estado de Madhya Pradesh – o Programa
de Garantia de Educação (EGE). Os panchayats6 poderiam encaminhar uma
petição ao governo solicitando uma escola em uma vila ou habitação, desde que
houvesse 25 crianças sem acesso a uma escola primária em um raio de um
quilômetro. Por sua vez, o governo garantia uma escola em 90 dias a partir da data
de recebimento da petição. O panchayat deveria fornecer o espaço para a escola
EGE e designar uma pessoa da comunidade que seria nomeada guruji – depois de
passar por uma entrevista e treinamento intensivo oferecido pelo departamento de
educação do governo estadual.
Embora seja importante reconhecer que os programas EKP e EGE tenham
melhorado o acesso e que as zonas rurais remotas dispunham, enfim, de uma escola
que funcionasse, o nível de investimento em infraestrutura, treinamento de
professores e material didático variava enormemente. Seguindo o espírito da ação
afirmativa ratificado na Constituição, o governo deveria, na verdade, investir muito
mais recursos na educação das comunidades menos favorecidas. O que aconteceu
foi o contrário: o investimento per capita em educação diminuiu nas zonas rurais
remotas e tribais, assim como nos novos bairros pobres nas zonas urbanas. Os
modelos de baixo custo foram ampliados e adotados em locais onde eram
necessários investimentos maiores.

6. NRTT: Panchayat é um sistema político da Índia que agrupa quatro vilas ao redor de uma vila central. A
expressão também refere-se a instituições locais autogovernadas.
40 Ramachandran

Um novo tipo de segregação é claramente visível em diferentes níveis. As


crianças de grupos sociais e econômicos diferentes frequentam tipos diferentes de
escolas. Mesmo entre as escolas públicas primárias existem diferenças nítidas na
qualidade – instalações físicas, participação da comunidade, alocação de verbas –,
como mostram os microestudos e outros relatórios e artigos de pesquisa.
(RAMACHANDRAN; SETHI, 2001; MAZUMDAR, 2001; NAMBISSAN,
2001). As áreas mais pobres têm uma proporção mais elevada de escolas com um
único professor e classes com alunos de diferentes níveis. Mesmo em locais onde
modelos diferentes não estavam em vigor até pouco tempo, o número de
professores com baixo nível de qualificação era maior nas escolas rurais e remotas.
Com isso, as crianças de grupos menos favorecidos e de famílias muito pobres que
não tinham outra opção (escola privada, internato) contentavam-se com o tipo de
educação que conseguissem.
Isso reforça a estratificação existente, dando origem a novas hierarquias de
acesso. Paradoxalmente, aqueles que precisam do apoio do Estado (os mais carentes)
são os que menos obtêm. O número de escolas aumentou, mas as áreas mais
remotas e difíceis têm uma proporção maior de escolas com um único professor,
escolas com uma única sala de aula e maior número de paraprofessores e professores
com contratos temporários. A democratização do acesso à escola vem acompanhada
de uma reafirmação da casta, da comunidade e do gênero da criança, ao definir a
escola que ela frequenta.
Isso traz boas perspectivas para uma democracia? Por um lado, preocupamo-
nos com uma sociedade cada vez mais polarizada, em que as identidades de casta,
religião e língua são reforçadas na política. Os partidos políticos mobilizam eleitores
por castas e comunidades, colocando um grupo contra o outro a fim de recolher
votos. Por outro lado, as escolas públicas não proporcionam mais um terreno
comum de encontro para crianças provenientes de diferentes comunidades; as
crianças de hoje crescem sem ter oportunidades de misturar-se com crianças de
outros grupos sociais. Embora esse não seja o caso nas escolas privadas – as crianças
de classe média e de famílias ricas têm amplo acesso à mídia mundial, sendo assim
expostas a diferentes opiniões –, a maioria das crianças pobres, além de frequentar
escolas onde só encontram crianças do mesmo grupo, tem pouco acesso à mídia
(impressa e visual). Elas são duplamente desfavorecidas: pobreza e educação de
baixa qualidade.

Dentro da escola, evidências de discriminação


A família de Savitri é tudo – menos próspera. Mas quando ela abandonou a escola aqui, em
Viraatnagar, não foi devido à pobreza. Para essa menina de 15 anos, seus próprios colegas e o
professor fizeram com que fosse impossível que ela continuasse. ‘No momento em que eu entro
na sala de aula, as outras crianças fazem caretas. Elas começam a cantar bhangi aayee hai, aayee
hai, bhangi aayee hai! (a bhangi chegou). As palavras da canção são grosseiras e ofensivas’. Savitri
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 41

vem de uma família de limpadores e catadores de lixo, um dos grupos mais vulneráveis entre os
dalits (intocáveis7). A etiqueta oficial para eles é bhangi. Muitos pertencem à casta mehter. E vários
desses grupos agora chamam a si mesmos balmikis. Mesmo outras castas repertoriadas tratam-nos
como intocáveis. Com isso, encontram-se no extremo inferior do conjunto da sociedade. As
mulheres catadoras que limpam as latrinas secas cobrem o nariz com uma parte do sari, segurando
a ponta do tecido com os dentes. É o que lhes oferece um pouco de proteção nesse trabalho
insalubre e nada higiênico. As crianças na escola imitam esse gesto quando Savitri chega. ‘Elas
mordem um lado do colarinho e tapam o nariz. Às vezes elas colocam um lenço sobre o rosto. Eu
tenho vontade de chorar, mas elas nem ligam’ (SAINATH, 1999).

Esse fato ocorreu em 1999. Muito antes do terrível incidente de Godhara e dos
tumultos intercomunitários que se seguiram na região, eu estava viajando em
Gujarat com os membros de uma organização dalit para documentar sua
experiência. Interagimos com os mais desfavorecidos entre os dalits – a comunidade
valmiki, cujos membros são empregados como varredores, encarregados de desfazer-
se dos animais mortos, limpar as latrinas abertas e carregar os excrementos humanos
sobre suas cabeças. Durante as visitas de campo, deparamo-nos com diversas
situações de violação das leis vigentes. Em muitas povoações, as terras vizinhas das
localidades dalit eram usadas como local de despejo para estrume e outros tipos de
lixo. O ambiente era insalubre. Encontramos boicote social, violência e intimidação.
Falamos com pessoas submetidas à servidão por dívidas. Visitamos áreas onde as
terras destinadas aos dalits eram controladas e cultivadas por patels e durbars.
O golpe mais sutil, e, mesmo assim, mais devastador para a autoestima dos
dalits, foi o que presenciamos nas escolas primárias. Encontramos um grande
número de crianças que estavam oficialmente matriculadas em uma escola pública,
mas não a frequentavam. Quando perguntamos por que, referiram-se ao
comportamento dos professores, à distância física mantida pelas outras crianças e
à obrigação de sentar em um lugar separado dos demais, em um canto da sala de
aula. As meninas contaram que os colegas de classe tapavam o nariz com a roupa
quando elas se aproximavam. Crianças que enfrentavam todas as dificuldades para
continuar na escola contaram que eram invariavelmente escaladas para varrer o
chão e fazer limpeza, mas nunca para buscar água. Os dalits que têm uma situação
relativamente melhor conseguem escapar para áreas urbanas próximas ou para
escolas privadas, onde podem encontrar um pouco de anonimato. Os pobres, que
dependem das escolas públicas, simplesmente param de frequentar a escola, mesmo
estando oficialmente matriculados. Um jovem de vinte e poucos anos perguntou
qual era a utilidade da ação afirmativa por meio de quotas de emprego, quando a
maioria das crianças dalit não recebia educação básica e uma proporção esmagadora
dos pobres ocupa o nível mais baixo da hierarquia das castas. Outro jovem

7. NRTT: À margem da estrutura social de castas que caracteriza a sociedade hindu, estão os párias – sem casta.
São também denominados intocáveis, impuros ou dalits. Marginalizados, a eles são reservados os trabalhos
mais indignos e mal pagos.
42 Ramachandran

perguntou o que significava democracia: simplesmente votar a cada cinco anos?


Ele nos perguntou se a democracia poderia verdadeiramente prosperar em uma
sociedade desigual e racista. E, o que é ainda mais inquietante, perguntou se pessoas
como ele eram cidadãos do país (RAMACHANDRAN; PRASAD, 2000).
Essa situação não se restringe ao estado de Gujarat: infelizmente, é um
fenômeno de toda a Índia. O perfil socioeconômico é uma barreira para a
participação na educação. É de conhecimento geral que as famílias dalit vivem em
assentamentos distantes da povoação principal. Uma escola, ou mesmo um centro
SDIC, não é facilmente acessível – a distância física e social age como um
impedimento, principalmente em um contexto de grande tensão social. Isso é mais
do que óbvio quando examinamos dados no nível macro relativos a matrículas,
retenção e conclusão. Mais de 50% das crianças dalit que ingressam na escola
primária a abandonam até a quinta série, e a maioria delas sai da escola antes de
alcançar a terceira série (NAMBISSAN, 2001). A situação nas áreas tribais é ainda
pior devido ao grande número de escolas com um único professor, ao excessivo
absenteísmo dos professores e, ainda mais grave, ao fato de que os professores
designados desconhecem a língua falada pelas crianças tribais. Os dados são muito
preocupantes – 48,7% das meninas e 49% dos meninos tribais abandonam a escola
antes de completar o ciclo primário.
Ainda mais trágico: aqueles que enfrentam todos esses problemas e persistem
aprendem muito pouco. Em 2005 e 2006, uma organização não governamental
independente (Pratham) promoveu um levantamento por amostragem nacional
sobre resultados de aprendizagem das crianças. Os resultados foram chocantes. Em
2005, cerca de 35% das crianças entre 7 e 14 anos de idade não conseguiam ler um
parágrafo simples (nível de primeira série), e quase 60% delas eram incapazes de ler
uma história simples (nível de segunda série); 65,5% das crianças entre 7 e 14 anos
eram incapazes de resolver um problema simples de matemática; e, ainda mais
preocupante, 47% das crianças na faixa dos 11 aos 14 anos não eram capazes de
resolver problemas de matemática de nível de segunda série. Em 2006, os resultados
mostraram uma situação não muito diferente. Quase 50% das crianças de padrão 5
não conseguiam ler um texto de padrão 2. Suman Bhattacharjea destaca:
Essa incapacidade preliminar para garantir que as crianças adquiram um grau apropriado de
competência em leitura intensifica a carga subsequente, tanto para a criança como para o professor
[…] Os dados ASER de 2006 confirmam que se trata de uma batalha perdida: no padrão 6, após
terem completado os cinco anos de educação mínima recomendados, um terço dos estudantes
não é capaz de ler no nível estabelecido pelo padrão 2 (INDIA, 2006).

Sendo assim, não é surpreendente que mais de 50% das crianças que ingressam
na primeira série abandonem a escola antes de alcançar a oitava série, sendo a
grande maioria delas crianças das comunidades menos favorecidas, de áreas zonas
rurais ou remotas. A educação tem pouco significado para essas crianças – elas
adquirem poucas habilidades e quase nenhuma confiança.
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 43

As percepções dominantes sobre as capacidades mentais dos dalits ou das


crianças tribais, associadas aos estereótipos sobre certas comunidades, levam a uma
discriminação sutil – e por vezes até mesmo flagrante – contra as crianças,
resultando em taxas mais elevadas de evasão e fracasso.8 Por um lado, reconhecemos
que as crianças dalits, tribais ou muçulmanas que frequentam escolas mistas
enfrentam uma discriminação que afeta sua autoestima, sua confiança e, mais
importante, sua capacidade de aprender. Por outro lado, a ideia de escolas separadas
não nos agrada nem um pouco, porque as escolas destinadas às crianças dalits ou
tribais são invariavelmente mal administradas.
A solução talvez seja garantir escolas próximas e rigorosamente controladas –
principalmente para prevenir toda discriminação flagrante de casta, comunidade
ou gênero. Infelizmente, a realidade é que, em sua maioria, professores e
administradores educacionais pertencem às castas superiores, urbanas e não tribais:
não se identificam com os seus alunos e não têm por eles empatia alguma; a maioria
deles mantém seus próprios filhos em escolas privadas ou semiprivadas. Os
programas de capacitação antes e durante o exercício da profissão não tratam do
impacto dos preconceitos sociais e atitudes dos professores sobre a autoestima das
crianças e sobre sua capacidade de aprender. Os professores educadores são cegos
à realidade das crianças muito pobres, e frequentemente hostis a questões de
igualdade social e de gênero. Por isso, os líderes dalits e tribais alegam que suas
crianças se encontram em melhor situação em escolas separadas, desde que o
governo garanta os mesmos investimentos e a mesma qualidade.
Nem todos os professores são insensíveis e preconceituosos. Tendo viajado como
pesquisadora pelo país, visitando escolas e interagindo com professores, devo
admitir que há enormes diferenças regionais. Em uma extremidade do espectro do
país, estão os estados em que a maioria dos professores provém de castas
politicamente poderosas – casta superior e outras castas incluídas na classificação
OBC9. Não é raro encontrar administradores e professores hostis às questões de
equidade social e de gênero – particularmente no caso daqueles menos favorecidos
entre os dalits (os antigos grupos intocáveis, catadores) e das comunidades tribais
e muçulmanas. A discriminação de casta e de comunidade não é rara mesmo nas
áreas urbanas.
A situação é diferente em áreas de domínio tribal e estados
predominantemente tribais. Ainda que os preconceitos não sejam imediatamente

8. P. Sainath relatou a situação dos dalits através do país a partir de 1999. Artigos publicados em The Hindu
revelam discriminação social persistente nas escolas. Determinados grupos entre os dalits, como os valmiki,
rohit, thoti e chamar, bem como as tribos não dominantes e outras tribos, que até 1952 eram classificadas
como criminosas pelos ingleses, são discriminadas não somente pelas castas avançadas, mas também por
outros dalits, que os consideram como intocáveis.
9. NRTT: OBC (Other Backward Classes) são as castas social e economicamente menos favorecidas. Perfazem
cerca de 52% a 32% da população.
44 Ramachandran

perceptíveis (especialmente entre os professores não tribais ou que provêm de


grupos tribais dominantes), os professores reconhecem sua falta de competência
para conduzir uma classe multisseriada com crianças de backgrounds muito
variados. As iniciativas sustentadas de estímulo às matrículas e a introdução das
refeições ao meio dia levaram um grande número de crianças à escola. A maioria
delas faz parte da primeira geração que fala diversos idiomas ou dialetos a
frequentar uma escola. O absenteísmo é endêmico, e os professores revezam-se
para ir à escola. Como resultado, um professor pode acabar sendo responsável
por mais de 75 a 100 crianças. Os professores admitem estar sempre tentando
obter uma transferência para escolas mais acessíveis, e investem nisso muito
tempo e dinheiro. Os problemas são basicamente pouca motivação, absenteísmo
e gestão docente indiferente.
As escolas rurais e urbanas em diversos estados avançados do ponto de vista
educacional contam a mesma estória. O aumento do número de matrículas mudou
a composição das turmas na sala de aula: as crianças que vêm à escola têm diferentes
backgrounds sociais e educacionais. O problema fica ainda mais complicado quando
elas falam idiomas ou dialetos diferentes. Os professores queixam-se de não ter
recebido a capacitação necessária para lidar com tanta diversidade – e mais ainda
quando se trata de ensino multisseriado, em que um único professor é encarregado
de duas ou três séries simultaneamente na mesma sala de aula. E, como citado
anteriormente, eles não compreendem as circunstâncias familiares de seus alunos.
Ficam perdidos com o longo período de ausência das crianças no auge da estação
agrícola ou quando as famílias migram por períodos curtos. O que constatamos
são professores sobrecarregados, sem as habilidades necessárias e sem uma estrutura
confiável de apoio pedagógico.
Não existem respostas simples e objetivas; cada estado – e mesmo cada distrito
– merece estratégias adaptadas ao contexto. O ponto mais importante, porém, é
que as escolas poderiam opor-se aos preconceitos sociais e tornar-se agentes de
mudança, mas acabam fazendo exatamente o contrário.
A democracia indiana foi construída na contracorrente, tanto de uma sociedade fundamentada
na desigualdade da ordem das castas, como de um Estado imperial e autoritário. Se as condições
iniciais eram difíceis, a democracia teve que existir em circunstâncias que as teorias políticas
convencionais identificam como nada propícias: em meio a uma coletividade pobre, analfabeta
e incrivelmente diversificada. Não somente essa democracia sobreviveu, como conseguiu energizar
a sociedade indiana de maneira inédita. Inicialmente introduzida como forma de governo por
uma elite nacionalista legalista ameaçadora, a democracia estendeu-se e aprofundou-se, para
tornar-se um princípio de sociedade, transformando as possibilidades disponíveis para os indianos.
Eles a adotaram e aprenderam sobre ela, não nos livros, mas por meio de uma prática improvisada.
Ainda assim, o próprio sucesso da democracia na Índia também ameaça a continuidade de sua
sobrevivência institucional. A ideia da igualdade política engendrou o perigo de uma tirania da
maioria religiosa, uma ameaça que se manifestou de forma trágica em 1992, com a destruição da
Mesquita de Babur em Ayodhya (KHILNANI, 1997, p. 9-10).
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 45

Nas seções anteriores, discutimos três cenários: em primeiro lugar, o caso das
crianças de famílias pobres e grupos sociais menos favorecidos, que começam a
vida com um fardo cumulativo de exclusão; em segundo lugar, o caso em que o
ingresso na escola e a qualidade da educação que as crianças recebem são
determinados pelo status social, econômico e geográfico; e, em terceiro lugar, a
experiência vivida pelas crianças, uma vez matriculadas, de discriminação e
aprendizagem limitada em termos de habilidades de leitura e escrita e de conteúdo.
Muitas vezes as escolas reforçam a segregação social – prolongando assim o fardo
de exclusão por toda a vida escolar e até a vida adulta. E isso não termina aí. Existem
poucas oportunidades de educação para os adultos jovens que tiveram que
abandonar a escola: eles não têm acesso a treinamento e habilitação
profissionalizantes, já que o nível mínimo para matrícula é a décima série, o que
limita ainda mais a escolha.
“O desenvolvimento humano é o processo de ampliação das escolhas para que
as pessoas possam fazer e ser aquilo que valorizam na vida” (HDR, 2004). Qual é
o impacto da exclusão sistemática dos serviços de saúde, nutrição e educação sobre
as pessoas marginalizadas? É possível superar todas essas dificuldades e participar
do processo democrático em condição de igualdade? É de conhecimento geral que
os mais pobres são os que mais se sentem excluídos das instituições – seja o hospital
local, previsto para oferecer cuidados básicos de saúde, ou o panchayat, onde é
possível ter acesso a planos de desenvolvimento destinados a essa população
(assistência em período de seca, comida em troca de trabalho), ou ainda os centros
para o desenvolvimento da criança que fornecem nutrição complementar e
imunização, escolas – a lista é bastante longa.
A ação afirmativa de estabelecimento de cotas de emprego poderia fazer
diferença – desde que as pessoas tenham condições de completar dez anos de
escolaridade, adquirindo um nível satisfatório de competências e habilidades
cognitivas. A vida é assim: quase todos os grupos sociais menos favorecidos têm
uma minoria de famílias que quebraram o ciclo de pobreza e exclusão. Esse grupo
é conhecido como elite. É esse grupo pequeno, reivindicador e organizado, que
mais se beneficia da ação afirmativa, deixando a maioria fora do sistema. A
iniciativa de melhor gestão da ação afirmativa relacionando o status social com a
situação econômica encontrou resistência. São cada vez mais numerosos os grupos
sociais (incluindo minorias religiosas) que hoje reclamam por cotas de emprego e
vagas no ensino superior. Alguns desses grupos nem sequer fazem parte dos
socialmente desfavorecidos. Como consequência, os instrumentos constitucionais
criados para corrigir séculos de exclusão social tornaram-se fonte de clientelismo.
Constituiu-se rapidamente uma liderança manipuladora que usa a retórica da ação
afirmativa para perpetuar a exclusão social, econômica e educacional.
O paradoxo mais desconcertante é a ausência de protestos por parte dos líderes
de movimentos sociais dos dalits, das comunidades tribais, das minorias
46 Ramachandran

muçulmanas e – mais irônico ainda – do movimento das mulheres contra essas


estratégias injustas e contra a baixa qualidade da educação. Hoje, as escolas rurais
problemáticas raramente chamam a atenção dos líderes.
O governo da Índia decretou a educação gratuita e obrigatória como um direito
fundamental das crianças de 6 a 14 anos de idade com a Emenda Constitucional
nº 86 de 2002. Este é o texto do novo artigo 21A: “Direito à Educação – O Estado
deve prover educação gratuita e obrigatória a todas as crianças entre 6 e 14 anos de
idade”. Como o Estado determina por lei, o Ministério do Desenvolvimento dos
Recursos Humanos elaborou um Projeto de Lei de Educação Gratuita e
Obrigatória, de 2004, correspondente, porém ele não foi debatido no parlamento.
Ao invés disso, o governo central fez circular essa versão preliminar entre todos os
estados, pedindo que introduzissem projetos de lei/decretos apropriados para a
implementação efetiva da Emenda Constitucional nº 86.
Embora o projeto de lei que circulou proporcione meios para garantir que a
escola formal atenda a todas as crianças, e os ajustes de transição sejam estritamente
de curto prazo, a situação real é bem diferente. Tendo em vista a situação financeira
da maioria dos governos dos estados, as estratégias de transição estão se tornando
a opção preferencial. Muitos estados também optaram pela contratação de
professores para atender à demanda de um sistema de educação elementar em
expansão.
Mesmo que as escolas administradas e controladas pelas instituições locais
autogovernadas (panchayats) sejam um passo na direção certa, persiste esta questão:
por que o sistema escolar formal – principalmente a gestão de transferências e
nomeações do quadro de professores – continua fora do âmbito de ação dos
panchayats. A resposta não se encontra na institucionalização de um modelo de
baixo custo e qualidade medíocre para os menos favorecidos – quando realmente
merecem maiores investimentos relativos a financiamento, recursos humanos,
materiais de ensino-aprendizagem e razões professor/alunos mais baixas para
assegurar maior cuidado.
Eis o fim da estória: todas as crianças que ingressam em escolas primárias podem
realmente chegar até a oitava ou a décima séries? Os dados mais recentes divulgados
pelo governo indiano contam uma estória surpreendente. Segundo o Governo da
Índia (2007), existem 7.012.239 escolas primárias reconhecidas, 2.062.286 escolas
de ciclo final do ensino primário, 1.045.962 escolas secundárias. Isso implica que
somente dois terços de cada 100 crianças que ingressam na escola primária podem
chegar a esse ciclo final do ensino primário, e apenas 20% à escola secundária. O
sistema educacional é projetado de tal modo que é impossível todas as crianças terem
acesso à educação elementar, e isso sem falar na educação secundária. Na Índia, a
razão entre escolas primárias e escolas e seções de ciclo final do ensino primário é de
2:57 – a pior razão é a de Bengala Ocidental (5:28), seguida por Jharkhand (3:97),
Meghalaya (3:73) e Bihar (3:24) (NUEPA; MRHD, GOI, 2007).
Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 47

Quem são as crianças que conseguem ir até o fim nesse sistema? A resposta é
evidente: as crianças que frequentam escolas primárias de baixa qualidade, e as
escolas alternativas, são aquelas que abandonam o sistema. A própria estrutura já
inclui uma política de desgaste (tanto em termos de números como em termos de
qualidade). Em uma escola primária em áreas rurais remotas, somente uma criança
excepcionalmente dotada pode ter esperanças de chegar ao nível da escola
secundária. A desigualdade é inerente ao sistema, do momento do nascimento até
a idade adulta.
Quais são as implicações para uma sociedade democrática na Índia? As
diferenças crescentes ameaçam a estrutura democrática da nossa sociedade?
Evidências provenientes de diferentes partes do país são extremamente inquietantes.
Enquanto de 20% a 25% da população que se encontra no topo da escala (a
maioria nas regiões industrializadas do país) entusiasmam-se com a globalização e
com o crescimento da Índia, os 25% na camada inferior simplesmente lutam
arduamente para sobreviver. O perfil social, cultural, regional (específico por
localização), comunitário e ocupacional daqueles que se encontram no nível mais
baixo da pirâmide é ainda outro balizador, empurrando quem já está à margem
para uma zona desconhecida. O aumento do conflito social combinado com a
política eleitoral que reafirma as identidades sociais é um motivo de preocupação.
Sim, existe uma demanda global por mão de obra qualificada – porém, apenas uma
pequena fração das nossas crianças pode sonhar em ter acesso a uma educação que
daria a elas a possibilidade de aproveitar dessa procura crescente por pessoas
qualificadas. É urgente voltar à prancheta e redesenhar mais uma vez a educação.
A Índia na Ásia Meridional
A maioria dos discursos sobre a Índia começa, invariavelmente, com a invocação
da tradição democrática. Afinal, a Índia acabou de celebrar 60 anos de
independência como uma democracia vibrante. Apesar disso, a Índia não é muito
diferente dos demais países dessa região. A pobreza, o desenvolvimento irregular e
o legado colonial histórico não são exclusivos dessa região. Mas é amplamente
reconhecido que a Ásia Meridional é culturalmente diferente, principalmente no
que diz respeito às relações de gênero. Essa região tem alta densidade demográfica
e uma renda per capita que só supera a da África Subsaariana.
Outra característica significativa da Ásia Meridional é que ela tem uma população
estimada de 400 milhões de jovens entre 12 e 24 anos de idade – quase 30% do
total de jovens dos países em desenvolvimento. Acredita-se que esse dividendo
demográfico seja responsável por um terço do milagre econômico da Ásia Oriental.
As recentes estórias de sucesso da Ásia Oriental, do Sudeste Asiático e da Irlanda sugerem que o
desenvolvimento requer uma combinação de fatores As interações entre os muitos fatores
relevantes têm o potencial de ativar espirais virtuosas de bom desenvolvimento e interromper as
espirais viciosas (BLOOM, 2005).
48 Ramachandran

O potencial desse dividendo é ainda maior na Ásia Meridional. O Relatório


sobre o Desenvolvimento Mundial (WDR) de 2007 prevê que essa coorte vai
aumentar lentamente (exceto no Paquistão) e atingirá o seu pico nos próximos 25
anos. Cerca de 45% desses jovens são meninas e mulheres. A participação das
mulheres na tomada de decisões é limitada, não somente devido às características
culturais específicas da região, mas também às taxas elevadas de evasão depois da
escola primária entre as meninas.
Nas últimas décadas, o crescimento econômico acelerado da Ásia Meridional
infundiu um sentimento de otimismo que poderia ser comparado ao que se viu na
Ásia Oriental na década de 1990. A Ásia Oriental tem se mantido relativamente
estável e vem experimentando há várias décadas um rápido desenvolvimento
econômico, bem como um bom nível de progresso nos indicadores de
desenvolvimento humano. Essa região também tem sido vista como relativamente
mais progressista, especialmente no tocante às relações de gênero, à participação
das mulheres na força de trabalho e à participação das meninas na educação. Por
outro lado, a Ásia Meridional tem sofrido conflitos sociais e políticos, desastres
naturais e disputas internas. O que diferencia a Ásia Meridional da Ásia Oriental
é a persistência da desigualdade de gênero. Todavia, o potencial de crescimento
econômico exponencial e a promessa de um desenvolvimento educacional acelerado
infundiram um sentimento de otimismo e de esperança. No entanto, comparada
com o sudeste da Ásia, essa sub-região ainda tem um longo caminho a percorrer
antes de alcançar objetivos mais elevados de desenvolvimento humano e maior
igualdade de gênero.
É evidente que a região enfrenta desafios consideráveis. Contudo, mantém as
perspectivas de progresso e desenvolvimento acelerados. Amartya Sen, ganhador
do Prêmio Nobel, salientou diversas vezes que a desigualdade de gênero está
refreando o avanço da região. Segundo ele, se os países conseguirem dar prioridade
à educação, à saúde, à nutrição e ao bem-estar geral das meninas, a região pode
viver transformações sem precedentes. A grande questão, considerando-se o
contexto sociocultural, é se a região consegue superar a estreiteza de seus muros
comunitários e domésticos e projetar aspirações mais altas.

Referências bibliográficas
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New Delhi: Ministry of Human Resource Development, 2004. – Postado para comentários no site do
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Desigualdades democráticas: o dilema da educação primária na Índia 49

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WORLD BANK. World Development Report. Washington, DC: World Bank, 2004.
44

A REFORMA DO CURRÍCULO NA ÁFRICA SUBSAARIANA:


QUANDO O LOCAL ENCONTRA O GLOBAL

Linda Chisholm e Ramon Leyendecker

Introdução
A mudança educacional na África Subsaariana desde a década de 1990 é uma
questão diversa e complexa. As sociedades, seus perfis socioeconômicos e políticos
não são apenas extremamente variados, mas forças externas e internas
heterogêneas têm influenciado suas trajetórias de mudanças educacionais. Se algo
pode ser dito para associar tais contextos diversos, deve incluir a história e o
impacto de esforços coloniais e pós-coloniais. Por um lado, os legados do
colonialismo continuam a ter grande poder sobre o imaginário e a vida real dos
Estados e dos cidadãos. Por outro lado, as transições políticas que varreram
muitas partes da África Subsaariana desde a década de 1960 foram acompanhadas
ao longo de sucessivas décadas pelo crescimento dos níveis de instabilidade
política, dívida e pobreza. O PIB per capita real da região diminuiu 42,5% entre
1980 e 1990; a distribuição de renda tornou-se mais desigual. Embora a taxa de
crescimento venha melhorando desde meados de 1990, “a África Subsaariana
percebeu que estava recuando economicamente, enquanto outras áreas do mundo
em desenvolvimento avançavam com maior solidez” (SPARKS, 2006). As causas
são internas e externas, econômicas e políticas (WILLIAMS, 2006; JENNINGS,
2006; SPARKS, 2006). Novos sistemas educacionais e especialmente instituições
de ensino superior foram criadas no período pós-colonial imediato, como
projetos fundamentais de orgulho, aspiração e afirmação nacionais. Tais sistemas
também vivenciaram dificuldades graves e crescentes quando a crise política
associou-se à crise econômica.
No início da década de 1990, o evento aparentemente distante da queda do Muro
de Berlim e os passos largos da globalização também tiveram implicações distintas
para a África. Não imunes aos atuais acontecimentos mundiais, muitos países na
África realizaram eleições multipartidárias entre o início e meados da década de 1990,
para sinalizar o compromisso com a democracia liberal e a abertura do mercado
compatível com o desenvolvimento mundial, embora o autoritarismo tenha
permanecido como parte de muitos sistemas políticos. Essas eleições legitimaram a
nova orientação do mercado que havia começado a estabelecer-se na década de 1980
e que abriu caminho para a reforma educacional e curricular, incluindo demandas

51
52 Chisholm e Leyendecker

por maior responsabilidade no que diz respeito a gastos com a ajuda ao


desenvolvimento na área da educação. Marcaram o início de novos processos para a
reforma educacional e curricular. Este artigo examina a reforma curricular e,
especificamente, o foco no aluno, na educação baseada em resultados e competências,
e a National Qualifications Framework (NQF)1. A análise abrange evidências para a
África Subsaariana, mas focaliza especificamente a África Meridional.
Um volume considerável de literatura surgiu ao longo da última década e meia,
explorando o impacto desses novos desenvolvimentos por meio de um exame da
relação entre política e prática. A sociologia de políticas mostrou que a
implementação de políticas e currículo não segue o caminho previsível de
formulação-adoção-implementação-reformulação, mas é recontextualizada por
meio de múltiplos processos (BALL, 1990, 1994; BERNSTEIN, 2004) e
mecanismos (DALE, 1999); que grande parte da implementação ocorre com pouca
atenção para as capacidades ou os recursos disponíveis (ELMORE, 2001); que
valores, práticas e crenças locais, especialmente de professores, moldam os
resultados da implementação (McLAUGHLIN, 1991, 1998); e que a maneira de
compreender a implementação é iniciar com uma avaliação da prática (SUTTON;
LEVINSON, 2001). A educação comparada também vem enfatizando o papel da
globalização (CARNOY, 2000), os processos de formação de discursos
(SCHRIEWER, 2003) e o impacto de contextos locais ao produzir padrões
assimétricos (STEINER-KHAMSI, 2004).
Apenas uma pequena parte dessa literatura leva em consideração contextos
africanos, ou sua considerável diversidade. De fato, em sua maioria, tais contextos
são amplamente invisíveis. Nesse caso, é possível identificar duas abordagens
principais ao problema da relação entre política e prática. A primeira enfatiza razões
principalmente externas, e a outra, principalmente internas, para o fracasso das
políticas, embora uma não ignore a outra. Há também diferenças significativas
dentro de cada abordagem. A primeira está centrada na economia política e no papel
impressionante e decisivo de doadores e agências multilaterais ao moldar as metas
de políticas na maioria dos contextos (SAMOFF, 1999a, 1999b, 2001, 2005;
TABULAWA, 2003; VAVRUS, 2003).
A segunda concentra-se, por um lado, na resiliência de formas distintamente
africanas de organização social e, por outro, na natureza de políticas e da política
da educação. Stambach, por exemplo, mostrou de que forma as escolas no Monte
Kilimanjaro funcionam como mediadoras de noções coletivas e individuais da
modernidade e de identificações com ela, embora quase não alterem estilos de
ensino dominantes, ritualizados e de pergunta-e-resposta; mostram fortes
ressonâncias com valores e hierarquias patrinileares, e relações entre idade e gênero
que reforçam a autoridade masculina. E Tabulawa argumentou que, em Botsuana,

1. NT: Estrutura Nacional de Qualificações.


A reforma do currículo na África Subsaariana 53

o fracasso nas tentativas de introduzir uma educação centrada no aluno tem muito
a ver com o poder do acordo entre abordagens tradicionais e coloniais à
aprendizagem (STAMBACH, 2000; TABULAWA, 1997). Uma variação
sofisticada sobre esse tema, que avalia a complexidade de práticas educacionais
locais em Gana, demonstrou de que forma diferentes discursos internacionais,
nacionais e locais mesclam-se na mesma escola, onde o ensino pode continuar
medíocre e centrado na aprendizagem baseada na memorização, mas as
oportunidades, não obstante, podem ser criadas em locais onde os alunos realmente
aprendem uns com os outros (COE, 2005).
No contexto sul-africano, autores têm igualmente colocado em evidência
resultados contraditórios. Entretanto, nesse caso, o fracasso de políticas não foi
associado especificamente, ou principalmente, à imposição de políticas externas,
ou a características especificamente africanas, tradicionais. Pelo contrário, tais
autores enfocaram políticas internas e contradições. Assim, Jansen (2002) enfatizou
o papel simbólico das políticas em situações de transição política para explicar a
ausência de mudança; Harley e Wedekind (2004) e Jansen (2005a) destacaram as
contradições entre ideais pedagógicos e políticos e a grande diversidade no contexto
de práticas; e Hoadley, Reeves e Muller sublinharam o papel socialmente
reprodutivo de escolas e a centralização de variações no conhecimento do professor
e na pedagogia para reproduzir falhas históricas de desigualdade (HOADLEY,
2007, 2008; REEVES; MULLER, 2005).
Essas abordagens não são mutuamente exclusivas, como ilustra o trabalho de
Tabulawa. O autor (TABULAWA, 2003) argumentou que a ascendência do
neoliberarismo como paradigma de desenvolvimento nas décadas de 1980 e 1990
elevou a democratização política como um pré-requisito para o desenvolvimento
econômico e, com ele, a pedagogia centrada no aluno. Para Tabulawa, a pedagogia
é parte de “uma perspectiva ideológica, uma visão de mundo destinada ao
desenvolvimento de um tipo ideal de sociedade e de cidadãos [...] representando
um processo de ocidentalização disfarçado de ensino eficaz e de qualidade”
(TABULAWA, 2003, p. 7). Entretanto tal argumento não explica a recepção
favorável da ideia no nível local. Ao tentar explicar por que a educação centrada
no aluno vem sendo aceita tão facilmente e implementada com tanta dificuldade,
este capítulo argumenta que as razões, tanto externas como internas, precisam ser
levadas em consideração.
Entretanto, o capítulo não aborda a cultura africana como uma causa da falha
de implementação nem a combinação da ausência de relação do discurso nos níveis
internacional e nacional com as realidades e práticas locais. Assim sendo, baseia-se
em muitos trabalhos existentes. Contudo, além disso, apresenta o argumento de
que estórias locais de resistência ao colonialismo incorporaram ideias educacionais
que reverberaram com a educação centrada no aluno. Esta última e a educação
baseada em resultados encontraram favoritismo local porque não apresentavam
54 Chisholm e Leyendecker

ideias totalmente novas, suficientemente ambíguas para serem vistas como veículos-
chave para alcançar metas não tanto educacionais, mas econômicas, sociais e
políticas. Quando surgiu, após a década de 1990, a educação centrada no aluno e a
educação baseada em resultados parecem ter sido extraídas da educação democrática
com outra denominação. No entanto, sua implementação falhou em contextos nos
quais capacidades e requisitos para sua realização variaram grandemente, não apenas
entre si, mas também em contextos nos quais foram originalmente desenvolvidos.
O capítulo defende uma compreensão complexa de dinâmicas externas e internas
que levam em conta a diversidade e as diferenças entre contextos de implementação.
O capítulo tem início com uma discussão das ambiguidades e diferenças entre
educação centrada no aluno, educação centrada na criança e educação baseada em
competências. A seguir, examina a pressão internacional sobre a África Subsaariana
para mudança curricular, o contexto histórico local da África Meridional e as
experiências educacionais alternativas que, argumenta, influenciaram a adoção de
tais ideias pela África Meridional. Mostra de que forma essas ideias não foram
postas em prática. Apresenta explicações baseadas no fato de que as reformas não
focalizaram tanto o que é viável em contextos de implementação quanto as metas
econômicas, sociais e políticas a serem alcançadas, e conclui com implicações para
novas pesquisas. Assim, o capítulo trata de que forma história e contexto moldam
metas e ideais de reforma e ambientes de implementação. O artigo concentra-se
principalmente na reforma curricular baseada na educação centrada no aluno, mas
também na educação baseada em resultados e na Estrutura Nacional de
Qualificações. Embora conceitualmente distintos, a educação centrada no aluno,
a educação baseada em resultados e a Estrutura Nacional de Qualificações
representam um conjunto inter-relacionado de ideias difundidas por meio da
reforma curricular pela África Subsaariana no final do século XX e no início do
século XXI. O capítulo baseia-se em fontes secundárias e primárias relacionadas a
diferentes países da África Subsaariana.

A educação centrada no aluno e a educação baseada em resultados


A educação centrada no aluno é uma das ideias educacionais mais difundidas
na África Subsaariana e em outros lugares. É frequentemente acompanhada pelos
discursos baseados em competências e mudanças oficiais no currículo e nas políticas
de avaliação projetadas para diminuir o significado de exames e realçar a
importância da avaliação contínua como um meio de estimular pedagogias
centradas no aluno. E ainda há muitas evidências esmagadoras, provenientes de
diferentes tipos de fontes, de que a ideia ainda não se enraizou nas salas de aula.
Para os países da África Subsaariana, a Vrije Universiteit, de Amsterdã,
desenvolveu perfis nacionais como parte de um amplo estudo sobre ciências,
matemática e TIC na educação secundária nessa região (SMICT, 2005), que
indicam a prevalência de estilos de ensino tradicional e fora de moda. Estratégias
A reforma do currículo na África Subsaariana 55

de ensino giz e saliva, amplamente destinadas à memória verbal de informações


factuais e definições, são descritas como pedagogias características na Tanzânia2.
Afirma-se que o modus operandi em Uganda gira em torno de um modelo
tradicional (predominantemente behaviorista) de currículo e instrução, e não, por
exemplo, de um modelo baseado no desenvolvimento de significados.
Aparentemente, o ensino baseado na investigação e as aplicações práticas de ciências
à vida real não estão presentes nas estratégias de ensino dos professores, tornando
o ensino e a aprendizagem predominantemente teóricos3 (SMICT, 2005). Em
Botsuana, prevalece o ciclo de aprendizagem leia-regurgite-recite, apesar do
currículo formalmente sofisticado, baseado em competências e centrado na
aprendizagem.4 Em Gana, como em muitos outros países, “as aulas [...] são quase
exclusivamente centradas no professor, e orientadas para conteúdos”5, embora
muitos educadores sintam que nem mesmo o potencial da educação centrada no
professor seja cumprido. Na Namíbia, apesar do currículo centrado no aluno, “uma
pedagogia centrada no aluno [...] é muitas vezes operacionalmente inexistente”.6
A Nigéria também promove o ideal de educação centrada no aluno, “mas a
implementação [...] frequentemente fica longe do... ideal”.7 A avaliação no Senegal,
como na maioria dos países, ainda é direcionada e orientada por exames, e centrada
em recordação e memorização, e não em aprendizagem e compreensão. A lacuna
entre políticas e práticas, como acontece nesses contextos da África Ocidental,
Oriental e Meridional, é comum também na África do Sul, onde as metas centradas
no aluno para a educação baseada em resultados – neste caso, a filosofia educacional
– têm-se mostrado muito mais difíceis de alcançar na prática do que nas políticas
(ver, por exemplo, HARLEY; WEDEKIND, 2004).
Para compreender essa lacuna entre políticas e práticas, é necessário voltar um
pouco e entender de que forma a educação centrada no aluno tem sido
compreendida. A ideia da educação centrada no aluno deriva principalmente dos
trabalhos de Jean Piaget (embora Piaget seja às vezes interpretado como apenas um
teórico de estágios), John Dewey (1938) e Lev Vygotsky (1978). As interpretações
contemporâneas da educação centrada no aluno baseiam-se principalmente na
psicologia cognitiva de Vygotsky, e diferem de pedagogias baseadas em psicologias
behavioristas. No construtivismo, o conhecimento sobre a estrutura e processos de
aprendizagem é relevante para a aprendizagem como um todo. A aprendizagem é
compreendida como um processo permanente e vitalício, que ocorre em uma
variedade de contextos sociais, dos quais a educação formal é apenas um aspecto. A

2. UNITED REPUBLIC OF TANZANIA. Country Profiles, [s.d.]. p. 13.


3. UGANDA. Country Profile, [s.d.]. p. 25.
4. BOTSWANA. Country Profile. [s.d.]. p. 34.
5. GHANA. Country Profile. [s.d.]. p. 19.
6. NAMIBIA. Country Profile. [s.d.]. p. 31.
7. NIGERIA. Country Profile. [s.d.]. p. 31.
56 Chisholm e Leyendecker

educação centrada no aluno é mais específica em relação à compreensão da natureza


da aprendizagem, e menos específica em relação a pedagogias e provimento
detalhado de resultados na educação formal. Sua origem e suas ambiguidades
também permitem diferentes entendimentos, que vão além da sala de aula.
Apesar das semelhanças aparentes, há duas diferenças entre a educação centrada
no aluno, ou seja, centrada na criança, e a educação baseada em resultados. Para
alguns autores, a educação centrada na criança foi uma reação a pedagogias
behavioristas, desenvolveu-se a partir delas, e é baseada em uma epistemologia
diferente da educação centrada no aluno (VAN HARMELEN, 1998). Em termos
de educação centrada no aluno e aquela baseada em resultados, a primeira pode
ser vista como relacionada ao input, ao passo que a educação baseada em resultados
é relacionada ao output. A educação centrada no aluno é mais focalizada no ensino
e na qualidade instrucional da educação, ao passo que a educação baseada em
resultados é mais focalizada na qualidade da avaliação. A educação centrada no
aluno é uma filosofia pedagógica sobre ensino e aprendizagem, aplicável à
aprendizagem em termos gerais, porém mais especificamente à educação
acadêmica. A educação baseada em resultados fornece principalmente uma
estrutura de resultados e uma abordagem de integração de conhecimento, e só está
secundariamente preocupada com conhecimento curricular, pedagogias e materiais
de suporte à aprendizagem. Os resultados podem ser behavioristas e alcançados
pela educação centrada na criança. Importante para os fins deste capítulo é a
ambiguidade essencial no conceito e entre os diferentes significados, apesar das
diferenças fundamentais consideradas subjacentes a eles.
Os significados contestados da educação centrada no aluno expressos na
educação baseada em resultados podem ser ilustrados por meio de sua aplicação
no currículo 2005 da África do Sul pós-1994. A educação baseada em resultados
como filosofia tem sido interpretada de diversas formas por diferentes autores. Há
poucos educadores na África do Sul que não se posicionaram a favor ou contra a
educação baseada em resultados. Autores como Mohamed (1998), Malcolm (2000)
e Odora-Hoppers (2002) têm defendido a educação baseada em resultados, ao
passo que outros, como Kraak (2001), têm sido moderadamente críticos, e já
outros, como Jansen (1997, 1998, 1999, 2002, 2004), Jansen e Christie (1999),
Muller (1998, [s.d.], 2001), Muller e Taylor (1998) e Unterhalter (1998a)
questionaram seus fundamentos. A natureza do debate tem mudado com o passar
do tempo. O debate tem polarizado pessoas que, para todos os efeitos e propósitos,
veem a si mesmas, de um modo ou de outro, como educadores progressistas.
Portanto, tem sido possível para alguns perceber a educação baseada em resultados
como estreitamento e desradicalização das metas educacionais; para outros, como
um meio de expandir e revolucionar tais metas; para um outro grupo, como o jogo
da oportunidade, permitindo que conhecimentos locais e ocultos venham à tona;
para outros mais, ainda, constitui outra forma de conhecimento universal, que
A reforma do currículo na África Subsaariana 57

marca esses conhecimentos; há alguns ainda que a consideram como a possibilidade


de maiores oportunidades para os pobres, e outras pessoas de verem isso como um
romantismo educacional que tem o efeito de negar as oportunidades reais de
aprendizagem aos menos favorecidos (ver acima).
Em alguns casos, seu efeito em um contexto internacional e comparado tem
sido visto também como parte de formas de conhecimento orientadas por
competências e “marketizado”; e em outros, como formas de promover o
conhecimento que os contesta. Para alguns, a educação baseada em resultados tem
funcionado; para outros, não. Sua centralidade para a Estrutura Nacional de
Qualificações (NQF) da África do Sul tem sido debatida com menor frequência.
No início, porém, a NQF foi identificada como fator de restrição de metas
educacionais, visando servir a objetivos estritamente econômicos (SAMSON;
VALLY, 1996; UNTERHALTER, 1998b; MULLER, 1998), ao invés de, como
afirmado, integrar educação e treinamento. A educação baseada em resultados é,
portanto, o significante flutuante mais acabado, entendido como coisas diferentes
para diferentes pessoas que atribuem a ela qualidades diametralmente opostas. Mas
ver isso tão somente como um constructo social simbólico pode também ser
incompatível com o entendimento dos efeitos materiais das múltiplas dinâmicas
sociais, dos processos e lutas dos quais faz parte e nos quais está imbricada (para
outras discussões sobre este aspecto, ver CHISHOLM, 2003).

Pressões e condições externas


O foco no aluno, a educação baseada em resultados e a ideia de Estrutura
Nacional de Qualificações têm raízes históricas internacionais e locais. Em primeiro
lugar, analisaremos a pressão e as condições internacionais que garantem a adoção
do discurso político, e a seguir continuaremos a explorar mais detalhadamente os
contextos da Namíbia e da África do Sul.
Desde 1990, os objetivos e as finalidades da educação na África Subsaariana
têm sido remodelados por quatro fatores interconectados: globalização; mudança
de foco de agências internacionais de ajuda para assistência ao desenvolvimento;
adaptação de países da África Subsaariana à ordem do novo mundo, com sua nova
ênfase política; e difusão de novas ideias pedagógicas dos Estados Unidos e da
Europa para a África Subsaariana. Este último resultou da exportação do
desenvolvimento por parte do mundo ocidental da importação do desenvolvimento
de países da África Subsaariana, bem como do aumento de comunicações
internacionais. Independentemente da origem, a implementação da educação
centrada no aluno e da educação baseada em resultados não tem, para todos os
efeitos, ocorrido do modo esperado.
Apesar das diferenças entre elas, a educação centrada no aluno e a educação
baseada em resultados fazem parte de um repertório discursivo de direitos
internacionais e qualidade da educação. Essa amálgama de ideias é amplamente
58 Chisholm e Leyendecker

compartilhada entre agências multilaterais e financiadoras. O UNICEF, em


particular, tem promovido vigorosamente, por várias décadas, abordagens
baseadas nos direitos da criança e centradas nela, assim como a UNESCO,
agências financiadoras e ONGs internacionais (ver também TABULAWA, 2003).
As Estruturas Nacionais de Qualificações não são explicitamente parte desse
corpo de ideias curriculares, mas, mesmo assim, fazem parte de um discurso
internacional que tem sido apropriado no contexto africano, e isso tem
implicações para currículo e sistemas educacionais. A maioria dos países da África
Subsaariana é signatária de diversas convenções sobre educação, entre elas a
Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (Jomtien, 1990), o Marco de Ação de Dacar e os Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (abril de 2000). Tais convenções explicitam
compromissos coletivos assumidos por Estados-nação e agências internacionais
para a realização das metas de desenvolvimento de educação, e condicionam os
países da África Subsaariana a mudar políticas e práticas educacionais a fim de
realizá-las. À medida que os países da África Subsaariana estão comprometidos
com a educação de qualidade – entre outras, pela Convenção sobre os Direitos
da Criança, a Declaração de Jomtien, o Marco de Dacar e os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio –, a atenção concentra-se nas políticas e práticas
curriculares.
A convocação de Jomtien em favor de acesso, equidade, qualidade e democracia
na educação foi aceito com pouca resistência na África Subsaariana (CHISHOLM
et al., 1998). Seu impulso em favor da igualdade foi atraente e, aparentemente, suas
conquistas prometeram desenvolvimento social e econômico: desfazer injustiças
sociais anteriores e conquistar crescimento econômico que traria benefícios aos
cidadãos. Acreditava-se, e continua a ser assim, que o desenvolvimento social e
econômico requer uma mudança educacional, e a mudança educacional é necessária
para o desenvolvimento social e econômico. A mudança educacional, por sua vez,
é percebida como dependente, entre outras coisas, de mudanças nas práticas de sala
de aula por meio da educação centrada no aluno. A adoção espontânea dessas ideias
por meio de pressão de cima para baixo e desejo de baixo para cima deu-se, em
parte, pela apropriação de ideias atuais dentro da arena internacional. Em países da
África Meridional, como Namíbia e África do Sul, em particular, a convocação de
Jomtien em favor da equidade sintonizou-se com as metas sociais, políticas e
econômicas de governos pós-apartheid.
A melhor qualidade de educação foi amplamente percebida, por um lado, como
adaptação necessária à exigência de novos conhecimentos imposta pela globalização
e, por outro, como atendimento das necessidades populares para melhorar a
educação (ANC, 1994; NAMIBIA, 1993). Por um lado, o apelo progressista da
ideia epistemológica de foco no aluno pareceu adequar-se às ambições de
desenvolvimento, e mostrou-se o favorito entre uma ampla gama de interesses
A reforma do currículo na África Subsaariana 59

socioeducacionais. Por outro lado, a Estrutura Nacional de Qualificações,


implementada primeiramente na África do Sul (1995) e na Namíbia (1996), foi
atraente porque se acreditava que traria benefícios sociais e sistêmicos: uma
Estrutura Nacional de Qualificações constituiria a escada educacional para deixar
para trás a pobreza, habilidades precárias e desemprego, e para abrir as portas à
prosperidade, habilidades relevantes e emprego. A rota para tanto seria a integração
da educação e do treinamento por meio de competências e de um currículo baseado
em padrões unitários (ANC/COSATU, 1993; ANC, 1994).
Entretanto, em quase todos os países da África Subsaariana, a reforma curricular
também é obrigatória por meio dos componentes sociais setoriais de educação nas
condições de empréstimo do Programa Enhanced Structural Adjustment Facilities.
De maneira geral, o foco dos pacotes de ajuste estrutural está na contenção de
gastos, na reforma do setor público, na privatização e na remoção de barreiras
tarifárias. As estratégias de redução de pobreza são um meio vital através do qual
são implementados os pacotes de ajustamento de estruturas. A reforma educacional
é parte das estratégias de redução de pobreza, e implica medidas destinadas a
melhorar o acesso e a qualidade da educação. A reforma curricular torna-se parte
do componente educacional do pacote de ajustamento estrutural por meio da
implementação do programa Educação Primária Universal, como em Uganda
(IMF, 1998); do Plano Máster da Educação Básica e do Plano Máster da Educação
Secundária, como na Tanzânia (IMF, 1999); do Plano Estratégico para o Setor da
Educação, para os níveis primário e secundário, com cinco anos de duração, de
1999 a 2003, como em Moçambique (IMF, 1999); e do aprimoramento da
qualidade de ensino, como em Malaui (IMF, 1998/99). Por exemplo, o Segundo
Plano de Desenvolvimento de Malaui, para 1985-1995, estipulou um número de
reformas que visavam renovar e reorganizar o setor público; suas propostas
educacionais incluíram a exigência de mudança para educação centrada na
metodologia e baseada em competência. Seu Documento de Estruturas de Políticas
do Programa Enhanced Structural Adjustment Facility, para o período de 1998/99-
2000/01, especifica a análise e a revisão do currículo e o estabelecimento de pontos
de saída do sistema (IMF, 1998/99). Significativamente, essas mudanças propostas
ocorreram pouco depois de reformas similares terem sido introduzidas na África
do Sul. Equipes governamentais e do FMI, em conjunto, chegam a acordos sobre
os componentes do empréstimo. Todas as principais agências e organizações
internacionais doadoras estão centralmente envolvidas na implantação do conjunto
de atividades para o qual os empréstimos são garantidos e os acordos foram
efetivados.

Processos e condições internos e externos


No sul e no leste da África, novas ideias centradas no aluno foram, até certo ponto,
também uma reordenação de ideias já em circulação em décadas anteriores, adotadas
60 Chisholm e Leyendecker

à medida que a região enfrentava diversas batalhas anticoloniais e de liberação


nacional. Na busca pelo poder, movimentos de libertação nacional esforçaram-se para
superar os legados do colonialismo. A independência na região foi alcançada em
diferentes momentos: Botsuana, Lesoto, Suazilândia, Zâmbia, Tanzânia, Malaui e
Maurício, no início e meados da década de 1960; Angola e Moçambique, em 1975,
Zimbábue, em 1980, Namíbia, em 1990; e África do Sul, em 1994. Esse processo
gradual de conquista da independência influenciou consideravelmente a natureza da
economia política regional ao longo das décadas de 1970 e 1980.
Antes do início da década de 1990 e da independência de países na África
Meridional, movimentos de libertação na Namíbia e na África do Sul encontraram
apoio em Estados vizinhos, tais como Botsuana, Moçambique, Tanzânia, Zâmbia,
Zimbábue e Angola. Aqui, em antecipação à futura liberação, havia alguma
experimentação com ideias alternativas às formas de educação desenvolvidas em
períodos de colonialismo e apartheid. Originada em Botsuana, a ideia de Educação
e Produção espalhou-se por meio de interação entre países africanos independentes,
Organização do Povo do Sul da África Ocidental (SWAPO), ANC, Frelimo. Na
Tanzânia, o Solomon Mahlangu Freedom College, do ANC, lutou por ideias
semelhantes. Assim, ideias educacionais que difundiam abordagens pós-década de
1990 tomaram forma em contextos nos quais “vertentes do africanismo, da social-
democracia e de várias formas de marxismo socialista, e do não racismo” interagiam
em uma mistura complexa (MORROW et al., 2002, p. 156).
Provavelmente originando-se a partir de discussões pedagógicas internacionais,
a educação centrada no aluno surgiu como a direção pedagógica ideal para a
reforma curricular contemporânea no início da década de 1990. Ao longo dessa
década, a educação centrada no aluno foi oficialmente adotada em muitos países
africanos e, apesar das diferenças nacionais de conexões mais fortes ou mais fracas
com as tentativas de reforma, a implementação (ou melhor, a falta de) mostrou
similaridades nos desafios vivenciados. A seguir, tentamos analisar o surgimento
da educação centrada no aluno na Namíbia (e da educação baseada em resultados
na África do Sul) como o ideal educacional mais proeminente e amplamente
preferido. Ao identificar origens, atores e processos de implementação em um
contexto específico, podemos começar a compreender algumas das razões para a
lacuna existente entre políticas e práticas.
A educação centrada no aluno como parte oficial da reforma curricular na África
Subsaariana parece ter começado com a introdução da disciplina Ciência da Vida
na nova Namíbia independente, em 1990. Embora, em retrospectiva, estivesse
explicitamente identificado apenas em 1998, e não em 1991, no início do processo
de implementação em larga escala, como a base teórica da Ciência da Vida, o foco
no aluno foi o veículo escolhido para induzir o processo de reforma política de
maneira a alcançar as metas de acesso a educação para todos, equidade, educação
para a democracia e democracia para a educação (LEYENDECKER, 2002;
A reforma do currículo na África Subsaariana 61

NAMIBIA, 1993, p.32-42). A própria disciplina Ciência da Vida deveria liderar


não apenas o processo de reforma, mas também a reforma social destinada a
eliminar as desigualdades raciais características da educação pré-independência. Na
Namíbia, essa disciplina baseava-se em conceitos do construtivismo social, ou de
sua tradução pedagógica: a educação centrada no aluno.
A ajuda dinamarquesa para o desenvolvimento conduziu o planejamento e a
implementação do tópico Ciência da Vida na Namíbia. Historicamente, essa ajuda
estava associada à educação da SWAPO no exílio em Loudima, Zâmbia, antes da
independência da África do Sul. A ideia desse componente curricular de Ciência
da Vida foi amplamente influenciada por valores sociodemocratas e pela filosofia
dos consultores dinamarqueses, e era baseada em experiências da Educação e
Produção em escolas zambianas. Defendia vigorosamente os objetivos de políticas
da pós-independência, estabelecidos pela SWAPO. Os assessores do programa
dinamarquês e os ideais progressistas da disciplina recentemente desenvolvida –
Ciência da Vida – tinham o apoio do então ministro da Educação, Nahas Angula.
A ideia de Educação e Produção passou a ser popular na região graças a Patrick
van Rensburg, um ex-diplomata que renunciou à sua lealdade à política apartheid,
tornou-se cidadão de Botsuana em 1973, fundou a Escola Swaneng Hill e,
subsequentemente, duas outras escolas em associação com o governo de Botsuana,
assim como a Cooperativa Swaneng de Consumidores e o Movimento de Brigadas.
A abordagem de Van Rensburg baseou-se nas ideias socialistas populares na época,
que objetivavam combinar Educação e Produção, visando unir teoria e prática de
modo mais eficiente, e assim garantir uma maneira mais eficaz de aprender, fazer e
compreender a produção em seu contexto social. Como tal, isso objetivava decompor
a divisão social entre o trabalho mental e manual, que era vista como característica
de todas as formas elitistas, baseada em classes e em formas coloniais de educação.
O currículo das Brigadas incluía temas práticos e acadêmicos, tais como Estudos
de Desenvolvimento, que estimulavam os alunos a aplicar seu conhecimento e suas
habilidades em trabalhos produtivos socialmente úteis. As Brigadas eram
organizações de autoajuda para educação e treinamento, que geravam produtos e
serviços tanto para uso interno quanto para a venda ao público, visando ajudar o
financiamento do ensino e do treinamento. O sucesso dessa experiência resultou no
estabelecimento, em 1980, da Fundação para Educação e Produção, que buscou
propagar a ideia em escala regional e internacional por meio de publicações e
congressos, reunindo representantes dos ministérios, movimentos de liberação,
organizações não governamentais, entidades de professores e o mundo do trabalho
(<http://www.rightlivelihood.org/recip/van-rensburg.htm>. Acesso em: 12 dez.
2005; VAN RENSBURG, 1978; SEIDMANN, 1985). A Zimbabwe Foundation
for Education with Production (ZIMFEP)8 foi fundada em Zimbábue pouco depois

8. NT: Fundação de Zimbábue para Educação e Produção.


62 Chisholm e Leyendecker

de sua independência em 1980, e seguiu os mesmos princípios (McLAUGHLIN et


al., 2002). Depois de 1994, a Fundação iniciou suas atividades na África do Sul,
mas, no novo clima de reforma, as ideias pedagógicas estavam sob a influência da
Estrutura Nacional de Qualificações, com sua ênfase em competências e
qualificações.
Ao longo da década de 1980, houve uma rica troca de ideias através de fronteiras
regionais e internacionais sobre o conceito e sua implementação. O periódico
Education with Production, organizado por John Conradie, Patrick van Rensburg e
Frank Youngman, e publicado em Botsuana, proporcionou o foco para esse debate
crítico ao longo da década. Examinou as dimensões históricas, comparadas e
internacionais, bem como os problemas teóricos e práticos envolvidos em sua
implementação, em países capitalistas e socialistas, no mundo desenvolvido e em
desenvolvimento. O periódico trouxe contribuições sobre a produção em escolas,
educação e emprego, educação e treinamento técnico e profissionalizante, e educação
para adultos em regiões tão distantes quanto a União Soviética, a América Latina, a
África, a Europa e os Estados Unidos. Os autores incluíram um “quem é quem” no
campo da educação comparada: Kazim Bacchus, Joan Simon, Manning Marable,
Kenneth King, Wim Hoppers, Fay Chung, Cláudio de Moura Castro e Antônio
Cabral de Andrade, Stephen Heyneman, John Middleton, Alan Fowler, Daniel
Sifuna, Neil Parsons, David Stern e Julius Nyerere apareceram em suas páginas em
algum momento. O periódico promoveu conscientemente artigos que tratavam de
abordagens conceituais para o ensino e a aprendizagem, baseadas no trabalho de
Luria e Vygotsky, para criticar as dominantes abordagens behavioristas à teoria da
aprendizagem (ver, por exemplo, SIMON, 1986). A abordagem enfatizou a relação
entre consciência e atividade, entre aprender e fazer, contexto e prática.
Educação e Produção – ou educação politécnica, nos contextos africanos de
Zimbábue, Tanzânia e Botsuana –, eram “considerados um meio de promover uma
transformação radical ou socialista” (BOTHA, 1991, p. 207). Entretanto, em
nenhum desses países o programa Educação e Produção (EwP) foi implementado
universalmente. Como Botha revela, no Zimbábue havia apenas oito escolas EwP
ou Zimbabwe Foundation for Education with Production (ZIMFEP) geralmente
estabelecidas nas áreas rurais (BOTHA, 1991, p. 207). Não obstante, sua
concepção “assumiu uma importância considerável como ponto de partida para
políticas de educação em muitos países africanos e, certamente, na África do Sul”
(em meio aos intelectuais e ativistas exilados e de dentro do país que lutavam por
uma alternativa à educação banto). O Programa Educação e Produção tinha uma
filosofia que permeava o currículo. Em 1991, em sua análise crítica das perspectivas
do programa para a África do Sul, Botha contrasta a abordagem EwP – que
considera a educação como um instrumento de transformação social – a uma
educação que reconhece as restrições e limites para atingir tal transformação:
“mudanças curriculares isoladas”, relata, “não podem exercer o papel que os
A reforma do currículo na África Subsaariana 63

defensores [...] sugerem. As condições sociais nas quais essas mudanças são
realizadas determinam a extensão na qual elas podem fazer avançar o processo de
transformação” (BOTHA, 1991, p. 210). No próprio Zimbábue parece ter havido
alguma consciência de que “o discurso de políticas não acompanha necessariamente
a definição dos detalhes necessários para a implementação” (ZIMFEP, s.d.). É
interessante que, apesar dessa consciência em meio a analistas e implementadores,
o currículo, no contexto da África Meridional pós-1994, ainda suportou o peso de
alcançar metas de transformações sociais mais amplas (ver, por exemplo, HARLEY;
WEDEKIND, 2004).
Na Namíbia, no início da década de 1990, a trajetória da implementação de
ideias centradas no aluno fornece um exemplo de como propostas baseadas em
Educação e Produção (EwP) alteraram-se com o passar do tempo. Ilustra também
a distância entre as ideias e sua realização na prática. Na década de 1980, noções
de EwP foram retomadas na escola de exílio SWAPO, em Loudima, Zâmbia.
Loudima foi influenciada pela ideia de currículo de Ciências do Zimbábue (ZimCi)
(ver, por exemplo, CDU, 1987), sendo que o ZimCi copiou a ideia inicial das
brigadas de Van Rensburg, em Botsuana. Em Zimbábue, professores europeus (e
provavelmente ONGs) a favor da independência do país, como muitos outros,
foram atraídos pela noção de autoajuda e pela ideia de Educação e Produção. O
próprio conceito de Educação e Produção aproxima-se das ideias de aprendizado
contextualizado e culturalmente relevante. Embora o foco no aluno tenha sido
considerado apenas posteriormente como pedagogia subjacente à Ciência da Vida
na Namíbia, a ligação com o foco no aluno foi relativamente orgânica.
A implementação de Ciência da Vida orientada pelos dinamarqueses na
Namíbia independente foi estruturada e planejada com clareza. O processo de
implementação contou com bons recursos e foi bastante apoiado por um período
de oito anos. Além disso – e o que provavelmente mais contou durante esse período
–, a dedicação e a motivação da ONG, os consultores dinamarqueses e a equipe
da Namíbia influenciaram muitos no sistema educacional, desde que apoiassem os
objetivos políticos. Aqueles que se opunham aos objetivos políticos no sistema
educacional (e que provavelmente ainda dominavam o sistema) resistiram à
implantação de Ciência da Vida e à educação centrada no aluno devido à sua
estreita ligação com os objetivos políticos da transformação social. Entretanto, não
foi essa resistência a causa dos sinais de que a educação centrada no aluno estava
fracassando na Namíbia. O fracasso também não se deu por falta de recursos, e
provavelmente tampouco por falta de capacidade. Aparentemente, o principal
obstáculo foi a falta de clareza da compreensão e da aplicação real da educação
centrada no aluno, e o escopo da mudança pretendida, que focalizou um alto ideal
pedagógico. Por mais sólido que tenha sido em muitos lugares, o processo de
implementação falhou ao transpor a compreensão da educação centrada no aluno
para a sala de aula.
64 Chisholm e Leyendecker

Foram muitos os sinais da pouca compreensão do conteúdo da disciplina e do


conhecimento metodológico entre professores. A ideia do ensino de biologia
contextualizado era frequentemente reduzido a jardinagem, e dissecações reais
foram conduzidas na lousa, a uma distância na qual os alunos não podiam ver o
que estava acontecendo. Quando não havia frangos disponíveis para a dissecação,
nenhuma alternativa era encontrada, embora estivessem disponíveis. A dissecação
simplesmente não acontecia. O suprimento de itens como malha de frango e
ferramentas de jardinagem começou a desaparecer, caixas de produtos químicos
simplesmente permaneciam fechadas em almoxarifados ou eram perdidas, a
maneira de utilizá-las não era corretamente compreendida. Sobreposições no
currículo não eram reconhecidas, e o currículo, consequentemente, foi modificado
ou reconstruído; o mesmo conteúdo simplesmente era ensinado duas vezes. Se era
essa a cultura ou esse o contexto, ou ambos, havia pouca compreensão do que se
esperava que fosse implementado.
As razões do fracasso de sua implementação foram diversas. Pesquisadores
argumentaram que metodologias instrucionais (e, em parte, o conteúdo programático
de Ciência da Vida) não se harmonizavam com práticas locais de sala de aula,
culturalmente determinadas (GECKLER, 1999; LEYENDECKER, 2003). As
lacunas que deveriam ser reduzidas entre as existentes realidades de sala de aula, as
expectativas sociais da educação e a educação centrada no aluno eram simplesmente
amplas demais para serem alcançadas em uma única etapa. Até certo ponto, a
implementação da educação centrada no aluno parece ter sido restrita porque a
ideologia dinamarquesa de educação liberada não se encaixava com a versão da
Namíbia. Ao final, poucas das boas intenções para a sala de aula (e metas de
desenvolvimento) concretizaram-se na prática (IBIS, 2000; GECKLER, 1999).
Na África do Sul, a educação centrada no aluno como ideal pedagógico já havia
sido praticada durante os anos de apartheid em algumas escolas independentes
progressistas, como o Colégio Sagrado Coração, em Joanesburgo, em organizações
não governamentais, como a South African College of Higher Education (SACHED)9,
e nas práticas de organizações de novos professores, como o National Education Union
of South Africa (NEUSA)10, um dos antecessores do South African Democratic Teachers’
Union11. Harley e Wedekind argumentam que essa educação era promovida também
no White Natal Education Department12 antes de 1994 (HARLEY; WEDEKIND,
2004). Na nova África do Sul, após 1994, a educação centrada no aluno, a educação
baseada em resultados e a Estrutura Nacional de Qualificações deveriam desfazer de
uma vez por todas as injustiças da educação na política apartheid.

9. NT: Escola de Ensino Superior Sul-Africana.


10. NT: Sindicato de Educação Nacional da África do Sul.
11. NT: Sindicato Democrático dos Docentes Sul-Africanos.
12. NT: Departamento de Educação para Brancos de Natal.
A reforma do currículo na África Subsaariana 65

O processo de empréstimos e de indigenização na África do Sul seguiu uma


trajetória diferente daquela da Namíbia. Uma vez que esse processo vem sendo
extensivamente pesquisado e analisado, forneceremos aqui apenas as principais
orientações (ver JANSEN, 2004, p. 206-207; ver também SPREEN, 2004;
GOVENDER, 2004). Ligações estreitas entre o movimento do sindicato,
COSATU, o National Training Board13 e formuladores individuais de currículos
asseguraram, às vésperas das eleições de 1994, que uma combinação de ideias
ligadas a integração, competências e educação baseada em resultados havia sido
adotada da Austrália e adaptada para a área da educação. Embora houvesse pouca,
ou mesmo nenhuma discussão ou consulta a professores, o South African
Democratic Teachers Union subsequentemente passou a defender a educação baseada
em resultados como a filosofia de provimento educacional do pós-apartheid.
Embora os professores apoiassem vigorosamente a orientação e os objetivos
pretendidos pela mudança curricular, críticas crescentes resultaram em sua análise
e revisão em 2000 e 2002, respectivamente (CHISHOLM et al., 2000). Essa
primeira tentativa de implementação do currículo baseado na Estrutura Nacional
de Qualificações (NQF), na Outcome-Based Education (OBE)14, e na educação
centrada no aluno encontrou tantos problemas que o currículo foi considerado não
implementado (JANSEN, 1999). Do mesmo modo, a Estrutura Nacional de
Qualificações da África do Sul estava sendo cada vez mais criticada pelo não
cumprimento de seu objetivo, e foi também revisada em 2002. Tal como ocorreu
com o currículo, houve retrocesso nas pretensões, senão nos objetivos esperados
(McGRATH, 2005). E tal como aconteceu com o currículo, resistência e crítica
partiram de intelectuais; entre os implementadores e os professores, houve
resistência, complacência e mimetismo (HARLEY et al., 2000).
Na África do Sul, as principais razões dos problemas enfrentados na
implementação local da educação centrada no aluno (e educação baseada em
resultados) parece ser comparável aos problemas da Namíbia: confusão sobre
significado e conteúdo de conceitos e sobre as mudanças pretendidas, assim como
as consequências das práticas instrucionais pretendidas não relacionadas a culturas
e realidades da sala de aula. No caso da Estrutura Nacional de Qualificações,
também parece haver incompatibilidade entre objetivos e realidades. Na África do
Sul (como em outros lugares), outros problemas de implementação surgiram com
a educação baseada em resultados devido à falta de recursos e de capacidade, e por
deficiências na elaboração de currículos. Ironicamente, antigas escolas para brancos,
embora provavelmente em oposição à agenda política, enfrentaram no início menos
problemas para implementar a educação centrada no aluno, pois perceberam que
o ensino que ministravam estava próximo das novas metodologias pretendidas,

13. NT: Conselho Nacional de Treinamento.


14. NT: Educação Baseada em Resultados.
66 Chisholm e Leyendecker

embora muitos também tivessem interesse em demonstrar a aparência de mudança


enquanto mantinham o status quo. Antigas escolas para negros, embora apoiassem
a agenda política, pareciam incapazes de implementar a educação centrada no
aluno. Onde tentaram fazê-lo, o objetivo previsto do que era para ser alcançado
em alguns casos levou a uma imitação grotesca da intenção pretendida (JANSEN,
1998, 1999; JANSEN; CHRISTIE, 1999; DOE, 2000). A redução na
compreensão do que é e do que faz a educação centrada no aluno também tem
sido associada com condições extremamente insatisfatórias de alfabetização e
operações numéricas em séries nas quais a educação baseada em resultados e a
educação centrada no aluno foram implementadas (TAYLOR; VINJEVOLD,
1999; MULLER, 2000). Consequentemente, uma forte reação ao construtivismo
e à educação centrada no aluno tem caracterizado muitas respostas à educação
baseada em resultados.
A partir do que foi relatado, fica claro que um dos legados do período e do
contexto pré-década de 1990 é certo grau de experimentação educacional e
pedagógica. Entretanto, no período pós-apartheid, isso não fez parte,
aparentemente, dos sistemas de educação formal. Uma das possíveis razões talvez
seja o fato de essas experiências de mudanças da prática nas salas de aula, por meio
da educação centrada no aluno, mal tenham influenciado a maioria das escolas.
Aqui as principais preocupações são outras.
Por não serem novas e, em alguns casos isolados, por talvez até precederem a
independência de países da África Subsaariana, e por raramente penetrarem o
sistema educacional mais amplo de modo significativo, tais ideias fazem eco aos
estudos americanos com relação à falta de impacto de reformas sucessivas nas
práticas de sala de aula ao longo do último século (CUBAN, 1990). Como Cuban
mostrou, tanto na África Subsaariana quanto nos Estados Unidos, grupos sociais
dominantes têm se voltado repetidamente para as escolas e para a educação com o
intuito de resolver problemas sociais e nacionais insolúveis, e não para abordar eles
mesmos os principais problemas sociais. Na África Subsaariana, nos EUA e
provavelmente também na Europa Ocidental, há uma crença contínua na
capacidade das escolas de promover mobilidade social, criar harmonia nacional e
cidadania responsável – crença que é aproveitada durante os principais períodos
de mudança social visando à reforma educacional, apesar das evidências de que as
escolas raramente alcançam esses objetivos (CUBAN, 1990, p. 9; VAVRUS, 2003).
O problema de aplicar em larga escala ideias educacionais progressistas também
parece ser um desafio tanto para a África, como para a América ou para a Europa
(ELMORE, 1996).
Nos contextos da Namíbia e da África do Sul, tem sido mais fácil identificar o
que deve ser mudado, e tentar delegar essa mudança de cima para baixo, do que
identificar e garantir condições necessárias para o sucesso de sua implementação.
Entretanto, são escassas as pesquisas sobre essas questões relacionadas à África
A reforma do currículo na África Subsaariana 67

Subsaariana. É preciso um volume muito maior de pesquisas sobre as lacunas entre


políticas e práticas, sobre implementação e o que tem mudado ao longo do tempo,
de que forma e por que ocorrem tais mudanças.

Compreendendo o desafio
Excetuadas a África do Sul e a Namíbia, a educação centrada no aluno tem
dominado as tentativas de reforma curricular oficial contemporânea nos países da
África Subsaariana. A educação centrada no aluno é considerada um dos principais
mecanismos para transformar sociedades e economias de base principalmente agrícola
em sociedades modernas e baseadas no conhecimento, com benefícios econômicos
concomitantes. Orientada e apoiada por organizações multilaterais que advogam a
necessidade de resultados de aprendizagem diferentes e melhores, a educação centrada
no aluno é aceita como ideal pedagógico para facilitar essa mudança.
Enquanto a necessidade de resultados de aprendizagem diferentes e melhores é
reconhecida em todos os sistemas educacionais da África Subsaariana, evidências
da Namíbia e da África do Sul sugerem que o escopo da mudança é tão subestimado
quanto as diferenças no entendimento de conceitos. Realidades e capacidades locais
culturais e contextuais e requisitos para a implementação influenciam a
compreensão e as possibilidades. A educação centrada no aluno é frequentemente
atraente para formuladores de políticas, devido ao apelo e às promessas de objetivos
sociais que a acompanham. Na África, os formuladores de políticas podem propor
a educação centrada no aluno e a educação baseada em resultados, e dar-lhes
significados particulares que variam daqueles de seus congêneres internacionais
(SAMOFF, 2005; LEYENDECKER, 2005). Tais significados diferentes são
contestados, contabilizados em parte por desafios em sua implementação. Para
compreender os problemas vivenciados com a educação centrada no aluno, é
importante fazer a distinção entre a ideia da educação centrada no aluno como
uma panaceia (ver também VAVRUS, 2003) e a abordagem interligada para a
implementação. Também é importante perceber que os desafios da implantação
não são necessariamente restritos à educação centrada no aluno, mas são também
características gerais de outros desenvolvimentos curriculares. No caso da educação
centrada no aluno, educação baseada em resultados e Estrutura Nacional de
Qualificações, os problemas são agravados por conflitos a respeito de significados.
Duas abordagens podem ser identificadas na compreensão do que deve ser feito.
Sob uma perspectiva, os professores precisam compreender a ideia subjacente, ser
motivados a mudar suas práticas, adaptar e aplicar pedagogias apropriadas, e ter
capacidade para fazê-lo (ELMORE, 2001, p.16). Um senso de apropriação é
importante, mas por si só, como no caso da África do Sul, talvez não seja suficiente
para mudar a prática (ver discussão da ideia em McLAUGHLIN, 1991). Sob outra
perspectiva, é preciso dar mais atenção visando garantir a oportunidade de
aprendizagem em sala de aula, especialmente em meio a classes trabalhadoras e em
68 Chisholm e Leyendecker

escolas pobres, discutindo o conhecimento e as pedagogias de professores que lutam


contra a aprendizagem (HOADLEY, 2007, 2008; REEVES; MULLER, 2005),
ou, como Jansen (2005b) propôs, colocando “professores, textos e tempo” no
primeiro plano de qualquer estratégia de mudança.
Em conclusão, este artigo procurou examinar o descompasso entre políticas e
práticas nos esforços para a mudança curricular na África Subsaariana, com atenção
específica para experiências da Namíbia e da África do Sul. Longe de impor o
conceito de foco no aluno, o artigo mostrou que ambiguidades da ideia, pressões
internacionais e histórias locais ajudam a contabilizar a receptividade local. Mostrou
também que, enquanto há convergências em torno de ideias e dos propósitos aos
quais elas pretendem servir, há também evidências de divergência na prática, na
medida em que são capazes de alcançar os objetivos atribuídos a elas. Na prática,
há considerável convergência na divergência: ideias são recontextualizadas e
deslocadas, incapazes, na maioria das instâncias, de cumprir os objetivos de
desenvolvimento social que delas são exigidos. Na maioria dos casos, modos
dominantes de ensino e aprendizagem na prática parecem convergir de maneira a
afirmar práticas culturais complexas, bem como contextos multifacetados
(STAMBACH, 2000; VAVRUS, 2003; CROSSLEY; WATSON, 2003;
WATSON, 2001; CARNOY, 2000; SAMOFF, 1999a, 1999b, 2001; STEINER-
KHAMSI, 2004; TIKLY, 2004; COE, 2005). O que isso sugere é a necessidade
de um número muito maior de pesquisas sobre as respostas e as fontes locais da
receptividade e da resistência a ideias globais.

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45

GÊNERO E EDUCAÇÃO EM CONTEXTOS


DE PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO:
REFLEXÕES PÓS-COLONIAIS SOBRE A ÁFRICA

Deevia Bhana, Robert Morrell e Rob Pattman

Introdução
Duas das mais prementes preocupações educacionais na África Subsaariana –
violência e HIV/Aids – estão diretamente relacionadas às formas como o gênero é
socialmente construído. Em contextos de países em desenvolvimento, o gênero
permaneceu sendo persistentemente um tema unilateral, com foco imutável (e
justificável) sobre a condição das meninas na escola. No contexto africano, em que
meninas são frequentemente marginalizadas, são bem documentados os benefícios
da educação que incluem maiores oportunidades econômicas, famílias menores e o
papel da educação como vacina social contra o HIV. No entanto, em muitos países
africanos, o acesso à educação é limitado pela falta de recursos, e foram levantadas
questões sobre a qualidade da educação como um motivo importante pelo qual as
meninas continuamente não têm as habilidades e a confiança para fazer opções
adequadas em ambientes afetados por desemprego, pobreza, violência, conflitos e
HIV/Aids. As escolas não são lugares seguros para meninas, e grande parte das análises
referentes a gênero focaliza as formas de manifestação da violência sexual nas escolas,
que impedem e prejudicam a educação das meninas. Por outro lado, o foco sobre
meninos e a construção da masculinidade como um constructo de gênero esteve, em
grande medida, ausente da literatura sobre gênero e educação no discurso das políticas
de desenvolvimento. Nos locais em que esses aspectos foram analisados, a construção
de masculinidades violentas recebeu atenção (MORRELL, 2001). Em economias
industrializadas e desenvolvidas, pesquisas sobre gênero e educação vêm centrando-
se nos meninos, com uma grande ênfase direcionada à crise de masculinidade e aos
ganhos feministas em detrimento dos meninos. Neste capítulo, os meninos são
apresentados como vítimas de gênero que necessitam de apoio. Tal perspectiva
contrasta com estudos sobre meninos e homens na África, frequentemente
demonizados e considerados potencialmente perigosos. No entanto, recentemente,
vem surgindo nos países africanos subsaarianos uma abordagem na área de gênero e
educação que tenta esclarecer a construção da masculinidade e seu complexo
relacionamento em contextos social e materialmente empobrecidos e devastados pelo
HIV/Aids. Essas análises geralmente concluem que formas violentas e hegemônicas

73
74 Bhana, Morrell e Pattman

de masculinidade dentro de contextos de recursos insuficientes alimentam relações


desiguais de gênero, e são geralmente os meninos e os professores do sexo masculino
que usam a violência. São as meninas, principalmente, que sofrem as consequências
da violência na escola. Do mesmo modo, a maioria dos relatórios sobre HIV/Aids
focaliza as formas pelas quais uma masculinidade heterossexual excessiva torna as
meninas vulneráveis à doença. Na África Subsaariana, as meninas respondem por
cerca de 60% das infecções por HIV (UNAIDS, 2004). Tendo em vista que, nessa
região, identidades e processos de gênero estão relacionados a altas taxas de violência
e de HIV/Aids, abordagens educacionais começaram a focalizar os significados que
meninos e meninas dão a suas identidades de gênero, em uma tentativa de discutir
problemas associados a definições rígidas de masculinidade e feminilidade, e de
encontrar formas para aumentar as possibilidades de sustentar identidades de gênero
pacíficas. Para tanto, a educação sexual e sobre HIV/Aids está hoje fundamentada
no trabalho com a vida e a identidade da criança e do jovem em escolas, visando criar
possibilidades alternativas para análises de gênero. Este capítulo argumenta que, no
contexto de violência e HIV/Aids, uma análise de gênero mais sofisticada começa a
surgir na África Subsaariana, exigindo uma compreensão da forma como meninos e
meninas tornam-se vulneráveis a rígidas noções de hierarquias masculinas e femininas.
Buscamos explorar duas questões fundamentais. Em primeiro lugar, de que maneira
um foco na masculinidade ajuda a compreender melhor os meninos em idade escolar
na África Subsaariana? E, em segundo lugar, em termos de HIV/Aids, quais são as
implicações das realidades específicas de gênero e das vulnerabilidades de meninos e
meninas, e de que forma essas alterações e mudanças de identidade de gênero
poderiam ser utilizadas para capacitar a educação a adotar e a promover a equidade
de gênero?
Neste capítulo, assumimos a perspectiva de que o gênero é socialmente
construído, fluido e aberto a mudanças em diferentes contextos sociais. Embora
não exista uma versão única de masculinidade e feminilidade, uma visão de
masculinidade muito comum no contexto da África Subsaariana demanda respeito,
promove a violência de gênero e aumenta a vulnerabilidade das meninas ao
HIV/Aids. O empobrecimento em termos materiais é um fator contextual básico
no trabalho com meninos e meninas em locais em desenvolvimento, limitando as
oportunidades de criar melhores relações de gênero. No entanto, o gênero é fluido,
e mudanças significam que a educação é um processo crucial no trabalho com
meninos e meninas para alterar as versões predominantes de gênero.

Meninos, masculinidade e educação:


violência como uma questão de educação
Na última década, estudos sobre masculinidade e educação em contextos de
países desenvolvidos foram dominados pelo debate sobre a crise de masculinidade.
É importante identificar vários elementos da literatura sobre crise de masculinidade
Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento 75

antes de formular a questão: esse quadro tem relevância em contextos de países em


desenvolvimento?
Em primeiro lugar, o debate é essencialmente sobre políticas de gênero. Uma
posição defende que o sucesso do feminismo nas escolas levou ao aumento das
conquistas das meninas em detrimento dos meninos. A educação foi feminilizada,
e os meninos foram enfraquecidos. Surgiu uma política de reação que demanda
aumento no número de professores do sexo masculino, revisão do currículo e outras
medidas corretivas em apoio aos meninos que estão na escola. Frequentemente, a
reação é explicitamente antifeminista. Uma posição oposta argumenta que não há
crise de masculinidade, e que os meninos ainda são bem tratados e saem-se bem
na escola. Observam que, em termos de recursos e instalações, os meninos, como
tendência, ainda têm preferência nas escolas e que, mesmo quando algumas
meninas os superam em termos de desempenho acadêmico, de modo geral a
maioria deles ainda apresenta bons resultados. As feministas indicam que as
meninas ainda lutam para transformar melhor desempenho acadêmico em
benefícios no mercado de trabalho, onde as mulheres continuam a ganhar menos
que os homens em situações comparativas.
Em segundo lugar, há debates sobre a situação da educação em relação ao gênero.
Enquanto os meios de comunicação têm enfatizado estórias de violência, suicídio,
transtornos de hiperatividade e déficit de atenção que ocorrem nas escolas, e do
relativo declínio no desempenho acadêmico de meninos com o objetivo de construir
uma versão de crise de masculinidade, alguns estudos tentaram e conseguiram avaliar
o sucesso relativo de meninos e meninas em educação. No Reino Unido, em um
estudo bastante cuidadoso sobre o ensino e professores, por exemplo, Thornton e
Bricheno (2006) argumentam que não há evidências de que o aumento do número
de professores do sexo masculino poderia melhorar o desempenho de meninos e,
de fato, indicam evidências que sugerem que os meninos são bem atendidos por
professoras. Em uma avaliação bastante cuidadosa, também realizada no Reino
Unido, Arnot, David e Weiner (1999) mostram que, embora as reformas de gênero
conduzidas pelo Estado tenham ajudado a melhorar o desempenho das meninas
(principalmente em disciplinas como ciências e matemática), não houve revolução
de gênero, e o sucesso educacional dos meninos não foi ameaçado.
A terceira característica do debate sobre a crise de masculinidade foi o
reconhecimento de que alguns meninos apresentam piores desempenhos. Geralmente
esses meninos pertencem à classe trabalhadora ou a minorias étnicas e raciais
(SEWELL, 1997). Mudanças no mercado de trabalho debilitaram o acesso a empregos
principalmente para jovens da classe trabalhadora, o que contribuiu para uma
variedade de problemas para os próprios jovens e para a sociedade de forma mais
ampla, incluindo manifestações de machismo1, formas de violência, envolvimento em
comportamentos criminosos e antissociais (McDOWELL, 2000; NAYAK, 2003).

1. NRTT: A palavra no texto original é laddism. Literalmente, significa comportar-se como um lad (jovem,
rapaz, garoto), de forma barulhenta e machista.
76 Bhana, Morrell e Pattman

De que forma esses debates são transferidos


para contextos de países em desenvolvimento?
Nos países em desenvolvimento, o principal desafio educacional ainda é o acesso
dos jovens à educação. Esses objetivos geralmente envolvem o reconhecimento das
atuais desigualdades que favorecem meninos em detrimento de meninas. No
mundo em desenvolvimento, com raras exceções, a porcentagem de meninos na
escola primária supera a de meninas (SEAGER, 2003, p.112-119). A qualidade da
educação oferecida a meninos e meninas apresenta também uma posição
tendenciosa em favor dos meninos: alguns dos indicadores mais evidentes são os
níveis de evasão devido à gravidez e o aumento da diferença entre frequência e
desempenho de meninos e de meninas ao longo de sua educação. Na maioria dos
países em desenvolvimento, o número de universitários do sexo masculino supera
o número de universitários do sexo feminino. Essas desigualdades proporcionam
justificativa para que os países busquem promover políticas de gênero (feminino)
em educação, mas, ao mesmo tempo, essas políticas são raramente implementadas
com energia e, geralmente, não permitem aos homens argumentarem que os
meninos estão sendo discriminados nas escolas.
Nas sociedades que vêm adotando agendas de direitos humanos as quais, por
sua vez, contêm traços das agendas feministas, estão sendo elaboradas políticas para
promover os interesses acadêmicos e o sucesso educacional das meninas. Em alguns
casos – como na África do Sul – essas políticas vêm sendo criadas pelo Estado; em
outros casos, tiveram sua origem em trabalhos de organizações não governamentais
– como Camfed, que vem promovendo a educação de meninas em países como o
Zimbábue – e em iniciativas como o Programa DFID Beyond Access, que busca
melhorar as taxas de retenção para meninas em países como Bangladesh. Esses
programas provocaram um impacto pernicioso sobre os meninos e contribuíram
para a crise de masculinidade? Aparentemente, há poucas evidências sobre esse fato.
No entanto há inúmeras razões para que a questão relativa a meninos e educação
em contextos de países em desenvolvimento seja considerada com seriedade.
O exemplo da África do Sul pode ilustrar alguns desses aspectos. Registrando a
maior e mais dinâmica economia da região, e com o recente triunfo conseguido
com o fim do sistema de discriminação racial do apartheid, o país aprovou uma
constituição e uma lei de direitos que proíbem a discriminação com base em gênero
e orientação sexual. Ao mesmo tempo, comprometeu-se com o combate à pobreza,
um objetivo que os críticos acreditam estar ameaçado por políticas mais
preocupadas em enfrentar a inflação e atrair investimento estrangeiro do que em
criar postos de trabalho. Assim, os níveis de desemprego permanecem muito altos
– oficialmente em torno de 25%, mas, na realidade, são mais altos. Desde a virada
do milênio, vem aumentando a participação das mulheres no mercado de trabalho
formal. O desempenho das meninas na escola melhorou. Por outro lado, pela
primeira vez, o número de meninos que abandona os estudos superou o de
Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento 77

meninas. Os níveis de criminalidade são excessivamente altos – há, em média, de


19 mil a 20 mil assassinatos por ano em meio a uma população nacional de pouco
mais de 40 milhões de habitantes –, e a maior parte desses crimes é praticada por
homens africanos jovens. Os níveis de violência doméstica e estupro estão entre os
mais altos do mundo.
Os efeitos da globalização – por exemplo, o colapso do mercado de trabalho –
nas economias em desenvolvimento criaram condições para o surgimento de
masculinidades marginalizadas em todos os lugares do mundo (BARKER, 2005;
GUTTMAN, 2003; MORRELL, 2001; OUZGANE, 2006). Com poucas
perspectivas de trabalho, e aparentemente sem vontade ou incapazes de ingressar
na economia de subsistência, muitos homens abandonam as famílias e outras
estruturas de apoio e rendem-se ao desespero do álcool, às drogas e a estilos de vida
sexualmente arriscados (SILBERSCHMIDT, 2001).
Homens marginalizados constituem perigo para a paz e a segurança do país.
Seu acesso a armamentos aumenta os riscos de guerra e fortalece sistemas de valor
hierárquico que se baseiam na desigualdade de gênero e a perpetuam. Esses sistemas
de valores também legitimam práticas violentas como o assassinato de mulheres
em partes do mundo islâmico, onde se acredita que tenham envergonhado a família
e os códigos de honra.
Os homens que se sentem excluídos também constituem uma ameaça ao
desenvolvimento. Esse perigo nem sempre foi avaliado. Projetos de desenvolvimento
que tentaram especificamente promover o interesse da mulher muitas vezes
consideraram o patriarcado como a causa da subordinação da mulher e, portanto,
tentaram conscientemente excluir os homens, mencionando-os como a causa da
exploração da mulher. No entanto, as limitações de elevação da mulher e a abordagem
mulheres em desenvolvimento (Women in Development – WID) conduziram a
interpretações posteriores de gênero e desenvolvimento (Gender and Development – GAD),
que reconheceram o perigo estratégico de manter os homens excluídos do trabalho de
desenvolvimento, reconhecendo, ao mesmo tempo, a importância de refletir sobre os
homens em relação ao gênero, o que, na prática, significava problematizar a
masculinidade (CORNWALL, 1997; CORNWALL; WHITE, 2000).
Raciocinar sobre homens em contextos de países em desenvolvimento não tem
sido tarefa simples. Por um lado, foram criadas abordagens inclusivas em relação
ao gênero, dirigidas a questões como violência, paternidade e paz, elaboradas para
dar aos homens uma visão além da estreita agenda centrada na masculinidade que
protege e promove seu poder, e para adotar valores que contribuem para a igualdade
de gênero (e para os interesses da comunidade, da mulher, da criança, do idoso, e
assim por diante). Essas abordagens também estimularam o homem a trabalhar
uma identidade de forma introspectiva e a reconstruí-la como parte do processo
de criação do homem novo. No entanto, esse desenvolvimento tornou-se mais
complexo por circunstâncias materiais (falta de emprego e pobreza) e por lutas por
78 Bhana, Morrell e Pattman

recursos dentro das comunidades e das famílias, que muitas vezes terminaram em
violência e mostraram quão precária (e potencialmente reincidente) pode ser a
recém-reconstruída masculinidade.
Assim, foram levantadas duas questões: se não considerarmos homens e
meninos como um problema ou em crise, como podemos considerá-los? E a que
deveriam meninos e homens aspirar para que se adaptem à sociedade e contribuam
para seu desenvolvimento?
Uma resposta à primeira questão está estreitamente relacionada com questões de
masculinidade: há modelos positivos de masculinidade disponíveis nos contextos de
países em desenvolvimento e pós-coloniais? Em caso afirmativo, qual é o seu aspecto?
(ver CLEAVER, 2002). No entanto, cada vez mais a interdependência de homens e
mulheres e a importância de promover harmonia e cooperação entre os gêneros vêm
estimulando a inclusão dos homens e a consideração de questões de masculinidade,
e enfraquecendo os discursos sobre patologias. Dito de outra forma, os destinos de
mulheres e homens estão estreitamente vinculados, e é importante teorizar sobre
soluções de gênero, prestando atenção a homens e mulheres, às suas necessidades, à
sua interdependência e às desigualdades que podem separá-los ou levá-los a conflitos.
Há também o reconhecimento de que meninos (e homens) não têm natureza
inerentemente violenta, mesmo que a violência seja reconhecida como problema
grave e comum em muitas escolas. O foco mudou da tentativa de proteger as meninas
contra os meninos para a compreensão de que grupos de meninos estão sob maior
risco de envolver-se com violência, que modelos de masculinidade contribuem para
legitimar a violência e de como é possível intervir para evitar a violência.
A correlação de pobreza e violência é forte, embora as conexões causais ainda não
sejam claras. Nos locais onde aspectos de raça, etnia, classe social e idade cruzam-se,
encontramos jovens negros que são suscetíveis desde cedo a envolver-se em atos
violentos (BARKER, 2005). A violência assume muitas formas, entre as quais
envolvimento em guerras de gangues, criminalidade, conflitos étnicos ou nacionais
armados, e violência doméstica e parceiro sexual. Quanto a este último aspecto, a
masculinidade violenta torna-se fonte de interesse entre aqueles que tentam
compreender melhor e prevenir a transmissão de HIV, que ocorre em situações de
desigualdade de gênero e violência sexual (ver PATTMAN na seção seguinte).
O trabalho educacional com homens jovens concentrou-se amplamente na
solução da questão da violência. Em contextos de países desenvolvidos,
considerando que o medo de uma crise de masculinidade tenha alimentado
tentativas de melhorar o desempenho acadêmico de meninos e de tornar as escolas
mais receptivas para os meninos, estes não vêm sendo tratados como um grupo
que precise de resgate. Antes, são considerados componentes dos problemas que
afligem permanentemente a educação no mundo em desenvolvimento, bem como
beneficiários potenciais das tentativas bem-sucedidas de confrontar esses problemas
– incluindo violência, infecções por HIV, evasão escolar.
Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento 79

Uma questão não resolvida que fundamenta preocupações constantes sobre


meninos e masculinidade nas escolas é a ausência de uma conexão clara entre
escolarização e o mundo do trabalho, consequentemente as poucas perspectivas de
emprego justapostas à eterna expectativa de que o homem deve ser o provedor. A
história do homem no mundo em desenvolvimento evidencia seus esforços para
ingressar na economia salarial ou permanecer independente dela de forma
produtiva. De maneira geral, esses esforços eram determinados com base na
aceitação de que o sustento da família era sua responsabilidade. Na maioria dos
contextos de países em desenvolvimento, os homens encontram dificuldades para
cumprir o papel de provedores. Na África do Sul, esse fato levou um número
imenso de homens a viver longe de suas famílias, e muitos procuram escapar de
suas obrigações legais de sustentar seus filhos (WILSON, 2006). Como afirmou
Mark Hunter (2006), na África do Sul, há muitos pais que não têm amandla
(poder). Alguns buscam cumprir suas obrigações familiares voltando-se para o
crime. O que essa situação revela é uma tensão entre o que R. W. Connel
denominou dividendo patriarcal e a debilidade estrutural dos homens em contextos
de países em desenvolvimento. Os homens podem ter poder (física ou
coletivamente) em relação a homens mais jovens e mais velhos e em relação a
algumas mulheres, pessoas com deficiência, minorias étnicas e outros grupos
marginalizados. Mas sua incapacidade para garantir seus próprios custos de
reprodução significa que também são impotentes em determinados contextos.
A falta de segurança material provavelmente permanece como fator contextual
básico para meninos e homens em contextos de países em desenvolvimento e,
em determinado sentido, pouco podem fazer sobre a materialidade de sua
situação. No entanto os homens podem, e realmente têm algum controle sobre
as formas como constroem sua identidade masculina, e a escola é um local crucial
para esse desenvolvimento.
A incidência de HIV/Aids e os esforços para conter e interromper a disseminação
da doença na África Subsaariana provou que a escola é um local muito privilegiado
para abordar e mudar comportamentos constrangedores. A dimensão de gênero da
doença é crucial para compreender seu impacto e para a implementação bem-
sucedida de programas de prevenção. É importante considerar as maneiras como
meninos e meninas constroem sua identidade de gênero e as formas como a
educação pode abordar essas construções, assim como focalizar novas formas de
construção. Na próxima seção, focalizamos o trabalho realizado em relação a gênero
e aids, e de que forma essas questões devem ser abordadas nas escolas.

Aids e gênero, gênero e aids


Devido à coincidência entre as baixas taxas de infecção por HIV e os altos níveis
de participação educacional, a educação foi descrita na África Meridional como
uma vacina contra a aids (COOMBE; KELLY, 2000), o que parece ser
80 Bhana, Morrell e Pattman

particularmente verdadeiro para meninas. De acordo com o UNICEF (2004), na


África Subsaariana mais de dois em cada três indivíduos recentemente infectados,
entre 15 e 24 anos de idade, são mulheres, o que reflete amplamente a tendência
das mulheres para envolver-se (frequentemente de modo coercivo) em relações
sexuais com homens mais velhos e sexualmente mais experientes. Meninas que
abandonam a escola precocemente – e, na África Subsaariana geralmente as meninas
abandonam a escola mais cedo do que os meninos, em parte para assumir
obrigações domésticas e cuidados em casa que se tornaram mais prementes devido
à aids – são particularmente vulneráveis porque são mais dependentes de homens
mais velhos e mais ricos do que mulheres com melhor nível de instrução, que têm
melhores perspectivas de trabalho e são mais valorizadas fora de casa (UNESCO,
2003). No entanto, estudos etnográficos e de entrevistas realizados em escolas na
África do Sul (por exemplo, MORRELL, 1998, 2000; HUMAN RIGHTS
WATCH, 2001; JEWKES et al., 2002; BHANA, 2005; MITCHELL et al., 2005;
KENT, 2004), e também em Botsuana, Zâmbia e Quênia (PATTMAN; CHEGE,
2003), e em Gana, Malaui e Zimbábue (LEACH et al., 2003) mostraram que as
escolas não são lugares seguros para meninas, e que assédio e violência sexual são
problemas importantes e comuns enfrentados por muitas delas na escola. Esses
estudos não só relatam propostas indecorosas rotineiras feitas às meninas por
estudantes mais velhos, assim como por professores do sexo masculino, mas
também mostram falhas das autoridades escolares em reconhecer e abordar essa
situação como um problema.
Apostou-se muito no desenvolvimento de iniciativas de educação sexual nas
escolas com o objetivo de dar aos jovens conhecimentos e habilidades de vida
relevantes para ajudá-los a evitar o HIV/Aids. No entanto, se as escolas são locais
em que as meninas são subordinadas em relação à sexualidade, deve-se questionar
se constituem “locais apropriados sobre os quais depositar esperanças de mudança”.
Essa é a opinião de Alex Kent (2004), baseada em sua etnografia detalhada de uma
escola de Durban e na polarização de identidades de gênero (heterossexual) de
meninas por meio de competições de beleza nas escolas, assédio sexual, formas de
punição relacionadas a gênero e espaços diferentes para cada gênero.
Na verdade, há evidências de que a educação sexual, como é ensinada nas
escolas, talvez seja mais um veículo por meio do qual são criadas (abertamente
promovidas ou implicitamente reforçadas) as desigualdades de gênero relacionadas
à sexualidade. No Quênia e em Zimbábue, pesquisas realizadas por meio de
entrevistas com diversos alunos e professores sugeriram que a educação sexual pode
ser bastante moralista e didática, culpando pessoas promíscuas e principalmente as
mulheres pela aids, e pode ser trabalhada com a suposição de que a sexualidade é
reduzível a um impulso biológico, principalmente nos homens, que os jovens
devem controlar e as mulheres não devem provocar. No Quênia e em Botsuana,
observações de aulas sobre HIV/Aids e habilidades de vida revelaram que as
Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento 81

meninas ficavam quietas, aparentemente tímidas e desconfortáveis, e que os


meninos participavam muito mais e recebiam mais atenção por parte dos
professores (PATTMAN; CHEGE, 2003). As populares campanhas “ABC”2,
realizadas em muitos países africanos, com as escolas enfatizando o A, foram
criticadas por sua insensibilidade ao gênero e por agregar homens e mulheres como
se fossem indivíduos livres de relações de poder baseadas em gênero, embora não
defendessem padrões sexuais duplos. Por exemplo, Mitchell e Smith criticam a
campanha ABC por ela supor que as meninas têm opções em relação a abster-se
ou não, a definir quantos parceiros elas e seus parceiros sexuais podem ter, ou se
devem ter preservativos disponíveis, e por ignorar as pressões que emanam de
desigualdades estruturadas em gênero e idade para que meninas envolvam-se em
relações heterossexuais de risco.
No entanto, como argumenta Mannah (2002), as escolas são espaços
potencialmente vitais na luta contra HIV/Aids, em parte devido ao contato diário
com os jovens e à disponibilidade de equipes qualificadas (ou, poderíamos
acrescentar em relação à educação sobre HIV/Aids, equipes potencialmente
qualificadas). Pattman (2006) argumenta que é exatamente porque as escolas estão
tão implicadas na produção de relações de poder baseadas em gênero que programas
sobre educação sexual na escola e de formação de professores centrados no
estudante e sensíveis ao gênero devem ser desenvolvidos. Seus recursos básicos
devem ser a vida e a identidade dos estudantes, e devem estimulá-los, assim como
aos professores, a refletir sobre as dinâmicas de gênero e as relações de poder na
escola, na sala de aula e em outros contextos fora da escola, e em suas próprias
identificações e práticas.
De fato, muitas iniciativas de educação sexual direcionadas a alunos e
professores baseiam-se nessas preocupações. Essas iniciativas são influenciadas por
suposições de que identidades de gênero não são determinadas por cultura ou
biologia, mas são negociadas em interações cotidianas, embora também sejam
forçadas por antigos discursos ou narrativas populares sobre gênero e sexualidade,
e de que há diferentes formas de ser masculino ou feminino (CONNELL, 1995).
Segundo argumentos de Walsh, Mitchell e Smith (2003), os especialistas em
educação sexual devem envolver-se com os jovens como produtores e consumidores
de cultura e de construções populares relativas a gênero, sexualidade e HIV/Aids.
Atividades que utilizam estórias em quadrinhos, fotos e a arte fotográfica,
encenação e interpretação foram desenvolvidas junto a estudantes e professores
para explorar suas construções alternativas de gênero, sexualidade, violência, assédio
e HIV/Aids, e para estimular manifestações críticas. Por exemplo: o Projeto

2. NRTT: As campanhas ABC surgiram na década de 1990 para prevenir a transmissão do HIV/Aids via
sexo, com amplo sucesso. O slogan foi criado a partir das iniciais A (abstain from sex – abstinência sexual),
B (be faithful – ser fiel, apenas um parceiro, não havendo abstinência) e C (condomise – uso de preservativo,
em caso de infidelidade).
82 Bhana, Morrell e Pattman

Storytelling for a Change (2004)3, que utiliza e desenvolve estórias em quadrinhos


junto a estudantes na África do Sul; pesquisas photovoice4 realizadas com meninas
sobre espaços inseguros nas escolas da África do Sul (MITCHELL et al., 2005);
“Opening our Eyes”, um módulo direcionado a professores e baseado, em parte,
no trabalho de photovoice desenvolvido com meninas nas escolas (MITCHELL,
2004); desenvolvimento e apresentação de peças teatrais, para a conscientização
sobre HIV/Aids e gênero nas escolas da África do Sul (MORRELL, 2004);
apresentações rotineiras sobre gênero (BUTLER, 1990) e práticas corporais sobre
tópicos de pesquisa autorreflexiva por meio de interpretação, nas escolas de
Moçambique (THORPE, 2002); e jogos de interpretação de coluna de conselhos
(em TV, jornais e revistas), em Zimbábue (KAIM, 2002). Quando utilizadas em
programas de educação sexual nas escolas, encenações e interpretações podem
permitir que os alunos explorem suas identidades (sexual e de gênero) em uma
variedade de contextos imaginários fora da sala de aula, os quais podem ser
utilizados para que se apresentem de maneiras bastante diferentes e até mesmo
contraditórias (PATTMAN; CHEGE, 2003).
No desenvolvimento de formas de educação sexual sensíveis ao gênero, Pattman
(2005) argumenta que é preciso abordar masculinidade e feminilidade como
mutuamente relacionadas, exatamente porque não constituem aspectos essenciais
que meninos e meninas possuem e que existem isoladamente, mas que são sempre
construídos de forma relacional. A educação sexual visa conferir poder a meninas
e mulheres, mas direcioná-la apenas a meninas e mulheres tende a reforçar
suposições de que a saúde reprodutiva é essencialmente sua responsabilidade
(BUJRA, 2000) e que os homens são mais sexuais ou mais irresponsáveis
sexualmente. Uma forma alternativa de conferir poder às meninas é estimulá-las,
assim como aos meninos, a refletir de forma crítica sobre os problemas que surgem
para cada um e para o sexo oposto como resultado de legalizar construções
estereotípicas de masculinidade e feminilidade. Isso supõe que as mulheres não são
menos sexuais que os homens, e que o abuso sexual inclui não apenas assédio e
violência sexual, como argumentou Carol Vance (1984) de forma tão vigorosa,
mas também o policiamento e a regulação da sexualidade da mulher. Isso torna
difícil para meninas, construídas como responsáveis, levar com elas preservativos
(CAMPBELL, 2003) ou permanecer fora de casa à noite, ou usar determinados
tipos de roupa, ou até mesmo falar sobre seus desejos sexuais (PATTMAN, 2005).
Supõe, também, que é do interesse de meninos e de meninas desenvolver
relacionamentos menos polarizados e mais igualitários – sexuais e não sexuais –

3. NT: Narração de Estórias pela Mudança.


4. NT: Photovoice é um método (inovador) de intervenção social, que utiliza a fotografia e a voz como um
instrumento para conferir poder, uma vez que promove a participação e o exercício da cidadania, sobretudo
quando se intervém com populações mais desfavorecidas e/ou vulneráveis. Por meio do photovoice, é possível
conhecer as experiências, vivências, necessidades, dificuldades e desejos dos indivíduos.
Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento 83

com o sexo oposto. Essa posição baseia-se no ponto de vista de Bob Connell (1995)
de que construções hegemônicas de homens como emocional e fisicamente fortes
e possuidores de um imenso impulso sexual implicam custos não apenas para as
meninas, mas para os meninos, em geral, que tentam viver de acordo com esses
constructos. Por exemplo, ansiedade em relação às namoradas que podem rejeitá-
los por meninos e homens mais velhos, mais ricos e sexualmente mais experientes;
incapacidade para expressar sentimentos de amor e intimidade em público; e medo
de envolver-se em brigas com outros meninos e de ser intimidado por eles. Essas
ansiedades foram expressas por meninos na África do Sul e no Zimbábue em diários
individuais, mas não publicamente em entrevistas de grupos (PATTMAN;
CHEGE, 2003).
Em resposta à crise de masculinidade no Ocidente, centrada em torno de
construções de meninos como sexualmente irresponsáveis, violentos e
antiacadêmicos (ver seção anterior), acadêmicos e políticos clamaram por modelos
de papéis masculinos mais consistentes, como professores e pais (por exemplo,
BIDDULPH, 1998), para estimular meninos a desenvolver um sentido de
autocontrole e responsabilidade – posição desafiada pelo estudo de Thornton e
Bricheno (2006) realizado no Reino Unido, mencionado na seção anterior. O
problema é que esse ponto de vista supõe uma masculinidade essencial que apenas
figuras masculinas autoritárias podem moldar, de forma responsável, um ponto de
vista em desacordo com a ideia de gênero relacional proposta acima. Considerando
o gênero como relacional, Pattman (2006) argumentou que professores do sexo
masculino que lecionam educação sexual podem atuar como modelos muito
positivos: não, entretanto, exemplificando modos convencionais rígidos e
autoritários de masculinidade, mas subvertendo esses modos. O autor baseia-se em
pesquisas (PATTMAN; CHEGE, 2003) que mostram que, na África do Sul e em
Botsuana, professores homens e professoras mulheres tendem a ser interpretados
pelos alunos de formas muito polarizadas como, respectivamente, autoritários e
cuidadosos (ver também KENT, 2004), e defende a importância de educadores do
sexo masculino (treinados para ser sensíveis ao gênero e centrados no estudante)
demonstrarem de que forma os homens podem ser sensíveis, abordáveis e não
agressivos, e que podem desenvolver relações estreitas e de zelo, sem conotação
sexual e de assédio, com as meninas.
Abordar meninos e meninas separadamente ou em conjunto é uma questão
controversa em meio àqueles comprometidos com formas de educação sexual
sensíveis ao gênero. Respondendo a esses resultados de pesquisas que apresentam
as escolas como locais em que as meninas estão sujeitas a diversas formas de assédio
sexual e subordinação, Morrell (2000) defendeu a existência de um número maior
de escolas para um único sexo, com o objetivo de prover ambientes seguros e de
apoio para as meninas. Em contraste, Pattman (2005) sugeriu que um objetivo-
chave da educação sexual deve ser estimular meninos e meninas a identificar menos
84 Bhana, Morrell e Pattman

oposição ao outro sexo e a promover possibilidades de amizades entre os gêneros,


e que isso é possível apenas quando meninos e meninas têm oportunidades de
trabalhar juntos e de aprender uns com os outros (mesmo quando o trabalho em
grupos compostos por indivíduos de um único sexo seja necessário na educação
sexual em associação com grupos mistos, como forma de permitir que as meninas,
inicialmente, falem abertamente sobre questões relacionadas a sexualidade e
gênero). No entanto, Unterhalter e outros (2004) argumentam que, para algumas
regiões, como o norte do Quênia, escolas para um único sexo podem ser
particularmente importantes para conferir poder às meninas. Nessas escolas,
relacionamentos segregados por gênero são aprovados com bases religiosas, e as
meninas tendem a ser retiradas de escolas (mistas) quando chegam à puberdade.

Conclusão
Na África Subsaariana, pesquisas e políticas educacionais não deram a devida
atenção às necessidades específicas de meninos e meninas e suas vulnerabilidades.
Um número excessivo de análises de gênero na educação focaliza a porcentagem
de meninos e meninas na educação primária e secundária. Com frequência, as
meninas são consideradas vítimas sem muitas oportunidades de manifestação, ao
passo que os meninos são retratados como predadores sexuais e violentos. Ao
mesmo tempo em que nos empenhamos para mostrar de que formas violência e
HIV/Aids estão associados às vulnerabilidades de meninos e meninas na escola, o
uso de termos demonizados para retratar meninos como violentos e agressivos é
particularmente inútil, uma vez que essas categorias homogeneizadas falham em
considerar a pluralidade das experiências dos meninos. Do mesmo modo, a maioria
dos relatórios sobre HIV/Aids mostra de que forma as meninas tornam-se
vulneráveis pelos comportamentos sexuais de meninos. Neste capítulo,
argumentamos que muitos dos padrões negativos de comportamento exibidos por
meninos são, frequentemente, parte da demonstração pública da identidade
masculina definida dentro de constructos sociais rígidos do que significa ser um
menino e um homem na África Subsaariana.
No entanto, nessa mesma região, há evidências de mudanças nas normas de
gênero, principalmente como resultado do maior acesso de mulheres e meninas
aos mercados de trabalho, que vêm desgastando a noção dos homens em relação
ao direito à vantagem econômica. Ao mesmo tempo, há o reconhecimento da
importância de homens e mulheres trabalharem juntos e o impacto positivo da
educação sobre a renda e a saúde da família. Na África do Sul, por exemplo, a
composição e os efeitos calamitosos do HIV/Aids estão mudando a forma como
alguns homens consideram-se em relação às mulheres, enquanto outros continuam
a manter seus pontos de vista tradicionais.
É crucial trabalhar com meninos e meninas para mudar constructos normativos
de gênero e, como mostramos, a educação sobre HIV/Aids fornece um solo fértil
Gênero e educação em contextos de países em desenvolvimento 85

para que isso ocorra. No entanto a mudança é lenta e, no contexto da África


Subsaariana, o empobrecimento material e as vulnerabilidades resultantes para
meninos e meninas causam impacto muito forte sobre o que é possível mudar.
Neste capítulo, no entanto, argumentamos que o desafio para a educação, à luz da
violência e do gigantesco trabalho necessário para interromper a disseminação da
doença, é ouvir as vozes de meninos e meninas, e que meninos e meninas devem
estabelecer a agenda em busca de caminhos para realizar mudanças.

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46

REINVENTANDO ESPAÇOS EDUCACIONAIS,


CONSTRUINDO UMA CIDADANIA ATUANTE:
DUAS EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS

Tristan McCowan e Luís Armando Gandin

Introdução
Quando Leslie Bethell (2000) afirma que “o Brasil é uma democracia de
eleitores, mas não é uma democracia de cidadãos”, destaca dois aspectos
significativos do país. Em primeiro lugar, o fato de que, no Brasil, todos podem
votar, e quase todos o fazem (é obrigatório para indivíduos dos 18 aos 70 anos de
idade), mostra diversos avanços realizados no século XX que garantiram a
universalidade de direitos. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 1990, fazem parte de um conjunto de garantias oficiais para o
indivíduo, inclusive aquela que garante educação obrigatória dos 7 aos 14 anos de
idade. No entanto, a natureza moderna e esclarecida de grande parte da legislação
e das estruturas institucionais brasileiras contrasta com a ineficácia e o caráter
incompleto de sua implementação. Os direitos civis são geralmente preservados
apenas de acordo com a riqueza do indivíduo envolvido, e os mais pobres quase
não têm direitos sociais. Na esfera política, a participação é formal, mas não é
efetiva.
Em termos gerais, é possível considerar a cidadania como sendo composta por
dois elementos: o passivo, relacionado ao conjunto de direitos que o Estado garante
manter para o indivíduo, e o ativo, referente à participação do indivíduo no
funcionamento do Estado. Cada um dos dois principais paradigmas de cidadania
– republicano liberal e cívico – focaliza principalmente um desses dois elementos:
o primeiro, os direitos, e o último, a participação ativa (HEATER, 1999;
KYMLICKA, 2002). Pode-se, contudo, argumentar que a cidadania será eficaz
apenas quando ambos recebem atenção: os cidadãos têm garantidos seus direitos
civis, políticos e sociais – na concepção de T. H. Marshall (1950) – e participam
ativamente do processo de tomada de decisões, tanto no nível local quanto no nível
nacional.
A educação está relacionada a esses dois elementos da cidadania. Em primeiro
lugar, é um direito em si (embora a natureza e a amplitude desse direito possam
ser fortemente contestadas) e, como tal, a cidadania torna necessário o provimento
de, no mínimo, educação básica para todos. Mas a educação é também um meio
de garantir o segundo elemento. A participação efetiva não pode ser concedida aos

89
90 McCowan e Gandin

cidadãos (embora o Estado possa fazer esforços para remover barreiras formais):
depende de conhecimentos, habilidades e dispositivos que devem ser desenvolvidos
internamente e, portanto, ocorrerá amplamente por meio da educação formal ou
informal. De forma muito importante, por conseguinte, a cidadania eficaz levanta
questões sobre a quantidade e a qualidade da educação, o acesso ao provimento
educacional e sua natureza ou destino.
Além disso, podemos fazer distinção entre formas fracas e fortes de participação
política (McCOWAN, 2006a). Em sua maior parte, os atuais sistemas democráticos
permitem aos cidadãos a liberdade de escolha entre candidatos e políticas. No
entanto, essas opções políticas estão incorporadas a um sistema mais profundo de
estruturas e relações sociais, econômicas e políticas, fundamentais para o
funcionamento do Estado, mas que são raramente questionadas. Formas fortes de
cidadania (formas realmente críticas) permitirão que essas orientações subjacentes
da sociedade, cujo questionamento é muitas vezes considerado tabu, sejam abertas
à reconsideração e à reinvenção.
No entanto, a análise acima mostra certa tendência universalista, que
Unterhalter (1999, p. 102-103) descreve como “um apelo a um conceito abstrato
de cidadão despojado de todas as qualidades, exceto racionalidade e moralidade
subjetivas”, e que pode “manter e perpetuar divisões sociais com base em gênero,
etnia racial, sexualidade e deficiência”. O debate sobre cidadania deve equilibrar a
necessidade por direitos universais e participação com a reivindicação de grupos
específicos pelo reconhecimento de diferenças. Na prática, a igualdade formal pode
encobrir desigualdades e discriminação. Pessoas com deficiência, por exemplo,
podem ter necessidades específicas para que sejam capazes de participar da esfera
política em condição de igualdade. Políticas para abordar histórias de discriminação
racial e de gênero talvez sejam necessárias. Talvez não seja fácil alcançar esse
dispositivo: a identidade tem um relacionamento desconfortável com a cidadania,
uma vez que esta última inevitavelmente implica alguma abstração de características
específicas em favor das características gerais de pertencer a um Estado (politia).
A história do Brasil não forneceu solo fértil para o florescimento da cidadania.
Cada um de seus períodos – sucessivamente caracterizados por colonização,
autoritarismo e neoliberalismo – limitou os dois aspectos: ampliar os direitos e
equipar os indivíduos para a participação ativa. Após a independência, em 18211,
passou-se mais de meio século antes que a escravidão fosse abolida, em 1888.
Desde então, houve dois períodos de ditadura – de 1937 a 1945 e de 1964 a
1985 – e avanços hesitantes em direção à democracia entre eles. Apesar da
significativa democratização ocorrida desde 1985, as desigualdades sociais ainda
são críticas. Em 2006, o Brasil foi o décimo país com maior desigualdade na
escala Gini: os 10% da sociedade situados na extremidade superior da escala

1. NRTT: Data como consta do texto original em língua inglesa.


Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 91

detinham uma parcela de riqueza 58 vezes maior do que os 10% situados na


extremidade inferior (UNDP, 2006).
O background histórico é importante para compreender o atual contexto da
educação no Brasil. O cenário específico do país é, por um lado, produto de longas
batalhas entre progressistas e tradicionalistas e, por outro, entre elites e classes
trabalhadoras. No período colonial, as oportunidades eram raras, mesmo para os
mais abastados que, normalmente, enviavam seus filhos para serem educados na
Europa. Após uma lenta expansão do provimento no século XIX, surgiu um novo
momentum com a proclamação da República, à medida que crescia a convicção
sobre a importância da educação universal e do papel da educação formal na
promoção de avanços tecnológicos (HAVIGHURST; MOREIRA, 1965). Mas foi
apenas com o rápido crescimento econômico do período após a Segunda Guerra
Mundial que ganhos quantitativos significativos foram conseguidos, e que
continuaram até que a matrícula quase universal no ensino fundamental fosse
alcançada no final do século (os números relativos aos níveis médio e superior são
menos impressionantes: 75% e 20%, respectivamente) (UNESCO, 2001; INEP,
20032).
No entanto, embora esses ganhos quantitativos sejam bem-vindos, ocultam
problemas de qualidade profundos e generalizados. No Brasil, o currículo foi
tradicionalmente caracterizado por uma lealdade à aprendizagem acadêmica inerte,
com pouca relevância para o contexto local. Na primeira metade do século XX, o
movimento Escola Nova, liderado por Anísio Teixeira, tentou, por conseguinte,
injetar vida nova às escolas, promovendo expressão, investigação e resolução de
problemas relacionados a temas atuais. No entanto, essas reformas não afetaram a
maioria do provimento educacional (LOURO, 1986). Além disso, somando-se a
esses elementos suaves, o movimento tinha um lado sólido de instrumentalismo
pragmático, pavimentando o caminho para as posteriores abordagens tecnicistas
da ditadura militar. Ironicamente, foi ao longo dos dois períodos do século XX
durante os quais as eleições diretas foram suspensas – o período Vargas, a partir de
1937 e, mais tarde, após o golpe militar de 1964 – que a cidadania tornou-se parte
explícita do currículo. No entanto, essa foi uma forma de educação de cidadania
que não estimulava os direitos e a participação crítica. Educação Moral e Cívica
tornou-se disciplina obrigatória, promovendo um patriotismo conservador, que
valorizava obrigações mais que os direitos e a glória da nação mais que a justiça
para todos os seus membros.
Após 1985, as eleições diretas retornaram, e o país viveu uma abertura
considerável de espaços democráticos e de surgimento de movimentos sociais. Esse
período coincide com a ascensão no mundo todo de uma estrutura de políticas

2. Os números de matrículas no ensino médio referem-se ao período de 2002 a 2003 e, para o ensino superior,
referem-se a 2002.
92 McCowan e Gandin

econômicas comumente denominada neoliberalismo, que trouxe mudanças


significativas para a sociedade brasileira, embora em menor escala do que em outros
países da América Latina, como o Chile. Durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso (de 1995 a 2002), os gastos públicos com educação concentraram-se de
forma crescente no nível primário do ensino fundamental, em conformidade com
as recomendações do Banco Mundial e de outras agências internacionais. Os
provedores privados aumentaram sua parcela nos níveis pós-educação obrigatória,
o que levou a altos níveis de comercialização no ensino superior e, apesar dos ganhos
constantes no número de matrículas no nível primário do ensino fundamental,
não solucionou problemas de qualidade, com ampla falta de recursos e altos níveis
de professores não qualificados nas regiões mais pobres do país (GENTILI, 1995;
GENTILI; FRIGOTTO, 2000).
No final desse período, surge um novo paradigma de cidadania. Aparentemente,
a esfera política subordinou-se à econômica: o mercado livre tornou-se o sistema
modelo de serviços públicos. Com isso o cidadão é identificado com o consumidor,
fazendo opções entre inúmeros serviços concorrentes, mas limitado, naturalmente,
pelo poder de compra. Embora o cidadão do regime autoritário não tivesse poder
devido à repressão e à falta de direitos políticos, o cidadão consumidor é destituído
de poder de maneira mais sutil. Tendo sido concedido o simulacro de poder por
meio da escolha (o poder dos pais do discurso do governo do Reino Unido), o
cidadão consumidor rende-se ao poder potencial de organização coletiva,
deliberação democrática e protestos pacíficos.
No Brasil, a cidadania efetiva hoje está ameaçada pelos paradigmas do
autoritarismo e do neoliberalismo. Este capítulo explora duas iniciativas
educacionais que, de formas diferentes, visam desafiar essas estruturas e formar
novos conceitos de cidadania para substituí-las. A primeira é o Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), movimento social que tem feito campanha
em favor da reforma agrária desde sua fundação em 1984, e que criou uma rede de
escolas em todo o país, em seus assentamentos cooperativos. A segunda é a Escola
Cidadã, iniciativa implementada pelo governo municipal de Porto Alegre que visa
combater a exclusão educacional. Essas duas iniciativas apresentam diferenças
significativas: o MST é um movimento social e que atua em áreas rurais, ao passo
que a Escola Cidadã é um programa urbano liderado pelo governo. No entanto
compartilham a característica de pertencer a um amplo movimento popular de
reforma educacional que surgiu no final da ditadura militar. No processo de
redemocratização, do estabelecimento da Constituição e do Plano Nacional de
Educação, setores da sociedade civil brasileira viveram altos níveis de mobilização
e criaram inúmeros espaços para a democracia participativa (GENTILI;
McCOWAN, 2003). Foram criados inúmeros sindicatos e movimentos sociais para
representar os interesses de grupos particulares que, nas décadas anteriores, haviam
sido marginalizados. Fóruns, como os encontros do Congresso Nacional de
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 93

Educação (Coned) , assim como do Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial


da Educação, realizados em Porto Alegre, criaram pontos focais para campanhas
nos níveis nacional e internacional. Governos locais em todo o país desenvolveram
novas formas de políticas participativas (por exemplo, GANDIN; APPLE, 2002;
McCOWAN, 2006b); o Partido dos Trabalhadores (PT) foi particularmente
influente a esse respeito, e suas realizações no nível local são, sob muitos aspectos,
mais notáveis do que aquelas no nível nacional. Subjacente a muitas dessas novas
iniciativas na esfera educacional situa-se o pensamento de Paulo Freire (1972, 1985,
1994), cuja visão de pedagogia transformadora construiu a confiança na
possibilidade de mudanças em contextos adversos. O próprio Freire participou
ativamente dessa transformação como Secretário da Educação no município de
São Paulo, de 1989 a 1991.
Por sua vez, as seções a seguir exploram as duas iniciativas e avaliam suas
possibilidades e limitações para desafiar as concepções de cidadania autoritárias e
baseadas no mercado, e para construir novas formas que as substituam, que possam
assegurar a garantia dos direitos e a participação ativa. A seção final discute algumas
questões mais amplas levantadas a partir da análise das relações entre educação e
cidadania democrática no contexto da marginalização política extrema,
característica de muitos países na parte sul do globo.

A educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST)


O MST é amplamente reconhecido como o maior e mais influente movimento
social na América Latina. Desenvolveu-se a partir de revoltas esporádicas de
camponeses e de ações da ala progressista da Igreja católica em resposta à
necessidade urgente de reforma agrária. No Brasil, aproximadamente 1% dos
fazendeiros controlam 50% da área agrícola, ao passo que há 4,5 milhões de
camponeses sem-terra (BRANDFORD; ROCHA, 2002; CALDART, 2000).
Muitos dos que foram obrigados a abandonar a terra migraram para uma nova
forma de pobreza nas favelas urbanas, cada vez maiores. O movimento foi fundado
oficialmente em 1984 e atuou inicialmente no sul do país, embora hoje esteja
espalhado por 23 dos 27 estados3 do Brasil.
A ocupação da terra é central para as atividades do movimento, segundo o qual
um grupo de famílias ocupa ilegalmente a terra agrícola não utilizada em uma grande
propriedade rural. Forma-se um acampamento, no qual são necessários altos níveis
de organização e cooperação para sustentar a comunidade itinerante. A Constituição
brasileira determina que a terra agrícola ociosa deve ser alocada para a reforma agrária
e, após longos conflitos com o governo, as famílias muitas vezes ganham o direito
de permanência. O acampamento torna-se, então, um assentamento, e as famílias
podem começar a cultivar a terra, o que fazem individual ou coletivamente.

3. Esse número inclui o Distrito Federal.


94 McCowan e Gandin

No entanto, os objetivos do MST ultrapassam a posse da terra para aqueles


que não a têm. O movimento está fortemente comprometido com a
transformação da sociedade como um todo, substituindo o sistema capitalista
injusto por um sistema no qual os indivíduos possam viver e trabalhar com
dignidade, solidariedade e igualdade (MST, 1995, 2001a). Com o passar do
tempo, o foco transferiu-se do nível local para o nível nacional, e mesmo para
questões globais, como acordos mundiais de comércio e produtos geneticamente
modificados (CALDART, 2000). Logo após o estabelecimento dos primeiros
assentamentos, tornou-se claro que seria necessário algum tipo de provimento
educacional para os filhos dos sem-terra. Além disso, muitos adultos eram
analfabetos e precisavam desenvolver habilidades básicas para melhorar seu
trabalho agrícola e possibilitar a participação política eficaz. As redes de escolas
de ensino fundamental cresceram lentamente, assim como turmas de alfabetização
de adultos, com um corpo docente e administrativo composto principalmente
pelos poucos membros da comunidade que haviam concluído seus estudos. Após
conflitos com as autoridades locais, as comunidades conseguiram ter suas escolas
oficialmente reconhecidas e, com isso, obtiveram recursos estaduais e provisão de
professores e materiais. A educação logo se tornou uma prioridade-chave para o
movimento, e foi construída uma rede com 1.500 escolas que, ao longo dos anos,
atenderam 160 mil crianças, 28 mil em educação para jovens e adultos, assim
como proporcionaram educação infantil, cursos técnicos de nível médio, formação
de professores e outros cursos de ensino superior em parceria com universidades
estabelecidas (MST, 2005). Em outro contexto, crianças com background
socioeconômico semelhante não poderiam esperar nada além de alguns anos de
ensino fundamental de baixa qualidade.
Esses ganhos quantitativos são por si próprios uma realização. No entanto, o
objetivo do MST é também transformar a natureza basilar da educação:
Confrontados com uma escola elitista, autoritária, burocrática, de conteúdo pesado, ‘bancária’4,
com uma concepção estreita e pragmática da educação, [temos] o desafio de construir uma escola
popular, democrática, flexível, dialógica – um espaço para o desenvolvimento humano holístico
em movimento (MST, 2004).

Em primeiro lugar, para o MST existe a necessidade de tornar a educação


relevante para a população rural, o que envolve o desenvolvimento de habilidades
e conhecimentos relacionados ao trabalho agrícola, mas também a construção do
orgulho da cultura rural dentro do contexto de valores predominantemente
urbanos promovidos pelos meios de comunicação. Um exemplo de novas
abordagens ao conhecimento é a etnomatemática descrita por Knijnik (1996,
1998), segundo a qual métodos locais de cálculo – como área de terra e peso da

4. Concepção de Freire de “educação bancária”.


Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 95

produção agrícola – são integrados ao currículo. O movimento é também


fortemente influenciado pelas ideias de Paulo Freire, e tenta manter relações
pedagógicas baseadas no diálogo, em que alunos e professores envolvem-se em um
processo comum de aprendizagem e desenvolvimento humano. Os processos do
diálogo freireano são também meios de construção da democracia, uma vez que
incorporam o respeito pelo indivíduo, a valorização do conhecimento e das
opiniões de todos e o provimento de um local para exercer o direito de expressão.
Há também um elemento político explícito na educação de acordo com o MST.
O movimento segue Freire (1972, 1994) no que diz respeito à compreensão de
que a educação não pode ser neutra e, para não apoiar o status quo injusto, deve
promover ativamente a justiça e opor-se à opressão. Ao mesmo tempo em que a
educação de adultos possibilita formas desenvolvidas do debate político, o
movimento visa promover um senso de justiça e de compreensão das dinâmicas da
sociedade desde as fases iniciais da educação. Outro elemento essencial é que a
educação oferecida pelo MST está organicamente associada ao movimento social.
A educação – formal e informal – é essencial para alcançar os objetivos de cada
comunidade e do movimento como um todo. Além disso, o próprio movimento
pode ser considerado uma escola, e a participação na luta pela justiça social é
considerada a experiência de aprendizagem mais importante na qual os sem-terra
estão envolvidos.
Essa ideia final é expressa de forma mais clara por Roseli Caldart (2000, 1999),
talvez a mais influente teórica da educação no movimento. Em seu trabalho, ela
explora a rica dialética da escola no movimento e do movimento como uma escola.
Um de seus temas principais é pedagogia em movimento, no qual considera o trabalho
educacional do MST como um processo constante de criação e recriação pelas
experiências práticas dos educadores em acampamentos e assentamentos, em diálogo
com influências teóricas. Outro tema é a importância da identidade dos sem-terra
que, de acordo com a análise da classe trabalhadora na Inglaterra, realizada por
Thompson (1980), ela considera fundamental para o desenvolvimento do
movimento social como um ator político.
Outro aspecto distinto da educação do MST é a mística, que se refere àquelas
atividades elaboradas para desenvolver lealdade ao movimento e a seus princípios
(MST, 1999). Representar episódios da história do movimento em rituais, cantar
o hino e utilizar a bandeira simbólica, entre outras, são atividades estimuladas para
desenvolver os aspectos emocionais da participação na luta pela reforma agrária.
Vinculada a essas atividades está a importância dada à história, em termos de
história do mundo, em geral para compreender as causas profundas das
desigualdades sociais, e especificamente a história do movimento.
Portanto, em relação ao entendimento de cidadania esboçado acima, o
movimento atua para garantir o direito dos cidadãos a uma educação de qualidade
e também para aumentar o seu poder para participar plenamente na esfera política.
96 McCowan e Gandin

Talvez seja nesta última função que o movimento mais se destaca: elementos
políticos fortemente integrados ao currículo escolar, e um contexto mais amplo (as
atividades do próprio movimento), no qual essas habilidades podem ser exercitadas.
Em relação às formas fracas e fortes identificadas acima, a participação política
envolve desafiar as estruturas nucleares da sociedade, e não simplesmente exercer a
opção eleitoral dentro de determinado sistema. Considera-se que a cidadania
depende da conscientização – o desenvolvimento de consciência política
simultaneamente com a ação. Um dos objetivos de educação declarados pelo
movimento é: “despertar a consciência e o espírito organizacional de liderança de
crianças, adolescentes, educadores e comunidade, com objetividade política para
exercer a cidadania” (MST, 2001b).
Os alunos desenvolvem essa consciência política e capacidade para ação por
meio de estruturas participativas da própria escola. Grupos de alunos e grupos de
trabalho auto-organizados servem para dar aos alunos uma oportunidade para
desenvolver habilidades de deliberação e organização, e ter voz real no
funcionamento da escola:
Entendemos por auto-organização o direito dos alunos de organizar-se em grupos, com seu
próprio espaço e em seu próprio tempo, para analisar e discutir suas questões, elaborar propostas
e tomar suas próprias decisões visando participar como sujeitos na gestão democrática do processo
educativo e da escola como um todo (MST, 1999).

Em outra parte, o movimento declara: “Quando os indivíduos recebem tudo,


a dependência é reforçada e o indivíduo nunca se torna o sujeito. É parte do
processo que aqueles que desejam ser alfabetizados possam organizar-se para
alcançar esse objetivo” (MST, 1994).
Essa auto-organização é particularmente evidente na formação do professor
oferecida pelo movimento, na qual os alunos são efetivamente solicitados a
construir e a gerenciar seus próprios cursos (CALDART, 1997). Os primeiros
cursos formais foram realizados em 1990 e, em 1998, foi criado um programa de
pedagogia em nível superior utilizando uma abordagem diferente denominada
pedagogia da terra, em respostas às específicas necessidades ambientais e políticas
do movimento.
Nas escolas, também há estruturas participativas para professores que, como os
alunos, estão comprometidos com um processo de transformação coletiva.
Portanto, algumas escolas apresentam estruturas de gerenciamento horizontal, com
um sistema de rodízio entre os membros da equipe em relação às responsabilidades
de diretor. Organismos participativos também são abertos a membros da
comunidade, que participam de assembleias gerais para determinar o
direcionamento geral da escola, e são representados no conselho escolar (ou equipe
educacional), onde são discutidos detalhes da implementação. Essas estruturas
servem para facilitar a gestão escolar, para integrá-la de forma mais eficaz à vida da
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 97

comunidade e prover um espaço para que todos os membros da comunidade,


inclusive crianças, possam desenvolver habilidades de participação política
(McCOWAN, 2003).
Avaliações das realizações dos programas educacionais do MST variam. O
sociólogo José de Souza Martins identificou o que ele considera uma contradição
fatal no MST entre os sistemas de convicções da vanguarda, na maioria das vezes
com uma visão revolucionária marxista, e o conjunto de indivíduos sem-terra, fixado
em valores tradicionais, conservadores e religiosos (MARTINS, 2000). Embora essa
diferença possa ser uma simplificação excessiva, certamente há tensões significativas
entre valores progressistas e tradicionais dentro do movimento. Uma área em que
essa tensão é evidente é a questão de gênero. Por um lado, o movimento deu passos
consideráveis para dar à mulher um posicionamento igualitário nas tomadas de
decisão. Um dos seis principais objetivos do movimento é “combater todas as formas
de discriminação e buscar a participação igualitária da mulher”. Consequentemente,
foi criado o Setor Nacional de Gênero para ajudar a alcançar esse objetivo dentro
do movimento. Uma manifestação estrutural desse objetivo é o requisito de que um
de cada dois delegados que representam cada comunidade (e cada estado) deve ser
uma mulher. Em 2009, nove dos 18 membros eleitos da liderança nacional eram
mulheres – conquista considerável em um país no qual menos de 10% dos
representantes na Câmara dos Deputados e no Senado são mulheres.
No entanto, as tradicionais atitudes e práticas machistas da sociedade em geral
podem ainda ser identificadas dentro do movimento, e as mulheres podem lutar
para que sejam aceitas em papéis que não aqueles de dona de casa e mãe de família.
A educação é vista por muitos como a chave para mudar essas atitudes
profundamente arraigadas.
Por que o trabalho dos homens deve ser mais valorizado? Há uma grande diferença no mercado
de trabalho [...] Portanto, trabalhamos com essas questões no acampamento, mulheres e homens
igualmente valorizados saindo para trabalhar no campo. Desse modo, eliminamos o que os
meios de comunicação nos dão desde o tempo de nossos ancestrais. (Entrevista com Olga,
coordenadora educacional).5

Até o momento, o MST não deu muita atenção a outros fatores de divisão social
mais ampla, como raça, deficiência e sexualidade. Embora adote uma abordagem
inclusiva em termos gerais, ainda deve desenvolver uma estratégia eficaz para
garanti-la na prática. Como um todo, o movimento tende a conceitos universalistas
de cidadania, focalizando o humano como o valor subjacente fundamental (embora
reconheça as especificidades do contexto rural). A luta pela reforma agrária é
considerada parte de uma luta de classes mais ampla, à qual são subordinadas outras
formas de opressão, como raça e gênero (MST, 2001a).

5. Essa entrevista foi extraída de pesquisa realizada em 2002, nos estados do Espírito Santo, Bahia e Rio de
Janeiro (McCOWAN 2003). Foram utilizados pseudônimos no lugar dos nomes dos participantes.
98 McCowan e Gandin

Portanto, os esforços do MST para promover a cidadania efetiva não estão


isentos de problemas. Outra questão está relacionada ao desenvolvimento de
criticismo, principalmente definido em termos da concepção de Freire de
conscientização. Pesquisas anteriores (McCOWAN, 2003) mostraram que, embora
o movimento tenha sucesso ao desenvolver compreensão e atitudes críticas em
relação ao governo e a estruturas do Estado, é menos bem-sucedido ao fazê-lo em
relação ao próprio movimento. Devido a ameaças externas extremas enfrentadas
pelo MST – principalmente por parte de proprietários de terras e suas milícias – e
à necessidade de unidade interna para uma coordenação eficaz, não é de
surpreender que atitudes críticas possam tornar-se uma prioridade secundária.
Alguns analistas (por exemplo, NAVARRO, 2001) argumentaram que educação
política acrítica é comum no movimento, principalmente em relação a ativistas
jovens que assumem posições de responsabilidade. No nível da escola, isso é menos
comum, embora o uso da mística possa ser problemático a esse respeito. No
entanto, a imprensa de direita (por exemplo, WEINBERG, 2004), com o objetivo
de enfraquecer o MST como um todo, sem dúvida exagerou a extensão da lavagem
cerebral no movimento. Além disso, como mencionado anteriormente, o MST
adota uma abordagem freiriana para a neutralidade, e consideraria como apoiadora
do status quo qualquer abordagem mais equilibrada à educação política.
Outra questão está relacionada ao funcionamento de suas escolas
(principalmente de ensino fundamental) financiadas pelo governo. Para o
movimento, essa situação é problemática, uma vez que as autoridades locais podem
impor professores contrários aos seus objetivos e, desse modo, prejudicar a filosofia
característica da escola. Mesmo assim, o MST resiste em dirigir suas escolas com
recursos privados, em parte porque não possui os recursos para tanto e também
porque é fortemente a favor da ideia de educação pública. Do ponto de vista do
Estado, as escolas do MST são problemáticas, uma vez que têm uma ideologia
específica que pode não ser suficientemente leiga para justificar o status de escola
pública. No entanto, os governos estadual e municipal reconhecem que o MST
vem desempenhando papel fundamental no provimento do ensino básico em
muitas áreas rurais e, portanto, toleram a situação.
Essas contradições e tensões são reais e não podem ser explicadas. No entanto,
elas não negam as conquistas notáveis do MST em superar as críticas da educação
convencional para criar uma alternativa viável e, além disso, mantêm essa
alternativa em muitos níveis em um país grande como o Brasil. A abordagem do
MST está bem resumida no seguinte trecho:
Com o tempo, essas crianças ganham maior consciência da luta: isso acontece [...] nos lugares
onde têm o direito de falar, de cantar. Têm um desejo forte de participar, têm prazer em dar sua
contribuição a assembleias, encontros, comemorações, construindo brinquedos e a barraca da
escola [...] É esse espaço de participação que faz com que a criança seja crítica, e que não aceite
as coisas como elas são (MST, 2001b).
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 99

A experiência do MST é, sem dúvida, altamente específica para o contexto


brasileiro. No entanto, poderia ser implementada em outros contextos de
marginalização política na parte meridional do planeta? Antes de abordar essa
questão, discutiremos o segundo caso de inovação quanto à educação para
cidadania: a iniciativa Escola Cidadã.

A Escola Cidadã em Porto Alegre


A Escola Cidadã6 é uma iniciativa educacional do governo do município de
Porto Alegre, a maior cidade no sul do Brasil, com uma população de
aproximadamente 1,4 milhão de habitantes. Em 1989, uma coalizão de partidos
de esquerda (a Administração Popular), sob a liderança do PT, venceu as eleições
municipais e deu início a um novo plano para a cidade. A premissa básica foi a
ideia radical de democracia, que possibilitava um envolvimento real dos cidadãos
na governança da cidade. De acordo com um dos prefeitos anteriores de Porto
Alegre, o propósito da Administração Popular é:
recuperar energias ideais, [...] para criar um movimento que contenha, como um processo social
real, as origens de um novo modo de vida, construindo uma ‘nova vida moral’ (Gramsci) e com
uma nova articulação entre Estado e sociedade [...] que possa conduzir a atividade social e a
consciência de cidadania a uma nova ordem (GENRO, 1999).

Para materializar esse complexo ideal, a Administração Popular previu diversos


macromecanismos que poderiam permitir a implementação da articulação descrita
por Genro. Um desses mecanismos é a Escola Cidadã.
A Escola Cidadã é o projeto para envolver todas as escolas municipais de Porto
Alegre em uma ideia radical de educação para cidadania. Lutando contra a ideia
de um cidadão individualizado, a Escola Cidadã reivindica que a instituição
educacional como um todo deva incorporar a cidadania. Os principais objetivos
podem ser resumidos na citação de um dos secretários de educação. Ele afirma que
o projeto queria criar uma escola:
onde todos tenham acesso garantido, que não seja limitada à transmissão de conteúdo; uma escola
que seja capaz de articular o conhecimento popular com o conhecimento científico. Uma escola
que seja um espaço público para a construção e a experiência da cidadania; que vá além de
meramente transmitir conhecimentos; e que se transforme em um espaço sociocultural, com
uma política pedagógica orientada para a transformação social, onde o aluno é o sujeito do
conhecimento e a pedagogia acontece em uma perspectiva interdisciplinar, superando a
fragmentação curricular presente nas escolas. Uma escola que disponha dos recursos materiais
necessários para implementar essas políticas; onde a participação de toda a comunidade possa
levar à construção de uma escola autônoma, com gestão democrática real, e onde todos os
segmentos da comunidade tenham participação garantida (AZEVEDO, 1999b).

6. Neste capítulo, é possível oferecer apenas uma ideia inicial da experiência. Ver outras informações sobre a
Escola Cidadã em Gandin (2005).
100 McCowan e Gandin

A partir dessas diretrizes, foram criados os objetivos básicos do projeto na


Assembleia Constituinte, um fórum democrático, deliberativo e participativo,
criado para mobilizar as comunidades escolares e para gerar os princípios que
poderiam orientar as políticas para as escolas municipais em Porto Alegre. O
processo de organização da Constituinte durou 18 meses e envolveu encontros
temáticos nas escolas, encontros regionais, a própria Assembleia e a elaboração do
regulamento interno das escolas.
O processo de decisão dos princípios dessa estrutura é digno de nota. O Projeto
Escola Cidadã foi criado sob o princípio de não separar o estabelecimento de
objetivos da criação dos mecanismos para implementá-los. Antes, o processo de
gerar objetivos práticos deve representar em si um mecanismo inovador, capaz de
produzir transformações nos relacionamentos entre as escolas e a comunidade. Os
objetivos normativos que orientam a prática nas escolas são criados coletivamente,
por meio de um processo participativo. A ideia era fomentar um governo que criasse
canais para o desenvolvimento real de objetivos normativos construídos
coletivamente e que substituísse o relacionamento tradicional de funcionários do
governo gerenciando à distância escolas que pouco conhecem.
A Assembleia Constituinte elegeu a democratização radical da educação nas escolas
municipais como o principal objetivo normativo do Projeto Escola Cidadã. Ficou
decidido que essa democratização radical teria que ocorrer em três dimensões:
democratização do acesso à escola, democratização do conhecimento e democratização
da governança. Os três princípios deveriam orientar todas as ações no sistema
municipal de Porto Alegre. Esses três princípios modificaram a estrutura das escolas e
o relacionamento entre as escolas e a Secretaria Municipal de Educação (SMED).
Para democratizar o acesso à escola e ao conhecimento, a SMED implementou
uma nova organização para as escolas municipais. Em vez de manter a estrutura
tradicional de séries com a duração de um ano (da 1ª à 8ª no ensino fundamental),
a ideia era adotar uma nova estrutura denominada ciclos. Os administradores da
SMED estavam convencidos de que a questão do acesso à escola poderia ser resolvida
de melhor forma utilizando o sistema de ciclos. De acordo com a SMED, “a
estrutura de ciclos oferece uma forma melhor de enfrentar seriamente a reprovação
dos alunos, uma vez que sua perspectiva educacional respeita, compreende e analisa
os processos sociocognitivos pelos quais passam os alunos” (SMED, 1999a).
A ideia é que, utilizando um conceito diferente de aprendizagem/tempo, a Escola
Cidadã colocaria um ponto final na punição dos chamados alunos lentos. De acordo
com essa nova configuração, o tradicional prazo final – o fim de cada ano
acadêmico –, quando os alunos tinham que provar o que haviam aprendido, foi
eliminado em favor de uma organização diferente do tempo. A democratização do
conhecimento deveria ser resolvida com a adoção do sistema de ciclos: “os ciclos
contribuem para o respeito do ritmo, do tempo e da experiência de cada aluno,
melhorando a organização coletiva e interdisciplinar nas escolas” (SMED, 1999a).
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 101

O estabelecimento do sistema de ciclos foi uma tentativa consciente para eliminar


os mecanismos que, acreditava-se, perpetuavam a exclusão, a reprovação e a evasão,
assim como a culpabilidade da vítima que geralmente acompanhava esses fatos.
Na Escola Cidadã, há três ciclos de três anos cada um – mudança que acrescenta
um ano no início do ensino fundamental (expandindo-o para nove anos), o que torna
a escola municipal responsável pela educação de crianças dos 6 aos 14 anos de idade.
Os três ciclos baseiam-se nos ciclos de vida: cada um corresponde a uma fase do
desenvolvimento, ou seja, infância, pré-adolescência e adolescência. A ideia é agrupar
alunos da mesma idade em cada ano dos três ciclos, visando mudar a realidade (que
está presente hoje na maioria das escolas públicas que atendem à classe trabalhadora
no Brasil) que a SMED confrontou quando a Administração Popular começou a
governar a cidade: alunos que haviam sido reprovados várias vezes estavam em turmas
destinadas a crianças muito mais novas. Por meio da organização da educação por
idade, com alunos da mesma idade no mesmo ano do ciclo, a SMED buscou motivar
novamente crianças que haviam sido reprovados diversas vezes. Seu objetivo foi
desafiar o senso comum de que a aprendizagem deve ser sequenciada. Como afirma
a Secretaria, a instituição que utiliza o sistema de ciclos é:
a escola redesenhada, com espaço e tempo adequados ao desenvolvimento dos alunos. Crianças
e adolescentes são seres em desenvolvimento permanente que não deve ser regido pelo calendário
escolar ou pelo ano letivo. [...] A escola que utiliza ciclos considera a aprendizagem como um
processo em que etapas ou períodos preparatórios não existem; ao contrário, há um processo
permanente de desenvolvimento. Em vez de punir o aluno porque não aprendeu, a Escola Cidadã
visa valorizar o conhecimento já adquirido (AZEVEDO, 2000).

Nas escolas que utilizam esses ciclos, os alunos progridem de um ano para outro
dentro de um ciclo, e a noção de falha/reprovação é eliminada.
Apesar dessa vitória, a SMED entendeu que a eliminação de mecanismos de
exclusão não era suficiente para alcançar o objetivo de democratização do
conhecimento. Assim sendo, a Escola Cidadã criou diversos mecanismos que
visavam a garantir a inclusão dos alunos: Grupos de Progressão, para os alunos que
apresentavam distorções entre idade-série-aprendizagem; Laboratórios de
Aprendizagem, para os alunos que, apesar das modificações na metodologia e no
currículo, ainda não estavam aprendendo; Professores Itinerantes, para auxiliar os
professores com um segundo educador em sala de aula, quando necessário; e
Avaliação Formativa, para ajudar os alunos a compreender seu próprio ritmo de
aprendizagem sem simplesmente classificá-los com base em séries.
A transformação do currículo foi parte crucial do projeto de Porto Alegre na
construção da democracia consistente e da cidadania efetiva, o que realmente pode
tornar possível o processo de democratização do conhecimento. É importante
afirmar que essa dimensão não está limitada ao acesso ao conhecimento tradicional.
O que está sendo construído também é uma nova compreensão epistemológica
sobre o que é considerado conhecimento. Não está baseada em uma simples
102 McCowan e Gandin

incorporação de novos conhecimentos dentro das margens de um núcleo intacto


da sabedoria da humanidade, mas em uma transformação radical. A Escola Cidadã
ultrapassa a simples menção episódica de manifestação cultural ou de opressão de
classe, racial, sexual e baseada em gênero. Inclui esses temas como parte essencial
do processo de construção do conhecimento.
Na Escola Cidadã, a noção de núcleo e de periferia no conhecimento torna-se
problemática. O ponto de partida para a construção do conhecimento curricular
é(são) a(s) cultura(s) das próprias comunidades, não só em termos de conteúdo,
mas também em termos de perspectiva. O processo educacional como um todo
visa inverter prioridades anteriores e, em vez disso, servir a grupos historicamente
oprimidos e excluídos. O ponto de partida para esse novo processo de construção
do conhecimento é a ideia do Complexo Temático. Essa organização do currículo
é uma forma de ter a escola toda trabalhando sobre um tema central produtivo, a
partir do qual as disciplinas e as áreas de conhecimento, em um esforço
interdisciplinar, irão estruturar o foco de seu conteúdo.
Na Escola Cidadã, a ideia do Complexo Temático enfatiza que as disciplinas
ou áreas de conhecimento não foram eliminadas em todos os níveis do currículo;
o que acontece é que todas as áreas do conhecimento tornam-se subordinadas a
uma ideia global, a um núcleo temático mais complexo porque representa o cerne
das preocupações e/ou dos interesses da comunidade em que a escola está situada.
Todas as áreas ou, na realidade, a escola inteira, são orientadas pelo debate e pela
problematização em torno do complexo temático. Esse complexo temático produz
um foco central para toda a escola, que orienta o currículo por um período de
tempo, seja um semestre ou um ano letivo completo.
Após determinar os princípios, a maior contribuição de cada área de
conhecimento para o debate do complexo temático e da matriz conceitual – uma
rede de conceitos a partir da área do conhecimento, e não de fatos isolados ou
informações que os professores entendem ser essenciais ao lidar com o complexo
temático –, os professores participam de reuniões organizadas por suas áreas de
conhecimento e por ano em cada ciclo, para elaborar e planejar o currículo.
Cada escola é autônoma e capaz de elaborar seu próprio currículo, que deve
atender aos seguintes critérios: nenhum aluno precisa desaprender seu
conhecimento, sua cultura e suas práticas para aprender o conhecimento científico,
e nenhum aluno deve deixar a escola sem ter sido exposto ao conhecimento escolar
formal. A ideia é que todo conhecimento deve ser questionado e não deve ser
considerado acima de qualquer crítica. A ideia de começar com suas próprias
experiências não significa que os alunos têm que parar por aí.
Para dar um exemplo concreto de como isso funciona, segue-se uma descrição de
como a área sócio-histórica procedeu, em uma escola de Porto Alegre, para organizar
seu currículo. Após a fase de realização de pesquisas na comunidade, a escola elegeu
a qualidade de vida na favela como seu complexo temático. A área de conhecimento
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 103

sócio-histórico devia construir o princípio dessa área, ou seja, a contribuição dessa


área para lidar com o complexo temático escolhido. A área expressou sua possível
contribuição como “a transformação individual e coletiva do cidadão, seu tempo e
seu espaço, recuperando sua origem, visando melhorar a qualidade de vida e levando
em consideração as ideias da comunidade onde esse indivíduo está situado”.
A partir do complexo temático principal – a qualidade de vida – três subtemas
foram registrados pelos professores na área sócio-histórica: êxodo rural, organização
social e propriedade. No subtema êxodo rural, as questões refletiam a origem da
comunidade – que hoje vive em uma favela, mas que veio das áreas rurais. Nesse
subtema, as questões discutidas foram movimentos migratórios, superpopulação
das cidades, desqualificação da força de trabalho e marginalização. No subtema
organização social, as questões foram distribuídas em termos de relações temporais,
políticas, espaciais e socioculturais. Novamente, as questões representam aspectos
importantes na organização da comunidade: o pragmatismo excessivo e acrítico de
algumas associações do bairro, e temas culturais como religiosidade, expressão
corporal, origem africana, grupos de dança e escolas de samba. No terceiro subtema
– propriedade – as questões foram diretamente associadas à situação das famílias
na favela – vivendo em terrenos ilegais, sem título de propriedade, tendo de lidar
com a falta de água encanada, de saneamento básico e outros problemas de
infraestrutura –, à história dessa situação e da luta pela legalização dos terrenos, e
seus direitos (de ter bens públicos básicos no bairro) e deveres (de compreender a
importância e a função social da tributação) como cidadãos.
A estrutura de governança da Escola Cidadã também foi radicalmente
modificada. Os conselhos escolares, criados por uma lei municipal em dezembro de
1992 e implementados em 1993, tornaram-se as instituições mais importantes nas
escolas. Eram formados por professores, equipe escolar, pais, alunos e por um
membro da administração, todos eleitos, e tinham funções consultivas, deliberativas
e de monitoramento. Assim sendo, expressavam ideias-chave da Administração
Popular e as demandas de movimentos sociais envolvidos com a educação na cidade.
É importante mencionar que, antes da posse da Administração Popular, havia
uma prática (comum no Brasil) de orçamento muito centralizado. Todas as despesas
(mesmo as diárias) deviam ser enviadas para a administração central antes de sua
aprovação e, a seguir, ou o dinheiro era enviado para a escola ou uma agência central
adquiria o produto ou o serviço necessário. De acordo com esse sistema, o conselho
escolar tinha as mãos amarradas, e nenhuma autonomia. A SMED modificou essa
estrutura e estabeleceu uma nova política para disponibilizar o montante de
recursos para cada escola, a cada três meses. De acordo com a SMED, essa medida
instituiu a autonomia financeira das escolas e permitiu que administrassem seus
gastos de acordo com os objetivos e prioridades estabelecidos pelo conselho escolar.
Ao mesmo tempo em que essa medida cria autonomia, confere a pais, alunos,
professores e equipes presentes no conselho uma noção de responsabilidade social
104 McCowan e Gandin

na administração do dinheiro público, e os ensina a priorizar os investimentos


tendo em mente a solidariedade (SMED, 1999b).
Nas escolas municipais de Porto Alegre, a comunidade escolar inteira elege o
diretor por voto direto. O responsável pela implementação das decisões do conselho
escolar, ou seja, o diretor, é eleito com base em sua defesa de um projeto específico
de administração para a escola, o que confere legitimidade à sua eleição. O diretor
não é apenas alguém que necessariamente representa os interesses da administração
central dentro dos conselhos escolares, mas alguém que conta com o apoio de uma
maioria nessa comunidade educacional específica. Portanto, os diretores têm um
alto grau de inserção e, devido a isso, a SMED considera possível evitar o problema
potencial de ter alguém responsável pela concretização das deliberações que
ocorrem nos conselhos escolares que não esteja conectado ao projeto. No entanto,
a responsabilidade da comunidade não acaba aqui: por meio do conselho escolar,
a comunidade escolar tem uma forma de monitorar as atividades do diretor e de
responsabilizá-lo pela implementação de suas decisões democráticas.
Esses novos mecanismos criados para implementar a democratização do acesso,
do conhecimento e da governança não atingiriam seu objetivos sem grandes
investimentos nas edificações escolares e nas condições de trabalho dos professores.
Em sua maioria, as escolas municipais estão localizadas nas áreas mais pobres da
cidade e, ao contrário de outras escolas públicas nessas condições, estão em muito
boa forma. Muitas dessas edificações foram construídas recentemente, têm layouts
excelentes e são muito bem conservadas, o que passa uma mensagem clara: uma
escola em um bairro pobre deve tornar possível a educação que supostamente
ocorre em seu interior, e a equipe escolar não deve preocupar-se com as condições
da edificação. O outro aspecto é o salário dos professores e sua capacitação: em
Porto Alegre, um professor de escola municipal ganha três vezes mais que um
professor de escola estadual. Existe também uma política de formação contínua
em serviço, tanto na área de conhecimento dos professores quanto em questões
educacionais em geral como, por exemplo, a relação entre educação e sociedade.
Apesar de todo esse sucesso, há questões de desafio real na implementação da
Escola Cidadã. Embora a SMED seja sensível a questões de raça e gênero,
aparentemente isso nem sempre é traduzido em apoio sustentado para as escolas, à
medida que enfrentam o desafio de construir um currículo que lide com racismo e
discriminação de gênero. Certamente devido a raízes marxistas, a SMED enfatiza
questões de classe. Evidentemente essas são questões centrais para alunos que vivem
em favelas, mas reduzir toda a opressão de classe pode, com certeza, representar um
problema em um país como o Brasil, com questões raciais e de gênero tão flagrantes.
Outro problema potencial é o fato de que, na Escola Cidadã, os conhecimentos
dos professores nem sempre são considerados, sendo, algumas vezes, até mesmo
evitados. Se é verdade que o currículo escolar gira em torno do conhecimento das
comunidades, o mesmo não pode ser dito sobre experiências e práticas anteriores
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 105

dos professores. Muitas vezes, a SMED considera os professores como responsáveis


pelos problemas que enfrenta. Eis uma descrição simplificada desse problema: “a
proposta é boa, mas professores conservadores não a implementam como
deveriam”. A ideia de caracterizar cada professor que critique elementos da proposta
como conservador mostra quão problemática pode ser sua implementação em
algumas circunstâncias: são os professores que tornam real uma proposta
educacional. Conforme mostrado por diversos estudos, os conhecimentos dos
professores devem ser sempre levados em consideração quando o objetivo é pôr em
prática reformas progressistas (ver PAGE, 2001; GITLIN, 2001).
Por fim, é essencial discutir a sustentabilidade da iniciativa. Quando a cidade de
Porto Alegre enfrentou restrições orçamentárias, foram realizados cortes em
elementos básicos do projeto, como o Professor Itinerante e vagas nos Laboratórios
de Aprendizagem. No entanto, o maior desafio é, certamente, o fato de que, após
16 anos no poder, o PT e a Administração Popular perderam as eleições municipais
de 2004. Até o momento, os mecanismos básicos da Escola Cidadã não foram
afetados e continuam em vigor, embora o nome dado à experiência educacional da
cidade seja diferente. Mas ainda é cedo para afirmar. Será importante acompanhar
as mudanças sutis que podem ocorrer e que podem prejudicar o projeto.
A Escola Cidadã é uma alternativa às soluções neoliberais em educação, com
base na introdução de esquemas de mercado dentro das escolas. Vem sendo
importante não apenas como uma forma de dar a uma população empobrecida
uma educação de qualidade que a capacitará a ter melhores oportunidades no
mercado de trabalho remunerado e, ao mesmo tempo, a funcionar como cidadãos
com maior poder, mas também porque gerou formas estruturadas de educar as
comunidades para que se organizem e discutam seus problemas, e para que atuem
em seu favor por meio dos canais de participação e deliberação. Ao longo do
processo, educou também as agências do Estado.

Conclusões
A partir desses dois casos, surgem temas comuns. Os dois representam tentativas
para viabilizar os componentes centrais da ideia de cidadania, que são a garantia de
direitos e de maior participação dos indivíduos. Por um lado, as duas iniciativas visam
melhorar o acesso de populações marginalizadas à educação: em termos de
disponibilização de vagas nas escolas, de medidas para garantir a inclusão no ambiente
de aprendizagem e para evitar a evasão precoce. Tentam, portanto, ir além do direito
formal de todos os brasileiros à educação básica, e tomar medidas para tornar esse
direito uma realidade. Visam, também, equipar alunos para que se tornem cidadãos
eficazes no sentido ativo, envolvendo alunos, professores e comunidade no processo
de tomada de decisões e fornecendo conhecimentos e habilidades para estender essa
participação para a esfera política mais ampla. Surgidos a partir das influências duais
do autoritarismo e do neoliberalismo, os dois casos vêm criando uma nova
106 McCowan e Gandin

compreensão de cidadania, baseada na democracia participativa e no conceito


freiriano de conscientização, por meio do qual a transformação social é realizada
através de uma dialética de reflexão e de ação política.
No entanto, as experiências descritas mostram também algumas das dificuldades
de implementar esse tipo de programa. Como em muitos outros contextos, há uma
tendência a considerar os professores como obstáculos à mudança e à reforma.
Nenhum dos dois casos obteve sucesso total em relação ao dilema de implementar
um esquema normativo por meio dos professores respeitando, ao mesmo tempo,
sua autonomia, seu conhecimento e sua experiência. A formação do professor é
fundamental nesse caso (desde que não seja simplesmente uma tentativa de
reconstruir os professores nos moldes da iniciativa), mas o envolvimento autêntico
desse profissional na construção de políticas também é necessário. Outra limitação
evidente nos casos está relacionada aos esforços para enfrentar diferenças,
principalmente de raça e gênero. Ao lidar com exclusão social de maneira geral, as
iniciativas não reconhecem plenamente as especificidades de raça e gênero, as
opressões históricas distintas de mulheres, afro-brasileiros e povos autóctones, assim
como a necessidade de dar respostas explícitas a esses grupos. Por fim, há um
problema simples de sustentabilidade e viabilidade: no caso da Escola Cidadã, esse
problema relaciona-se à sobrevivência da iniciativa em face da mudança de governo;
e, no caso do MST, a incorporação de seu projeto no setor estadual. A natureza
necessariamente política dos dois projetos ameaça sua existência.
A história brasileira tem determinados aspectos singulares – tais como sua mistura
de povos, a espetacular concentração de riqueza e a combinação de impulsos
centralizados e descentralizados –, e os casos explorados neste capítulo são, sem
dúvida, respostas às especificidades desse contexto. No entanto, os sucessos e os
desafios das duas iniciativas frente à grave exclusão social e política têm implicações
para outros países. Uma primeira questão é a importância da participação. Os casos
mostram os benefícios de envolver toda a escola e a comunidade mais ampla não na
implementação de políticas criadas por um governo distante, mas na formulação de
seus próprios objetivos e métodos. Em segundo lugar, as duas iniciativas vêm
combatendo os problemas enfrentados pelas escolas em todos os lugares do mundo:
ensinar conhecimentos acadêmicos universais e arriscar marginalizar a própria
cultura dos alunos, ou ensinar os conhecimentos locais da comunidade e arriscar
confiná-los em seu próprio contexto, sem a possibilidade de olhar adiante. Esses
dois casos mostram que é possível associar os dois tipos de ensino, baseando-se em
conhecimentos e habilidades locais relevantes para a vida da comunidade, mas, ao
mesmo tempo, equipando os alunos para buscar uma vida além desses
conhecimentos e para compreender e envolver-se em formas mais amplas de
conhecimentos e processos de mudança social.
Outra implicação desses casos é a importância de manter uma visão holística
de cidadania. Conceitos baseados simplesmente na garantia dos direitos do
Reinventando espaços educacionais, construindo uma cidadania atuante 107

indivíduo não são suficientes e, sim, que esses direitos devem ser garantidos antes
que formas ativas de participação possam ser fomentadas. Além disso, a educação
deve abordar a cidadania como identidade – reconhecendo diferenças que podem
desafiar o “conceito abstrato de cidadão despojado de todas as qualidades exceto
racionalidade e moralidade subjetivas” (UNTERHALTER, 1999) – assim como o
conceito de cidadania como igualdade no Estado. Por último, no espírito captado
pelo slogan do Fórum Social Mundial, “Um outro mundo é possível”, esses casos
mostram que, mesmo dentro do sistema estatal estabelecido, é possível criar
alternativas para a educação. Ao gerir um curso por meio de formas tradicionais
hierárquicas de educação e de formas consumistas contemporâneas, alternativas
democráticas radicais constituem uma possibilidade, apesar dos desafios
consideráveis a enfrentar.
Em meio a uma imensa onda global de reformas em que controle de mercado,
descentralização em nível de escola com poucos recursos, controle rígido de
resultados, gestão a distância e responsabilização que considera apenas resultados
quantitativos são estímulos centrais, é importante reafirmar que encontrar
experiências como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra ou a Escola
Cidadã é, certamente, uma inovação. O que é ainda mais impressionante nesses
projetos é o fato de que, diferentemente de outras iniciativas progressistas em todo
o mundo, onde professores ou escolas individualmente promovem mudanças
radicais, essa é uma transformação orgânica de todo um sistema escolar, no caso da
Escola Cidadã, ou do conceito de educação, no caso do Movimento dos sem Terra.
A mudança nas estruturas estimulou escolas e produziu espaços nos quais se
busca a educação em favor da justiça social. Se é verdade que há sérias limitações
ao que foi realizado até o momento, também é verdade que foram criados espaços
reais para desafiar essas mesmas limitações.

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47

PERSPECTIVAS EM RELAÇÃO
A CRIANÇAS E VIOLÊNCIA

Jenny Parkes

“Não pode haver transigência ao desafiar a violência


contra a criança. A singularidade da criança – seu
potencial humano, sua fragilidade e sua vulnerabilidade
iniciais, sua dependência dos adultos para seu crescimento
e seu desenvolvimento – constitui uma causa incontestável
para maiores investimentos, e não menos, na prevenção e
na proteção contra a violência” (PINHEIRO, 2006).

O Relatório Mundial da ONU sobre violência contra a criança chama a atenção


para a forma pela qual, em todos os lugares do mundo, os jovens vivenciam
múltiplas formas de violência em seu cotidiano: em casa, nas escolas e em
instituições assistenciais, nos locais de trabalho e na comunidade (PINHEIRO,
2006). Para muitas crianças, a violência não é algo excepcional, mas um evento
diário, principalmente em países que passaram recentemente ou ainda estão
passando por conflitos políticos, muitas vezes países de baixa e média renda, nos
quais o legado desses conflitos é uma fusão de múltiplas formas de violência
(GLANZ; SPIEGEL, 1996; KNOX; MONAGHAN, 2003; MULDOON, 2004;
WHO, 2002). O foco deste capítulo são as consequências da convivência com essa
violência para o bem-estar psicológico e social da criança. O capítulo explora uma
literatura diversificada, que inclui psicologia, sociologia, antropologia e educação,
questionando o que podemos aprender a partir dessa literatura para responder ao
desafio de Pinheiro de proteger as crianças contra a violência.
Há uma vasta literatura destacando as consequências devastadoras da violência
nas oportunidades e resultados educacionais, sociais e de saúde da criança – e
Pinheiro faz um forte apelo à ação para abordá-la. No entanto, embora a
importância de desafiar a violência contra a criança não possa ser subestimada, é
preciso questionar suposições tidas como verdadeiras na literatura. Em particular,
a universalização da compreensão da infância proveniente do Ocidente é a base da
pesquisa em todo o mundo, produzindo formas específicas de ação e de intervenção
as quais, como tem sido afirmado, podem nem sempre ser do melhor interesse da
criança (BOYDEN, 2003). Como evidenciam as palavras de Pinheiro, a infância

111
112 Parkes

é considerada uma fase natural, universal e distinta, caracterizada por inocência e


vulnerabilidade, uma perspectiva que pode ser rastreada até os movimentos do
Romantismo e da Reforma1 na Europa no século XIX (BOYDEN, 2003; JAMES;
JENKS; PROUT, 1998; WOODHEAD, 1999). Em grande parte da literatura
discutida neste capítulo, crianças que vivem em bairros com altos índices de
violência são consideradas vítimas inocentes dessa violência, precisando ser
protegidas ou resgatadas, ou estão envolvidas em ciclos de violências socializadas
para que se tornem os criminosos do futuro.
Assim como pesquisadoras ocidentais feministas foram criticadas por sua
representação colonizadora e homogeneizante de uma “mulher do mundo em
desenvolvimento complexa e singular” (MOHANTY, 1999), as pesquisas sobre
crianças que vivem em meio à violência em contextos de (pós-) conflito podem
construir o conceito homogeneizado de uma criança do mundo em
desenvolvimento, tanto vítima como perpetradora da violência. A diversidade da
infância é negligenciada, e as formas ativas pelas quais as crianças se envolvem com
seus mundos sociais e atuam sobre eles são ignoradas (BOYDEN, 2003).
Com essa visão crítica, o presente capítulo considera estudos sobre as experiências
das crianças que vivem em áreas onde a violência tem várias formas em bairros,
famílias e escolas, frequentemente em países que passaram ou estão passando por
conflitos políticos, incluindo a África do Sul, a Palestina e a Irlanda, assim como
recorre a estudos de bairros urbanos dos Estados Unidos. A primeira seção considera
a pesquisa psicológica, principalmente dentro da tradição positivista de investigação.
A segunda seção explora pesquisas associadas a estudos sociológicos e antropológicos
que se baseiam em paradigmas qualitativos e interpretativos. Estruturei o capítulo
desse modo para que seja um reflexo da literatura predominante sobre crianças e
violência e de alguns de seus críticos, mas a distinção é um pouco falaz, uma vez
que há muitas sobreposições e é cada vez maior o número de psicólogos que se
envolvem com uma abordagem social e interpretativa. Na seção final do capítulo,
farei considerações sobre pesquisas recentes que abordam alguns conceitos críticos
e que conceituam as crianças como ativamente envolvidas em seus mundos sociais.
Minha intenção não é privilegiar uma determinada forma de pesquisa, mas tentar
sintetizar as diversas contribuições da literatura, de forma que possam colaborar com
o objetivo de prevenir e contestar a violência.

Perspectivas psicológicas sobre crianças e violência


Grande parte da literatura sobre crianças e violência tem origem na área da
psicologia. Tal literatura decorre principalmente de uma tradição positivista, com
estudos que tentam identificar efeitos mensuráveis da violência contra as crianças.
Esses efeitos incluem consequências emocionais, tais como distúrbios de estresse

1. NRTT: Reforma aqui diz respeito à reforma na legislação sobre a criança nos vários países da Europa.
Perspectivas em relação a crianças e violência 113

pós-traumático, e efeitos sobre o desenvolvimento e a socialização da criança. Por


fim, nesta seção, farei considerações sobre a crescente conscientização na área da
psicologia sobre a importância do contexto que gerou pesquisas sobre fatores de
risco e resiliência.
Consequências emocionais e o conceito de estresse pós-traumático
Angústia, ansiedade e depressão são respostas frequentes à violência. Estudos
constataram que, após exposição à violência, os jovens talvez tentem evitar
pensamentos e sentimentos, locais ou pessoas associados com o trauma; podem
tornar-se coléricos e irritáveis, ou experimentar intensa angústia psicológica ao
expor-se a lembranças traumáticas (SEEDAT et al., 2004). Esse conjunto de
respostas foi denominado transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), e foi
identificado em estudos realizados em muitos contextos pós-conflito, inclusive na
Palestina (PUNAMAKI; SULEIMAN, 1990; THABET; VOSTANIS, 1999); na
África do Sul (BARBARIN; RICHTER, 2001; DAWES; TREDOUX, 1990;
SEEDAT et al., 2000); no Camboja (HUBBARD et al., 1995); e no Kuwait, após
a Guerra do Golfo (NADER et al., 1993); da mesma forma, em bairros com altas
taxas de violência em comunidades dos Estados Unidos (JENKINS; BELL, 1997;
MARTINEZ; RICHTERS, 1993; OSOFSKY et al., 1993). Os sintomas de TEPT
são mais acentuados de acordo com o nível e a proximidade da violência, e quando
há estreita relação com aqueles envolvidos diretamente com a violência (JENKINS;
BELL, 1997; LORION; SALTZMAN, 1993; SEEDAT et al., 2000). Em alguns
estudos, os sintomas variaram em função de idade e gênero: foi constatado, por
exemplo, que as meninas são mais propensas a apresentar sintomas de depressão
ou a internalizar a dor, ao passo que os meninos são mais propensos a externar a
dor e a participar de atos agressivos (LORION; SALTZMAN, 1993; SEEDAT et
al., 2004). Crianças mais novas podem apresentar sintomas mais passivos,
regressivos, seja enurese noturna ou atraso no desenvolvimento da linguagem, ao
passo que crianças mais velhas podem ser mais propensas a envolver-se em
comportamentos autodestrutivos (JENKINS; BELL, 1997).
Esses estudos chamam atenção para as consequências potenciais da violência na
saúde mental da criança em contextos internacionais, e destacam a necessidade de
intervenções terapêuticas. No entanto, é frequentemente negligenciada a constatação
de que muitas crianças expostas à violência não demonstram estresse mensurável. Em
estudos realizados na África do Sul, por exemplo, aproximadamente de 10% a 20%
das crianças expostas a uma série de traumas apresentavam TEPT, enquanto talvez
outros 10% ou 20% demonstravam alguns sintomas de angústia emocional
(CAIRNS; DAWES, 1996; DAWES; TREDOUX, 1990; SEEDAT et al., 2004;
SEEDAT et al., 2000). A constatação de que, apesar do envolvimento frequentemente
assustador com a violência, muitas crianças aparentemente não sofrerem efeitos
psicológicos de longo prazo, levantou a questão de como a criança lida com a violência
114 Parkes

(CAIRNS, 1996), e até mesmo se pode haver efeitos positivos. Estudos de caso de
crianças que vivem em zonas de guerra identificaram consequências negativas, mas
para algumas crianças identificaram também o desenvolvimento precoce de
sensibilidade moral (COLES, 1986) e aumento de empatia (GARBARINO;
KOSTELNY; DUBROW, 1991; STRAKER et al., 1992). Tais constatações indicam
a importância do contexto na prevenção de possíveis consequências emocionais.
O diagnóstico de TEPT é psiquiátrico, originário do Ocidente, geralmente
utilizado para avaliar a necessidade de apoio clínico após acontecimentos
traumáticos isolados. Inúmeros estudos mostraram que os efeitos da exposição
repetitiva podem ser bastante diferentes dos efeitos após traumas isolados, e a
exposição à violência crônica diária pode gerar mudanças comportamentais de
longo prazo (JENKINS; BELL, 1997; PERRY, 1997; ZEANAH; SCHEERINGA,
1997). Foi proposta uma designação alternativa de “síndrome de estresse
traumático contínuo” para refletir o contexto político de traumas repetitivos
esperados de muitas pessoas (SIMPSON, 1993). No entanto, embora essas
designações possam servir para destacar os problemas de pessoas que vivem em
comunidades violentas, explicam simultaneamente seu comportamento dentro de
um modelo médico, sofrendo sintomas de uma doença em termos individuais, e
não motivados pelas características da situação. A ênfase sobre distúrbio trata como
patologia as reações das crianças, quando, na realidade, emoções como medo,
ansiedade e agressão podem ser comportamentos funcionais para lidar com o dia
a dia (SWARTZ; LEVETT, 1989). Nessas análises, a conceituação das crianças
como dependentes e vulneráveis é combinada com um modelo biomédico – e por
ele reforçada – que coloca as crianças como vítimas traumatizadas com necessidade
de cuidados terapêuticos (BOYDEN, 2003; MACHEL, 1996). Jo Boyden
argumenta que em Ruanda, na Bósnia e em Kosovo, esse conceito teve uma
consequência perigosa: pacotes de ajuda priorizaram intervenções psicossociais em
detrimento do atendimento às necessidades básicas de sobrevivência dos jovens
(BOYDEN, 2003). Embora seja vital estar alerta quanto às possíveis reações de
estresse à violência, é importante também reconhecer que tais reações podem ser
altamente localizadas e variáveis, e que abordagens gerais à intervenção na sequência
de eventos violentos pouco contribuem para lidar com a violência continuada
presente na vida de muitos jovens.
Socialização, risco e resiliência
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a literatura da área da psicologia
supõe a inocência e a vulnerabilidade da infância, há alusões à inevitabilidade de
vítimas infantis tornarem-se perpetradores adultos por meio de um ciclo de
violência. Proliferam declarações na literatura contendo comentários do tipo “é
um fato sociológico que pessoas tratadas de forma desumana só podem tratar os
outros da mesma maneira” (MALEPA, 1990), ou “essas crianças vivem em uma
Perspectivas em relação a crianças e violência 115

‘cultura de violência’ e sua visão de mundo é formada por essa vivência. Esse fato
é trágico e extremamente perigoso” (OSHAKO, 1999). Essas declarações não só
diagnosticam como patológico o crescimento de crianças em bairros violentos,
como também contribuem para uma versão da “criança do mundo em
desenvolvimento” discutida anteriormente, mas as evidências para essas suposições
são frágeis e conflitantes.
Estudos relatam que a exposição à violência na infância afeta o desenvolvimento
moral: os jovens aprendem a ver a violência como forma de solucionar problemas
(REILLY; MULDOON; BYRNE, 2004). Por exemplo, foi constatado que crianças
palestinas envolvidas em confrontos de rua com tropas de Israel eram mais
propensas a usar violência na escola e em casa como instrumento socialmente
justificado para solucionar problemas (ABUATEYA, 2000). Observações clínicas
identificaram atitudes como considerar a violência algo natural, tornar-se insensível
e desumanizar o inimigo (principalmente em tempos de guerra) como estratégias
de confronto no curto prazo, o que, por sua vez, pode levar à visão da violência
como uma resposta adequada a muitas situações cotidianas (GARBARINO;
KOSTELNY; DUBROW, 1991).
No entanto, em uma resenha da literatura internacional sobre desenvolvimento
moral e violência política, Andrew Dawes concluiu serem frágeis as evidências de
que a violência é perpetuada por meio de seus efeitos sobre o raciocínio moral das
crianças e de sua capacidade de solucionar problemas (DAWES, 1994). Embora
alguns pesquisadores tenham observado a brincadeira de crianças imitando a
violência existente no bairro (BUNDY, 1992; JONES, 1993), outros foram
surpreendidos pela ausência de tais reconstituições. Por exemplo, em seu estudo
detalhado de crianças em uma municipalidade da África do Sul, em meados da
década de 1980, Pamela Reynolds observou que havia muito pouca violência na
brincadeira das crianças, tanto real como imaginária, apesar da violência a que eram
expostas (REYNOLDS, 1989). Outros estudos realizados na África do Sul
constataram que, apesar da frequente exposição à violência, os jovens
aparentemente não se habituaram a ela (STRAKER et al., 1996; STRAKER et al.,
1992). E, embora em um desses estudos a exposição direta à violência estivesse
associada a agressão, oposição/provocação e déficits de autorregulação, testemunhar
atos de violência não estava associado a comportamentos antissociais, e o gênero
(sendo masculino) foi mais profético de comportamentos antissociais do que a
exposição direta à violência (VAN DER MERWE; DAWES, 2000).
Essas constatações complexas e contraditórias desafiam suposições de
universalização sobre a reprodução da violência, e é cada vez maior o número de
pesquisadores que passaram a identificar uma gama de fatores que aumentam o
risco de violência ou, alternativamente, aqueles que aumentam a resiliência dos
jovens. Esse modelo ecológico, que tenta compreender a natureza multifacetada
da violência e suas consequências, vem influenciando cada vez mais as pesquisas e
116 Parkes

o desenvolvimento de políticas (WHO, 2002; PINHEIRO, 2006). O modelo


empenha-se em tentar medir a forma como uma combinação de fatores
relacionados a características pessoais, família e contexto social imediato e mais
amplo influenciam os resultados para jovens que vivem em contextos com altos
índices de violência (CICCHETTI; LYNCH, 1993; DODGE; PETTIT, 2003;
MATTHEWS; GRIGGS; CAINE, 1999; TOLAN; GORMAN-SMITH;
HENRY, 2003). A literatura sobre a África do Sul identifica os principais fatores
de risco associados de forma a causar efeitos múltiplos, e não adicionais, sobre a
probabilidade de os jovens desenvolverem um comportamento criminoso no
futuro, a saber: pobreza, raça, idade, local de residência, gênero, história de
vitimização, família desestruturada, resultados escolares fracos e abuso de drogas
(MATTHEWS; GRIGGS; CAINE, 1999).
A repetida constatação de que, apesar dos fatores de risco, muitas crianças
aparentemente não sofrem as consequências negativas esperadas levou a um interesse
crescente em resiliência, um constructo que implica a manutenção de uma adaptação
positiva pelos indivíduos, apesar de experiências significativamente adversas
(GARMEZY, 1993; LUTHAR; CICCHETTI; BECKER, 2000; WERNER;
SMITH, 1983). Nos Estados Unidos, no contexto de violência na comunidade,
Garmezy identifica três fontes de resiliência: fatores ligados a temperamento (nível
de atividade, reflexibilidade, habilidades cognitivas, reação positiva a outros
indivíduos); famílias coesas e acolhedoras, com a presença de um adulto cuidador;
e apoio externo, de professor, vizinho, pais de um colega ou de uma estrutura
institucional como a escola (GARMEZY, 1993). Fontes de resiliência muito
semelhantes foram identificadas em estudos de caso de crianças que crescem em
zonas de guerra (GARBARINO; KOSTELNY, 1997; GARBARINO;
KOSTELNY; DUBROW, 1991). Esses fatores interagem com a natureza da
exposição à violência, contando também com a influência da previsibilidade, da
proximidade social e física sobre a resiliência da criança (FICK; OSOFSKY; LEWIS,
1997; OSOFSKY, 1997). Crianças mais novas que vivenciam a violência podem
enfrentar consequências mais negativas do que crianças mais velhas que já
desenvolveram capacidades cognitivas e de raciocínio para sua adaptação
(GARBARINO et al., 1992; PERRY, 1997).
Esses estudos ampliam o foco de um relacionamento causal direto entre violência
e respostas individuais para um relacionamento mediado por uma gama de sistemas
sociais sobrepostos uns aos outros. A família, por exemplo, pode aumentar tanto o
risco como a resiliência. A violência que afeta as primeiras relações familiares pode
criar problemas duradouros de apego e relacionamentos potencialmente violentos
(FONAGY et al., 1997). No entanto, estabilidade e confronto por parte da mãe
podem também proteger a criança dos efeitos nocivos da violência na comunidade
(BARBARIN; RICHTER, 2001). Sistemas de convicções e ideologias locais foram
também identificados como fontes de resiliência. Há evidências de que quando
Perspectivas em relação a crianças e violência 117

ideologias, tal como a religião, permitem que a violência seja justificada dentro do
sistema de moralidade no qual a criança se desenvolve, esse processo a protege das
consequências negativas da violência (GARBARINO, 1999; STRAKER et al.,
1992). Em sua análise do crescimento em zonas de guerra em Moçambique, na
Nicarágua, na Palestina e no Camboja, Garbarino e colegas consideraram como
uma ideologia pode levar conforto e como consegue permitir que a criança seja
apoiada por uma comunidade unida pela crença (GARBARINO; KOSTELNY;
DUBROW, 1991). Contrastaram esse fato com a experiência de viver em um bairro
urbano pobre controlado por gangues em Chicago, onde laços culturais frágeis e a
falta de objetivos comuns debilitam os mecanismos ativos de confronto.
Um ponto forte da literatura sobre risco e resiliência é a crescente sensibilidade
ao contexto (DAWES; DONALD, 2000). O argumento de que os diferentes níveis
do sistema ecológico interagem e se influenciam mutuamente é persuasivo, sendo
que a resiliência compensa o impacto dos fatores de risco, protege contra eles ou
os desafia. Graus moderados de estresse, por exemplo, podem fortalecer a
capacidade da criança para o confronto no mais longo prazo (DAWES; DONALD,
2000). No entanto, ao mesmo tempo, a abordagem mecanicista de medir
relacionamentos entre variáveis resulta em uma excessiva simplificação das
complexas relações entre a criança e o mundo social. Seus dados baseiam-se em
levantamentos e questionários pré-codificados, muitas vezes importados ou
modificados a partir de instrumentos desenvolvidos no Ocidente. Esses
instrumentos podem alterar experiências e interpretações locais da violência. Foi
constatado, por exemplo, que a linguagem de abusos utilizada no Ocidente faz
pouco sentido para muitas mulheres negras da classe trabalhadora na África do Sul
(LEVETT et al., 1997). Formas diversas de violência são agrupadas em uma
variável explicativa, e as complexas relações de poder que produzem a violência são
ignoradas. O foco de intervenções originárias dessa abordagem é a prevenção,
visando particularmente grupos de alto risco. Embora a prevenção seja importante
para a canalização do apoio ao bem-estar, ao mesmo tempo reforça a tendência de
culpar indivíduos em situação de risco, indivíduos pobres, homens negros
identificados na literatura sul-africana como sujeitos a maior risco, rotulando-os
como indivíduos perigosos e que necessitam de controle, e que, supõe-se, serão
apanhados pelo inevitável ciclo da violência. No entanto, a revisão da literatura da
psicologia aponta para a variabilidade e a diversidade existente nas respostas das
crianças, e destaca a necessidade de considerar não apenas resultados possíveis, mas
os processos pelos quais os jovens dão sentido à violência e a interpretam.

Perspectivas sociais sobre crianças e violência


Estudos sociológicos e antropológicos sobre crianças e violência mudaram o
foco: antes centrados no indivíduo, ou em indivíduos dentro de sistemas
sobrepostos, passaram a analisar os próprios sistemas sociais. Ao invés de testar
118 Parkes

hipóteses, abordagens etnográficas facilitam a criação de quadros detalhados dos


fenômenos sociais. Estudos psicológicos têm sido altamente influentes na política
e na prática, talvez devido à hegemonia histórica da psicologia desenvolvimentista
na pesquisa sobre a infância (MAYALL, 2002), possivelmente também porque as
constatações podem ser generalizadas por meio dos contextos e oferecem meios
práticos para ações futuras. Além disso, métodos como questionários,
levantamentos e avaliações clínicas podem apresentar menos desafios de realização
do que etnografias, que envolvem muito tempo em campo, frequentemente com
riscos pessoais para a segurança de pesquisadores e participantes. No entanto,
estudos etnográficos ofereceram ricas descrições da vida de jovens em contextos
sociais adversos, documentaram as múltiplas formas de violência que esses jovens
vivenciaram e consideraram os múltiplos significados, funções e consequências de
relações sociais violentas (BHANA, 2002; HECHT, 1998; HENDERSON, 1999;
JONES, 1993; KILBRIDE; SUDA; NJERU, 2000; REYNOLDS, 1989; WOOD,
2002). Graças ao longo tempo de convivência ou de trabalho nessas comunidades,
e desenvolvendo estreitas relações entre os pesquisadores e os participantes da
pesquisa, esses estudos conseguem explorar experiências de violência que
frequentemente são consideradas tabu ou particulares (LEE; STANKO, 2003).
A definição multidimensional de violência é recorrente nesses estudos, e está
inextricavelmente associada ao poder; gera uma análise mais sutil do que a estreita
visão da violência como sendo uma variável explicativa que domina a literatura
psicológica positivista. Esse conjunto de trabalhos lança luz sobre complexos processos
históricos e sociais na reprodução da violência. O estudo de David Rosen a respeito
de crianças-soldado em Serra Leoa, por exemplo, investiga as raízes do recente
envolvimento de crianças com situações de guerra, em condições de escravidão pré-
colonial e colonial e, mais recentemente, com políticas pós-independência, segundo
as quais um sistema político patrimonial criou relações nas quais pessoas jovens
dependem de “homens grandes” para sua subsistência e seu status social:
Homens jovens forneciam aos homens grandes a força física, a energia e o destemor necessários
para intimidar e assassinar rivais políticos. Nas circunstâncias da espoliada economia de Serra
Leoa, os laços de dependência e violência entre homens grandes, homens jovens, crianças e
adolescentes provocaram turbulências em comunidades rurais e urbanas, rompendo e distorcendo
laços familiares e de parentesco (ROSEN, 2005).

A análise de Rosen demonstra de que modo relações sociais coercivas, apoiadas


por práticas violentas, propiciam condições para que crianças participem de
horríveis atrocidades de guerra. De forma controversa, no entanto, o autor
argumenta que, ao invés de vítimas passivas da exploração criminosa dos adultos,
com muita frequência os combatentes infantis decidem racionalmente que não
lutar é uma opção pior do que lutar.
Um rico conjunto de trabalhos realizados na África do Sul investigou associações
entre políticas coloniais e, em particular, políticas de apartheid, e a erosão ou o
Perspectivas em relação a crianças e violência 119

colapso de instituições como a família. Em seu estudo realizado sobre crianças de


10 a 15 anos de idade que cresciam em um albergue de trabalhadores migrantes
perto da Cidade do Cabo, Jones mostra de que maneira políticas de apartheid
relativas à migração de mão de obra forçada rompeu laços familiares, criando uma
infância marcada por revoltas e deslocamentos domésticos (JONES, 1993). Sob
condições de superpopulação, a violência doméstica tornou-se generalizada, e muitas
vezes a violência como forma de punição era aprovada socialmente. Por meio da
violência nas brincadeiras, incluindo lutas com paus afiados, facas, chaves de fenda
e garrafas, as crianças imitavam a violência que haviam testemunhado, criando, dessa
forma, a prática para estilos violentos de vida. Portanto, a violência poderia funcionar
como um recurso no contexto de uma infância fragmentada e de incertezas.
Em estudo etnográfico longitudinal em um distrito da Cidade do Cabo,
envolvendo crianças de 10 a 16 anos de idade, Patricia Henderson analisou também
as funções da violência na vida das crianças (HENDERSON, 1999): a violência
remodelava temporariamente as situações sociais – para confiscar recursos escassos,
para criar novas configurações de poder ou para expressar insatisfação e frustração. A
autora enfatiza a importância de considerar a violência dentro de sua localização social
específica, uma vez que apresenta muitos níveis e consequências diferentes. Assim
sendo, por exemplo, embora a violência desempenhe um papel importante na vida
de dois meninos, para um deles – um camarada (jovem afiliado a organizações
políticas) – a violência era socialmente aprovada e, portanto, aberta a discussão e
reflexão, ao passo que para o outro – membro de uma gangue envolvida em crimes –
não era aprovada e, portanto, este se mantinha em silêncio sobre esses acontecimentos
de sua vida. A violência era frequentemente considerada com ambivalência pelas
crianças: por exemplo, lutar com gangues era visto como atribuição de poder, mas as
crianças também criticavam o excesso – uma criança lutaria com um tijolo, mas não
com uma faca. Henderson considera a violência uma solução de curto prazo, utilizando
uma metáfora de uma sala de espelhos em que a violência não é uma solução, mas
reflexos infinitos – de homens que batem em seus filhos tentando acabar com a
violência entre gangues, de meninos que se envolvem em gangues para proteger-se da
violência de outras gangues: “os praticantes de diferentes formas de violência lutavam
para demarcar territórios e tentavam estabelecer tipos particulares de relação de poder
entre eles” (HENDERSON, 1999, p. 102). Para Henderson, a violência de múltiplos
níveis tem repercussões nos relacionamentos sociais das crianças em todos os níveis,
inclusive na potencial fragmentação da identidade: “os repertórios culturais utilizados
para realinhavar o tecido social foram incapazes de colocar um ponto final no processo”
(HENDERSON, 1999, p. iii).
As dimensões de práticas violentas relacionadas a gênero, consideravelmente
pouco exploradas pela psicologia, têm sido fundamentais em grande parte da
literatura da sociologia. Estudos realizados em uma série de contextos pós-conflitos
investigaram como a violência pode ser um meio para conseguir recursos escassos,
120 Parkes

que se incorporam na identidade masculina (BARKER, 2005; BHANA, 2005b;


REILLY; MULDOON; BYRNE, 2004). Pesquisadores investigaram de que forma
a violência baseada em gênero pode surgir a partir de masculinidades frustradas
(MOORE, 1994), quando os homens não conseguem superar a expectativa de
prover apoio e proteção para a família (RAMPHELE, 2000). Essa violência baseada
em gênero, ao lado de formas mais duras de punição física, ensina às crianças que
relacionamentos pessoais podem ser formatados por meio da força, em que o forte
exerce sua vontade sobre o fraco (MORRELL, 2001; RAMPHELE, 1996). Em
uma etnografia de saúde sexual e violência em meio a homens negros jovens, que
vivem em uma municipalidade sul-africana de classe trabalhadora, Katharine Wood
investigou de que forma a violência de gênero era ao mesmo tempo produtiva e
instável (WOOD, 2002). Para os homens jovens que analisou, práticas violentas
ajudaram a impor a desigualdade em relacionamentos sexuais, produzindo uma
hierarquia de gênero, mas não totalmente bem-sucedida:
Para homens jovens, a importância da mulher para seu sentido de masculinidade, em termos de
autorrespeito e autoestima e aos olhos dos demais, ficava evidente na energia que despendiam
para conseguir namoradas, ter acesso sexual a ela (buscando estabelecer um acesso sexual
exclusivo), vigiando-as e tentando controlar seu comportamento. A imensa maioria dos atos de
violência contra mulheres jovens surgia dessas práticas (WOOD, 2002).

Para manter seu status social, era necessário manter vigilância constante, sendo
a violência uma forma de tentar estabelecer e manter um controle autoritário. O
que fica evidente em todos esses estudos é que, embora a violência possa ser
funcional para ajudar os homens a construir identidades sociais específicas, há
consequências imprevisíveis e negativas – quanto a riscos de saúde, discutidos por
Wood, e quanto ao colapso ou à fragmentação de relações, discutidos por
Henderson, Ramphele ou Rosen.
Muitos desses estudos têm seu foco em adultos jovens, e não em crianças, mas
há também uma linha da literatura social que explora como a violência se infiltra
nos espaços cotidianos das crianças. Há estudos que analisaram de que forma as
escolas, frequentemente consideradas como paraísos seguros, podem ser locais em
que a violência é reproduzida (BHANA, 2005a; CHATTY; HUNDT, 2005;
DAVIES, 2004; DUNNE; HUMPHREYS; LEACH, 2006; DUNNE; LEACH,
2005; HARBER, 2004; LEACH, 2006). Por meio de relações hierárquicas de
gênero, sistemas de punição e em playgrounds onde a força é um meio
frequentemente utilizado para negociar relacionamentos, pesquisadores
investigaram a reprodução da violência do bairro. Há também estudos etnográficos
de crianças que vivem e trabalham nas ruas, em espaços que não são considerados
contextos legítimos para crianças. O ingresso nesses espaços proibidos pode criar
riscos para as crianças. No Brasil ou no Quênia, crianças que vivem e trabalham
nas ruas talvez estejam fugindo da violência em casa, passando a enfrentar agressões
físicas e estupros nas ruas do bairro, praticados por outras crianças ou por adultos
Perspectivas em relação a crianças e violência 121

que reprovam seu movimento considerado ilegítimo (HECHT, 1998; KILBRIDE;


SUDA; NJERU, 2000).
Muitos estudos etnográficos não se propõem a estudar a violência, mas, ao
analisar a vida das crianças em contextos sociais adversos, constatam que as crianças
são obrigadas a enfrentar múltiplas formas de violência. Esses estudos descrevem a
desenvoltura e a resiliência das crianças. No entanto, existe também a percepção
de que a criança vem adotando estratégias de sobrevivência, frequentemente
empregando a violência, para lidar com inúmeras dificuldades, e as perspectivas
para o futuro podem ser sombrias.

Focalizando as perspectivas das crianças


A literatura mostra como a violência repercute na vida das crianças. Estudos
psicológicos exploram as consequências sobre as emoções, o desenvolvimento e as
relações familiares das crianças. As respostas das crianças variam de acordo com
idade, gênero e natureza, e proximidade da violência. Mostra também que muitas
crianças são resilientes, e aparentemente protegidas contra algumas das
consequências negativas, talvez em função do apoio social dentro da família ou das
formas como avaliam ou dão significado à violência. No entanto, essas formas de
dar significado à violência não são adequadamente compreendidas.
A literatura social oferece uma rica análise da vida em um contexto de violência,
ilustrando os complexos significados associados à violência dentro da rede de
relações sociais na vida das crianças, estabelecendo estreitas conexões com
experiência, história e cultura. Os estudos mostram a importância de se
compreender a violência como interação social que carrega múltiplos significados.
Embora acrescentem considerável profundidade à nossa compreensão sobre e
violência, não é difícil verificar por que esses estudos tiveram menos influência do
que a literatura psicológica sobre políticas e práticas. Em sua maioria, foram
realizados em pequena escala, localizados em contextos sociais específicos, e os
autores são cautelosos quanto a afirmações generalizadas. Os relacionamentos que
identificam são complexos, difíceis de desenredar, com profundas raízes históricas
e sociais que não se prestam a soluções rápidas. Mudanças implicam reviravoltas
fundamentais nas relações de poder no nível macro, assim como no nível micro de
convicções e práticas em bairros locais.
Assim como na literatura psicológica há uma percepção em grande parte da
literatura social de que a criança permanece como objeto de observação dos
pesquisadores, vulnerável e inocente e, ao mesmo tempo, presa a ciclos de violência
dentro dos quais é impotente. No entanto, progressivamente, esses estudos vêm
conceituando mais uma vez as crianças como agentes ativos, e começam a considerar
os processos psicossociais por meio dos quais as crianças interpretam e tentam dar
sentido ao seu mundo social. Envolvem-se teoricamente com uma sociologia da
infância baseada em direitos (BOYDEN; DE BERRY, 2004; CHRISTENSEN;
122 Parkes

JAMES, 2000; MAYALL, 2002), e com desenvolvimentos teóricos em psicologia


que enfatizam a construção social da aprendizagem e a construção da identidade
(BRUNER, 1990; COLE, 1996; GOODNOW, 1990; STIGLER; SCHWEDER;
HERDT, 1990; WETHERELL; TAYLOR; YATES, 2001). Esse trabalho, que
utiliza etnografia e abordagens participativas de pesquisa, analisa de que maneira os
jovens negociam conflitos e tensões à medida que constroem suas identidades sociais.
Criticando conceitos homogeneizantes da criança refugiada, utilizados por
agências humanitárias, Jason Hart explorou a fluidez da formação da identidade
das crianças em um acampamento de refugiados palestinos na Jordânia. Discursos
em torno de idade, gênero, classe social, história pessoal, crença religiosa e opiniões
políticas colidiram e entraram em confronto com as perspectivas dos pais de
maneiras tão diversas que “podem estender-se de forma desordenada entre os
limites cuidadosamente desenhados das coletividades sugeridos por gerações mais
velhas” (HART, 2004). Outro estudo, realizado com crianças em acampamentos
de refugiados palestinos no Líbano, na Síria, na Jordânia, em Gaza e na
Cisjordânia, explorou como as crianças negociaram suas identidades como
palestinas, refugiadas, residentes de acampamentos, e como muçulmanas ou cristãs
(CHATTY; HUNDT, 2005). Conflitos políticos e militares estavam refletidos
nos relacionamentos fundamentais à vida das crianças, dentro das famílias e das
escolas. Os jovens enfrentavam discursos concorrentes e conflitantes. Para as
meninas, por exemplo, o casamento poderia ser considerado uma proteção em
tempos de instabilidade, ou uma forma de escapar de restrições econômicas e
sociais vividas por suas famílias, nas quais seus movimentos eram limitados, mas
também era uma forma de evitar que concluíssem seus estudos. E, embora a
educação pudesse permitir-lhes uma vida mais produtiva e satisfatória, com
frequência o currículo era considerado inadequado e irrelevante, e a violência era
comum no ambiente da escola (CHATTY; HUNDT, 2005).
Em meu próprio trabalho com crianças em uma municipalidade sul-africana
de classe trabalhadora, os jovens lutavam com opiniões conflitantes e
aparentemente contraditórias quando negociavam suas identidades dentro de um
contexto de formas múltiplas de violência (PARKES, 2005). Para os meninos, por
exemplo, força, coragem e habilidades de luta eram atributos muito valorizados e,
em sua narrativa dos crimes praticados contra suas famílias, discutiam a
importância de homens e meninos protegerem seus lares, se necessário com
violência. Mas, ao mesmo tempo, eram altamente críticos em relação a jovens que
se juntavam às gangues. À medida que conversavam, tornavam-se inquietos,
falando com orgulho sobre suas associações com gangues locais, obtendo, desse
modo, status social por essas conexões, ao passo que eram inflexíveis ao afirmar que
não adotariam as práticas violentas das próprias gangues (PARKES, 2007).
Meninos e meninas falaram da necessidade de punição severa para manter a lei e a
ordem, mas eram céticos em relação à eficácia dessa punição. É interessante notar
que, ao longo de nossas discussões que ocorreram durante vários meses em 2001,
Perspectivas em relação a crianças e violência 123

eles aparentemente mudaram suas opiniões sobre soluções possíveis para problemas
de violência, propondo, cada vez mais, soluções e negociações verbais como forma
de responder à violência. Parecia que o jogo sutil de poder e prazer no
relacionamento da pesquisa, durante o qual os jovens perceberam que suas opiniões
eram ouvidas e valorizadas, pode ter gerado a percepção de maior ação reflexiva
(PARKES, no prelo).
Colocadas no centro da pesquisa psicológica e social, as opiniões dos jovens
podem ampliar nossa compreensão sobre as diversas formas como meninas e
meninos negociam discursos complexos e contraditórios em torno da violência.
Embora esteja no início, esse trabalho já identifica padrões recorrentes na maneira
como as crianças lidam com a violência, frequentemente contestando-a e
perpetuando-a ao mesmo tempo. Alerta-nos também para possibilidades de
mudança, ao mesmo tempo em que reconhece de que forma as crianças estão
profundamente incorporadas a contextos sociais altamente coercitivos.
Este trabalho, que sintetiza abordagens psicológicas e sociais ao lado de uma
conceituação das crianças como participantes ativas em seu mundo social, indica
intervenções que envolvem as perspectivas dos jovens (DAIUTE; FINE, 2003). Para
algumas crianças, segundo a literatura psicológica sobre trauma, intervenções
psicoterapêuticas sensíveis aos contextos e às tradições locais podem ser cruciais para
ajudar no confronto das consequências terríveis no nível individual ou comunitário,
e para apoiar a reconstrução de relações rompidas pela guerra e por conflitos. Para
outras, intervenções precoces em apoio a famílias que vivem em contextos de alto
risco podem interromper possíveis ciclos de violência. Ao mesmo tempo, conforme
enfatizado na literatura social, é crucial que as intervenções enfrentem e desafiem as
relações sociais coercitivas que servem de base para o conflito. Nas escolas, essas
intervenções poderiam focalizar os direitos humanos, a justiça social e a paz. Em
todos esses múltiplos níveis de intervenção, é importante evitar a universalização e a
homogeneização do entendimento da infância que marginalizam as crianças e as
tornam impotentes. Em vez disso, ao compreender que as crianças atuam e
influenciam seu mundo social de maneiras diversas e fluidas e não fixas, podemos
desenvolver estruturas de negociação e pedagogia de diálogo em que os jovens são
convidados a discutir, desafiar e reconstruir perspectivas e relacionamentos e a explorar
possibilidades de mudar relações sociais violentas.

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48

UM DISCURSO AUTÓCTONE PARA


ESTIMULAR NOSSA HERANÇA COGNITIVA
E REGISTRAR NOSSAS ASPIRAÇÕES:
REFLEXÕES SOBRE A ÍNDIA E A ÁFRICA

Anita Rampal

O dilema entre modernização e indigenização


Em um encontro do Projeto de Escolas Rurais (FUNDAÇÃO NELSON
MANDELA, 2005), realizado na África do Sul em 2004, toquei inadvertidamente
em um vespeiro. Fiquei imaginando por que mesas e cadeiras de plástico eram
consideradas prioritárias em escolas primárias, mesmo à custa de outras necessidades
prementes para garantir melhor aprendizagem. Na África do Sul e na Índia, a maioria
das crianças não se senta nesse tipo de móvel como parte de sua cultura nativa. Houve
uma expressão de profunda indignação por parte de muitos educadores negros, que
declaravam que o que lhes havia sido anteriormente negado nas escolas agora deveria
ser legitimamente seu. De outra maneira, como as crianças poderiam escrever? Era
humilhante e desumano sentar no chão e escrever, declararam. Um sentimento bem-
intencionado, talvez, mas um pouco deslocado, que recusava reconhecer a coerência
da cultura e cognição. Seguiu-se um debate interessante e, em dado momento,
demonstrei de que forma a maioria das pessoas na Índia ainda opta por sentar-se no
chão com as pernas cruzadas, até mesmo em encontros políticos ou musicais de
prestígio. Essa é uma postura básica pela qual muitos ocidentais pagariam somas
substanciais para imitar, como parte de suas aulas de ioga! No entanto, a questão
permaneceu. Por que a África, o Berço da Escrita, tratada com deferência pelo mundo
por sua engenhosa iniciação e utilização criativa do papiro e da pena, agora achava
humilhante escrever sem dispor de mesas e cadeiras?
É significativo que, em sua maioria, os educadores negros que participaram do
Projeto Escolas Rurais sentissem que a educação pouco tinha a ver com cultura ou
identidade. Infelizmente, para eles, essas palavras ainda têm conotações do passado
de colonialismo e apartheid, quando a palavra cultura era utilizada com o significado
básico de cor e raça. Ironicamente, o presente parece estar ameaçado por outro tipo
de cultura, que persegue, de forma vingativa, o ilusório sonho ocidental por meio
da educação. De maneira um tanto superficial, busca-se igualdade de oportunidades,
de certa maneira, superficialmente, por meio da imitação inquestionável, para de
alguma forma alcançar os ocidentais e, tristemente, nos termos deles, e não nos

129
130 Rampal

nossos. Roupas, mobiliário e arquitetura ocidentais, e o ensino no idioma inglês


(frequentemente sem que seja compreendido e, em grande parte, por meio de
memorização) são apenas alguns exemplos dessa cultura, veementemente
demandada como nossos direitos básicos na escola. É urgente a necessidade de um
discurso próprio contemporâneo sobre educação para reconstruir a realidade social
das pessoas, que foi escrita em outro lugar. No cenário globalizado de hoje, é ainda
mais necessário descolonizar a mente de aspirações plagiadas.
A tradição autóctone de educação surgiu de ideias educacionais alternativas,
enraizadas nas lutas anticoloniais de países de baixa renda que desafiavam
conhecimentos, imagens, valores e crenças importados. Por exemplo, Mahatma
Gandhi e Julius Nyere enfatizavam a educação para autossuficiência, equidade e
emprego rural. Portanto, são pressupostos da tradição autóctone:
• reafirmar a importância da relevância da educação para situações socioculturais
do país e do aprendiz;
• garantir que a relevância implique elaboração local de conteúdo curricular,
pedagogias e avaliações, utilizando as ricas fontes de conhecimento já adquiridos
pelos aprendizes;
• ultrapassar as fronteiras da sala de aula/escola por meio de atividades não formais
de aprendizagem permanente (UNESCO, 2005, p. 34).
O modelo de Educação Básica defendido por Gandhi (HINDUSTANI
TALIMI SANGH, 1938) demandava educação para a vida, por meio da vida, e
utilizava atividades produtivas – tecelagem, carpintaria, agricultura ou cerâmica –
como meio de aprendizagem prática interdisciplinar no currículo do ensino
primário, tendo a língua materna como meio de instrução. Na fase final do ensino
primário, buscava-se reduzir a distinção entre as tradicionais linhas acadêmica e
profissional, por meio de cursos flexíveis, nos quais ciências, ciência doméstica ou
ciência agrícola poderiam ser consideradas equivalentes. Essa mudança
correspondia à agenda da luta anticolonial pela liberdade, que clamava por escolas
inclusivas independentes dos recursos governamentais. Questionava-se o sistema
tradicional de castas, que estigmatizava aqueles que pertenciam às castas mais baixas
e suas profissões. Escolas de Educação Básica continuaram a existir na década de
1950, após a independência da Índia, mas não receberam apoio sustentado do
governo e das elites que aspiravam por empregos administrativos por meio de uma
educação moderna.
O discurso de descolonização da educação testemunhou um debate histórico
(BHATTACHARYA, 1997) entre dois importantes pensadores indianos – Gandhi
e Tagore –, cujo respeito mútuo refinou suas diferenças e também enriqueceu os
debates sobre questões como desenvolvimento, nacionalismo, educação, idioma,
ciência e sua dominação. Gandhi liderou o movimento de não cooperação, apoiou
os swadeshi (povo autóctone) no boicote aos bens britânicos, inclusive às escolas
Reflexões sobre a Índia e a África 131

britânicas. Tagore administrava sua própria escola autóctone, mas, como escreveu em
uma carta dirigida a Gandhi em 1921, sentiu que a “luta para afastar nosso coração
e nossa mente dos corações e das mentes ocidentais é uma tentativa de suicídio
espiritual [...] [uma vez que, de fato,] estivemos por longo tempo sem contato com
a nossa própria cultura” (BHATTACHARYA, 1997, p. 62). Gandhi afirmou:
Para mim, é insuportável que os vernáculos sejam esmagados e enfraquecidos como têm sido.
Espero acreditar tão piamente na liberdade como o grande Poeta. [...] Desejo que as culturas de
todas as terras se espalhem sobre minha casa tão livremente quanto possível. Mas recuso-me a
desviar do rumo certo por qualquer outra [cultura] (BHATTACHARYA, 1997, p. 64).

Os dois pensadores desenvolveram modelos distintos de educação autóctone.


No entanto, Tagore questionou a centralidade do trabalho manual na Educação
Básica, à custa de arte e estética, e questionou se esse trabalho correspondia a uma
forma diferenciada de educação “distribuída em porções insuficientes aos pobres”
(BHATTACHARYA, 1997, p. 34), aos quais, dessa forma, eram atribuídos lugares
e profissões limitados.
O histórico envolvimento entre Gandhi e Tagore está relacionado a diversos
debates educacionais contemporâneos. De fato, o currículo mostra-se uma conversa
complicada contínua – e uma reconstrução social e subjetiva, que permite uma
análise da “experiência do passado e das fantasias do futuro do indivíduo para
compreender de forma mais abrangente, com maior complexidade e sutileza, sua
imersão no presente” (PINAR, 2004, p. 4). O dilema entre modernização e
indigenização da década de 1920 ainda se reconfigura atualmente em diversos
países, em torno de dimensões curriculares sutilmente diferentes, variando de crise
ecológica de desenvolvimento, valores racionais morais, conhecimentos acadêmico-
cotidianos, trabalho intelectual-manual, idioma inglês ou outra língua materna
como meio de comunicação, até políticas de identidade material-cultural
(RAMPAL, no prelo).
A primeira Comissão de Educação da Índia independente (GOVERNMENT
OF INDIA, 1966) defendeu a ciência da não violência para o desenvolvimento,
de forma que o país pudesse envolver-se em reinterpretações e reavaliações de seus
profundos abismos de desigualdade e injustiça, utilizando seus próprios recursos
culturais de compaixão, tolerância e espiritualidade, embora estivesse baseado nas
novas forças liberalizantes surgidas no Ocidente. No entanto, tentativas de
incorporar à educação recursos culturais ou civilizacionais fizeram parte de
contestações políticas importantes, principalmente em países multiculturais com
complexas histórias de colonialismo.
Um discurso autóctone sobre educação demanda novas metáforas para a noção
de identidade nacional ou multicultural. Uma metáfora para a sociedade dinâmica
e diversificada procurada na África pós-apartheid é a de Garieb1, proposta por

1. NT: O Grande Rio.


132 Rampal

Alexander (2002, p. 17). Segundo essa metáfora, a corrente principal é composta


pela convergência de todos os afluentes que, em suas formas em constante
mudança, continuam a constituir e a reconstituir o rio, de tal modo que nenhuma
corrente isolada domine, e que não exista uma corrente principal.
No contexto indiano, a independência veio com a separação e a formação do
Paquistão, que deixou uma longa trilha de violência, furor comunitário e,
subsequentemente, conflitos linguísticos. Essa história marcou o contínuo e
problemático processo de criar uma identidade nacional por meio do sistema
educacional. Um Comitê para a Integração Emocional, criado pelo Ministério de
Educação, sentiu-se forçado a afirmar que:
[u]nidade não é uniformidade. Ninguém é solicitado a desistir da fé na religião de seus pais, do
seu amor pelo idioma que os poetas – que inspiraram sua vida e a vida de milhares de seus
semelhantes – escolheram como meio para expressar sentimentos de verdade e beleza. [...] Esse
tipo de lealdade não desacredita a lealdade para com a nação: pelo contrário, acrescenta-lhe
profundidade e, em troca, cria significado e sentido a partir dessa lealdade total que é devida à
nação (GOVERNMENT OF INDIA, 1962, p. 3).

No entanto, uma pluralidade de lealdades continuou a perturbar a agenda dos


nacionalistas chauvinistas, que lutam por estabelecer a hegemonia da cultura e do
idioma da corrente principal dominante, criada a partir de identidade religiosa e de
castas. A educação continua sendo uma área politicamente controversa para a
pedagogia de dominância – de casta, classe social, religião e gênero –, apesar dos
comitês radicais e das políticas leigas que desafiaram esses projetos desagregadores.
Por exemplo, por meio da Estrutura Curricular Nacional (ECN), de 2000, um
partido de direita no poder central promoveu uma forma de imperialismo cultural
da identidade religiosa dominante, e os livros didáticos apresentaram uma visão
distorcida e desagregadora da história (SAHMAT; SABRANG, 2001). Uma mudança
no governo recuperou o espaço secular na subsequente ECN de 2005, mas, uma vez
que currículos escolares e livros didáticos são preparados por governos estaduais, a
ideologia de direita continua a prevalecer em alguns estados. Lall analisa o aumento
de contestações sobre questões de identidade nacional, argumentando que:
a fundamentalização em geral e, em particular, a fundamentalização curricular são mecanismos
discursivos controlados pelo Estado, por meio dos quais é possível refrear e desviar possíveis
disfuncionalidades produzidas pelos efeitos da globalização sobre as sociedades (LALL, no prelo).

Após a independência da Índia, o idioma tornou-se uma questão particularmente


sensível. O chauvinismo religioso, associado à hegemonia política da área central de
idioma hindi, exigiu como idioma nacional um hindi altamente clássico. Por meio
de muitos debates políticos, o país privou-se de declarar um idioma nacional, mas,
em vez disso, adotou o hindi como idioma oficial, sendo o inglês classificado como
idioma oficial adicional associado, para servir de ligação entre a pluralidade de
idiomas regionais ou estaduais. A Constituição também afirma que:
Reflexões sobre a Índia e a África 133

será dever da união desenvolver o idioma hindi de modo que possa servir como meio de expressão
para todos os elementos que compõem a cultura da Índia, e para garantir seu enriquecimento
pela assimilação, sem interferir em seu espírito, com as formas, os estilos e as expressões utilizados
no idioma hindustâni e em outros idiomas da Índia (Artigo 351).

Foi criada a Comissão do Idioma Oficial, e diversos comitês deliberaram sobre


a forma como os idiomas indianos deveriam ser desenvolvidos. A Comissão
determinou que novas terminologias não deveriam ser “criadas em um workshop
literário”, mas sim extraídas da terminologia utilizada comumente em meio a
artífices, artesãos, técnicos e trabalhadores semiqualificados, que não estão
familiarizados com o idioma inglês, mas que conseguem criar suas próprias formas
híbridas de terminologia técnica e científica. No entanto, infelizmente, o curso dos
eventos foi contrário ao sábio conselho da Comissão, e até mesmo da Constituição.
Além de palavras dos dialetos artesanais não serem garimpadas na fonte, palavras
utilizadas nos vocabulários coloquiais foram até mesmo removidas e consideradas
alienígenas ou islâmicas, em favor de termos frequentemente mais artificiais
cunhados a partir do sânscrito. Os termos desse hindi oficial não foram criados a
partir do hindustâni dinâmico, heteroglota e amplamente utilizado, que, na
verdade, se desenvolveu a partir de uma cultura mesclada por comunidades diversas,
forjando, desse modo, fortes laços emocionais de memórias compartilhadas. Além
disso, o que surgiu da luta violenta por aquilo que Rai (2001) denomina
nacionalismo hindi foi destituído do espírito criativo do hindustâni. Foi
efetivamente um idioma regional em oposição a outros idiomas regionais,
inventado por uma elite local de casta superior, desesperada por exercer a
dominância nacional:
Posicionou-se por tanto tempo contra diversos outros antagonistas – urdu, mas não só o urdu na
fase inicial, mais tarde, o inglês – que um tipo de atitude defensiva irritadiça tornou-se uma de
suas características mais profundas. [...] Por toda sua irrelevância para o mundo real da prática
literária, e para o mundo da utilização cotidiana do idioma, esse hindi continua a exercer uma
influência danosa por meio de sua dominância permanente dentro do sistema educacional. [...]
Esse hindi oficial é essencialmente responsável pela construção da memória cultural na região
hindi; em cada sala de aula, em cada texto infantil e em cada dissertação acadêmica, a prática
desse hindi é uma reconstituição ritual da lógica da separação (RAI, 2001, p. 118-119).

Um discurso alienante da educação enraizou-se na maioria dos estados, mesmo


nos locais em que o meio de comunicação escolhido para ser usado na escola foi o
idioma regional daquele estado. Terminologias e palavras técnicas foram
artificialmente impingidas aos alunos sem qualquer consideração por seus processos
de cognição e comunicação. No entanto, no estado de Kerala, no sul da Índia –
onde os níveis de alfabetização são muito mais altos do que no restante do país –,
foi realizada uma tentativa séria para desenvolver novas terminologias a partir de
palavras conhecidas já existentes. Diversas palavras foram cunhadas a partir do
inglês, mas com um sufixo malaiala adequado. Um dicionário contendo 40 mil
134 Rampal

termos foi compilado pela organização Kerala Shastra Sahitya Parishad – à época,
um grupo voluntário, relativamente pequeno, de acadêmicos que trabalhavam pela
popularização da ciência. Essa realização foi um marco e ajudou a organização a
mobilizar um apoio em grande escala por parte das pessoas comuns, e a liderar a
campanha ambiental Silent Valley e seu Movimento Popular pela Ciência, com base
nos segmentos mais populares. O exemplo enfatiza a necessidade de intervenções
autóctones criativas, que modelem a capacidade de invenção das pessoas, utilizando
seus próprios idiomas, e que sustentem a base da expansão educacional.
Preocupações semelhantes foram demonstradas em relação à África do Sul, onde o
inglês permanece como idioma dominante nas escolas, e os esforços concentram-
se em garantir o desenvolvimento e a intelectualização dos idiomas locais (ODORA
HOPPERS, 2002; DLODLO, 1999).

De quem são os conhecimentos valorizados?


Na África, na América do Sul e na Ásia Meridional houve demanda por uma
reapropriação crítica dos conhecimentos autóctones, pelo fim da extroversão de
todas as formas, inclusive econômicas, científicas e tecnológicas. O currículo escolar
de história foi revisado sob a perspectiva subalterna, e o dia em que Colombo
chegou ao Novo Mundo – 12 de outubro – foi declarado como o Dia da
Resistência Autóctone na América Central e do Sul. Movimentos sociais exigiram
uma auditoria da dívida ecológica dos países colonizadores que, ao longo de séculos
de exploração de minérios e de outros recursos naturais do mundo em
desenvolvimento, causaram sua profunda dívida econômica. É necessário reafirmar
e reivindicar um reconhecimento semelhante de sua dívida cognitiva em relação
ao conhecimento autóctone das civilizações mais antigas.
O desenvolvimento da ciência moderna baseou-se em diversas tradições de
conhecimentos, que incluíam as tradições de culturas simples que tiveram contato
com as viagens de descobrimento ou que eram parte das colônias da Europa. No
entanto, no decorrer da disseminação da ciência moderna, essas outras tradições
foram conscientemente deslegitimadas, ou até mesmo cognitivamente perdidas
para a ciência. Nossa herança cognitiva deve ser novamente analisada em termos
críticos, e reivindicada, não para ser explorada no mercado global, mas para
enriquecer nossos sistemas autóctones de produção econômica e de conhecimentos.
Para a produção de conhecimentos, nossas escolas devem servir não só como locais
próprios de produção de novos conhecimentos, mas, do mesmo modo, de
relegitimação e valorização de algumas dessas tradições perdidas.
Alguns exemplos de tais tradições perdidas por meio da educação formal
enfatizam a questão: de quem são os conhecimentos atualmente valorizados nas
escolas? A criança que vive em tribos ou em áreas rurais tem conhecimentos sobre
o mundo natural, e não precisa ver figuras para contar as pernas de uma aranha,
para identificar os ovos de uma rã ou as folhas de uma árvore neem. Em sua
Reflexões sobre a Índia e a África 135

comunidade, ela pode aprender como fundir metais, ou obter conhecimentos para
identificar ervas medicinais e a rica biodiversidade de suas florestas – que as
empresas estrangeiras muitas vezes disputam agressivamente para registrar e explorar
comercialmente –, ironicamente, não valorizadas pelas escolas. Além disso, a
estrutura do conhecimento escolar faz com que a criança de áreas rurais ou de tribos
lute com representações sem sentido até em questões que ela conhece muito melhor
(RAMPAL, 2000). Essa dissonância cultural entre conhecimentos autóctones,
idioma e ciência escolar também foi observada com crianças maori (McKINLEY;
McPHERSON WAITI; BELL, 1992).
Goonatilake enfatiza a necessidade de explorar conscientemente o
conhecimento civilizacional, para mudar as tradições da ciência moderna por meio
de um rico conjunto de técnicas, metáforas e soluções intelectuais.
O recente trabalho de antropologistas sobre esses pequenos grupos sociais, denominados povos
primitivos, revela que o impulso para ser científico está presente universalmente. Concentro-me
deliberadamente sobre essas sociedades, uma vez que a Revolução Científica teve início após as
viagens de descobrimentos, e os aspectos dos dois projetos interagiam mutuamente, ou seja: a
busca pela ciência e a busca do ‘outro’ em oposição aos europeus. A perspectiva imperialista que
acompanhou os dois eventos logo começou a reivindicar superioridade e exclusividade por tudo
que fosse considerado europeu. Logo, essas atitudes foram cristalizadas em vários graus, em uma
visão de que outras culturas eram inerentemente incapazes de trabalho intelectual, que hoje está
sob a rubrica científico. E essa perspectiva desvirtuou opiniões subsequentes sobre conhecimento
– opiniões que apenas ao longo das duas últimas décadas vêm sendo gradualmente repensadas
(GOONATILAKE, 1998, p. 67).

A curiosidade sobre a natureza não foi apenas estimulada, mas sistematicamente


formalizada e alimentada em todas as principais áreas da civilização, com
transmissão e fertilização intercambiada de ideias entre essas áreas. Por exemplo,
classificações biológicas de povos, realizadas por grupos diferentes em todo o
mundo, vêm-se mostrando muito semelhantes em diferentes contextos, com base
em observações objetivas que utilizam critérios similares. Estudos de campo sobre
tentativas de classificação realizadas por estudantes americanos, que não tinham
treinamento formal em biologia ou conhecimento prévio dos espécimes que
deveriam classificar, mostraram que todos chegaram a sistemas semelhantes de
classificação baseados nos critérios observados (BOSTER, 1987). Um conjunto
crescente de trabalhos em etnobiologia e antropologia mostra que povos autóctones,
observando o ambiente de forma independente, chegaram a conclusões e
taxonomias semelhantes, em grande parte sem motivação intelectual, como uma
simples necessidade instrumental.
A diferença entre um Linnaeus – fundador do moderno sistema de classificação no século XVIII
– e um classificador comum passa a ser em parte de grau. Linnaeus – assim como outros cientistas
modernos depois dele – tinha acesso a um estoque mais amplo de amostras de plantas, criado
por meio da expansão europeia no resto do mundo (GOONATILAKE, 1998, p. 70).
136 Rampal

A agenda civilizadora da escola?


Além de rejeitar os recursos dos conhecimentos civilizacionais da criança
pertencente a uma tribo, as escolas também sujeitam essa criança a um grave
sentimento de alienação, uma vez que sua própria existência e sua identidade são
descritas em termos humilhantes. Os professores são profundamente condicionados
por preconceitos sociais contra tribos autóctones e referem-se a elas de forma
estereotipada como pessoas incivilizadas envolvidas com bebidas e danças, e não
interessadas em educação. Em um livro didático para a sexta série, questões sobre
“onde é possível encontrar tigres neste país?” foram estruturadas exatamente da
mesma forma que a questão: “onde é possível encontrar povos tribais?” Não foi
realizado esforço algum para mostrar a diferença, nem mesmo semanticamente,
entre “onde as pessoas são encontradas” e “onde as pessoas vivem”. De maneira
geral, nenhum personagem ou nome tribal aparece em livros didáticos. Na
realidade, os professores estão sempre corrigindo nomes tribais, uma vez que os
consideram estranhos e como versões distorcidas de nomes adequados em sânscrito.
Metáforas espaciais desempenharam um papel na estruturação de pedagogias
emancipadoras, visando reagir a tendências de domesticação da educação, e variaram
de cruzar fronteiras até legitimar participações periféricas (EDWARDS; USHER,
2000). Em países do sul, populações pobres que hoje vivem em áreas urbanas
testemunham crescente desumanização, até mesmo desigualdades cruéis, à medida
que a cidade se reconfigura e se transforma monstruosamente em uma metrópole
moderna. Além disso, os meios de comunicação projetam incansavelmente imagens
surreais sobre a imaginação fértil e as aspirações florescentes dos jovens; jacuzzis
vibrantes e acessórios atraentes parecem adquirir um realismo corriqueiro, ao passo
que modestas torneiras e latrinas sanitárias continuam sendo imagens remotas,
inimagináveis. No entanto, as escolas não fazem tentativa alguma para estruturar a
consciência espacial de uma criança pobre, questionando “o relacionamento que
existe entre ela e seu bairro, seu território, ou para utilizar a linguagem das gangues
de rua, seu ‘pedaço’” (HARVEY, 1973, p. 24; RAMPAl, 2007).
Livros didáticos geralmente mantêm um distanciamento inerte, recusando o
reconhecimento da vida dos povos tribais, e lidam com questões de sobrevivência de
forma fria e estéril. Presumindo que todos vivem em um bangalô de tijolos e argamassa,
com água encanada, pregam a conservação da água, afirmando que é preciso fechar a
torneira ao escovar os dentes. Esquivam-se também, deliberadamente, de qualquer
questão conflituosa, considerada desconfortável por seus autores urbanos de classe
média, e pontificam, sem qualquer pudor, o que “eles” – os pobres e “sujos” – devem
fazer para manter-se limpos. Há uma compreensão implícita de que, embora deva
informar “essas crianças atrasadas” sobre como conduzir sua vida “adequadamente”, a
educação deve projetar apenas felicidade e situações positivas para proteger a inocência
dos privilegiados. Tradicionalmente, os livros didáticos contêm lições altamente
prescritivas e moralistas (sobre higiene, limpeza, trabalho duro etc.) ao lado de
Reflexões sobre a Índia e a África 137

generalizações ingênuas e insípidas sobre a vida dos pobres. De fato, sob o título “tipos
de casas”, o bangalô de concreto, a casa semi-pucca2 e os jhuggi (abrigos improvisados)
são apresentados como se constituíssem outra taxonomia científica natural, como no
caso de plantas ou tipos de solo. Além disso, uma casa considerada boa é sempre definida
como aquela que tem cozinha, banheiro, janelas e eletricidade. Milhões de crianças que
vivem em condições que não estão de acordo com essas normas são deliberadamente
alienadas e recebem sinais de que seu estilo de vida é classificado como ruim.
A agenda escolar civilizadora, quase permanentemente e em apelo aos altos
princípios, tem sido imposta às crianças pobres, que supostamente precisam ser
resgatadas do abismo, segundo uma disciplina escolar que deve ser contrastada com
o caos e a miséria de suas casas. Na verdade, o desprezo enfrentado nas escolas
atuais pela população pobre que vive em áreas urbanas é uma reminiscência da
Inglaterra do século XIX, quando a Lei de Educação Compulsória, de 1870, foi
sancionada pelo Estado para a suposta manutenção da ordem por meio de medidas
frequentemente opressoras. A educação foi imposta por meio de processos e multas,
apreensão de bens quando os pais não tinham condições de pagar, e até mesmo
prisão. Ordem e obediência vieram com a limpeza, revestidas da mesma retidão
moral e do mesmo sentimento de vergonha, e merecendo prioridade ainda maior
do que a própria instrução (DAVIN, 1996).

Analisando o discurso oficial


Os conhecimentos das crianças pobres que vivem em áreas rurais são excluídos
do currículo de maneira ainda mais exacerbada em função dos idiomas utilizados
na escolarização. De maneira geral, o discurso da escola é altamente transacional,
impessoal e denso, incluindo informações que devem ser memorizadas, uma vez
que, com frequência, a criança não consegue captar seu sentido (RAMPAL, 1992a).
Nas escolas do governo, a hegemonia da terminologia pesadamente clássica
utilizada nos idiomas regionais tornou as áreas de ciências e matemática duplamente
debilitantes para as crianças, o que contribui em grande medida para sua
incapacidade de lidar com essas disciplinas.
Em 1993, o Ministério de Desenvolvimento de Recursos Humanos nomeou
um Comitê para ajudar a reduzir a opressão da mochila escolar. O prefácio de seu
relatório “Aprendendo sem opressão” observava que o maior problema não era a
opressão gravitacional da mochila:
A opressão mais perniciosa decorre da não compreensão. De fato, uma parcela significativa das
crianças que abandonam a escola talvez seja composta por aquelas que se recusam a
comprometer-se com a não compreensão: possivelmente, essas crianças são mais qualificadas
do que aquelas que apenas memorizam e têm bons resultados nos exames, sem compreender
muita coisa! (GOVERNMENT OF INDIA, 1993).

2. NRTT: Casa sem colunas e vigas, mas com boa alvenaria e argamassa.
138 Rampal

O Comitê criticava pesadamente a tendência global de empacotar o máximo


de informação possível de maneira altamente comprimida e de difícil compreensão,
e observava que:
Salvo exceções, aparentemente nossos livros didáticos foram escritos basicamente para transmitir
informações ou fatos, e não para fazer a criança pensar e explorar. [...] A distância entre a vida
cotidiana da criança e o conteúdo do livro didático acentua a transformação do conhecimento
em um encargo. [...] Até mesmo os livros utilizados para ensinar a língua materna são escritos
com expressões tão estilizadas que não se pode esperar que a criança reconheça essa linguagem
como sua. Não há palavras, expressões e nuances habitualmente utilizadas pelas crianças em seu
próprio meio. Assim também é o estado de espírito. O que domina é um estilo artificial e
sofisticado, reforçando a tradição de estabelecer uma distância entre o conhecimento e a vida
(GOVERNMENT OF INDIA, 1993, p. 7-8).

Muitas vezes, a retórica do ensino baseado em atividades pode ser adotada por
livros didáticos, mas não se busca promover qualquer exploração ou atividade. É
solicitado às crianças que observem a figura de um objeto, e não que saiam à
procura do objeto real, seja um pardal comum ou a folha de uma planta, e as
conclusões sobre o que será observado já são fornecidas. Um trecho típico sobre
clima, extraído de um livro didático para a terceira série, intitulado “Explorando o
meio ambiente”, mostra quão distante está de uma abordagem verdadeiramente
exploratória. Observe a densidade do texto e a utilização de afirmativas que
realmente nada explicam:
Quando a água evapora, muda de líquido para vapor. O vapor de água é a forma gasosa da água.
Objetos úmidos secam quando a água que contêm transforma-se em vapor e passa para a
atmosfera. Você não pode ver a água transformar-se em vapor. Vapor de água existe no formato
de partículas muito pequenas (RAMPAL, 2002; PROBE TEAM, 1999).

A maioria dessas frases não oferece explicação real alguma, e de fato não é
possível explicar esses conceitos de evaporação e estados da matéria para crianças
dessa idade. São apenas afirmações que giram em círculos, como tautologias. Se
uma criança pergunta: “mas o que é vapor de água?”, obtém a resposta: “vapor de
água é a forma gasosa da água”! Obviamente a criança para de tentar entender o
que está sendo ensinado, e passa a corresponder àquilo que se espera dela – repetir
mecanicamente o que foi dito.
Houve poucas tentativas sistemáticas no sentido de conseguir feedback das
crianças e de captar suas percepções sobre esse tipo de texto. Normalmente,
acredita-se que, se não conseguem aprender na escola, deve haver algo errado
com as crianças, e por esse motivo necessitam de todos os tipos de insumos
adicionais, de reforço na aprendizagem a fortificantes. Gargi, uma aluna de 11
anos de idade em Mumbai, é uma exceção. Ao ser-lhe solicitado que analisasse
criticamente seu livro didático, ela leu duas páginas do capítulo sobre “Ar”, que
continha grande quantidade de termos e conceitos desconhecidos, tais como
Reflexões sobre a Índia e a África 139

cadinho, massa, dessecador, triângulo cachimbo de barro, magnésio,


instrumentos, óxido de mercúrio. Supostamente um dos melhores materiais
didáticos – utilizado por escolas urbanas e publicado por uma empresa privada
–, esse livro elabora, sem qualquer cuidado, instruções para um experimento
apresentado normalmente a estudantes do ensino médio, para constatar a
diferença na massa de magnésio após queima no ar. Gargi ousou questionar a
compatibilidade do que estava sendo ensinado. Enviou-me seus comentários
expressivos, acompanhados de um desenho:
A seção sobre o experimento de Priestley foi muito confusa. Mercúrio, pó vermelho, aquecimento,
reaquecimento. [...] Além disso, Priestley, Lavoisier, lascas incandescentes, oxigênio. [...] Que
lixo! Fiquei zonza!

Sendo um país em desenvolvimento, um problema importante enfrentado por


nós, principalmente ao elaborar currículos, foi o que significa alcançar o nível, para
que a Índia possa acompanhar a popularmente denominada “explosão global de
informações”. Por exemplo, ao saber que crianças europeias aprendem conceitos
de valência ou equações químicas muito depois de seus colegas indianos,
argumentou-se que hoje esses países podem dar-se ao luxo de ir devagar. A
Estrutura Curricular Nacional mais recente (GOVERNMENT OF INDIA, 2005)
promoveu uma abordagem social construtivista direcionada à aprendizagem das
crianças, com foco no contexto cultural de conceito-formação. Todas as crianças
são teóricas naturais e, muito antes de ir para a escola, começam a construir suas
próprias teorias e explicações para o mundo que observam. A aprendizagem na
infância não é um processo de acumulação ou armazenamento de informações
sobre temas diferentes, mas a capacidade de aplicar a compreensão de um fenômeno
a outros. Frequentemente, as crianças formam estruturas alternativas ou teorias
ingênuas consistentes, que podem até mesmo ser contraditórias em relação ao
conhecimento estabelecido (DRIVER et al., 1985). Portanto, as escolas devem
descobrir, discutir e analisar criticamente as ideias intuitivas das crianças antes de
lhes apresentar novas maneiras de olhar o mundo.
Muitos estudantes fracassam em seus exames de matemática, sentindo-se
frustrados por não conseguir lidar com números, mesmo mais tarde, ao longo da
vida. No entanto, crianças e adultos sem escolarização gostam de solucionar
enigmas orais e de jogos populares, com sementes de tamarindo ou seixos, que são
divertidos e aguçam sua capacidade matemática. Métodos tradicionais de
estimativa, classificação e medição ainda utilizados em vilarejos têm sua
terminologia própria relacionada de modo significativo a contextos da vida real.
Constatamos que crianças e adultos sem escolarização que trabalham no comércio
ou realizam trabalho profissional recorrem à aritmética mental em suas transações
diárias, e utilizam algoritmos e estratégias eficazes para obter resultados (RAMPAL
et al., 1999; RAMPAL, 2003a, 2003b, 2003c).
140 Rampal

A apresentação da matemática nos livros didáticos também foi associada


tradicionalmente a formas arraigadas de desigualdade de gênero. Um estudo
detalhado de livros didáticos de matemática e manuais do professor, realizado por
Mary Harris – em nome da Secretaria Geral da Comunidade das Nações – indica
que a linguagem do livro “Let’s learn Mathematics”3 para a primeira série já é muito
formal e corre o risco de alienar as meninas desde o início de sua escolarização: “as
meninas encontram formas cooperativas e produtivas para compreender melhor a
matemática do que as formas mais definíveis, hierárquicas, utilizadas nesse texto, e
o fazem de fato ao longo de todas as séries” (HARRIS, 1999, p. 93). Assim sendo,
sanar o desequilíbrio de gênero em livros didáticos não é apenas uma questão de
introduzir um número maior de exemplos com mulheres, mas de compreender que
a mulher continuou a desempenhar um papel importante na acumulação e no
aprimoramento do conhecimento tradicional em várias esferas de atividade.
De fato, nos novos livros didáticos para o nível primário, produzidos pelo
National Council of Educational Research and Training (NCERT)4 (NCERT, 2006a,
2007, 2008; disponível em: <www.ncert.nic.in>), demos lugar, conscientemente,
ao conhecimento cotidiano das crianças sem escolarização nas áreas de ciências e
matemática. Com foco sobre os mais vulneráveis ao abandono da escola, e ao
contrário da cultura de silêncio prevalente na escola, algumas questões-chave
abordam abertamente temas de desigualdade ou diferença, e estimulam as crianças
a refletir sobre suas experiências de vida, por mais desagradáveis que sejam. O
programa de Estudos Ambientais para os níveis da terceira à quinta série (NCERT,
2006b) utiliza uma abordagem integrada, por meio de temas que permitem uma
compreensão associada e inter-relacionada daquilo que, convencionalmente, está
no âmbito das disciplinas ciências, estudos sociais e educação ambiental. Isso exige
ultrapassar as fronteiras tradicionais das disciplinas e olhar para prioridades de
forma compartilhada, com foco na compreensão das crianças e nas suas experiências
enraizadas no ambiente cultural diversificado onde vivem.
Por exemplo, o tema alimentos tem início com cozinhar e fazer refeições com a
família, e sensibiliza a criança quanto à noção de que o alimento é um conceito
profundamente cultural. A questão-chave “quais dos seguintes itens são alimentos
– formigas vermelhas, ninho de pássaros, leite de cabra etc.?” tem por objetivo
focalizar a compreensão de tais diferenças, promover tolerância e também abordar
preconceitos sociais sobre práticas culinárias autóctones. Determinadas comunidades
tribais apreciam condimentos preparados com formigas vermelhas ou cupins fritos,
mas enfrentam discriminação opressiva por parte de colegas e professores que não
pertencem a essas comunidades, muitas vezes insensíveis e ignorantes. A seguir, o
tema passa a ser sobre como o alimento é cultivado, como chega à cidade, quem o

3. NT: Vamos aprender matemática.


4. NT: Conselho Nacional de Pesquisa Educacional e Treinamento.
Reflexões sobre a Índia e a África 141

cultiva, e as dificuldades enfrentadas pelos agricultores (à luz da grave crise na


agricultura e do número sem precedentes de suicídios praticados por agricultores)
e, ao mesmo tempo, mantém a conexão com a realidade de nosso sofrimento em
função da fome ou do problema de pessoas que não têm o que comer. Além disso,
mudanças nos hábitos alimentares e nos padrões de colheita são analisados por meio
das experiências históricas das pessoas mais velhas/avós do vilarejo, e não apenas a
partir daquilo que professores ou livros didáticos podem contar.
No programa de estudos, os temas “água” e “abrigo” incluem perguntas sobre
questões imediatas de castas e privações em ambientes rurais e urbanos. Por
exemplo, as seguintes perguntas devem apoiar o diálogo crítico: que distância você
deve percorrer para conseguir água? Há pessoas que não têm permissão para pegar
água da fonte que você utiliza? O que são poços subterrâneos, e você ainda os vê
sendo utilizados? Você já presenciou água sendo desperdiçada? Há pessoas em sua
área que sempre enfrentam escassez de água? Você vê fábricas ou pessoas jogando
lixo ou materiais nocivos nos rios ou no mar? O mesmo ocorre para o tema
“abrigo”: todo mundo tem um lugar protegido para morar? Por que as pessoas
vivem juntas em vilarejos/colônias/bairros? O programa de estudos e o livro
didático incluem também narrativas sobre uma criança deslocada pela construção
de uma represa ou pela demolição de uma favela urbana.
Os novos livros didáticos do NCERT, baseados no programa de estudos revisado,
foram introduzidos nas escolas em 2006. À medida que avança em seu trabalho com
livros sobre Estudos Ambientais, nossa equipe passa por um processo de debates e
reflexões. Manter a sensibilidade em relação a todas as crianças e incluir de maneira
consciente a realidade da vida da criança rural e tribal de fato constituem desafios,
principalmente quando a maioria de nós – professores e educadores – faz parte dos
setores urbanos e instruídos da sociedade, onde são cada vez menos comuns os
espaços compartilhados de intercâmbio social e cultural. Para nós, água encanada
(embora escassa, hoje, na maioria das cidades) ou banheiros individuais são bens
inquestionáveis da vida urbana, ao mesmo tempo em que muitos outros marcadores
de nossa existência de classe média – por exemplo, gás de cozinha, um refrigerador,
uma casquinha de sorvete, ou até mesmo um papel colorido comum – podem surgir
irrefletidamente nos capítulos que elaboramos. Continuamos também a lidar com
um discurso moralista de classe média sobre higiene e limpeza, e a convicção de que
os pobres necessitam das mensagens corretas por intermédio da escola. No entanto,
abrimos espaço para manifestações e preocupações diferentes das crianças,
provenientes de regiões, culturas e backgrounds socioeconômicos diversificados –
daquelas crianças cujas casas são levadas pelas enchentes todos os anos, e também
daquelas que precisam caminhar muitos quilômetros para obter um pote de água.
Intencionalmente, incluímos diversas narrativas reais de inspiração e ação
transformadora nos livros didáticos de linguagem, matemática e estudos ambientais
para a terceira série (NCERT, 2006a, 2007, 2008).
142 Rampal

Perspectiva científica e convicções sociais


A ciência para o desenvolvimento tem sido um sonho comum na maioria dos
países em desenvolvimento, inclusive na África do Sul e na Índia. No entanto,
muitas vezes uma visão de ciência excessivamente positivista, e até equivocadamente
redentora, é projetada como a solução para todos os problemas nacionais
(RAMPAL, 1992b). O pensamento científico é visto como em confronto direto
com as crenças comuns e religiosas, as superstições e as práticas tradicionais das
pessoas. Nas escolas, cursos padronizados não dão espaço para que o pensamento
e a reflexão crítica abordem de forma inteligente os conhecimentos locais dos
estudantes ou questionem crenças sociais com sensibilidade.
Os meios de comunicação veiculam negligentemente uma enxurrada de
mensagens, muitas vezes cruas e condescendentes, sem nenhuma tentativa de
questionamento crítico ou de explicação comunicativa. Por exemplo, em uma
propaganda social regular na televisão indiana, uma voz de comando e sem corpo
pergunta à pobre dona de casa se ela limpou bem os pratos e, em tom paternalista,
ordena aos espectadores que lavem suas mãos antes das refeições (e após defecar).
Esse formato é profundamente ofensivo e insensível ao gênero. Mesmo no árido
deserto de Rajastão, onde as secas são frequentes e onde as mulheres mal suportam
o árduo fardo de carregar vários potes da escassa água por longas distâncias, elas
esfregam seus utensílios com areia, mostrando a perspicácia e o absoluto bom senso
das populações locais. Mensagens condescendentes semelhantes relacionadas à
vacinação infantil ou sobre manter alimentos cobertos parecem atribuir aos
espectadores pobres a total responsabilidade por suas doenças, absolvendo o Estado
de sua própria responsabilidade de prover confortos básicos, tais como água potável
ou cuidados primários de saúde. Não existe uma tentativa científica popular para
comunicar por que a vacinação ajuda ou o que acontece com alimentos
contaminados e, portanto, esse discurso didático é quase semelhante, em seu
significado e em seu conteúdo, a qualquer outra afirmação de conhecimento que
tenha surgido de sistemas de crenças não científicos.
O desenvolvimento do pensamento científico é um processo lento e complexo,
e permanece embutido em várias camadas complementares da cognição social –
entre mitos, crenças, folclore, superstições, tabus etc. – que vêm influenciando o
pensamento das pessoas há séculos. Em termos amplos, essas crenças constituem o
que Horton (1970) denomina sistema fechado de pensamento, caracterizado pela
falta de consciência sobre alternativas para o conjunto de princípios sustentados e
restringidos pela tendência para raciocinar apenas dentro de um idioma limitado.
Na tentativa de oferecer explicações científicas aos indivíduos, a linguagem
científica precisa ser cuidadosa ao invocar ideias que podem estar relacionadas às
suas crenças religiosas e sociais. O movimento rumo ao pensamento científico
envolveria o fornecimento de explicações alternativas, permitindo que princípios
tradicionais se tornassem menos sagrados à medida que perdessem sua validade
Reflexões sobre a Índia e a África 143

absoluta, por meio de um afrouxamento concomitante das estruturas sociais que


os sustentam (RAMPAL, 1994; OGUNNIYI, 1988, 1989).
Recorrentemente, essa questão preocupou e envolveu colegas e amigos de forma
criativa ao longo do nosso trabalho na campanha de alfabetização, e como parte
das atividades da All India People’s Science Network5. Por exemplo, durante o eclipse
solar total de 1994, milhares de ativistas da alfabetização no país realizaram uma
viagem cósmica especial, e grupos culturais itinerantes viajaram por todo o país,
comunicando-se com milhões de pessoas e mobilizando-as para observar o
fenômeno e aprender a respeito dele. Poemas e peças foram especialmente escritos
e impressos em livros que indicavam como incorporar as crenças e lendas próprias
do povo, apresentando simultaneamente novos conhecimentos. A peça “Grahan
men bhi Surya Sundar”6 utilizou humor e sátira populares para retratar crenças e
rituais populares relacionados ao eclipse e, ao mesmo tempo, tentou motivar as
pessoas a observar esse evento espetacular e a aceitar outras explicações para sua
ocorrência. Pode ser contraproducente eliminar crenças tradicionais de maneira
apressada, sem discutir de que forma as antigas civilizações procuravam metáforas
explicativas para essas ocorrências naturais: causa alienação e dá a impressão
desnecessária de que a ciência é muito impessoal e oposta a tudo o que têm de mais
caro ou sagrado.

Considerações finais
Este capítulo destacou o abismo existente entre os conhecimentos locais dos
aprendizes sobre matemática e ciência e as maneiras formais, distantes e
frequentemente incompreensíveis como os livros didáticos são apresentados. Por
outro lado, à medida que trabalhávamos com jovens e adultos não escolarizados,
envolvidos em trabalhos manuais, pudemos perceber de que forma seus
conhecimentos são utilizados na prática (ROGOFF; LAVE, 1984; LAVE, 1996) e
estão baseados em altos níveis de inovação, criatividade e desenvoltura. Lembro-
me de um jovem relojoeiro (na pequena cidade onde vivi) a quem levei um relógio
muito barato (e talvez descartável) que havia parado de funcionar. Ele devolveu a
peça no dia seguinte, funcionando, e cobrou apenas a bagatela de 10 rúpias (cerca
de 20 centavos), dizendo com visível orgulho: “aprendi com meu pai que o meu
trabalho é fazer funcionar, não jogar fora!” Esse sentimento faz parte da ética de
seu conhecimento não escolarizado. Tem suas raízes no sistema de aprendizagem
que viveu como aprendiz de seu ustaadi, ou mestre, que, no caso, foi seu pai. A
característica desse sistema de educação é essa desenvoltura e essa inovação de fazer
as coisas funcionarem, com austeridade e recursos mínimos, frequentemente por
meio de reciclagem criativa. Além disso, esse aprender fazendo tem como postulado

5. NT: Rede de Ciências de Todos os Povos da Índia.


6. “O sol também é lindo durante o eclipse”.
144 Rampal

maior participação e esforço coletivo, aos quais pensamento, ação e sentimentos


estão organicamente vinculados (RAMPAL, 2003a). Nossas escolas poderiam
aprender muito com esses sistemas de conhecimentos não escolarizados, que
poderiam servir de estrutura para um discurso anti-hegemônico contra a
globalização. De fato, qual poderia ser a melhor forma de resistir ao consumismo
globalizado, se não ter orgulho em fazer as coisas funcionarem sem gastar recursos
ou jogar qualquer coisa fora!
É motivo de preocupação que em países de baixa renda, como a Índia, a
educação profissionalizante ainda seja a menos procurada, considerada para alunos
atrasados não acadêmicos, mesmo diante do desespero de famílias da classe
trabalhadora, porque as escolas afastam seus filhos de suas próprias vocações e de
seus meios de subsistência. Com maior frequência, institutos ou politécnicas que
oferecem tais cursos não estão envolvidos com educação em termos criativos ou
acadêmicos, e são regulamentados pelo Departamento do Trabalho. No atual
discurso globalizante de habilidades cerebrais versus corporais, segundo o qual
habilidades criativas do século XXI são disputadas pelas escolas nos países
industrializados, quase justificando a terceirização de trabalhos de pouca
qualificação para países de baixa renda, há um desafio urgente de elaborar currículos
profissionalizantes autóctones com uma margem de alta competência inovadora e
acadêmica para a maioria. Além disso, como argumentam Brown, Lauder e Ashton
(livro prestes a ser publicado), o discurso dominante sobre educação e globalização
precisa ser desafiado, para mostrar que:
a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não são economias do conhecimento, nas quais o valor do
conhecimento continua a aumentar, mas são caracterizados por uma economia do conhecimento
que vem transformando o relacionamento entre educação, trabalho e recompensas (BROWN;
LAUDER; ASHTON, no prelo).

Há um provérbio no Zimbábue (BROCK-UTNE, 2002) que diz: “estórias de


caçadas serão estórias de glória até o dia em que os animais tiverem seus próprios
historiadores”. As estórias de nosso conhecimento civilizacional precisam ser contadas
por historiadores do conhecimento oral e autóctone, utilizando nossos idiomas, que
constituem o berço de nossa herança cognitiva e que explicitam nossas aspirações.
Reflexões sobre a Índia e a África 145

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49

OS DIREITOS HUMANOS E OS LIMITES


NA LIBERTAÇÃO DAS VOZES SUBALTERNAS
NA ÁFRICA DO SUL PÓS-APARTHEID

Nazir Carrim

O pós-colonialismo e a implementação dos direitos humanos na África do Sul


marcam a transição para uma sociedade pós-apartheid. A negação e a violação dos
direitos humanos, principalmente dos sul-africanos “negros”1 sob o regime do
apartheid colocou o provimento e a proteção dos direitos humanos em posição
central na definição de uma nova África do Sul pós-apartheid, o que é enfatizado
nas mudanças ocorridas na educação relativas a políticas e administração. O
Preâmbulo da Constituição da República da África do Sul diz o seguinte:
Nós, o povo da África do Sul,
Reconhecemos as injustiças do nosso passado;
Honramos aqueles que sofreram pela justiça e pela liberdade em nossa terra;
Respeitamos aqueles que trabalharam para construir e desenvolver nosso país; e
Acreditamos que a África do Sul pertence a todos os que nela vivem, unidos em nossa diversidade.
Assim sendo, por intermédio de nossos representantes livremente eleitos, adotamos esta
Constituição como a lei suprema da República, a fim de
Superar as divisões do passado e estabelecer uma sociedade baseada em valores democráticos,
justiça social e direitos humanos fundamentais;
Assentar as fundações para uma sociedade democrática e aberta, na qual o governo baseia-se na
vontade do povo e todo cidadão é igualmente protegido pela lei;
Melhorar a qualidade de vida de todos os cidadãos e liberar o potencial de cada pessoa; e
Construir uma África do Sul unida e democrática, capaz de assumir plenamente seu lugar como
um Estado soberano na família das nações.
Que Deus proteja o nosso povo.
Nkosi Sikelel’ iAfrica. Morena boloka stejhaba sa heso.
God seen Suid-Afrika. Que Deus abençoe a África do Sul.
Mudzimu fhatutshedza Afurika. Hosi Katekisa Afrika (SOUTH AFRICA, 1996a).

1. A palavra “negro” faz referência às pessoas que, durante o apartheid, eram classificadas como “de cor”,
“indígenas” e “africanas” na Lei de Registro da População. “Negro”, portanto, refere-se de maneira inclusiva
a todos esses sul-africanos que eram classificados racialmente. Ao longo de todo este capítulo, usei referências
à classificação racial das pessoas entre aspas, para sinalizar que são as classificações raciais do apartheid e, o
que é mais importante, para indicar que as classificações raciais são construções sociais das pessoas que eu
rejeito como descrições válidas, na África do Sul ou fora dela, sob o apartheid ou no momento presente. No
entanto, esses termos são usados neste capítulo a fim de facilitar a narrativa e por conveniência teórica.

147
148 Carrim

A Constituição indica explicitamente o contexto histórico do qual surgiu e os


meios pelos quais os problemas do passado devem ser abordados no
desenvolvimento futuro da democracia. Observa-se que substitui o que existia
durante o apartheid e empenha-se em sanar as divisões do passado. Para fazê-lo,
“reconhece as injustiças de nosso passado” e “honra aqueles que sofreram” e todos
os que contribuíram para construir e desenvolver a África do Sul. A Constituição
e as mudanças estabelecidas na educação na África do Sul para torná-la efetiva não
podem ser compreendidas fora do contexto histórico e do legado do apartheid. Seu
propósito é (re)considerar as injustiças e divisões do apartheid e “assentar as
fundações de uma sociedade democrática e aberta”, bases essas consideradas sem
legitimidade e reprimidas sob o apartheid (SOUTH AFRICA, 1996a).
O reconhecimento dos sul-africanos “negros” como cidadãos, com base na
igualdade de todos perante a lei, alterou a paisagem política e restaurou a dignidade
de todos os sul-africanos. Constituiu também a base que possibilitou aos “negros”
entrar no sistema político e serem membros do parlamento ou presidente do país.
A abolição oficial do apartheid, marcada pelas eleições de 27 de abril de 1994, não
tem somente importância nominal e simbólica: foi um evento decisivo para alterar
materialmente a posição dos sul-africanos negros no Estado. Graças a essa realização
histórica, a África do Sul voltou a fazer parte da comunidade das nações democráticas
do mundo. Portanto, o reconhecimento na lei e pela lei pode promover mudanças
materiais na vida das pessoas. E isso não pode ser subestimado ou destruído.
No entanto, minha intenção neste capítulo é focalizar até que ponto esse
reconhecimento dos direitos humanos de todos os sul-africanos, na lei e pela lei,
permite a liberação das vozes dos subalternos. Na primeira seção, parto de alguns
preceitos do trabalho de Gayatri Spivak e Walter D. Mignolo para delinear os
modos como uso a teorização pós-colonial. Minha preocupação é explorar o grau
de realização dos direitos humanos e da democracia na África do Sul pós-apartheid.
No entanto, esse aspecto está relacionado com a modernidade e, assim, limita o
nível de liberação das vozes subalternas. Na segunda parte, exponho algumas das
limitações do discurso dos direitos humanos, e mostro que, apesar dessas limitações,
esse discurso teve – e ainda tem – papel importante na resistência ao apartheid e
nas maneiras como os sul-africanos podem defender-se de violações dos direitos
humanos. Recorro a dados empíricos que documentam experiências de alunos nas
escolas com respeito à orientação sexual.
Meu propósito básico ao focalizar a orientação sexual deve-se ao fato de que a
nova Constituição sul-africana reconhece a orientação sexual como um direito
humano, sendo uma das poucas constituições no mundo a fazê-lo. O artigo 9º da
Declaração dos Direitos estabelece:
O Estado não pode discriminar pessoa alguma, direta ou indiretamente, com base em qualquer
razão, incluindo raça, gênero, gravidez, estado civil, origem étnica ou social, orientação sexual, idade,
deficiência, religião, consciência, crença, cultura, idioma e nascimento (SOUTH AFRICA, 1996b).
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 149

Em 2006, a África do Sul aprovou leis que reconhecem a união civil entre pessoas
do mesmo sexo, tornando-se um dos poucos países no mundo a fazê-lo, na medida
em que a tendência é não mencionar a orientação sexual na maioria dos contextos.
Os homossexuais de ambos os gêneros ocupam espaços marginalizados em
praticamente todas as sociedades fortemente dominadas pela heterossexualidade.
Observar a orientação sexual fornece um modo útil para avaliar até que ponto a
provisão dos direitos humanos na África do Sul pós-apartheid se estende às pessoas
marginalizadas dessa ordem heterossexual hegemônica. Neste capítulo, trago à tona
algumas das implicações dos direitos humanos para a educação, a construção de
uma África do Sul pós-apartheid, a imaginação pós-colonial e a subalternidade.

O subalterno pode falar?


No ensaio “O subalterno pode falar?”, cujo título esta seção toma emprestado,
Gayatri Spivak (1993) analisa as ideias hegemônicas sobre aspectos da condição
subalterna. O ensaio é uma análise bastante complexa e sofisticada das maneiras
como o Ocidente se constrói como o “sujeito” e como “outros” são construídos e
posicionados como “sujeitos” do Ocidente. Nesse ensaio, Spivak conversa com
Deleuze e Foucault, e inclui diversas referências a Marx, Guattari, Gramsci e,
particularmente, a Edward Said, antes de servir-se de Derrida em sua instigante
desconstrução da prática do sati ou suttee – ou seja, o costume de autoimolação
das viúvas indianas na pira funerária de seus maridos.
Spivak argumenta que dar voz aos subalternos – expressão que utiliza para
designar os povos colonizados – não pode significar simplesmente liberar suas vozes,
de modo que possam falar por eles mesmos. A autora vê essa situação como uma
tendência – encontrada em alguns tipos de estudos sobre subalternos publicados
nos Estados Unidos – a ignorar as restrições e condições macrológicas que situam
as pessoas em suas posições. Tais estudos micrológicos, alega, focalizam experiências
pessoais de maneira individualista e fora de contexto, ignorando as matrizes de
poder mais amplas que constroem nossos mundos nos planos social, econômico e
político, e que têm dimensões globais e históricas. Estudos micrológicos que não
projetam essas experiências pessoais, vinculando-as a forças socioeconômicas,
políticas e históricas mais amplas, podem proporcionar somente relatos parciais.
Para Spivak, deve existir uma articulação (HALL, 1996) entre o micrológico e o
macrológico – isto é, estudos que focalizam o poder social, econômico e político
dentro de contextos globais e históricos. As análises devem considerar não somente
as questões relativas à posição e às experiências dos subalternos, mas também aos
fenômenos sociais em geral.
Ao perguntar “o subalterno pode falar?”, Spivak esforça-se para mostrar que as
próprias bases dos sistemas de conhecimento e posições do sujeito precisam ser
reconfiguradas. Ao examinar se a mulher indiana, na condição de subalterna, pode
falar, por intermédio das experiências de sati, Spivak mostra que a mulher indiana
150 Carrim

precisa, primeiramente, ser desconstruída. Precisa ser vista como um sujeito em


relação aos conceitos legitimados e dominantes do Ocidente imperialista e
imperializante. Também não deve ser vista como o outro assimilado em estruturas
colonizadoras. Assim sendo, deve ser vista em seus próprios termos. A
desconstrução que Spivak faz da mulher indiana e da sati2 envolve um exame dos
termos hinduístas e de antigos textos sagrados da Índia, que revelam que a mulher
permanece subordinada ao homem indiano, e essa subordinação é inscrita em seu
corpo, particularmente em sua genitália. Spivak conclui que, apesar da
desconstrução, a subalterna continua sem poder falar. Não pode falar usando a
gramática ocidental, não pode falar do chauvinismo do homem hindu, não pode
falar das escrituras dos piedosos brâmanes, e não pode falar dos céus. Não até que
se desconecte de seu corpo feminino, se destrua e deixe de ser uma mulher. Em
outras palavras, ela somente pode falar e ser ouvida por meio da aniquilação total
de si mesma como mulher. Enquanto for mulher e subalterna, não pode falar.
A análise de Spivak sobre a subalternidade aponta dois fatores significativos que
têm importância crucial para uma análise da África do Sul pós-colonial e pós-
apartheid. Em primeiro lugar, Spivak nos possibilita ver que as vozes dos subalternos
só podem ser ouvidas uma vez que ele ou ela tenha sido assimilado como o sujeito
do Ocidente. No entanto, isso significa falar “com a voz do Mestre”. Para a África
do Sul, isso implica que o estabelecimento dos direitos humanos na nova África
do Sul, por intermédio das disposições constitucionais vigentes, está conectado ao
que o Ocidente pode ouvir. Fala-se da nova África do Sul na língua e na gramática
do Ocidente. Spivak alerta-nos para o fato de que, ainda que a pessoa exponha
sistemas de conhecimento autóctones, isso não significa necessariamente que as
vozes do subalterno possam ser ou venham a ser liberadas.
Ao comentar o dilema do subalterno, Walter Mignolo (2000) faz referência ao
pensamento fronteiriço, ou outro pensamento, e a uma dupla crítica, que
caracterizam as análises da subalternidade. Indica alguns dos pontos de tensão
encontrados nas formas de pensamento pós-coloniais (e pós-modernas) e os desafios
que enfrentam. Para Mignolo, “o pensamento fronteiriço estrutura-se sobre uma
dupla consciência, uma dupla crítica que funciona sobre o imaginário do sistema
mundial moderno/colonial, ou modernidade/colonialismo” (MIGNOLO, 2000).
Assim, a razão subalterna é capaz de:
[...] abrir o contramoderno como um espaço de contenção a partir do início mesmo da expansão
ocidental, possibilitando a contestação do espaço intelectual da modernidade e a inscrição de
uma ordem mundial na qual o Ocidente e o Oriente, o Mesmo e o Outro, os Civilizados e os
Bárbaros foram inscritos como entidades naturais (MIGNOLO, 2000, p. 96).

2. NRTT: Sati é um antigo costume entre algumas comunidades hindus, hoje estritamente proibido por lei.
Esse costume obrigava (no sentido moral) a esposa viúva a se sacrificar viva na fogueira da pira funerária de
seu marido morto. Atualmente, o termo pode ser usado para referir-se à viúva ou é às vezes interpretado
como mulher honesta.
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 151

Consequentemente, o argumento de Mignolo é que a condição subalterna não


é fixa, mas está sempre em estado de fluxo, e carrega o potencial das ideias contra-
hegemônicas. Mas esse potencial será sempre restringido pelas condições globais.
O pensamento fronteiriço, ou dupla crítica, é similar às formas de análise
macrológica e micrológica de Spivak, e é também uma elaboração delas. A dupla
crítica e o pensamento fronteiriço têm a ver com a compreensão das experiências
pessoais e com a sua desconstrução quanto à posição que ocupam dentro da
modernidade e do espaço intelectual ocidental. Permite, a um só tempo, que as
estórias dos subalternos sejam contadas com suas próprias vozes, e não como
inscrições dos sujeitos do Ocidente. Para ampliar ainda mais essa questão, convém
considerar o seguinte, com relação à categoria de raça: as pessoas podem ser
classificadas como “negras”. Isso não significa que de fato sejam geneticamente ou
historicamente “negras”. Seguindo o pensamento fronteiriço e uma dupla crítica,
é preciso entender os modos como a categoria raça – e todas as suas significações
– constituem o imaginário moderno/colonial, e investigar as experiências das
pessoas categorizadas como “negras” em seus próprios termos e em suas próprias
vozes. No entanto, é preciso entender também que, uma vez liberadas, as próprias
vozes das pessoas “negras” talvez não sejam necessariamente contramodernas, uma
vez que também podem ser informadas e construídas no interior de construções
ideológicas de outras matrizes de poder que não necessariamente liberariam as vozes
dos subalternos, mas, na realidade, rearticulariam essas vozes nos termos de outra
construção hegemônica.
Ao empregar esse tipo de dupla crítica, com uma dupla consciência, uma análise
do pensamento fronteiriço da África do Sul pós-apartheid precisa questionar até que
ponto e de que maneira ela é conivente com a modernidade e a ordem mundial.
Seria fácil demais empregar aquilo que Spivak denomina análise micrológica, e
celebrar a conquista da democracia e dos direitos humanos na abolição do apartheid
na África do Sul; e, com isso, ignorar as interconexões macrológicas entre esse
processo e os sistemas globais de economia política e conhecimento.
Por que a África do Sul pós-apartheid foi tão bem recebida pelo sujeito do
Ocidente? Baseando-se em Chakrabarty, Mignolo afirma: “só é possível articular
posições subalternas de sujeito em nome da história – o discurso que tem a Europa
como soberana, sujeito teórico de todas as histórias” (MIGNOLO, 2000, p. 203).
Em vários sentidos, isso registra algumas das razões pelas quais a implementação
da democracia na África do Sul pós-apartheid foi bem recebida pelo Ocidente e pela
Europa. A abolição do apartheid era um evento necessário para a globalização da
democracia e para o estabelecimento de uma cultura dos direitos humanos entre os
colonizados. Muitos também chamaram a atenção para o fato de que essas são as
condições ideológicas para uma economia política global, que requer o
desenvolvimento da modernidade nos países colonizados (CASTELLS, 2001;
ZIZEK, 2005). O apartheid estava em desacordo com a trajetória do capitalismo
152 Carrim

global, e sua estrutura não comportava um projeto socioeconômico e político


modernista (WOLPE, 1986). A África do Sul pós-colonial e pós-apartheid é um
projeto modernista, e é exatamente por essa razão que Derrida, por exemplo, vê
Mandela como o “último dos profetas modernistas” (DERRIDA, 1986). A África
do Sul pós-apartheid foi aplaudida pelo Ocidente e pela Europa. Politicamente, isso
é demonstrado pelo fato de a África do Sul agora (a partir de outubro de 2006) gozar
do status de membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Culturalmente, o status da África do Sul pós-apartheid é evidente em exemplos como
a escolha desse país para sediar a Copa do Mundo de Futebol de 2010, o Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro (“Tsotsi”) e um prêmio Grammy para o Soweto Gospel
Choir. Assim, nos níveis econômico, político e cultural globais, uma África do Sul
pós-apartheid e pós-colonial está muito à vontade como sujeito do Ocidente.
A seguir, sirvo-me dessa estrutura fornecida por Spivak e Mignolo para mostrar
que na África do Sul, nas condições atuais, as vozes subalternas que falam dos
ambientes da educação são, ao mesmo tempo, ativadas e restringidas. Prosseguindo
nesse argumento, mostro que o discurso dos direitos humanos é contraditório, mas
essa contradição não é de modo algum negativa. É constitutiva e construtiva, porém
limitadora e limitada. Meu propósito nessa argumentação é demonstrar que,
embora seja possível afirmar que as vozes subalternas foram liberadas no momento
pós-apartheid e pós-colonial, o subalterno, de fato, ainda não pode falar. As
expressões subalternas estão sendo rearticuladas no imaginário do Ocidente, e
projetadas, posicionadas e recebidas em nome do Ocidente. Entro nessa questão
pela via de uma discussão sobre a estrutura dos direitos humanos na África do Sul
e as maneiras como gays e lésbicas exprimem em suas próprias vozes o direito à
orientação sexual e à educação na nova administração da África do Sul.

Usando os direitos humanos para


alcançar a democracia na África do Sul
A um só tempo, o discurso dos direitos humanos concede poderes e limita.
Concede poderes porque dá igualdade formal a todas as pessoas do mundo. Mas
limita pela sua origem e sua estrutura discursiva. São muitas as críticas do discurso
dos direitos humanos, abrangendo desde as primeiras críticas de Marx e Bentham
com relação à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão até críticas à
Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), que
levaram à adoção da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981).
Minha intenção não é examinar as críticas feitas ao discurso dos direitos humanos,
mas assinalar alguns dos pontos principais dessas críticas, a fim de demonstrar que
o discurso dos direitos humanos não está livre de dificuldades, e requer um
tratamento crítico. No entanto, como já foi dito, pretendo também demonstrar
que, ao mesmo tempo, o discurso dos direitos humanos proporciona as condições
que permitem combater as formas de opressão.
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 153

O discurso dos direitos humanos ganhou notoriedade internacional com a


proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pelas Nações Unidas,
em 1948. Anteriormente, a questão já havia sido manifestada na Declaração de
Independência Americana (EUA) de julho de 1776, na Declaração de Direitos da
Virgínia (EUA) de junho de 1776, e na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, durante a Revolução Francesa (OSLER; STARKEY, 1996;
TOURAINE, 1997; WESTON, 2002). Esse discurso foi criticado por reconhecer
mal e não reconhecer (TAYLOR, 1994) as particularidades dos povos africanos e
de outros povos colonizados no mundo. Ao falar em reconhecer mal, Taylor refere-
se a um posicionamento aviltante, opressor e inferiorizado do outro por um sujeito
dominante e dominador. Não reconhecer implica uma ignorância e uma negação
quase totais da presença do outro, como se “eles” nem sequer estivessem lá.
Existe no imaginário do sistema mundial moderno a ideia de que a questão colonial desapareceu
com a declaração dos “direitos do homem e do cidadão”; consequentemente, o conceito de
homem e de cidadão universalizou um problema regional e apagou a questão colonial
(MIGNOLO, 2000, p. 62).

O comentário de Mignolo reproduzido acima levanta um aspecto crítico


importante para a África e, em particular, para a África do Sul. O apagamento
da questão colonial no estabelecimento e nas origens dos direitos humanos é mais
evidente quando se considera que os franceses continuaram a colonizar outros
países no continente africano mesmo após a proclamação da Declaração dos
Direitos Humanos e do Cidadão francesa, em 1789. Quando foi estabelecida a
Declaração dos Direitos da Virgínia (EUA), em junho de 1776, os índios norte-
americanos estavam perdendo suas terras para que os Estados Unidos se
consolidassem (SQUADRITO, 2002; GOLDBERG, 2002). O apagamento da
questão colonial na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações
Unidas é ainda mais radical na experiência do apartheid na África do Sul. A
Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas foi promulgada
em 1948, ano em que o regime do apartheid dos partidários racistas da
supremacia branca estabeleceu-se na África do Sul. Assim, enquanto a Europa e
o Ocidente anunciavam a importância dos direitos humanos e os projetavam
como se fossem universais, em países colonizados, como a África do Sul, os
direitos humanos estavam, na verdade, sendo violados, consolidando-se
condições desumanas e degradantes. Esse processo foi ativamente apoiado pelos
governos dos países que, ao mesmo tempo, proclamavam os direitos humanos
como um padrão para todos os povos do mundo. Derrida faz a seguinte
observação a esse respeito:
Não se deve esquecer que, embora a segregação racial não tivesse esperado que o nome apartheid
viesse junto, esse nome somente tornou-se a palavra de ordem e ganhou o seu título no código
político da África do Sul no final da Segunda Guerra Mundial. Em um momento em que eram
condenadas todas as formas de racismo sobre a face da Terra, foi exatamente diante da face do
154 Carrim

mundo que o Partido Nacional atreveu-se a fazer campanha ‘para o desenvolvimento separado
de cada raça na zona geográfica a ela atribuída’ (DERRIDA, 1986, p. 330-331).

Enquanto o discurso dos direitos humanos era projetado como universal pelo
Ocidente, países do continente africano continuavam sob o jugo do colonialismo,
que implicou violações flagrantes dos direitos humanos por parte dos povos
ocidentais. Essas são algumas das razões que deram impulso para o estabelecimento
da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, adotada pela Organização
da Unidade Africana (atual União Africana) em 1981. Essa Carta entrou em vigor
em 1986 (WESTON, 2002).
Na África, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas
foi vista por muitos como um documento ocidental e europeu. Foi estruturada
tendo em mente um contexto europeu e ocidental, e reconhecia em sua história
inicial os povos ocidentais e europeus, suas visões e experiências. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos parece não reconhecer a África e as experiências
africanas. Aparentemente, silencia sobre os diferenciais de poder econômico,
político e sociocultural que constituem o colonialismo. Os sistemas de
conhecimento legitimados são os do Ocidente. As visões do mundo colonizado
não são articuladas. Os povos colonizados e subjugados são invisíveis e, portanto,
inferiores. Fica implícito que os países colonizados estão disponíveis ao
imperialismo, e que suas riquezas podem ser extraídas pelo Ocidente.
Como tal, a pretensão ao universalismo na Declaração Universal dos Direitos
Humanos é decididamente monológica (TAYLOR, 1994). Nos termos de Taylor,
monólogos são conversas que alguém tem consigo mesmo e/ou com outros que
são seus semelhantes. Os colonizadores conversavam sobre o colonizado entre eles
mesmos, e de forma alguma em um diálogo com o colonizado. Para Taylor, tais
monólogos baseiam-se fundamentalmente em reconhecer mal o outro. Trata-se
de reconhecer mal porque a imagem do outro é construída por si mesmo, com
seus próprios termos, de modo que possa se considerar melhor do que o outro e
superior a ele; desse modo, o outro é inferiorizado e passa a ser subalterno, para
justificar ideologicamente e consolidar o projeto do colonialismo. Dessa
perspectiva, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não fala com as
experiências do outro colonizado, e por isso, nos termos de Mignolo, apaga a
questão colonial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos era, em seus
próprios termos, uma reação às atrocidades vividas durante a Segunda Guerra
Mundial no Ocidente e na Europa. Essa reação desejada foi forjada como sendo
universal, embora resultasse de um grupo específico de diplomatas e dos países
que eles representavam.
Os debates sobre o alcance da aplicação dos direitos humanos no continente
africano trataram de três temas. Primeiro, as condições na África, caracterizadas
por pobreza extrema, doenças e subdesenvolvimento – todas elas consideradas
consequência do colonialismo –, indicam que os direitos humanos na África devem
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 155

enfatizar questões de desenvolvimento, a fim de erradicar a pobreza e as doenças,


e não os direitos civis e políticos individuais (AMBROSE, 1995). Segundo, devido
ao colonialismo, os direitos humanos na África estão associados de maneira
centralizada ao desenvolvimento de nações independentes, o que requer muito
mais intervenção do Estado do que geralmente se considera aceitável na Europa e
na América do Norte (NANDA et al., 1981). Terceiro, as culturas africanas nativas
não se ajustam impecavelmente ao paradigma dos direitos humanos, e
frequentemente a eles se opõem – quando não os violam (ABDULLAH, 2000).
Essas críticas apontam para a necessidade de reconhecer as especificidades das
condições e das culturas do continente e do seu povo. Sugerem implicitamente –
e às vezes, explicitamente – que não se pode aceitar sem crítica a ideia de que o
universalismo da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece as
condições e os modos de ser dos africanos. Na verdade, os argumentos dessas
críticas mostram que o universalismo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos não é significativamente inclusivo para as realidades africanas, e precisa
ser ajustado à vida e aos contextos africanos.
Além de reconhecer equivocadamente e de não reconhecer o povo africano e
suas realidades, a Declaração Universal dos Direitos Humanos também foi criticada
pelo seu silêncio sobre o que vivem as mulheres (MacKINNON, 1993).
Observando especificamente as experiências das mulheres durante a guerra na ex-
Iugoslávia, MacKinnon mostra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos
não somente ignorou a violação de mulheres e de seus direitos durante essa guerra,
mas também que o discurso dos direitos humanos estrutura-se na imagem das
realidades e experiências dos homens, e a eles é dirigido. Esse aspecto denota um
caráter decididamente machista. Assim, com relação a raça, gênero e classe, não se
pode assumir que o discurso dos direitos humanos possibilite que as pessoas se
oponham às formas de dominação às quais estão sujeitas.
Diante dessa discussão, fica claro que um tratamento puramente legalístico dos
direitos humanos no currículo escolar na África do Sul seria tanto inadequado
como insuficiente. Um tratamento legalístico dos direitos humanos simplesmente
tornaria os alunos conscientes daquilo que as leis estabelecem e ocultaria as cláusulas
ligadas a direitos humanos existentes na Constituição Sul-Africana, na Declaração
Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e em outros documentos sobre
direitos humanos similares. No entanto, como a discussão acima deixa claro, os
direitos humanos são contestados e contestáveis, o que implica que não podem ser
tratados como se fossem verdades definitivas e abstratas. Simplesmente ensinar a
lei, por assim dizer, seria inadequado para apreender as contestações que marcaram
os desenvolvimentos do discurso dos direitos humanos. Um tratamento legalístico
dos direitos humanos, por si só, não descreveria quais são as implicações específicas
dessas cláusulas nos contextos particulares da vida das pessoas. Assim, para ensinar
direitos humanos na educação, é preciso explorar a natureza contestada e
156 Carrim

contestável dos direitos humanos, e comprometer-se com suas implicações na vida


real das pessoas. Caso contrário, serão simplesmente abstrações que discutem as
condições de existência das pessoas.
O discurso dos direitos humanos desempenhou um papel importante na
resistência ao apartheid e no estabelecimento da democracia na África do Sul.
Muitos argumentaram que, ao fornecer uma base de oposição às imposições
monológicas e às desigualdades do colonialismo, as reivindicações de direitos
humanos e de igualdade para todas as pessoas desempenharam um papel
importante nas lutas anticoloniais. Em 1998, ano do 50o aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos da Nações Unidas, o juiz constitucional sul-
africano Albie Sachs declarou:
Vinte anos [depois da Proclamação da Declaração Universal], estou no exílio […] Sirvo-me do
texto da Declaração para provar que meu país é o pior do mundo […] Percorro os Artigos um a
um, e mostro como a lei e as políticas na África do Sul violam todos eles (SACHS, 1998).

Sachs, como muitos militantes anti-apartheid, usou a Declaração Universal dos


Direitos Humanos para mostrar o quanto o apartheid era injusto e violava de
maneira flagrante os direitos humanos. Mandela (1964), em um tribunal do
apartheid, opôs-se ao racismo como uma violação dos direitos humanos, usando a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foram estas suas palavras:
Como queira Vossa Excelência. Eu estava considerando que um poder judiciário inteiramente
controlado por brancos, que aplica leis aprovadas por um parlamento branco, no qual não temos
representação – leis essas que, na maioria dos casos, são aprovadas diante de uma oposição
unânime dos africanos –, não pode ser considerado um tribunal imparcial em um julgamento
político em que um africano comparece como acusado.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos determina que todos os homens


são iguais perante a lei, e têm direito a igual proteção da lei, sem nenhum tipo de
discriminação. Em maio de 1951, o dr. D. F. Malan, então primeiro-ministro, disse
ao parlamento da União que essa cláusula da Declaração aplica-se neste país. No
entanto, a verdade é que não existe, de fato, igualdade perante a lei no que diz respeito
ao nosso povo, e as afirmações em contrário são definitivamente incorretas e enganosas.
É verdade que um africano acusado em uma corte de justiça goza, em aparência, dos mesmos
direitos e privilégios que um acusado branco no que diz respeito à condução deste julgamento.
Ele é governado pelas mesmas regras de processo e provas que se aplicam a um acusado branco.
Mas seria totalmente incorreto concluir a partir desse fato que, consequentemente, um africano
goza de igualdade perante a lei.

No seu sentido próprio, igualdade perante a lei significa o direito de participar


na elaboração das leis que nos governam, uma constituição que garanta os direitos
democráticos a todos os segmentos da população, o direito de abordar a corte para
encontrar proteção ou assistência no caso de violação dos direitos garantidos pela
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 157

Constituição, e o direito de fazer parte da administração da justiça como juízes,


magistrados, procuradores gerais, conselheiros legais e outras funções similares.
Na ausência desses meios de proteção, a frase ‘igualdade perante a lei’, no que nos diz respeito, é
desprovida de sentido e enganosa. Todos os direitos e privilégios aos quais me referi são
monopolizados pelos brancos, e nós não gozamos de nenhum deles. [...] O homem branco faz
todas as leis, arrasta-nos diante de seus tribunais e nos acusa, e atua no julgamento acima de nós.
[…] Sinto-me oprimido pelo clima de dominação branca que espreita por toda parte nesta sala de
audiência. De certo modo, esse clima recorda as injustiças desumanas causadas ao meu povo fora
dessa sala de audiência por esta mesma dominação branca (MANDELA, 1962, linhas 40-63).

Nas palavras acima reside a distinção típica de Mandela – seu confronto à lei,
com a lei, sobre a lei. Apesar de tudo, a ironia e o paradoxo presentes nesse
confronto não passam despercebidos por Mandela. De fato, sua exigência de que
a lei reconheça a ele mesmo, aos advogados, ao povo “negro” e à justiça chama a
nossa atenção para um marco legal que era decididamente racista. Assim como
MacKinnon (1993) apontou o machismo do marco dos direitos humanos,
Mandela apontou seu marco racista, quando aplicado na África do Sul sem que
as condições da maioria da população fossem reconhecidas. Como colocou
Mandela, os “brancos” são parte interessada, e a lei foi criada para servir a seus
interesses. Assim sendo, observa-se aqui, o reconhecimento dos “brancos” pela lei
e na lei e o não reconhecimento e reconhecimento equivocado das pessoas “negras”
pela lei e na lei. A presença e as declarações de Mandela nos tribunais
demonstraram esse fato de forma vigorosa. Mandela conseguiu fazê-lo recorrendo
ao discurso dos direitos humanos, baseando-se nele para expressar as ideias sobre
as quais os sistemas de justiça deveriam estar baseados. No trecho acima, refere-
se diretamente à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas.
Com isso, forçou o reconhecimento de sua ausência na lei pela sua presença
perante a lei.
Esse efeito do discurso dos direitos humanos como fator que possibilita que as
pessoas se defendam parece persistir na África do Sul pós-apartheid, e é evidenciado
na maneira como alguns jovens estudantes homossexuais negociaram seus pontos
de vista na escola. Isso é comprovado em um estudo que examinou a compreensão
e as experiências de direitos humanos, democracia e cidadania entre estudantes da
nona série e professores em escolas nas províncias de Cabo Ocidental, Gauteng e
KwaZulu-Natal.3 Dion (nome fictício) é um estudante homossexual em uma escola
do Cabo Ocidental. Em uma segunda-feira de manhã, Dion chegou à escola com
os cabelos tingidos de um tom forte de laranja, e circulou dizendo: “eu não tenho
mais medo. Eu sou o que sou e tenho orgulho disso”. Dion revelou-se. Seu cabelo
laranja simbolizava que ele não se desculpava por ser homossexual, o que aparece
explicitamente na transcrição da entrevista:

3. Este estudo foi realizado entre 1996 e 2000, e fazia parte de um estudo mais amplo (CARRIM, 2006).
158 Carrim

Eu: Conte-me sobre o cabelo laranja.


Dion: Eu simplesmente não aguentava mais, e eu disse: estou cansado de ter
medo o tempo todo, e eu vou ser eu mesmo, aconteça o que acontecer.
Eu: Do que você tinha medo?
Dion: Como você sabe, a nossa escola é cheia de gangues, e eles sempre
ameaçam me violentar, e me insultam, riem de mim, e, “meu Deus”, me
atormentam o tempo todo. Eu fiquei doente e cansado disso, e então eu
disse para mim mesmo: quanto tempo eu ainda vou ter que andar com
medo? Então eu decidi tingir o meu cabelo de laranja para mostrar para
eles que eu não tenho medo e que eu tenho orgulho de ser gay e de ser
quem eu sou. Eu cheguei para ficar.
Eu: Como eles reagiram?
Dion: Agora eles pensam que eu sou só maluco, sabe, meio doido. Mas eles
entenderam a mensagem. Eu disse para aquele cara, o chefão da gangue,
que eu cheguei para ficar e que é melhor ele se acostumar; eu tenho meus
direitos, e ele só ficou olhando para mim, completamente espantado.
Ooo [risos]. Eu adorei.
Eu: Então o assédio acabou?
Dion: Sim, mas eles ainda fazem comentários; mas não é mais tão ruim como
antes, porque eles sabem que agora eu vou me defender e que eu não
vou mais aceitar que eles façam algo contra mim.

Dion faz referência aos direitos que ele curte e agora utiliza para afirmar sua
identidade e sua presença.

Tulani (nome fictício), outro estudante homossexual, estuda em uma escola de


Gauteng e baseou-se nas ideias sobre direitos humanos para discutir como era tratado.

Eu: Você sofre algum tipo de discriminação na cidade, agora?


Tulani: Na verdade, não, mas eu me revelei e não vou suportar [discriminação].
Eu: O que você faria?
Tulani: Agora eu tenho os meus direitos, eles não podem mais fazer o que quiserem,
como antes. Agora eu posso levá-los à polícia e eles estão assustados.
Eu: Você faria isso? Levá-los para a polícia?
Tulani: Claro, eu tenho os meus direitos, eu sou como eles, e se eles me fizerem
alguma coisa realmente ruim eu os levarei à polícia.
Eu: Você já denunciou alguém para a polícia?
Tulani: Não.
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 159

Tulani refere-se explicitamente aos seus direitos de defesa, e considera os


instrumentos da lei – a polícia – como presentes agora para a proteção dos seus
direitos. Para ele, esses direitos estabelecem a igualdade entre ele e os outros – “eu
sou como eles”. Ele também vê isso como algo diferente do passado. O aumento
percebido da aceitação entre os membros da comunidade também deve ser visto à
luz da maior confiança e assertividade por parte de Tulani, assim como da existência
de provisões formais de igualdade que reconhecem a orientação sexual como um
direito humano, direito ao qual Tulani e Dion se referem.
Para Dion e Tulani, o discurso dos direitos humanos, como é formalmente
consagrado na nova Constituição sul-africana, parece dar-lhes a possibilidade de
afirmar positivamente suas identidades e defender-se, como iguais aos demais.
Escolhi deliberadamente concentrar-me em Dion e Tulani porque, como estudantes
homossexuais, eles representam um setor marginalizado pela sociedade, e
geralmente invisível. No entanto, em seus espaços marginalizados, o discurso dos
direitos humanos, que nesse caso reconhece explicitamente seus direitos de escolher
a orientação sexual, parece ter um efeito direto positivo no modo como eles se veem
e na afirmação dos seus direitos face aos outros.
Embora deva ser tratado de forma crítica, com consciência dos constructos
ocidental e europeu em sua história, o discurso dos direitos humanos desempenhou
um papel importante na resistência ao apartheid, e continua a ter efeitos positivos
nas situações pós-apartheid, como mostram os exemplos acima. Essa realidade tem
implicações diretas na educação em muitos países. Embora o ensino do discurso
dos direitos humanos exija tratamento crítico, e ainda que seja necessário ocupar-
se de maneira explícita de sua natureza contestável, isso não quer dizer que os
professores não devam assegurar-se de que os alunos entendam a lei e seus direitos
humanos. As pessoas precisam saber o que são direitos humanos. Precisam conhecer
o que está contido na Constituição e nas leis dos países, e quais são os instrumentos
internacionais dos direitos humanos. Tudo isso continua sendo conhecimento
necessário (OSLER; STARKEY, 1996). Os direitos não existem fora das leis, e as
pessoas devem conhecer essas leis para conhecer seus direitos.
No entanto, entendo que a compreensão jurídica dos direitos humanos,
embora necessária, não é suficiente. Para que os direitos humanos tenham sentido
em um vasto conjunto de experiências humanas que abrangem processos
poderosos, silenciosos, é preciso garantir também que esses contextos sejam
reconhecidos no ensino dos direitos humanos. A educação em direitos humanos
deve falar às experiências próprias das pessoas, na forma de articulação das
linguagens macrológica e micrológica sugerida por Spivak, ou a dupla crítica de
Mignolo. Essa abordagem da educação em direitos humanos tem enorme
potencial. Portanto, poderia:
1. Proporcionar aos estudantes o conhecimento necessário dos direitos humanos
em termos jurídicos;
160 Carrim

2. Apresentar aos estudantes o desenvolvimento histórico do discurso dos


direitos humanos;
3. Munir os estudantes de uma compreensão das maneiras como os direitos
humanos foram e são discutidos;
4. Possibilitar aos estudantes o acesso a diferentes modos de estabelecer o marco
do discurso dos direitos humanos, em vez de tratá-lo como se fosse algo
predeterminado e natural;
5. Considerar uma exploração do significado dos direitos humanos no contexto
da própria vida das pessoas, possibilitando assim que a educação em direitos
humanos fale com as próprias experiências das pessoas.
Contudo, o discurso dos direitos humanos na África do Sul está inextricavelmente
ligado ao projeto de modernidade que a formação pós-apartheid estabelece com sua
consolidação da democracia na África do Sul. As possibilidades de libertação das vozes
subalternas em um projeto modernista como esse não podem ser consideradas fato
consumado. A abolição do apartheid e a provisão referente à orientação sexual em
termos de direitos humanos na nova Constituição sul-africana expressam a
assimilação da África do Sul dentro do sujeito do Ocidente e da Europa, e não uma
oposição. Mas, como assinala Mignolo, não se trata de um exemplo único. Ao explicar
as diferenças entre subalternidade exterior e subalternidade interior, o autor afirma:
Essa diferença permite entender que as diferenças de gênero, etnia e sexuais podem ser absorvidas
pelo sistema e situadas na esfera da subalternidade interior. Isso se vê hoje nos Estados Unidos,
à medida que afro-americanos, mulheres, hispânicos e homossexuais (embora com diferenças
significativas entre esses grupos) passam a ser aceitos no sistema como lo otoro, como
complemento da totalidade controlada pelos próprios (MIGNOLO, 2000, p. 176).

Assim, como de fato ocorre nesse caso, a África do Sul sustenta sua
subalternidade exterior argumentando que sua presença no Conselho de Segurança
da ONU e o fato de sediar a Copa do Mundo de Futebol são para o [bem do]
continente africano. No entanto, nessa assimilação à ordem política e econômica
global, o país expõe sua subalternidade interior, à medida que é aceito no sistema
como lo otoro, como complemento da totalidade controlada por eles.
No caso do reconhecimento da orientação sexual como um direito humano, a
aprovação da Lei da União Civil mostra características importantes de subalternidade
interior. Nos debates e discussões públicas sobre a aprovação da Lei da União Civil,
ficou claro que, embora a Constituição sul-africana reconheça a orientação sexual
como um direito humano, isso não implica necessariamente que os homossexuais
possam ser considerados casados. Ficou claro que o casamento continua enquadrado
de acordo com as concepções tradicionais de casamento como uma união
heterossexual entre um homem e uma mulher, apoiado em um reconhecimento
divino dessa união ordenada por Deus, o que inclui tanto as religiões dominantes
como os sistemas de crenças indígenas. Sendo assim, as parcerias entre pessoas do
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 161

mesmo sexo podem ser consideradas uniões civis, mas não casamentos, o que
provocou grande descontentamento na comunidade homossexual na África do Sul
(“Exit”, outubro de 2006). Tal como no caso das sati observadas por Spivak, os
homossexuais só podem ser reconhecidos à medida que podem ser assimilados na
estrutura da modernidade, e tal estrutura continua sendo heterossexista. Nesse caso,
sua estrutura discursiva combina com o conhecimento indígena e as religiões
dominantes. Nesse sentido, embora gozem de um status considerável em termos
políticos, econômicos e sociais na África do Sul pós-apartheid e pós-colonial, os
homossexuais continuam subalternizados e, nos sistemas de conhecimento nativos
e tradicionais, não podem falar perante Deus; e só têm assegurado seu direito de
existir e falar, na hegemonia modernista, como lo otoro.
No entanto, essa situação é extremamente complexa. O governo sul-africano
argumenta que o desenvolvimento da modernidade na África do Sul e na África
em geral é uma condição necessária para desafiar de maneira eficaz a hegemonia
global. Sustenta também que sua presença dentro do sujeito do Ocidente é
necessária para conseguir colocar as vozes dos subalternos aos pés do poder, e
redefinir a ordem mundial. Nesse sentido, seria possível argumentar que tornar-se
lo otoro pode ser uma necessidade estratégica, e não necessariamente uma
assimilação dentro do Ocidente. Mas esses argumentos tendem a subestimar o
poder das forças que operam na economia política global, e partem do pressuposto
de que o simples fato de colocar o subalterno na agenda global permitiria
reconfigurar as matrizes do poder. É importante lembrar que, como explicou
Mignolo, citando Das, o subalterno não é uma categoria, mas uma perspectiva; e
que a perspectiva subalterna não procura entender essa ou aquela organização social
ou ação social em si mesmas, e sim entender suas relações contratuais sob as regras
coloniais e as “formas de dominação que pertencem às estruturas da modernidade”
(MIGNOLO, 2000, p. 188).
Não estou sugerindo aqui que o papel da África do Sul e sua presença na cena
mundial sejam insignificantes. Pelo contrário: assinalo que o retorno da África do
Sul à ordem mundial faz parte de um projeto modernista, e isso não significa
necessariamente que seja contra-hegemônico, ou que possibilitaria libertar as vozes
subalternas. Com certeza, sua inserção na ordem mundial limitará as possibilidades
para um outro pensamento, uma vez que as concepções modernas de razão e
racionalidade e de configurações do poder da economia política global subalterniza
o outro a fim de constituir a si mesmo. Em outras palavras, a África do Sul, em sua
forma pós-colonial e pós-apartheid, participa da ordem mundial; não reconfigura
essa ordem. Nesse sentido, as experiências de Dion e Tulani, ao afirmar seus direitos
na escola, têm um potencial contramoderno limitado. As afirmações de Dion e Tulani
do direito à orientação sexual são lo otoro, dentro da totalidade modernista, e marcam
sua subalternidade interior. Posicionados como subalternos, Tulani e Dion ainda não
podem falar, exatamente como as mulheres indianas na análise de Spivak sobre sati.
162 Carrim

Com base na complexidade das posições subalternas, este capítulo sugeriu que
a educação dos direitos humanos, e para os direitos humanos, precisa, em primeiro
lugar, abarcar a natureza jurídica do discurso dos direitos humanos; ao mesmo
tempo, deve apresentar o discurso dos direitos humanos como contestado e
contestável. Isso sugere que o ensino dos direitos humanos precisa permitir que
sejam explorados criticamente, em vez de transmiti-los como dogmas e verdades
incontestáveis. Por fim, o ensino dos direitos humanos deve levar em conta uma
exploração das suas articulações de subalternidade interior e subalternidade exterior,
destacando seus vínculos micrológicos e macrológicos com a ordem mundial e a
ordem nacional.
Isso sugere que as escolas cujo ensino está orientado para a construção da nação
– o que, sem dúvida, é importante para a coesão social – não podem tratar os
direitos humanos de modo estritamente nacionalista e paroquial. Como
demonstram os exemplos, as escolas precisam situar suas sociedades em ambientes
globais mais amplos.
Meu objetivo neste capítulo foi utilizar uma dupla crítica associada aos estudos
subalternos, a fim de entender a transição do apartheid para a democracia na África
do Sul. Para tanto, comecei por observar a implementação da democracia na África
do Sul pós-apartheid e pós-colonial, sob a perspectiva dos direitos humanos, e
destaquei os caminhos contraditórios por meio dos quais o discurso dos direitos
humanos possibilitou a resistência ao apartheid e continua a exercer efeitos positivos
sobre a vida dos jovens, neste caso, dos alunos homossexuais nas escolas. No
entanto, mostrei também que, mais do que celebrar as vitórias dos direitos
humanos, que pode ser a tendência de uma análise micrológica da África do Sul
pós-apartheid, é importante colocar a África do Sul no contexto de uma economia
política global. Neste período pós-apartheid e pós-colonial, a África do Sul é agora
um ator no palco da ordem mundial. Porém, em vez de reconfigurar a hegemonia
da ordem mundial, o país está inserido nessa ordem como ator importante e
significativo. Como argumentei, essa inserção é parte da consolidação da
modernidade que a África do Sul pós-apartheid representa. Entretanto, essa
representação não é necessariamente uma condição para a libertação das vozes
subalternas por meio de práticas educacionais e culturais, uma vez que põe limites
na autenticidade e nas possibilidades de sua expressão. Ao longo deste capítulo,
procurei demonstrar as contradições existentes no discurso dos direitos humanos
e no projeto de modernidade, tanto na resistência ao apartheid como na situação
pós-apartheid. Essas forças contraditórias constituem a modernidade da África do
Sul pós-colonial e, ao mesmo tempo, limitam seu potencial transformador. Apesar
de tudo, essas contradições são produtivas, não somente por serem fundamentais,
mas igualmente por trazerem à tona as tensões e os desafios existentes, a fim de
exercer o pensamento fronteiriço e contrapor-se à ordem hegemônica global e a
seus sistemas de conhecimento.
Os direitos humanos e os limites na libertação das vozes subalternas 163

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50

JUSTIÇA SOCIAL, TEORIA DO DESENVOLVIMENTO


E A QUESTÃO EDUCACIONAL

Elaine Unterhalter

A educação ocupa um lugar especial nas teorizações de desenvolvimento


formuladas desde a década de 1950. Sob condições de mudanças, marcadas
inicialmente pela economia política da Guerra Fria e pela descolonização e, mais
tarde, pela globalização e por realinhamentos políticos da era pós-Guerra Fria,
foram muito contestadas as opiniões sobre objetivos da educação, formas de
sistematização do conhecimento escolar, de organização da pedagogia ou da visão
da gestão escolar. Pressupostos específicos de teorias do desenvolvimento,
metodologias e práticas de pesquisas enfatizaram determinados aspectos da
educação e negligenciaram outros. No entanto, pouca atenção foi dada aos
conceitos de justiça (tanto implícitos como explícitos) e à forma como orientam a
dinâmica do pensamento sobre educação e desenvolvimento internacional.
Neste capítulo são exploradas seis abordagens à teoria do desenvolvimento em
relação às formas como conceituam educação e justiça social. Essas abordagens
constituem uma seleção parcial, uma vez que não é possível explorar em um único
capítulo todas as variedades e todas as dimensões da teoria do desenvolvimento. Fiz
esta seleção, em parte, porque tais abordagens são evidentes em períodos cronológicos
amplos desde a década de 1950, e, em parte, porque são as mais discutidas em revisões
gerais das fases da teoria contemporânea do desenvolvimento (PRESTON, 1996;
MUNCK; O’HEARN, 1999; RAPLEY, 2002; GASPER, 2004). Ao discuti-las,
procurei descrever a forma como cada abordagem localiza os objetivos da educação
e suas implicações para propostas práticas em relação a currículo, pedagogia e gestão.
Procurei também aperfeiçoar em cada abordagem pressupostos sobre a natureza do
indivíduo a ser educado e a conexão entre educação e justiça social. Descrevo algumas
das consequências dessas formulações em relação às formas preferidas de pesquisa
associadas a cada teoria. A seguir, são avaliadas as consequências das explicações que
essas abordagens oferecem para a ação global sobre educação e pobreza.

Teoria da modernização e construção da nação


A teoria da modernização surgiu nas décadas de 1950 e 1960 e expressou a
opinião de que formações econômicas, políticas e sociais associadas à Europa

165
166 Unterhalter

Ocidental e à América do Norte estavam em um nível mais evoluído do


desenvolvimento do que as denominadas sociedades tradicionais, não modernas
ou subdesenvolvidas do restante do mundo. A modernidade foi associada por
Rostow (1959) à economia de mercado, segundo a qual investimentos e
crescimento em determinado setor levariam a sucesso, desenvolvimento, melhores
salários e aumento do consumo. David Apter identificou modernidade com
políticas democráticas, por meio das quais filiações e práticas locais de governança
foram substituídas por formas institucionais associadas a partidos políticos,
parlamentos eleitos e governo local eficiente (APTER, 1965). Inkeles e Smith
(1974) identificaram dispositivos específicos de uma personalidade moderna
independente e racional.
Esses teóricos sugeriram diferenças nítidas e registradas de forma normativa entre o
mundo da modernidade e o mundo da tradição. Afirmou-se que o primeiro permitiria
padrões de vida mais altos, governo mais eficiente e indivíduos mais racionais e
progressistas. Afirmou-se que o último foi caracterizado por economias estagnadas e
pobreza, corrupção, governo ineficiente e indivíduos retrógrados e provincianos. Em
seu formato ideal, no centro da teorização de modernidade estava um homem com
todos os atributos de um bom sujeito. Os relacionamentos considerados importantes
para ele situavam-se na esfera pública de políticas ou de trabalho. Embora pudessem
ter vínculos com mulheres, crianças ou comunidades, esses laços situavam-se em um
segundo plano de preocupação, localizado na esfera privada, que poderia ser
problematicamente não moderna, ou insuficientemente moderna.
Uma versão de modernidade um pouco diferente, em que não é tão evidente
a crítica a certas formas de tradição, estava sendo articulada pelos arquitetos dos
novos Estados-nação que se formavam a partir do final da década de 1940, à
medida que a descolonização ganhava impulso. Nesse caso, a modernidade estava
associada à cidadania dos novos Estados, que deixava de lado a filiação baseada
exclusivamente em uma única religião, um idioma ou uma região, pelo
compromisso com um projeto nacional enraizado em uma Constituição, o
estabelecimento de instituições sociais básicas, como universidades, ou uma rádio
nacional, ou ainda uma economia planejada. Para os novos países, frequentemente
a criação de um idioma oficial foi um espaço importante de contestação. Embora
muitos movimentos nacionais anticolonialistas que adotaram essa versão de
modernidade fossem apoiados ativamente pela mobilização das mulheres
(JAYAWARDENA, 1986; STASIULIS; YUVAL DAVIS, 1995), o cidadão
moderno imaginado tendia a ser considerado neutro em relação a gênero: tudo o
que se exigia era igualdade perante a lei e oportunidades iguais no novo Estado
secular (RAI, 2002).
Essas duas apropriações inter-relacionadas de ideias de modernidade estavam
alinhadas com diferentes forças sociais que, por vezes, promoviam uma causa
comum. A primeira estava associada à expansão da influência política e econômica
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 167

americana em áreas consideradas anteriormente como esfera dos poderes coloniais


europeus (AMBROSE; BRINKLEY, 1997). A segunda estava associada a políticas
complexas de descolonização (CHATTERJEE, 1991; PIETERSE; PAREKH,
1995; HYAM, 2007). No entanto, apesar de diferenças significativas, essas duas
perspectivas de modernidade têm em comum uma capacidade limitada para
reconhecer de maneira eficaz, analiticamente ou na prática, os diversos contextos
de cidadania, as ambiguidades no entendimento de modernidade e os milhões de
pessoas que não tinham um relacionamento claro de cidadania com os Estados-
nação, seja porque viviam em regiões inacessíveis para instituições e formas de
comunicação de massa modernas, seja porque essas pessoas haviam sido
desapropriadas de sua cidadania devido a guerras ou políticas de exclusão. Sob a
perspectiva da teoria da modernização, relacionamentos sociais que não se
enquadravam nas ideias de cidadania racional, emprego na economia salarial,
consumo, secularismo e afiliação nacional eram retratados como oprimidos por
tradição, particularismo e ineficiência. Para projetos democráticos associados a
novas formas de Estado que surgiam – por exemplo, na Índia ou em Gana –, houve
intensas disputas em relação à forma de articular uma opinião popular que fosse
suficientemente inclusiva.
Esse binômio explícito implicava que os objetivos da educação deveriam incluir
um processo por meio do qual os indivíduos poderiam tornar-se modernos e livrar-
se do peso da tradição. Em escolas, institutos técnicos, aulas de alfabetização de
adultos e universidades, aprenderiam o espírito da cidadania e da democracia, e a
importância do crescimento econômico nacional. Desse modo, a educação
constituía um processo básico por meio do qual deveria ser realizada a
transformação para a modernidade (FAGERLIND; SAHA, 1983). As novas
tecnologias associadas a meios de comunicação de massas – por exemplo, rádio e,
a seguir, televisão – foram consideradas instrumentos-chave para realizar essa
transformação (LERNER, 1958). O provimento de educação em massa foi um
componente importante da forma de modernidade associada à construção do país.
A educação em massa, para todos os cidadãos, foi considerada necessária para o
crescimento econômico e um indicador do compromisso dos novos governos com
o desenvolvimento social para todos (CARNOY; SAMOFF, 1990).
Assim, era importante que as escolas pudessem ensinar essas formas de
conhecimento associadas à modernidade, não disponíveis em outro lugar. A
alfabetização no idioma oficial – entendida em termos de capacidade de ler e escrever
com compreensão um texto curto – era considerada mais eficiente quando ensinada
em escolas para adultos e crianças (JONES, 1990). O ensino de idiomas associados
à construção do país – o suaíli, o hindi ou o espanhol – também foi considerado
atribuição específica das escolas (AIKMAN, 1999; MVUNGI, 1974). Foram
enfatizadas também práticas de vinculação nacional, tais como saudação à bandeira
ou o aprendizado sobre as províncias que compõem o país de cidadania da criança
168 Unterhalter

(UCHENDU, 1980; HARBER, 1997). O domínio das operações com números


foi considerado fundamental para o emprego em setores modernos da economia,
nos quais uma ciência de mensuração, representações numéricas e dedução abstrata
foi considerada importante para eficiência, inovação tecnológica e compreensão de
condições de saúde (EISEMON, 1989). Portanto, as escolas constituíam espaços
fundamentais para o ensino de disciplinas associadas à modernização.
A pedagogia que poderia apoiar a aprendizagem dessas disciplinas com esses
objetivos era frequentemente designada ensino de transmissão, uma vez que sua
principal preocupação foi a de transmitir o conteúdo de conhecimentos, sem
responder exatamente às ideias ou aos contextos dos alunos. Assim sendo, por
exemplo, comentando sobre o ensino de ciências em escolas africanas na década
de 1970, Eisemon sugeriu que não era o período passado na escola, mas a
natureza do ensino – ou seja, o conteúdo e a qualidade da instrução – que
fortaleceria a compreensão (EISEMON, 1989). Revendo novos enfoques para
mudanças no ensino de história na Nigéria, Adesina mostra, em um gráfico,
como na década de 1960 a ênfase foi colocada na sequência de eventos ocorridos
na mesma década (ADESINA, 2006). A abordagem à gestão escolar associada
com a modernização enfatizou burocracias racionais, sendo o papel principal
designado aos Departamentos de Educação localizados nas capitais, com
distritos ou escritórios itinerantes a eles subordinados, e a eles se reportando.
Por exemplo, na África do Sul, esse sistema de administração da educação,
replicado para todos os grupos divididos em termos raciais, foi considerado
racional e eficiente em relação às ideias modernas sobre estruturas
organizacionais nos níveis nacional e provincial (BEHR, 1966). Com a
independência do Quênia, quando todo o provimento da educação foi unificado
sob um único Ministério de Educação, as unidades administrativas foram
designadas em uma estrutura que era percebida como uma organização racional
para todo o país (RAJU, 1973).
Assim, os pressupostos sobre o indivíduo em relação às instituições de
modernidade constituíram as ideias sobre uniformidade e unidade. Oportunidades
iguais de acesso à escola e a essas novas formas de conhecimento deveriam ser
oferecidas a todos.
Duas ideias sobre justiça estão implícitas na teoria da modernização. A
primeira é que justiça não é uma teoria, mas um conjunto de instituições legais
eficientes. Esse entendimento associa explicações descritivas da autoridade estatal
com uma descrição normativa da legitimidade de tal autoridade (HART, 1961).
Quando a legislação referente à educação é formulada por organismos eleitos
democraticamente, e interpretada por tribunais que não sejam corruptos, quando
a receita pública é coletada de forma eficiente e gasta racionalmente com o
provimento de escolas, conforme estabelecido em planejamentos econômicos,
entende-se que justiça foi feita.
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 169

A segunda ideia relativa à justiça e à autoridade legítima associadas com a


modernização é a que um indivíduo que atua de acordo com a modernidade e com
a imparcialidade e moralidade das instituições modernas está agindo com justiça.
Na formulação de Joseph Raz, a autoridade do Estado é orientada por sua
moralidade ao agir para promover o que é bom. A autoridade do Estado tem
origem na codificação, na forma de lei, dos motivos que os indivíduos já possuem
para atuar em relação aos outros – por exemplo, pagando impostos para apoiar
escolas ou estimular o crescimento da economia que beneficiará a todos. Sendo
razoáveis, esses procedimentos são também legítimos e, portanto, justos (RAZ,
1986). Essa noção de que os Estados-nação podem criar as condições para que os
indivíduos busquem uma vida significativa pode ser entendida como capaz de
reavivar as ideias sobre justiça global desenvolvidas nas décadas de 1950 e 1960,
quando essa aspiração foi articulada através dos Estados e de mecanismos
internacionais de organizações das Nações Unidas, e não por meio de associações
de indivíduos ou de organizações da sociedade civil, ou por uma noção mais ampla
de Estado-nação, que não seja relacionada apenas ao governo (JONES;
COLEMAN, 2005).
Tais ideias sobre justiça e oportunidades iguais tiveram um efeito específico
sobre a forma como as agendas de pesquisas foram estabelecidas. O sucesso no
ensino da alfabetização funcional e de operações com números, a proficiência no
idioma nacional e as características psicológicas da modernidade foram objeto de
pesquisa e mensuração nas escolas, uma vez que mostraram em que medida
instituições justas estavam funcionando em termos nacionais. Consequentemente,
foi enfatizado o poder explicativo de metodologias relacionadas a mensuração e a
levantamentos em larga escala. O paradigma de pesquisa sugeria que melhorar as
instituições poderia ampliar o provimento, e os mais pobres teriam, no futuro,
acesso à escola.

Necessidades básicas
Por volta do final da década de 1960, eram evidentes muitos problemas
associados com a percepção irregular sobre o otimismo da teoria da modernização.
Questões prementes incluíam a pobreza disseminada que as novas instituições
aparentemente não conseguiam superar. Alguns governos desumanos alegavam agir
em resposta à modernização. A exclusão de alguns, com base em raça, etnia ou
gênero, das instituições associadas ao crescimento econômico e à legitimidade
política colocaram em questão a eficiência da modernização. Na década de 1970,
um grupo muito influente de economistas do desenvolvimento criticou as hipóteses
da modernização de que a pobreza seria erradicada por meio de crescimento
econômico, expansão do emprego, rendimentos mais altos e efeitos da redução
gradual de impostos do capitalismo bem-sucedido (STREETEN, 1981;
STEWART, 1985). A abordagem de necessidades básicas à política social enfatizava
170 Unterhalter

que resultados particulares ou seres humanos não deveriam ser focalizados como
um meio para objetivos sociais, econômicos ou políticos. Teóricos das necessidades
básicas destacaram a importância de considerar aqueles que não poderiam ser
incorporados a projetos bem-sucedidos de modernização, aqueles que nunca seriam
economicamente produtivos e aqueles que nunca contribuiriam para o crescimento
econômico. Alguns indivíduos talvez tivessem preferências importantes que não
poderiam ser atendidas nos mesmos moldes de outras pessoas: os idosos, os muito
jovens, pessoas com deficiência ou aquelas que foram excluídas da participação
política ou econômica devido a formas historicamente localizadas de discriminação
baseada em gênero, raça ou etnia. Wiggins colocou de maneira explícita a existência
de uma base normativa para a necessidade. Em seu argumento, afirmava que a
importância das necessidades residia no fato de expressarem aspectos de uma
condição para a prosperidade humana. O fracasso em garantir determinado nível
de prosperidade humana – o atendimento às necessidades básicas – seria prejudicial
(WIGGINS, 1988). Uma das contribuições importantes do trabalho sobre
necessidades foi a visibilidade filosófica, política e econômica conferida às ideias
sobre cuidados e preocupações, que a teoria da modernização havia transferido para
a esfera privada da família, além do limite e dos recursos da política do governo
(READER, 2006).
De acordo com o trabalho de Frances Stewart, o provimento da educação e de
saúde está intimamente conectado com um provimento mínimo de boas condições
de vida, limite abaixo do qual o resultado seria danoso (STEWART, 1985).
Portanto, a ideia de educação associada à abordagem de necessidades básicas
mostrava que a educação até um determinado nível era crucial para garantir a
prosperidade humana, ainda que a disposição do indivíduo não fosse orientada
para o moderno, ou que as instituições associadas com educação não funcionassem
de acordo com ideias sobre governança, democracia ou eficiência. Uma segunda
ideia implícita era a de que as necessidades básicas em educação não poderiam ser
consideradas independentemente de condições de saúde, moradia, segurança
alimentar e outros aspectos do bem-estar do indivíduo. As múltiplas dimensões
das necessidades e a implicação de que poderiam ser atendidas por uma série de
pessoas ou de instituições (READER, 2006) indicavam que os objetivos da
educação não seriam efetivados apenas nas escolas, mas que era importante tratar
do atendimento às necessidades básicas em educação em conexão com todas as
demais necessidades básicas (STEWART, 1985).
A força da abordagem de necessidades básicas reside na ideia de limites e
interconexões com outras áreas de políticas sociais. No entanto, com relação à
especificação de características particulares da educação, esse direcionamento
evidente apresenta inúmeros problemas. As necessidades básicas aplicadas à
educação passaram a ser interpretadas de duas formas, uma frágil, outra consistente.
Em sua forma frágil, as necessidades básicas de educação passaram a ser
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 171

interpretadas como um pacote finito de determinado número de anos passados na


escola – geralmente, quatro a cinco anos. Assim, estaria atendida uma necessidade
básica. O problema com essa forma considerada frágil foi que o cálculo do número
de anos de frequência escolar, sem levar em conta o que era ensinado ou aprendido,
de que forma e com quais consequências, na verdade, oferecia poucas garantias de
que as necessidades básicas tivessem sido atendidas (UNTERHALTER, 2007). No
entanto, as primeiras aplicações da abordagem de necessidades básicas por
organizações das Nações Unidas analisavam apenas o número de anos que as
crianças de determinados países passavam na escola (por exemplo, ver UNESCO,
1976; WORLD BANK, 1979).
Uma forma mais consistente da abordagem de necessidades básicas em relação
à educação foi articulada em Jomtien, em 1990, na Declaração sobre Educação para
Todos (DMEPT), que lançou o movimento Educação para Todos (EPT) como uma
aliança – inicialmente, de organizações das Nações Unidas e alguns governos, mas
que, a partir de 2000, passou a ser um movimento que congregou a maioria dos
governos, das organizações das Nações Unidas e da sociedade civil (CHABBOTT,
1997; MUNDY; MURPHY, 2001). O objetivo da EPT foi atender às necessidades
básicas de aprendizagem, que foram definidas de forma bastante ampla:
Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as oportunidades
educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Essas necessidades
compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita,
a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem
(como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos
possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade,
participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões
fundamentadas e continuar aprendendo. A amplitude das necessidades básicas de aprendizagem
e a maneira de satisfazê-las variam segundo cada país e cada cultura, e, inevitavelmente, mudam
com o decorrer do tempo (UNESCO, 1990).

É possível observar que as prescrições relativas à alfabetização funcional e


operações com números para participar dos setores modernos da economia ou ter
acesso a instituições do Estado foram substituídas por noções mais amplas e
imprecisas de alfabetização, operações com números, expressão oral e resolução de
problemas, alinhadas com autodesenvolvimento, para alcançar uma vida digna e de
qualidade. Não vem sendo proposto um conjunto único de ideias relativas a
conteúdo curricular. O segundo artigo da Declaração enfatiza a tolerância à
pluralidade de ideias sobre currículo, pedagogia e gestão, e preocupa-se em situar a
EPT dentro da “herança cultural, linguística e espiritual” existente. Assim sendo, a
grande distinção entre idiomas e práticas de modernidade e a tradição desapareceu.
A satisfação dessas necessidades confere aos membros de uma sociedade a possibilidade e, ao
mesmo tempo, a responsabilidade de respeitar e desenvolver a sua herança cultural, linguística e
espiritual, de promover a educação de outros, de defender a causa da justiça social, de proteger
172 Unterhalter

o meio ambiente e de ser tolerante com os sistemas sociais, políticos e religiosos que difiram dos
seus, assegurando respeito aos valores humanistas e aos direitos humanos comumente aceitos,
bem como de trabalhar pela paz e pela solidariedade internacionais em um mundo
interdependente (UNESCO, 1990).

Nesse formato, o apoio às necessidades básicas de aprendizagem transforma o


dístico da pedagogia: de ensino para aprendizagem, de resultado para processo. O
importante é não moldar dispositivos específicos de uma pessoa moderna, que é
racional e responsável, em relação às instituições do Estado e da economia. O
fundamental agora é facilitar a aprendizagem, considerada sinônimo de
prosperidade, capacitação e sobrevivência em um mundo interdependente. O que
preocupa são os aspectos relacionais e contextuais da condição de aprendiz.
Portanto, a questão de selecionar ou ordenar o conhecimento educacional e de
administrar esse processo desaparece da agenda global e passa a ser competência
de governos ou escolas específicos. Nessa transição, é possível que essas discussões
percam as dimensões de necessidade articuladas em documentos como a Declaração
de Jomtien. Em Bangladesh, por exemplo, a expansão da educação primária pelo
Estado e a introdução de um currículo baseado em competências foram associadas
a mudanças políticas locais que envolveram agências de ajuda e pacotes de ajuda
ao ensino e à aprendizagem, mas que interpretaram o atendimento às necessidades
básicas não com a ênfase na aprendizagem e na capacitação sugerida pela DMEPT,
mas com o espírito de modernização (DAVIS, 2001; HOSAIN et al., 2002). No
Quênia, ao longo da década de 1960, inúmeros parceiros internacionais para o
desenvolvimento retiraram sua ajuda devido aos altos níveis de corrupção e à
percepção de que o país era um “reformador relutante” (COLLIER, 2004), o que
aumentou alguns dos efeitos de ajustes estruturais que resultaram na imposição de
custos para a educação. No entanto, com a ajuda de alguns doadores, o governo
do Quênia deu início a um programa para melhorar o suprimento de livros
didáticos e para aprofundar a orientação e o treinamento de professores. Entretanto,
a ênfase centrou-se na melhoria do provimento educacional, mais do que em
atender às necessidades básicas de aprendizagem dos mais pobres (NZOMO et al.,
2001). Esses exemplos indicam de que forma a agenda global sobre o atendimento
às necessidades básicas de aprendizagem foi interpretada de diversas formas nas
políticas dos países.
Preocupações com justiça e necessidade resultaram em debates sobre quais
necessidades eram básicas e fundamentais para a vida do homem, e que prioridade
deve ser conferida às necessidades básicas. Foram realizados muitos debates
discutindo se as necessidades básicas eram atendidas por commodities ou por
condições, e em que medida bens e serviços não comercializáveis – associados, por
exemplo, a necessidades emocionais – estavam dentro da esfera de ação pública
(SEN, 1981; DOYAL; GOUGH, 1991; DASGUPTA, 1993; GASPER, 2004).
No entanto, a discussão filosófica de necessidade não foi considerada ao colocar
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 173

em prática políticas baseadas no conceito bastante limitado de que as necessidades


educacionais básicas eram atendidas com cinco anos de escolaridade
(UNTERHALTER, 2007).
Todavia, o conceito de necessidades básicas e os aspectos multidimensionais da
prosperidade de um indivíduo que tal conceito sugere levantaram a questão de
justiça em termos não relacionados à autoridade ou à eficiência de instituições, mas
muito mais inserido na abordagem traçada pelo liberalismo político, que salientou
a não existência de uma noção de bens que seja totalmente abrangente (por
exemplo, associada à modernização). Em vez disso, é importante considerar como
pode ser formado um consenso abrangente, de tal modo que a cooperação dos
indivíduos seja baseada nas ideias de justiça e no debate fundamentado que têm
em comum em um consenso abrangente (RAWLS, 2005). Explorar e solucionar
diferenças por meio desse processo de construção de consenso poderia permitir
dúvidas sobre prioridade ou igualdade, ou limite exigidos em um debate sobre a
necessidade a ser estabelecida. Com a criação de fóruns para que diferentes Estados-
nação e organismos multilaterais se reúnam, sua lenta abertura de espaço à mesa
de debates para ONGs internacionais, e sua preocupação com questões de
qualidade que não abordam conteúdo, o movimento de EPT pode ser considerado
um exemplo dessa forma de liberalismo político em ação. Em outro local,
qualifiquei esse liberalismo como um cosmopolitismo fino (UNTERHALTER,
2007) com a preocupação de apoiar a ação global para o atendimento de
necessidades básicas de aprendizagem, mas não para demandar outras reformas em
relação a economia, política, cultura ou relações de gênero.
Embora apresentasse uma crítica evidente da teoria da modernização, e estivesse
baseada em ideias muito diferentes do indivíduo e de justiça, a abordagem de
necessidades básicas na educação não gerou metodologias de pesquisa diferentes. Os
mesmos métodos associados com a revisão do grau de modernização – ou seja,
levantamentos em larga escala e interpretação de dados de recenseamento – foram
utilizados para avaliar se as necessidades básicas de aprendizagem vinham sendo
atendidas. Algumas das questões de pesquisa implícitas na abordagem – por exemplo,
de que forma eram compreendidas as necessidades básicas de aprendizagem, e que
nível de provimento era considerado suficiente – exigiam metodologias qualitativas.
No entanto, foram poucos os estudos nesse formato a serem utilizados no
desenvolvimento de políticas. Na expansão de EPT, como observado por Karen
Mundy, a literatura política e ética sobre obrigações globais para com os mais pobres
foi pouco discutida (MUNDY, 1998). Aparentemente, a interpretação inconsistente
das necessidades básicas de aprendizagem como um pacote fechado de provimento,
e o cosmopolitismo fino presente nas interpretações globais e nacionais de EPT foram
legitimados por métodos de pesquisa que não partiram do terreno mapeado pela
teoria da modernização, o que pode ter contribuído para que essa abordagem não
gerasse ação global proporcional às suas preocupações éticas.
174 Unterhalter

A teoria do capital humano


Na década de 1960, foram elaboradas ideias sobre o valor econômico da
educação em si, e não sobre disciplinas específicas ou dispositivos de cidadania tão
importantes para a modernização. O trabalho clássico de Gary Becker – “Human
capital” – desenvolveu a noção de capital humano dentro da economia neoclássica,
registrando que o investimento no homem poderia ser considerado semelhante ao
investimento em outros meios de produção, como fábricas ou minas. O
investimento em capital humano, assim como o investimento em infraestrutura
física, produziria uma taxa de retorno que poderia ser calculada. Becker estimou o
retorno do investimento no ensino superior e no ensino médio nos Estados Unidos,
mostrando ainda que não foi só a escolarização que teve um papel significativo
para o crescimento: diversos outros investimentos nos indivíduos, inclusive na área
de saúde e de capacitação no trabalho, também contribuíram.
Desenvolvendo o trabalho de Becker, Theodore Schultz analisou de que forma
as taxas de retorno da educação poderiam ser calculadas em países com diferentes
níveis de renda, diferentes variáveis relativas a padrão salarial, e diferentes atitudes
humanas em relação à perda de rendimento para desenvolver o capital humano. A
hipótese de Schultz era de que o cálculo de taxas de retorno de investimentos em
capital humano confirmaria a importância do investimento na educação e em
pesquisa para a produtividade da força de trabalho e para a capacidade de
crescimento da economia (SCHULTZ, 1971).
Nas décadas de 1970 e 1980, George Psacharopoulos realizou um trabalho
detalhado de análise de taxas de retorno da educação para famílias e economias
nacionais. Reunindo dados de muitos países sobre o papel da educação no
crescimento econômico, analisou como a lucratividade dos investimentos em
educação poderia ser comparada aos lucros de investimentos em capital físico,
retoricamente simbolizados por investimentos em escolas ou em usinas siderúrgicas
(PSACHAROPOULOS, 1973). Psacharopoulos estava interessado também em saber
se diferenças entre os países com relação ao capital humano poderiam explicar
diferenças na renda per capita, quais as taxas nacionais de retorno por nível
educacional, se havia diferenças em relação ao nível de subsídio público para a
educação, e se os subsídios reduziam ou aumentavam os incentivos. As constatações
de Psacharopoulos tiveram significado profundo nas políticas internacionais
relacionadas ao investimento em educação. Com base nos dados analisados, concluiu:
As taxas de retorno diminuem à medida que aumenta o nível educacional. Analisando em
primeiro lugar as taxas sociais de retorno, a média para o ensino primário é de 19,4%; para o
ensino secundário, 13,5%; e para o ensino superior, 11,3% (PSACHAROPOULOS, 1973).

Essa ênfase na alta taxa de retorno para o ensino primário visou orientar uma
geração de planejadores do Banco Mundial, e em outras instituições nacionais e
internacionais, para que focalizassem esse nível educacional. Houve um debate
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 175

crítico sobre a forma como Psacharopoulos calculou taxas de retorno e chegou a


essas conclusões (BENNELL, 1996), mas, não obstante, as implicações políticas
de seu trabalho foram enormes.
De modo geral, o trabalho dentro de uma estrutura de capital humano supõe
que os mercados de trabalho sejam racionais e eficientes e que, uma vez que as
escolas desenvolvam determinados aspectos do capital humano, o mercado de
trabalho distribuirá os indivíduos de acordo com ocupações que sejam adequadas
a seus níveis de habilidades. A estrutura não leva em consideração mercados de
trabalho segregados, nos quais, independentemente de seu nível educacional, os
indivíduos são designados para postos de trabalho específicos com base em raça,
gênero ou pressupostos de classe ou casta. A estrutura tende a considerar a educação
como uma máquina na qual as crianças entram e saem com seu capital humano
integralmente construído. Assim como o desenvolvimento de temas políticos de
modernização, o aprimoramento do capital humano requer formas particulares de
conhecimento e pedagogias específicas que melhorem essa aprendizagem. No
entanto, a teoria sugere que há diferentes tipos de capital humano. Assim sendo,
escolas diferentes podem aprimorar capital humano de formas diferentes. Por
exemplo, escolas de elite serão necessárias para formar gestores, e escolas
suficientemente boas serão necessárias para aqueles que se tornarão trabalhadores
semiqualificados. Como os dois grupos contribuem para o crescimento econômico,
a ênfase diferente no currículo e na pedagogia não é uma questão importante. As
formas como as escolas podem prover diferentes ambientes de aprendizagem para
crianças de diversos backgrounds, com resultados bastante divergentes, não são
consideradas significativas, a menos que a escolarização seja tão fraca, e que a
criança aprenda tão pouco, que não agregue capital humano. Portanto, de maneira
geral, escritores interessados em capital humano consideram a eficiência da escola
– em outras palavras, o número de horas de instrução, o nível de qualificação do
professor e os progressos da criança. Os Relatórios de Monitoramento Global
elaborados pela UNESCO, publicados desde 2002, foram fortemente influenciados
pela abordagem do capital humano ao desenvolver indicadores para medir EPT,
compilando tabelas estatísticas sobre insumos e resultados – ou seja, taxas de
matrícula, retenção e capacitação de professores (UNESCO, 2003). Autores que
trabalham dentro dessa estrutura geralmente não estão interessados em debates
sobre currículos ocultos ou em uso, processos construídos ou negociados de
aprendizagem, ou a identidade dos professores.
Embora alguns trabalhos sobre capital humano tenham registrado taxas de
retorno diferentes para mulheres e para homens (WOODHALL, 1973;
SCHULTZ, 1995), sua conclusão geral não foi a necessidade de levar em
consideração estruturas de gênero ou desigualdade de raças, mas sim que é preciso
que esses grupos recebam mais instrução para melhorar os níveis de crescimento
econômico. É possível verificar o que é importante para todos aqueles que escrevem
176 Unterhalter

sobre a teoria do capital humano. Nessa estrutura, a escolarização contribui para o


crescimento, e aumentar o acesso à educação para facilitar o crescimento econômico
constitui uma obrigação social importante. O que essa estrutura não registra são
questões de valor que ultrapassam a esfera econômica: questões de desigualdade e
formas de resolvê-la e, se for o caso, como devem ser incorporadas à pedagogia
crítica ou novas formas de conhecimento que não são consideradas adequadas para
aprimorar o crescimento econômico.
A ideia de indivíduo inerente à teoria de capital humano é a de um agente ativo
basicamente preocupado com a maximização da utilidade, que é alcançar os níveis
mais altos de bem-estar ou de felicidade para si ou para a sociedade. No entanto,
em sua maioria, aqueles que escrevem sobre capital humano não consideraram o
indivíduo e as métricas mentais que este possa utilizar ao fazer essa avaliação. Foram
feitas pressuposições sobre pessoas em famílias ou países nos quais o indivíduo
desaparece em uma unidade mais ampla, direcionada para a maximização da
utilidade para todos os seus membros, com pouca atenção a questões de
distribuição ou de necessidades diferentes. Portanto, como apontou Naila Kabeer
em relação às opiniões sobre maximização da utilidade em termos gerais, a hipótese
era a de que não havia dinâmica de gênero nas famílias, e que pais ou maridos
atuavam sempre para melhorar a utilidade para todos os membros da família, apesar
de evidências de pesquisas que mostravam que, em muitos contextos, preferiam-se
filhos a filhas (KABEER, 1994). Quando essas ideias foram traduzidas em políticas
de educação (por exemplo, ver KING; HILL, 1993), o pressuposto foi que, se
barreiras à educação resultantes de custo ou de distância pudessem ser removidas,
a racionalidade da maximização da utilidade ficaria evidente.
A teoria do capital humano baseia-se implicitamente em ideias sobre justiça
associadas ao liberalismo clássico, como foi interpretado na época de Thatcher ou
Reagan – ou seja, que o indivíduo é portador de direitos em relação, por exemplo,
à educação ou à acumulação econômica. Esses direitos antecedem a existência de
qualquer forma particular de Estado, e não levam em consideração situações ou
contextos sociais diferentes. Mercados livres que permitem circulação de ideias,
tipos diferentes de escolas, ou formas diferentes de emprego não devem ser
restringidos. Os direitos de um indivíduo à educação e aos retornos dos
investimentos na educação devem ser protegidos por uma forma limitada de
governo constitucional. Nessa interpretação limitada das ideias de Adam Smith,
não foi dada a devida ênfase a preocupações com contextos sociais e dimensões
políticas da economia. Ideias associadas a necessidades básicas de cuidados,
obrigações e consenso sobre justiça social não são de interesse particular nessa
interpretação de liberalismo clássico que enfatiza os direitos de um indivíduo à
acumulação econômica e à educação.
Os pressupostos sobre liberalismo ontológico e não ético, e a noção de que a
maximização da utilidade implicava simplesmente o crescimento econômico
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 177

geraram uma preocupação para estabelecer instituições eficientes para prover uma
educação adequadamente articulada com a economia. Os métodos de pesquisa
associados com a abordagem tenderam a ser pesquisas em larga escala, que
observavam o nível da taxa de retorno e consideravam de que forma insumos
escolares estavam relacionados com resultados. Embora inúmeros estudos
qualitativos tenham sido realizados para compreender por que algumas famílias ou
grupos étnicos ou sociais específicos não recorreram à escolarização com atenção
particular à exclusão de gênero (HERZ; SPERLING, 2004), os dados não foram
utilizados para considerar aspectos mais amplos da necessidade ou da discriminação.
A noção era de que obstáculos ao aumento da taxa de retorno da educação estavam
localizados nas famílias, nas comunidades e em instituições governamentais
ineficazes. A referência da ação global era, portanto, ajudar governos a remover
essas barreiras e aumentar o crescimento para que os mais pobres – como resultado
de mudanças a partir do topo – pudessem por fim ser beneficiados.

Desenvolvimento e subdesenvolvimento
Críticas marxistas às teorias do desenvolvimento baseadas no crescimento
remontam ao século XIX. No entanto, a partir da década de 1960, tomaram formato
específico ao considerar de que maneira desenvolvimento e subdesenvolvimento
poderiam estar articulados, e como a persistência da pobreza não foi um equívoco,
mas uma dimensão fundamental do capitalismo que exigia uma imensa reserva de
mão de obra, pouco instruída e empobrecida, a fim de reduzir os salários dos
trabalhadores e conseguir aliados em meio a um segmento qualificado e relativamente
pequeno da classe trabalhadora (WOLPE, 1980; LEYS, 1996). Em sua famosa obra
“How Europe underdeveloped Africa”, Walter Rodney (1973) argumentou que o
comércio escravo e outras intervenções na economia política africana, que remontam
ao século XV, resultaram em exploração e formas de dominação. Em sua obra
“Education as cultural imperialism”, Martin Carnoy (1971) ampliou essa análise
observando as formas como o sistema escolar aliou-se à repressão.
O pressuposto na visão marxista de educação e desenvolvimento afirmava que
as escolas reproduziam relações capitalistas ou imperialistas. Portanto, em uma
economia política marcada pela exploração e pela articulação de modos de
produção capitalistas e não capitalistas, as escolas formariam ideias sobre a
colocação da criança de acordo com classe ou gênero. Dentro dessa estrutura, nas
pesquisas realizadas na África do Sul – um país onde convivem desenvolvimento e
subdesenvolvimento –, a questão racial geralmente foi considerada equivalente à
questão de classes, e as formas como o sistema escolar reproduziu a estrutura
ocupacional baseada em raças foi um tema importante (KALLAWAY, 1984;
NKOMO, 1990).
O desafio às críticas marxistas do desenvolvimento foi saber de que maneira a
educação poderia ser transformadora. Paulo Freire (1968, 1970) desenvolveu a noção
178 Unterhalter

de conscientização dentro de uma abordagem marxista, elaborando como poderiam


ser modificados equívocos de relações sociais associadas ao capitalismo. Freire deu
especial atenção à natureza do relacionamento entre alunos e professores, a partir de
alguns textos marxistas sobre educação, segundo os quais a escola era vista meramente
como reprodutora de relações capitalistas de produção (WOLPE, 1990).
A abordagem freiriana à escola leva as necessidades básicas de aprendizagem
ainda mais longe do que o estabelecido na Declaração de Jomtien, sugerindo que
escolas devem não só atender às necessidades e conferir poder aos indivíduos, mas
também ajudá-los a transformar a si próprios e à sociedade em que vivem. Nesse
trabalho, está implícita a noção de indivíduo, que é formado por suas condições
sociais e que também tem a capacidade de mudar. A mudança é uma questão
pessoal e, ao mesmo tempo, traz como consequência mudanças nas relações sociais.
A afirmação de Marx de que o homem pode mudar a história, mas não em termos
de seus próprios predicados, resume a visão do indivíduo que imediatamente é
restringido pelo capitalismo global por estruturas de classe e por escolas que
refletem essas condições; mas que também tem o potencial de modificar tais
condições, por meio de ações coletivas e transformadoras. Foram realizadas
tentativas de colocar essas ideias em prática em escolas e aulas de alfabetização de
adultos, por meio de pedagogias explicitamente transformadoras. De modo geral,
isso implica o desenvolvimento de uma forma diferente de gestão escolar, a partir
desse foco sobre a liberação apenas de resultados. Ideias de gestão associadas a
pedagogias freirianas tendem a enfatizar a participação de alunos, professores e
comunidades em termos de reflexão e críticas. Embora talvez tenha sido realizado
de forma imperfeita – ou seja, difícil de sustentar em contextos tão diversos como
América Latina, África Oriental e Índia –, o trabalho educacional de Freire oferece
exemplos marcantes sobre a forma como professores e alunos interagem com as
críticas de sua sociedade (ARCHER; COSTELLO, 1990; STROMQUIST, 1997;
MOTALA; VALLY, 2002; ABADZI, 2003; McCOWAN, 2008).
A preocupação com justiça associada a essa abordagem está vinculada a
discussões de igualitarismo e redistribuição, e à preocupação quanto a como as
condições nas escolas podem tornar-se mais iguais, ou como a formação de
educadores pode ser vinculada às lutas dos mais pobres (LYNCH; LODGE, 2004;
HILL, 2003). Segundo o trabalho de Katarina Tomasevski (2003), a importância
da justiça ao tornar a educação gratuita para todas as crianças, principalmente para
as mais pobres, apresenta uma visão de justiça baseada em um conceito de direitos
à educação diferente daquele associado com a teoria do capital humano. Esses
direitos morais que evocam igualdade e não discriminação exigem uma satisfação,
em parte, em razão das históricas relações globais de dominância e subordinação,
mas também em razão do poder potencialmente transformador da educação.
Portanto, nessas discussões sobre justiça, a ênfase primordial deve estar na
distribuição e na transformação.
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 179

Para desenvolver esses argumentos, foram utilizados métodos de pesquisa


quantitativa e qualitativa. Enquanto estudos quantitativos foram importantes para
documentar desigualdades na distribuição por classe, raça, gênero ou região,
pesquisas qualitativas foram utilizadas para mostrar de que forma, em muitos dos
trabalhos citados acima, as experiências educacionais de Freire transformaram vidas.
Assim sendo, os métodos deram significado explicativo à estrutura, mas críticas
diretas do capitalismo global e adaptações nacionais relativas à desigualdade não
foram transformadas confortavelmente em programas de ação.

Pós-modernismo e pós-colonialismo
A partir da década de 1980, com base em trabalhos como o estudo de Edward
Said sobre relações coloniais em “Orientalism” (1978) e o trabalho de Michel
Foucault sobre discurso (1969, 1977), o pós-modernismo e o pós-estruturalismo
passaram a apresentar um desafio paradigmático muito claro para as ideias sobre
educação, sociedade, desenvolvimento internacional e justiça social de décadas
anteriores. Essas influências uniram-se na teoria pós-colonial, que exerceu sua maior
influência em debates sobre artes e literatura, mas levantou inúmeras questões
importantes para a educação (LOOMBA, 1998).
Apesar de suas diferentes ênfases, todas as abordagens anteriores trabalharam
com aspirações semelhantes para ampliar a distribuição da educação. Há distinções
entre aquelas mais alertas a relações sociais mais amplas relativas a poder,
desigualdade e necessidades além da educação (necessidades básicas e
subdesenvolvimento) e aquelas que mostravam maior confiança nas conexões entre
educação e crescimento econômico (modernização e teoria do capital humano),
diminuindo a importância das dimensões estruturais da injustiça. O desafio da
teorização pós-colonial apresentado foi considerar de que forma o próprio
paradigma da educação e do desenvolvimento internacional levava consigo
pressupostos sobre a superioridade do Ocidente e a interpretação dos povos do
terceiro mundo como outros. Assim sendo, foi posicionada uma oposição binária
entre “o Ocidente” e o resto, Estados coloniais e pós-coloniais, ou discurso
dominante sobre educação adequada e as múltiplas experiências dos povos
colonizados. Observou-se que estes últimos foram sempre retratados de forma
deficitária em relação às formas dominantes de conhecimento, homogeneizado por
identidades específicas – como “mulher do terceiro mundo” – e silenciado pelos
idiomas do poder em relação a debates de políticas (MOHANTY, 1979;
BHABHA, 1984; SPIVAK, 1988). Na teorização pós-colonial, foi particularmente
notável a multiplicidade de identidades construídas, reconstruídas, hibridizadas e
confrontadas em diferentes contextos. A tarefa política foi considerar que idiomas
e discursos dominantes pudessem ser o único veículo disponível para que
subalternos contestassem as identidades de subordinação a eles conferidas, ainda
que o idioma apagasse essas próprias identidades (SPIVAK, 1999). Porém, a
180 Unterhalter

capacidade de ver coisas, como se fosse uma dupla exposição, constituía uma
preocupação básica (MINH HÁ, 1989). Assim sendo, o passado colonial estava
sempre no tempo presente da reforma educacional, e todas as atividades
apresentavam múltiplas repercussões.
A noção de que toda ação pode ser compreendida apenas através do discurso
e de que as relações sociais básicas a serem analisadas são formas de linguagem e
representação estava adjacente a essa mudança de paradigma. Desse modo, a noção
de indivíduo associada a essa abordagem registra identidades fragmentadas, e
considera práticas humanas de criar e utilizar a linguagem, enfatizando que este
não é um ato simples de interferência, mas que confere à ação formações eficientes
de sistemas linguísticos já criados, estruturados por formatos de palavras e nexo de
ideias relacionados, por exemplo, a raça, gênero ou racionalidade.
Uma vez que o foco residia em uma crítica de discursos e identidades, houve
pouca preocupação, no início, com o conteúdo que era ensinado na escola ou com
os resultados da educação. O trabalho inicial dentro dessa estrutura identificou
discursos de políticas e mudanças discursivas. Assim, por exemplo, o processo por
meio do qual foram difundidas na África do Sul ideias sobre unificação de educação
e treinamento em uma única Estrutura Nacional de Qualificação foi explorado
utilizando uma variedade de métodos diferentes da análise de discurso (LUGG,
2007). Na Índia, foram observadas figuras de linguagem envolvidas em ideias sobre
um novo currículo endógeno (KAMAT, 2004). No entanto, trabalhos posteriores
realizados dentro de uma estrutura pós-colonial começaram a observar nas salas de
aula formas de negociação e resistência a discursos dominantes, observando de
perto a formação da identidade de crianças e professores e as formas discursivas
(HICKLING-HUDSON, 2003). É possível constatar que a ênfase sobre discurso
e processos demonstrou que pouca atenção foi dada a questões de gestão ou de
distribuição.
Ao invés da preocupação com abordagens institucionais e distributivas em
relação à justiça, que caracterizam as estruturas acima mencionadas, a teorização
pós-colonial levanta a questão da justiça em termos de reconhecimento. A
abordagem descreve o problema da seguinte maneira: como valorizar identidades
subordinadas, múltiplas e mutáveis e, isso posto, de que forma as condições de
justiça devem ser estabelecidas (FRASER, 1997; SPIVAK, 1999).
Não sendo mais considerados basicamente uma questão de distribuição, esses
pressupostos sobre o indivíduo – discursivamente determinado com identidades
mutáveis – e sobre justiça geraram uma profunda mudança em metodologias. A
desconstrução e a análise do discurso e da identidade na educação tornaram-se uma
preocupação importante. Foram utilizados métodos emprestados de estudos de
críticas literárias, linguística social, história e cultura. Como consequência, foram
geradas compreensões mais estruturadas dos processos de formulação de políticas,
negociação de identidades e experiências de subordinação. O alcance daquilo que
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 181

poderia resultar da atenção à educação dos mais pobres ampliou-se


consideravelmente, mas, de maneira geral, essa amplitude não foi acompanhada
pela preocupação com estratégias e políticas.

O desenvolvimento humano e a abordagem de capacidades


A abordagem de desenvolvimento humano e capacidades, associada ao trabalho
de Mahbub Ul Haq (1995), Amartya Sen (1992, 1999) e Martha Nussbaum
(2000, 2006), reposiciona a educação como uma questão distribucional, mas dá
atenção considerável à diversidade humana, embora de forma diferente daquela
sugerida pela teoria pós-colonial. O desenvolvimento é definido por Ul Haq como
uma abordagem segundo a qual os indivíduos são posicionados no palco central:
O desenvolvimento é analisado e compreendido em termos do indivíduo. Cada atividade é
analisada para verificar quantas pessoas participam ou beneficiam-se dela. A melhoria da vida
dos indivíduos, e não apenas a expansão de processos de produção, torna-se a pedra de toque do
sucesso de políticas de desenvolvimento (UL HAQ, 1995).

Como consequência, saúde e educação, que formam os indivíduos, são tão


importantes para o desenvolvimento quanto aquilo que fazem em seu trabalho, suas
políticas ou seu lazer. Implicitamente, a educação nesse caso é um processo que
estimula o desenvolvimento humano e a expressão do prazer do desenvolvimento
humano.
As ideias de Ul Haq sobre desenvolvimento humano baseiam-se explicitamente
na noção de capacidade e na percepção de Sen de que, ao olhar para a igualdade,
não se deve avaliar igualdade de oportunidade ou de resultados, mas de capacidades,
ou seja, a “habilidade do indivíduo de realizar atos de valor ou de alcançar estados
valiosos do ser [...] combinações alternativas de tudo o que um indivíduo é capaz
de fazer ou de ser” (SEN, 1993, p. 30). Desse modo, a abordagem indica a
importância da avaliação dos arranjos sociais, econômicos e políticos de que as
pessoas conseguem desfrutar, e de fato desfrutam, por uma expansão das liberdades.
Assim sendo, ao lidar com educação, precisamos avaliar não apenas insumos
(número de professores ou de salas de aula) ou resultados (nível de qualificações
educacionais), mas também se existe uma gama de oportunidades para ações de
valor e estados do ser que possam ser alcançadas, e se tais oportunidades se realizam.
Sen interessa-se especificamente pela diversidade humana e pelas formas como, em
diferentes situações, os indivíduos convertem recursos, tais como educação, em
práticas valorativas. Por exemplo, mulheres em uma família patriarcal podem
considerar que têm menor necessidade de educação porque não atribuem valor à
sua contribuição para a família (SEN, 1990). A ampliação do conjunto de
capacidades trata a diversidade de forma diferente da alegação pós-colonial do
reconhecimento de diferenças sem atenção à distribuição ou a instituições sociais.
Sen enfatiza também o significado da participação em processos para selecionar
182 Unterhalter

capacidades de valor e decidir sobre formas de provimento (SEN, 2005). Ao


desenvolver algumas dessas ideias, Martha Nussbaum identificou uma lista de
capacidades fundamentais para o desenvolvimento humano, na qual a educação
tem grande representação. É evidente que os três autores veem o objetivo da
educação como algo muito mais amplo do que desenvolver habilidades que
aumentam o crescimento econômico. Não estão interessados apenas na educação
como um sistema de insumos e resultados, mas como processo por meio do qual
se cultivam reflexões críticas e conexões com outros indivíduos, que são
intrinsecamente éticas, e não apenas instrumentais.
A utilização da abordagem de desenvolvimento humano e capacidades na
prática educacional é hoje mais aparente em termos de aspiração do que de prática.
Embora o estado de Madhya Pradesh, na Índia, utilizasse essa estrutura para
delinear suas políticas de educação, a interpretação nos distritos e nas escolas
mostrou poucos sinais de pleno envolvimento com as ideias-chave (PAGE, 2005).
Foram elaborados argumentos em favor do potencial da abordagem para
desenvolver pedagogias para o ensino superior, avaliações do provimento de
educação para indivíduos com deficiência, novas formas de gestão, e currículo que
envolva questões sobre HIV ou treinamento de assistentes sociais, mas esses
processos precisam ser postos em prática (WALKER, 2006; TERZI, 2005; BATES,
2007; UNTERHALTER, 2008; OTTO; ZIGLER, 2006). Até o momento, o
exemplo mais significativo da abordagem de desenvolvimento humano e
capacidades na educação foi registrado por meio da geração de indicadores
alternativos que avaliam o desenvolvimento.
Ul Haq sugeriu uma medida do desenvolvimento humano que permitisse
classificar países ou distritos, como as medidas de PIB, mas que expressasse de
forma mais abrangente a variedade de aspectos de vida incluídos na abordagem do
desenvolvimento humano. Sen analisou a matemática utilizada para calcular o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (SEN, 2003). O trabalho subsequente
gerou índices para avaliar gênero, pobreza e direitos. A metodologia do IDH foi
adaptada para medir progressos em relação a EPT: o Índice de Desenvolvimento
da Educação (UNESCO, 2003). Um Índice de Igualdade de Gênero e Educação
foi desenvolvido subsequentemente (UNTERHALTER et al., 2005).
A ideia do indivíduo na abordagem de desenvolvimento humano e capacidades
é ativa e reflexiva, considerando não apenas a maximização da utilidade, conforme
interpretação da teoria do capital humano, ou a incorporação à modernidade, mas
uma ampla gama de coisas e seres valorizados. Considerável atenção é dispensada
à diversidade e às diferentes condições que restringem a realização de capacidades.
O indivíduo não se dedica apenas ao crescimento econômico, como na teoria do
capital humano. Pode ser muito mais coagido por condições de exploração e
opressão, conforme destacou a teoria marxista e pós-colonial. No entanto,
questiona-se o pressuposto na teorização pós-colonial de que o indivíduo não pode
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 183

ser conceituado ou agir fora de formas específicas de discurso e que as experiências


de identidades híbridas levantam questões significativas em relação à justiça.
Embora Sen tenha criticado os conceitos de necessidades básicas (1981) ao
formular sua noção de capacidades, na prática há muitas formas pelas quais a
abordagem de desenvolvimento humano pode ser considerada uma continuação
da abordagem de necessidades básicas. Os vínculos entre capacidades e necessidades
básicas continuam a ser muito discutidos, e a preocupação da abordagem de
capacidades em ampliar o escopo da avaliação de resultados unidimensionais para
noções mais amplas de prosperidade tem muito em comum com avaliações de
necessidades (READER, 2006; ALKIRE, 2002; TERZI, 2007).
Sen e Nussbaum desenvolveram suas ideias sobre capacidades, em parte como
um envolvimento com o trabalho de John Rawls em “A theory of justice” (1973)
e “Political liberalism” (2005). Assim como Rawls, estão interessados em questões
distribucionais de justiça, mas tentam desenvolver suas ideias, uma vez que a
própria noção de capacidade proporciona dimensões para reflexões sobre justiça e
distribuição que suplementam a ênfase de Rawl sobre bens primários (ROBEYNS,
2006a). Além disso, Sen sugere que uma teoria de justiça na contemporaneidade
de sérias desigualdades exige não uma teoria transcendente completa, mas sim
percepções para fazer avaliações comparativas que permitam ações para fazer do
mundo um lugar menos injusto (SEN, 2006a). Em algumas situações, o autor
indica que questões sobre justiça devem estar relacionadas com reconhecimento,
linguagem e identidade, mas o caminho até essa conclusão não é através de críticas
de discursos, mas através de envolvimento rigoroso com debates sobre filosofia
política e reconhecimento de como a construção de identidades antagônicas
geralmente está associada com injustiça (SEN, 2006b).
A abordagem de capacidades tem muito em comum com uma abordagem de
direitos humanos que enfatiza igualdade e não discriminação e a obrigação de
prover educação, por exemplo. As reivindicações que os indivíduos podem fazer
por proteção contra abusos e privações associadas aos direitos humanos apoiam
inúmeras ideias de justiça evocadas pela abordagem de capacidades. Robeyns
(2006b) baseia-se em sugestões de Brighouse (2004) para sugerir que a noção de
capacidade pode fornecer uma base normativa para análise de direitos. Vizard
(2006) argumenta que direitos humanos e a abordagem de capacidades podem
trabalhar juntos em campanhas contra a pobreza para responsabilizar governos pelo
não cumprimento de suas obrigações.
Sen (1999) e Nussbaum (2006) formularam de que forma sua visão de justiça é
global, não apenas local, e deram à educação um lugar significativo em termos de
obrigação mútua entre os indivíduos para ampliar capacidades, o que demanda pensar
na educação em relação a debates sobre cosmopolitismo e processos de justiça global.
Na abordagem de desenvolvimento humano e de capacidades, a ideia do
indivíduo e os conceitos de justiça associados geraram uma abordagem
184 Unterhalter

metodológica diferente. O trabalho de acordo com esse enfoque é caracterizado


por alto nível de multidisciplinaridade baseado em filosofia, economia e sociologia,
e que cruza fronteiras de disciplinas para associar dados de diferentes formatos.
Assim, estatísticas sociais são utilizadas em formas inovadoras de combinação, e
relatos qualitativos fornecem ricas percepções sobre de que forma as capacidades
são compreendidas na prática (RAYNOR, 2007; UYAN, 2007). Aparentemente,
ao utilizar novos enfoques explicativos para tratar a questão da ação global em
educação, a abordagem parece haver superado algumas dificuldades por não gerar
métodos alternativos encontrados pelo enfoque de necessidades básicas. Além disso,
a localização de pesquisas sobre desenvolvimento humano dentro de algumas
organizações das Nações Unidas confere um nível de acesso a contextos poderosos
até então negado a abordagens críticas, como a teorização pós-colonial e de
subdesenvolvimento. No entanto, a capacidade da abordagem de desenvolvimento
humano e de capacidades para utilizar essa conjunção vantajosa em relação à
influência na prática da educação para os mais pobres ainda está por acontecer.

Conclusão
Este capítulo delimitou-se a explorar as formas pelas quais a educação foi
colocada em relação a diferentes teorias do desenvolvimento e as implicações de
ideias associadas sobre justiça social para as pesquisas realizadas. A discussão revelou
de que forma a educação foi vinculada, por diferentes teorias de desenvolvimento
com dispositivos ou resultados específicos (modernização e teoria do capital
humano), a problemas de exploração imperialista e posicionamento dos povos do
terceiro mundo como o “outro” subordinado (teoria pós-colonial e de
subdesenvolvimento), e ao potencial para realizar mudanças que atendam às
necessidades dos mais pobres, facilitem a reflexão crítica e ampliem oportunidades
para demandar e viver uma vida valorizada (abordagem de necessidades básicas,
subdesenvolvimento e de capacidades). As abordagens principais (modernização e
capital humano) colocam a justiça principalmente ao alcance de indivíduos ou
instituições. Relatos críticos destacam as dimensões sociais da justiça, sejam processos
de liberalismo político, demandas por redistribuição rigorosa ou preocupações com
reconhecimento. Embora o enfoque de necessidades básicas e o de desenvolvimento
humano e capacidades tenham presença significativa em documentos de políticas
de instituições como as Nações Unidas e programas resultantes, as ideias sobre justiça
associadas com as duas abordagens são frequentemente ignoradas. Os pressupostos
educacionais da teoria do capital humano e da modernização continuam a controlar
o respeito e a difundir a compreensão de métodos de pesquisa que utilizam para tal
fim. O desafio é transformar aspirações de justiça social contidos em muitos
documentos globais referentes a EPT em políticas que expressem suas ideias
fundamentais e desenvolvam agendas rigorosas de pesquisas para sustentar a ação
global sobre pobreza e educação.
Justiça social, teoria do desenvolvimento e a questão educacional 185

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SEÇÃO 6

CULTURAS, CONHECIMENTO E PEDAGOGIAS


51

O CONHECIMENTO EDUCACIONAL: UM TEMA


NEGLIGENCIADO NA EDUCAÇÃO COMPARADA

Andreas M. Kazamias

A educação comparada, tal como foi desenvolvida na segunda metade do século


XX, ocupou-se principalmente do estudo de sistemas educacionais (suas filosofias,
organização e governança), instituições educacionais (principalmente escolas e
instituições de ensino superior), políticas educacionais, relações (políticas, sociais
e econômicas) entre escola e sociedade, e mudanças, reformas e desenvolvimento
educacionais. Os estudos e os discursos nessas áreas foram desenvolvidos no
contexto de estados nacionais, em bordas ou regiões (por exemplo, as bordas do
Pacífico e do Mediterrâneo, ou União Europeia, América Latina, África e Oriente
Médio), ou foram transnacionais e transculturais. Paradoxalmente, temas
proeminentes, relevantes para os sistemas educacionais e o processo educacional,
embora não tenham sido inteiramente negligenciados, também não receberam a
atenção devida. Os temas em questão relacionam-se ao conhecimento educacional
ou ao conteúdo dos currículos, e à pedagogia; em outras palavras, aos aspectos
intrínsecos da educação.
O conhecimento – sua seleção, organização/classificação e aquisição – tem
sido crucialmente importante para todos os sistemas educacionais modernos.
Segundo M. F. D. Young, “a aquisição de conhecimento é o objetivo central que
distingue a educação, seja ela geral, de adultos, profissionalizante ou superior,
de todas as outras atividades”. Por essa razão, “os debates sobre conhecimento
são cruciais; não quero me referir a conteúdos específicos de conhecimento,
embora sejam importantes; refiro-me aos conceitos de conhecimento em que
se baseiam os currículos” (YOUNG, 2008, p. 81). Também são crucialmente
importantes os debates sobre pedagogia – um tema relacionado, definido por
Robin Alexander, que contribui com esta seção, como “o ato de ensinar, as
teorias contingentes a ele e os debates a seu respeito, por exemplo, o caráter da
cultura e da sociedade, os objetivos da educação, a natureza da infância e da
aprendizagem e a estrutura do conhecimento”. A pedagogia, explica ainda
Alexander, “é o domínio do discurso com o qual é preciso envolver-se de forma
a dar sentido ao ato de ensinar – pois discurso e ato são interdependentes, e não
pode haver ensino sem pedagogia ou pedagogia sem ensino” (ALEXANDER,
2006, p. 6).

193
194 Kazamias

O estudo do currículo como codificação de áreas de conhecimento em disciplinas


e de mudanças curriculares não esteve inteiramente ausente da educação
comparada, como apontou Anthony Welch em 1991; o mesmo aplica-se à
pedagogia. No entanto, em 2000, no periódico britânico “Comparative
Education”, Angela Little, especialista em estudos de desenvolvimento, pôde
afirmar que entre 1977 e 1998 somente 6,1% dos artigos desse periódico “tratavam
de conteúdos curriculares e da experiência do estudante” (ALEXANDER, 2006,
p. 2). E no mesmo número do periódico, Robert Cowen escreveu que “estamos
muito longe de abordar integralmente os temas de currículo, estilos pedagógicos e
avaliação como sistemas de mensagem poderosos que constituem identidades em
loci educacionais específicos” (COWEN, 2000, p. 34).
Este capítulo é uma análise histórica comparativa do tema/problema do
conhecimento educacional tal como codificado nos currículos das escolas
secundárias da Inglaterra em dois períodos da história inglesa moderna: meados
do século XIX e o período atual. Aborda-se a eterna pergunta do currículo sobre
“qual é o conhecimento mais relevante”. Ao mesmo tempo, são feitas referências
de passagem ao mesmo problema na Europa Continental e nos Estados Unidos.
Outros capítulos desta seção examinam o tema do “conhecimento” e das “tradições
de conhecimento” em diversos contextos nacionais e históricos. Um deles, em
particular, aborda a pedagogia – um tema quase esquecido.

Que conhecimento é mais relevante? Uma concepção histórica


Conhecimento e seu valor têm sido uma preocupação epistemológica de todos
os grandes filósofos e pensadores da educação desde a antiguidade; têm sido
também uma preocupação relacionada a currículo entre pedagogos e formuladores
de políticas desde a emergência e o desenvolvimento dos sistemas nacionais
modernos de educação no mundo pós-iluminista. Por exemplo, a formulação
racional de Platão sobre a ascensão da educação partindo da crença para o
conhecimento racional verdadeiro, a estratificação aristotélica do conhecimento
entre as prestigiosas artes/ciências liberais teóricas (eleutheriai epistemai) e as artes
práticas não liberais, anti-intelectuais e materialistas (banausic), o racionalismo
científico de Descartes, o empirismo de Locke, a cultura científica de Herbert
Spencer, e o “como pensamos” instrumental na resolução de problemas de John
Dewey tiveram influência, em maior ou menor grau, em diferentes períodos
históricos, no pensamento e planejamento educacionais relativos à seleção, à
organização e à estratificação do conhecimento de currículo.
Na era pós-iluminismo de modernização e democratização, quando estavam
sendo constituídos os sistemas nacionais públicos de educação, Herbert Spencer, o
sociólogo evolucionista social inglês, levantou a questão “qual conhecimento é mais
relevante” em uma sociedade industrial como a Inglaterra, e que, portanto, merece
ser incluído no currículo escolar (SPENCER, 1859). Ao levantar essa questão,
O conhecimento educacional 195

Spencer contestava a hegemonia da paideia/cultura humanística liberal que


caracterizava as tradições europeias e norte-americanas de conhecimento e o
currículo das escolas e das universidades, não só na Inglaterra, mas também nos
países da Europa Continental (por exemplo, França, Alemanha, Itália, Grécia) e
nos Estados Unidos (McCLEAN, 1995; WINTERER, 2002; DIMARAS, 1973,
KAZAMIAS, 1960).
A pergunta de Spencer, formulada na mesma época em que foi publicado o
tratado científico “A origem das espécies” (1859), de Charles Darwin, desencadeou
uma controvérsia que envolveu alguns dos principais intelectuais ingleses do
período vitoriano intermediário (por exemplo, filósofos, acadêmicos clássicos,
poetas e cientistas), e educadores que atuavam na prática, e que girou em torno do
conteúdo da educação geral ou liberal, em termos de estudos curriculares, o que à
época era considerado o tipo de educação mais prestigioso e valorizado.
Especificamente, a grande controvérsia do momento, segundo o filósofo político
J. S. Mill, importante participante do debate, era “a questão inquietante entre os
idiomas antigos e as ciências e artes modernas; se a educação geral deve ser clássica
– permitam-me utilizar uma expressão mais ampla e dizer ‘literária’ – ou científica”.
(MILL, 1867, p. 5). Em 1960, fiz uma análise histórica comparativa dessa
controvérsia (KAZAMIAS, 1960), que não seria necessária nesta seção. Para meus
objetivos neste capítulo, é suficiente comentar brevemente qual conhecimento era
considerado relevante ou mais relevante em um período histórico específico – o
século XIX – na Europa pós-iluminista moderna e, portanto, que conhecimento,
sob a forma de disciplinas ou estudos, era mais relevante para que fosse incluído
no currículo das escolas secundárias.
Na época em que Spencer levantou a famosa questão, o conceito dominante de
“conhecimento mais relevante” na Inglaterra e na Europa Continental podia ser
sintetizado como “cânone humanístico liberal eurocêntrico”, ou “paideia humanística
liberal eurocêntrica”; tendo como núcleo epistêmico os estudos clássicos – idiomas e
culturas greco-latinos. Na França, era intrínseco ao conceito de culture générale
(HALLS, 1965); na Alemanha era referido como Allgemeine Menschenbildung
(LOVLIE et al, 2003); e na Grécia, como enkyklios paideia (DIMARAS, 1973;
ANTONIOU, 1987). O cânone/paideia humanístico liberal eurocêntrico denotava
essencialmente “estudos literário-filológicos”; sua orientação era “não utilitária”, “não
prática”, e economicamente “não instrumental”; era considerado de status superior
ao da educação profissionalizante; e era legitimado epistemologicamente em termos
de valor como disciplinador da mente, e moralmente em termos de sua qualidade
intrínseca para o cultivo de valores morais cristãos e outros – por exemplo, piedade,
bondade, honestidade, patriotismo e o ideal do serviço público. Entretanto, quando
interpretados sociologicamente, o conhecimento e o conteúdo dos currículos escolares
196 Kazamias

são socialmente produzidos e adquiridos (YOUNG, 2008, p. 88) e, portanto, não


podem ser considerados independentes do contexto social e político-histórico no
qual são desenvolvidos; o domínio da paideia humanística liberal geral pode ser
esclarecido quando visto pelo prisma da cultura elitista, nacionalmente
monocromática, da Inglaterra do século XIX, e sua concomitante estrutura elitista
de poder político. Nesse contexto histórico, o que foi particularmente extraordinário,
segundo o historiador D. W. Brogan, “foi a ideia de que somente uma ‘escola pública’1
poderia oferecer uma educação adequada para um rapaz desempenhar papel de
comando nos negócios, na política, no exército, no serviço público e até mesmo nas
artes” (BROGAN, 1943).
Na grande controvérsia da década de 1860, Spencer e cientistas eminentes,
como T. H. Huxley, J. Tyndall e M. Faraday, contestaram a hegemonia da educação
humanística literária clássica, e defenderam a causa da educação científica por um
lugar importante no currículo das escolas. Estes e outros – como os classicistas F.
W. Farrar e H. Sidgwick, e poetas como M. Arnold e J. Ruskin – argumentaram
em favor de uma educação geral liberal, que incluiria estudos humanistas clássicos,
ciências e outras disciplinas modernas, como história e idiomas estrangeiros
modernos (KAZAMIAS, 1960; JORDAN; WEEDON, 1994). Argumentava-se
que o tipo humanista clássico eurocêntrico e elitista de conhecimento e paideia
não atenderiam às necessidades de uma sociedade industrial e democrática moderna
em desenvolvimento. A inclusão de ciências, por exemplo, no currículo das
prestigiosas Grammar Schools e Public Schools foi defendida não apenas por seu
valor como fator de disciplina mental, mas também por seu utilitarismo
instrumental, realismo e naturalismo em uma sociedade industrial. Como apontou
o historiador J. S. Brubacher, T. S. Huxley, o defensor da educação científica:
adotou a linha geral de que, para uma grande nação colonial como a Inglaterra, com vastos interesses
industriais e comerciais, era uma política extremamente míope não oferecer instrução em física e
química, na qual se baseava sua grandeza industrial e comercial (BRUBACHER, 1947, p. 265).

O questionamento da hegemonia do conhecimento humanístico liberal, tendo


como núcleo os estudos clássicos, também se evidenciou na França, na Alemanha
e nos Estados Unidos. Na França, por exemplo, onde a dominância da cultura geral
humanística era ainda mais resistente do que na Inglaterra desde os tempos de
Napoleão, segundo o historiador F. Ringer (1987), “a partir da década de 1870 e
até o final do século o debate corrente sobre o programa especial ou moderno...
foi acompanhado por uma discussão quase igualmente intensiva sobre o currículo
secundário clássico” (para a França, ver também TALBOT, 1969; para a Alemanha,
ver ALBISETTI, 1987; para os Estados Unidos, ver KLIEBARD, 1986).

1. NT: Na Inglaterra, public school não denota escola estatal, e sim uma escola privada de elite, acessível
somente para os situados na extremidade superior da hierarquia social e econômica.
O conhecimento educacional 197

Embora na Inglaterra e na Europa Continental os educadores modernistas do


século XIX estivessem pedindo um currículo extensivo de educação geral que
incluísse ciências e outras disciplinas modernas, sua concepção de uma educação
geral abrangente, de conhecimento ou de paideia mais relevantes, ainda era elitista,
eurocêntrica, teórica, privilegiada e liberal no sentido aristotélico do termo. Com
exceção da concepção de Spencer, não incluía o que Aristóteles chamou de banausic
– isto é, estudos/artes práticas, não teóricos e não liberais, anti-intelectuais e
materialistas..Ao final do século XIX e início do século XX, na Inglaterra, na França
e na Alemanha a educação geral foi expandida e foram incluídos estudos liberais
modernos no currículo das Grammar Schools inglesas, dos lycées franceses e dos
Gymnasia alemães.
A ideia de Spencer sobre conhecimento curricular mais relevante não foi
disseminada na Europa. Foi disseminada nos Estados Unidos, onde Spencer era
muito lido, como se refletiu no “Relatório sobre princípios básicos de reorganização
da educação secundária nos Estados Unidos”. Segundo Kliebard, uma autoridade
na história do currículo americano, “de longe a parte mais proeminente do
relatório”, que foi um marco fundamental na educação secundária norte-americana,
“foi a afirmação das sete metas (princípios) que orientariam o currículo: (1) saúde;
(2) domínio de processos fundamentais; (3) envolvimento familiar relevante; (4)
vocação; (5) cidadania; (6) uso relevante do lazer; (7) caráter ético” (KLIEBARD,
1986, p. 112-114). Em sua análise histórica sobre o desenvolvimento do currículo
americano, Kliebard apontou ainda que:
1918 pode ser considerado o ano em que a posição humanista que se refletia no ‘Eliot’s Committee
of Ten Report’2 [publicado em 1983] foi forçada a colocar-se na defensiva, uma vez que não
desempenhava mais o papel dominante que tinha tido anteriormente na batalha pelo currículo
americano (KLIEBARD, 1986, p. 115).

Que conhecimento é mais


relevante na Europa do Conhecimento?
A sequela moderna tardia na União Europeia
Na Europa Ocidental e na América do Norte, as questões relativas a qual
conhecimento é mais relevante, quais devem ser os ingredientes essenciais do
conhecimento para o currículo das escolas, e de que forma o conhecimento escolar
deve ser organizado e ensinado continuam a ser temas/questões que já eram
discutidos em diferentes períodos históricos no decorrer do século XX. Debates dessa
natureza apareceram particularmente nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra

2. NT: Relatório do “Comitê dos Dez”, chefiado pelo Reitor da Universidade de Harvard, Charles W. Eliot,
com recomendações para a reforma nacional do currículo da escola secundária, visando ao treinamento e à
disciplina da mente por meio de estudos acadêmicos – uma recomendação que perdeu força como modelo
nos anos seguintes.
198 Kazamias

Mundial. A pergunta colocada por Herbert Spencer: “qual o conhecimento mais


relevante?” continua a ser tão básica e desafiadora hoje – no que chamei em outro
capítulo, da seção 7 desta obra, “A admirável nova cosmópole da globalização” e “A
sociedade da informação / conhecimento tecnológico / aprendizagem” da
modernidade tardia e mesmo da pós-modernidade (ver também CASTELLS, 1998)
– quanto o foi no cosmos industrial da modernidade euro-americana do século XIX.
A literatura sobre esse tema é vasta e até mesmo uma revisão superficial está além
do escopo deste capítulo. Examino alguns desenvolvimentos e análises mais
importantes sobre esse tema no mundo anglo-saxônico do pós-guerra em outro
capítulo, já mencionado, na seção 7 desta obra.
Sociedade do conhecimento
A sociedade do conhecimento (SC) e termos coextensivos, tais como “sociedade
da informação” e “sociedade da aprendizagem” têm-se tornado recentemente objeto
de estudos dominantes a respeito da solidez e do desenvolvimento econômicos da
União Europeia (UE) e dos países membros. “A Europa que estamos construindo”
– teria afirmado o ministro francês da Educação em 1998 – “não é apenas a Europa
do euro, a Europa dos bancos e da economia; precisa ser também a Europa do
Conhecimento”. No “White Paper on growth, competitiveness and employment”,
apresentado em 1993, afirma-se que, diante de mudanças mundiais tais como a
globalização, o surgimento da “sociedade da informação” e o rápido
desenvolvimento da tecnociência, tornou-se imperativo que a UE se transformasse
em sociedades “baseadas no conhecimento” (EUROPEAN COMMISSION,
1993). No influente e amplamente divulgado “White Paper on teaching and
learning: towards the learning society”, de 1995, lê-se:
Seja como for, atualmente os países europeus não têm outra opção. Se quiserem preservar-se e
continuar a ser referência no mundo, precisam capitalizar o progresso decorrente de vínculos
econômicos mais estreitos por meio de investimentos mais substanciais em conhecimento e
competências (EUROPEAN COMMISSION, 1995, p. 1).

O que é uma sociedade do conhecimento? A sociedade do conhecimento tem sido


conceituada de diversas formas. A. Hargreaves as define em termos de três dimensões:
Em primeiro lugar, (SC) compreende uma esfera científica, técnica e educacional expandida [...]
Em segundo lugar, envolve maneiras complexas de processar e circular conhecimento e
informação em uma economia baseada em serviços. Em terceiro, implica mudanças básicas na
forma pela qual as organizações corporativas funcionam de maneira a promover mudanças
contínuas em produtos e serviços, criando sistemas, equipes e culturas que maximizam as
oportunidades de aprendizagem recíproca espontânea (HARGREAVES, 2003, p. 9).

A partir de uma perspectiva marxista crítica, C. Stamatis, acadêmico grego,


conceituou a SC como segue:
O conhecimento educacional 199

O núcleo conceitual de uma ‘sociedade do conhecimento’ reflete, em essência, uma tendência


capitalista atual que é também ratificada ideologicamente. Significa a utilização do conhecimento
como força produtiva no processo de trabalho sob as condições do capitalismo tardio.
Consequentemente, requer-se que o tipo de educação cultivado nas instituições educacionais seja
adaptado a essa utilização do conhecimento (STAMATIS, 2005, p. 115; traduzido do texto grego).

No discurso dominante, parecem caracterizar a SC emergente os seguintes


elementos epistêmicos:
• Enorme desenvolvimento de TICs e de tecnologias de aprendizagem sofisticadas;
surgimento do que M. Castells denominou “sociedade em rede” e do “paradigma
epistemológico de informação/tecnologia” (CASTELLS, 1998; 2000).
• Conhecimento como fator de produção: aumento da importância de
tecnologias da informação e daquilo que D. Guile denominou “conhecimento
codificado” (GUILE, 2002) para a acumulação de capital e o desenvolvimento
sustentável em uma economia global competitiva.
• Racionalidade instrumental tecnocientífica.
• Conhecimento como commodity.
• Modos de organização da vida e do trabalho em processo de mudança: uma
“organização de aprendizagem” (SENGE, 1990); uma “força de trabalho
flexível”, um “trabalhador do conhecimento” (DRUCKER, 1994); a
“organização-complexa” (HANDY, 1989).
• Uma renegociação de poder entre estruturas de poder estabelecidas (por
exemplo, Estados, mercados, sociedades civis, organizações internacionais).

Uma Europa do Conhecimento por meio de educação e treinamento


Os discursos sobre SC e sobre conhecimento – o que é, quais são suas formas,
e de que maneira é adquirido – têm incluído invariavelmente referências a educação
e treinamento, e aos locais que tradicionalmente têm sido responsáveis por
produzir, reproduzir e disseminar o conhecimento – isto é, escolas e instituições
de ensino superior, e universidades. Nos textos da UE, é introduzido um discurso
educacional europeu (discurso e práticas de políticas) que enfatiza o
desenvolvimento de habilidades e competências para atender às necessidades do
Mercado Europeu Unificado e da SC europeia integrada e da economia competitiva
baseada no conhecimento na Europa. Embora alguns textos façam referência a uma
educação sólida de base ampla, o que se destaca no discurso europeu é o
favorecimento de certos tipos de conhecimento, habilidades e competências – por
exemplo, educação em TICs, racionalidade instrumental tecnocientífica, e
competências profissionais para obtenção de vantagens competitivas, de modo que,
como foi colocado pelo Conselho de Lisboa em 2000, em 2010 a Europa passe a
ser “a economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo, capaz
de crescimento econômico sustentável acompanhado por melhoria quantitativa e
200 Kazamias

qualitativa do emprego e maior coesão social” (Conclusões do Conselho de Lisboa,


2000). O viés de conhecimento instrumental no discurso educacional da UE fica
patentemente claro no texto “Towards a Europe of Knowledge”, lançado em 1997.
Lê-se nesse texto:
Notando que estamos ingressando na ‘sociedade do conhecimento’, a Comissão propõe em sua
Agenda 2000 tornar as políticas que motivam essa sociedade (inovação, pesquisa, educação e
treinamento) um dos quatro pilares fundamentais das políticas internas da União. [...]
Competitividade econômica, emprego e realização pessoal dos cidadãos europeus não são mais
baseados principalmente na produção de bens físicos, nem o serão no futuro. A verdadeira
criação de riquezas será, de agora em diante, associada à produção e à disseminação de
conhecimento, e dependerá, em primeiro lugar e principalmente, de nossos esforços no campo
da pesquisa, da educação e do treinamento, e de nossa capacidade de promover inovação. É por
esse motivo que precisamos criar uma verdadeira ‘Europa do Conhecimento’ (EUROPEAN
COMMISSION, 1997).

No já mencionado e amplamente citado “Teaching and Learning: towards a


learning society” (1995), obtém-se um quadro mais claro sobre o discurso
educacional da UE em relação à SC europeia e à Europa do Conhecimento. Esse
importante texto rende homenagem à globalização – isto é, “a internalização do
comércio, o contexto global de tecnologia e, acima de tudo, o surgimento da
sociedade [global] da informação”. Segundo o texto, na “sociedade da
aprendizagem”, do futuro, conhecimento e habilidades cognitivas serão criticamente
importantes, especialmente conhecimento e habilidades em tecnociências e
matemática, e particularmente para fins de crescimento e prosperidade econômicos.
Ao mesmo tempo, entretanto, o White Paper recomendou que a educação e o
treinamento na sociedade da aprendizagem (leia-se também sociedade do
conhecimento) não devem ser estritamente instrumentais, mas sim ter finalidades
múltiplas. Deve-se (a) focalizar uma base ampla de conhecimento e enfatizar
amplitude e flexibilidade, e não restrições; (b) construir pontes entre as escolas e o
setor empresarial; (c) combater a exclusão social; (d) desenvolver proficiência em
pelo menos dois idiomas estrangeiros, isto é, em três idiomas da Comunidade; e (e)
“tratar investimentos de capital e investimentos em treinamento de modo
igualitário”. Além disso, o White Paper discorreu sobre a importância do
desenvolvimento pessoal, a transmissão da herança cultural e o ensino de
autoconfiança. Por fim, referiu-se ao desenvolvimento de valores humanos e
cidadania que, segundo afirma, “é essencial para que a sociedade europeia seja aberta,
multicultural e democrática” (EUROPEAN COMMISSION, 1995).
Entretanto, a partir de uma leitura cuidadosa desse texto, observa-se que, na
Europa do Conhecimento imaginada, receberam maior ênfase e espaço a aquisição
de certos tipos de conhecimento e o desenvolvimento de habilidades cognitivas e
profissionalizantes que seriam instrumentais para a empregabilidade produtiva do
trabalhador, para a acumulação de riqueza e o crescimento econômico, e para a
O conhecimento educacional 201

prosperidade da União Europeia. A esse respeito são bastante apropriados os


comentários críticos de John Field sobre a orientação reformista do White Paper:
Embora o White Paper tenha pretensamente expressado a necessidade de desenvolvimento pessoal
e de aprendizagem social, e até mesmo de cidadania ativa e de treinamento, não houve indícios
de que a Comissão tivesse quaisquer propostas concretas nessas áreas (FIELD, 1998, p. 75).

De fato, o autor acrescentou que “o White Paper simplesmente replicou a


delimitação estabelecida entre treinamento profissionalizante e educação geral”
(FIELD, 1998, p. 75). E segundo J. Spring, até mesmo disciplinas como literatura
e filosofia, sem mencionar ciências e matemática, não foram consideradas por “sua
beleza ou satisfação pessoal intrínsecas”, e sim por seu valor instrumental para a
promoção da posição da Europa na economia global” (SPRING, 1998, p. 105;
ver também GROLLIOS, 1999).
O discurso educacional que vem sendo promulgado pela União Europeia para
a Europa do Conhecimento imaginada pode ser resumido em termos da seguintes
ideias-chave:
• Educação e treinamento, racionalidade instrumental, e não paideia.
• Base em conhecimento tecnocientífico/informação, e não educação geral/liberal
e cultura humanística/paideia (culture générale, Allgemeine Bildung).
• Habilidades cognitivas, profissionalizantes e sociais flexíveis, que possam ser
facilmente avaliadas e constantemente renovadas; competitividade, empreende-
dorismo, empregabilidade, inovação, criatividade, produtividade, reconhecimento.
• Ênfase em competências (teóricas, práticas, cognitivas), na sua maioria,
instrumentais; ênfase reduzida em disposições estéticas e éticas e em virtudes
cívicas – o que eu chamaria de paideia da alma.
Por fim, seria pertinente fazer referência aqui às observações perspicazes de A.
Hargreaves sobre os discursos contemporâneos de reforma do ensino (e da
educação) na “sociedade do conhecimento” e na correspondente “economia
baseada no conhecimento”. Hargreaves argumenta que as sociedades capitalistas
contemporâneas que são também economias baseadas no conhecimento servem
principalmente ao bem privado; suas escolas são geridas para desenvolver
aprendizagem primordialmente cognitiva, habilidades e competências
instrumentais para uma sociedade do conhecimento e uma economia do
conhecimento. Porém, segundo ele, uma economia baseada no conhecimento é
uma “força de destruição criativa”. Por um lado, “estimula o crescimento e a
prosperidade”, mas por outro, “sua busca inexorável de lucro e autointeresse
também tensiona e fragmenta a ordem social”. Nas economias baseadas no
conhecimento, os sistemas escolares “ficaram obcecados com a imposição e a
microgestão de uniformidade curricular”, ao invés de “promover criatividade e
engenhosidade”. Hargreaves acrescenta:
202 Kazamias

Ao invés de missões ambiciosas de solidariedade e comunidade, escolas e professores foram


empurrados para a visão estreita de escores de testes, metas de realização e tabelas de classificação
por resultados. E ao invés de cultivar uma identidade cosmopolita e a emoção básica de
consideração, que Adam Smith chamava de alicerce emocional da democracia, um número
excessivo de sistemas educacionais promove sentimentos exagerados e autoorientados de
identidade nacional (HARGREAVES, 2003, p. xvi-xvii, 9).

Qual conhecimento é mais relevante?


Olhando retrospectivamente para o futuro
A partir do exposto acima, pode-se inferir que o conhecimento “de maior
valor” ou “mais relevante” na “sociedade em rede” da Europa globalizada na
modernidade tardia é diferente do conhecimento que caracterizou a
modernidade inicial da Europa industrial do século XIX. Na Europa industrial
do início da modernidade, o conhecimento “mais relevante” era aquele que
poderia ser denominado “conhecimento humanístico liberal”. Na Europa
contemporânea pós-industrial, de modernidade tardia, globalizada e baseada
em tecnologia e em informação, o conhecimento “mais relevante” e privilegiado
é a racionalidade tecnocientífica e instrumental. Como argumentei em outro
capítulo, na seção 7 desta obra, parece que a globalização neoliberal e o “ethos
instrumentalista do fundamentalismo do mercado”, com sua ênfase em
racionalidade instrumental, produção de conhecimento útil, e aquilo que F.
Furedi denominou “preocupações anti-intelectuais e materialistas”, estão
produzindo efeitos corrosivos sobre a cultura liberal, as artes e a “vida da mente”
(FUREDI, 2004). Comentando os programas de ação da União Europeia –
Socrates, Leonardo da Vinci, Erasmus, Arion e Comenius –, Field apontou que
a ênfase desses programas é “inexoravelmente profissional, utilitária e
instrumental”, segundo ele, uma “opção tecnológica” que criou uma tensão
entre “instrumentalismo” e o apego europeu à tradição humanística da educação
(FIELD, 1998, p. 8).
Pode-se especular que um Herbert Spencer ressuscitado muito
provavelmente receberia bem esse movimento do pêndulo epistemológico,
passando de um tipo de conhecimento geral e humanístico para um tipo
predominantemente técnico-científico, instrumental e pragmático. Mas em
minha opinião, um T. H. Huxley ressuscitado, embora também defendesse
uma educação científica, não faria o mesmo. Na grande controvérsia da década
de 1860 a respeito de qual conhecimento era mais relevante, Huxley alertou
contra a “exclusividade” e o desequilíbrio nos estudos curriculares; pois como
colocou habilmente, “o valor da carga não compensa a desestabilização do
navio” (HUXLEY, 1902, p. 153-154).
O conhecimento educacional 203

Conclusão
Recentemente, Michael Young, renomado sociólogo do currículo e crítico das
tendências educacionais contemporâneas na medida em que afetam o conhecimento
educacional e o currículo, argumentou enfaticamentou sobre a necessidade de “trazer
o conhecimento de volta para a educação” e de que uma sociedade do futuro
“incorporasse uma economia orientada para o conhecimento, ao invés de um sistema
educacional orientado pela economia” (1998, 2008). Em outro capítulo desta
publicação, intitulado “Agamenon contra Prometeu: globalização, sociedades do
conhecimento/aprendizagem e paideia na nova cosmópole”, no qual examino
criticamente as consequências negativas da globalização sobre a educação, argumento
pela recuperação do encantamento da “paideia humanística” no sentido amplo do
termo, que identifico como “humanismo prometeico”, que incluiria “todas as artes
humanas, teóricas e práticas”.

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52

QUAL CONHECIMENTO É MAIS


RELEVANTE? UMA ANTIGA QUESTÃO
REEXAMINADA NA INGLATERRA

Denis Lawton

É um pressuposto deste capítulo que a educação, e especialmente o currículo,


devem ser examinados em um contexto específico antes de serem feitas tentativas
de generalização, mesmo que modestas. O foco deste trabalho estará centrado
principalmente na Inglaterra: as histórias recentes do País de Gales, da Escócia e
da Irlanda diferem consideravelmente da história da Inglaterra. Por exemplo, desde
que a política educacional do País de Gales foi delegada pelo Parlamento do Reino
Unido à Assembleia Nacional Galesa na década de 1990, foi atribuída muito maior
prioridade à identidade galesa no currículo nacional do que é dada à identidade
inglesa no currículo nacional inglês.
Na Inglaterra, a questão “qual conhecimento é mais relevante?” usualmente foi
tomada como já estabelecida e não atraiu atenção específica. Nesse país, políticos
e outros tomadores de decisão, inclusive educadores, tenderam a olhar
retrospectivamente para justificar o currículo mais em termos de tradição do que
de uma investigação epistemológica fundamental. Quando a questão foi abordada
especificamente, isso decorreu quase sempre de pressões sociais, de natureza política
ou econômica. Esses tipos de mudanças sociais tenderam a ser mais significativos
do que mudanças nas ideias ou na teoria e na prática educacionais.
Uma das publicações mais conhecidas entre aquelas que abordam a questão do
conhecimento relevante no currículo escolar foi formulada por Herbert Spencer
(1820-1903). Em seu ensaio “Education” (1861), Spencer deixa claro que o motivo
de seu questionamento do conteúdo do currículo escolar era o fato de terem
ocorrido enormes mudanças sociais e econômicas na Inglaterra no século XVIII e
início do século XIX, mas essas mudanças não estavam refletidas suficientemente
– se é que tiveram algum reflexo – nos currículos escolares. A Inglaterra foi pioneira
na Revolução Industrial do século XVIII, que produziu todos os tipos de pressões
sociais e econômicas no século XIX, mas essas mudanças foram amplamente
ignoradas pelas escolas. O currículo das escolas públicas ou independentes ainda
se concentrava basicamente em latim e grego, e talvez alguma matemática, quando
as formas dominantes de conhecimento eram então a ciência e a tecnologia.
No século XX, o sistema educacional e também o currículo foram reexaminados
em diversas ocasiões: a Lei de Educação, de 1902, e a Regulamentação da Escola

205
206 Lawton

Secundária, de 1904; a Lei de Educação, de 1944; o Currículo Nacional, de 1988,


com adições e modificações subsequentes até o final do século.
Uma preocupação central deste capítulo é examinar essas ocasiões de mudança
curricular e tentar analisar as pressões sociais ou combinações de pressões
(econômicas, políticas e ideológicas) que foram responsáveis pelo reexame do
sistema educacional e por quaisquer mudanças feitas no currículo. Sugere-se
também que essas mudanças sociais normalmente tiveram prioridade sobre
mudanças nas ideias educacionais.

A Lei de Educação, de 1902, e a


Regulamentação da Escola Secundária, de 1904
No início do século XX, as mudanças que preocupavam Spencer no século XIX
resultaram na Inglaterra em algo como uma crise na disponibilidade de força de
trabalho instruída. Na região da City1, em Londres, e em outros locais, havia uma
demanda muito maior por funcionários alfabetizados e com habilidades numéricas
do que o sistema escolar produzia. Diante disso, pela primeira vez na história da
Inglaterra, o governo autorizou gasto de dinheiro público para fins de educação
secundária estatal (a Lei de Educação, de 1870, só tinha aprovado gastos de
dinheiro público em escolas elementares – a educação secundária tinha sido
explicitamente excluída). A Lei de Educação Balfour, de 1902, em consequência,
estimulou as Autoridades Educacionais Locais2 a utilizar parte de seus recursos para
financiar escolas secundárias. Logo depois dessa Lei, o Board of Education3 inglês
elaborou um conjunto de normas para o currículo do secundário – a
Regulamentação da Escola Secundária, de 1904 –, que controlava estritamente o
que poderia ou deveria ser ensinado. (A noção manifestada algumas vezes de que
até 1988 não havia controle do currículo não faz sentido algum. Isso é importante,
porque a partir desse momento uma das pressões sobre o currículo foi a
preocupação política da autoridade educacional central de exercer algum controle
sobre seu conteúdo).
Esses acontecimentos no início do século XX não foram simplesmente uma
questão de relevância do conhecimento, mas também de até que ponto
conhecimentos relevantes deveriam ser compartilhados pelo conjunto da população.
O acesso à educação secundária seria restrito a uma pequena minoria dos jovens a

1. NRTT: A City é uma pequena área no centro de Londres. É um dos maiores centros financeiros do mundo,
junto com Nova York. É normalmente denominada The City (a Cidade) ou The Square Mile (a Milha
Quadrada), termos usados como metonímia para a indústria dos serviços financeiros no Reino Unido.
2. NRTT: A Autoridade Educacional Local (Local Educational Authority, também referida como LEA),
pertecente à Autoridade Local, é o órgão governamental local responsável pela educação na sua jurisdição.
Atualmente existem 152 Autoridades Educacionais Locais na Inglaterra, 33 das quais estão em Londres. As
Autoridades Locais (equivalentes a prefeituras) são responsáveis, nas diferentes regiões da Inglaterra, pelos
serviços públicos referentes a educação, habitação, planejamento, dentre outros.
3. NT: Conselho de Educação.
Qual conhecimento é mais relevante? 207

partir de 11 anos de idade: a grande maioria do grupo etário de 5 a 13 ou 14 anos


ficaria limitada ao currículo da escola elementar, que consistia basicamente de leitura,
escrita, matemática elementar e educação religiosa. Aqueles que elaboravam o
currículo da escola secundária estavam muito conscientes de que era importante
preservar a distinção entre educação elementar para todos e educação secundária
para alguns poucos selecionados, que seguiriam um currículo semelhante àquele em
vigor para alunos que podiam pagar os encargos das escolas independentes. De certo
modo, a Lei de 1902 tinha dado um passo na direção da educação para todos, mas
naquele momento não era visto dessa forma, e mal podia ser percebido como dotado
de intenções ou resultados democráticos; provavelmente, quase o inverso.

A Lei de Educação de 1944


Em 1944, próximo ao final da Segunda Guerra Mundial, quando posições
igualitárias eram manifestadas por muitos cidadãos, deu-se um passo muito mais
significativo rumo à educação secundária para todos, quando a Lei de Educação,
de 1944, decretou que todas as crianças deveriam receber educação gratuita e
compulsória entre 5 e 16 anos, de acordo com idade, aptidão e habilidade. Mais
uma vez, não se tratava de um movimento completo em direção à democratização
da educação, porque em geral a lei foi interpretada pelas Autoridades Educacionais
Locais com o sentido de que todas as crianças teriam acesso a escolas secundárias,
mas não necessariamente as mesmas escolas, e certamente não com o mesmo acesso
ao conhecimento. A resposta à questão “qual conhecimento é mais relevante?”
implicava ainda um pressuposto de diferenciação, se não segundo a classe social,
quase sempre segundo habilidades. Nesse estágio, entretanto, a questão do
conteúdo do currículo não foi explicitamente mencionada na Lei. Alguns afirmam
que a questão foi deliberadamente evitada, de forma a conseguir consenso no
Parlamento, mas a decisão ficou a cargo das Autoridades Locais, sem que fosse
oferecida qualquer orientação do governo central. Dessa forma, a Regulamentação
da Escola Secundária continuou – se não na legislação, pelo menos em espírito –
destinada aos alunos das Grammar Schools4, avaliadas como acadêmicas, e as

4. NT: A Lei de Educacão, de 1944, também chamada Lei Butler, reformulou o sistema de escolas secundárias
na Inglaterra e no País de Gales. A Lei introduziu o chamado sistema tripartido, e tornou a educação gratuita
e compulsória para todos até os 15 anos (até 16, a partir de 1947). O sistema tripartido consistia em três
tipos de escolas secundárias, destinadas a alunos segundo seu desempenho em um exame realizado aos 11
anos de idade (equivalente ao ciclo inicial de nosso ensino fundamental). Os alunos com melhor desempenho
iam para escolas acadêmicas (Grammar Schools): os alunos com desempenho médio iam para escolas técnicas
(Technical Schools); e aqueles com desempenho mais baixo nos exames iam para escolas secundárias modernas
(Secondary Modern Schools), onde aprendiam algumas habilidades práticas simples (marcenaria, culinária)
que lhes permitissem acesso a empregos em fábricas ou em serviços de rotina. Essas escolas não preparavam
os alunos para os O Levels (Níveis Ordinários – exame equivalente à conclusão do ciclo final do nosso ensino
fundamental); este, por sua vez, permitia o acesso aos valorizados A Levels (Níveis Avançados – exames
equivalentes à conclusão do nosso ensino médio), e com isso à universidade. Esse sistema só veio a ser
substituído pelo sistema integrado (Comprehensive System) na década de 1960.
208 Lawton

Autoridades Locais permitiam que outros tipos de escolas (escolas secundárias


modernas e técnicas) estabelecessem seus currículos por si mesmas. Nossa questão
sobre conhecimento e relevância recebeu respostas diferentes para os vários níveis
sociais da comunidade. Mesmo em um momento de maior pressão democrática,
a questão não era considerada como tendo relação com igualdade de acesso a
conhecimentos relevantes.
No entanto, esse descaso pela prioridade política da educação secundária para
todos foi denunciado por um grupo, independente e não governamental, de
educadores. Um grupo autodesignado de especialistas em educação constituiu-se
como o Conselho pela Reforma Curricular. Todas as questões relativas a um novo
currículo foram extensamente discutidas por esse Conselho, e, ao final, produziu
um relatório muito interessante: “The content of education” (1945). Esse grupo
lançou a mais inteligente revisão do currículo escolar disponível até aquele
momento, embora sem contar com apoio oficial e, na verdade, dependeu da
colaboração de £50 provida pelo Instituto de Educação e de £25, da London Co-
operative Society. Algumas das respostas propostas pelo Conselho independente
eram evidentemente avançadas demais para o governo e para a maioria das
Autoridades Locais da época, e não foram sequer levadas em consideração pelo
novo governo trabalhista, em 1945. Entretanto a proposta do Conselho em 1945
foi a de que todos os jovens deveriam ter acesso aos seguintes tipos de conhecimento:
educação moral e religiosa, educação estética (incluindo literatura e artes visuais),
idiomas (inglês e idiomas estrangeiros), matemática, ciências naturais, e ciências
sociais (estudos sociais, história, economia e política).
As recomendações do Conselho foram, em grande parte, ignoradas, embora a
questão da organização da educação secundária (mas não seu currículo) fosse
frequentemente debatida no decorrer dos 30 anos subsequentes. O debate centrou-
se mais na questão da estrutura escolar (deveria haver escolas integradas para todos,
ou escolas separadas – Grammar, Modern ou Technical Schools – segundo as
habilidades dos alunos) do que na questão mais fundamental dos tipos de
conhecimento aos quais todos os jovens deveriam ter acesso.

Mudanças nas ideias educacionais: os pontos de


vista filosóficos e sociológicos sobre o conhecimento
Nesse meio tempo, questões sobre “qual o conhecimento mais relevante”
estavam sendo formuladas no Instituto de Educação da Universidade de Londres.
No Departamento de Filosofia, R. S. Peters tentou, em “Ethics and education”
(1966), examinar os critérios adotados quando nossa questão era abordada de um
ponto de vista filosófico no contexto da avaliação dos currículos escolares. Peter
expressou sua insatisfação com a resposta utilitarista à nossa questão, ou seja, mais
felicidade para o maior número de pessoas. Um de seus colegas, P. H. Hirst,
examinou analisou a questão do conhecimento e da escolarização, e chegou à
Qual conhecimento é mais relevante? 209

conclusão de que muitas teorias educacionais estariam incompletas caso não


elaborassem alguns princípios para decidir quais disciplinas deveriam ser ensinadas.
Criticou alguns enfoques progressistas extremados de educação que enfatizavam
currículos centrados na criança, e também algumas ideias sobre educação para a
autonomia. Afirmou que era inútil falar em motivação, por exemplo, e ao mesmo
tempo ignorar o fato de que a educação não se refere apenas a aprender a aprender,
mas precisa incluir também ideias sobre a natureza do conhecimento e o que deve
ser aprendido. Seguindo esses princípios, Hirst (1975) diferenciou sete formas de
conhecimento, que envolviam conceitos-chave e tipos de procedimentos de
validação diferentes e, às vezes, diferentes métodos de investigação. Isso foi
apresentado por ele como forma de examinar criticamente os currículos escolares
existentes. Suas sete formas de conhecimento eram: matemática e conhecimentos
formais; ciências físicas; ciências humanas, incluindo história; compreensão moral;
religião; filosofia; e estética.
Um pouco mais tarde, sem diminuir o valor das abordagens filosóficas de seus
colegas, D. Lawton (1983) sugeriu que, para responder a questão do conhecimento
e sua relevância sob a perspectiva do currículo, era necessário ir além do
conhecimento acadêmico e da análise linguística filosófica. Sugeriu que também
deveriam ser levadas em consideração as dimensões sociológicas e antropológicas
do conhecimento. Sua proposta consistia em dois tipos de investigação: a primeira,
relacionada aos universais humanos que, segundo ele, existiam sob alguma forma
em todas as sociedades humanas; e que esses universais humanos deram origem a
diferentes tipos de sistemas culturais, envolvendo diferentes tipos de conhecimento.
Essas diferenças estariam em maior evidência em sociedades industriais mais
avançadas do que em comunidades pré-alfabetizadas mais simples, embora
compartilhassem universais humanos. Seu segundo conjunto de proposições foi a
de que os universais humanos podiam ser analisados em termos de sistemas
culturais diferentes, cada um dos quais conteria diferentes tipos de conhecimento
que deveriam ser utilizados como base para a construção do currículo.
Essencialmente, sua abordagem sugeria que cada currículo escolar consistisse
necessariamente em algum tipo de seleção a partir da cultura, mas que muitos
currículos apresentavam lacunas e omissões graves. Como uma das abordagens
possíveis à análise da seleção a partir da cultura, o autor propôs uma série de
sistemas culturais derivados de universais humanos: sociopolítico, tecnológico, de
comunicação, econômico, de crenças, moral, de racionalidade, estético e físico ou
maturacional. Sugeriu que esses sistemas culturais poderiam ser utilizados, não
como uma base para o planejamento de currículos, substituindo as disciplinas
existentes na escola, mas como uma lista de tópicos a serem considerados, de forma
a garantir a inexistência de lacunas importantes no currículo. No caso da Inglaterra,
os sistemas sociopolítico, econômico e de moralidade estavam estranhamente
negligenciados ou, por vezes, completamente ignorados. Recomendou a utilização
210 Lawton

dos sistemas culturais como um lado de uma matriz, sendo o outro eixo as
disciplinas existentes na escola. A interseção dos dois eixos ofereceria uma maneira
de analisar onde estavam presentes lacunas de conhecimento que deveriam ser
preenchidas. Essa matriz não ofereceria uma resposta completa à nossa questão,
mas indicaria o primeiro estágio de uma análise cultural do processo de
planejamento curricular.

O currículo nacional de Kenneth Baker,


de 1998, e as mudanças subsequentes
Houve poucas tentativas oficiais de responder à questão sobre conhecimento e
sua relevância desde o primeiro governo trabalhista (1945) até que Kenneth Baker
e o governo de Thatcher reuniram propostas para um currículo nacional, em 1988.
Em 1979, quando os Conservadores assumiram o governo, não propuseram logo
de início um currículo nacional, e o segundo ministro de Educação de Thatcher,
Keith Joseph, opunha-se ideologicamente à ideia, porque acreditava que as escolas
deviam decidir sobre seus próprios currículos, desde que os pais tivessem o direito
de escolher a escola de seus filhos. No entanto seu sucessor, Kenneth Baker, era
mais modernista e centralista em relação à educação, e reconhecia a necessidade de
melhorar o desempenho das escolas por meio de maior controle sobre o que estava
sendo ensinado. Quando decidiu que a Inglaterra deveria alinhar-se a outros países
avançados da Europa e desenvolver um currículo nacional, Kenneth Baker poderia
ter recorrido a seu próprio grupo de assessores especializados – os Inspetores
Escolares de Sua Majestade (Her Majesty’s Inspectors of Schools – HMI). No entanto,
se o fizesse, suas decisões não refletiriam que havia consultado os HMI apropriados.
Um grupo de Inspetores trabalhava já há alguns anos a ideia de um currículo
comum para as escolas secundárias, e havia até mesmo produzido algumas
publicações sobre o assunto e estimulado algumas escolas pertencentes a algumas
poucas Autoridades Educacionais Locais (LEAs), a tentar certos experimentos
orientados pelo modelo que havia desenvolvido. Embora não tenham abordado
explicitamente nossa questão, os HMI apresentaram algumas propostas bastante
sensatas: utilizar as disciplinas escolares já conhecidas, mas ir além da abordagem
tradicional, enfatizando áreas de conhecimento e experiência. Tal como Lawton,
desejavam claramente ir além das disciplinas puramente acadêmicas das Grammar
Schools, e tentavam produzir um currículo adequado para todos os jovens – um
currículo relevante denominado Entitlement Curriculum, que garantisse aos alunos
o direito de estudar um número maior de disciplinas. É preciso lembrar que, à
época, a maioria das escolas secundárias era oficialmente composta por escolas
integradas – isto é, escolas para qualquer habilidade. As oito áreas de conhecimento
e experiência sugeridas pelos HMI foram: estética/criativa, ética, linguística,
matemática, física, científica, sociopolítica e espiritual (HMI, 1983).
Qual conhecimento é mais relevante? 211

Não está claro se Baker sabia da existência desse modelo de currículo sugerido
pelos HMI, ou do importante trabalho experimental realizado por algumas escolas
secundárias sob a supervisão de seus Inspetores, ou se ele foi aconselhado a ignorar
essas inovações. De qualquer forma, o que aconteceu foi que seu currículo nacional
de 1988 baseou-se apenas em uma lista de disciplinas escolares convencionais, tão
semelhantes à Regulamentação da Escola Secundária de 1904, sendo que muitos
analistas examinaram ambas, colocando-as lado a lado; a conclusão óbvia que
extraíram dessa comparação foi que o currículo nacional de Baker estava de fato
voltado para o passado.

1904 1988
Inglês Inglês
Matemática Matemática
Ciências Ciências
História História
Geografia Geografia
Idioma estrangeiro Idioma estrangeiro moderno
Desenho Artes
Exercício físico Educação física
Trabalhos manuais/domésticos Tecnologia
Música

Ver Aldrich (1988), em Lawton e Chitty (1988).

No entanto, a resposta de 1904 destinada a uma pequena proporção de alunos


acadêmicos não era adequada, mais de 80 anos depois, para um currículo integrado.
Em outras palavras, Baker falhou em formular a pergunta mais importante a
respeito do conhecimento, contentando-se com a meta de melhorar os padrões das
escolas no esforço de produzir uma força de trabalho mais competitiva para uma
sociedade tecnológica. Seria injusto dizer que não estava interessado nas
necessidades curriculares de uma sociedade democrática, mas não tentou incluir
cidadania como um novo campo de estudos embora anteriormente – antes de se
tornar ministro da Educação – tivesse manifestado algum interesse nessa área.
As lacunas no currículo nacional proposto eram tão óbvias que, quase de
imediato, o Conselho Nacional de Currículo (National Curriculum Council –
NCC), um órgão criado oficialmente para monitorar a implementação do
currículo nacional, começou a buscar formas de complementar a lista de
disciplinas por meio de temas intercurriculares, para incluir outras prioridades
educacionais importantes: por exemplo, estudos ambientais, cidadania, educação
para a saúde e educação para o trabalho (nenhuma das quais fazia parte
oficialmente do currículo do secundário pós-1902).
212 Lawton

Dessa forma, mal tinham as escolas se adaptado à nova lista de disciplinas em


1988, e já eram estimuladas a planejar seus próprios currículos, para acomodar as
outras necessidades identificadas pelo NCC. O ministro da Educação não tinha
conseguido formular a questão básica sobre conhecimento e sua relevância, mas
seu NCC havia percebido a perda de oportunidade para uma inovação importante.
Infelizmente, se por um lado o currículo nacional era obrigatório, os acréscimos
do NCC eram apenas recomendações que podiam ser ignoradas pelas escolas caso
estas já estivessem ocupadas com a gestão do currículo nacional.

Mudanças no currículo nacional (1990-2000)


Vimos acima que uma das intenções do currículo nacional era ter dez
disciplinas, três das quais eram priorizadas, e todas as dez deviam ser avaliadas de
forma regular e rigorosa. Demonstrou-se diversas vezes que, caso isso tivesse
ocorrido, a Inglaterra teria o currículo mais normativo e mais avaliado do mundo.
Isso não ocorreu porque os professores consideraram intolerável a carga de ensino
e de avaliação. Em 1990, teve início o recuo em relação ao conteúdo de dez
disciplinas. Inicialmente, o conteúdo das disciplinas foi reduzido, mas quando isso
não se mostrou suficiente, as próprias disciplinas foram gradualmente excluídas,
de forma que finalmente só permaneceu a área de disciplinas nucleares – ou seja,
inglês, matemática e ciências, mais educação religiosa, que passou a não ser
considerada tão importante. Enquanto isso ocorria, a perspectiva de acrescentar
mais insumos ao currículo nacional sob a forma de conhecimento interdisciplinar,
proposta pelo NCC, era extremamente improvável; no entanto muitas escolas
individualmente podem ter considerado importante essa perspectiva
interdisciplinar. Não será necessário detalhar aqui o recuo em relação ao currículo
nacional total de Baker para uma versão mais enxuta ao longo dos dez anos
seguintes. Apenas permaneceram do currículo nacional compulsório para o grupo
de 14 a 16 anos de idade as três disciplinas nucleares, e mesmo estas, com seu
conteúdo reduzido.
Sem ter formulado explicitamente a questão, a autoridade central em educação
tinha chegado a uma resposta que, por volta de 2000, considerava que o
conhecimento educacional mais relevante incluía inglês, matemática e ciências.
Mas no início do novo século foi acrescentada mais uma disciplina ao currículo
nacional compulsório – a educação para a cidadania.

O currículo de educação para a cidadania


Durante a década de 1990, paralelamente à redução da ênfase em disciplinas
não nucleares do currículo, mais uma disciplina surgia como conhecimento
relevante O Partido Conservador havia permanecido no governo de 1979 a 1997,
quando, com Tony Blair, o Partido Trabalhista assumiu com enorme maioria. Uma
Qual conhecimento é mais relevante? 213

vez que o lema de Blair era “educação, educação e educação”, seria de esperar que,
como parte de uma nova perspectiva, fosse realizada uma revisão do conteúdo
curricular. Isso não ocorreu. Nas políticas educacionais, como em muitos outros
aspectos, Blair se satisfez em dar continuidade às medidas de Thatcher, embora,
segundo esperava, buscando maior eficiência e, algumas vezes, mais dinheiro.
Houve uma exceção a essa regra geral: a questão da educação dos jovens para a
democracia – uma nova disciplina, educação para a cidadania, que deveria ter alto
status, por ser obrigatória para todos nas escolas secundárias, e receber algum trabalho
preparatório nas escolas primárias. Isso mostrava que alguém no governo considerava
que esse conhecimento seria consideravelmente relevante, o que deve ter recebido
apoio de outros membros do Partido Trabalhista e de alguns outros partidos.
No decorrer do século XX, diversos esforços foram empreendidos no sentido de
incluir cidadania ou educação política no currículo escolar. Um dos problemas era
que, mesmo para aqueles que consideravam relevante esse tipo de conhecimento
envolvia, ou poderia envolver, um grau de perigo: “alto risco – baixo retorno”. Um
eterno defensor do ensino de política nas escolas foi um professor catedrático de
Política da Universidade de Londres, Bernard Crick, que havia trabalhado de várias
maneiras na promoção da ideia de um ensino sério de cidadania no currículo da escola
secundária. Política tinha sido uma disciplina optativa para os exames finais aos 16 e
aos 18 anos, mas Crick desejava que se tornasse obrigatória para todos. A história de
suas tentativas para persuadir educadores e políticos ao longo de um período de cerca
de 30 anos de que esse conhecimento não era apenas relevante, mas vital para a
democracia é muito interessante, mas não pode ser contada em detalhes aqui. Crick
envolvera-se em diversos projetos, particularmente um apoiado pela respeitável
Hansard Society, que publicou ideias sobre letramento político nas escolas na década
de 1970. Durante a era Thatcher, nada resultou de qualquer dessas iniciativas, apesar
do apoio tácito de Kenneth Baker; foi somente com a mudança de governo, em 1997,
que um projeto sério tornou-se política oficial. Um dos mais ardorosos defensores de
Blair foi David Blunkett, que se tornou ministro da Educação em 1997. Muito antes,
Blunkett tinha sido aluno de Crick, cujas ideias o impressionaram. Convenceu Blair
a indicar Crick como Presidente de um comitê ao qual foi atribuída a tarefa de fazer
recomendações sobre a educação para a cidadania. As propostas foram extensamente
discutidas durante um período de consultas, e ao final foram aprovadas em lei, como
parte do currículo nacional no novo milênio. O apoio foi unânime entre os partidos.
O motivo que levou a educação política a tornar-se relevante no final do século
XX na Inglaterra foi o fato de políticos e educadores estarem preocupados com a
extrema ignorância dos jovens a respeito desse aspecto de sua própria sociedade;
em segundo lugar, o fato de políticos, em especial, estarem preocupados com a
baixa porcentagem de eleitores jovens votando nas eleições gerais e locais –
principalmente no grupo etário de 18 a 30 anos; pensava-se que isso se devia a
ignorância e apatia, e não a sofisticação política.
214 Lawton

Na virada do século, no que se refere à Inglaterra, conhecimentos relevantes


consistiam basicamente de inglês, matemática, ciências e educação política. A
educação religiosa era uma exigência oficial, mas não tinha a mesma importância
que as outras disciplinas obrigatórias. Essa ordem de prioridades, como já vimos,
decorreu de pressões sociais e políticas. Mas desde a década de 1970 a principal
influência sobre a educação na Inglaterra foi econômica: a necessidade de
trabalhadores mais habilitados e mais instruídos, ao lado do desejo de competir de
forma mais eficiente com nossos rivais industriais e comerciais.

Qual conhecimento é mais relevante – no século XXI?


Na seção anterior, oferecemos a resposta imediata a essa questão, mas é
importante ter em mente prioridades de longo prazo em termos de conhecimento
e sua relevância. O que não foi discutido com seriedade, publicamente, no século
XX, foi a questão: o que mais importa – que preocupações, além da econômica,
deveriam refletir-se no currículo?
Os educadores, entre os quais os HMI, expressaram, de tempos em tempos, suas
preocupações com a falta de atenção nas escolas primárias, por exemplo, em relação
a artes, música e literatura; e nas escolas secundárias, lamentaram o fato de atualmente
os jovens ainda estudarem disciplinas como história e idiomas modernos, que passam
a ser optativas a partir dos 14 anos de idade. Qualquer tipo de análise cultural precisa
abordar também outra questão além daquela referente a que conhecimento é mais
relevante: a questão do objetivo geral da educação. E caso um dos objetivos
importantes da educação seja transmitir uma seleção dos aspectos culturais
considerados mais relevantes, é preciso dedicar alguma atenção também à questão
do equilíbrio. Em outras palavras, a seleção da cultura está equilibrada? Não basta
que uma pessoa jovem seja instruída nos tipos de conhecimento que lhe permitirão
ganhar a vida; há também outros requisitos. Por exemplo, os tipos de conhecimento
que lhe permitem desenvolver-se como indivíduo, tais como as disciplinas estéticas,
ou os tipos de conhecimento, além daqueles relativos à cidadania, que permitem que
o indivíduo contribua melhor para a sociedade; isto incluiria tipos de conhecimento
como sistema de crenças, sistema de moralidade e sistema maturacional, todos
relativamente negligenciados na maioria das escolas secundárias. Portanto, não é
favorável a perspectiva imediata de que a escolas secundárias de modo geral tenham
um currículo equilibrado e relevante: precisamos ainda de uma análise aprofundada
sobre em que consiste uma educação relevante para todos os jovens.

Resumo e conclusões
É evidente que a questão ressaltada no título deste capítulo não pode esperar
uma resposta absoluta, seja em termos de espaço ou de tempo. As prioridades
mudarão de tempos em tempos e de lugar para lugar, de acordo com as pressões
Qual conhecimento é mais relevante? 215

sociais, políticas e tecnológicas de uma sociedade específica. O melhor que os


educadores podem fazer por meio da análise cultural é estabelecer os parâmetros
que devem orientar a seleção da cultura e apontar os casos em que alguma forma de
conhecimento relevante está negligenciada na busca de prioridades mais imediatas.
Se recuarmos suficientemente em nossa história – para além dos limites do título
de nosso capítulo –, a resposta à nossa questão bem poderia ter sido o conhecimento
teórico. Na Idade Média, certamente a teologia era a rainha das ciências. Depois do
Renascimento e da Reforma, entretanto, a história e a literatura greco-latinas
tornaram-se o conhecimento considerado relevante para cavalheiros instruídos. Mais
tarde, depois do Iluminismo do século XVIII e na sequência da Revolução
Industrial, ciências e matemática passaram a conquistar prioridade – tornando-se
mais relevantes no mundo moderno do que latim e grego. Algumas vezes as escolas
mostraram-se lentas no ajustamento a essas mudanças sociais, mas ao final as pressões
sobre o currículo foram suficientemente fortes para assegurar mudanças.
Dentro dos limites deste capítulo – isto é, o século XX –, examinamos uma série
de eventos políticos da história da educação e tentamos verificar quais mudanças
ocorreram e quais pressões sociais as produziram. A extensão da oportunidade
educacional em 1902 foi uma mistura de demandas por força de trabalho qualificada
e da aceitação relutante da necessidade de um eleitorado mais instruído. Até mesmo
uma democratização parcial fortaleceu a defesa de maior acesso a conhecimento
relevante. Em 1944, a educação secundária para todos foi vista como um princípio
importante, em grande parte devido às mudanças igualitárias decorrentes da Segunda
Guerra Mundial. Mas naquele momento perdeu-se a oportunidade de formular
questões fundamentais sobre que tipo de educação e, portanto, que tipos de
conhecimento deveriam estar à disposição de todos os jovens. Posteriormente,
pressões econômicas, principalmente a demanda por força de trabalho mais
qualificada, cresceram a tal ponto que uma atitude comum na educação era o objetivo
principal de capacitação para o emprego. Essa perspectiva anti-intelectual e
materialista foi enfatizada durante os anos de governo conservador, de 1979 a 1997,
e contrariando as esperanças de muitos dos envolvidos na educação, persistiu durante
o governo Blair, depois de 1997. A exceção foi o maior valor atribuído à educação
política no final do século XX. Resta ver o que acontecerá no século XXI. No decorrer
do século XX, foi uma crença frequente – e por vezes até mesmo manifestada
explicitamente – que o problema do conhecimento e do currículo podia ser abordado
em termos de uma cultura comum. No século XXI, é improvável que essa seja uma
política aceitável. A Inglaterra é hoje uma sociedade pluralista, com fortes minorias
culturais. A mais problemática delas é o grande número de cidadãos (e talvez também
de não cidadãos) islâmicos que não querem somente conservar seu próprio sistema
de crenças, mas também passaram a requerer seu próprio sistema de moralidade, seu
próprio idioma e suas próprias escolas. A forma de lidar com esse tipo de pluralismo
será provavelmente um problema significativo nos próximos anos.
216 Lawton

Referências bibliográficas
ALDRICH, R. The National Curriculum: a historical perspective. In: LAWTON, D.; CHITTY, C. (Eds.). The
National Curriculum. London: Institute of Education, University of London, 1988. (Bedford Way Papers; 33).
CRICK, B.; PORTER, A. (Eds.). Political education and political literacy. London: Longmans, 1978.
HMI. Curriculum 11-16: towards a statement of entitlement. London: DES, 1983.
HIRST, P. Knowledge and the curriculum. London: Routledge & Kegan Paul, 1975.
LAWTON, D. Curriculum studies and educational planning. London: Hodder & Stoughton, 1983.
LAWTON, D.; CHITTY, C. (Eds.). The National Curriculum. London: Institute of Education, University of
London, 1988. (Bedford Way Papers, 33).
53

ILUMINISMO E RELIGIÃO, CONHECIMENTO


E PEDAGOGIAS NA EUROPA

Thyge Winther-Jensen

A segunda metade do século XVIII é o período da história europeia


normalmente conhecido como a era do Iluminismo. As fontes desse movimento
eram tendências que já se faziam sentir no século XVII. John Locke (1632-1704),
filósofo inglês, havia seguido a tradição de Francis Bacon (1561-1626), focalizando
a experiência, particularmente a experiência sensorial, como alicerce do
conhecimento humano. E filósofos racionalistas, como Descartes (1596-1650),
Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-1716), haviam sustentado a crença de que
seria racionalmente possível resolver os problemas essenciais da vida humana.
Ambos os movimentos – empirismo e racionalismo – convergiram-se no final do
século XVIII na busca pelo iluminismo. A demanda baseava-se em uma visão
modificada da natureza, da sociedade e do ser humano, mas influenciou também
a visão da educação, que foi ela própria transformada, ao mesmo tempo em que
lhe era atribuído um papel proeminente na transmissão de novas ideias. A partir
daí a educação passou a ser vista como uma atividade que deveria ser realizada
independentemente da Igreja e servir apenas a uma sociedade secular, baseada na
ciência racional, na democracia e nos direitos humanos (GRUE-SØRENSEN,
1972; WINTHER-JENSEN, 2004).
A sociedade que deu lugar ao Iluminismo caracterizava-se pela monarquia
absolutista. As convulsões sociais que se seguiram ao Renascimento e à Reforma
haviam fortalecido o poder de reis e de príncipes, uma vez que, no enfrentamento
entre o Papado e os protestantes, seu apoio era necessário para ambas as partes.
Nos países protestantes do norte da Europa, o rei havia sido indicado como bispo
supremo e, concomitantemente, havia se apropriado dos bens da Igreja. O mesmo
não ocorreu nos países católicos da Europa Meridional, mas a Igreja católica
precisava de auxílio no combate à heresia, para evitar maior disseminação das ideias
da Reforma. Consequentemente, a Igreja acabou por tornar-se significativamente
dependente dos poderes seculares. Somente a Inglaterra evitou essa concentração
de poder absoluto, principalmente devido a rivalidades entre as religiões.
Mas a criação de monarquias absolutistas, com o poder concentrado nas mãos
de uma única pessoa, não resultou na liberação do indivíduo que tinha inspirado
os criadores do Renascimento. Um senhor – a Igreja – havia sido substituído por

217
218 Winther-Jensen

outro – o rei –, e o novo senhor era tão severo quanto o anterior. Embora o
ensinamento cristão medieval sobre igualdade e a demanda renascentista por
liberdade individual tivessem preparado o terreno para um conceito diferente sobre
o que era ser humano, seria preciso recuar até tempos pré-medievais, até os
imperadores romanos, para encontrar uma concentração de poder comparável.
Em todos os lugares, o monarca e as classes privilegiadas exerciam uma regulação
estrita da sociedade, e em todos os lugares, a Igreja, de forma mais ou menos
relutante, abençoava reis e príncipes absolutos. A aliança entre as autoridades
seculares e clericais parecia ser uma fortaleza invencível que, por um lado, garantia
a segurança da sociedade, mas por outro, a agrilhoava (BARTH, 1925).
No entanto as ideias que no longo prazo viriam a contribuir para a ruptura
dessa fortaleza já estavam esboçadas há muito tempo sob o termo unificador “o
princípio da natureza”. A parte final do século XVIII caracteriza-se pelo fato de
que esse princípio era amplamente empregado nos campos do pensamento e da
sociedade. O princípio viria a ser um recurso importante na luta por um espaço
mais liberal para o indivíduo e para a sociedade.

O princípio da natureza
Subjacente ao princípio da natureza estava um conjunto de ideias com a meta
recíproca de criar uma nova base para o pensamento e a cognição humanos. No
lugar da luz da revelação como alicerce da cognição deveria estar a luz da natureza,
isto é, a razão. Natural era tudo que restava quando haviam sido descartadas as
partes que não podiam suportar um exame mais detalhado da experiência e da
razão humanas.
O início se deu com o desenvolvimento da chamada religião natural. Com a
redescoberta dos filósofos antigos no Renascimento, revelou-se que muitas das
verdades que até então só nos tinham sido reveladas por meio de Cristo e dos
Evangelhos também podiam ser encontradas nos filósofos antigos. Em Platão, e mais
tarde nos estoicos, já estava ativo o conceito de um único deus. Na obra do filósofo
romano Sêneca era descrito vividamente o conceito de alma imortal.1 E a ideia de
Juízo Final podia ser encontrada na “República” de Platão (PLATO,1997, livro X).
Com a religião natural, os pensadores do século XVIII acreditavam ter criado
uma religião que não só poderia ajudar a reformar a Igreja existente, mas também
uniria as diversas ramificações da fé cristã.
No entanto o princípio da natureza também se tornou ativo e poderoso em
outros campos da vida intelectual. A denominação e o conceito de lei natural já
eram conhecidos no conceito clássico de direito natural – por exemplo, com os
estoicos, entre outros. O princípio considerava a razão humana como parte da
razão universal divina. O direito natural, portanto, não era o direito dos fortes,

1. Ver duas de suas cartas de consolação: Consolatio ad Marciam e Consolatio ad Helviam.


Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 219

e sim um direito baseado em igualdade universal e liberdade pessoal universal


(GROTIUS, 2005). Esse conceito foi adotado por todas as grandes
personalidades da época. John Locke, por exemplo, comparou a lei natural com
o direito racional desejado por Deus (LOCKE, 2003; RUSSELL, 1993, p. 603).
A lei natural ganhou uma importância política substancial, em parte na luta por
um estado legal aperfeiçoado, e em parte na concepção do que mais tarde viria a
ser conhecido como direitos humanos. Em “Some thoughts concerning
education” (1064), Locke defende uma educação baseada em princípios naturais.
Fala contra uma educação mediada por regras e comandos gerais impostos à
criança de fora para dentro, e mantidos por meio de recompensas e punições.
Recomenda, ao invés disso, um treinamento de caráter ajustado às aptidões e à
natureza das crianças.
Um emprego ainda mais revolucionário do princípio da natureza ocorreu no
campo da economia nacional. Em seu trabalho pioneiro, “Wealth of nations”, de
1776, o economista escocês Adam Smith defendeu a liberdade natural como
princípio de administração da economia das nações. Smith criticou severamente o
sistema mercantil e solicitou que o Estado interferisse o mínimo possível nas ações
dos cidadãos, fossem elas econômicas ou de outro tipo. O mercado, como uma
mão invisível, somente regularia as forças econômicas para o bem do indivíduo em
uma comunidade, bem como entre as nações, se as forças econômicas estivessem
sujeitas a um mercado livre, no qual operaria livremente a lei da oferta e da
demanda (SMITH, 1962).
A redução dos conteúdos religiosos no que se referia ao exame da experiência e
da razão também ganhou importância no campo da ética. Em contraste com seu
mestre Locke, o filósofo inglês A. C. Shaftesbury (1671-1713) afirmava que a ética
era independente da teologia e que os seres humanos tinham diversas necessidades
morais inatas naturais que constituíam a base da moralidade, a chamada teoria do
senso moral. Consequentemente, a era do Iluminismo continha um elemento
fortemente moral, se não moralizador.
Outro exemplo seria a educação. O princípio já estava em estado embrionário
em pensadores anteriores, como Montaigne (1533-1592). E em 1613, o
didacticus2 alemão Ratichius afirmara que omnia juxta methodum naturae, isto é,
tudo de acordo com o método na natureza, o que significava para ele, entre outras
coisas, que aprender a língua materna deveria ter prioridade sobre aprender latim
(VOGT, 1894; LINDERSTRØM-LANG, 1903). E o educador tcheco Comenius
(1592-1670), que foi influenciado por Ratichius, incluía o princípio da natureza
em seus ensinamentos (COMENIUS, 1910). No entanto foi Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) quem, em “Émile”, de fato estabeleceu o princípio no
campo da educação e acrescentou ainda uma série de novas dimensões
(ROUSSEAU, 1996, v. 4).

2. NT: Pedagogo, versado em educação, educador.


220 Winther-Jensen

A visão iluminista da natureza humana


Uma característica do homem é explicar e interpretar a si mesmo, o que implica
que decide por si mesmo em que imagem deseja retratar-se. Por um lado, os animais
nascem quase completamente desenvolvidos, isto é, com as capacidades e
habilidades necessárias para sobreviver em seus ambientes específicos, mas
desaparecem se esse ambiente sofrer mudanças radicais; por outro lado, o Homem
é capaz, por meio de sua formidável capacidade de aprendizagem, de adaptar-se a
qualquer tipo de ambiente. Não apenas pode adaptar-se ao ambiente físico ou
tecnológico em que se encontra, mas tem também, por meio da aprendizagem
ativa, a capacidade de constituir-se como um ser humano em harmonia com os
valores nos quais sua comunidade se baseia (WINTHER-JENSEN, 2004).
Para lançar luz sobre as consequências do conceito de humano que emergiu do
Iluminismo, é útil examinar o período precedente, considerando algumas das visões
mais influentes da natureza humana, decorrentes de profundas mudanças
espirituais e culturais.
A visão clássica
Segundo o filósofo alemão Ernst Cassirer, os gregos foram os primeiros a
perguntar: o que é o homem? Nos estágios pré-socráticos, a filosofia grega ocupava-
se principalmente do universo físico: a cosmologia obscurecia todos os demais
estudos filosóficos. Somente Heráclito esteve no limite entre o pensamento
cosmológico e o pensamento filosófico-antropológico. Porém, a antropologia grega
não chegou a seu zênite antes de Sócrates. “Assim”, diz Cassirer, “é no problema
do Homem que encontramos o marco que separa os pensamentos pré-socrático e
socrático” (CASSIRER, 1963, p. 4). Toda a busca de Sócrates visa à existência
humana. No entanto, também é característico que, embora em todos os diálogos
de Platão, Sócrates analise e discuta qualidades humanas, ele nunca nos deu uma
definição de Homem. Os objetos físicos podem ser descritos por meio de suas
qualidades positivas, mas o Homem só pode ser compreendido por meio de sua
consciência. Somente por meio da conversação – do diálogo – é possível ter um
insight sobre a essência própria do Homem (CASSIRER, 1963).
Em sua preferência por uma pedagogia centrada na dialética e no diálogo,
Sócrates e Platão empregaram a analogia como um método necessário para o exame
do novo problema com que se defrontavam: o que é o Homem? (PLATO, 1997,
livro VII). Quando, na “República”, pede-se a Sócrates que defina um homem
justo, ele o faz indiretamente por meio da descrição de uma sociedade justa, e assim
torna possível que se leia aqui, em letras maiúsculas, o que no Homem está escrito
em letras minúsculas.
A imagem grega clássica de Homem é, portanto, aquela de um ser humano em
busca do encontro consigo mesmo por meio de perguntas e respostas recíprocas. É
uma capacidade humana fundamental que o Homem se sustente por uma fé
Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 221

inabalável na razão como sua ferramenta-chave. Essa foi a ferramenta que Platão
quis elevar a uma posição suprema na vida da comunidade e do indivíduo.
A visão cristã
O conceito clássico do humano foi levado adiante pelos estoicos, mas, com a
emergência do Cristianismo, encontrou a oposição de um conceito novo e poderoso
que acrescentava novas dimensões. O conceito cristão foi expresso particularmente
na obra de Santo Agostinho (354-430), professor de retórica e admirador de Platão.
Como pensador cristão, Santo Agostinho criticava a filosofia antiga por sua fé otimista
na razão como princípio governante das questões humanas. Com Santo Agostinho,
o conceito bíblico de razão humana foi introduzido na cultura ocidental. Segundo
Santo Agostinho, o conceito clássico de razão não pode ser mantido. Só a graça divina
pode salvar. Desde a Queda, o pecado tornou-se o traço principal do Homem. De
acordo com Cassirer: “aqui (isto é, em Santo Agostinho) chegamos a uma inversão
total de todos os valores sustentados pela filosofia grega. O que em determinado
momento pareceu ser o maior privilégio do Homem revela-se como perigo e tentação;
o que parecia ser seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhação” (CASSIRER,
1963, p. 10). O encontro entre os conceitos clássico e cristão pode ser retraçado até
o século XVII. Comenius, por exemplo, estava em dívida com a filosofia grega, apesar
de sua perspectiva cristã. Mas de uma forma menos dogmática, ele colocava a
educação e o Iluminismo como um meio criado pelo Homem para devolver à razão
sua natureza pura original (WINTHER-JENSEN, 2004). Ainda que jamais
negligenciasse a ênfase na importância da Revelação para a salvação da razão, com
seu ideal de educação universal – ensinar tudo a todos –, Comenius tornou-se um
exemplo cristão do que os meios terrenos podem fazer, por si sós, para salvar a razão,
a respeito do que Agostinho tinha tanta suspeita.
A visão racionalista
Com o Renascimento, teve início um novo conflito entre o conceito cristão e
o conceito secular de razão humana. O novo conceito decorria primariamente da
chamada nova ciência anunciada por Francis Bacon (1561-1626) em “Novum
Organum” (1620), e desenvolvida a partir daí no fértil clima espiritual durante e
após o Renascimento.
Foi crucial para esse novo conceito a descoberta do sistema heliocêntrico por
Nicolaus Copernicus (1473-1543), que desencadeou uma nova crise da razão
humana. O conceito básico até então de que o Homem era o centro do universo
foi subitamente destroçado. O Homem passou a ser situado no espaço infinito.
Abruptamente, a razão humana reduziu o Homem a um ponto infinitesimal em
um universo infinito (LANDMANN, 1964).
O retrato copernicano do universo implicava o destronamento da razão
humana, que já não estava mais situada em segundo lugar, apenas abaixo de Deus,
222 Winther-Jensen

em um sistema hierárquico, tal como tinha sido predominantemente enfatizado


pelo pensamento medieval. Mas isso também criava novos desafios para a razão.
Por meio de seu novo instrumento – a ciência –, foi-lhe atribuída a nova tarefa de
transformar sua fragilidade aparente em uma nova força.
Para superar essa nova crise na autopercepção humana, provocada pelo sistema
copernicano de mundo, foram necessários os esforços convergentes dos cientistas
e filósofos racionalistas do século XVII. Pessoas como Bruno, Descartes, Spinoza,
Newton, Leibniz e Galileu deram, cada um deles, sua contribuição para a solução
do problema, e o meio que escolheram foi a matemática. A razão matemática
tornou-se o vínculo entre o Homem e o universo, e o pensamento matemático
tornou-se o meio para a compreensão da ordem cósmica e moral. Os seres humanos
haviam sido forçados a considerar-se seres lógicos e racionais, que encontravam
um apoio crescente na nova ciência, e não nos antigos poderes divinos.
Compreensivelmente, a relação entre crença e conhecimento tornou-se uma das
questões-chave do século XVII.
A visão iluminista
Essas visões de Homem, construídas ao longo do tempo, cristalizaram-se durante
o Iluminismo em uma nova ideia de Homem. O retrato copernicano do mundo
havia triunfado, e o mundo não era mais um universo perpassado por Deus, mas
sim uma máquina regulada de acordo com princípios racionais – isto é, naturais.
Caberia a Deus apenas ativar o mecanismo. Os seres humanos eram vistos como
máquinas que deveriam ser cuidadas e reguladas segundo princípios racionais. Para
La Mettrie (1709-1751), autor de “L’homme machine” (LA METTRIE, 1996), a
educação tornou-se uma questão de manutenção da máquina em bom estado e de
lhe acrescentar uma variedade grande e cuidadosamente selecionada de sensações.
Esse tipo de pensamento racionalista atingiu seu ápice durante o Iluminismo
e, ao mesmo tempo, fundiu-se com o empirismo. John Locke, cujas ideias foram
introduzidas para os filósofos franceses do Iluminismo por Voltaire (1694-1778),
considerava a vida mental como produto das sensações alcançadas através dos
nossos sentidos. Sua teoria de tabula rasa3 que, no entanto, também continha a
ideia de sensações e reflexões internas, enfatizava que todos os poderes espirituais
desenvolvem-se por meio dos sentidos, que são a única fonte da cognição. Esse
ponto de vista é proeminente em Condillac, por exemplo (CONDILLAC, 1984).
Tanto Locke quanto os teóricos franceses, em contraste com os racionalistas,
consideravam a experiência como a única fonte real de conhecimento, e negavam
quaisquer fatores a priori ou inatos. Esse conceito atribuía necessariamente uma
importância maior à educação do que a que lhe era atribuída anteriormente.
“Educação precária, poucas ideias”, afirmava, entre outros, La Mettrie (GRUE-

3. NT: Em latim no original. Expressão muito difundida, significa literalmente “quadro” (ou lousa) em branco,
ou visão de que o ser humano nasce “vazio”, e sua mente será preenchida (construída) pela experiência.
Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 223

SØRENSEN, 1972). É desnecessário dizer que nenhuma ideia religiosa, mas


somente ideias racionais, que podiam ser objeto de experiência empírica, eram
admitidas em um programa como esse.
Em função disso, o Iluminismo foi também um movimento secular. A nova
ciência, cujos alicerces haviam sido construídos durante o Renascimento, deveria
substituir a Igreja como agente organizador da sociedade e das relações humanas.
O culto era uma questão pessoal que poderia existir independentemente da Igreja,
e as instituições públicas, entre as quais as instituições educacionais, não deveriam
mais estar sujeitas à supervisão clerical. Acima de tudo, os próprios seres humanos
deveriam ser considerados como produto de seus próprios dons e individualidades.
Esse conceito do que significa ser humano teve influência crucial sobre a teoria
educacional, mas foi necessária a eloquência de Rousseau para que finalmente
fosse aceito.

Jean Jacques Rousseau


Por um lado, Rousseau é um representante da era iluminista, mas por outro,
não é um representante muito típico. Em seu tratado “Discours sur les sciences et
les arts” (ROUSSEAU, 1996, v. 3, 1792), enfatiza o tema que mais tarde viria a
ser dominante em seu trabalho: a precedência da natureza e do natural em relação
à arte e à artificialidade. Seus trabalhos podem ser agrupados em duas partes. Na
primeira parte, que inclui “Du contrat social ou principes du droit politique”
(ROUSSEAU, 1996, v. 3, 1762), “De l’économie politique” (ROUSSEAU, 1996,
v. 3, 1755) e “Considérations sur le gouvernement de Pologne et sur sa réformation
projetée” (ROUSSEAU, 1996, v. 3, 1772), contrasta as condições sociais existentes
com as demandas ideais por uma sociedade diferente e melhor. Quando a educação
é mencionada, assume o caráter que chamaríamos hoje de uma educação de massa
conformista, patriótica, de modo a criar e preservar uma sociedade ideal. Isso se
aplica especialmente a “Considérations”.
Na segunda parte – que inclui, além do clássico romance pedagógico/educacional
“Émile ou de l’éducation”, o segundo “Discours sur l’origine et les fondaments de
l’inegalité parmi les hommes” (ROUSSEAU, 1996, v. 3, 1755) e “La nouvelle
Héloïse” (ROUSSEAU, 1996, v. 3, 1761) –, Rousseau diminui a ênfase na sociedade
como tema. No “Second discours”, é enaltecida uma condição natural paradisíaca.
Em “La nouvelle Héloïse”, são exaltadas a família e uma educação baseada na família
em um ambiente rural e idílico, mas também em “Émile” a sociedade é mantida à
parte, pelo menos nos primeiros 15 anos de vida de Émile. “O que quero que ele
aprenda”, diz ele, é “como viver uma vida humana. Quando me deixar, ele não será
– admito – um soldado, um juiz ou um padre; será, acima de tudo, um ser humano”
(ROUSSEAU, 1996, v. 4). O homem deve preparar-se para o fato de que apenas
em raros momentos a vida será ideal. Portanto, deve ser educado para confiar em
suas próprias ações, experiências e pensamentos. Essa é a atitude básica em “Émile”.
224 Winther-Jensen

No conjunto de sua obra, todos os temas mencionados acima são reproduzidos,


cada um de uma forma própria. Entre esses, é bastante dominante o conceito de
igualdade. Em “Contrat social”, ele combina as ideias de reforma dos dois
“Discours” em um sistema político radical que quase corresponde à democracia
direta. O Estado foi criado originalmente com base em um pacto social subscrito
por todos. A igualdade e a liberdade pessoal são consideradas liberdades naturais.
A soberania é do povo, e não pode ser eliminada ou compartilhada. O verdadeiro
governante do Estado é a vontade geral, que absorve a vontade individual. A lei é
uma expressão da vontade geral, e as pessoas devem reunir-se regularmente para
formular leis. O livro tornou-se uma bíblia para aqueles que estiveram por trás da
Revolução Francesa, e ao lado de “De l’esprit des lois”, de Montesquieu (1689-
1748), continua a ser ainda hoje um dos documentos do Iluminismo mais
fundamentais para o desenvolvimento da democracia moderna.
O “Contrat social” não dá nenhuma ênfase especial à educação, mas o planejado
capítulo sobre educação apareceu alguns anos mais tarde como “Considérations”.
Nessa obra, encorajado por um patriota polonês, Rousseau experimenta sua
abordagem em relação à legislação. O Estado abstrato do “Contrat social” é então
substituído pela nação, ou a pátria-mãe concreta. Esse tratado conduz na direção
do nacionalismo europeu emergente. A meta da educação não é mais apenas o
republicano ou o cidadão do “Contrat social”, mas o patriota que, para o bem ou
para o mal, alimentou-se, no leite de sua mãe, com um amor apaixonado por sua
terra natal. Todos os meios são utilizados para desenvolver ainda mais essa atitude.
Por exemplo, os textos a serem lidos devem ter conteúdos patrióticos que enfatizem
a educação física com jogos e exercícios públicos obrigatórios, competições públicas
e outorga solene de prêmios.
Ademais, encontramos em suas obras o conceito de razão à luz de um novo
mito da Queda do Homem, que em sua versão é secular, e não religiosa. Os temas
cristãos do estágio do paraíso, do pecado e da graça repetem-se em Rousseau com
uma ênfase secular: estágio original natural, estágio da cultura e um estágio recriado
segundo os princípios da natureza. Em Rousseau, não foi o estágio do pecado, e
sim o estágio da cultura que corrompeu e distorceu a razão humana. A forma de
penitência que deve produzir a recuperação não é a graça divina, e sim uma
educação de acordo com os princípios da natureza. Foi essa a educação nova e
revolucionária que descreveu em “Émile”. Nesse aspecto, alinha-se aos filósofos do
Iluminismo quando requer que a educação dos sentidos seja uma parte central da
nova educação. A razão não é – como em Platão – uma qualidade inata que
caracteriza o Homem desde o nascimento, mas algo que é criado gradualmente
por meio de impressões sensoriais, não por meio de exercícios formais, mas sim de
atividades escolhidas individualmente em situações naturais e realistas. A educação
intelectual por meio da leitura de livros deveria ser adiada até que “Émile” fosse
capaz de perceber sua utilidade.
Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 225

Exercite seu corpo, seus membros, seus sentidos, sua força, mas mantenha sua mente desocupada
por tanto tempo quanto possível. Desconfie de todas as opiniões que surjam antes da capacidade
de julgar a diferença entre elas. Restrinja e afaste impressões estranhas; e para evitar o nascimento
do mal, não tenha pressa em fazer o bem, porque a bondade só é possível quando é iluminada
pela razão (ROUSSEAU, 1996, v. 4, livro 2).

Com Rousseau, o Homem pensante de Platão é substituído por um Homem


que sente. Nesse aspecto está de acordo com os filósofos do Iluminismo, mas difere
deles por apontar também o sentimento como uma qualidade humana inata. A
forte ênfase no sentimento, que tanto caracteriza toda a obra de Rousseau, é
também um traço fundamental da forma como compreende os seres humanos.
Considerava o sentimento como mais original, valioso e natural do que a razão, e
deslocou para o sentimento o foco na razão, que marcava nossa cultura e que existia
desde Platão.
Embora Spinoza, Shaftesbury, Hutcheson e Hume tenham sido seus predecessores, deve-se a ele
o reconhecimento do sentimento como traço independente e particular da vida espiritual [...] (o
sentimento) nos dá nosso verdadeiro mérito: somos pequenos em termos de conhecimento, mas
grandes em sentimentos (HØFFDING, 1896, p. 101).

Rousseau considera como traço mais fundamental do Homem sua necessidade


de amar a si próprio. “A autopreparação requer, portanto, que amemos a nós
mesmos; é preciso amar a nós mesmos acima de tudo, e dessa lei segue-se
diretamente que amamos o que contribui para nossa preservação” (ROUSSEAU,
1996, v. 4, livro 4). Do amor a si próprio emergem não apenas sentimentos
naturais, humanos, como a compaixão, o amor pelos seres humanos, o sentimento
religioso, mas também a fantasia e a imaginação.
Sua ênfase nos sentimentos sem dúvida contribuiu para o fato de ter entrado
em conflito com Diderot e com todo o grupo ligado à “Grande Enciclopédia”
(1755): todos estes estavam imbuídos – e em grande parte eram os criadores – do
espírito do Iluminismo racional da época. Foi também devido à sua ênfase nos
sentimentos que é lembrado pela posteridade mais como um precursor do
Romantismo do que como um representante genuíno do Iluminismo.
A ênfase no sentimento influenciaria também sua visão da religião. O tratado
“The creed of a savoyard priest”, que está incluído em “Émile”, e que,
acertadamente, é considerado um dos mais belos que escreveu, demonstra que era
uma pessoa muito religiosa que pode ter adotado a religião natural da época, mas
que, ao mesmo tempo, a baseava mais em um sentimento subjetivo do que na razão
(ROUSSEAU, 1996, v. 4, livro 4). Essa afirmação indica claramente que a Igreja
não era mais necessária como intermediária entre o Homem e a divindade.
Com as ideias apresentadas por Rousseau e pelos filósofos do Iluminismo, a noção
de educação mudou para sempre: de uma formação provinda de fora para um
desenvolvimento a partir de dentro das capacidades inatas, naturais; de um currículo
226 Winther-Jensen

baseado na aprendizagem por meio de livros para um currículo orientado para


atividades; e de uma noção de conhecimento como produto de pensamento racional,
dedutivo, para um produto da experiência pessoal. Essas ideias tornaram-se elementos
nucleares dos movimentos de reforma educacional que varreram a Europa nos séculos
XIX e XX, e também podem ser reconhecidas no movimento progressista americano.
Embora John Dewey (1859-1952) criticasse Rousseau por elevar a natureza a um
status de divindade, muitas das noções de Rousseau sobre educação e conhecimento
repetem-se em seu currículo pragmático, orientado para a criança: a ênfase no
crescimento, na resolução de problemas, na experiência e em métodos de ensino
orientados para atividades (DEWEY, 1916). As ideias de Rousseau enraizaram-se
especialmente no Norte protestante da Europa (Alemanha e Escandinávia). Sua
influência foi menor no Sul católico. Inevitavelmente, essa observação chama a atenção
para a forma pela qual a relação entre Estado e Igreja foi tratada durante o Iluminismo.

Estado e Igreja
No Iluminismo europeu, encontra-se pela primeira vez na história um conceito
de Estado que não se baseia em uma ideologia religiosa, mas que concebe o Estado
como um arranjo puramente secular, sem sanções ou autoridade divinas. Porém,
foi longo o caminho rumo a esse conceito.
Em 311, o imperador romano abriu mão de sua luta contra os cristãos e, no
ano seguinte, Constantino, o Grande, conseguiu nomear-se imperador. Dessa
forma, em 380, o governo veio a oferecer proteção oficial a todos os que seguiam
o credo do apóstolo Pedro, ou seja, de Roma, e a denunciar como heréticos os
adeptos de outros credos. A partir desse momento, pode-se falar de uma Igreja
cristã estatal – embora não no sentido moderno (LINDHART, 1961). O
argumento teórico foi oferecido por Agostinho: o Estado de Deus veio reinar sobre
a Terra, e o fez por meio de dois regimes: o Estado como governante da vida terrena,
e a Igreja como governante do divino. Os dois eram iguais, mas seus campos eram
diferentes (AUGUSTINUS, 1972).
No mundo oriental bizantino, essa transição ocorreu com relativa facilidade.
Estado e Igreja fundiram-se completamente. No Ocidente parecia ser diferente,
uma vez que, na prática, revelou-se difícil definir os limites entre os dois regimes.
A Idade Média caracterizou-se, consequentemente, por conflitos graves entre Igreja
e Estado, resultando que a vitória papal na Idade Média transformou-se em derrota
quando os Estados nacionais passaram a existir e, por meio dos movimentos de
reforma, levaram à ruptura da unidade da Igreja medieval.
Depois da Reforma, os Estados consolidaram-se com suas Igrejas estatais. Nos
países católicos, a Igreja romana manteve sua influência e continuou a ser a religião
do Estado. No entanto, no Norte da Europa, os vários Estados nacionais aliaram-
se a três tipos principais de Igrejas reformistas – a luterana, a calvinista ou a
anglicana –, e em 1555, em Augsburgo, na Alemanha, o sistema territorial foi
Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 227

oficializado, o que, na prática, tornou-o válido em toda a Europa. Cujus regio, ejus
religio, isto é, o poder político decide a religião do país (BERGMAN, 1972, v. 2,
p. 48). Isso estava em sintonia com a tendência da época ao Absolutismo, e a Igreja,
sob todas as suas formas, considerou como sua tarefa natural estabelecer uma razão
dogmática e bíblica para o direito divino do Absolutismo.
No entanto, uma Igreja estatal frequentemente implica coerção. Aqueles cujas
crenças não coincidiam com as dos que estavam no poder tiveram que fugir, e na
América havia lugar para todos. Ali se reuniram então todos os que tinham sido
perseguidos em seus países natais, e quando os estados norte-americanos livres
romperam seus laços com a Europa e criaram sua própria constituição – escrita por
pessoas que tinham sofrido experiências penosas de intolerância religiosa –, esta
foi construída com a pré-condição de que Estado e Igreja deveriam ser
independentes, e de que a liberdade religiosa era um direito humano e um princípio
da sociedade (LINDHARDT, 1961).
Essa proclamação dos direitos humanos rapidamente refletiu-se de volta na
Europa. Para os democratas franceses, o verdadeiro inimigo era a aliança entre
o poder real e o Papado; o Estado tinha apenas seus interesses políticos; se devia
haver uma Igreja, esta deveria assumir a forma de uma associação de pessoas
com ideias religiosas afins. Em consequência disso, o programa da Igreja na
democracia moderna foi claramente expresso em duas frases: “religião é uma
questão pessoal e, portanto, o Estado e a Igreja precisam ser separados”
(LINDHARDT, 1961, p. 46).
O novo programa necessariamente teve consequências no campo da educação.
A partir da era do Iluminismo, o desenvolvimento se deu em direção a uma
separação ainda maior entre escola e Igreja, embora com velocidades diferentes em
cada país, e mais lentamente do que se pensaria de imediato. A separação mais
radical ocorreu na França, com as leis Jules Ferry (1879). Igreja e Estado tinham
opiniões divergentes a esse respeito, mas a nova escola era uma escola inteiramente
estatal (princípio da laicidade). Para enfatizar essa condição, a instrução religiosa
foi abolida nas escolas públicas: deveria ser um assunto limitado às famílias e às
Igrejas. No entanto, houve tanta acomodação que um dia da semana foi liberado
para instrução religiosa fora das escolas. Além disso, as escolas privadas,
principalmente as católicas, tinham permissão para oferecer educação religiosa. As
regras ainda são válidas atualmente, e ainda provocam atritos.
Em contraste, segundo a lei de 1944, a Inglaterra manteve a educação religiosa
nas escolas como única disciplina obrigatória. As escolas escandinavas também
mantiveram a instrução religiosa, mas a supervisão clerical foi abolida na primeira
metade do século XX (na Dinamarca, desde meados da década de 1930, quando
o vigário deixou de ser presidente ex-officio do comitê educacional).
Na medida em que o princípio da separação entre Igreja e Estado foi levado à
frente, o problema começou a surgir sob novos disfarces em outros lugares. Os
228 Winther-Jensen

Estados Unidos podem servir de exemplo. Embora não haja nenhum contato entre
Igreja e Estado do ponto de vista formal, na prática o contato continua a ser
bastante disseminado. O Estado abre suas festividades com cerimônias religiosas,
e seus representantes precisam ser muito cautelosos para não se expressar de forma
que possam ofender uma ou mais comunidades religiosas. Mais de 300
comunidades religiosas estão presentes nas numerosas instituições educacionais
clericais privadas (LINDHARDT, 1961, p. 49). A complexidade da questão Igreja-
Estado nos Estados Unidos vem-se manifestando desde o estabelecimento de um
sistema gratuito e universal de educação pública no século XIX, e foi especialmente
perceptível na segunda metade do século XX. A questão central foi o significado
das proibições estabelecidas na Primeira Emenda da Constituição (First
Amendment), a chamada Establishment Clause, onde se lê: “[o] Congresso não
elaborará lei alguma relativa ao estabelecimento da religião, ou que proíba a livre
prática da mesma”. Com o estabelecimento, no século XIX, de um sistema
educacional público e financiado pelo Estado – um sistema que serviria a todas as
classes e aos diversos grupos religiosos –, a educação tornou-se um foco de
controvérsias quanto à constitucionalidade de (a) auxílio estatal para escolas
religiosas, e (b) instrução e outras práticas religiosas nas escolas públicas.
Quanto à primeira questão, a Suprema Corte, que julga esses aspectos da
educação quando os problemas lhe são apresentados, decidiu que o provimento
gratuito de livros escolares e de refeições; de serviços auxiliares, tais como transporte
público; e de benefícios de bem-estar social, tais como serviços médicos e
odontológicos para crianças que frequentavam escolas não públicas não violava a
Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que, nas palavras de
Jefferson, estabeleciam um muro de separação entre Igreja e Estado. Segundo as
cortes, esses benefícios não implicavam apoio público a escolas religiosas; com base
na teoria do bem-estar da criança, o apoio era oferecido àquelas crianças que
frequentavam essas escolas (KLIEBARD, 1968, p. 313).
A segunda questão – ou seja, a educação religiosa e outras práticas religiosas nas
escolas públicas estatais – assumiu diversas formas e continua problemática. Os
casos apresentados a seguir, analisados pela Suprema Corte e que envolveram a
constitucionalidade da instrução e de outras práticas religiosas nas escolas públicas,
ilustram a complexidade desse problema.
a) No estado de Illinois (McCollum versus Board of Education, 1948), a ministração
de aulas de religião no território da escola, ainda que por grupos não sectários,
foi considerada inconstitucional (KLIEBARD, 1968, p. 313).
b) Em um caso muito comentado de “orações na escola” no estado de Nova York,
a Suprema Corte decidiu que a recitação diária de uma oração não sectária no
sistema de escolas públicas do estado era inconstitucional. A oração dizia: “Deus
Todo Poderoso, reconhecemos nossa dependência de Vós e Vos pedimos Vossas
bênçãos para nós, nossos pais, nossos professores e nosso país”.
Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 229

c) Na Pensilvânia (Abington School District versus Schempp), o julgamento sobre a


leitura de dez versículos da Bíblia, sem nenhum comentário, no início de cada
dia escolar determinou que tal leitura envolvia imposição da religião pelo
Estado, ainda que “os versículos devessem ser lidos sem comentários, e que, por
meio de uma solicitação por escrito dos pais ou guardiães, qualquer criança
pudesse ser liberada dessa leitura ou de estar presente durante a leitura”
(SPRING, 2002, p. 262).
Por um lado, é provável que o princípio de separação entre Igreja e Estado se
fortaleça cada vez mais, especialmente devido à mistura crescente de representantes
de diferentes religiões nas sociedades europeias. Por outro lado, a história nos ensina
que religião e política – isto é, Igreja e Estado – são até certo ponto inseparáveis, e
que, de alguma forma, sempre estarão relacionados. Porém, todo o problema merece
uma pesquisa comparativa aprofundada. Ultimamente, o problema tem ressurgido
na discussão sobre se a nova constituição da União Europeia deve ou não conter
uma referência ao fato de que o cristianismo é a base da civilização europeia.

Conclusão
As ideias e os pensamentos característicos da era do Iluminismo resultam de
desenvolvimentos que vêm de longa data. Existe hoje um interesse crescente gerado
pelo fato de que surgiram novas posições a respeito de uma série de questões
fundamentais e de importância primordial que herdamos a respeito do Homem,
da natureza, da sociedade e da educação, e que, em grande parte, ainda governam
a maneira pela qual organizamos nossa vida atualmente. Alguns sugeririam até
mesmo que ainda vivemos na era do Iluminismo. Um aspecto foi o reconhecimento
das consequências das conquistas científicas e da nova posição do Homem, em um
mundo mantido em equilíbrio por leis matemáticas. Ainda que continue
inabalável, a fé na razão humana recebeu uma nova interpretação. Não é mais
considerada apenas como uma capacidade inata dos seres humanos, mas também
algo que, em grande parte, é construído de forma gradual por meio de nossos
sentidos. A ideia de que nada há em nossa mente que não tenha estado
anteriormente em nossos sentidos tem consequências para nosso conceito sobre o
conhecimento e sua natureza. Embora o conhecimento ainda fosse considerado
um produto importante de nosso raciocínio, as experiências sensoriais foram, a
partir de então, igualmente consideradas sine qua non. O empirismo de Locke e o
sensualismo francês deixaram marcas nítidas em nosso pensamento educacional.
Rousseau merece menção especial. Por um lado, é um filho do Renascimento,
o que o tornou um precursor precoce da reforma educacional europeia. Por outro
lado, diferencia-se do Iluminismo por sua forte ênfase no sentimento. Essa
mesma ênfase também o torna um precursor do Romantismo e dos movimentos
nacionais posteriores.
230 Winther-Jensen

Examinamos a relação entre Igreja e Estado. O surgimento do Estado-nação


democrático liberal moderno, com sua ênfase na liberdade e na igualdade, levou
necessariamente a confrontos com a Igreja. A Igreja estava na defensiva, e a ênfase
estava no conceito de Estado, seu papel e sua função, o que levou a uma demanda
pela separação entre Estado e Igreja. Em outras palavras, foram construídos os
alicerces do Estado democrático moderno, e pretendeu-se que a educação
desempenhasse um papel importante no novo projeto de modernidade. No século
XIX, quando foram criados os Estados-nação, as ideias educacionais do projeto
fundiram-se com as ideias de expoentes nacionais de diferentes tradições
educacionais europeias: o enciclopedismo francês (Descartes), o humanismo inglês
(Locke), o naturalismo norte-europeu (Décroly, Grundwig, Kerschensteiner etc.).
Esta talvez não tenha sido a intenção dos representantes originais do Iluminismo:
sua abordagem era muito mais cosmopolita.

Epílogo
Contudo, é possível que essa abordagem ainda esteja ativa. Na literatura
comparada, deparamo-nos por vezes com o conceito de sistema-mundo, que
implica que certas demandas sobre a educação tornam-se aceitas de forma geral
através das culturas e das fronteiras nacionais (BOLI et al., 1985). A explicação
desse fenômeno é que as ideias que se originaram no Iluminismo resultaram em
um novo modelo educacional que se tornou gradualmente a base da educação
europeia. O modelo caracteriza-se por uma estrutura racional e secular, educação
compulsória, e baseia-se em valores tais como respeito pelo indivíduo, tolerância
religiosa, democracia e direitos humanos. Aparentemente, esse modelo conseguiu
firmar-se politicamente a tal ponto – e em boa parte, por meio das organizações
internacionais – que faz sentido falar em uma uniformidade universal
surpreendente entre as orientações que a educação de massa moderna desenvolveu,
em diferentes graus, em todo o mundo. Observações como essa inspiraram alguns
pesquisadores comparativos a falar de um sistema-mundo cujos ideais os sistemas
educacionais nacionais tentam preencher, de forma mais ou menos consciente.
Seja ou não justificável falar em um sistema-mundo per se, não há dúvida de
que as ideias do Iluminismo ainda estão tão vivas e influentes como na época em
que foram formuladas.
Iluminismo e religão, conhecimento e pedagogias na Europa 231

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54

A IGREJA E O ESTADO NA ARGENTINA E NO BRASIL:


CONHECIMENTO, RELIGIÃO E PEDAGOGIA

Maria C. M. de Figueiredo-Cowen e Silvina Gvirtz

Introdução
A tradição católica é a base da identidade, da originalidade e da unidade do
subcontinente latino-americano. Trata-se de uma realidade histórica e cultural, com
uma única exceção no século XX: as revoluções de esquerda em Cuba e na Nicarágua.
Histórica e tradicionalmente, as relações entre a Igreja e o Estado foram muito
estreitas, em particular durante o período colonial. A expansão dos impérios
português e espanhol nos séculos XV e XVI ocorreu em nome da Coroa e da Igreja.
No Brasil, por exemplo, uma das primeiras ações dos portugueses quando
desembarcaram pela primeira vez na costa do que é hoje Porto Seguro, na Bahia,
foi a celebração de uma missa católica.
Com o advento da independência, no século XIX, começaram a emergir tensões
nas novas repúblicas, que passaram a valorizar um Estado secular, particularmente
sob a influência do positivismo de Comte, em especial entre as elites militares. A
despeito disso, a Igreja continuou a ter voz nas políticas públicas.
A educação foi uma área de intensos debates. Em sua busca pela manutenção da
hegemonia política, grupos representantes da secularidade e grupos representantes
da Igreja católica tinham programas educacionais específicos, que incluíam uma
visão da sociedade e um projeto pedagógico.
Este capítulo discutirá a relação entre a Igreja e o Estado em diversos períodos
culturais, econômicos, políticos e sociais na Argentina e no Brasil. A análise
tentará contextualizar os esforços que os diversos governos, as elites políticas e
intelectuais e os líderes católicos empreenderam para definir o currículo escolar,
o conhecimento a ser oferecido aos alunos e as diversas práticas pedagógicas em
seus projetos políticos e educacionais individuais. O capítulo termina com uma
identificação de similaridades e diferenças entre a Argentina e o Brasil em termos
das relações e dos padrões de suas ideologias políticas, de seus diferentes
problemas econômicos e de suas diferentes práticas educacionais.

O Estado e a religião católica nas escolas primárias argentinas:


uma abordagem histórica (1884-2007)
O objetivo desta seção é introduzir uma revisão do desenvolvimento histórico
da relação entre o Estado nacional e a Igreja católica no que se refere à educação

233
234 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

básica na Argentina. Até 1880, a educação era oferecida basicamente pelas famílias
e pela Igreja. A participação do Estado no provimento educacional aumentou de
maneira expressiva ao longo das últimas décadas do século XIX. A essa época, o
conflito entre a Igreja católica e os setores que governavam o Estado nacional
acentuou-se drasticamente.
Esta parte do capítulo compreende, portanto, o período entre a aprovação da
Ley de Educación Común, no 1.420/84 (1884), de âmbito nacional, e os dias atuais.
As disputas entre ambos os atores quanto à decisão de tornar a escola primária
católica ou secular merecerá ênfase especial.
Esta análise está estruturada com base em três períodos relevantes. O primeiro,
no qual a secularidade prevaleceu na escola primária, durou de 1884 a 1930; a
partir daí o catolicismo foi restabelecido – começando com a restauração
conservadora da década de 1930 e continuando durante a administração de Perón
(1946-1955) –, quando o ensino da religião católica nas escolas públicas tornou-
se obrigatório. O terceiro período vai do final da década de 1950 até os dias atuais.
Dois aspectos serão destacados neste último período.

As origens da escola primária argentina


e a regulamentação da legislação da escola secular:
Lei Pública nº 1.420, aprovada em 1884
Diversos especialistas (PUIGGRÓS, 1989; TEDESCO, 1970) referem-se à
década de 1880 como o momento-chave para a construção do Estado nacional
argentino, e para a institucionalização e a massificação concomitantes do sistema
de educação básica. Durante esse período, os diversos atores envolvidos no
planejamento da educação nacional na Argentina concordavam quanto ao papel
central que o Estado deveria desempenhar nesses assuntos. No entanto discordavam
quanto ao Estado oferecer uma educação secular ou uma educação católica – isto
é, se a educação pública deveria ser inspirada na doutrina cristã e se a religião
católica deveria ser ensinada nas escolas.
Como sugere Braslavsky (1989), a convergência de opiniões quanto à posição
central do Estado em relação à educação decorreu, entre outros fatores, da
fragilidade institucional e organizacional da Igreja.
Tedesco (1970) mostra de que forma a liberdade religiosa começou a vencer as
principais batalhas depois da queda de Rosas. Tal liberdade fazia parte de um
projeto desenvolvido por toda uma geração de liberais exilados durante a
administração de Rosas, e foi imposta na discussão da Convenção Constitucional
que, em 1853 e em 1860, aprovou uma Constituição que rejeitava as posições
católicas e, portanto, a possibilidade de adoção da doutrina católica como religião
do Estado. No entanto, as estratégias políticas do Estado nacional em relação à
Igreja visavam a controlá-la e, portanto, evitavam uma separação institucional entre
Igreja e Estado.
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 235

Durante o ano de 1884, diferentes atores, tanto liberais quanto católicos,


confrontaram-se no parlamento nacional em um processo que terminou com a
aprovação da Lei nº 1.420, a Ley de Educación Común.
Tedesco (1970) aponta, entretanto, que os liberais tentaram justificar a
secularidade nas escolas com base no forte processo de imigração que ocorria no
país à época. Para isso, focalizaram os imigrantes do norte da Europa, o que resultou
na necessidade de um espaço escolar que se caracterizasse por liberdade religiosa.
A Lei nº 1.420, mencionada acima, estabelece a natureza gradual, gratuita e
secular da escola primária na cidade de Buenos Aires e nos territórios nacionais.
No decorrer dos anos subsequentes, o Consejo Nacional de Educación elaborou as
medidas reguladoras necessárias para efetivar tolerância e neutralidade religiosas
que, em obediência a essa lei, deveriam ser praticadas nas escolas.
Dessa forma, a incorporação da secularidade à escola primária foi uma derrota
real para a Igreja católica. O triunfo da secularidade na educação cruzou até mesmo
as fronteiras, com jurisdição nacional para províncias onde o ensino da doutrina
católica era obrigatório nas escolas públicas e, depois de 1884, foi adaptado ao
modelo secular adotado pela Lei nº 1.420 (CAMPOBASSI, 1964).
A despeito disso, a Igreja se fortaleceu ao longo do tempo, aumentando assim
suas possibilidades de oferecer educação. Ao mesmo tempo, novos atores sociais
começaram a ver o catolicismo como um instrumento potencial para a unificação
da nação. A Igreja passou então a modificar seus pontos de vista sobre questões
educacionais e encontrou o ápice de seu desenvolvimento durante o período
conservador, que teve início em 1930 e continuou até 1954, durante a fase
peronista, e durante a última ditadura militar (1976-1983) (BRASLAVSKY, 1989).

Retorno à educação católica


Campobassi (1964) aponta que nos primeiros 45 anos da vigência da Lei nº 1.420
não houve maiores dificuldades na aplicação do princípio legal de secularidade da
escola e de ensino da doutrina católica. Tanto os conservadores (1884-1916) quanto
os radicais (1916-1930) respeitaram a legislação e a ela obedeceram no que dizia
respeito à escola secular. Até mesmo a maioria dos principais educadores da época,
como Berra, Torres, Ferreira, Scalabrini, Vergara, Mercante, Senet, Ingenieros,
Korn, González, Nelson e Vera Peñalosa, apoiava a ideia da escola secular
(CAMPOBASSI, 1964).
Em 1930, um golpe militar levou as forças conservadoras de volta ao poder
político nacional e provincial. Durante quase as três décadas subsequentes houve
no ensino da escola primária uma pregação e uma ação intensamente antiliberais
e antipositivistas, desenvolvidas sob a proteção consecutiva do conservadorismo e
do peronismo. Foram anos de forte ofensiva desenvolvida pelos católicos para
controlar a educação pública. A esse respeito, Puiggrós (1993) assinala de que
forma, a partir de 1930, o movimento nacionalista-autoritário-espiritual começou
236 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

a ganhar terreno na arena política. Ao mesmo tempo, os valores e rituais do


catolicismo passaram a conquistar espaço e influência nos discursos sobre a escola,
no lugar do tema secular.
Durante os primeiros anos do governo conservador, a resistência de diferentes
atores impediu que a ofensiva da Igreja em relação à derrota da secularidade na escola
resultasse em leis nacionais. No entanto o mesmo não ocorreu nas províncias.
Algumas jurisdições que não haviam adotado a doutrina católica como religião oficial
aprovaram leis ou decretos, ao longo desse período, por meio dos quais o ensino do
catolicismo foi implementado nas escolas primárias. Em meio a essas jurisdições,
destacam-se os casos de Buenos Aires e Santa Fé (CAMPOBASSI, 1964).
A ofensiva clerical tornou-se mais forte a partir de 1943, quando as Forças
Armadas dominaram a arena pública e nela se concentraram (CAMPOBASSI,
1964). Puiggrós e Bernetti (1993) consideraram que o governo que surgiu após a
greve de 1943 representou uma ideologia que não permitia a continuidade da
educação secular. Em 31 de dezembro de 1943, foi aprovado o Decreto nº 18.411.
O ensino da religião católica tornou-se obrigatório nas escolas primárias da
Argentina. O catolicismo deveria ser ensinado como disciplina regular, inserida no
currículo. Um período de ascensão decisiva do catolicismo escolar chegava ao seu
ponto máximo. Seu início data de 1930, e sua primeira vitória ocorreu em 1937,
um ano em que o ensino do catolicismo tornou-se obrigatório na província de
Buenos Aires, sob a administração de Manuel Fresco (PUIGGRÓS, 1993).
A “vingança católica” dentro da estrutura do ensino elementar não pregava a
tolerância em relação a valores seculares. A esse respeito, Campobassi (1964) destaca
o número infinito de calúnias contra tudo o que não fosse católico, apresentado
em livros didáticos utilizados para o ensino da religião. Casamento civil, “falsas
religiões”, liberalismo e secularidade escolar encontravam-se nitidamente em meio
às referências desse catolicismo avançado.
A vitória do peronismo nas eleições gerais de 1946 ratificou o caminho que
havia sido adotado em relação ao catolicismo e ao ensino na escola primária.
Aprovada em 29 de abril de 1947, a Lei nº 12.978 implementou o ensino do
catolicismo nas escolas públicas. Dois anos mais tarde, a Constituição Nacional
alterada declarava que a família e as instituições privadas eram os pilares do sistema
escolar. Como observado por Puiggrós e Bernetti (1993), longe de estabelecer o
papel hegemônico do Estado em relação à educação, a Constituição indicava
participação no apoio a atividades privadas e comunitárias, o que constituiu, desde
a origem do sistema nacional de educação, o passo mais amplo em direção ao
estímulo ao desenvolvimento do ensino privado.
No entanto, ao final da era peronista, surgiu uma crise nas relações entre a Igreja
católica e o Estado, e a consequência mais relevante foi precisamente a anulação
da lei que anos antes havia consolidado o ensino da religião católica nas escolas
públicas. Assim sendo, entrou em vigor a Lei nº 1.420/84. Legislaturas provinciais
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 237

acompanharam o Congresso Nacional e também anularam as leis correspondentes


aplicáveis por jurisdição. Como observa Campobassi (1964), todo o poder que a
Igreja católica havia obtido em relação à educação elementar desapareceu em apenas
seis meses de confrontação com o governo peronista. Associando-se à chamada
Revolución Libertadora, que derrubou Perón em 16 de setembro de 1955, os setores
católicos começaram a defender a reintegração do decreto de 1943. No entanto o
novo governo manteve em vigor a Lei nº 1.420 e, desse modo, a política de
secularidade na escola elementar.

A educação religiosa desde a década de 1960 até os dias de hoje


A partir de 1958, com a eleição de Frondizi para a presidência da nação,
surgiram novas perspectivas sobre a educação católica, promovendo
inesperadamente a educação privada. Pela primeira vez na história da educação
nacional, a educação privada foi construída como um sistema orgânico. Como
indicado por Narodovsky (2001), a mudança sustentada e progressiva dos
regulamentos estatais relativos a escolas privadas – que lhes outorgava maior
autonomia e o mesmo status legal das escolas públicas – é uma das características
mais relevantes da política de educação do Estado desde 1960 até hoje.
Por fim, durante a última ditadura, entre 1976 e 1983, cinco ministros de
educação sucederam-se no panorama nacional. Na administração ou gestão
educacional do país? Apesar disso, destacam-se duas administrações: as de Bruera
e de Llerena Amadeo, caracterizadas por seu interesse explícito na restauração da
ordem, das hierarquias e da autoridade, e na consolidação das ciências sociais
(TEDESCO, 1983).
O projeto de Llerena Amadeo e seu compromisso com a ideologia católica
tradicional merecem atenção especial. Seguiu a linha mais tradicional de
autoritarismo pedagógico. Uma de suas metas fundamentais foi a limitação do
processo de secularização. Dessa forma, durante esses anos os valores da doutrina
católica foram incorporados ao currículo da educação elementar nacional como
componentes da educação moral. Em todo o país essa incorporação teve diferentes
manifestações. Em alguns casos, a religião católica se sobrepunha aos conteúdos
da educação moral e, em outros, era ensinada diretamente como uma disciplina
escolar (TEDESCO, 1983).

A educação católica nos dias de hoje


Segundo o precário censo escolar de 1883, havia à época um total de 437 escolas
privadas, das quais 109 (25%) eram religiosas. Atualmente, quase 120 anos mais
tarde, um em cada quatro estudantes não universitários argentinos frequentam
instituições privadas (MURDUCHOWICZ, 2001); mais da metade deles (57%)
são educados em escolas católicas. Mesmo quando o estágio do primário (EGB) é
238 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

comparativamente o menos desenvolvido na educação privada (compreende 21%


dos estudantes, contra 79% do setor público), a participação de instituições
católicas em comparação com o total do setor privado é mais alta (63%) do que
no ensino médio (55%).
O estímulo à educação privada iniciado na década de 1960 pelo Estado nacional,
de maneira implícita ou explícita, modificou a tradição pública da escola elementar
na Argentina. Braslavsky (1989) afirma que, nesse processo, a Igreja católica conseguiu
tornar-se o empreendedor mais poderoso na educação privada, respondendo hoje pela
maioria das instituições que oferecem educação privada na Argentina.
Em conclusão, talvez seja possível assumir que mesmo quando, por volta de
1960, passou a desenvolver uma presença forte na educação argentina, com base
em seu papel de destaque no subsetor da educação privada, a Igreja católica em
nenhum momento ignorou as escolas públicas, aproveitando-se de todas as
oportunidades oferecidas pelas diversas circunstâncias históricas para incorporar
ao currículo nacional seus valores e suas ideologias religiosas. A Igreja católica é
hoje um dos atores principais na arena educacional.

A Igreja e o Estado no Brasil


No Brasil, a educação religiosa baseou-se, desde os tempos coloniais, na religião
oficial do império português, mais tarde adotada pelo império brasileiro – a religião
católica romana. Com a proclamação da República, em 1889, deu-se a separação
legal entre Igreja e Estado, determinada pela Constituição de 1891. O Estado
tornou-se laico. Nenhuma religião específica foi indicada como oficial, mas, na
prática, o ensino religioso continuou a ser o ensino do catolicismo (CURY, 2004).
A legislação educacional mais recente – a Constituição de 1988 (artigo 210) e a
Lei e Diretrizes e Bases, de 1996 (artigo 33) declararam a educação religiosa como
parte integral da educação básica do cidadão e a estabeleceram como disciplina
optativa no currículo das escolas estatais do ensino fundamental. Atenção especial
foi dedicada a detalhes tais como a definição do modelo de ensino religioso, a
organização do currículo, a metodologia e o perfil de professor que deveria
ministrar a disciplina.
De fato, sempre houve no Brasil uma relação estreita entre Igreja católica,
Estado e educação. Essa relação assumiu características diferentes ao longo da
história. Os atores e os papéis alteraram-se: dos jesuítas e do controle integral sobre
a educação (nos tempos coloniais) para os religiosos e os intelectuais católicos (no
início do século XX), que se opunham aos chamados reformadores educacionais
nos debates sobre currículo escolar e educação superior.
Portanto, a segunda seção deste capítulo propõe-se a analisar essas tensões entre
a Igreja católica e o Estado no Brasil, particularmente em momentos significativos
da trajetória do sistema educacional brasileiro. Tentaremos assinalar as disputas
travadas pela Igreja na tentativa de manter uma presença contínua e estável no
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 239

cenário educacional, exercendo (ou lutando para exercer) um papel hegemônico


na formulação de políticas educacionais. Será examinada também a posição
contrária de intelectuais e políticos na defesa de um sistema de educação leigo e
gratuito. Cada grupo tinha um projeto educacional específico, com um modelo
para o currículo escolar, os tipos de conhecimento que deveriam ser oferecidos e
os métodos pedagógicos a serem utilizados.

Os jesuítas, a colônia e o império


Com a chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, foi atribuída aos jesuítas
uma posição hegemônica e privilegiada no estabelecimento e no controle do cenário
cultural e educacional da nova colônia. Eles criaram escolas para a catequização
dos índios nativos e para o provimento de educação básica para os filhos dos
administradores.
Os jesuítas acreditavam deter um direito sobrenatural à responsabilidade pela
educação. Esse direito foi eliminado quando foram expulsos do Brasil, no século
XVIII, pelo Marquês de Pombal, político influente e primeiro-ministro do Rei
D. José I.
Portanto, durante dois séculos os jesuítas controlaram o currículo escolar e o
conhecimento oferecido nas escolas da metrópole e das colônias do império português.
Basicamente, os princípios educacionais dos jesuítas incluíam busca da perfeição,
obediência total aos superiores e uma disciplina muito severa. A educação era central
em seu trabalho: servia aos objetivos de catequização (para os índios nativos), de
evangelização (um instrumento eficiente de contrarreforma) e de treinamento das
elites das colônias (SCHWARTZMAN, 1979; MACIEL; NETO, 2006).
A experiência pedagógica dos jesuítas baseava-se na Ratio Studiorum, segundo a
qual a teologia estava no topo da pirâmide do conhecimento, seguida pela filosofia.
A escolha dos livros e dos textos era estritamente controlada. Não eram permitidas
novas perguntas ou opiniões formuladas pelos alunos (SCHWARTZMAN, 1979;
ALVES, 2007).
O conceito de pedagogia e do conhecimento que devia ser oferecido nas escolas,
de acordo com o projeto educacional dos jesuítas, estava subordinado à Igreja e à
religião. Como afirma Alves:
O principal objetivo dos jesuítas era divulgar o Evangelho, e todas as atividades desenvolvidas
pelos padres no Brasil estavam subordinadas à Igreja e à religião. O trabalho dos jesuítas exigia
que se envolvessem em questões educacionais e políticas domésticas, bem como que atendessem
às necessidades e aos interesses da Igreja católica (ALVES, 2007, p. 15).

Dois jesuítas realizaram um trabalho notável no provimento de educação na


colônia recém-conquistada: padre José de Anchieta e padre Manuel da Nóbrega.
Estabeleceram um grande número de missões em diferentes regiões da colônia,
criaram grandes escolas, e foram muito inventivos: com a falta constante de material
240 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

pedagógico, utilizaram canções compostas por eles mesmos, distribuíram livros e


textos escritos por eles mesmos e encenaram peças teatrais para ensinar a moral e
a teologia cristãs (ALVES, 2007).
Portanto, o currículo, o conteúdo do conhecimento e a metodologia do projeto
educacional implementado pelos jesuítas na colônia associavam-se principalmente
ao treinamento de padres, homens de letras e acadêmicos. A base do currículo era
o ensino de latim, gramática, retórica, humanidades e doutrina religiosa. A
preocupação central era referente à educação moral e à salvação das almas.
O controle dos jesuítas expandiu-se a tal ponto que o rei e os políticos lhes
solicitavam conselhos em questões de Estado. Qualquer posição importante no
governo ou na Igreja só era decidida depois de consultá-los. A dominância geral
dos jesuítas também foi considerada por alguns políticos como um empecilho à
modernização de Portugal, como se uma barreira em torno do país o isolasse da
cultura moderna. Esse poder inquietou um político muito influente, o Marquês
de Pombal. Ao tornar-se primeiro ministro, Pombal baniu os jesuítas de Portugal
e de todos os territórios portugueses (SCHWARTZMAN, 1979, p. 14).
O Marquês de Pombal ocupou o cargo de primeiro-ministro entre 1750 e 1777,
sob o rei D. José I. Muito controvertido e carismático, o Marquês de Pombal
representou o despotismo iluminista em Portugal no século XVIII. Dois lugares
onde serviu como diplomata – Londres e Viena – influenciaram significativamente
seu projeto pedagógico de renovação da educação em Portugal e nas colônias. Em
Londres, convenceu-se de que o sucesso econômico da Inglaterra decorria da
aplicação do conhecimento científico ao setor produtivo (FALCON, 1982). Em
Viena, como coloca Serrão:
[Foi] nessa capital que, em contato com o mundo da política e da diplomacia, o espírito do
ministro português assimilou os grandes princípios do despotismo iluminista que iria aplicar
em seu país depois de seu retorno. De lá trouxe também, na compreensão de Maria Alcina
Ribeiro Correia, as ideias econômicas e culturais que foram elementos-chave de seu governo
(SERRÃO, 1982, p. 22).

Enquanto foi primeiro-ministro, Pombal promoveu uma série de reformas no


país, nos níveis administrativo, econômico, educacional e social. Segundo Maciel
e Neto (2006), sob o Marquês de Pombal a pedagogia tradicional dos jesuítas foi
substituída por uma proposta pedagógica que defendia o Estado e as escolas laicas.
Foi criada a posição de diretor de estudos, com um papel de aconselhamento e
controle de qualidade; aulas isoladas (aulas régias) substituíram o curso de
humanidades criado pelos jesuítas. Essas propostas pedagógicas inovadoras e novas
formas de currículo visavam a oferecer as condições necessárias para a modernização
da sociedade portuguesa.
As reformas de Pombal – basicamente seculares – foram de fato muito extensas.
Expandiram o currículo escolar, com a criação de escolas de matemática e de
filosofia. O conhecimento baseava-se fundamentalmente em ciências e em
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 241

conhecimento aplicado. A educação secundária foi radicalmente modificada,


dando-se atenção especial ao ensino de latim, grego e francês. Foi introduzida a
educação profissionalizante, com aulas de comércio e de artilharia. Foi
implementado o sistema dual de educação: educação popular, com ênfase em
soletração, gramática, aritmética, doutrina cristã e educação social e cívica; e
educação para a nobreza, por meio do Colégio dos Nobres (AVELLAR, 1983, p.
12; TEIXEIRA SOARES, 1961, p. 218; SCHWARTZMAN, 1979, p. 18).
Inspirado por Luiz Antonio Verney, filósofo do Iluminismo, o projeto pedagógico
de Pombal incluía a secularização do ensino, a importância do ensino dos idiomas
latim, grego, hebraico, inglês, francês, de física e de anatomia, e a educação laica e
gratuita. Azevedo resume com precisão a proposta pedagógica de Pombal:
Ao invés de um sistema único de educação, a dualidade das escolas; ao invés de uma educação
inteiramente clássica, o desenvolvimento do ensino científico [...]; ao invés do ensino exclusivo
dos idiomas latim e português, a penetração progressiva de idiomas e literaturas modernos (francês
e inglês); e por fim, uma diversidade de tendências [...] abrir os caminhos para os primeiros
conflitos entre ideias antigas, imersas no ensinamento jesuítico, e o novo pensamento pedagógico,
influenciado pelos enciclopedistas franceses (AZEVEDO, 1976, p. 56-57).

Nas colônias, as reformas educacionais sob Pombal visavam à restauração do


controle do Estado sobre a educação, à secularização da educação e à padronização
do currículo. Foram criadas escolas em diversas vilas, separadamente para meninos
e para meninas. O currículo e o conteúdo de tipos de conhecimento também eram
diferenciados por gênero: meninos aprenderiam a ler, escrever e contar, e doutrina
cristã; meninas aprenderiam a cuidar da casa e a costurar (SALEM, 1982;
MAXWELL, 1996).
Uma consequência direta das reformas pedagógicas de Pombal foi a perda
progressiva de poder e de prestígio pela Igreja católica nas arenas educacional e
política. No entanto a Igreja nunca abandonou a esperança de recuperar a mesma
posição privilegiada que detinha anteriormente – a de desempenhar um papel
importante na educação no Brasil. A perda de poder resultou inicialmente das
políticas de Pombal, depois do impacto do Iluminismo francês, no século XVIII,
e particularmente, sob a onda do positivismo francês, que influenciou as orientações
políticas, culturais e educacionais do Brasil.

A República, o Estado Novo e o regime militar


No século XIX, durante o império, logo após a independência e com a Constituição
de 1824, a religião católica foi declarada religião oficial do Brasil. Contudo, a Igreja
tinha uma posição muito submissa em relação ao governo (IGLESIAS, 1971). A
situação piorou muito com a Proclamação da República, em 1889. Os generais,
políticos e intelectuais brasileiros, sob a liderança de Benjamin Constant, abraçavam as
ideias de Comte e do positivismo francês sobre política e educação.
242 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

De fato, no Brasil, tal como na Argentina, no Chile, em Cuba, no México e no


Uruguai, entre outros países latino-americanos, as políticas educacionais do final
do século XIX e início do século XX eram formuladas segundo os princípios do
positivismo. Sobreira afirma que:
[O] positivismo respondeu às questões levantadas pelos republicanos, isto é, a separação entre
Igreja e Estado, a ideia de uma ditadura republicana, o apelo a um poder intervencionista forte,
o progresso mediado pelo Estado, a rejeição da monarquia e a incorporação do proletariado à
nova sociedade (SOBREIRA, 2003).

O positivismo influenciou profundamente os líderes republicanos. Como


afirma Carlos Roberto Jamil Cury:
De um país oficialmente católico pela Constituição Imperial, nos fizemos laicos pela Carta Magna
de 1891 com o reconhecimento de liberdade de religião e de expressão religiosa, vedando-se ao
Estado o estabelecimento de cultos, sua subvenção ou formas de aliança (CURY, 2004, p. 188).

À época da Proclamação da República, surgia a industrialização; o processo de


urbanização ganhava força; aumentava a imigração proveniente da Europa; e
começou a crescer uma classe média urbana forte, assim como as novas classes
industrial e trabalhadora. Consequentemente, as novas classes sociais e econômicas
esperavam ter uma participação mais efetiva na sociedade em rápido processo de
mudança. Em contrapartida, o novo regime tornava-se politicamente mais fraco.
As elites das oligarquias baseadas no café enfrentavam a oposição das novas classes
sociais. Emergiam diversos movimentos políticos e sociais, principalmente urbanos,
com projetos de reformulação da sociedade, o que incluía a educação. Exemplos
dessa comoção social, política e cultural são a Semana de Arte Moderna e a
fundação do Partido Comunista em 1922 (IGLESIAS, 1971).
As elites católicas (eclesiásticas e intelectuais) começaram a reorganizar-se de
forma a oferecer propostas alternativas para a reformulação da sociedade e da
educação. O jornal “A ordem”, lançado em 1921, e a criação do Centro Dom Vital,
em 1922, desempenharam um papel muito importante no que Salem chama de
renascimento católico (SALEM, 1982, p. 4).
O movimento católico não foi uma ação isolada. A frágil estrutura política da
Primeira República estimulava o surgimento de diversos movimentos que
defendiam suas próprias propostas de reforma da sociedade, tal como aconteceu
com o movimento católico. Com a Revolução de 1930, a Igreja reconquistou
algum poder legítimo, e dessa forma a educação tornou-se um importante elemento
de barganha. As reformas educacionais eram vistas como fundamentais para a
reformulação da sociedade (SALEM, 1982; CURY, 1978).
Em pouco tempo, duas propostas pedagógicas dominaram o debate nacional
sobre educação durante quase toda a década de 1930. O grupo católico interpretava
a educação a partir de uma perspectiva ideológica – a educação serviria como
instrumento básico para transformações estruturais da sociedade. O que ganhou
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 243

importância foi uma versão de educação enquadrada nos ensinamentos da doutrina


cristã (CURY, 1978; NAGLE, 1974; SALEM, 1982). As propostas católicas
envolviam a disseminação de uma cultura católica mais elevada e a inserção de
legislação católica na Constituição.
Intelectuais como Jackson de Figueiredo, Alceu de Amoroso Lima, padre Leonel
Franca, Sobral Pinto e o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Leme, desempenharam
um papel de destaque e extremamente importante no movimento católico na
primeira metade do século XX. Todos compartilhavam a mesma visão de
transformação da sociedade por meio da educação (CURY, 1978; SALEM, 1982).
O movimento católico ganhou novo ímpeto durante a década de 1930, com
uma série de organizações, tais como a Associação dos Universitários Católicos, o
Instituto Católico de Estudos Superiores, a Confederação Nacional dos Operários
Católicos, a Confederação da Imprensa Católica, a Associação de Livrarias Católicas,
a Congregação Mariana, os Círculos Operários e a Associação dos Professores
Católicos. Essas organizações tiveram impacto sobre diversos setores da vida
nacional. Também foi muito importante a Ação Católica Brasileira, criada em 1935.
Durante a década de 1930, a educação passou a ser uma questão fundamental
em âmbito nacional. Como afirma Schwartzman: “somente com a chamada
‘Revolução de 1930’, que trouxe Getúlio Vargas ao poder e deu início a um novo
período de centralização política, a educação finalmente surgiu como prioridade
nacional” (SCHWARTZMAN, 2004, p. 17).
Foi precisamente no período entre 1930 e 1945 que os movimentos católicos
desfrutaram de maior prestígio. Contribuiu para isso, evidentemente, a situação
política anterior e imediatamente posterior à Revolução de 1930. O Estado formou
uma coalizão heterogênea de partidos políticos bem pouco expressivos, o que deu
à Igreja maior poder de barganha, inclusive quanto à redefinição de sua influência
em sua relação com o Estado. Isso é bem ilustrado por Salem:
D. Leme [...] na inauguração da estátua do Cristo Redentor em 1931, que mobiliza grandes
contingentes de católicos de todas as partes do pais, adverte: ‘O nome de Deus está cristalizado
na alma do povo brasileiro. Ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá
o Estado’. A advertência [...] foi logo entendida por Vargas. A partir dai consolida-se,
paulatinamente, uma nova fase nas relações entre o poder temporal e o eclesiástico; de uma
situação de separação e desunião entre as duas instituições passa-se a uma de cooperação e
aproximação progressiva (SALEM, 1982, p. 10).

Quatro temas principais eram considerados consistentemente importantes


para a Igreja. O primeiro era a luta contra a infiltração comunista no Brasil; o
segundo, a não legalização do divórcio; o terceiro, o reconhecimento oficial pelo
Estado da inserção da Igreja na Constituição; o quarto, a introdução de ensino
religioso nas escolas.
A batalha contra o comunismo viria a ser um longo processo, mas os resultados
nas demais áreas de políticas foram ganhos quase imediatos. Na Constituição de
244 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

1934, por exemplo, o casamento religioso tornou-se oficial; a educação religiosa


foi reintroduzida no currículo escolar. A educação era um tipo importante de
instrumento de negociação, utilizado pelos políticos e pelos intelectuais católicos
para aproximar a Igreja e o governo de Vargas. Francisco Campos, ministro da
Educação no início da década de 1930, por exemplo, escreveu a Vargas
argumentando a necessidade de restabelecer uma aliança com a Igreja por meio da
educação (LIMA, 1931; CURY, 1978).
A oposição aos católicos no debate sobre educação era representada pelo grupo
conhecido como Pioneiros da Educação, seguidores do Movimento da Escola
Nova. Esse movimento, originado em um movimento semelhante surgido nos
Estados Unidos e na Europa no final do século XIX, baseava-se nas ideias de John
Dewey; representava uma reação contra práticas pedagógicas tradicionais e visava
a uma educação que promoveria a integração dos indivíduos na sociedade e maior
acesso à escola. Esse grupo consistia principalmente dos chamados educadores
progressistas e de acadêmicos importantes, como Lourenço Filho, Afrânio Peixoto,
Hermes Lima, Carneiro Leão, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, que
conceituavam a educação sobre uma base diferente. Em 1932, o grupo publicou o
“Manifesto dos pioneiros da educação nova”, escrito por Fernando de Azevedo,
baseado em grande parte nas ideias de Anísio Teixeira, e assinado por um grande
número de Pioneiros (AZEVEDO, 1932). O manifesto tornou-se logo um claro
divisor de águas entre o grupo progressista e o grupo católico. Para os Pioneiros, a
educação e a expansão das escolas eram mecanismos importantes que poderiam
garantir a inserção do país no mundo desenvolvido.
As reformas educacionais ocorreriam segundo uma epistemologia pedagógica
específica, baseada na filosofia de John Dewey, principalmente quanto ao conceito
de educação como a única forma de implementar uma sociedade verdadeiramente
democrática, na qual os indivíduos fossem respeitados. Depois de ler Dewey e de
familiarizar-se com o pragmatismo americano, Teixeira foi muito influenciado por
ideias sobre democracia e ciência; acreditava que a educação era o único
instrumento capaz de gerar mudanças nas necessidades de modernização do país.
Da mesma forma que os grupos católicos, os Pioneiros da Educação da Escola Nova
conquistaram apoio institucional por meio da criação da Associação Brasileira de
Educação, que se encarregava da organização de palestras, cursos e congressos
(CURY, 1978; SALEM, 1982; PILETTI, 1996).
As ideias principais do Manifesto incluíam os seguintes temas: a educação é um
meio de reconstruir a democracia no Brasil; deve ser essencialmente pública,
compulsória, gratuita e laica; deve ser eliminada qualquer discriminação baseada
em diferenças de raça, sexo, ou tipos de estudo; a educação deve ser desenvolvida
também no seio das comunidades; a educação deve ser unificada e adequada para
o atendimento a todos os estágios do desenvolvimento humano; unidade não
significa uniformidade; a educação deve ser adaptada de forma a levar em conta
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 245

características regionais; o aluno deve ser o foco da educação; e o currículo deve


ser adaptado aos alunos e a seus interesses; todos os professores, até mesmo aqueles
que lecionam na educação primária, devem ter formação universitária (PILETTI,
1996, p. 177-178). Esses temas traduziam o projeto pedagógico dos Pioneiros da
Educação, que se choca com o projeto pedagógico dos católicos, particularmente
em duas áreas: os aspectos confessionais e privados da educação.
Alguns dos acadêmicos da Escola Nova ocupavam, nessa época, posições
importantes em diversos estados do Brasil. Transformaram seus princípios
pedagógicos em políticas públicas, por meio de reformas educacionais em vários
estados e no Distrito Federal. O momento político brasileiro era muito favorável
a reformas e a novas políticas educacionais. O país passava por mudanças
políticas, econômicas e sociais importantes – a urbanização progredia
rapidamente, a expansão das fazendas de café acarretou progresso industrial e
econômico, e o liberalismo surgiu como uma forte ideologia política e filosófica
(SCHWARTZMAN, 2004; PILETTI, 1996). Anísio Teixeira, por exemplo, foi
Secretário de Educação do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, de 1931 a 1935.
Conseguiu planejar e implantar reformas educacionais em nível local, dentro
dos princípios que orientavam o Movimento da Escola Nova. Teixeira criou um
sistema municipal de educação, da escola primária ao ensino superior;
introduziu uma arquitetura escolar moderna; ampliou o número de vagas nas
escolas; introduziu o sistema de escolas secundárias técnicas; e transformou a
Escola Normal em um Instituto de Educação. Teixeira garantiu também a
disseminação de suas ideias e projetos educacionais por meio de sua obra escrita.
Obras como “Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação” e
“Em marcha para a democracia” foram publicadas em 1932 e 1934,
respectivamente, durante seu mandato na Secretaria de Educação no Rio
(CURY, 1978; SCHWARTZMAN, 2004).
Os princípios em que os Pioneiros acreditavam e pelos quais lutavam incluíam
a reestruturação dos sistemas educacionais, que levaria à reconstrução nacional.
Isso significava que aqueles que tivessem o controle dos sistemas educacionais
teriam o poder. No conceito de Teixeira sobre educação em uma sociedade em
mudança, mais importante do que o poder é a noção de que a escola deve estar
preparada para treinar o novo homem, um homem moderno integrado a uma
sociedade democrática. Daí a crença de Teixeira na ciência, no método científico e
em suas aplicações técnicas (TEIXEIRA, 1968).
Os católicos também acreditavam que os novos projetos pedagógicos eram de
natureza política. A educação seria, portanto, um importante instrumento de poder.
Tal como Teixeira e outros Pioneiros da Educação, Alceu de Amoroso Lima e padre
Franca apresentaram em diversos livros e artigos seus argumentos como defendidos
pela Igreja (FRANCA, 1931; LIMA, 1931). Um dos argumentos colocados por
Alceu de Amoroso Lima referia-se à revolução espiritual como a única base para a
reimplantação da ordem na sociedade:
246 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

[A] unidade espiritual da nação já não é mais, para o liberalismo, uma questão de natureza
pública. São considerados todos os tipos de unidade: unidade política, unidade legal [...] A única
unidade pela qual o liberalismo político atual não se interessa é a unidade espiritual que, no
entanto, é a base de todas as outras (LIMA, 1931, p. v-vi).

No centro da crítica ao Movimento da Escola Nova por parte dos católicos


estava o conceito de laicização da educação – uma ideia nuclear no projeto proposto
pelos Pioneiros da Educação. Para os católicos, a pedagogia defendida pelos
educadores da Escola Nova devia ser combatida, uma vez que não tinha princípios
pedagógicos consistentes. Nesse projeto, a ciência dominava a filosofia e ignorava
o aspecto sobrenatural do ser humano. Tais projetos pedagógicos tinham um caráter
puramente utilitário e pragmático. Para os católicos, a educação tinha que ser
religiosa; por rejeitar a religião, a escola laica era incapaz de educar (FRANCA,
1931; LIMA, 1931).
Outra questão focalizada nesses debates referia-se a quem deveria ser
encarregado da educação. A proposta pedagógica dos Pioneiros da Educação
defendia o monopólio pedagógico do Estado. A proposta dos católicos referia-se à
Igreja e à família como as principais instituições encarregadas da educação. O
Estado deveria ter apenas um papel de coordenação do provimento educacional
(CURY, 1978; SALEM, 1982).
Por fim, a legislação de 30 de abril de 1931 estabeleceu o caráter opcional da
educação religiosa nas escolas estaduais, o que satisfazia as demandas dos católicos.
No entanto os conflitos entre os dois grupos não terminaram. Ao invés de um
consenso com o fait accompli – a legislação de 1931 –, persistiu o debate entre os
dois grupos.
Assim, depois de 1931, sob pressão dos movimentos católicos, a educação
religiosa foi incluída no currículo escolar como disciplina, mas com frequência
opcional. Nas Constituições posteriores, inclusive a última, de 1988, a educação
religiosa continuou a fazer parte legalmente do currículo escolar, tanto em escolas
estatais quanto nas privadas. Mas a questão continua a ser muito complexa e
controvertida no contexto de um Estado laico, de uma cultura secular e de
multiplicidade de credos (CURY, 1993).
A década de 1930 foi marcada por uma série de eventos e atividades. A
Associação dos Professores Católicos e a Confederação Católica Brasileira de
Educação começaram a promover congressos e cursos em nível nacional. O objetivo
era formular uma política educacional baseada na doutrina cristã. Houve ganhos
de ambos os lados – dos católicos e dos Pioneiros. A Constituição de 1934
reconheceu, semioficialmente, a Igreja católica, por meio da inserção de artigos
que estabeleciam o reconhecimento do casamento religioso pela Lei Civil, a não
aceitação do divórcio e a incorporação de educação religiosa facultativa nas escolas
estatais. Em contrapartida, a mesma Constituição de 1934 estabeleceu que era
privilégio do Estado intervir em questões relacionadas ao Plano Nacional de
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 247

Educação. Estabeleceu também que o ensino primário seria gratuito e compulsório


para todos. Dessa forma, ambos os grupos tiveram suas propostas básicas aprovadas
pelo Estado. No entanto, Lima acusa a falta de um projeto pedagógico preciso em
ambos os grupos:
Se o mérito dos católicos foi enfatizar a dimensão nacional, o mérito dos reformadores foi criar
uma oportunidade da qual os grupos sociais não dominantes não se beneficiavam [...] Estava
longe o nascimento da escola do povo. A educação continuava a ser um agente das classes
dominantes (LIMA, 1978, p. ix-x).

Na proposta pedagógica dos católicos, o que deveria ser oferecido nas escolas
seria o conhecimento baseado na visão católica do mundo e do Homem: “Esse
ideal pedagógico não é oferecido pelas ciências experimentais, mas por um conceito
de vida ditado pelas ciências especulativas. Estas, por sua vez, são governadas pela
ética, que é subordinada à teologia” (CURY, 1978, p. 54).
Em contraste, os Pioneiros da Escola Nova defendiam uma proposta pedagógica
cujo conteúdo de conhecimentos estava baseado nas ciências:
Daí tais ciências se apoiarem nas ciências sociais e naquelas que cientificamente pretendem
descobrir os processos regulares que atuam no ser humano. Tais são, por exemplo, a Fisiologia, a
Biologia e a Psicologia. A Biologia exige a concordância da educação com as tendências das
crianças. E as ciências sociais situam o papel e a função social da escola. Esse conjunto forma a
base científica da organização escolar (CURY, 1978, p. 83).

Assim, as tensões entre católicos e liberais perduraram por quase 20 anos. Essas
tensões evidenciavam-se também em relação à educação superior. Os primeiros
movimentos da Igreja para a criação de instituições católicas de educação superior
no Brasil surgiram na primeira década do século XX. O objetivo, semelhante ao
da criação do Centro D. Vital, era a cooptação e o ensino religioso das elites.
Algumas poucas instituições, tais como a Associação dos Universitários Católicos
e o Instituto Católico de Estudos Superiores, foram implementadas para oferecer
apoio à Igreja em relação a suas propostas para uma educação superior católica
(SALEM, 1982).
As primeiras tentativas de oferecer cursos formais no nível do ensino superior
foram realizadas pelo Instituto Católico de Estudos Superiores. Inicialmente, o
currículo limitava-se a três disciplinas obrigatórias (sociologia, filosofia e teologia)
e três facultativas (introdução ao direito, à matemática e à biologia). Mais tarde, o
currículo expandiu-se consideravelmente. Como apontado por Salem, nos últimos
anos da década de 1930, o número de estudantes aumentou para 200 (SALEM,
1982, p. 18).
Evidentemente, não era fácil a tarefa de oferecer estudos católicos em nível de
ensino superior. Segundo o Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931, que
implementa o Estatuto das Universidades Brasileiras, atribuía-se ao Estado um
papel importante em termos de administração e controle da educação superior,
248 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

mantendo assim a Igreja à parte. Dessa forma, tornou-se claro para os líderes e os
acadêmicos católicos que não haveria apoio estatal para implementação de seu
modelo católico de universidade. O Instituto Católico de Estudos Superiores,
criado em 1932, estabeleceu as primeiras bases da futura Universidade Católica.
Como aponta Salem:
[...] a Universidade Católica é pensada pelas lideranças laicas e eclesiásticas do período como
tendo duplo sentido político [...] ela se constituiria em uma instituição de combate ao ensino e
à mentalidade laicistas, garantindo a resolução das crises nacionais e barrando a penetração da
ideologia comunista no pais [...] a Igreja, por suposto, concretizaria sua meta de recristianizar a
sociedade e a própria instituição do Estado (SALEM, 1982, p. 21).

O Instituto Católico de Estudos Superiores foi criado para prover um modelo


alternativo de universidade no Brasil. Em meio aos acadêmicos e religiosos
católicos, acreditava-se que essa alternativa liberaria a universidade do controle do
Estado, uma vez que sua atribuição sempre caberia à Igreja. Naturalmente, os
católicos estavam contrariados com a criação da primeira universidade estatal, em
1935 (Decreto nº 5.513, de 4 de abril de 1935). Consideravam a Universidade do
Distrito Federal, implementada com apoio de Anísio Teixeira, como laica e
anticatólica. Havia queixas até mesmo de que a nova instituição tornaria mais fácil
a americanização da educação brasileira, ou até mesmo o favorecimento de uma
transformação em uma instituição comunista (SALEM, 1982).
A necessidade e a urgência de criação de uma Universidade Católica foram
reivindicadas na Primeira Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1939.
Dois anos mais tarde, foram implementadas as primeiras Faculdades Católicas,
depois de obter a aprovação oficial do Conselho Nacional de Educação. Os
cursos incluíam direito, filosofia, línguas e literatura, geografia, história, ciências
sociais e pedagogia. Eram orientados principalmente para a formação de
professores para a escola secundária, dentro da estrutura pedagógica católica.
Todas as faculdades incluíam no currículo um curso de cultura religiosa
(SALEM, 1982). Em 1942, por legislação governamental, as Faculdades
Católicas foram autorizadas a conferir seus próprios certificados, como ocorria
nas universidades federais e estaduais. Em 1946, pelo Decreto nº 8.681, as
Faculdades Católicas foram elevadas ao status de universidade – a Universidade
Católica do Rio de Janeiro
Atualmente, os tipos de conhecimento e o currículo oferecidos pelas
Universidades Católicas vão além da educação religiosa. São oferecidas quase
todas as áreas do conhecimento, das humanidades às ciências, em quase todos
os estados brasileiros. Assim como outras duas mil instituições, são instituições
privadas. Ainda hoje, as universidades federais e estaduais brasileiras lutam
vigorosamente contra qualquer tipo de apoio financeiro do governo às
universidades privadas. Em sua maioria, as Universidades Católicas são
instituições de excelência.
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 249

Na segunda metade do século XX, houve mudanças dramáticas na vida política


e econômica do Brasil. A elite militar, associada à elite econômica, tomou o poder
em 1964; foram banidas as eleições democráticas; nas décadas de 1960 e 1970,
ocorreram reformas educacionais nos níveis primário, secundário e superior,
segundo a ideologia política e econômica do regime militar (FIGUEIREDO, 1986,
1987). Durante o regime militar, a Igreja teve um papel diferente na vida política
e cultural. Aliada inicialmente ao governo militar, em 1964, passou a opor-se ao
regime quando começaram a emergir questões relativas a tortura.
Em 1968, a Conferência Episcopal Latino-americana, realizada em Medellín
(Colômbia), foi um marco de mudança na posição da Igreja. Inspirada nos
princípios do Concílio Vaticano II (1962-1965), as ações da Igreja voltaram-se
para as condições materiais da população. No Brasil, a Igreja certamente foi
fundamental no processo de redemocratização do país, por meio das Comunidades
Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação (CASTRO, 1984; PUCCI, 1984).

Educação religiosa hoje


O ensino de religião nas escolas estatais não pode ser tratado como uma simples
questão de currículo. É necessário considerar a dialética entre secularidade e
laicismo, intrínseca aos contextos socioculturais.
De fato, a Constituição de 1824 estabeleceu o catolicismo como religião do
império (PAULY, 2004). A Constituição Republicana de 1891, sob a influência
do positivismo, aboliu a educação religiosa do currículo escolar, declarou a
secularidade da educação, e separou a Igreja do Estado (PAULY, 2004). Em todas
as Constituições subsequentes, como já foi mencionado, a educação religiosa
tornou-se matéria constitucional. No Decreto nº 19.941, de 1931, Vargas
“reintroduz o ensino de religião nas escolas estatais, autoriza as autoridades
eclesiásticas a planejar os programas, escolher livros didáticos, indicar professores
e supervisionar sua fidelidade à doutrina e à moral” (CURY, 1978, p. 175).
De modo geral, desde 1931, embora opcional, o ensino de religião era de natureza
basicamente catequética, e permanecia fora da lista de disciplinas regulares do
sistema escolar. Não era permitido que os professores entrassem na folha de
pagamento do Estado. Não havia consenso sobre o conteúdo ensinado. A maioria
dos professores de educação religiosa nas escolas pertencia normalmente a uma
ordem religiosa específica. Em outros casos, os professores eram membros da
comunidade, envolvidos com catecismo e outras atividades religiosas. Esse status
quo persistiu até a década de 1990.
Novas definições sobre o tipo de conhecimento que deveria ser oferecido pela
educação religiosa e sobre seu lugar no currículo escolar começaram a surgir quando
a Lei nº 9.394, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, artigo 33,
confirmou o ensino religioso como dever do Estado, sob a forma de disciplina
optativa: “a educação religiosa, de matrícula optativa, é uma disciplina inserida na
250 Figueiredo-Cowen e Gvirtz

programação normal do ensino fundamental nas escolas estatais, e será oferecida sem
custo para o Estado” (CURY, 2004). A reação dos católicos foi imediata e eficaz. Em
1997, pela Lei nº 9.475 foi aprovada uma emenda ao artigo 33, mantendo o
provimento compulsório de educação religiosa no currículo e sua natureza facultativa.
Abriu também a possibilidade de utilização de dinheiro público para o salário dos
professores (CURY, 2004). Ao mesmo tempo, o novo texto do artigo 33 introduzia
algumas inovações: a educação religiosa integraria a educação do cidadão; cada sistema
educacional regulamentaria o processo de definição do programa e o treinamento e
recrutamento de professores (CURY, 2004, p. 186). O Fórum Permanente do Ensino
Religioso (Fonaper), criado em 1995, está profundamente envolvido nas discussões
e sugestões sobre os tipos de conhecimento a serem oferecidos na educação religiosa.
O Fonaper tem sido muito ativo na promoção de cursos, na produção de documentos
e publicações, na definição dos tipos de conhecimento que devem constar do
currículo, bem como no treinamento de professores.
Os Parâmetros Curriculares para a Educação Religiosa, tal como estabelecidos
pelo Fonaper, incluem a ênfase na importância de uma sociedade pluralista e
diversificada, nas tradições religiosas em diferentes contextos socioculturais, e na
atitude moral dos seres humanos.
No entanto a implementação dos parâmetros curriculares tem variado entre os
diversos estados do país. As discussões ainda estão muito presentes. A associação com
a política tem algumas bases no passado. Recentemente, gestores escolares e professores
têm sugerido que um projeto pedagógico escolar é um projeto político, uma vez que
se baseia em uma determinada visão de mundo e em uma determinada ideologia.
Por fim, segundo Cury, as discussões sobre educação secular e educação laica
vão além de um componente curricular nas escolas (CURY, 2004, p. 183). A falta
de continuidade no planejamento e na implementação de reformas educacionais é
muito mais complexa. A dificuldade pode estar no contexto histórico-social no
qual essas reformas têm lugar.

Conclusão
Argentina e Brasil talvez tenham mantido um equilíbrio entre suas similaridades
e suas diferenças. Em termos linguísticos e culturais, as diferenças são muito
marcantes. O português e o espanhol são idiomas latinos, o que às vezes resulta em
confusões embaraçosas. O tango argentino e o samba brasileiro estão muito
entranhados em cada uma das culturas, e não se transferem (de um modo sério)
entre os países. Politicamente, desde a independência, ambas as sociedades
oscilaram entre governos fortes, autoritários (frequentemente militares) e
democráticos. Até mesmo uma imensa vergonha nacional – a tortura – maculou
alguns períodos da história dos dois países. Economicamente, tanto a Argentina
quanto o Brasil passaram de estágios de real estagnação econômica para uma
economia florescente – embora nem sempre nos mesmos períodos de tempo.
A Igreja e o Estado na Argentina e no Brasil 251

Na educação, as semelhanças são evidentes desde os tempos coloniais. Tal como


no Brasil, os jesuítas dominaram todo o sistema educacional argentino.
Construíram escolas em toda a colônia e encarregaram-se delas, ensinando e
evangelizando. Apenas algumas escolas estavam sob o controle das municipalidades.
Com a independência, no decorrer do século XIX, o sistema político foi
bastante diferente na Argentina e no Brasil. O mesmo se deu com o sistema
educacional. No Brasil, estabeleceu-se um império. Até a Proclamação da
República, a Igreja católica era a Igreja oficial, e a educação religiosa era
compulsória. Em contraste, na Argentina, apenas durante três anos, entre 1943 e
1946, a educação religiosa foi parte obrigatória do currículo escolar.
Nos dois países, as tensões entre a Igreja e o Estado diminuíram ocasionalmente,
mas nunca desapareceram. Havia sido estabelecida uma aliança forte com governos
conservadores. Sempre que a democracia é restaurada, como ocorreu nos últimos
anos do século XX, especialmente com a eleição de Tancredo Neves, no Brasil, e
de Raúl Alfonsín, na Argentina, a Igreja católica manteve sua influência na
formulação e na implementação de políticas educacionais. No Brasil, por exemplo,
a legislação de 1997 resultou de pressões dos católicos para mudar o artigo 33 da
Lei nº 9.394, de 1996 – a educação religiosa, de natureza facultativa, continua
como parte integrante do currículo escolar. Na Argentina, foi mais uma vez a Igreja
que impediu que o governo Kirchner introduzisse um novo conteúdo curricular
baseado na teoria da evolução.
Igualmente poderosa nos dois países é a presença de um sistema de escolas
católicas privadas de alta qualidade. Parte delas conseguiu obter subsídios do
governo para oferecer vagas para a classe trabalhadora. Essa é uma ação da Igreja,
invisível e muito poderosa, na Argentina e no Brasil, bem como em toda a América
Latina. Não deve ser subestimada.

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55

CONFUCIONISMO, MODERNIDADES E
CONHECIMENTO: CHINA, COREIA DO SUL E JAPÃO

Terri Kim

Este capítulo oferece uma crítica dos legados de Confúcio às modernidades, ao


conhecimento e à educação no Leste da Ásia. Para uma análise comparativa, são
extraídos exemplos específicos da China, da Coreia do Sul e do Japão. Os três países
do Leste da Ásia viveram as repetições históricas do abandono e, posteriormente,
do revivescimento do legado de Confúcio em diferentes momentos do processo de
modernização. No entanto os três mantiveram a forte cultura pedagógica
confucionista, que estrutura as formas pelas quais o conhecimento é transmitido e
aplicado para definir as modernidades no Leste da Ásia.
Embora tenha sido amplamente difundido e tenha sido reescrito ao longo do
tempo, o confucionismo tem uma imensa continuidade. Diversas historiografias
do Leste da Ásia escreveram e reescreveram o legado confucionista durante o
processo de modernização da região desde os últimos anos do século XIX.
Inicialmente os acadêmicos atribuíram a essa tradição o atraso no desenvolvimento
no Leste da Ásia e, mais recentemente, vêm atribuindo o sucesso desses países à
mesma tradição (BELLAH, 1957; 1968; EISENSTADT, 1968; MORISHIMA,
1982; WEEDE, 1996; BELL; HAHM, 2003).
Em outras palavras, no decorrer do tempo o confucionismo tem sido utilizado
para explicar tanto o fracasso como o sucesso da modernização do Leste da Ásia.
Foi frequentemente condenado como a principal causa da estagnação econômica
dos países da região no século XIX e no início do século XX; mais tarde, passou a
ser louvado como o principal componente da tardia arrancada econômica, e do
processo sustentável de industrialização, primeiramente no Japão, e em seguida
pela Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Hong Kong, e agora pela China (BERGER,
1986, 1988; TU, 1984, 1996; TAI, 1996).
De modo geral, o confucionismo foi uma referência para explicar o Leste da
Ásia, como se seu legado fosse a chave para a compreensão dos aspectos comuns
ao enigma do desenvolvimento tardio e à modernização acelerada da região. As
modalidades confucionistas paternalistas de família e de relações sociais (BELL;
HAHM, 2003) e a importância pública de credenciais educacionais no treinamento
e na seleção da elite governante, o grupo de mandarins (ZENG, 1999;
WILKINSON, 1964, 1969) foram reconhecidos como atributo crônico tanto do

253
254 Kim

retardo quanto do notável sucesso do desenvolvimento econômico no Leste da Ásia


(WOO-CUMINGS, 1999).
Embora as interpretações do confucionismo, positivas ou negativas, tenham
sido formuladas em momentos diferentes, argumenta-se aqui que o que não mudou
foi o reconhecimento dos atributos pedagógicos confucionistas para a educação e
as sociedades do Leste da Ásia.
Os atributos pedagógicos do confucionismo – tais como devoção filial e
autoridade patriarcal – podem ser claramente identificados nas características das
relações políticas e sociais confucionistas preservadas no institucionalismo em rede,
cuja estrutura é semelhante à da família ampliada (ANSELL, 2006), que gera
interdependência, obrigações mútuas e reciprocidade, e relações sociais estritamente
hierárquicas de acordo com idade, gênero e status. No entanto essas características
também podem ser identificadas como atributos comuns de sociedades não
ocidentais, e/ou de sociedades tradicionais.
O que é considerado como singularmente confucionista é a secularidade e a
meritocracia do Leste da Ásia, sintetizadas na tradição dessa região do ensino
orientado para exames, e de seleção de servidores públicos com base em exames.
Em princípio, o controle estatal sobre o currículo escolar e outros aspectos da
educação e dos processos de seleção nos países da região, cujo objetivo é garantir a
igualdade de oportunidades educacionais com base no mérito, pode ser considerado
um atributo particular da tradição pedagógica confucionista.
Examinaremos se essa proposição é ou não verdadeira na prática, e de que forma
os elementos pedagógicos confucionistas estão preservados ou são distorcidos nos
contextos contemporâneos de vida real na China, na Coreia do Sul e no Japão.
Para isso, o capítulo está organizado na seguinte ordem temática: (i) conceito
confucionista de modernidade; (ii) natureza do conhecimento e da educação no
confucionismo; (iii) modernização do Leste da Ásia e atributos do confucionismo;
(iv) características comuns da pedagogia no Leste da Ásia como atributos do
confucionismo; (v) impacto de Confúcio sobre a mobilidade educacional na
economia global do conhecimento e na migração do século XXI. A conclusão do
capítulo refletirá sobre uma perspectiva futura, discutindo a pedagogia
confucionista como dogma no discurso pós-colonial do Orientalismo. Em primeiro
lugar, levanta-se uma questão básica: o que significa “confucionista”?

A modernidade e o conhecimento confucionistas


Foi na era da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.) que o Estado chinês e a classe
governante de homens letrados desenvolveram um forte comprometimento com
as antigas virtudes denominadas confucionistas. Em uma coleção de obras
literárias que datam da antiguidade – os “Analectos” (ou “Diálogos de
Confúcio”), o “Mencius” (ou “Mêncio”), “A grande aprendizagem” e “A
doutrina do meio” –, Confúcio (551 a.C.-479 a.C.) é reverenciado como sábio
Confucionismo, modernidades e conhecimento 255

e, embora de origem obscura, a literatura construiu um conjunto de tradições


denominado confucionismo (ZENG, 1999, p. 20).
Constitui uma crença confucionista que o conhecimento é o princípio da ordem
cósmica na seguinte sequência: aprender as ideias e o cânone confucionista, desenvolver
pensamentos, amadurecer as almas, autoaperfeiçoamento, autorrealização, regulação
da família, o Estado em boa ordem, e o mundo em paz. Nessa ordem, Confúcio
percebia o Estado como produto da evolução natural e, portanto, como apenas uma
parte da sociedade. Nem Confúcio nem seus discípulos dão qualquer definição formal
de Estado. A literatura ocidental existente mostra que o pensamento político
confucionista não contém a ideia de Estado no sentido ocidental: isto é, o Estado
confucionista não se origina em um estado de natureza, nem adquire sua legitimidade
a partir de um contrato social (“Book of change”, capítulo ii, citado a partir de HSÜ,
1932, p. 33-36). Desde a formação da Terra até o desenvolvimento do Estado ético,
há oito estágios evolutivos simbolizados por céu e terra; coisas materiais; masculino e
feminino; marido e mulher; pai e filho; soberano e súdito; alto e baixo; e retidão e
integridade. Pela ordem, significam o estado físico, a aurora da vida, a aurora do
Homem, a aurora da vida social, a idade do patriarcado, o estágio político, o estágio
constitucional, e o estágio moral. O “Grande apêndice” do “Book of change” enfatiza
esses princípios de relação e de sequência de acordo com os quais o Estado deve ser
organizado (HSÜ, 1932, p. 61-89).
O confucionismo é um sistema de ideias ético-políticas no qual regras e
princípios para a orientação da vida privada estão estreitamente vinculados àqueles
que se destinam à regulação das carreiras públicas dos homens aos quais foi
confiada a responsabilidade de governar. Há, portanto, um elo forte entre ética e
política no Estado confucionista. Como ortodoxia do Estado, o confucionismo
estabeleceu o princípio da ordem social – a ética da devoção filial e da lealdade
em relação à hierarquia social como elementos-chave da estabilidade social
(ZENG, 1999; TU, 1996).
O confucionismo associou também a virtude moral ao conhecimento. Exortou
então uma ordem baseada no mérito, recompensando com posições oficiais no
governo a virtude e a sabedoria confucionista baseada no mérito. Durante a dinastia
Han (206 a.C.-220 d.C.), foram criadas escolas provinciais, e a tradição
confucionista de educação difundiu-se através da China. Desde então, no decorrer
da história da China Imperial na região do Leste da Ásia, essa série de obras literárias
foi estudada pelas pessoas letradas. Os Quatro Livros foram escolhidos como
currículo para o exame de ingresso no serviço público keju. O keju era um sistema
de exames eliminatórios e difíceis para acesso ao emprego, orquestrado pelo
governo, que perdurou por quase 1.300 anos: passou a vigorar em 606 d.C., e foi
oficialmente extinto em 1905. No auge de sua implementação, milhões de
examinandos foram testados na China a cada ciclo de três anos (SUEN; YU, 2006,
p. 48). Nos exames para o serviço público nacional, os candidatos eram testados
256 Kim

quanto à capacidade de analisar problemas políticos contemporâneos, além dos


exames usuais baseados nos clássicos. Havia também exames especiais de alto
prestígio realizados ocasionalmente por decreto imperial. Os exames de menor
prestígio testavam os candidatos em direito, caligrafia, habilidades militares e do
rito estatal (DAWSON, 1981, p. 71-73). Para os exames do serviço público
imperial, os candidatos tinham que memorizar grande quantidade de textos
confucionistas clássicos, mas nunca precisavam demonstrar capacidade de teorizar
ou questionar uma determinada premissa. A raison d’être da classe mandarim letrada
era, afinal, a reprodução de generalistas burocráticos familiarizados com uma
perspectiva ética e um conjunto de conhecimentos, mas que não se envolviam em
disputas epistêmicas ou em especialização acadêmica. De acordo com os resultados
dos exames no sistema keju, os candidatos bem-sucedidos eram nomeados para
postos no governo, ou de imediato ou em algum momento futuro. No entanto as
taxas de sucesso nesses exames eram extremamente baixas. Durante a dinastia Tang
(618-907) – um período de estabilidade política e progresso cultural com base no
sistema confucionista de serviço público –, a taxa de aprovação no keju era de
apenas cerca de 2% (MERSON, 1990, p. 86). De modo geral, como afirmou Suen
(2006), o keju era uma avaliação de caráter eliminatório. O esforço e as dificuldades
pelas quais os indivíduos passavam tanto na fase de preparação quanto na etapa de
realização desses exames tornaram-se parte da cultura chinesa.
A forte cultura confucionista de aprendizagem para ter sucesso em exames para
o serviço público foi imitada em países vizinhos, especialmente na Coreia. Durante
a dinastia Tang, acadêmicos e estudantes confucionistas coreanos viajavam para a
China para estudar e preparar-se para os exames confucionistas para o serviço
público. Por exemplo, Choe Chiwon (857-século X) – um destacado mandarim
acadêmico confucionista coreano, filósofo e poeta da última era do período
unificado de Silla (668-935) –, foi para a China aos 12 anos de idade, durante a
dinastia Tang, para estudar o confucionismo. Ao despedir-se do filho de 12 anos,
seu pai lhe disse que, se não passasse no exame do serviço público imperial chinês
dentro de 10 anos, deixaria de ser seu filho (SAMGUK SAGI, biografia no 6 apud
CHANG, 1977, p. 57). E nesses dez anos, Choe de fato passou no exame de maior
prestígio do serviço público, sendo nomeado para um alto cargo no governo chinês.
Antes de voltar à Coreia, permaneceu na China por mais uma década para servir
como mandarim acadêmico de alto nível no governo chinês, próximo do imperador
Xizong da China Tang (SAMGUK SAGI, biografia no 6 apud CHANG, 1977, p.
57).
Nas sociedades do Leste da Ásia, a educação foi um instrumento poderoso da
elite governante para administrar o Estado. Segundo Confúcio, era por meio da
educação que o governante deveria “aprender a cuidar do povo”, enquanto os
governados “aprendem a ser obedientes” (ZHOU, 1996, p. 242). O ideal
confucionista era colocar a aprendizagem e a seleção por mérito no coração da cultura
Confucionismo, modernidades e conhecimento 257

da elite governante. No decorrer da história da China Imperial, os imperadores foram


considerados os grandes patronos da educação, fazendo visitas formais à universidade
nacional, promulgando éditos para a criação de escolas, e honrando Confúcio como
o primeiro mestre. Os imperadores chineses estudavam o confucionismo com
veneráveis acadêmicos neoconfucionistas (DAWSON, 1981, p. 20).
A natureza democrática e baseada no mérito do princípio educacional de
Confúcio – isto é, o fato de oferecer um caminho de mobilidade ascendente a
qualquer pessoa que pudesse sobreviver aos rigores dos estudos e dos exames – foi
estabelecida pelo próprio Confúcio. Um dito tradicional atribuído a ele afirma que
“aqueles que trabalham com a cabeça governarão, enquanto os que trabalham com
as mãos servirão”. Com essa finalidade, a educação motivada pelos testes tornou-
se uma estratégia de sobrevivência e de sucesso nos países do Leste da Ásia. O
princípio chinês do mérito no exame do serviço público para o recrutamento das
elites governantes também foi imitado pela França e pela Grã-Bretanha no século
XIX, quando esses países expandiam suas colônias ultramarinas e, portanto,
precisavam de funcionários públicos para seus postos imperiais distantes
(WILKINSON, 1964, 1969).
Os países vizinhos à China no Leste da Ásia – Coreia e Japão e, por extensão,
também o Vietnã no Sudeste da Ásia – absorveram e refinaram o confucionismo
no aparato estatal, embora tenham desenvolvido suas próprias versões do
confucionismo, que divergiram cada vez mais dos diferentes caminhos de
modernização seguidos em cada país (PYE, 1985, p. 55-89; SMITH, 1996, p. 155-
159). Na Coreia, por exemplo, o confucionismo transformou a sociedade
originalmente matrilinear em uma sociedade patrilinear (DEUCHLER, 1992) para
estabelecer uma ordem mais hierárquica e, ao mesmo tempo, institucionalizar o
princípio da promoção por mérito no sistema de exames para o serviço público –
gwageo em coreano –, que foi integralmente adotado em 985 d.C., e durou até a
última parte do século XIX. Durante a dinastia de Yi (Chosun, 1392-1910), que
foi a última e a mais duradoura na Coreia e em todo o Leste da Ásia, a Coreia era
um Estado integralmente confucionista. O exame confucionista para o serviço
público foi formalmente abolido durante as reformas Gabo de 1894, juntamente
com a discriminação legal de classes e o antigo sistema hierárquico (ECKERT et
al., 1990, p. 98; JIN, 2005, p. 226-234).
Entretanto, o princípio confucionista de seleção de funcionários públicos com
base em exames manteve-se forte, independentemente da modernização e das
mudanças nos sistemas políticos e educacionais. O princípio do mérito no exame
confucionista para o serviço público ainda é aplicado: isto é, quem quer que seja
aprovado no exame do serviço público será nomeado servidor público, e ser um
servidor público ainda significa ter poder e segurança na Coreia . Portanto, o
ingresso no serviço público é altamente competitivo e, assim, a maioria daqueles
que passam nos exames para o serviço público frequentemente provém das
258 Kim

universidades mais prestigiosas do país (KIM, 1997). A tradição confucionista do


mandarim letrado também sobreviveu na Coreia contemporânea, criando uma
relação estreita de colaboração entre os funcionários do governo e a profissão
universitária acadêmica. Não é raro ver professores universitários indicados como
ministros ou para outras posições de alto escalão no governo coreano, ou ocupando
cadeiras no Congresso Nacional (KIM, 2001, p. 227-228).
O Japão também adotou um sistema de exames baseado nos clássicos
confucionistas chineses do período Heian (794-1185); mas diferentemente da
China e da Coreia, onde os aprovados nos exames quase sempre eram nomeados
para uma alta posição no serviço público, no Japão o caminho principal para as
posições mais altas era o privilégio hereditário baseado no sistema on’ i (AMANO,
1990, p. 21-23; ZENG, 1999, p. 8-9). O confucionismo japonês começou como
uma ideologia cultural que atendia às necessidades políticas do xogunato Tokugawa
(1600-1868), forjando alianças com o budismo e o xintoísmo. Com a passagem
do tempo, o confucionismo japonês divergiu cada vez mais de suas origens como
ideologia política, e tornou-se uma coleção de códigos sociais e éticos (HWANG,
1979, p. 18 apud SMITH, 1996, p. 158).
De modo geral, a grande importância do confucionismo na história da
modernidade no Leste da Ásia é o fato de o próprio Confúcio ter sido modelo e
inspiração para inúmeros acadêmicos que frequentemente precisavam passar a
metade da vida estudando antes de conseguir finalmente a aprovação nos exames
do serviço público. Caso não tivessem sucesso nessa ambição, também para eles a
única alternativa óbvia de aproveitamento de seus talentos era o ensino. Muitos
deles conservavam a ambição de tornar-se um mandarim letrado no futuro,
especialmente em momentos de mudança ministerial. Nessas ocasiões, esperavam
ser convocados para assumir altas posições no governo.

A natureza do conhecimento e da educação no confucionismo


Os confucionistas acreditavam na existência de um conjunto de verdades
absolutas que combinava princípios morais e leis cosmológicas, e que esse conjunto
de conhecimentos já havia sido compreendido e escrito pelos sábios confucionistas
(DARDEES, 1983). Essa crença escolástica em um conjunto de verdades absolutas
dirigia as energias para o domínio dos escritos clássicos e das interpretações
padronizadas (WILKINSON, 1964, p. 162). Dessa forma, a sabedoria
confucionista era dominada por estudos documentais que procuravam observar e
preservar as convenções tradicionais das histórias e dos clássicos. O estudo do
cânone confucionista era o conhecimento mais valorizado no Estado confucionista,
enquanto a astrologia e a elaboração de calendários desempenhavam um papel de
apoio. A medicina ficava em posição bem abaixo destes na lista, e a matemática
ainda mais abaixo. Tecnologia e ciências aplicadas não eram bem-vistas no mundo
confucionista (WILKINSON, 1964, p. 53-54).
Confucionismo, modernidades e conhecimento 259

Na tradição confucionista, o conhecimento não é importante per se: deve ser


praticado, mas não de forma pragmática. O próprio Confúcio não tratava de
tecnologia ou metafísica, e sim de conduta moral e política. Para ele e para a
tradição chinesa em geral, aprender normalmente não significava apenas acumular
conhecimentos: significava obter conhecimentos para orientar a própria conduta
social (DAWSON, 1981, p. 9-10). Dada a ênfase em praticar o conhecimento,
algumas redações dos exames confucionistas requeriam a aplicação do conjunto
geral de regras a uma situação específica ou a um problema em particular. Como
ilustrado anteriormente, e por meio da ênfase Zhu Xi na autodisciplina para o
governo dos homens (hsui-chi cihh-jen), o conhecimento neoconfucionista era
aceito como um ideal de ordem social na China e no Leste da Ásia, onde quer que
fosse estabelecido um currículo neoconfucionista.
O neoconfucionismo baseia-se nos valores morais da aplicação universal do
conhecimento, tais como autoaperfeiçoamento, autorrealização, responsabilidade
individual, cooperação familiar e autogoverno local (TU, 1996). Autoaperfeiçoamento
significa aqui determinar a própria posição na rede de relações sociais, e comportar-se
de forma adequada a essa posição. O princípio do autoaperfeiçoamento aplica-se a
todos, independentemente de status na hierarquia social. O governante é obrigado a
ser, para todos, um exemplo de autocontrole, correção e aperfeiçoamento pessoal.
Nesse sentido, a preocupação central do conhecimento confucionista é como aprender
a ser humano. No confucionismo, aprender a ser humano não é simplesmente
aprender as habilidades de determinada profissão ou tornar-se proficiente em
determinada tarefa. No confucionismo, o processo de aprendizagem é contínuo e
holístico. Há cinco tipos de conhecimentos que Confúcio considerava cruciais no
processo de aprender a ser humano. Cada uma dessas áreas é articulada em um dos
“Cinco clássicos”: “O livro das odes” (ou “O clássico da poesia”), “O clássico dos
ritos”, “Os anais de primavera e outono”, “O clássico da história” (ou “O clássico dos
documentos”) e “O livro das mutações”. No período tardio da dinastia Han, a
incorporação dos “Analectos” e do “Livro da piedade filial” (ou “Tratado da piedade
filial”) aos “Cinco clássicos” compôs os “Sete clássicos”. “Os quatro livros”, que são os
textos neoconfucionistas básicos – “O grande ensino” (ou “O grande aprendizado”),
“A doutrina do meio”, “Analectos e Mêncio” –, ocupam-se centralmente do
autoaperfeiçoamento da pessoa como futura depositária de responsabilidades de
liderança (HSÜ, 1932).
A doutrina neoconfucionista foi estabelecida sobre a premissa de que a natureza
humana é fundamentalmente boa; mas é também um sistema de pensamento
metafísico de busca das raízes dessa premissa na ordem natural do cosmos – com
uma explanação filosófica da sabedoria, do autoaperfeiçoamento e, em última
instância, do universo. Por meio de raciocínio dedutivo, os neoconfucionistas
dividiam toda a existência em dois componentes inseparáveis, li e qi. Li é um
padrão ou elemento formativo , que explica para que servem as coisas e de que
260 Kim

forma se comportam ou deveriam comportar-se normativamente; qi é o elemento


que energiza e concretiza. Os dois são interdependentes e inseparáveis. A partir
desse dualismo, desenvolveram-se na Coreia, desde os últimos anos do século XV,
duas escolas neoconfucionistas distintas: uma dando ênfase primária ao li, e a outra
argumentando a primazia do papel do qi. Essas diferentes visões intelectuais
competiram também por endosso político na Coreia (DE BARY, 1981; ECKERT
et al., 1990).
Na China e na Coreia, o Estado confucionista organizou o sistema educacional
para transmitir esses conhecimentos baseados na ortodoxia (neo)confucionista e,
posteriormente, para recrutar para o serviço governamental aqueles que tinham
adquirido maior domínio dos clássicos (neo)confucionistas. Os valores nucleares
exortados nos clássicos (neo)confucionistas – humanidade, empatia, harmonia e
reciprocidade de relações públicas e privadas e de responsabilidade, civilidade e
comunalismo – parecem atribuir relevância atemporal e validade universal às ideias
de modernidade.
No entanto, podemos realmente assegurar que o confucionismo sobreviveu
como credo pedagógico moral dominante na China, na Coreia e no Japão
contemporâneos? De que forma legitimar a relevância do confucionismo nos
contextos contemporâneos de modernidade e conhecimento no Leste da Ásia?

A modernização no Leste da Ásia e os atributos do confucionismo


À parte as origens e as tradições profundas do confucionismo na China, na
Coreia e no Japão antes que adotassem os caminhos ocidentais de desenvolvimento,
há controvérsias na discussão sobre a relevância do confucionismo como referencial
epistêmico da modernização e da industrialização do Leste da Ásia. Em “The
protestant ethics and the spirit of capitalism” (1930) e “The religion of China:
confucianism and taoism” (1951), Max Weber argumentou que a razão pela qual
o capitalismo moderno não se desenvolvera independentemente na Ásia seria
primariamente a influência restritiva da religião: na China, o confucionismo e o
taoísmo.
Entretanto, logo depois da Segunda Guerra Mundial, muitos acadêmicos,
jornalistas, políticos e outros intelectuais passaram a questionar a tese de Weber
sobre o confucionismo. Embora aceitando o argumento de Weber (1930) sobre as
bases culturais da atividade econômica, rejeitavam qualquer noção de que o
protestantismo fosse o único ou o melhor fundamento religioso para o capitalismo.
No Japão do pós-guerra e, posteriormente, nos países recém-industrializados (PRI)
do Leste da Ásia, o processo bem-sucedido de desenvolvimento econômico e
construção da nação passou a ser atribuído à sua herança comum do
confucionismo, como algo equivalente à ética protestante que contribuiu para a
industrialização na Europa Ocidental. Trabalho árduo, educação, mérito e
frugalidade são valores centrais para o confucionismo, e essenciais também para o
Confucionismo, modernidades e conhecimento 261

desenvolvimento do capitalismo moderno, assim como Weber considerava a ética


protestante como sendo o motor do capitalismo ocidental.
Durante a segunda metade do século XX, o sucesso do desenvolvimento
econômico conduzido por governos fortes no Leste da Ásia ofereceu um novo
modelo de modernização, com os conceitos de capitalismo confucionista
(YOSHIHARA, 1977, 1994; KAHN, 1979; VOGEL, 1979) e de Estado
desenvolvimentista (JOHNSON, 1999; THOMPSON, 1996). As características
confucionistas identificadas pelos acadêmicos são governo forte, estrutura
burocrática rígida, ordem hierárquica das relações sociais e estrutura social em rede,
alto nível de aspiração e de realização educacionais, ênfase em diligência,
parcimônia, cooperação e lealdade em relação ao próprio grupo ou à própria
organização etc. Coerentemente, Yoshihara Kunio, conhecido economista japonês
do desenvolvimento, argumentou que o desenvolvimento econômico é alcançado
mais rapidamente por meio de um governo forte ou de um Estado
desenvolvimentista que eduque as pessoas e promova um setor privado dinâmico
(YOSHIHARA, 1977, 1994, p. 196-197, 202; BERGER, 1997, p. 269). Também
em “Ideology and national competitiveness: an analysis of nine countries”,
organizado por Lodge e Vogel, por exemplo, é apresentado o conceito de “Estado
desenvolvimentista neoconfucionista” para explicar a ascensão do Leste da Ásia
(LODGE; VOGEL, 1987).
De modo geral, o confucionismo tem sido interpretado como referência para a
compreensão do padrão de atividades políticas e econômicas do Leste da Ásia no
processo de industrialização acelerada. Sugeriu-se que as tradições confucionistas
de autoridade patriarcal, devoção filial e lealdade nas relações sociais semelhantes
à família ampliada, sobriedade de costumes, trabalho árduo e, acima de tudo,
respeito por sabedoria e aprendizagem e pelo privilégio burocrático estavam
entranhadas no desenvolvimento econômico e político do Leste da Ásia (TAI,
1989; TU, 1996; BERGER, 1997).
Na Coreia as atividades e as relações sociais envolvem a preocupação com inhwa,
ou harmonia baseada no respeito por relações hierárquicas, o que inclui submissão
à autoridade. Para o Japão, as relações públicas operam dentro do contexto de wa,
que enfatiza a harmonia do grupo e a coesão social (ALSTON, 1989). Tanto no
Japão quanto na Coreia, os empregados são frequentemente doutrinados a
considerar seu local de trabalho como um ambiente familiar, tendo o diretor da
empresa como chefe da família. Foram ensinados a identificar-se como membros
de uma grande família, tipicamente organizada segundo a ordem da hierarquia
familiar confucionista, especialmente visível em grandes empresas e conglomerados
(Zaibatsu no Japão, e Chaebul na Coreia). Dada a orientação social que demarca
as fronteiras sociais de inclusão e exclusão, o vínculo acadêmico (hack-yeon na
Coreia) é considerado crucial para o sucesso no emprego e no desenvolvimento
profissional, particularmente na Coreia. Na profissão acadêmica, as redes
262 Kim

acadêmicas de poder evidenciam-se principalmente na proporção de ex-alunos que


se tornam membros do corpo docente nas principais universidades; por exemplo,
em 2002, a proporção foi de 95,5% na Universidade Nacional de Seul, 80% na
Universidade de Yonsei, 68% na Universidade da Coreia, e a média nacional foi
60%. Em comparação, em Harvard e em Stanford, a proporção de ex-alunos
graduados naquela universidade entre os membros do corpo docente foi de apenas
12% e 1%, respectivamente (KBS 1. TV Report, 10/06/2006).
Na China, as relações sociais e o comportamento organizacional giram em torno
de Guanxi, ou conexões pessoais. Os chineses dão muita ênfase à hierarquia, mas
Guanxi opera no nível individual. Guanxi liga duas pessoas, frequentemente
situadas em posições diferentes da hierarquia, de tal forma que o parceiro mais
fraco pode pedir favores especiais, os quais não precisa retribuir da mesma maneira
(ALSTON, 1989). Nas relações sociais chinesas determinadas por Guanxi, o status
pessoal ou a posição organizacional podem não ser indicadores de poder; na
verdade, uma pessoa de baixo status, seja no governo ou em outro nível, pode ser
muito influente devido às relações Guanxi que mantém com aquelas que estão em
posições superiores. Apesar da ênfase básica em laços familiares, esse aspecto
individualista das relações Guanxi parece permitir aos trabalhadores chineses muita
facilidade para mudar de emprego. Dados os termos culturais das relações sociais
chinesas, as economias de base chinesa, tanto no continente quanto nas regiões de
ultramar, envolvem alta taxa de mobilidade no emprego e de empreendedorismo
(ALSTON, 1989; BUTTERY; WONG, 1999).
Apesar dessas variações internas à região do Leste da Ásia, pode-se sugerir que,
em termos gerais, as relações derivam do confucionismo, que nesse contexto
enfatiza a regulação entre desiguais para manter uma ordem social harmoniosa.
Essas interpretações sobre a regulação social do confucionismo como atributo da
modernização e do desenvolvimento industrial no Leste da Ásia são frequentemente
comparadas à tese de Weber sobre o protestantismo na ascensão do capitalismo
ocidental, como já foi apontado.
Nessa linha de discurso, têm sido adotadas metáforas como dragões, tigres e até
filhotes para descrever o desenvolvimento rápido e bem-sucedido dos países do
Leste da Ásia. Pode-se argumentar, entretanto, que essas metáforas são os sinais
efetivos de um orientalismo persistente aplicado à região contemporânea do Leste
da Ásia. Lee (2006) também sustenta que enfatizar extensivamente o
confucionismo como o principal atributo cultural do sucesso econômico capitalista
na região do Leste da Ásia é ir um pouco longe demais. Por exemplo, o progresso
econômico de Hong Kong e Singapura pode ser atribuído principalmente ao legado
do capitalismo britânico e, portanto, deve ser diferenciado do padrão japonês e
sul-coreano de desenvolvimento econômico, baseado em uma relação estreita entre
círculos empresariais e políticos. Da mesma forma, Kwon (2007) argumenta que
as virtudes confucionistas podem ser mais claramente entendidas como produtos
Confucionismo, modernidades e conhecimento 263

da inculcação pelo Estado e da engenharia social para a modernização e o


desenvolvimento econômico, e não como valores sociais entranhados e herdados
culturalmente.
Ainda seguindo essa linha de argumentação, sugere-se que o que torna o
confucionismo significativo na trajetória de modernização do Leste da Ásia, de
modo geral, não se relaciona tão precisamente ao desenvolvimento econômico, e
sim ao padrão de relações pedagógicas e educacionais.

Os aspectos comuns da pedagogia no


Leste da Ásia como atributo do confucionismo
Algumas das principais características da tradição pedagógica confucionista
estão entranhadas nos sistemas estatais e nos hábitos socioculturais do Leste da Ásia
– incorporados aos conceitos de capitalismo confucionista e de Estado
desenvolvimentista, discutidos anteriormente, nos quais foram reconhecidas as
relações entre o alto nível de realização educacional da população e o
desenvolvimento econômico. Na década de 1970, todas as crianças da Coreia do
Sul e de Taiwan (bem como de todo o resto do Leste da Ásia) estavam na escola
primária, e um terço ou mais, na escola secundária. Em contraste, a Índia tinha
apenas 50% das meninas na escola primária; Bangladesh, 34%; e o Paquistão, 22%
(PEMPEL, 1999, p. 170). Sugeriu-se que a ética e os valores confucionistas relativos
à educação e ao trabalho árduo estão contribuindo, direta e indiretamente, para o
desenvolvimento nacional rápido e bem-sucedido no Leste da Ásia.
Os valores confucionistas destacam a importância da educação e da ética do
trabalho árduo e de relações sociais harmônicas, porém hierárquicas; e a literatura
confucionista equipara a educação ao treinamento moral. O “Clássico da história”
e o “Mêncio” relatam que o imperador Shun, sábio e legendário, indicou um
ministro de educação para instruir o povo, porque este não estava observando as
cinco relações básicas – isto é, os deveres envolvidos nas relações entre pai e filho,
governante e súdito, marido e esposa, irmão mais velho e irmão mais novo, e amigo
e amigo (DAWSON, 1981, p. 11). O estereótipo confucionista do cavalheiro
também sintetiza a defesa confucionista da aprendizagem e da virtude da
frugalidade, que era muito admirada por Confúcio: um acadêmico pobre luta pelo
sucesso no exame, apesar de sua origem humilde. De modo geral, pode-se
argumentar que o legado pedagógico de devoção filial do confucionismo e de
meritocracia continuou a ser utilizado nos sistemas educacionais do Leste da Ásia
no decorrer do rápido desenvolvimento industrial.
Um aspecto comum notável dos sistemas de educação da região é o fato de a
educação escolar estar atendendo ao objetivo de seleção baseada em exames. (O
sistema educacional de seleção para o ingresso na universidade foi muito
controvertido, por exemplo, nas reformas educacionais na Coreia; desde 1945, já
mudou mais de dez vezes). Pode-se argumentar, no entanto, que o forte apreço
264 Kim

pela aprendizagem nas sociedades do Leste da Ásia frequentemente não deriva de


curiosidade intelectual ou de sede de conhecimento, mas do propósito único de
perseguir o sucesso no ingresso na universidade e um bom emprego. Na educação,
a falta de curiosidade está estreitamente associada à falta de criatividade.
De modo geral, a forte cultura de aprendizagem nas sociedades do Leste da Ásia
é frequentemente uma atividade intencional e altamente focalizada na preparação
para vários tipos de exames e para a obtenção de um certificado ao final. O valor
e a utilização pragmáticos da educação formal têm sido muito apreciados pelas
próprias pessoas comuns, que estão ansiosas por receber e utilizar a educação como
instrumento importante para a mobilidade social ascendente. Relatou-se que
72,6% dos estudantes sul-coreanos têm aulas particulares adicionais depois da
escola para preparar-se e brilhar nos competitivos exames de ingresso na
universidade (CHOI, 2003; KEDI, 2003). Dado o estresse profundamente
enraizado na cultura relativo à aprendizagem de nível superior e às recompensas
significativas associadas ao sucesso nos exames, a taxa de matrícula na educação
superior nos países do Leste da Ásia em geral é muito alta. No caso da Coreia, por
exemplo, em 2005, 97% dos alunos de 18 anos de idade concluíram o ensino
secundário, e 81,3% deles prosseguiram os estudos em instituições de educação
superior. Da mesma forma, no Japão em 2005, 97,5% dos alunos de 15 anos de
idade prosseguiram os estudos no ciclo final do ensino secundário, e 76,2% dos
alunos de 18 anos de idade foram para instituições de educação pós-secundária ou
superior (YONEZAWA; KIM, 2008). Outros países do Leste da Ásia, como Taiwan
e Hong Kong, identificados frequentemente como minidragões pela herança das
tradições confucionistas chinesas, também apresentaram altos níveis de resultado
educacional. A China vem-se aproximando da educação superior de massa desde
1999, com taxa bruta crescente de matrículas na educação superior: de 9,8%, em
1998, para 22%, em 2006 (MoE, PRC. China News, 10/03/20071).
Embora atendam a necessidades pragmáticas individuais de educação, os
sistemas modernos de educação no Leste da Ásia foram cuidadosamente planejados
para ir ao encontro dos projetos políticos e econômicos do Estado, tais como
socialização em massa dos valores dominantes no regime vigente, unificação da
sociedade, produção de força de trabalho capacitada para o desenvolvimento
industrial acelerado e continuidade do regime (PEMPEL, 1999, p. 137-181). A
regulação das instituições educacionais pelo governo, visando à utilização
intencional, utilitária e tecnicamente funcional da educação (superior), é uma
característica comum à China, à Coreia e ao Japão, denotando a combinação dos
legados históricos confucionistas, imperiais/coloniais do Estado japonês, e da
revolução cultural de Mao e da educação comunista chinesa. Considerados todos
esses aspectos, é possível argumentar que as trajetórias de modernização e de
desenvolvimento político e econômico no Leste da Ásia têm estado estreitamente
1. Disponível em: <www.china.org.cn>.
Confucionismo, modernidades e conhecimento 265

associadas ao legado confucionista de valorização da educação em geral. O ideal


político confucionista era governar o Estado por meio de virtudes morais, o que
precisava ser desenvolvido pela educação.
Na tradição confucionista de educação, a ênfase está sempre em viver bem, viver
de forma apropriada, aqui e agora, e por meio das próprias ações. Segundo
Confúcio, a sociedade é composta por cinco relações básicas: Confúcio coloca
muita ênfase na harmonia, e seus ensinamentos referem-se, em grande parte, a
problemas de boa governança: “somente depois que o eu é cultivado pode a família
ser regulada; somente depois que a família está regulada pode o Estado ser
governado; e somente depois que o Estado é governado pode a paz descer sobre a
terra” (CONFÚCIO, 2006, p. 8). Assim, o valor mais característico da sociedade
chinesa são as relações harmoniosas, não apenas consigo mesmo, mas com outras
pessoas, ou mesmo com a natureza e com o mundo todo. Portanto, o conceito
confucionista de aprendizagem pode ser entendido como uma educação humanista,
universal e por toda a vida, que começa pelo autoaperfeiçoamento e continua como
práxis nas ações sociais cotidianas. Acredita-se que essa atitude orientada para o
grupo tem conduzido à produtividade econômica e à coesão social nos países do
Leste da Ásia.
No referencial cultural confucionista das sociedades do Leste da Ásia, é altamente
valorizado aprender juntos em um contexto social (YANG, 1981). Isso pode estar
relacionado à orientação grupal (como em uma rede de relações semelhante à
estrutura da família ampliada) da tradição pedagógica confucionista, que contrasta
com a aprendizagem centrada no indivíduo da tradição pedagógica
europeia/ocidental. No nível micro de observação de práticas instrucionais do Leste
da Ásia, podemos encontrar também a continuidade e os elementos comuns dos
estilos pedagógicos da região. Por exemplo, na China, na Coreia e no Japão, o ensino
em sala de aula é tipicamente conduzido em um contexto da classe como conjunto,
no qual é essencial o papel do professor. No Leste da Ásia confucionista, a expectativa
em relação ao professor ainda é de que seja um cavalheiro acadêmico com bons
conhecimentos do assunto. A competência pedagógica é secundária, o que resulta
em um modo de ensino direto para o conjunto da classe. Essa expectativa de um
professor acadêmico e da modalidade de ensino para o conjunto da classe também
se encontra na antiga tradição universitária europeia de aulas expositivas, mas não
se encontra tanto no modelo pedagógico anglo-americano contemporâneo. De
modo geral, na tradição educacional no Leste da Ásia referenciada pelo
confucionismo, um professor deve ser, antes de tudo, um acadêmico, para que seja
capaz de desempenhar o papel de facilitador da aprendizagem.
Isso posto, seria correto afirmar que há um elemento pedagógico confucionista
incorporado aos aspectos comuns das práticas instrucionais no Leste da Ásia? E
quais são os valores implícitos subjacentes a essas práticas instrucionais
compartilhadas? De modo geral, os currículos dos sistemas de educação da região
266 Kim

são orientados para o conteúdo e para os exames (ZENG, 1999); e coerentemente,


a educação no Leste da Ásia muitas vezes tem sido criticada pela aprendizagem por
memorização. Entretanto os acadêmicos do movimento Escolas Eficazes
reavaliaram o modo de aprendizagem por repetição que caracteriza o ensino no
Leste da Ásia, argumentando que, no contexto pedagógico desses países, a repetição
é um caminho para a compreensão mais aprofundada e, portanto, deve ser
diferenciada do conceito muito criticado de aprendizagem decorada do Ocidente
(BIGGS, 1994, 1996; MARTON et al., 1996).
Não obstante, um problema óbvio dos sistemas do Leste da Ásia centrados nos
exames, com ensino para o conjunto da classe e aprendizagem por memorização é
o fato de atender a apenas um certo tipo de indivíduo: isto é, aquele que tem boa
memória, trabalha arduamente, é dócil e tem bons resultados nos exames – ainda
que não esteja demonstrada uma correlação estrita entre a posse dessas qualidades
e a competência como administrador ou burocrata, como é idealizado pela tradição
confucionista.
De modo geral, pode-se dizer que o principal objetivo da educação no Leste da
Ásia é produzir trabalhadores letrados, disciplinados, para fábricas e escritórios; e
o objetivo secundário é, impulsionando os alunos ao longo de uma hierarquia
piramidal de universidades, aumentar a probabilidade de que os graduados nas
melhores universidades tenham sucesso na competição, baseada no mérito, pelos
melhores empregos nos ministérios governamentais e nas principais empresas. Nas
escolas do Leste da Ásia, a ordem hierárquica decorre diretamente das notas obtidas.
Na verdade, ao longo do tempo esse tipo de elitismo engendrou, na Coreia,
isolacionismo, favoritismo, arrogância, além de submissão e rigidez ideológicas e
intelectuais, que, ao final, podem corromper os princípios confucionistas de
oportunidades igualitárias de educação e seleção por mérito. O padrão atual de
mobilidade educacional e de migração do Leste da Ásia, com destaque atualmente
para a Coreia e a China, para outros países, principalmente Estados Unidos e outros
países anglófonos, indica que nos países do Leste da Ásia há uma forte demanda
pública por uma educação internacionalizada alternativa em todos os níveis.

O impacto confucionista sobre a mobilidade


educacional na economia global do conhecimento
e sobre a migração no século XXI
Uma antiga história chinesa sobre a mãe de Mêncio2, que mudou de casa três vezes
para oferecer ao filho bons professores, boa vizinhança e bons parceiros para que
obtivesse uma boa educação, ainda é muito relevante para as mães contemporâneas
no Leste da Ásia – é muito conhecida a imagem da “mãe-educação”.

2. NT: Mencius (Meng Zi, ou Mestre Keng): filósofo confucionista que deu nome ao livro que compila
seus pensamentos.
Confucionismo, modernidades e conhecimento 267

A migração educacional tornou-se uma nova tendência no Leste da Ásia. Mais


recentemente tem havido um aumento abrupto no número de estudantes sul-
coreanos que vão para o exterior. Segundo a OCDE, a Coreia tem o segundo maior
número absoluto de estudantes no exterior (atrás da China). Chegou a 7.001 o
número de alunos de escolas primárias e secundárias de Seul que foram estudar no
exterior no período entre março de 2005 e fevereiro de 2006, o que representou um
aumento de 15% (SEOUL METROPOLITAN OFFICE OF EDUCATION.
Dong-A Ilbo, 11/05/2006). Em abril de 2007, havia, apenas nos Estados Unidos,
93.728 estudantes sul-coreanos. Segundo relatório do Immigration and Customs
Enforcement (ICE) dos Estados Unidos, os estudantes da Coreia representavam nessa
data o maior número absoluto de estudantes estrangeiros no país – 14% do total de
630.998 –, seguidos por estudantes da Índia (76.708), da China (60.850), do Japão
(45.820) e de Taiwan (33.651) (US ICE. Kyunghyang Shinmoon, 05/04/2007).
O número de estudantes sul-coreanos que vão para o exterior, especialmente
para os Estados Unidos, com o objetivo de estudar (em todos os níveis, do primário
à educação superior) ainda cresce mais de 10% ao ano (Kyunghyang Shinmoon,
05/04/2007). A tendência atual de migração educacional, particularmente do Leste
da Ásia (Coreia, China, Japão e Taiwan) para os Estados Unidos e outros países
anglófonos desenvolvidos, é um fenômeno interessante e significativo, a ser
reposicionado em relação ao confucionismo residual profundamente intrincado na
mente dos povos do Leste da Ásia, criando no século XXI uma nova geografia de
mobilidades e redes acadêmicas transnacionais (KIM, 2008).

Conclusão
A importância do confucionismo como referência fundamental para a
compreensão do Leste da Ásia tem permeado os discursos ocidentais dominantes
sobre a ascensão dessa região. No campo político e econômico, em relação ao
desenvolvimento, o confucionismo foi visto pelos teóricos ocidentais inicialmente
como inibidor e, posteriormente, como encorajador.
Na China, o pensamento confucionista foi essencial para o império – e depois
foi atacado por Mao no decorrer da modernização comunista chinesa. Durante a
Revolução Cultural, foi organizada uma campanha anti-Confúcio: muitos
confucionistas e intelectuais foram mortos, e alguns templos e estátuas de Confúcio
foram destruídos. Neste momento, entretanto, tendo a China se tornado um dos
principais atores na economia de mercado global, o governo comunista chinês
começou a promover também o confucionismo para exercer um poder brando da
China em todo o mundo. Em todo o mundo, foram criados mais de 120 institutos
confucionistas – todos patrocinados e promovidos pelo Chinese National Office for
Teaching Chinese as a Foreign Language3, ligado ao Ministério de Educação da

3. NT: Agência Nacional Chinesa para a o Ensino do Mandarim como Idioma Estrangeiro.
268 Kim

China. A meta oficial dos institutos confucionistas, desde sua criação em Seul, na
Coreia do Sul, em 2004, é promover a cultura chinesa e o mandarim (HYLAND,
2007). Esses institutos confucionistas no exterior são considerados parte de uma
estratégia diplomática para que a China conquiste influência global por meio de
seu capital nas áreas de educação e cultura. Esse poder brando exerce influência
particular nos países da região da Ásia e Pacífico, onde o governo chinês tem como
incentivo as grandes comunidades étnicas chinesas, os recursos naturais e a relação
estreita com os Estados Unidos.
De modo geral, o pensamento confucionista tem-se deslocado no Leste da Ásia,
modificando-se e institucionalizando-se de diversas maneiras. Em termos de
educação, no entanto, o confucionismo oferece um conjunto de padrões
pedagógicos simples e imutáveis – tais como o status dos professores, a educação
motivada pelos exames, a cultura da autoridade e da hierarquia patriarcais, o
respeito pela senioridade, a conformidade com normas grupais e o sucesso
individual na educação associado à imagem da família (WATKINS; BIGGS, 1996).
Mesmo no campo da educação, no entanto, o confucionismo é sujeito a uma
dupla interpretação – por exemplo, a ênfase típica do Leste da Ásia em
memorização e aprendizagem por repetição tem sido avaliada tanto de forma
positiva quanto de forma crítica. Diversos autores – por exemplo, Watkins e Biggs
(Eds., 1996) – tentaram explicar o fenômeno referido como o “paradoxo do
aprendiz asiático”: a aparente contradição entre o ambiente educacional e os
métodos de ensino no Leste da Ásia – isto é, turmas grandes, ensino dirigido pelo
professor para o conjunto da classe e motivado por exames, currículo orientado
para o conteúdo, e não para o processo, ênfase em memorização etc.) e o fato de
os estudantes do Leste da Ásia apresentarem regularmente desempenho superior
ao de seus pares ocidentais em avaliações internacionais – tais como o Trends in
International Mathematics and Science Study (TIMSS)4 e o Programa Internacional
de Avaliação de Estudantes (Pisa). Nos resultados do Pisa relatados em 2003, a
Coreia, o Japão e a China alcançaram as melhores classificações. A Coreia, por
exemplo, ficou próxima ao nível mais alto da classificação em matemática,
letramento em leitura e ciências, e no nível mais alto em resolução de problemas.5
Entretanto, reconhecendo o bom desempenho dos estudantes do Leste da Ásia em
testes internacionais, é preciso notar também que o pensamento confucionista
sempre enfatizou a moral, e que isso afetou a cultura das escolas (e não apenas o
currículo formal).
Há, portanto, algo estranho no pensamento confucionista: muito espaço para
interpretação dupla ou variável. Apesar de todas essas interpretações e contradições,
o confucionismo sempre foi utilizado como uma explicação fundamental do Leste
da Ásia. Entretanto o excesso de generalização dos aspectos comuns como sendo
4. NT: Tendências Internacionais no Estudo de Matemática e Ciências.
5. Disponível em: <www.pisa.oecd.org>.
Confucionismo, modernidades e conhecimento 269

confucionistas pode facilmente nos apanhar na armadilha do discurso do


orientalismo (auto)direcionado, o que pode nos desviar da possibilidade de novas
interpretações alternativas.
A prática acadêmica do orientalismo6 pode ser encontrada atualmente também
entre acadêmicos do Leste da Ásia, cujas análises na verdade se referem às narrativas
ocidentais sobre essa região. Como argumentou Meredith Woo-Cumings, “a
resposta do Leste da Ásia é reativa” (WOO-CUMINGS, 1993, p. 142-143). Por
exemplo, Michio Morishima (1982), em seu livro “Why has Japan ‘suceeded’?:
Western technology and the Japanese ethos”, explica o sucesso do Japão como parte
da herança confucionista mais ampla do Leste da Ásia. Morishima enfatizou a
importância do papel desempenhado na criação do capitalismo japonês pelas
doutrinas éticas transformadas segundo as condições japonesas, especialmente a
tradição confucionista japonesa de total lealdade em relação à empresa e ao Estado.
Os críticos utilizaram o termo “novo orientalismo” para denotar as noções de
uma abordagem essencialista ao confucionismo. O discurso contemporâneo sobre
valores asiáticos, por exemplo, pode ser entendido como uma reformulação asiática
pós-colonial do orientalismo, que serve a algumas agendas políticas em Singapura
e na Malásia (BERGER, 1997, p. 265-275). Hung-Chao Tai afirma que o contexto
cultural do Japão e dos países recém-industrializados (PRI) do Leste da Ásia cria o
que descreve como um modelo oriental de desenvolvimento econômico, que se
baseia em “vínculos emocionais humanos, orientação de grupo e harmonia”. O
autor argumenta que o modelo oriental é a primeira alternativa significativa ao
modelo ocidental (TAI, 1989, p. 6-7).
De modo geral, esse discurso pós-colonial do novo orientalismo pode ser
entendido como um movimento dialético no Leste da Ásia. Os “orientais” do Leste
da Ásia vêm incorporando o confucionismo na construção e na reconstrução de
uma versão asiática de modernidade – tendo em vista as recorrentes avaliações
ocidentais do confucionismo para classificar o Leste da Ásia ao longo do tempo.
Nesse sentido, o confucionismo foi um dogma no discurso pós-colonial do
orientalismo. A utilização dos atributos pedagógicos do confucionismo para
explicar as modernidades do Leste da Ásia obviamente continuará a mudar e
evoluir. O problema é que ainda não sabemos de que modo.

6. Agradeço ao Professor Robert Cowen pela sugestão inicial de que eu pensasse sobre orientalismo e
confucionismo como estrutura de referência.
270 Kim

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56

HINDUÍSMO, MODERNIDADE
E CONHECIMENTO: ÍNDIA

Joseph W. Elder

Introdução
Quatro mil anos atrás, no subcontinente indiano, sacerdotes (brâmanes)
ensinavam os textos mais antigos do hinduísmo – os Vedas – aos filhos de famílias
privilegiadas. Preservados e memorizados em linguagem litúrgica, esses Vedas
incluíam um currículo de fórmulas sacrificiais, encantamentos e palavras mágicas
que supunham uma série de divindades capazes de atender a petições humanas
adequadamente formuladas. Os brâmanes especializavam-se na formulação dessas
petições às divindades, realizando sacrifícios com fogo, acompanhados pelas
recitações védicas entoadas da forma correta.
Depois de 1947, a Índia tornou-se uma república democrática soberana,
comprometida, de acordo com sua Constituição, com justiça social, econômica e
política; com liberdade de pensamento, expressão, crença, fé e culto; e com
igualdade de status e de oportunidades. O artigo 45 da Constituição indiana
declarava que “o Estado tentará [sic] prover, dentro de um período de dez anos,
[...] educação gratuita e compulsória para todas as crianças até a idade de 14 anos”.
O idioma utilizado pelos líderes nacionais ao escrever a Constituição foi o inglês –
o idioma de um povo estrangeiro que havia governado partes da Índia desde 1757.
Durante os 4 mil anos que separam esses dois momentos, o que aconteceu com
o conhecimento daqueles antigos Vedas, com o idioma em que eram escritos, com
o treinamento de memorização textual por meio do qual esse conhecimento era
transmitido, e com os sacerdotes brâmanes que recitavam, preservavam e expandiam
o currículo védico? Este capítulo examinará as tradições do conhecimento hindu na
Índia antiga, suas diferenças em relação às tradições budista e jainista, suas
modificações nos séculos subsequentes, as tradições do conhecimento judaico,
cristão e islâmico que se estabeleceram na Índia, as políticas educacionais
introduzidas pelos governantes coloniais britânicos depois de 1757, as políticas
educacionais adotadas pelo governo independente da Índia depois de 1947, e a
emergência de grupos militantes hindus com posições próprias sobre o
conhecimento educacional e a forma de introduzir esse conhecimento no atual
currículo escolar da Índia.

273
274 Elder

Tradições de conhecimento na Índia antiga


Durante séculos, antes de serem escritos, os Vedas eram transmitidos oralmente
pelos professores (sacerdotes) brâmanes aos rapazes das três classes mais altas na
hierarquia social (denominados varnas): os sacerdotes, os administradores-
guerreiros e os produtores de riquezas. Segundo os textos brâmanes, era proibido
às mulheres e aos que pertenciam à quarta varna (os servos) ler os Vedas ou os textos
hindus posteriores, como Brahmanas, Aranyakas, Upanishads, Sutras e Shastras
escritos em sânscrito (VAN BUITENEN, 1970, p. 4-7). Ao final do século IV
a.C., o gramático Panini havia criado mais de 4 mil regras para um idioma sânscrito
purificado. A partir daí, na presença de seus mestres (gurus), jovens de elite
memorizavam as regras gramaticais do sânscrito, aprendiam a cantar as passagens
védicas com a entonação correta e debatiam questões das complexas escolas de
filosofia hindu (GHOSH, 2002, p. 18). Segundo a tradição, o brâmane Kautilya
escreveu um texto em sânscrito sobre questões de governo, Caraka escreveu um
sobre medicina, e Bharata compôs um texto em sânscrito sobre artes cênicas.
Novamente, segundo a tradição, o sábio brâmane Manu produziu um dos muitos
Dharma Shastras1, que estabeleciam a superioridade dos brâmanes, proibiam
casamento entre as varnas e estigmatizavam categorias de pessoas “impuras”.
No norte da Índia, Mahavir (o fundador do jainisno) e Buda (ambos do século
V a.C.) pregavam suas doutrinas de iluminação negando a autoridade dos
sacerdotes brâmanes e a utilidade dos Vedas. Seus ensinamentos e os comentários
posteriores em sânscrito litúrgico, ou budista, e os idiomas orais pali e prakrit eram
transmitidos aos jovens não por gurus individuais, mas por grupos de monges em
monastérios chamados viharas. Alguns viharas (tanto Mahayana como Theravada)
evoluíram, tornando-se universidades monásticas. Uma importante universidade
budista, em Nalanda – atualmente Bihar –, fundada no século V d.C., floresceu
durante mais seis séculos. De acordo com um monge chinês que a visitou, a
Universidade de Nalanda oferecia continuamente treinamento abrangente em
budismo, jainismo e conhecimento védico a até 10 mil estudantes (entre os quais
acadêmicos estrangeiros) (BASHAM, 1959, p. 165).
No decorrer do milênio anterior e depois do século I d.C., grandes cidades, como
Kashi (Banaras), Prayag (Allahabad), Taxila e Kancipuram, tornaram-se centros de
aprendizagem do hindu clássico. Durante este tempo, novos textos foram anexados
ao corpo do sânscrito hindu: os longos épicos Ramayana e Mahabharat, e os Puranas,
mais curtos, descreviam deuses e deusas não mencionados nos Vedas. Embora os
deuses védicos como Agni, Indra, Mitra, Soma e Varuna continuassem a ser cultuados
nos rituais administrados pelos brâmanes, as devoções populares focalizaram-se em
divindades dos épicos e dos Puranas, tais como Vishnu, Lakshmi, Ram, Sita, Krishna,
Radha, Shiva, Parvati, Hanuma (divindade com corpo de macaco), Ganesh (com

1. NT: Dharma Shastras são tratados sobre a conduta moral correta.


Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 275

cabeça de elefante) e muitas outras (ROY et al., p. 76-87). As narrativas que


descrevem as aventuras, as paixões e as fraquezas dessas divindades normalmente
eram recitadas em locais públicos, abertos a todos os hindus. Locais geográficos da
Índia foram associados a divindades e eventos específicos: Brindavan, onde Krishna
se divertia com as ordenhadoras; Rameshwaram, de onde o exército de macacos de
Hanumam atacou o Sri Lanka; Ayodhya, um dos lugares de nascimento do Lorde
Ram; Janakpur, cidade natal de Sita; e Banaras, cidade luminosa de Shiva.
Aproximadamente a partir do século V d.C., os hindus construíram templos perto
desses locais, e frequentemente anexavam a eles escolas nas quais podiam estudar os
filhos da elite local, particularmente meninos brâmanes. Quando começaram a
aparecer as ordens monásticas hindus, alguns dos ashrams, ou monastérios, onde
viviam seus fundadores e propagadores, como Sringeri e Srirangam, no sul da Índia,
tornaram-se centros para a transmissão de seus sistemas filosóficos hindus.
Ao chegar à Índia, judeus, cristãos e muçulmanos criaram suas próprias escolas,
nas quais seus filhos podiam aprender hebraico, persa ou árabe, e estudar a Bíblia
ou o Alcorão, e os comentários relacionados. Os judeus da Costa de Malabar
construíram suas sinagogas e treinavam seus próprios rabinos. Ao construir
mesquitas em toda a Índia, os muçulmanos frequentemente instalavam junto a elas
maktabs ou madraças (escolas corânicas). Nelas, os maulvis locais podiam ensinar
o islamismo às crianças da vizinhança e estimulá-las a tornar-se membros mais
instruídos da ummah (comunidade islâmica) (GHOSH, 2002, p. 138-139).
Quando os missionários católicos e protestantes chegavam à Índia, uma de suas
primeiras iniciativas frequentemente era criar escolas para os cristãos convertidos e
para pessoas que ainda poderiam ser convertidas, de forma a estabelecer
congregações que continuassem a propagar a fé.
Ao longo dos séculos, os brâmanes escreveram textos em sânscrito, não apenas
sobre dharma (conduta moral correta), mas também sobre tópicos tais como teorias
de estética e de representação artística. No entanto, embora pudessem referir-se a
esses textos em sânscrito, as tradições indianas de conhecimentos artísticos, de
música e de dança eram transmitidas aos alunos, principalmente por gurus, muitas
vezes em suas próprias casas. Evoluíram linhagens artísticas, conhecidas como
paramparas (GHOSH, 2002, p. 140), que podiam retraçar seu treinamento, através
de uma sucessão de gurus, até um suposto guru original. Alguns templos e cortes
reais ofereciam apoio financeiro para os artistas teatrais e suas paramparas, mas a
transmissão das artes cênicas exigia anos de aprendizagem disciplinada dos alunos
com seus gurus. Da mesma forma, praticantes de medicina adquiriam
conhecimentos em vários textos (em sânscrito, grego, árabe etc.), mas
principalmente por meio de aprendizagem prática com aqueles que exerciam
ativamente a medicina. As habilidades de artesãos, escultores, calígrafos, pintores
e tecelões também eram aprendidas normalmente nos domicílios, com parentes e
membros da família.
276 Elder

As políticas educacionais coloniais britânicas


Em 1757, depois da batalha de Plassey, a British East India Company2
conquistou o controle administrativo de partes de Bengala, Bihar e Orissa. Durante
várias décadas, a Companhia não teve política formal relativa à educação. Nesse
meio tempo, foi adquirindo controle sobre partes cada vez maiores do
subcontinente indiano. Por fim, em 1817 a Companhia fundou o Hindu College,
em Calcutá, seguido, em 1827, pelo Elphinstone College, em Mumbai. A essa altura,
estava em debate entre os diretores da Companhia qual deveria ser o idioma da
educação em seus territórios: sânscrito, persa, árabe, idiomas locais, ou inglês. Em
1835, a Companhia optou por seguir as recomendações do “Minute on
Education”, de Thomas Babington Macaulay. O “Minute” declarava que não
existiam livros indianos sobre qualquer assunto que merecessem ser comparados
aos livros ingleses. Macaulay argumentava que o objetivo da educação nos
territórios controlados pela Companhia deveria ser formar uma classe de indianos
que pudesse interpretar a Companhia para seus compatriotas – “uma classe de
pessoas indianas pelo sangue e pela cor [sic], mas inglesas pelos gostos, opiniões,
moral e intelecto” (DeBARY et al., 1958, p. 601). Nas décadas seguintes, esses
indianos educados vieram a ser chamados de “brown Englishmen”3.
A decisão da Companhia de usar fundos públicos para a educação pública, de
tornar o inglês o idioma de instrução em toda a Índia, e de adotar o currículo inglês
para os conteúdos acadêmicos teve consequências de longo alcance. Uma delas foi
a ausência de esforços para incorporar no currículo das escolas os outros
conhecimentos védicos, jainistas, budistas ou islâmicos. A esse tempo, os centros de
outros conhecimentos védicos, jainistas, budistas e islâmicos eram muito
diversificados e tinham bases demasiadamente locais para chegar a criar uma
oposição coerente à “Minute” de Macaulay. Os centros desses outros conhecimentos
foram abandonados a seus próprios recursos para manter-se – ou desaparecer. Outra
consequência foi que muitos jovens hindus de castas superiores, reconhecendo as
possibilidades de carreira com os britânicos, matricularam-se em escolas da
Companhia, expondo-se assim ao intelecto inglês. Os jovens muçulmanos estavam
menos dispostos a fazer o mesmo (DeBARY et al., 1958, p. 739-740). Outra
consequência da decisão da Companhia foi que, pela primeira vez, os indianos
educados de toda a Índia, independentemente de seu local de nascimento e língua
materna, podiam comunicar-se em um idioma comum – o inglês.
Em 1854, seguindo as recomendações de Charles Wood, a Companhia
estabeleceu em toda a Índia britânica um sistema escolar segundo o modelo inglês,
coroado por universidades que ensinavam o currículo universitário britânico.
Estabeleceu também escolas subsidiadas. Escolas privadas que atendessem a certos

2. NT: Companhia Britânica das Índias Orientais.


3. NT: “Ingleses marrons”.
Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 277

requisitos quanto ao currículo, aos docentes e a exames externos podiam receber


ajuda financeira do governo. A instrução religiosa obrigatória foi proibida em todas
as escolas subsidiadas. Essa política estimulou os educadores a fundar escolas para
alunos de diversos credos religiosos e a aceitar verbas do governo, com a condição
de que os alunos não fossem obrigados a frequentar aulas de religião.
Em 1857, foram criadas as Universidades de Calcutá, Madras e Mumbai, com
faculdades afiliadas diretamente sob o padrão do sistema universitário britânico.
Aquele ano marcou também uma transição na história anglo-indiana. Depois de
um surto de violência no norte da Índia, sufocado pela retaliação militar britânica,
a rainha Vitória substituiu o governo da Companhia das Índias Orientais pelo
governo direto do parlamento britânico. A Índia era, então, a joia da Coroa do
Império britânico
Em 1883, um servidor público aposentado do serviço anglo-indiano, Allan
Octavian Hume, enviou uma carta para os graduados da Universidade Calcutá
declarando que eles eram o sal da terra e deveriam conduzir o planejamento do
futuro de seu país. Em parte, em resposta à carta de Hume, um grupo de
universitários graduados reuniu-se em Mumbai, em 1885, e fundou o Congresso
Nacional da Índia. Um dos primeiros atos do Congresso foi pedir maior
participação indiana nos serviços públicos e judiciários anglo-indianos (DeBARY
et al., 1958, p. 660-663). O Congresso defendia também maior envolvimento dos
indianos na determinação de seu próprio destino, baseando-se em princípios
enunciados por autores britânicos, tais como Jeremy Bentham, James Mill e John
Stuart Mill, cujas obras tinham estudado na faculdade. Para gerações de jovens
indianos com potencial de mobilidade ascendente, o caminho para o sucesso exigia
que cruzassem o oceano até a Inglaterra, obtivessem um diploma superior britânico
e, na volta, seguissem carreira em uma das cidades indianas em crescimento,
compartilhando uma vida social com outros indianos de classe média educados
como ingleses.
Alguns indianos eram sensíveis à depreciação cultural implícita nas premissas
de superioridade intelectual britânica e à necessidade de estudar na Inglaterra para
obter diplomas de nível superior. Sir Syed Ahmed Khan (1817-1898), um
muçulmano indiano, estudou na Inglaterra, voltou à Índia e, em 1875, fundou
em Aligarh uma faculdade anglo-oriental, na qual os estudantes poderiam estudar
árabe clássico e aprender sobre o Corão e a jurisprudência islâmica, paralelamente
aos conhecimentos europeus. Em 1916, um hindu – Pandit Madan Mohan
Malaviya – fundou a Universidade Hindu Banaras, na qual os alunos podiam
aprender sânscrito e páli, e estudar textos hindus, budistas e jainistas, paralelamente
à filosofia e às ciências europeias. A criação dessas duas instituições de ensino
superior decretou a separação entre a instrução islâmica e hindu, respectivamente.
Mohandas Gandhi que, quando jovem, também tinha viajado para a Inglaterra e
obtido um diploma em direito, tornou-se um crítico cada vez mais ferrenho da
278 Elder

educação de estilo britânico. Na década de 1930, Gandhi defendeu uma


substituição total da educação de estilo britânico por escolas de educação básica
autossustentadas, baseadas nos vilarejos, ensinando idiomas locais, treinando as
crianças nas habilidades relevantes para seu vilarejo e preparando-as para
permanecer nelas e melhorar a qualidade de vida nas centenas de milhares de
vilarejos da Índia.
Embora durante o último século do domínio inglês na Índia os britânicos
tenham introduzido escolas financiadas pelo governo e estabelecido alguns centros
de excelência acadêmica, o analfabetismo continuou a ser uma condição crítica na
maior parte da Índia. Em 1947, quando a Índia tornou-se independente, 83% da
população indiana acima de 10 anos de idade eram considerados analfabetos –
73% dos homens e 93% das mulheres (DAVIS, 1957, p. 151).

O hinduísmo na Índia pós-independência


A Constituição que passou a vigorar em 26 de janeiro de 1959 afirmava o
compromisso da Índia de garantir a todos os seus cidadãos “liberdade de... fé e
culto”. O artigo 25(1) declarava que “todas as pessoas têm igual direito... de
professar livremente... praticar [sic] e propagar a religião”. O artigo 27 anunciava
que “ninguém será compelido a pagar quaisquer taxas destinadas especificamente...
para a promoção ou a manutenção de qualquer religião [...]”. O artigo 44 afirmava
que “o Estado tentará garantir [sic] aos cidadãos um código civil uniforme [...]”.
Não foi atribuído qualquer lugar de destaque ao hinduísmo – a religião que, aos
olhos do público, era a mais fortemente associada ao subcontinente indiano.
A Constituição da Índia estabeleceu ainda que questões educacionais deveriam
estar preferencialmente nas mãos dos governos estaduais, e não do governo federal.
A política de escolas subsidiadas do período pré-independência manteve-se depois
da independência. Essa política alimentou uma rápida expansão das escolas
elementares e secundárias, faculdades e universidades da iniciativa privada, com
governos estaduais oferecendo apoio financeiro suplementar, controlando os
currículos e aplicando os exames. O artigo 28(3) da Constituição manteve o
princípio da neutralidade religiosa em escolas subsidiadas, declarando que tais escolas
não podiam exigir que seus alunos participassem de instrução ou cultos religiosos.
Esse princípio foi aplicado em uma grande variedade de instituições: escolas
governamentais, madraças muçulmanas, escolas sikh, conventos cristãos, escolas
anglo-védicas Dayanand, e centros educacionais da Missão Ramakrishna. A alocação
relativamente equilibrada de recursos em uma grande variedade de instituições
educacionais pouco contribuiu, desde 1951, para melhorar os níveis educacionais
de crianças tribais e de castas inferiores (GOVINDA, 2002, p. 72-95).
Segundo a Constituição da Índia, o idioma de instrução nas escolas elementares
de todo o país deveria ser a língua materna das crianças, isto é, os idiomas regionais
da Índia. Esperava-se que isso facilitasse a rápida expansão da alfabetização. De
Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 279

acordo com a Constituição, o idioma oficial do país deveria ser o hindi, um idioma
falado no cinturão hindu do norte da Índia por cerca de um terço da população
indiana. Em todas as regiões onde o hindi não era falado, seria introduzido nas
escolas como segundo idioma. Segundo a Constituição, em 15 anos o inglês seria
substituído pelo hindi, e não seria mais o idioma oficial da Índia.
Houve protestos nas regiões da Índia onde o hindi não era falado. Milhões de
cidadãos sentiram-se ameaçados. Se as políticas enunciadas na Constituição fossem
implementadas, em menos de duas décadas eles seriam cidadãos permanentemente
em desvantagem em sua própria terra – desprivilegiados porque sua língua materna
não era o hindi. Os protestos anti-hindi nos estados do sul, onde a população falava
idiomas drávidas, resultaram em ameaça de secessão indiana. O descontentamento
com as políticas constitucionais expressou-se em uma série de eleições nacionais.
Finalmente, em resposta à agitação, o parlamento aprovou, em 1967, o Official
Languages Amendment Bill4, que estendia indefinidamente a utilização do inglês
na Índia. Isso acalmou temporariamente a agitação anti-hindi. Trouxe também um
interesse renovado pela instrução em inglês. Um jovem educado em língua inglesa
e em busca de emprego podia procurar trabalho em qualquer lugar da Índia, ao
passo que um jovem que só dominasse o hindi ou um idioma regional só
encontraria trabalho em uma região específica do país.
Nas décadas de 1980 e 1990, à medida que aumentava a participação da Índia
na economia global, cresceu drasticamente a demanda dos alunos e dos pais por
educação baseada no idioma inglês em todos os níveis educacionais. Muitas escolas
primárias e secundárias e a maioria das faculdades começaram a oferecer turmas
adicionais para estudantes que desejavam estudar em inglês. A evidência da boa
qualidade da educação de uma pessoa podia ser avaliada pela excelência de sua
pronúncia e de sua capacidade de escrever em inglês, e por conseguir ser admitido
em programas de pós-graduação nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha.
Durante as primeiras décadas que se seguiram à independência da Índia, os
currículos escolares afastaram-se gradualmente de seu passado britânico. As obras
de Shakespeare e Tennyson foram substituídas por poemas de Rabindranath Tagore
e Henry DeRozio. As estórias de Helena de Troia e do Cavalo de Troia foram
substituídas por episódios do Ramayana, do Mahabharata e dos Puranas indianos.
As crianças passaram a ler em seus livros estórias sobre o Lorde Krishna e as
ordenhadoras, o Lorde Hanumam, com corpo de macaco, e o Lorde Ganesh, com
cabeça de elefante. Em todos os níveis, os livros didáticos lembravam às crianças
indianas que Gandhi era o pai da Índia e que, sob sua liderança baseada na não
violência, a Índia havia conquistado a independência dos britânicos. Outros heróis
dos livros infantis eram o imperador Ashoka, que renunciou à guerra e
implementou ensinamentos budistas em sua terra, e o imperador Akbar que,

4. NT: Emenda de Projeto de Lei de Idiomas Oficiais.


280 Elder

embora muçulmano, estimulava o diálogo entre as religiões em todas as partes de


seu império (ELDER, 1971).
As políticas que adotavam e ampliavam a utilização de idiomas regionais nas
escolas elementares preocupavam os níveis mais altos de governo, que temiam que
tais políticas pudessem gerar tendências separatistas. Com o tempo, essas tendências
poderiam levar à divisão do subcontinente indiano em uma coleção de pequenos
países com idiomas, bandeiras e exércitos próprios. Em 1956, a reformulação das
fronteiras internas entre os estados indianos, com base em idiomas, pareceu para
muitos um passo perigoso em direção à fragmentação do país. Em 1961, para
afastar essas possibilidades, o governo central criou um Comitê de Integração
Nacional, encarregado de estimular a cooperação entre as regiões e as religiões
indianas. O governo reconheceu que os livros didáticos seriam veículos necessários
para transmitir às crianças mensagens de harmonia regional, respeito entre as
religiões e integração nacional. Os livros continham estórias de diversas regiões da
Índia – Bengala Ocidental, Caxemira, Kerala, Punjab –, descrevendo casas,
alimentos, roupas e festivais regionais, e enfatizando que eram todos companheiros,
cidadãos da Índia (BHATTACHARYA, 1998).
Para alguns, a divisão do subcontinente indiano entre a Índia e o Paquistão
pareceu aliviar o problema das relações entre hindus e muçulmanos. Antes da
separação, os muçulmanos representavam 24% da população indiana; depois dela,
passaram a representar 11%. Com a existência do Paquistão, os muçulmanos que
desejassem viver em uma região de maioria islâmica poderiam migrar para o
Paquistão Oriental ou Ocidental. Dentro da Índia, o único estado com maioria
muçulmana era o antigo reino de Jammu e a Caxemira, onde 77% da população
eram muçulmanos. Contudo, a inclusão da Caxemira à Índia continuou a ser
contestada.
Na época da independência da Índia e do Paquistão, existiam no
subcontinente indiano mais de 500 principados, cada um dos quais havia
recebido dos britânicos a garantia de que, enquanto tivessem um herdeiro homem
e pagassem impostos ao tesouro britânico, poderiam conservar indefinidamente
seu status de principados semiautônomos. A independência e a separação do
Paquistão puseram fim a esses arranjos. Foi exigido que cada principado se
integrasse à Índia ou ao Paquistão, dependendo de sua localização geográfica
dentro das novas fronteiras nacionais. Para a maioria dos príncipes, foi uma
decisão fácil: seu principado estava dentro de um ou de outro território. Para o
rajá do reino de Jammu e Caxemira, no entanto, a decisão foi mais difícil. Seu
reino fazia fronteira tanto com a Índia quanto com o Paquistão e, portanto,
poderia integrar-se a qualquer um dos dois. A maioria da população era
muçulmana; o rajá e sua família eram hindus. O rajá hesitou. A data final para
a assinatura dos documentos de integração chegou, e passou. Em 15 de agosto
de 1947, a Índia e o Paquistão tornaram-se independentes. Militantes
Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 281

muçulmanos da Caxemira tomaram o problema em suas mãos. Tentando forçar


o rajá a integrar-se ao Paquistão, ameaçaram invadir a capital da Caxemira,
Srinagar. O rajá pediu ajuda militar à Índia. O primeiro ministro Jawaharlal
Nehru insistiu que as unidades militares indianas não poderiam entrar na
Caxemira, a menos que fosse parte formal da Índia. Sob essas condições, o rajá
assinou os documentos – com o entendimento de que, quando todas as tropas
estrangeiras tivessem saído da Caxemira, haveria um plebiscito para que os
cidadãos determinassem se a região se integraria à Índia ou ao Paquistão. As
unidades do exército indiano foram para a Caxemira e expulsaram os militantes
da capital (WIRSING, 1994, p. 39-41). Em 1949, as Nações Unidas
determinaram um cessar-fogo entre a Índia e o Paquistão, com observadores da
ONU estacionados em uma Linha de Controle definida, separando as áreas da
Caxemira ocupadas pelo Paquistão e pela Índia.
No decorrer dos meses seguintes, as tropas estrangeiras não saíram da Caxemira,
e não foi realizado o plebiscito. Estabeleceu-se na região uma paz tensa,
periodicamente interrompida por incursões nas fronteiras e mortes de civis e de
militares. Em 1950, a Constituição da Índia (artigo 370) garantiu um status especial
para a Caxemira, diferenciando a região de todos os demais estados indianos. Na
Caxemira, apenas os nativos poderiam ser proprietários de terras. Além disso, a
assembleia estadual da Caxemira teria autoridade para supervisionar a maior parte
de seus assuntos internos, exceto aqueles relativos a defesa, comunicações e política
internacional, nos quais as decisões finais continuariam nas mãos do governo
federal da Índia. Em 1956, não havendo evidências de mudanças na situação, a
Índia declarou que a Caxemira era agora “parte integrante da Índia”. O Paquistão
objetou vigorosamente. Entre 1965 e 1999, a Índia e o Paquistão enfrentaram-se
em três guerras, em duas das quais a principal motivação foi a definição do status
da Caxemira. Cada guerra agravava as tensões entre hindus e muçulmanos,
relembrando os dias terríveis da separação e gerando dúvidas entre os hindus
quanto à verdadeira lealdade dos muçulmanos que optaram por permanecer na
Índia, ao invés de reunir-se a seus parentes muçulmanos no Paquistão. Nesses
contextos, o compromisso constitucional da Índia com a igualdade de direitos de
muçulmanos e hindus não foi poupado de desafios. Alguns hindus sentiam que a
Índia independente havia concedido privilégios especiais aos muçulmanos, na
medida em que o estado majoritariamente muçulmano da Caxemira gozava de
mais autonomia do que qualquer outro estado do país; e os muçulmanos indianos
não eram obrigados a aceitar o código civil uniforme da Índia, tendo autorização
informal para observar sua própria lei shariah em assuntos como casamento,
divórcio e herança. Embora os livros didáticos declarassem que todos os cidadãos
indianos – hindus, muçulmanos, cristãos, sikhs, jainistas, budistas, pársis e outros
– viviam sob a mesma lei, era evidente que, em alguns aspectos, os muçulmanos
viviam sob sua própria lei islâmica.
282 Elder

A ascensão do hinduísmo militante


Em 1924, V. D. Savarkar – um brâmane da comunidade Chitpavan do estado
de Maharaschtra, que anteriormente havia sido preso pelos britânicos por
terrorismo – publicou um panfleto intitulado “Hindutva! Who is a hindu?”.
Segundo Savarkar, um hindu era uma pessoa que considerava o subcontinente
indiano como sua terra natal, sua terra santa e o berço de sua religião. Savarkar
defendia a reconversão ao hinduísmo de todos os hindus que se haviam tornado
muçulmanos ou cristãos. Descrevia a postura de não violência de Mahatma Gandhi
como “absolutamente pecaminosa” e criticava a preocupação frequentemente
manifestada por Gandhi quanto ao bem-estar dos muçulmanos indianos. Durante
a Segunda Guerra Mundial, Savarkar cunhou a frase “tornar todos os políticos
hindus, e militarizar o reino hindu” (DeBARY et al., 1958, p. 886). Savarkar
ofereceu apoio moral ao brâmane de Chitpavan que, em 1948, assassinou Gandhi
por seus esforços para proteger os muçulmanos. Com o tempo, hindutva passou a
significar hinduísmo militante.
O apelo de Savarkar por hindutva encontrou eco entre vários grupos na Índia.
A Mahasabha Hindu5, criada em 1919, elegeu-o como presidente durante sete anos
consecutivos. A Rashtryia Swayamsevak Sangh (RSS)6 incorporou algumas das
declarações de Savarkar ao seu treinamento paramilitar de jovens voluntários. A
RSS adotou para sua bandeira o açafrão, cor das vestes dos renunciantes7 hindus.
Um termo derivado da palavra “açafrão” (“açafronização”) foi aplicado aos esforços
no sentido de difundir as ideologias hindutva.
A partir de 1951, três partidos políticos hindus – Hindu Mahasabha, Jan
Sangh8 e Ram Rajya Parishad 9 apresentaram candidatos focalizados no hinduísmo
para a eleições nacionais da Índia – com resultados vários. Um movimento cultural
fundado em 1964 – Vishna Hindu Parishad (VHP)10 – procurou revigorar o
hinduísmo em toda a Índia com manifestações bem organizadas e carreatas através
do país. Em 1966, foi fundado em Mumbai o Shiv Sena11, destinado
originalmente a desencorajar “estranhos”, como os indianos do sul, a vir trabalhar
em Maharashtra, e posteriormente, para fortalecer as posições hinduístas em
questões políticas.
Em 1980, o Partido Bharatiya Janata (BJP)12 emergiu a partir dos esforços de
reorganização de diversos partidos. Começando com a conquista de apenas 7%

5. NT: Grande Assembleia de Hindus.


6. NT: Associação Nacional de Voluntários.
7. NT: Pessoas que, a certa altura da vida, renunciavam a todos os vínculos com o mundo físico e social.
8. NT: Partido da Associação Popular.
9. NT: Conselho do Reino do Lorde Ram.
10. NT: Conselho Mundial Hindu.
11. NT: Exército de Shiva.
12. NT: Partido do Povo de toda a Índia.
Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 283

das vagas no parlamento indiano, em 1984, o BJP conquistou mais espaço a cada
eleição nacional subsequente até que, em 1995, obteve 30% das vagas
parlamentares.
Na condição de maior partido, o BJP foi convidado a formar o governo nacional.
No entanto, devido a suas ligações com o hindutva e o comunalismo hindu, outros
partidos recusaram-se a uma coalizão, e o BJP perdeu essa oportunidade de formar
o governo. Dois anos mais tarde, nas eleições de 1998, o BJP conquistou 33% das
cadeiras do parlamento e, mais uma vez, foi convidado a formar o governo,
conseguindo então organizar um governo de coalizão (PURI, 2005).

Hinduísmo militante, conhecimento


educacional e transmissão pedagógica
Em sua posição poderosa no governo de coalizão de 1998, o BJP pôde
finalmente começar a implementar as políticas que vinha defendendo havia quase
duas décadas. Durante esse período, o BJP havia testemunhado a islamização do
Paquistão, a khomeinização do Irã, e a talibanização do Afeganistão. Em cada um
desses casos, os muçulmanos tinham moldado suas estruturas políticas de forma a
proteger seu orgulho e suas convicções religiosas. Agora, o BJP podia tentar projetar
seu próprio orgulho e suas convicções religiosas hinduístas por meio da
açafranização das estruturas políticas e educacionais indianas. O conceito de um
Estado secular era criticado como uma imposição ocidental em uma Índia
intrinsecamente espiritual. Indianos bem instruídos, falando um inglês impecável,
eram criticados por serem versões modernas dos ingleses marrons de Macaulay.
Durante as décadas de 1980 e 1990, grupos como o RSS, o VHP e o BJP
haviam começado a escrever uma história “açafronizada” da Índia. Com base em
sua interpretação do termo védico ariano (os nobres), sua história declarava que os
arianos antecediam em dois anos as cidades da civilização harapana13, descobertas
por arqueólogos no vale do rio Indo na década de 1920 (ELLIOT, 2001). As teorias
arqueológicas (desacreditadas por descobertas posteriores) propunham que os
sedentários dasyus de pele escura (mencionados nos Vedas) tinham ocupado as
cidades por centenas de anos antes de serem substituídos pelos nômades arianos.
Apesar de consideráveis evidências em contrário, os defensores do hindutva
propuseram que os arianos eram originários da Índia e haviam desenvolvido o
idioma indo-europeu original, cujas ramificações espalharam-se pela Europa,
transformando-se no grego, no latim, nos idiomas germânicos e no inglês. Segundo
os historiadores hindutva, os arianos da Índia desenvolveram conhecimentos
altamente sofisticados de filosofia, psicologia, anatomia, medicina, química,
astronomia, astrologia, física e engenharia. Desenvolveram máquinas voadoras,

13. NT: Uma das culturas mais antigas do mundo (3000-1500 a.C.), descoberta no vale do Indo, no território
do Paquistão. O nome refere-se à cidade de Harappa, uma das maiores existentes na região.
284 Elder

mísseis de longo alcance e armas de destruição em massa. Desenvolveram também


uma forma superior de vida e de organização social, descrita na literatura brâmane.
Na idade de ouro ariana, as pessoas, cumprindo os deveres de seus varnas, viviam
em harmonia, seguindo os princípios éticos ensinados pelos sábios védicos, pelos
brâmanes e pelos renunciantes. Os arianos desenvolveram formas singulares de
música, dança, teatro, arte e arquitetura. Nem fome, nem epidemias ou guerras
perturbavam o subcontinente indiano.
Depois de muitos séculos, no entanto, essa harmonia foi perturbada. As
perturbações foram provocadas por invasores estrangeiros. Primeiro vieram os
muçulmanos, leais à Arábia, pilhando templos, destruindo imagens sagradas e
forçando pela espada a conversão ao Islã. Os governantes muçulmanos
combateram os governantes hindus até conquistar o controle de grande parte do
subcontinente indiano.
Vieram então os europeus cristãos, leais a Jerusalém, ao Vaticano, às nações
europeias ou à Grã-Bretanha, que derrotou os governantes hindus e muçulmanos,
drenou as riquezas da Índia com impostos e manipulação econômica, e
conquistou cristãos convertidos, oferecendo-lhes educação e emprego no governo.
Segundo os historiadores hindutva, em 1857 os soldados hindus, apoiados por
cidadãos hindus, rebelaram-se contra os oficiais britânicos na primeira guerra de
independência da Índia. Em 1858, os soldados e os cidadãos haviam sido
brutalmente exterminados pelos britânicos, mas a luta hindu pela independência
estava desencadeada. Durante mais oito décadas, os guerreiros hindus lutaram –
empregando a violência, quando necessário – para desalojar os britânicos da
Índia. Em 1947, tiveram sucesso: os cidadãos e líderes hindus conquistaram a
independência da Índia (BHAMBHRI, 2001).
Os historiadores hindutva ignoraram seletivamente as contribuições “positivas”
que os muçulmanos deram à Índia durante esses anos. Foram omitidos os relatos
sobre o imperador muçulmano Akbar e sua tolerância religiosa, e sobre
muçulmanos que lutaram pela liberdade, como Khan Abdil Ghaffar Khan.
Também estão ausentes nessa historiografia os magníficos monumentos
arquitetônicos construídos por muçulmanos, como o Taj Mahal e a tumba de
Humayoun. São ignoradas as formas de arte, música, dança e culinária que
incorporaram elementos islâmicos e hindus; os documentos históricos escritos em
persa por indianos muçulmanos; o idioma urdu; os festivais que combinavam
características hindus e muçulmanas; lugares sagrados tanto para muçulmanos
como para hindus; e relatos sobre reinos com governantes hindus e seus assistentes
muçulmanos, e com governantes muçulmanos e seus assistentes hindus, que se
recusavam a definir-se como hindus ou muçulmanos.
Os historiadores hindutva ignoraram também, seletivamente, as contribuições
“positivas” dos britânicos à Índia. Estavam ausentes os conceitos britânicos do Estado
de direito e de um sistema imparcial de justiça; a rede de ferrovias e serviços postais e
Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 285

telegráficos que ligava as regiões mais remotas da Índia; o idioma inglês, por meio do
qual se comunicavam os indianos que trabalhavam pela independência; as instituições
de ensino superior, cujos graduados participavam do cenário mundial; e escritores em
idioma inglês reconhecidos internacionalmente, como Rabindranath Tagore.
Segundo os historiadores hindutva, os britânicos haviam deixado a Índia como
um país empobrecido de terceiro mundo, enfrentando um legado desolador de
problemas econômicos. Depois da separação, os britânicos ainda tentaram explorar
a Índia (sem sucesso), mas pelo menos tinham-se retirado. Os muçulmanos, no
entanto, permaneceram: à medida que se aproximava a independência da Índia,
tinham exigido a divisão do subcontinente e uma nação muçulmana independente.
Apesar das reservas de muitos hindus, o subcontinente foi dividido em 1947, e os
muçulmanos conquistaram seu Paquistão. No entanto, isso não encerrou a questão.
Desde 1947, os muçulmanos do Paquistão haviam feito sucessivas incursões através
das fronteiras da Caxemira, matando milhares de soldados e civis hindus. Além
disso, desde 1947, os muçulmanos na Índia haviam exigido – e obtido – privilégios
especiais, entre os quais uma autonomia sem paralelo para a Caxemira, mediante
o artigo 370 da Constituição; e isenções preferenciais, como muçulmanos, de partes
do código civil uniforme da Índia.
Para aumentar os sentimentos antimuçulmanos que estavam alimentando, os
partidários do hindutva identificavam equívocos históricos por parte dos
muçulmanos, que agora deviam ser corrigidos. Um alvo particular foi a mesquita
construída em Ayodhya no século XVI, pelo imperador muçulmano Babur.
Segundo o VHP e o RSS, Babur tinha construído a mesquita no local de
nascimento do Lorde Ram, herói do épico hindu Ramayana, depois de destruir e
de utilizar em sua mesquita partes de um templo hindu que consagrava o local.
Na interpretação do VHP e do RSS, o Lorde Ram – um herói mítico ao qual
eram atribuídos múltiplos locais de nascimento – tornou-se um ser humano
histórico, cujo nascimento teria ocorrido em um momento e em um local
determinados. Os membros do VHP e do RSS definiam a mesquita de Babur
como uma relíquia humilhante do domínio muçulmano, que devia ser destruída
e substituída por um templo em honra ao Lorde Ram. Em 6 de dezembro de
1992, milhares de ativistas hindus romperam uma cerca de proteção e reduziram
a mesquita de Bubar a um monte de entulho. Ondas de indignação espalharam-
se entre os muçulmanos indianos. Motins anti-islâmicos irromperam em diversas
cidades. Antes do término dos motins, centenas de muçulmanos haviam sido
mortos. Em 2002, irrompeu novamente a violência contra os muçulmanos
desencadeada pela mesquita de Babur, desta vez no estado de Gujarat, e mais uma
vez, centenas de muçulmanos foram mortos. Em ambos os casos de violência anti-
islâmica, o BJP pouco fez para deter a violência ou punir os infratores. Apenas
endossou a versão hindutva que tornava o Lorde Ram uma pessoa histórica cujo
local de nascimento havia sido violado.
286 Elder

Depois do sucesso do BJP nas eleições de 1998, o partido começou a


implementar seus pontos de vista sobre o hinduísmo por meio das estruturas
políticas da Índia (AHUJA, 2004, p. 48-58). O BJP indicou Murli Manohar Joshi,
um de seus partidários, para a chefia do Ministério de Desenvolvimento de
Recursos Humanos da União, que cuidava da educação no nível federal. Joshi tinha
declarado que queria “indianizar, espiritualizar e nacionalizar” as escolas primárias
e secundárias da Índia (Singh/Waghai). Por sua vez, M. M. Joshi indicou partidários
do BJP para posições-chave no Conselho Indiano de Pesquisa em Ciências Sociais,
no Conselho Indiano de Pesquisa Histórica e na Comissão de Subvenções para a
Universidade. O Conselho Indiano de Pesquisa Histórica suspendeu a publicação
de dois volumes de fontes documentais que tratavam do movimento pela
independência da Índia entre 1937 e 1947, com o argumento de que os livros eram
excessivamente seculares e marxistas e subestimavam o papel do RSS no movimento
pela independência. A Comissão de Subvenções para a Universidade, normalmente
rigorosa, começou a financiar cursos duvidosos de matemática e astrologia védicas.
Em 1999, M. M. Joshi indicou J. S. Rajput, membro do RSS, para o comando
do National Council for Educational Research and Training (NCERT)14, que
supervisionava os currículos governamentais e a publicação de livros didáticos. Em
2000, J. S. Rajput ordenou a todas as escolas afiliadas ao Central Board of Secondary
Education15 que suprimissem certas páginas questionáveis dos livros didáticos de
história que estavam sendo utilizados. As páginas questionáveis mencionavam que
o fundador do jainismo teria passado 12 anos sem mudar de roupa antes de adotar
a nudez; que brâmanes de Tamil comiam carne; que um governante muçulmano
era generoso com os músicos da corte hindu; que sikhs, jats e Shivaji (um governante
hindu) teriam tomado posse de regiões vizinhas; e que cidadãos britânicos teriam
condenado atrocidades cometidas por suas próprias tropas britânicas na Índia.
Nenhuma dessas passagens estava de acordo com a visão do BJP sobre a
superioridade espiritual do hinduísmo sobre o islamismo e o cristianismo.
J. S. Rajput introduziu novos livros didáticos de história escritos por partidários
do BJP. Esses novos livros traziam imprecisões: mencionavam que a Índia teria sido
o berço original dos arianos que falavam o idioma indo-europeu; que as castas não
tinham relação com o hinduísmo; que os muçulmanos pouco haviam trazido para
a Índia além de opressão e destruição de templos; e que todos os governantes
muçulmanos sábios e tolerantes seriam originalmente hindus que se converteram
ao Islã. Um desses livros sequer mencionava muçulmanos e sikhs ao descrever as
religiões indianas.
Os acadêmicos protestaram contra os novos livros didáticos do BJP. Em 2003,
um comitê do Congresso Histórico Indiano publicou um documento de 155
páginas – “History in the new NCERT textbooks: a report and an index of errors”

14. NT: Conselho Nacional de Pesquisa Educacional e Treinamento.


15. NT: Conselho Central da Educação Secundária.
Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 287

–, criticando muitos itens apresentados como fatos nos livros didáticos patrocinados
pelo BJP. Revisores acadêmicos consideraram os livros didáticos chauvinistas,
tendenciosos em favor do comunalismo, e hostis à ideia de que a Índia tem uma
cultura mista, revigorada por elementos islâmicos e europeus.
Na Índia, nas eleições de abril de 2004, os eleitores substituíram a coalizão
liderada pelo BJP por uma coalizão liderada pelo Partido do Congresso. M. M.
Joshi, o partidário do BJP, perdeu sua posição no Ministério de Desenvolvimento
de Recursos Humanos da União. Em seu lugar, o Partido do Congresso, partido
vitorioso, indicou Arjun Singh, que escolheu rapidamente um comitê de três
membros para estudar os livros didáticos que eram alvos de controvérsia, e sugerir
as medidas adequadas a serem tomadas a seguir. A açafronização de livros didáticos
começou a retroceder na Índia, mas isso não deteve automaticamente o processo
de açafronização fora da Índia. Um processo digno de nota ocorreu na distante
Califórnia, nos Estados Unidos.
A cada seis anos, o estado da Califórnia tinha que aprovar uma lista de livros
de história entre os quais os distritos escolares escolheriam os livros didáticos. Em
2005, alguns livros de história que tratavam da Índia continham afirmações
corretas, mas ofensivas, de que os hindus tinham muitos deuses e deusas,
consideravam algumas pessoas como intocáveis, e que na Índia antiga os homens
tinham muito mais direitos do que as mulheres (TANEJA, 2006, p. 78). Na
Califórnia, a Fundação de Educação Indiana e a Fundação Védica (baseadas nos
Estados Unidos, mas vinculadas a grupos hindutva na Índia) solicitaram que a
California State Board of Education Curriculum Commission16 fizesse algumas
mudanças que modificavam a história e ressaltavam as glórias da Índia antiga. Ao
tomar conhecimento dos esforços das fundações hindus, o professor Michael
Witzel, da Universidade de Harvard, enviou à Comissão de Currículo uma carta,
assinada por quase 50 acadêmicos, em que qualificava as revisões recomendadas
como “não acadêmicas [e] motivadas por questões políticas e religiosas”.
O Conselho e a Comissão viram-se entre dois fogos. Em 6 de janeiro de 2006,
assistiram ao debate entre o professor Witzel e o professor Shiva Bajpai, que apoiava
a maioria das solicitações das fundações indianas. Depois do debate, os acadêmicos
entraram em acordo em relação a algumas poucas mudanças em frases específicas.
A questão foi então encaminhada a um subcomitê para referência futura (CENTER
FOR SOUTH ASIA STUDIES, 2006, p. 3-7).
Ao defrontar-se com a opção entre total rigor acadêmico e sensibilidades
culturais, o Conselho e a Comissão preferiram voltar-se para a sensibilidade dos
hindus que viviam na Califórnia com suas famílias. Entre os recém-chegados,
hindus militantes tentaram definir para outros indianos e para o Conselho de
Educação da Califórnia uma versão hindutva da história e do hinduísmo que

16. NT: Comissão de Currículo do Conselho de Educação do Estado da Califórnia.


288 Elder

deveria ser ensinada nas escolas públicas da Califórnia. Se sua versão hindutva fosse
validada por um conselho escolar nos Estados Unidos, essa validação internacional
fortaleceria sua posição na Índia. Atualmente, à medida que a diáspora indiana se
espalha pelo mundo, e os hindus descrevem suas heranças para seus novos vizinhos,
novos debates ocorrerão sobre o que aconteceu ou não aconteceu anos atrás no
subcontinente indiano, e se isso deveria ou não ser incorporado aos conhecimentos
dos sistemas educacionais e às formas de transmissão pedagógica fora da Índia.
Retomando as questões levantadas no início deste capítulo: durante os 4 mil
anos decorridos desde que sacerdotes brâmanes transmitiam seu conhecimento
memorizado dos Vedas aos filhos de famílias privilegiadas, o que aconteceu na
Índia com o conhecimento desses antigos Vedas, com o idioma em que foram
escritos, com o treinamento em memorização textual por meio do qual esse
conhecimento era transmitido, e com os sacerdotes que recitavam e preservavam
o currículo védico?
Atualmente, fora das instituições educacionais predominantes na Índia, o
currículo védico ainda é ensinado em localidades isoladas, presumivelmente de
forma muito semelhante àquela de 4 mil anos atrás (FULLER, 2003, p. 123).
Homens jovens (principalmente brâmanes) memorizam passagens védicas com a
entonação correta sob a tutela de gurus brâmanes. Os Vedas que memorizam ainda
incluem um currículo de fórmulas sacrificiais, encantamentos e magias. Nos
grandes templos hindus atuais, entre os quais os da Grã-Bretanha e dos Estados
Unidos, ainda há demanda por sacerdotes que recitam os rituais védicos. O
sânscrito purificado pelo gramático Panini, no século IV a.C., ainda é ensinado
em escolas e universidades indianas, e a gramática de Panini é estudada nos
departamentos de linguística na Índia e em outros países. Atualmente, o texto em
sânscrito de Kautilya sobre estadismo somente é lido por estudiosos interessados
na antiguidade. Em diversos locais da Índia atual, os estudantes podem obter um
diploma em astrologia e medicina aiurvédica. O texto em sânscrito de Bharata
sobre artes cênicas ainda é citado nas academias indianas de dança e música, em
um esforço para associar o desempenho artístico atual aos princípios estéticos do
sânscrito clássico. Em nossos dias, membros de castas inferiores, que se definem
como dalits17, e que representam 20% da população indiana, envolvem-se em
protestos públicos em que o Dharma Shastra de Manu, em sânscrito, é queimado;
e culpam a estigmatização das categorias de pessoas impuras, proposta por Manu,
pelos dois milênios de opressão que sofreram nas mãos das castas indianas
superiores (ZELLIOT, 1972, p. 77).
No entanto esse conhecimento védico e seu currículo são, no máximo,
periféricos na maioria das estratégias educacionais atuais da Índia. A política
declarada da Índia quanto ao financiamento público da educação compulsória –

17. NT: “Os oprimidos”.


Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 289

embora ainda não realizada – está consagrada na Constituição indiana. As


crianças em idade escolar não são obrigadas a decorar os Vedas. O treinamento
não se restringe aos filhos das três varnas superiores. As políticas educacionais da
Índia são fortemente moldadas pelos governos federal e estaduais, que deram
continuidade, com algumas modificações, a grande parte do currículo
introduzido pelos britânicos durante o período em que governaram a Índia:
matemática, ciências, idioma regional, hindi e inglês (os dois idiomas oficiais da
Índia), geografia, história e literatura. Atualmente, os materiais de ensino que
tratam de geografia, história e literatura abandonaram grande parte de seu
conteúdo britânico anterior. Ao invés de ler “Robert Bruce and the spider”, ou
“The Dutch boy and the dyke”, as crianças leem estórias sobre a vitória de Rama
sobre o demônio Ravan, de Krishna roubando manteiga, ou de Arjun vencendo
o torneio de arco e flecha, e conquistando assim a mão da princesa Draupadi.
Quando não estão associadas a uma agenda hindutva, essas estórias dos épicos e
dos Puranas são vistas como narrativas comuns da cultura, e não como eventos
históricos reais que ocorreram em determinado tempo e lugar. Para a aprovação
nos exames externos de inglês nas escolas secundárias e nas faculdades, os
estudantes memorizam os enredos das principais peças teatrais de Shakespeare.
Nos meses que precedem os exames anuais do secundário, muitas famílias
contratam professores particulares para preparar seus filhos em casa, antes e
depois do horário regular da escola, para os exames externos, exercitando-os nas
questões de exames anteriores. No nível superior, os melhores resultados incluem
admissão para estudos pós-graduados em universidades de ponta na Grã-
Bretanha e nos Estados Unidos.
As políticas educacionais da Índia incluíram o financiamento e a manutenção
de mais de 200 universidades, com milhares de faculdades afiliadas, segundo o
modelo britânico, e exames e examinadores externos para manter os padrões de
integridade acadêmica. As políticas nacionais incluíram a criação de Institutos
Indianos de Tecnologia e de Administração, que produziram engenheiros de
computação, tecnólogos da informação e executivos corporativos de nível
internacional. Os currículos educacionais são escolhidos por conselhos de educação
selecionados pelo governo estadual – e não por especialistas védicos brâmanes. As
decisões desses conselhos, no entanto, podem ser moldadas pelas ideologias
daqueles que detêm o poder político para fazer as indicações para os conselhos
educacionais – como testemunham os eventos ocorridos durante os cinco anos do
BJP no poder entre 1999 e 2004. Durante esses anos, foi promulgado um
hinduísmo que não existia 4 mil anos antes – inventado e elaborado como hindutva
no século XX. Era um hinduísmo definido basicamente pela rejeição a outros
componentes não hindus da história indiana – componentes que representavam a
contribuição dos muçulmanos, dos europeus (principalmente os britânicos) e, mais
recentemente, dos norte-americanos.
290 Elder

Em 2004, o eleitorado indiano afastou o BJP do poder e, com ele, suas políticas
educacionais. No entanto continuam a emergir paixões quanto à identidade
nacional indiana e, portanto, quanto às metas do sistema educacional da Índia.
Será uma dessas metas a produção de versões contemporâneas dos ingleses marrons
de Macaulay? Será uma dessas metas a produção de graduados hindutva que negam
eventos da história indiana e marginalizam grupos importantes das populações
indianas atuais? Será uma dessas metas a produção de graduados que participam
das questões mais importantes de nosso tempo, enquanto se apoiam nas ricas
histórias e culturas do subcontinente indiano? Ou será uma dessas metas alguma
participação ainda não definida da Índia no século XXI? Independentemente dos
resultados finais, no futuro previsível os indianos continuarão a debater a utilidade
do conhecimento antigo versus o contemporâneo; as vantagens de rejeitar, adaptar
ou adotar conhecimentos externos; e as maneiras pelas quais o hinduísmo pode ser
incorporado à educação contemporânea, à medida que o próprio hinduísmo
continua a transformar-se – como tem feito há milhares de anos.

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Hinduísmo, modernidade e conhecimento: Índia 291

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57

REFLEXÕES SOBRE TRANSIÇÕES EDUCACIONAIS


NO EGITO, NO LÍBANO E NA TURQUIA

Jennifer Ashkenazi

Introdução
Os encontros interculturais históricos no Oriente Médio entre o Islã e o
Ocidente têm intrigado inúmeros historiadores, cientistas políticos, antropólogos
e sociólogos. Nesse contexto, um dos tópicos mais debatidos tem sido a influência
real da ocidentalização sobre o mundo islâmico e as ações e reações desse mesmo
mundo durante períodos de ocidentalização intensa. Um elemento central que
sofreu mudanças dramáticas nas sociedades islâmicas tradicionais foi a educação.
Ao lado de seu papel vital no treinamento de novas gerações de intelectuais
islâmicos, a educação teve importância fundamental no processo de difusão de
novas ideologias que acompanhou a modernização de sociedades do Oriente Médio
e, particularmente, no surgimento de movimentos islâmicos nacionais.
Uma vez que a natureza da influência ocidental diferiu entre os Estados que
surgiram no Oriente Médio, é impossível apontar um único padrão geral de
desenvolvimento da educação nacional nessa região. Para exemplificar as variações
e as similaridades entre as mudanças nas tradições de conhecimento, este capítulo
descreve e compara as características essenciais do desenvolvimento da educação
nacional em três países do Oriente Médio: Egito, Turquia e Líbano. Em cada país,
o estudo focaliza as negociações entre as tradições educacionais islâmicas e as
reformas (ocidentais) modernas. De modo geral, o momento crucial em cada país
manifestou-se na tentativa de criar um sistema nacional de educação e, dessa forma,
criar cidadãos nacionais. Será demonstrado que essas transições-chave que ocorreram
nas esferas política e social e seus efeitos ainda são visíveis atualmente. Em seu
processo de transformação em Estados-nação modernos, o Egito, a Turquia e o
Líbano adaptaram aspectos centrais de características ocidentais, frequentemente
seculares, a seus sistemas educacionais tradicionais. Os sistemas resultantes refletem
as diferenças no desenvolvimento político e nacional de cada Estado.
Este capítulo começa com um panorama geral da educação islâmica tradicional,
muito semelhante, em termos de forma e de conteúdo, na maioria das sociedades
do Oriente Médio e do Norte da África. O Islã foi fundamental não apenas para a
educação: constituiu a base da maioria das instituições e práticas culturais e sociais,
formais e informais.

293
294 Ashkenazi

Tradições educacionais islâmicas


O império islâmico otomano, a partir do qual o Egito, a Turquia e o Líbano
emergiram como Estados-nação independentes, durou mais de 600 anos (1299-
1922), e tem a seu crédito desenvolvimentos extraordinários da filosofia e das
ciências, além de sua filosofia essencialmente religiosa. Educação e aquisição de
conhecimento estavam interligadas na cultura islâmica e desempenham um papel
central na vida de um muçulmano. No Oriente Médio existiam centros
importantes de aprendizagem em Bagdá, Damasco, Isfahan e Istambul. Uma
tradição da educação islâmica, que enfatiza métodos de memorização rítmicos e
cantados, foi desenvolvida no início do período medieval e ainda é mantida
atualmente (HILGENDORF, 2003).
A teoria fundamental da educação islâmica baseia-se no primeiro verso revelado
ao profeta Maomé: “Lede, em nome de Vosso Senhor e Protetor Que criou [...] e
ensinou como utilizar uma pena”. O estudo e a transmissão de conhecimentos para
outras pessoas eram temas fundamentais na tradição islâmica, e baseavam-se em
memorizar, recitar e discutir o Alcorão, único texto que os muçulmanos eram
obrigados a estudar (MASSIALAS; JARRAR, 1991, 92 s.). Devido ao alto valor
atribuído à educação, além de sua função como locais de culto, as mesquitas
tornaram-se as primeiras escolas em educação islâmica (GRABAR, 1969; BERKEY,
2003). Não há como enfatizar exageradamente a importância da mesquita para os
muçulmanos como local para reunião e culto, tendo em vista suas implicações que
iam além dos aspectos religiosos e sociais da comunidade – ou seja, a esfera política
(TIBAWI, 1972). A mesquita era, e continua a ser, um símbolo da identidade
muçulmana em muitas comunidades. Segundo um acadêmico, “ainda hoje, a
primeira escola de todas as crianças muçulmanas continua a ser a mesquita, onde
a criança aprende a ler e memoriza partes do Alcorão e as doutrinas do credo”
(SAQUIB, 1983, p. 66).
As primeiras formas de aprendizagem islâmica que evidenciavam a conexão
entre escola e mesquita (BERKEY, 1992; LAPIDUS, 1988) focalizavam as crianças
mais jovens e, ao final, envolviam todas as idades. Ao longo do tempo, foram
criadas as kuttabs, escolas primárias gratuitas e separadas para crianças pequenas,
onde eram ensinadas a recitar o Alcorão e aprendiam árabe, o idioma do Alcorão.
Mais tarde, foram criadas instituições de aprendizagem islâmica superior, tais como
Al-Azhar, no Cairo, e um sistema de escolas preparatórias denominadas madraças,
para dar apoio ao nível mais alto de educação (NAKOSTEEN, 1964).
Os grandes centros de estudos religiosos foram formados no sistema de
madraças. Esses centros operavam desde a Idade Média e continuaram pelos séculos
XVIII e XIX. O currículo era relativamente padronizado. Os islâmicos
intelectuais/homens de letras (ulema) dominavam as seguintes disciplinas para
compreender a fé islâmica: gramática árabe (sarf), sintaxe árabe (nahv), comentário
corânico (tefsir), lei e jurisprudência islâmicas (fikh), tradições proféticas (hadith
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 295

ou hadis), lógica e dialética (mantik), retórica (belagat) e teologia escolástica (kelam)


(BERKEY, 1992).
Na filosofia do Islã, era importante oferecer a todos os muçulmanos,
independentemente de classe social, a oportunidade de aprender, compartilhar e
propagar as crenças religiosas. Na verdade, porém, a maioria dos estudantes só podia
frequentar a escola primária. Aqueles que frequentavam níveis de educação mais altos
provinham das classes sociais mais ricas, ou eram subsidiados por waqfs (dotações
feitas por crentes muçulmanos individuais) (STANTON, 1990). De modo geral, a
educação além do nível da escola primária não era financiada pelo Estado.
Ao concluir sua educação nas madraças, os estudantes passavam a fazer parte
dos ulema, um grupo de homens que tinham papéis importantes na sociedade
islâmica como consultores intelectuais, culturais e educacionais. Os ulema eram
também professores e/ou pregadores nas mesquitas. Além de seus papéis
educacionais, frequentemente eram chamados para atuar como mediadores entre
o Estado e as pessoas na regulação de práticas sociais e políticas.
São importantes para este estudo as mudanças de atitude do Estado em relação
aos ulema e ao sistema altamente estratificado da educação islâmica que existiu no
Império otomano e no Egito, sua região mais autônoma. O Líbano também
vivenciou mudanças em relação ao papel dos ulema, mas o sistema de educação
religiosa diferia significativamente, tendo tomado um caminho de desenvolvimento
diferente daquele seguido pelo Egito. No século XIX, tornou-se evidente para os
líderes otomanos que, para manter um papel ativo no comércio e na política
europeia e asiática, eram necessários novos tipos de conhecimento e de técnicas.
Para atender a essa necessidade, foi incorporado à educação tradicional um novo
currículo moderno, que incluía as ciências e a medicina ocidentais. Os ulema
tinham sentimentos diversificados a respeito dessas inovações. Recebiam bem as
mudanças que fortalecessem as tradições morais e éticas islâmicas, mas sentiam-se
ameaçados por reformas que reduziriam sua autoridade, argumentando que os
novos conhecimentos do Ocidente poderiam contradizer e, possivelmente,
questionar os valores e tradições islâmicos. O Egito, um centro cultural e
educacional do Oriente Médio tradicionalmente importante, desenvolveu algumas
das primeiras reformas para a ocidentalização de seu sistema educacional.

Egito
As primeiras influências da ocidentalização no Egito ocorreram com a invasão
napoleônica em 1798, e continuaram sob a liderança de Muhammad Ali, depois
de 1801. Ali introduziu muitas reformas inovadoras que construiram os alicerces
para a criação do estado egípcio moderno. Um sistema de educação ocidentalizado
era um componente importante do plano de Ali. Embora a natureza das reformas
constitucionais da primeira metade do século XIX não tenha permanecido, o
espírito da educação ocidental trouxe um impulso suficiente que, em última
296 Ashkenazi

instância, contribuiu para desestabilizar as tradições educacionais islâmicas e para


o desenvolvimento de um sistema nacional de educação.
A invasão francesa e a ocupação do Egito duraram apenas três anos (1798-
1801). Durante esse período, a França aboliu o sistema estabelecido de educação
islâmica, que não recuperou mais seu status proeminente. Os franceses fundaram
duas escolas no Cairo, modeladas em padrões europeus. Além disso, uma ordem
de Napoleão, em 1798, proporcionou aos estudantes egípcios viagens à França para
estudar. Segundo Silvera, Napoleão usou a educação “como um instrumento para
conquistar as mentes da elite nativa para os princípios revolucionários que ele
encarnava” (SILVERA, 1980, p. 3). Uma das consequências dessa política foi a
criação de uma classe distinta de intelectuais e administradores públicos egípcios
com tendência para a ocidentalização.
Entre 1801 e 1805, Ali construiu um estado egípcio centralizado, ainda que
dentro da estrutura dominante do poder imperial otomano (BOKTOR, 1936).
Significativamente, os ulema recorreram a Ali e lhe pediram que assumisse o
controle como pasha, o que implicava sua aceitação pelas elites islâmicas. Embora
fosse respeitado pelos ulema, que ajudaram a conduzir seu sucesso, Ali
frequentemente passava por cima do papel tradicional deles na sociedade egípcia,
de forma a levar adiante suas próprias reformas modernizadoras. Além disso,
instituiu uma série de mudanças sociais e econômicas para ocidentalizar o país.
Como argumentou Saqib, “[por] seus projetos brilhantes, que visavam uma
transformação completa de seu país em uma nação forte, autossustentável e
progressista, além de independente, [Ali] foi corretamente saudado como o pai do
nacionalismo egípcio” (SAQIB, 1983, p. 83).
As principais metas da reforma de Ali giraram em torno da modernização
militar, do início da industrialização e do desenvolvimento da educação ocidental.
Seu esforço pela criação de uma economia moderna incluía uma importante
reforma agrária, um extenso projeto de irrigação, o estabelecimento do algodão
como principal produto agrícola, o desenvolvimento de uma infraestrutura de
comunicações, o início de novas políticas comerciais e o desenvolvimento industrial
(ISSAWI, 1961). A reforma agrária aboliu a prática otomana de taxação da
agricultura; a partir daí, os camponeses passaram a pagar seus impostos diretamente
ao governo, o que permitiu que a nova administração de Ali construísse novas
fábricas e financiasse as melhorias no setor militar. O cultivo do algodão e a
melhoria da infraestrutura de comunicações facilitaram o comércio exterior com a
Europa e a Ásia, e o ingresso do Egito nos mercados internacionais. Paralelamente
a essas reformas sociais e econômicas, Ali introduziu ideias, instituições e práticas
educacionais ocidentais que se aproximavam mais de sua concepção de um Egito
moderno (ISSAWI, 1961; SILVERA, 1980).
Ali buscou estabelecer um sistema ocidentalizado de escolas separadas das
mesquitas, e com métodos educacionais diferentes dos métodos islâmicos. O
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 297

objetivo geral era a criação de um tipo ocidental de educação, semelhante ao da


Europa, que reduziria a ênfase na educação islâmica e enfraqueceria a autoridade
cultural e política tradicional dos ulema. A redução da ênfase na educação islâmica,
associada a outras reformas administrativas, transformou o papel da religião na
sociedade egípcia.
O sistema ocidentalizado de escolas criado sob Muhammad Ali focalizou
originalmente as instituições de ensino superior, com ênfase especial na educação
militar. Pouco depois, no entanto, Ali complementou o sistema de ensino superior
com escolas públicas primárias e secundárias – uma tentativa, pioneira no Egito,
de criar um sistema de educação de massa financiado pelo Estado. Em todas essas
escolas, os elementos islâmicos eram menos enfatizados do que o currículo secular
e militar. A primeira escola oficial totalmente militar foi inaugurada em 1826;
outras escolas ligadas à educação militar foram criadas no século XIX, replicando,
em parte, o modelo francês de escola militar. Embora depois de Napoleão os
franceses tenham sido afastados do Egito, sua influência no desenvolvimento
educacional perdurou. Com o crescimento dessas escolas e de seu currículo secular,
ocidental, surgiu no Egito uma nova geração da elite intelectual educada no estilo
ocidental, desafiando ideias e normas convencionais.
Embora tivessem metas de longo alcance no sentido de ocidentalizar o Egito,
as reformas de orientação ocidental de Ali foram pouco abrangentes. Durante esse
período e até os primeiros anos do século XX, a maioria dos egípcios continuou a
receber educação elementar religiosa nas kuttabs (COCHRAN, 1986). Gregory
Starrett (1998) assinalou que, embora esse período tenha assistido à introdução da
ideia e da forma da educação nacional de massa e à implementação de diversas
reformas de orientação ocidental, essas ideias e reformas não se enraizaram no Egito
do século XIX. Depois do governo de Ali, os sistemas que tinha criado, tanto na
educação quanto na administração do Estado, desintegraram-se gradualmente sob
a liderança dos governantes que se seguiram. Quando os britânicos tomaram o
poder no Egito, em 1882, o sistema educacional ainda estava principalmente
centrado na transmissão do ritual e dos textos religiosos nas kuttabs muçulmanas.
Um período importante da história egípcia – de1882 a 1952 – foi marcado
pela ocupação e pelo domínio da Grã-Bretanha. Os britânicos não tentaram
interferir nas crenças islâmicas da grande maioria dos egípcios. Na verdade, o ensino
islâmico prosperou durante a era inicial do domínio britânico (COCHRAN,
1986). Durante esse período inicial (1882-1919), pouco se fez para melhorar o
sistema público (secular) de educação. A política educacional britânica não podia
ser considerada progressista: centrava-se principalmente na educação de
funcionários governamentais, treinados em habilidades técnicas e burocráticas. Em
pequena escala, o mandato britânico ajudou a criar um sistema de escolas públicas
elementares e primárias: em grande parte, as escolas elementares eram controladas
pelos conselhos provinciais e apenas parcialmente pelo Ministério da Educação,
298 Ashkenazi

mas as escolas primárias estavam inteiramente sob a direção do Ministério da


Educação. Entretanto esse sistema mostrou-se inadequado para a vasta população
do Egito, e não foram feitas tentativas concretas para expandir ou melhorar as
escolas do governo (TIBAWI, 1972).
Quando o Egito conquistou a independência condicional em 1922, o sistema
educacional herdado dos britânicos foi criticado pelo novo governo egípcio. Não
havia unidade na educação egípcia, e o sistema estava longe de ser um sistema
nacional integrado. Inicialmente, o Ministério da Educação (Ministry of Education
– MOE) tentou enfrentar o problema do analfabetismo, para depois tornar
obrigatório o sistema de educação elementar e, ao mesmo tempo, expandir o
sistema de escolas primárias (TIBAWI, 1972). O MOE tentou também unificar
os sistemas religioso e secular de educação, e elaborar um currículo nacional que
incluísse aprendizagem islâmica. Depois de 1928, a influência do Islã nas escolas
do governo cresceu. No mesmo ano, foi fundada a Irmandade Muçulmana, uma
organização islâmica popular, e o governo passou a utilizar cada vez mais os
membros da Irmandade como professores em suas escolas (LANGOHR, 2007).
Em 1953, quando o Egito conquistou a independência completa, o sistema
educacional ainda era inadequado para as necessidades do país e ainda não estava
unificado, apesar dos esforços de reforma do governo anterior. Havia ainda um
grande número de instituições religiosas privadas que ficavam além da capacidade
do governo para gerir. Durante os primeiros anos de independência, no entanto,
essa situação mudou: o número de escolas primárias e a população de alunos
aumentaram substancialmente entre 1953 e 1963, devido a incentivos tais como
o ensino de um currículo religioso mais amplo nas escolas públicas (STARRETT,
1998). Nas escolas públicas, o currículo religioso não se limitava ao material nos
livros didáticos: era acompanhado por metas como a inculcação de moral e valores
islâmicos, além da assimilação dos cinco pilares do Islã – ou seja, o desenvolvimento
da fé em Deus; a familiarização da criança com a biografia do Profeta; a
memorização de alguns versos e capítulos do Alcorão; e o conhecimento e a prática
do processo de ablução e oração (STARRETT, 1998, p. 132). Era importante
também que os professores entendessem o currículo religioso como parte de um
currículo de vida, o que incluía o ambiente familiar e a sociedade como um todo.
A principal lei decretada depois da independência do Egito, em 1953,
estabelecia a educação primária gratuita e compulsória para meninos e meninas
dos 6 aos 12 anos de idade (TIBAWI, 1972). O currículo focalizava o idioma árabe,
educação patriótica e religião, além de diversas disciplinas, como aritmética, história
e geografia. No início da década de 1960, graças às promessas de oportunidades
educacionais iguais e gratuitas oferecidas no sistema público, o governo conseguiu
atrair muitos alunos das escolas privadas e estrangeiras (COCHRAN, 1986).
É evidente que a reforma educacional que visava à ocidentalização teve um
percurso dialético no Egito. Nos primeiros tempos da ocidentalização, as reformas
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 299

de Muhammad Ali focalizaram principalmente a educação militar. O sistema de Ali


não teve sucesso devido à sua própria incapacidade de integrar a maioria da população
egípcia às escolas muçulmanas já existentes. Entretanto, apesar do insucesso de seus
intensos esforços, Ali iniciou as primeiras reformas no sentido de introduzir no Egito
a educação secular e ocidental, incluindo um sistema de educação de massa. Apesar
dos muitos retrocessos subsequentes ao governo de Ali, depois de 1953 o governo
conseguiu nacionalizar e unificar o sistema educacional egípcio.
O caso da ocidentalização no Egito revela também alguns dos conflitos típicos
entre o Islã e a secularidade. O conflito começou durante o governo de Ali, quando
as elites religiosas – os ulema – foram gradualmente relegadas a um status social e
político mais baixo na sociedade. Ao mesmo tempo, os benefícios das reformas
seculares com tendência à ocidentalização foram anunciados como vantajosos e
necessários para o desenvolvimento social e econômico do Egito como Estado-
nação. Em decorrência, quando muitas das reformas de Ali falharam em produzir
as melhorias sociais prometidas, e a população foi mantida na mesma condição
anterior de pobreza, foi fácil associar as reformas seculares com as dificuldades
enfrentadas pela maior parte da população (muçulmana) egípcia.
Durante o século XIX e início do século XX, as distâncias sociais e culturais
entre as elites seculares e as maiorias religiosas foram um desafio para o governo
egípcio e para o mandato britânico. Em decorrência da incapacidade do governo
de melhorar as condições sociais precárias das classes mais baixas, formaram-se, na
década de 1920, organizações populares islâmicas, tais como a Irmandade
Muçulmana, visando alcançar essas classes e aliviar sua situação. As abjetas
condições de vida dessas classes foram associadas às reformas seculares e ocidentais
fracassadas, aprofundando assim o conflito entre a secularidade e o Islã.
Esse padrão de conflito entre Islã e secularidade pode ser encontrado em todo
o Oriente Médio, especialmente nos territórios que foram colonizados, onde a
secularidade foi identificada com as potências coloniais ocidentais, a desintegração
das normas culturais islâmicas tradicionais e o agravamento geral de condições
sociais e econômicas. O conflito entre Islã e secularidade tem sido objeto de extensa
discussão em outros estudos, especialmente com a ascensão recente do Islã político
(TIBI, 1998; ASAD, 2003; BURGAT, 2003). Deve-se notar, no entanto, que a
despeito da imagem popular de que o Islã obstrui o processo de ocidentalização e
modernização, é possível citar exemplos em contrário – como a Indonésia, onde a
população é formada por 95% de muçulmanos sob um governo secular operante;
e a Turquia, com uma população islâmica igualmente significativa e que conseguiu
manter uma república secular, ainda que frágil, por mais de 80 anos.

Turquia
A República Turca teve sua origem no Império otomano, islâmico e multiétnico
– uma grande potência que, em seu auge, abrangia um vasto território, ocupando
300 Ashkenazi

o norte da África, o sudeste da Europa e a Ásia Ocidental. No século XIX, o


Império otomano começou a declinar e, depois de sua participação desastrosa na
Primeira Guerra Mundial, e de três anos de guerra civil, acabou por entrar em
colapso. Em 1923, depois de uma guerra interna de independência, foi criada a
República Turca, sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk. Uma das primeiras
prioridades de Atatürk foi o desenvolvimento de um Estado-nação turco secular,
democrático e ocidentalizado – não otomano –, apoiado em um sistema nacional
de educação turco, igualmente secular e ocidentalizado. Entre as principais metas
da educação turca moderna estava a transformação da visão de mundo da sociedade
turca: de uma nação tradicional islâmica otomana conservadora para uma nação
ocidental moderna contemporânea (KAZAMIAS, 1966; SZYLIOWICZ, 1973;
BERKES, 1998; KAPLAN, 2006).
As primeiras reformas modernas do Império otomano remontam ao final do
século XVIII e ao édito imperial Nizam-I Cedid (Nova Ordem), promulgado pelo
sultão Selim III. Esse édito recomendava uma série de reformas para modernizar a
administração política e militar otomana. No século XIX, os esforços de reforma
procuraram ocidentalizar a administração otomana, o sistema econômico e o
sistema educacional. Na educação, houve esforços no sentido de introduzir
instituições educacionais do tipo ocidental, com currículos seculares destinados a
educar líderes para o serviço público no Império otomano. Duas dessas instituições
foram particularmente importantes: a Mülkiye, criada em 1859, e a Galatasaray
Lise, instalada em 1868 (LEWIS, 1961; KAZAMIAS, 1966). O idioma de
instrução na Galatasaray Lise era o francês, e seu propósito era explícito: “preparar
jovens de vários grupos religiosos para todos os ramos do serviço público [civil],
oferecendo um tipo de educação em consonância com as necessidades do império”
(KAZAMIAS, 1966, p. 65). Segundo Kazamias (2006), a Galatasaray Lise era a
mais secular e ocidentalizada das novas escolas criadas nesse período. O currículo
incluía as seguintes disciplinas: turco, francês, etimologia grega, elementos de latim
necessários para estudos de direito, medicina e farmácia, história geral e otomana,
geografia europeia e otomana, matemática, cosmografia, elementos de
jurisprudência, física e química, história física, elementos de economia política,
retórica, desenho geométrico, ética e mecânica prática (KAPLAN, 2006). Karpat
(2001) observou que a Galatasaray Lise atraiu inicialmente estudantes não
muçulmanos, mas, com o acréscimo posterior de cursos em turco, as matrículas
de estudantes muçulmanos ultrapassaram as de não muçulmanos, aumentando a
atratividade da escola por ensinar a ambos os grupos. Tanto os graduados da
Mülkiye quanto da Galatasaray Lise tiveram influência na modernização do Império
otomano (LEWIS, 1961; KAZAMIAS, 1966; SZYLIOWICZ, 1973).
Diferentemente de Muhammad Ali no Egito, o sultão otomano Abdülhamid
II (1876-1908) tentou harmonizar as tradições islâmicas e ocidentais dando
orientação ocidental às reformas e à criação de escolas. Como parte do processo
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 301

otomano de modernização/ocidentalização, Abdülhamid II permitiu a elaboração


de uma Constituição Otomana semelhante àquelas encontradas na Europa
contemporânea, e convidou líderes europeus para contribuir para as reformas
econômicas e a melhoria do setor militar. Além dessas medidas, promoveu o Islã,
juntamente com uma identidade nacional otomana, como denominador comum
a todos os súditos de diversas etnias e religiões otomanas, de forma a aumentar a
solidariedade entre eles. Apesar desses esforços, Abdülhamid II não conseguiu
realizar plenamente seus objetivos. Devido à poderosa influência dos ulema e à
ascensão do nacionalismo nos Bálcãs e no Oriente Médio no final do período
otomano, seus esforços, em grande parte, foram mal-sucedidos (BERKES, 1998;
KARPAT, 2001).
O segundo movimento importante de reformas para a modernização/ociden-
talização ocorreu concomitantemente à criação da República Turca, em 1923, sob
a liderança de Mustafa Kemal Atatürk e de seu sucessor, Ismet Inonu. Esse segundo
período de reformas, também chamado Era do Partido Único, durou
aproximadamente de 1923 a 1949. Atatürk desenvolveu uma nova ideologia
nacional para fortalecer o estabelecimento da nova República Turca. Denominada
kemalismo, essa ideologia consistia em seis marcos como princípios orientadores
da nova república: nacionalismo, republicanismo, revolucionarismo, secularismo,
estadismo e populismo.
As reformas de Atatürk provocaram uma total transformação – ou transitologia
– de um império oriental islâmico em uma república ocidental secular,
desestabilizando o lugar tradicional do Islã na administração, e promulgando uma
nova ideologia nacional ocidental (KADIO LU, 1996). O secularismo significava
também uma mudança da identidade turca inicial, de comunidade e de religião
para país e nação (LEWIS, 1961). A versão kemalista de secularismo
desestabilizou o Islã também por meio da abolição do sultanato e do califado, e
pela criação da Diretoria de Assuntos Religiosos, em 1924. A meta de Atatürk era
desestabilizar o papel poderoso do Islã e das elites islâmicas na sociedade turca, de
forma a levar adiante suas reformas de ocidentalização (BERKES, 1998;
SZYLIOWICZ, 1973; LEWIS, 1961; KAZAMIAS, 1966).
Um mecanismo importante para a transformação e a modernização da recém-
criada República Turca e para a construção da nação turca foi a modernização/
ocidentalização do sistema educacional. Na nova República Turca, a educação
passou inteiramente ao controle do Estado e tornou-se a principal transmissora da
ideologia e da cultura nacionais republicanas da Turquia. Durante os anos
formativos de construção da nação, as escolas religiosas (madraças) foram fechadas,
e o Islã, que era considerado pelos kemalistas como um empecilho para o
desenvolvimento ocidental, foi desestabilizado.
Um rompimento definitivo com o passado ocorreu com a aprovação da lei de
Unificação da Educação, em 3 de março de 1924, que declarava a necessidade de
302 Ashkenazi

adotar um sistema educacional “moderno, unificado, secular, igualitário e nacional”,


para garantir que todos os cidadãos turcos recebessem educação com o mesmo padrão
e a mesma qualidade (BERKES, 1998). A religião foi oficialmente erradicada do
currículo das escolas públicas em 1928, quando foi removida da Constituição a
cláusula que indicava o Islã como religião do Estado (BERKES, 1998). O sistema
público de educação da Turquia passou a ser unificado sob a direção de um órgão
estatal – o Ministério Nacional da Educação –, comandado por um novo ministro
da Educação. A estrutura básica da educação permaneceu substancialmente a mesma
desde 1924. No entanto, os últimos anos testemunharam a introdução de reformas
que promoveram a inclusão de escolas religiosas no sistema nacional e modificaram
a duração recomendada para a escola secundária. O padrão de escolarização consiste
atualmente em educação primária, educação secundária intermediária em orta okuls,
ciclo final da educação secundária em lises, e educação pós-secundária em
universidades estatais, faculdades privadas ou escolas profissionalizantes.
Embora o Islã tenha sido oficialmente desestabilizado sob o governo de Atatürk,
e o secularismo tenha-se tornado a ideologia nacional, persistiram elementos islâmicos
nas esferas administrativas e econômicas, inclusive na educação estatal (AKSIT, 1991;
YILMAZ, 2002). Além disso, embora fosse considerada pelos kemalistas como um
obstáculo para a modernização e a ocidentalização, a educação religiosa não foi
totalmente eliminada do sistema nacional. Em vez disso, foi colocada sob o controle
do Estado e modificada de forma a atender aos interesses nacionais.
Depois do final da Era do Partido Único, a Turquia passou por vários conflitos
graves entre os partidos políticos islâmicos e seculares e entre líderes políticos. As
eleições de 1946, que marcaram o início da Era Multipartidária na política turca,
marcaram também o início de uma fase de reação muito disseminada contra as
políticas estritamente seculares do período Atatürk. Partidos políticos com
elementos islâmicos foram criados e foi introduzida uma série de iniciativas
educacionais. Essas iniciativas incluíam: cursos optativos de religião nas escolas
estatais; maior apoio a escolas profissionalizantes religiosas financiadas pelo Estado
(Imam-Hatips); e a criação da Faculdade da Divindade, na Universidade de
Istambul. Até certo ponto, esses desenvolvimentos estavam sob os auspícios do
Ministério da Educação. O afrouxamento das políticas kemalistas estritamente
seculares na educação, como em outras áreas, não deveria resultar em uma
mudança fundamental na ideologia nacional secular. Na verdade, o secularismo
kemalista manteve-se como a base da ideologia turca. Apesar disso, o governo não
estabeleceu diretrizes claras quanto ao papel do Islã na Turquia secular. Esse papel
ambíguo do Islã na sociedade turca resultou em inquietação social e política,
criando uma tensão generalizada entre nacionalistas partidários do secularismo e
partidários do Islã.
Além dessa inquietação, a tensão entre as elites políticas e militares e as
necessidades religiosas do povo turco alcançaram novos ápices com a ascensão do
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 303

Islã político depois da década de 1970. Henze (1998) atribui a crise política da
década de 1970 a um conjunto de fatores, entre os quais certamente foi significativo
o resultado cumulativo do fracasso dos líderes políticos islâmicos e seculares em
governar de forma eficaz. Esse estado de coisas criou um clima favorável para
atividades terroristas, que continuaram a aumentar e, em parte, foram apoiadas
por potências estrangeiras. A crise constante chegou ao auge em setembro de 1980,
quando, depois de uma manifestação islâmica fundamentalista em Konya, os
militares tomaram o poder sob a liderança do general Kenan Evren e estabeleceram
uma lei marcial que durou até 1983.
Depois do regime militar e da ascensão de Turgut Özal como primeiro-ministro,
em 1983, foi instituída uma série de reformas bem-sucedidas para suprimir a
violência política e social e estabilizar o governo, o que, por sua vez, contribuiu
para melhorar a economia nacional e fortalecer o apoio público ao governo. Esse
sucesso baseou-se, em parte, em uma nova atitude quanto ao papel do Islã na
Turquia. Ao invés de mostrar-se contrário ao Islã, o governo pós-1980 deu vários
passos para fortalecê-lo: foram abertas novas escolas corânicas, os cursos religiosos
tornaram-se obrigatórios, e novos pregadores foram contratados (YAVUZ, 1996).
Essa nova postura do Estado turco em relação ao Islã refletiu-se claramente na nova
Constituição Turca, promulgada em 1982.
O artigo 24 da Constituição de 1982 provê, inter alia, o seguinte:
A educação e a instrução em religião e ética serão ministradas sob a supervisão e o controle do
Estado. A instrução em cultura religiosa e a educação moral serão obrigatórias nos currículos das
escolas primárias e secundárias. Outros tipos de educação e instrução religiosa ficarão sujeitos ao
desejo individual e, no caso de menores, à solicitação de seu representante legal (TURKEY. The
Constitution, 1995, pgfo. 8º).

Com essas novas medidas, o governo turco esperava evitar qualquer nova
politização religiosa da sociedade turca e, nas palavras de Yavuz, “fundir as ideias
islâmicas com as metas nacionais, [...] para criar uma comunidade islâmica mais
homogênea em termos sociais e menos ativa politicamente” (YAVUZ, 1996, p.
80). Consequentemente, os princípios kemalistas foram fortalecidos e, ao mesmo
tempo, uma forma liberal do Islã foi incorporada à ideologia nacional, e
particularmente, à educação nacional. Esse desenvolvimento não evoca as tradições
islâmicas do Império otomano: o Islã foi incluído nas escolas turcas como parte da
formação moral e ética (ÖZDALGA, 1999).
Em 1983, foi eleito primeiro-ministro Turgut Özal, presidente do Partido da
Pátria, um partido político com afiliações islâmicas explícitas. Com o apoio do
sempre poderoso setor militar, Özal inaugurou um novo período da história turca,
com uma abordagem oficial diversa em relação ao Islã e a seu papel social no estado
moderno (KADIO LU, 1996). Özal esperava superar a polarização entre
secularistas e não secularistas, instituindo uma reforma no Islã que, a seu ver, se
harmonizava com as condições modernas. Em sua visão, essa reforma tornaria o
304 Ashkenazi

Islã mais aceitável para os turcos secularistas orientados para o Ocidente, que se
ressentiam das conotações estritas do Alcorão e do Suna1.
As reformas de Özal procuravam realizar aquilo que tinha sido referido como
Síntese Islâmica Turca (Turkish Islamic Synthesis – TIS). TIS era uma filosofia
desenvolvida por Ibrahim Kafesoğlu e intelectuais de centro-direita, que constituíam
um grupo conhecido como Centro Intelectual Turco (Turk Ocaği). Esse grupo de
intelectuais sentia que a verdadeira cultura turca era uma síntese das tradições pré-
islâmicas e das tradições islâmicas do povo turkic2 (COPPEAUX, 2000). Sustentava
que o Islã era uma tradição histórica e cultural importante e deveria ser parte da
sociedade turca contemporânea. Além disso, o Centro defendia o controle do Estado
sobre o Islã. Alinhadas a essa filosofia, as reformas de Özal foram, em grande parte,
uma expansão do controle estatal sobre áreas religiosas, entre as quais a educação
(AKARSU, 2000). A percepção de Özal sobre a religião e seu papel na sociedade
refletia uma síntese de secularidade e Islã, que não ameaçaria as aspirações seculares
ocidentais dos kemalistas, mas tornaria o Islã um elemento fundamental da
identidade turca. A TIS foi vista como uma solução para a inquietação social e
política, tanto pelos líderes religiosos como pelo regime militar. Essa persistência de
valores islâmicos tornou-se parte do sistema educacional.
A principal reforma educacional desse período foi a implementação da educação
religiosa obrigatória, que era considerada uma resposta ao apelo público por ética
e moralidade na sociedade turca. O sistema de Imam-Hatips semiprivadas que, em
parte, haviam funcionado sob os auspícios do Estado desde 1950, expandiu-se
amplamente por volta da década de 1980. No entanto o discurso das políticas
nacionais era vago e inconsistente, e a não ser por algumas orientações filosóficas
gerais, a TIS não conseguiu contribuir para o desenvolvimento de uma estrutura
prática para políticas públicas.
Após a introdução dessas reformas, a instrução islâmica expandiu-se na Turquia.
Entretanto, é importante ter em mente que o Islã nunca foi totalmente eliminado
das escolas da República Turca. Em vez disso, foi colocado sob o controle do
Estado, por meio de uma série de leis e de reformas religiosas de estilo ocidental.
Na década de 1980, quando a República Turca reintroduziu o Islã nas políticas
governamentais e na Constituição, a educação religiosa passou a ser obrigatória.
Essa ação fortaleceu o lugar da educação islâmica nas escolas e na sociedade turca.
Na década de 1990, seguindo-se à era de Özal, marcada por apoio e tolerância
em relação ao Islã, mais uma vez o lugar do Islã na Turquia e em seu sistema
nacional de educação tornou-se um tema controvertido. Apesar da tolerância em
relação ao Islã no início da década de 1980, a rígida posição secularista dos militares
não havia mudado. Quando o número de estudantes matriculados nas Imam-Hatips

1. NT: Suna é o conjunto de preceitos complementares ao Alcorão, particularmente importantes para os


muçulmanos sunitas.
2. NT: Os turkic são povos da Ásia Central, de origem mista caucasoide e mongoloide.
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 305

religiosas semiprivadas alcançou uma proporção sem precedentes (quase 10% da


população estudantil em 1997), os militares interferiram e forçaram o governo a
mudar o número de anos de educação compulsória para oito anos consecutivos de
educação pública (secular) (ÖZDALGA, 1999). Até então, os estudantes
frequentavam cinco anos de escola pública, e depois podiam frequentar as Imam-
Hatips para completar suas obrigações de educação compulsória. As Imam-Hatips
ofereciam uma grande variedade de currículos religiosos em complementação aos
currículos padronizados da escola pública, e eram uma opção preferencial para os
filhos de famílias religiosas conservadoras. Embora não afetasse a educação religiosa
obrigatória nas escolas públicas, essa reforma indicava a impaciência dos militares
em relação a um tipo de educação que não fazia parte da estrutura da educação
nacional turca, que garantia educação igual (secular) para todos os alunos.
Atualmente, a situação política da Turquia reflete ainda as tensões entre
interesses islâmicos e seculares. Na primavera de 2007, grandes manifestações
ocorreram na capital, Ancara, em protesto contra o primeiro-ministro Recep Tayyip
Erdoğan, um político conservador com histórico fortemente muçulmano, e contra
sua campanha para eleger Abdullah Gul presidente da República Turca, conhecido
por suas afiliações islâmicas. As intenções de Erdoğan geraram uma forte oposição
por parte de kemalistas adeptos do secularismo, que sentiam que a presidência
deveria permanecer um baluarte político secular (TURKISH News Daily, 2007).
Depois de forte oposição por parte do Partido Republicano do Povo – um partido
secular – e de advertências dos militares, Gul retirou sua candidatura. Erdoğan
convocou então eleições gerais, que se realizaram em julho de 2007. Seu partido –
o Partido da Justiça e do Desenvolvimento, de centro-direita com afiliações
islâmicas, e que estava no poder – ganhou por uma maioria esmagadora, com
46,6% dos votos (BOZKURT, 2007).
A Turquia foi, e ainda é, um caso singular na implementação de políticas
secularistas. O controle da religião pelo Estado não implicou separação entre
religião e Estado, e certamente não implicou o afastamento do Islã da República
com orientação ostensivamente secular. Entretanto, até que ponto é possível a
coexistência do Islã e do nacionalismo turco sem instabilidades e tensões
significativas ainda é uma questão em aberto.

Líbano
Diferentemente do Egito e da Turquia, o Líbano é conhecido por sua população
multissectária, que inclui as seguintes comunidades religiosas: maronita, sunita,
xiita, grega ortodoxa, grega católica, drusa, armênia ortodoxa, armênia católica,
protestante, judaica, católica romana, caldeia, síria ortodoxa, síria católica, alauíta
e baha’i (CROW, 1962). A natureza extremamente heterogênea da sociedade
também tornou o Líbano vulnerável a conflitos internos que se refletiram em
hostilidades civis desde a década de 1860, e até a recente e trágica guerra civil de
306 Ashkenazi

1975. A natureza diversificada da expansão sectária foi responsável pelo


desenvolvimento nacional singular do Líbano. A inexistência de uma ideologia
nacional comum entre os grupos confessionais cristãos e muçulmanos reflete-se no
sistema educacional, que foi influenciado por várias tradições religiosas, que as
administrações estatais jamais conseguiram centralizar completamente.
Além do sistema limitado de escolas estatais, cada comunidade religiosa tem
desfrutado historicamente do direito de manter um sistema privado de educação,
segundo uma tradição iniciada no período do domínio otomano (1516-1918).
Essa tradição continuou sob o mandato francês (1918-1943), e permaneceu sob a
administração atual (CROW, 1962; HUDSON, 1985; EL-SOLH, 2004). Depois
do início do mandato francês, em 1920, as fronteiras do Estado do Grande Líbano
foram ampliadas, incluindo regiões costeiras e o Vale da Beqa. Essa expansão alterou
drasticamente a composição da população, uma vez que os cidadãos das regiões
incorporadas eram majoritariamente muçulmanos. Esse processo resultou na
eliminação da maior parte da população cristã e na criação de uma população que
abrange múltiplas e amplas comunidades religiosas (CROW, 1962).
Foram registrados dois movimentos principais de ocidentalização no Líbano: o
primeiro surgiu com a efervescência de atividade missionária na segunda metade
do século XIX, e o segundo, sob o mandato francês, aproximadamente entre 1920
e 1943. Enquanto outras nações do Oriente Médio – por exemplo, Egito, Turquia,
Irã, Iraque e Jordânia – desenvolveram sistemas nacionais de educação
ocidentalizados para fins militares e seculares, no Líbano a educação ocidental foi
introduzida sob os auspícios de missionários privados e, portanto, de grupos
religiosos (SZYLIOWICZ, 1973). A partir do século XVII, missionários jesuítas,
capuchinhos, lazaristas, maronitas, gregos ortodoxos, católicos e quakers fundaram
escolas e igrejas no Líbano (AMIDEAST, 1993). No século XIX, comunidades
muçulmanas sunitas e drusas criaram suas próprias escolas, para proteger seus
interesses culturais de influências ocidentais (ABOUCHEDID, 2002; FRAYHA,
2003). Essas escolas deram início a uma tradição duradoura de educação formal
fora do sistema estatal, baseada na afiliação religiosa e privada da comunidade.
Em sua maioria, as escolas estrangeiras e privadas baseavam-se basicamente em
modelos educacionais franceses (MASSIALAS; JARRAR, 1991). Os currículos
eram fortemente influenciados pelas respectivas comunidades, e o idioma de
instrução era o francês ou o inglês, refletindo o grande número de missionários
europeus e norte-americanos, que apreciavam a liberdade educacional do Líbano.
As iniciativas educacionais organizadas por vários grupos missionários e privados
intensificaram as fissuras culturais existentes e acentuaram as percepções regionais
de identidade. Embora existisse nesse período um sistema de escolas estatais, a
perpetuação das diferenças sectárias fortaleceu valores e objetivos regionais, e
frustrou os esforços futuros das autoridades civis no sentido de promover uma
ideologia nacional social e cultural, e muito menos um currículo unificado.
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 307

A educação ocidental no Líbano foi mais marcante no ensino superior. Foram


fundadas nesse período duas universidades: a Universidade Norte-americana de
Beirute (1866) e a Universidade de São José (1875). Considerando suas afiliações,
respectivamente norte-americana e francesa, e sua orientação intelectual ocidental
e moderna, é interessante apontar que um dos primeiros partidos políticos formais
do Líbano a pedir a cooperação entre cristãos e muçulmanos em favor da união
social foi organizado na Universidade Norte-americana de Beirute (FRAYA, 2003;
BARAKAT, 1977). No entanto, a admissão nessas universidades dependia de
exames de ingresso, que faziam parte das escolas estrangeiras e eram mais fáceis
para os alunos dessas instituições. Os alunos das escolas estatais tinham dificuldade
de acesso ao ensino superior por não estarem adequadamente preparados para os
exames de ingresso.
A desigualdade do sistema elitista de educação privada e estrangeira foi
perpetuada depois do fim da Primeira Guerra Mundial, quando o Império
otomano foi derrotado. Em 1920, a França recebeu um mandato no Líbano, que
estabeleceu o Grande Líbano (KHALIFAH, 2001). Os franceses consolidaram a
estrutura fragmentada do Líbano ao permitir alto grau de autonomia para
comunidades confessionais específicas, dando prioridade aos cristãos maronitas,
de forma a aumentar o controle político francês na região (KHALIFAH, 2001;
HUDSON, 1985). Sob o mandato francês, a administração estatal foi
drasticamente modernizada: o Líbano promulgou uma Constituição Nacional em
1926, um parlamento eleito por voto popular, um presidente eleito pelo
parlamento, um conselho de ministros, um judiciário independente, um sistema
fiscal moderno e uma política nacional de educação.
No entanto os franceses não tinham os recursos, ou a motivação, para
nacionalizar o amplo sistema de escolas privadas e estrangeiras. Em vez disso,
optaram por criar três sistemas, que consistiam em escolas estatais, estrangeiras e
privadas. De fato, os franceses não conseguiram unificar as divisões sociais que
existiam havia décadas no sistema educacional. Optaram, portanto, por vincular o
sistema de escolas públicas aos sistemas de escolas privadas e estrangeiras. Essa
forma de manter a desigualdade de oportunidades educacionais tem sido
considerada uma tentativa de preservar a influência católica francesa no Líbano
(FRAYHA, 2003).
Depois que o Líbano conquistou a independência total da França, em 1943,
atribuiu-se à educação o importante papel de contribuir para a criação de um
sentimento comum de identidade nacional libanesa. Os principais grupos
confessionais concordaram com o Pacto Nacional de 1943 – um tratado que
estabelecia as bases da cooperação política entre os diferentes grupos para a criação
de um Estado nacional independente, um governo comum e uma entidade política
e geográfica (BAAKLINI, 1976). Na criação de um sistema nacional de educação
que não se baseasse em afiliação religiosa, o governo libanês centralizou toda a
308 Ashkenazi

educação, inclusive as diversas escolas sectárias: foram aprovadas novas legislações


educacionais, e a utilização de livros didáticos passou a ser supervisionada pelo
Ministério da Educação (FRAYHA, 2003). Embora continuassem a funcionar, as
escolas privadas foram obrigadas a implementar o mesmo currículo que as escolas
públicas, sob a supervisão do governo. Para o novo governo, era importante
enfatizar princípios e valores nacionais libaneses, e não afiliação religiosa. Essa meta
estava claramente destacada na Plataforma do Governo Libanês de 1943, que
afirmava o seguinte:
O momento do despertar nacional na história do Líbano chegará quando pudermos abolir o
Taifiyah (conflito sectário). [...] A partir de agora, o governo oferecerá aos jovens libaneses uma
educação adequada para a cidadania e os orientará no sentido da liberdade, da autonomia e do
orgulho nacional. Portanto, o governo utilizará todos os meios necessários para valorizar o árabe,
idioma nacional, bem como a história e a geografia libanesas, em todas as instituições educacionais
(FRAYA, 2003, p. 82).

Além disso, foi promulgado em 1950 um decreto que exigia que todas as escolas
privadas fossem submetidas à supervisão nacional (ABOUCHEDID, 2002).
Apesar dos esforços no sentido de centralizar a administração pública e de
criar uma ideologia nacional, as diferenças religiosas mostraram-se excessivamente
complicadas para que as escolas sectárias pudessem ser controladas de forma
eficaz. As divergências políticas entre os grupos sectários a respeito da formação
adequada de uma identidade nacional, entre outros conflitos inter-regionais,
culminaram em uma guerra civil em 1958, e mais tarde, em 1975. Diversas
reformas educacionais foram instituídas para tentar superar a inexistência de
integração nacional. O mais recente desses planos foi o Acordo Ta’if, de 1989,
aprovado pela Câmara de Ministros em 10 de novembro de 1993. Esse acordo
enfatizava a importância de uma forma nacional de educar os jovens e de valores
essenciais, como democracia, tolerância e eliminação da violência. Propunha três
objetivos principais: a padronização de livros didáticos de história e de civismo
e sua utilização obrigatória nas escolas libanesas; a proteção da educação privada;
e o fortalecimento do setor educacional público (ABOUCHEDID, 2002;
FRAYHA, 2003). Apesar das tentativas de unificação da educação, o governo
não conseguiu atingir seus objetivos nessa área, e não há diretrizes governamentais
claras sobre o ensino de religião, devido à natureza sensível da questão
(ABOUCHEDID, 2002). Além disso, as escolas privadas continuam a ensinar
religião de acordo com suas tradições sectárias.

Perspectiva histórica sobre a educação ocidental


na construção das nações no Oriente Médio
No Oriente Médio e no Norte da África, a educação sempre foi considerada
uma ferramenta importante para a reorganização e a reorientação das nações
islâmicas tradicionais, para que se tornassem parte do Ocidente. Aparentemente,
Reflexões sobre transições educacionais no Egito, no Líbano e na Turquia 309

no entanto, ao lado das principais reformas de ocidentalização realizadas no Egito,


na Turquia e no Líbano, persistiu e continua a existir nas escolas nacionais uma
forte tendência para a tradição islâmica. A educação formal é um tema de estudo
particularmente importante, uma vez que evidencia os múltiplos fatores envolvidos
nas negociações de ocidentalização e nacionalização em sociedades islâmicas
tradicionais.
A educação formal carrega uma tradição rica em cada um dos Estados-nação
examinados aqui, remontando aos primeiros tempos do Islã. No entanto, esses
Estados-nação também compartilham uma trajetória semelhante de reformas
educacionais de ocidentalização iniciadas nos séculos XVIII e XIX. Nos casos do
Egito e da Turquia, os estudantes eram enviados para estudar na Europa, com o
objetivo de fortalecer o poder militar nacional. Nos três países, foi estabelecido um
sistema escolar separado, tipicamente secular, baseado em modelos ocidentais
europeus, e enfatizando um currículo não islâmico; e no caso do Líbano, foi criado
um sistema de escolas missionárias estrangeiras que forneceu a estrutura básica do
atual sistema educacional libanês multissectário. Ao longo de muitos anos, as
tradições educacionais islâmicas já estabelecidas foram prejudicadas pelas escolas
ocidentais, cujos graduados constituíam novas elites, ativas no desenvolvimento
nacional de suas respectivas sociedades.
Uma vez que a educação formal passou a ser um transmissor fundamental das
novas culturas nacionais, o caráter educacional e o currículo compartilharam
elementos comuns nos três Estados-nação. No Egito e no Líbano, predominou a
influência francesa; no Império otomano islâmico, foram introduzidos escolas e
currículos ocidentais; e na República Turca, que emergiu em 1923 do extinto
Império otomano, foi estabelecido um sistema nacional de educação secular.
Entretanto as escolas islâmicas continuaram a funcionar, e só raramente foram
integradas aos sistemas ocidentalizados.
Embora compartilhem elementos comuns, os estudos de caso apresentados
acima evidenciam também diferentes padrões de desenvolvimento educacional.
Enquanto no Egito e na Turquia a reforma educacional foi introduzida pelo Estado
para melhorar o setor militar e criar uma administração estatal no estilo ocidental,
no Líbano a educação ocidentalizada foi introduzida pelos missionários. No Egito,
as reformas educacionais foram desiguais e inconsistentes. Os movimentos erráticos
de reforma criaram inúmeros problemas e conflitos entre organizações islâmicas
populares e as elites governamentais. Em decorrência, o Estado incluiu o Islã no
processo egípcio de construção da nação. Inversamente, quando Atatürk subiu ao
poder, em 1923, o Estado turco buscou ativamente a implementação de políticas
secularistas, e desde então um nacionalismo secular foi amplamente adotado. As
profundas diferenças sectárias do Líbano criaram grandes dificuldades nas tentativas
de unificação das comunidades religiosas, e não se desenvolveu um movimento
nacionalista representativo.
310 Ashkenazi

Em muitas sociedades do Oriente Médio, desenvolveu-se um sistema dual – e


no caso do Líbano, tríplice – de educação. Muitos governos não tiveram recursos,
ou mesmo incentivos, para deslanchar reformas educacionais, políticas, sociais ou
econômicas de grande alcance. No Líbano e no Egito, os mandatos francês e
britânico simplesmente mantiveram o status quo herdado aprofundando a distância
entre as classes de elite e a população em geral. Especificamente no caso da
educação, essa negligência em relação à incorporação da população mais ampla ao
sistema escolar contribuiu para problemas que ainda hoje estão presentes.
Embora a educação islâmica tradicional fosse a principal forma de escolarização
no Egito, na Turquia e no Líbano, essa situação mudou drasticamente com as
reformas educacionais ocidentais, frequentemente seculares. Em cada um desses
novos Estados-nação, a educação nacional desenvolveu-se paralelamente aos
movimentos nacionalistas, sendo ambos significativamente influenciados pelo
Ocidente. As novas elites orientadas para o Ocidente procuraram desenvolver
sistemas estatais nacionais, mas cada Estado-nação adaptou as reformas educacionais,
de forma a servir às suas necessidades específicas. A educação islâmica continuou a
existir nas escolas públicas e privadas, muitas vezes contrastando fortemente com as
reformas nacionais. Entretanto as aulas islâmicas foram ajustadas para acomodar-se
aos objetivos do Estado, e não para recriar a aprendizagem islâmica de outras épocas.
A expansão da educação nacional refletiu o equilíbrio singular encontrado em cada
nação entre as tradições islâmicas e as influências ocidentais, lançando luz sobre as
formas pelas quais o Islã manteve uma presença importante na sociedade, ao lado
das políticas oficiais – ou às vezes, a despeito delas.

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58

CRISTIANISMO, MODERNIDADES E CONHECIMENTO

Gerald Grace

Introdução
Nas notas de orientação para os colaboradores deste livro, os organizadores
afirmam que
[à] medida que a natureza dos contextos educacionais se altera na modernidade tardia, a questão
das culturas educacionais e da identidade pedagógica desassocia-se poderosamente das noções de
cidadania e vincula-se cada vez mais poderosamente à economia ou à religião. Assim sendo, a
contextualização dos tópicos relativos a cultura, conhecimento e pedagogias vem-se modificando
rapidamente, e a educação comparada do futuro precisa elaborar novas formas de analisar o tema
da identidade.

Este capítulo tentará avaliar essa afirmação com referência particular às culturas
educacionais e socioteológicas de duas formas de cristianismo.

Do conhecimento sagrado do cristianismo


ao conhecimento secular do mercado
Em “Pedagogy, control and identity” (1996), Basil Bernstein refletiu
teoricamente sobre a importância dessas questões, e é evidente que seus insights
oferecem um ponto de partida valioso para uma “educação comparada do futuro”.
Bernstein esboça uma transformação cultural fundamental, que pode ser discernida
na Europa (e internacionalmente), de uma concepção de conhecimento e de pedagogia
baseada na fé para uma concepção secular, baseada no mercado. Historicamente, o
conhecimento oficial, assim como o currículo e a pedagogia derivados dele na Europa
foram produtos da cultura religiosa cristã em busca de uma melhor compreensão de
Deus: “o Deus Cristão era um deus sobre o qual você tinha que pensar. Era um deus
não apenas para ser amado, mas para ser objeto de reflexão. E essa atitude criou uma
modalidade abstrata de discurso” (BERNSTEIN, 1996, p. 83).
O discurso educacional na universidade ou na “escola” medieval envolvia a
exploração da Palavra e a exploração do mundo: “Palavra e mundo juntos na
unidade do Cristianismo” (ibid).
O princípio cristão regulador fundamental do conhecimento e da pedagogia
era a existência de Deus e a encarnação de Jesus Cristo, cujas naturezas podiam ser
apreendidas, em parte, pelo estudo dos textos sagrados, e, em parte, pela exploração

313
314 Grace

do universo criado. Cultura, conhecimento e pedagogia estavam fortemente


enquadrados na revelação e na visão de mundo cristãs, tal como mediadas pela
Igreja católica na qualidade de instituição cristã dominante.
Na visão de Bernstein, esse princípio religioso regulador foi sendo
progressivamente substituído, durante o Renascimento e o Iluminismo, por um
princípio secular humanizador, que representa o estágio inicial da modernidade;
mas esse princípio está atualmente sendo substituído por um princípio
desumanizador de mercantilização do conhecimento e da pedagogia na
modernidade tardia. O argumento é elaborado nos seguintes termos:
Atualmente, há em toda a Europa [...] um novo princípio orientando a mais recente transição do
capitalismo. Os princípios do mercado e de seus gestores são cada vez mais os princípios que
orientam as políticas e práticas educacionais. A relevância para o mercado vem-se tornando o
principal critério orientador da seleção dos discursos [...] Esse movimento tem implicações profundas
desde a escola primária até a universidade. [...] Há um novo conceito de conhecimento e de sua
relação com aqueles que o criam e o utilizam. Esse novo conceito é genuinamente secular. O
conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer que possa oferecer vantagens e lucro. Na
verdade, o conhecimento não é mais como o dinheiro, é o dinheiro (BERNSTEIN, 1996, p. 87).

Paralelamente a esse processo de secularização, mercantilização e transformação


do conhecimento em produto nos contextos contemporâneos, ocorrem
transformações comparáveis no discurso pedagógico e na comunicação. A
pedagogia não é simplesmente um meio de transmissão do conhecimento. É
também um poderoso regulador da consciência e exerce uma influência formativa
sobre identidade pessoal.1 No currículo secularizado do mercado, a própria
pedagogia foi dominada por medidas de resultados em termos de competências e
habilidades específicas, por modelos de atuação de níveis de resultados
comparativos, e por critérios de eficiência e efetividade relacionados ao
fornecimento dos objetivos requeridos dos currículos prescritos. Resulta dessa
análise que a consciência e o senso de identidade e de valor pessoal dos estudantes
serão afetados de maneiras particulares pelo que Berstein descreveu como “um
discurso pedagógico virtualmente secular” (BERNSTEIN, 1996, p. 80).
Diante dessas mudanças profundas na contextualização da cultura, do
conhecimento e da pedagogia nas fases inicial e tardia da modernidade, é
importante examinar as respostas educacionais oferecidas pelo cristianismo, tanto
o católico quanto aquele originado da Reforma.2 O desenvolvimento da
secularização no mundo moderno, desde o Iluminismo até a atualidade, coloca um
desafio poderoso às agências da cultura sagrada. A secularização representa a
negação da validade do sagrado e das culturas educacionais associadas a ele, e a
tentativa de substituí-las por culturas lógicas, racionais, empíricas e científicas, nas

1. Para uma discussão detalhada, ver Bernstein (1996, p. 75-81).


2. Cristianismo originado da Reforma refere-se aqui a todas as Igrejas e a todos os grupos religiosos que se
desenvolveram desde a Reforma dos séculos XVI e XVII, e que são descritos de forma geral como protestantes.
Cristianismo, modernidades e conhecimento 315

quais não há lugar para a noção de transcendência. A secularização envolve uma


mudança importante nas relações culturais de poder em qualquer sociedade. Ao
modificar as relações intelectuais e culturais de poder, a secularização opera também
afetando a visão de mundo de muitos indivíduos, de forma que os conceitos
religiosos, os discursos religiosos e as sensibilidades religiosas tornam-se
simplesmente irrelevantes para a vida cotidiana. É o que Berger (1973) chamou de
“uma secularização da consciência”.

A Reforma e a Contrarreforma na educação


Em “The consequences of modernity”, Giddens (1991) argumentou que a
secularização teve consequências significativas para a compreensão do que é
conhecimento: “a cosmologia religiosa é suplantada pelo conhecimento organizado
reflexivamente, guiado pela observação empírica e pelo pensamento lógico, e
focalizado na tecnologia material e em códigos socialmente aplicados” (GIDDENS,
1991, p. 109).
O que essa análise desconsidera é que, embora tenha ocorrido (no Ocidente) o
que poderia ser chamado de reforma secular na cultura do conhecimento, da
pedagogia e dos processos educacionais, houve, ao mesmo tempo, uma
contrarreforma religiosa na qual o cristianismo católico foi proeminente.
Comentando a natureza da reforma secular atual (a segunda reforma), Bauman
(2000) argumenta que sua ideia central é a de direitos humanos, especialmente tal
como expressos na liberdade de escolha em relação a crenças, valores e ações. Esse
estágio de modernidade tardia, ou início da pós-modernidade, é marcado por uma
forma acentuada de individualismo autônomo. Uma ideia poderosa é que a
identidade de uma pessoa pode ser construída com base em quaisquer elementos
culturais que o indivíduo escolha – um constructo que Gellner (1996) denominou
“homem (ou mulher) modular”.
As agências educacionais cristãs (e as de outras crenças) existem na modernidade
como parte de uma contrarreforma que relaciona a formação da pessoa com
crenças, valores e princípios dados pela religião, e não com um processo modular
inteiramente autodeterminado.
Em termos de formação de identidade, o Iluminismo teve por objetivo a
substituição do conceito de crente religioso e membro da Igreja pelo conceito de
cidadão racional e participante cívico. Na modernidade tardia, segundo
Bernstein, o que se busca é a transformação ideológica de cidadão em consumidor
e ator do mercado.
Parece claro que, o que quer que represente para além disso, a globalização
envolve uma tentativa de mercantilização das culturas e das sociedades ao redor do
mundo, com implicações desafiadoras para os sistemas educacionais. Esses desafios
são particularmente sérios para os sistemas educacionais baseados na fé em contraste
com sistemas seculares.
316 Grace

Os desafios da fase inicial da modernidade:


as respostas educacionais do cristianismo católico
Os desafios da fase inicial da modernidade foram criados para a Igreja católica
pelas reformas protestantes dos séculos XVI e XVII, e pelos efeitos culturais do
Iluminismo nos séculos XVIII e XIX. As reformas protestantes ameaçaram o controle
exercido pela Igreja sobre a cultura, o conhecimento e a pedagogia, e sua hegemonia
nos domínios religioso e espiritual. O Iluminismo e suas consequências ameaçaram
mais radicalmente a própria ideia do Deus Cristão e da cultura do sagrado.
Em seu estudo clássico, “The evolution of educational thought” (1938), Émile
Durkheim caracterizou a Companhia de Jesus como a principal agência católica
no enfrentamento dos desafios tanto do protestantismo quanto da secularidade na
fase inicial da modernidade. Por essa razão, Durkheim dedica três capítulos de seu
livro a um exame detalhado da cultura educacional jesuítica – currículo, pedagogia
e critérios de avaliação. Durkheim reconheceu a importância marcante dos jesuítas
na modelagem e na formação da pedagogia e dos currículos católicos na Europa.
Sua intenção era criar um envolvimento cristão intelectualmente estimulante com
os clássicos, com teologia, filosofia, história, literatura, música, arte e teatro. A
ênfase em retórica, discussão e debate destinava-se a produzir o estudante jesuíta
ideal que se tornaria um defensor seguro da fé. Os estudos humanistas da educação
jesuíta tinham o objetivo de criar intelectuais e homens públicos católicos cuja
sabedoria confirmasse as verdades da fé católica, e que pudessem articular essas
verdades de forma confiante nas interações com protestantes, secularistas e ateus.
Embora os alunos dos jesuítas, nas palavras de Durkheim, “vivessem em meio a
um turbilhão de tarefas escritas” (DURKHEIM, 1938, p. 255), o propósito último
dessas tarefas, qualquer que fosse seu tema, era iluminar os desígnios de Deus para
o mundo criado, e construir no aluno um sentimento de estar servindo a esses
grandes desígnios. Era uma educação que visava gerar uma vocação para servir aos
outros – no melhor dos casos, por meio do compromisso com a vida religiosa ou
clerical, ou atuando pelo bem comum em diversas profissões laicas.
O ano de 1999 marcou o 400o aniversário da publicação do Ratio Studiorum3.
Em um volume comemorativo, publicado em 2000, diversos estudiosos do
jesuitismo refletiram sobre sua importância, seu impacto e seu futuro diante de
novos desafios.4 Ficou entendido que a influência da Ratio e sua cultura educacional
disseminaram-se muito além das escolas e faculdades jesuíticas. Muitas ordens
religiosas posteriores com missões educacionais foram influenciadas, em maior ou
menor grau, pela experiência educacional jesuítica. O Instituto da Abençoada

3. NT: Plano de ensino e metodologia da educação jesuítica.


4. Ver Duminuco (2000), especialmente o Apêndice A: “The characteristics of Jesuit education” e “Ignatian
pedagogy: a practical approach” (p. 162-275). Ver também Apêndice 2 (p. 276-1291), “Ignatian pedagogy
today”, que inclui a afirmação: “a meta da educação jesuítica é a formação de homens e mulheres para os
outros, pessoas dotadas de competência, consciência e comprometimento compassivo” (p. 277).
Cristianismo, modernidades e conhecimento 317

Virgem Maria, a Sociedade do Sagrado Coração e outras ordens religiosas foram


diretamente afetadas pela metodologia educacional jesuítica.5 No entanto, o maior
impacto dos jesuítas foi provavelmente o exemplo que ofereceram como ordem
religiosa ativa e encarregada de uma missão educacional, o que estabeleceu o padrão
da resposta da Igreja católica aos desafios do início da modernidade. Os séculos
seguintes testemunharam uma multiplicação de novas ordens religiosas e
irmandades de freis e freiras dedicadas à vocação educacional. A resposta católica
aos desafios do início da modernidade foi gerar organizações de homens e mulheres
especialmente dedicadas à tarefa da educação católica. O conhecimento
fundamental a ser transmitido eram as verdades e doutrinas da fé católica, e a
pedagogia dominante era a do catecismo. Ao mesmo tempo, havia uma forte ênfase
em formas tradicionais de realização acadêmica, formação moral e um regime
disciplinar rígido. As ordens religiosas católicas fundadas no início da modernidade
eram, de fato, missionárias da educação contra o duplo perigo do protestantismo
e da secularidade. Seus regimes educacionais destinavam-se a trabalhar em todos
os níveis da sociedade, das elites governantes às massas rurais e urbanas. A
amplitude de suas operações estendia-se por todo o mundo, uma vez que seguiam
o comando de seu Fundador: “Ide e ensinai a todas as nações”.6
No centro dessa grande resposta educacional católica aos desafios do início da
modernidade estavam conceitos de certeza doutrinária e de chamado vocacional.
Contra o questionamento da secularidade, a existência de Deus precisava ser
afirmada e provada de diversas formas. Contra as inovações do protestantismo, era
reafirmada a eterna validade do catolicismo e da Igreja católica. Permeando todo o
sistema, encontrava-se o princípio regulador “encontrar sua vocação”. A educação
católica era o meio pelo qual os jovens podiam descobrir para o que estavam sendo
chamados por Deus: encontrar seu destino vocacional a serviço de Deus.
Esse destino podia ser o da parentalidade católica e de ocupações laicas de
vários tipos (sendo fortemente favorecidas as profissões ligadas ao serviço público)
ou a vocação última de servir a Deus na vida clerical ou religiosa. Uma vez que, a
essa época, muitos professores católicos eram membros de ordens religiosas, o
conceito de vocação a serviço de Deus estava materializado cotidianamente na
vida escolar dos alunos de todas as idades. Nesse sentido, o apelo pela vocação
materializava-se – “tornava-se carne” – por meio da presença e da conduta dos
professores. Tudo o mais que compunha o sistema – o currículo acadêmico, a
formação moral, os vínculos sociais e comunitários – existia para facilitar o
encontro do aluno com sua vocação aprovada a serviço de Deus (e da Igreja
católica). Essa é a essência de um sistema educacional baseado em uma fé cristã –
ou seja, a busca da natureza de Deus revelada especialmente na pessoa de Cristo

5. Para uma discussão detalhada, ver Rosemary de Julio: “The response of Mary Ward and Madeleine Sophie
Barat to the Ratio Studiorum” (DUMINUCO, 2000, p. 107-126).
6. Para um estudo importante sobre esse grande empreendimento missionário, ver Murphy (2000).
318 Grace

e a busca dos propósitos de Deus na vocação individual dos alunos. Esse sistema,
como argumentou Bernstein (1996), enfrentou desafios consideráveis nas
transformações culturais da modernidade tardia.

Os desafios da modernidade tardia:


as respostas educacionais do cristianismo católico
Na modernidade tardia, a Igreja católica enfrentou uma situação mundial
caracterizada por uma cultura de secularismo e materialismo mais penetrante do
que jamais havia encontrado antes. Enfrentou, particularmente, um culto
internacional de eterno consumismo propagado pelas inúmeras agências do
capitalismo global, e uma situação internacional marcada por divisões mais
acentuadas entre países ricos e pobres.
Sob a inspiração do Papa João XXIII, a própria Igreja católica passou por uma
tentativa de transformação espiritual, religiosa, moral e social nos documentos do
Concílio Vaticano II (1962-1965). Como apontou Adrian Hastings: “[...] não há
dúvida de que o Concílio Vaticano II foi o evento eclesiástico mais importante do
século [...] tão grande foi a transformação do caráter daquela que é, de longe, a
maior comunhão da cristandade” (HASTINGS, 1991, p. 525).
O novo espírito do Concílio Vaticano II tinha um potencial consideravelmente
radical, que envolvia tentativas de desenvolver uma nova concepção sobre a Igreja,
não apenas clerical, mas como constituída pelo povo de Deus; um movimento de
distanciamento do comando papal na direção de maior autoridade dos colegiados;
um novo princípio de abertura e diálogo com o mundo, com outras denominações
cristãs, com outras fés religiosas e com todas as pessoas de boa vontade,
independentemente da fé; um corpo renovado de ensinamentos sociais católicos,
centrado em “uma opção preferencial pelos pobres”; e uma nova concepção de
pecado, não apenas como falhas individuais, mas também como falhas sociais e
estruturais. Uma nova postura sociopolítica nas relações internacionais envolveu
um movimento de distanciamento das denúncias tradicionais contra os regimes
marxistas e comunistas (como ateus e opressores) na direção de uma crítica mais
abrangente das estruturas de opressão e exploração – “estruturas de pecado”,
constituídas pelo capitalismo global, pelas relações raciais (apartheid na África do
Sul), discerníveis em várias partes do mundo – por exemplo, na América Latina.
Em 1977, a Sagrada Congregação pela Educação Católica divulgou, em Roma,
um documento de base – “A escola católica” –, que expressava enfaticamente o
novo espírito que se esperava viesse a caracterizar internacionalmente a educação
católica. Esse documento inaugurou uma concepção pós-Concílio Vaticano II sobre
o que deveria ser uma educação cristã católica na era da modernidade tardia. Em
uma educação comparada do futuro, qualquer tentativa de avaliação dos sistemas
escolares católicos, do ponto de vista de valores, conhecimentos, pedagogia,
identidade e relações sociais, precisa utilizar como referencial teórico esse
Cristianismo, modernidades e conhecimento 319

documento de base da educação católica contemporânea. Uma vez que esses


princípios ainda são pouco compreendidos no mundo acadêmico secular, é preciso
descrevê-los aqui com algum detalhe.

Princípios básicos para a educação


católica na era da modernidade tardia
Sobre o papel diferenciado e necessário da escola católica

[Há uma] necessidade premente de garantir a presença de uma mentalidade cristã na sociedade
atual, marcada, entre outras coisas, pelo pluralismo cultural. Pois é o pensamento cristão que
constitui um critério sólido de julgamento em meio a conceitos e comportamentos conflitantes:
a referência a Jesus Cristo. Ensina [a diferenciar] os valores que enobrecem e aqueles que degradam
(SACRED CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977).

O pluralismo cultural leva a Igreja a reafirmar sua missão educacional, para


garantir uma formação sólida do caráter.
Seus filhos serão capazes então de resistir à influência debilitante do relativismo e de viver de acordo
com seu batismo. Por esse motivo, a Igreja é chamada a mobilizar seus recursos educacionais em
face do materialismo, da fragmentação e da tecnocracia da sociedade contemporânea (SACRED
CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977, p. 15-16).7

Essa seção do documento enfatizou a importância do papel crítico da educação


católica na modernidade tardia. O papel da escola católica era contracultural.
Declarações posteriores de Roma sugeriram que a modernidade tinha-se
associado a uma busca irrestrita pelo lucro e pela inovação tecnológica, em
detrimento da formação espiritual e moral das pessoas. As escolas católicas em todo
o mundo foram chamadas a uma atuação contracultural em relação a essas
tendências.
Escolas católicas e formação humana

A escola não é apenas um lugar onde se recebe uma seleção de valores intelectuais, e sim um lugar
onde a pessoa é apresentada a um conjunto de valores que são efetivamente vividos [...] Cristo é
a base de todo o empreendimento educacional em uma escola católica [...] e a escola católica visa
formar no cristão8 as virtudes particulares que lhe permitirão viver uma nova vida em Cristo
(SACRED CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977, p. 29-33).

7. Esse foi um tema constante dos pronunciamentos subsequentes do Vaticano sobre educação católica na
modernidade tardia: “muitos jovens encontram-se em condições de instabilidade radical [...] Vivem em um
universo unidimensional no qual o único critério é a utilidade prática, e o único valor é o progresso econômico
e tecnológico. Não poucos [...], tentando escapar da solidão, voltam-se para o álcool, as drogas, o erótico, o
exótico. A educação cristã defronta-se com o enorme desafio de ajudar esses jovens a descobrir algo de valor
em sua vida” (VATICAN CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1988, p. 8-10).
8. Infelizmente, o espírito do Concílio Vaticano II não levou à utilização de linguagem de gênero inclusiva nos
documentos da Igreja.
320 Grace

Os educadores católicos devem resistir ao reducionismo da educação entendida


apenas como realização acadêmica. A formação de valores e virtudes é crucial para
o desenvolvimento humano no mundo contemporâneo.
Contra os inúmeros modelos dramáticos e glamorosos proporcionados pela
cultura da mídia moderna que permeia o mundo, as escolas católicas são
encorajadas a continuar a projetar para os jovens católicos a pessoa de Cristo como
o guia mais perfeito para a vida e a formação humana.
Integração entre a fé e a vida

A escola católica tem, como dever específico, a completa formação cristã de seus alunos, e hoje
essa tarefa é particularmente importante devido às inadequações da família e da sociedade [...]
Os jovens devem ser ensinados a superar seu individualismo e a descobrir sua vocação específica
à luz da fé. O próprio padrão de vida cristão leva-os ao compromisso de servir a Deus [...] e de
tornar o mundo um lugar melhor para viver (SACRED CONGREGATION FOR CATHOLIC
EDUCATION, 1977, p. 37).

Mais uma vez, é reafirmado o importante papel da escola católica no sentido


de ajudar os jovens a encontrar sua vocação concedida por Deus. A geração de uma
cultura da vocação é considerada ainda mais importante hoje, dadas as tendências
contemporâneas a pensar apenas em termos de bons empregos, em detrimento das
noções de chamado e de vocação.
Espera-se que as escolas católicas desenvolvam culturas educacionais nas quais
a fé, a razão e a vida sejam reunidas em uma relação integrada como uma
experiência educacional holística. Nessa perspectiva, a compreensão de conteúdos
acadêmicos específicos e de possibilidades vocacionais particulares deve ser
firmemente enquadrada na perspectiva da Fé.
Sobre o conhecimento

A educação não é oferecida com o objetivo de ganhar poder, mas como uma ajuda na direção da
compreensão mais completa e da comunhão com o homem, os acontecimentos e as coisas. O
conhecimento não deve ser considerado como meio de prosperidade e sucesso material, mas
como um chamado para servir e para ser responsável pelos outros (SACRED
CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977, p. 43).

Os autores de “A escola católica” viam um mundo exterior no qual o próprio


conhecimento estava sendo transformado em um produto de mercado associado ao
poder, à riqueza e ao status pessoal. Seu argumento nessa seção era que o
conhecimento educacional católico não deve ser visto apenas em termos do ganho
de poder pessoal dos indivíduos, mas sim como um ganho de poder para propósitos
sociais. É preciso resistir à mercantilização do conhecimento na modernidade tardia.
As escolas católicas são convocadas a resistir a uma cultura individualista de
sucesso e a uma concepção mercantil de conhecimento, mantendo-se firmes na
concepção tradicional de que o conhecimento implica servir a um bem maior.
Cristianismo, modernidades e conhecimento 321

Sobre professores como testemunhas

A escola católica não depende tanto de conteúdos ou metodologia quanto das pessoas que nela
trabalham. Em grande parte, depende de os professores determinarem até que ponto a mensagem
cristã é transmitida por meio da educação [...] A nobreza da tarefa para a qual os professores
foram chamados exige que, imitando Cristo [...] eles revelem a mensagem cristã não apenas pela
palavra, mas também por meio de cada gesto de seu comportamento.9 Isso é que faz a diferença
entre uma escola cuja educação é permeada pelo espírito cristão e aquela em que a religião é
considerada apenas como um tema acadêmico semelhante a qualquer outro (SACRED
CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977, p. 36).

Os professores laicos foram encorajados a seguir o exemplo de seus


predecessores, os religiosos, como testemunhas de Cristo. A transmissão do carisma
da congregação religiosa a seus sucessores laicos seria essencial para a preservação
dos papéis diferenciados das escolas católicas na sociedade.
Na verdade, a Igreja tentava estimular os líderes e os professores católicos laicos,
que constituíam agora a maior parte das equipes nas escolas, a tornar-se herdeiros
e modelos do carisma das ordens religiosas que estavam em decadência na área da
educação.
Escolas católicas e justiça social

Uma vez que é motivada pelo ideal cristão, a escola católica é particularmente sensível ao apelo
de todas as partes do mundo por uma sociedade mais justa... Em alguns países, devido a leis e
condições econômicas locais, a escola católica corre o risco de dar um testemunho ambíguo ao
permitir que a maioria de seus alunos sejam os filhos de famílias ricas [...] Essa situação preocupa
muito os responsáveis pela educação católica, porque, em primeiro lugar e acima de tudo, a Igreja
oferece seus serviços educacionais aos pobres, aos que não têm auxílio ou afeto da família, ou
àqueles que estão distante da fé (SACRED CONGREGATION FOR CATHOLIC
EDUCATION, 1977, p. 44-45).10

Há evidências aqui de uma preocupação de que um número excessivo de escolas


católicas no mundo estivesse a serviço dos ricos, e não dos pobres. Um dos perigos
para a educação católica na modernidade tardia é que, apesar de uma retórica de
atendimento aos pobres, talvez, na prática, não esteja cumprindo esse princípio básico.
O atendimento a estudantes da elite nas escolas católicas baseou-se
historicamente na premissa de que os futuros líderes da sociedade poderiam ser
convertidos ao serviço dos pobres, por meio de ensinamentos religiosos e morais.
O Concílio Vaticano II conclamou mais envolvimento direto com a educação
dos pobres e dos desassistidos, por meio do compromisso com uma opção
preferencial pelos pobres na escolarização.

9. Essa ênfase na importância do testemunho na formação educacional católica foi ainda mais fortalecida pela
afirmação muito citada (em contextos católicos) do Papa Paulo VI: “atualmente, os estudantes não escutam
seriamente os professores, mas sim as testemunhas; e quando escutam os professores, é porque estes são
testemunhas” (EVANGELII NUNTIANDI, 1975 apud DUMINUCO, 2000, p. 285).
10. Para outras discussões, ver Grace (2003).
322 Grace

Escolas católicas e o bem comum

A comunidade escolar católica é uma fonte insubstituível de serviços [...] Atualmente, vemos um
mundo que clama por solidariedade e, no entanto, vivencia a ascensão de novas formas de
individualismo. A sociedade pode observar na escola católica que é possível criar comunidades
genuínas a partir de um esforço comum para o bem comum (SACRED CONGREGATION
FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977, p. 47).11

Os autores de “A escola católica” viam uma modernidade tardia marcada pelo


crescimento de um individualismo aquisitivo e competitivo, estimulado pelo
capitalismo global. Isso foi uma tentativa de manter as escolas católicas a serviço
da solidariedade social e do bem comum.
A influência ideológica da Nova Direita na política e na economia tornava-
se evidente para os líderes da Igreja, e considerava-se necessário rearticular e
reenfatizar o ensinamento social católico sobre o bem comum e sua relação com
a educação.
Escolas católicas e abertura

Na certeza de que o espírito opera em todas as pessoas, a escola católica se oferece a todos, inclusive
aos não cristãos, com todas as suas metas e todos os seus meios distintos (SACRED
CONGREGATION FOR CATHOLIC EDUCATION, 1977, p. 66). 12

Contrariando pontos de vista amplamente disseminados de que as escolas


católicas atendiam apenas aos católicos, a Congregação pela Educação Católica
tornou explícito que as escolas católicas estavam a serviço de todos que desejassem
ingressar (dentro dos limites de vagas disponíveis). O conceito de escola de gueto
foi substituído pelo de uma escola a serviço do mundo.

Os papéis das escolas católicas na modernidade tardia


Essa nova abertura para o mundo estava muito presente no espírito do Concílio
Vaticano II. Entretanto católicos conservadores temiam o potencial desse acesso
universal como fator de diluição do ethos e da cultura das escolas católicas.
Essa agenda explícita e radical para a transformação da educação católica em
todo o mundo foi submetida à avaliação dos Congressos Episcopais, isto é, os
Congressos de Bispos Católicos em várias partes do mundo, que são responsáveis
pela administração, pelas políticas e pelas práticas de seus sistemas educacionais
específicos.

11. A Conferência dos Bispos Católicos da Inglaterra e do País de Gales reiterou os objetivos do bem comum do
ensino social e educacional católico em duas publicações, em 1996 e 1997.
12. As escolas católicas em contextos missionários, tais como África, Oriente Médio e Extremo Oriente, Índia
etc., sempre estiveram abertas a pessoas de outros credos. Esse desenvolvimento radical de 1977 estendeu
internacionalmente essa abertura a todos os contextos.
Cristianismo, modernidades e conhecimento 323

Solicitamos a cada congresso episcopal que considere e desenvolva estes princípios que devem
inspirar a escola católica, e que os traduzam em programas concretos que atendam às reais
necessidades dos sistemas educacionais que operam em seus países (CATHOLIC BISHOPS’
CONFERENCE OF ENGLAND AND WALES, 1996, p. 71-72).

Parece provável que os princípios de reforma do documento “A escola católica”


tenham sido recebidos com entusiasmo em algumas sociedades, com cautela em
outras, e que tenham sido virtualmente ignorados em contextos conservadores.
Na melhor das hipóteses, a versão de educação católica cristã pós-Concílio
Vaticano II será caracterizada por sua postura contracultural em relação às
características da modernidade tardia. Contra a confusão de modelos para a
juventude, as escolas oferecerão a pessoa de Cristo; contra o consumismo
hegemônico do capitalismo global, as escolas tentarão construir uma espiritualidade
voltada para o serviço e para a vocação atribuída por Deus; contra uma visão
reducionista de conhecimento como mercadoria e de pedagogia como uma
atividade técnica, as escolas tentarão apegar-se a valores educacionais humanistas e
a uma experiência de aprendizagem dialógica para os alunos. A escola ideal pós-
Concílio Vaticano II será um agente do avanço da justiça social e do bem comum,
e colocará seus serviços à disposição dos pobres e dos menos favorecidos e daqueles
que estão distantes da fé.13
Essa é a nova maneira de ver o papel do sistema católico de educação que
emergiu das deliberações do Concílio Vaticano II. No entanto, a questão que se
coloca para a pesquisa futura em larga escala sobre educação comparada é: até que
ponto essa concepção ideal de educação católica existe na prática, e não apenas nos
documentos e no discurso formal da Igreja?
Até que ponto os Congressos de Bispos em todo o mundo consideraram
seriamente essa visão radical e procuraram transformar seus sistemas educacionais
de forma a enfrentar os desafios da modernidade tardia, utilizando os princípios
do documento de 1977?
Uma vez que o sistema católico de educação é o maior sistema mundial de
escolarização baseada na fé, com 120 mil escolas que atendem a quase 50 milhões
de estudantes (PITTAU, 2000), é digna de nota a escassez de pesquisas e a pouca
atenção acadêmica que esse sistema tem recebido por parte das diversas áreas de
estudos educacionais, entre os quais os estudos de educação comparada.14 Isso parece
decorrer do que Gallagher denominou “marginalização secular” na cultura
intelectual da modernidade tardia: “[...] especialmente no mundo acadêmico e na
mídia, reina uma cultura secular, do que resulta que a religião é sutilmente ignorada,
como sendo um fenômeno de pouca importância” (GALLAGHER, 1997, p. 23).

13. Para alguns estudos que tentaram avaliar o impacto das reformas do Concílio Vaticano II sobre a prática de
educação católica, ver Arthur (1995), Bryk et al. (1993), Flynn (1993), Grace (2002), Greeley (1998),
McLaughlin et al. (1996), O’Keefe (2000), Sullivan (2000) e Youniss et al. (2000 a, b).
14. Uma tentativa de remediar essa situação é feita na publicação “International handbook of Catholic education”,
organizada por Gerald Grace e Joseph O’Keefe, S. J., publicada em 2009.
324 Grace

Como afirmam os organizadores deste livro, um dos paradoxos ou uma das


contradições da conjuntura atual é que a educação vem sendo, por um lado, mais
estreitamente associada à economia do capitalismo global, mas por outro, também
a formas ressurgentes de religião.15 O estudo das maneiras pelas quais essas
profundas contradições nas culturas de escolarização se manifestarão no futuro é
um projeto fundamental de pesquisa para a educação comparada. O destino da
educação católica pós-Concílio Vaticano II constitui um rico campo de investigação
como parte desse projeto mais amplo.

As respostas educacionais do cristianismo originado na Reforma


O espaço disponível aqui só permite a consideração de uma das inúmeras
variedades de cristianismo pós-Reforma no contexto da modernidade tardia: o
cristianismo evangélico. Karen Armstrong lembra que os eventos recentes tenderam
a focalizar as preocupações de todos com as noções do fundamentalismo islâmico,
o que, como aponta, é uma visão limitada, porque
[...] o fundamentalismo é um fato global e que se manifesta em todas as grandes religiões em
resposta aos problemas de nossa modernidade. Há judaísmo fundamentalista, cristianismo
fundamentalista, hinduísmo fundamentalista, budismo fundamentalista (ARMSTRONG,
2001a, p. 140).

Entre as formas de fundamentalismo religioso, argumenta Armstrong, o do


cristianismo evangélico manifestou-se inicialmente no mundo cristão, nos Estados
Unidos, no início do século XX. Embora haja diferentes modalidades de
cristianismo evangélico, o que une todas elas é a ênfase nas verdades literais da
Bíblia como palavra de Deus; a crença no ato de salvação pessoal como encontro
com Cristo, que não depende da mediação de um padre ou de uma Igreja
institucional; uma visão da sociedade secular da modernidade tardia como hostil à
verdadeira religião e como espiritual e moralmente corrupta; e a crença de que
crianças e jovens devem ser educados em contextos de escolarização que os isolem
do decadente mundo exterior.
Armstrong relata que
[...] durante a década de 1970 (nos Estados Unidos), foi inédito o número de pais que
transferiram seus filhos de escolas públicas para instituições cristãs nas quais poderiam ser
instruídos nos valores cristãos [...] e nas quais toda a aprendizagem era realizada em um contexto
bíblico. Entre 1965 e 1983, as matrículas nessas escolas evangélicas aumentaram seis vezes, e
cerca de 100 mil crianças fundamentalistas eram educadas em casa (ARMSTRONG, 2001b,
p. 269-270).16

15. Isso foi reconhecido também por Berstein: “pela primeira vez, produzimos um discurso e uma cultura pedagógicos
virtualmente seculares e, ao mesmo tempo, uma revivescência do sagrado” (BERSTEIN, 1996, p. 80).
16. Walford (2001) examinou o desenvolvimento de escolas cristãs evangélicas na Inglaterra e na Holanda.
Cristianismo, modernidades e conhecimento 325

Em uma época em que o sistema católico de educação buscava encontrar uma


nova atitude de abertura e diálogo em relação ao mundo exterior,
comprometendo-se com a luta pela justiça social e pelo bem comum, a rede escolar
evangélica adotou a postura de isolar seus jovens do mundo.17 Entretanto,
enquanto os jovens da comunidade precisavam de proteção, entendia-se que o
dever dos evangélicos adultos era lutar contra as forças da corrupção, o que poderia
ser feito por meio de mobilização política e pressão de grupos que forçariam o
establishment liberal a fazer concessões políticas, educacionais e sociais às demandas
do cristianismo evangélico.
Na visão dos cristãos evangélicos, uma nova religião – o humanismo secular –
estava no poder nos Estados Unidos. Essa falsa religião da modernidade tardia
deveria ser não apenas denunciada, mas enfrentada ativamente pelas políticas
nacionais, estatais e comunitárias. Na qualidade de líder fundamentalista nos
Estados Unidos, Pat Robertson proclamou: “temos votos suficientes para governar
este país”.18
As consequências educacionais dos tipos fundamentalistas de cristianismo
evangélico nos Estados Unidos foram examinadas por Michael Apple (2001) em
seu importante livro “Educating the right way: markets, standards, god and
inequality”. O foco específico de Apple é o poder crescente da Direita Cristã
(evangélicos) e a “influência crescente do conservadorismo religioso autoritário e
populista na educação” (APPLE, 2001, p. 27). A agenda da Direita Cristã inclui
tentativas de influenciar políticas “trazendo Deus de volta para as escolas”,
elaborando pontos de vista específicos sobre gênero, sexualidade e família, e
modelando ideias sobre o que deve ser entendido como conhecimento legítimo
nas escolas. Não havendo um currículo nacional dos Estados Unidos, os evangélicos
conseguiram fazer pressão sobre editores de livros didáticos e sobre técnicos do
sistema estatal de educação. Sob essa perspectiva, as disciplinas do currículo e seu
conteúdo devem ser legitimados por uma relação clara com a Bíblia como quadro
de referência de todo o conhecimento. Em especial, a ciência da criação (derivada
do relato bíblico) deve ter pelo menos o mesmo espaço no currículo que tem a
ciência da evolução (derivada de fontes darwinianas).
A agenda do cristianismo evangélico conservador é poderosa nos Estados
Unidos devido ao envolvimento de seus ativistas, a seus volumosos recursos
financeiros e à sua utilização criativa e extensiva da mídia de massa para difundir
suas mensagens. Ao apontar esse fato, Apple (2001) destaca o potencial
internacional da missão dos educadores e pregadores cristãos evangélicos. Os
evangélicos atuam na América Latina, na Europa Oriental, na Rússia, na África,
na Índia e em muitas regiões da Ásia. Se a Igreja católica respondeu aos desafios

17. Deve-se notar, entretanto, que as escolas católicas pré-Concílio Vaticano II também se isolavam do mundo
externo, que era considerado um corruptor potencial da fé.
18. Citado em Armstrong (2001b, p. 267).
326 Grace

do início da modernidade por meio da criação e da expansão de muitas ordens


religiosas com missão educacional, pode-se observar que o cristianismo evangélico
está respondendo à modernidade tardia enviando seus missionários educadores e
religiosos para todas as partes do mundo. O poder do cristianismo evangélico na
educação não é um fenômeno apenas norte-americano; tem implicações mundiais
para a priorização de conhecimentos e de processos pedagógicos em muitas
sociedades. A ironia histórica é que a Igreja católica está vivendo atualmente uma
redução significativa em seus quadros religiosos19, ao passo que os missionários
evangélicos multiplicam-se rapidamente.

Agendas para a pesquisa em educação comparada


Esta análise já sugeriu alguns temas importantes para pesquisas futuras.
Para o cristianismo católico, as manifestações práticas da versão da educação
católica pós-Concílio Vaticano II demandam um exame detalhado nas várias regiões
do mundo. É necessário um foco especial na natureza do conhecimento elaborado
nas escolas católicas contemporâneas. Em que sentido esse conhecimento é
distintivamente católico em termos de conteúdo, pedagogia e avaliação? Se o
professor como testemunha é um aspecto crucial de uma formação educacional
católica, até que ponto os professores das escolas contemporâneas vêm cumprindo
esse papel? Terá a pedagogia católica no ensino de religião se distanciado
substancialmente de uma pedagogia do catecismo para uma pedagogia do diálogo
a respeito de questões religiosas e espirituais? Será possível que o conceito da
educação católica de encontro da própria vocação atribuída por Deus se tenha
debilitado na modernidade tardia, como uma consequência complexa da
secularização, da mercantilização e da redução drástica de professores que fizeram
votos religiosos como modelos vivos de vocação?
Para o cristianismo evangélico, são necessários estudos detalhados sobre o
impacto que vem exercendo sobre a seleção e o controle do currículo em diversos
países. Estará havendo uma ressurgência de conhecimento e pedagogia validados
pela Bíblia? E o que isso significa em termos de estrutura e processo curricular?
Quais os efeitos do número crescente de escolas evangélicas sobre outros sistemas
escolares? As culturas educacionais do cristianismo evangélico têm um efeito
essencialmente conservador e individualizante sobre os estudantes, como sugere
Apple (2001), ou os encaminha para um comprometimento com o trabalho
missionário, para o bem das comunidades? Em regiões específicas, como a América
Latina, será possível que as escolas evangélicas estejam começando a afastar as

19. A gravidade da situação foi reconhecida na publicação da Sagrada Congregação pela Educação Católica, “Lay
Catholics in schools: witness to faith” (1982). Nesse documento é expressa a esperança de que o carisma e o
sentimento de vocação das ordens religiosas educadoras em processo de declínio fossem reconstituídos em
seus sucessores laicos.
Cristianismo, modernidades e conhecimento 327

culturas educacionais tradicionais do catolicismo, ou essas duas agências estão


atuando juntas para fortalecer a educação cristã naquele continente?20
A recomendação de Jesus Cristo a seus discípulos – “Ide, e ensinai a todas as
nações” –, resultou, nos séculos seguintes, em uma extensa rede cristã de escolas,
faculdades e universidades em quase todos os países. Neste capítulo, devido a
limitações de espaço, só foram discutidas as escolas de tradição católica e evangélica.
Se acrescentarmos a estas as escolas de outras comunidades cristãs – como luteranos,
anglicanos, ortodoxos, metodistas, batistas e outras Igrejas surgidas a partir da
Reforma –, torna-se evidente que a rede de educação cristã ainda é uma força
poderosa que deve ser levada em consideração. É também um campo importante
de pesquisa futura para acadêmicos da educação comparada e de outras disciplinas
educacionais.21

Reforma e contrarreforma na educação: um resultado incerto


Este capítulo utilizou como referencial teórico a análise de Basil Bernstein
(1996), que sugere que, na modernidade tardia, esteja ocorrendo no Ocidente uma
grande reforma secular na educação.
Essa reforma envolve a hegemonia potencial de um conceito que transforma o
conhecimento em produto, um formato mercantilizado de currículo, um discurso
pedagógico virtualmente secular e uma concepção de educação inteiramente voltada
para a busca de vantagens materiais e de mobilidade social. Embora tenha observado
a ocorrência paralela de uma revitalização do sagrado, Bernstein não se deteve sobre
a natureza do que pode ser chamado de contrarreforma religiosa na educação.
Este capítulo tentou explorar a natureza da contrarreforma religiosa cristã a
esses desenvolvimentos na educação. No espírito do Concílio Vaticano II, a
educação cristã católica formulou um guia e um conjunto de princípios que, se
implementados, representam uma agenda poderosa e diferenciada em oposição
àquela que é proposta para a educação em todo o mundo pelas ideologias
econômicas.22
A educação do cristianismo evangélico está envolvida em uma contrarreforma mais
complexa, que resiste à secularização por meio de uma forte asserção da centralidade
da verdade bíblica na experiência educacional, e de padrões morais absolutos derivados
dessa mesma fonte, enquanto, ao mesmo tempo, parece mais flexível em relação às
estruturas e ideologias econômicas e a seu impacto sobre a educação.

20. Para uma discussão sobre o impacto da evangelização protestante na América Latina, ver Cook (1994). Ver
especialmente os Capítulos 5 (Berg e Pretiz) e 20 (Bonino).
21. Para uma tentativa de encorajar essas pesquisas, ver Grace (2004).
22. Casanova argumenta, com especial referência ao catolicismo, que “as tradições religiosas em todo o mundo
vêm-se recusando a aceitar o papel marginal e privatizado que as teorias da modernidade [...] reservaram para
elas. Surgiram movimentos sociais [...] desafiando, em nome da religião [...] o Estado e a economia de
mercado” (CASANOVA 1994, p. 5).
328 Grace

O Papa João XXIII expressou a posição católica a respeito dessas questões em


termos dramáticos: “contra o espírito mundano, a Igreja enfrenta a cada dia uma
batalha que não é mais do que a batalha pela alma do mundo”.23
Embora a educação católica contemporânea esteja empenhada em uma batalha
pela alma do mundo, não está absolutamente claro se ela dispõe dos recursos
necessários para ser bem-sucedida. As batalhas do início da modernidade foram
travadas por ordens religiosas dedicadas com missões educacionais ao redor do mundo.
As batalhas contemporâneas dependem muito mais de líderes e de professores
católicos laicos, que talvez não estejam tão preparados quanto seus predecessores
para sustentar uma agenda diferenciada de oposição.
A educação cristã evangélica adotou uma postura de contrarreforma em relação
à influência da moralidade liberal relativista nos sistemas educacionais estatais, mas,
na opinião de autores como Martin (1999) e Apple (2001), sua postura
individualista e pragmática em relação a questões econômicas, mais do que uma
crítica dos corporativismos, torna-se sua aliada.
Devemos concluir, portanto, que a batalha pela alma do mundo na arena da
educação é uma batalha desigual com resultados incertos, e que, como sugeriu
Bernstein, “o que está em jogo é o próprio conceito de educação” (BERNSTEIN,
1996, p. 88).

Bernstein: religião, identidade e modernidade


As conclusões de Bernstein oferecem uma finalização adequada para os
argumentos deste capítulo:
O que parece estar acontecendo no final do século XX é um enfraquecimento do lugar do sagrado.
No início do século, o sagrado ocupava um lugar central e informava a base coletiva da sociedade
por meio da interrelação entre Estado, religião e educação. Atualmente, essa base coletiva foi
consideravelmente enfraquecida... Hoje o sagrado revela-se em locais, movimentos e discursos
dispersos (BERNSTEIN, 1996, p. 81).

No entanto, o autor observou também que: “o cristianismo [...] é uma fé na


qual a fé não pode ser tida como certa; deve ser constantemente reconquistada,
revitalizada, renovada” (BERNSTEIN, 1996, p. 86).
Este capítulo demonstrou que as culturas educacionais, tanto de cristãos
católicos quanto de cristãos evangélicos, vêm tentando defender suas respectivas
concepções sobre o sagrado nas condições da modernidade tardia. Estão tentando
defender sua compreensão sobre o que constitui uma concepção válida de
conhecimento e de currículo, uma concepção válida de processo educacional e uma
abordagem distintivamente cristã à formação educacional dos alunos.
Ao mesmo tempo, ambas vêm trabalhando para revitalizar e renovar seus sistemas
educacionais diante dos inúmeros desafios que as condições da modernidade tardia
geram para os crentes religiosos e para a educação baseada na fé.

23. Citado em Grace (2002, p. 21).


Cristianismo, modernidades e conhecimento 329

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59

POR UMA PEDAGOGIA COMPARADA1

Robin Alexander

A pedagogia na pesquisa comparada: um tema negligenciado


Entre os temas educacionais que têm sido ignorados pelos pesquisadores
britânicos com enfoque comparativo, a pedagogia é, sem dúvida, o mais
proeminente. No número especial do milênio do “Comparative Education”,
importante periódico do Reino Unido, Angela Little registrou que, entre 1977 e
1998, apenas 6,1% dos artigos do periódico trataram de conteúdo curricular e
experiência do aprendiz, em contraste com quase 31% sobre temas como reforma
educacional e desenvolvimento (LITTLE, 2000, p. 283); Cowen afirmou que
“estamos longe de compreender totalmente temas de currículo, estilos pedagógicos
e avaliação como sistemas poderosos de mensagem que constituem identidades em
contextos educacionais específicos” (COWEN, 2000, p. 368); e Broadfoot
argumentou que os estudos comparativos futuros deveriam dar muito mais ênfase
“ao próprio processo de aprendizagem, e não, como ocorre atualmente, à
organização e ao provimento educacional” (BROADFOOT, 2000, p. 368).
Se a omissão é tão obvia, é razoável perguntar por que os pesquisadores que
trabalham com enfoque comparativo não a corrigiram. Pode haver uma explicação
prática simples. A análise de políticas, especialmente quando se baseia em
documentos, e não em trabalho de campo, é uma opção mais factível do que a
pesquisa em sala de aula. É também mais barata, mais rápida e mais confortável:
quem quer trocar sua biblioteca ou a internet por excursões demoradas e
ocasionalmente arrepiantes, sobrecarregadas com gravadores de áudio e vídeo,
câmeras, tripés, horários de observação, horários de entrevista, roupas, comida, e
todo o aparato restante necessário para uma descrição densa – sem falar nas
complexas negociações necessárias atualmente antes que se possa observar os
professores ou falar com as crianças.
Como alternativa menos cruel, e ecoando Brian Simon – “por que não há
pedagogia na Inglaterra?” (SIMON, 1981) –, poderíamos sugerir que um país que

1. Este capítulo baseia-se particularmente no estudo comparativo realizado pelo autor sobre cultura, políticas e
pedagogia nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França, na Índia e na Rússia (ALEXANDER, 2001), bem
como no corpo mais amplo de trabalhos publicados citados. Vários dos artigos mais recentes do autor sobre
pedagogia dentro de um quadro de referência internacional podem ser encontrados em Alexander, R. J.
“Essays on pedagogy” (ROUTLEDGE, jul. 2008).

331
332 Alexander

não tem uma ciência do ensino nativa dificilmente estimularia a comparação


pedagógica: talvez um mecanismo seletivo de empréstimo de políticas, mas não
uma investigação comparada séria (ALEXANDER, 1996).
Ou talvez a pedagogia seja um daqueles aspectos da educação comparada que
requerem domínio e conhecimentos sobre os países comparados, suas culturas, seus
sistemas e suas políticas. Acredito que sim, especialmente diante da condição que
Simon identificou. Michael Crossley argumenta:
Se as bem-documentadas armadilhas da educação comparada devam ser evitadas novamente, é
importante que aqueles que não estão muito familiarizados com essas pesquisas se aproximem
de literaturas que são fundamentais nesse campo. Da mesma forma, para aqueles que se
consideram comparativistas, é importante aproveitar as oportunidades oferecidas por essa
ampliação de redes e de discursos de pesquisa (CROSSLEY, 2000, p. 324).

É perceptível aqui certo desequilíbrio de forças entre esses dois imperativos:


aqueles que não trabalham com enfoque comparativo devem aproximar-se da
literatura (presumivelmente porque sua falta de conhecimento é maior), mas
aqueles que utilizam esse enfoque precisam apenas aproveitar as oportunidades. É
bem possível que haja evidências de comparações errôneas entre os recém-chegados
à área, mas também são encontrados exemplos de análises superficiais, ou mesmo
malconcebidas, de determinados fenômenos educacionais na literatura comparativa
básica. A menos que nos contentemos com a justaposição superficial de sistemas
educacionais nacionais A versus B – que costumava constituir a dieta principal dos
cursos universitários de educação comparada, mas, felizmente, é muito menos
comum na atualidade –, a comparação educacional relevante não é menos do que
um enorme desafio, pois requer o envolvimento simultâneo com diversas literaturas
e modos de análise distintos. Dificilmente se pode estudar direito comparado ou
literatura comparada sem saber pelo menos tanto a respeito de direito e de literatura
quanto sobre os países e culturas envolvidos e o processo de comparação; o mesmo
se aplica à educação comparada.
Eis aí por que o título deste capítulo refere-se a pedagogia comparada.2 A
pedagogia é um campo complexo de prática, teoria e pesquisa. O desafio da
pedagogia comparada é associar o estudo da educação em um dado lugar com o
estudo do ensino e da aprendizagem, de uma maneira que respeite ambos os campos
de investigação, mas que também crie algo que seja mais do que a soma das partes.

Novos territórios, porém velhos mapas


A estrutura de Little para a classificação dos artigos do periódico na categoria
de educação comparada (LITTLE, 2000) fez distinção entre contexto (país ou países
estudados), conteúdo (utilizando a classificação temática de 1978 reproduzida na

2. O capítulo é uma versão revisada de um artigo publicado originalmente em Comparative Education, 37


(4), 507-523.
Por uma pedagogia comparada 333

contracapa, e comparação (número de países comparados). Tentar situar o meu


“Culture and pedagogy” (ALEXANDER, 2001) nessa estrutura coloca em destaque
o status marginal da pedagogia no discurso comparado dominante. Esse estudo
utilizou dados documentais de entrevista, de observação, de vídeo e fotográficos,
coletados nos níveis do sistema, da escola e da sala de aula entre 1994 e 1998.
Estados Unidos, França, Índia, Inglaterra e Rússia constituíram o contexto do
estudo. Até aí, tudo bem, ainda que estudos em cinco países sejam relativamente
raros. O estudo de Edmund King em sete países continua a ser o exemplo clássico
desse gênero (KING, 1979). Seu conteúdo abrangeu pelo menos 6 dos 13 temas
de Little, sem que se ajustasse bem a eles, e a fase educacional tratada – educação
primária – estava totalmente ausente daquela estrutura (assim como,
surpreendentemente, os termos “ensinar” e “aprender”, e muito menos “cultura”
ou “pedagogia”). Sua comparação foi feita entre cinco países (uma raridade) e
incluiu tanto o Norte quanto o Sul (uma raridade total, e uma novidade na
categoria de cinco países de Little).
À parte o fato de, como já foi apontado, ser a pedagogia um campo
negligenciado na pesquisa comparada, há mais uma razão pela qual o conteúdo
dessa pesquisa se situa tão inadequadamente na estrutura de Little a qual não
acomoda estudos que atravessam uma fronteira importante ainda não mencionada:
a fronteira entre o macro e o micro. “Culture and pedagogy” – como sugere o título
– ilustra a velha máxima de Sadler sobre a inseparabilidade dos mundos interno e
externo à escola (SADLER, 1900); no entanto a estrutura de Little parece implicar
que os estudos comparativos devem ser nacionais ou locais, sobre políticas ou sobre
práticas, sobre o sistema ou sobre a sala de aula, e não sobre sua interação. A esse
respeito, os pesquisadores comparativistas podem estar na retaguarda do jogo mais
amplo da ciência social, no qual a relação entre estrutura social, cultura e atividade
humana tem estado no coração da teorização sociológica há bem mais de um século
(ARCHER, 2000, p. 1).
Portanto, a pedagogia não começa e termina na sala de aula. Somente pode ser
compreendida quando sua prática é situada dentro dos círculos concêntricos do
local e do nacional, e da sala de aula, da escola, do sistema e do Estado; e apenas
quando o pesquisador desloca-se constantemente entre uns e outros explorando a
maneira pela qual aquilo que professores e alunos fazem na sala de aula reflete os
valores da sociedade mais ampla. Foi esse um dos desafios que a pesquisa Five
Cultures procurou abordar.
Uma pedagogia comparada enfrenta ainda outro desafio: lidar com a interface
entre presente e passado, adotar o princípio de que, se quisermos compreender
alguma coisa sobre a educação em outros lugares, é preciso que nossa perspectiva seja
vigorosamente fundamentada pela história. Assim, embora a viagem comparativa de
“Culture and pedagogy” culmine em um exame detalhado do discurso professor-
aluno – pois a linguagem é, ao mesmo tempo, a ferramenta mais poderosa para a
334 Alexander

aprendizagem humana e a expressão máxima da cultura e da identidade –, seu ponto


de partida é o relato sobre as raízes históricas e os desenvolvimentos da educação
primária em cada um dos cinco países, dedicando atenção específica ao surgimento
dos valores, das tradições e dos hábitos nucleares e permanentes que modelam,
possibilitam e circunscrevem o desenvolvimento pedagógico.

Definindo pedagogia
Até aqui, uma definição de pedagogia foi inferida. É tempo de torná-la mais
explícita. Um dos valores do trabalho comparativo é que nos alerta a respeito da
maneira pela qual termos aparentemente sólidos em um determinado discurso não
são o que parecem ser.
Portanto, pode ser importante que, no contexto de forte investimento na
cidadania que caracteriza a educação pública francesa, éduquer signifique criar, bem
como educar formalmente, e que bien éduqué signifique bem-educado ou dotado
de boas maneiras, e não bem-escolarizado (em inglês educate também tem os dois
sentidos, mas o último deles predomina atualmente); ou que a raiz da palavra russa
para educação, obrazonanie, signifique forma ou imagem, e não, como em nossa
versão latina, “conduzir”; ou que abrazovanie seja inseparável de vospitanie, uma
ideia que não tem equivalente em inglês, porque combina desenvolvimento pessoal,
moralidade pública e privada, e compromisso cívico, enquanto em inglês estes
tendem a ser tratados como domínios separados, e até mesmo conflitantes; ou que
obuchenie, traduzido em geral como instrução orientada por um professor, sinalize
aprendizagem e ensino. Certamente é muito importante que na educação inglesa
(e americana) desenvolvimento seja considerado um processo fisiológico e
psicológico que ocorre independentemente da escolarização formal, ao passo que
os professores russos definem desenvolvimento de forma transitiva, como uma
tarefa que requer sua intervenção ativa: em um dos contextos o desenvolvimento
é natural, enquanto no outro é mais próximo de aculturação. Da mesma forma,
na tradição anglo-americana, a criança mais capaz é definida como aquela que tem
maior potencial, ao passo que, no legado pedagógico da Rússia soviética, ela é a
menos capaz, porque tem um caminho mais longo a percorrer na direção de metas
que são consideradas comuns a todas as crianças (MUCKLE, 1988;
ALEXANDER, 2001, p. 368-370).
Esses termos sugerem mais do que a necessidade de que o comparativista seja
sensível aos problemas de idioma e de tradução. Também ajustam sutilmente a
agenda educacional segundo linhas culturalmente distintivas, mesmo antes que se
inicie a investigação dos detalhes das políticas e das práticas. Nos casos
exemplificados acima, tanto l’éducation quanto vospitanie introduzem no discurso
sugestões de moralidade pública e do bem comum, de maneira que influenciam
subliminarmente as discussões recorrentes sobre metas e currículos escolares na
França e na Rússia; por outro lado, as noções russas de potencial e de
Por uma pedagogia comparada 335

desenvolvimento implicam – e na verdade impõem – uma atuação forte e


responsabilidade do professor de uma forma que as conotações inglesas e
americanas desses termos, mais passivas e individualistas, não o fazem. A noção do
professor como um facilitador, tão central na tradição progressista anglo-saxônica,
teria pouca penetração nos países da Europa Continental nos quais a intervenção
e a instrução pelo professor são vistas como essenciais para a aprendizagem escolar.
A consciência aqui sugerida implica também um modelo de pedagogia e um
percurso para a análise pedagógica comparativa que estão tão distantes quanto
possível da polarização do ensino entre centrado no professor (ou centrado no
conteúdo) e centrado na criança que, com excessiva frequência, continua a ser o
uso rotineiro das definições de pedagogia disponíveis na literatura comparada
(ALEXANDER, 2006). A pesquisa pedagógica atual abandonou essa dicotomia
anos atrás; a pesquisa comparativa atual deveria fazer o mesmo. É possível que o
resíduo mais prejudicial desse tipo de pensamento ainda seja encontrado nos relatos
de alguns consultores de desenvolvimento educacional, que recomendam
alegremente a pedagogia ocidental centrada na criança a governos não ocidentais,
sem levar em consideração as circunstâncias culturais e educacionais locais, ou os
avanços recentes na psicologia da aprendizagem e do ensino, ou das descobertas
da pesquisa pedagógica sobre os resultados decididamente questionáveis do ensino
centrado na criança nas salas de aula do Ocidente.
Ironias à parte, faríamos bem em ser igualmente cautelosos aqui a respeito de
outro problema limítrofe. Na literatura sobre perspectivas e modelos de ensino
culturais locais, aparecem de forma conspícua e confiante modelos de ensino
generalizados como asiáticos, costa do Pacífico, ocidentais, não ocidentais e
europeus (REYNOLDS; FARRELL, 1996; STEVENSON; STIGLER, 1992;
CLARKE, 2001). Se reconhecermos que a abrangência geográfica e cultural da
Ásia é excessivamente ampla para conferir validade descritiva à análise do ensino,
deveríamos ter a mesma consciência sobre as nuances hegemônicas do termo
ocidental. Ocidental inclui tanto a América do Sul quanto a América do Norte?
Inclui alguns países europeus e exclui outros? Com sua validação implícita de
uma visão de mundo particular, captada de forma reveladora desde 2003 na
forma como a administração Bush foi designada pela Velha/Nova Europa,
ocidental pode muito bem exacerbar, ao invés de suplantar, a pedagogia da
oposição, alimentando um ocidentalismo hipócrita tão pernicioso quanto o
orientalismo de Said (SAID, 1979).
Como nosso conceito educacional nuclear, o vocábulo “pedagogia” está, em
termos linguísticos e culturais, em um terreno tão traiçoeiro quanto os apontados
acima. Na tradição anglo-americana, pedagogia é subsidiária ao currículo,
implicando, às vezes, pouco mais do que método de ensino. O próprio termo
currículo tem tanto um sentido amplo (tudo que a escola faz) quanto um sentido
estrito (o que se exige formalmente que seja ensinado), que se aproxima do sentido
336 Alexander

de didática na Europa Continental, sem apreender o sentido presente em la


didactique ou die Didaktik de uma quase-ciência que abrange o conteúdo do
conhecimento e os princípios por meio dos quais é transmitido. Currículo é um
termo mais proeminente nos discursos educacionais em sistemas nos quais é
contestado, e menos onde é imposto ou aceito como certo. Na tradição da Europa
Central, ocorre o inverso: a pedagogia desloca-se para o centro do palco e emoldura
tudo mais, inclusive o currículo e a didática, na medida em que o primeiro termo
é utilizado (ALEXANDER, 2001, p. 540-556; MOON, 1998).
Uma vez que os significados atribuídos à pedagogia apresentam tanta variação
em inglês – sem falar de diferenças entre o inglês e outros idiomas –, precisamos
estipular um sentido que nos permita utilizar o termo para a análise comparativa.
Prefiro evitar as grandes ambiguidades do vocábulo “currículo” e a tendência
resultante à depreciação da pedagogia, e utilizar este último termo para abranger
um campo mais amplo. Faço distinção entre pedagogia, como discurso, e ensino,
como ato, embora trate-os como inseparáveis. Pedagogia engloba, portanto, tanto
o ato de ensinar quanto as teorias e os debates contingentes a este. Pedagogia é o
discurso com o qual precisamos nos envolver para ensinar de forma inteligente e
dar sentido ao ensino – pois discurso e ato são interdependentes, e não pode haver
ensino sem pedagogia ou pedagogia sem ensino.
Uma pedagogia comparada leva esse discurso não apenas a um, mas a diversos
estágios adiante. Pedagogia relaciona o ato de ensinar às ideias que o informam e
o explicam. A pedagogia comparada identifica, explora e explica semelhanças e
diferenças de pedagogia como conceito, discurso e prática entre unidades de
comparação designadas, tais como Estados-nação. Dessa forma, explora
oportunidades que somente comparações adequadas podem oferecer: separando o
que é universal na pedagogia do que é culturalmente ou geograficamente específico,
informando o desenvolvimento da teoria pedagógica e expandindo o vocabulário
e o repertório da prática pedagógica.

Condições para uma pedagogia comparada


Podemos agora propor três condições para uma pedagogia comparada. Em
primeiro lugar, ela deve incorporar uma lógica, uma metodologia defensável para
a comparação entre localidades, culturas, nações e/ou regiões. Em segundo lugar,
deve combinar procedimentos para o estudo empírico do ensino com formas de
acessar os valores, as ideias e os debates que o informam, modelam e explicam. Em
terceiro lugar, uma vez que esses valores, essas ideias e esses debates são parte de
um discurso educacional mais amplo e – tipicamente – situam-se no contexto dos
sistemas nacionais de educação pública, da mesma forma que as escolas e as salas
de aula, uma pedagogia comparada deve acessar esses vários níveis, contextos e
instâncias de poder, e examinar de que forma relacionam-se entre si e
fundamentam o discurso da pedagogia e o ato de ensinar.
Por uma pedagogia comparada 337

A primeira condição aplica-se a todos os estudos comparativos, e, portanto,


não preciso dizer mais a respeito: sem dúvida será abordada em outros capítulos.
Sobre a segunda e a terceira condições, no entanto, é necessário que me estenda
um pouco mais.

Referenciais para uma pedagogia comparada


Se a pedagogia é modelada pela cultura e pela história da nação, e pela migração
de ideias e práticas através de fronteiras nacionais, bem como por exigências e
restrições práticas mais imediatas, tais como políticas e recursos, será possível
postular um modelo de pedagogia e um referencial para seu estudo que acomode
suas muitas formas e variações, e também supere as limitações de valor e de
circunstâncias? Podemos conceber um modelo analítico que atenda às necessidades
do pesquisador empírico em qualquer contexto? Esse foi o desafio que tivemos que
assumir no projeto “Culture and pedagogy”, pois precisávamos dar sentido aos
dados disparatados de sala de aula de uma forma que não evidenciasse um viés
óbvio na direção de relatos de aprendizagem e de ensino particulares e
culturalmente específicos.
O referencial resultante tem três partes. A primeira trata do ato observável de
ensinar; a segunda, das ideias que o informam; a terceira, da relação macro-micro
que associa as transações na sala de aula à política nacional por meio do currículo.
Partimos, entretanto, de uma definição:
Pedagogia é o ato observável de ensinar, juntamente com o discurso de teorias educacionais, valores,
evidências e justificativas que o acompanha. É o que precisamos saber, e as habilidades que precisamos
dominar, de forma a tomar e justificar os muitos tipos diferentes de decisões que constituem o ensino.

Isso posto, as cores de nossa bandeira estão firmemente presas ao mastro


internacional. Na Grã-Bretanha, quando é utilizada, a palavra “pedagogia” sinaliza
simplesmente o ato de ensinar, e as ideias que o informam têm, na melhor das
hipóteses, uma relação incômoda com esse ato, como teoria a ser aplicada (ou não).
Mas, infelizmente para os dualistas da teoria/prática, a teoria está presente queiram
ou não, a menos, evidentemente, que estejam preparados para afirmar que o ensino
é uma atividade impensada. A tarefa é explicar a teoria que, no ensino, sabemos
que é um amálgama complexo de experiências sedimentadas, valores e crenças
pessoais, reinterpretações de pesquisas publicadas e políticas adotadas de forma
mais ou menos conscienciosa.
Pedagogia como prática
Muitos anos atrás, o antropólogo Edmund Leach (1964) argumentou que,
quanto mais complexo o modelo menos provável que fosse útil. Com essa
advertência em mente, começamos por reduzir o ensino às suas características mais
essenciais:
338 Alexander

Em qualquer contexto, ensinar é o ato de utilizar o método X para capacitar os estudantes a aprender Y.

Nessa forma tão despojada, é difícil contestar essa proposição, e se é assim,


extraímos dela duas questões não menos básicas para orientar a investigação empírica:
• O que se espera que os alunos aprendam?
• Quais métodos o professor deve utilizar para garantir que eles aprendam?
Para que “método” seja útil como uma categoria analítica capaz de atravessar
fronteiras de espaço e tempo, é preciso esmiuçar o termo. Qualquer método de
ensino combina tarefas, atividades, interações e julgamentos, cuja função é
representada por quatro outras questões:
• Quais tarefas de aprendizagem os alunos encontram em uma determinada seção
ou unidade de ensino?
• Quais atividades eles realizam de forma a desempenhar essas tarefas de
aprendizagem?
• Por meio de quais interações o professor apresenta, organiza e mantém as tarefas
de aprendizagem e as atividades?
• Por quais meios, e com base em quais critérios, o professor faz julgamentos sobre
a natureza e o nível das tarefas e atividades que cada estudante vai realizar
(diferenciação) e os tipos de aprendizagem que os estudantes alcançam
(avaliação)?
Tarefa, atividade, interação e julgamento são os alicerces do ensino. No entanto,
nessa forma, carecem dos meios para coerência e significado. É preciso, portanto,
acrescentar uma segunda preposição à nossa primeira. Este acréscimo esmiuça, “em
qualquer contexto”, o complemento da frase de nossa primeira proposição.
O ensino tem estrutura e forma; é situado no espaço, no tempo, e em padrões de organização dos alunos,
é conduzido por esses elementos, e é intencional.

A estrutura e a forma do ensino manifestam-se de forma mais clara e distinta na


aula. As aulas e os atos de ensino que as constituem são moldados e dirigidos pelo
tempo, pelo espaço (a maneira como a sala de aula está arrumada, organizada e
provida de recursos) e pelas formas escolhidas de organização dos alunos (a classe
inteira, em pequenos grupos ou individualmente).
Contudo, além de ser moldado em termos temporais e espaciais, o ensino é
moldado também em termos conceituais e éticos. Uma aula é parte de um currículo
mais amplo que incorpora objetivos e valores educacionais e reflete pressupostos
sobre quais conhecimentos e compreensões são mais valiosos para o indivíduo e
para a sociedade. Isso é parte da força da expressão “[o ensino] [...] é empreendido
com um objetivo”. Resta um elemento. O ensino não é uma série de encontros
casuais. Juntos, professores e alunos criam uma microcultura e são definidos por
ela. Desenvolvem procedimentos para regular a dinâmica complexa das relações
Por uma pedagogia comparada 339

entre estudantes e professor, e dos estudantes entre si, o que equivale à lei, aos
costumes, às convenções e à moralidade pública na sociedade civil. Definimos esse
componente como rotina, regra e ritual.
O quadro de referência completo do ensino, discutido mais detalhadamente em
Alexander (2001, p. 320-325), é apresentado na Figura 1. Os elementos são
agrupados sob os títulos de estrutura, forma e ato. Os atos nucleares de ensino (tarefa,
atividade, interação e julgamento) são moldados pela organização da sala de aula
(espaço) e dos alunos, pelo tempo e pelo currículo, e pelas rotinas, pelas regras e pelos
rituais da sala de aula. E ganham forma na aula ou nos procedimentos de ensino.
Portanto, é preciso fazer escolhas sobre a maneira de analisar cada um dos
elementos. Isso levanta novas questões sobre categorias analíticas, métodos de
pesquisa e tecnologias, que por motivos de espaço não podem ser abordadas aqui.
Basta dizer que na pesquisa “Culture and pedagogy” cada elemento mencionado
acima foi desdobrado em diversas subunidades analíticas; os principais
instrumentos de pesquisa foram observação, vídeo e entrevista; e os dados incluíram
notas de campo, transcrições de entrevistas, transcrições de aulas, fotografias,
documentos relativos ao ensino, e cerca de 130 horas de registros em vídeo.

Figura 1. Um modelo genérico de ensino

Estrutura Forma Ato


Espaço Tarefa
Organização dos alunos Atividade
Tempo Aula
Currículo Interação
Rotina, regra e ritual Julgamento

No entanto, essas informações só são relevantes aqui à medida que demonstram


de que forma o quadro de referência funciona de fato. A análise comparativa do
ensino em “Culture and pedagogy” começa com a disposição básica dos elementos
que moldam e regulam o ensino – currículo, espaço, organização dos alunos, tempo
e rotina/regra/ritual, e trabalha através de cada um dos outros elementos antes de
concluir com uma análise fundamentada de padrões de interação na sala de aula e
da dinâmica e do conteúdo do discurso professor-aluno. O mesmo quadro de
referência poderia ser utilizado para informar uma metodologia de pesquisa muito
diferente. O que se discute aqui é uma questão mais conceitual do que técnica:
não se refere às vantagens relativas de, digamos, observação sistemática utilizando
categorias de interação pré-codificadas para produzir dados quantificáveis, e
utilização de transcrições para embasar análises qualitativas minuciosas do discurso,
mas sim à viabilidade disso como quadro de referência para a pesquisa sobre o
ensino em qualquer contexto e por quaisquer meios.
340 Alexander

Pedagogia como ideias


A segunda parte de nosso quadro de referência para o estudo comparativo da
pedagogia focaliza as ideias, os valores e as crenças que informam e justificam qual
o ato de ensinar. É possível agrupá-los em três domínios, como mostra a Figura 2.
Em relação ao ensino, aqui não fazemos distinção entre pressupostos e crenças
privados e públicos, como aqueles que os professores encontram durante sua
formação, porque todos são um tipo de teoria. A questão aqui não é diferenciar
teorias públicas ou privadas, adotadas ou utilizadas (ARGYRIS; SCHÖN, 1974),
mas sim os temas de que essas teorias tratam. A pedagogia tem em seu núcleo ideias
sobre os alunos, a aprendizagem e o ensino, e essas ideias são modeladas e
modificadas pelo contexto, pelas políticas e pela cultura. Enquanto o primeiro
domínio possibilita o ensino e o segundo o formaliza e legitima em relação a políticas
e à infraestrutura, o terceiro domínio o situa – e às próprias crianças – no tempo,
no espaço e no mundo social, e o ancora firmemente em questões de identidade
humana e objetivo social, sem as quais o ensino faz pouco sentido. Essas ideias
marcam a transição entre ensino e educação.
Macro e micro
O elemento do quadro de referência da Figura 1 que conecta de maneira mais
explícita o macro e o micro, no sentido mais restrito de políticas e escolas, e não
de cultura e atuação profissional, é o currículo.

Figura 2. Pedagogia como ideias (teorias, valores, evidências e justificativas)

Nível da sala de aula: ideias que possibilitam o ensino


• Estudantes características, desenvolvimento, motivação, necessidades, diferenças
• Aprendizagem natureza, facilitação, resultados e avaliação
• Ensino natureza, escopo, planejamento, execução e avaliação
• Currículo formas de conhecer, fazer, criar, investigar e dar sentido

Nível do sistema/políticas: ideias que formalizam e legitimam o ensino


• Escola p. ex. infraestrutura, pessoal, treinamento
• Currículo p. ex. metas, conteúdo
• Avaliação p. ex. testes formais, qualificações, requisitos para ingresso
• Outras políticas p. ex. recrutamento e treinamento de professores, equidade e inclusão

Nível da sociedade/cultura: ideias que situam o ensino


• Cultura ideias, valores, costumes e relações coletivos que informam e modelam a
visão de uma sociedade sobre si mesma, sobre o mundo e sobre a educação
• Própria pessoa o que é ser uma pessoa; de que forma a identidade é adquirida
Por uma pedagogia comparada 341

Na maioria dos sistemas, o currículo é prescrito de maneira centralizada, seja em


nível nacional ou, como em um sistema federativo e descentralizado, como o norte-
americano, no nível dos estados e dos distritos escolares. No sistema de educação
pública, em alguns poucos casos, o controle do currículo cabe unicamente à escola.
Na verdade, provavelmente a concepção do currículo pode ser mais eficaz
quando este é entendido como uma série de traduções, transposições e transformações
a partir de seu status inicial como um conjunto de requisitos formais. No início
desse processo de metamorfose está o currículo nacional ou estadual. No final, está
o conjunto de compreensões relativas a cada meta e cada domínio especificados no
currículo que o estudante adquire como resultado de suas atividades e de seus
encontros na sala de aula. Entre os dois está uma sucessão de desvios, às vezes
ousados, às vezes ligeiros, à medida que o currículo passa de especificação para
transação, e à medida que os professores e os estudantes interpretam, modificam e
fazem acréscimos aos significados a ele incorporados. Algumas vezes a mudança
pode ser pequena, como em situações em que a escola recebe o roteiro ou o
programa de estudos e o mapeia em seu cronograma. A isso podemos denominar
tradução. A escola ou o professor podem então ajustar a nomenclatura e transferir
partes de um dos domínios do currículo para outro, efetuando uma transposição,
que leva então a uma sequência de planos de aula. Porém, a mudança real – a
transformação – ocorre quando o currículo deixa de ser documento e torna-se ação,
e é desdobrado em tarefas e atividades de aprendizagem, e expresso e negociado
como interações e inter-relações professor-aluno.
Por mais que um professor seja fiel às exigências do governo, do Estado ou da
escola, o ensino é sempre um ato de transformação do currículo. Nesse sentido,
portanto, o currículo só pode ser considerado um componente referencial do ato
de ensinar, como sugerido na Figura 1, antes de transformar-se em tarefa, atividade,
interação, discurso e resultado. A partir daquele ponto, torna-se inseparável de cada
um desses elementos. Na sala de aula, o currículo é tarefa, atividade, interação e
discurso, e estes são currículo.

Figura 3. Metamorfose do currículo

Especificação Currículo nacional, estadual ou local 1


Tradução Currículo escolar 2 Referencial
Transposição Cronograma e currículo da aula 3
Plano de aula 4

Transformação Aula 5 Forma

Tarefa 6
Atividade 7 Ato
Interação 8
Avaliação 9
342 Alexander

A Figura 3 esquematiza esse processo e o associa às famílias “referencial”,


“forma” e “ato” do modelo de ensino da Figura 1. Juntamente com a Figura 2, os
quadros de referência oferecem uma base para a construção de uma narrativa
empírica razoavelmente abrangente da pedagogia no nível da ação, e para o
engajamento nos discursos que a acompanham.
Evidentemente, a relação macro-micro é muito mais do que a transmissão ou
a transformação do currículo entre o Estado e a escola. Para começar, o processo
torna-se mais complexo devido à existência de mais níveis do que é permitido por
formulações bipolares, tais como macro-micro ou centralização-descentralização.
Os níveis regionais e locais de governo têm seus próprios poderes atribuídos, ou
tentam compensar a falta destes aproveitando-se de sua proximidade com a ação;
e a atuação local manifesta-se sob muitos outros aspectos, tanto formais quanto
informais, além do administrativo e do governamental. Nos dados do Five Cultures,
a importância dessas atuações e desses níveis intermediários propiciou uma
retificação da narrativa clássica de Margaret Archer sobre o desenvolvimento dos
sistemas educacionais estatais (ARCHER, 1979). Uma perspectiva explanatória
adequada sobre o discurso pedagógico precisa envolver-se com essa arena mais
complexa de controle e de ação, para que possa afastar-se de modelos lineares
restritivos de ensino como implementação de políticas, e de educação como
transmissão cultural inalterada. Quanto a esse ponto, os trabalhos de Giroux (1983)
e Apple (1995) proveem a moderação necessária para a visão de reprodução estrita
assumida por Bowles e Gintis (1976) ou Bourdieu e Passeron (1990).
Uma perspectiva desse tipo precisa também abordar com certa cautela o
conceito algo mecanicista de níveis, pois já que vemos a prática pedagógica através
das lentes profundamente importantes dos valores, descobrimos que – como
mostrou Archer em seu trabalho posterior (1989) – a relação entre estrutura,
cultura e atuação pedagógica é ainda mais complexa.

Valores
Portanto, valores irrompem desordenadamente a cada momento na análise
da pedagogia, e uma das fragilidades mais persistentes de grande parte da
pesquisa básica sobre ensino, inclusive os raros trabalhos que aparecem na
literatura de educação comparada, é a tendência a minimizar sua importância
na modelação e na explicação da prática observável. Ultimamente, a ideia de
ensino sem valores recebeu um impulso poderoso por meio do endosso de vários
governos anglófonos a pesquisas sobre eficácia escolar (que reduzem o ensino à
técnica, e a cultura a um fator não particularmente importante entre muitos
outros) e da adoção, em todo o espectro das políticas públicas, do critério
cruamente utilitário de o que funciona. O ensino é uma atividade intencional
e moral: é empreendido com um objetivo, e é validado em referência a metas
educacionais e a princípios sociais, bem como à eficácia operacional. Em
Por uma pedagogia comparada 343

qualquer cultura, o ensino requer atenção a diversas considerações e vários


imperativos: pragmáticos, certamente, mas também empíricos, éticos e
conceituais (ALEXANDER, 1997, p. 267-287).
Uma pedagogia desprovida de valores evidentemente não é possível. Faz tão
pouco sentido quanto uma educação comparada desprovida de culturas. No
entanto valores também podem facilmente ser negligenciados, e o problema pode
refletir um acidente da técnica, e não um planejamento consciente. Assim, uma
análise da interação em sala de aula em escolas primárias do Quênia (ACKERS;
HARDMAN, 2001) utiliza o sistema de análise de discurso de Sinclair e Coulthard
(1992), que reduz o discurso falado a uma hierarquia de níveis, transações,
movimentos e atos com pouca consideração por seu significado e nenhuma por
seu contexto sociolinguístico. O estudo queniano é esclarecedor, mas se o
procedimento escolhido é problemático em termos linguísticos, pode sê-lo
duplamente em um estudo comparativo sobre professores de um país realizado por
pesquisadores de outro país.
No contexto bem diferente de um seminário da Costa Leste dos Estados
Unidos, um participante assistiu a uma das aulas videogravadas 3 de “Culture and
pedagogy”, e condenou a professora americana do filme por “desperdiçar tempo”
negociando com os alunos ao invés de dirigi-los. A professora em questão era
muito experiente, e perfeitamente capaz de dar uma aula tradicional e impô-la
sobre as crianças. No entanto, optou por não o fazer, porque suas metas
educacionais incluíam o desenvolvimento de autonomia e de escolha pessoal, e
ela acreditava que é preciso que as crianças aprendam, do modo mais difícil se
for necessário, a dominar o tempo e a não ser dominadas por ele. (Pois, como
descobrimos nesta pesquisa, o tempo é um valor na educação tanto quanto sua
mensuração, e era percebido e utilizado de maneiras muito diferentes nos cinco
países.) Essa professora estava expressando em sua prática não apenas seus valores
pessoais, mas também os valores incorporados nas políticas de sua escola, de seu
distrito escolar e de seu estado. Esses valores deveriam ter sido o primeiro objetivo
do participante do seminário.
Não se trata aqui de uma questão de simples competência profissional, mas de
como, em uma cultura que se apoia tão abertamente na liberdade individual de
ação, as individualidades divergentes de 25 alunos em uma sala de aula podem ser
conciliadas com metas de aprendizagem ostensivamente comuns. Pois esse exemplo
foi apenas a ponta de um iceberg de valores, um continuum no qual a pedagogia
norte-americana observada se encontrava no extremo oposto ao da observada na
Rússia e na Índia. De um lado, confusão, contradição e inconsistência de valores;
do outro, clareza, coerência e consistência – pelo menos dentro da sala de aula. O

3. Com a permissão da professora em questão. A ética de utilização de vídeo como instrumento de pesquisa
deve ser sempre considerada com seriedade.
344 Alexander

que observamos nas ruas da Rússia pós-União Soviética contava uma estória
diferente, mas os professores que entrevistamos foram muito explícitos quanto à
sua tarefa, que era manter a linha contra a onda crescente de anomia. É essa
diferença cultural, tanto quanto a mera competência executiva, que explica muitos
dos contrastes surpreendentes na prática, e na aparente eficiência da prática, com
os quais esses valores estão associados.
Esse exemplo também pode ajudar-nos em nossos estudos anteriores sobre
Sadler e o empréstimo cultural. Pois talvez seja o grau de compatibilidade no nível
dos valores que estabelece os limites daquilo que pode ser transferido com bons
resultados no nível da prática. Uma pedagogia baseada em autoridade do professor,
indução em direção a disciplinas temáticas, cultura geral e cidadania no mínimo
estará desconfortável ao lado de outra que celebra a democracia na sala de aula, o
conhecimento pessoal, o pluralismo cultural e a antipatia pelo aparato do Estado
– e vice-versa. Essa proposição simples, que pode ser facilmente testada na prática,
escapa àqueles que emprestam políticas, que presumem que o que funciona em
um país funcionará em outro. Assim, antes que a educação russa sucumbisse à
escassez de recursos que se seguiu ao colapso econômico em meados da década de
1990, durante algum tempo as crianças russas continuaram a superar o
desempenho das crianças norte-americanas em matemática e ciências, apesar da
enorme disparidade de recursos entre os sistemas educacionais dos dois países
(RUDDOCK, 2000; WORLD BANK, 2000). E, no entanto, o Banco Mundial e
a OCDE rejeitaram o ensino russo acusando-o de autoritário e ultrapassado, e
fizeram pressão por uma pedagogia mais democrática e centrada no aluno
(WORLD BANK, 1996; OCDE, 1998).

Continuidades temporais e espaciais


Assim, a preocupação com os valores é um sine qua non para uma pedagogia
comparada. Essa análise pode revelar continuidades, bem como diferenças. Dessa forma,
embora seja fruto de revolução, a educação pública francesa conserva traços que
lembram suas origens pré-revolucionárias e eclesiásticas (SHARPE, 1997); e a
conjunção de secularidade institucional e liberdade individual não se dá sem tensões,
como demonstram as crises recorrentes sobre l’affaire du foulard (sendo a echarpe, neste
caso, o hijab, e ocasionalmente o chador muçulmano).4 Os adornos soviéticos mais
óbvios da educação russa foram excluídos, mas o comprometimento persistente com
vospitanie e a ênfase dada nas escolas e nas salas de aula à ação e responsabilidade

4. NT: L’affaire du foulard (em francês no original): o caso do véu, ou echarpe, hijab e chador – vestimentas
tradicionais muçulmanas que as mulheres usam para cobrir a cabeça e os ombros, ou, no caso do chador e
da burca, o corpo inteiro. O caso assim denominado foi a controvérsia ocorrida na França em meados da
década de 1990 a respeito do uso do hijab nas escolas públicas, que se ampliou em debates sobre o islamismo
e a integração entre culturas, terminando em 2010 com a proibição do uso do hijab em escolas, hospitais e
transportes públicos.
Por uma pedagogia comparada 345

coletivas, aliada à autoridade indiscutível do professor, sem falar nos métodos de ensino,
evidenciam claramente que as continuidades são tanto czaristas quanto soviéticas. Na
Índia, as continuidades remontam ainda mais longe no tempo, e encontramos pelo
menos quatro tradições – duas delas nativas (brâmane e pós-independência) e duas
impostas (colonialista e missionária) – que se combinam para dar forma à prática
primária contemporânea naquele país vasto e complexo (KUMAR, 1991).
Na Inglaterra, os legados gêmeos do minimalismo e do idealismo progressista
na escola elementar contrabalançaram as tentativas do governo de promover uma
modernização radical. Um deles ainda modela as estruturas escolares e as
prioridades do currículo (e o governo está tão submisso a ele quanto os professores),
enquanto o outro continua a influenciar a consciência profissional e a prática em
sala de aula. Na verdade, na busca por reconquistar uma força de trabalho docente
insatisfeita, a Primary National Strategy pós-2003 do governo do Reino Unido
procurou suavizar sua imagem de estatismo por meio de um apelo direto às virtudes
progressistas de prazer, criatividade e flexibilidade, expresso em grandes caracteres
e com fotos de crianças sorridentes (ENGLAND, 2003; ALEXANDER, 2004).
Alguns enxergaram o que estava por trás dessa trama; muitos outros, não.
Jerome Bruner nos recorda, também, que em nossa teorização pedagógica:
[...] ainda estamos nos alimentando muito de nosso passado mais distante, pré-positivista.
Chomsky reconhece sua dívida em relação a Descartes, Piaget é impensável sem Kant, Vygotsky,
sem Hegel e Marx, e a teoria da aprendizagem foi construída sobre as fundações criadas por John
Locke (BRUNER, 1990, p. x-xi).

Esse tipo de genealogia intelectual foi mais fortemente visível na pedagogia


russa, em parte devido à consistência geral das práticas, e em parte porque aqueles
que entrevistamos estavam inteiramente conscientes das raízes de seu pensamento.
Pois essa é uma pedagogia na qual – diferentemente da Inglaterra – a teoria e a
história da educação são consideradas importantes. Assim, se a pedagogia russa
deve muito, via Vygotsky e seus discípulos, a Hegel e Marx, não deve menos à
tradição de racionalidade pedagógica que remonta, via Uchinsky, a Comenius e
Francis Bacon. E é uma verdade conhecida que Lenin e Stalin basearam-se
diretamente no legado czarista de autocracia política, nacionalismo e ortodoxia
religiosa, garantindo assim continuidades fundamentais em meio ao caos (LLOYD,
1998; HOBSBAWM, 1995). Ao ser entrevistada, uma de nossas professoras russas
falou prontamente sobre a influência de Vygotsky (1896-1934), Ushinski (1824-
1871) e Kamenski (COMENIUS, 1592-1670) em sua pedagogia, isso sem
mencionar os inúmeros pós-vygotskianos, como Davydov, Elkonin e Leontiev, e
acadêmicos da universidade pedagógica local. Quantos professores britânicos têm
esse nível aprofundado de consciência histórica – e muito menos de interesse
naquilo que poderia influenciar seu ensino além de valores pessoais, políticas
públicas e circunstâncias da sala de aula?
346 Alexander

Continuidades temporais como essas modelam as práticas educacionais


contemporâneas e estabelecem limites para o caráter e a velocidade de seu
desenvolvimento ulterior, apesar do zelo a-histórico dos modernizadores do
governo. As continuidades espaciais, que atravessam casualmente as fronteiras
nacionais sem ao menos um aceno para Sadler, são identificáveis em um estudo
que envolve diversos países em uma extensão que não é possível, ou plausível, em
um estudo que envolve apenas dois países. Essas continuidades colocam ao nosso
alcance uma recompensa importante: a diferenciação do universal e do
culturalmente específico em pedagogia.

Versões de ensino
Mais uma vez, não é possível listar todas as ressonâncias interculturais que
encontramos na pesquisa Five Cultures. Entretanto, abrangendo-as, houve seis
versões de ensino e três valores primordiais que podemos resumir brevemente.
1. Ensino como transmissão vê a educação principalmente como um processo em
que se instruem as crianças para que absorvam, repliquem e apliquem
informações e habilidades básicas.
2. Ensino como iniciação vê a educação como um meio de proporcionar o acesso
ao acervo cultural de conhecimentos de alto status – por exemplo, na literatura,
nas artes, nas humanidades e nas ciências – e a transmissão desses
conhecimentos de uma geração para outra.
3. Ensino como negociação reflete a ideia de Dewey de que professores e alunos
criam conjuntamente conhecimentos e compreensões em uma comunidade de
aprendizagem ostensivamente democrática, ao invés de relacionar-se entre si
como uma fonte dominante de conhecimento e o seu receptor passivo.
4. Ensino como facilitação orienta o professor por princípios de desenvolvimento
(mais especificamente, princípios piagetianos), e não por princípios culturais
ou epistemológicos. O professor respeita e alimenta as diferenças individuais,
e espera até que crianças estejam prontas para progredir, ao invés de forçá-las
a isso.
5. Ensino como aceleração, ao contrário, implementa o princípio vygotskiano de
que a educação é uma aculturação planejada e guiada, e não um
desenvolvimento natural facilitado e, na verdade, de que o professor tenta
acelerar o desenvolvimento, e não acompanhá-lo.
6. Ensino como técnica, por fim, é relativamente neutro em sua postura quanto à
sociedade, o conhecimento e a criança. O importante aqui é a eficiência do
ensino, independentemente do contexto de valores, e para isso são mais urgentes
imperativos como estrutura, utilização econômica do tempo e do espaço, tarefas
cuidadosamente graduadas, avaliação regular e retroalimentação clara do que
disciplinas ou ideias como democracia, autonomia, desenvolvimento.
Por uma pedagogia comparada 347

A primeira versão é ubíqua, mas nos dados de Five Cultures foi mais
proeminente na aprendizagem por memorização, e no ensino por recitação da
pedagogia indiana dominante. O arquétipo da segunda é fornecido pelas salas de
aula francesas, mas também emergiu na Rússia e na Índia e – embora muitas vezes
sob protestos profissionais no estágio do primário – na Inglaterra e nos Estados
Unidos (seu pedigree mais seguro na educação inglesa talvez remeta a Matthew
Arnold e às tradições das Grammar Schools5 e escolas particulares. Nos Estados
Unidos, os professores defendiam e procuravam aplicar tanto a terceira quanto a
quarta versões de ensino, muitas vezes seguindo explicitamente John Dewey e Jean
Piaget. Os professores da Inglaterra, sujeitos às pressões das estratégias
governamentais de alfabetização e de operações com números, ainda valorizavam
a prontidão e a facilitação do desenvolvimento, mas bem menos a democracia.
Baseando-se explicitamente na máxima vygotskiana de que “o único ensino
adequado é aquele que supera o desenvolvimento”, nossos professores russos
ilustraram a pedagogia da intervenção e da aceleração (5), diametralmente oposta
à prontidão e à facilitação do desenvolvimento. Ao mesmo tempo, tal como os
professores de boa parte da Europa Continental, baseavam-se na antiga tradição
comeniana (6) de aulas altamente estruturadas, ensino para o conjunto da turma,
desdobramento das tarefas de aprendizagem em fases pequenas e graduadas, e
preservação da economia na organização, nas ações e na utilização do tempo e do
espaço (COMENIUS, 1657, p. 312-334).
A trajetória das reformas pedagógicas recentes evidencia permutações
interessantes entre essas versões. Assim, sob o Government of India District Primary
Education Programme6, os professores indianos foram solicitados a tornar-se mais
democráticos (3) e orientados pelo desenvolvimento (4) (INDIA, 1998). A
linguagem do desenvolvimento e da facilitação também penetrou em documentos
de políticas na França e na Rússia (FRANCE, 1998; RUSSIA, 2000). Em contraste,
os professores ingleses estavam sendo estimulados a imitar a tradição continental
representada por (6), particularmente por meio da adesão ao “ensino interativo
para o conjunto da turma” nas estratégias governamentais do Reino Unido relativas
a alfabetização e operações numéricas (ENGLAND, 1998, 1999). Esses são atos
deliberados de importação pedagógica. Resta ver até que ponto o que vem de fora
pode acomodar-se ao que é nativo.
Já foi inferida uma tradição distintivamente europeia continental. Os dados de
Five Cultures tornam possível a ideia de tradições pedagógicas amplas que
atravessam fronteiras nacionais para consolidar-se. Nessa pesquisa, o grande divisor
cultural foi o Canal da Mancha, e não o Atlântico. Houve um nexo anglo-
americano discernível quanto a valores e práticas pedagógicas, da mesma forma
que houve um nexo discernível na Europa Continental, com a Rússia em um
5. NT: Escolas de ensino médio, de orientação fortemente acadêmica.
6. Programa Distrital de Educação Primária do Governo da Índia
348 Alexander

extremo altamente formalizado, e a França no outro, mais eclético e menos


ritualizado, ainda que firmemente enraizado na estrutura e nas disciplinas. A
pedagogia indiana é tanto asiática quanto europeia, como sugeriria sua história.

Valores primordiais
Os professores do estudo de cinco nações também articularam, praticaram ou
percorreram um caminho incerto entre três versões de relações humanas:
individualismo, comunidade e coletivismo.
• Individualismo coloca o indivíduo acima dos outros, e os direitos pessoais antes
das responsabilidades coletivas. Enfatiza liberdade irrestrita de ação e de
pensamentos.
• Comunidade centra-se na interdependência humana, em cuidar dos outros,
compartilhar e colaborar.
• Coletivismo também enfatiza a interdependência humana, mas apenas na
medida em que serve às necessidades maiores da sociedade, ou do Estado (o
que não é a mesma coisa) como um todo.
Nas salas de aula observadas, um compromisso com o individualismo
manifestou-se na diferenciação intelectual ou social, em resultados de aprendizagem
divergentes, e não uniformes, e em uma visão de conhecimento como algo pessoal
e único, e não imposto de cima para baixo, sob a forma de disciplinas e temas. O
ensino na versão comunidade refletiu-se em tarefas colaborativas de aprendizagem,
frequentemente em pequenos grupos, em cuidar e compartilhar, e não em
competir, e em uma ênfase no afetivo, e não no cognitivo. Por fim, na linha do
coletivismo refletiu-se em conhecimento comum, ideais comuns, um único
currículo para todos, cultura nacional, e não em pluralismo e multicultura, e em
aprender junto, e não de forma isolada ou em pequenos grupos.
Esses valores permearam os níveis nacional, escolar e de sala de aula. Estamos
familiarizados com o contraste entre as culturas supostamente egocêntricas do
Ocidente, com os Estados Unidos como o grande vilão, com as culturas supostamente
holísticas, sociocêntricas, do Sul e do Leste da Ásia. Embora haja evidências em apoio
a essa oposição (SHWEDER, 1991), é muito fácil demonizar um dos polos e
romantizar – ou orientalizar – o outro. Mas penso que, quando se trata de pedagogia,
a distinção tríplice se sustenta, e não parece de forma alguma ser acidental que tantas
discussões sobre método de ensino tenham-se centrado nos méritos relativos do
ensino para o conjunto da turma, de grupo ou de trabalho individual.
Na França, esse debate pode ser remontado a argumentos do início do século
XIX a respeito dos méritos relativos de l’enseignement simultané, l’enseignement
mutuel e l’enseignement individuel (REBOUL-SCHERRER, 1989). Venceu
l’enseignement simultané, como instrumento pós-revolucionário para a promoção
do comprometimento cívico e a identidade nacional, bem como da alfabetização.
Por uma pedagogia comparada 349

Sua hegemonia só agora começa a ser questionada, refletindo a descentralização e


a onda ascendente de individualismo.
Individualismo, comunidade e coletivismo são – tal como criança, grupo e turma
– os nódulos organizacionais da pedagogia, porque são os nódulos sociais das relações
humanas. No entanto, ao divorciar o ensino como técnica do discurso da pedagogia,
como fazemos tantas vezes, podemos ter fracassado na compreensão de que esses
valores e dissonâncias de valores tão nucleares permeiam as relações sociais na sala
de aula tanto quanto fora dela; e dessa forma podemos ter fracassado em
compreender por que o ensino indiferenciado, para o conjunto da turma, e o
princípio de manter a turma reunida ajustam-se melhor em muitas outras culturas
do que ocorre na Inglaterra ou nos Estados Unidos; e por que os professores desses
dois países apresentam tanta desconfiança em relação a essa fórmula pedagógica.
Pois o individualismo e o coletivismo não emergem na sala de aula como uma opção
clínica entre estratégias alternativas de ensino, mas muito mais como um dilema de
valores que pode ser fundamental para a história e a cultura de uma sociedade.
Contudo, o cenário não se caracteriza por singularidade. A consciência humana
e as relações humanas envolvem a interação dos três valores, e embora um deles
possa ser dominante, na realidade todos podem estar presentes e coexistir de forma
desconfortavelmente tensa. Essa tensão foi mais evidente nos Estados Unidos do
que em qualquer outro lugar; ali encontramos professores que tentavam conciliar
– e na verdade, promover como valores equivalentes – a autorrealização individual
e o comprometimento com o bem maior coletivo; o compartilhamento e o cuidado
no lugar do ego e da competitividade acirrada; e o ambientalismo com o
consumismo. Enquanto isso, no mundo externo à escola, o individualismo
florescente competia com o tradicional compromisso norte-americano com a
consciência comunitária e a tomada de decisões em nível local, e o patriotismo
com o antiestatismo. Como mostram as entrevistas com professores e as transcrições
de aulas, essas tensões manifestavam-se em cada nível das metas educacionais
formais ao discurso cotidiano de professores e crianças (ALEXANDER, 2001,
p. 201-206, 490-515).

Conclusão
Se a globalização impõe uma presença comparativa e internacional mais forte
na pesquisa educacional em geral, não é menos urgente a necessidade de que os
comparativistas focalizem o próprio núcleo do empreendimento educacional – a
pedagogia. Esse empreendimento exige, no entanto, tanto rigor no referenciamento
e na análise da pedagogia quanto no ato de comparar. Neste capítulo, baseei-me
em um estudo comparativo sobre a educação primária de cinco países para postular
princípios e quadros de referência para uma nova pedagogia comparada. A
pedagogia é definida especificamente como o ato de ensinar juntamente com os
discursos, ideias e valores que o acompanham. A análise desse discurso requer, a
350 Alexander

um só tempo, que nos engajemos com cultura, valores e ideias nos níveis de sala
de aula, escola e sistema, e que tenhamos um quadro de referência viável e
abrangente para o estudo empírico do processo de ensino e aprendizagem. Os
modelos interligados de pedagogia, ensino e currículo apresentados nas Figuras de
1 a 3, que foram desenvolvidos inicialmente para referenciar a análise dos dados
de “Culture and pedagogy”, e foram mais elaborados desde então, associam cultura,
estrutura e política nacional com a atuação na sala de aula; mas permitem também
que a relação estrutura-atuação seja encenada no interior das microculturas da
escola e da sala de aula.
O foco aqui não é no detalhamento dos resultados da pesquisa Five Cultures, e
sim no potencial de seu quadro de referência analítico para sustentar o
desenvolvimento já muito tardio de uma pedagogia comparada. Porém, ao
argumentar pela centralidade da cultura, da história e dos valores em uma análise
adequada da pedagogia, e ao aplicar em cinco países, e não apenas em um ou dois,
os quadros de referência, instrumentos e perspectivas escolhidos, abrimos outros
domínios importantes: o equilíbrio entre continuidade e mudança no pensamento
e na prática educacional ao longo do tempo, e as diversidades e semelhanças
pedagógicas através de fronteiras geográficas. Ao fazê-lo, não somos apenas forçados
a reavaliar a resistência de Sadler à importação-exportação educacional; também
nos aproximamos da identificação dos verdadeiros universais do ensino e da
aprendizagem. Uma pedagogia comparada adequadamente concebida pode
promover nossa compreensão sobre interação entre educação e cultura e, ao mesmo
tempo, ajudar-nos a melhorar a qualidade do provimento educacional.

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60

MUDANÇA PEDAGÓGICA E
EDUCACIONAL PARA SOCIEDADES DO
CONHECIMENTO SUSTENTÁVEIS

Andy Hargreaves

Introdução
Vivemos em tempos perigosamente insustentáveis. No mundo desenvolvido, o
desejo de progresso interminável e de consumo ilimitado, de prazer imediato e de
recompensas no curto prazo, de querer tudo, e de querer agora coloca nosso planeta
e seus habitantes em perigo. E são os menos privilegiados – os pobres e despossuídos
– que correm os maiores riscos. Políticos atraídos pela gratificação instantânea de
eleições de curto prazo e de resultados imediatistas trocaram o imperativo moral
da mudança climática de longo prazo pela popularidade imediata do sucesso
eleitoral – e as consequências são pobreza global, catástrofe climática generalizada
e migração de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Da mesma maneira, as mudanças educacionais e as estratégias de reforma
atualmente em voga ameaçam tratar nossos professores e nossos recursos humanos
de forma insustentável, assim como negócios multinacionais e políticos vêm
comprometendo a sustentabilidade de nossos recursos naturais. A imposição de
metas de curto prazo, a avaliação infindável e os ganhos políticos rápidos à custa
de aprendizagem efetiva para todos os alunos são inimigos da sustentabilidade
educacional.
Nos últimos anos, escrevi dois livros aparentemente contraditórios sobre
pedagogia, liderança e mudança nas sociedades do conhecimento. “Teaching in
the knowledge society” (HARGREAVES, 2003) argumenta que as escolas, o ensino
e a aprendizagem precisam ser reconfigurados para preparar todos os jovens para
participar da transformação de suas sociedades em economias do conhecimento
criativas, e para ter oportunidades de emprego nos níveis mais altos dessas
economias em sociedades com competências de alto nível e altos salários.
Aumenta cada vez mais o número de nações que são ou aspiram a ser economias
do conhecimento. Sociedade do conhecimento não é apenas sinônimo de sociedade
da informação. Em uma era de tecnologias eletrônicas, digitais e de satélites, as
sociedades do conhecimento abordam a maneira pela qual as informações e as ideias
são criadas, utilizadas, circuladas e adaptadas com velocidade cada vez maior em

353
354 Hargreaves

comunidades baseadas no conhecimento – isto é, redes de indivíduos que se


esforçam em produzir e circular novos conhecimentos. Nas sociedades do
conhecimento, riqueza, prosperidade e desenvolvimento econômico dependem da
capacidade das pessoas de superar seus competidores em termos de inventividade
e competência, de ajustar-se aos desejos e às exigências do mercado consumidor, e
de mudar de emprego ou desenvolver novas habilidades à medida que o exijam as
flutuações e reviravoltas econômicas. Nas sociedades do conhecimento, essas
capacidades não são propriedade apenas dos indivíduos, mas também das
organizações, que têm a capacidade de compartilhar, criar e aplicar continuamente
novos conhecimentos ao longo do tempo, em contextos culturais de aprendizagem
recíproca e de inovação permanente. As organizações da sociedade do
conhecimento desenvolvem essas capacidades oferecendo a seus membros amplas
oportunidades de aperfeiçoamento e requalificação ao longo da vida; eliminando
barreiras à aprendizagem e à comunicação e fazendo com que as pessoas trabalhem
em equipes superpostas, heterogêneas e flexíveis; considerando erros e problemas
como oportunidades de aprender, mais do que como ocasiões para censurar;
envolvendo todos no quadro geral das metas para as quais a organização se dirige,
e desenvolvendo o capital social de redes e relacionamentos que proporcionam às
pessoas mais apoio e mais aprendizagem.
A sociedade do conhecimento é uma sociedade de aprendizagem. O sucesso
econômico e a cultura de inovação contínua dependem da capacidade dos
trabalhadores de continuar a aprender por si mesmos e com os outros no decorrer
de toda a sua vida profissional.
As escolas que educam os jovens para a sociedade do conhecimento precisam
romper com muitos aspectos do passado. Os modelos agrário e industrial de
escolarização do tipo um professor e uma turma de alunos precisam substituir a
instrução padronizada que enfatiza apenas competências básicas de alfabetização e
operações com números por um currículo mais amplo, mais desafiador em termos
cognitivos e mais criativo; os professores precisam trabalhar e questionar juntos seu
próprio ensino, ao invés de ensinar sozinhos em salas de aula; a formação
profissional deve ser contínua, e não episódica; as avaliações dos professores devem
ser fundamentadas por evidências objetivas ao lado de intuições e experiências
subjetivas; e a profissão docente precisa desenvolver disposição para assumir riscos
e acolher mudanças com satisfação, ao invés de acomodar-se em procedimentos já
testados e rotinas confortáveis. Em outras palavras, a educação na sociedade do
conhecimento requer que deixemos de lado as gramáticas ultrapassadas dos
modelos agrário e industrial de escolarização. Requer também que abandonemos
sua reinvenção anglo-saxônica sob a forma de reformas educacionais padronizadas,
com foco limitado e altamente reforçadas e testadas, que restringem o currículo,
inibem a aprendizagem criativa, minam o ânimo profissional e limitam as linhas
de provimento para o recrutamento de lideranças. Em outras palavras, “Teaching
Mudança pedagógica e educacional 355

in the knowledge society” parece propor um movimento para frente, deixando o


passado para trás.
Um segundo livro – “Sustainable leadership” (HARGREAVES; FINK, 2006)
– parece defender a antítese dessa posição. Baseando-se no desenvolvimento do
conceito e das práticas de sustentabilidade do movimento ambientalista, na
definição de desenvolvimento sustentável do “Brundtland Commission Report”
(BRUNDTLAND, 1987), e no início da Década da Educação para o
Desenvolvimento Sustentável (2005-2015), da ONU (UNESCO, 2005), o livro
argumenta contra as estratégias anglo-saxônicas imediatistas de reforma que
impõem metas de realização de curto prazo, aplicam um currículo definido às
pressas para grupos etários cada vez mais jovens, estimulam o ensino orientado
para exames em um currículo com o objetivo único de alfabetização e de operações
com números, e promovem estratégias imediatistas de substituição de professores
em escolas que apresentam resultados deficientes.
Com base em 30 anos de pesquisas sobre liderança educacional em oito escolas
secundárias dos Estados Unidos e do Canadá, bem como em nosso envolvimento
com a literatura sobre sustentabilidades ambiental e corporativa, Dean Fink e eu
desenvolvemos uma definição de liderança sustentável:
A liderança e o aprimoramento educacional sustentáveis preservam e desenvolvem aprendizagens
efetivas que se disseminam e perduram, de forma que não prejudicam e, pelo contrário, criam
benefícios positivos para os outros à nossa volta, agora e no futuro (HARGREAVES; FINK, 2006).

Dessa definição, e de nosso corpo de evidências de pesquisa derivamos então


sete princípios de sustentabilidade em liderança e mudança educacional:
profundidade, amplitude, persistência, justiça, diversidade, engenhosidade e
conservação. Embora todos sejam relevantes para o futuro da educação e da
pedagogia, dois deles são particularmente pertinentes para este capítulo.
Em primeiro lugar, a educação sustentável faz diferença em termos de
profundidade. Ela preserva, protege e promove aquilo que é, em si mesmo,
sustentador como enriquecimento da vida: o objetivo moral fundamental de
aprendizagem aprofundada, ampla e continuada ao longo da vida para todos (ao
invés de realizações em alfabetização e habilidades numéricas definidas de forma
restrita e testadas de forma superficial), em compromissos e relacionamentos de
cuidado permanente em relação aos outros.
Em segundo lugar, em relação ao princípio de conservação, a educação
sustentável honra o que há de melhor no passado e aprende com ele, de forma a
criar um futuro ainda melhor. Em meio ao caos de mudanças, a educação
sustentável preserva e renova com firmeza objetivos antigos. A maior parte das
teorias e práticas de mudança educacional consiste em mudanças sem passado ou
memória. A educação sustentável revisita e revive lembranças organizacionais e
honra a sabedoria de seus antecessores como forma de aprender com o melhor do
356 Hargreaves

passado, preservá-lo e ir além dele. Define e delineia a aprendizagem continuada


como algo que tece uma narrativa convincente entre o passado, o presente e o
futuro, que mantém unidos os indivíduos e a sociedade.
Sociedades do conhecimento sustentáveis assemelham-se a paradoxos – assim
como escolas de sociedades do conhecimento sustentáveis. Sociedades do
conhecimento promovem inovações, valorizam o que é novo, dependem de
aprendizagem rápida e defendem a busca de transformações. Em contraste, a
educação sustentável valoriza a aprendizagem lenta e aprofundada, e não um
currículo acelerado; pede paciência e persistência na implementação de mudanças;
demanda prudência e engenhosidade, e não investimento energético e mal-
aproveitado; e promove as virtudes de conservação do passado em um mundo
inundado por inovações e mudanças. Requer que se ensine para além da sociedade
do conhecimento, mas dirigindo-se imediatamente para essa sociedade.
Como podemos conciliar inovação e sustentabilidade em sociedades do
conhecimento e em suas escolas? Como construir um futuro com bases no passado?
Como podem conviver e trabalhar lado a lado os enérgicos inovadores e os
prudentes puritanos? Este artigo argumenta que as escolas e as pedagogias da
sociedade do conhecimento sustentável não repelem o passado nem se refugiam
nele, mas o conectam a uma visão motivadora e convincente – em termos
econômicos e sociais – sobre o lugar para onde as pessoas e suas sociedades
caminharão no futuro.

Passado, presente e futuro


As mudanças educacionais e pedagógicas frequentemente não têm lugar para o
passado. A seta da mudança só se desloca para frente. O passado é um problema a
ser ignorado ou superado na corrida para se aproximar do futuro (McCULLOCH,
1997). Para aqueles que são atraídos pela mudança, ou até viciados nela, o passado
é um repositório de resistências regressivas e irracionais de professores que preferem
ficar onde estão e são emocionalmente incapazes de deixar para trás velhos hábitos,
apegos e crenças. O passado ou é uma Idade das Trevas – obscura e pejorativa, com
práticas deficientes ou inadequadas –, que deixa ao ensino legados negativos de
modelos industriais rígidos, ou traz avaliações profissionais desinformadas no
ensino, que impedem a modernização.
Quando tem apenas presente e futuro, a mudança torna-se a antítese da
sustentabilidade. De fato, Abrahamson (2004) descreve a maneira como a síndrome
da mudança repetitiva, com suas intermináveis reengenharias, reestruturações e
reduções de proporção, resulta em uma hemorragia maciça de equipes e lideranças
e, com esta, em uma perda de memória organizacional. Não resta pessoa alguma
para celebrar as tradições da organização, para ser o portador vivo de seus objetivos
e de sua missão, para transmitir o conhecimento e as competências sobre a melhor
maneira de fazer as coisas ou para revelar dicas e atalhos aos novos recrutas.
Mudança pedagógica e educacional 357

Ao invés de tratar os seniores da profissão educacional como professores


indigestos que resistem à mudança, é importante abordá-los como recursos
renováveis e em processo de renovação que, por meio de oportunidades de
orientação, aprendizagem continuada e engajamento em melhorias, podem
efetivamente melhorar a qualidade do ambiente de suas escolas e de seus produtos.
Nesse sentido, a sabedoria e a memória organizacional dos professores precisam ser
parte da solução para a mudança educacional, e não apenas parte do problema.
Como compreenderam intuitivamente os sul-africanos, aqueles que representam
o passado são também uma parte inalienável de nosso futuro em comum. Há pelo
menos três maneiras pelas quais essa conexão essencial entre educação e sociedade
é removida ou negada.

Imersão no presente
Algumas vezes, a ameaça de mesclar futuro e passado não representa uma
rejeição ativa do passado, e sim uma imersão indulgente em um presente que
parece não ter entradas nem saídas. Em uma época de insegurança econômica e
de perda crescente de credibilidade no compromisso e na capacidade da política
de prospectar o futuro não surpreende que as pessoas invistam suas paixões e seus
objetivos no presente. Mas na sociedade do conhecimento pós-industrial, a
esquiva em relação ao futuro é menos marcada por uma resignação fatalista entre
os pobres do que por uma indulgência enérgica por parte dos grupos mais
privilegiados em termos socioeconômicos. Em um tempo de insegurança, muitas
pessoas lidam com a peremptoriedade da morte e o fim do futuro de formas
diferentes das de seus predecessores de outras gerações. Não economizam para
deixar um legado, não se preparam prudentemente para as recompensas últimas
da eternidade religiosa, ou nem mesmo se sacrificam nos campos de batalha em
nome do bem maior da identidade ou da segurança nacional. Ao invés disso,
negam e tentam enganar e controlar a morte por meio daquilo que Bauman
chama de marginalização das preocupações com a irrevogabilidade, por meio da
desvalorização de tudo que é durável, permanente, de longo prazo: a
desvalorização de tudo que tenda a sobreviver à vida individual (BAUMAN,
2006, p. 39).
No culto pós-industrial ao presente, as pessoas “adiam as frustrações, não as
gratificações” (BAUMAN, 2006, p. 8). Vivem de crédito, fazem plástica no rosto,
dilapidam a herança de seus filhos, e gastam em orgias de consumo nas quais cada
um imagina que será jovem para sempre em um mundo que não pensa no amanhã.
Esse consumo do presente é sustentado e estimulado por um ambiente de
trabalho que valoriza o movimento e não a estabilidade, interações de curto prazo
e não relações de longo prazo, e migração de uma tarefa para outra e não o orgulho
de ter domínio sobre uma competência desafiadora (SENNETT, 2001). Nas
palavras de Richard Sennett:
358 Hargreaves

A habilidade social exigida por uma organização flexível é a capacidade de trabalhar


adequadamente com outros em equipes transitórias, (com) outros que você não terá tempo para
conhecer bem. Quando a equipe se dissolve e você entra em um novo grupo, o problema que
você precisa resolver é mergulhar no trabalho o mais rapidamente possível com esses novos
parceiros (SENNETT, 2006, p. 126).

Não se exige nem se deseja aqui engajamento crítico algum, desafio algum aos
objetivos da organização, reflexão alguma de longo prazo ou profundidade moral,
pois “as instituições baseadas em transações de curto prazo e tarefas que mudam
constantemente [...] não geram esse aprofundamento. Na verdade, a organização
pode temê-lo” (SENNETT, 2006, p. 105). A sedução da imersão de curto prazo
nas interações do presente “separa a análise da crença, ignora o elo dos vínculos
emocionais, penaliza o aprofundamento” (SENNETT, 2006, p. 121-122). Nesse
ambiente de tempo presente e de total consumo, “sua competência reside em
cooperar, quaisquer que sejam as circunstâncias” (SENNETT, 2006, p. 126).
Essas predileções e preocupações evidenciaram-se em um projeto que meu
colega Dennis Shirley e eu avaliamos na Inglaterra, e no qual mais de 300 escolas
que tinham apresentado um declínio no desempenho medido durante um ou dois
anos foram conectadas entre si, receberam apoio técnico para a interpretação de
resultados de avaliações, tiveram acesso ao apoio de escolas mentoras e receberam
um orçamento modesto para ser gasto segundo seus próprios critérios, desde que
estes fossem orientados para os objetivos do projeto (HARGREAVES et al., 2006).
As escolas participantes receberam também um cardápio de estratégias gerado para
o profissional visando a melhorias de curto, médio e longo prazo.
As escolas tiveram um sucesso espetacular nas melhorias de curto prazo, mas
poucas delas passaram a envolver-se com processos de melhorias de prazo mais longo.
Em grande parte delas ainda não tinham ocorrido diálogos sobre transformações
mais profundas no ensino. Ao invés disso, professores e escolas implementavam e
trocavam entre si, entusiasticamente, estratégias de mudança de curto prazo:
transmitiam aos alunos estratégias para desempenho em exames, pagavam ex-alunos
para que auxiliassem os alunos atuais, ofereciam aos alunos lanches de água, banana
e alface antes dos testes, ou obtinham o número de telefones celulares para entrar
em contato com alunos que não apareciam nos dias de exame.
No passado, muitos professores sentiram a imposição de metas e estratégias de
curto prazo como uma intromissão profissional indesejável (HARGREAVES, 2003).
Contudo, o projeto para escolas de baixo desempenho venceu a aversão dos
professores a medidas de melhorias no curto prazo, por meio de estratégias de
validação profissional apoiadas pelos colegas, que de fato fizeram diferença em termos
da avaliação do desempenho dos alunos que os professores ensinam nesse momento.
No entanto as novas estratégias de curto prazo e os novos meios de adquiri-las
e permutá-las são tão satisfatórias e bem-sucedidas atualmente que se tornaram um
tipo de dependência, ao invés de algo aversivo. Nas palavras de um professor, essas
Mudança pedagógica e educacional 359

estratégias são “tão engenhosas e incríveis” que podem ser utilizadas de imediato,
e não desafiam nem estimulam o professor a questionar e revisar suas abordagens
usuais ao ensino e à aprendizagem. Recorrentemente, a urgência de melhorar os
resultados provoca nos professores uma euforia pelo sucesso de curto prazo. O
resultado é uma cultura algo hiperativa de mudança que pode provocar entusiasmo,
mas também esvaziamento e confusão.
Em uma das conferências observadas por nós, a maioria das estratégias
compartilhadas por diretores e diretores assistentes em suas discussões era de
curto prazo. Essas estratégias não são apenas de implementação fácil e rápida,
são também explicáveis de forma rápida e fácil – especialmente em um contexto
em que há poucas oportunidades para conversas prolongadas. Em exercícios
de encontros com novos parceiros, antes de se separar, diretores que têm
interesses em comum frequentemente trocam ideias e cartões de visita, em um
ambiente estimulante.
Quando esses intercâmbios estimulantes se combinam com a lógica do
financiamento de curto prazo de propostas, de uma cultura de políticas
caracterizada pelo imediatismo, e de uma cultura de ensino já imbuída de uma
orientação para o momento presente, juntamente com uma linguagem movida
pelo desempenho, na qual professores e diretores não se referem ao envolvimento
com a aprendizagem, e sim ao movimento de alunos rumo às categorias adequadas
de resultados, focalizando os grupos corretos, forçando os alunos com mais vigor,
levando-os adiante, elevando suas aspirações, contendo as pessoas e controlando
firmemente os jovens pela atuação, o resultado é uma pressão combinada no sentido
de preservar e perpetuar a orientação de curto prazo para o presente, sem incentivo
ou estímulo para pensar no futuro ou preparar-se para ele. Nesse cenário de
mudança pedagógica, o futuro recua diante de um presente interminável de maior
eficácia sem transformação pedagógica.
Em contraste, outras propostas de mudança pedagógica e educacional não
negligenciam nem negam o passado, mas voltam a ele como uma forma de
reinventar o futuro. Essas abordagens de volta para o futuro apresentam o futuro
em termos do passado.

A restauração do passado
No início de 2007, quando o governo do Japão, liderado pelo neto do primeiro-
ministro que dirigiu o país durante a Segunda Guerra Mundial, propôs a
reintrodução do patriotismo no currículo, por meio da associação entre imagens
nostálgicas de um passado glorioso e a perspectiva de um futuro mais unificado,
em reação a uma era de insegurança e incertezas crescentes nos valores familiares,
na identidade cultural e em uma ética de trabalho mais antiga. Da mesma forma,
as especificações do governo britânico para o currículo nacional da década de 1990
– de história como sendo a história britânica, e de literatura como sendo a literatura
360 Hargreaves

inglesa – procuravam restaurar o orgulho nacional e a confiança dos pais nas escolas
aludindo a ideias e imagens de estabilidade imperial (GOODSON, 1994).
Um dos exemplos contemporâneos mais dramáticos dessa estratégia de
mudanças recicladas pode ser encontrado nos Estados Unidos. No início de 2007,
o US National Center for Education and the Economy1 divulgou o relatório “Tough
choices or tough times”, produzido por sua New Commission on the Skills of the
American Workforce2. Em continuidade a seu relatório de 1990, que orientou grande
parte do movimento por padrões educacionais nos Estados Unidos, esse respeitado
órgão – que compreende dois ex-ministros de Estado, diversos superintendentes
estaduais e metropolitanos e gestores de escolas, além de uma variedade de CEOs
da área empresarial e líderes sindicais – lançou uma crítica ácida à incapacidade do
sistema nacional de educação pública, inflexível e com baixo desempenho, para
enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades da economia global
contemporânea.
Acompanhando tardiamente (ainda que mal admitindo) a liderança de
organizações internacionais que trabalham com políticas, como a OCDE (OECD,
2000); notando finalmente os já antigos prognósticos de Peter Drucker (1993),
falecido guru e futurista da administração; e entrando finalmente em sintonia com
analistas da sociedade do conhecimento, como Phillip Schlechty (1990) e eu
mesmo (HARGREAVES, 2003), a Comissão apontou o desempenho educacional
em declínio dos Estados Unidos em comparação com outras nações industriais
desenvolvidas. As razões do declínio, segundo a argumentação da Comissão,
estavam enraizadas na qualidade relativamente baixa da força de trabalho docente
do país, em um sistema distorcido pelos excessos de uma padronização
insuficientemente testada, que não estava preparado para a produção da criatividade
e da inovação necessárias para uma força de trabalho altamente competente e bem-
remunerada em uma economia global em rápido processo de mudança.
Nas palavras da Comissão, o estabelecimento de uma posição vantajosa e de
liderança econômica na economia global
[...] depende de uma profunda disposição para a criatividade que se renova constantemente, e de
uma miríade de pessoas que possam imaginar de que forma os indivíduos podem utilizar coisas
que nunca estiveram disponíveis antes, criar campanhas engenhosas de marketing e de vendas,
escrever livros, construir mobiliário, fazer filmes e imaginar novos tipos de software que capturem
a imaginação das pessoas e se tornem indispensáveis para milhões delas (NEW COMMISSION
ON THE SKILLS OF THE AMERICAN WORKFORCE, 2007, p. xviii).

Do ponto de vista educacional, argumentou a Comissão, essas demandas


econômicas exigem muito mais do que um currículo testado de forma convencional
e pouco imaginativa, que focaliza habilidades básicas e memorização de fatos que

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2. NT: Nova Comissão sobre Habilidades da Força de Trabalho Norte-americana (tradução livre).
Mudança pedagógica e educacional 361

somente preparam as pessoas para trabalhos rotineiros de economias com poucas


qualificações, que atualmente outros países ou até mesmo máquinas podem
desempenhar de forma mais barata do que a força de trabalho dos Estados Unidos.
É necessário, ao invés disso, buscar o sucesso com um currículo mais amplo, mais
profundo e mais imaginativo para todos os alunos:
Habilidades sólidas em inglês, matemática, tecnologia e ciências, bem como em literatura, história
e artes serão essenciais para muitos; além disso, os candidatos deverão sentir-se à vontade em
relação a ideias e abstrações, ser competentes em análise e síntese, ser criativos e inovadores,
autodisciplinados e organizados, capazes de aprender rapidamente e de trabalhar de maneira
competente como membro de uma equipe, e ter flexibilidade para adaptar-se prontamente a
mudanças frequentes no mercado de trabalho, à medida que as mudanças na economia se tornem
cada vez mais rápidas e mais drásticas (NEW COMMISSION ON THE SKILLS OF THE
AMERICAN WORKFORCE, 2007, p. xviii-xix).

No entanto as soluções específicas para produzir esse aparente desvio de rota


rumo a uma agenda de aparente pós-padronização da educação, de forma a
aumentar a competitividade na economia global, parecem não ter qualquer
semelhança com a criatividade que supostamente deveriam garantir.
A retrógrada teoria da ação da Comissão (HATCH, 2002) propõe que o
provimento e o acesso à educação para todos sejam mais amplos e de melhor
qualidade, antes e depois da educação formal, juntamente com apoio paralelo às
necessidades de saúde e de assistência social das crianças integradas ao contexto
escolar. Embora isso seja bastante admirável, só o que é necessário dentro da própria
escola é tão somente um currículo mais amplo e mais desafiador, com exames finais
exigentes. Acredita-se que dessa forma seja estimulado um esforço maior por parte
dos alunos, que se supõe que esteja ausente nas expectativas das escolas e na cultura
dos alunos. Professores mais qualificados, cuja tarefa é ministrar o currículo mais
desafiador, serão atraídos por salários iniciais mais altos e estruturas mais flexíveis
de remuneração e de aposentadoria, associadas ao desempenho, e não à senioridade.
Será encorajada a competitividade (embora não a seletividade explícita) entre as
escolas, liberando-as de todo controle, exceto o controle básico do distrito escolar,
criando oportunidades de inovação e redes com outras escolas da vizinhança
imediata e fora desta – mantendo-se procedimentos de intervenção e de controle
em casos de crise ou de desempenho gravemente deficiente. Tudo isso será
alcançado por meio de realocação, e não do aumento de recursos financeiros.
De fato, o percurso da New Commission em direção à era da pós-padronização
é um percurso intrinsecamente, hostilmente e individualisticamente norte-
americano, que retoma e reinventa as soluções retrógradas de um individualismo
competitivo impiedoso e rude que, associado às restrições de uma padronização
desumana, já tinha provocado a falência da educação nos Estados Unidos.
Diferentemente do que ocorreu na maioria dos demais países, a New
Commission propõe-se a manter seu controle inflexível sobre o conteúdo e os
362 Hargreaves

padrões do currículo, e a delegar apenas os meios administrativos (ou a culpa!) para


sua implementação. Da mesma forma, sua estratégia para atrair professores de alto
nível por meio de remuneração reestruturada e vinculada ao desempenho ignora a
extensa evidência histórica, tanto no país quanto no exterior, de que são as
condições precárias de trabalho, o excesso de interferência externa e a liderança
ineficaz que afastam os professores dos pobres, e não a falta de benefícios extrínsecos
ou reestruturados (LORTIE, 1975; NIAS; SOUTHWORTH; YEOMANS, 1989;
ACHINSTEIN; OGAWA, 2006). Além disso, as soluções propostas pelo relatório
e a teoria da ação na qual se baseiam levantam apenas a metade das questões
educacionais urgentes colocadas pelo clima de globalização competitiva. Não
dedicam atenção alguma a reformas que servem ao bem público e não apenas ao
bem da economia privada, tais como, por exemplo, o desenvolvimento de mais
compaixão, comunitarismo, cidadania, democracia e identidade cosmopolita. Em
suma, a mais influente comissão educacional norte-americana propõe aumentar a
inovação e a criatividade na educação levando em conta apenas o objetivo
econômico a que ela serve, e agarrando-se ainda mais resolutamente às estratégias
de centralização do currículo e de competitividade escolar que incialmente
enfraqueceram a eficácia da educação da nação.

Consumindo customização
Por fim, as perspectivas de mudança pedagógica que não descartam, não negam
ou não recriam o passado algumas vezes prometem algo mais radical, inovador e
original, tanto em termos de meios quanto de fins. Um exame mais detalhado, no
entanto, revela que elas talvez não tenham poder de transformação. Assim, o
relatório do UK Gilbert Committee sobre aprendizagem personalizada (GILBERT,
2006; HARGREAVES, 2004) parece defender, em uma era de sociedades do
conhecimento, transformações na aprendizagem e na pedagogia que vão além da
padronização. Na prática, entretanto, o que é defendido não é tanto uma
personalização que conecte a aprendizagem com narrativas e projetos sobre os
aprendizes e os cidadãos de uma nação ao longo da vida, mas sim a customização
dessa aprendizagem, de forma que se torne simplesmente mais flexível quanto à
forma pela qual é acessada, ministrada e apresentada – tal como se carrega um iPod
ou se encomendam opcionais para o automóvel. Aqui a aprendizagem pode ser
acelerada ou desacelerada, customizada e modulada, acessada na escola ou online,
no local ou fora dele, isoladamente ou com outros, ajustada a estilos pré-
identificados de aprendizagem, e apresentada em módulos combinados segundo
as preferências pessoais e a escolha do consumidor.
Assim como uma encomenda sob medida de roupas ou de decoração de
interiores, esse tipo de aprendizagem é simplificada e estilizada, mas é uma
aprendizagem que se omite a respeito de conteúdo, objetivos ou missão em uma
relação pedagógica esvaziada de sentido pessoal e social. Há uma aprendizagem
Mudança pedagógica e educacional 363

rápida e flexível para os criadores e consumidores individuais da sociedade, não


uma aprendizagem que conecte os indivíduos com suas culturas e seu mundo em
um envolvimento vitalício com suas histórias, com as comunidades à sua volta ou
com o futuro que poderiam criar juntos.

Mudança e continuidade pedagógica


Educação e aperfeiçoamento sustentáveis têm a ver com o estabelecimento de
conexões entre o presente, o futuro e o passado de forma a reduzir a pobreza,
diminuir as iniquidades e fortalecer as comunidades e as democracias em um
contexto de desenvolvimento econômico e social sustentável. Embora não deva
jamais endossar cegamente o passado, a mudança educacional sustentável deve
sempre respeitá-lo e aprender com ele em sua busca por um futuro melhor (embora
não necessariamente maior). Três exemplos apresentam caminhos bastante
diferentes para sua consecução.
Envolvimento nativo
Considera-se frequentemente que as estratégias de intervenção e de
investimento do Banco Mundial oferecem soluções de reforma com padronização,
privatização e descentralização, sem levar em conta as culturas locais, que são
tratadas como empecilhos enraizados no passado, e não como recursos para a
construção de um futuro melhor. Essas estratégias descartam e negam o passado à
medida que se engajam na destruição criativa que trará o futuro desejado. Embora
essa crítica seja válida para muitos projetos, uma avaliação feita por mim e por meu
colega Paul Shaw sobre 17 projetos do Banco Mundial/DfID3 revelou algumas
discrepâncias interessantes em práticas e pedagogias que trabalharam com as culturas
locais, e não contra elas (HARGREAVES; SHAW, 2006).
Na Namíbia, um auxílio modesto e prudente de doadores ajudou centros locais
de treinamento a fazer uma coleta de dados sobre as demandas locais dos
consumidores e os pontos de saturação do mercado em termos de habilidades
necessárias, de forma a subsidiar e orientar discussões sobre cursos e provimento
de treinamento em uma base anual ou bienal, ajustada temporalmente conforme
requeriam as flutuações nas condições locais.
No Peru, a indústria de aspargos foi construída sobre uma base adequadamente
desenvolvida de educação formal, cujo centro é uma universidade pública de
agronomia – a Universidade Nacional de Molina, em Lima –, na qual foi treinada
a maioria dos empreendedores dessa indústria. Esses empreendedores, por sua vez,
aprenderam novas técnicas de cultivo e processamento com produtores de aspargos
norte-americanos (verdes) e espanhóis (brancos). Os empreendedores peruanos
foram levados aos Estados Unidos pela Usaid para aprender essas novas técnicas.

3. NT: DfID – Department for International Development (Departamento para o Desenvolvimento Internacional).
364 Hargreaves

Por outro lado, investidores espanhóis foram ao Peru para valer-se dos salários mais
baixos. Em ambos os casos, ocorreu transferência de tecnologia, que foi adaptada
às condições peruanas. Além disso, os empreendedores peruanos aprenderam (e
continuam a aprender) técnicas avançadas de agricultura em desertos irrigados, por
meio de cursos em Israel. Os produtores de aspargos do Peru estão organizados em
uma associação que divulga informações e dá assistência ao marketing. Além disso,
a universidade La Molina produz pesquisas sobre novos produtos para exportação,
bem como sobre controle de pragas e doenças, que são disponibilizadas para os
produtores de aspargos, constantemente adaptadas a condições locais e ensinadas
por grandes produtores para técnicos e pequenos fazendeiros. Essa aprendizagem
continuada produz alto retorno para o desenvolvimento econômico. A indústria
peruana de aspargos exemplifica o valor de tratar os setores público e privado não
como oponentes, mas como aliados, trabalhando em conjunto para dar apoio a
aprendizagem e treinamento permanentes que promovem um bem maior em
termos econômicos e sociais.
Uma das fábricas de sabão da Unilever, na Indonésia, trata a água de um rio
próximo para fabricar sabonete, creme dental e shampoo – uma vez que todos
demandam água limpa. A Unilever tem interesse comercial em melhorar a qualidade
da água na Indonésia, e isso é parte também de sua responsabilidade social e
ambiental. O programa Clean River da Unilever-Indonésia focaliza a sustentabilidade
por meio do envolvimento e do treinamento de todos os moradores das margens
do rio para que contribuam para sua melhoria, e oferece treinamento para que os
moradores dos vilarejos possam cuidar do rio de forma autossustentável.
Todos esses casos mostram que conhecimentos nativos locais, de longa data,
não precisam ser empecilhos para o desenvolvimento da economia do
conhecimento. Ao invés, a cultura tradicional pode ser considerada capital cultural
mantendo também seu valor social por seus próprios méritos. Essa afirmação não
significa apenas mostrar aos mais fracos tolerância em relação à diferença e à
comparação. Trata-se de reconhecer a força do conhecimento tradicional e de
envolver-se com esse conhecimento como uma base sólida para a inovação e o
desenvolvimento do conhecimento no futuro.
Em “Teaching in the knowledge society” (HARGREAVES, 2003), argumentei
que é importante que professores e escolas ensinem para além da sociedade do
conhecimento, ao mesmo tempo que se dirigem para ela – equilibrando a ênfase
da acelerada sociedade do conhecimento em inovação e criatividade, com o
desenvolvimento de lealdade, confiança e coesão social. Porém, atualmente está
claro que a conexão do presente com o futuro e o passado é mais do que uma
questão de compensação e equilíbrio. Essa conexão está no próprio núcleo daquilo
que significa ser uma sociedade do conhecimento que é sustentável e bem-sucedida
em uma sociedade que desenvolve confiança e lealdade, inclusão e equidade,
segurança e proteção como qualidades básicas de uma sociedade e de uma economia
Mudança pedagógica e educacional 365

altamente funcionais. Nessa sociedade, a identidade cosmopolita promove


compreensão humanitária, bem como a capacidade da sociedade e da economia
de aproveitar e desenvolver os talentos de todos os seus membros. E a educação
para o desenvolvimento sustentável contribui para preservar o planeta, sem o qual
é impossível qualquer atividade econômica futura.
Esses princípios, que ilustram de que forma o bem social e o bem econômico
estão entrelaçados, evidenciam-se não apenas nos exemplos de países menos
desenvolvidos descritos acima, mas também em alguns dos sistemas educacionais
e economias de melhor desempenho no mundo. Entre estes, destaca-se a Finlândia.
A escola na Finlândia
Em janeiro de 2007, com os colegas de equipe Gabor Halasz e Beatriz Pont,
desenvolvi um trabalho de investigação para a OCDE sobre a relação entre
liderança e melhoria da escola em um dos sistemas educacionais e economias de
melhor desempenho no mundo: a Finlândia. Depois de visitas e entrevistas com
estudantes, professores, diretores, administradores do sistema, pesquisadores
universitários e funcionários de nível sênior do ministério, começou a emergir uma
narrativa notavelmente unificada sobre o país, suas escolas e sua compreensão sobre
aspirações, lutas e destino.
A Finlândia é uma nação que sofreu quase sete séculos de dominação e opressão
– tendo conquistado sua verdadeira independência somente nas três últimas
gerações. No contexto desse legado histórico, e diante de um clima hostil e rigoroso
e da geografia nórdica, não surpreende que um dos ditos finlandeses mais populares
seja: “foi demorado, foi difícil, mas nós conseguimos!”
Entretanto, não é simplesmente uma perseverança estoica, alimentada pela ética
religiosa luterana de trabalho duro e resiliência, que explica o sucesso da Finlândia
como economia e sistema educacional de alto desempenho. No centro do sucesso
e da sustentabilidade desse país está sua capacidade de conciliar, harmonizar e
integrar elementos que constituem divisores em outras economias e sociedades
desenvolvidas – uma economia próspera, de alto desempenho, e uma sociedade
decente, socialmente justa. Embora a sociedade do conhecimento tenha debilitado
o estado de bem-estar social em muitas outras sociedades, na Finlândia um estado
de bem-estar sólido é um componente central da narrativa nacional, que apoia e
sustenta uma economia bem-sucedida.
Em “The information society and the Welfare State”, Castells e Himanen
descrevem como:
[...] a Finlândia demonstra que não há incompatibilidade entre um estado de bem-estar social
completamente desenvolvido e a inovação tecnológica, o desenvolvimento da sociedade da
informação, e uma nova economia dinâmica e competitiva. Na verdade, [o estado do bem-estar]
parece ser um fator decisivo que contribui para o crescimento dessa economia em uma base estável
(CASTELLS; HIMANEN, 2002, p. 166).
366 Hargreaves

O contraste com países anglo-saxônicos, onde a riqueza material foi conquistada


à custa de uma distância social cada vez maior, e também à custa do bem-estar das
crianças (UNICEF, 2007), não poderia ser mais marcante:
[...] a Finlândia contrasta acentuadamente com o modelo do Vale do Silício, inteiramente
movido por mecanismos de mercado, empreendedorismo individual e cultura de risco – com
custos sociais consideráveis, grave desigualdade social e uma base decadente tanto de capital
humano gerado localmente quanto de infraestrutura econômica (CASTELLS; HIMANEN,
2002, p. 167).

No centro dessa integração bem-sucedida que, em menos de meio século,


transformou a Finlândia de um país rural atrasado em uma potência econômica de
alta tecnologia está seu sistema educacional. Como indicaram em todos os níveis os
respondentes entrevistados pela equipe da OCDE, os finlandeses são movidos por
uma visão social comum e expressa de forma articulada, que associa um futuro
próspero e criativo – como aquele representado pela companhia de telecomunicações
Nokia, cuja operação e cujos produtos respondem por certa de 40% do PIB nacional
(HAIKIO, 2002) – ao sentimento das pessoas sobre si mesmas como dotadas de
uma história criativa e de identidade social. Uma das escolas que visitamos ficava a
apenas duas milhas da casa de um ícone finlandês, o compositor Sibelius. E as artes
visuais, criativas e cênicas são parte integral da educação e da aprendizagem
pemanente de todas as crianças, mesmo após a escola secundária.
Portanto a criatividade tecnológica e a competitividade não separam os
finlandeses de seu passado, mas os conectam a este em uma narrativa unitária de
aprendizagem permanente e de desenvolvimento social. Tudo isso ocorre em um
estado de bem-estar social que promove e orienta (uma palavra favorita dos
finlandeses) o sistema educacional e a economia. Um sólido sistema público de
educação provê educação gratuita como direito universal em todo o percurso
escolar até o ensino superior – incluindo todos os recursos, equipamentos,
instrumentos musicais necessários e refeições gratuitas na escola para todos.
Ciência e tecnologia têm alta prioridade, mas não à custa da arte e criatividade.
Quase 3% do PIB são destinados ao desenvolvimento científico e tecnológico, e
um comitê nacional, do qual fazem parte altos executivos de corporações e reitores
das universidades, e que é presidido pelo primeiro-ministro, orienta e integra as
estratégias econômicas e educacionais.
Como apontaram comentaristas e analistas finlandeses, toda essa integração
educacional e econômica ocorre em uma sociedade que valoriza a criança, a educação
e o bem-estar social, que tem alta consideração pela educação e pelos educadores
como servidores do bem público, que situa o ensino no alto da hierarquia
ocupacional como a profissão mais desejada pelos egressos da escola secundária, e
que, portanto, consegue tornar o acesso ao ensino muito exigente e altamente
competitivo (SAHLBERG, 2006; AHO; PITKANEN; SAHLBERG, 2006).
Mudança pedagógica e educacional 367

A partir de uma visão social amplamente compartilhada, o Estado orienta, mas


não prescreve em detalhes o currículo nacional: equipes confiáveis de professores
altamente qualificados elaboram em conjunto o currículo detalhado a nível de
municípios, de forma que se ajustem aos alunos que conhecem melhor. Em escolas
que se caracterizam por uma tranquilidade incomum, os professores exercem seu
sentido palpável de responsabilidade social e profissional em seus esforços para
cuidar principalmente das crianças que têm dificuldades, de modo a fazer com que
cheguem ao nível das demais. Isso ocorre não por infindáveis iniciativas ou
intervenções direcionadas, e sim pela silenciosa cooperação (outra palavra favorita)
de todos os professores envolvidos.
Na Finlândia, há uma exigência legal de que diretores de escola tenham sido
professores, e que continuem a atuar como professores em sala de aula por no
mínimo de duas a três horas por semana – o que lhes dá credibilidade junto aos
seus professores, permite que continuem ligados às crianças e garante que a
liderança pedagógica não seja apenas uma retórica vinda de cima, e sim uma
realidade viva e cotidiana.
É importante reconhecer que a integração da Finlândia à economia da
informação e ao estado de bem-estar social como uma narrativa contínua de legados
e progressos que define a identidade nacional também tem falhas. Em comparação
com muitos outros países, a Finlândia, com sua história de minoria oprimida e sua
postura defensiva, continua a ser uma sociedade até certo ponto xenofóbica, que
desconfia de imigrantes e de estranhos, e que se sente ameaçada por aqueles que
desafiam ou divergem do modo de vida finlandês (CASTELLS; HIMANEN,
2002). Sem disposição para acomodar taxas mais altas de imigração, a
aposentadoria iminente de grande parte dos trabalhadores Boomere4 (como os
descreveram para nós muitos administradores municipais) aumentará também o
encargo financeiro sobre o estado de bem-estar social e colocará em risco a
sustentabilidade básica da economia finlandesa e a sociedade que depende dela.
Apesar disso, a Finlândia oferece lições essenciais para sociedades que aspiram ao
sucesso em termos educacionais e econômicos, e que também querem ser sociedades
do conhecimento sustentáveis. Construir um futuro sem romper com o passado;
apoiar não apenas a mudança pedagógica, mas também a continuidade; promover
conexões fortes entre educação e desenvolvimento econômico, sem sacrificar a cultura
e a criatividade; melhorar os padrões elevando o nível de muitos ao invés de favorecer
alguns poucos privilegiados; associar a prosperidade privada ao bem público;
desenvolver uma profissão altamente qualificada que produz melhorias por meio de
comprometimento, confiança, cooperação e responsabilidade; infundir e incorporar
liderança pedagógica na atividade cotidiana de praticamente todos os diretores de
escola; e enfatizar princípios de responsabilização profissional e comunitária, e não

4. NT: Boomer – referência à geração Baby Boom, nascida no período imediatamente posterior ao final da
Segunda Guerra Mundial, na qual ocorreu um grande aumento no número de nascimentos.
368 Hargreaves

de responsabilização gerencial – são estas apenas algumas das lições essenciais a serem
extraídas do extraordinário percurso educacional e econômico da Finlândia.
Engajamento ativista
Se a Finlândia parece ser um exemplar atípico e exclusivo de mudança pedagógica
em sociedades do conhecimento sustentáveis, as ruas tensas da Los Angeles
culturalmente diversificada talvez ofereçam um teste mais rígido das maneiras pelas
quais a mudança pedagógica pode ser mobilizada a partir de uma visão social inclusiva
e atraente, que é também sustentada por uma teoria clara de mudança em ação.
Jeannie Oakes e colegas da Universidade da Califórnia, Los Angeles, argumentam
que estratégias convencionais de mudança e reforma fracassam porque a
aprendizagem e o ensino que propõem não têm metas claramente articuladas em
relação à justiça social, exceto aquelas estritamente preocupadas com resultados de
testes e lacunas de desempenho (OAKES; ROGERS; LIPTON, 2007). Além disso,
as estratégias para produzir mudanças são dirigidas para a escola e promovidas por
escolas e profissionais do sistema escolar, com pouco envolvimento de alunos e de
pais, a não ser como alvos ou consumidores dos esforços de mudança. Nesse sentido,
nem os meios nem os fins da maioria dos esforços de mudança, nem as teorias de
ação que os sustentam desafiam ou confrontam as estruturas de poder e de controle
da sociedade que protegem sistematicamente escolas, programas e estratégias
pedagógicas particularmente vantajosos para as elites e seus filhos.
A título de resposta, Oakes e colegas (2006) baseiam-se nos princípios de
pesquisa participativa de John Dewey (1927), bem como em tradições norte-
americanas de ativismo e organização comunitária, para propor mudanças nos
níveis da sala de aula e da escola que melhoram o desempenho e garantem
melhorias mais amplas, por meio da associação entre estudantes pobres e de
minorias com baixo desempenho e redes de pesquisadores universitários e
professores que lhes oferecem treinamento e apoio para que investiguem e depois
atuem sobre suas próprias condições de educação e de vida. Essas formas de
pesquisa em colaboração não são meramente pedagogias culturalmente responsivas
que reagem aos estilos de aprendizagem culturalmente diversos de diferentes
estudantes (LADSON-BILLINGS, 1995); nem são apenas atos de instrução ou
criatividade intelectual cooperativa que estimulam realizações cognitivas. Antes,
em sintonia com o legado de Paulo Freire (2000), essas práticas, que Oakes e colegas
ajudaram a criar na prática tanto quanto na teoria, melhoram o desempenho e as
condições de desempenho para outras pessoas ao ajudar os alunos a investigar,
compreender e querer atuar sobre as condições que afetam sua própria vida e sua
educação, assim como as de suas comunidades – edificações dilapidadas, turmas
grandes, agrupamento de alunos por habilidades acadêmicas, que resulta em
divisão, livros e materiais inadequados, escassez de professores qualificados e poucas
oportunidades de aprendizagem.
Mudança pedagógica e educacional 369

Essas práticas pedagógicas transformadoras estão associadas a uma orientação


ativista dos alunos envolvidos, e também de seus pais e das comunidades locais
que, com argumentos baseados em evidências e com estratégias e conhecimentos
disruptivos, desafiam burocratas e legisladores a oferecer oportunidades
genuinamente iguais para pobres e ricos. Nas palavras de uma velha canção
irlandesa de resistência, essas estratégias são “o vento que agita a cevada”.
Essas vívidas pedagogias dos oprimidos talvez não possam ser aplicadas em
qualquer contexto – particularmente em grandes centros urbanos, onde a pesquisa
local e a capacidade filantrópica são mais fortes (uma objeção que os autores deixam
de lado com excessiva facilidade) –, mas redes em defesa de reformas mobilizadas
pelo público, e não impostas burocraticamente, vêm-se difundindo rapidamente nos
Estados Unidos (SHIRLEY; EVANS, 2007), com pedagogias ativistas de investigação
entre pais e alunos um fator fundamental nessa arena de influência crescente.

Conclusões
O que podemos concluir sobre a mudança pedagógica em sociedades do
conhecimento sustentáveis? Desde a publicação de “Teaching in the knowledge
society” (HARGREAVES, 2003), persistem as evidências de que o sucesso e a
prosperidade na economia ainda dependem de inovações bem-sucedidas nas
atividades baseadas na informação. Sucesso e prosperidade dependem também, em
todas as esferas, da capacidade de acessar e circular conhecimentos de forma
inclusiva e intensiva, para acelerar o ritmo da competividade econômica juntamente
com a eficiência dos serviços públicos, por meio de mais consciência pessoal,
conectividade e responsabilidade – até mesmo e especialmente entre doentes e
idosos (CASTELLS; HIMANEN, 2002).
Persiste, portanto, a necessidade de cultivar pedagogias que enfatizem a
criatividade; que desenvolvam conhecimentos aplicados como forma de melhorar
a capacidade de resolução de problemas; que promovam aprendizagem permanente
e capacidade de adaptação e de mudança, à medida que o ambiente de trabalho as
exija; e que adaptem o ensino e a aprendizagem, de forma que a aprendizagem
possa ser acessada nos locais, estilos e gêneros mais eficazes para cada estudante
individualmente, e que maximizem seu desempenho e suas habilidades.
Escrito e publicado logo depois do 11 de setembro, “Teaching in the knowledge
society” levantou problemas paralelos de justiça, humanidade e segurança. Esses
problemas só vêm-se intensificando. Quando a nação mais rica do mundo
transformou seu ultraje de 11/9 em conquista militar da civilização mais antiga do
planeta, e quando seus aliados anglo-saxões ao redor do Atlântico e do Pacífico
resolveram, praticamente por si sós, associar-se a essa empreitada, a consequência
não foi a disseminação da democracia e da estabilidade, e sim a morte e o
deslocamento de pessoas e de suas famílias por todo o Oriente Médio – e mais
terrorismo, insegurança e fundamentalismo seguiram-se rapidamente em seu rastro.
370 Hargreaves

Ademais, um relatório do UNICEF (2007) sobre o bem-estar de crianças em


21 países, que posicionou duas das economias mais ricas do mundo – Reino Unido
e Estados Unidos – nos níveis mais baixos da hierarquia de bem-estar entre todos
os países industrializados cobertos pela pesquisa, demonstra que riqueza e
prosperidade não garantem justiça e bem-estar.
À medida que nossas crises humanas e planetárias tornam-se mais palpáveis,
começam a emergir novas pedagogias de humanidade – promovendo cidadania e
letramento emocional, e atenção ao bem-estar da criança. Intervenções curriculares
vêm sendo feitas em história e geografia, no ensino sobre sustentabilidade ambiental
e sobre o que significa para todas as culturas em uma nação ser norte-americano,
japonês ou britânico. Contudo, essas medidas tipicamente são acopladas a práticas
pedagógicas existentes, em vez de substituí-las. Esses cursos de cidadania, mudanças
curriculares, programas de letramento emocional e outras intervenções apenas
inundam o sistema e sobrecarregam seus professores e líderes com ondas repetidas
de iniciativas indesejadas, que intensificam a síndrome de mudanças repetitivas
descrita por Abrahamson (2004).
Na Finlândia, eu e meus colegas da OCDE perguntamos como era possível que
diretores de escolas ainda ensinassem, além de liderar seu sistema educacional de
alto desempenho no limite superior da economia global. “É porque”, respondeu
um deles, “diferentemente dos países anglo-saxões, não temos que perder tempo
respondendo a longas, longas listas de iniciativas governamentais criadas de cima
para baixo”.
As soluções pedagógicas para uma sociedade do conhecimento sustentável não
se encontram na obsessão dos governos com metas e escores de testes, nem no pânico
político que precipita infindáveis intervenções e iniciativas. Tampouco se encontram
necessariamente em inovações pedagógicas enérgicas a respeito de múltiplas
inteligências, estratégias de aprendizagem cooperativa, ou aprendizagem cerebral.
Os professores finlandeses, por exemplo, são notoriamente discretos e até um pouco
conservadores (embora não teimosamente tradicionais) em suas estratégias
pedagógicas (SAHLBERG, 2006; AHO; PITKANEN; SAHLBERG, 2006).
Em vez disso, às margens do mundo econômico vimos os benefícios da conexão
entre modernização inovadora com conhecimentos nativos de longa data. Na
Finlândia vimos também de que forma currículo, pedagogia e orientação podem
ser tecidos juntos em uma visão e uma prática educacionais integradas, que também
estão associadas a uma visão social sobre onde os indivíduos e a sociedade estiveram
e para onde caminham – uma visão orientada por um Estado confiável, mas que
nunca é manipulada em nível micro por uma burocracia política interferente. Por
fim, na Cidade dos Anjos vimos o valor da pesquisa participativa e do ativismo
social para o engajamento dos estudantes na compreensão e, em seguida, na atuação
sobre as condições opressivas que restringem sua aprendizagem – mostrando que
estratégias de ensino e aprendizagem de sociedades do conhecimento socialmente
Mudança pedagógica e educacional 371

sustentáveis não são apenas inteligentes e intelectualmente criativas, mas também


mobilizadas moralmente e socialmente justas.
Nosso passado é parte de nosso futuro. Se tentarmos deixar nossa bagagem para
trás na corrida em direção ao progresso só vamos descobrir que continuamos a
tropeçar nela. A prosperidade para todos é uma meta adequada, mas não a qualquer
preço. Agora nossas prioridades principais devem ser sustentabilidade, justiça social
e a simples sobrevivência. E pedagogias humanistas, criativas, participativas, em
escolas nas quais cada criança realmente importa, que são guiadas por sistemas
confiáveis e movidas por envolvimento parental, ao invés de invadidas por iniciativas
indesejadas, oferecem alguns dos caminhos mais promissores nessa direção.
A sociedade do conhecimento e da informação deve poder conviver com um
estado do bem-estar social forte e capaz de oferecer apoio. O leão pode deitar-se
ao lado do cordeiro. Prosperidade e segurança devem coexistir lado a lado. As duas
últimas décadas foram dominadas por estratégias anglo-saxônicas de melhorias e
intervenções impiedosas, movidas por avaliações que resultaram apenas em
aumento da pobreza e da iniquidade, e outros dejetos sociais. É tempo de substituí-
las por outras sensibilidades mais sustentáveis.

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SEÇÃO 7

UMA NOVA MANEIRA DE PENSAR


61

INTRODUÇÃO EDITORIAL:
UMA NOVA MANEIRA DE PENSAR

Robert Cowen

Um dos relatórios oficiais sobre a educação na Inglaterra começava com uma


frase ambígua do tipo “no coração do sistema educacional encontra-se a criança”.
A frase surpreendeu-me e perguntei a mim mesmo como foi que os redatores do
serviço público britânico, normalmente tão impecáveis, tinham conseguido
formulá-la. Palavras simples, com certeza, embora um tanto inquietantes. Podemos
tomar a frase emprestada: a sentença “no coração da educação comparada encontra-
se o sistema educacional” cria uma ambiguidade útil.
O sistema educacional é um dos nossos problemas. Ao aceitar o sistema
educacional no coração de uma educação comparada acadêmica, nos termos da
universidade, deparamo-nos com quatro problemas imediatos.
1. Em que base é possível julgar os sistemas educacionais? Ou seja: o problema do
relativismo.
2. Em que base é possível agir nos sistemas educacionais? Ou seja: o problema da práxis.
3. Em que base é possível descrever os sistemas educacionais? Ou seja: o problema
da banalidade.
4. Em que base é possível interpretar os sistemas educacionais? Referi-me a essa
questão anteriormente, nestes volumes, como o “problema da osmose”.
Esses problemas certamente são ampliados quando a educação comparada
assume toda sua complexidade e trata da problemática da transferência segundo
uma teoria de relações educacionais internacionais que, por sua vez, faz parte de
uma interpretação das relações econômicas e políticas internacionais.
Fiquemos, porém, na versão mais simples do problema: como estamos lidando
com as questões de relativismo, práxis e banalidade, e aonde elas nos levam?

O problema relativista
O problema relativista foi em parte ocultado pelas promessas duplas (liberais)
de progresso e melhoria da condição humana. Assim, dependendo da educação
comparada que se examina e da época em questão, pode haver uma promessa de
melhor entendimento ou de reforma mais fácil. Para Sadler, o que promete a
educação comparada – ao olhar para o que se passa no exterior – é um melhor

377
378 Cowen

entendimento daquilo que se passa no plano doméstico. No âmbito pessoal,


Lauwerys era profundamente comprometido com a proposição de que “uma vez
que as guerras começam na mente dos homens, é na mente dos homens que devem
ser construídas as defesas da paz”. Sua educação comparada inspirava-se (em parte)
na necessidade de entendimento internacional.
Entretanto, na literatura profissional da educação comparada, é difícil encontrar
uma condenação dos padrões educacionais da África do Sul dos tempos do
apartheid, da inversão do princípio de seleção por classe na União Soviética, da
Revolução Cultural na China e das pressões extremas impostas às crianças no Japão,
em Hong Kong ou na Coreia do Sul, pelos sistemas de exames. Raramente os
sistemas educacionais são condenados – excetuando-se, obviamente, os protestos
ligados a identidades oprimidas: questões de raça, cor, gênero e religião.
Os educadores comparativistas não são, presumivelmente, nem mais nem
menos gentis ou mal-humorados do que os demais acadêmicos. No entanto, têm
um problema especial: parte da imersão inicial no campo envolve aprender a gostar
do que é estranho, exótico e difícil de entender. Incentivam-se a tolerância e a
empatia com relação ao que é estrangeiro como virtudes profissionais e adquiridas.
A única coisa que perturba esse equilíbrio é a invocação de princípios universais.
Na interseção de um importante aspecto de identidade pessoal com um sistema
educacional que viola essa identidade pode haver alguma condenação pessoal:
George Bereday e Edmund King tiveram uma discussão desse tipo, em público e
impressa, sobre classe e raça.
Vagamente internacionalista, às vezes gentilmente marxista ou neomarxista,
profissionalmente relativista, quando é que a educação comparada julga com outras
bases, distintas de convicções políticas pessoais, resultados do Pisa, identidade
expatriada ou (atualmente) princípios do que é politicamente correto? Quando é
que ela deveria julgar, e com quais critérios?

O problema da práxis
Pode-se afirmar com certa confiança que o sistema educacional norte-americano
é insatisfatório. Mais precisamente, o estrangeiro que observa a educação nos
Estados Unidos aponta um fluxo de críticas detalhadas proveniente do mundo
acadêmico durante os últimos 40 anos. Claramente, então, esse sistema educacional
é ruim e precisa desenvolver-se com apoio de consultores externos e ajuda
internacional – e os Estados Unidos são um caso que requer tratamento.
Fica claro também que isso não vai acontecer.
A ação de estrangeiros sobre os sistemas educacionais, mesmo a mais banal
consultoria, normalmente ocorre em condições bastante específicas de
desequilíbrios no poder político e econômico, e a adoção de uma condição de
suplicante – ou por meio de ocupação, como no caso do Japão e da Alemanha em
1945. É bastante útil também que o que está errado com o sistema educacional
Introdução editorial: uma nova maneira de pensar 379

seja um quebra-cabeça de ações comuns: baixas taxas de alfabetização, número


insuficiente de mulheres diplomadas, instrução escolar ineficiente e ineficaz, e,
agora, recuperação após episódios de violência. Preconiza-se ação comparada
organizada e aplicada – a transferência de uma gama limitada de ideias, princípios
e processos educacionais – diante de uma situação de carência de capacidades
domésticas para uma atuação bem-sucedida, incluindo deficiências financeiras e
de qualificação, uma posição de suplicante em termos políticos e a existência de
canais de ajuda.
Assim, além das questões relacionadas a traduções (isto é, entender a realidade
local suficientemente bem para entender a mudança de forma que inevitavelmente
vai acontecer se um padrão educacional estrangeiro for introduzido), há um
problema moral e ético ainda maior. Na educação-de-ação comparada, quando
dizer “não”, especialmente (a) considerando que a maior parte da educação-de-
ação comparada ocorre no interior de relacionamentos políticos, culturais e
econômicos muito desiguais e (b) considerando o problema relativista de uma
educação comparada imparcial? Consultar em Burma? Quando e por quê?
O terceiro problema diz respeito tanto à educação-de-ação comparada (o que
mais se sabe, além de algo sobre sistemas educacionais) como à educação comparada
como estudo de sistemas educacionais em contextos sociais e culturais (o problema
osmótico).

O problema da banalidade
Consideremos as categorias tradicionais que usamos para descrever sistemas
educacionais: objetivos, estrutura (o padrão de escolas de primeiro e segundo
níveis), administração e gestão, finanças, currículo, formação de professores,
exames, talvez educação técnica profissional e, possivelmente, ensino superior.
É claro que há especialistas que oferecem uma compreensão complexa e
sociológica, ou complexa e histórica de camadas particulares ou níveis de um sistema
educacional. Robin Alexander sobre currículo; Peter Jarvis sobre aprendizagem ao
longo de toda a vida; Guy Neave sobre educação de nível superior – todos eles nos
vêm à mente, e estão presentes em capítulos destes volumes. Porém, de modo geral,
é difícil não pensar que colecionar descrições de sistemas educacionais é como
colecionar números de trens: só é interessante se você já faz isso por hobby.
Mesmo assim, a situação piora, e então a banalidade transforma-se em algo um
pouco mais complexo.
Da descrição de sistemas educacionais passa-se rapidamente à identificação de
semelhanças e diferenças. De repente, o problema são os clichês da área – a educação
comparada compara; justapõe descrições educacionais; e identifica semelhanças e
diferenças. Porém, mais uma vez, e de modo geral, é difícil não pensar que o
pensamento que identifica semelhanças e diferenças em sistemas educacionais é
como colecionar números de trens: só é interessante se você já faz isso por hobby.
380 Cowen

A situação fica cada vez pior. Se a educação comparada é principalmente


justaposição de descrições educacionais construídas nas categorias tradicionais de
descrição que identificamos acima, e se essas descrições contêm semelhanças e
diferenças que podem ser especificadas, então é preciso explicar as semelhanças e
diferenças – o que, tradicionalmente, tem levado a educação comparada (e,
normalmente, J. S. Mill) a identificar as causas de semelhança e diferença.
Assim, a educação comparada cai na sua própria armadilha, ao aceitar suas
tradições antigas e sua conversa pedagógica de maneira excessivamente superficial.
Cai na própria armadilha de banalidades formais (as descrições justapostas); da
banalidade do que ela relata – descrições fortemente influenciadas pelos níveis de
sistemas educacionais pelos quais diferentes administradores normalmente são
responsáveis; e de um modelo muito tradicional de como se chega a compreender
as causas das coisas.
Contudo, é o problema osmótico – a relação do que está fora da escola com o
que está dentro da escola – que dá uma vida intelectual a esse aspecto narrativo da
educação comparada (a descrição de sistemas educacionais), de modo que existe
aqui uma dupla trivialidade. As listas de semelhanças e diferenças em descrições
educacionais de sistemas não são sequer o que precisa ser explicado. Felizmente
não se publica mais esse tipo de artigo.
Entretanto, as consequências de tudo isso são enormes.
• A agenda intelectual da educação comparada torna-se limitada no tempo
(somente estudos do sistema educacional contam como educação comparada).
• A forma clássica de educação comparada passa a ser a justaposição de descrições
educacionais, talvez com comentários assistemáticos sobre o contexto.
• Qualquer coisa educacional pode ser comparada: o número de horas passadas
fazendo lição de casa em dois ou mais países; as atitudes das mães com relação
às escolas de primeiro ciclo; e se os professores são felizes.
• Entretanto, o que geralmente se descreve nos trabalhos comparativos habituais
é algum aspecto notável, contemporâneo da política educacional.
Construímos, assim – começando com Jullien – uma armadilha modernista
para a educação comparada.
A armadilha modernista tem várias características:
(i) Somente alguns padrões espaço-temporais merecem investigação séria.
(ii) As investigações fora de padrões espaço-temporais da história contemporânea
constituem educação protocomparada porque não investigam o sistema
educacional. Consequentemente, a maioria das experiências educacionais do
mundo são deixadas de lado e permanecem inexploradas.
(iii) O sistema educacional e aconselhamento sobre os problemas mais relevantes
ligados a políticas passam a ser o foco da educação comparada – a um só
tempo sua práxis e seu trabalho intelectual.
Introdução editorial: uma nova maneira de pensar 381

(iv) Entre os problemas ligados a políticas, os mais visíveis e urgentes dizem


respeito à agenda de trabalho; o que confirma a educação comparada como
confiável, relevante e útil.
(v) Para isso é preciso que o trabalho anterior seja permeado pela especificação
de semelhanças e diferenças na provisão de educação, e por uma compreensão
das causas dessas diferenças por meio do método comparativo.
Em parte, como consequência dessa definição de base universitária, que
considera a educação comparada como um campo de estudo muito moderno (ou
moderno tardio) e uma área de trabalho intelectual altamente relevante e útil –
um tema que se vincula muito bem com muito da nossa própria história tradicional
–, a educação comparada é cada vez mais visível e bem-sucedida. As estruturas
superficiais da educação comparada (seus periódicos, seus departamentos, suas
associações profissionais) aparentemente vão muito bem.
Sob a superfície das consultorias prestadas, dos estudantes formados, dos
contratos obtidos, dos periódicos lançados e revitalizados existem confusões a
respeito do que a educação comparada é atualmente, e do que poderia ser.
A questão agora é repensar. Nesta seção (e também na seção 8 desta obra)
delineiam-se novas questões e algumas novas respostas.
Existem algumas outras alternativas além daquela de ser meramente moderno.
62

O MAPA DA EDUCAÇÃO COMPARADA


DEPOIS DA PÓS-MODERNIDADE

Rolland G. Paulston1
Para Isaiah Berlin, in memoriam

“Dois excessos: excluir a Razão, admitir somente a Razão”.


(Blaise Pascal, “Pensées”)

“Quem faz o bem ao outro deve fazê-lo nos mínimos detalhes. O Bem
Geral é a justificativa do imoral, do hipócrita e do falso; pois a Arte e a
Ciência não podem existir senão em detalhes minuciosamente organizados”.
(William Blake, “Jerusalém”)

Este artigo examina o desafio pós-moderno ao modo como chegamos a ver,


representar e praticar uma educação comparada e internacional. Em termos mais
específicos, faço três perguntas: (1) Uma leitura cuidadosa da literatura relacionada
ao tema permite identificar e classificar as posturas ou argumentos mais importantes
no debate pós-modernista em nosso campo? (2) Como poderiam ser mapeadas
essas posturas ou comunidades de conhecimento como um campo discursivo de
perspectivas e relações diversas? E em seguida, usando esta heterotopia de diferentes
modos de ver o que Blake chama de mínimos detalhes, ou mininarrativas, (3) o
que se poderia concluir razoavelmente com relação ao desafio pós-moderno de
multiplicidade de perspectivas e seu impacto sobre o modo como nós, adeptos da
educação comparada, escolhemos representar nosso mundo?
Em primeiro lugar, porém, algumas palavras sobre os conceitos e métodos
essenciais usados neste estudo. Não faço distinção alguma ao usar os termos “pós-
moderno”, “pós-modernismo” ou “pós-modernidade”, embora muitos livros o
façam.2 Meu único interesse nesses termos é identificar e mapear cerca de 60 textos,

1. Agradeço ao professor Roger Boshier e a seus alunos da Universidade de British Columbia, que me
convidaram a apresentar uma versão deste artigo como uma palestra de abertura no Encontro Regional
Ocidental da Sociedade de Educação Comparada e Internacional, em junho de 1998. Agradeço também aos
três revisores por seus comentários de grande ajuda.
2. Para quem se interessa pelas complexidades das novas ideias e terminologia da ciência social na educação
depois da modernidade, ver, entre outros: BUENFIL-BURGOS, 1997, p. 97-107; ENGLISH, 1998, p.
426-463. Para um livro introdutório acessível sobre a cultura popular e a condição pós-moderna, ver
Anderson, “Reality isn’t what it used to be” (1990).

383
384 Paulston

que constituem tudo o que consegui encontrar sobre o assunto. Ao apresentar o


debate da pós-modernidade na educação comparada e o discurso a ela relacionado
como um conjunto de relações textuais, espero evitar uma aparência de dualismo
e uma luta binária de opostos. Pelo contrário: vejo todas as posições existentes no
campo como inter-relacionadas e, talvez, mais bem compreendidas como um
espaço intertextual que permite a negociação de significados e valores.
A fim de classificar e mapear, devo, antes de mais nada, penetrar nos textos e
revelar como a realidade é vista (ou seja, a ontologia), em que normas ou códigos
históricos baseiam-se as verdadeiras afirmações (ou seja, a genealogia), e de que
modo o processo de estrutura narrativa escolhido produz uma perspectiva, ou um
relato de transmissão (ou seja, a narratologia). Ao escolher a narrativa como
estrutura temática, procuro destacar dimensões específicas de textos no debate, sem
deixar de reconhecer que alguns aspectos do texto são colocados em primeiro plano
em detrimento de outros.
Consequentemente, minha leitura só pode ser entendida à luz da heterogeneidade
possível de cada texto. As leituras de outras pessoas, inclusive dos próprios autores,
certamente produziriam interpretações e mapeamentos diferentes. Compartilhar e
criticar nossas colaborações interpretativas e cartográficas ajudará a conhecer melhor
a nós mesmos, aos outros e ao mundo que juntos construímos. O que é preciso
lembrar aqui é que meu propósito é ler e interpretar textos escritos e figurais, e não
autores, o que, na medida do possível, exige deixar que os textos falem por si mesmos
para contar suas próprias estórias, para isso recorrendo a citações.
Sempre entendi a postura pós-moderna como uma sensibilidade irônica, uma
consciência reflexiva cada vez maior, uma consciência crescente do eu, de espaço e
de multiplicidade. Lá onde o projeto iluminista normalmente usava a razão e a
ciência em seus esforços para fazer com que o estranho passasse a ser normal, os
defensores do anti-Iluminismo3, e, mais recentemente, os pós-modernistas
procuraram tornar estranho, ou incerto, o que é familiar. Isso traz à mente o antigo
contraste existente no pensamento clássico entre harmonia e racionalidade
apolíneas e descentralização e desconstrução dionisíacas. As teses específicas dos

3. Berlin identifica as três ideias centrais do anti-Iluminismo como: (1) populismo, ou a visão de que as pessoas
só podem perceber elas mesmas plenamente quando pertencem a grupos ou culturas com raízes; (2)
expressionismo, ou a noção de que todos os trabalhos humanos são, acima de tudo, vozes que falam ou formas
de representação que transmitem uma visão de mundo; e (3) pluralismo, ou o reconhecimento de uma
variedade potencialmente infinita de culturas, modos de ver e sistemas de valores, todos igualmente
incomensuráveis entre si, o que torna logicamente incoerente a crença iluminista em uma narrativa dominante
com validade universal, ou uma via ideal para o progresso e a realização do homem. Berlin identifica como
principais expoentes do Iluminismo: Niccolo Machiavelli, Giambattista Vico, William Blake, Johann Herder,
Alexander Herzen e outros, incluindo Georges Sorel e Friedrich Nietzche (BERLIN, 1980, esp. p. 1-24).
4. Uma exposição mais detalhada encontra-se em Owen, que sugere que a teoria pós-moderna busca deslocar
o trabalho da ciência social – de afirmações de verdade colocadas teoricamente para representação de novos
terrenos sociais e intertextuais em fluxo constante (OWEN, 1997, p. 1-22). Ver um guia útil de análise textual
exegética como leitura atenta (FRANCESE, 1997, p. 107-154).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 385

defensores pós-modernistas – isto é, dos atuais dionisíacos – tendem a focalizar o


que eles viram como falsas certezas da modernidade a partir da década de 1960.
Talvez possamos distinguir cinco teses pós-modernas em particular.4 Em primeiro
lugar vem uma rejeição das bases do Iluminismo, que se encontram nas narrativas
grandiosas de progresso, emancipação e razão. Essas metanarrativas são vistas como
terror, silenciando as pequenas narrativas ou, nas palavras de Blake, os detalhes
minuciosamente organizados do Outro.
Uma segunda tese é a rejeição do conhecimento universal ou hegemônico, de
qualquer concessão de privilégio apriorístico a um dado regime de verdade (isto é,
funcionalismo, marxismo, pós-modernismo ou similares), e a necessidade de um
pluralismo crítico anti-hegemônico na investigação social. Uma terceira tese critica
as tentativas de fazer julgamentos entre afirmações cognitivas e teóricas conflitantes
a partir de uma posição de privilégio assumido ou usurpado. Mais exatamente, os
textos pós-modernos veem todas as afirmações de conhecimento como problemáticas.
A ideia de um conhecimento universal descontextualizado que pode nos libertar é
considerada uma autoilusão talvez bem-intencionada, porém ingênua. Os textos
feministas, em sua rejeição das verdades patriarcais, acrescentam à crítica pós-
modernista a noção de um eu heterogêneo. Contrastando totalmente com o ator
autônomo cartesiano encontrado nos textos da modernidade, a identidade da era
pós-moderna é vista como mutável e contextualmente variável. Os corpos também
são vistos como um terreno de contestação, a respeito do qual é possível pensar de
maneira diferente sobre quem somos e quem poderíamos vir a ser.
Uma quarta tese debatida em textos pós-modernos ataca o eurocentrismo e
procura abrir a prática do conhecimento a experiências pós-coloniais e a códigos e
interpretações culturais não ocidentais. A quinta tese argumenta em favor de uma
mudança na pesquisa de tempo para espaço, de fatos para interpretações, de
posturas enraizadas para leituras narrativas e de testagem de proposições para
mapeamento de diferenças.
Talvez a única característica isolada mais importante da sensibilidade pós-
moderna seja uma mudança ontológica de uma visão essencialista de uma realidade
fixa – isto é, a razão controlando o princípio do universo – para uma visão
antiessencialista, em que os constructos da realidade aparecem como resistentes ao
fechamento e a afirmações de que verdades múltiplas e diversas passam a fazer parte
de uma luta contínua, árdua ou contestada.
A questão central da mudança social no debate mais amplo do pós-modernismo
também é a questão no debate mais recente em educação comparada. Ou seja: será
que os eventos contemporâneos – como tendem a argumentar os pós-modernistas
– marcam um movimento no sentido de uma nova forma distinta de condições
sociais caracterizadas por relações não mecânicas, porém complexas, que “aparecem
como um espaço de caos e indeterminação crônica, um território sujeito a um
significado oposto e contraditório conferindo afirmações e, portanto, perpetuamente
386 Paulston

ambivalentes” (BAUMAN, 1992, p. 193)?5 Ou, ao contrário, como tendem a


argumentar os textos neomodernistas, será que os eventos contemporâneos são mais
considerados como processos racionais internos ao desenvolvimento de uma
modernidade tardia global e reflexiva? 6
Antes de examinar textos ilustrativos que constroem posturas nesse debate,
poderíamos, em primeiro lugar, observar certos prenúncios dessas trocas durante as
primeiras guerras de paradigmas. Em “State of the art”, edição de 1977 da
“Comparative Education Review”, organizada por Andreas Kazamias e Carl Schwartz,
por exemplo, a capa mostra uma casa de conhecimento quebrada, o que significa, na
minha leitura, o estado conflitante do campo naquele momento (ver Figura 1). Mesmo
assim, observe-se que o acadêmico perplexo e com a cabeça nas nuvens7 continua
inteiro e desolado, um intelectual de nível sênior usando os trajes típicos da elite
acadêmica norte-americana (Ivy League). Essa imagem sugere um mundo material
cuja estrutura está desorganizada, e parece questionar se o poder do pensamento
professoral racional (isto é, a teoria) pode reconstruir os fundamentos da área.

Fig. 1. Charge do modernismo tardio retratando a estrutura da


educação comparada, que já foi sólida, depois das guerras de paradigma
da década de 1970 e da desconstrução estrutural. Aparentemente, ela
surge em relação ao modo como devemos conservar nossa identidade
moderna e, ao mesmo tempo, lidar com a crise.
Legenda: Edição especial: o estado da arte – funcionalismo estrutural;
pedagogia; custo-benefício; produção; desenvolvimento; humanidade.
Fonte: Capa. Comparative Education Review, n. 21, Jun./Oct. 1977.

5. Anteriormente, talvez antecipando a revolução do ciberespaço, Foucault argumentava que hoje de fato
aconteceu uma mudança fundamental de consciência – de tempo para espaço: “[o] grande temor obsessivo
do século XIX era a história, com seus temas de desenvolvimento e estagnação, crises e ciclos, a acumulação
do passado, o que restou dos mortos. O da nossa própria era, por outro lado, parece ser o espaço. Estamos
na era da simultaneidade, da justaposição, do próximo e do distante, do lado a lado, e do disperso. Um
período em que o mundo testa a si mesmo, não tanto como um grande modo de vida destinado a crescer no
tempo, mas como uma rede que une pontos e cria sua própria confusão [como mostram a Tabela 1 e a Figura
2]. Pode-se dizer que certos conflitos ideológicos subjacentes às controvérsias de nossos dias acontecem entre
os piedosos descendentes do tempo e os tenazes habitantes do espaço” (FOUCAULT; MISKOWIEC, 1986).
6. Ver discussões esclarecedoras da visão de mundo da modernidade reflexiva – ou modernidade tardia – em
Beck, Giddens e Lash (1994).
7. NRTT: O termo de língua inglesa egghead, mais usado nos Estados Unidos do que na Inglaterra, é impossível
de traduzir. Ele não tem o mesmo valor metafórico em português. O sentido é de um intelectual muito
inteligente, mas pouco ou quase nada prático no mundo real.
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 387

Em uma contribuição para esse número especial, propus (ver Tabela 1) que os
profissionais da educação comparada fizessem uma volta no espaço e se tornassem
acadêmicos mais reflexivos. Procurei estimular maior consciência com relação ao
modo como as visões individuais da realidade social e da mudança social tendem
a canalizar e filtrar as percepções e a olhar para possibilidades alternativas, para
representar os potenciais e as limitações da mudança educacional. Para isso, delineei
o alcance total de perspectivas teóricas que foram usadas para apoiar estratégias de
reforma educacional e sugerir como os comportamentos individuais de escolha
sucedem orientações filosóficas, ideológicas e experimentais básicas para chegar à
realidade social percebida (PAULSTON, 1977). Pela primeira vez, um periódico
de educação comparada publicou um retrato fenomenológico – embora conflituoso
e estático – do modo como cerca de 320 textos internacionais construíram
realidades múltiplas de reformas educacionais. Em contraposição, C. Arnold
Anderson, referindo-se ao ano de 1950, argumentava, nessa mesma edição especial,
em favor de uma ortodoxia continuada de alta modernidade. Para citar esse
pioneiro da Comparative and International Education Society (Cies)8, “continuo
insistindo que as disciplinas tradicionais da ciência social devem continuar sendo
as bases para o trabalho neste campo” (ANDERSON, 1977). O autor defendia a
construção de modelos teóricos e a formulação de conclusões sólidas baseadas em
leis gerais (método nomotético), e aconselhava a evitar as ideologias em voga e suas
semânticas, seus clichês e suas novidades. Anderson aconselhava os profissionais
da educação comparada e internacional a produzir estudos acadêmicos sólidos,
evitando para isso a antropologia e a etnometodologia, e adotando os enfoques
sociológico e econômico. Em síntese, Anderson manifestava um otimismo
moderado com relação ao progresso contínuo na Cies, porém somente se o campo
“evitar novas panaceias fastidiosas” e trabalhar com maior empenho na
“identificação de equivalentes funcionais para as estruturas e funções básicas dos
sistemas educacionais” (ANDERSON, 1977, p. 416).
Minha contribuição concentrou-se no espaço dos textos na construção literária
de debates ligados a reformas nacionais da educação, e usou o que Foucault chamou
de abordagem genealógica de textos-padrão como janelas teóricas que se abrem
para realidades múltiplas. O texto de Anderson, ao contrário, argumentava em
favor de uma ortodoxia de pesquisa nomotética que permitiria gerar hipóteses,
universalizar leis e acompanhar a teoria da modernização com base na primazia de
autores profissionais autônomos, medindo o modo como as coisas realmente são.
Os organizadores Andreas Kazamias e Karl Schwartz assumem uma terceira posição
ainda mais pragmática, algo entre meu interpretativismo hermenêutico e o
logocentrismo patriarcal de Anderson. Embora firmemente plantados em uma
ontologia realista, os dois organizadores mapeiam uma rota para o campo cada vez

8. NT: Sociedade Internacional de Educação Comparada.


388 Paulston

mais polêmico da educação comparada, com sua recomendação sensata em favor


de maior abertura para abordagens culturais e críticas (minha preferência), mais
atenção à prática pedagógica e à capacitação docente (preferência dos autores) e
uma visão da ciência social (preferência de Anderson) como “pluralista, modesta e
aberta” (KAZAMIAS; SCHWARTZ, 1977, p. 175-176).
Hoje, 22 anos depois, em nosso tempo mais heterogêneo, uma análise exegética
permite identificar pelo menos cinco comunidades do conhecimento no discurso
da educação comparada, que são mais ou menos favoráveis a visões pós-modernas
e, em alguns casos, propõem esse tipo de visão. Estas são (1) desconstruções pós-
modernistas, (2) alteridade radical, (3) sociedade semiótica, (4) profissional
reflexivo e (5) cartografia social. As cinco comunidades tendem a situar o
surgimento do pós-modernismo depois da década de 1970 como um conceito de
periodização, e, consequentemente, exterior à modernidade. Em contrapartida, as
comunidades que defendem as grandes narrativas da modernidade, embora
eventualmente reconheçam a crítica, tendem, como Jürgen Habermas, a situar o
debate pós-moderno dentro da modernidade tardia, e compreensível somente em
termos de modernidade tardia. Em minha leitura cuidadosa de cerca de 60 textos
selecionados, emergiram quatro gêneros ou posturas modernistas no debate: (1)
metanarrativas de razão, emancipação e progresso; (2) jogos dramáticos racionais;
(3) apropriações modernistas críticas; e (4) adaptações reflexivas da modernidade.
Esses terrenos podem ser caracterizados, mapeados e comparados de acordo com
os modos como escolhem entender a realidade e como problematizam a prática.
Essas diferenças são representadas na Figura 2, onde agora voltamos a atenção para
o lado esquerdo – ou o lado do pós-modernismo, do campo de debate.
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 389

Tabela 1. Relações entre teorias de mudança/reforma social e educacional

Fonte: PAULSTON, 1977, p. 372-373.


Nota: A tabela apresenta uma comparação fenomenológica de como a construção das perspectivas de
mudança/reforma educacional e social nacional aparece na literatura internacional.
390 Paulston

Desconstruções pós-modernistas
Com a publicação de sua fala presidencial em 1991, Val Rust abriu o discurso
do Cies ao debate sobre as ideias pós-modernas – uma controvérsia de grande
repercussão que energizou e desestabilizou boa parte da vida intelectual acadêmica
a partir da década de 1970. Rust introduziu os argumentos desconstrutivistas dos
pós-estruturalistas franceses Jacques Derrida, Michel Foucault e Jean François
Lyotard, ideias que rejeitam a linguagem básica e os pressupostos realistas da idade
moderna. Argumentando que a comunidade da educação comparada praticamente
não havia desempenhado papel algum nessa discussão, Rust selecionou quatro
aspectos do pós-modernismo que considerava essenciais para um entendimento
pós-moderno de nosso campo atualmente: (1) a crítica da natureza totalitária das
metanarrativas; (2) o reconhecimento dos problemas do Outro; (3) o
reconhecimento do desenvolvimento de uma sociedade de informação por meio
da tecnologia; e (4) uma abertura a novas possibilidades para a arte e a estética na
vida cotidiana (ver RUST, 1991).
Embora Rust apresente uma argumentação convincente em favor da utilidade
das ideias pós-modernas em nossa era, sua análise continua fortemente realista, e
mesmo meliorista:
Nós, profissionais da educação comparada, devemos discutir as oportunidades da era que se
inicia. [...] Devemos definir mais claramente as metanarrativas que impulsionaram nosso campo
[...] devemos empreender a tarefa crítica de desmontar essas narrativas, porque elas definem o
que os profissionais da educação comparada consideram aceitável [...] devemos dar mais atenção
a pequenas narrativas [...] devemos aprender a equilibrar alta cultura e cultura popular (RUST,
1991, 625-626).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 391

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Fig. 2. Um mapeamento metafórico das posturas de conhecimento que constroem o debate da pós-modernidade
no discurso da educação comparada (e em outros discursos relacionados). Nesse campo intertextual aberto, as
setas indicam fluxos intelectuais, e os nomes próprios referem-se não aos autores, mas a textos ilustrativos citados
no documento e justapostos acima. Ao contrário das Utopias (isto é, locais sem lugar real) tão valorizadas nos
textos modernistas, essa figura inspira-se na noção de heterotopias de Michel Foucault. São os espaços
simultaneamente míticos e reais da vida cotidiana contestada. Os textos pós-modernistas valorizam as heterotopias,
como se vê acima, porque são “capazes de justapor em um único lugar real diversos espaços, diversos lugares
incompatíveis em si mesmos” (FOUCAULT; MISKOWIEC, 1986, p. 25).
392 Paulston

Como demonstra o texto de Rust, abrir mão da linguagem da modernidade,


sem falar de sua visão essencialista e instrumental, é algo mais fácil de defender do
que de conseguir. A despeito das contradições existentes entre seu texto e sua
mensagem, o apelo pioneiro de Rust no sentido de afastar-se de um sistema
universal de crenças em direção a uma pluralidade de sistemas de crenças continua
oportuno e estimulante. Infelizmente, o apelo não provocou praticamente reação
alguma no discurso da Cies até 1994, quando Liebman e eu usamos a crítica de
Rust para apoiar nossa provocação de uma cartografia social pós-moderna
(PAULSTON; LIEBMAN, 1994).9
Contrariamente à certeza do texto de Rust sobre a utilidade instrumental das
ideias pós-modernas, os acadêmicos britânicos Robin Usher e Richard Edwards,
em seu texto de 1994, defendem uma abordagem mais lúdica ou divertida, para
melhor evitar a criação do monstro de uma nova metanarrativa pós-moderna.
Citando o original:
Nossa atitude frente ao pós-moderno é ambivalente. Concordamos que, para ser consistentemente
pós-moderno, o indivíduo jamais deveria chamar a si mesmo de pós-moderno. Há uma ironia
autorreferencial com relação a isso que consideramos totalmente apropriada para resumir nossas
relações como autores deste texto. No mínimo, deixamos ‘falar’ o pós-moderno por meio desses
textos [que] o exemplificam (USHER; EDWARDS, 1994).

Ampliando o manifesto de Rust, Usher e Edwards problematizam e


desconstroem a própria noção de emancipação no projeto de modernidade, para
mostrar o que veem como seus pressupostos e consequências opressores, em
particular no campo da educação. Nisso eles tomam o partido de Jacques Derrida,
com o propósito de dissolver oposições binárias, para defender a ideia de que a
educação, assim como o poder, não é repressiva nem liberatória em si mesma,
porém talvez seja ambas as coisas – ou nenhuma delas.
Aqui não há uma síntese hegeliana, cujas ideias corretas ou um argumento
mais lógico poderiam transcender a oposição. Ao invés disso, eles veem, como
Nietzsche, uma tensão continuada e insolúvel e uma disputa de perspectivas.
Diante desse cenário, Usher e Edwards defendem a ideia de uma educação de

9. Aqui os autores introduzem a cartografia social aos profissionais da educação comparada como “um método
novo e eficaz para demonstrar visualmente a sensibilidade das influências pós-modernas para a abertura do
diálogo social, em particular àqueles que foram privados de seus direitos pelo modernismo” (USHER;
EDWARDS, 1994, p. 232). Seu texto de cartografia social argumenta que a justaposição espacial oferece uma
nova maneira de buscar uma verdade mais situada em uma era de ciberespaço. Agora, a verdade não é
necessariamente fundamentada apenas em fatos mensuráveis: baseia-se também na aquisição de uma
generosidade de visão composta de muitas verdades – ou seja, o que os textos pós-modernos chamam de uma
multiplicidade de testemunhos e uma democracia de percepções. Ao abrir a comparação dessa maneira, a
cartografia social pós-moderna ajuda os atores a passar de uma verdade subjetiva para uma reintegração do
seu eu em um novo tecido/espaço social composto de múltiplas vozes e estórias. Essa visão é rotulada como
multiperspectivismo pós-moderno por Francese (nota 4), que defende sua utilidade como uma proteção contra
“qualquer leitura do passado excessivamente forte, excludente: a verdade unívoca que sufoca todas as outras e
rapidamente se transforma, de maneira drástica, em mito concretizado” (FRANCESE, 1997, p. 130).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 393

resistência para abalar o poder metanarrativo. Ou, nas palavras do texto acessível
dos dois autores:
É perturbando o exercício do poder, e não tentando superá-lo, que a resistência pode tomar
forma. O momento pós-moderno nos possibilita transgredir os limites da modernidade, em
vez de nela permanecer contidos. Mais do que emancipação, a resistência e as transgressões
representam as possibilidades de desafiar as formas de poder dominantes. Ao invés de uma
guerra de hostilidades, é algo semelhante à guerra de manobra de Gramsci. E é uma guerra
sem fim, uma recusa constante de dominação e de ser dominado (USHER; EDWARDS, 1994,
p. 224).

Nesse sentido, os autores compartilham a alegação de James Whitson, para


quem a melhor maneira de ver o pós-moderno provavelmente é como uma
tentativa de anti-hegemonia sem contra-hegemonia, com o risco resultante de
incorporação como uma retórica relativamente inofensiva – como ocorre com a
maior parte da pedagogia crítica – na estrutura de controle dominante.10

Alteridade radical
Os batalhões da alteridade radical das forças pós-modernistas aplicam ideias
de Derrida e da subalteridade do Outro, e buscam tirar do centro e derrubar as
estruturas modernistas de controle (isto é, a hierarquia e o patriarcado) com
novas possibilidades abertas por noções não essencialistas de corpo e identidade.
Em que os textos modernistas veem a ciência, a moralidade e a arte como
obstinadamente diferenciadas, os defensores de uma alteridade radical veem o
eu depois da pós-modernidade tanto como um constructo de múltiplas formas
de discurso, jogos de linguagem diversificados e narrativas variadas, como
orientado para a ação e autodefinido pelos modos como se comunica. Como
diz Calvin Schrag, o eu depois da pós-modernidade é aberto ao entendimento
por meio de seu discurso, suas ações, seu estar junto em comunidade e sua
experiência de transcendência. Por outro lado, “as gramáticas modernistas de
unidade, totalidade, identidade, uniformidade e consenso encontram pouco uso
no pensamento pós-moderno” (SCHRAG, 1997).11 Ao contrário, os textos da
comunidade da alteridade radical assumem a advertência de Lyotard no sentido
de que o consenso forçado viola a liberdade dos jogos de linguagem, e nossas
novas categorias interpretativas de heterogeneidade, multiplicidade, diversidade,
diferença e dissensão agora estão disponíveis para interrogar e desconstruir as
visões modernistas do eu cartesiano autônomo (como representado pelo

10. Ver o texto um tanto quixotesco “Post-structuralist pedagogy as a counter-hegemonic praxis”, de James
Whitson (1991). A defesa ou a adoção de uma perspectiva de desconstrução pós-moderna também estão
presentes em textos de Weiler (1996), Luke (1995) e outros, incluindo Gottlieb (1989).
11. Para a perspectiva subalterna, ver, por exemplo, Mohanty (1991). Ver uma aplicação da perspectiva de
alteridade radical para investigar a alegoria de espaço em estudos feministas em Spark (1996).
394 Paulston

professor na Figura 1), juntamente com todos os seus tradicionais jogos


metafísicos e epistemológicos.
Compreensivelmente, os textos da alteridade radical encontram-se com maior
frequência no discurso de movimentos étnicos e de gênero que buscam opor-se
às hierarquias e exclusões da modernidade. São textos muitas vezes inflamados,
que procuram chocar, desafiar e contestar. Encontrei apenas três exemplos nos
periódicos de nossa área. Talvez o melhor deles seja uma crítica do livro de Diana
Brandi, publicada no “Comparative Education Review”, em 1994, quando a
autora era uma estudante de doutorado na Universidade de Pittsburgh. O texto
de Brandi, na minha leitura, é, antes de mais nada e principalmente, um ataque
pessoal aos três veteranos autores/organizadores, defensores conhecidos e
respeitados da modernidade emancipadora, no qual caracteriza as representações
feitas pelos autores de educação comparada tal como surgiu na década de 1990,
como um reaproveitamento das perspectivas marxista, funcionalista e
funcionalista estrutural. A autora considera essa uniformidade de conteúdo,
perspectiva e análise não apenas preocupante, mas também enigmática. Em sua
opinião, os capítulos pecam por falta de diversidade, são autorreferenciais e
carecem de uma variedade mais rica de escolhas teóricas e abordagens
multidisciplinares, e a ortodoxia estruturalista do livro impossibilita qualquer
reflexão crítica sobre os autores das visões refletidas na pesquisa, ou sobre o modo
como a educação comparada pode apoiar uma mudança transformadora para
um mundo mais humano (BRANDI, 1994).12
Brandi conclui que a questão central que emerge para a educação comparada
na década de 1990, virtualmente ignorada no livro, é a necessidade de desafiar as
hierarquias dominantes que continuam a marginalizar e silenciar a maior parte
da humanidade. Afirma que os organizadores negligenciaram discursos mais
pluralistas que desafiam a educação para o desenvolvimento internacional e o
serviço que essa educação presta ao ajuste estrutural, ao militarismo e à violência
estrutural, agora analisados criticamente em outros campos e disciplinas. Aqui
Brandi também desafia nossa área a abrir espaço para as vozes do Outro, vozes
antiessencialistas que atacarão e rejeitarão nossas certezas modernistas de ordem e
progresso, se não de emancipação.
Um ano depois, Irving Epstein, em um estilo mais conciliador, também
defendeu a vantagem de realinhar os estudos comparados, da prática e da crítica
aparentemente inocentes dos planos e das políticas educacionais para uma abertura
de espaço para estudos culturais de conhecimento local controvertido, de etnia,
gênero, deficiência e do corpo. Epstein queixa-se de que essas questões do Outro

12. Brandi afirma que a ortodoxia estruturalista do livro silencia questões ligadas ao modo como a pesquisa reflete
as visões daqueles que estão sendo considerados, e cujas vozes e questões orientam a evolução do campo
(BRANDI, 1994, p. 160). A autora alega também que a inclusão de teorias feministas sobre ajuste estrutural
e estudos fenomenológicos de perspectivas locais ajudariam os oprimidos a melhorar sua qualidade de vida.
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 395

raramente são tratadas no discurso da educação comparada, apesar de uma


proliferação desses estudos nos meios acadêmicos depois da década de 1980
(EPSTEIN, 1995).13

Sociedade semiótica
A perspectiva da sociedade semiótica baseia-se em ideias do canadense Marshall
McLuhan e do francês Jean Baudrillard. Em seu estudo pioneiro de 1964,
“Understanding media”14, McLuhan interpretou a modernidade como um processo
de diferenciação, como uma explosão virtual de mercantilização, industrialização,
mecanização e relações de mercado. Essas diferenciações produzem a mídia quente.
Por outro lado, a televisão, como mídia fria, é um terreno de implosão de todas as
fronteiras, regiões e distinções entre a baixa e a alta cultura (isto é, a nova aldeia
global), entre aparência e realidade, e entre as oposições binárias mantidas pela
filosofia modernista tradicional e pela teoria da modernização (McLUHAN, 1964).
Depois de inicialmente rejeitar a tese de McLuhan durante sua fase
neomarxista, Baudrillard mais recentemente aceitou e expandiu o argumento
de implosão de significado de McLuhan. O texto de Baudrillard agora sustenta
que a proliferação aparentemente interminável de sinais e informações destrói
o significado por meio da neutralização e da dissolução de todo o conteúdo,
conduzindo tanto a um colapso de significado quanto à destruição das distinções
entre a mídia e a realidade, criando o que chama de hiper-realidade. De acordo
com textos mais recentes de Baudrillard, a economia política, a mídia e a
cibernética combinam-se para produzir uma sociedade semiótica muito além
do estágio de capitalismo descrito pelo marxismo. Este é o tempo da pós-
modernidade, em que modelos de simulação acabam por constituir o mundo,
e finalmente devoram a representação. Considera-se, portanto, que a sociedade
passa de uma orientação produtivista capitalista para uma ordem cibernética
neocapitalista que visa ao controle total. De maneira muito semelhante à dos
programas de televisão, os modelos e códigos passam a constituir a vida

13. Ao contrário do que o texto de Epstein vê como meu otimismo confesso pelo campo, considero meu ponto
de vista similar ao de Berlin, que é uma curiosa combinação de idealismo e ceticismo. O texto de Epstein
também defende a ideia de um ceticismo calculado na avaliação de futuras possibilidades do campo. O
problema, na visão de Epstein, é que a compreensão limitada do eu restringe o alcance e a possibilidade de
trabalho de conhecimento no campo da educação comparada. Mas será que nossa falta de autoconhecimento
reflexivo, nossa ingenuidade, são nossa perdição? Se isso é verdade, não seria possível vê-las como um problema
educacional que poderia ser tratado com mapeamento heterotópico? Um terceiro exemplo de alteridade radical
que problematiza os atores, em textos da educação comparada, pode ser encontrado em Moran (1998). Moran
compara duas histórias de vida – a sua própria e a de Gail Paradise Kelly – com dolorosas honestidade e
instrospecção. Seu relato da luta de uma mulher com as normas da modernidade patriarcal fornece uma
contribuição pioneira valiosa à educação comparada, até hoje um discurso masculino predominantemente
logocêntrico, rejeitado pelas sensibilidades de alteridade muito radical que constroem a história de Moran.
14. NT: Publicado no Brasil com o título “Os meios de comunicação como extensão do homem”.
396 Paulston

cotidiana e as relações sociais (ver POSTER, 1988). Como no texto de Brandi,


a análise de Baudrillard vê uma sociedade sujeita a um controle cibernético cada
vez maior, em que as críticas que reivindicam uma posição de oposição, externa
ao sistema ou ameaçando-o, tornam-se padronizadas em uma sociedade de
simulações (isto é, cópias sem originais) como meros álibis que só reforçam
ainda mais o controle social.
O maior exemplo de hiper-realidade de Baudrillard é a Disneylândia – ou seja,
não o irreal, mas o mais-que-real. Em tal universo, não há contradições explosivas,
crises ou mesmo oposições, porque tudo é projetado e controlado. Não há
realidade, ou mesmo potencialidade, em nome da qual os fenômenos opressores
podem ser criticados e transformados, porque nada há por trás do fluxo de sinais,
códigos e simulacros. Nessa sociedade hiper-real de pesadelo, nem mesmo a crítica
social ou a arte crítica são possíveis. Para Baudrillard, “um universo frio de
digitalidade [...] absorveu o mundo da metáfora e da metonímia. Esse princípio
de simulação triunfa sobre o princípio do prazer da realidade”.15 Esse é o
inquietante mundo da fantasia de Baudrillard, e apresenta uma forma extrema de
niilismo pós-moderno.
Em uma edição especial recente sobre pós-modernidade e educação comparada
– a primeira em nossa área – no periódico britânico “Comparative Education”,
três textos (nenhum dos quais cita Baudrillard) abordam uma série de aspectos
mais práticos do chamado desafio do ciberespaço. Ronald Goodenow examina o
modo como a emergência de redes globais de comunicação, e principalmente a
super-rodovia da informação, criaram um novo mundo de ciberespaço. As questões
ligadas à propriedade e poder, ao modo de definição e de distribuição de
conhecimento e serviços, e ao modo como as pessoas desprovidas em termos
tecnológicos obtêm acesso a redes de comunicação ganham agora grande
importância nos debates relativos a políticas. Goodenow também ressalta que os
educadores precisarão tornar-se mais interdisciplinares e versados em tendências e
debates em muitas áreas (GOODENOW, 1996).
O texto de Gunther Kress questiona, de maneira mais específica, de que forma
os princípios da pós-modernidade, como diversidade, realidade múltipla, alteridade
e paralogismo, sugerem a necessidade de novas abordagens de representação. Hoje,
nossas teorias sobre a atribuição de significado, ou semiose, estão amplamente
fundamentadas em noções de sistemas sociais estáveis do final do século XIX (Emile
Durkheim e Talcott Parsons, por exemplo), signos estáveis que comunicam

15. Ver a crítica neomarxista dos argumentos de Baudrillard em Kellner, “Jean Baudrillard: from Marxism to
Postmodernism and beyond” (1989). Embora pareça fascinado pelo brilho e pela originalidade das ideias de
Baudrillard, Kellner o vê, ao mesmo tempo, preso na armadilha da “ausência de uma teoria de ação e mediação
[pela] [...] impossibilidade de qualquer tipo de agente de mudança política [...] pelo triunfo metafísico do
objeto sobre o sujeito” (KELLNER, 1989, p. 216). Kellner conclui ainda que “o apelo do pensamento de
Baudrillard poderia sugerir que estamos [de fato] vivendo em uma situação de transição, por meio da qual
novas condições sociais estão pondo em questão velhas ortodoxias e fronteiras” (KELLNER, 1989, p. 217).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 397

significados estáveis (Ferdinand de Saussure, por exemplo), e pressupostos de uma


aparência formal abstrata reificada (C. Arnold Anderson, por exemplo). Entretanto,
as sociedades pós-industriais agora lutam para construir novas formas de economia
baseadas na informação, em resposta à diversidade cultural, à mudança e à inovação.
Kress desafia os profissionais da educação comparada a participar da criação de
novos modos de pensar sobre o significado e sobre a maneira de fazer e refazer,
conjuntamente, nossos sistemas de representação “numa interação produtiva com
múltiplas formas de diferença” (KRESS, 1996, p. 196). É o caso de perguntar,
porém, como Kress interagiria com as noções desestabilizadoras de hiper-realidade
de Baudrillard.
O texto de Jane Kenway soa como um aviso cauteloso aos educadores e
estudantes para que questionem as reivindicações de ciberespaço, tanto dos
utopistas (isto é, pessoas como Bill Gates) como dos distopistas (isto é, pessoas
como Baudrillard). Embora reconheça a inevitabilidade da revolução digital, a
autora chama a atenção para o modo como produzimos e consumimos as novas
tecnologias e para outras questões relacionadas de política e justiça. Jane Kenway
observa que ensinar os alunos sobre as consequências da tecnologia talvez seja ainda
mais importante do que ensinar-lhes como operar máquinas (ver KENWAY, 1996).
Mary Wilson e colegas fazem exatamente isso em um estudo posterior de economia
política da World Wide Web. Seu texto afirma que uma presença norte-americana
esmagadora na web faz da perspectiva norte-americana a norma, ou o centro,
enquanto o resto do mundo passa a ser periferia. Os autores afirmam que o
ciberespaço, com sua falta de fronteiras e conexão com lugar geográfico, oculta o
domínio dos Estados Unidos, e que educadores perspicazes precisam reconhecer
esses fatores e trabalhar no sentido de contorná-los (WILSON; QAYYAM;
BOSKIER, 1999).

Profissional reflexivo
Os outros dois campos favoráveis para uma leitura pós-moderna de nosso tempo
e de nosso campo são os estilos textuais do profissional reflexivo e da cartografia social.
Ambos favorecem uma hermenêutica de afirmação, e ambos estão estreitamente
vinculados ao florescimento da tradição de pesquisa qualitativa em educação. O estilo
do profissional reflexivo, em particular, tem raízes profundas no humanismo ocidental
e no movimento romântico. Na educação, ele resistiu aos esforços pseudocientíficos
e tecnológicos para tornar o mundo um objeto e uma mercadoria. Durante as guerras
de paradigma das décadas de 1970 e 1980, a perspectiva reflexiva, de caráter
fortemente humanista, defendeu, com sucesso, a ideia de Verstehen, ou insight, como
um conceito essencial e um objetivo para a aprendizagem individual e o trabalho
voltado para o conhecimento. Um texto influente dessa época, que legitimava as
abordagens reflexivas na educação, é “The reflective practitionner”, de Donald Schon
398 Paulston

(SCHON, 1983).16 Schon explorou a crise de confiança no conhecimento


profissional e defendia uma solução de passagem da racionalidade técnica para a
reflexão em ação. Na educação comparada, usei o mesmo argumento em 1990, ao
procurar reconhecer o valor tanto da imaginação como da razão tecnológica, porém,
ao que tudo indica, com pouco efeito (PAULSTON, 1990).
Hoje os ataques pós-modernos aos modos modernistas de conhecer, baseados
em visões essencialistas da realidade, ajudaram a abrir um espaço maior para as
perspectivas reflexivas. Para muitos, uma visão de atores e sistemas de uma
perspectiva reflexiva oferece uma alternativa razoável tanto para a perspectiva
exigente da pós-modernidade radical, com sua hermenêutica do desespero, como
para a perspectiva de uma modernidade nostálgica, amarrada a regras. Patricia
Broadfoot, da Universidade de Bristol, por exemplo, escolhe esse terreno ontológico
intermediário em seu prefácio em “Qualitative educational research in developing
countries”17. Sua introdução reconhece tanto influências pós-modernas – ou seja,
uma pluralidade de sistemas de crença, um reconhecimento de realidades múltiplas
– como a influência da cultura e do contexto, ao mesmo tempo conservando uma
clara preocupação com a pesquisa científica social e “o progresso ao qual ela
conduz” (BROADFOOT, 1997). As variações sobre esse reconhecimento de
múltiplos pontos de vista e interesses diversos tornam-se cada vez mais evidentes
na literatura da pesquisa educacional, vindas de estudiosos que se situam no centro
eclético. Elliot Eisner, por exemplo, defende uma multiplicidade de representações
de dados que acolhe de braços abertos alternativas artísticas, linguísticas e visuais,
ao lado de escolhas positivistas mais tradicionais. Entretanto, faz também uma
advertência: uma abordagem interpretativa de múltiplas perspectivas pode trazer
uma ambiguidade perigosa e um retrocesso potencial:
Um gênero de trabalho pode sustentar-se sem um contexto interpretativo quando as pessoas que
o leem, veem ou ouvem trazem com elas esse contexto. Quando esse não é o caso, elas
provavelmente ficarão perdidas. Pouca gente gosta de estar perdida. Quando o terreno é novo,
precisamos de contexto. Precisamos também sentir-nos seguros [...] de não estar substituindo
novidade e perspicácia por substância. Em outras palavras, precisamos ser nossos críticos mais
severos (EISNER, 1997, p. 9).18

16. Ver exame perspicaz de diferentes tradições no pensamento reflexivo atual em Potter (1996). Duas tentativas
literárias imaginativas de ultrapassar a tendência da maior parte da produção intelectual moderna a “afirmar,
qualificar e concluir” podem ser vistas em Ermath (1992) e também em Paulston e Plank (2000).
17. NT: “Pesquisa educacional qualitativa em países em desenvolvimento” (tradução livre).
18. Anna Sfard, em um estudo relacionado, adverte que a luta por uma unificação conceitual da pesquisa não é
um esforço compensador, e uma devoção exagerada a uma metáfora em particular pode levar à distorção
teórica e a consequências práticas indesejáveis. Ao contrário, a autora rejeita a rigidez de Torres (ver nota 32)
e defende uma abordagem discursiva de mapeamentos metafóricos e o pluralismo metafórico para uma
renovação conceitual e uma prática aperfeiçoada. Ver seu estudo “On two metaphors for learning and the
dangers of choosing just one” (1998).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 399

Cartografia social
Os textos agrupados no estilo da cartografia social têm uma série de
características em comum, talvez apreendidas mais adequadamente pela noção de
heterotopia de Foucault. Ao contrário do espaço utópico – isto é, o não lugar –
totalizante da modernidade, os espaços heterotópicos são simultaneamente espaços
míticos e reais da vida cotidiana, capazes de justapor em um único lugar uma
grande variedade de locais diferentes que podem ser incompatíveis. Como observou
William Blake, os textos modernistas preferem utopias racionais idealistas de bem
geral. Os textos pós-modernistas, ao contrário, preferem heteropias de diferença
situada e conhecimento local. A Figura 2 anterior ilustra exatamente esse
mapeamento heterotópico da diferença. Aqui, dentro de um campo intertextual,
todos os pontos de vista que produzem um texto no debate da pós-modernidade
da Cies encontram seu lugar e sua relação com outras visões similares ou totalmente
diferentes. Nesse sentido, este mapeamento emaranhado e interconectado, ou
rizoma deleuziano de posturas e relações de conhecimento, pode ser visto como
uma metáfora do debate, como uma abordagem heurística, e como um lugar real
de paralogismo e processo pós-moderno. Pode ser visto também como uma nova
ferramenta espacial útil, criada especificamente para dar uma forma visual à
complexidade cada vez maior do trabalho com o conhecimento hoje. Onde Pablo
Picasso tornou possível a representação simultânea de vários lados de um objeto
por meio do cubismo analítico, a cartografia social também cria algo, no ato mesmo
da descrição. Isso não é simplesmente uma síntese frágil, mas uma nova maneira
de olhar o mundo e, de forma equivalente, um novo aspecto do mundo a examinar
(FOUCAULT; MISKOWIEC, 1986).19
As ideias por trás dos mapeamentos heterotópicos da diferença de perspectiva
começaram a ganhar forma em meu artigo “Comparing ways of knowing across
inquiry communities”20, apresentado em Pittsburgh, em 1991, na reunião anual da
Cies. Naquela ocasião, alguns estudantes de doutorado da Universidade de Pittsburgh
integraram o projeto, e trabalhamos juntos para criar uma cartografia social capaz de
representar e estabelecer padrões de multiplicidade, seja ela de perspectivas, de estilos,
de argumentos ou de sonhos. Nessa heurística, o campo também é definido pelas
posições discrepantes. Nas representações positivistas modernas, ao contrário, o
oposto é verdadeiro: a intenção é planejar uma tendência central, na qual os
discrepantes – por exemplo, o Outro – simplesmente desaparecem.

19. (Ver nota 5). Ao fazer essa mudança de tempo para espaço na análise social, Foucault elegantemente reconhece
sua dívida intelectual para com Gilles Deleuze: “talvez um dia este século venha a ser conhecido como
deleuziano”, em “Language, counter-memory, practice” (FOUCAULT, 1977, p. 76). Por suas ideias fecundas
e originais sobre conceitos vistos como território e sobre a necessidade de cartografias como uma estratégia
para examinar o discurso com uma análise espacial, ver Deleuze e Guttari (1980). Sobre a analogia do
cubismo, ver Nehamas (1985). Agradeço ao professor Eugenie Potter por destacar essa relação.
20. NT: “Comparando modos de conhecimento entre comunidades de investigação” (tradução livre).
400 Paulston

Na superfície, o mapeamento do discurso parece ser um processo


razoavelmente simples, embora exigente, de ler e comparar maneiras de ver em
textos. Para horror de meus colegas pós-modernistas, eu procedo da seguinte
forma, como quem segue uma receita culinária: (1) Escolher o tema de debate a
mapear; (2) Selecionar o maior número possível de textos que constroem esse
debate e, com leitura cuidadosa, traduzir as características retóricas, ideias e visões
de mundo que os definem; (3) Identificar a diversidade de posições na mistura
intertextual. Na Figura 2, por exemplo, essas posições estão representadas no eixo
horizontal como polos ontológicos de desestabilizações pós-modernistas e certezas
modernistas. No eixo vertical, os polos escolhidos são atores problematizados e
sistemas problematizados. (4) Identificar as comunidades textuais que
compartilham um modo de ver e de comunicar a realidade; situá-las em seu
espaço e inter-relacionar as comunidades de visão com espaço, linhas, arcos, seta
ou similares. Embora resistindo às compulsões modernistas para enquadrar ou
estabelecer uma grade, determinar as coordenadas fora do campo, para
possibilitar um espaço de intersubjetividade, movimento e escolha menos restrito
do que aquele da Tabela 1. (5) Fazer um teste de campo do mapa com os
indivíduos ou as comunidades de conhecimento envolvidos. Compartilhar as
interpretações conflitantes e remapear como desejado.
Como estratégia pós-moderna de oposição, a cartografia social traduz
transversalmente lugares interagentes de inscrições materiais e evita as totalidades
idealistas da modernidade utópica. Esse processo de mapeamento e tradução busca
revelar significados, descobrir limites entre campos culturais e ressaltar tentativas
reacionárias de fechar as fronteiras e proibir traduções. Aí reside a contribuição do
mapeamento pós-moderno para uma crítica anti-hegemônica.
O mapeamento social também pode ser visto como uma metodologia
emergente que se origina no modo hermenêutico de investigação que reconhece
que os mundos são construídos e interpretados tanto objetivamente como
subjetivamente – ou seja, no interior dos campos de estudo ou lugares de
conhecimento está sempre acontecendo um diálogo que envolve sistemas de
significado ilusórios. Esses sistemas de significado são formados por aqueles que os
elaboram, e o diálogo cria um campo intertextual aberto. Por essa razão, o
profissional de pesquisa comparada e o leitor servem de tradutores nesse modo de
investigação interpretativa. Porém, como adverte Eisner, o pesquisador tem agora
uma tripla obrigação: explicar qual é o ponto de vista utilizado no estudo, revelar
as inter-relações do campo ou do próprio lugar, e transmitir algo das experiências
pessoais ou profissionais que o levaram a escolher um ponto de vista particular.
À medida que nosso projeto de cartografia social na Universidade de Pittsburgh
tomava forma, diversas dissertações e vários livros mapeavam áreas situadas das
paisagens teóricas e operacionais da educação comparada e internacional. A tese de
Martin Liebman, por exemplo, amplia nossa compreensão da análise metafórica no
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 401

método comparado (LIEBMAN, 1994).21 O estudo de Zebun Ahmed traça um


mapa da maneira como as mulheres de vilarejos rurais em Bangladesh veem suas
experiências de educação não formal com organizações não governamentais
ocidentais (AHMED, 1997).22 Kristiina Erkkilä traça um mapa de posições nos
debates sobre educação empresarial nos Estados Unidos, no Reino Unido e na
Finlândia (ERKKILÄ, 2000). Katsuhisa Ito hoje critica o projeto sob um ponto de
vista da geografia humana, Michel Rakatomanana faz o mapa do debate sobre novas
tecnologias de informação e desenvolvimento educacional, e na Suécia, Mina
O’Dowd elabora um mapa relativo ao modo de construir uma pesquisa longitudinal
com múltiplas perspectivas de conhecimento (ver KATSUHISA, 1998;
RAKOTOMANANA, 1999; GOROSTIAGA, 1999; O’DOWD, 1999). Em
“Social cartography”, nosso livro do projeto, publicado em 1996 (PAULSTON,
1996),23 colaboraram vários dos principais acadêmicos norte-americanos, canadenses
e internacionais, para demonstrar as aplicações do mapeamento na prática de
pesquisa (Christine Fox, Esther Gottlieb, Thomas Mouat, Val Rust, Nelly
Stromquist, entre outros) ou para criticar e apresentar contra-argumentos à
afirmação do livro de que o mapeamento social é hoje uma ferramenta útil para a
análise comparada. Carlos Torres e John Beverley, por exemplo, propõem as posições
modernista crítica e de estudos subalternos, que são contrárias ao mapeamento
social. Patti Lather questiona o mapeamento a partir de uma visão feminista radical,
e Joseph Seppi, a partir de uma posição positivista tradicional. Se de fato todas as
reivindicações de conhecimento agora são problemáticas, as visões opostas precisarão
ser conscientemente incorporadas e justapostas em qualquer discussão ou análise
confiáveis. Como veremos na próxima seção sobre a ortodoxia modernista, esta será
uma pílula difícil de engolir para muitos adeptos fiéis.

Metanarrativas modernistas
Na extremidade direita da Figura 2, agrupo em três grandes áreas os textos
modernistas ilustrativos do discurso da educação comparada que, de uma forma
ou de outra, se opõem ao desafio pós-moderno: (1) textos utópicos, que rejeitam
21. No mapeamento pós-moderno e na narrativa pós-moderna, o esforço para distanciamento movimenta-se
simultaneamente em duas direções: uma que amplia a subjetividade de percepção e outra que diminui qualquer
sentido de conexão mimética entre aquela subjetividade e o mundo que aparentemente permanece intacto e
separado. Liebman é perito em produzir esse sentido de distanciamento como uma distorção de escala e
percepção. Nas palavras de Vladimir Nabokov, o objetivo é encontrar “uma espécie de lugar de encontro
delicado, entre a imaginação e o conhecimento, um ponto ao qual se chega diminuindo coisas grandes e
aumentando as pequenas, que [como o mapeamento social] é intrinsecamente artístico” (NABOKOV, 1970).
22. Ahmed demonstra como um mapeamento de estórias de mulheres marginalizadas pode fornecer, de fato,
dados de avaliação valiosos para os responsáveis pelo planejamento educacional – desde que estes se
disponham a ver e ouvir.
23. Aconselha-se o leitor interessado a recorrer também a uma obra de Paulston, Leibman e Nicholson-Goodman,
sobre o mesmo tema: “Mapping multiple perspectives: research reports of the University of Pittsburgh Social
Cartography Project, 1993-1996” (1996).
402 Paulston

amplamente as ideias pós-modernistas e contra-atacam de maneira explícita, para


defender uma metanarrativa essencialmente modernista (isto é: razão universal, ou
progresso); (2) textos de pedagogia crítica, que procuram preservar a metanarrativa
modernista de emancipação, com apropriação seletiva de ideias pós-modernistas
e/ou feministas; e (3) textos de performatividade, que procuram elaborar uma nova
narrativa da modernidade reflexiva para o nosso tempo de risco (isto é, o que
chamam modernidade tardia) quando é cada vez menor a credibilidade das velhas
estórias modernistas dominantes de certeza e progresso tecnológico.
Na categoria do contra-ataque, o capítulo de Erwin Epstein “The problematic
meaning of comparison in comparative education”24 defende com ardor a razão
totalizadora moderna, e rejeita o que o autor chama de desafio do relativismo
(EPSTEIN, 1988).25 Entretanto seu texto não reconhece o pós-modernismo e suas
queixas, embora à época (1988) esse debate estivesse fortemente acirrado nas
ciências sociais e humanas. Seus alvos, ao contrário, são os acréscimos
fenomenológico e etnometodológico à literatura, e, em particular, meu estudo
(resumido na Tabela 1). Essas duas perspectivas têm em comum com o pós-
modernismo um entendimento não essencialista da ontologia, e veem a realidade
como um constructo situado de diversas maneiras. Em uma comparação magistral
do que o autor alega ser incomparável, o texto de Epstein confronta exemplos de
perspectivas relativistas – ou seja, interpretação cultural e leituras fenomenológicas
– e realistas – ou seja, desenvolvimento teórico positivista – na educação
comparada. Conclui, acertadamente, que não é possível medi-los em seus
pressupostos, procedimentos e propósitos. Entretanto seu texto falha ao não
abordar a diferença essencial de ontologia, ou como a realidade é vista de várias
maneiras. Embora pareça imparcial, sua abordagem do tipo isto ou aquilo tem um
forte viés essencialista:
As generalizações através dos limites da sociedade definem […] o método comparado para os
positivistas. Para os relativistas culturais, a comparação é um processo de observação das
características distintivas de culturas individuais. Sem dúvida, essas posições são incompatíveis,
porém ambas baseiam-se em um procedimento que exige análise multicultural e,
consequentemente, pode-se dizer que empregam algum conceito de comparação. O mesmo não
se aplica às abordagens fenomenológicas, que levam o relativismo a um extremo niilista que só
permite a interpretação de interações altamente idiossincráticas dentro de limites contextuais
rígidos. Dentro desses parâmetros, nem mesmo a cultura é suficientemente delineada em termos
contextuais para constituir uma base para análise (EPSTEIN, 1988, p. 6).

Sendo assim, de um ponto de vista positivista lógico excessivo, que, nas palavras
de Pascal, admitiria somente a razão, o texto de Epstein afirma que aquele que

24. NT: “O significado problemático da comparação na educação comparada” (tradução livre).


25. Encontram-se variações sobre essa metanarrativa em “Comparative education: from theory to practice”
(PSACHAROPOULOS, 1990, p. 369-380) e “Quantity, quality and source” (HEYNEMAN, 1993,
p. 372-388).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 403

escolhe uma abordagem fenomenológica (como em minha Tabela 1 e em minha


Figura 2) não pode ser um comparativista; e o autor argumenta que o desafio do
relativismo é uma ameaça não somente à metanarrativa da razão, mas também à
viabilidade da educação comparada como campo:
Somente explicações nomotéticas – ou a descoberta de tendências e padrões subjacentes
responsáveis por classes inteiras de ações ou eventos [isto é, leis universalizantes] podem dar
suporte a uma comparação com possibilidade de desenvolvimento de teoria e leis gerais
(EPSTEIN, 1988, p. 22).

O texto essencialista de Epstein é notável por sua certeza epistemológica e sua


fé na estória positivista de progresso social com a descoberta de regularidades
universais – que, infelizmente, ainda não foram vistas.
Uma postura anti-Iluminismo bem poderia refutar Epstein e alegar que
somente os relativistas podem ser comparativistas, porque só eles estão abertos
à indeterminação do ser. Contudo, isso seria um argumento modernista do tipo
isto ou aquilo. Os pós-modernistas estariam abertos a todas as posições e, como
mostra a Figura 2, se voltariam para uma representação espacial da ordem das
coisas que nos leva um pouco além das limitações da linguagem opaca. Essa
também seria a minha escolha, mas devo deixar ao leitor a tarefa de avaliar a
utilidade comparativa da Figura 2 e a alegação de Hayden White de que “a
configuração macroscópica da consciência formalizada descoberta na
linguagem” poderia ser traduzida em um modo de representação visual espacial
(ver WHITE, 1978, p. 239).26
Uma rejeição mais focada das ideias pós-modernas, pelo menos tal como estão
presentes em nosso trabalho de mapeamento social, pode ser encontrada na
recente fala presidencial de Keith Watson na Sociedade Britânica de Educação
Comparada e Internacional (BCIES) e em sua análise crítica de “Social
cartography”. Esses dois textos previnem o leitor contra as tentações intelectuais
dessas ideias pós-modernas perigosas, como o pluralismo, a multiplicidade e a
incerteza – ou daquilo que Watson erroneamente deprecia como Pensamento da
Nova Era. Seu texto considera as visões pós-modernistas como fatalmente
imperfeitas, porque não oferecem hipóteses testáveis, ou critérios para tomada de
decisões, ou parâmetros para interpretação. Esse pensamento vago é, queixa-se
ele, escrito por entusiastas cuja excitação com a novidade do que estão dizendo os
impede de enxergar os pontos fracos. Entretanto, ao mesmo tempo, Watson faz
uma afirmação estranha: “esses cartógrafos pós-modernos excessivamente

26. White conclui que a chave para entender o método de transcrição de Foucault está no modo como é usado para
revelar a dinâmica interna do processo de pensamento por meio do qual determinada representação do mundo
em palavras tem seu fundamento na poética: “traduzir a prosa em poesia é o propósito de Foucault, e por isso
ele se interessa particularmente em mostrar de que modo todos os sistemas de pensamento nas ciências humanas
podem ser vistos como um pouco mais do que formulações terminológicas de fechamentos poéticos com o
mundo das palavras, e não com as coisas que eles pretendem representar e explicar” (WHITE, 1978, p. 259).
404 Paulston

entusiásticos estão [somente] pondo em forma de diagrama o que a maioria dos


sociólogos [...] sempre reconheceu” (WATSON, 1998).27
Mas o texto de Watson vê uma falha no mapeamento heterotópico que é mais
séria do que a excitação intelectual e o entusiasmo. Watson adverte para o fato de
que a maioria dos administradores e funcionários de organismos de ajuda pode
muito bem ver a cartografia social como mais um exemplo de educação comparada
esotérica, que, para eles, é irrelevante. Embora reconheça que o mapeamento pós-
moderno pode de fato representar as micronarrativas de todos os atores, estejam
eles em situação de poder ou à margem, seu texto rejeita a necessidade desse
conhecimento, ao alegar que os responsáveis pelo planejamento educacional e pela
elaboração de políticas requerem somente dados concretos para uma tomada de
decisão racional.28 Aqui, a expressão “dados concretos” é repetida como um mantra
e não é definida, e tampouco são fornecidos outros dados para dar suporte às
reivindicações excludentes de Watson.
Aparentemente, o texto de Watson confundiria a cartografia social tal como é
praticada na Figura 2 com a modelagem mimética ou científica tradicional, em
que se assume a imagem como reflexo de uma realidade positiva que pode ser
conhecida empírica ou ideologicamente. Porém, com nosso mapeamento pós-
moderno de metáforas, o mapa, como o eu, também pode ser retratado como em
um estado de dispersão dionisíaca que, como acontece com a noção de heterotopia
de Foucault, reconstitui a diversidade como uma unidade provisória.

Ator racional
A postura do ator racional, ou da teoria do jogo, pode ser vista como uma
relação próxima da metanarrativa modernista de progresso de Anderson e Watson.

27. Watson faz eco à antiga agenda de modernização para a educação comparada de C. Arnold Anderson: “acima
de tudo, o trabalho empreendido deve ter objetivos determinados de caráter reformador e prático, e deve ser
usado para informar e aconselhar governos” (WATSON, 1998, p. 28). Nesse texto, Watson oferece, a título
de exemplo, duas figuras estrutural-funcionalistas: uma dos determinantes de um sistema educacional
(WATSON, 1998, p. 22) e outra de “influências internacionais que modelam os sistemas educacionais”
(WATSON, 1998, p. 27). Entretanto, não fica claro de que modo essas representações atendem ao seu critério
de dados concretos, em particular a segunda figura, que é codificada usando a ideologia dos sistemas mundiais,
e que apresenta uma crítica benevolente do capitalismo internacional, em “Role of stock markets, e.g.,Tokyo’s
Hang Seng” (WATSON, 1998, p. 27). Porém, como qualquer colegial de Hong Kong sabe, a bolsa de valores
Hang Seng não fica em Tóquio, e mesmo os dados supostamente concretos podem de vez em quando tornar-
se um tanto nebulosos. A bolsa de valores de Tóquio é, de fato, a Nikkei.
28. Ver também Keith Watson, análises críticas de “Mapping multiple perspectives”, de Paulston, Leibman e
Nicholson-Goodman (1996); e “Social cartography”, organizado por Paulston (1998). Embora as análises
estatísticas possam de fato ser úteis no trabalho técnico, a avaliação educacional equilibrada exige uma prática
alternativa de formular julgamentos não somente sobre classificações numéricas específicas, mas também
sobre características de desempenho no contexto. O texto de Watson vê o conhecimento útil de um ponto
de vista particularmente limitado da teoria da modernização – isto é, articulado em termos simples,
essencialistas, e mecânicos. Minha visão é mais ampla, e também aceita uma perspectiva que vê o
conhecimento como uma construção individual e social, refletida em contextos e discursos particulares que
podem ser mapeados e discutidos e remapeados. Ver Delandshere e Petrosky (1998).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 405

Aqui, os textos buscam desenvolver modelos nomotéticos capazes de explicar e


prever o comportamento econômico e educacional em termos universais. Raymond
Baudon divide esses esforços em dois tipos: o determinista e o interacionista
(BAUDON, 1982). David Turner cita o modelo de Mary Jane Bowman, de 1984
(BOWMAN, 1984), para ilustrar o primeiro, porque busca explicar as taxas de
frequência escolar em termos de eventos anteriores e dar suporte à descoberta de
leis universalizantes uniformes. Uma abordagem determinística que usa uma análise
de variância sugeriria que todo indivíduo é conduzido pela “programação que a
estrutura social impõe sobre ele” (TURNER, 1988). Nesse sentido, as teorias
marxista e da modernização compartilham a mesma certeza e a mesma visão
reducionista. Porém, o texto de Turner problematiza os atores, não as estruturas, e
alega que o modelo determinista é simplista e não leva em conta características de
livre arbítrio e impulsividade no comportamento humano. Turner sustenta que
ainda é possível chegar a teorias sociais e, em última análise, a leis sociais, porém
somente com o uso de um modelo interativo baseado em estudos empíricos de
comportamentos de risco do aluno. De acordo com o texto de Turner, só haverá
progresso em reformas educacionais por meio de um estudo científico dos agentes
individuais e da demanda educacional, e não apenas das estruturas formais.

Modernista crítico
Os textos que escolhem a perspectiva modernista crítica mantêm um
compromisso firme com a metanarrativa modernista de emancipação, e buscam, ao
mesmo tempo, insuflar nova vida e credibilidade no projeto do Iluminismo. Isso é
feito por meio de uma apropriação seletiva de ideias pós-modernas das posturas de
realidade antiessencialista para sustentar suas próprias bases essencialistas. Essa é
uma tarefa manifestamente difícil – senão confusa –, e exige uma quantidade
considerável de qualificação e racionalização. Um texto recente de Peter McLaren
apresenta um exemplo perfeito dessa hábil manobra ontológica:
Embora eu admita a importância de reconhecer os limites conceituais da análise marxista
(isto é, dos pressupostos universais marxistas) para ler certos aspectos da condição pós-
moderna, acredito que os pilares mais importantes da análise marxista permanecem intactos,
a saber, a primazia dos aspectos econômicos e a identificação de contradições e antagonismos
que acompanham as forças mutáveis do capitalismo. É importante que os educadores críticos
não percam de vista esses focos [as fundações modernistas] em seu movimento no sentido
de incorporar percepções do pós-modernismo [que são contrárias aos fundamentos]
(McLAREN, 1994).29

29. Ver também os estudos relacionados de Buder (1992) e Stromquist (1995). Stromquist sugere que questões
críticas de gênero podem ser aproveitadas a partir do discurso feminino para dar suporte a uma “manipulação
de identidades de gênero por meio de instrução escolar e da comunicação de massa” mais liberadora
(STROMQUIST, 1995, p. 454). Nesse estilo, ver também Dimitriadis e Kamberelis, “Shifting terrains:
mapping education within a global landscape” (1997).
406 Paulston

Aqui os textos de McLaren compartilham o anseio dos positivistas por certeza


em forma de dados concretos:
Precisamos ser capazes de estipular em contextos específicos quais são os efeitos opressores e quais
são os efeitos que produzem transformação social. Acredito que, para defender a emancipação,
[...] devemos assegurar que nem todas as vozes sejam celebradas (McLAREN, 1994, p. 338).30

Onde o contra-ataque de Erwin Epstein exclui o relativismo como o inimigo


da razão iluminista e da verdadeira comparação, o texto de McLaren, da mesma
forma que o de Watson, silencia o Outro ideológico. A fim de evitar precisamente
esse tipo de silenciamento, convidei Carlos Torres a escrever um capítulo de
conclusão para nosso livro “Social cartography”, usando uma perspectiva
modernista crítica que fosse contrária à tese de incerteza do livro. Essa prática de
incorporar visões opostas em construções intertextuais é vista pelos pluralistas e
pós-modernistas não como uma forma de masoquismo, mas como uma forma de
paralogismo, em que a ciência se origina de um programa apolíneo de testagem e
verificação, em busca de um valor de verdade, para incluir também um processo
dionisíaco de desconstrução paralógica e uma reciclagem de todas as afirmações de
conhecimento. Nessa via, procuramos criar uma conversa animada e permitir sua
continuidade.31 Com o mapeamento, como mostra a Figura 2, a afirmação
metanarrativa autoprivilegiante de Torres se reconhece e se inscreve no campo/mapa
intertextual, não como uma narrativa superior de bem geral, mas como outra
mininarrativa concorrente – ou seja, como detalhes minuciosos talvez úteis a serem
analisados na prática.
Torres também reconhece a utilidade das críticas pós-modernistas da
representação, mas somente quando evitam o que ele vê (porém, sem dar exemplos)
como as armadilhas do relativismo e do solipsismo extremos. O texto de Torres
situa o maior perigo das visões pós-modernas em sua afirmação de que a linguagem
constrói a realidade. Seu texto vê essa mudança pós-moderna – de dados concretos
e ideologia correta para metáfora, perspectivas múltiplas e pluralismo metodológico
– como antitética e mesmo subversiva da integridade teórica de sua privilegiada
metanarrativa modernista de emancipação. Seu texto exige, defensivamente, uma
higiene linguística, ou seja, que as “metáforas [...] não teriam lugar nas ciências
sociais se fossem substituídas por teorização social, incluindo metateoria (ou
30. Em contraposição ao apelo de McLaren para basear a pedagogia crítica na teoria neomarxista, atualizada com
apropriações seletivas de ideias pós-modernas, Jennifer Gore defende a estratégia de Foucault de deixar táticas
e estratégias de resistência específicas àqueles diretamente envolvidos na luta, nos pontos precisos em que
suas próprias condições de vida ou trabalho os situam. Aqui a troca que se faz é de uma dominante narrativa
de emancipação, que é propriedade dos intelectuais, para mininarrativas ou pequenas estórias provenientes
de experiências situadas e relações reais de poder. Ver Gore (1993).
31. Para um estudo valioso que busca situar ou mapear várias versões contraditórias da teoria construtivista em
psicologia educacional, ver Prawat, “Constructivisms, modern and postmodern” (1996). Como nesse estudo,
Prawat usa análise de texto e mapeamento conceitual para identificar e comparar diferentes maneiras de ver.
Esse é um ótimo exemplo de ponto de vista de um profissional reflexivo em ação.
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 407

epistemologia), teoria empírica e teoria normativa” (TORRES, 1996).32 Aqui o


texto de Torres parece revelar uma desconfiança profunda de todo método que não
seja científico e analítico cujo objetivo não seja recuperar e confirmar suas próprias
origens ideológicas. Embora Torres admita, assim como McLaren, que as ideias
pós-modernas podem ajudar a tornar as análises marxistas de classe menos
totalizadoras e determinísticas, seu texto continua a exigir o que se chama
reprodução da situação concreta, em conformidade com sua escolha ontológica de
realismo teórico e suas afirmações de um sistema de verdade universal.33

Modernidade reflexiva
Os textos que representam a postura da modernidade reflexiva têm as mesmas
origens dos textos modernistas críticos. Entretanto foram mais competentes – pelo
menos superficialmente – para libertar-se de certezas e narrativas modernistas
dominantes que já perderam a efetividade. Buscam sobreviver às tempestades pós-
estruturalistas por meio de uma adaptação seletiva de interpretações úteis, estórias
e vocabulário da literatura pós-moderna, e da escolha de metáforas da modernidade
tardia e da modernidade reflexiva.34 Os textos dessa comunidade florescente
conservam noções modernistas de um espaço unitário e ideal de uma sociedade
que é mapeada no corpo de uma população, juntamente com as afirmações
territoriais de um Estado-nação e de um sistema nacional de educação. Ao mesmo
tempo, parecem ter perdido toda a esperança de certeza, e tentam incorporar e
adotar seletivamente ideias pós-modernas de fragmentação, identidade polimorfa
e espaços descontínuos de pensamento (ver, por exemplo, WELCH, 1998).35 No
Ocidente e, em particular, na Europa Ocidental, o enfoque de sistemas reflexivos
reconhece uma política de voz e representação que muitas vezes procura desalojar
um estado de bem-estar social tido como ineficiente e paternalista. A ideia de que

32. Um problema importante com a abordagem moralista encontrada em muitos textos modernistas críticos é
que frequentemente leva a um beco sem saída de autocentramento do autor, enquanto os marginalizados
ficam ainda mais à margem. Nast apresenta o problema nessas palavras: “a culpa centrada simplesmente na
existência de […] desigualdade e não em como a desigualdade pode ser transformada é […] paralisante e
improdutiva” (NAST, 1994).
33. Ver uma série de ideias sobre abrir novo espaço à crítica radical em uma era pós-moderna em Simons e Billig,
“After postmodernism: reconstructing ideological critique” (1994). O capítulo de Richard Harvey Brown –
“Reconstructing social theory after the postmodern critique” (p. 12-37) – pareceu-me particularmente útil em
sua defesa da “discussão sobre a discussão” autorreflexiva e seu aconselhamento sobre debates acerca do ensino.
34. Ver a introdução em Beck, Giddens e Lash (1994) (nota 6).
35. Aqui Welch preocupa-se com a possibilidade de uso de ideias pós-modernas destrutivas como uma bengala
para conduzir os esforços de performatividade no meio acadêmico. Embora isso de fato pareça prestes a
ocorrer, seu apelo no sentido de reafirmar um ideal universal de democracia ocidental como um critério de
julgamento contrário, como um ponto de vista absoluto para julgar a verdade, soa um tanto eurocêntrico e
nostálgico. Para uma tentativa séria de repensar o espaço político hoje, ou seja, o hiperespaço da política na
aldeia global na qual todos nós vivemos hoje, ver Magnusson, “The search for political space: globalization,
social movements, and the urban political experience” (1996).
408 Paulston

precisamos saber “o que está acontecendo” para saber como agir é essencial nessa
visão, o que contrasta fortemente com as certezas dos textos modernistas críticos.
Para isso precisamos desenvolver uma linguagem e um espaço no qual empregar
nossa disposição presente para deixar que a maioria das perspectivas de
conhecimento (senão todas elas) entre em concorrência e competição.
Na educação comparada, essa visão de sistemas reflexivos é bem ilustrada em
um texto recente de Robert Cowen, no qual o autor afirma que a análise da
condição pós-moderna feita por Lyotard em 1979 continua a oferecer a avaliação
mais exata da sociedade – e das universidades – à medida que elas ingressam na
“era pós-industrial e a cultura ingressa no que é conhecido como era pós-moderna”
(COWEN, 1996, p. 247).36 O argumento de Lyotard é que atualmente o
conhecimento está sujeito à performatividade, ou à otimização da eficiência do
sistema. O conhecimento tornou-se uma tecnologia, ou seja, um produto
comercializável sujeito à performatividade e também a testes de verdade. Cowen
argumenta, com grande discernimento, que essas mudanças definem um tipo
diferente de educação comparada, que não se baseia nas já cansadas metanarrativas
modernistas de certeza, e sim no reconhecimento de uma crise de legitimidade. A
moderna educação comparada de John Dewey, Talcott Parsons e colegas focalizava
predominantemente a preparação do cidadão e a igualdade de oportunidades
educacionais; já nos sistemas educacionais da modernidade tardia, a conexão mais
forte situa-se entre a economia internacional e os esforços para direcionar os
sistemas educacionais para a competição global. Hoje, afirma Cowen, nós,
comparativistas, precisaremos especificar os padrões de desordem em contextos de
transição nacionais específicos para a educação moderna tardia. [Hoje,] as categorias
de análise do senso comum – ou seja, a gestão e a administração financeira da
escola, as estruturas administrativas, o currículo, a formação de professores – agora
são perigosas. Mesmo que a partir delas pudéssemos deduzir determinadas regras
[como os defensores da modernidade gostariam que fizéssemos],
37
essas regras seriam
uma leitura do mundo errado (COWEN, 1996, p. 167).

Considerações finais
Para concluir, Cowen cita Zygmunt Bauman, que observa que não somos mais
legisladores, e que deveríamos primeiro cuidar de nossas interpretações (BAUMAN,

36. Ver outros trabalhos,afins conceitualizados nessa perspectiva em Coulby e Jones (1995, 1996). Ver também
(GREEN, 1994, p. 136-149; SCHRIEWER, 1988, p. 25-83), cujo texto deste último autor defende de
maneira pretensiosa uma ciência da educação comparada baseada em estilos de raciocínio, ou Denkstile, em
“tipos divergentes de teorias, a saber, teorias científicas e teorias de reflexão” (SCHRIEWER, 1988, p. 30).
37. Em um estudo semelhante, Peter Jarvis usa o conceito de “modernidade tardia” para situar preocupações
ligadas à performatividade de culturas não ocidentais, que consomem conhecimento educacional que agora
pode ser apresentado em pacotes e comercializado no mundo todo. Ver seu “Continuing education in a
late-modern or global society” (1996).
O mapa da educação comparada depois da pós-modernidade 409

1987). Apenas posso concordar, e sugerir, além disso, que, na condição de


comparativistas, também estamos, ao que parece, bem posicionados para tornarmo-
nos cartógrafos sociais, capazes de traduzir, mapear e comparar perspectivas
múltiplas sobre a vida social e educacional. E como sugere nossa viagem intertextual
neste estudo, embora nosso trabalho coletivo venha-se tornando mais pós-
paradigmático e eclético, temos consciência, como indivíduos, dos pontos de
impacto ou lugares mais favoráveis no trabalho com o conhecimento para encontrar
mais aliados, recursos para a prática e opções para o movimento (ROSS et al.,
1992).38 Ao mesmo tempo, estamos aprendendo a reconhecer e incluir visões do
Outro, ampliando assim o âmbito de nossa visão e a diversidade, ou detalhes
minuciosos, de nossas representações.
Assim, será possível que exista alguma coisa equivalente a um bem geral,
reduzida, a ser descoberta nas oportunidades provenientes da educação comparada
praticada na forma de mapeamentos comparados de visões de mundo discrepantes?
Hoje, é este o nosso desafio, para entender a crença de William Blake de que a
verdade é particular, e não geral, enquanto avançamos para além de sua formulação
isto ou aquilo, para um espaço mais heterotópico de entendimento reflexivo crítico
– como mostra a Figura 2 –, aberto aos textos essencialistas da modernidade tardia,
aos textos antiessencialistas dos pós-modernistas, e a todos os textos que ainda
precisam reivindicar seus espaços polêmicos.39

38 Assim como no estudo aqui apresentado, os autores relatam a descoberta de um “campo fragmentado que
constitui caos para alguns e, para outros, um mosaico de objetivos, estruturas teóricas, metodologias e
declarações variados e às vezes competitivos” (ROSS et al., 1992, p. 113). Em 1988, os autores constataram
que os membros da Cies, de modo geral, “colocavam suas esperanças nas múltiplas possibilidades da
diversidade e defendiam a posição eclética do campo como uma ampliação de identidade, e não como
ausência” (ROSS et al., 1992, p. 127). Situo essa visão na posição ecletismo pós-paradigmático, no centro
da Figura 2. Essa talvez ainda seja a perspectiva preferida da maioria dos profissionais da educação comparada,
porém, um estudo de acompanhamento faz-se necessário. Para uma revisão perspicaz de nosso livro “Social
cartography” sob essa perspectiva eclética, ver Pickeles, “Social and cultural cartographies and the spatial turn
in social theory” (1999).
39 Nigel Blake também aborda esse desafio em seu perspicaz estudo “Between postmodernism and anti-
modernism: the predicament of educational studies” (1996). Blake considera que os pós-modernistas resistem
ao uso de um critério de validade, como defendem Watson (ou seja, dados concretos) e Welch (ou seja
democracia ocidental) para estabelecer um uso (ver notas 27 e 35). Isso impediria outras estórias e
representaria uma reivindicação de consentimento universal como único critério. A teoria pós-moderna, por
sua própria natureza, refuta o valor de toda estrutura de investigação que reivindique a priori validade
universal. De fato, uma das características intelectuais mais importantes do pós-modernismo é o repúdio da
noção de perspectivas sobre si mesmo ou sobre qualquer outra coisa que sejam exclusivamente válidas ou
valiosas (BLAKE, 1996, p. 43). Aqui, Nigel Blake reitera o profundo ceticismo encontrado nos textos anti-
iluministas e pós-modernos sobre a validade universal de qualquer narrativa dominante ou estória teórica
individual dominante. Ver Lyotard, “The postmodern condition: a report on knowledge” (1984), que, não
sem ironia, pode ser lido como defesa da rejeição de metanarrativas como narrativa dominante. A cartografia
social, como é aqui praticada, procura evitar essa tentação, reconhecendo e inter-relacionando todos os textos
e argumentos que reivindicam espaço nos debates no campo do conhecimento.
410 Paulston

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63

POLÍTICA, TEORIA E REALIDADE


NA PEDAGOGIA CRÍTICA

Michael W. Apple e Wayne Au

Introdução
A pedagogia crítica geralmente busca expor de que maneira as relações de poder
e desigualdade (social, cultural e econômica), em suas inúmeras formas,
combinações e complexidades, são manifestadas e contestadas na educação formal
e informal de crianças e adultos (GIROUX, 1997; McCARTHY; APPLE, 1988;
McLAREN, 2005). Contudo, essa afirmação pode, na verdade, ter um caráter
excessivamente geral, pois a expressão “pedagogia crítica” é um significador um
tanto escorregadio que tem sido utilizado de diversas maneiras para descrever
diversas coisas. De fato, o termo já chegou a ser usado de formas tão amplas que
pode significar praticamente qualquer coisa, desde salas de aula cooperativas, com
um conteúdo pouco mais político, até uma definição mais sólida, que envolve uma
reconstrução ampla dos propósitos da educação, como ela deve ser executada, o
que ensinar e quem deveria ser autorizado a dedicar-se a ela. Essa compreensão
mais sólida, na qual nós dois nos baseamos, envolve transformações fundamentais
nos pressupostos epistemológicos e ideológicos subjacentes sobre o que seria o
conhecimento oficial ou legítimo, e quem o detém (APPLE, 1979/2004, 2000).
Isso envolve um comprometimento com a transformação social e um rompimento
com a reconfortante ilusão de que a maneira como atualmente se organizam nossas
sociedades e seus mecanismos educacionais pode levar à justiça social. Uma
compreensão mais profunda de pedagogia crítica também é, cada vez mais, baseada
na percepção da importância de dinâmicas múltiplas que sustentam as relações de
exploração e domínio em nossas sociedades. As questões relacionadas a políticas
de redistribuição (dinâmica e processos econômicos de exploração) e a políticas de
reconhecimento (lutas culturais contra a dominação e lutas pela identidade)
precisam, portanto, ser consideradas de maneira conjunta (FRASER, 1997).
Na raiz dessas preocupações encontramos um princípio simples. Para
compreender a educação e atuar em suas complicadas conexões com a sociedade
mais ampla, devemos nos comprometer com o processo de reposicionamento. Isto
é, devemos ver o mundo pelos olhos das pessoas despossuídas e agir contra os
processos e formas institucionais e ideológicos que reproduzem as condições
opressivas (APPLE, 1995). Esse reposicionamento diz respeito tanto a práticas

415
416 Apple e Au

políticas como a práticas culturais que incorporam os princípios da pedagogia crítica;


mas isto gerou também um grande corpo de conhecimento crítico e de teoria que
tem levado a uma reestruturação fundamental nas definições dos papéis da pesquisa
e dos pesquisadores (SMITH, 1999; WEIS; FINE, 2004). Vamos falar mais um
pouco sobre as implicações decorrentes.

As tarefas da pesquisa e da ação educacional críticas


De maneira geral, há cinco tarefas com as quais a análise crítica (e o analista
crítico) em educação deve ocupar-se:
1. Deve testemunhar a negatividade, ou seja: uma de suas funções mais
importantes é elucidar as conexões da política e da prática educacional com as
relações de exploração e dominação na sociedade mais ampla.
2. Ao engajar-se nessas análises críticas, deve também apontar as contradições e
os possíveis espaços de ação. Portanto, a finalidade é examinar criticamente as
realidades atuais com uma estrutura conceitual/política que enfatiza os espaços
em que as ações anti-hegemônicas podem ocorrer, ou já estão ocorrendo.
3. Por vezes se faz necessária a redefinição do que pode ser considerado como
pesquisa. Referimo-nos aqui a agir como secretários para aqueles grupos de
pessoas e movimentos sociais que, no momento, estão envolvidos em desafiar
relações existentes de desigualdade de poder ou no que foi chamado em outra
parte de reformas não reformistas (APPLE, 1995; APPLE; BEANE, 2007;
GANDIN, 2006).
4. O trabalho crítico tem, no processo, a tarefa de manter viva a tradição de
trabalho radical. Diante de ataques organizados a memórias coletivas de
diferenças e de lutas – ataques que tornam cada vez mais difícil a tarefa de
manter a legitimidade social e acadêmica de múltiplas abordagens críticas, que
se mostram tão valiosas para bloquear relações e narrativas muito poderosas –,
é de extrema importância que essas tradições sejam mantidas, renovadas e,
quando necessário, criticadas por suas limitações ou seus silêncios conceituais,
empíricos, históricos e políticos. Isso inclui não apenas manter vivas as tradições
teóricas, empíricas, históricas e políticas, mas também é essencial ampliá-las e
criticá-las (de maneira apoiadora). E isso envolve também manter vivos os
sonhos, as visões utópicas e as “reformas não reformistas” que são partes
integrantes dessas tradições radicais (JACOBY, 2005; TEITELBAUM, 1993).
5. Por fim, os educadores críticos devem agir em conjunto com os movimentos sociais
progressistas que seus trabalhos apoiam, ou em movimentos contra as suposições
e políticas direitistas que analisam criticamente. Portanto, o conhecimento pela
óptica da educação crítica ou da pedagogia crítica implica tornar-se um intelectual
orgânico no sentido gramsciano do termo (GRAMSCI, 1971). Devemos participar
e oferecer nossa expertise em movimentos que englobam lutas pelo que, seguindo
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 417

Nancy Fraser (1997), denominamos de uma política de redistribuição e uma


política de reconhecimento. Nossos esforços intelectuais são cruciais, como lembra
Bourdieu, porém “não podem ficar fora, neutros e indiferentes, das lutas em que
está em jogo o futuro do mundo” (BOURDIEU, 2003, p. 11).
Essas cinco tarefas são exigentes e ninguém pode se envolver igualmente bem
em todas elas simultaneamente. Contudo há uma longa tradição de conhecimento
acadêmico crítico e de trabalho cultural crítico em paralelo a dinâmicas múltiplas,
que procurou testemunhar a negatividade e resgatar a memória coletiva do trabalho
pedagógico que é verdadeiramente anti-hegemônico. Examinaremos este último
na próxima seção.

As raízes políticas da pedagogia crítica


Antes mesmo de intelectuais críticos e ativistas na América Latina, como Paulo
Freire, terem adotado a expressão “pedagogia crítica”, educadores de diversas
comunidades nos Estados Unidos e de muitos outros países dedicaram-se a projetos
que certamente seriam considerados críticos. Essas primeiras manifestações de
pedagogia crítica frequentemente desafiavam as relações sociais e as estruturas de
poder existentes, levantando críticas importantes de relações de raça, classe e gênero,
e oferecendo alternativas radicais às formas de educação então existentes.
Existe, por exemplo, uma tradição de longa data nas comunidades afro-
americana e afro-caribenha com respeito aos objetivos e à natureza de sua educação
(JULES, 1992; LEWIS, 1993, 2000). No mínimo desde o fim do século XIX,
intelectuais e ativistas afro-americanos, por exemplo, envolveram-se em esforços
para definir o que deveria fazer parte da educação dos negros nos Estados Unidos
e no Caribe, principalmente considerando o contexto pós-escravidão e o racismo
institucional presente à época em seus países. Como explica Watkins (1993), esses
esforços resultaram no que o autor chama de diversas Orientações de currículo
negro: as orientações acomodacionistas, que defendiam a aprendizagem industrial
para os afro-americanos e eram desenvolvidas por líderes comunitários, como
Booker T. Washington; as orientações de educação liberal, que buscavam
desenvolver o pensamento crítico dos alunos, com a intenção expressa de melhorar
a participação social, política e cultural, associadas a líderes como o reverendo
Alexander Crummell e W. E. B. DuBois (LEWIS, 1993, 2000); e a perspectiva
nacionalista negra, que incluía os movimentos nacionalista, nacionalista cultural,
pan-africano e separatista negro, associados a Marcus Garvey, Noble Drew Ali,
Elijah Muhammed e Malcolm X (WATKINS, 1993). No Caribe, o uso de formas
culturais populares manteve vivo aquilo que Livingston chamou de conhecimento
da diáspora. Os modelos de educação popular baseados em tais memórias e formas
culturais forneceram recursos importantes para se opor aos métodos e narrativas
colonizadores muito poderosas (LIVINGSTON, 2003; JULES, 1992).
418 Apple e Au

Outro exemplo de atividade anti-hegemônica, desta vez focada na escola pública


crítica, organizando-se em torno de raça e classe social, pode ser encontrado na
história do Harlem, na cidade de Nova York, entre 1935 e o início da década de
1950. O Comitê do Harlem por Melhores Escolas (HCBS), uma aliança entre
associações de pais, igrejas e grupos docentes e comunitários, foi formado para
exigir melhores escolas no Harlem, incluindo almoço gratuito, melhores condições
de trabalho para os professores e melhores condições físicas das próprias escolas. O
HCBS é notável por diversas razões. Uma delas é ser inter-racial. O comitê
começou principalmente com comunistas judeus que ensinavam em escolas do
Harlem e conquistou o apoio da comunidade por meio da criação de associações
de pais e seções do sindicato de professores, o que possibilitou a criação de vínculos
fortes com a maioria dos professores afro-americanos do Harlem. Outra razão
notável é o fato de o HCBS representar reforma educacional, ativismo e organização
do eleitorado, pois dele faziam parte professores, membros da comunidade e
organizações políticas (NAISON, 1985). Todas essas formas de educação
representam diferentes respostas ao que o historiador Woodson (1990/1933)
chamou de má educação do negro, e expressam críticas decisivas ao sistema público
de educação no plano racial.
Na mesma época, e dali em diante, outras mobilizações similares aconteceram
em países como a Inglaterra, e em outras regiões onde há comunidades que
sofreram diásporas, e envolvendo outras dinâmicas igualmente opressoras de
diferença de poder envolvendo gênero e classe social. Por exemplo, há uma tradição
de longa data de críticas à educação pelo movimento feminista crítico em todas as
partes do mundo. Nos Estados Unidos, assim como em outros países, no início do
século XX, diversas mulheres notáveis assumiram papéis de liderança na
organização de professores – uma força de trabalho predominantemente feminina
(APPLE, 1986) –, para lutar por melhores condições de trabalho. Entre elas
estavam Grace Strahan, em Nova York, e Margaret Haley, em Chicago. Outras,
como Kate Ames – que em 1908, na Califórnia, desafiou a Male School Masters
Association1 –, lutaram contra a imposição de uma estrutura de organização e de
remuneração patriarcal nas escolas (WEILER, 1989). Embora houvesse críticas
justificáveis de que esse tipo de trabalho pedagógico crítico marginalizava as
mulheres negras, as mulheres da classe trabalhadora e as mulheres de países do
terceiro mundo, algumas vezes esses esforços críticos efetivamente conseguiram
atravessar as linhas divisórias de classe nos Estados Unidos, na Inglaterra e em
outros países (COPELMAN, 1996; GOMERSALL, 1997; MARTIN, 1999;
MUNRO, 1998; PURVIS, 1991).
A questão das classes sociais é crucial aqui. Assim, as relações de classe e as lutas
contra a exploração não foram invisíveis na história da educação crítica. Na

1. NT: Associação de Professores do Sexo Masculino (tradução livre).


Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 419

realidade, eram frequentemente um foco primordial. As primeiras manifestações


da pedagogia crítica nos Estados Unidos foram além das dinâmicas de poder
associadas a políticas de raça e gênero, embora às vezes essas dinâmicas também
fossem ignoradas, o que posteriormente resultou em prejuízo do movimento. Entre
1909 e 1911, nos Estados Unidos, por exemplo, mais de cem funcionários escolares
socialistas foram eleitos para diversos distritos escolares em todo o país. Entre 1900
e 1920, ativistas socialistas abriram mais de cem escolas dominicais anglófonas em
20 estados, que variavam de turmas com dez alunos a escolas com mais de 600
alunos matriculados (TEITELBAUM, 1993). Embora não fizessem parte do
sistema escolar público – e embora também houvesse disputas constantes com
relação a políticas de reconhecimento oficial dentro do sistema escolar público
(KLIEBARD, 1995) –, essas escolas dominicais socialistas representam uma
resposta comunitária crítica, com base em classe, à educação pública daquele tempo
nos Estados Unidos. As tentativas de construir uma educação que buscasse
ativamente acabar com a dominação de classes também cruzaram as fronteiras
internacionais. As respostas educacionais socialistas às relações de classes sociais
refletiram-se na Inglaterra e no País de Gales (ver, por exemplo, SIMON, 1965,
1991), e têm também uma história marcante na América Latina, por exemplo
(BULHÕES; ABREU, 1992; CALDART, 2003; TORRES, 1997).
Encontram-se paralelos dessa história da ação educacional crítica em muitas
outras nações. De fato, em praticamente todas as regiões do mundo há movimentos
e exemplos marcantes de esforços pedagógicos radicais, tanto no âmbito da
educação formal quanto em programas comunitários de alfabetização, qualificação
profissionalizante, mobilizações antirracismo e anticolonialismo, movimentos de
mulheres e outros (VAN VUGHT, 1991). Na Coreia do Sul, por exemplo, durante
a primeira metade do século XX, foram estabelecidos cursos noturnos em
contraposição aos esforços colonizadores dos ocupantes japoneses. Essas práticas
anti-hegemônicas tiveram continuidade com os esforços do Sindicato do
Professores Coreanos para construir currículos e modelos de ensino baseados em
princípios democráticos críticos. Esses esforços tiveram que superar anos de
repressão do governo (KO; APPLE, 1999; APPLE et al., 2003). Tendências
similares foram vistas recentemente na Turquia, onde o governo tentou declarar
ilegal o maior sindicato de professores devido a seu comprometimento com uma
pedagogia mais responsiva em termos culturais, e com uma posição crítica sobre
as políticas neoliberais na educação e na economia (EGITIM SEN, 2004).
Apresentamos até agora um conjunto de exemplos de esforços empreendidos
por alguns grupos subalternos para desafiar a dominação na área da educação,
esforços estes que se tornaram cada vez mais difundidos, mesmo em face de
consequências sérias e muitas vezes extremamente repressivas. Porém, como
mencionamos anteriormente, a educação crítica não apenas envolveu ação política
e cultural pública, mas também gerou e foi gerada por uma ênfase cada vez maior
420 Apple e Au

em pesquisas, que tanto documentam as forças reprodutivas nas escolas como


apontam possíveis vias para desafiar tais forças reprodutivas. Assim, toda a gama
de movimentos e esforços de pedagogia crítica têm sido complementada pelo
crescimento de múltiplas comunidades acadêmicas que buscaram testemunhar
contra a negatividade e registrar os espaços para o trabalho anti-hegemônico.
Inicialmente, a tarefa de testemunhar tornou-se a mais importante, e é nisso que
vamos nos concentrar agora. Mais uma vez, devido aos limites de espaço deste
capítulo, tudo o que podemos oferecer é um breve esboço do desenvolvimento,
dos ganhos e das tensões dentro dessas tradições teóricas e empíricas e entre elas.

Dando testemunho e expandindo a dinâmica


A segunda metade da década de 1970 foi um período fundamental no
desenvolvimento das análises críticas da educação, especialmente aquelas que tratavam
da relação entre as macroestruturas sociais, culturais e econômicas e a organização e
a experiência da escola (WHITTY, 1985). O foco da pesquisa crítica central daquela
época enfatizava a relação entre as escolas e a reprodução social econômica e cultural.
Embora a tradição de examinar criticamente o conteúdo e os processos da reprodução
cultural já estivesse em andamento na nova sociologia da educação na Inglaterra
(YOUNG, 1971), nos estudos críticos sobre o currículo nos Estados Unidos (APPLE,
1971), e no trabalho de Bourdieu e Passeron (1977) na França, a maior parte do
debate sobre essa relação cristalizou-se em torno do livro “Schooling in capitalist
America”, de Bowles e Gintis (1976). Em seu livro, Bowles e Gintis afirmaram um
princípio de correspondência em nível macro entre as maquinações e necessidades
de produção capitalista e a produção de diferenças econômicas baseadas em classe na
educação e por meio dela. Indo ainda mais longe, essa correspondência foi um
processo relativamente mecânico, uma vez que a estrutura e os resultados das escolas
pareciam ser totalmente determinados pela economia capitalista e pelo trabalho
remunerado, de uma forma significativamente não mediada (COLE, 1988). De fato,
como um de nós argumentou (AU, 2006), essa análise mecânica afasta-se da tradição
materialista dialética, tradicionalmente marxista.
Mesmo com alguns problemas evidentes, o trabalho de Bowles e Gintis
conseguiu duas coisas. Primeiro, ajudou a estabelecer a relevância contemporânea
de análises marxistas, neomarxistas e quase-marxistas de escolas e da educação
(WHITTY, 1985). Em segundo lugar, esse trabalho acendeu um debate
controverso, estimulou uma série de críticas de longo alcance a explicações
deterministas de cunho econômico de desigualdade na educação e levou
pesquisadores críticos a aprofundar ainda mais suas análises sobre a cultura e a
reprodução ideológica também no âmbito da escolarização (APPLE, 1979/2004;
AU, 2006; COLE, 1988). O resultado final para os teóricos críticos foi continuar
indo além de versões relativamente simplistas de análises de escolas baseadas em
classe, que estavam no primeiro plano (BERNSTEIN, 1977; BOURDIEU, 1984),
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 421

assim como uma atenção mais explícita às questões de raça e gênero, indicando a
influência cada vez maior de teorias inglesas e francesas sobre as relações existentes
entre cultura, instituições sociais e educação (YOUNG, 1971).
Ao mesmo tempo, as mobilizações e os movimentos originários de populações
feministas e aquelas envolvidas em questões raciais desafiaram com propriedade a
ênfase exclusiva na questão de classe no trabalho crítico na área de reprodução social
e econômica. A própria noção de reprodução foi drasticamente contestada durante
o processo (GIROUX, 1983). As questões de contradições e conflitos dentro dessas
dinâmicas, e entre elas, tornaram-se consideravelmente mais importantes. Assim,
por exemplo, McCarthy e Apple (1988) defenderam um esquema paralelístico não
sincrônico para compreender questões de classe, raça e gênero, que reconhecesse
as interações intensas e contraditórias existentes no interior dos diferentes modelos
de exploração e domínio, e entre eles, e que exigisse dos educadores críticos menos
reducionismo em seus pressupostos. Consequentemente, argumentou-se, por
exemplo, que a desigualdade racial não poderia ser reduzida unicamente a
desigualdade econômica (APPLE; WEIS, 1983) – uma posição que, embora ainda
não seja plenamente desenvolvida, antecipa alguns dos argumentos fortemente
producentes da teoria racial crítica (GILLBORN, 2005; LADSON-BILLINGS;
TATE IV, 1995).
Com o objetivo de buscar novas orientações teóricas que tratassem das
complexidades que faltavam em análises como as de Bowles e Gintis (1976),
muitos acadêmicos críticos, como Giroux, recorreram às obras de Antonio
Gramsci, Louis Althusser, Stuart Hall e Raymond Williams, e também aos
estudiosos da Escola de Frankfurt. Logo desenvolveu-se toda uma série de análises
ricas em insight sobre a relação entre cultura vivida, escolarização e economia. Em
parte com o estímulo de “Learning to labour”, a obra clássica de Willis (1977)
sobre cultura, relações de classe e masculinidade de jovens, e dos insights
igualmente perspicazes de McRobbie (1978) sobre os modos de interação das
dinâmicas de gênero e classe dentro e fora das escolas, muito se ganhou e ainda se
ganha em termos de compreensão do modo como as formas e as práticas culturais
populares se interconectam dialeticamente com práticas e dinâmicas de classe,
raça e sexo ou gênero (ARNOT, 2004; EPSTEIN; JOHNSON, 1998; WILLIS,
1990). Essas análises apontaram espaços contraditórios na experiência vivida pelos
povos, nos quais um trabalho cultural poderia conseguir reunir os jovens sob uma
liderança mais progressista (WEIS, 1990).
Ainda assim, mesmo com os imensos progressos alcançados pela compreensão
marxista e neomarxista, e pelas pesquisas baseadas em teorias feministas e
antirracistas, essas tradições passaram por um escrutínio rigoroso. Abordagens
feministas pós-estruturais e análises convincentes baseadas em teorias raciais críticas
fizeram intervenções provocadoras nos debates sobre todas essas questões
(LADSON-BILLINGS; TATE IV, 1995; LUKE; GORE, 1992). Um foco na
422 Apple e Au

indeterminação, na capilaridade do poder, no poder como produtor e não apenas


reprodutor, na identidade e na sua constituição discursiva, muitas vezes com base
nas idéias de Foucault (YOUDELL, 2006), fez da pedagogia crítica um terreno
propício para debates e conflitos de grande riqueza, dando a ela uma vitalidade
que a mantém viva e em crescimento. Embora possamos ter preocupações com as
formas como as abordagens de Foucault atuaram para tacitamente despolitizar o
terreno da educação crítica, para tornar o mundo excessivamente discursivo, ou
para minimizar os modos pelos quais as forças estruturais efetivamente têm um
imenso poder (APPLE, 1999), queremos demonstrar nosso respeito pelos imensos
esforços de pessoas profundamente comprometidas que se empenharam para que
surgissem ideias novas e um sentido mais amplo do que é político. Esse é o caso,
em particular, de certos países em que a esquerda tradicional parecia ter perdido
um pouco de sua vitalidade (DUSSEL, 2004; GIMENO, 2005).
A natureza internacional dessas questões ganhou maior visibilidade com o
crescimento das análises baseadas em perspectivas pós-coloniais. Influenciadas pelo
trabalho de figuras como Edward Said, Gayatri Spivak, Ngugi Wa Thiong’o e
Homi Bhabha, as teorias pós-coloniais mostraram-se cada vez mais influentes
quando os educadores críticos lutam contra a globalização das políticas neoliberais
e neoconservadoras e tentam opor-se a elas (BURBULES; TORRES, 2000;
DIMITRIADIS; McCARTHY, 2001; SINGH; KELL; PANDIAN, 2002). É isso
que torna tão importante o trabalho e a influência de Paulo Freire, cujo nome
passou a ser praticamente sinônimo de pedagogia crítica, internacionalmente.
Usaremos o desenvolvimento e o status do trabalho de Paulo Freire como um
modelo para dar continuidade à nossa discussão.

Paulo Freire e o desenvolvimento da pedagogia crítica


A publicação e a distribuição do livro “Pedagogia do oprimido” (FREIRE,
1974) foi um marco para a pedagogia crítica. Com base nas teorias pós-coloniais
de Franz Fanon, Amílcar Cabral e Albert Memmi, e na visão revolucionária
igualitária de Marx, Engels e Lenin, Freire e sua obra são talvez os mais
emblemáticos e os mais amplamente utilizados entre os pedagogos críticos do
mundo inteiro. Mais de 750 mil cópias de “Pedagogia do oprimido” foram
vendidas desde sua publicação em 1970, e não seria exagero afirmar que Freire
representa o crescimento e a influência da pedagogia crítica no âmbito
internacional, particularmente em contextos pós-coloniais (McLAREN, 2000).
A pedagogia crítica de Freire gira em torno da ideia central de práxis – a
unificação de reflexão crítica e ação crítica. Procura ser a pedagogia que permite que
alunos e professores sejam sujeitos de sua própria história. Tornam-se atores (e é um
processo constante de tornar-se) capazes de olhar para a realidade, refletir de maneira
crítica sobre ela e empreender ação transformadora para mudá-la, aprofundando
assim sua consciência e trabalhando para um mundo mais justo. A pedagogia crítica
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 423

de Freire usa métodos de ensino baseados na problematização e no diálogo, com a


intenção de questionar todas as relações de poder hierárquico, inclusive a relação
aluno-professor. Dessa forma, a pedagogia crítica de Freire convida alunos e
professores a tornar-se agentes de mudança, tanto dentro de suas salas de aula como
no mundo em torno delas (FREIRE, 1974; SHOR; FREIRE, 1987).
Na Europa, na África e na América Latina – na verdade, em todo o mundo –
não é possível tratar da implementação e da prática da pedagogia crítica sem
enfatizar a profunda influência de Freire e daqueles que seguiram sua trilha.
Podemos ver as influências de Freire até mesmo nos Estados Unidos (McLAREN,
2000, 2005; SHOR, 1992; RETHINKING SCHOOLS, 2005), um lugar onde
a pedagogia crítica tem suas próprias raízes entre pessoas negras envolvidas em
atividades educacionais feministas (HOOKS, 1994) e ligadas à educação de
trabalhadores (HORTON, 1990), e onde às vezes é evidente a grande antipatia
por trabalhos educacionais declaradamente radicais.
Embora seja difícil exagerar a importância de Freire para a pedagogia crítica,
seu trabalho não foi perfeito, e muitos estudiosos procuraram criticá-lo – às vezes
justificadamente (WEILER, 1991), às vezes erroneamente (BOWERS; APFFEL-
MARGLIN, 2005), ou um pouco de ambos (ver ELLSWORTH, 1989, por
exemplo). Weiler (1991), por exemplo, aponta no trabalho de Freire a ausência de
uma análise específica sobre o patriarcado e a opressão da mulher, uma vez que
ambos estão presentes na educação em geral e, especificamente, em sua própria
teorização. Outros, como Ladson-Billings (1997), criticaram a pedagogia crítica
de Freire por não lidar adequadamente com questões de raça (ver também
LEONARDO, 2005). Outros ainda, de vertentes mais críticas do movimento
ambientalista, criticaram a pedagogia crítica no sentido de que ela deveria ser mais
“verde” – isto é, deveria incluir as preocupações com o meio ambiente com a
mesma intensidade que inclui as questões sociais (AU; APPLE, 2007; McLAREN,
2005). Em relação a essas críticas, Freire considerava-se fornecedor “ao educador
de possibilidades de usar minhas discussões e teorizações sobre opressão e aplicá-
las a um contexto específico” (FREIRE, 1997, p. 309), o que sentia ser aplicável
para lidar com o racismo e a opressão da mulher em outros contextos (FREIRE;
MACEDO, 1995). De fato, Hooks (1994), Stefanos (1997) e Weiler (1991)
encontram afinidade entre Freire, feminismo e antirracismo. Independentemente
disso, essas críticas refletem as tensões existentes na comunidade de pesquisa de
educação crítica que apontamos anteriormente.
Isso tudo não quer dizer que as críticas à pedagogia crítica de Freire não sejam
justificáveis, ou que a própria pedagogia crítica (indo além da concepção de Freire)
não precise evoluir. Assim como alguns estudiosos críticos e teóricos têm criticado
e instigado os limites do trabalho de Freire, estudiosos feministas e da teoria racial
crítica também têm lutado para assegurar que a pedagogia crítica em geral aborde
o racismo, o sexismo, as realidades da homofobia (KUMASHIRO, 2002) e outras
424 Apple e Au

formas de poder na educação (EREVELLES, 2005). Nossa posição é que os críticos


da pedagogia crítica (feministas, críticos raciais e ecologistas, entre outros), quando
são guiados por um desejo coletivo de construir uma unidade descentralizada que
tente trabalhar todas as diferenças, são valiosos, pois, de modo geral, ajudam o
campo a evoluir e reforçam-no como um meio mais viável para produzir mudanças
educacionais e sociais (AU; APPLE, 2007).

Tensões e contradições
No entanto a imagem que construímos até agora é enganosamente linear. As
tradições críticas são complicadas e cheias de tensões e discordâncias. Além disso,
há o risco de apagar da memória ganhos importantes, e também de voltar a
perspectivas redutoras e essencializadoras, cujas deficiências são sérias. Foi o que
aconteceu com perspectivas funcionalistas econômicas surpreendentemente
similares às de Bowles e Gintis (1976), porém sem o conhecimento de economia
que têm esses autores, e que efetivamente voltaram a essas perspectivas. Com o
surgimento das análises pós-modernas e pós-estruturais na educação da década de
1990, as análises que tendiam a excluir a discussão de classes de suas estruturas
críticas – e de certa forma, essa volta a explicações mais ligadas a aspectos
econômicos de escolarização e reprodução social é compreensível – levaram alguns
estudiosos marxistas e neomarxistas a assumir essencialmente posições ideológicas
que enfatizavam a importância da materialidade das relações de classe (COLE et
al., 2001). Infelizmente, durante o processo, muito se perdeu dos ganhos obtidos
nas tradições críticas, no que diz respeito à nossa compreensão das complexidades
das relações de classe dentro do Estado e entre o Estado e a sociedade civil. É como
se Althusser, Poulantzas, Jessop, Dale e outros nunca tivessem escrito nada de
importante. O material extremamente prolífico sobre a relação entre ideologia e
identidade; sobre a relação entre cultura, identidade e economia política; sobre o
impacto crucial da política; e sobre o poder dos movimentos sociais que atravessam
as barreiras de classe, bem como uma série de outras questões, agora é visto por
alguns como uma rejeição aos princípios fundamentais das tradições marxistas (o
plural aqui é absolutamente essencial), ou então considera-se que esses avanços
lidam com preocupações epifenomênicas.
Em ambos os lados do Atlântico, algumas pessoas atacaram esses progressos,
no intuito de purificar a tradição marxista da mácula do culturalismo e do pecado
de se preocupar muito com coisas como gênero e raça, em detrimento da classe
(KELSH; HILL, 2006). A versão britânica simplesmente não compreende a
história dos Estados Unidos e de muitas outras nações, e a importância da questão
racial como uma dinâmica relativamente autônoma e extraordinariamente poderosa
na construção e na manutenção de suas relações de exploração e dominação
(GILLBORN, 2005). Assim como na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos há razões
cruciais para lidar com extrema seriedade com as questões de classe e com as
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 425

materialidades das relações capitalistas. Porém esse propósito de purificação por


vezes parece tratar as realidades das escolas e de outros espaços educacionais e
culturais, e também as lutas relacionadas a eles, de modo predominantemente
retórico. É como se essa versão de marxismo em particular flutuasse no ar acima
de realidades materiais e ideológicas que constituem o objeto da análise: a educação.
Esse é um problema distinto, pois, como observamos anteriormente, as análises
críticas que são destacadas dos movimentos reais em torno da escolarização e das
realidades da pedagogia, dos currículos, da avaliação, das políticas e da governança
simplesmente permanecem no camarote, desconectadas da vida material.
Sem mais delongas, ressaltemos o fato de que as discussões críticas sobre as
relações sociais de produção e o antagonismo de classe são cruciais à nossa
compreensão dos limites e das possibilidades do trabalho crítico com cultura e
educação. Sem essas discussões, nenhuma análise crítica pode ser completa.
Entretanto, devem estar diretamente conectadas a algo – por exemplo, as
especificidades de aspectos como o processo de trabalho dos professores, a
reestruturação neoliberal e neoconservadora de nossas instituições educacionais, a
racialização da política e da prática educacionais, a política do conhecimento
popular e oficial, os efeitos complexos e contraditórios da globalização (há
diferentes processos em ação, e não um único, em operacionalização aqui), e assim
por diante.
Esse ponto reporta, mais uma vez, às tarefas da análise e da ação críticas da
educação de que falamos anteriormente. Essas tarefas não podem ser cumpridas
com artifícios retóricos; tampouco são uma resposta satisfatória à rejeição
excessivamente simplista dos ganhos teóricos e políticos obtidos pelas lutas de
múltiplos movimentos. O trabalho árduo de construir uma unidade descentralizada
que atue em várias frentes ainda está por ser feito. Podemos continuar a construir
a partir dos ganhos obtidos dentro das tradições marxista e neomarxista, e também
integrá-los às ferramentas intelectuais e às ideias políticas dentro das tradições em
crescimento da teoria racial crítica, dos feminismos, pós-estruturalismos, pós-
colonialismos, teoria da orientação sexual, estudos sobre deficiência,
ambientalismos críticos e movimentos similares? A pedagogia crítica deve responder
a essa questão, à medida que avançamos no século XXI.

Pedagogia crítica e movimentos sociais conservadores


A vitalidade e os conflitos produtivos no âmbito da pedagogia crítica que
assinalamos aqui não constituem garantia de êxito, embora continuem sendo
vitalmente necessários. Uma pedagogia crítica bem-feita oferece análises que
proporcionam aos teóricos e profissionais práticos um meio de intervir em situações
de desigualdade social e educacional contínuas, e mesmo crescentes. Contudo, às
vezes a pedagogia crítica também é fragilizada por sua tendência ao possibilitarismo
romântico (WHITTY, 1974), por sua falta de um senso estratégico sofisticado de
426 Apple e Au

poder dos movimentos sociais, em particular os movimentos sociais direitistas,


dentro e fora do campo da educação, em um grande número de nações (APPLE,
2006; TAKAYAMA; APPLE, 2007). Essa é uma fragilidade crucial, uma vez que
as intervenções associadas à pedagogia crítica são ainda mais importantes diante
da recente formação de alianças direitistas extremamente poderosas nos Estados
Unidos, no Japão, na Austrália e em tantas outras nações hoje em dia.
Assim como um de nós já argumentou (APPLE, 2006), existe uma aliança de
quatro grandes grupos, nos Estados Unidos e em um número cada vez maior de
outras nações do mundo. Esses grupos e a aliança tática que formaram têm graus
variáveis de poder e eficácia, dependendo das histórias regionais e nacionais e do
equilíbrio de forças em cada lugar. Entretanto, ficou claro, de maneira definitiva,
que as forças por trás dessa aliança atualmente detêm o poder hegemônico por
meio da criação de conexões entre o bom senso das pessoas e do uso dessas conexões
para desarticular grupos sociais e indivíduos de seus engajamentos sociais e
ideológicos anteriores, e rearticulá-los em novos compromissos ideológicos e sociais.
Esse é um processo bastante criativo, examinado por estudiosos como Hall (1980b),
Apple (1996, 2000, 2006, 2003), Apple e Buras (no prelo), J. Torres (2001) e
outros estudiosos.
Em muitas nações, essa aliança – parte da chamada modernização conservadora
(APPLE, 2006; DALE, 1989-1990) – é constituída por pelo menos três, e às vezes
quatro forças sociais: neoliberais, neoconservadores, conservadores religiosos
populistas autoritários (particularmente poderosas nos Estados Unidos, no
Paquistão, na Índia, em Israel, entre outros) e classe média profissional e gerencial.
Os neoliberais geralmente são guiados por uma visão de um Estado fraco, estudantes
como capital humano e o mundo como um supermercado maduro para a
competição entre consumidores (e produtores). No campo da educação, a agenda
neoliberal manifesta-se em ligações mais estreitas entre escolas e empresas, bem como
na implementação de reformas de mercado livre como vales-educação nas políticas
da educação. Os neoconservadores, por outro lado, orientam-se em geral por uma
visão de um Estado forte que defende o controle do conhecimento, da cultura e do
corpo físico. No âmbito da educação, o neoconservadorismo manifesta-se em exames
e currículos nacionais e estaduais, padrões de conteúdo, introdução formal do
cânone ocidental de conhecimento, um patriotismo relativamente acrítico e
educação moral (APPLE, 2006; BURAS; APPLE, no prelo).
Os populistas autoritários distinguem-se tanto dos neoliberais quanto dos
neoconservadores. Sua sensibilidade para com a ordem social vem diretamente de
autoridades bíblicas e da moralidade cristã (embora às vezes essa autoridade possa
vir de leituras particulares do Alcorão ou de textos hindus, como no caso do
movimento Hindutva, na Índia). Interpretações dogmáticas dos textos sagrados
fornecem diretrizes para a estrutura familiar e para os papéis de gênero – e de
maneira geral, essas interpretações são tidas como conhecimento e ação legítimos.
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 427

No âmbito da educação ocidental, a agenda populista autoritária manifesta-se, por


exemplo, em lutas pela exclusão da evolução e pela inclusão do criacionismo e da
teoria do design inteligente nas aulas de ciências, e no rápido crescimento da
escolarização domiciliar – um novo fenômeno atualmente encontrado em um
número cada vez maior de países, como Dinamarca, Noruega, Alemanha, Austrália,
Inglaterra e Israel, entre outros (APPLE, 2006).
A quarta parte dessa aliança é a nova classe média profissional e gerencial. Esse
grupo usa sua expertise em gestão e eficiência para dar suporte a sistemas de
responsabilização, avaliação, produção e medição exigidos pela mercantilização
neoliberal e pelo controle neoconservador do conhecimento (CLARKE;
NEWMAN, 1997). Na educação, esse grupo apoia sistemas de altos riscos, testes
padronizados e políticas educacionais construídas a partir de formas redutoras de
responsabilidade, e se beneficia deles, uma vez que proporcionam os meios técnicos
para tornar operacionais esses sistemas e essas políticas. Envolvem-se em
complicadas estratégias de conversão, nas quais certos tipos de capital (capital
cultural) são convertidos em capital social e econômico (APPLE, 2006). Embora
cada grupo dessa aliança tenha suas próprias dinâmicas internas e trajetórias
históricas, juntos reuniram diferentes tendências sociais e compromissos políticos,
e os organizaram sob sua própria liderança geral, representando assim uma
modernização conservadora de políticas sociais, culturais, econômicas e
educacionais em diversas nações, inclusive aquelas com um passado supostamente
social-democrata, ou mesmo socialista (APPLE, 2006, 2003).
Há duas razões para dedicarmos atenção crítica a essas forças e a esses
movimentos. A primeira delas é que, gostemos ou não, esses movimentos têm sido
cada vez mais poderosos na transformação de nossas ideias centrais sobre
democracia e cidadania. Os efeitos sociais, econômicos e educacionais das políticas
provenientes da direita muitas vezes foram espantosamente negativos, em particular
para os menos favorecidos em nossas próprias sociedades e em outras (APPLE,
2006, 2003; APPLE; BURAS, 2006). E um dos efeitos mais importantes foi tornar
cada vez mais difícil manter a legitimidade das teorias, políticas e práticas
educacionais críticas.
A segunda razão é que há muito a aprender com as forças da direita. Elas
mostraram que é possível construir uma aliança entre grupos incompatíveis e, no
processo, engajar-se em um vasto projeto pedagógico e social para transformar a
visão fundamental de uma sociedade sobre direitos e (in)justiça. Políticas radicais
que há apenas alguns anos teriam parecido remotas e absolutamente insensatas hoje
são aceitas como senso comum. Embora não se deva imitar sua política muitas vezes
cínica e manipuladora, podemos aprender muito com a direita sobre a maneira de
construir movimentos por mudanças sociais, mesmo havendo diferenças ideológicas
(APPLE, 2006). Assim como os regimes históricos organizados em torno de raça e
gênero e as interseções e contradições dessas dinâmicas, o capitalismo desempenha
428 Apple e Au

um papel fundamental como força propulsora dessas dinâmicas e desses


movimentos. No entanto, isso diz muito pouco sobre as razões que levam as pessoas
a engajar-se em movimentos e mobilizações de direita, e como seria possível
convencê-las a aderir a outros mais progressistas.

Pedagogia crítica e movimentos sociais progressistas


Embora o testemunho seja crucial, também é essencial reconhecer e analisar a
força e as reais consequências das políticas neoliberais e neoconservadoras (APPLE,
2006), e documentar de que maneira os novos movimentos sociais podem crescer,
e cresceram para contrapor-se a esses movimentos e tendências conservadores, para
poder entender as renegociações que ocorrem em níveis regionais e municipais.
Como destaca Ball, “as políticas são […] um conjunto de tecnologias e práticas
realizadas e implementadas com esforço em cenários locais” (BALL, 1994, p. 10).
Assim, em vez de assumir que as políticas neoliberais e neoconservadoras ditam
exatamente o que ocorre em nível local, temos que estudar as rearticulações que
ocorrem nesse nível, para conseguir delinear a criação de alternativas. É aqui que
se juntam a tradição (ou as tradições) da pesquisa crítica, o papel do pesquisador
como um agente crítico e a ênfase freireana nas políticas de interrupção.
O livro “Radical possibilities: public policy, urban education and a new social
movement”, de Jean Anyon (2005)2, publicado recentemente, é um exemplo.
Descreve e critica as estruturas de raça e de ensino nos Estados Unidos, e ao mesmo
tempo, no processo, oferece basicamente possibilidades de mobilização em torno
de novos movimentos sociais. Anyon reconhece algo que outros discutiram mais
profundamente em outras oportunidades: os movimentos sociais são a força
propulsora de boa parte das transformações sociais e educacionais (APPLE, 2000).
Além disso, a autora chama nossa atenção para as mobilizações progressistas
históricas e atuais que fizeram diferença na sociedade. Analisa as especificidades de
tais movimentos sociais, documentando o porquê e os modos como empurraram
esta sociedade em direção a um compromisso maior com a justiça social, muitas
vezes contrariando todas as probabilidades. No processo de contar estórias dos
diferentes tipos de movimento, Anyon mostra também de que maneira a
participação em ações políticas possibilita a formação de novas identidades ativistas
por grupos carentes, e um progresso real em termos culturais, educacionais,
políticos e econômicos (APPLE; BURAS, 2006). Mas os movimentos ativistas não
ajudam apenas a transformar instituições e políticas econômicas, políticas, culturais
e educacionais: exercem também um impacto profundo em outras organizações

2. Precisamos deixar claro que alguns dos livros mencionados neste ensaio, em especial os livros de Anyon e
Weis, fazem parte de uma série organizada por um de nós (Apple). Entretanto, uma vez que a tarefa que nos
foi solicitada era dar uma ideia da situação do trabalho crítico nos Estados Unidos e em outros lugares, e
esses livros constituem importantes declarações sobre o tema, sentimos que sua exclusão teria levado à omissão
de elementos importantes.
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 429

solidárias. Historicamente, movimentos cujas reivindicações já pareceram utópicas


e radicais impulsionaram organizações mais tradicionais, criando uma situação em
que elas também se sentem forçadas a apoiar mudanças fundamentais em políticas
internas que são profundamente discriminatórias e prejudiciais.
Embora concordemos com a afirmação de Anyon de que as escolas podem
desempenhar um papel crucial ao levantar questões críticas sobre a maneira como
hoje a economia funciona desigualmente, e sobre os modos como funciona a
política racial em cada uma de nossas instituições, e também ao construir
movimentos que desafiam essas realidades, nossa visão a respeito dessas
possibilidades nada tem de romântica. Escolas são locais de conflito. Materializam
não apenas derrotas, mas também vitórias em muitos países. Educadores de diversas
nações tiveram que lidar com as grandes transformações ideológicas, políticas e
práticas que indicamos neste capítulo. Para nós, é importante aprender duas coisas
a partir das experiências de outros educadores que lutam contra as forças da
desigualdade: a primeira delas é que podemos aprender sobre os efeitos reais das
políticas e práticas neoliberais e neoconservadoras na educação; a segunda, ainda
mais importante, é que podemos aprender de que modo interromper as políticas
e práticas neoliberais e neoconservadoras, e construir alternativas educacionais mais
plenamente democráticas (APPLE, 2006; APPLE; BURAS, 2006).
Um dos melhores exemplos disso pode ser encontrado em Porto Alegre, no
Brasil (GANDIN, 2006). As políticas implementadas pelo Partido dos
Trabalhadores – por exemplo, o Orçamento Participativo e a Escola Cidadã –
ajudaram a construir uma base para políticas locais mais progressistas e
democráticas, frente ao poder cada vez maior de movimentos neoliberais em nível
nacional. O Partido dos Trabalhadores conseguiu aumentar sua maioria inclusive
entre pessoas que anteriormente votavam em partidos com programas educacionais
e sociais muito mais conservadores, porque comprometeu-se em possibilitar que
até os cidadãos mais pobres participassem em deliberações sobre as próprias
políticas, e sobre onde e como o dinheiro deveria ser gasto. Ao prestar atenção a
formas mais substantivas de participação coletiva e, igualmente importante,
destinar recursos para incentivar essa participação, Porto Alegre demonstrou que é
possível ter uma democracia mais compacta, até mesmo em tempos de crises
econômicas e ataques ideológicos por parte de partidos neoliberais e da imprensa
conservadora. Programas como a Escola Cidadã e o compartilhamento de poder
real com os habitantes de favelas, assim como com a classe trabalhadora, a classe
média, profissionais e outros, fornecem provas de que uma democracia compacta
oferece alternativas realistas à versão eviscerada de democracia rarefeita encontrada
sob o neoliberalismo. As reformas administrativa, organizacional e curricular – em
conjunto – ajudaram a criar o início de uma nova realidade para os excluídos.
Forjaram uma nova liderança, acarretaram o envolvimento ativo das comunidades
com as situações das próprias comunidades, e geraram uma participação muito
430 Apple e Au

mais ativa na construção de soluções para esses problemas (APPLE et al., 2003;
GANDIN, 2006).
Mais uma vez, não queremos ser românticos. Há problemas em Porto Alegre
– políticos, econômicos e educacionais (GANDIN; APPLE, 2003). Entretanto,
apesar deles, vemos com otimismo o impacto duradouro dessas iniciativas
democratizadoras e da construção de uma educação mais diversificada e inclusiva.
A Escola Cidadã, por si só, foi muito bem-sucedida ao tornar possível a inclusão
de uma população inteira que, se não fosse por esse projeto, estaria fora das escolas,
e ainda mais excluída em uma sociedade que já é ativamente excludente. No
entanto, o aspecto educativo mais amplo da Escola Cidadã – o empoderamento
de comunidades carentes no lugar em que elas estão e a transformação tanto das
escolas como do que ali se considera conhecimento oficial – é também de enorme
significado. As transformações em Porto Alegre representam novas alternativas na
criação de uma cidadania ativa, que aprende com suas próprias experiências e
culturas, não apenas para este momento, mas também para as gerações futuras.
Por essas razões, acreditamos que as experiências de Porto Alegre têm uma
importância considerável não só para o Brasil, mas também para todos nós que
nos preocupamos profundamente com os efeitos da reestruturação neoliberal e
neoconservadora da educação, e da esfera pública em geral. Há muito que
aprender a partir das lutas bem-sucedidas lá travadas. Entender essas lutas,
documentá-las e apoiá-las ativamente pode ajudar-nos em nossas tentativas de
realizar as tarefas da análise e da ação crítica na educação às quais nos referimos
no início deste capítulo.

Considerações finais
Neste capítulo, delineamos uma agenda ambiciosa. Sugerimos uma série de
tarefas inter-relacionadas que são essenciais para o crescimento contínuo e o êxito
da educação crítica: dar testemunho; analisar a realidade de modo a identificar os
espaços disponíveis para o trabalho anti-hegemônico; atuar como secretários críticos
para movimentos e práticas sociais críticos; manter vivas as diversas tradições
críticas, de maneira apoiadora, mas também autocrítica; e participar de movimentos
voltados para transformações sociais e culturais. Cada uma dessas tarefas é
importante, especialmente em um tempo de modernização conservadora e de
ataques a uma educação digna de ser chamada crítica.
Não nos bastava, porém, uma simples enumeração de coisas a fazer. Indicamos
também algumas raízes da educação crítica nas práticas de grupos subalternos
nos períodos iniciais das ações educacionais. Além disso, fizemos um
levantamento do trabalho acadêmico que surgiu ao longo de décadas de trabalho
sobre a relação (ou as relações) entre o poder, a educação, a reprodução e a
transformação. Detalhamos igualmente os esforços de educadores críticos
orientados para políticas e práticas – por exemplo, no trabalho de Paulo Freire –
Política, teoria e realidade na pedagogia crítica 431

e nas possibilidades de continuidade em Porto Alegre. Quando se conectam esses


exemplos a muitos outros – o movimento pela escola democrática nos Estados
Unidos (APPLE; BEANE, 2007), os esforços pedagógicos críticos em construção
em escolas e comunidades na Espanha e na Venezuela, entre outros países, e a
lista vai longe –, a sensação é de intensa fermentação e vitalidade. Nada disso é
fácil. Como aconteceu no passado, tudo requer luta constante, tanto no plano
governamental como na sociedade civil.
Muito mais poderia e precisa ser dito, em particular sobre um maior
detalhamento das iterações de cada uma dessas áreas em diferentes países em todo
o mundo. Certamente temos consciência do quanto ainda precisa ser
documentado, em termos tanto de conhecimento crítico como de políticas e
práticas críticas. Talvez, porém, isso sirva de apelo à força dos múltiplos projetos
intelectuais, políticos e culturais/educacionais associados à pedagogia crítica em
todas as suas formas. Falamos algo sobre a propagação desses vários recursos e
projetos, e que nenhum capítulo, por mais detalhado que seja, pode fazer justiça
ao trabalho de tantas pessoas e movimentos. Mesmo diante das reestruturações
globais resultantes das teorias, instituições e políticas neoliberais e
neoconservadoras, continuamos otimistas diante das possibilidades de crescimento
dos movimentos anti-hegemônicos dentro e fora do âmbito educacional e de que
venham a desafiar o poder. Continuar a assumir as tarefas apontadas acima seria
um passo importante para tornar essa possibilidade real.

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64

O FUTURO DOS ESTUDOS INTERCULTURAIS


NAS SOCIEDADES MULTICULTURAIS

Jagdish S. Gundara

A maioria das sociedades diversificadas ou multiculturais não conseguiu eliminar


a discriminação e as desigualdades dentro de suas fronteiras nacionais. Muitas das
iniciativas educacionais encontraram grandes dificuldades e não conseguiram fazer
diferença significativa nos resultados educacionais para os mais pobres dos diferentes
grupos da sociedade. A capacidade de muitos sistemas nacionais para resolver
diferenças socioeconômicas internas e reduzir disparidades tem sido progressivamente
diminuída à medida que diminui a capacidade dos governos nacionais para dar
proteção constitucional a seus cidadãos. Em termos externos, a globalização
econômica em muitos casos erodiu os poderes das instituições públicas nacionais, e
os níveis de confiança em comunidades vêm diminuindo, enquanto aumentam os
níveis de nacionalismo étnico na América anglo-saxônica, branca e protestante, ou
em uma Índia marcada pelo fundamentalismo religioso hindu. Na maioria dos países,
as iniciativas interculturais, a cidadania e a educação cívica inspiram-se na sabedoria
herdada do passado. O capítulo reconhece esses dilemas atuais, mas argumentará que
não é necessário avançar rumo ao futuro unicamente sobre a base da sabedoria
recebida do passado. Nos Estados Unidos, por exemplo, não é possível avançar usando
a concepção institucional puramente formal de democracia, como uma expressão de
devoção filial aos Pais Fundadores da América, baseada em uma liberdade concebida
em termos individualistas. A República Francesa também necessita garantir que a
cultura pública e as instituições sejam inclusivas de minorias e de outras culturas, o
que é necessário para garantir que os aspectos corrosivos do racismo e da xenofobia
não diminuam a confiança nas instituições democráticas, e que os processos
permaneçam vibrantes e não se invalidem. Isso ocorre porque uma democracia
puramente formal é culturalmente insustentável, ideologicamente vazia e pode ser
operacionalmente subvertida. Para tornar as instituições democráticas mais viáveis
nos Estados Unidos e em outros países, é necessária uma visão mais profunda de
democracia, que expresse uma concepção mais abrangente dos valores democráticos
com base na experiência. Esses valores democráticos baseados na cultura incluiriam
os melhores valores dos diversos grupos no nível local e fortaleceriam as reciprocidades
de vida comunitária que conferem validade ao conceito analítico de Tocqueville, dos
hábitos do coração (GREEN, 1999, p. vi).

435
436 Gundara

Este capítulo examinará os modos pelos quais o que é nacional pode ser capaz de
agir de maneira diferente dentro das estruturas institucionais e legais nos planos
regional, continental e internacional. O artigo fará referência a políticas,
especialmente àquelas ligadas a direitos educacionais e demais direitos dos cidadãos.
Instituições como a Comissão Europeia, o Conselho da Europa e a UNESCO têm
uma participação da maior importância nestes tempos de mudanças rápidas.
Organizações continentais e regionais, como a Organização de Unidade Africana e
o Mercosul podem desempenhar papéis similares nas regiões de sua atuação. Dentro
da Comunidade Britânica de Nações, os chefes de governo, reunidos em Kampala,
trataram da questão da transformação das sociedades, no sentido de alcançar maior
desenvolvimento político, econômico e humano – um processo que pode lançar mão
das redes de comunicação mais fortes da Comunidade Britânica de Nações na área
da educação, para contribuir para essas agendas (UNITED KINGDOM, 2007).
Atualmente, os Estados modernos enfrentam desafios cada vez mais sérios em
seus sistemas educacionais. Em termos gerais, exclusão social e desigualdade em
vários índices representam uma ameaça para a viabilidade dos sistemas políticos e
sociais nacionais, em virtude da maneira pela qual essa exclusão leva à
institucionalização da injustiça em muitas sociedades. Profissionais e gestores de
políticas públicas e sociais têm um papel a desempenhar no processo de transformar
exclusões em inclusões sociais, recorrendo a poderes legais e constitucionais em
contextos democráticos. Entretanto, esses profissionais enfrentam uma série de
problemas. Para os educadores, isso inclui a maneira como as questões de diferença
e diversidade foram conceituadas no passado recente, e de que forma, em alguns
contextos, a diferença passou a ser interpretada como déficit. Essas distorções
conceituais têm reduzido ainda mais as possibilidades de melhoria nos resultados
da educação de grupos mais pobres e marginalizados da sociedade. Este capítulo
tratará de algumas dessas questões.
Alguns dos problemas mais difíceis de tratar são encontrados em sociedades em
que o racismo, a xenofobia e o chauvinismo aprofundaram as desigualdades em
comunidades diversificadas, frustrando as aspirações de grupos, comunidades e
indivíduos que se sentem excluídos de uma geração para outra ou
permanentemente. Portanto, questões sobre como conseguir igualdade e como
lidar com sistemas de conhecimento nacionais poderosos e excludentes precisam
ser consideradas de forma permanente e avaliadas criticamente. Com o fracasso de
muitos Estados modernos no sentido de prover igualdade, muitos grupos voltaram
a adotar identidades étnicas e religiosas mais singulares; e quando existem, são
muito poucas as medidas educacionais bem-fundamentadas para tratar dessas
questões no plano internacional. Os educadores precisam considerar em que
medida o fracasso do Iluminismo ao lidar com as questões do racismo e da
xenofobia contribuiu para o desencanto com os sistemas democráticos e
constitucionais nacionais e com as organizações internacionais. O retorno dos
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 437

grupos a uma identidade étnica e religiosa em termos singulares precisa também


de um Renascimento e um Iluminismo entre todos os sistemas de fé. Isso é
necessário para que estes sejam eficazes no sentido de dar condições a seus adeptos
para atuar como cidadãos completos no mundo moderno, com todas as
complexidades das realidades culturais, sociais, econômicas e políticas. Identidades
e comunidades singulares ou singularizadas não dispõem dos recursos necessários
para lidar com as desigualdades globais e complexidades societais novas e
emergentes. Para tratar dessas questões de justiça global é necessário desenvolver
instituições públicas cosmopolitas e cidadãos com senso cívico (New Humanist,
2006). O humanismo secular está agora profundamente arraigado nas sociedades,
após longas lutas travadas pelos grupos subordinados e oprimidos. Entretanto, as
religiões literalistas vêm tentando reverter essas vitórias em várias partes do mundo,
para substituí-las por valores societários, costumes, normas e instituições de base
religiosa (The Economist, 2007, p. 3-20; GUNDARA, 2000a).
Os sistemas educacionais podem tratar de alguns desses desafios, e os educadores
precisam considerar cuidadosamente essas questões, e delinear políticas apropriadas
para lidar com uma gama de problemas enfrentados pelos sistemas sociais. Esse
processo deve ser parte de um conjunto mais amplo de medidas de políticas
públicas para eliminar algumas das crises em curso que levaram as sociedades a
fragmentar-se, como aconteceu no sudeste da Europa, em partes da África Central
e na Somália. Atualmente, conflitos de longa duração também afligem alguns
países, como Afeganistão, onde organismos internacionais e certos países, como
Grã-Bretanha e Canadá, tentam reconstruir instituições e estruturas do Estado, em
particular escolas para meninas. Desde 2001, 6 milhões de crianças estão nas
escolas, e as meninas representam mais de um terço delas (DFID, 2007).
Alguns desafios atuais e futuros serão discutidos neste capítulo sob uma
perspectiva intercultural e no campo da educação. Entre eles está a liberalização
dos sistemas de educação pública no que diz respeito a atender às perspectivas e
aos problemas decorrentes da globalização econômica. Discutiremos estruturas e
conceitos inadequados utilizados no campo da educação intercultural e como
iniciativas de base prática têm levado a um aumento das desigualdades
educacionais, da centralização do conhecimento, do racismo e da intolerância
religiosa. Essa situação é exacerbada pela inadequação da formação atual de
professores (treinamento) e pelo poderoso papel negativo que desempenham em
sociedades diversificadas os meios de comunicação, cada vez mais proliferados,
privatizados e comerciais.

O contexto internacional: globalização, diversidade e uniformidade


A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 26.1, assegura o
direito à educação a todos e é uma das pedras fundamentais dos direitos humanos
de maneira geral. O Artigo 26.2 estabelece:
438 Gundara

A educação deve ser orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e para o
fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A educação
deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações, todos os grupos
religiosos e raciais, e desenvolver as atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz
(BATELAAN; COOMANS, 1999).

Essa é uma boa definição para a educação intercultural, mas está longe da
realidade, uma vez que certos aspectos da globalização, como o direito à educação,
deixaram totalmente de lado pelo menos um bilhão de pessoas (POWER, 2000).
O direito à educação que consta na Declaração Universal traduz-se em uma forma
mais precisa no Acordo Internacional sobre Direitos Sociais e Culturais e no Acordo
Internacional sobre Direitos Políticos e Civis. Nas décadas de 1980 e 1990, a
agenda dos direitos humanos ampliou-se com o reconhecimento dos direitos ao
desenvolvimento, dos direitos ambientais e com uma formulação mais precisa dos
direitos da criança. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
dedica dois artigos – 28 e 29 – aos direitos à educação e aos propósitos da educação
(PEREZ DE CUÉLLAR, 1995).
O Marco de Ação de Dacar comprometeu seus signatários a “garantir que, em
2015, todas as crianças, particularmente meninas e crianças em circunstâncias
difíceis, e aquelas que pertencem a minorias étnicas, terão acesso a educação
primária de boa qualidade, gratuita e compulsória, e poderão concluí-la”. Nesse
sentido, o desafio de Educação para Todos (EPT), da UNESCO, não se restringe
ao provimento da educação básica e primária em países pobres, mas inclui também
educação de qualidade para todos, que, por definição, deve ser intercultural, tanto
nos países mais ricos como nos mais pobres. O documento da UNESCO
“Educação e diversidade cultural” estabeleceu uma prioridade fundamental para o
biênio 2002-2003, e ressaltou que: “a UNESCO estimulará a inclusão de questões
que envolvam valores em educação em sociedades multiculturais e multilíngues
nos planos de ação nacionais de EPT (UNESCO, 2002).
Esse foco tornou o Marco de Ação de Dacar mais intercultural, ao incluir
provimento para nômades, viajantes e populações ciganas. Nas Américas, esses
grupos incluem os povos inuite, maia e quéchua. A importância de EPT para os
países industrializados em muitas partes do mundo foi assegurar que o conteúdo
educacional seja apropriado ao provável contexto futuro internacional. Nesse
sentido, a menos que a educação seja intercultural, não se poderá prover igualdade
e educação de qualidade para todos. O provimento de medidas educacionais, que,
por definição, é intercultural e leva a maiores níveis de igualdade, foi criticado
como enfraquecedor ou redutor da qualidade da educação. Essas críticas precisam
ser consideradas para garantir que políticas e práticas interculturais não percam
credibilidade, uma vez que qualidade e igualdade em educação caminham de mãos
dadas (UNESCO, 2003). No nível mais amplo, a educação requer uma parceria
entre as instituições educacionais estatutárias e formais no setor público, com o
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 439

apoio do setor privado e do voluntariado, para melhorar o provimento de educação


informal para toda a comunidade.
Além disso, há vários outros obstáculos no caminho. Um símbolo desses
obstáculos é a falta de ação após os dois grandes congressos das Nações Unidas –
sobre racismo, em Durban, e sobre meio ambiente, em Joanesburgo. Muitos
Estados-membros da ONU marginalizaram o aspecto central dessas questões e
desde esses Congressos poucas ações corretivas foram implementadas em nível
nacional, o que representou falta de vontade política nos níveis nacional e
internacional. Certos pensadores chegaram a perder as esperanças com relação à
condição humana. John Gray, por exemplo, em seu livro pessimista e deprimente,
“Straw dogs”, indicou que pouco pode ser feito para mudar a condição do mundo.
Defende vigorosamente a seguinte opinião:
Atualmente, há aproximadamente duzentos Estados soberanos no mundo. Em sua maioria, são
instáveis, oscilando entre a democracia frágil e a tirania frágil; muitos estão corroídos pela
corrupção ou controlados pelo crime organizado, enquanto Estados corroídos ou em colapso
alastram-se por algumas regiões do mundo – boa parte da África, o sul da Ásia, a Rússia, os
Bálcãs, o Cáucaso e partes da América do Sul. Ao mesmo tempo, os Estados mais poderosos do
mundo – Estados Unidos, China e Japão – não aceitarão limitação fundamental à sua soberania.
São ciosos de sua liberdade de ação, pela simples razão de terem sido inimigos no passado e
saberem que podem voltar a sê-lo no futuro (GRAY, 2002, p. 12).

As tentativas por parte da União Europeia de inserir as soberanias nacionais em


múltiplas camadas de regras, normas e regulamentos são uma tentativa de “eliminar
a violenta história da primeira metade do século XX, como resultado do exercício
desenfreado da soberania nacional” (The Guardian, 7 set. 2002). É desejável que,
como resultado dos processos de integração, as relações interculturais na Europa
do século XXI sejam melhores, especialmente se noções de uma “Europa fortaleza”,
em todas as áreas das políticas públicas e sociais, inclusive educação, forem evitadas.
A redução da desigualdade entre os países mais pobres e mais ricos, e dentro de
suas fronteiras, pode ajudar a reduzir a probabilidade de uma Europa construída
como uma fortaleza. Dentro da Europa, altos níveis de discriminação e
desigualdade entre as comunidades de imigrantes e as comunidades mais pobres
são potenciais geradores de conflito e violência interculturais. As mentalidades e as
sociedades fortalezas existem na maior parte do mundo, e, em comunidades com
diversidade social, atuam como inibidores para o provimento de igualdade na
educação. As medidas para tornar a educação mais inclusiva e para o provimento
de uma aprendizagem baseada em habilidades podem remover alguns dos muros
que bloqueiam as aspirações. O relatório do DFID1 sobre o Afeganistão indica
uma mudança nesse sentido, especialmente na educação para meninas e
treinamento para as mulheres (DFID, 2007).
1. NRTT: UK Department for International Development (Ministério de Desenvolvimento Internacional, Reino
Unido).
440 Gundara

Assim sendo, algumas das tendências mencionadas acima, que são mais
excludentes do que inclusivas, refletem-se na maneira como as relações e os
entendimentos interculturais em um nível vêm sendo reforçados em alguns
contextos e níveis sociais. Em outras sociedades, e em muitos outros níveis, os
conflitos interculturais de natureza racial, religiosa, linguística, de classe e nacionais
vêm-se exacerbando. Esse é o caso nos Estados do sudeste da Europa e na Somália,
onde os governos têm dificuldades em impedir que uma instrução literalista (que,
obviamente, não é muito educativa) seja oferecida por muitas instituições de base
étnica. Há, no entanto, diferenças marcantes entre um Sudeste da Europa
etnicamente diverso e a fragmentação baseada em diferenças de amplo espectro, e
a Somália, onde as diferenças “étnicas” são muito poucas. Por isso, pode-se dizer
que o narcisismo das pequenas diferenças na Somália tem sido sua constante ruína.
No nível global, muitas dessas questões resultam não somente da globalização
contemporânea, mas também dos legados históricos de nacionalismo e dos
impérios do século XIX. Se as iniciativas internacionais, especialmente das agências
das Nações Unidas, não forem bem-sucedidas na redução dessas diferenças, será
cada vez maior o número de Estados e seus governos que precisarão lidar com a
fragmentação das sociedades, devido a desigualdades, polarizações, conflitos e
competição não regulamentada resultantes. A presente seção conclui argumentando
que as diferenças entre as pessoas permanecem porque, ainda que crie possibilidades
de melhores relações interculturais, o crescimento do multiculturalismo dentro dos
sistemas políticos aumenta também as possibilidades de conflito intercultural, a
menos que as instituições do Estado tomem medidas positivas, inclusive
educacionais, para promover igualdade e minimizar as situações de conflito.

Questões e conceitos
Um dos problemas decorrentes da complexa gama de questões que causam
conflitos interculturais é que há muito pouco consenso sobre o uso de termos ou
de uma estrutura de análise. Em muitos países de língua inglesa, alguns acadêmicos
argumentam que uma conotação de raça tem sido atribuída ao termo
“multiculturalismo”. Há alguma verdade nessa afirmação: por exemplo, ativistas e
outros indivíduos utilizaram as questões de discriminação e de diversidade para
enfrentar somente a discriminação contra eles mesmos e suas comunidades em
particular. As maneiras como foram elaboradas políticas decorrentes de uma postura
tão estreitamente definida tenderam a sugerir que somente determinados grupos
enfrentaram a exclusão e a discriminação. Na Grã-Bretanha, por exemplo, ativistas
de comunidades asiáticas e caribenhas não cogitaram fazer causa comum com
judeus, ciganos e outras minorias para lidar com as desigualdades na educação. Por
exemplo, muitas políticas antirracistas na educação tendiam a enfatizar a
discriminação contra certas minorias de imigrantes, mas ignoravam os setores mais
pobres da comunidade dominante e outras nacionalidades e minorias. Sendo assim,
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 441

debates intermináveis vêm sendo travados sobre a natureza politicamente correta


dessas políticas, que aparentemente favoreceram e privilegiaram certos grupos
(GUNDARA, 2000b, p. 105-127; BATELAAN; GUNDARA, 1992).
A retórica essencialista de tais políticas tem levado a designar algumas
comunidades como “o outro”, e a favorecer a criação de oposições binárias
(maioria/minoria, cidadão/imigrante, branco/negro; vencedores/perdedores;
pertencentes/não pertencentes). Essas definições opostas e o posicionamento
hierárquico dos grupos dentro das sociedades têm diminuído em sociedades que
vêm desenvolvendo instituições inclusivas com base em políticas interculturais. É
preciso rever medidas destinadas a vivenciar o processo educacional como parte do
crescimento e da aprendizagem em uma comunidade, o que pode ser feito
conforme os dizeres de um adágio africano: “é preciso uma aldeia inteira para
educar uma criança”. No presente, contudo, a própria aldeia pode precisar
reeducar-se, demandando assim a necessidade de aprendizagem permanente. A
aprendizagem permanente, alcançando toda a comunidade, deve ter dimensões
tanto formais quanto informais e deve ampliar a capacidade construtiva das
comunidades para a sustentabilidade no nível local. O provimento dessas medidas
educacionais no seio de comunidades plurais e diversificadas é um direito humano
(GUNDARA, 1992; BATELAAN; GUNDARA, 1992). Em Londres, o papel da
educação comunitária abre um caminho positivo para tais iniciativas educacionais
(GUNDARA; JONES, 1990, p. 142-154). Na Grã-Bretanha, instituições de
educação de adultos2 promovem valores comuns, mas em muitas instituições as
influências políticas e de orientação religiosa de extrema direita constituem uma
ameaça ao desenvolvimento de valores compartilhados por populações jovens (The
Education Guardian, 27 nov. 2007).
Há também outra questão mais complexa sobre diferença e diversidade,
especialmente tendo em vista que, algumas vezes, sugere-se que deveríamos celebrar
a diversidade. Essa é uma definição bastante superficial de celebração, e não leva
em conta que a diferença tem sido entendida como um déficit e uma forma de
estigmatizar grupos. Por exemplo, celebrar a diversidade linguística sem desenvolver
políticas multilíngues pode agravar a falta de acesso ao currículo e aumentar as
desigualdades educacionais. Assim sendo, são importantes políticas, práticas e
estratégias para desenvolver a competência linguística dos estudantes (GUNDARA,
2005, p. 237-251).
A colaboração da UNESCO na Iniciativa B@bel para promover o
multilinguismo na internet, bem como para evitar a segregação linguística e garantir
a proteção de idiomas em risco de desaparecer, representa um avanço importante.

2. NRTT: No Reino Unido, a chamada educação de adultos (Further Education) refere-se à educação para a
faixa etária pós-compulsória, isto é, para os jovens acima de 16 anos. Este nível oferece geralmente cursos
técnicos-profissionalizantes, bem como cursos que preparam para os exames de Nível Avançado (A Level
exams) ou o bacharelado internacional (International Baccalauréat) para entrada na universidade.
442 Gundara

Iniciativas no campo do interculturalismo e do multiculturalismo devem espelhar


alguns desdobramentos daquilo que foi discutido no documento da UNESCO
“Educação em um mundo multilíngue” (UNESCO, 2003).
Muitos Estados, especialmente em países anglófonos monolíngues, não levaram
a sério questões de diversidade cultural ou linguística. Compactuaram a racialização
do multiculturalismo, porque este era visto como um modo de assegurar que a
diversidade social fosse tida meramente como resultado da migração, no período pós-
Segunda Guerra Mundial, particularmente para pessoas que emigraram de países que
haviam sido colonizados anteriormente. Na Grã-Bretanha, por exemplo, declarações
como aquelas do Ministério de Educação e Ciência, em 1965, no documento “School
curriculum”, que afirmam que “nossa sociedade tornou-se multicultural”, só
poderiam ser explicadas como uma tentativa de ignorar questões mais complexas.
Em documentos oficiais do governo, questões sobre a natureza multicultural de base
histórica da sociedade britânica não tinham continuidade (GUNDARA, 1993, p.
18-31). Se usarmos a taxonomia dos índices de diversidade linguística, religiosa,
territorial e de classes sociais (HANS, 1949), a sociedade britânica tem sido
historicamente multicultural. A devolução do poder à Escócia e ao País de Gales,
bastante pacífica, é uma prova da natureza multinacional do Estado britânico.
As políticas educacionais interculturais nos países europeus foram moldadas,
até pouco tempo atrás, por uma história centenária de perspectivas locais e
internacionais (GUNDARA, 2002). Nessa dimensão diacrônica, as culturas
dominantes da Grã-Bretanha e de outros Estados europeus são elas mesmas
produtos de séculos de interações, passadas e presentes, entre povos, suas culturas
e o Estado. Os impérios coloniais e as nacionalidades subordinadas dos Estados
europeus são parte importante dessas interações. Assim, padrões contemporâneos
de desigualdade social e cultural são subjacentes aos legados históricos do
nacionalismo, do imperialismo e do colonialismo. No entanto, essas são questões
demasiadamente complexas para que sejam entendidas pelos jovens nas escolas, e
é importante que sejam redigidas de modo a torná-las compreensíveis para eles
(GUNDARA; HEWITT, 1999).
Há 100 anos, após sua quase derrota na Guerra dos Bôeres, o governo inglês
criou o Comitê Interdepartamental sobre Deterioração Física para investigar as
causas desse fracasso. Quase inevitavelmente, sua mensagem era eugenista, dando
conta de que as camadas mais baixas estavam reproduzindo-se, e que afundariam
a assim chamada “sociedade bem-educada”. Na verdade, a gênese dessa divisão
social por classes copiada no mundo todo, foi a tentativa do Registro Geral de
combater essa posição, em 1911. Mas a educação era vista apenas como um meio
de mínima inclusão social. Em uma nota positiva, o provimento de refeições
escolares para todos era recomendado por esse Comitê.
Modelos deficitários e desvantajosos continuaram a orientar medidas
educacionais interculturais. Na Grã-Bretanha, isso significava que aqueles que
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 443

pertencessem às classes 4 e 5, para usar a classificação do Registro Geral, eram


considerados culturalmente desprovidos ou menos favorecidos em termos culturais.
Nesse debate, os conservadores continuavam a defender a ideia de uma
inferioridade baseada em fatores genéticos. Os liberais tendiam a ressaltar que a
existência de indivíduos em desvantagem era resultado de discriminações do
passado quanto a sexo, raça ou classe social. O debate sobre QI nos dois lados do
Atlântico continuou a gerar controvérsias; nos antigos Estados comunistas, por
outro lado, políticas que tratavam minorias como sendo grupos atrasados – e que,
portanto, precisavam de escolas especiais – deixaram em situação de desvantagem
crianças de comunidades ciganas e de outros grupos minoritários (TOMASEVSKI,
2003; WILSON, 2002).
Esse legado de desigualdade social foi o pano de fundo para os tumultos
ocorridos em 2000 nas cidades de Bradford, Oldham e Burnley, no norte da
Inglaterra, que envolveram populações pobres – tanto de brancos quanto de negros.
As desigualdades foram apontadas em gráficos nos relatórios de Cantle, Ritchie e
Ouseley (CANTLE, 2002; RITCHIE, 2001; OUSELEY, 2001).
O Iluminismo francês resultou na ideia de nação, baseada em uma visão social
de sociedade; assim como a Revolução Francesa, não se baseava em ideias de algum
mito biológico de ancestrais, e sim nas noções de um contrato social. Esse Estado-
nação incluía alsacianos e occitanos, que não falavam francês, bem como judeus.
Com a abolição da escravidão em São Domingos, os povos negros africanos
também foram considerados cidadãos (AMIN, 1997). Assim, a nação não era uma
afirmação do particular, mas uma expressão do universal. Ainda que assegurar os
direitos humanos fosse um dos objetivos centrais da Revolução Francesa, os direitos
eram aplicados seletivamente, e os direitos de plena cidadania eram negados às
mulheres. A assimilação de outros povos e o abandono de idiomas locais em favor
do idioma francês eram indicadores adicionais de que o Estado-nação teria
precedência. O papel de construir a moderna nação francesa em torno de uma
nova unidade cultural e linguística foi assumido pelo sistema escolar na República.
O legado da anulação e da desconsideração oficiais das diferenças originou
manifestações no século XXI. Em 2005 e 2006, algumas cidades francesas foram
sacudidas por tumultos de cidadãos franceses jovens, pobres e privados de direitos,
predominantemente minorias originárias do norte da África. As demonstrações
que aconteceram em quase metade das 88 universidades francesas indicaram as
barreiras subjacentes à igualdade, e os índices de desemprego que atingiam 21,7%
dos jovens com menos de 25 anos. Essas taxas são altas para os negros ou para
pessoas que cobrem a cabeça com véus (The Guardian, 10 mar. 2006). O desafio
para os educadores é como usar esse legado complexo do universal e do particular,
que fornece bases substantivas para a cidadania, dentro de um Estado-nação
desigual. Em sociedades economicamente desiguais, a base da diferença é uma
barreira para o desenvolvimento de noções de similaridade e reciprocidade, baseadas
444 Gundara

em níveis mais altos de igualdade. Os tumultos na França em 2006 e 2007


representam um divisor de águas e uma advertência, para assegurar que políticas
públicas e sociais integradoras, incluindo as de educação, são essenciais para reverter
desigualdades educacionais. O governo Chirac não levou esses eventos
suficientemente a sério, e a morte de dois jovens em Villiers-le-Bel teve efeitos ainda
mais sérios do que os tumultos de 2006, e espalharam-se até Toulouse. Uma semana
antes dos tumultos, o autor deste capítulo, em nome da Fundação Evens, concedeu
um prêmio a trabalhos sobre relações interculturais (FUNDAÇÃO EVENS, 2007).
A escola, por si só, não é suficiente para lidar com exclusões sociais em nível mais
amplo. Em outros países, como Grã-Bretanha, há também um legado de divisões
e divergências, e questões de racismo institucional ocupam um lugar prioritário na
agenda, com a implementação da Race Relations Amendment Act, de 20003, que
estabelece a não discriminação, tanto em instituições públicas como em instituições
privadas. A questão é se essas medidas são suficientes ou muito fracas. O que mais
a maior parte dos Estados deveria fazer em relação a políticas e práticas públicas e
sociais para reduzir a discriminação e remover os altos níveis de desigualdade?

O futuro dos estudos interculturais


A transição predominantemente pacífica e democrática para a devolução do
poder no País de Gales e na Escócia sugere que há um papel positivo para o
interculturalismo, especialmente porque escoceses e galeses reconhecem a forma
como são tratados pela nação inglesa poderosa. Ainda assim, políticas e práticas
públicas e sociais são necessárias para evitar a guetização das comunidades. Isso
ocorre porque ambas têm legislações que garantem os direitos humanos e seguem
preceitos constitucionais ao lidar com comunidades minoritárias e, em particular,
com seus direitos linguísticos. Entretanto, não se pode ser tão confiante a ponto
de achar que, em regimes delegados, como o da Escócia, não haja racismo. Um
relatório encomendado pelo Poder Executivo escocês indicou que 25% dos
escoceses são racistas, e cerca de 50% deles não consideram racista o uso de termos
como paki4 (CRE, 2002).

Há lições a serem aprendidas também com a resolução dos conflitos na Irlanda


do Norte, que agora têm o potencial de aproximar os regimes britânico e irlandês
depois dos recentes acordos políticos. O Centre for Cross Border Studies5 tem reunido
educadores tanto do Norte quanto do Sul para intensificar os níveis de cooperação
prática institucional e educacional. Não é tarefa fácil, uma vez que questões de

3. NT: Emenda das Relações de Raça (tradução livre).


4. NRTT: Paki é um termo da gíria, de conotação ofensiva, para se referir aos originários do Pasquitão (e/ou
seus descendentes) ou do Sul da Ásia.
5. NT: Centro de Estudos Transnacionais (tradução livre).
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 445

política e de identidade ainda desempenham um papel importante. Assim,


estudantes do Norte veem o Sul como um “país diferente” e querem concluir sua
educação no “continente”, enquanto outros veem o Norte como “não exatamente
a mesma coisa... é mais fácil ficar com pessoas que você já conhece” (CENTRE
FOR CROSS BORDER STUDIES, 2007).
É preciso desenvolver conceitos e análises inspirados nos aspectos históricos e
contemporâneos de conflito e cooperação em sociedades socialmente diversificadas,
que são relevantes para que se desenvolva um currículo inclusivo e uma educação
para a cidadania intercultural. Em sociedades complexas, nas quais as mudanças
tecnológicas podem estar levando a altos níveis de desemprego, é preciso dar maior
ênfase ao engajamento dos cidadãos com as instituições democráticas. A
necessidade de aprofundar a democracia implica uma avaliação crítica de questões
sociais e o desenvolvimento de participação comunitária, bem como mudanças
curriculares e pedagógicas destinadas a ampliar essa colaboração.
Além disso, não se trata apenas do que é ensinado às crianças e do que elas
aprendem, mas também de suas reais experiências na escola, que contribuem para
a compreensão de seus direitos e responsabilidades como futuros cidadãos. Assim
sendo, o ethos de uma escola democrática é importante, e precisa ser vivenciado
por meio de cidadania ativa e de engajamento no contexto da comunidade mais
ampla. Para os grupos mais velhos, o papel do trabalho da juventude, do ensino
pós-compulsório e de outras aprendizagens formais e não formais continuadas são
importantes para assegurar que experiências educacionais contínuas ampliem as
habilidades, o conhecimento e as qualificações dos cidadãos, e sua capacidade para
melhorar suas perspectivas de vida no contexto de comunidades diversificadas
(BOURNE; GUNDARA, 1999).

Obstáculos à igualdade
Em muitas sociedades, outro dilema precisa ser enfrentado, uma vez que, ao
mesmo tempo que atribuíram papéis claros a diferentes grupos da sociedade, as
velhas solidariedades baseadas em classe social, como antecedentes de uma
sociedade dividida em classes, criaram as divisões entre as classes que têm sido
objeto de confrontação ao longo do últimos 150 anos. As divergências baseadas
em raça, religião e gênero levaram à criação de siege mentalities6 e de siege
communities7, que, em todas as partes do mundo, impedem a segurança e a proteção
de muitas comunidades que se tornaram socialmente divididas. Em vez de coesão
social, nesses tempos fluidos, como Bauman os descreve, as comunidades estão se
dividindo (BAUMAN, 2007). Hoje em dia, com a ausência de uma base pré-
ordenada de classes para a solidariedade, as gerações mais jovens veem-se diante de

6. NT: Cerco de mentalidades.


7. NT: Cerco de comunidades.
446 Gundara

padrões muito mais claros de polarização, pela divisão entre ganhadores e


perdedores, sem referencial de classe, o que coloca um novo desafio para a educação
intercultural, em função da exclusividade das identidades. Obviamente, se os
ganhadores se recusam a reconhecer qualquer dívida para com a sociedade, o
inverso também é verdadeiro, em particular na medida em que grupos de diferentes
origens não compartilham solidariedades ou um conjunto de semelhanças. A
educação intercultural, portanto, tem um papel complexo na abordagem do sentido
de exclusão e de perdas em meio a todos os jovens, e na criação de um sentido de
valores compartilhados e de cidadania.
Em países como a Índia e os Estados Unidos, políticas de discriminação positiva
e ação afirmativa foram implementadas para prover igualdade a grupos até então
menos favorecidos. Por um período de tempo mais longo, esses grupos agora são
vistos como privilegiados, e são assim considerados pelos grupos dominantes.
Portanto, a menos que sejam cuidadosamente planejadas, atinjam grupos realmente
menos favorecidos e tenham um limite de vigência estabelecido, essas políticas se
tornarão contraproducentes pela exacerbação das diferenças e pela redução das
características de comunalidade entre os diferentes grupos. Assim, a questão
apresenta um desafio para que as políticas sejam repensadas como ação afirmativa
ou discriminação positiva, de maneira que não exacerbam diferenças tampouco
tenham implicações divisionistas, mas sejam desenvolvidas de modo a incluir os
menos favorecidos de todas as comunidades, inclusive os pobres que pertencem à
maioria ou a comunidades dominantes.
Se alguns grupos são excluídos ou marginalizados dentro do sistema de educação
e das escolas devido à falta de coesão social, o Estado deve ficar neutro ou deve
intervir? Em outras palavras, o Estado deve ser justo ou imparcial? Rawls, usando
o princípio da diferença, argumenta que os mais ricos não devem ter vantagens
especiais em relação aos menos favorecidos (RAWLS, 1997). Portanto, para
outorgar equidade, o Estado é justo, mas não imparcial. Em um Estado
democrático, os cidadãos devem ter acesso à educação e ao conhecimento, para
que suas possibilidades de vida sejam iguais. Se permanecer imparcial, o Estado
não poderá criar condições iguais para todos em termos educacionais: só poderá
fazê-lo por meio de intervenção. O Estado, no entanto, não é o único a interferir
nessa esfera de mudança social. O setor privado tem responsabilidades sociais, e as
próprias agências voluntárias têm um papel de grande importância a desempenhar
no desenvolvimento de uma cidadania cívica ativa, nos níveis comunitário e das
bases. Em particular, é o que ocorre quando as comunidades precisam aproveitar
todos os recursos locais e desenvolver microeconomias para intensificar as
economias locais (PIKE, 2003).
Um dos desafios para os sistemas educacionais e para as comunidades
diversificadas é construir sistemas políticos inclusivos, que possam acomodar noções
de diferença, o que pode ser alcançado com as seguintes medidas:
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 447

• criação de condições para a equidade e o pertencimento de grupos diversos, sob


uma perspectiva educacional;
• desenvolvimento de mentalidades integradoras baseadas na diferença (não como
condição de desvantagem), na redução dos níveis de desigualdade e na oferta
de opções múltiplas;
• construção pelos sistemas educacionais de um conjunto de reciprocidades entre
os grupos multidivididos na sociedade, de modo que estes possam deter a
propriedade dessas afinidades;
• implementação de políticas que diminuam a distância entre os grupos em
diferentes níveis e cultivem noções de direitos humanos e cidadania para os
grupos menos favorecidos e excluídos;
• ação afirmativa inclusiva, discriminação positiva e políticas com prazos
estabelecidos;
• desenvolvimento de feminismo universalmente inclusivo, especialmente para
assegurar a equidade na vida pública e nas instituições públicas;
• os membros de comunidades diversificadas devem tornar-se cidadãos ativos e
desenvolver a mentalidade e a atitude do posso fazer.

Conhecimento cêntrico
Em um nível ainda mais amplo, essas questões suscitam problemas de
conhecimento cêntrico, que, de acordo com o COD 1990, é definido como “tendo
um centro (especificado)”. Há, no entanto, múltiplas fontes de conhecimento e
muitas narrativas; não há uma narrativa única sobre conhecimento. Portanto,
sistemas de conhecimento cêntrico funcionam com base em critérios simplificados
e exclusivos do currículo escolar oficial. O critério para a seleção do currículo a
partir de múltiplas fontes em sistemas de governo diversificados apresenta um
complexo desafio aos responsáveis pelo planejamento do currículo, o que ocorre
especialmente porque um currículo centrado no conhecimento de grupos
dominantes não atende às necessidades de sistemas políticos socialmente
diversificados. É necessário um currículo não cêntrico, ou um currículo inclusivo,
baseado em diferentes fontes, nos contextos nacional, regional e local (GUNDARA,
2000, p. 161-205).
Um dos problemas na implantação da educação intercultural é que, na Europa,
os idiomas, as histórias e as culturas de grupos subordinados não são vistos como
tendo o mesmo valor daqueles das nacionalidades europeias poderosas. O direito
a um currículo não cêntrico ou inclusivo é talvez um dos maiores desafios para a
concretização do desenvolvimento de uma educação intercultural. Esse exercício
implicaria um grande desafio intelectual, como o que ocorreu quando a UNESCO
encarregou-se de escrever a história da África em uma série de oito volumes. Em
grande medida, a série não foi integrada ao corpo principal do conhecimento
448 Gundara

histórico universal. Há também outros projetos importantes da UNESCO sobre


Tráfico de Escravos, a Rota da Seda, a Cultura da Paz e a Educação para o
Entendimento Internacional, que têm implicações no desenvolvimento da
educação intercultural, dentro da corrente predominante dos sistemas nacionais
de educação.
Nas Diretrizes de Educação Intercultural para o próximo biênio, a UNESCO propõe:
• contribuir para a melhoria dos currículos e dos livros didáticos para o ensino
de história;
• promover o diálogo sobre o papel do idioma e da cultura como fatores
determinantes para o desenvolvimento, por meio da educação, do entendimento
entre as pessoas, dentro dos Estados-membros e entre eles;
• apoiar as atividades educacionais da Década Internacional dos Povos Indígenas
do Mundo;
• disseminar novas abordagens para o ensino de línguas;
• apoiar a produção de diretrizes sobre educação em língua materna e multilíngue;
• estimular a preparação de materiais culturalmente apropriados em idiomas locais.
Essa agenda da UNESCO deverá possibilitar que países da África, da Ásia e das
Américas tratem de questões de diversidade social por meio de políticas
interculturais de educação (UNESCO, 2006). Para manter o bem-estar e a
segurança dentro de seus sistemas políticos diversificados, os Estados nesses
continentes precisam desenvolver currículos que evitem seus próprios centralismos.
Planejar as bases de conhecimento necessárias em um contexto de nação e de
civilização constitui um desafio difícil, mas ao mesmo tempo essencial para os
responsáveis pelo planejamento curricular. O conhecimento compartilhado e as
pessoas a ele habituadas podem ajudar no processo de desenvolvimento de sistemas
de valor democrático compartilhados e comuns no domínio público e nas
instituições públicas.
Um currículo não cêntrico possibilitaria que professores, alunos, e outros
aprendizes desenvolvessem os sistemas de valor inclusivos e compartilhados que
são necessários para o desenvolvimento das sociedades democráticas. Em Taiwan,
por exemplo, as culturas democráticas e o sistema educacional são capazes de resistir
às pressões de não ensinar as noções superficiais de valores asiáticos. Como afirma
Amartya Sen:
Uma tentativa de sufocar a liberdade de participação com base em valores tradicionais (tais como
fundamentalismo religioso, costumes políticos ou os chamados valores asiáticos) simplesmente
desconsidera a questão da legitimidade e a necessidade das pessoas envolvidas de participar das
decisões sobre o que querem e sobre as razões para aceitar (SEN, 1999).
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 449

Sociedades de aprendizagem intercultural


Um aspecto do currículo que ilustra a questão do centralismo do conhecimento
é o ensino do currículo de história. O ensino da história sob uma perspectiva
inclusiva deve ser desenvolvido internacionalmente em um nível muito mais amplo.
Na Europa, uma tentativa foi feita por meio da Iniciativa de Tiblisi, do Conselho
da Europa, na Armênia, na Geórgia e no Azerbaijão. De modo semelhante,
considerando o acordo político na Irlanda do Norte, haveria maneiras de ensinar
e aprender as memórias seletivas do levante de 1916, em Dublin, e da Batalha de
Somme, tanto por católicos como por protestantes, de modo a conferir substância
educacional e significados compartilhados aos acordos políticos recentes? Tais
desdobramentos curriculares não só devem fazer parte da educação regular, mas
devem também reforçar a educação básica e a aquisição de histórias. Em
democracias multiculturais, um sistema integrado dessa forma melhoraria as
competências interculturais de cidadãos ativos europeus, africanos, americanos e
asiáticos. Em especial, é preciso avaliar disciplinas como humanidades e ciências
sociais, em vista de sua relevância para as atuais necessidades das sociedades.
Isso é particularmente verdadeiro quando se sabe que entre 130 e 145 milhões
de pessoas, pelo menos, vivem fora de seu país de origem. Esses números seriam
mais altos se incluíssem os migrantes sem documentos. Mais de 21 milhões de
refugiados vivem em outros países em desenvolvimento. Muitos subsistem em zonas
de penumbra e em áreas limítrofes das fronteiras entre Estados, e permanecem
ignorados. Muitos jovens crescem nessas áreas violentas e desterritorializadas, sem
esperança de um futuro que faça sentido, dentro de um ou outro Estado. As
fronteiras entre Afeganistão e Paquistão e entre Mianmar e Tailândia representam
zonas de penumbra, e são exemplos da permeabilidade das fronteiras e da falta de
um regime único de leis e instituições nacionais. Sassan explora a complexidade
das questões de fronteira, com a emergência do capital global, do mercado
eletrônico e de suas implicações para as fronteiras nacionais (SASSAN, 2006).
A criação de pertencimento futuro a comunidades estáveis requer o
desenvolvimento de um provimento educacional inclusivo e de um currículo
compartilhado e significativo. Tais iniciativas educacionais podem ajudar a
proporcionar a esses jovens as bases para compreender o significado dos processos
democráticos, da modernização e do desenvolvimento. Essas questões devem,
portanto, considerar a relevância de pedagogias participativas. Em comunidades
marginalizadas, o ensino e a aprendizagem devem ser progressivos, e não coagidos
por um currículo africano, asiático e americano cêntrico, reativo e tradicional, que
tende a inibir questionamentos. Isso, por sua vez, permite que prevaleça o
eurocentrismo no conhecimento, perpetuando sua dominação no âmbito global.
Na realidade, tanto o dominador como o dominado, tanto a maioria como a
minoria necessitam definir novas dimensões de conhecimento para tornar o futuro
mais compreensível (GUNDARA, s. d.).
450 Gundara

Instalar a voz dos menos favorecidos no currículo requer muita delicadeza,


diplomacia, persistência e sofisticação, particularmente para que as mudanças
almejadas não sejam relegadas à margem da vida acadêmica. Respostas reativas,
retóricas e rebeldes em termos curriculares são não apenas inadequadas, mas
também contraproducentes. Embora haja necessidade de ação nas sociedades
europeias, americanas, africanas e asiáticas, nas zonas mais pobres desses continentes
as dificuldades são maiores e podem exigir apoio das agências internacionais. Assim,
as agências de educação mais poderosas financeiramente e experientes, como a
Comissão Europeia e a UNESCO, e seus centros regionais podem também ser de
grande valia para oferecer apoio não diretivo para a mudança e o desenvolvimento
da educação.

Secularismo e Armagedon religioso


A história conta que o imperador Ashoka (272-232 a.C.) foi tomado pelo
remorso, por causa do massacre, da devastação e da mortandade que suas conquistas
provocaram na Índia. Isso o levou a transformar a coluna da vitória em uma coluna
de paz e não violência. Esse é um exemplo histórico da mensagem semelhante que
carregam muitos monumentos contemporâneos. Esses monumentos são usados
pelos professores e pelas escolas para transmitir mensagens de paz, e não das guerras
amplamente representadas pela maior parte das colunas e de outros monumentos
em praças de cidades do mundo todo.
Saindo da sede da UNESCO em Paris, em direção à Praça Joffre, no Parque da
Torre Eiffel, vê-se um monumento para a paz. Na Praça Tavistock, em Londres,
há um monumento para Mahatma Gandhi e para as vítimas das bombas atômicas
de Hiroshima e Nagasaki. Depois da explosão de uma bomba em um ônibus nessa
mesma praça, em 7 de julho, esse é também um monumento para aqueles que
morreram lá mais recentemente, e tem um significado ainda mais pungente para
aqueles que moram e trabalham na área de Bloomsbury e em toda a cidade de
Londres. Esses são dois dos muitos lugares e símbolos em Paris e Londres, entre
aqueles que existem em outras cidades do mundo, que os educadores podem usar
para falar sobre Estados seculares democráticos, não violentos, pacíficos e inclusivos.
Há outros monumentos que espelham a tristeza causada por traumas nacionais,
como o Yad Vashim, em Jerusalém, o Muro do Vietnã, em Washington, e o
Memorial de Oklahoma City. Esses símbolos trazem exemplos da maneira seletiva
como são retratadas a dor e a condição de vítima, e devem ser utilizados para reler
criticamente as estórias do passado, o que ajuda a desarmar a História. Muitos
monumentos, no entanto, somente continuam a marcar o triunfo de um grupo,
como é o caso do Vale dos Caídos, que continua a celebrar a vitória de Franco, e
não a memória de todos aqueles que morreram na Guerra Civil Espanhola. A maior
parte do material educacional também continua a representar as vozes dos
vitoriosos, dos poderosos e dos dominadores. Há, contudo, projetos em curso que
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 451

lidam com a reavaliação da maneira segundo a qual os livros didáticos têm sido
escritos e como os nomes nos mapas têm sido indicados de forma excludente, e
não representativa de passados complexos. O Instituto Eckhart, na Alemanha, e a
UNESCO dedicaram tempo e expertise a essas iniciativas.
As tensões entre as ideologias secular e religiosa talvez sejam o alerta mais
alarmante para Estados multiculturais e multirreligiosos, e exigem dos educadores
e responsáveis pelo planejamento curricular um tratamento não nacionalista e
criativo. Embora a religião e as crenças pessoais devam pertencer à esfera privada,
há questões nos sistemas religiosos e no conhecimento que podem incidir sobre as
mentes nacionais e globais, e sobre o desenvolvimento futuro de cidadãos com
mentalidade crítica e democrática. É uma questão de grande importância a clara
definição do papel da religião em Estados democráticos, constitucionais e
multirreligiosos, para evitar que sejamos levados ao abismo social pelas noções
fundamentalistas e dogmáticas de verdades alimentadas pela fé.
A importância de Gandhi e de seu pupilo Nehru é sua compreensão
intercultural genuína das civilizações ocidental e indiana. Personificaram uma
criatividade e uma determinação que hoje falta a muitos líderes políticos e
educacionais. O ex-presidente da Tanzânia, Mwalimu Nyerere (professor), era
normalmente chamado simplesmente de “professor”, e por meio de suas políticas,
unificou a sociedade multicultural tanzaniana. Nelson Mandela talvez tenha
seguido seus passos quando formou um grupo de Anciãos que inclui antigos líderes
e Prêmios Nobel, e podem usar sua influência para resolver conflitos interculturais
e outras crises, no cassino do mercado global não regulamentado. Como essas
iniciativas podem ser usadas por educadores para encantar os desencantados com
compromissos ativos, inclusivos e democráticos?
No nível subjacente, é preciso perguntar sobre as implicações educacionais da
Renascença Africana do Presidente Mbekis, e sobre o papel das instituições
acadêmicas. A menos que seja capaz de construir uma África do Sul mais igualitária
e inclusiva, a Renascença permanecerá uma quimera (The Observer, 24 nov. 2007).
É preciso perguntar ainda até que ponto o crescimento do fundamentalismo
também é um resultado da incapacidade dos governos para modernizar as
sociedades e outorgar igualdade em políticas públicas e sociais de modo geral. Se
os governos estão fracassando nesse papel, não há muito que os sistemas de
educação possam fazer para reduzir a intensidade do conflito religioso.
Na Nigéria, Wole Soyinka ressente-se da maneira pela qual as religiões proselitistas
estão erodindo as tradições e as fés locais, como a dos Orixás, e também desintegrando
a educação nas escolas e universidades (The Guardian, 6 ago. 2002). No contexto da
África Ocidental, a implementação de políticas e práticas interculturais pode ser um
modo de evitar as contendas religiosas nas instituições educacionais.
No nível acadêmico, estudiosos como Inayatullah, no Paquistão, além de outros,
lutam por uma ciência social alternativa, não baseada no Estado-nação como
452 Gundara

modelo de análise, mas em noções de soberania sobreposta (INAYATULLAH,


1998). Inevitavelmente, isso coloca questões complexas, não somente para a política
educacional, mas também para a reforma curricular, no que diz respeito ao
aprofundamento e ao aumento da qualidade da educação.

O papel da mídia e as relações interculturais


A mídia tem um papel importante a desempenhar na melhoria das relações
interculturais, por seu poder para levar a conclusões errôneas ou para educar.
Entretanto, no período atual de globalização, os meios de comunicação têm sido
constrangidos por forças do mercado no que diz respeito à sua programação. Para
muitas pessoas em todo o mundo, os meios de comunicação podem ser uma fonte
de informação mais influente do que a sala de aula. Quando não é voltado para a
redecoração e a arrumação do jardim, o foco dos meios de comunicação tem
mudado para os programas sobre o exótico, as viagens, a vida selvagem, em vez de
programas sobre desenvolvimento, pobreza, questões interculturais, política,
história, economia ou meio ambiente (NASON; REDDING, 2002). Essas
questões recebem tratamento apenas superficial, como parte das notícias e de
programas de assuntos atuais. Por outro lado, tal programação não deve ser
paternalista como foi no passado, e as questões levantadas devem ser dirigidas aos
cidadãos comuns.
O público de televisão é predominantemente comprometido com o
entretenimento, e não assiste a documentários informativos ou vazios de ideias. Os
espectadores preferem uma estória, uma boa narrativa e personagens fortes. Pelo
menos duas sequências de ação podem ser necessárias. Primeiramente, a mídia e as
indústrias de comunicação precisam adotar uma abordagem estratégica e integrada
que se baseie em um reforço do conteúdo e do discurso. De que forma os vários
tipos de novas mídias podem ser usados no ensino e na aprendizagem? Nas questões
de entendimentos interculturais, os educadores de todos os níveis têm um papel
de importância crucial no uso dos meios de comunicação para educar espectadores,
não somente para que estes se tornem visualmente alfabetizados, mas também para
que adquiram uma compreensão crítica para distinguir entre os discursos
promocionais, retóricos e os produtivos ou progressistas.

O papel dos cursos de formação de


professores de educação intercultural
As instituições de formação de professores têm um papel importante e contínuo a
desempenhar na melhoria da educação intercultural, uma vez que, como multiplicadores,
os professores ali capacitados afetam a vida de muitas gerações de alunos.
Em muitos países do mundo, os educadores de professores precisam revisitar o
Relatório da Fundação Carnegie de 1986, que recomenda que se faça do magistério
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 453

uma profissão de alto status, e no mesmo nível de outras profissões. A maioria das
instituições de ensino superior educa e treina médicos, arquitetos e advogados, mas
somente treina os professores. Essa é uma questão importante, porque há uma
diferença entre treinamento e educação. As instituições de ensino superior não
podem ignorar a mesma educação rigorosa e de base ampla para professores. Como
apontou o professor Colin Power, ex-diretor de Educação da UNESCO, em uma
palestra no Instituto de Educação da Universidade de Londres, se a Harvard
Business School educa predadores individualistas, as instituições de formação de
professores não devem simplesmente capacitá-los como assistentes sociais para
recolher os pedaços que esses barracudas deixam para trás.
A pergunta-chave é se as questões dizem respeito a treinamento de professores
ou a educação de professores. Treinamento implica uma ordem menor de
conhecimento e habilidades.
Para ter os professores mais instruídos, educados e profissionalmente mais
qualificados, sua educação deve ser assumida pelas universidades ou instituições com
padrões compatíveis. Portanto, sendo profissionais autônomos, os professores devem
ingressar em uma instituição de formação de professores depois de um curso de
graduação, e seguir uma formação profissional semelhante à de outras profissões
(CARNEGIE, 1986). Obviamente, as circunstâncias variam de país para país.
A existência de professores com alto nível profissional e com formação rigorosa,
com qualificação em nível de pós-graduação, é essencial para elevar as competências
da profissão docente. Como parte dessa formação, é necessário que haja dimensões
interculturais nos cursos que integram o processo de formação de professores, o
que já suscita algumas questões complexas. Alunos de comunidades minoritárias
que se saíram bem na universidade tendem a escolher outras profissões, não o
magistério. Ainda assim, para tornar eficaz a educação intercultural de professores,
tanto as instituições de formação de professores quanto as escolas precisam ter um
corpo discente e docente diversificados. Não só o magistério deve passar a ser uma
profissão atraente, mas também a educação das classes menos favorecidas, das
minorias e das nacionalidades minoritárias deve ser aprimorada, acompanhada de
medidas destinadas a assegurar que algumas dessas pessoas abracem a profissão
docente. Uma das vantagens de uma “força” multicultural de professores educados
de maneira intercultural é que ela não só torna possível a negociação de valores
sociais complexos nas escolas e nas instituições de ensino superior, como também
proporciona habilidades e conhecimento multilíngues para que essa força de
professores seja competente e profissional.
Em termos interculturais, as habilidades do professor devem incluir expertise
em relações interpessoais, condução de conversações, moderação de discussões
difíceis, resolvendo conflitos e trabalho com os pais. Os professores enfrentam a
tarefa mais complexa de lidar com o racismo dos alunos e a discriminação de
culturas autônomas dos colegas. A necessidade de habilidades em comunicação só
454 Gundara

pode ser suprida se os professores tiverem a experiência, as habilidades e a


compreensão necessárias para transcender a divisão entre professor-aluno e escola-
comunidade.
Os professores podem adquirir conhecimento, habilidades e entendimento para
lidar com o racismo durante sua formação inicial em magistério, que deve ser
continuamente aprimorada, como parte de seu desenvolvimento profissional. A
complexidade dos processos de racismo e exclusão baseados em classe social e a
mistura letal destes com as divergências religiosas exigem alto nível de competência
e profissionalismo. Exigem também políticas institucionais e apoio dentro das
escolas. As instituições de formação de professores têm um papel fundamental na
análise criteriosa dessas questões complexas e na educação e treinamento de
professores para lidar com elas de maneira competente.

Comunidades de desenvolvimento e esperança


Uma das principais razões para o desenvolvimento de uma estrutura
democrática e inclusiva é o fato de que 10 mil sociedades distintas vivem em 200
Estados, e que a elas podem estar sendo negadas igualdade e proteção. A Comissão
Internacional da Educação para o Século XXI, instituída pela UNESCO, colocou,
em seu relatório final, a questão de aprender a viver junto não somente como um
dos quatro pilares da educação para o futuro, mas também como o maior desafio
que a educação enfrenta.
A aprendizagem formal e informal permanente tem um papel importante no
desenvolvimento dos entendimentos interculturais entre os cidadãos em sociedades
culturalmente diversificadas. É preciso envolver o setor não governamental, para
que o conjunto dos cidadãos nessas sociedades não permaneça passivo. É necessário
também que os cidadãos sejam atuantes, para que possam melhorar sua própria
vida e a vida de suas comunidades.
Contudo, a menos que haja esforços articulados para desenvolver compromissos
democráticos e construir comunidades de desenvolvimento e esperança, os conflitos
interculturais tendem a aumentar. A formação de cidadãos ativos em comunidades
mais pobres só pode acontecer se houver compromissos interculturais mais
profundos, tanto dentro quanto fora das instituições educacionais.
Culturas políticas democráticas e compartilhadas vêm acompanhadas por níveis
mais altos de atividades econômicas legítimas para todas as comunidades. As
disparidades de renda estão associadas ao aumento da desigualdade social e
educacional. Entre os países da OCDE, a Grã-Bretanha tem as maiores diferenças
de renda e a maior proporção (19,4%) de jovens entre 16 e 19 anos de idade fora
da escola e desempregados. Muitos desses jovens não apenas são analfabetos
funcionais e manifestam comportamento antissocial, como também são uma
ameaça para a segurança e para a vida de outras pessoas. A frustração das aspirações
desses jovens forma a base de graves conflitos interculturais. É necessário um esforço
O futuro dos estudos interculturais nas sociedades multiculturais 455

enorme no sentido de criar as pré-condições para que as comunidades sejam mais


seguras – na Grã-Bretanha e na maioria dos países.
Em muitas das crises que mencionamos neste capítulo, fica evidente o papel
essencial da educação como parte do provimento de políticas públicas destinadas
a lidar de maneira proativa com as desigualdades de oportunidades e os resultados
na educação em sociedades multiculturais. Iniciativas educacionais baseadas em
políticas e práticas desenvolvidas atualmente também podem ajudar a construir
uma nova sociedade que não só reconheça as diferenças, mas também contribua
para o desenvolvimento de pontos em comum e valores compartilhados de
cidadania, capazes de dar legitimidade futura em comunidades confederadas.

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65

FEMINISMO, LIBERTAÇÃO E EDUCAÇÃO

Nelly P. Stromquist

Inquestionavelmente, o feminismo será visto pelos historiadores como um dos


maiores movimentos sociais do século XX. A ideia de que os direitos da mulher
devem ser incluídos entre os direitos de todos os povos já existia como um conjunto
coerente desde o final da década de 1860, e culminou com o direito das mulheres
ao voto no início do século XX, sendo a Nova Zelândia o primeiro país a conceder-
lhes esse direito. No entanto, foi somente a partir da década de 1960 que o
movimento feminista espalhou-se por todos os cantos do globo. Esse esforço, hoje
conhecido como a segunda onda do feminismo, endossou o termo “liberação” e
buscou libertar as mulheres da opressão econômica, da subordinação cultural e da
marginalização política. Essa segunda onda documentou a situação de homens e
mulheres em todos os níveis sociais, desde a casa até o local de trabalho e o governo,
e concluiu que essa situação deveria mudar, para que tanto mulheres como homens
pudessem beneficiar-se desses arranjos sociais. Libertação, em outras palavras,
implicava um movimento político para alterar a ordem social, mas de maneira que
não significava a substituição de homens por mulheres nas hierarquias existentes,
e sim a criação de outros tipos de relações sociais, menos caracterizados por
hierarquias rígidas e arbitrárias. O objetivo final nem sempre estava explícito, mas
frequentemente envolvia a redução das diferenças sociais entre homens e mulheres.
Os grupos feministas de hoje são de vários tipos: aqueles que lutam contra o
patriarcado, aqueles que se dedicam à produção acadêmica e cultural, os grupos
pró-direitos humanos e organizações comunitárias que trabalham para a satisfação
de necessidades básicas de mulheres pobres. Foram unificados no passado por
abordagens universalistas voltadas para o desenvolvimento humano e para a justiça
social. Muitos estudiosos reconhecem a família e o corpo como local e objeto do
exercício da política de poder (MOLYNEUX, 1985; CONNELL, 1987;
MESSNER, 1992). A maioria reconhece o problema da violência doméstica e
sexual como uma característica profundamente arraigada da subordinação das
mulheres, e aumenta continuamente o conjunto de pessoas que consideram o
reconhecimento da orientação sexual – todas essas questões ligadas à mudança
social e ao desenvolvimento nacional (SUBRAHMANIAN, 2005).
No início, libertação significava o distanciamento de definições que
caracterizavam as mulheres como frágeis, dóceis, passivas, com instintos e

457
458 Stromquist

responsabilidades maternais, encarregadas das tarefas de cuidar e responsáveis pelo


funcionamento geral do lar. Significava também a superação da situação de
dependência em relação aos homens devido aos baixos salários, ao trabalho
temporário e aos empregos sem futuro. Uma meta não prevista inicialmente foi a
liberdade de orientação sexual; outra, que dividiu o movimento em muitos países,
foi o direito de controle sobre o próprio corpo, que inclui o direito ao aborto. Hoje
a libertação não é mais um mantra, pois surgiram diferentes tipos de mulheres que
veem a realidade de formas diversas e perseguem diferentes objetivos. Lazar resume
bem a situação quando afirma: “a opressão de gênero não é nem material nem
aplicada discursivamente da mesma maneira para mulheres em todos os lugares”
(LAZAR, 2005, p. 10).
À medida que a ação passou a acompanhar novas ideias, manifestaram-se
quatro arenas distintas: os esforços realizados pelas próprias mulheres em diversos
terrenos da vida social; as linhas de ação desenvolvidas pelas agências
internacionais de desenvolvimento – de importância crucial para os países em
desenvolvimento; as políticas públicas decretadas pelos governos em resposta à
pressão feminista e global; e os trabalhos teóricos e analíticos produzidos por
pesquisadoras acadêmicas feministas.
As tendências de globalização, com o encolhimento dos serviços sociais
fornecidos pelo Estado e a ênfase nas forças de mercado como sendo os melhores
processos para o funcionamento da sociedade (KRIEGER, 2006; ARRIGHI;
SILVER, 1999; FALK, 1999) têm contribuído para o enfraquecimento do
feminismo. A intensa competição entre empresas, bem como entre indivíduos,
pouco faz para promover a solidariedade social. Além disso, as duras condições
econômicas em meio às populações mais pobres, particularmente nos países em
desenvolvimento, demandam uma quantidade de tempo e de esforço individual
para a sobrevivência que não pode ser sacrificada em prol de um trabalho
comunitário ou altruísta. Consequentemente, as mulheres ativistas têm cada vez
mais dificuldade para encontrar ambientes onde atuar. No trabalho acadêmico,
outro grupo de mulheres, simpático à causa feminista, aprofundou-se mais em
construções teóricas em que o poder e as condições materiais ficam em segundo
plano em relação às questões culturais, como variáveis explicativas. Aumenta cada
vez mais a distância entre o mundo acadêmico feminista e as mulheres ativistas que
trabalham em ONGs, que incluem muito mais mulheres de países em
desenvolvimento e interessam-se principalmente por questões como pobreza,
comércio, dívida e direitos humanos. Essas mulheres trabalham em organizações
independentes e em organizações comunitárias especializadas em questões de
gênero, ou em questões mais amplas ligadas ao desenvolvimento, tais como pobreza
e direitos humanos. Mulheres que atuam em algumas disciplinas acadêmicas
abordam o gênero como um tema de interesse, mas não como uma dimensão da
transformação política (MOHANTY, 2006). Em consequência, seu trabalho não
Feminismo, libertação e educação 459

está ligado a um movimento que vise à intervenção na arena política por meio da
pressão por políticas específicas, ou que conduza as mulheres a cargos políticos para
que representem os interesses das próprias mulheres.
Este capítulo analisa a forma como o pensamento teórico sobre gênero e
educação avançou nas últimas décadas. Para isso, começa com uma discussão sobre
a educação de mulheres e homens, e em seguida apresenta as diversas vertentes do
pensamento feminista, terminando com uma discussão do que poderia constituir
intervenções eficazes, tendo em conta as lições aprendidas ao longo do tempo.

Condições de homens e mulheres na educação


No início da década de 1970, ao olhar para a situação da educação da mulher,
a preocupação geral era o seu acesso à educação formal, especialmente aos níveis
primário e secundário, dois caminhos de entrada para o conhecimento especializado.
Havia um atraso sensível no acesso das meninas à escola em relação ao dos meninos,
especialmente nos países em desenvolvimento. Portanto, a paridade no acesso à
escolarização passou a ser um objetivo fundamental da educação.
Ao longo do tempo, de fato, a proporção de meninas que frequentam escolas
primárias e secundárias melhorou, embora não esteja claro que isso seja resultado
de estratégias específicas dos governos ou, o que é provável, um efeito colateral da
expansão do acesso à educação formal, com a criação de mais escolas, ou a
reorganização dos turnos diários para que as escolas pudessem comportar um
número maior de alunos. O número de matrículas de meninas de fato avançou em
direção à paridade com o número de matrículas de meninos, embora em termos
mundiais as meninas continuem a representar 46,5% das matrículas no ensino
primário. Essas desigualdades são maiores na Ásia Meridional e Ocidental, nos
Estados Árabes e na África Subsaariana, onde as meninas constituem 44,1%, 46,0%
e 46,5%, respectivamente (UNESCO, 2003). Em 2000, cerca de 115 milhões de
crianças em idade escolar não estavam matriculadas no primário, e as meninas
representavam 57% das crianças fora da escola primária nos países em
desenvolvimento, sobretudo no Paquistão, no Nepal e na Índia. As matrículas do
ensino secundário vêm aumentando, embora na maioria dos países as mulheres
não alcancem paridade de gênero. No ensino superior, a situação se inverte: o
número de matrículas de homens é maior em 24 países, em comparação com 72
países em que o número de matrículas de mulheres supera o de homens – um
resultado que sugere que, ao terminar o ensino médio, as mulheres têm mais
chances de avançar na educação do que os homens. Por outro lado, as matrículas
por campo de estudo nas universidades mostram também um padrão fortemente
determinado pelo gênero, o que coloca em dúvida se isso acontece por escolha
pessoal ou se, ao contrário, é resultado de crenças culturais e sociais e das
expectativas sobre os papéis ocupacionais para homens e mulheres. Existem
também diferenças persistentes e substanciais no número de matrículas entre o
460 Stromquist

meio ambiente urbano e o meio ambiente rural – um reflexo dos modelos de


desenvolvimento que exploram as zonas rurais, enquanto beneficiam as populações
urbanas. Contudo, nessas mesmas áreas geográficas, as mulheres continuam em
situação de inferioridade em relação aos homens no desempenho educacional –
corroborando ainda mais a ideia de que as disparidades de gênero funcionam
independentemente de localização e riqueza (STROMQUIST, 2007).
Pode-se indagar por que as mulheres vêm ganhando maior acesso à educação.
Talvez o que esteja acontecendo tenha mais a ver com a noção amplamente
disseminada de que, de maneira geral, o cidadão moderno precisa de educação, e
não especificamente com a ideia de que a mulher precisa de educação para
transformar sua vida. Para alguns observadores, outra razão possível é a percepção
cada vez mais clara de que a educação básica é um bem público global. No entanto
essa explicação seria válida apenas para as nações mais ricas, uma vez que pelo
menos em 101 países em desenvolvimento existem encargos escolares no nível
primário (UNESCO, 2003) – uma prática necessária devido às restrições
orçamentárias na alocação de verbas para a educação pública, as quais, por sua vez,
resultam de programas de ajuste estrutural impostos por organismos financeiros
internacionais.
Alguns governos consideraram que as estatísticas relativas ao acesso e à conclusão
são indicadores de seus esforços para alcançar igualdade de gênero. Isso é quase
sempre uma alegação errônea, uma vez que uma política de igualdade de
oportunidades exige medidas específicas para ajudar um grupo determinado. A
menos que haja evidências de que políticas especiais foram implantadas para
facilitar o acesso das mulheres à educação formal, a igualdade de oportunidades
não pode ser presumida como resultado de um esforço consciente do Estado. Na
maioria dos países, os orçamentos para a educação raramente disponibilizam
recursos ou pessoal para implementação de estratégias focadas no gênero.
Em meados da década de 1970, as ideias feministas sobre educação analisaram
questões de acesso e práticas em sala de aula. Abordaram também as desigualdades
de gênero em termos de escolhas de campo de estudo e manifestaram preocupação
com a falta de esforço para questionar as mensagens que levam meninas e mulheres
a fazer essas escolhas. Com o passar do tempo, desenvolveu-se entre as pensadoras
feministas uma percepção crescente de que o acesso à educação e a conclusão dos
cursos, por mais importantes que sejam, não garantem a mudança das crenças
ideológicas sobre gênero. Paridade numérica de gênero pode ter muito pouco a ver
com mudança cultural, econômica e política. Por exemplo, devemos nos perguntar:
o que representou ter melhores resultados no acesso e na permanência de mulheres
na escola secundária na América Latina e nos Estados Unidos? Pesquisas
demonstram que mulheres instruídas alcançam melhores resultados do que
mulheres sem instrução, tanto no mercado de trabalho como em determinadas
situações sociais e de tomada de decisões. Mesmo assim, noções prejudiciais de
Feminismo, libertação e educação 461

feminilidade e masculinidade estão entranhadas na sociedade e afetam a maioria


das mulheres, independentemente de seus níveis de escolarização.
Auxiliada por uma extensa teoria crítica sobre a natureza da educação que
considera as escolas como locais de reprodução de classes e hierarquias sociais, a
teoria educacional feminista reconhece as escolas como locais onde são criadas
culturas e subculturas, e onde são mantidos os sistemas de poder baseado em gênero
e de construção de significado de gênero. Ao ver o acesso à escola como um fim
em si mesmo, corre-se o risco de esquecer a substancial diferenciação de gênero
que ocorre ao longo da escolarização, particularmente na criação de noções de
masculinidade e feminilidade. Tomado como objetivo, o acesso traz implícita uma
ideia de escola como um ambiente neutro para todos, onde não serão criadas
hierarquias de gênero e onde não haverá tratamento diferenciado entre meninas e
meninos nas salas de aula e nas escolas.
O acesso das meninas à educação continua sendo um problema crítico em algumas
partes do mundo em desenvolvimento, especialmente na África Subsaariana e na Ásia
Meridional e Ocidental. Em muitos países em desenvolvimento, há graves diferenças
no acesso de meninas nas zonas rurais. Por outro lado, em um número crescente de
países, as meninas vêm-se aproximando da paridade em termos de acesso à escola, e a
tendência é que obtenham maior sucesso que os meninos na conclusão dos níveis
primário e secundário. Infelizmente, alguns governos confundem igualdade de acesso
e conclusão com igualdade de gênero, o que os leva a afirmar que não há problemas
de gênero em suas respectivas sociedades.

Mudanças nos livros didáticos e no ambiente escolar


Independentemente de adotar ou não uma posição feminista, a relação entre
educação e democracia envolve dois aspectos: de que maneira as práticas e
estruturas educativas promovem a democracia na sociedade, e em que medida as
escolas funcionam democraticamente (PERRY, 2003/2004). O primeiro aspecto
implica o acesso à escola e à aprendizagem, e o segundo, de que forma as práticas
em sala de aula promovem a tolerância, o reconhecimento do outro, os direitos
humanos e a atuação democrática.
Os livros didáticos transmitem mensagens importantes. Assim sendo, a atenção
feminista logo se concentrou neles e, como resultado, os materiais educativos vêm
melhorando ao longo do tempo. Na maioria dos países, houve uma redução no
uso da linguagem sexista, habitualmente expressa no uso da forma masculina como
a referência fundamental, ou, nos idiomas em que isso se aplica, no uso exclusivo
de pronomes masculinos para as profissões e funções que podem igualmente ser
preenchidas por mulheres. Embora certamente sejam menores do que no início da
década de 1960, problemas ainda persistem em relação a ilustrações, figuras
históricas e representações de certos personagens de forma estereotipada, mostrando
mulheres maternais, doces, abnegadas, e homens ousados, líderes, inteligentes.
462 Stromquist

O que permanece problemático nos livros didáticos e nos currículos é a ausência


ou o tratamento parcial de temas fundamentais relacionados a concepções de
gênero alteradas. As escolas oferecem cada vez mais programas que lidam com
educação sexual. No entanto, a abordagem do assunto continua baseada em
anatomia, em fisiologia e na ameaça à saúde que a sexualidade pode representar.
São muito poucos os programas que tratam de sexualidade, orientação sexual,
gênero e cidadania, violência baseada em gênero (violência doméstica, assédio
sexual, estupro, prostituição, pornografia) e direitos legais, entre outros temas. 1
Raramente incluem esse conhecimento no tratamento de estudos sociais ou de
educação para a cidadania (ARNOT, 2006). O abuso sexual e a violência sexual
dentro das escolas são notoriamente ignorados. Em suma, muito se poderia
melhorar no conteúdo do conhecimento e no contexto em que ele é apresentado
dentro do sistema escolar. O currículo continua favorecendo o conhecimento
masculino e ainda transmite uma noção de vantagem comparativa das mulheres
na esfera doméstica.

Políticas públicas: o global e o nacional


As questões relacionadas à mulher e ao gênero passaram a merecer grande
atenção graças a ações em nível internacional – primeiramente, por parte de
organizações feministas nos países industrializados, em estreita aliança com ONGs
feministas nos países em desenvolvimento e, posteriormente, através de
organizações da ONU. Uma peça notável de legislação global foi a promulgação
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher (CEDAW), da ONU. Adotada pela primeira vez em 1979, em 2006 a
CEDAW já havia sido ratificada por mais de 180 nações. Durante a década de
1990 houve uma série de congressos internacionais que colocaram na agenda
pública a questão da promoção da mulher. Entre esses congressos, destaca-se o
Congresso Internacional sobre População e Desenvolvimento, de 1994 (realizado
no Cairo). Todos esses congressos destacaram a importância da educação da mulher
e o imperativo do acesso igualitário à educação para meninas e mulheres. O IV
Congresso Mundial da Mulher (realizado em 1995, em Pequim) adotou um plano
de ação educativa que revelou sofisticação ao definir questões ligadas à educação,
e propôs um conjunto muito completo de medidas para lidar com as questões de
gênero nos sistemas educacionais. Esse documento foi assinado por praticamente
todas as nações do mundo.
O UNIFEM, o UNICEF e a UNESCO tornaram-se os principais defensores
de questões relacionadas à mulher. Diversas agências bilaterais com foco no
desenvolvimento nacional também adotaram programas de ação consistente para

1. Entre as meninas (o que não causa surpresa), a gravidez e a maternidade são determinantes significativos para
o abandono da escola.
Feminismo, libertação e educação 463

promover as condições da mulher. Entre elas, merecem destaque as agências de


desenvolvimento sueca, norueguesa, holandesa e norte-americana. As principais
organizações internacionais de crédito, como o Banco Mundial, e vários bancos
regionais de desenvolvimento, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento,
também têm atuado no sentido de promover questões relacionadas à mulher e ao
gênero no desenvolvimento nacional.
Foram condições comuns a todas as mulheres, independentemente de classe,
etnia, raça e idade, que levaram à formulação de políticas públicas ligadas ao gênero
e justificaram as intervenções. Uma vez que a adoção de políticas públicas implica
um papel para o Estado, foi o feminismo liberal – com base na noção de igualdade
de oportunidades – que promoveu essas políticas. O feminismo liberal centra-se
nos direitos individuais e endossa uma visão não problematizada da ação,
assumindo que as mulheres têm capacidade autônoma para modificar as relações
existentes. O feminismo liberal tem uma visão otimista do comportamento do
Estado e parte do pressuposto de que a máquina governamental e o poder da lei
serão utilizados para promover questões relacionadas à mulher.
As políticas públicas – e o discurso oficial – têm demonstrado que existe uma
confusão entre os conceitos de igualdade e equidade. Enquanto nas ciências sociais,
particularmente na educação, entende-se igualdade como a presença de condições
idênticas em certos indicadores sociais – por exemplo, salários, representação
política, acesso à universidade –, e equidade como as medidas tomadas para
alcançar a igualdade, várias organizações internacionais e governos nacionais
utilizam esses termos indistintamente e, portanto, confundem os resultados
almejados com os meios. Subrahmanian (2005) sugere o uso de “igualdade” para
indicar paridade, e o uso de “equidade” para indicar o resultado das “ações de
traduzir a igualdade na distribuição significativa de recursos e oportunidades, e a
transformação das condições em que as mulheres estão sendo incentivadas a fazer
suas escolhas” (SUBRAHMANIAN, 2005, p. 29). Pode-se acrescentar a essa
definição bastante útil a noção de que, embora a igualdade possa ser o objetivo
final, a equidade necessariamente exige medidas de intervenção que, por sua vez,
exigem a identificação de grupos específicos que serão beneficiados, os recursos
financeiros e a designação de pessoal para realizar as tarefas previstas.
Além disso, enquanto a educação é essencialmente uma forma de distribuição
social – ou seja, oferecer às pessoas certas formas e certos níveis de educação –, a
equidade na educação envolve alguma forma de redistribuição, na medida em que
envolve a realocação de bens ou serviços para que os beneficiários visados obtenham
mais, ou um bem melhor, ou um serviço melhor, ou durante um período mais
longo. A maioria das políticas de gênero baseiam-se em estratégias de distribuição,
e não em estratégias de redistribuição.
Atualmente, duas políticas globais que tratam da interseção entre mulheres e
educação são o programa Educação para Todos (EPT) e os Objetivos de
464 Stromquist

Desenvolvimento do Milênio (ODM), das Nações Unidas. Promulgado em


Jomtien, em 1990, o programa EPT foi reafirmado em Dacar em 2000, tendo os
objetivos declarados sido atingidos apenas em parte. O programa EPT estabelece
acesso universal à educação básica em 2015, tanto para meninos como para
meninas, e paridade de gênero na educação primária e secundária até 2005. O
programa ODM (aprovado em 2000) incorpora esses dois objetivos de EPT e
adiciona um objetivo de aumento de poder para as mulheres, e equipara esse poder
à paridade de acesso à educação, à participação no emprego remunerado e à
proporção na representação política. O programa ODM é apoiado por organizações
financeiras internacionais e pela própria ONU, e, dessa forma, é possível que tenha
uma implementação mais plena do que o programa EPT. Vários autores feministas
observaram com preocupação que o ODM reduz a definição de educação básica a
quatro anos completos – algo que pode ser elevado para certos países da África ao
sul do Saara e, talvez, da Ásia Ocidental e Meridional, porém é baixo para a Ásia
Oriental e a América Latina, onde já se alcançaram níveis mais altos de educação
tanto para meninas como para meninos. Segundo a UNESCO (2003), 60% dos
128 países com dados disponíveis para os níveis primário e secundário não vão
atingir paridade de gênero nesses níveis de educação até 2015.
Os documentos do EPT e do ODM estão imbuídos de um discurso de
igualdade e de empoderamento, mas faltam ações concretas para superar situações
negativas. Embora a assistência das organizações internacionais de desenvolvimento
para a educação básica tenha aumentado de 0,1% de seu total, em 1993, para
2,2%, em 2002 (UNESCO, 2003), as ações de iniciativa nacional são inexistentes
ou insuficientes. Por exemplo, embora os acordos de EPT exijam dos países
signatários planos de ação nacionais e os planos de implementação subsequentes,
poucos deles cumpriram essas promessas. Em junho de 2005, o site da UNESCO
informava que apenas 43 países dispunham de planos de ação nacionais. As
atividades de acompanhamento da realização dos ODM também têm sido lentas.
No início de 2006, o UNIFEM informava que apenas 55 países haviam
apresentado seus relatórios anuais de progressos. As políticas públicas globais de
educação (e também de outros setores) raramente incluem grupos de mulheres ou
acadêmicos feministas na elaboração de objetivos e procedimentos, excetuando-se,
talvez, a participação do FAWE (Forum for African Women Educanionalists), na
região africana. No entanto, para atingir igualdade de gênero, é necessária a
participação das mulheres por meio da transformação de regras básicas, de
hierarquias e de práticas das instituições públicas. Portanto, é preciso que as
mulheres estejam presentes nos espaços públicos em que ocorrem os debates sobre
uma nova governabilidade (GUZMÁN, 2003).
O movimento rumo a uma economia global, facilitado pelo rápido avanço da
tecnologia, criou um contexto hipercompetitivo para o crescimento econômico, que
resultou na intensificação da masculinidade hegemônica. Resultou também na
Feminismo, libertação e educação 465

dominação masculina continuada em instituições poderosas que prevalecem na


economia mundial, como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo
Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Tesouro dos Estados Unidos
(KENWAY, 2005). Essas condições não são propícias para tratar de gênero ou justiça
social. Embora hoje muitas instituições internacionais manifestem interesse pela
pobreza, seus estudos e suas políticas raramente consideram as mulheres pobres,
quem constitui o grupo mais pobre em cada classe, raça, etnia ou nível. Por outro
lado, quando seu interesse volta-se para questões de gênero, essas instituições
dirigem-se exclusivamente às mulheres pobres. O Estado e suas agências, portanto,
não dão a devida consideração ao modo como funciona o gênero na sociedade, e à
forma como está relacionado com as classes sociais, que extrapola a questão das
mulheres de baixa renda. Ao resumir as tendências mundiais atuais, Mazur observa
que “políticas simbólicas e ausência de decisões, políticas sem resultados, são um
tipo comum de política feminista” (MAZUR, 2002, p. 180).

Intervenções nacionais
Políticas educacionais substanciais que incluem uma perspectiva de gênero
foram promulgadas em diversos países industrializados, entre os quais se destacam
Austrália, Reino Unido e Estados Unidos. Essas políticas frequentemente passaram
por revisões para ampliar os objetivos de proibição de práticas discriminatórias na
admissão escolar ou no provimento de bolsas de estudo e empréstimos, de modo
a criar ambientes mais amigáveis para as meninas, protegendo-as contra o assédio
sexual e discriminação quanto a orientação sexual. Na Austrália, o sucesso da
reforma, caracterizada por várias reiterações de leis educacionais, foi atribuído à
ação conjunta de sindicatos de professores, professores e acadêmicos feministas,
envolvidos em pesquisas ligadas a questões de gênero na educação, e a ativistas
posicionados dentro do sistema de ensino e em outros locais altamente estratégicos
(KENWAY, 2005).
As políticas educacionais dos países em desenvolvimento consideram cada vez
mais a dimensão do gênero. O padrão predominante nessas políticas é concentrar-
se no acesso universal à educação básica, que é reconhecido como um direito
humano e, portanto, aplicável também às mulheres. Essas políticas respondem
principalmente a questões de acesso e permanência, mas o fazem utilizando
estatísticas, e não por meio de uma intervenção clara para ajudar as mulheres.
Normalmente como efeito colateral da expansão global e das mudanças de
mentalidade da sociedade, a expansão dos sistemas educacionais acaba beneficiando
as mulheres, que são auxiliadas pelas mensagens (às vezes contraditórias) da mídia.
O princípio básico dessas políticas é a igualdade de oportunidades, que focaliza a
igualdade de acesso, e não a igualdade de tratamento nas escolas, nem o
conhecimento que vai transformar os padrões de dominação de gênero. Como
conceito, a igualdade de oportunidades enfrenta limitações, uma vez que pressupõe
466 Stromquist

regras justas, e desconsidera as desigualdades anteriores e atuais que devem ser


corrigidas para possibilitar as transformações na ordem social de gênero. Sob uma
perspectiva de gênero, a igualdade reduz a preocupação com o contexto ideológico
da educação – o que tende a reproduzir as relações sociais de gênero
(BLACKMORE, 1999). Consequentemente, muitas dessas políticas dão pouca
atenção à formação de professores e ao desenvolvimento de novos currículos.
Vários países puseram em prática uma série de pequenas intervenções ligadas a
gênero e educação, porém as políticas educacionais de grande escala, que se
caracterizam por maior investimento e estabilidade, ainda são mais sensíveis às
questões de pobreza do que às questões de gênero. Uma exceção importante a esse
padrão é o Progresa (atualmente, Oportunidades), no México, que fornece
subsídios importantes para famílias pobres como parte de uma abordagem
integrada, que inclui nutrição e saúde, e oferece auxílio financeiro em volume um
pouco maior para meninas do que para meninos na escola secundária.2 Outra
intervenção significativa é o Programa de Subsídios para Meninas na Escola
Secundária, em Bangladesh que, em 1995, atendeu a cerca de 500 mil meninas,
fornecendo uma pequena ajuda financeira para que frequentassem a escola e
concluíssem seus estudos no nível secundário. Entre as medidas que promoveram
o sucesso da escolarização das meninas incluem-se ainda o provimento de educação
não formal, como a das escolas Brac, de Bangladesh, em pequenas comunidades
rurais, que tentam ter entre seus alunos no mínimo 70% de meninas3; ou o
programa Mahila Samakya, na Índia, para ajudar meninas das áreas rurais; ou ainda
o programa Quetta, de bolsas de estudo para meninas, no Baluquistão, Paquistão,
que fornece subsídios às escolas privadas para oferecer educação básica a estudantes
de baixa renda.4 Esses programas conseguiram aumentar a frequência e as taxas de
conclusão escolar de meninas, embora a divisão das tarefas domésticas tenha
mudado muito pouco. Um estudo internacional efetuado em três países da América
Latina (Brasil, Costa Rica e Peru) constatou que as políticas educacionais incluem
cada vez mais as questões de gênero (STROMQUIST, 2006b). Essas políticas
continuam a fazê-lo, sobretudo sob a perspectiva da paridade de acesso, embora
tenha havido progressos na conceituação de gênero, particularmente no Brasil. De
modo geral, a tendência é dar pouca atenção à implementação de novas práticas
voltadas para aumentar o poder da mulher em relação à cidadania, ou para a
questão do corpo em um contexto social e cultural.

2. No final de 1999, o Progresa abrangia 2,6 milhões de famílias, ou cerca de 40% de todas as famílias rurais,
e uma em cada nove famílias no México, em quase 50 mil comunidades. Representava um investimento
anual de US$ 777 milhões, ou 0,2% do PIB do México (Behrman e Skoufias, 2006). Em 2005, o programa
que o sucedeu – o Oportunidades – atingiu cerca de 5 milhões de famílias.
3. As escolas Brac, que existem desde 1985, agora são 40 mil, e atenderam a cerca de 8% da população da escola
primária no país.
4. O programa Quetta é pequeno, atingindo cerca de 10 mil alunos em escolas em que as meninas representam
cerca de 30% das matrículas.
Feminismo, libertação e educação 467

Em parte devido à doutrinação muito bem-sucedida por meio da educação


formal, a maioria das pessoas não percebe a instrução escolar como um ambiente
essencial e profundo para a transmissão de mensagens ideológicas. Mazur (2002)
observa que o conteúdo das políticas feministas em meio aos governos ocidentais
muitas vezes não coincide com as correntes particulares de ideias feministas no
pensamento político ocidental; e que essas políticas tendem a oferecer uma
estrutura fragmentada, com frequência incorporando ideias feministas liberais sobre
a representação política pela mulher e adotando questões positivas relacionadas à
mulher no processo político; e ocasionalmente, adotando posições feministas
radicais relacionadas à sexualidade e a políticas contra a violência (como acontece
na Suécia e na Escócia). Mazur contribui também para a compreensão da política
feminista ao propor uma tipologia que identifica a representação democrática, os
direitos de reprodução, direito de família, igualdade no emprego e reconciliação
conjugal. Em sua tipologia, Mazur inclui políticas de prestação de serviço público,
que a autora define como as políticas existentes em serviços públicos tais como
saúde, habitação, educação e transporte. Essa visão da educação como um mero
serviço público, e não como um meio de importância fundamental pelo qual as
ideologias são transmitidas, é bastante típica.

Percepções teóricas da desigualdade de gênero5


Tanto a primeira onda do feminismo (que, no início de 1900, culminou com
o direito da mulher ao voto) como a segunda onda (aproximadamente da década
de 1960 até hoje) viam as mulheres como um grupo com pouca diferenciação entre
seus membros. Consequentemente, teorizaram a subordinação e a opressão para
todas as mulheres. Já a terceira onda de feminismo (talvez a partir de meados da
década de 1980, e predominante em países industrializados) vê grandes diferenças
entre as mulheres.
Argumentos iniciais sobre o status e as condições diferenciadas das mulheres
foram atribuídos à socialização de homens e mulheres em papéis sociais ou em
funções complementares. Essa linha de raciocínio, genericamente denominada
feminismo liberal, assumiu uma correção simples, na qual o Estado desempenhava
um papel importante ao decretar e aplicar leis antidiscriminatórias para modificar
os estereótipos sexuais entre homens e mulheres. Posteriormente, essa perspectiva
foi considerada limitada, uma vez que percebia os gêneros como preferências e
normas adquiridas, e evitava que fossem analisados como expressão de poder de
um grupo sobre outro (WILLIAMS et al., 2004). Para um grupo cada vez mais
numeroso de ativistas e alguns acadêmicos feministas, o patriarcado – ou seja, a
ideologia difusa na maioria das sociedades que aceitava a superioridade dos homens,

5. Esta seção é um relato muito pessoal de como as questões teóricas evoluíram. Vários outros são possíveis. O
que apresento enfatiza a trajetória do setor educacional.
468 Stromquist

seus privilégios culturais e econômicos, e suas responsabilidades como chefe de


família – surgiu como uma explicação convincente para a criação de dicotomias
arbitrárias entre homens e mulheres, e entre masculinidade e feminilidade (DALY,
1978; PATEMAN, 1988). Connell (1995) introduziu a noção de dividendo
patriarcal para ressaltar a realidade de que todos os homens são beneficiados como
um grupo social em termos de acesso a um capital simbólico, social, político e
econômico. O reconhecimento das ideologias patriarcais levou também ao estudo
da família como um ambiente social que traz encargos e recompensas desiguais
para seus membros.
A análise crítica, que ganhou maior força na década de 1990, mostrou que as
mulheres não são uma categoria unidimensional, uma vez que o gênero tem
interseção com outros marcadores sociais (como raça, etnia, classe social, orientação
sexual e idade, entre outros) para criar formas compostas de vivenciar o gênero –
aquilo que, em 1997, Fraser chamou de diferenças entre as mulheres. Sob certa
perspectiva, é possível afirmar que as mulheres não podem ser vistas como categoria
totalizante. Sob outra perspectiva, pode-se argumentar que a diferenciação de
gênero ocorre independentemente da experiência de marcadores sociais permanentes
adicionais e múltiplos. À medida que o trabalho político e teórico avançava, ficou
evidente que há uma interface crítica entre gênero e classe social, assim como entre
gênero e etnia, mas também que os resultados na vida individual ou grupal não
podem ser reduzidos apenas a classe social ou etnia. A compreensão teórica de que
a desigualdade de gênero situa-se em um terreno mais amplo de desigualdades
resultou em um desafio concomitante na ação prática: como reconhecer as variações
na experiência de gênero, sem perder a noção de gênero como uma das principais
formas de desigualdade.
Em meados da década de 1990, surgiu nos países industrializados um interesse
feminista em masculinidade – ou masculinidades – e na educação dos meninos.
De acordo com Kenway (2005), essa ênfase traduziu-se em um interesse menor
pelos direitos humanos do que na documentação das várias manifestações de
masculinidade e suas implicações para meninos e homens, bem como para meninas
e mulheres. Essa ênfase contribuiu também para uma compreensão muito mais
sutil da violência e do assédio em função de gênero. A descrição de diferenças
múltiplas e cruzadas e de subjetividades complexas foi muitas vezes objeto de
pesquisa sobre gênero e educação. O surgimento paralelo do feminismo cultural
celebrou a feminilidade (KENWAY, 2005). Nas últimas décadas, as discussões de
gênero deixaram de lado as considerações sobre poder e sobre meios coletivos para
conseguir mudanças. Assim, enquanto Molyneux (1985) falava sobre os interesses
práticos e estratégicos das mulheres na década de 1980, o discurso da década de
1990 mudou para a intersecionalidade e a performatividade – a primeira referindo-
se ao cruzamento de vários indicadores sociais (por exemplo, ser mulher, branca,
rica e com um Ph.D), e o segundo alertando-nos para o fato de que o gênero é
Feminismo, libertação e educação 469

desempenhado na vida cotidiana por meio de nossas ações em nível micro – e,


portanto, implicando que o gênero também pode ser transformado nesse nível.
Collins (2000), a partir de sua experiência afro-americana, contestou as noções de
atos individuais de resistência e destacou o peso de desigualdades estruturais tais
como racismo, capitalismo e sexismo.
No trabalho feminista contemporâneo, não se usam mais estruturas explicativas
que lidam com poder, especialmente aquelas que abordam a questão da não tomada
de decisões e a tendência de mobilização de propensões para bloquear os desafios
à distribuição vigente de valores e interesses, como proposto por Bachrach e Baratz
(1970). Assim, são raros os estudos relacionados à formulação limitada de políticas
públicas destinadas a modificar os aspectos opressores de gênero. O poder,
entretanto, está presente em todas as áreas do processo decisório e na criação de
sistemas de inclusão e exclusão (LYNCH, 2001). Alguns estudiosos têm contestado
a estrutura de não tomada de decisões, argumentando que não pode ser testada.
Em resposta, Chilton (2005) observa que esse quadro suscita duas hipóteses
alternativas: é possível que uma política tenha sido expressamente suprimida, ou
que tenha sido considerada sem sentido, não sendo levada em consideração.
Entretanto, ter uma posição normativa com relação a um determinado problema
efetivamente permite que os pesquisadores investiguem uma determinada questão
e determinem a atenção que essa questão recebe na arena das políticas.
Desde a década de 1990, o pós-modernismo trouxe uma grande dose de sutileza
à consideração das questões de gênero. Seus principais expoentes são West e
Zimmerman (1987) e Butler (1990). Eis algumas das noções propostas pelo pós-
modernismo: as identidades são fluidas e cambiantes; o poder é difuso e está
relacionado com os micropoderes que desempenham funções cruciais; a
performatividade, ou o modo como o gênero é construído diariamente por meio
do restabelecimento social de práticas e expectativas; e as metanarrativas apresentam
verdades sob a perspectiva daqueles que as constroem. Embora certamente tenha
sido criticado, o pensamento pós-moderno teve grande influência entre os
pesquisadores educacionais que lidam com questões de gênero: parece razoável
afastar-se de categorias binárias e arbitrárias, como mulher e homem, exceto pelo
fato de que isso deixa o pesquisador ou o formulador de políticas sem um sujeito
ao qual se referir, e a quem defender. A performatividade põe muita ênfase na ação
individual, quando é precisamente nesse nível, em face das normas poderosas e dos
custos do comportamento alternativo, que as pessoas acham mais difícil agir de
forma diferente. Diferenças múltiplas e cruzadas criam subjetividades complexas,
mas se for conduzida a uma conclusão lógica, essa diversidade serve mais para
paralisar do que para mobilizar. Bradley (2004) afirma que, ao invés de olhar para
gênero e gênero e classe, os estudos pós-modernos sobre gênero desvincularam o
gênero da classe social e focalizaram a sexualidade, o corpo, a representação, a mídia,
a identidade e a nacionalidade. Em geral, as ideias pós-modernas ignoram a noção
470 Stromquist

coletiva da política, subestimam os fatores econômicos, e não consideram


suficientemente a influência do Estado, das instituições sociais relacionadas e das
forças estruturais difusas. Em suma, o pós-modernismo tende a ver seu diagnóstico
dos problemas de gênero como a própria solução.
Além disso, a partir do início da década de 1990, houve uma mudança teórica
em direção a questões de reconhecimento. Entre os expoentes desse pensamento
estão Fraser (1997, 1998) e Phillips (1999). Fraser (1998) deu contribuições
importantes à teoria feminista, ao estabelecer uma distinção entre redistribuição e
reconhecimento, argumentando que a eliminação das diferenças de gênero na
sociedade requer tanto uma partilha justa de recursos econômicos como o
reconhecimento de diferentes identidades culturais. A redistribuição, nesse caso,
refere-se à injustiça material, associada à exploração econômica, à privação e à
marginalização; o reconhecimento refere-se à injustiça cultural, que, nesse caso,
significa a dominação cultural sobre a mulher, o descrédito e a falta de
reconhecimento e respeito. Implicitamente, a injustiça cultural inclui o não
reconhecimento ou o reconhecimento insuficiente de valores femininos. Inclui
também a não valorização adequada dos papéis que as mulheres desempenham
cotidianamente – aqueles ligados à gestão doméstica e aos cuidados com as crianças,
assim como os trabalhos ligados à esfera privada em geral. A noção de
reconhecimento busca resgatar as autorrepresentações positivas feitas pelo próprio
indivíduo (LYNCH, 2001). Em outras palavras, o reconhecimento é a aceitação
pela sociedade do fato de que os atributos das mulheres são valiosos e que elas têm
direito às suas próprias identidades. Fraser (1995, 2000) adverte contra uma política
de identidades dissociada da desigualdade de status institucionalizada. Tanto Fraser
(1998) como Phillips (1999) ressaltam a necessidade de associar os problemas de
reconhecimento aos problemas de redistribuição, ou ao acesso a bens materiais e
serviços. Kenway (2005) considera que hoje talvez sejam demasiadamente
enfatizados os aspectos relacionados à injustiça cultural, em detrimento da injustiça
material. Embora seja muito válida a afirmação de que o reconhecimento e os
aspectos redistributivos da justiça social são extremamente relevantes para
compreender e modificar as relações de gênero, esse vínculo não foi observado
adequadamente no campo da educação, embora em vários países industrializados
tenha havido algum esforço para abordar as questões relativas à diferença e à
identidade (LYNCH, 2001), bem como intervenções para eliminar dos currículos
os estereótipos sexuais. As políticas educacionais têm enfatizado a paridade ou a
participação equânime de homens e mulheres na educação. Essas políticas
demonstraram que se admite insuficientemente o caráter de gênero na sociedade e
no ensino, e ignoraram as teorias feministas que lidam com questões ideológicas,
tais como o patriarcado, a desigualdade material e as concepções de identidade.
Implicitamente, as políticas educacionais têm sido embasadas em uma teoria de
gênero que se fundamenta na educação como meio para promover melhoria
Feminismo, libertação e educação 471

econômica e social de mulheres, sem considerar as forças históricas e culturais


disseminadas e subjacentes. Consequentemente, as políticas educacionais
assumiram a ideia de distribuição (oferta de escolaridade formal) em lugar das ideias
de redistribuição (realocação de recursos) e reconhecimento (realocação de valores
e status) ao lidar com as questões de gênero.

Forças compensatórias
Por ser um movimento que procura grandes mudanças nas normas e crenças
que dão forma à sociedade, o feminismo teve que enfrentar várias reações
institucionais e sociais contrárias. Significativamente, as teorias feministas
prevalentes raramente conceitualizam o surgimento de grupos que vão lutar contra
a introdução de mudanças nas ideologias de gênero.
No contexto da América Latina, a ação da Igreja católica tem sido decisiva para
impedir alterações curriculares em favor da introdução da educação sexual e do
tratamento da sexualidade como uma prática cultural com atribuições diferenciadas
e consequências para homens e mulheres. De maneira geral, tem argumentado que
a família está sendo atacada e que o questionamento das diferenças naturais entre
homens e mulheres levará à homossexualidade (BONDER, 1998). Experiências
semelhantes foram documentadas na República Dominicana, no Peru, na Costa
Rica, no Chile e no México. A tática da Igreja de retirar certas questões do debate
repercute as observações feitas há décadas por Bachrach e Baratz (1970), que
introduziram a ideia de que, quando o poder de um conjunto de interesses ou
perspectivas evita a introdução de questões fundamentais na agenda política, os
cidadãos permanecem ignorantes a respeito de tais questões. Nas regiões
influenciadas pelas normas islâmicas, o lugar da mulher é preponderantemente na
esfera doméstica.
Uma força mais difusa, porém amplamente disseminada, que funciona contra
as questões de gênero é a globalização. Ao promover a estratégia de soluções
orientadas pelo mercado e o papel dos indivíduos no progresso, em oposição a um
estado de bem-estar ou à solidariedade na resolução dos problemas sociais, a
competitividade globalizada fomentou um clima que exalta o individualismo e
limita a participação do Estado na consideração das questões sociais. Ao reduzir os
serviços sociais prestados pelo Estado, as políticas orientadas pelo mercado
(neoliberais) deslocaram a carga para as mulheres (SUBRAHMANIAN, 2005;
KENWAY, 2005; GONZÁLEZ DE LA ROCHA, 2006) – um efeito que não é
reconhecido pelos órgãos do Estado. Pode-se dizer que a sujeição da mulher,
expressa no seu papel ligado ao espaço doméstico, é necessária para subsidiar os
custos dos cuidados com idosos e jovens – custos com os quais o Estado,
especialmente o Estado neoliberal, não está disposto a arcar (ODORA-HOPPERS,
2005). Apesar desses fatos, muitos governos recusam-se a reconhecer que o
neoliberalismo prejudica as mulheres, com o recuo do estado de bem-estar social.
472 Stromquist

Observou-se também que muitos governos recusam-se a crescer conceitualmente


(KENWAY, 2005, p. 50), deixando de refletir sobre a condição masculina e a
condição feminina.6 A competição pela sobrevivência ou pelo próprio sustento
tem-se refletido de maneira importante na desaceleração do ativismo de ONGs
dirigidas por mulheres, cujos níveis de financiamento e de ajuda externa já
diminuíram. Diante dos recursos insuficientes atribuídos às escolas públicas por
muitos governos, a sociedade civil mobilizou-se para exigir maiores investimentos
do Estado na educação. No caso da América Latina, por exemplo, há um
movimento social substancial em favor educação pública de alta qualidade. Esse
movimento tem sido bastante visível nos últimos Fóruns Sociais Mundiais, mas
pouco se diz sobre questões de gênero na educação. Por esse motivo, hoje, a
sociedade civil tem sido incapaz de exercer pressão suficiente sobre os Estados para
que se conduzam de maneira diferente, em uma perspectiva de gênero.
Nos países industrializados, após um apoio bastante limitado em favor de uma
agenda feminista para a educação durante as décadas de 1980 e 1990, verificou-
se uma reação contra a educação das meninas, observada na Austrália (KENWAY,
2005), nos Estados Unidos (STROMQUIST, 2006a; NASH et al., 2007) e no
Reino Unido (ARNOT et al., 1999). Essencialmente, essa reação, conhecida
também como movimento dos meninos, argumenta que há guerras de gênero na
sala de aula e, como resultado, os meninos vêm sofrendo em termos de
desempenho e acesso à escola. A queixa agora é que toda a atenção para ajudar as
meninas levou a um descaso em relação aos meninos, que foram ficando para trás
em termos de desempenho escolar e de conclusão do ensino médio. Os
argumentos aqui vão na linha de meninos e homens em crise, e não em um exame
da natureza das culturas de gênero ou da formação de noções pluralistas de
masculinidade, e tende a ver os homens como vítimas da ação feminista
(KENWAY, 2005). Nos Estados Unidos, a reação contra meninas e mulheres
também tomou a forma de ameaça homossexual, havendo programas de educação
sexual providos por grupos religiosos, com o apoio do governo federal, para
promover a noção de abstinência sexual e a rotulagem da masturbação como se
fosse uma droga (KENDALL, 2006). Essa reação também ocorre em um clima
de pouca atenção às diferenças existentes no mercado de trabalho e na
representação política e à relação dessas diferenças com as ideologias de gênero.
Existem várias explicações para a reduzida presença de homens na educação.
Alguns observadores afirmam, sem provas, que as escolas vêm-se tornando mais
acolhedoras para as meninas do que para os meninos. Outros argumentam que é
mais fácil para os meninos do que para as meninas participar do mercado de

6. Nas últimas décadas, os governos começaram a reconhecer como problemáticas certas situações que eram
antes consideradas normais e, portanto, além da ação legal. Esses problemas incluem o abuso de crianças
(que não era reconhecido até 1965), a violência doméstica, o assédio sexual e o estupro marital.
Feminismo, libertação e educação 473

trabalho tendo níveis mais baixos de educação, em ocupações como construção


civil, mecânica e transportes. Outros ainda consideram que as mulheres tendem
a persistir mais na educação porque percebem que precisam de mais alavancagem
para competir no mercado de trabalho. Seja qual for o caso, aparentemente a
reindustrialização (nos países desenvolvidos) e a desindustrialização (em muitos
países em desenvolvimento) afetaram os homens da classe trabalhadora, deixando
muitos sem trabalho e sem a cultura tradicional da classe trabalhadora que apoiava
sua masculinidade (KENWAY, 2005).

Conduzindo à mudança institucional


A experiência adquirida em várias décadas de esforços para melhorar a vivência
e o conteúdo escolar, de modo que as questões de gênero possam ser tratadas
adequadamente, mostra que a mudança é possível, mas difícil. Atualmente, a
cultura escolar dominante pressiona no sentido do alto desempenho, como se vê
nos níveis de realização individual e, a partir deles, na produção de desempenhos
escolares. Os esforços para tratar da questão de gênero enfrentam hoje um ambiente
hostil, e os espaços de negociação, e mesmo de resistência, são cada vez mais
limitados para as mulheres.
Diversas estratégias complementares poderiam ser colocadas em prática – desde
a inserção de questões de gênero como aspecto relevante em todas as funções
educativas, passando pela capacitação dos responsáveis pela implementação de
políticas e programas de equidade de gênero, até a alteração dos materiais didáticos
e currículos, para incorporar questões de gênero, e a modificação dos ambientes
escolares, para que os espaços físicos contribuam para ambientes favoráveis para a
recriação do gênero de forma menos polarizada.
Colocar as questões de gênero como aspecto relevante é uma estratégia
abrangente que foi testada em poucos países (notadamente na África do Sul)7, e
cujo sucesso demanda um sólido comprometimento. A capacitação é indispensável
e, obviamente, não pode ser limitada aos professores. Diretores de escolas,
autoridades de alto nível na área da educação e formuladores de políticas em geral
devem ser expostos a um conhecimento sistemático sobre gênero. A formação de
professores, por mais crucial que seja, poucas vezes é considerada de maneira
explícita nos documentos relativos às políticas, tampouco nas regulamentações
delas resultantes. Sob uma perspectiva de gênero, a ausência de capacitação prévia
e em serviço é uma das principais fragilidades das políticas públicas.8

7. Na África do Sul, relatam-se casos de sucesso na criação de um setor de atendimento de questões de gênero
em sindicatos de professores para atingir paridade salarial, intervindo no desenvolvimento de currículo para
aplicar uma estrutura de direitos humanos (que cubra temas como assédio sexual) e promover mais mulheres
a cargos de gestão (MANNAH , 2005).
8. Em razão dos baixos salários e das más condições de trabalho em muitos países, a mobilização dos professores
geralmente é maior quando o objetivo é melhoria econômica do que quando se busca transformação social.
474 Stromquist

Conhecimentos relacionados a gênero devem ser incorporados à educação


formal em dois tipos principais de cursos: aqueles que lidam com educação sexual
e os que tratam de estudos sociais (incluindo educação cívica). Esses cursos devem
considerar temas comuns a todos os países, bem como temas relevantes para países
específicos. Por exemplo, estudantes em todas as partes o mundo devem receber
conhecimentos sobre sexualidade, masculinidade, gênero e sexualidade responsável,
mas temas graves relativos à sexualidade, como HIV/Aids, devem ser considerados
de importância preponderante na África Meridional. Em alguns países,
especialmente em áreas rurais, existem sérios problemas de abuso sexual de meninas
nas escolas, portanto essa questão deve ser considerada prioritária. A educação cívica
deve incluir a discussão da cidadania e de suas muitas características relacionadas
a gênero que ainda persistem; em particular, deve promover o reconhecimento das
diferenças humanas e promover solidariedade e ação coletiva. Seriam necessárias
mais intervenções conduzidas pelo Estado para efetivar de forma tangível uma ação
afirmativa em favor do emprego de mulheres em postos administrativos. Essas
políticas devem contemplar o ciclo completo: preparação para o trabalho, ajuda
na fase de ingresso e assistência para um desempenho adequado. A maioria das
atuais políticas de ação afirmativa limita-se à fase de ingresso.
Os esforços para lidar com questões de gênero têm sido excessivamente
concentrados na educação formal e, portanto, sobre as meninas, em detrimento
das mulheres adultas. Fora da escola, longe do olhar do Estado e das restrições de
burocracias há muito estabelecidas, alguns grupos de mulheres conseguiram
mudanças pessoais e sociais significativas, por meio de auto-organização e de
pressão sobre o Estado para que implemente políticas públicas em áreas que
envolvem violência doméstica, saúde, emprego e representação política.
Organizações de mulheres e organizações feministas têm trabalhado com
importantes questões de gênero em atividades de educação não formal e
aprendizagem informal. No mais das vezes, esses grupos têm conseguido realizar
mais mudanças do que a educação formal. Uma vez que atende adultos, a educação
não formal incorpora mulheres com diferentes graus de experiência tanto em sua
vida privada como na vida pública – experiência que as torna receptivas a um
conhecimento transformador (STROMQUIST, 2006c).

Considerações finais
O enquadramento de um problema dá a forma de sua solução. Atualmente,
em diferentes arenas e por diferentes razões, há uma análise limitada da influência
que questões de gênero exercem nos problemas sociais, e as soluções projetadas
para corrigir desigualdades de gênero são apenas modestas. Embora em seus
fóruns nacionais e internacionais o Estado tenha conseguido produzir acordos
globais para lidar com as questões de gênero e das mulheres, esses instrumentos
revelaram-se verdadeiras facas de dois gumes. No lado positivo, o Estado admitiu
Feminismo, libertação e educação 475

que deve ser responsável por seus cidadãos, e isso inclui o provimento de
benefícios e serviços para as mulheres. As políticas globais deram destaque às
questões de gênero e de educação, e levaram à adoção de políticas por governos
que, de outra forma, teriam feito muito pouco a esse respeito. Do lado negativo,
o Estado tendeu a cooptar o movimento e a agregar seus principais conceitos, e
esvaziou suas medidas de qualquer propósito transformador. As respostas do
Estado muitas vezes são retóricas, e os objetivos globais mais recentes na verdade
têm reduzido agendas feministas anteriormente alcançadas (como ocorreu com
vários dos Objetivos do Milênio).
Os discursos cumprem muitas tarefas. Servem para apresentar algumas vozes e,
por omissão, silenciar outras. Aquelas que são apresentadas com maior frequência
passam a ter maior legitimidade e autoridade. Hoje os governos emitem mensagens
contraditórias, exaltando os valores do individualismo e da competição e, ao mesmo
tempo, fazendo declarações em favor da inclusão social e da construção da
democracia. Em um exame a partir de uma perspectiva sociológica, em que são
analisadas as questões de conteúdo e diferenciais de poder, pode-se concluir que
questões críticas do sistema educacional são negligenciadas. De maneira geral, após
a devida consideração, as políticas públicas não descartam essas questões como se
não fossem importantes: desde o início, tendem a ignorar questões controversas
ligadas a gênero, o que ocorre basicamente devido à incapacidade dos funcionários
das organizações governamentais e bilaterais para levar em consideração a literatura
educacional feminista. Ocorre também por meio da agregação de termos como
gênero, equidade de gênero e empoderamento das mulheres, sem um esforço sério
para lidar com esses conceitos tão poderosos.
Para agravar ainda mais uma situação já negativa, há pouca atividade neste
momento na área da política de gênero e da educação. Além disso, as mulheres
organizadas raramente participam (ou pedem para ser incluídas) em fóruns
educacionais. É difícil obter benefícios de organismos nos quais as mulheres não
têm voz ativa, e quando as vozes das mulheres são demasiadamente diversas. Assim
sendo, parece essencial incentivar o diálogo e as alianças entre o mundo acadêmico,
as organizações da sociedade civil e as unidades governamentais favoráveis, para
estimular maior atenção às questões de gênero na educação.
Nosso mundo contemporâneo é caracterizado por contradições. Os governos
agora exigem simultaneamente um desenvolvimento orientado para o mercado
(que supostamente cuidaria de tudo) e direitos humanos e democratização,
especialmente nos países em desenvolvimento. O primeiro, no entanto, não implica
uso de recursos públicos; para o segundo, esses recursos são indispensáveis. Embora
os governos expressem objetivos contraditórios no nível do discurso, no nível
prático a ênfase está claramente em esforços dirigidos ao mercado. Embora novas
políticas públicas sejam constantemente promulgadas, a utilização dos instrumentos
a elas ligados – como recursos materiais, legislação, planos e relatórios de equidade
476 Stromquist

e o estabelecimento de mecanismos de gênero no interior do Estado – está muito


aquém do que é professado em políticas simbólicas.
A questão de gênero na educação refletiu uma mudança considerável em seu
tratamento ideológico. Entre as ONGs dirigidas por mulheres, especialmente em
países em desenvolvimento, há uma preocupação com o acesso à educação e à
garantia de cumprimento da meta de paridade de gênero em todos os níveis
educacionais. Os grupos de mulheres preocupam-se com os ODM e gostariam de
vê-los transformados em realidade. Entre as mulheres nos espaços acadêmicos, o
gênero vem sendo conceituado sob formas que derivam mais das áreas de
humanidades (filosofia e teorias literárias) do que das ciências sociais, que buscam
entender o gênero em sua complexidade plena e ilusória, em vez de ligá-lo a
intervenções para tratar das consequências no âmbito da assimetria do poder. À
medida que foi tornando-se mais forte na academia, o pós-modernismo acrescentou
um bônus à formulação de novas ideias e perspectivas, sem ter resolvido problemas
antigos. De certa forma, a teoria funciona como um refúgio para não agir. E ainda
assim, como lembra Lynch: “reconhece-se cada vez mais que, a menos que a
pesquisa sobre a desigualdade desenvolva algum meio de trabalhar por um objetivo
emancipatório em favor daqueles com quem ou sobre quem se fala, há um risco
real de que o processo de pesquisa torne-se mais uma ferramenta de opressão”
(LYNCH, 2001, p. 243). Olhando para o futuro, o verdadeiro desafio para o
feminismo reside em sua capacidade de apresentar uma frente unida, tanto teórica
como prática, em suas estratégias para persuadir os homens a participar de uma
luta pela transformação ideológica, e em sua capacidade de entrar em uma
negociação com propósitos ligados a políticas, que inclua o reconhecimento do
Outro, que representa nada menos do que metade da humanidade.

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66

EDUCAÇÃO COMPARADA,
PÓS-MODERNIDADE E PESQUISA
HISTÓRICA: HONRANDO OS ANTEPASSADOS

Marianne A. Larsen

O campo da educação comparada tem sido especialmente lento para ultrapassar


o pós-1 (COWEN, 1996) e participar ativamente das ideias do pós-modernismo.2
Há mais de 15 anos, Rust, que presidia então a Sociedade de Educação
Internacional e Comparada (Cies), comentou sobre a nossa relutância em
considerar as implicações das novas teorias feministas, pós-modernas e pós-
estruturais para a educação comparada. Rust (1991) afirmou que o
pós-modernismo deve ser um conceito central no discurso de nosso campo, e pediu
que os profissionais da educação comparada
definissem mais claramente as metanarrativas que impulsionaram nosso campo [e] se envolvessem
na tarefa crítica de identificar as partes constituintes dessas narrativas, porque elas definem o que
os comparativistas consideram aceitável, desejável e eficaz em educação. Ao mesmo tempo,
devemos dar maior atenção a pequenas narrativas [e] aos tão diversos Outros do mundo (RUST,
1991, p. 625-626).

Durante a década de 1990, começamos a observar uma tentativa de mudança,


à medida que alguns comparativistas criativos envolviam-se com as ideias do pós-
modernismo. Ninnes e Burnett (2003) registraram o ligeiro aumento no número
de citações de acadêmicos pós-estruturais na literatura da educação comparada
nesse período. Os temas de congressos sobre educação comparada também
começaram a refletir um interesse nas ideias e nos conceitos associados à pós-
modernidade (por exemplo, o Encontro Regional Ocidental da Cies, de 1998, e o
1. NRTT:To be first past the post é uma expressão idiomática inglesa, significando, em uma competição, aquele
que consegue ser o primeiro. No texto, a autora faz um jogo de palavras associando post (marco, poste) com
post- (pós-, em pós-modernismo).
2. O pós-modernismo é um conceito escorregadio, o que torna sua definição difícil, senão impossível. Em
resumo, o que me ocupa aqui, basicamente, é o pós-modernismo como representante da ideia de que a
sociedade ocidental passou por uma grande mudança, caracterizada por uma rejeição do projeto iluminista
de evolução, progresso e compromisso com a razão. O pós-modernismo procura substituir as grandes
narrativas da modernidade por uma multiplicidade de discursos, um questionamento da legitimidade do
conhecimento e do poder, juntamente com uma crítica da ideia de verdade. A afirmação de Lyotard de que
o pós-modernismo é uma expressão de “ceticismo com relação a metanarrativas” (LYOTARD, 1984, p. xxiv)
exemplifica melhor essa postura. Uso o termo pós-modernismo em todo o capítulo como um guarda-chuva
sob o qual se encontram os conceitos relacionados: o pós-colonialismo e o pós-estruturalismo.

479
480 Larsen

Congresso Mundial de Sociedades de Educação Comparada, em 2000). Alguns


comparativistas utilizaram o início do novo milênio como uma oportunidade tanto
para refletir sobre as nossas tradições como para envolver-se ativamente em novos
desafios que os pós- trazem à nossa área (COWEN, 2000; KING, 2000; KOEHL,
2000; MEHTA; NINNES, 2000; PAULSTON, 2000). Desde 2000, houve
também algumas publicações com inclinação nitidamente pós-moderna, sendo a
mais evidente a obra de Ninnes e Mehta (2004), “Re-imagining comparative
education: post-foundational ideas and applications for new times”. Constatou-se
também um aumento, embora pequeno, no número de publicações que envolvem
a teoria pós-colonial (por exemplo, CROSSLEY; TIKLY, 2004; HICKLING-
HUDSON, 2006).
No entanto, essas mudanças foram limitadas, e os comparativistas que
explicitamente se posicionam como pesquisadores pós-modernos, pós-coloniais ou
pós-estruturais continuam às margens do nosso campo. Compreensivelmente,
causam surpresa o início relativamente tardio desse debate no seio da educação
comparada e a relativa falta de envolvimento com o pós-modernismo nos últimos
15 anos, tendo em vista o interesse relacionado com a pesquisa interpretativa e
fenomenológica, e o suposto compromisso do nosso campo com a valorização do
pluralismo, da diversidade e da heterogeneidade.
Apesar da posição marginal do pensamento pós-moderno dentro da educação
comparada, alguns comparativistas alertaram para os desafios epistemológicos e
metodológicos que o pós-modernismo representa para a nossa investigação e para
os limites do nosso campo (CROSSLEY, 2000; EPSTEIN; CARROLL, 2005;
TORRES, 1997; WATSON, 1998; WELCH, 2003). Um crítico observou que,
como resultado dos debates metodológicos atuais e passados, nossa disciplina
perdeu um pouco de sua credibilidade e tornou-se “sem raízes e sem rumo”
(WATSON, 1999, p. 240). Outros chegaram ao ponto de condenar os perigos do
pensamento pós-moderno e acusar os comparativistas pós-modernos de perpetuar
um discurso hegemônico e totalizador, que é “plausivelmente o desafio mais sério
que já ocorreu à estabilidade dos limites” que nosso campo requer (EPSTEIN;
CARROLL, 2005, p. 63). Esses críticos concordariam com a afirmação anterior
de Crossley de que nosso campo respondeu de forma demasiadamente direta à
mudança das tendências disciplinares, e como resultado, os estágios de seu próprio
desenvolvimento indicam uma rejeição das práticas do passado, em lugar de um
avanço cumulativo (CROSSLEY, 2000, p. 327).
Não concordo com essas afirmações. Ao contrário do que afirmam alguns desses
críticos, o pensamento pós-moderno dentro da educação comparada não é (ainda)
uma força a ser considerada; tampouco assistimos a um crescimento extraordinário
(EPSTEIN; CARROLL, 2005, p. 64) no pensamento pós-moderno ou pós-
estrutural em nosso campo. Além disso, concordo com Rust e outros que acreditam
que em nossa área há espaço para uma ampla gama de abordagens. Especificamente,
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 481

na condição de historiadora, interessa-me de maneira particular saber como


podemos reinventar ou repensar o papel da pesquisa histórica em nosso campo,
para incluir as ideias do pós-modernismo, do pós-colonialismo e do pós-
estruturalismo.
O que pretendo fazer neste capítulo é explorar três ideias-chave. Na primeira
seção, desafio a alegação de que a pesquisa histórica foi-se reduzindo em nosso
campo desde os primeiros dias de estudos históricos da educação comparada. Em
seguida, volto minha atenção para o valor da pesquisa histórica dentro do campo
e, por fim, para o valor específico de uma forma pós-moderna de pesquisa histórica
para a educação comparada, com base em algumas das ideias e dos conceitos do
filósofo social francês Michel Foucault. Por fim, acredito que o trabalho de
Foucault proporciona maneiras de nos envolvermos com o pós-modernismo
desprovidas de alguns dos excessos que seus críticos tão prontamente apontam.
Quanto a isso, podemos explorar as possibilidades existentes para repensar a
pesquisa histórica em educação comparada, através de lentes pós-modernas
críticas, reflexivas e multi-interpretativas.

Uma história descontínua da pesquisa


histórica em educação comparada
Comparativistas contemporâneos registraram sua preocupação com a escassez
de pesquisas históricas nesse campo, desde a década de 1950 (KAZAMIAS, 2001;
SWEETING, 2005). À primeira vista é o que de fato parece ocorrer. Um estudo
das estratégias de investigação em educação comparada entre 1955 e 1994 revelou
apenas um número reduzido de artigos em revistas baseados em historiografia e
pesquisa histórica. Estudos baseados em revisões da literatura, história e
metodologia comparada dominaram o campo na década de 1960, mas os estudos
históricos e as revisões da literatura diminuíram significativamente nas décadas de
1980 e 1990 (RUST et al., 1999).
Os autores desse estudo concluem que poucos pesquisadores em educação
comparada identificam em que posição seu trabalho está situado dentro do debate
metodológico que caracterizou o campo nas décadas de 1960 e 1970. Sugerem que
os autores contemporâneos talvez não estejam cientes desses debates, por terem
pouco senso histórico do campo a que pertencem ou para o qual contribuem (RUST
et al., 1999). Essa mudança levou um analista a observar que nosso campo agora
sofre de amnésia histórica (WATSON, 1999, p. 235). Essas preocupações falam da
necessidade de ter histórias do nosso campo escritas e disponíveis, tanto para os
novos estudiosos da educação comparada como para aqueles já estabelecidos.
Algumas histórias existentes fornecem uma visão geral da pesquisa na educação
comparada e enfatizam a centralidade da perspectiva e dos métodos históricos nos
primórdios do campo (ALTBACH; KELLY, 1986; CROSSLEY; BROADFOOT,
1992; EPSTEIN, 1994; SWEETING, 1999). Esses relatos são escritos essencialmente
482 Larsen

como histórias cronológicas do desenvolvimento do campo, ao longo de um caminho


evolutivo. No entanto, como discuto mais adiante neste capítulo, há muito a dizer de
uma história que enfatiza começos, e não origens; pequenas estórias, e não
metanarrativas; e descontinuidades acima de princípios evolutivos. Dentro de nossa
própria história, houve um caos considerável, descontinuidades e não linearidades,
que tentamos ilustrar neste relato sucinto do papel dos historiadores e da pesquisa
histórica na educação comparada.
O ponto em que alguém inicia sua história é um ato de interpretação. Na
verdade, como historiadores, estamos sempre construindo o passado por meio das
estratégias narrativas que adotamos, em geral de forma intuitiva, para comunicar
nossas descobertas. Assim como outros historiadores da educação comparada,
escolho começar com Sadler, cujas palavras na virada do século passado
demonstraram claramente a necessidade de levar em conta fatores que vão além da
escola, a fim de compreender a educação.
Ao estudar sistemas de educação estrangeiros, não devemos esquecer que as coisas externas às
escolas são ainda mais importantes do que as coisas internas, e estas são governadas e interpretadas
por aquelas. [...] Um sistema nacional de educação é uma coisa viva, o resultado de lutas e
dificuldades esquecidas, e ‘de batalhas antigas’ (SADLER, 1979, p. 49-50).

Após o discurso de Sadler, em 1900, que destacava a necessidade de levar em


consideração contextos históricos, há uma longa pausa de 30 anos até o surgimento
de obras de educadores comparativistas que eram historiadores, ou que explicitamente
integravam uma perspectiva histórica em suas pesquisas. Kandel, Hans, Mallison,
Schneider e Ulich abordaram a educação comparada a partir de uma estrutura
contextual que incluía, entre outros fatores, o papel da história no desenvolvimento
de sistemas educacionais. É importante ressaltar, porém, as diferenças no modo como
cada um desses comparativistas abordou o estudo da história. Schneider, por exemplo,
rejeitou os estudos de caso nacionais, favorecidos por Kandel e Hans, e enfatizou a
noção de imanência histórica – uma espécie de tendência cumulativa ideacional e
institucional das sociedades (SCHNEIDER, 1961).
Kandel, Hans e Ulich situam-se na tradição de forças e fatores da educação
comparada. Não só escreveram sobre acontecimentos passados, como também
identificaram fatores e forças antecedentes que influenciaram formas, políticas e
práticas educacionais, e determinaram o desenvolvimento evolutivo dos sistemas
educacionais. O historiador Hans concluiu que o contexto histórico
(complementado por outras abordagens) é indispensável para qualquer
interpretação de dados comparados (HANS, 1959).
Apesar das alegações em contrário, a pesquisa comparada histórica não diminuiu
durante a década de 1960, quando se buscava uma educação comparada científica.
Como Hans, Bereday usou a história como ferramenta analítica para compreender
eventos contemporâneos. Por outro lado, em vez de tentar descobrir as causas
históricas das quais poderiam ser derivadas explicações e predições, Holmes usou
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 483

a história de forma pragmática, por meio de seu método de resolução de problemas.


Em contraste flagrante com a posição positivista de Holmes, o trabalho de King
durante o mesmo período parecia decididamente pós-moderno para a época. Em
1958, o autor escreveu:
Examinando o atual desenvolvimento tecnológico, social e educacional, supomos muitas vezes
que aconteceu uma ‘evolução’ histórica ou um crescimento contínuo. Tendemos a supor também
que níveis ou fases diferentes estão em estreita correspondência com períodos cronológicos.
Muitas vezes esquecemos que, em um dado momento de mudança considerável, vários idiomas
ou pressupostos educacionais distintos podem coexistir durante um tempo considerável. Tais
idiomas ou pressupostos nem sempre são compatíveis entre si: podem estar em conflito direto
(KING, 1958, p. 169).

Embora King afirmasse que a maioria das histórias comparadas pressupunha


crescimento contínuo e progressos no desenvolvimento educacional, Arnold C.
Anderson notou, dois anos mais tarde, em 1961, que o historicismo extremo estava
em declínio, pois os comparativistas começavam a rejeitar a orientação evolutiva
unilinear que caracterizara nossos primeiros dias. No entanto, nesse mesmo ano,
surgiu a ampla análise histórica evolutiva de Ulich, “The education of nations: a
comparison in historical perspective”. As contradições dentro da nossa história da
pesquisa comparada histórica ficam evidentes nas ambiguidades e inconsistências
identificadas na forma como os profissionais da educação comparada abordaram
o estudo do passado.
Outros relatos históricos foram publicados nas décadas de 1960 e 1970,
refletindo mais uma vez a diversidade de abordagens históricas na área.
Testemunhamos a publicação das obras de Anderson e Bowman, “Education and
economic development” (1965) e de Kazamias, “Education and the quest for
modernity in Turkey” (1966). Logo depois apareceram várias outras metanarrativas
gerais de investigação histórica, de autores como Archer, Foster e Zohlberg, Husén,
King, Paulston, Ringer e Whitehead, demonstrando o interesse contínuo na
história dentro da pesquisa da educação comparada, mesmo nos dias da ciência da
educação comparada.
Outra ruptura ocorreu em 1970, com o surgimento das teorias da
dependência, dos sistemas-mundo e neomarxistas, que levaram à realização de
outros estudos históricos, fora dos relatos anteriores na área. Durante esse período,
o trabalho comparado histórico mudou, passando a incluir a pesquisa sobre
colonialismo e imperialismo cultural. Avançando 30 anos, vemos simultaneamente
conexões e diferenças marcantes nesses estudos, em termos de perspectivas teóricas,
com o surgimento da pesquisa pós-colonial recente, também enquadrada em
contextos históricos.
Embora ao longo da década de 1970 tenha diminuído o número de artigos em
periódicos sobre educação comparada a partir de perspectivas históricas, seria um
desserviço ignorar as numerosas e abrangentes histórias da educação escritas por
484 Larsen

estudiosos da educação comparada e os relatos comparados da educação escritos


por historiadores, de 1970 até hoje. Além disso, é importante ressaltar estudos
históricos de profissionais da educação comparada publicados em periódicos de
história, além dos pontos em comum entre aqueles que trabalhavam no campo da
educação comparada e os que trabalhavam na disciplina de história (SCHUSTER,
2003). Aliás, um dos meus próprios estudos históricos comparados em educação
foi publicado em um periódico de história (LARSEN, 2002), e Cowen (2002)
escolheu a revista “History of education” para divulgar suas ideias sobre tempo
como a ideia de unidade básica da educação comparada.
Apesar de algumas demandas recentes no sentido de reintegrar e reinventar
estudos históricos na pesquisa da educação comparada (KAZAMIAS, 2001;
SWEETING, 2005), eu diria que a história nunca deixou de estar presente em
nosso campo. Apresentei um breve resumo de alguns estudos históricos da educação
comparada realizados ao longo dos últimos 75 anos, e a maioria deles reflete o
paradigma dominante da pesquisa histórica com foco em princípios evolutivos,
grandes narrativas e empenho para descobrir a verdade sobre o passado. Entretanto
as perspectivas de abordagem dos temas diferem, e nossa própria historiografia da
pesquisa histórica comparada tem sido caracterizada por suas descontinuidades e
diferenças, e por um desenvolvimento irregular.

A lógica da pesquisa histórica na educação comparada


Há inúmeras razões para continuar nossa rica tradição de pesquisa histórica no
domínio da educação comparada. Considerar contextos históricos na pesquisa de
políticas educacionais pode levar a recomendações mais inteligentes e apuradas
para a melhoria de sistemas educacionais. As análises históricas também podem
ajudar a entender melhor os sistemas educacionais estudados. Por fim, e ainda mais
importante, a pesquisa histórica permite que avancemos no sentido de desenvolver
uma melhor compreensão de nós mesmos e do mundo.
O uso do método histórico na educação comparada por pessoas como Kandel,
Schneider, Hans e Ulich destinava-se a aumentar a compreensão do
desenvolvimento e da situação atual dos sistemas educacionais. Hans argumentou
que diferenças de posturas confessionais, aspirações nacionais ou daquilo que
denominou caráter nacional estão profundamente situadas no passado, e às vezes,
inconscientemente, determinam nosso presente. Somente por meio de uma
investigação histórica é que podemos “trazê-las à superfície, iluminar sua
potencialidade na vida cultural das nações, e tornar a educação comparada
realmente educativa” (HANS, 1959, p. 307).
Hans seguia o exemplo de Kandel ao adotar uma abordagem histórico-funcional
para o estudo da educação comparada. Segundo Kandel, os comparativistas devem
examinar as causas que explicam as diferenças entre os sistemas nacionais de
educação. Na introdução de seu livro de 1933, escreveu:
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 485

Para entender, apreciar e avaliar o real significado do sistema educacional de uma nação, é essencial
conhecer um pouco de sua história e de suas tradições, das forças e atitudes que regem sua
organização social, das condições políticas e econômicas que determinam seu desenvolvimento
(KANDEL, 1933, p. xix).

Embora a abordagem “forças e fatores” de Kandel objetivasse facilitar maior


compreensão dos sistemas educativos, tinha também características de meliorismo
(KAZAMIAS, 1971). Foi o que ocorreu na maioria dos estudos de pesquisa
histórico-comparada, mesmo em nossos dias. Sob essa luz, especialistas em
educação comparada foram solicitados por agências internacionais, e diferentes
níveis governamentais, a sugerir melhorias para os sistemas educacionais.
Entretanto, a maior parte dessa pesquisa é desprovida de contexto histórico.
Embora grande parte da pesquisa ligada à formulação de políticas enfrente
restrições de recursos e de tempo – o que resulta em análises históricas de pouca
profundidade –, pode-se dizer que precisamos de abordagens históricas para
desenvolver políticas sensíveis a preocupações locais culturais, sociais e econômicas.
Assim, Watson afirma que
a experiência histórica comparada do que se tentou em outros lugares, e que foram bem ou mal-
sucedidas [...] é raramente mencionada nas recomendações para a formulação de políticas, muitas
vezes com consequências deploráveis. Há um verdadeiro desafio para a educação comparada, no
sentido de restabelecer seu papel singular no fornecimento de insights históricos comparados para
uma futura ação na formulação de políticas (WATSON, 1999, p. 235).

Embora a reintegração dos métodos históricos na pesquisa em educação


comparada possa ser útil para a resolução de problemas e para a formulação de
políticas, há quem tenha identificado problemas nessa orientação. É preciso cautela
ao misturar a abordagem “o que é”, de natureza descritiva, com uma abordagem
“o que deveria ser”. O historiador da educação comparada Kazamias (1971) sugere
a necessidade de investigar o que constitui o problema, com a maior objetividade
e isenção possíveis, antes de começar a dedicar-se ao “deveria”. Assim, a tarefa do
historiador não deve ser prescrever, e sim descrever e iluminar certos fenômenos.
Embora a educação comparada tenha sido utilizada como ferramenta de
explicação, previsão e investigação científica, concordo que o nosso campo deveria
ser mais interpretativo. Podemos e, acredito, devemos usar a história para esclarecer
determinados eventos, contextualizar análises e, o que é ainda mais importante,
compreender e problematizar não apenas as práticas e os sistemas educacionais,
mas o próprio mundo. De fato, para que a educação comparada se afaste de
propostas prescritivas de formulação de políticas para buscar uma compreensão
genuína – ou Verstehen –, precisamos reconsiderar a abordagem idiográfica de
Sadler (EPSTEIN, 1994). Precisamos ir além da ideia de que a tarefa da pesquisa
comparada é compreender os sistemas educacionais, para pensar de que modo
nosso trabalho nos permite ler o mundo (COWEN, 2000, p. 334). Nesse sentido,
486 Larsen

há muito a aprender com a pesquisa histórica. Como Bloch escreveu em “The


historian’s craft” (1964), o que anima a história não é o amor ao passado, que é a
especialidade do antiquário, mas uma paixão pelo presente. É essa “faculdade de
compreender o que está vivo [que] constitui, na verdade, a qualidade mestra do
historiador” (BLOCH, 1964, p. 43). A questão é como isso pode ser feito sem
deixar de levar em conta as críticas do pós-modernismo contra a pesquisa histórica
tradicional, que descrevemos a seguir.

As críticas pós-modernas à história


O pós-modernismo é um terreno de contestação entre aqueles que o definem
e ocupam e aqueles que o desacreditam ou destroem. A disciplina da história tem
participado ativamente nesses debates por muitas décadas. Já em 1930, Beard e
Becker, historiadores norte-americanos progressistas, desafiaram a ideia de
compromisso da história com a objetividade, com o seguinte argumento: se cada
indivíduo tem sua própria versão da história, a história funciona como um mito
cultural, e não como um relato objetivo do passado. Para eles, o ideal de uma
reconstrução objetiva e definitiva do passado era utópico. Os fatos não se
apresentavam diretamente ao historiador, pelo contrário: guiados por seus
pressupostos ideológicos, os historiadores eram seletivos na escolha entre os fatos,
o que tornava impossível que escapassem do domínio dos problemas práticos do
presente ao determinar seus interesses, valores e pressupostos. Essa relação dos
historiadores com o presente impedia que abordassem o passado com objetividade,
ou mesmo que chegassem a conhecê-lo tal como realmente era (BEARD, 1983;
BECKER, 1983).
O debate sobre o status científico do estudo da história continuou entre os
filósofos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha durante as décadas de 1940 e 1950.
A discussão ressurgiu em 1988, com a publicação de “That noble dream: the
‘objectivity question’ and the American historical profession”, de Peter Novick,
em que o autor concluiu que a objetividade não somente é uma ilusão, mas também
um conceito essencialmente confuso (NOVICK, 1988).
Na entrada do século XXI, os discursos do pós-modernismo, do pós-
estruturalismo e do pós-colonialismo continuam a desafiar a tentativa da história
de seguir a meta de Heródoto – “registrar a verdade sobre o passado”. Os
historiadores reagiram de maneiras diferentes às incursões pós-modernas em sua
área. Alguns viram os desafios pós-modernos como uma ameaça à própria existência
da história como disciplina intelectual, e consideram-se defensores da história
contra o ataque relativista do pós-modernismo (por exemplo, HIMMELFARB,
1997; ROBERTS, 1998). Outros, embora levem em consideração as contribuições
pós-modernas para o campo da história, mantêm um compromisso com a busca
objetiva da história pela verdade (por exemplo, APPLEBY; HUNT; JACOB, 1995;
EVANS, 1997). Por fim, alguns historiadores e historiógrafos abraçaram o pós-
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 487

modernismo em diferentes graus, em razão das novas e excitantes oportunidades


que oferecia para sua disciplina (por exemplo, ANKERSMIT; KELLNER, 1995;
BERKHOFER, 1997; POSTER, 1997).
Alguns pós-modernistas identificaram o fim da história com o fim das
metanarrativas e das formas tradicionais do saber. Foucault, Baudrillard, Lyotard,
Derrida, Deleuze, Barthes, Bourdieu e, até certo ponto, Lacan e Althusser
demonstram em seu trabalho a ideia de que a modernidade está chegando ao fim
e que algo novo está surgindo (POSTER, 1997). Quanto a isso, ao contrário de
modernistas como Fukuyama, que também proclamam o fim da história, esses
autores expressam um argumento pós-moderno ou pós-estruturalista de fim da
história. No campo da historiografia contemporânea, Jenkins (1997) sintetiza essa
abordagem. Em sua introdução ao “Postmodern History reader”, o autor escreve:
[O] conjunto inteiro da História/história modernista aparece agora como uma expressão
problemática e autorreferente de interesses, um discurso ideológico-interpretativo sem qualquer
acesso não historicizado ao passado como tal. Na verdade, a história agora parece ser apenas mais
uma expressão colocada sem fundamento em um mundo de expressões colocadas sem
fundamento (JENKINS, 1997, p. 6).

Para Jenkins, não se trata tanto do fim da história como tal, mas de um fim da
grande história narrativa e da história mais familiar produzida por historiadores
acadêmicos.
Outros não foram tão longe a ponto de anunciar o fim da história, mas veem
a disciplina como fundamentalmente falha. Alguns criticaram a tentativa da história
tradicional ou “normal” de fornecer algum tipo de representação e compreensão
reais do passado (BERKHOFER, 1997). De fato, em lugar da história tradicional,
o pós-modernismo considera que o passado não pode ser objeto de um
conhecimento histórico; ou, mais especificamente, que o passado não é, e nunca
poderá ser, referencial de afirmações e representações históricas.
Assim como os historiadores tradicionais, os novos historiadores sociais,
incluindo aqueles que fazem parte do movimento conhecido como Escola dos
Annales, veem o historiador como um conhecedor estável de um mundo objetivo,
por meio do qual a verdade é vista como a relação não mediada do historiador com
o passado. A crítica de Poster (1997) ao trabalho tanto da “velha” história político-
intelectual como da “nova” história social demonstra de que maneira ambas ainda
buscam alcançar a verdade sobre o real. Assim como outros historiadores pós-
modernos, Poster baseia-se amplamente nas ideias de Foucault – o historiador
francês que ofereceu uma crítica abrangente da história como disciplina.

O que podemos aprender com Foucault?


Foucault critica a história tradicional como disciplina ou, recorrendo aos termos
que o autor utiliza alternadamente, “total” ou “contínua”, por concentrar-se em
488 Larsen

princípios dominantes que regem o desenvolvimento de uma época; por sua


preocupação com noções como evolução, desenvolvimento, espírito da época ou
mentalidade de uma tradição de civilização; pela ênfase em continuidade, seriação
e periodização histórica; e pela concepção do tempo em termos de totalização. Para
Foucault, o projeto da história total é:
Procurar reconstituir a forma geral de uma civilização, o princípio – material ou espiritual – de
uma sociedade, o significado comum a todos os fenômenos de um período, a lei que explica a
coesão entre tais fenômenos – o que é chamado metaforicamente ‘a face’ de um período
(FOUCAULT, 1972a, p. 8).

Além disso, o foco teleológico da história total significa que ela tenta estabelecer
uma ligação direta entre as origens e o presente, a fim de legitimar o presente como
uma continuação do passado.
A abordagem histórica conhecida como arqueologia foi desenvolvida por
Foucault em uma série de escritos anteriores, como uma alternativa à história total
(FOUCAULT, 1972a, 1972b, 1986). O conceito de discurso, definido por
Foucault (1972b) como sistemas de enunciados cuja organização é regular e
sistemática, constituída por tudo o que se pode dizer e pensar sobre um tema
específico, e também quem tem permissão para falar, e com que autoridade, é
central para a arqueologia. A arqueologia envolve a descrição de enunciados
recorrentes, entendidos como unidades ou partes do conhecimento, encontradas
no arquivo relacionado a um assunto ou a um tema.
O processo de análise de textos para encontrar enunciados recorrentes sobre
determinado assunto ou tema é um aspecto do método arqueológico. Assim sendo,
a investigação arqueológica envolve determinar se uma declaração atende ou não a
um conjunto de condições que permitem considerá-la um exemplo de um discurso
específico. Essas condições são regras, relações e padrões que conectam, relacionam
e dividem o que pode ser dito e repetido sobre um tópico (por exemplo, em “The
order of things”, de 1986, Foucault procura analisar as regras de formação que
regulamentaram o surgimento das ciências humanas). Portanto, a descrição pode
permitir que o historiador, como arqueólogo, estabeleça um modelo teórico aberto
para entender regras, relações e procedimentos entre dois ou mais enunciados. Essa
ênfase no modo como o conhecimento é organizado ou sistematizado faz do
discurso uma ferramenta analítica.
Ao analisar um grupo de enunciados unificados por um tema comum, a
pesquisa arqueológica não procura atenuar as aparentes diferenças, aberrações e
incoerências entre eles. Foucault adverte que o arqueólogo não deve forçar a
unidade e a coerência de um grupo de enunciados. Pelo contrário: a arqueologia
envolve o processo de estudar formas de divisão e dispersão. Foucault (1972a)
explica que esse processo não é uma tentativa de localizar o significado oculto de
contradições em documentos.
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 489

Na análise arqueológica, as contradições não são aparências a superar, nem princípios secretos a
descobrir. São objetos a descrever por si mesmos, sem qualquer tentativa de descobrir a partir de
que ponto de vista podem ser dissipadas, ou em que nível podem ser radicalizadas, seus efeitos
passando a ser causas (FOUCAULT, 1972a, p. 151).

A partir daí, pode-se ver que a arqueologia envolve o processo duplo de tentar
localizar unidade e coesão e, simultaneamente, desestabilizar essa mesma unidade.
Destacam-se as descontinuidades, divisões e rupturas, abrindo espaços para uma
análise mais cuidadosa do modo como uma série de enunciados passa a ser um
objeto de discurso reconhecível. Como procurei demonstrar no relato acima sobre
a pesquisa histórica em educação comparada, a descontinuidade passa a ser um
problema a investigar. Foucault (2000) explica:
A história torna-se ‘eficaz’ à medida que introduz a descontinuidade em nosso próprio ser, à
medida que divide nossas emoções, dramatiza nossos instintos, multiplica nosso corpo e compara-
o a si mesmo. A história eficaz [...] vai desarraigar suas bases tradicionais e abalar implacavelmente
sua pretensa continuidade (FOUCAULT, 2000, p. 380).

Como eventos, as descontinuidades são os momentos de interrupção do curso


normal das coisas. Ao contrário do historiador tradicional ou social, que procura
situar e ordenar eventos em um padrão contínuo e linear, a fim de entender as leis
ou os fenômenos históricos, a pesquisa arqueológica expõe essas interrupções.
A arqueologia aponta para a especificidade de cada momento ou período no
tempo. Cada período histórico é visto como diferente do nosso, mas não
necessariamente melhor ou pior que o presente, como Foucault demonstrou em
seu livro “Loucura e civilização”, no qual inverte a narrativa tradicional da loucura
e de seu tratamento, e mostra como a situação atual não é nem melhor nem pior
que a do passado. Em seu exame das formas como o tratamento da loucura foi
alterado, Foucault não procurou encontrar algum significado essencial original da
loucura, mas a forma como a ideia da loucura foi reinventada em épocas e lugares
específicos da história, com propósitos diversos.
Cada momento no tempo é considerado em sua própria especificidade, e
descrito sem qualquer tentativa de estabelecer uma conexão, segundo um padrão
de desenvolvimento linear, entre esse momento e o que aconteceu antes e depois
dele. Segundo Foucault, esse processo implica cultivar “os detalhes e acidentes que
acompanham cada começo”, para que o historiador possa “reconhecer os
acontecimentos da história, seus solavancos, suas surpresas, suas vitórias instáveis
e suas amargas derrotas” (FOUCAULT, 2000, p. 369-392).
Ao enfatizar a especificidade de cada momento no tempo e no espaço, os
acontecimentos históricos são descritos como contingentes, o que significa que o
aparecimento de qualquer evento em particular não foi necessário, mas apenas um
resultado possível de uma série de relações complexas entre outros eventos. Pensar
em termos causais privilegia o determinismo, em que, por si só, a existência de
490 Larsen

certos fatores leva diretamente a certos resultados, ou os determina. Esse tipo de


pensamento traz o foco correlativo em previsibilidade e inevitabilidade. Se é possível
determinar que certos eventos inevitavelmente causam ou determinam a ocorrência
de outros, o historiador, na condição de cientista social, pode prever a eventualidade
ou a probabilidade de ocorrência de um evento similar, desde que as condições
corretas sejam cumpridas. Em vários aspectos, essa foi a forma de pensar que
caracterizou boa parte da pesquisa em educação comparada, especialmente em suas
manifestações internacionais e voltadas para a formulação de políticas.
Uma análise das condições, em vez das causas, elimina o caráter inevitável do
modo como ocorrem os eventos no tempo e no espaço. Entender o modo como
determinado discurso surgiu a partir de uma série de condições significa que nada
há necessariamente inevitável no desenrolar de acontecimentos históricos. Esse tipo
de pesquisa histórica é menos certo e previsível, e reconhece a possibilidade de uma
série de ideias e práticas diferentes que surgem em um dado momento e em um
dado lugar. Ao pensar a história em termos de condições para a possibilidade, a
preocupação não é explicar por que as pessoas começam a pensar, falar e escrever
de novas maneiras sobre tópicos ou temas educacionais. Na verdade, é o foco de
atenção que se desloca para o modo como foi possível o surgimento de novas ideias
e práticas e a invenção de novas verdades.
Aqui podemos falar sobre a força produtiva do discurso para a construção de
verdades sobre práticas, sistemas e atores educacionais, por exemplo. Essa concepção
do discurso distancia-se de uma abordagem linguística concentrada exclusivamente
na linguagem como constitutiva da verdade, e aproxima-se de uma análise da
relação entre práticas disciplinares (tecnologias) e disciplinas (corpos de
conhecimento). Como prática, o discurso cria objetos e, ao criá-los, determina sua
natureza. Em outras palavras, os objetos determinam nosso comportamento, mas
nossa prática determina, em primeiro lugar, seus próprios objetos. Uma vez que
não há coisas, apenas práticas sociais, precisamos entender em que sentido a
linguagem, ou o discurso, fala por nosso intermédio.
A noção de prática não é misteriosa nem vaga. Segundo o historiador Paul Veyne,
Foucault procura ver as práticas das pessoas como realmente são: coisas que as pessoas
fazem. A diferença é que o autor fala sobre a prática “exatamente”, e não diz:
‘Descobri uma espécie de inconsciente histórico, um agente pré-conceitual, que chamo de prática
ou discurso, e que fornece a explicação real para a história. Sim, mas como é que eu vou conseguir
explicar esse próprio agente e suas transformações?’ Não: ele está falando sobre a mesma coisa de
que falamos – por exemplo, a condução prática de um governo –, mas, ao remover seus véus, a
revela como realmente é (VEYNE, 1997, p. 156).

Ideias são apenas correlações de práticas correspondentes, e é essa mudança para


a noção de prática e efeitos do discurso que é tão poderosa nas histórias de Foucault.
Por fim, a história arqueológica de Foucault é uma história do presente, não
por que compreender um presente ideal é o que estimula a investigação, mas porque
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 491

a história pode ser usada como meio para diagnosticar o presente. A melhor
maneira de alcançar a compreensão do presente como histórico é um processo de
tornar o passado estranho. Assim, talvez a melhor justificativa para dedicar-se à
pesquisa histórica é o fato de que ela nos permite alterar e rearranjar coisas que
reconhecemos como certas. Foucault afirmou que, quando usamos a história, não
devemos permitir que essa história chegue ao fim e repouse confortavelmente em
sua estranheza; pelo contrário, devemos tentar “usá-la, deformá-la, fazê-la gemer e
protestar” (FOUCAULT, 1980, p. 54).
Apresentando histórias que muitas vezes se opõem aos pressupostos que
aceitamos como verdadeiros acerca do passado, Foucault desafia nossos preconceitos
sobre história e pesquisa histórica. O presente parece muito mais inquietante na
medida em que Foucault tenta não demonstrar as semelhanças entre o passado e o
presente, mas as diferenças entre ambos. Em seu trabalho, procura isolar momentos
passados de diferença ou estranheza, para desestabilizar nosso momento presente
e “atenuar o senso de naturalidade e legitimidade que envolve as convenções de
hoje” (POSTER, 1997, p. 28).
Pode parecer difícil entender alguns conceitos de Foucault, como discurso,
arqueologia e genealogia, por serem tão pouco familiares e distantes dos
procedimentos normais da história como disciplina. No entanto, Poster explica:
Quando os véus do estranhamento são arrancados, ainda que brevemente, pode-se ver que seu
projeto de fato faz sentido e oferece uma nova noção do que poderia ser a história intelectual. Os
textos do passado podem ser vistos sem recorrer ao assunto, e podem revelar um nível de
inteligibilidade que lhes é próprio. O problema da leitura de Foucault não é o fato de sua escrita
ser abstrata, ou de seu estilo ser evasivo [...] É o fato de falar a partir de um lugar que é novo e
estranho, e talvez ameaçador (POSTER, 1997, p. 143).

Considerações finais
Assim como na história como disciplina, o campo da educação comparada
requer metodologias, estratégias e mapas cognitivos novos para que cheguemos ao
próximo século. Paulston afirmou que devemos nos tornar cartógrafos sociais, para
podermos, de forma reflexiva, sair de diferentes constructos da realidade ou de
maneiras de ver diferentes, ou entrar neles. Segundo o autor, os comparativistas
que aprendem a negociar [...] os novos espaços de conhecimento [...] terão oportunidades sem
precedentes para imaginar e ajudar a moldar uma educação internacional comparada interativa
pós-moderna que extrapola nosso entendimento atual (PAULSTON, 2000, p. 363).

Temos muito a aprender com a diversidade de abordagens históricas que


comparativistas antigos e contemporâneos adotaram em suas pesquisas. Temos
muito a aprender também com historiadores que se engajaram ativamente nos
desafios que os “pós-” representam para sua disciplina. E em particular, eu diria
492 Larsen

que Foucault oferece uma abordagem instigante e poderosamente pós-moderna


dos estudos históricos – uma abordagem que valoriza a pesquisa em educação
comparada. De fato, a atração dos escritos históricos, metodológicos e
epistemológicos de Foucault provém do fato de oferecerem uma ponte teórica entre
ideias e práticas, e novas formas de compreensão do passado e do nosso presente.
Dentro das discussões mais amplas sobre o futuro da educação comparada,
afirmo que existem múltiplas opções metodológicas e epistemológicas para todos
os pesquisadores da educação comparada. No congresso da Cies de 2000, sentados
lado a lado no mesmo painel de especialistas, Rolland Paulston encorajou-nos a usar
nossa imaginação para vislumbrar novas formas espaciais, visuais e discursivas de
verdade, e Andreas Kazamias proclamou que precisamos reinventar o histórico na
educação comparada para entender melhor o mundo. Embora de início essas duas
abordagens pareçam divergentes, não é o caso. Temos muito a ganhar ao desafiar as
barreiras que limitam o diálogo e o debate mais amplos. A educação comparada
pode beneficiar-se da adoção imaginativa de uma postura pluralista, de estratégias
multi-interpretativas e de um ceticismo geral com relação às metanarrativas
totalizantes que o pós-modernismo traz para a tradição científica social.
Como foi observado anteriormente, alguns expressam reservas sobre as
mudanças ocorridas dentro de nosso campo no sentido do pós-modernismo. O
argumento utilizado é que, ao abraçar novas tendências populares, ameaçamos a
estabilidade dos limites do nosso campo e rejeitamos nossas melhores práticas do
passado. No entanto, os limites de nosso campo nunca foram estáveis e fixos, e não
há nenhuma razão para que o pós-modernismo nos force a abandonar nossas
melhores práticas, incluindo o trabalho histórico de comparação. Podemos
continuar a pesquisa histórica, mas não há necessidade de retornar às histórias
educacionais de inspiração modernista de nosso passado. Por que não arriscar uma
pesquisa histórica em educação comparada dentro de uma estrutura pós-moderna?
Como Cowen observou,
em vez de um convite aceitável para escapar dele rumo ao lúdico ou ao niilista, o intersticial ou
o desesperador [...], a literatura sobre o pós-modernismo e a pós-modernidade lembra-nos de
maneira muito convincente das possibilidades da tragédia e do caos, e convida-nos a manter
distância de nossa confiança anterior sobre as possibilidades de saber com certeza (COWEN,
1999, p. 80).

A obra histórica e metodológica de Foucault é um trabalho de vanguarda e


fornece meios fundamentais através dos quais podemos nos engajar em pesquisa
histórica. Ao adotar estratégias de investigação arqueológica, por exemplo, podemos
entender melhor os efeitos discursivos que as práticas de sala de aula, da escola e
das comunidades exercem sobre os alunos, seus pais e seus professores. Em uma
estrutura pós-moderna, existe também muito mais a aprender com a teorização
pós-colonialista para problematizar os legados do colonialismo. Além disso,
identificar as maneiras como os enunciados produzem identidades do sujeito pode
Educação comparada, pós-modernidade e pesquisa histórica 493

ajudar na pesquisa histórica sobre a construção de gênero, raça e do Outro, dentro


de contextos educacionais.
Foucault pode ajudar-nos a repensar a forma como vimos o passado e suas
relações com o nosso presente, ao invés de nos fornecer respostas prescritivas sobre
o que fazer no futuro. Segundo Rorty, a obra de Foucault
exibe as consequências inesperadas e dolorosas da tentativa de nossos antepassados de fazer a
coisa certa, ao invés de explicar a inadequação dos conceitos de nossos antepassados com relação
ao vasto objeto que eles e nós tentamos compreender (RORTY, 1995, p. 225).

Ao escrever sobre antepassados, Epstein e Carroll afirmam que as incursões


pós-modernas em nosso campo são um insulto aos ancestrais históricos da
educação comparada, e que alguns pensadores pós-modernos estão simplesmente
“ofendendo nossos antepassados” (EPSTEIN; CARROLL, 2005). Discordo
totalmente dessas conclusões. Propor que nos envolvamos com ideias e conceitos
pós-modernos não é mais insultante aos nossos antepassados do que a sugestão
de envolvermo-nos com pesquisa etnográfica ou quaisquer outros métodos de
investigação diferentes daqueles adotados pelos primeiros adeptos da educação
comparada. Além disso, é um exagero acusar pós-modernistas como Foucault de
insultar-nos. Com efeito, ao nos permitirmos, como pesquisadores da educação
comparada, considerar os potenciais do pós-modernismo em nossa investigação
histórica, honramos nossos ancestrais, que se valeram de uma multiplicidade de
abordagens em suas pesquisas, e honramos os antepassados pós-modernos que
ousaram fazer história de maneira diferente.

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67

ASPECTOS DA TRANSFERÊNCIA EDUCACIONAL

David Phillips

A definição, o propósito e os métodos da educação comparada sempre


provocaram muita polêmica e muita discordância. No entanto, em um aspecto existe
consenso: um dos objetivos da pesquisa comparada em educação deve ser a intenção
de aprender com a experiência estrangeira, identificar aspectos do provimento da
educação em outros lugares que possam servir como lições para a situação local, e
que poderiam ser tomados como empréstimo ou copiados, imitados, importados,
apropriados – o vocabulário é tão variado quanto problemático, por várias razões –,
e possibilitar, nas palavras de Michael Sadler, “melhores condições para compreender
nosso próprio [sistema]” (SADLER, 1900 apud HIGGINSON, 1979).
A ideia de empréstimo ou transferência de políticas e práticas de outros lugares
tem sido um tema constante – ora adotado entusiasticamente, ora descartado como
uma noção simplista –, desde os primórdios da investigação comparada em educação.
Neste capítulo, tratarei dos modos como as noções de transferência de políticas
se desenvolveram, e como foram analisadas no decorrer dos últimos 200 anos. Farei
referência ao empréstimo de políticas, significando a “adoção consciente, em um
determinado contexto, de políticas observadas em outro” (PHILLIPS; OCHS,
2004a, p. 774). Assim sendo, empréstimo é entendido como um fenômeno
deliberado e proposital no desenvolvimento de políticas educacionais. Nesse sentido,
o empréstimo é parte da transferência educacional, que pode englobar uma
variedade de possibilidades para a movimentação de ideias e práticas (ver Figura 2).
Inicialmente, considerarei o lugar do empréstimo no trabalho de algumas
personalidades fundamentais no desenvolvimento da educação comparada desde o
início do século XIX. A seguir, descreverei alguns exemplos de empréstimo durante
um longo período histórico e em diversos contextos. Em seguida, delinearei parte da
pesquisa recente mais significativa ligada a esse campo geral de investigação em
educação comparada. Por fim, abordarei alguns desenvolvimentos, presentes e futuros.

Empréstimo (transferência)
Em seu Plano para a Educação Comparada, de 1816/17, Marc-Antoine Jullien
tinha como objetivo implícito identificar práticas que poderiam ser transferidas de
um sistema para outros:

497
498 Phillips

Poderíamos facilmente julgar as [nações europeias] que estão avançando, aquelas que estão
regredindo e aquelas que permanecem estacionadas; quais são, em cada país, os setores deficientes
e os problemáticos; quais são as causas de deficiências internas observadas; ou quais são os
obstáculos para a ascendência da religião, da ética e do progresso social, e como esses obstáculos
podem ser superados; por fim, que áreas oferecem avanços que podem ser transpostos de um país
para outro, com as modificações e alterações que forem consideradas adequadas para as
circunstâncias e locais (FRASER, 1964, p. 37).

Essa aspiração, de cunho curiosamente moderno, lembra-nos, incidentalmente,


as informações reunidas pelos levantamentos apresentados no relatório “Panorama
da educação”, da OCDE, e do uso que pode ser feito dos dados do Pisa.
Se avançarmos algumas décadas, podemos ver no trabalho de Matthew Arnold,
como inspetor escolar, muito do que conduziria a noções de empréstimo. Em seus
diversos textos, fica evidente que encontrou muitos aspectos a recomendar na
educação oferecida na Prússia, e principalmente na França. O autor confiava no
uso que poderia ser feito de suas descobertas:
Em uma carta de abril de 1868, ele escreveu: ‘espero, com o tempo, convencer as pessoas de que
minha preocupação não é, de maneira alguma, importar este ou aquele mecanismo estrangeiro,
seja ele francês ou alemão, mas apenas conseguir suprir algumas deficiências inglesas’ (MURRAY,
1997, p. 240).

O ceticismo de Arnold sobre a importação educacional reflete-se em um


comentário de Mark Pattison, acadêmico de Oxford e reitor do Lincoln College,
em um relatório sobre a educação na Alemanha feito para uma comissão do
governo, em 1861 (na mesma época, Arnold escrevera sobre a França):
A utilidade do [...] estudo sobre um sistema estrangeiro não depende da questão: as escolas
primárias ou profissionalizantes da Alemanha são melhores que as nossas? Mas as mesmas
dificuldades com que nos deparamos no caminho rumo a uma educação nacional tiveram de
ser enfrentadas em diversos lugares da Alemanha, porém em condições tão alteradas e tão
infinitamente variadas a ponto de poder proporcionar uma lição das mais instrutivas... Neste
país, é pouco provável que pequemos por excesso ao imitar apressadamente modelos estrangeiros,
ou adotar os usos de um país vizinho, esquecendo que o fato de ser bem-sucedido em outro
lugar não garante que irá adaptar-se ao nosso ambiente. O melhor é que todos aqueles que
tenham quaisquer informações para dar sobre sistemas estrangeiros sejam chamados a apresentá-
las, não como precedentes a serem seguidos, mas como material para deliberação (PATTISON,
1861, v. 4, p. 68).

Nenhuma análise sobre os primeiros comparativistas e suas visões sobre o


empréstimo educacional estaria completa sem lembrar a tão citada fala de Michael
Sadler em 1900:
Ao estudar sistemas educacionais estrangeiros, não devemos esquecer que o que ocorre fora das
escolas é ainda mais importante do que aquilo que ocorre dentro delas, e as coisas externas
governam e interpretam as coisas internas. Não podemos passear pelos sistemas educacionais do
mundo, como uma criança em um jardim, colhendo uma flor aqui e umas folhas acolá, e então
Aspectos da transferência educacional 499

esperar que, se fincarmos na terra o que colhemos, teremos uma planta viva. Um sistema nacional
de educação é uma coisa viva, o resultado de lutas e dificuldades já esquecidas e ‘de batalhas do
passado’. Traz dentro de si algo do funcionamento secreto da vida nacional. Ao mesmo tempo
em que busca remediá-las, reflete as falhas do caráter nacional. De maneira instintiva, muitas
vezes, confere ênfase especial aos aspectos de treinamento de que o caráter nacional necessita
especificamente. Também por instinto, frequentemente evita destacar pontos relacionados com
dissidências amargas originárias de períodos anteriores da história nacional (SADLER, 1900 apud
HIGGINSON, 1979, p. 49).

Assim sendo, entre Julien e Sadler, os objetivos mudaram de crença racional na


noção de transferência educacional para um ceticismo equilibrado sobre as
possibilidades (com ênfase em questões pontuais do contexto) e um desejo explícito
de usar o exemplo estrangeiro como meio para entender melhor um sistema
doméstico. A compreensão assim produzida possibilitaria mudanças que levassem
em conta o contexto doméstico. O exemplo estrangeiro poderia ser usado como
argumento na discussão de políticas, como Zymek demonstrou em um estudo
prolífico de 1975 – um tema posteriormente desenvolvido por Gonon, em 1998.
A transferência foi um tema tratado com frequência por alguns dos mais
importantes nomes da educação comparada da segunda metade do século XX,
entre os quais Brian Holmes e Edmund King.
Ao delinear seu método chamado abordagem de solução de problema, Holmes
fala de empréstimo cultural e da força da investigação comparada como
instrumento de reforma educacional. Na tentativa de “antecipar ou prever os
resultados de políticas”, o comparativista desejará identificar o “problema universal
e vagamente percebido, para conceitualizá-lo (ou analisá-lo) em seus termos gerais,
e depois revelar suas características específicas em contextos escolhidos”
(HOLMES, 1965, p. 34-35). A revelação dessas características não levaria a tomá-
las emprestadas diretamente, mas facilitaria a previsão de reformas potenciais
baseadas em sua análise. Em um estudo posterior, Holmes pergunta se o
“empréstimo cultural seletivo justifica-se teoricamente e se é factível na prática”
(HOLMES, 1981, p. 33). Acredita que há valor em “modelos ideais típicos à luz
dos quais é possível analisar um choque de culturas”, e argumenta em favor de
“padrões normativos adequados que permitirão ponderar todos os resultados e
valores educativos das inovações, além de permitir prever os resultados de políticas
em circunstâncias conhecidas” (HOLMES, 1981, p. 33-34). Na abordagem de
Holmes está implícita a rejeição dos métodos associados a tentativas de empréstimo
cultural, a menos que os processos envolvidos auxiliem na identificação de
princípios gerais nos quais uma predição possa ser baseada.
Emund King discordava de Holmes quanto à predição, e preferia pensar em
termos de hipóteses. A própria maneira como King viria a formular os problemas
indica uma abordagem fundamentalmente diversa. Ao escrever sobre empréstimo,
o autor fala em termos de “exemplos vivos [...] em outros lugares, que podem ser
encontrados em circunstâncias similares. Ou podem dar alguma indicação da razão
500 Phillips

pela qual práticas aparentemente comparáveis não produzem os resultados


esperados” (KING, 1968, p. 87). Assim, o exemplo estrangeiro ajuda a explicar,
informar e fornecer uma base para investigação, em vez de fornecer formas de
previsão obtidas cientificamente.

Perspectivas históricas
Como assinalei, seria um equívoco encarar o empréstimo como uma fase
ingênua pela qual passaram os estudos comparados, pertencente apenas aos estágios
1 e 2 da sequência de cinco estágios que Noah e Eckstein propuseram para o
desenvolvimento do tema.
Lembramos que o primeiro estágio de Noah e Eckstein representa o tempo em
que os viajantes traziam narrativas sobre o que tinham observado. Tais relatos
constituíam as “observações […] mais primitivas”, que resultavam da curiosidade
e enfatizavam o exótico, de maneira a produzir forte contraste com a norma
doméstica: “são poucos os observadores capazes de extrair conclusões sistemáticas
com valor elucidativo a partir de uma massa de impressões relatadas de maneira
indiscriminada” (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 5). Por exemplo, viajantes
britânicos e de outras origens que se encaixam no primeiro estágio de Noah e
Eckstein visitaram a Prússia, movidos pela curiosidade cultural e intelectual, e
constituíram um grande grupo de comentaristas com trabalhos bastante
heterogêneos em termos de qualidade.
O segundo estágio inclui viajantes cujas pesquisas tinham foco educacional.
Esses visitantes tinham como propósito aprender com um exemplo estrangeiro e,
com isso, ajudar a melhorar as circunstâncias em seus países. Contudo, seus relatos
raramente eram elucidativos: tendiam a concentrar-se em “descrições enciclopédicas
de sistemas escolares estrangeiros, eventualmente animadas aqui e ali com casos
curiosos” (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 5).
Porém, outra maneira de examinar as fases e os estágios no desenvolvimento da
investigação comparada é descrever, como Michele Schweisfurth e eu tentamos
fazer, um “encadeamento sequencial dos tópicos enfatizados, começando por alguns
pontos históricos definidos de maneira ampla, e prosseguindo no sentido das
ênfases já existentes, embora modificando-as de diversas maneiras”. Esse aspecto
está ilustrado na Figura 1.
Esta “cadeia de desenvolvimento” (PHILLIPS; SCHWEISFURTH, 2006, p. 28)
começa com um período que se limita sobretudo à descrição, como vista nas
narrativas de viajantes encontradas em muitos dos primeiros relatos sobre as condições
políticas e sociais em outros países. Em seguida, contempla um momento de
sobreposição, em que os observadores tinham em mente um propósito político claro
em suas investigações, um desejo de influenciar o debate sobre políticas nos seus
países e de sugerir aspectos do provimento educacional de outros lugares que
poderiam ser tomados emprestados. Um exemplo dessa abordagem seria o trabalho
Aspectos da transferência educacional 501

de William Howitt (1792-1879) sobre a Alemanha, cujo objetivo era dissuadir seus
leitores britânicos de adotar a noção de controle da educação pelo Estado: “o espírito
livre da Inglaterra e os interesses particulares nunca permitirão que aqui, como
acontece na Alemanha, o governo assuma a responsabilidade pela educação,
regulamente-a e imponha a educação de todas as classes da comunidade” (HOWITT,
1844, p. 310). O terceiro grande desenvolvimento veio com avanços na coleta de
dados estatísticos, o que possibilitou uma análise mais sofisticada das condições
socioeconômicas e de sua relação com o provimento educacional. Os governos
alemães, em especial, eram adeptos da coleta de dados estatísticos; o estabelecimento
do Gabinete de Investigações e Relatórios Especiais (Office of Special Inquiries and
Reports), de Michael Sadler (1895), em Londres, possibilitou a produção de relatos
fidedignos sobre a educação em outros países, com base em alguma coisa que se
aproximava de evidências científicas. Ao mesmo tempo, como descrito na Figura 1,
continuaram os relatos dentro de outras tradições. Mais recentemente, cresceu o
número de levantamentos internacionais de larga escala sobre a realização educacional
dos alunos e o desempenho de sistemas nacionais de educação, como aqueles
realizados pela Associação Internacional para Avaliação de Realizações Educacionais
(IEA) e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
(OCDE), assim como o trabalho contínuo de teóricos que monitoram as tendências
de globalização e exploram temas pós-modernos na educação (PHILLIPS;
SCHWEISFURTH, 2006, p. 28-29). O empréstimo de políticas seria um aspecto
de cada um desses períodos sobrepostos de ênfase.

descrição
- - - - - - - - - ------------------------------------------------------------------------------->
análise política
------------------------------------------------------------------------->
uso de evidências estatísticas, coleta sistemática de dados
- - - -------------------------------------------------------------->
evidência/entendimento socioeconômico
-------------------------------------------------------->
análise de resultados
------------------------------------------->
contexto globalizado
------------------------------------>
abordagens pós-modernas
-------------------------->

Fig. 1. Ênfases históricas em análise comparada


Fonte: Phillips e Schweisfurth (2006, p. 28).
502 Phillips

Almut Sprigade mostrou que, nas primeiras décadas do século XIX, havia muito
mais sofisticação nos relatos referentes a exemplos estrangeiros na educação do que
normalmente se supõe. Nas palavras da autora, seu estudo confirma
a existência de um amplo espectro de informações sobre educação no estrangeiro, em diversas
fontes, que apoia afirmações de expertise na comparação de sistemas de educação e um
envolvimento ativo de grupos e políticos no intercâmbio e na geração de informações sobre o
provimento educacional em outros lugares (SPRIGADE, 2005, p. i).

Em vista dessa e de outras evidências, acredito que seria um equívoco descartar


o interesse no empréstimo de políticas como uma manifestação de uma fase da
educação comparada que teríamos superado há muito tempo.
Se uma das principais características da investigação comparada em educação é –
para usar um termo escolhido por W. D. Halls – ser meliorista, ou seja, buscar o
aprimoramento (HALLS, 1990, p. 23), seu objetivo envolve (como argumentei acima)
aprender lições, selecionar boas práticas, identificar políticas e práticas educacionais
que possam ser copiadas, imitadas – por assim dizer, tomadas emprestadas.
No entanto, se o empenho para aprender lições resulta em tentativas de
empréstimo, os educadores comparativistas precisam entender os processos
envolvidos, monitorar o que acontece no nível das políticas e orientar
adequadamente. Em outra ocasião, já relacionei algumas das forças que poderiam
produzir as condições para uma intenção de empréstimo:
• pesquisa científica/acadêmica séria sobre a situação em um ambiente estrangeiro;
• concepções populares sobre a superioridade de outras abordagens das questões
educacionais;
• esforços motivados por razões políticas para empreender uma reforma da
educação oferecida, por meio da identificação de contrastes evidentes com a
situação encontrada em outros lugares (o que Steiner-Khamsi chamou de
“difamar” a situação local);
• distorção (exagero), deliberada ou não, das evidências provenientes de outros
países, de maneira a ressaltar as deficiências percebidas no âmbito doméstico (um
aspecto comum dos relatos na imprensa popular) (PHILLIPS, 2000b, p. 299).
A seguir, examinarei exemplos de transferência real e potencial – em diferentes
níveis de sofisticação – entre países (enfocando especialmente o interesse britânico
pelo provimento educacional na Alemanha, durante um longo período), e indicarei
alguns esquemas heurísticos para auxiliar a análise dos processos envolvidos.

Exemplos
O relato de John Quincy Adams sobre suas viagens pela Silésia, entre 1800 e
1801, publicado em Londres em 1804, é um dos primeiros exemplos de forte
atração por um modelo estrangeiro. À época, Adams (1767-1848) era ministro
Aspectos da transferência educacional 503

plenipotenciário dos Estados Unidos em Berlim. Filho de um presidente americano,


ele viria a ocupar, entre outros, o posto de Embaixador na Grã-Bretanha, seria eleito
para o Senado e viria a ser o sexto presidente norte-americano, em 1825. A descrição
dos progressos na educação elementar na Prússia feita por Adams seria depois citada
na Inglaterra, em um relatório do Comitê do Conselho – “Recent measures for the
promotion of education in England”1, produzido em 1839. Cabe citá-la
parcialmente, como um bom exemplo dos primeiros casos de interesse pela provisão
educacional estrangeira e pelas lições a serem aprendidas com essas experiências.
O texto de Adams demonstra apreço pelas reformas educacionais de Frederico,
o Grande:
Foi graças ao ‘zelo com que ele se dedicou ao propósito de espalhar conhecimentos úteis entre
todas as classes de seus súditos’ que, em comparação com os Estados Unidos, provavelmente
nenhum outro país na Europa poderia contestar nossa superioridade (na educação elementar)
com a mesma veemência que a Alemanha (ADAMS, 1804, p. 362).

Adams destaca, em especial, o treinamento de professores:


Os professores são orientados a um ensino simples, e sobre temas aplicáveis às preocupações
comuns da vida; não simplesmente preencher a memória de seus alunos com palavras, mas tornar
os fatos compreensíveis para eles; habituá-los ao uso de seu próprio raciocínio, explicando cada
ponto da lição, de modo que as próprias crianças sejam capazes, ao ser examinadas, de explicá-la
(ADAMS, 1804, p. 366).

Adams cita também as normas estabelecidas para a frequência compulsória e


para a inspeção:
Encargos escolares devem ser pagos pelo senhor e por seus arrendatários, sem distinção de religião.
Nas cidades, a escola deve funcionar o ano todo. Espera-se que um mês seja suficiente para ensinar
a uma criança as letras do alfabeto; que em dois meses ela seja capaz de juntá-las; e, em três, de
ler. Todos os meninos precisam ir à escola dos 6 aos 13 anos de idade, quer os pais possam pagar
os encargos ou não. Para os pobres, esse dinheiro precisa ser angariado por meio de impostos.
Todo pai ou tutor que deixar de mandar o filho ou pupilo para a escola sem justa causa é obrigado
a pagar encargos escolares em dobro, sem descontos. Todos os vigários devem examinar,
semanalmente, as crianças de suas paróquias. Os deães dos distritos devem fazer um exame geral
anual das escolas de suas respectivas zonas, e enviar um relatório sobre as condições das escolas,
os talentos e a atenção dos diretores das escolas, as condições das edificações e a frequência das
crianças ao escritório do vigário geral, que deverá transmitir todos esses relatórios aos escritórios
do domínio real. Esses escritórios emitirão ordens aos respectivos territórios (landrath) para
corrigir os abusos e suprir as deficiências indicadas nos relatórios (ADAMS, 1804, p. 367-368).

Esses relatórios relativamente esclarecidos abrangem questões que representavam


grandes preocupações nas primeiras décadas do século XIX, quando teve início o
debate sobre a natureza do provimento educacional e, em particular, o
envolvimento do Estado na educação. Aqui, o detalhe é importante, uma vez que

1. NT: “Medidas recentes para a promoção da educação na Inglaterra”.


504 Phillips

fornece um esquema para uma possível imitação e, portanto, pode ser visto como
um exemplo inicial de identificação daquilo que funciona em outro sistema.
Evidentemente, não há intenção de tomar emprestada a experiência da Silésia, mas
informações como aquelas coletadas por Adams eram incluídas de forma rotineira
na discussão sobre políticas, e utilizadas por outros defensores de reformas.
Passemos do plano pessoal para o oficial. Em 1834, um relatório do Comitê
Especial da Câmara dos Comuns, sobre a promoção da educação na Inglaterra,
incluía evidências obtidas de testemunhas que relatavam experiências de educação
em primeira mão na Alemanha. Eis o que parece ser a íntegra do registro de uma
entrevista com William Davis, diretor de uma escola em Whitechapel, Londres (na
linha do sistema de monitoria de Bell). O contexto é uma discussão sobre a
expansão do provimento educacional na Inglaterra e a exploração de formas como
essa expansão ocorrera na Alemanha:
– Você é de opinião de que é altamente desejável que seja estabelecido um
sistema de educação mais amplo?
– Sim, se possível.
– E deve-se combinar a esse sistema educacional um sistema de emprego, de
modo que as crianças criem hábitos úteis?
– Sim; talvez não seja irrelevante observar que aprendi muito sobre estrangeiros
da classe mais baixa que vieram para a Inglaterra em busca de emprego, e
raramente conheci um deles (alemães) que não soubesse escrever seu nome
e ler sua Bíblia.
– Você quer dizer que a proporção de estrangeiros capazes de fazer isso é muito
maior que a de ingleses?
– Na minha experiência, entre as centenas que conheci, raramente encontrei
um que não soubesse ler e escrever.
– A classe dos estrangeiros com os quais você se familiarizou é tão baixa quanto
a daqueles que você conheceu neste país?
– Eles vêm da classe camponesa de seu próprio país, e aqui são principalmente
trabalhadores nas refinarias de açúcar.
– Você acha que os açucareiros alemães que vieram para cá têm melhor
educação que homens de posições sociais e ocupações similares neste país?
– Penso que, como um todo, eles são mais bem-educados (SELECT
COMMITTEE ON THE STATE OF EDUCATION, 1834, p. 215).
Esse diálogo também merece ser citado em detalhes, pois fornece evidências de
um empenho oficial sério, desde muito cedo – em um tempo em que se debatia
seriamente a necessidade de considerar a intervenção estatal na educação na
Inglaterra –, no sentido de identificar evidências que explicassem o que era visto
como superioridade do provimento em outros lugares. Trata-se de um exemplo
daquilo que Steiner-Khamsi chamou de escandalizar o sistema doméstico.
Aspectos da transferência educacional 505

A partir daí, e ao longo de todo o século XIX, muitos relatórios oficiais na


Inglaterra dedicaram espaço considerável a análises dos exemplos estrangeiros na
educação – um hábito que se manteve no século XX. O Escritório de Pesquisas e
Relatórios Especiais de Michael Sadler produziu uma variedade notável de estudos
sobre múltiplos aspectos de sistemas educacionais estrangeiros no período de 1895
a 1905 – uma iniciativa que sucessivos ministros da Educação reproduziram a partir
de 1989, com a publicação de relatórios sobre a educação em outros países
(incluindo nada menos do que oito sobre a educação na Alemanha). Esses relatórios
podem ser relacionados, direta ou indiretamente, com a tomada de decisões no
âmbito de políticas.
O distrito de Barking e Dagenham, em Londres, fornece um importante
estudo de caso moderno sobre o empréstimo educacional em escala local na
Inglaterra. O diretor responsável por esse organismo educacional local (LEA)
iniciou um plano extraordinário para melhorar o ensino nas escolas locais,
aprendendo com exemplos estrangeiros. Foi realizado um estudo especial do
ensino de matemática em escolas da Suíça, onde boas práticas foram observadas
e analisadas e, finalmente, copiadas pelos professores da LEA. Esse procedimento
envolveu a cooperação ativa das escolas e a capacitação das equipes em novas
técnicas de ensino, juntamente com o desenvolvimento de manuais explicativos.
Esse exemplo incomum de transplantar com sucesso, para o ambiente local, boas
práticas identificadas em outros lugares resultou em uma melhoria observável nos
padrões de matemática na LEA (OCHS, 2006).
Nos Estados Unidos, podemos citar o importante trabalho de Horace Mann,
cujo relato sobre a educação na Alemanha teve grande influência, assim como os
de Calvin Stowe (1838) e de Henry Barnard (1861, 1876); e também a vasta “Série
de educação internacional” de William Torrey Harris. Particularmente no século
XX, houve relatórios importantes do Ministério de Educação dos Estados Unidos
sobre a educação no Japão (1987) e na Alemanha (1999), países cujo provimento
educacional atraiu considerável atenção em todo o mundo.
Na França, o relatório de Victor Cousin sobre a educação na Prússia teve enorme
influência. Traduzido para o inglês (por Sarah Austin), recebeu ampla cobertura em
análises e relatórios, e foi utilizado, tanto positiva como negativamente, no debate
sobre políticas durante um longo período (COUSIN, 1864).
No Japão, podemos citar o curioso exemplo da Missão Iwakura. Liderada por
Iwakura Tomoni, uma delegação japonesa viajou para a Europa e os Estados Unidos
em 1871, e passou um ano e nove meses fora do Japão. Dela faziam parte
praticamente 50% dos membros do governo. A missão era enorme (107 pessoas
ao todo) e tinha objetivos bastante amplos: apresentar credenciais aos países com
os quais o Japão havia estabelecido tratados; iniciar revisões dos tratados; e observar
e investigar sociedades avançadas, para determinar quais aspectos dessas sociedades
poderiam ajudar na modernização do Japão. Este último objetivo passou a ser o
506 Phillips

propósito principal da missão. A delegação visitou Estados Unidos, Grã-Bretanha,


França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Rússia, Dinamarca, Suécia, Itália, Áustria e
Suíça. A missão incluiu uma investigação sobre o provimento educacional nos
países visitados. O estudioso confucionista Kune Kunitake (1839-1931) elaborou
um relatório detalhado sobre as viagens e constatações da missão, que foi publicado
em 1878 como “Tokumei zenken taishi Beiõ kairan jikki” (KUME, 2002).
Na África do Sul, desde o fim do apartheid, verificou-se a importação
problemática da educação baseada em resultados (EBR), apesar das preocupações
com relação a esse estilo de ensino e aprendizagem nos países exportadores. Esse é
um bom exemplo de fracasso na aprendizagem com o exemplo estrangeiro, e de
atenção insuficiente à importância do contexto. Para que a educação baseada em
resultados funcione, é preciso que haja uma infraestrutura de apoio adequada.
Mudar rapidamente de modos tradicionais de ensino e aprendizagem para uma
situação em que o professor poderia dizer aos alunos “não sou o sábio no palco,
mas o guia ao seu lado” foi um grave equívoco (JANSEN, 2004; SPREEN, 2004).
Em outro artigo (PHILLIPS, 2000b, p. 302-303), relacionei o uso positivo
e negativo que foi feito do exemplo alemão durante o século XIX na Grã-
Bretanha. Os aspectos positivos da educação alemã que atraíam os observadores
foram os seguintes:
• a natureza sistemática coerente da educação ministrada;
• a ausência de ambiguidade quanto ao papel do Estado;
• os altos padrões da educação básica;
• a longa história e a importância crescente da educação profissionalizante;
• a atenção dada à educação e à pesquisa tecnológica nos Institutos de Tecnologia
(Technische Hochschulen);
• a conceitualização da universidade moderna.
Do lado negativo, havia preocupação com os seguintes aspectos:
• a intervenção do Estado em questões vistas por alguns observadores como
fundamentalmente do interesse público;
• a natureza autoritária da administração burocrática;
• o currículo sobrecarregado e seu distanciamento (no caso da escola secundária
acadêmica, o Gymnasium) dos ideais de Wilhelm von Humboldt;
• a tendência à obediência cega, que encorajava o Estado a manipular a educação
para atender a seus próprios fins políticos e militares.
Assim, nos últimos 200 anos, a voz oficial se fez ouvir de maneira consistente
pronunciando-se sobre os aspectos positivos e negativos da educação em outros
países. Para os analistas da transferência de políticas, a tarefa é identificar exemplos
reais de empréstimos de políticas e práticas e, em seguida, tentar explicar os
processos envolvidos. Há alguns exemplos de transferências que podem ser bastante
Aspectos da transferência educacional 507

instrutivos, em diversos estágios do que Kimberly Ochs e eu vimos como um


espectro (Figura 2), que abrangem desde a imposição até a influência geral.
No extremo final do espectro (“imposição”), podemos observar exemplos de
imposição de modelos estrangeiros em países que passaram a uma situação de
influência externa autoritária, como é o caso dos países do bloco soviético depois
da Segunda Guerra Mundial, ou de países colonizados obrigados a adotar
abordagens educacionais comuns nos países dos colonizadores. A seguir, podemos
examinar as condições em países que foram derrotados em guerras, e dos quais os
ocupantes vencedores exigem a introdução de novas medidas – é o caso da
Alemanha e do Japão depois da Segunda Guerra. Prosseguindo no espectro,
identificamos casos de países em que uma mudança de práticas e políticas foi
exigida em troca de algum tipo de ajuda – por exemplo, do Banco Mundial. Vem
a seguir o empréstimo deliberado e voluntário, que definimos como “a adoção
consciente, em um contexto, de políticas observadas em outro” (PHILLIPS;
OCHS, 2004a, p. 774). Por fim, há a influência geral de ideias educacionais, que
abrange desde o poder de teorias da educação desenvolvidas por personalidades
de status internacional, como Pestalozzi, Dewey ou Piaget, até as forças da
globalização educacional.

Espectro da transferência educacional


Imposta Introduzida por Exigida Negociada Tomada emprestada
meio de influência sob coação sob coação deliberadamente

Transferência educacional

1 2 3 4 5

(1) Regra totalitária/autoritária


(2) Países derrotados/ocupados
(3) Exigido por acordos bilaterais e multilaterais
(4) Cópia intencional de práticas/políticas observadas em outros lugares
(5) Influência geral de métodos/ideias educacionais

Fig 2. Espectro da transferência educacional


Fonte: Phillips e Ochs (2004b, p. 9).

Pesquisa
Considerando esse rico contexto histórico, é necessário desenvolver maneiras
de analisar o que ocorre na transferência de políticas de vários tipos, e é com isso
que se têm preocupado muitos adeptos da educação comparada e outros autores
nos últimos anos. Em 1989, uma edição especial do periódico “Comparative
508 Phillips

Education” investigou a atração entre nações no âmbito da educação (PHILLIPS,


1989). A lógica para a inclusão dos artigos era que um comentarista de um país
“a” escrevesse sobre o interesse aparente por seu próprio país em aspectos da
educação em um país “b”, enquanto um observador bem-informado do país “b”
reagiria à natureza da atração do país “a”. Não causa surpresa que tenha havido
um ceticismo considerável a respeito dos focos específicos da atração, como foi
mencionado em um relatório da OCDE, em outro contexto: “em quase todos os
países, os reformistas defendem a ideia de seguir modelos estrangeiros que são
criticados por seus pares nos próprios países estrangeiros, à luz de sua experiência
com eles” (GRÉGOIRE, 1967). O artigo de Torsten Husén refere-se ao modelo
de reforma na Suécia como “exemplar em ambos os sentidos”:
Particularmente na Grã-Bretanha e na República Federal da Alemanha, os reformistas que
queriam mudar na mesma direção da Suécia tendiam a encarar a reforma como exemplar. Os
mais conservadores procuravam pontos fracos e falhas, e tendiam a vê-la como exemplar no
sentido negativo (HUSÉN, 1989, p. 346).

Isto nos faz lembrar as palavras de Steiner-Khamsi para ilustrar maneiras de


usar o exemplo estrangeiro no debate sobre a formulação de políticas: glorificação
e escândalo.
Mais recentemente, em Berlim, Jürgen Schriewer e outros investigaram a
internacionalização das ideias educacionais em conexão com a teoria de sistema-
mundo (SCHRIEWER, 2000; CARUSO; TENORTH, 2002). O conceito de
externalização de Schriewer envolve o uso de modelos estrangeiros na tentativa de
legitimar propostas de reforma controversas em casa (SCHRIEWER, 1990).
Steiner-Khamsi examinou o empréstimo de políticas usando exemplos
específicos da Mongólia e de Gana (STEINER-KHAMSI; STOLPE, 2006;
STEINER-KHAMSI; QUIST, 2000).
Beech (2005, 2006a, 2006b), Tanaka (2003), Ochs (2005), Sprigade (2005) e
Rappleye (2006) examinaram uma grande variedade de exemplos de transferência
de políticas em muitos contextos diferentes e em vários momentos.
Kimberly Ochs e eu descrevemos modelos e outros esquemas criados para
analisar os processos de empréstimo de políticas, usando, na maioria das vezes, a
atração britânica pelo provimento educacional na Alemanha (OCHS; PHILLIPS,
2002a, 2002b; PHILLIPS, 1989, 1993, 1997, 2000a, 2000b, 2002, 2004, 2005,
2006b; PHILLIPS; OCHS, 2003a, 2003b, 2004a, 2004b). Outras publicações
(FINEGOLD et al., 1993; STEINER-KHAMSI, 2004; PHILLIPS; OCHS,
2004b; ERTL, 2006; PHILLIPS, 2006c) abordaram questões de transferência de
políticas em diversos contextos, atuais e históricos. A abordagem histórica é
especialmente importante, pois nos permite analisar processos que se completaram:
um bom exemplo é o trabalho de Caruso (2002) sobre a adoção estrangeira do
sistema de monitoria de Bell-Lancaster no século XIX.
Aspectos da transferência educacional 509

Os esquemas que Kimberly Ochs e eu produzimos em Oxford tratavam da


descrição e da análise dos estágios no processo de empréstimo de políticas.
Postulamos um modelo de quatro estágios, descrevendo os processos de atração,
decisão, implementação e internalização (PHILLIPS; OCHS, 2003a, 2004a,
2004b), e descrevemos filtros ou lentes através dos quais as políticas (ou práticas)
podem passar ao transferir-se de um lugar para outro: “as ideias se movem e se
transformam”, como diz Cowen (2006, p. 567). Esses esquemas não são
necessariamente aplicáveis a todos os casos de empréstimo ou transferência
educacional, mas servem simplesmente como ferramenta para uso dos
pesquisadores ao acompanhar o que ocorreu ou está ocorrendo em casos de
transferência educacional em diferentes contextos. Foram descritos extensamente
nos artigos citados acima e aparecem aqui reproduzidos como Apêndices 1 e 2.

Perspectivas
Comecei afirmando a significância do empréstimo de políticas como um tema
na educação comparada e a importância do objetivo de aprender lições por meio
de investigação comparada em educação. Até agora não entrei em detalhes a
respeito da globalização, mas é claro que, mais do que nunca, diante do cenário de
tendências globalizadoras, haverá exemplos de transferência – deliberada ou não –
de ideias educacionais entre localidades. Haverá caso de imperativos aparentemente
irresistíveis que dirigem essas transferências, como se viu na situação interessante
do Processo de Bolonha para a educação na Europa, em que tradições há muito
tempo estabelecidas estão dando lugar a uma padronização consensual.
Nesse caso, o objetivo é que, até 2010, tenha sido criada uma Área Europeia de
Ensino Superior, com provimento de educação superior comparável e compatível
entre os países. Em 1999, foi realizada em Bolonha uma reunião de ministros da
educação e, posteriormente, seguiu-se uma série de encontros para levar adiante
um programa que envolve a adoção de um sistema de três ciclos de bacharelado,
mestrado e doutorado, e para estabelecer um acordo quanto a abordagens comuns
para assegurar a qualidade e o reconhecimento mútuo das qualificações e dos
períodos de estudo a elas associados. Esses ministros estabeleceram uma série
notável de objetivos comuns, e declararam:
Comprometemo-nos a alcançar esses objetivos – dentro da estrutura de nossas competências
institucionais e com total respeito pela diversidade de culturas, de idiomas e de sistemas de
educação nacionais, e pela autonomia universitária – para consolidar a área europeia de ensino
superior. Para tanto, buscaremos modos de cooperação intergovernamental, assim como de
organizações não governamentais europeias com competência na área do ensino superior.
Esperamos que as universidades mais uma vez respondam pronta e positivamente, e que
contribuam ativamente para o sucesso de nosso esforço (EUROPEAN COMMISSION,
1999).
510 Phillips

Assim, está montada a cena para uma extensão de processos observáveis desde
a criação da Comunidade Europeia, no sentido de uma cooperação e de uma
convergência ainda mais estreitas entre os Estados-membros e as nações da Europa
que não fazem parte da União Europeia. É esse o tipo de convergência que os
comparativistas deverão monitorar, especialmente para testar a noção de Cowen
de “mover e transformar”: em que medida as noções subjacentes ao acordo serão
afetadas por contextos locais?
Certamente, os contextos são o fator-chave na análise da transferência de
políticas. Sadler lembrava-nos disso em 1900, e outros também o fizeram de várias
maneiras antes dele. Uma tarefa difícil, porém importante para futuras pesquisas,
é desenredar os fatores contextuais que ajudam ou dificultam a transferência
educacional, o que envolverá investigação detalhada do estágio de internalização
no modelo descrito no Apêndice 1.
Será igualmente importante uma investigação do que nesse modelo é visto como
atores significativos (indivíduos e instituições) na promoção ou no entrave da
transferência de políticas e práticas. Todas as formas de relatos terão um papel nos
processos de transferência – como vimos no caso do interesse mundial pela
Finlândia, devido ao êxito notável do país nos exames do Pisa, ou no caso da
Alemanha, cujo desempenho no Pisa foi decepcionante. Isso também precisa ser
monitorado e criticado.
Hoje, há um rico conjunto de trabalhos sobre transferência educacional a ser
tomado como referência, e o desenvolvimento adicional de teorias baseadas em
relatos de caso nessa área importante da investigação comparada sem dúvida ajudará
a destacar a importância contínua do estudo da educação comparada e a relevância
dos dados comparados para os processos de formulação de políticas.

Resumo
Este exame dos aspectos da transferência de políticas em educação tentou
abranger uma vasta área em um pequeno espaço. A título de resumo, posso tentar
estabelecer algumas conclusões:
• É importante a clareza na terminologia usada ao discutir transferência: boa parte
dela é potencialmente problemática. O empréstimo é apenas uma característica
em um espectro de possibilidades de transferência educacional.
• O empréstimo deve ser visto como um fenômeno intencional, em que se busca
deliberadamente aprender a partir do exemplo estrangeiro e importar ideias na
forma de políticas e práticas para o sistema doméstico.
• Uma característica significativa do exame de abordagens estrangeiras para
problemas educacionais, sejam elas emprestáveis ou não, é que nos ajudam a
compreender os problemas locais.
• Ao analisar as maneiras pelas quais o empréstimo ocorre, é essencial lidar com
a difícil questão do contexto e de sua adequação para adaptar-se a práticas e
políticas importadas.
Aspectos da transferência educacional 511

• Uma tarefa importante para os comparativistas é desvendar os motivos daqueles


que defendem o empréstimo de certos aspectos do provimento educacional em
outros lugares.
• Com uma convergência aparentemente crescente e irresistível na área da
educação em um contexto globalizado, as tensões entre o local e o global e entre
a padronização e a tradição ficarão evidentes e constituirão uma área rica para
investigação futura.
A importância da transferência educacional como campo de análise e pesquisa
em educação comparada já está estabelecida. É tarefa dos comparativistas assegurar
que continue a ser pesquisada em contextos sempre novos.

Apêndices
1. Quatro estágios de empréstimo de políticas
(PHILLIPS; OCHS, 2003a, 2003b; 2004a, 2004b)
RAÇÃO TRANS
GIO I: AT NAC
ESTÁ ION
AL
IMPULSOS: POTENCIAL DE
INSATISFAÇÃO INTERNA EXTERNALIZAÇÃO:
COLAPSO SISTÊMICO ORIENTAÇÃO FILOSÓFICA
AVALIAÇÃO EXTERNA NEGATIVA AMBIÇÕES/OBJETIVOS
MUDANÇAS NA ESTRATÉGIAS
ECONOMIA/COMPETIÇÃO ESTRUTURAS FACILITADORAS
POLÍTICA E PROCESSOS
OUTROS IMPERATIVOS TÉCNICAS
NOVAS CONFIGURAÇÕES
INOVAÇÕES NO
CONHECIMENTO/
HABILIDADES
ÃO

MUDANÇA POLÍTICA
ZAÇ
NALIZAÇÃO/INDIGENI

ESTÁGIO II: DECISÃO

IMPACTO SOBRE OS
SISTEMAS/MODUS
OPERANDI EXISTENTES QUATRO ESTÁGIOS TEÓRICA
ABSORÇÃO DE
CARACTERÍSTICAS EXTERNAS DE EMPRÉSTIMO REALISTA/PRÁTICA
SOLUÇÃO RÁPIDA
SÍNTESE
AVALIAÇÃO
DE POLÍTICAS FALSIFICAÇÕES

NA EDUCAÇÃO
NTER
O IV: I
I

ADAPTAÇÃO
ÁG

ADEQUAÇÃO DO CONTEXTO
ST

VELOCIDADE DA MUDANÇA
E

ATORES SIGNIFICATIVOS

APOIO: RESISTÊNCIA:
NACIONAL/LOCAL NÃO DECISÃO/REJEIÇÃO

ESTÁ
GIO III: IM LEMENTAÇÃO
P
512 Phillips

2. Filtros no processo de empréstimo de políticas


(PHILLIPS; OCHS, 2004b)

INTERPRET
TA
AÇÃO
O
INTERPRETAÇÃO TRANSMISSÃO RECEPÇÃO IMPLEMENTAÇÃO
IMPLEMENT
TA
AÇÃO

F1 F2 F3 F4
PRÁTICA 1 PRÁTICA
A2

FLUXO
FLUXO DE TEMPO/PROGRESSÃO
UX TEMPO/PROG
GRESSÃO

ATORES
ATORES AGÊNCIAS
AGÊNCIAS
INDIVÍDUOS CONTEXTOS
CONTEXT OS
ORGANIZAÇÕES
OR
RGANIZAÇÕESS MÍDIA
INSTITUIÇÕES PR
ROFISSIONAIS
PROFISSIONAIS
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AGAMENON CONTRA PROMETEU:


GLOBALIZAÇÃO, SOCIEDADES DO
CONHECIMENTO/DA APRENDIZAGEM
E PAIDEIA NA NOVA COSMÓPOLE

Andreas M. Kazamias

Introdução: a hipótese-enredo e o
modo mítico de adquirir conhecimento
Esta apresentação aborda de maneira teórica e examina criticamente as
consequências antidemocráticas e desumanizadoras da admirável cosmópole nova
da globalização (ACNG) e da sociedade do conhecimento tecnológico / da informação
/ da aprendizagem (SCTIA). Usando os antigos mitos gregos de Agamenon e
Prometeu, são apresentadas como uma dilogia (um espetáculo em dois episódios),
cuja hipótese-enredo é dupla: (a) as consequências desumanizadoras e
despolitizadoras da globalização e da SCTIA para o conhecimento, a aprendizagem,
a educação, a sociedade e o indivíduo; e (b) a reinvenção ou reencantamento da
paideia humanística, por meio do cultivo do que se pode chamar neo-humanismo
prometeico, a fim de humanizar o anthropos-politis (pessoa-cidadã / ser humano-
cidadão) no que seria a cosmópole do conhecimento / da aprendizagem (CCA).
No primeiro episódio, intitulado “Globalização, sociedade do conhecimento e
o sacrifício da paideia humanística: a síndrome de Agamenon” –, usarei o mito de
Agamenon, tal como foi dramatizado na tragédia “Ifigênia em Áulis”, de Eurípedes,
para examinar criticamente os efeitos desumanizadores da globalização e do
paradigma epistemológico da tecnologia da informação (Peti) – especificamente o
perigo de construir um tipo de cidadão homo faber/homo fabricatus (Jürgen
Habermas) ou homo barbarus (Heideger), e um homo economicus, em lugar de um
cidadão homo civilis/homo humanus (Martha Nussbaum). No segundo episódio,
“Prometeu libertado: neo-humanismo prometeico e a reinvenção da paideia
humanística”, usarei o mito de Prometeu, tal como foi dramatizado no “Prometeu
acorrentado”, de Ésquilo, para argumentar em favor do reencantamento ou da
reinvenção da paideia/aprendizagem humanística como meio de empoderar,
libertar e humanizar o anthropos politis (pessoa-cidadão) na cosmópole do
conhecimento / de aprendizagem (CCA) emergente.

517
518 Kazamias

O modo de análise: combinar mythos com episteme


O modo de análise nesta dilogia combina mythos (mito) com episteme (ciência
humana), e usa representações simbólicas ou imagens. Usamos dois mitos gregos
clássicos com um duplo propósito: (a) como recurso ou ferramenta para
dramatizar um problema ou uma condição humana particular – sendo este,
espera-se, o elemento que mobiliza emocionalmente; e (b) como modo de
conhecer, pensar e exprimir, a fim de teorizar e interpretar um problema cuja
plena significação pode ser revelada simbolicamente por meio de uma forma de
discurso imaginária ou transcendente. Nas palavras de Vitsaxis, um estudioso
grego, os mitos, os ícones (representações ou imagens) e os símbolos constituem
“aquela linguagem transcendente que estende o pensamento reflexivo e leva-o a
espaços imaginários”. De acordo com o mesmo autor, um mito “é mais próximo
da abordagem ou da compreensão intuitiva e estética do que da abordagem ou da
compreensão logocrática do mundo fenomenológico”. Além disso, o mito pode
até mesmo ser não-ortológico, no sentido de não obedecer a certas regras fixas –
evidentemente, sem que seja irracional. De acordo com Claude Lévi-Strauss,
eminente antropólogo social, o mito é um modo estético de conhecimento,
paralelo ou análogo a um modo objetivo de conhecimento: “por intermédio do
mito, realiza-se um acesso estético ao conhecimento” (VITSAXIS, 2002, p. 15-
21). De acordo com P. Feyerabend:
A distinção rigorosa entre ciência e não-ciência não somente é artificial, mas também catastrófica
para o progresso do conhecimento. Se quisermos entender a natureza [...] devemos fazer uso de
todos os métodos e ideias, e não apenas de alguns selecionados. A afirmação de que não pode
haver conhecimento fora da ciência – extra scientiam nula salus – não passa de um mito útil
(FEYERABEND, 1975; ver também BOWRA, 1957, p. 127-128).

Primeiro episódio: a síndrome de Agamenon, a globalização,


a sociedade do conhecimento/da aprendizagem e o sacrifício
da paideia humanística na admirável cosmópole nova
Prólogo: o mito de Agamenon

Em “Ifigênia em Áulis”, Agamenon da casa de Atreu e rei de Argos, comandante-


em-chefe da expedição grega a Troia, foi obrigado pelos deuses a sacrificar sua filha
Ifigênia para que os ventos favoráveis soprassem e permitissem que a enorme armada
ancorada no porto de Áulis zarpasse em sua viagem fatal. A expedição para saquear
Troia tinha o propósito ostensivo de vingar o insulto feito aos aqueus (os gregos) e
à casa de Atreu com o sequestro (não indesejado) de Helena, uma princesa grega
civilizada, cunhada de Agamenon, perpetrado por um bárbaro oriental – o príncipe
troiano Páris. Entretanto havia mais coisas envolvidas na expedição do que a mera
Agamenon contra Prometeu 519

retribuição por um insulto. A Guerra de Troia também foi incitada pela arrogância
do poder grego, personificada no arrogante rei de Argos, e foi travada em nome de
orgulho nacional, engrandecimento, riqueza, poder e glória, “pelo bem comum da
Hélade”, como declarou a heroína transformada Ifigênia, a caminho do altar onde
seria sacrificada. O poeta dramático Eurípedes usa o mito de Agamenon para teorizar
e interpretar criticamente as condições e os problemas sociopolíticos da cidade
democrática de Atenas durante um período turbulento de sua história – ou seja, por
volta dos últimos anos do século V a.C.
Como Eurípedes, porém sem seu talento dramático, usarei o mito de
Agamenon e o sacrifício de Ifigênia como recurso metodológico para fazer uma
interpretação comparada e crítica de um fenômeno político-econômico e
sociocultural que ocupa o primeiro plano do discurso e das políticas sociais
contemporâneas em todo o mundo.
Colocado de maneira simples, trata-se do problema da educação e, mais
amplamente, da paideia / culture / Bildung na nova cosmópole, daquilo que podemos
chamar de modernidade neoliberal. Em minha reflexão sobre as tendências
contemporâneas nessa área sociocultural, tentarei desenvolver a seguinte trama.
Para que os Estados-nação contemporâneos e regimes internacionais, como a União
Europeia (UE), possam participar de maneira eficaz e competitiva da nova cosmópole,
como sociedade do conhecimento (SC) globalizada e sistema econômico mundial, os
sistemas modernos de educação, sendo mecanismos geridos pelo Estado, são instados
a enfatizar certos tipos de conhecimento e de cultura, em detrimento de outros
convencionais. Para responder de maneira eficaz às demandas e aos desafios da
globalização e do paradigma epistemológico de tecnologia / informação a ela associado
(CASTELLS, 1989, 2000), transformam-se a identidade e o papel das escolas
secundárias, e mais ainda das universidades, que vêm deixando de ser territórios socio-
culturais – uma das principais funções de uma educação holística/de conhecimento
geral, ou paideia no plano intelectual, moral e cívico – para metamorfosear-se em
locais de produção de conhecimento instrumental, tecnociência e aquisição de
habilidades mercantilizáveis. Nessa transformação, fica reduzida sua missão de formar
o anthropos-politis (pessoa-cidadã), com mente e alma cultivados, e aumenta a missão
de construir o trabalhador do conhecimento informado, eficiente e qualificado para
os mercados econômicos mundiais competitivos. As escolas e as universidades estão
sendo transformadas de lugares de paideia em lugares daquilo que Jane Roland Martin,
filósofa educacional norte-americana, chamou de educação voltada principalmente
para processos produtivos (MARTIN, 1994, p. 78), e Aronowitz, sociólogo norte-
americano, chamou de fábricas de conhecimento. Especialmente no caso da
universidade moderna (europeia e norte-americana), a ideia de Universidade tem
mudado de uma função eminentemente educacional e cultural – provimento e cultivo
de educação liberal, Bildung, culture générale ou paideia – para uma função
eminentemente voltada para a promoção de racionalidade instrumental e daquilo que
520 Kazamias

o pensador pós-modernista francês Lyotard denominou performatividade


(LYOTARD, 1984). Para usar a terminologia adequada de Robert Cowen, a
universidade moderna vem-se transformando em universidade moldada pelo mercado
(COWEN, 1996, 2000).

A admirável cosmópole nova da globalização e a sociedade do


conhecimento tecnológico / da informação / da aprendizagem
Ao teorizar sobre o novo cosmos que se desdobra diante de nós à medida que
ingressamos no terceiro milênio, alguns teóricos sociais construíram esquemas
conceitual-epistemológicos variados e, em alguns aspectos, parcialmente coincidentes.
Uma das construções mais esclarecedoras é a do sociólogo espanhol Manuel Castells,
que escreveu:
Um novo mundo está tomando forma nesta virada do milênio. Originou-se na coincidência
histórica de três processos independentes, no período entre o final da década de 1960 e meados
da década de 1970: a revolução da informação; a crise das economias, tanto capitalista como
estatal, e sua reestruturação subsequente; e o florescimento de movimentos socioculturais como
o libertarismo, os direitos humanos, o feminismo e o ambientalismo. A interação entre esses
processos e as razões que levaram ao seu desencadeamento estabeleceram uma nova estrutura
social dominante: a sociedade-rede; uma nova economia: a economia da informação/global; e
uma nova cultura: a cultura da virtualidade real [...] [definida] como um sistema no qual a própria
realidade (ou seja, a existência material/simbólica das pessoas) está plenamente imersa em uma
composição de imagens virtuais, no mundo do faz-de-conta, no qual os símbolos não são apenas
metáforas, mas incluem a experiência real (CASTELLS, 2000, p. 367, 381).

Alguns conceitos são essenciais em grande parte do relevante discurso


relacionado ao novo mundo que está tomando forma nesta virada do milênio:
globalização, sociedade global, economia da informação global, sociedades do
conhecimento e economias baseadas no conhecimento, sociedades de aprendizagem
e informação, sociedade-rede, educação global, cultura da virtualidade real e outros
(CASTELLS, 2000; LOFSTEDT, 2001; BARNEY, 2004). Entre essas construções,
os conceitos de globalização e sociedades do conhecimento/da aprendizagem
parecem particularmente importantes (WATERS, 1995; LOFSTEDT, 200l).

Globalização: bênção ou maldição?

Globalização é um conceito proteico, que não se submete a definições ou


interpretações essencialistas. Como o semideus mitológico Proteu usa diferentes
roupagens conceituais e ideológicas, dependendo da orientação teórica e ideológica
de quem as utiliza. Além disso, como outras construções teóricas cósmicas gerais, o
conceito de globalização é contestado e controvertido. Alguns teóricos sociais
questionaram sua própria autenticidade ao classificá-lo como quimera
(VERGOPOULOS, 2000), ou mitologia (TOMBAZOS, 1999). Para esses céticos,
Agamenon contra Prometeu 521

a globalização tem raízes históricas profundas. Sempre esteve lá, pelo menos desde o
advento da modernidade, no século XVIII, e mesmo antes disso. Entretanto a maioria
dos estudiosos, teóricos sociais e observadores especializados, aceitaram até certo
ponto a globalização como realidade econômica, social e histórico-cultural com
alcance e intensidade bastante recentes. Um exemplo é o recente manifesto político
“The third way”1, do sociólogo inglês Anthony Giddens, em que o autor escreve:
A globalização econômica é, assim, uma realidade, e não apenas uma continuação ou uma reversão
de tendências de anos anteriores. Embora boa parte das trocas comerciais continue regionalizada,
há uma economia totalmente global no plano dos mercados financeiros [...] A globalização [...]
não tem a ver somente, nem principalmente, com interdependência econômica, mas também
com a transformação do tempo e do espaço em nossa vida (GIDDENS, 1998, p. 30-31;
1999/2000, p. 28).

Na mesma linha de Giddens, Anthony McGrew conceituou a globalização


como realidade social, econômica e cultural de caráter universal. De acordo com
McGrew, “Redes, movimentos sociais e relações transnacionais são extensivos em
virtualmente todas as áreas da atividade humana, do âmbito acadêmico ao sexual”
(McGREW, 1992, p. 65-66; ver também SCHOLTE, 2000, p. 15-16). A definição
de Ka Ho Mok parece comandar uma ampla aceitação.
Embora não exista uma definição única, consensual de globalização, é evidente que o mundo
todo vem passando por um conjunto de processos que, de diferentes modos – econômicos,
culturais e políticos – fazem conexões supranacionais. Além disso, o impacto da globalização não
se fez sentir apenas no âmbito econômico, mas de fato também provocou mudanças significativas
no âmbito ideológico-cultural e na transformação do tempo e do espaço. Embora nenhum país
esteja imune ao impacto da globalização, houve debates acalorados sobre suas consequências
positivas e negativas (MOK, 2000, p. 148-149).

Na categoria dos teóricos da globalização, porém, há diferenças nas avaliações


dos efeitos da globalização sobre a economia, os sistemas de governo, a sociedade,
a educação e a cultura e, de modo mais geral, sobre a vida humana. Alguns teóricos
sociais e intelectuais críticos tendem a enfatizar o que se pode chamar de
descontentamentos da globalização – ou seja, seus efeitos negativos e
desumanizadores sobre a sociedade e a existência humana. Assim, por exemplo,
em um estudo cujo título – bastante sugestivo – é “Predatory globalization”2,
Richard Falk examinou “os efeitos da globalização econômica sobre a capacidade
do Estado de contribuir para o bem-estar humano”, e concluiu:
Ainda assim, apesar destas tendências estimulantes, as fundações estruturais e normativas da ordem
mundial parecem cada vez mais incapazes de proporcionar segurança mínima para muitos povos
do mundo. O Estado como instrumento do bem-estar humano está sendo sutilmente deformado
pelas dinâmicas da globalização, que o empurram pouco a pouco, e em diversos graus, a uma

1. NT: “A terceira via” (tradução livre).


2. NT: “Globalização predatória” (tradução livre).
522 Kazamias

relação de subordinação com as forças do mercado global. Em parte como reação a esses
acontecimentos, e em parte como resultado das deficiências do secularismo como fonte de
realização humana, em muitos ambientes o Estado também está perdendo sua capacidade de prover
os ingredientes sociais, econômicos e físicos de segurança dentro de suas fronteiras (FALK, 1999).

De acordo com o filósofo político francês Pierre-Andre Taquieff, é possível


descrever a globalização como um império de mercados liberalizados que, por um
lado, contribuem para aumentar o produto mundial, mas, por outro, têm
consequências socioeconômicas e políticas negativas, tais como o aumento da
diferença entre o Norte rico e desenvolvido e o Sul pobre e subdesenvolvido; e no
interior das nações mais ricas, um aumento das desigualdades e da exclusão social.
No âmbito político, acrescenta ainda Taquieff, a globalização transforma a
fisionomia da democracia e da cidadania democrática em democracia de mercado,
e restringe a esfera pública (TAQUIEFF, 2002, p. 107; ver também BAUMAN,
1998, p. 66).
Outros teóricos sociais conceituam a globalização como globalização neoliberal,
com todas as conotações e denotações do neoliberalismo como doutrina político-
econômica. Assim, por exemplo, de acordo com Nelly Stromquist, “o
neoliberalismo enfatiza três prescrições relativas a políticas: desregulamentação,
privatização e liberalização” (STROMQUIST, 2002, p. 25-26; ver também
SLAUGHTER, 1998, p. 52). Por fim, T. Fotopoulos (1997) destaca os efeitos
corrosivos da globalização neoliberal sobre a democracia. O autor observa que
“contrariamente ao credo da Antiga Direita Liberal, baseado em tradição,
hierarquia e filosofia política, o credo da Nova Direita Neoliberal baseou-se na
crença cega nas forças do mercado, no individualismo e na ‘ciência’ econômica”.
Segundo o autor, “o movimento neoliberal [...] representou um ataque poderoso
contra o estatismo social-democrata”. As principais políticas propostas pelos
neoliberais, primeiramente na Inglaterra e nos Estados Unidos, pelas administrações
de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, e “posteriormente por governos no mundo
todo”, incluíram:
Liberalização de mercados; privatização de empresas estatais; redução do Estado previdenciário
para uma rede de segurança e incentivo paralelo à expansão do setor privado para a prestação de
serviços sociais (saúde, educação, esquemas de pensão e aposentadoria, e assim por diante);
redistribuição de impostos em favor de grupos de alta renda (FOTOPOULOS, 1997, p. 33-36).

Nossa tendência é concordar com essas visões sobre a realidade empírica da


globalização. De qualquer modo, quer essa realidade exista ou não, a globalização
passou a ser o conceito de legitimação nos discursos contemporâneos e nas atuais
políticas ligadas a economias nacionais e gestão de serviços públicos pelo Estado
nacional, de modo geral. Não surpreendentemente – e isso se ajusta perfeitamente
aos nossos propósitos –, foi usado também como conceito de legitimação em
discursos e políticas ligados à reestruturação e reforma de sistemas de educação,
Agamenon contra Prometeu 523

tanto no que diz respeito a currículos escolares e pedagogias como nos âmbitos de
avaliação, desempenho dos alunos ou governança escolar. Portanto, nesse sentido
– ou seja, como parte da argumentação frequentemente utilizada para justificar
reformas educacionais –, pode-se dizer que a globalização efetivamente adquiriu
uma existência ontológica (ver DAVIES; GUPPY, 1997, p. 435).

A sociedade do conhecimento (SC)


Como aconteceu com a globalização, a sociedade do conhecimento (SC) tornou-
se um discurso dominante na nova cosmópole florescente. A significância do
conhecimento e da informação como forças ativadoras na nova cosmópole foi
ressaltada por vários analistas sociais e políticos de diferentes convicções ideológicas
e epistemológicas (BELL, 1976, 1980; CASTELLS, 1989; DRUCKER, 1993).
Recentemente, Andy Hargreaves conceituou a SC em termos de três dimensões:
Em primeiro lugar, a SC engloba uma esfera científica, técnica e educacional expandida. […] Em
segundo lugar, envolve vias complexas de processamento e circulação de conhecimento e
informações em uma economia baseada em serviços. Em terceiro lugar, acarreta mudanças básicas
no modo de funcionamento das corporações, de modo que passam a acentuar a inovação contínua
em produtos e serviços, por meio da criação de sistemas, equipes e culturas que maximizam as
oportunidades de aprendizagem mútua e espontânea (HARGREAVES, 2003, p. 9).

Em resumo, pode-se dizer que a SC, assim como outros conceitos coincidentes,
tais como sociedade da informação e sociedade da aprendizagem, são sociedades em
que a promoção do conhecimento passou a ser um discurso dominante como fator
determinante no desenvolvimento econômico, social e individual, e nas quais “a
distinção fundamental entre as pessoas não será entre as que têm e as que não têm,
mas entre as que sabem e as que não sabem” (STAMATIS, 2005, p. 115; KLADIS,
1999, p. 82; KAZAMIAS, 1995; COMISSION OF THE EUROPEAN
COMMUNITIES, 1993).
Assim como no caso da globalização, existem variações nos conceitos de SC.
Entretanto o discurso predominante sobre o assunto parece destacar e enfatizar os
seguintes elementos epistêmicos:
• imenso desenvolvimento das TIC e tecnologias de aprendizagem sofisticadas; a
ascensão da Sociedade em Rede (CASTELLS, 1996, 2000);
• importância crescente das tecnologias de informação e do conhecimento
codificado para a acumulação de capital e o desenvolvimento sustentável em
uma economia global competitiva;
• racionalidade instrumental tecnocientífica;
• conhecimento como commodity comercializável, que pode ser negociada;
• formas de organização da vida e do trabalho em mutação (uma organização de
aprendizagem, uma força de trabalho flexível, um profissional do conhecimento);
• emergência de novos padrões de exclusão/inclusão (por exemplo, a divisão digital).
524 Kazamias

Portanto, assim como a SC, real ou imaginária, a globalização está bastante ligada
à nossa saga. Constitui o contexto ou a matriz na transformação de discursos
educacionais (na fala e na prática relacionadas a políticas), e o que podemos chamar
de culturas educacionais. No entanto, a partir de nosso modo mítico de pensar – a
síndrome de Agamenon –, a globalização, e particularmente seus aspectos economísticos
e racionalísticos, também é vista, metaforicamente, como maldição, ou como uma
anomia que põe em ação certas escolhas em educação enquanto sacrifica outras há
muito tempo valorizadas. Essas escolhas podem de fato ocasionar glória e benefícios.
Há quem alegue, por exemplo, que a globalização contribui para o bem-estar, que
torna as desigualdades menos claras e que torna os países economicamente mais fortes
e mais competitivos (ANDRIANOPOULOS, 2004, p. 14). Na mesma linha, na
Europa, a OCDE – a poderosa Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômicos – não vê mais que bons benefícios derivados da economia global em
evolução e do espaço de mercado global concomitante: crescimento da economia,
progresso material, aumento da prosperidade e do bem-estar humano, estabilidade
política e maior igualdade (SPRING, 1998, p. 160).
No mito grego, a decisão de Agamenon de saquear Troia resultou em benefícios
e espólios – a maioria deles materiais –, mas também em glória. Entretanto, o custo
humano desses benefícios foi muito alto. Além de levar ao sacrifício de sua filha
Ifigênia, a maneira de agir de Agamenon teve outras consequências trágicas: a
destruição total da cidade de Troia, o estupro e a escravização das mulheres troianas,
o massacre de homens e mulheres da nobreza e, depois de Troia, o assassinato do
próprio Agamenon por Clitemnestra, sua mulher, seguido do assassinato de
Clitemnestra por seu filho Orestes. Em nossa história, as políticas educacionais
impelidas pela globalização e pela SC também poderiam ter consequências terríveis
e desumanizadoras.

Conquistar Troia e ganhar o mundo: os discursos de reforma


educacional na cosmópole do conhecimento/da aprendizagem –
rumo ao homo economicus e ao cidadão cyborg?
Como indicaram estudos recentes, e também textos importantes de organizações
internacionais, como UE, OCDE, Banco Mundial e UNESCO, o discurso
dominante ligado à reforma da educação, como retórica (logos) e como sistema de
referência para a práxis das políticas públicas no nível macro e, no nível micro, da
escolarização, está impregnado por um ethos predominantemente econonomístico,
racionalidade instrumental, valores neoliberais e uma ética empresarial.
Pode-se dizer que essas ideias e esses valores são inerentes a termos como eficiência,
concorrência, resultado, rendimento, mercados, individualismo liberal, desestatização
ou desregulamentação, privatização, mercantilização, empreendedorismo e outros
similares. Referimo-nos a seguir a somente algumas poucas narrativas do mundo
internacional da educação.
Agamenon contra Prometeu 525

(a) Em um levantamento internacional de novas propostas educacionais para a


economia global, que envolveu as regiões ou orlas geoculturais da América do
Norte (Estados Unidos), da Europa (Reino Unido e Comunidade Europeia) e
Leste da Ásia (Japão e Singapura), além de organizações internacionais como
OCDE, Banco Mundial e UNESCO, Joel Spring registra o discurso dominante
contemporâneo (o discurso e a prática de políticas) sobre a relação de
interdependência entre a educação e a economia global:
Considera-se que a relação entre a educação e a economia global é de interdependência. A
concorrência na economia global depende da qualidade da educação, enquanto os objetivos
da educação dependem da economia. Nessas circunstâncias, a educação muda, à medida que
mudam os requisitos da economia. O resultado disso é que hoje a teoria do capital humano
domina as discussões da educação para a economia global (SPRING, 1998, p. 6).

Recorrendo a certos discursos e políticas sobre reformas educacionais – por


exemplo, escolha da escola ou dos pais, currículos nacionais, padrões acadêmicos
nacionais e de classe mundial e testes de desempenho nacional –, no auge do
neoliberalismo e da Nova Direita nos Estados Unidos e no Reino Unido, na
década de 1980 e no início da década de 1990, Spring escreveu: “as ideias de
livre mercado de Friedrich von Hayek proporcionaram as bases para discussões
nos Estados Unidos e no Reino Unido sobre escolha de escola, padrões e
currículos nacionais, eliminação do Estado de bem-estar social e aprendizagem
permanente” (SPRING, 1998, p. 123, 128).
(b) Com conteúdos semelhantes, discursos e declarações de políticas refletiram-se em
textos na cena mais ampla da Europa. É especialmente relevante, nesse sentido, o
discurso educacional presente nos diversos textos da União Europeia (documentos
governamentais de consulta sobre políticas, resoluções, diretrizes, circulares,
conclusões e programas). Em muitos desses documentos relacionados à educação
e treinamento, a ênfase está no desenvolvimento de habilidades e competências
para atender às necessidades do Mercado Comum Europeu – uma sociedade
europeia do conhecimento integrada e uma economia europeia competitiva
baseada no conhecimento. Embora façam referência a uma educação ampla e
sólida e a uma base ampla de conhecimentos, alguns textos também deixam claro
que certos tipos de conhecimentos, habilidades e competências são privilegiados
– por exemplo, educação em TIC, racionalidade instrumental tecnocientífica e
qualificações profissionalizantes – em nome da vantagem competitiva – ou seja,
para que a UE “torne-se a economia do conhecimento mais competitiva e
dinâmica do mundo, capaz de alcançar um crescimento econômico sustentável,
acompanhado de melhorias quantitativas e qualitativas no emprego e maior coesão
social”. Essa tendência instrumentalista do conhecimento pode ser facilmente
inferida a partir da comunicação ao Conselho do Parlamento Europeu, publicada
em 1997, com o título “Towards a Europe of Knowledge”:
526 Kazamias

Ao observar que estamos ingressando na sociedade do conhecimento, a Comissão, em sua


Agenda 2000, propõe que as políticas capazes de impulsionar essa sociedade (inovação,
pesquisa, educação e treinamento) passem a ser um dos quatro pilares fundamentais das
políticas internas da União […] A competitividade econômica, o emprego e a realização
pessoal dos cidadãos da Europa não têm mais, nem terão no futuro, a produção de bens
materiais como base principal. De agora em diante, a criação de riqueza real estará ligada à
produção e à disseminação do conhecimento, e dependerá, antes de mais nada, de nossos
esforços nos campos da pesquisa, da educação e da capacitação, e de nossa capacidade de
promover inovação. É por essa razão que devemos construir uma verdadeira Europa do
Conhecimento (COMMISSION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES, 1993).

Embora esteja associado à ênfase no apego à tradição cultural e epistemológica


humanística por meio do simbolismo”, o foco no instrumentalismo e na opção
tecnológica presente no discurso da UE sobre educação e treinamento está
evidente também nos diversos Programas de Ação da UE, como Socrates,
Leonardo da Vinci, Erasmus, Arion e Comenius. Essas iniciativas, que abrangiam
virtualmente todos os aspectos dos sistemas de educação e treinamento
induziram estudantes, educadores, funcionários do campo da educação e
responsáveis pelas políticas nos Estados-membros a adotar a lógica de busca de
recursos europeus para cumprir suas expectativas educacionais, a fim de
corresponder à racionalidade instrumental das diretrizes da UE. Os países da
Europa Meridional tornaram-se ainda mais dependentes dos subsídios da UE,
com a canalização de recursos dos Fundos de Coesão (o Fundo Social Europeu
e o Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional) para os sistemas nacionais
de educação, levando em conta as Estruturas de Apoio Comunitário propostas
pelos Estados. Esses mecanismos subsidiam políticas nacionais de educação que
se encaixam diretamente na lógica das comunicações oficiais sobre políticas
mencionadas anteriormente, promovendo certos tipos de desenvolvimento
econômico e social, e conduzindo à sociedade do conhecimento e à economia
baseada no conhecimento contempladas. Ao lidar com o suposto compromisso
de desenvolver um cidadão europeu ativo na nova cosmópole europeia globalizada,
a Comissão Europeia foi mais clara quanto às competências cognitivas e
instrumentais do que quanto às características e virtudes ou disposições cívicas
do cidadão imaginado ou construído na nova Europa do Conhecimento (THE
EUROPEAN COMMISSION, 2001; COMMISSION OF THE EUROPEAN
COMMUNITIES, 1995; FIELD, 1998).
(c) Várias ideias e diversos valores fundamentais já mencionados podem ser
encontrados em textos e pronunciamentos de outras organizações
internacionais, tais como OCDE e Banco Mundial. A OCDE, por exemplo,
aceitou a globalização como a tendência dominante na economia mundial e a
criação de um sistema de mercado global sem fronteiras. Além disso, como
observamos anteriormente, a OCDE vê somente benefícios derivados da
Agamenon contra Prometeu 527

economia global em evolução e do espaço de mercado global concomitante. O


discurso educacional e as políticas da OCDE estão conectados àquilo que
anteriormente chamamos de aspectos economísticos e racionalísticos da
globalização, que podem ser assim resumidos:
A educação desempenha um duplo papel nos planos da OCDE. Primeiro, a educação deve
ajudar o desenvolvimento de economias de mercado por meio do desenvolvimento de
recursos humanos e de aprendizagem permanente. Segundo, a educação deve remediar
problemas resultantes da globalização, como o desemprego, a desigualdade econômica
crescente e os medos da mudança social e econômica. Esse duplo papel é similar à função da
educação nas políticas da União Europeia (SPRING, 1998, p. 160).

Mais recentemente (2002), a OCDE reiterou sua abordagem economística e


instrumentalista da educação e do treinamento em um texto sobre políticas
publicado por ocasião da criação de uma Diretoria de Educação pelo secretário-
geral da OCDE, “em reconhecimento, pelos governos dos Estados-membros,
da importância cada vez maior da política educacional”. Nas palavras de Barry
McGraw, diretor dessa unidade:
As sociedades contemporâneas demandam conhecimentos e habilidades de alto nível. Os
indivíduos que não os têm encontram dificuldade para participar da vida social e econômica
de maneira eficaz e, portanto, a preocupação com a equidade na educação é tão importante
quanto a preocupação com a qualidade. O conhecimento e as habilidades exigidos [em uma
economia global] também mudam, o que faz da aprendizagem permanente uma necessidade
cada vez maior. O trabalho da OCDE em educação usa uma perspectiva de duração de toda
a vida, muda o foco do ensino para a aprendizagem, e conecta as políticas educacionais com
as políticas econômicas e outras políticas de caráter social (OECD, 2002, p. 7).

(d) Os discursos e políticas de reforma educacional que atribuem importância


especial a eficiência, desempenho, racionalidade instrumental e produção de
conhecimento, instrução escolar e valores mercantilizáveis também podem ser
vistos em países tão diferentes como Japão, Singapura, Hong Kong, Grécia,
Chipre e Turquia (para Grécia, ver KAZAMIAS [1998]; para Chipre, ver
KAZAMIAS [1994, 1999]; para Hong Kong e Singapura, ver MOK [2000, p.
150-151, 172] e SPRING [1998, p. 86]; para Turquia, ver OECD [1989, p.
12-14, 93-99]; ZORLU-DURUKAN [1999] e TURKEY [2006]; para Japão,
ver GREEN [1999]).
(e) Cabe aqui uma referência às observações perspicazes de Andy Hargreaves sobre
os discursos contemporâneos de reforma do ensino (e da educação) na sociedade
do conhecimento e na economia baseada no conhecimento a ela relacionada.
Em seu livro “Teaching in the knowledge society: education in the age of
insecurity” (2003), Hargreaves argumenta que as sociedades capitalistas
contemporâneas, que são também economias baseadas no conhecimento, estão
a serviço principalmente do bem privado, e suas escolas estão fundamentalmente
orientadas ao desenvolvimento de aprendizagem cognitiva, habilidades e
528 Kazamias

competências instrumentais para uma SC e uma economia do conhecimento.


Entretanto, segundo o autor, uma economia baseada no conhecimento é uma
“força de destruição criativa”. De um lado, “estimula o crescimento e a
prosperidade”, porém, de outro, “sua busca inexorável de lucro e interesse
próprio também deforma e fragmenta a ordem social”. Na economia baseada
no conhecimento, os sistemas escolares “tornaram-se obsessivos com a imposição
e a microgestão da uniformidade do currículo”, em vez de “fomentar criatividade
e inventividade”. Hargreaves continua:
Em lugar de missões ambiciosas de compaixão e comunidade, as escolas e os professores
foram espremidos na visão estreita dos resultados de testes, metas de realização e classificações
de responsabilização. Em vez de cultivar a identidade cosmopolita e a emoção fundamental
da simpatia, que Adam Smith considerava a base emocional da democracia, são muitos os
sistemas educacionais que promovem sentidos exacerbados e egocêntricos de identidade
nacional (HARGREAVES, 2003, p. xvi–xvii).

(f) Por fim, cabem aqui algumas observações adicionais com respeito à transformação
do ensino superior na época da globalização. Um estudo recente da OCDE
observou que
a educação superior está mudando para atender às expectativas do cliente e dos interessados, para
responder de forma mais ativa à mudança social e econômica, proporcionar formas mais flexíveis
de ensino e aprendizagem, focalizar mais fortemente as competências e as habilidades através do
currículo (OECD, 1998, p. 49).

Podem ser acrescentadas a essas características outras ideias relacionadas, como


a “universidade configurada pelo mercado” de Cowen, a “performatividade”
de Lyotard e outras como, por exemplo, “universidade empreendedora” e
“comercialização da educação universitária”. A caracterização feita por Cowen
da universidade configurada pelo mercado é esclarecedora:
Epistemologicamente, a universidade moldada pelo mercado deve entregar conhecimento
comercializável, vendável, pragmaticamente útil. A universidade moldada pelo mercado existe
no interior de um mercado do conhecimento, e deve responder às demandas de seus clientes
e consumidores (por exemplo, estudantes, financiadores de pesquisa). A produção de
conhecimento da universidade também deve ser mensurável – do contrário, não se pode
julgar o desempenho. Assim, devem ser tomadas decisões de gestão com relação ao valor
diferencial de produtos do conhecimento, tomando como referência regras e critérios
determinados externamente (COWEN, 1996; ver também COWEN, 2000).

A síndrome de Agamenon: um epimítio

Na admirável cosmópole nova da globalização e na sociedade do conhecimento


tecnológico / da informação, sociedades particularmente avançadas em termos
econômicos, como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Austrália, Japão e outras
Agamenon contra Prometeu 529

dos chamados Tigres Asiáticos (Singapura, Hong Kong, Coreia do Sul e Taiwan),
que dependem cada vez mais de conhecimento científico e tecnológico para
participar da nova cosmópole de maneira eficaz e competitiva, são convocadas a
colocar a maior parte dos ovos do conhecimento na cesta tecnocientífica.
Consequentemente, pressionam as instituições educacionais tradicionalmente
responsáveis pela produção e pela disseminação do conhecimento – ou seja, as
escolas, e sobretudo as faculdades e universidades – a dar maior importância ao
conhecimento tecnocientífico e à racionalidade instrumental. Em troca, a
universidade fica atrelada ao vagão da economia, sua tradicional autonomia se
deteriora, e o mesmo ocorre com a ideia da universidade liberal-cultural moderna.
Em síntese, observa-se a transformação da universidade moderna, que de studium
generale passa a ser studium speciale, em que a especialização e o instrumentalismo
tecnocientíficos estreitos suplantaram e eclipsaram o que, em inglês, é conhecido
como liberal education (educação liberal), especificamente o cânone humanístico
liberal, o Bildung und Wissenschaft alemão, ou a paideia grega (KAZAMIAS, 1997,
p. 39-42).

Os sacrifícios humanísticos:
justiça social, cidadania e a paideia da alma
O discurso relacionado a crise e reforma na educação – conversas de políticas e
prática de políticas – apresentado acima, oferece um excelente cenário moderno
para usar o antigo mito de Agamenon em nossa interpretação crítica desse
fenômeno político-econômico e sociocultural contemporâneo. No antigo mito,
Agamenon foi amaldiçoado devido a uma arrogância familiar que, na forma
dramatizada por Eurípides, significava que, como vingança, mas também para
alcançar a glória, o engrandecimento e o bem da Hélade, ele deveria seguir um
curso de ação que exigia o sacrifício de sua filha, com consequências essencialmente
trágicas. Para essa tarefa, a alma humana, personificada em Ifigênia, tinha que ser
sacrificada. Em nosso drama, vemos a globalização como uma maldição ou uma
anomia, como um poder do conhecimento imperial que obriga a construção de
certo discurso de reforma na educação. Nossa hipótese é que na admirável
cosmópole nova da globalização e na sociedade do conhecimento tecnológico / da
informação, a hegemonia desse discurso educacional – como logos e como práxis –
pode de fato gerar riqueza e suntuosos espólios, como entoava enigmaticamente o
coro de mulheres gregas ao despedir-se de Agamenon, nas estrofes finais da tragédia
de Eurípedes. Entretanto, insistimos, o tipo de educação e, acrescento, de pedagogia
exigida para essa cornucópia de conhecimento global implica, a nosso ver, diversos
custos ou descontentamentos negativos. Entre esses descontentamentos – ou, em
nosso modo mítico de ver, sacrifícios – destacam-se especialmente três sacrifícios
humanos ou humanísticos: (a) a erosão da esfera pública, da democracia e da
cidadania democrática; (b) a desprofissionalização e a desqualificação dos
530 Kazamias

professores; e (c) o sacrifício do conhecimento humanístico e daquilo que podemos


chamar, metaforicamente, de paideia da alma.

A erosão do domínio público, da democracia e da cidadania


democrática; o individualismo possessivo e a hesitação da democracia
(Jean Elshtain, 1995).

Como vimos acima, muitos teóricos sociais, economistas políticos e outros


analistas, ao conceituar a globalização, enfatizam mercados, o setor privado e o
individualismo possessivo como motores de crescimento econômico em um mundo
cada vez mais competitivo. Vêm daí as denominações “globalização neoliberal”
(por exemplo, STROMQUIST, 2002; FOTOPOULOS, 1997; GIROUX, 2002),
“fundamentalismo de mercado” (por exemplo, SOROS,1998) e “McWorld” (por
exemplo, BARBER, 1995), e também as prescrições de políticas de
desregulamentação, perda de soberania do Estado-nação (BAUMAN, 1998, 2002),
liberalização e privatização. Em consequência dessa ênfase, como argumentou Falk,
“o político é apagado diante do econômico” e, entre outras coisas, “o Estado na
condição de instrumento de bem-estar humano vem sendo sutilmente deformado”.
O Estado também vem “perdendo sua capacidade de prover os ingredientes sociais,
econômicos e físicos em muitos ambientes, dentro de suas próprias fronteiras”, o
domínio público vem sendo restringido e as instituições democráticas,
enfraquecidas (FALK, 1999, p. 49-51).
Na mesma linha, Taquieff, o filósofo francês mencionado anteriormente, escreveu:
O processo de globalização, que é sempre acompanhado da representação simbólica de uma
ideologia utópica, messiânica e pálida de salvação por meio da ação tecnocomercial, torna ilegal
o político, ao mesmo tempo que legitima totalmente o técnico/tecnológico, o econômico e o
monetário. O tecido/a coesão social dissipa-se e, em seu lugar se dão somente as interações das
trocas livres. O político é apagado diante da mídia e do mercado, e as instituições democráticas
são enfraquecidas (TAQUIEFF, 2002, p. 16).

Segundo Benjamin Barber, no McWorld, a “justiça rende-se aos mercados”. O


McWorld “se abstém da sociedade civil e menospreza a cidadania democrática”, e
é indiferente à liberdade civil. Barber acrescenta, em linguagem metafórica: “se
tradicionalmente os guardiões da liberdade eram as instituições democráticas e a
Declaração dos Direitos, os novos templos da liberdade, segundo sugere George
Steiner, serão McDonald’s e Kentucky Fried Chicken” (BARBER, 1995, p. 6-7;
ver também FOTOPOULOS, 1997, p. 33-36).
O pedagogo crítico Henry Giroux critica duramente o discurso neoliberal
global, como “a ideologia mais perigosa do movimento histórico atual”, e explica:
[O neoliberalismo] agride tudo o que é público, mistifica a contradição básica entre valores
democráticos e fundamentalismo de mercado, e enfraquece qualquer noção viável de ação política,
Agamenon contra Prometeu 531

sem oferecer uma linguagem capaz de conectar as considerações privadas às questões públicas
[…] Sob o domínio do neoliberalismo, a política é dirigida pelo mercado, e as reivindicações de
cidadania democrática são subordinadas aos valores do mercado […] Nesse discurso, a boa vida
‘é construída em termos de nossas identidades na condição de consumidores – nós somos o que
compramos’. Vida boa significa viver em um mundo de grifes corporativistas [...] a cultura
corporativa repousa na noção antiutópica do que chamamos mercadotopia, e caracteriza-se por
uma violação colossal da equidade e da justiça (GIROUX, 2002, p. 428-430, ênfase minha).

Como seria de esperar, o enfraquecimento do Estado e a erosão concomitante


da esfera pública e da cidadania democrática estão provocando efeitos negativos
na educação. É preciso observar aqui que desde o Iluminismo e o início da
modernidade, e com o surgimento do Estado-nação, a educação pública foi vista
como um instrumento ideológico importante na construção das nações e na
formação do Estado (GREEN, 1990). Na atual nova cosmópole neoliberal global
dirigida pelo mercado, em que o individualismo possessivo e o bem privado
suplantam a cidadania participativa, parece que os conselhos sensatos do antigo
sábio Aristóteles e do filósofo moderno da educação John Dewey sobre a
inextricabilidade da educação pública e da democracia foram deixados de lado,
ocultados ou sacrificados em nome da eficiência econômica, da competitividade,
da privatização e da acumulação de riquezas. Falando em termos gerais sobre os
efeitos da globalização neoliberal no ensino público em sociedades centrais, isto é,
desenvolvidas, Nelly Stromquist e Karen Monkman observaram:
A educação está perdendo terreno como bem público para tornar-se uma mercadoria
comercializável. Limitou-se a responsabilidade do Estado como provedor de escolarização, muitas
vezes garantindo educação básica, porém, em troca, extraindo taxas de utilização nos níveis mais
elevados de educação pública, como qualquer outro serviço no mercado [...] Com a nova
concepção, a política social passou para um plano secundário com relação ao mercado, e
‘atomizou-se o social’, concentrando-se nos interesses dos indivíduos como consumidores, e não
como cidadãos (STROMQUIST; MONKMAN, 2000, p. 12-13, 15).

Em uma linguagem bem mais alarmista, Nicholas Burbules e Carlos Torres


observaram: “a educação pública está hoje em uma encruzilhada […] do nosso
ponto de vista, hoje está em jogo nada menos do que a sobrevivência da forma
democrática de governança e do papel da educação pública nesse empreendimento”
(BURBULES; TORRES, 2000, p. 23).
Em 1995, Jean Elshtain, eminente cientista política, observava em seu
importante livro “Democracy on trial” que, nos Estados Unidos, a esfera cívica
caracterizava-se por ceticismo, tédio, apatia, desespero, violência, “exaustão,
oportunismo, atomismo, e [...] uma perda progressiva de sociedade civil”
(ELSHTAIN, 1995). A autora deplorava o fato de que talvez a democracia não
fosse suficientemente forte e resiliente para sobreviver. Aconselhava os americanos
a levar em conta as palavras de Aristóteles, afirmando que a viabilidade de um
regime democrático e o ethos democrático pressupunham uma educação e, em
532 Kazamias

termos mais amplos, uma paideia voltada, acima de tudo, para a virtude política
(areté). Nas palavras de Elshtain, os Estados Unidos deveriam dar atenção à
“aprendizagem liberal e ao cultivo da virtude cívica” (ELSHTAIN, 1995, p. 2).
No mesmo comprimento de onda, Benjamin Barber afirmou que a educação
pública e a democracia estão indissoluvelmente ligadas, e que “a instrução escolar
pública e o bem-estar público estão intimamente ligados”. Referindo-se à tendência
norte-americana a enfatizar na educação a racionalidade instrumental e as
habilidades profissionalizantes para manter trabalhadores competitivos em uma
economia cada vez mais dominada pelo que Robert Reich chamou de “profissionais
analistas simbólicos”, Barber afirmou que os americanos precisavam lembrar-se de
que a educação tinha também “uma missão cívica fundamental”. Assim como
Elshtain, também instou a levar mais a sério uma “educação em humanidades” nos
Estados Unidos, pois a “educação em humanidades e a educação cívica
compartilham um currículo de reflexão crítica e pensamento autônomo”
(BARBER, 1997, p. 5). Mais recentemente, uma coleção de estudos
apropriadamente intitulados “Schools or markets? Commercialism, privatization,
and school-business partnerships” (2005) documenta os efeitos corrosivos sobre a
missão cívica das escolas públicas e a cidadania democrática que resultaram do
envolvimento cada vez maior do mundo corporativo americano na educação
pública, e da comercialização concomitante das escolas e instituições americanas
de ensino superior (BOYLES, 2005).

Desprofissionalização e desqualificação
do professor: de profissional pedagógico
relativamente autônomo a mestre tecnocrata?
Paralelamente à erosão do domínio público e à retenção da democratização da
democracia, observa-se uma tendência de desprofissionalização, ou o que é
conhecido como desqualificação do professor. De pedagogo e intelectual público
relativamente autônomo, o professor vem-se tornando um mestre tecnocrata, cuja
tarefa passa a ser organizar e ensinar com eficácia, porém de forma não crítica, um
conhecimento prescrito oficialmente (currículos) e métodos para atingir resultados
altamente mensuráveis em exames (STROMQUIST; MONKMAN, 2000, p. 13).
E como acrescenta Boyles, “classificação e preparação para currículos orientados
para a vida futura – ou seja, pró-consumismo, formação de força de trabalho e
preparação para atividades profissionais, e abordagens orientadas para a
qualificação” (BOYLES, 2005, p. 220-221).
Segundo Hargreaves, em países como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, o
trabalho do professor intensificou-se, formalizou-se e tecnicizou-se: “assemelha-se
mais à atividade de um trabalhador braçal infeliz do que ao de um profissional
autônomo a quem confiamos o exercício responsável da autoridade e um
julgamento justo na sala de aula, que ele conhece melhor do que ninguém”
Agamenon contra Prometeu 533

(HARGREAVES, 2003, p. 119; ver também APPLE, 1986). Essencialmente, o


pedagogo crítico freireano Donaldo Macedo deixa implícita a mesma visão sobre
a tecnicização e a burocratização não críticas do ensino, em uma crítica polêmica
da abordagem bancária da alfabetização instrumentalista e baseada em competência
– em suas formas inferiores (escolas) e superiores (universidades). Segundo Macedo:
Para alguns, a abordagem instrumentalista da alfabetização pode parecer interessante para
produzir leitores capazes de atender às demandas de nossa sociedade tecnológica cada vez mais
complexa. No entanto tal abordagem enfatiza a aprendizagem mecânica das habilidades de leitura,
sacrificando a análise crítica da ordem social e política que cria a necessidade de ler antes de mais
nada […] A abordagem instrumentalista levou ao desenvolvimento de alfabetizados funcionais
[…] [ela] promove também a alfabetização como um veículo para avanço econômico, acesso a
empregos e aumento do nível de produtividade (MACEDO, 1993, p. 189).

Em outro contexto, em um diálogo publicado na “Harvard Educational Review”,


Donaldo Macedo e o influente pedagogo crítico Paulo Freire afirmam que o professor
burocratizado não crítico e cada vez mais objetivo, que “nega ao oprimido o espaço
pedagógico para desenvolver uma postura crítica com relação ao mundo,
especialmente o mundo que o reduziu a um objeto semi-humano, explorado e
desumanizado, é um educador que é cúmplice da ideologia do opressor” (FREIRE;
MACEDO, 1995, p. 388-389). E como alegou com muita propriedade D. R. Boyles:
As escolas [nos Estados Unidos] hoje são lugares onde o comercialismo penetra rapidamente. Os
alunos, os professores e os líderes raramente criticam essa intrusão comercial (o que resulta em
consumidores não críticos e cidadãos não críticos) […] Infelizmente, as oportunidades de
questionamento são limitadas, uma vez que aplicação de testes, classificação e preparação para
currículos orientados para a vida futura (ou seja, pró-consumismo, formação de força de trabalho
e para atividades profissionais, e abordagens orientadas para a qualificação) não deixam espaço
para tais investigações. O problema é que, por natureza, parcerias comerciais inibem o
questionamento e, em vez disso, desenvolvem consumidores não críticos, e não cidadãos
criticamente transitivos (BOYLES, 2005, p. 220-221).

O sacrifício da paideia/cultura humanística liberal


O terceiro descontentamento significativo da globalização, sobre o qual muito
pouco foi escrito ou dito, foi seu efeito sobre o conteúdo epistêmico-cultural da
educação, especialmente sobre a paideia/cultura humanística liberal e, de modo
mais geral, a tradição educacional liberal. Uma ilustração dessa ideia ou desse
sacrifício é retratada iconograficamente em uma charge publicada no jornal inglês
“The Times” (22 de agosto de 2000). A charge mostra uma menininha sentada
em um sofá diante do computador, batendo diligente e impetuosamente no teclado.
A seu lado, há uma cesta de papéis com documentos com os títulos “história”,
“religião” e “teatro”. Na legenda abaixo do desenho, está escrito: “História e
cultura? Agora não!”
534 Kazamias

Permitam-me aprofundar aqui um pouco mais esse acontecimento histórico


importante do destino da paideia humanística liberal, desde sua construção no pós-
Iluminismo na Europa e na América – no século XIX – até a atual admirável
cosmópole nova da globalização e a sociedade do conhecimento tecnológico/da
informação.

Fase I: Construindo na Europa e na América do


pós-Iluminismo o cânone humanístico liberal eurocêntrico
sexista e elitista clássico/paideia humanística liberal

O conceito clássico de paideia liberal humanística (PLH), ou o que chamamos


de “cânone humanístico liberal” (CHL) – primeiro tendo como núcleo central
estudos clássicos e, mais tarde, com um conteúdo epistêmico e cultural mais
abrangente, com uma orientação instrumentalista não prática, não utilitária e não
econômica –, foi construído no período pós-iluminista, no século XIX, e
promovido na educação secundária e superior na Europa e nos Estados Unidos
(nas escolas, nas faculdades e nas universidades). Na Inglaterra, era denominado
educação liberal; na França, culture générale; na Alemanha, Allgemeine
Menschenbildung; e na Grécia, paideia humanística clássica (KAZAMIAS, 1960,
p. 264; ARNOLD, 1875, p. x; HALLS, 1965, p. 2; McCLEAN, 1995, p. 24;
SORKIN, 1983, p. 63; DIMARAS, 1973, p. 60-67; ANTONIOU, 1987).
Aplicada à educação pós-secundária, a experiência histórica de college education
nos Estados Unidos no século XIX merece destaque especial. Um estudo recente
de Caroline Winterer documenta a importância que o humanismo clássico (grego
e romano) tinha no currículo das faculdades americanas “desde a fundação do
Harvard College, em 1636, até a década de 1880, quando as faculdades começaram
a abandonar as exigências de grego e de latim”. Segundo Winterer, “as escolas e
faculdades foram a incubadora do classicismo até o final do século XIX” – um
classicismo definido não em um sentido estreito, mas no sentido holístico mais
vasto de paideia: em outras palavras, “o processo de plena realização do potencial
(intelectual e moral) na natureza humana por meio da educação”. Acreditava-se
que a educação humanística clássica no sentido abrangente de paideia era
fundamental para cultivar as mentes e “formar seres humanos éticos e cidadãos
corretos”. Acreditava-se também que a paideia humanística clássica ajudaria a
combater os piores efeitos ou cânceres da modernidade, como “a industrialização,
o materialismo, a decadência cívica, a especialização e o anti-intelectualismo”
(WINTERER, 2002, p. 1-4).
Assim como nas escolas secundárias europeias e nas instituições americanas de
ensino superior, o cânone humanístico liberal da paideia (PHL) permeava o
conceito da universidade europeia moderna desenvolvido no período do pós-
Iluminismo pelo neo-humanista alemão Wilhelm von Humboldt e pelo cardeal
Agamenon contra Prometeu 535

inglês John Henry Newman. Na ideia de universidade de Newman, o objeto de


estudo não era prático ou útil, ou seja, um conhecimento utilitário, mas
estritamente educacional e intelectual. Para Newman, a universidade era um lugar
para a educação liberal e o cultivo de cavalheiros cultos com mentalidade filosófica
(READINGS, 1996, p. 65-75).
A ideia de Humboldt de educação humanística liberal era mais abrangente que a
de Newman. Os principais conceitos da ideia humboldtiana de Universidade de
Cultura neo-humanística alemã eram Bildung (o caráter harmonioso do
desenvolvimento do homem), Wissenschaft (estudo científico) e Kultur (cultura/cultura
nacional). Segundo Gert Biesta, Bildung “refere-se […] ao cultivo da vida interior,
que é o espírito humano, a mente e a pessoa humana; ou, mais precisamente, da
humanidade do indivíduo”. Além disso, o mesmo autor observou que “Bildung era
muito mais do que simplesmente um ideal educacional”. Era também
e talvez até principalmente, uma resposta à questão que envolve o papel do sujeito na sociedade
civil emergente, ou seja, como um sujeito que pode pensar por si mesmo (não por si mesma) e
que é capaz de ter opiniões próprias […] Nesse sentido, o conceito moderno de Bildung tem
também uma história política (BIESTA, 2003, p. 62, ênfase minha).

Na ideia de educação universitária moderna, tanto sob a óptica alemã quanto


na inglesa, tal como conceituadas por Humboldt e Newman respectivamente, nota-
se uma nítida preferência por cultura e episteme (ciência) – em alemão, Bildung
und Wissenschaft – como missão e raison d’être que definem a universidade. Nas
duas ideias, a cultura intelectual – o elemento fundamental de uma educação
universitária – enfatizava o aspecto filosófico liberal em vez do mecânico ou útil.
E nessa estrutura epistemológico-cultural, a cultura literária nacional foi aos poucos
ganhando ascendência em ambos os casos (READINGS, 1996, p. 75 e seguintes).

Contestando a hegemonia da paideia da cultura humanista liberal

Com o advento de acontecimentos modernizadores, como a industrialização e


a democratização, e as consequentes mudanças políticas econômicas, intelectuais e
socioculturais, a hegemonia da paideia/cultura humanística liberal eurocêntrica e
elitista, definida principalmente em termos de educação humanística clássica,
começou a ser contestada como o elemento básico do currículo da escola secundária
e da universidade. Ao mesmo tempo, o conceito de educação liberal era
reexaminado e redefinido. Disciplinas modernas, como idiomas modernos,
literatura moderna, história e ciências naturais, eram reivindicadas como parte da
educação liberal, e mesmo de uma cultura humanística (KAZAMIAS, 1960; ver
também JORDAN; WEEDON, 1994, p. 23 e seguintes).
O questionamento da hegemonia do cânone humanístico liberal, centralizado na
educação clássica, também era evidente na França, na Alemanha e nos Estados Unidos
536 Kazamias

(para França, ver TALBOTT [1969, p. 14]; para Alemanha, ver ALBISETTI [1987,
p. 182-183]; para Estados Unidos, ver TOZER, VIOLAS e SENESE [2002]).

Fase II: Que conhecimento tem mais valor em uma


sociedade livre e democrática? Uma sequência moderna

Na Europa Ocidental e na América, a controvérsia do conhecimento e o conflito


de estudos a ela associado, assim como os conceitos de educação liberal e pessoa
educada de modo liberal continuaram a ser temas de discussão e controvérsia em
diferentes conjunturas históricas no século XX. Esses discursos manifestaram-se
principalmente nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e, mais
recentemente, na nova cosmópole da modernidade tardia, e mesmo na pós-
modernidade. A literatura sobre esse tema é vasta, e um exame, ainda que
superficial, foge ao escopo desta apresentação. Aqui destacaremos somente alguns
dos principais acontecimentos e discursos no mundo anglo-saxão no período pós-
guerra (décadas de 1950 e 1960), e o período mais recente da globalização e da
sociedade da informação/do conhecimento tecnológico que são relevantes para
nossa argumentação. Em primeiro lugar, destacaremos os principais discursos dos
anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Nos Estados Unidos, as principais universidades confrontavam-se com as
questões relacionadas: em que deveria consistir a experiência intelectual e, em um
sentido mais amplo, educacional de um estudante universitário? Que
conhecimentos, habilidades intelectuais/mentais e características de personalidade
deve ter uma pessoa diplomada no ensino superior para ser considerada uma pessoa
e um cidadão educado em uma sociedade democrática livre? As Universidades de
Harvard, Colúmbia e Chicago, por exemplo, mas também outras faculdades e
universidades na área de humanidades, produziram relatórios e livros de grande
influência, em que desenvolveram e expandiram o conceito de educação liberal,
que, na América, era vista como coextensiva à educação geral. Especificamente para
os propósitos deste artigo, tanto o famoso Relatório Harvard, “General education
in a free society” (1947), como o Relatório Colúmbia, “Reforming of general
education” (1966), recomendavam fortemente a preservação da educação
geral/liberal como a base da educação superior (BELL, 1966, p. xix). De acordo
com o Relatório Harvard: “a tarefa da democracia moderna é preservar o antigo
ideal de educação liberal e estendê-lo tanto quanto possível a todos os membros
da comunidade” (GENERAL EDUCATION IN A FREE SOCIETY, 1952, p.
53). Durante o mesmo período, Robert Hutchins, da Universidade de Chicago
(UC), que também tinha colocado as artes liberais – com forte ênfase em
humanidades – como núcleo do amplamente divulgado currículo de graduação da
UC, censurou o que percebia como uma concepção pragmática, ao estilo de loja
de conveniência, da universidade americana, com sua orientação profissionalizante
Agamenon contra Prometeu 537

instrumental. Em seus numerosos textos e palestras, Hutchins defendeu


energicamente uma educação em artes liberais, indispensável e inevitável, em sua
opinião, para uma democracia efetiva (HUTCHINS, 1936, 1952, 1953;
LYFORD, 1962/1986)3.
Na Grã-Bretanha, cem anos após Spencer questionar “qual conhecimento tem
mais valor?”, outro inglês, o renomado cientista, romancista e figura pública C. P.
Snow, proferiu, em 1959, sua famosa Palestra Rede4: “The two cultures and the
scientific revolution”. Assim como o ensaio de Spencer, a palestra de Snow
despertou grande entusiasmo e iniciou um acalorado debate que, segundo uma
crítica recente, “até hoje assola a mídia” (VAN DIJCK, 2002). A tese polêmica de
C. P. Snow foi apresentada de maneira inequívoca nestes termos:
Acredito que a vida intelectual de toda a sociedade ocidental está se dividindo cada vez mais em
dois grupos [...] intelectuais literários em um polo, e no outro os cientistas. […] Entre os dois,
um abismo de incompreensão mútua – às vezes (particularmente entre os jovens) hostilidade e
aversão, mas, acima de tudo, falta de entendimento. […] Essa polarização é uma perda total para
todos nós. Para nós como pessoas e para nossa sociedade (SNOW, 1959, p. 2 e seguintes).

Sob a perspectiva deste estudo, os discursos americano e inglês no período pós-


Segunda Guerra Mundial ilustram a mudança de concepções quanto aos tipos de
conhecimento e cultura que constituíam uma educação geral ou liberal e que,
concomitantemente, um cidadão educado deveria possuir em uma sociedade
democrática capitalista avançada, na qual ciência e tecnologia eram consideradas
desiderata fundamentais para o progresso e o desenvolvimento econômico.
Mostram também que, no século XX, o conceito de PHL do século XIX, centrado
em um currículo humanístico clássico, já não era dominante na educação, embora
as escolas privadas e as escolas secundárias acadêmicas britânicas enfatizassem um
conceito expandido de educação humanística que incluía história e literatura, além
das disciplinas clássicas (em particular o latim). Esse conceito ainda era considerado
conhecimento de alto nível nas universidades britânicas e em algumas faculdades
americanas de artes liberais (para a Grã-Bretanha, ver McLEAN [1990, p. 26]).
Nos Estados Unidos, o currículo humanístico nas escolas secundárias praticamente
desapareceu. Quem venceu a luta pelo currículo americano, como mostrou Herbert
Kliebard, foram os defensores da eficiência social (KLIEBARD, 1995).
A partir do exame dos discursos acima, o historiador comparativista pode extrair
certas inferências pertinentes para este estudo. Em primeiro lugar, é evidente que,
por volta da metade do século (nas décadas de 1950 e 1960), pelo menos no mundo
anglo-saxão, a educação/cultura liberal ou geral recebeu uma nova conceituação, e

3. Ver em Kimball (1986) uma análise mais detalhada das controvérsias sobre a educação liberal nos Estados
Unidos no período pós-Segunda Guerra Mundial.
4. NT: A Palestra Rede é uma apresentação pública realizada uma vez por ano. O nome remete a sir Robert
Rede, que foi presidente do Tribunal de Justiça Comum no século XVI.
538 Kazamias

seu espaço ou seu conteúdo epistêmico ampliou-se. Já não se podia dizer que a
paideia/cultura humanística, tanto no sentido clássico (a cultura do classicismo de
Winterer, em WINTERER, 2002) como, sem dúvida, no sentido moderno mais
amplo de educação em humanidades ocupava uma posição de destaque na educação
geral ou liberal dos cidadãos em uma sociedade democrática livre. Os clássicos – latim
e grego – praticamente desapareceram nos Estados Unidos, enquanto na Europa
humanística tradicional, as humanidades eram rebaixadas a uma posição no máximo
igual à das ciências naturais e estudos sociais. Na pior das hipóteses, a paideia/cultura
humanística desvalorizou-se em termos de utilidade e valor instrumental no mundo
pós-industrial em desenvolvimento, cada vez mais tecnocientífico, em comparação
com as ciências em ascensão. Mesmo na Inglaterra, tradicionalmente humanista,
onde as artes liberais humanísticas – o trivium5 – dominavam a universidade, como
observou posteriormente Basil Bernstein, “o que estamos vendo é o desenvolvimento
crescente das disciplinas especializadas (ciências e matemática) do quadrivium”6
(BERNSTEIN, 1996). Uma segunda inferência é que, apesar de seu conteúdo e de
sua orientação epistêmicos mais amplos de duas ou três culturas, a educação
geral/liberal continuou a ser elitista e basicamente eurocêntrica.

Contestando a sequência moderna e a crise nas humanidades


O conflito de estudos e culturas e o discurso relacionado sobre o conteúdo
epistêmico da educação liberal, o lugar de fato ocupado pela educação/cultura
liberal nas escolas, faculdades e universidades, e a questão subordinada do lugar
ocupado pela educação/paideia humanística continuaram a caracterizar as
controvérsias pedagógicas e ligadas a conhecimentos, com diferentes graus de
intensidade, nas décadas seguintes do século XX.
Na década de 1960, a associação Estudantes por uma Sociedade Democrática
questionou o valor dos estudos humanísticos na educação americana, por
considerá-los elitistas e presos ao passado, sem relevância para as questões urgentes
do presente. Esses estudantes exigiam relevância de conhecimento (RASIS, 1988,
p. 135-136). Ao mesmo tempo, entretanto, Mario Savio, o líder do movimento
estudantil em Berkeley, em 1964, criticou a ideia que se estava desenvolvendo da
Universidade como fábrica de conhecimento, que enfatizava o conhecimento social
e economicamente útil e privilegiava as disciplinas científicas e técnicas em
detrimento das ciências humanas, particularmente as humanidades. Cabe aqui
observar que o protesto de Savio ocorreu um ano depois que Clark Kerr, o
presidente de Berkeley, publicou pela primeira vez seu influente livro “The uses of
the university”, em que “postulava a produção de conhecimento útil como núcleo

5. NRTT: Trivium, nas universidades medievais, compreendia três matérias ensinadas inicialmente – gramática,
lógica e retórica, constituindo a base da educação medieval de artes liberais.
6. NRTT: Quadrivium consistia no estudo da geometria, aritmética, astronomia e música. O trivium e o
quadrivium formavam as sete artes liberais do estudo clássico.
Agamenon contra Prometeu 539

central da missão da universidade”7 (KERR, 1963; ARONOWITZ, 2000, p. 30-


35). Nos anos seguintes, também, a concepção de duas e três culturas de educação
geral/liberal foi criticada pelos multiculturalistas, que a consideravam elitista e
eurocêntrica (ver DIJECK, 2002).
O valor dos estudos humanísticos e seu papel na sociedade contemporânea,
assim como seu futuro, também foram tema de discussão e preocupação mais
amplas. Os acadêmicos humanistas já falavam de uma crise em desenvolvimento
nessa área, que deploravam, e que se tornou mais aguda nos últimos 25 anos do
século XX. Robert Procter, acadêmico norte-americano, chamou a tradição de
humanidades “a grande amnésia da educação”, em um estudo histórico bem
documentado, em que escreveu que “as humanidades tiveram uma história
estranhamente cíclica: declinaram no Renascimento avançado, voltaram à vida no
início do século XVIII, e declinaram novamente em nosso próprio tempo”
(PROCTER, 1988/1998, p. ix, 87). Segundo Graham Good, acadêmico
canadense, na universidade inclusiva contemporânea, o humanismo foi traído; o
ideal humanístico liberal está sendo erodido (GOOD, 2001, p. 103; ver também
SCHEIN, 2001, p. 213).

Fase III: Que conhecimento tem mais valor na admirável cosmópole


nova da globalização e na sociedade do conhecimento tecnológico / da
informação – uma sequência pós-moderna?

Na América do Norte – Estados Unidos e Canadá –, o declínio do


humanismo liberal clássico (HLC) e o destronamento concomitante da
paideia/cultura humanística liberal (PHL) de sua posição privilegiada na
educação foram atribuídos a uma concatenação de fatores. À medida que a
educação superior se expandia e se democratizava, o HLC e a PHL eram
criticados como elitistas, racistas, machistas/patriarcais, culturalmente restritivos
e eurocêntricos. Ao mesmo tempo, como observamos acima, o conhecimento
humanístico liberal era visto como irrelevante e não prático no mundo
capitalista da modernidade tardia. Igualmente importante, as fortunas em
deterioração, e mais ainda o que aqui chamamos metaforicamente de sacrifício
de HLC e PHL, também devem ser buscados na ideia de universidade em
mutação, sua missão e seu papel na admirável cosmópole nova da globalização e
na sociedade do conhecimento. Falando sobre educação superior na América do
Norte, Graham Good atribuiu a traição do Humanismo à politização e
comercialização da universidade:

7. NRTT: Para uma edição em língua portuguesa, ver Kerr, C. Os usos da universidade. Fortaleza: Edições
UFC, 1982.
540 Kazamias

A universidade não mais se dedica ao propósito central definidor de sua fase humanística liberal:
a busca e a preservação desinteressadas do conhecimento. Em vez disso, agora supre e tenta
conciliar uma pluralidade de interesses: os indivíduos querem habilidades comercializáveis, os
empregadores querem empregados adequadamente capacitados, e as forças políticas e econômicas
querem suas agendas e preferências representadas. Na falta de uma finalidade comum, a
universidade só pode ser governada pela racionalidade burocrática. […] Assim, a universidade
pode simultaneamente ser comercializada (pela busca de patrocínio corporativo para postos de
professores universitários, edificações e programas de pesquisa) e politizada (pelo novo sectarismo
e seus grupos políticos, funcionários responsáveis pelas questões de equidade e grupos de pressão)
(GOOD, 2001, p. 103-104).

Com relação ao exposto acima, na segunda metade do século XX, a universidade


americana transformava-se no que Robert Hutchins anteriormente denominara um
estabelecimento educacional tipo loja de conveniência, que enfatizava excessivamente
as ciências empíricas e o conhecimento instrumental com orientação profissional,
em detrimento das artes clássicas e liberais (ver HUTCHINS, acima). Como
mencionamos anteriormente, Clark Kerr, presidente da Universidade da Califórnia,
em Berkeley, propôs uma ideia similar de universidade que enfatizava a produção de
um novo conhecimento social e economicamente útil. Novo conhecimento, segundo
Kerr, era praticamente o mesmo que conhecimento científico e técnico. Na nova
ideia de universidade de Kerr, as humanidades ocupavam lugar secundário (KERR,
1963; ARONOWITZ, 2000, p. 32-34).
Em uma das análises críticas mais severas sobre a natureza, a estrutura, o currículo
e a orientação intelectual das mudanças em curso na educação superior dos Estados
Unidos, o sociólogo crítico Stanley Aronowitz corajosamente sustentou:
Com apenas algumas exceções parciais, pouca coisa poderia ser qualificada como ensino superior
nos Estados Unidos. […] Entendo por ensino superior locais em que os estudantes são expostos
de maneira ampla e crítica às heranças da cultura intelectual ocidental e das culturas do
Hemisfério Sul e do Oriente (ARONOWITZ, 2000, p. xvii–xviii).

Podemos resumir algumas ideias fundamentais presentes nessa acusação feita à


educação superior americana que são pertinentes para nossa apresentação:
• O foco profissionalizante das faculdades públicas em detrimento das artes
liberais e ciências, como demonstra o crescimento das “matrículas em
administração, contabilidade, educação, engenharia e outras áreas técnicas,
incluindo tecnologia dos meios de comunicação, em detrimento das artes e das
ciências” (ARONOWITZ, 2000, p. 55-56).
• Privilégio da razão/racionalidade instrumental e da capacitação em currículos
centrais em nível de licenciatura de educação geral: segundo Aronowitz, “a
reforma educacional de Harvard, que já tem 20 anos, é, na base, profundamente
centrada na razão instrumental” (ARONOWITZ, 2000, p. 139).
• Com relação ao que foi dito acima, Aronowitz criticou o sistema acadêmico da
sociedade americana por ser “ajustado a finalidades práticas”, a saber, a produção
Agamenon contra Prometeu 541

de conhecimento útil e “o abastecimento de um mercado vasto, porém segmentado


para o trabalho intelectual”, em vez de “ser o lar de estudiosos envolvidos com a
busca desinteressada da verdade” (ARONOWITZ, 2000, p. 38).
• Desmantelamento da universidade corporativa norte-americana e uma nova
visão para a verdadeira aprendizagem: pelas razões esboçadas acima, Aronowitz
afirma que a universidade norte-americana deveria ser desmantelada. Em vez
disso, em uma era de globalização e mudança tecnológica rápida, o autor oferece
“uma visão para a verdadeira aprendizagem que situa no centro da missão da
universidade uma educação de caráter geral”. Em suas palavras:
A missão fundamental da educação superior deve ser desempenhar um papel de liderança,
talvez o papel principal no desenvolvimento da cultura geral. […] Faculdades e universidades
devem ser centros de aprendizagem, mas também locais de descoberta, não exclusivamente
em ciências naturais, mas também em ciências humanas (ARONOWITZ, 2000, p. 172).

Observações semelhantes e tão críticas quanto as anteriores foram feitas com


relação à educação universitária contemporânea no Ocidente. Em seu livro “The
university in ruins” (1996), Bill Readings afirma que a universidade “não participa
mais do projeto histórico humano que foi a herança do Iluminismo: o projeto
histórico da cultura” (READINGS, 1996, p. 5, 74-75). No mundo da atual
globalização econômica, a ascensão das corporações transnacionais (CT) e o
concomitante declínio do Estado-nação, a universidade, afirma Readings, é uma
instituição arruinada, porque “foi despojada de sua missão cultural”. Foi forçada a
abandonar sua missão cultural histórica. Em vez disso, passou a ser “um braço
burocrático do sistema capitalista unipolar” e “abrigou-se na ideologia do consumo.
[…] Já não é solicitada a formar um sujeito cidadão” (READINGS, p. 14, 44-48).
A pressão instrumentalista sobre a produção de conhecimento na universidade
contemporânea, e os efeitos corrosivos do ethos instrumentalista do mercado e das
preocupações pragmáticas e filistinas sobre a cultura liberal, as artes e a vida da
mente são discutidos em outra crítica penetrante das instituições culturais
contemporâneas, inclusive as universidades da Europa e da América do Norte.
Em um volume controvertido intitulado “Where have all intelectuals gone?
Confronting 21st century Philistinism” (2004), o sociólogo inglês F. Furedi afirma
que “o ethos filistino subsidia grande parte das políticas educacionais e culturais”,
definindo o termo “filistino” como “uma pessoa deficiente em termos de cultura
liberal; alguém cujos interesses são materiais e banais” (FUREDI, 2004, p. 1, 3).
O autor caracteriza a vida universitária como banal, enquanto a verdadeira
erudição, ou seja, “a busca da excelência e da verdade é frequentemente
representada como uma busca bizarra, autoindulgente e irrelevante” (FUREDI,
2004, p. 2).
Furedi critica o conformismo e a passividade dos intelectuais críticos de hoje.
Insta os intelectuais “a reconstituir-se, reivindicando a autonomia pela qual seus
542 Kazamias

predecessores lutaram em anos anteriores”. O autor conclui sua diatribe crítica com
o seguinte pensamento:
Muito pouco podemos fazer para forçar as elites a desistir da visão de mundo intrumentalista e
filistina. Podemos, porém, travar um combate de ideias pelos corações e pelas mentes do público.
Como fazer isso é uma das questões fundamentais de nosso tempo (FUREDI, 2004, p. 156).

A mesma ideia com relação aos efeitos corrosivos da globalização sobre a


paideia/cultura humanística liberal também está implícita em julgamentos
emitidos por outros autores. Por exemplo: (a) Stephen Ball afirmou que “os
problemas da globalização estruturam e produzem os problemas contemporâneos
da educação” e novas ortodoxias – uma das quais, segundo ele, é “a colonização
cada vez maior das políticas educacionais pelos imperativos das políticas
econômicas” (BALL, 1998); (b) John Field comentou que “a ênfase dos
programas de ação da União Europeia é inexoravelmente profissionalizante,
utilitária e instrumental”, uma opção tecnológica que criou uma tensão entre o
instrumentalismo e o “apego à tradição humanística da educação” característicos
da Europa (FIELD, 1998, p. 8); (c) ao referir-se à escolarização e livre mercado
nos Estados Unidos e no Reino Unido, Spring exclamou, com evidente desespero:
Os contadores de centavos estão a postos! Contadores e economistas estão substituindo Confúcio,
Buda, Platão, John Newman, Robert Hutchins e muitos outros que discutiram o significado de
uma boa educação e de uma vida boa (SPRING, 1998, p. 149);

e (d) segundo Robert Cowen:


A crise contemporânea – globalização e crescente perda de poder relativo do Estado-nação – não
é meramente uma crise econômica. É uma crise cultural, que exige análise histórica, sociológica,
antropológica, cultural e filosófica. Se as ciências sociais e humanas estão empobrecidas pela
tecnicização – pela performatividade, pelo pragmatismo, por uma preocupação excessiva com o
que é imediato e com o que é útil –, uma das defesas que as nações têm para entender o que está
acontecendo com elas será drasticamente enfraquecida (COWEN, 1999).

Por fim, seria importante observar aqui que o impulso no sentido de formas
instrumentais e tecnocientíficas de conhecimento pode ser interpretado como
um fator que contribui para uma mudança de valores e ética social, pela qual,
segundo Neave, a educação é “cada vez mais vista como um subsetor das
políticas econômicas” e menos como uma parte das políticas sociais (NEAVE,
1988, p. 274).

O sacrifício da paideia/cultura humanística liberal: um epimítio


Na peça “Ifigênia em Áulis”, de Sófocles, quando a filha de Agamenon (Ifigênia)
é trazida ao altar para ser sacrificada, é sequestrada pela deusa Ártemis e levada para
se juntar aos deuses como grande sacerdotisa. Agamenon alegra-se e apressa-se a
confortar Clitemnestra, sua mulher, fortemente perturbada, dizendo-lhe que
Agamenon contra Prometeu 543

deveriam sentir-se felizes, porque sua filha está viva, em companhia dos deuses. A
seguir, despede-se dizendo-lhe que anseia por revê-la ao retornar de Troia.
Clitemnestra, porém, permanece ameaçadoramente calada. A cortina cai, depois
que o coro declama estas estrofes bastante sibilinas:
– Adeus, filho de Atreus, desejo-lhe boa viagem a Frígia
e um bom retorno, trazendo consigo suntuosos espólios de Troia!
Evidentemente, a plateia ateniense conhecia o mito e o que essas palavras
prognosticavam: triunfo e espólios, mas também consequências trágicas. A
pilhagem de Troia por Agamenon e seu retorno triunfante a Argos “trazendo com
ele suntuosos espólios”, como profetizara o coro, teve um custo humano pesado:
o sacrifício de sua própria carne e sangue, o estupro e a escravidão das mulheres
troianas, o massacre do melhor da juventude grega e troiana, e a matança de pessoas
inocentes. E depois de Troia: o assassinato do próprio Agamenon por sua mulher
Clitemnestra, que nunca o perdoou pela insolência cometida, o assassinato de
Clitemnestra por seu próprio filho Orestes, por causa da insolência cometida pela
mãe e, por sua vez, a perseguição vingativa de Orestes pelas Fúrias, sedentas de
sangue, por seu ato igualmente condenável, a insolência de matricídio.
Como no mito de Agamenon, no primeiro episódio acima, afirmamos que as
declarações e práticas discursivas na educação (logos e praxis) construídas e legitimadas
em resposta ao prisma e aos imperativos da globalização do fundamentalismo de
mercado capitalista e da sociedade de aprendizagem/conhecimento a ele associada, e
através deles, de fato podem trazer riqueza, bênçãos e belos espólios troianos.
Entretanto, como pressagiava o mito de Agamenon, também cobrarão um pesado
preço humano e exigirão sacrifícios humanísticos, a saber, violência, competitividade,
individualismo possessivo, a “colonização econômica de pessoas” (KORTEN, 1995,
p. 245), a perda de justiça social e de outras virtudes cívicas democráticas e – o que
é ainda mais pertinente para nossos propósitos – da cultura humanística liberal e de
pedagogias antropocêntricas, o que chamamos “paideia da alma”, cujas consequências
finais são terríveis.
Agora, se (a) ser criaturas humanas significa essencialmente ter mentes e ter
almas; (b) pode-se dizer que a admirável cosmópole nova da globalização e a
sociedade do conhecimento tecnológico / da informação / da aprendizagem
imaginadas, tal como foram apresentadas no primeiro episódio desta dilogia, não
são inteiramente humanas; (c) o papel da educação é, entre outras coisas, cultivar
mentes e almas, e o que Martha Nussbaum chamou de “humanidade”
(NUSSBAUM, 1997); e (d) concordamos com o canto de Sófocles em louvor ao
homem, “ele é a maior maravilha sobre a Terra” e “para cada mal ele encontrou um
remédio” (coro em “Antígona”); ou, na mesma linha, com o Hamlet de Shakespeare:
“Que obra de arte é o homem! Tão nobre no raciocínio! Tão infinito na capacidade!
No entendimento é como um deus!” (Hamlet, em “Hamlet”), pode-se,
544 Kazamias

legitimamente, perguntar: o que pode fazer o humano contemporâneo – o político,


o intelectual, o cientista, o artista, o educador, o pedagogo, o cidadão – para deter
a maré desumanizadora da globalização econômica e do fundamentalismo de
mercado?
No segundo episódio, procuro responder a essa questão com outro mito grego
antigo, o mito de Prometeu, como representado no “Prometeu acorrentado”, de
Ésquilo.

Segundo episódio: Prometeu libertado – o neo-humanismo


prometeico na admirável cosmópole nova da globalização e
na sociedade do conhecimento tecnológico / da informação
Prólogo: o mito de Prometeu

No “Prometeu acorrentado” de Ésquilo, o titã Prometeu, filho da Terra,


criador e amigo do homem mortal como um ser superior abençoado com uma
alma mais elevada que a alma do animal, e com capacidade de raciocinar;
Prometeu, o vaticinador, germe de inteligência e ordem moral em um universo
bruto, caótico e violento, tinha tomado o partido de Zeus na derrubada de
Cronos, o olímpico senhor dos deuses, e na subsequente sucessão de Zeus como
mestre incontestado do universo. Porém quando Zeus, o dinástico planetarca
(regente do planeta) olímpico, quis destruir a miserável raça dos homens e
substituí-la por outra – uma raça de criaturas sub-humanas acorrentadas e servis
–, sobre a qual Zeus governaria com força bruta, Prometeu, o filantropo (amante
da humanidade) roubou do céu o fogo, fonte de toda civilização, toda a sabedoria
e todas as artes humanas, e entregou-o como presente à humanidade. Temendo
que esse ato de filantropia aumentasse o poder, a confiança e a sabedoria dos
mortais, Zeus condenou Prometeu a ser acorrentado pelo poderoso Hefaístos
(Vulcano), deus do fogo, a uma rocha no Cáucaso, onde uma águia viria
continuamente comer seu fígado. Os partidários de Prometeu visitaram-no e
instaram-no a aceitar a soberania de Zeus – o novo mestre do Olimpo –, parar
de agir como campeão da liberdade, da justiça e da raça humana, e retratar-se.
Entretanto, apesar de sua terrível provação, Prometeu não transigiu: continuou
a desafiar o poder tirânico de Zeus, até que este finalmente o libertou (Ésquilo,
“Prometeu acorrentado”).
No drama de Ésquilo, Prometeu simboliza o humano rebelde e criativo que
possui uma mente aguda e, como benfeitor da humanidade, o desejo de rebelar-se
contra a soberania absoluta, o poder tirânico, a violência e a escravidão
desumanizadora dos mortais. Como vaticinador, podia prever que, em vez de
criaturas humanas, o todo-poderoso e hegemônico Zeus criaria humanoides
desprovidos de mentes e almas humanas.
Agamenon contra Prometeu 545

Prometeu libertado: neo-humanismo e paideia prometeicos

No segundo episódio desta dilogia, a globalização é apresentada como um poder


de conhecimento imperial por intervenientes interessados como as corporações
transnacionais (CT). Como o recém-entronado planetarca Zeus em “Prometeu
acorrentado”, em vez de criaturas completamente humanas, a globalização tende a
construir o que se poderia chamar de cidadãos cyborg (MANN, 2001), sem as
mentes, as almas e os sentimentos humanos quintessenciais, como simbolicamente
representados em uma brilhante propaganda do uísque Johnny Walker. O filme
publicitário mostra um antropoide falante (com aparência humana, um pescoço
mecânico e cabeça virada para trás), que, em cenas dramáticas sucessivas, emite
audivelmente os seguintes pensamentos e sentimentos:
– Sou mais rápido que você; sou mais forte; com certeza vou durar muito mais
do que você.
– Você pode achar que eu sou o futuro, mas você se engana.
– Você é que é.
– Se eu pudesse realizar um desejo, eu queria ser humano: saber como é sentir,
esperar, desesperar, admirar-se, amar.
– Eu posso alcançar a imortalidade não me desgastando.
– Você pode alcançar a imortalidade.
– Simplesmente fazendo uma coisa fantástica – continuar caminhando!
Retomando a famosa alegoria da caverna de Platão, em uma cosmópole cyborg,
o ser humano situa-se em uma caverna virtual moderna, um lugar de não paideia,
onde é mantido cativo de uma realidade virtual, desprovido das qualidades,
disposições e habilidades estéticas humanas. Uma tal admirável cosmópole nova
imaginada pode de fato ser uma cosmópole tecnocientífica racional e
economicamente hegemônica. Porém, como argumentamos, será uma distopia de
conhecimento desumanizada (DCD) – um império pós-humano (IPH)?

O que resta a fazer?

No segundo episódio, “Prometeu libertado”, afirmamos que o que poderia


ser feito para cultivar humanidade (Nussbaum) na cosmópole de
aprendizagem/conhecimento desumanizadora, o império pós-humano – ou, para
usar a terminologia de Furedi, o “império filistino” (FUREDI, 2004) – é
reconceituar, re-imaginar, reinventar e promover a “paideia humanística liberal”.
Com isso queremos dizer uma educação que leva em conta e cultiva atributos e
qualidades humanos – a saber, a mente, as virtudes, as paixões, os sentimentos
(nas palavras do antropoide de que falamos acima, “para saber como é sentir,
esperar, desesperar, admirar-se, amar”), os problemas, a condição humana do
546 Kazamias

homem e da mulher. Esse projeto intelectual, epistemológico e pedagógico


acarretaria a criação de sociedades de aprendizagem humanística – ou, na
terminologia de O’Sullivan, comunidades humanas (O’SULLIVAN, 2001) –,
por meio da promoção de uma paideia e de uma pedagogia humanísticas, com
uma aprendizagem reconceituada e reconstituída ocupando lugar de destaque no
currículo de escolas, faculdades e universidades.
Para nós, reconceituar a paideia humanística liberal não significa reviver o conceito
limitado de paideia humanística clássica, centrada nas disciplinas literárias e filológicas
clássicas (ver JAEGER, 1939; PAPATHANASOPOULOU, 1987). Tampouco
queremos dizer exclusivamente o trivium – gramática, retórica e lógica – mais música,
nem as septem artes liberales da universidade medieval (KIMBALL, 1995). Defendemos
a reinvenção de um neo-humanismo prometeico na educação, que questiona a
hegemonia do paradigma epistemológico tecnológico/da informação (CASTELLS,
1989, 2000) e rejeita todas as limitações impostas à essência humana, ao espírito livre
e à imaginação do homem, por meio do cultivo de todas as artes humanas, em especial
o amplo espaço epistêmico das artes e das humanidades. Defenderíamos uma paideia
e uma pedagogia humanística baseadas no amplo espectro do que passou a ser
conhecido como artes liberais (as artes humanitatis ou studia humanitaties) e, entre
elas, o conceito amplo de educação humanística, que inclui idiomas, literatura, poesia,
drama, filosofia, história, música e artes (ver PROCTER, 1988/1998). Contrariando
possíveis críticas de que uma tal educação seria conservadora e não destituída de
elementos eurocêntricos de elitismo, sexismo, racismo e classismo, nossa paideia e
pedagogia reconceituadas seriam de fato empoderadoras, emancipadoras,
transformadoras e, acima de tudo, humanizadoras para todos, incluindo os pobres, os
oprimidos e os menos favorecidos. Para apoiar essa ideia, seria importante recorrer ao
elogiado Curso de Humanidades Clemente (CHC), como exposto no livro de Earl
Shorris, “Riches for the poor” (2000). O CHC começou em bases experimentais no
Lower East Side de Nova York, e estendeu-se depois para 17 locais nos Estados Unidos,
no Canadá e no México. Segundo Shorris, seus objetivos eram os seguintes: “por meio
das humanidades, possibilitar aos pobres fazer a jornada ao mundo público, à vida
política como a definiu Péricles, começando com a família e passando para a
vizinhança, a comunidade e o Estado”. O que Shorris queria dizer com “vida política
como a definiu Péricles” era vita activa – cidadania ativa, reflexiva – e, poderíamos
acrescentar, o que Aristóteles considerava como “homem” que é “animal político”
(zoon politkon), como exemplificou Sócrates, o “cidadão filósofo” (SHORRIS, 2000,
p. 4-10). Quanto às possíveis críticas à educação humanística que mencionamos
anteriormente, os comentários de Shorris sobre o estudo de humanidades seriam
bastante adequados aqui:
Reivindicar o estudo de humanidades agora, como resposta ao problema da pobreza nos Estados
Unidos, contradiz as visões tanto da esquerda quanto da direita. A esquerda abandonou o estudo
das humanidades como imperialismo cultural dos machos europeus brancos extintos, deixando-
Agamenon contra Prometeu 547

o para os conservadores, que reivindicaram sua posse. Na realidade, as humanidades deveriam


pertencer à esquerda, porque o estudo das humanidades por grande número de pessoas,
especialmente os pobres, é, em si mesmo, uma redistribuição de riqueza. A direita, por outro
lado, não encontrou uso para as humanidades vivas desde que Platão baniu os poetas de ‘A
república’ (SHORRIS, 2000, p. 105).

Áreas epistêmicas, como artes e humanidades, representam formas de


conhecimento que diferem dos estudos científicos e das ciências sociais empíricas,
que, mais do que nunca, são necessários na desumanizadora admirável cosmópole
nova da globalização e na sociedade do conhecimento/da aprendizagem. Em um
ensaio esclarecedor sobre “modos estéticos de conhecer”, Elliot Eisner afirmou que
áreas como literatura, música e arte representam “formas estéticas de
conhecimento” – um conhecimento que difere do “conhecimento científico”
amplamente aceito. Visto desse modo, “tanto o artista como o cientista criam
formas de ver o mundo [...] ambos fazem julgamentos qualitativos sobre o
ajustamento, a economia, ‘a retidão’ das formas que criam” (EISNER, 1985).
Apoiando esse modo estético de conhecer, Eisner declara:
A estética não é motivada somente por nossa necessidade de estimulação; é motivada também
por nossa própria necessidade de ordenar nosso mundo. Formar é ordenar. Ordenar nosso mundo
esteticamente é fazer com que ele permaneça conectado, para ajustar-se, sentir-se bem, pôr as
coisas em equilíbrio, criar harmonia. [...] Portanto, o que motiva a estética é nossa necessidade
de levar uma vida estimulante [...] a estética também faz parte de nossa necessidade de dar sentido
à experiência (EISNER, 1985, p. 26-30).

Na mesma linha, o valor epistemológico, humanístico-liberador e estético das


Artes, especialmente durante este período de mudança global, foi declarado de
maneira inequívoca pelos editores da “Harvard Educational Review” (HER), em
um simpósio publicado sobre “artes como educação”, em 1991. Os editores
afirmaram que “aprender nas artes é fundamental para a educação, porque as artes
são um aspecto essencial do conhecer humano e do estar no mundo”, e “reforma
e debate educacional sem artes é reforma incompleta”. Vale a pena reproduzir
integralmente o raciocínio por trás dessa afirmação:
Percebemos as artes como um modo fundamental de conhecer, ou, como coloca a professora de
primeira série Karen Gallas no título de seu ensaio: ‘Artes como epistemologia’. Tanto para alunos
como para professores, as artes podem ser formas de expressão, comunicação, criatividade,
imaginação, observação, percepção e pensamento. São parte integrante do desenvolvimento de
habilidades cognitivas, tais como escutar, pensar, resolver problemas, combinar forma e função,
e tomar decisões. Inspiram disciplina e dedicação. As artes podem também abrir caminhos para
a compreensão da riqueza de povos e culturas que habitam nosso mundo, particularmente durante
este período de mudança global. As artes podem alimentar um sentido de pertencimento, ou de
comunidade; podem promover um senso de individualidade, de separação. As artes produzem
muitas vozes. Ao reconhecer o papel das artes em nossa vida e na educação, reconhecemos o que
torna o indivíduo integral (EDITORIAL BOARD, 1991, p. 25).
548 Kazamias

Em um livro clássico e influente, “Literature as exploration” (1938/1965/


1968/1976/1995), Louise Rosenblatt expôs de maneira eloquente o potencial
epistemológico, ético, estético e, a fortiori, humanizador do estudo e do ensino de
literatura – poesia, drama, romance, biografia, ensaio – em uma sociedade
democrática, especialmente no mundo contemporâneo, com turbulências,
incertezas, inseguranças e problemas. Fazendo eco a Henry James, a província da
literatura, segundo Rosenblatt, é a experiência humana, “tudo o que os seres
humanos pensaram ou sentiram ou criaram”. E explica:
O poeta lírico expressa tudo o que o coração humano pode sentir. […] O romancista exibe a
rede intrincada de relações humanas, com seus padrões ocultos de motivo e emoção. […] O
dramaturgo constrói uma estrutura dinâmica a partir das tensões e dos conflitos de vidas humanas
mescladas (ROSENBLATT, 1995, p. 5-6).

Por intermédio das artes e das humanidades, o neo-humanismo prometeico tem


o potencial não somente de desenvolver habilidades cognitivas e formar mentes, que
são qualidades necessárias para o ser humano. Da maneira como é conceituado aqui,
mais do que as ciências, o neo-humanismo tem o potencial também de cultivar a
alma humana – as atitudes sociais, éticas, emocionais e estéticas, as habilidades,
disposições e virtudes, e os traços de personalidade quintessencialmente humanos
(ver também COHEN, 2006; O’SULLIVAN, 2001). No ensaio de abertura do
simpósio HER mencionado anteriormente (1991) sobre “artes como educação”,
Maxine Greene, eminente filósofa da educação norte-americana, afirmou que a
imaginação, que está “no núcleo do entendimento”, é responsável pela “própria
textura da experiência”, e as emoções, incluindo gosto e sensibilidade, “podem e
deveriam ser educadas […] por intermédio da iniciação nos domínios artístico e
estético” (EDITORIAL BOARD, 1991, p. 31), da qual fazem parte as artes, isto é,
o espectro que inclui dança, música, pintura e as demais artes gráficas, literatura e
poesia. As artes, segundo a autora, “oferecem oportunidades de perspectiva, de
percepção de modos alternativos de transcender e de estar no mundo, de recusar o
automatismo que domina a escolha” (EDITORIAL BOARD, 1991, p. 32). Falando
do potencial pedagógico transformador das artes, Greene afirma que “uma das
funções das artes não é somente fazer-nos ver (como escreveu Joseph Conrad) ‘de
acordo com nossos desertos’ [...] não somente mudar nossa vida cotidiana de algum
modo, mas subverter nossas negligências e complacências até sobre a própria arte”
(EDITORIAL BOARD, 1991, p. 33). E ainda: “no centro do que eu solicito nos
domínios do ensino da arte e da educação estética está um senso de capacidade de
agir, e mesmo de poder. A noção de Cockburn sobre o poder da música folk ‘como
meio de expressão individual e ferramenta de mudança social’ sugere possibilidades
no domínio principal das artes. Pintura, literatura, teatro, cinema: tudo pode abrir
portas, mobilizar pessoas para transformar (EDITORIAL BOARD, 1991, p. 38,
ênfase minha).
Agamenon contra Prometeu 549

A música é um exemplo de arte que representa uma forma de conhecimento


diferente das ciências, e que tem o duplo potencial de desenvolver a mente e
cultivar a alma. Em um estudo recente intitulado “The neglected muse: why music
is an essential liberal art?”, Peter Kalkavage, músico e professor de música, afirma
que a música
é a união do racional e do irracional, de ordem e sentimento. […] Além de sua conexão profunda
com a matemática, a música se sobressai entre as artes pela ordem e pela clareza, pelo caráter
nitidamente definido de seus elementos (KALKAVAGE, 2006, p. 16).

A música, explica ele, “é uma parte essencial de quem somos como seres humanos
[…] em última análise, ao dar forma ao sentimento, a música dá forma ao ser humano
integral” (KALKAVAGE, 2006, p. 16). Apoiando seu argumento sobre o valor
educativo da música, Kalkavage refere-se ao filósofo grego Aristóteles, para quem a
música, como ingrediente da paideia, era decisivamente útil para o desenvolvimento
intelectual, moral e político do anthropos-politis (pessoa-cidadão) virtuoso.
A literatura fornece outro exemplo da diferença entre as abordagens das
“ciências sociais” e das artes. Segundo Rosenblatt:
Ao contrário da abordagem analítica das ciências sociais, a experiência literária tem imediação
e persuasão emocional. Entre o presidente Madison e Rip van Winkle, quem terá uma vida
mais intensa, para o aluno? A história da Grande Depressão vai impressioná-lo tanto quanto
‘As vinhas da ira’, de Steinbeck? As definições teóricas do livro didático de psicologia serão tão
esclarecedoras quanto ‘Édipo’ ou ‘Filhos e amantes’? Obviamente, a abordagem analítica não
precisa de defesa. Entretanto, será que os materiais literários não podem contribuir
poderosamente para as imagens que o aluno tem do mundo, de si mesmo e da condição
humana? (ROSENBLATT, 1995, p. 7).

Epílogo/epimítio: cuidar da mente e da alma


Em sua defesa/apologia do julgamento em que foi acusado e condenado a beber
cicuta por sua alegada irreverência e, especificamente por pregar novos
demônios/novas ideias diferentes daqueles do Estado, e por corromper os jovens,
Sócrates, o cidadão-filósofo humanista da Atenas democrática, assim como o
humanista mítico Prometeu, recusou-se a obedecer às injunções daqueles que
estavam no poder e a desistir da filosofia, que considerava uma condição sine qua
non para o cultivo das mentes e almas dos anthropoi-polites (pessoas-cidadãs)
democráticos. Em seu desafio no julgamento, reiterou que preferiria morrer a deixar
de dizer a quem quer que encontrasse: “como é que você, meu amigo, um cidadão
ateniense, da maior, mais sábia, mais gloriosa e mais poderosa cidade, não sente
vergonha de preocupar-se mais em adquirir honra, glória e riqueza, e desinteressar-
se de seu desenvolvimento intelectual, da verdade e do cuidado de sua alma?”
(PLATÃO, “Apologia”).
550 Kazamias

Nossa paideia/pedagogia humanística reconceituada para a criação de cidadãos


democráticos com mentes e almas na cosmópole do conhecimento/da
aprendizagem do século XXI pode ser resumida em termos das seguintes valores
humanos e ideias fundamentais: caráter, comunidade, inclusão, integridade,
identidade cosmopolita, simpatia, cuidado e democracia (HARGREAVES, 2003;
NUSSBAUM, 1997, NODDINGS, 1984), mas também justiça, sabedoria,
responsabilidade, amizade e pensamento crítico.

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69

ALÉM DOS “ISMOS” METODOLÓGICOS


NA EDUCAÇÃO COMPARADA EM UMA
ERA DE GLOBALIZAÇÃO

Roger Dale e Susan Robertson

Introdução
“Toda uma série de conceitos importantes para a compreensão
da sociedade deriva sua força do fato de parecerem ser apenas
o que sempre foram, e sua instrumentalidade, do fato de
assumirem formas significativamente diferentes”.
(SMITH, 2006, p. 628)

A observação concisa de Gavin Smith leva-nos diretamente ao cerne dos problemas


metodológicos – e também dos problemas concretos – que a globalização traz à
educação comparada. Não é necessária uma definição muito precisa de globalização
para reconhecer que ela gerou grandes desafios para os objetos de estudo da educação
comparada e para identificar os termos e conceitos que utiliza – e isso significa, como
discutiremos, que também ocasionou mudanças no significado da própria educação
comparada. Neste capítulo, sugerimos que reconhecer a natureza e a extensão desse
problema é um dos requisitos mais relevantes para os comparativistas da educação,
em uma era de globalização, uma vez que uma das consequências mais desafiadoras
da globalização, não somente para a educação comparada, mas em geral, é que, embora
tenha efeitos profundos sobre características importantes dos mundos político,
econômico e social em que vivemos, continuamos presos a conceitos com os quais
descrevíamos e entendíamos o mundo antes da globalização.
Nosso foco estará tanto nas mudanças que a globalização ocasionou nos objetos
de estudo centrais da educação comparada – sistemas nacionais de educação –,
como em suas consequências metodológicas e políticas para a área de estudo. Em
termos do primeiro, sugeriremos que os três elementos centrais do campo da
educação comparada, respectiva e diretamente relacionados aos três objetos
fundamentais de estudo, correm o risco de tornar-se um tanto rígidos e, portanto,
restritivos, ou mesmo obstrutores, em vez de expandir nossas oportunidades de
chegar a um acordo com a globalização e com os modos como se transformou a
vida institucional e cotidiana.

555
556 Dale e Robertson

Nossa hipótese é que o perigo pode ser assim resumido: os modos de abordagem
dos elementos centrais dos estudos comparados de educação – sistemas nacionais de
educação geridos pelo Estado – correm grave risco de tornar-se “ismos”. Podemos ser
confrontados por (ou dependentes de) não apenas um nacionalismo metodológico,
mas também um estatismo metodológico e um educacionismo metodológico. Em cada
um desses casos, o “ismo” é usado para sugerir uma abordagem dos objetos que parte
do princípio de que eles não são complicados, e que pressupõe um significado
constante e compartilhado; eles passam a ser “fixos, abstratos e absolutos” (FINE,
2003, p. 465), e a fonte do perigo reside na continuidade nominal fornecida por
conceitos que, ostensivamente, são os mesmos, como adverte Smith. A suposição ou
aceitação dos “ismos” significa que o entendimento das mudanças ocasionadas pela
globalização pode ser refratado através das lentes de concepções elementares de
nacionalismo, estatismo e educacionismo, mesmo na medida em que essas próprias
mudanças ocasionam mudanças no significado de Estados-nação e sistemas
educacionais, e no modo como eles trabalham e, portanto, enfraquecem sua validade.
Um reflexo da profundidade da integração existente nesse conjunto de conceitos é
que eles próprios passam a ser uma espécie de marco de referência para medir e
representar as mudanças percebidas; assim, temos desconcepções; desterritorialização,
desestatização, desconcentração, descentralização, e assim por diante (PATRAMANIS,
2002).
Nosso argumento é que o impacto da globalização foi usado para expor os
problemas dos “ismos” na educação comparada (e de fato, nos estudos ligados à
educação, de forma mais ampla). Fundamentalmente, o que expôs as deficiências
de teorias anteriores foram as mudanças da escala e dos meios de governança nos
quais e por meio dos quais a educação se realiza. O exame dos elementos
fundamentais da educação comparada como “ismos” metodológicos revela que
raramente aconteceu uma situação em que o Estado fez tudo, no caso da educação;
que as atividades e a governança educacionais sempre estiveram confinadas à escala
nacional; e que educação sempre foi uma concepção simples, objetiva e
descomplicada.

Educação comparada e sistemas nacionais de educação


Nacionalismo metodológico

O mais amplamente reconhecido dos “ismos” é o nacionalismo metodológico.


O Estado-nação esteve no âmago da educação comparada ao longo de toda a sua
história. Foi a base de comparação; foi o que se comparou. Como disse Daniel
Chernilo, “o Estado-nação tornou-se o princípio organizador em torno do qual se
estabeleceu a coerência de todo o projeto da modernidade” (CHERNILO, 2006,
p. 129). Pode ser visto como a instituição que personifica os princípios da
modernidade, e por intermédio da qual esses princípios devem ser transmitidos.
Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 557

Além disso, a concepção de Estado-nação é ainda mais reforçada pelo fato de estar
integrada em um sistema bem-estabelecido de Estados similares (no qual os
Estados-nação são reconhecidos como entidades legais submetidas a uma legislação
internacional), o que aprofunda a dificuldade tanto para ver além como para
imaginar alternativas a essa concepção.
O Estado-nação foi o conceito central sobre o qual se baseou o nacionalismo
metodológico que caracterizou não apenas a educação comparada, mas também a
maior parte das ciências sociais (MARTINS, 1974). Na realidade, podemos
identificar quatro elementos distintos desse problema (ver DALE, 2005, para uma
crítica mais extensa da concepção de nacionalismo metodológico em educação
comparada). O primeiro elemento, e o mais conhecido, é a ideia de que o
nacionalismo metodológico vê o Estado-nação como o recipiente que contém a
sociedade, de modo que comparar sociedades implica comparar Estados-nação
(BECK, 2002; BECK; SZNAIDER, 2006). O segundo é a associação estreita entre
os Estados-nação e a comparação, ocasionada pelo fato de que as estatísticas são
tradicionalmente computadas no nível nacional: como disse um colega em outro
trabalho, o nacionalismo metodológico funciona tanto sobre o Estado-nação como
para ele, a tal ponto que a única realidade que conseguimos descrever
estatisticamente de maneira abrangente é nacional, ou, na melhor das hipóteses,
internacional (DALE, 2005, p. 126). O terceiro elemento do problema decorre da
tendência de justapor um nacionalismo metodológico ultrapassado a concepções
subespecificadas de globalização, em uma relação de soma zero. Isso geralmente
assume a forma do global que afeta o nacional, ou do nacional que medeia o global.
Isso não significa que tais relações não estejam presentes, mas que não devem ser
consideradas como norma. O último elemento que queremos mencionar aqui diz
respeito ao grau de disseminação, ou identificação, de conceitos do Estado-nação
com um imaginário particular de normatização, o que ficou mais claro graças a
discussões recentes sobre concepções de soberania, territorialidade e autoridade
(ANSELL; DI PALMA, 2004). Essencialmente, essas discussões veem a combinação
particular de responsabilidades e atividades que foram assumidas como
responsabilidade dos Estados-nação como contingência histórica, e não como
necessidade funcional, ou mesmo mais adequada. Assim, embora a ontologia de
que “uma região de espaço físico [...] possa ser concebida como uma personalidade
corporativa”, a natureza, as implicações e as consequências disso variaram muito, e
resta o fato de que “a unidade dessa autoridade pública geralmente foi vista como a
marca inconfundível dos chamados Estados vestfalianos” (ANSELL, 2004, p. 6),
embora “a principal característica do sistema moderno de governo territorial seja a
consolidação de todas as autoridades repartidas e personalizadas em um único
âmbito público” (RUGGIE, 1993, p. 151). Entretanto, embora a “autoridade
pública tenha sido demarcada por fronteiras discretas do território nacional [...] o
mesmo ocorreu, também, com a articulação de interesses e identidades sociais que,
558 Dale e Robertson

ao mesmo tempo, sustentam essa autoridade e a ela fazem reivindicações” (ANSELL,


2004, p. 8). Assim sendo, a questão diz respeito às “implicações de um mundo em
que relações mutuamente reforçadoras de território, autoridade e interesses e
identidades sociais já não são mais inquestionáveis” (ANSELL, 2004, p. 9).

Estatismo metodológico

Os pressupostos da unidade de autoridade pública e um domínio público único


levam-nos ao que chamamos de estatismo metodológico. Se o nacionalismo
metodológico refere-se à tendência a considerar o Estado-nação como o recipiente
que contém as sociedades, o termo estatismo metodológico, a ele relacionado, mas
muito menos reconhecido, refere-se à tendência a pressupor que há uma forma
particular intrínseca a todos os Estados.1 Em outras palavras, todos os regimes são
governados, organizados e administrados essencialmente da mesma maneira, com
o mesmo conjunto de problemas e responsabilidades, e por intermédio do mesmo
conjunto de instituições. O conjunto de instituições que passou a ser aceito sem
questionamento, como o padrão de normas para as sociedades, é aquele encontrado
no Ocidente no século XX e, em particular, o Estado de bem-estar social-
democrático que se espalhou pela Europa Ocidental na segunda metade do século
XX (ZURN; LEIBFRIED, 2005, p. 11). O que é essencial – e pode-se dizer, único
– nessa concepção é que as quatro dimensões do Estado definidas por Zurn e
Leibfried (recursos, lei, legitimidade e bem-estar) convergiam em constelações
nacionais, e também em instituições nacionais. O que Zurn e Leibfried deixam
claro, porém, é que “as mudanças ao longo dos últimos 40 anos não são meramente
dobras no tecido do Estado-nação, mas um esgarçamento da constelação nacional
finamente tecida de seus anos dourados” (ZURN; LEIBFRIED, 2005, p. 1). Em
outras palavras, tanto o pressuposto de um conjunto comum de responsabilidades
e meios para cumpri-las como o pressuposto de que a associação entre elas é
necessária, e não casual, não podem mais ser sustentados fora de um estatismo
metodológico continuado.
Também como consequência do estatismo metodológico, o modelo de Estado
que passou a ser aceito sem questionamento na maioria dos discursos acadêmicos
da área de ciências sociais não esteve sempre estabelecido ou presente na maior
parte dos chamados países em desenvolvimento. Esse modelo não só foi imposto
à maioria dos Estados pós-coloniais criados após a Segunda Guerra Mundial, como
também sua aceitação formal e o apego a ele passaram a ser a principal base de
participação da comunidade internacional. Como indicaram Ferguson e Gupta
(2002), entre outros, esse modelo de Estado nunca foi um meio eficaz para

1. Embora se encontre a expressão estatismo arraigado, em geral ele é sinônimo de nacionalismo


metodológico.
Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 559

conceber a forma como era governada a maioria das sociedades em


desenvolvimento. Os autores veem o trabalho sobre Estados com base em dois
pressupostos: verticalidade, que “diz respeito ao Estado como instituição que de
algum modo se encontra acima da sociedade civil, da comunidade e da família”
(FERGUSON; GUPTA, 2002). Esse pressuposto de cima para baixo contrasta
com a abrangência, “o Estado (conceitualmente fundido com a nação) localiza-se
no interior de uma série de círculos cada vez mais amplos, que começam com a
família e a comunidade local e terminam com o sistema dos Estados-nação”
(FERGUSON; GUPTA, 2002). Esse simulacro de uma forma construída de
governo, imposto politicamente, não só distorceu as tentativas de introdução de
formas justas, eficientes e eficazes de governo naqueles países, como ainda sua
aceitação por acadêmicos e políticos como um relato válido e preciso, com base na
ideia de que o mesmo termo significava a mesma coisa, independentemente das
circunstâncias, também distorceu as análises de governança nos países em
desenvolvimento. A profundidade da penetração dos pressupostos dos “ismos” e
suas consequências foram resumidas por Ruggie, ao escrever sobre relações
internacionais, porém em termos que se aplicam a todas as ciências sociais. O autor
os vê exibindo “uma mentalidade extraordinariamente pobre […] que só consegue
visualizar os desafios de longo prazo ao sistema dos Estados em termos de entidades
institucionalmente substituíveis pelo Estado” (RUGGIE, 1993, p. 143).
Portanto, a principal conclusão que se pode extrair dessa discussão breve é que
uma base essencial de qualquer resposta à globalização oferecida pela educação
comparada é reconhecer que usar o Estado como um conceito explicativo, sem
maior qualificação, representa tanto a aceitação de um quadro impreciso do mundo
como a perpetuação de um resultado particular de imposição política. Em resumo,
uma consequência da globalização para a educação comparada, e para as ciências
sociais em geral, é deixar claro que o Estado-nação deve ser considerado como
explanandum, algo que requer explicação, e não como explanans, algo que explica.
Ou, dito de outro modo, é preciso desagregar as partes que compõem o que a
expressão “Estado-nação” implica e, mais uma vez, examinar seu status e suas
relações em um mundo globalizado, tanto pelos estudiosos da educação comparada
como por outros cientistas sociais. Um meio eficaz de resumir as ideias aqui
apresentadas sobre nação-estatismo metodológico é expor os eixos da discussão em
forma de diagrama.
560 Dale e Robertson

Fig. 1. Governança pluriescalar da educação

A Figura 1 ilustra as ideias apresentadas acima sobre estatismo metodológico,


reconhecendo que o Estado nacional não é mais o único ator, nem
inquestionavelmente o mais importante, na área da educação. Isso significa que o
primeiro elemento a comparar, à medida que a educação é cada vez mais afetada
pela globalização, é a governança da educação. Entendemos por governança as
combinações e a coordenação de atividades, atores/agentes e escalas por intermédio
dos quais se constrói e se ministra a educação em sociedades nacionais. O diagrama
procura indicar e, ao mesmo tempo, reduzir a complexidade dos elementos
envolvidos na governança da educação por meio de uma série de atividades ou
funções dessa governança. Identificamos quatro categorias de atividades que, juntas,
compõem a governança educacional (as quais, para fins de exposição, são
consideradas mutuamente exclusivas e coletivamente exaustivas): financiamento,
provimento ou entrega, propriedade e regulamentação. Em princípio, essas atividades
podem ser realizadas independentemente, e por uma série de outros agentes
distintos do Estado. Para utilizar a figura diretamente, significa que todas as células
podem ser constituídas de maneira empírica. Entretanto um ponto crucial a
destacar é que nenhuma das relações enquadradas nesse diagrama deve ser vista
como soma zero – isto é, nenhuma delas implica relações mutuamente exclusivas.
As linhas entre as diversas células não são fronteiras fechadas, e sim porosas.
Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 561

Portanto, o diagrama também reflete o argumento de que não é natural nem


essencial que todas essas atividades sejam realizadas pelo Estado, ou por qualquer
outro agente único. Pelo contrário: devem-se esperar diferentes combinações de
agentes, atores e escalas na governança da educação, tendo em mente que nos três
níveis – agentes, atividades e escalas – haverá combinações híbridas; os exemplos
respectivos são parcerias público-privadas, formas complexas de propriedade, e
escalas que saltam do âmbito local para o supranacional. Entretanto não significa
que estejamos diante de escolhas entre categorias híbridas e puras; por exemplo,
usando como ilustração o caso da educação superior na Europa, defendemos em
outro trabalho a existência de discursos paralelos, que existem separadamente em
diferentes escalas – naquele caso em particular, discursos em escala institucional,
nacional e europeia (DALE, 2008).
Em termos práticos, significa que precisamos focalizar e tentar entender as
implicações para a educação geradas não só por um novo conjunto de atores
envolvidos no processo, mas também por um novo conjunto de atividades
envolvidas e de escalas nas quais a educação acontece – e também, naturalmente,
estudar as inter-relações entre essas mudanças em atores, atividades e escalas.
Um exemplo do tipo de teorização possível com o reconhecimento do
nacionalismo e do estatismo metodológicos e a fuga deles é a ideia de que a educação
não está necessariamente e exclusivamente associada ao Estado-nação, mas é
constituída por meio de funcionamentos complexos de divisões funcionais e
escalares, que fazem parte do trabalho de governança educacional (DALE, 2003), o
que pode significar qualquer um ou todos os elementos de um único locus de
governança; loci de governança paralelos em escalas diferentes; ou formas híbridas
de governança envolvendo várias escalas e/ou atividades e/ou agentes. Assim, o que
se entende aqui por governança, de modo amplo, é a substituição do pressuposto
de que o Estado sempre e necessariamente governa a educação, por meio do controle
de todas as atividades de governança, com o que se poderia chamar de coordenação
da coordenação, com o Estado possivelmente desempenhando o papel de
coordenador, ou regulador, última instância (DALE, 1997).

Educacionismo
Neste ponto, passaremos ao terceiro “ismo”, possivelmente o mais controvertido:
o educacionismo. O que se toma por educação em educação comparada, e bem
além dela, é tão simples quanto o nacionalismo ou o estatismo. O que se entende
por educação pode ser visto como tão fixo, abstrato e absoluto quanto os demais
“ismos”, igualmente carente de explicação, mais do que elucidativo, e com
consequências similares para a análise e o entendimento. É essencial observar que
os próprios elementos centrais do que chamamos educação evoluíram juntos de
modo bastante semelhante – de fato, ao lado da evolução do Estado-nação
(GREEN, 1993) –, e podem demandar um tipo similar de desagregação.
562 Dale e Robertson

Superficialmente, a educação apareceria como o mais constante dos três


componentes que examinamos neste momento. Afinal de contas, todo mundo foi à
escola, ou vai ter a oportunidade de ir à escola – é assim, curiosamente, que os
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio definem a educação. No entanto também
sabemos que o que se entende por educação difere significativamente, e em múltiplas
dimensões, e que a experiência de escolarização varia enormemente – e essa,
evidentemente, foi a matéria-prima da educação comparada desde seus primórdios.
Mais precisamente, o que estamos chamando de educacionismo refere-se à
tendência de ver a educação como uma categoria simples para fins de análise, com um
suposto escopo comum, e um conjunto de conhecimentos, práticas e pressupostos
implicitamente compartilhados. O educacionismo ocorre quando se trata a educação
como algo abstrato, fixo, absoluto, não histórico e universal; quando não se fazem
distinções entre seus usos para descrever propósito, processo, prática e resultados. As
representações particulares da educação são consideradas isoladas umas das outras,
tratadas separadamente, e não como partes de um conjunto mais amplo de
representações – pois não se sugere a existência de algo em comum entre as diferentes
representações da educação, tampouco que o rótulo seja atribuído aleatoriamente.
Longe disso: o que torna tão importante identificar e procurar ultrapassar o
educacionismo é o reconhecimento da existência de relações cruciais entre diferentes
representações da educação, que são obstruídas ou disfarçadas pela não distinção entre
elas. O educacionismo não faz distinção entre os usos do termo nem os problematiza,
o que torna quase impossível fazer da educação um objeto de comparação. Existem aí
dois tipos de paroquialismo autolimitador. O paroquialismo disciplinar restringe as
bases para o estudo da educação a abordagens que muitas vezes entram no campo, ao
que parece, com trabalhos cujo título contém a palavra “educação”, o que leva a
análises que compartilham os mesmos pressupostos sobre o campo – com a
equivalência léxica eliminando a necessidade de problematizá-los (ver DALE, 1994).
De maneira similar, o paroquialismo institucional refere-se à tendência existente em
todos os estudos de educação de considerar isoladamente os sistemas, as instituições e
as práticas de educação existentes, como sendo evidentemente o foco apropriado para
seus esforços, sem problematizá-los, e assim por diante (DALE, 2005, p. 134).
Fundamentalmente, o educacionismo trata a educação como um agregado simples,
indiscriminado, de representações qualitativamente diferentes umas das outras. Há
três elementos envolvidos ao tratar desse problema. O primeiro deles é desagregar, ou
desagrupar esses diferentes componentes. O segundo, procurar estabelecer os fatores
determinantes e as consequências das delimitações e do conteúdo da educação como
um setor separado; e o terceiro, concentrar-se em questões sobre como, por quem e
em que circunstâncias a educação é atualmente representada.
O primeiro, que já discutimos anteriormente (DALE, 2000), envolve substituir
o termo simples “educação” por uma série de questões que devem ser levadas em
conta em qualquer interpretação da educação, o que, essencialmente, implica
Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 563

representações especificadoras de educação com um conjunto de variáveis. Esta é


a ideia básica por trás das questões de educação: em vez de assumir ou aceitar que
todos estamos querendo dizer a mesma coisa quando falamos sobre educação,
estabelecer um conjunto de questões precisas que possa servir de referência para as
discussões e proporcionar uma base para discussão coerente e comparação
sistemática. As questões devem proporcionar um terreno comum sobre o qual a
natureza e as bases de diferentes concepções de educação e seus propósitos, suas
instituições e suas práticas possam, em primeiro lugar, ser vistos com mais clareza
e, eventualmente, assentar as bases para o tipo de diálogo produtivo que antes era
impossibilitado pela negligência e pela incomensurabilidade das diferentes
concepções. Ao fornecer um conjunto de questões às quais as diferentes concepções
de educação possam responder, embora (como seria de esperar) de maneiras
totalmente diferentes, essas questões também deverão torná-las mutuamente
inteligíveis (DALE, 2006a).

Questões de educação
Essas questões situam-se em quatro níveis – tanto para refletir a variedade de
significados que podem estar vinculados à educação como para esclarecer a
complexidade das questões, cujas respostas não podem ser dadas a partir de um
nível único.
Estes níveis são: a prática educacional; a política em educação; a política de
educação; e o nível dos resultados. Por fim, cabe declarar que as questões de
educação ainda presumem uma base nacional para a educação. Isso se dá porque
ainda é no nível nacional que, empiricamente, ocorre a maior parte das atividades
incluídas no tópico educação. Entretanto, como pode ser confirmado por uma
observação rápida nas questões do Nível 3, não significa adotar um foco totalmente
ou exclusivamente nacional. Tampouco significa que a escala nacional seja a mais
importante ou a única importante para a análise. Da mesma forma, não implica
qualquer suposição de comparabilidade entre níveis nacionais; é imperioso também
problematizar a comparabilidade das categorias que usamos dentro dos níveis e das
escalas e através deles (ver Tabela 1).

Educação como um setor2


David Levi Faur (2006) propôs uma abordagem muito útil para examinar as
mudanças que ocorreram – e deixaram de ocorrer – nos setores nacionais de
educação, por meio de uma abordagem setorial de política à análise política
comparativa. O autor sugere:

2. Neste contexto, consideramos a ideia de sistema educacional como incluída no setor da educação.
564 Dale e Robertson

Ao estudar os setores, os examinamos em dois sentidos: genérico e específico por nação (VOGEL,
1996, p. 258). As características genéricas do setor são aquelas mais comuns de qualquer setor;
existem além das nações e regiões e aplicam-se, em princípio, a países tão diferentes quanto
Jamaica e Alemanha, por exemplo. As características de um setor que são específicas por nação
refletem as mudanças nas características genéricas, como resultado de sua integração em um
cenário ou um contexto nacional. Distinguir entre as características genéricas e as específicas
por nação em um setor é ser sensível aos pontos em comum de [...] setores além das nações,
mas, ao mesmo tempo, entender que eles estão inseridos em ambientes nacionais e, portanto,
adquirem características próprias. De fato, faz sentido distinguir três aspectos diferentes das
características setoriais genéricas e específicas por nação: o tecnológico, o econômico e o político
(VOGEL, 2006, p. 368-369).

Tabela 1. Questões sobre educação


Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 565

Nosso argumento é que as características dos setores da educação, tanto as


genéricas como as específicas por nação (na verdade, o que é contabilizado como
específico por nação) mudaram e estão mudando, em resultado da pressão dos
aspectos políticos e econômicos nos aspectos tecnológicos. Assim, embora essa
abordagem seja extremamente interessante e vital nesse contexto, para que seu valor
se concretize é essencial não confinar a análise às características específicas por
nação, mas, no espírito da governança da educação em processo de mudança,
estendê-la às características específicas subnacionais e supranacionais.
Pode-se argumentar que os dois elementos centrais de tecnologia do setor da
educação são seus discursos e suas práticas; que ambos fazem parte de uma
modernidade ocidental globalizada, e não constituem produto ou propriedade de
qualquer Estado-nação em particular. A principal evidência do primeiro elemento
encontra-se nas análises dos escritos globais sobre educação feitas por Meyer e seus
colegas (MEYER et al., 1992). A característica mais essencial desses discursos, mas
também aquela aceita sem questionamento, é que, fundamentalmente, eles
equiparam educação a escolarização (compulsória). A importância central contínua
dessa associação é vista de forma bastante drástica, por exemplo, na formulação do
Objetivo de Desenvolvimento do Milênio para a educação: “alcançar educação
primária universal”. A relação dessa importância com a escolarização está ainda
mais explícita no Objetivo 3: “garantir que, até 2015, todas as crianças do mundo,
meninos e meninas, sejam capazes de concluir um ciclo completo de escolarização
primária”. O avanço no sentido do cumprimento do objetivo é monitorado por
aumentos no número de crianças com acesso à educação primária. Assim, as
práticas de educação devem ser identificadas nos processos de escolarização, os
quais – como mostra mais uma vez o ODM da educação – assumem um aspecto
igualmente global, a tal ponto que é possível referirmo-nos a eles como uma
gramática de escolarização comum (TYACK; TOBIN, 1994; DALE, 2008). Assim
sendo, pode-se dizer que, juntos, esses discursos e essas práticas compreendem uma
parte significativa da tecnologia do setor da educação. Em um sentido muito real,
definem o que é educação; educação é identificada como aquilo que acontece por
meio da gramática da escolarização e transmite uma cultura particular.
Essencialmente, o que esses discursos e essas práticas explicam é a natureza e a
tenacidade de elementos essenciais daquilo que, historicamente (por um período
muito longo; VANDERSTRAETEN, 2006), foram as características genéricas dos
setores da educação – na forma tecnológica da equação que equipara educação a
escolarização e categorias comuns de currículo no mundo inteiro – e a forma
política do apoio e da difusão dos mesmos por comunidades epistêmicas,
especialistas profissionais e outros. O que não explicam com a mesma eficácia é o
aspecto econômico (DALE, 2000). Entretanto, mais fundamentalmente, em uma
era de globalização neoliberal, vemos mudanças significativas nas características da
educação como setor, tanto genéricas como específicas por nação, e nas relações
566 Dale e Robertson

entre elas. Equivale a dizer que educação como setor está mudando de tal modo
que se tornam inúteis, e mesmo enganosos, os pressupostos e as formas de análise
existentes, que constituem o educacionismo metodológico. Para elaborar melhor
esse aspecto, podemos procurar identificar a natureza mutável das características
genéricas (ou transnacionais) do setor, e de suas características políticas, econômicas
e técnicas. Aqui a essência do argumento é que, em lugar de um conjunto simples
de características compartilhadas, que compõem um setor genérico da educação,
basicamente comum e não diferenciado – sendo o genérico mediado de diversos
modos em escala nacional –, o que vemos é um colapso das características genéricas
do setor da educação, e sua substituição pelo que pode ser visto, em termos
conceituais, como um conjunto duplo, ou mesmo triplo – se levarmos em conta o
desenvolvimento do nível subnacional –, de características que demarcam diferentes
setores da educação, sendo que a relação entre eles não é restrita à mediação, mas
assume a forma, por exemplo, de operações híbridas e paralelas. E ainda mais,
sugerimos que as características básicas que estabelecem os aspectos políticos,
econômicos e tecnológicos do setor da educação vêm sendo estruturadas pelo
trabalho de organizações internacionais, que funcionam de acordo com um roteiro
amplamente comum (DALE, 2006b).
Entretanto, quando introduzimos a possibilidade de estender o setor para além
da escala nacional, surge uma história bem diferente. Em lugar de um pressuposto
de um nível indispensável de compatibilidade de características políticas e
econômicas nacionais, assumimos que as forças da globalização tornarão
problemáticas as relações políticas e econômicas no nível nacional, e constituirão,
elas próprias, conjuntos diferentes, porém paralelos, de demandas, definições e
expectativas nos níveis supra e subnacionais. E aqui as ênfases são bem diferentes.
Nos níveis subnacionais, os interesses dizem respeito, sobretudo, a questões
políticas, de representação, voz etc. No nível supranacional, os interesses estão
muito mais voltados para a economia, como comprova a reiteração constante da
importância da competitividade econômica internacional, e da necessidade
primordial de que a educação contribua para uma economia global do
conhecimento. Aqui se vê claramente a divisão funcional e escalar da governança
da educação, com a ascensão de questões que giram em torno da competitividade
econômica; e as questões que giram em torno do papel da educação na distribuição
de oportunidades no interior das sociedades nacionais ficam relegadas ao nível
nacional, ou são até mesmo rebaixadas. A diferença fundamental aqui diz respeito
à natureza e ao status das características genéricas. Nos níveis nacional e subnacional,
continuam a formar o terreno no qual acontecem, entre outras, as disputas políticas
sobre a distribuição de oportunidades. No nível supranacional, entretanto, essas
características passam a ser o centro de interesse, à medida que são percebidas como
inadequadas para o propósito em questão em uma economia global do
conhecimento (ROBERTSON, 2005). É por essa razão que não vemos apenas a
Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 567

ascensão de organizações supranacionais na educação, mas sua ascensão com uma


agenda específica para reformar, reconstruir ou transformar a gramática de
educação. O que nos permitiria imaginar tais acontecimentos é a construção efetiva
de setores de educação paralelos, ou mutuamente imbricados, embora distintos. E
é essa tentativa de reconstrução das características genéricas de educação que serve
de base para a divisão funcional e escalar da governança educacional, a qual, por
sua vez, acreditamos, constitui a chave para o entendimento do que atualmente
deveria ser comparado em educação. Desse modo, vemos um movimento duplo
das características genéricas de educação; nos níveis nacional e subnacional são
principalmente mediadas, estruturadas e interpretadas politicamente de diversas
maneiras, porém não fundamentalmente desafiadoras; no nível supranacional, há
sobretudo um projeto de sua apropriação transformando-as e anexando-as ao
projeto político mais amplo.

Representação

Em parte, o que a era da globalização em curso rompeu foi o status


hegemônico do que é uma representação particular de sistema de educação
nacional, localizada no espaço e no tempo, que é combinada com o poder público
e por ele dirigida. Isso talvez esteja mais claro na representação de educação
construída pelos teóricos do sistema mundial de governo (MEYER et al., 1992):
essencialmente, um conjunto de categorias curriculares comuns em sistemas de
educação controlados por Estados-nação. Nesta era de globalização, veem-se
desafios consideráveis a esse status hegemônico, com uma série de forças políticas
e sociais operando em diversas escalas (global, regional, local e nacional) e
buscando solapar as reivindicações de monopólio do Estado-nação no setor
(mesmo quando é possível mostrar que esse Estado não tem, e, em muitos casos,
nunca teve o monopólio do setor). Tais desafios vêm de dentro do próprio Estado
nacional, como no caso de Singapura (ver OLDS; THRIFT, 2004), e também
de organizações globais e internacionais, como a OCDE e o Banco Mundial, de
empresas, como Microsoft e Jarvis (ver BALL, 2007), e de instituições, como
universidades (ver MARGINSON, 2006).
A ideia de representação como um momento em processos sociais mais amplos
é particularmente útil para ajudar-nos a ver que os discursos sobre a produção do
conhecimento na sociedade são processos semióticos que têm momentos de ideação
e momentos de representação (CAMERON; PALAN, 2004). Ser capaz de ajustar
um significado particular no plano da ideação e da representação por meio da
integração desse imaginário em instituições sociais possibilita que o poder se
reproduza, e, assim, se reforce (JESSOP, 2004). Entretanto, como indica Jessop,
esse ajuste espaço-temporal é sempre temporário, e sempre desafiado pelas
contradições do capitalismo.
568 Dale e Robertson

Existem hoje vários imaginários conflitantes quanto ao que a educação deveria


ser no século XXI, que descrevemos a seguir por meio de três exemplos ilustrativos,
porém não exaustivos. Com esses três exemplos, queremos igualmente demonstrar
que imaginários também estão progredindo em escalas que extrapolam o setor
nacional; e se quisermos avaliar o significado político desses imaginários alternativos
como desafios, devemos começar a examiná-los também de modo mais sistemático.
Uma representação particular de educação é feita por meio do uso de estatísticas
na forma de indicadores (como o Pisa, da OCDE), marcos de referência (ODM e
outros) e padrões mínimos. Paradoxalmente, nesse contexto, o propósito é tornar
os sistemas de educação mais comparáveis (mas não necessariamente mais variados).
Assim, a partir da comparação, ou da justaposição de práticas e objetivos
educacionais culturalmente diferentes e variados, a educação comparada é impelida
a classificar sistemas de educação tomando como referência um conjunto comum
de indicadores.
É importante observar também que essas aproximações estatísticas do que se
considera como educação não têm o objetivo de representar coletivamente um meio
para definir de maneira mais precisa e mais geral a gama existente de propósitos,
políticas e práticas encontrados em sistemas nacionais de educação, e sim criar um
conjunto abrangente e comum de propósitos, políticas e práticas alternativos. A
intenção não é somente tornar os sistemas de educação mais comparáveis e
mensuráveis: é também transformá-los e orientá-los de formas específicas.
Uma segunda forma poderosa é o uso de novas metáforas – por exemplo:
agrupamentos, redes, centros de importância, focos – para impulsionar e gerar
mudanças (ROBERTSON; OLDS, 2007). Esses novos imaginários não somente
abrem espaço para novos atores na área de produção de conhecimento, mas
também funcionam em espaços paralelos e híbridos que estão sendo abertos por
Estados nacionais (é o caso de Singapura e a Escola Global de Singapura – OLDS;
THRIFT, 2005). Essas novas combinações funcionam sobretudo fora dos espaços
regulatórios existentes; criam também formas institucionais radicalmente diferentes
do setor de produção de conhecimento que conhecíamos como o setor de educação
do Estado nacional.
Um terceiro exemplo é o surgimento de um discurso e de um conjunto de
instituições poderosos que compõem o setor educação com fins lucrativos. Há um
conjunto de políticas e práticas sociais cada vez mais complexo e sofisticado nesse
setor, que inclui empresas que fornecem informações para investidores do setor –
um índice anual de empresas que fazem parte de uma lista pública que prestam
serviços em educação (ROBERTSON, 2006a). Esse setor está articulado com
considerações para a área da educação, como um setor de serviços que
anteriormente não era tratado como mercadoria, no sentido de enquadrá-la no
setor de serviços comercializáveis, regulamentado pelas normas da Organização
Mundial de Comércio.
Além dos “ismos” metodológicos na educação comparada 569

Um último exemplo é o desafio aos sistemas nacionais de educação colocados


por organizações internacionais, inclusive OCDE e Banco Mundial, para
reimaginar e reescrever seu papel na moderna sociedade do século XXI
(ROBERTSON, 2005). No centro dessa crítica está a visão de que os sistemas
nacionais de educação são produtos da era industrial e, consequentemente,
atingiram sua data limite de validade. Atualmente, novas visões são oferecidas como
alternativas – por exemplo, as escolas em rede com aprendizagem personalizada.
Embora haja uma enorme variedade nas respostas dos atores nacionais, a ideia de
personalização penetrou no discurso relativo a políticas em inúmeros países.

Conclusões
Neste artigo, tentamos apresentar três ideias conectadas. A primeira é que, em
uma era de globalização, a tendência crônica no interior da ciência social como um
todo, a fazer do nível nacional o foco de toda a atenção analítica é mais problemática
do que nunca; ao mesmo tempo, a tendência a materializar o nível nacional, ou a
tratá-lo como um fetiche, estende-se à forma de governo – estatismo – e no caso da
educação comparada, ao objeto de estudo – a educação. A segunda ideia é que esse
exercício demonstra que os três termos nunca foram realmente precisos: por
exemplo, o Estado nunca fez tudo. A terceira ideia, e também a mais importante
neste capítulo, é o risco de que cada uma delas, a partir das categorias fundamentais
da educação comparada, gere um conjunto de “ismos” metodológicos que precisam
ser reconhecidos e superados, para que a educação comparada avance em uma era
de globalização.
Entretanto, quando a localização nacional ainda é a mais comum na governança
educacional, o Estado é a forma mais comum de governança, e a educação ainda é
o termo mais útil para as atividades nas quais nos concentramos. O que há, agora,
para comparar? Como procuramos demonstrar neste capítulo, a ideia é que a nação
e o Estado de hoje não são a mesma nação nem o mesmo Estado de dez anos atrás,
tampouco as relações entre eles são as mesmas. De maneira similar, a educação
sempre foi reconhecida tacitamente como sendo e fazendo coisas diferentes, mas
agora ganhou alguns elementos que são novos em termos qualitativos. Acreditamos
que isso torna ainda mais importante reconhecer a natureza e o perigo da
transformação dos conceitos de Estado, nacional e educação em “ismos”
metodológicos, congelados nas concepções de épocas passadas. O perigo pode ser
comprovado no comentário de Smith em epígrafe neste capítulo; os conceitos de
nacional e de sistemas de educação “derivam sua força do fato de parecerem ser
apenas o que sempre foram”, e sua instrumentalidade, “do fato de assumirem
formas significativamente diferentes”. As implicações disso não se restringem, de
maneira alguma, ao âmbito metodológico. Como procuramos indicar neste
capítulo, há evidentes implicações teóricas. Mais ainda, quando essa força está
radicada na manutenção da ideia de que nada mudou, quando tudo mudou, as
570 Dale e Robertson

implicações são políticas. Como procuramos demonstrar, a educação não é mais,


se é que algum dia foi, a questão nacional, ou pública, ou o conjunto de categorias
curriculares descrito na maioria dos estudos de educação comparada. E enquanto
formos incapazes de reconhecer essa percepção e agir sobre ela, seremos cúmplices
na ocultação das mudanças e de suas consequências, não somente de nós mesmos,
mas também de todos aqueles que procuramos esclarecer. Vemos isso com maior
clareza no modo como a educação agora está sendo representada, expondo uma
escolha evidente para a educação comparada: tornar-se o cúmplice (inconsciente,
se não enxergarmos além dos “ismos”) de uma redefinição de educação moldada
por meio de representações estatísticas, que, em consequência do próprio fato de
serem tão imbricadas em termos de responsabilidade, é muito difícil de identificar
e, principalmente, de colocar em movimento.
O envolvimento em formas de representação estatística é particularmente irônico
para a educação comparada (THERET, 2005; NOVÓA; YARIV-MASHAL, 2003).
Envolve a omissão proposital de diferenças nacionais, na busca de comparabilidade
para fins de governo mais eficiente e eficaz, efetivamente tornando mais porosas as
fronteiras institucionais nacionais, e lançando as bases para setores nacionais de
educação reconstruídos e reformatados e, ao mesmo tempo, para um novo setor de
educação transnacional. À medida que a educação comparada é cúmplice disso, é
irônico que esse envolvimento definitivamente debilite a base nacional sobre a qual
repousou, e que assumiu sem questionamentos.

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70

EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E A
PERSPECTIVA COMPARATIVA

Terence H. McLaughlin

Este capítulo argumenta que uma abordagem filosófica da educação necessita


de uma dimensão comparativa, e que uma abordagem comparativa da educação
necessita de uma dimensão filosófica. O capítulo desenvolve a análise da relação
adequada entre uma abordagem filosófica e uma abordagem comparativa à
educação com referência a necessidades, dificuldades e oportunidades.

Introdução
Embora grande parte do trabalho de educação comparada de alguma forma
envolva a filosofia, e os próprios educadores comparativistas estejam atentos a
considerações filosóficas, o papel da filosofia na educação comparada não foi
claramente enfocado. Uma expressão dessa falta de foco é a relativa ausência de
desenvolvimento das relações entre as disciplinas de filosofia da educação e
educação comparada: os estudos educacionais continuam sofrendo de
compartimentalização. Entretanto, independentemente do estado atual de
relacionamento entre disciplinas educacionais formalmente estruturadas, deveria
existir um diálogo bem fundamentado, sensível e crítico entre as abordagens
filosófica e comparativa ao estudo da educação. Este capítulo procura analisar a
relação adequada entre uma abordagem filosófica e uma abordagem comparativa
ao estudo da educação com referência a uma série de necessidades, dificuldades e
oportunidades. O capítulo tem três seções que tratam, respectivamente, de
necessidades, dificuldades e oportunidades.

Educação, filosofia e a perspectiva comparativa: necessidades


Nesta seção, formulo e defendo duas ideias: (i) que a filosofia necessita de uma
dimensão comparativa (no contexto da educação, como em outros); (ii) que a
educação comparada necessita de uma dimensão filosófica. O avanço em relação a
ambas as ideias exige atenção ao modo apropriado de entender “filosofia” e
“comparada” com relação à educação.
Para Simon Blackburn, a filosofia está relacionada com a exploração da estrutura
de nosso pensamento em sua aplicação a tipos particulares de questões sobre nós

573
574 McLaughlin

mesmos (por exemplo: o que sou? O que é consciência? Tenho livre arbítrio?), o
mundo (por exemplo: por que existe algo, e não nada? Faz sentido pensar que o
futuro poderia influenciar o passado?) e sobre nós mesmos e o mundo (por
exemplo: como podemos ter certeza de que o mundo realmente é como
acreditamos que ele é? O que é conhecimento, e quanto conhecimento temos?)
(BLACKBURN, 1999, p. 2-3). A particularidade (e a peculiaridade) desses tipos
de questões está em seu caráter não empírico e no quanto elas resistem a
procedimentos e critérios simples para busca e resolução. Questões desse tipo
surgem de uma forma fundamental de autorreflexão crítica que se estende às
“estruturas de nosso pensamento” (BLACKBURN, 1999, p. 3-4).
Uma dificuldade para oferecer uma descrição geral da natureza da filosofia é que
qualquer descrição é oferecida a partir de uma tradição filosófica particular, e,
portanto, talvez seja parcial, sendo desse modo por esta influenciada. A descrição
de filosofia feita por Blackburn – “realizar engenharia conceitual” (BLACKBURN,
1999, p. 2) –, e sua rejeição às proposições de certas escolas de pensamento filosófico
como “engenheiros conceituais incapazes de traçar um plano, quanto mais de
desenhar uma estrutura” (BLACKBURN, 1999, p. 13) indica sua adesão a uma
abordagem à filosofia amplamente analítica. A abordagem analítica opõe-se a uma
concepção de filosofia contida na noção de uma filosofia, em que uma filosofia
oferece “uma descrição da grande escala da natureza da realidade, do lugar que nela
ocupam os seres humanos, e das implicações de tudo isso no modo como as pessoas
devem comportar-se no mundo e em relação aos outros” (COOPER, 2003a, p. 2).
As crenças africanas tradicionais mencionadas no artigo de Bridges, Asgedom e
Kenaw nesta edição especial são exemplo de uma filosofia nesse sentido.
A rejeição a uma concepção de filosofia desse tipo está presente na negação
inicial de Richard Peters da ideia de que a filosofia (e a filosofia da educação) oferece
“diretrizes de alto nível” (PETERS, 1966, p.15; ver também ELLIOTT, 1986).
Qualquer referência a filosofias da educação na perspectiva comparativa envolve a
noção de filosofia no sentido de uma filosofia. Como observa David Cooper, “assim
como ‘música’, ‘filosofia’, como nome de uma atividade intelectual muito geral,
não tem plural” (COOPER, 2003a, p. 2).
A realidade e o significado de tradições filosóficas contrastantes e, em parte,
competitivas, são de grande importância para este capítulo, e voltaremos ao assunto
oportunamente. No entanto, para nossos propósitos atuais, cabe ilustrar o que está
envolvido em uma abordagem filosófica à educação, fazendo referência a um
exemplo particular dessa abordagem, extraído da tradição analítica que predominou
na filosofia da educação anglo-americana desde a década de 1960, e que vem sendo
interpretada de modo cada vez mais amplo nos últimos anos (sobre a questão da
amplitude crescente de interpretação, ver, por exemplo, WHITE; WHITE, 2001).
Da perspectiva dessa tradição, pode-se descrever uma abordagem filosófica à
educação como incluindo tarefas inter-relacionadas e superpostas dos seguintes
Educação, filosofia e a perspectiva comparativa 575

tipos (a categorização de tarefas aqui apresentada baseia-se, em parte, em WHITE,


1987; BURBULES; WARNICK, 2004):
1. Analisar um termo ou conceito significativo em termos educacionais, mostrar
seus múltiplos usos e significados, para fins de esclarecimento. Entre os termos
e conceitos adequados para esse modo de esclarecimento incluem-se, por
exemplo, criatividade, cidadania, aprendizagem ativa e aprender a aprender.
A clareza talvez não seja uma virtude suficiente no discurso educacional,
porém (adequadamente entendida) é uma virtude necessária. A análise tem
sido descrita como a elucidação do significado de qualquer conceito, ideia ou
unidade de pensamento que empregamos na busca pela compreensão de nós
mesmos e de nosso mundo, reduzindo-o, decompondo-o em conceitos mais
básicos que o constituem e, dessa forma, mostrando sua relação com uma
rede de outros conceitos ou descobrindo o que o conceito denota (HIRST;
WHITE, 1998b, p. 2). Aqui, a análise deve ser vista não como a revelação de
um significado essencial ou correto de um termo ou de um conceito, de um
modo supostamente isento de valores, mas como incluindo uma definição
convincente para os propósitos de argumentos e linhas de investigação
específicas. É particularmente digna de nota a natureza conectiva desse tipo
de análise, na medida em que envolve uma investigação de “como um conceito
se conecta – muitas vezes de modos complexos e desiguais – em uma teia de
outros conceitos com os quais se relaciona logicamente” (WHITE; WHITE,
2001, p. 14),
2. Implementar a clareza alcançada (1) em uma avaliação crítica filosófica de um
termo ou um conceito significativo em termos educacionais; identificar
suposições ocultas, contradições internas ou ambiguidades em usos do termo
e/ou em uma exposição de efeitos de parcialidade ou controvérsia, potenciais
ou reais, que o termo tem nos discursos profissionais e populares. A noção de
avaliação crítica indica aqui que os filósofos interessam-se não somente pela
clareza, mas também pela justificativa. Por exemplo: uma vez esclarecido o
significado de criatividade, a questão dos sentidos, se houver, em que
criatividade deve figurar como objetivo educacional requer a atenção do
filósofo. Por esse motivo, os filósofos analíticos não devem ser vistos como
simples “parentes pobres dos compiladores de dicionários” (WHITE; WHITE,
2001, p. 16).
3. Estender (2) em uma avaliação crítica filosófica de práticas, políticas, objetivos,
propósitos, funções, teorias e teóricos, doutrinas, escolas de pensamento e visões
educacionais ou indispensáveis para a educação.
4. Desenvolver propostas e argumentos positivos relacionados às questões
mencionadas em (3), incluir a articulação e a justificativa filosófica de objetivos,
valores e processos educacionais fundamentais. É aqui que se pode ver mais
576 McLaughlin

claramente o distanciamento de uma preocupação com o que é de segunda


ordem em favor de preocupações substantivas, que caracterizou a filosofia
analítica da educação nos últimos 25 anos (aproximadamente).
A tradição analítica em filosofia e filosofia da educação foi descrita como
unificada não por doutrinas compartilhadas, e sim por uma série de métodos
característicos. É difícil, porém, determinar com alguma precisão a metodologia
da tradição analítica da filosofia da educação como um todo, embora seja possível
identificar com segurança algumas características inerentes. Com sua ênfase
característica em métodos de significado e justificativas, essa tradição utiliza um
estilo de argumentação que pode ser reconhecido, caracterizado (entre outras
coisas), pelo esclarecimento e pela análise de conceitos, premissas e hipóteses, a
consideração de contraexemplos, a identificação e a eliminação de defeitos de
raciocínio de diversos tipos, o levantamento de diferenças importantes (por
exemplo, entre questões conceituais, normativas e empíricas), o uso de
experimentos de pensamento, um sentido específico de crítica e o desenvolvimento
estruturado de argumentos. A abordagem analítica da filosofia da educação
desconfia de afirmações e enunciados excessivamente gerais. Busca um debate e
uma discussão mais minuciosos e detalhados, em que a atenção a questões de
significado e justificativa age como um antídoto contra generalização indevida. Por
esse motivo, essa abordagem tende a começar seu trabalho não a partir de
enunciados ou teorias gerais, mas a partir de questões e problemas específicos, para
os quais busca esclarecimento, quando pertinente, em recursos de argumentação
filosófica mais ampla. (Sobre a tradição analítica em filosofia da educação, ver, por
exemplo, PETERS, 1966, 1983; WILSON, 1979; COOPER, 1986; ELLIOTT,
1986; HIRST, 1986, 1993, 1998; WHITE, 1987, 1995, 2003; SOLTIS, 1988;
EVERS, 1993; KOHLI, 1995, pt. 1; HAYDON, 1998; HIRST; WHITE, 1998a,
pt. 1, 1998b; McLAUGHLIN, 2000; HEYTING et al., 2001; WHITE; WHITE,
2001; CURREN, 2003; CURREN et al., 2003.)
Embora aqui não seja possível discutir detalhadamente em que sentidos a
educação em geral tem necessidades filosóficas, é evidente que, em sua maior parte,
o pensamento, as políticas e as práticas educacionais não são adequados para
atenção filosófica, mas efetivamente exigem essa atenção. Evidentemente, não há
aqui sugestão alguma no sentido de que, por si só, a filosofia possa esclarecer
totalmente, ou mesmo resolver as questões educacionais. A reflexão filosófica em
educação deve ser conduzida em estreita relação com outras disciplinas de
investigação e com os imperativos e as percepções das políticas e das práticas
educacionais (sobre esses temas, ver, por exemplo, McLAUGHLIN, 2000).
Embora a noção de uma perspectiva comparativa da educação ainda não tenha
sido focalizada plenamente, é possível ver, nesse estágio, de que modo uma
perspectiva filosófica da educação, devidamente entendida, requer uma dimensão
comparativa, o que pode ser ilustrado por meio de cada uma das características da
Educação, filosofia e a perspectiva comparativa 577

abordagem analítica identificadas. Com relação à característica (1) – a análise de


um termo ou conceito significativo em termos educacionais –, o que se considera
termo ou conceito significativo em termos educacionais está, em parte, relacionado
a questões de lugar e tempo: os termos e conceitos têm um contexto e uma história.
Não se pode filosofar adequadamente sobre a educação em um vácuo, seja um
vácuo social, geopolítico ou histórico. Para que a análise filosófica de termos e
conceitos significativos no plano educacional seja suficientemente fundamentada
e produtiva, uma dimensão comparativa é necessária, pelo menos para qualquer
análise filosófica mais ampla. (Sobre a necessidade de uma perspectiva comparativa
ao filosofar de um modo geral, ver, por exemplo, SMART, 2000; COOPER,
2003a; sobre uma dimensão histórica das perspectivas filosóficas em educação, ver,
por exemplo, OKSENBERG RORTY, 1998b.) Quanto à característica (2) – uma
avaliação filosófica crítica de um termo ou de um conceito significativo em termos
educacionais –, os tipos de critérios invocados para os julgamentos justificativos
que estão sendo feitos exigem avaliação e confirmação, à luz de uma análise
adequadamente fundamental, o que envolve considerar os tipos de critérios
alternativos que uma perspectiva comparativa proporciona. Da mesma forma, com
relação à característica (3) – uma avaliação filosófica crítica de práticas, princípios
e similares da educação –, uma dimensão comparativa é um recurso estratégico
para enriquecer a gama de possibilidades e argumentos justificativos expostos, o
que se aplica também à característica (4) – o desenvolvimento de propostas positivas
com relação às questões mencionadas no item (3). A necessidade de uma dimensão
comparativa para a filosofia entendida em termos analíticos é inerente ao slogan
filosófico “nem todas as suas perguntas respondidas, mas todas as suas respostas
questionadas”. A busca adequada de filosofia deve levar à problematização da
tradição na qual ela se realiza e, nesse sentido, como em outras questões, uma
dimensão comparativa ao filosofar é essencial e necessária.
Depois de procurar esclarecer a natureza de uma abordagem filosófica ao estudo
da educação por meio de referência a uma abordagem aprofundada, de que forma
é possível entender melhor uma abordagem comparativa ao estudo da educação?
Essa questão foi tema de muitos debates na disciplina nos últimos anos (ver, por
exemplo, CROSSLEY; JARVIS, 2000, 2001). Uma exploração da noção de
comparação oferece um modo de esclarecer as questões aqui, de modo bastante
geral, para o propósito desta discussão. Comparação pede atenção para: (a) o que
está sendo comparado com o quê (por exemplo, professores, escolas, métodos de
ensino e sistemas educacionais em diferentes contextos culturais, nacionais e
regionais); (b) a base avaliativa de comparação (por exemplo, normas e princípios
selecionados ao fazer comparações); (c) razões e motivos subjacentes nas comparações
feitas (por exemplo, investigação acadêmica desinteressada, busca por insights etc.,
para transposição de um contexto a outro); (d) métodos utilizados na comparação
(por exemplo, métodos baseados em ciências naturais, ciências sociais e tradições
578 McLaughlin

hermenêuticas). O estudo comparado da educação necessita de uma dimensão


filosófica para cada um desses quatro aspectos.
Quanto ao aspecto (a) – o que está sendo comparado com o quê –, a necessidade
de uma dimensão filosófica manifesta-se com relação a pelo menos duas questões.
A primeira delas surge da ideia geral de que muitos aspectos do pensamento, das
políticas e das práticas educacionais não somente são adequados para a atenção
filosófica, mas exigem essa atenção. Uma vez que a maior parte do que é objeto de
comparação em educação comparada tem caráter educacional, há necessidade de
uma dimensão filosófica para a tarefa de comparar, simplesmente em vista da
necessidade geral de esclarecimento filosófico que tem a educação. A necessidade
de uma dimensão filosófica é evidente com relação à aspiração da educação
comparada no sentido de desenvolver “um arcabouço teórico cada vez mais
sofisticado para descrever e analisar os fenômenos educacionais” (PHILLIPS, 2000,
p. 298). Os tipos de temas debatidos pelos educadores comparativistas em sua
teorização são ricos em implicações filosóficas: globalização (ver, por exemplo,
CROSSLEY; JARVIS, 2000); pós-colonialismo (ver, por exemplo, CROSSLEY;
TIKLY, 2004); educação indígena (ver, por exemplo, MAY; AIKMAN, 2003);
democracia (ver, por exemplo, DAVIES et al., 2002); e cidadania (ver, por exemplo,
ICHILOV, 1988), além de focos de atenção de base regional. A segunda questão
com relação à qual emerge uma dimensão filosófica é o esclarecimento dos
contextos em que os fenômenos educacionais são localizados. Esses contextos
incluem muitos aspectos (culturais, antropológicos, políticos, religiosos etc.) que
convidam e exigem atenção filosófica, como parte da gama de abordagens e
estratégias necessárias para colocar em foco determinado contexto.
Com relação ao item (b) – a base avaliativa de comparação –, a presença da
noção de avaliação (com sua implicação de normas e princípios) indica um papel
para a filosofia, em matéria de esclarecimento e justificativa. Aqui, como em outras
situações, a filosofia tem um papel de contribuição: formas adequadas de
investigação empírica têm seu lugar na investigação de aspectos factuais da
identificação de semelhante com semelhante. Com relação ao item (c) – razões e
motivos subjacentes às comparações feitas –, as considerações filosóficas iluminam
razões e motivos tais como uma ciência pragmática do empréstimo educacional e
uma leitura do mundo, discutidos por Robert Cowen (2000). Este último aspecto,
que envolve uma interpretação ampla de cunho cultural, histórico e político, é
perfeito para uma iluminação filosófica. Com respeito ao item (d) – métodos
utilizados na comparação –, Robin Alexander observa que os comparativistas
escrevem tanto sobre propósitos e processos da comparação como sobre seus
resultados, e devem ser prevenidos contra a metodolatria: uma preocupação com
métodos que leva à exclusão de realmente fazer pesquisa (ALEXANDER, 2001, p.
513). Segundo Ninnes e Burnett, apesar dos apelos por coerência de foco e método,
a educação comparada caracterizou-se pelo ecletismo, na medida em que incorpora
Educação, filosofia e a perspectiva comparativa 579

“uma série de teorias e métodos das ciências sociais e cruza uma série de subcampos,
inclusive sociologia da educação, planejamento educacional, antropologia e
educação, economia da educação, e educação e desenvolvimento” (NINNES;
BURNETT, 2003, p. 279).
Seja como for, surgem considerações filosóficas relativas à articulação e à defesa
de metodologias de pesquisa utilizadas na educação comparada (ver, por exemplo,
MARTIN, 2003; NINNES; BURNETT, 2003), e alguns educadores
comparativistas abordaram diretamente essas consideraçãoes filosóficas (ver, por
exemplo, NINNES; BURNETT, 2003). Patricia Broadfoot chama atenção para a
profunda divisão metodológica entre os métodos qualitativos e aqueles de tipo mais
quantitativo associados ao paradigma das ciências naturais, que caracterizaram a
educação comparada (BROADFOOT, 2000, p. 360). A autora pede uma
perspectiva de ciência social mais crítica na educação comparada, fundamentada
teoricamente, que envolva maior consciência autocrítica, particularmente com
relação à natureza carregada de valor de problemas, métodos e conclusões
(BROADFOOT, 2000). A autora insiste particularmente na ideia de que “os
próprios educadores comparativistas […] devem estar dispostos a comprometer-se
em debates fundamentais sobre valores; sobre a natureza da vida boa e a propósito
do papel da educação e da aprendizagem com relação a isso” (BROADFOOT,
2000, p. 370). Mais precisamente, alega, a educação comparada tem a
responsabilidade de levar o debate para além dos meios, ou seja, até os fins.

Educação, filosofia e a perspectiva comparada: dificuldades


Se admitirmos que uma abordagem filosófica à educação e uma abordagem
comparativa à educação precisam uma da outra da maneira como sugerimos, as
dificuldades envolvidas em alcançar as diversas formas de compreensão integrada
entram em foco. A pesquisa interdisciplinar geralmente enfrenta uma série
considerável de dificuldades claramente reconhecidas. Diversas dificuldades
específicas obstruem o caminho que leva ao tipo de compreensão colaboradora à
qual nos referimos. Quatro dificuldades inter-relacionadas serão consideradas aqui.
A primeira delas surge de um ponto crucial: qualquer tentativa de filosofar sobre
um contexto educacional deve ser conduzida à luz de uma compreensão completa
do próprio contexto em todos os seus aspectos, incluindo os aspectos não
filosóficos. Essa tarefa envolve dificuldades amplas e complexas para alcançar uma
compreensão adequadamente abrangente e profunda das realidades educacionais
e de suas condições de background em determinados contextos (GRANT, 2000),
das quais aqueles que se dedicam à educação comparada têm consciência há muito
tempo. Como pano de fundo para um trabalho filosófico dentro e fora de um
contexto particular, é indispensável um trabalho esclarecedor detalhado, em termos
de contexto, de tipos muito diferentes (para trabalhos recentes desses tipos em
alguns dos contextos discutidos nesta edição especial, ver, por exemplo, GREEN,
580 McLaughlin

2000; TOMIAK, 2000; CAVE, 2001; HARBER, 2002; JONES, 2002;


YAMASHITA; WILLIAMS, 2002). Uma compreensão adequada do filosofar sobre
a educação no contexto da Europa Oriental, por exemplo, requer, entre outras
coisas, uma compreensão dos diversos fatores não filosóficos que condicionaram a
expressão de ideias no período soviético, e dos vários ajustes e compromissos por
parte dos pensadores que a situação exigia (ver a contribuição de Godoń,
Jucevičienë e Kodelja nesta edição especial).
Uma segunda dificuldade diz respeito à aspiração de relacionar a reflexão
filosófica à realidade educacional (e a outras realidades) de um contexto
determinado. Algumas formas de reflexão filosófica são extremamente gerais (por
exemplo, a reflexão ligada à determinação de objetivos fundamentais e gerais da
educação), e esses tipos de reflexão não buscam uma relação direta com a prática e
a elaboração de políticas educacionais. Embora esse tipo de reflexão tenha seu lugar,
é preciso precaver-se contra o risco de que leve a uma retórica indeterminada e
precipitada, irrelevante em termos educacionais e suspeita em termos filosóficos.
A reflexão filosófica relacionada com realidades educacionais e nelas fundamentada
muitas vezes é mais adequada, tanto em termos educacionais como em termos
filosóficos. Por exemplo, pouco se pode avançar em uma discussão filosófica sobre
educação para a cidadania na China contemporânea sem atentar para a reforma
do currículo de história no período pós-Mao (a esse respeito, ver JONES, 2002).
Oksenberg Rorty lembra-nos que, embora os países europeus e anglo-americanos
compartilhem alguns objetivos educacionais, “suas histórias políticas e religiosas
distintas e suas condições socioeconômicas diferentes estabelecem para eles
problemas morais e educacionais bastante específicos” (OKSENBERG RORTY,
1998a, p. 10). Uma vez que as soluções para (muitas) questões educacionais não
podem ser gerais, muito menos em termos filosóficos, a reflexão filosófica sobre
elas deve estar ligada a considerações locais de diversos tipos, baseando-se nelas e
variando de acordo com suas especificidades. Entretanto, a tarefa de explorar a
relação entre reflexão filosófica e realidades educacionais em determinados
contextos é de extrema complexidade, o que se deve, em parte, às complexidades
envolvidas na relação geral entre filosofia e elaboração de políticas e prática
educacional (sobre essas complexidades, ver, por exemplo, McLAUGHLIN, 2000).
Por exemplo, concepções e princípios filosóficos não podem simplesmente ser
obtidos nem aplicados a realidades educacionais. A influência filosófica sobre a
elaboração de políticas e sobre práticas educacionais muitas vezes é exercida por
meio da phronesis (ou julgamento prático) pedagógica de responsáveis pelas políticas
educacionais, professores e líderes educacionais. As complexidades gerais a que nos
referimos aqui se ampliam em qualquer tentativa de explorar a relação entre filosofia
e a formulação e a prática de políticas em educação em contextos comparados.
A terceira dificuldade está ligada à tarefa de alcançar uma compreensão adequada
do filosofar sobre educação transversalmente em diferentes contextos. Aqui, um
Educação, filosofia e a perspectiva comparativa 581

aspecto geral de dificuldade tem caráter prático, e esse tema foi abordado acima,
quando descrevemos as duas primeiras dificuldades. Aqui, porém, concentraremos
a atenção em aspectos filosóficos de dificuldade. Um bom ponto de partida para
chegar a formas pertinentes de compreensão é uma descrição (clara) de diversos
tipos. Entretanto, embora seja necessária para o entendimento, uma descrição de
uma tradição filosófica ou do desenvolvimento do filosofar sobre educação em um
contexto determinado não é suficiente (para essas descrições, ver, além das
contribuições publicadas nesta edição especial, o relato de Jover [2001] sobre
filosofia da educação na Espanha). Um aspecto relevante da dificuldade diz respeito
à questão do entendimento transversal entre tradições filosóficas. A tradição analítica
da filosofia e da filosofia da educação, que usamos como exemplo no início deste
capítulo, manifestamente não é imune à crítica, especialmente por parte das
tradições filosóficas continentais, às quais Paul Standish se refere em sua
contribuição nesta edição especial. As visões educacionais detalhadas originárias de
uma filosofia no sentido indicado anteriormente (ou seja, visões e sistemas
filosóficos globais e abrangentes) pedem compromisso com uma tarefa
particularmente complexa de explicação e interpretação que requer sensibilidade e
julgamento consideráveis. (Para informações sobre esse tipo de tarefa, ver, por
exemplo, DEUTSCH; BONTEKOE, 1997; especificamente sobre as tradições de
pensamento representadas nesta edição especial, ver ALBERTINI, 1997;
DEUTSCH; BONTEKOE, 1997, caps. 7-15, 32-40, 43, 45; MASOLO, 1997;
WEIMING, 1997; COOPER, 2003a, caps. 3, 6, 9; sobre a relação entre povos
indígenas e filosofias ocidentais, ver, por exemplo, MARSHALL, 2000.).
Entender a filosofia do confucionismo, do budismo e do islamismo, por
exemplo, coloca um desafio particular para os pensadores ocidentais, e não só
devido à relação intrincada dessas tradições com todo um modo de vida. Um dos
riscos que enfrentam os pensadores ocidentais é o orientalismo inerente na
categorização das filosofias não ocidentais da educação, à luz de um pressuposto
de que todas as tradições filosóficas não definidas como ocidentais constituem
algo identificável pelo simples fato de serem não ocidentais (DEUTSCH, 1997,
p. xii). Deutsch chama a atenção também, convenientemente, para outro perigo
envolvido em imaginar que o pensamento de outra cultura “tem unidade e
simplicidade claras, em comparação com o caráter multivariado do nosso próprio
pensamento” (DEUTSCH, 1997, p. xiii). Na realidade, segundo Deutsch,
muitas dessas tradições alternativas caracterizam-se por profundidade,
abrangência, diversidade e controvérsia. Por conseguinte, não existe uma filosofia
(ou filosofia da educação) chinesa, japonesa ou africana propriamente dita. Um
risco relacionado a isso é o primordialismo, em que uma identidade grupal
particular, com sua articulação filosófica subjacente, é vista como um pressuposto
atemporal e eterno. Um problema relacionado é a definição do que se pode
considerar filosofia (ver o artigo de Bridges, Asgedom e Kenaw neste volume).
582 McLaughlin

Um risco adicional ao buscar entender filosofias é deduzir implicações


educacionais a partir delas mesmas, de modo simplista. MacIntyre ilustra esse
risco em sua observação de que, embora seja possível fabricar uma colagem a
partir de elementos relevantes da filosofia de Tomás de Aquino, e descrevê-la
como sua filosofia da educação, isso seria uma farsa (MacINTYRE, 1998, p. 96).
Nessas e em outras questões, para abordar a tarefa de entender filosofias e suas
implicações educacionais, vale a pena começar com as realidades educacionais
que impõem (sobre esse tipo de abordagem, ver, por exemplo, HALBERTAL;
HALBERTAL, 1998; MacINTYRE, 1998; MOTTAHEDEH, 1998).
A quarta dificuldade está ligada à tarefa de empreender um diálogo transversal com
o filosofar sobre a educação entre diferentes contextos, e a tarefa relacionada que isso
implica: realizar julgamentos sobre a validade ou a adequação das perspectivas e dos
argumentos encontrados. É forçoso observar que diferentes perspectivas e tradições
filosóficas não necessariamente se justapõem umas às outras: as relações entre elas
podem ser de discordância e conflito potencial e real. Deutsch (1997) insiste:
A preocupação básica ao explorar outras tradições não deve ser simplesmente descobrir mais de
si mesmo e do que é familiar, mas aprender sobre outras possibilidades de experiência filosófica
que o encontro entre culturas pode oferecer (DEUTSCH, 1997, p. xiii).

A afirmação de Deutsch conduz à ideia de que uma pessoa pode ser um filósofo
e um filósofo da educação mais qualificado por ter abraçado uma perspectiva
comparativa. Para um especialista em educação de cultura liberal ocidental, a maior
dificuldade ao adotar uma perspectiva comparativa é estar verdadeiramente aberto
a concepções, valores e formas de raciocínio alternativos, que podem entrar em
conflito significativo com concepções, formas de raciocínio e valores liberais
ocidentais (ver especialmente a contribuição de Mark Halstead nesta edição
especial). Uma dificuldade aqui é a prevalência de noções como pós-modernismo,
que parecem colocar em dúvida o próprio projeto avaliativo, de diferentes maneiras
(sobre pós-modernismo, ver, por exemplo, COOPER, 2003b). Evidentemente, a
noção de concepções e valores liberais ocidentais não é transparente e simples,
embora, para os fins dessa discussão, seja possível invocar um sentido geral, ainda
não analisado (para discussão adicional, ver WHITE, 2003). A disseminação prática
e normativa de tais concepções, formas de discussão e valores liberais em todo o
mundo é evidente, especialmente devido à presença de democracia como um de
seus elementos fundamentais (sobre a disseminação de valores liberais no caso do
Japão, ver, por exemplo, FEINBERG, 1993). Um fenômeno geral digno de nota é
a intensa pressão filosófica (e também social e política) exercida por influências
liberais e democráticas sobre as formas tradicionais de filosofar. Tu Weiming descreve
o modo como a tradição iluminista ocidental provocou “a discussão mais
devastadora jamais encontrada pela mente chinesa” (WEIMING, 1997, p. 22). As
formas locais de filosofar, com suas concepções, seus valores e suas formas de
Educação, filosofia e a perspectiva comparativa 583

discussão peculiares, enfrentam uma avaliação a partir do ponto de vista


supostamente universal do liberalismo ocidental (ver nesta edição especial as
contribuições de Penny Enslin e Kai Horsthemke e Bridges, Asgedom e Kenaw); e
muitos contextos procuram adaptar-se às normas ocidentais (ver as contribuições
de Godoń, Jucevičienë e Kodelja e Naiko Saito e Yasuo Imai). Aqui, o maior desafio
para os acadêmicos ocidentais é não só reinterpretar, de maneira apropriada e
defensável, formas locais de pensamento e prática à luz de perspectivas ocidentais
(sobre objetivos e valores educacionais democráticos liberais na perspectiva
comparativa, ver BRIDGES, 1997), mas também estar suficientemente aberto aos
insights genuínos que fazem parte das formas locais de pensar. Isso é fundamental
principalmente porque concepções, formas de pensamento e valores liberais não são
simples como parecem, mas exigem enriquecimento e correção a partir de outras
fontes. Por exemplo, são amplamente sentidas as inadequações do liberalismo
ocidental com relação a garantir uma base para motivação não individualista e para
as necessidades e os imperativos comunitários. A abertura aos insights genuínos
contidos nas formas de pensamento locais exige recursos consideráveis de
sensibilidade e imaginação, que extrapolam o âmbito filosófico. Evidentemente, não
se deve pressupor que os desafios de diálogo e avaliação restringem-se a encontros
com filosofias como o confucionismo, o budismo e o islamismo. Há muito espaço
para o exercício da sensibilidade e da imaginação no enfrentamento entre a tradição
analítica e a tradição continental em filosofia e em filosofia da educação (sobre esse
enfrentamento, ver, por exemplo, BLAKE et al., 1998).
As dificuldades aqui indicadas são substanciais, principalmente aquelas de
caráter filosófico que identificamos. Entretanto, qualquer sugestão no sentido de
que é impossível avançar significativamente com relação às dificuldades pareceria
colocar em dúvida a própria possibilidade de qualquer estudo comparado
ambicioso e significativo na área da educação.

Educação, filosofia e a perspectiva comparada: oportunidades


Quais são as oportunidades que surgem do fato de aceitar a afirmação de que
uma abordagem filosófica e uma abordagem comparativa ao estudo da educação
necessitam uma da outra? Aqui há muito espaço para discutir as possibilidades
detalhadamente. No mínimo, seria conveniente que o filosofar sobre a educação se
tornasse mais sensível aos insights da educação comparada, e que esta se tornasse
mais sensível a insights e preocupações de cunho filosófico. Entretanto, a necessidade
de uma cooperação interdisciplinar sustentada e sensível surge claramente da
discussão anterior. A flexibilidade aqui é vital: os aspectos filosóficos da pesquisa,
por exemplo, não devem ser vistos unicamente como a província de filósofos ou
filósofos da educação.
O diálogo com o desconhecido talvez seja uma característica essencial da
abordagem comparativa à educação. O que sugerimos aqui é que os filósofos e os
584 McLaughlin

educadores comparativistas injustificadamente desconhecem o trabalho uns dos


outros, e o diálogo entre eles deve tanto expandir seus trabalhos como indicar
oportunidades reais para colaboração na busca por seus interesses de investigação
mútuos e coincidentes.
Agradecimento: Agradeço a Robert Cowen por sua orientação e sua assistência
na redação deste capítulo.

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SEÇÃO 8

NA VANGUARDA: QUESTIONANDO O FUTURO


71

COMPARAÇÃO: QUO VADIS ?

Gita Steiner-Khamsi

A história da educação comparada nos Estados Unidos é contada frequentemente


em termos de mudanças revolucionárias de paradigmas que renovaram o foco
disciplinar, os métodos e o alcance geográfico (por exemplo, ALTBACH, 1991).
Até a década de 1990, a educação comparada nos Estados Unidos estava firmemente
ancorada na disciplina história, fascinada por estudos de um único país e focada nos
sistemas educacionais europeus. No final da década, o campo transformou-se em
educação comparada e internacional, reunindo pesquisadores e outros profissionais
que eram multidisciplinares, transnacionais e internacionais, em perspectiva.
Consequentemente, o nome de sua associação profissional, Comparative Education
Society (CES), foi substituído por Comparative and International Education Society
(Cies). Segundo as versões correntes, a ortodoxia disciplinar em história deu lugar
a uma heterodoxia (PAULSTON, 1993), que incluiu diversas disciplinas das ciências
sociais. Uma vez que a história foi descartada como única base disciplinar legítima
para o estudo comparativo de sistemas educacionais, seguiram-se mudanças
metodológicas. Segundo alguns, as unidades de comparação tornaram-se menores,
deslocando-se de sistemas nacionais de educação para locais ou comunidades
educacionais com vínculos culturais. Segundo outros, tornaram-se mais amplos,
uma vez que foi abandonado o foco limitado na comparação entre nações norte-
americanas e europeias, e a curiosidade acadêmica e os interesses profissionais
voltaram-se para o terceiro mundo. Neste capítulo, exploro a proliferação de estudos
de caso individual que ocorreram à custa de estudos de caso múltiplo e outros tipos
de estudo que envolvem comparações. Discuto a reviravolta desenvolvimentista que
ocorreu na década de 1960 e reflito sobre suas repercussões em questões
metodológicas.

A reviravolta desenvolvimentista
Existe uma forte convicção de que a reviravolta desenvolvimentista ocorrida na
década de 1960 foi inteiramente positiva. Essa afirmação geral, sustentada por
pesquisadores com enfoque comparativo e internacional nos Estados Unidos, merece
ser examinada com cuidado. É correto afirmar que o foco exclusivo na Europa foi
abandonado e substituído por uma orientação para países em desenvolvimento. É

591
592 Steiner-Khamsi

verdade também que as universidades norte-americanas ingressaram em grande estilo


no estudo de idiomas e de outras áreas, de forma a compreender – mas também
conquistar – o coração e a mente dos povos do terceiro mundo. Assim sendo, a
reviravolta desenvolvimentista marcou o início de uma era de estudos em ciências
sociais, humanidades e pesquisa educacional. Como é discutida mais
detalhadamente em outras publicações, a emergência de estudos de desenvolvimento
e de área estava indissociavelmente ligada à Guerra Fria (STEINER-KHAMSI,
2006; STEINER-KHAMSI; DEJONG-LAMBERT, 2006). O fato de a educação
comparada norte-americana tornar-se global no final da década de 1950 e na década
de 1960, deixando para trás o foco exclusivo na Europa, teve mais a ver com a
dimensão global das intervenções dos Estados Unidos do que com um aumento de
sensibilidade em relação aos povos de países em desenvolvimento.
Naturalmente, a reviravolta desenvolvimentista teve consequências para a
seleção dos países-alvo das pesquisas, redirecionando a atenção para países de baixa
renda em lugar dos países de renda alta. Além disso, como este capítulo
demonstrará, a reviravolta desenvolvimentista teve também repercussões
metodológicas consideráveis. O direcionamento para estudos de caso individual já
era claramente visível no final da década de 1950 e início da década de 1960,
quando o National Defense Education Act (1958) e as bolsas de estudo Title VI
Foreign Language and Area Studies criaram oportunidades de financiamento e outros
incentivos financeiros para focalizar as pesquisas em apenas um país. O foco em
uma única área geográfica não era novidade para os pesquisadores comparativistas.
Em função de sua proximidade com historiadores, muitos dos primeiros
pesquisadores em educação comparada sempre se consideraram especialistas de
áreas, focalizando a história da educação em uma determinada região. Entretanto,
apesar de sua especialização em áreas ou contextos, efetivamente faziam
comparações. Suas análises estavam enraizadas em comparações contextuais. No
entanto, a situação mudou com a reviravolta desenvolvimentista.
Em retrospecto, o período de maior ganho territorial na educação comparada
foi também a era de maiores perdas metodológicas: com as intervenções norte-
americanas focalizadas em países em desenvolvimento nas décadas de 1950 e
1960, a educação comparada ganhou espaço. O campo já não se limitava à
América do Norte e à Europa, mas englobava agora quaisquer países com os
quais o governo dos Estados Unidos mantivesse relações amistosas ou
pretendesse estabelecer laços. Tipicamente, eram países em desenvolvimento de
baixa renda. No entanto, em um exame mais detalhado, o projeto de
comparação era suspenso tão logo se dedicasse maior atenção a esses países: não
devido a suas limitações metodológicas (por exemplo, dificuldade de realizar
comparações contextuais sólidas), mas frequentemente por motivos chauvinistas:
o que se poderia aprender com países que estão em um nível inferior de
desenvolvimento? A educação nos países em desenvolvimento representava para
Comparação: quo vadis? 593

a educação comparada norte-americana o mesmo que a educação burguesa


norte-americana representava para a educação comparada marxista-leninista, e
vice-versa: era considerada demasiadamente inferior para ser comparável (ver
STEINER-KHAMSI, 2006). Na década de 1960, com o boom dos especialistas
em desenvolvimento e em áreas de estudo, financiado pelo NDEA com as bolsas
de estudo Title VI Foreign Language and Area Studies e outras bolsas
internacionais, a educação comparada e internacional dos Estados Unidos
desviou-se para estudos qualitativos em um único país e, em certa medida,
perdeu sua dimensão comparativa.1
Eu gostaria de recorrer às astutas observações metodológicas de Harold H.
Noah. Seus comentários apreendem muito bem minhas próprias críticas ao
paradigma estreito de pesquisa que emergiu durante a Guerra Fria na década de
1960, e que persiste até hoje:
Obviamente, os 35 anos a partir de 1970 presenciaram um enorme crescimento organizacional [na
educação comparada e internacional nos Estados Unidos]. Mas nada mais direi; meus lábios estão
selados a respeito da ocorrência, ou não, de melhoras qualitativas. Certamente há diferenças. Em
alguns aspectos é muito diferente, mas em outros é a mesma coisa. Há ainda, como havia antes,
um enorme número de estudos sobre um único país. E a grande pergunta é a mesma: isso é educação
comparada? Esses estudos não poderiam ter sido publicados igualmente em um periódico de
sociologia da educação ou de ciência política daquele país, ou em um periódico de educação daquele
país? Por que é educação comparada? Essa questão ainda me preocupa (NOAH, 2006, excerto de
DVD 00:15-28 – 00:16-58).

Legados da Guerra Fria


A reviravolta desenvolvimentista ocorreu no final da década de 1950 e início
da década de 1960. Esse período corresponde aos anos de formação das sociedades
de educação comparada em diversas partes do mundo, inclusive nos Estados
Unidos. A década coincidiu com o período de competição mais acirrada entre as
duas superpotências. A corrida armamentista, científica e tecnológica atingiu seu
auge nessa época. Para os pesquisadores de educação comparada nos Estados
Unidos, a educação soviética foi inicialmente alvo de admiração, e nas duas décadas
seguintes tornou-se uma referência negativa em relação a tudo o que a educação
norte-americana não deveria e nunca desejaria ser. Na reunião de inauguração da
Sociedade de Educação Comparada na Universidade de Nova York, em 1956, a

1. É importante ter em mente que a mudança da educação comparada na direção de estudos de um único país
não ocorreu necessariamente em outros países e continentes. Na verdade, a seção de educação comparada da
Associação Europeia de Pesquisa Educacional (European Educational Research Association – EERA) excluiu
todos os resumos e apresentações que não tivessem uma dimensão explicitamente comparativa, e os delegou
para outras seções da EERA. No Congresso Europeu de Pesquisa Educacional, em Genebra (setembro de
2006), debateu-se vivamente se apresentações que tratavam de um único caso estariam qualificadas para a
seção de educação comparada
594 Steiner-Khamsi

comparação entre a educação nos Estados Unidos e na União Soviética foi o tema
de maior destaque.2 A educação soviética tornou-se um ponto básico de referência
depois do lançamento do Sputnik, em 1957, e essa posição foi reforçada quando,
em 1961, Yuri Gagarin tornou-se o primeiro homem no espaço. O declínio
soviético coincidiu com relatórios nas décadas de 1970 e 1980, nos quais dissidentes
denunciavam a repressão política e escreviam sobre a economia da escassez
generalizada nos países socialistas.
A influência da Guerra Fria persiste até hoje e está evidente em diversas
características contemporâneas da educação comparada e internacional nos Estados
Unidos: em primeiro lugar, a dominância dos estudos de área e de desenvolvimento
na educação comparada e internacional norte-americana; e em segundo, sua
preocupação com análises de contrastes entre sistemas educacionais entendidos
como diametralmente opostos ao sistema norte-americano. Nos Estados Unidos,
os estudos sobre a União Soviética foram logo substituídos por estudos sobre o
Japão e, a seguir, depois de mais de uma década de relativa inércia, por estudos
sobre o Islã. As pesquisas sobre práticas educacionais na União Soviética, no Japão
e no mundo árabe – regiões que em um ou outro momento eram vistas como
ameaças econômicas ou políticas aos Estados Unidos – atraíram muita atenção
pública e financiamentos governamentais. Por fim, é perceptível que os
pesquisadores da educação comparada nos Estados Unidos raramente comparam
a educação norte-americana com a de outras partes do mundo. O único país que
parece servir como sociedade de referência (SCHRIEWER et al., 1998) para a
reforma educacional nos Estados Unidos é a Grã-Bretanha, e mesmo assim
limitando-se a reformas educacionais orientadas para o mercado. Para os analistas
norte-americanos, aparentemente não há atração por políticas transnacionais, a
menos que as reformas tenham origem na Grã-Bretanha, o que contrasta
acentuadamente com a pesquisa em educação comparada em outros países, que
normalmente é atraída por observação, documentação e publicação a respeito de
reformas em países cujos contextos são considerados comparáveis.

Estudos de idiomas e de áreas

Em 1958, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o National Defense


Education Act (NDEA), visando a melhorar a qualidade da educação (especialmente

2. O estudo da educação soviética foi o único tópico específico da área na reunião de 1956. Todos os outros
tópicos referiam-se a teorias, métodos ou conceitos de educação comparada (ver CAMPISANO, 1988, p.
35; BRICKMAN, 1966). George Z. Bereday foi convidado a comparar a educação nos Estados Unidos com
a educação soviética (BEREDAY, 1957). Os outros três tópicos, programados pelos coorganizadores William
Brickman e Gerald Read, foram: (1) Fundamentos teóricos da educação comparada; (2) Importância atual
do tema como área de estudo e pesquisa; e (3) Exame de definições, objetivos e valores da educação comparada
e o conceito, e os princípios gerais de comparação. Na segunda parte do programa, os participantes
discutiram as aplicações práticas da educação comparada.
Comparação: quo vadis? 595

em matemática, ciências e instrução em idiomas estrangeiros), e aumentar o acesso


à educação pós-secundária e superior por meio de empréstimos a estudantes e bolsas
de estudo. No total foram relacionadas dez áreas (títulos) elegíveis para
financiamento federal. Na educação superior, essas novas áreas foram Título II
(empréstimos a estudantes), Título IV (bolsas para a área de defesa nacional), e
Título VI (desenvolvimento de estudos de idiomas e de áreas). Essas prioridades
de financiamento tiveram início em 1958 e, com um nível bem mais baixo de
financiamento, estão disponíveis até hoje.3
Uma revisão do orçamento do NDEA para 1963 ilustra a preocupação com os
países socialistas. Os idiomas estrangeiros com melhor classificação no início da
década de 1960 foram chinês mandarim e russo. Mais precisamente, 16% do
orçamento de bolsas de pós-graduação em idiomas estrangeiros modernos foram
para o chinês mandarim, e 13%, para o russo, seguidos pelo árabe (11%), japonês
(10%), espanhol (10%) e outros idiomas (UNITED STATES OF AMERICA,
1963, figura 20). O acordo de intercâmbio cultural Estados Unidos e União
Soviética de 1958 possibilitou uma espiada por trás da Cortina de Ferro sob a forma
de visitas ou excursões de estudos organizadas. O interesse por idiomas e estudos
soviéticos e da Europa Oriental diminuiu drasticamente na década de 1970,
quando foi reduzido o financiamento governamental para estudos de áreas e
idiomas estrangeiros. O número de doutorados em Estudos Soviéticos e do Leste
Europeu nas universidades norte-americanas, por exemplo, teve um pico na década
de 1970-1979 (3.598 doutorados) e uma redução de 60% no período 1980-1987
(ATKINSON, 1988).
Embora a retórica em favor do estabelecimento do NDEA estivesse claramente
enraizada na linguagem da Guerra Fria, um grande número de estudos de idiomas
e áreas estrangeiros – independentemente de serem ou não em países socialistas –
beneficiou-se da infusão de fundos governamentais. Em 1958, o US Comissioner
of Education apontou 83 idiomas como criticamente necessários e identificou seis
deles como primeiras prioridades de desenvolvimento: árabe, chinês mandarim,
hindi-urdu, japonês, português e russo (o espanhol foi acrescentado em 1996, após
o anúncio da Aliança para o Progresso Estados Unidos-América Latina). Em fins
de 1962, quatro anos depois da implementação do NDEA, 56 dos 83 idiomas
críticos receberam apoio federal, e foram criados 53 centros para estudos de áreas
e de idiomas a nível superior (UNITED STATES OF AMERICA, 1963).

3. Em 2005, 60 universidades eram elegíveis para a administração de bolsas de estudo para estudos de áreas e
idiomas estrangeiros (Título VI). O orçamento do ano fiscal de 2005 foi de US$ 28,2 milhões, tendo sido
financiadas 926 bolsas com duração de um ano e 635 bolsas de verão. Os programas de educação internacional
do Título VI continuaram a ser a maior fonte de financiamento federal, em que a educação é explicitamente
associada à segurança nacional e global. Em seguida, vêm a bolsa de segurança da pátria (criada em 2003),
que desembolsou US$ 15 milhões, e o Programa de Educação para a Segurança Nacional, com um orçamento
de US$ 8 milhões em 2005 (GLENN, 2005).
596 Steiner-Khamsi

Cabe aqui uma breve comparação entre as estratégias de reforma educacional


dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e durante a atual guerra ao terrorismo.
Desde 2006, fala-se sobre a criação de um novo NDEA como ofensiva
educacional para a vitória na guerra ao terrorismo. Tal como ocorre hoje, a
educação estava diretamente associada à segurança nacional e global, e os gastos
federais em educação mais do que duplicaram nos quatro anos posteriores à
implementação do NDEA de 1958 (UNITED STATES OF AMERICA, 2006,
p. 2). Embora os recursos fossem administrados pelo Departamento de
Educação, a linguagem utilizada para aprovar o ato no Congresso estava
impregnada no discurso dos militares provocando ansiedade quanto à
possibilidade de que o país perdesse a corrida em ciências, tecnologias e
armamentos. A magnitude do NDEA torna-se evidente quando se comparam
as medidas educacionais do final da década de 1950 com as atuais, iniciadas
pelo governo norte-americano para combater a guerra ao terrorismo. Essa
comparação não é descabida, uma vez que muitos comentaristas políticos
comparam o 11 de Setembro (2001) ao lançamento do Sputnik (outubro de
1957). Os dois eventos abateram-se sobre a nação como um choque e
desencadearam inúmeras intervenções governamentais. Na educação, o paralelo
é marcante e refletiu-se na National Security Language Initiative de 20054, criada
pelo presidente George W. Bush e, no plano dos senadores democratas, apoiado
pela Association of American Universities, para aprovar o chamado NDEA de
2006. No entanto, se o governo federal precisasse alocar no interesse da
segurança nacional o mesmo valor alocado para o NDEA de 1958, o custo seria
de US$ 400 milhões a US$ 500 milhões – isto é, cerca de dez vezes mais do
que o gasto atual com bolsas para o Título VI e para a segurança da pátria.
(BRAINARD, 2005). Em ambas as épocas – a da Guerra Fria e a da guerra ao
terrorismo – houve gastos públicos maciços para vencer a guerra. Durante a
Guerra Fria, no entanto, a alocação de recursos no setor educacional foi
consideravelmente maior – na verdade, dez vezes maior – do que hoje.
Voltando à década do desenvolvimento nos anos 1960, o aumento de apoio
federal para a educação superior gerou incentivos muito atraentes para a criação
de estudos de área e para estudos de desenvolvimento em educação e ciências
sociais. De fato, a maioria dos programas de pós-graduação em educação
comparada e internacional, de estudos sobre desenvolvimento educacional ou
sobre políticas internacionais de educação nas universidades norte-americanas
foi criada durante a década do desenvolvimento. Chegando ao final, a década de
1960 havia transformado inteiramente o campo da educação comparada e

4. Em 2002, o exército dos Estados Unidos relatou a “séria carência de tradutores e intérpretes em cinco de
seus seis idiomas críticos” (UNITED STATES OF AMERICA, 2006, p. 3): árabe, coreano, chinês mandarim,
farsi e russo. Espera-se que a Iniciativa de Idiomas pela Segurança Nacional resolva a situação, produzindo,
até 2009, 2 mil “falantes avançados de idiomas críticos” que pudessem ser empregados pelo Exército dos
Estados Unidos, por agências de inteligência e agências governamentais (LIEBOWITZ, 2006, p. B29).
Comparação: quo vadis? 597

internacional nos Estados Unidos, no sentido de distanciar-se do campo da


historiografia comparada e dirigir a atenção, por um lado, para comparações
(descontextualizadas) entre países e, por outro, para estudos altamente
contextualizados (mas não comparativos) de países individuais.

Análises de contrastes
Andreas Kazamias critica a “metamorfose social-científica da educação
comparada” (KAZAMIAS, 2001, p. 440) da década de 1960, por ter transformado
a educação comparada em um campo de investigação que não recorre à história
nem, em certa medida, a teorias. Eu gostaria de acrescentar à observação de Kazamias
que o período inicial de comparação social-científica na década de 1960 presenciou
– sob a forma de estudos soviéticos e, mais tarde, de estudos japoneses – o modo
mais superficial e descontextualizado de comparação: as análises de contrastes. Do
ponto de vista metodológico, as análises de contrastes devem ser consideradas um
tipo específico de comparação. Enfatizam mais as diferenças do que os aspectos em
comum. A tipologia de análises comparativas com base em estudos de caso ajuda a
situar as análises de contrastes dentro da metodologia comparativa.
A Tabela 1 apresenta a distinção entre sistemas e resultados feita por análises
comparativas em estudos de caso (BERG-SCHLOSSER, 2002, p. 2.430; ver também
PRZEWORSKI; TEUNE, 1970). Utilizo “sistema” e “caso” como equivalentes,
porque, do ponto de vista metodológico, um caso é um sistema delimitado por sua
própria rede causal (TILLY, 1997, p. 49), que conecta o grande número de variáveis
do caso/sistema. A tabela a seguir é particularmente útil para decisões sobre
amostragem, uma vez que ajuda a tornar transparente a seleção de casos.

Tabela 1. Análises comparativas em estudos de caso


Casos/sistemas mais semelhantes Casos/sistemas menos semelhantes

Resultados mais semelhantes SMS – RMS SMD – RMS


Resultados mais diferentes SMS – RMD SMD – RMD

Em análises de contrastes, os pesquisadores selecionam os casos/sistemas que


consideram mais diferentes entre si quanto a sistema político, sistema educacional
ou outros critérios de sistema (SMD) e esperam encontrar resultados diferentes
(RMD). O quarto quadrante da Tabela 1 representa o desenho de pesquisas de
contrastes (SMD – RMD), nas quais são examinados os sistemas mais
diferenciados, com a expectativa de encontrar os resultados mais diferenciados.
Durante a Guerra Fria, o campo de estudos soviéticos satisfazia as demandas
populistas de compreensão dos motivos pelos quais a nação norte-americana havia
ficado para trás na corrida armamentista e espacial. Em decorrência, tornou-se
598 Steiner-Khamsi

aceitável que a pesquisa educacional se engajasse em análises de contrastes – isto é,


em comparações dirigidas primariamente para a identificação de diferenças. Como
consequência, os dois sistemas foram dicotomizados, e cada um deles foi situado
em uma das extremidades de um espectro. A educação soviética era retratada como
um sistema baseado na doutrinação política, ao passo que o sistema norte-
americano supostamente promovia o pensamento crítico dos alunos. A lista de
construções binárias é longa. Basta mencionar mais uma falsa dicotomia: o sistema
educacional soviético supostamente enfatizava o acesso à educação à custa de sua
qualidade. O descarte de tudo que é percebido como tipicamente socialista, tal
como o acesso gratuito e universal à educação, teve efeitos desastrosos sobre as
reformas atuais na região pós-socialista (ver STEINER-KHAMSI; STOLPE,
2006). Como notam alguns estudiosos (por exemplo, FOSTER, 1998), o campo
de estudos soviéticos foi abandonado praticamente da noite para o dia e substituído
por estudos japoneses. Posteriormente, a nova metodologia foi adotada para esse
campo de estudos, produzindo inúmeros estudos de contrastes entre a educação
norte-americana e a japonesa.
Tal como seu primo mais velho – o campo de estudos soviéticos (ver NOAH,
2006) –, o campo de estudos japoneses foi populista no sentido de ter difundido,
com espantosa velocidade, inúmeras generalizações amplas e afirmações exageradas
sobre educação. Além disso – como apontou William Cummings (1989)
referindo-se à expressão cunhada por Joseph Tobin –, os pesquisadores norte-
americanos tendiam a utilizar uma abordagem “sim, porém...”. A abordagem
reconhece os sucessos de outros sistemas educacionais, mas ao mesmo tempo
“argumenta que esses sucessos têm um preço muito alto, um preço que os norte-
americanos não estão dispostos a pagar” (CUMMINGS, 1989, p. 296). Os mitos
ou as afirmações exageradas sobre a educação japonesa incluíam: paradigma
invertido de socialização (condescendência na primeira infância, disciplina na
adolescência e início da idade adulta), educação para a nação e o Estado, kyoiku
mama (mãe orientada para a educação), aprendizagem por memorização nas
escolas, competição e suicídio, educação superior elitista e desigualdade social. A
atração dos norte-americanos pelo sistema educacional japonês desvaneceu-se tão
rapidamente quanto surgiu, devido à crise econômica na Ásia. Em um curto
período de tempo, os “pontos fortes da educação japonesa reconhecidos com
reserva” (CUMMINGS, 1989, p. 298) desapareceram dos relatos norte-
americanos. O sistema educacional japonês caiu em desgraça, e os observadores
norte-americanos passaram a utilizar extensivamente estudos que documentavam
escolas superlotadas, suicídio entre estudantes e exaustão dos professores. Surgiram
críticas também nos contextos japoneses. No Japão, o discurso sobre a crise
emergiu na virada do milênio, e foi utilizado para justificar a necessidade de
reformas fundamentais, como a reforma curricular abrangente implementada em
2002 (TSUNEYOSHI, 2004).
Comparação: quo vadis? 599

Apatia em relação a políticas transnacionais

William Cummings não é o único a observar o desinteresse dos Estados Unidos


pelas reformas educacionais de outros países:
O interesse norte-americano pelos sistemas educacionais estrangeiros nunca foi muito acentuado,
e à medida que os Estados Unidos progrediram para uma posição de proeminência internacional,
parece que esse interesse tem diminuído de forma acentuada: afinal, o que o mundo poderia
ensinar aos Estados Unidos? (CUMMINGS, 1989, p. 294).

Cummings publicou sua observação em 1989, na aurora de uma nova era na


qual o outro império, a União Soviética com seus aliados socialistas, foi dissolvido.
Mais do que nunca, é perceptível a postura global dos analistas políticos norte-
americanos. Esse status isolacionista, ou autorreferência, da pesquisa norte-americana
em educação comparada (LUHMANN, 1990; SCHRIEWER, 1990; ver também
STEINER-KHAMSI, 2004) como a forma básica pela qual são tomadas decisões
sobre políticas na reforma educacional dos Estados Unidos é um fenômeno
relativamente recente. Historicamente, o período em que houve maior interesse
norte-americano pelos sistemas educacionais de outros países (particularmente da
Europa) foi da segunda metade do século XIX ao início do século XX. Tendo em
mente esse período particular da educação comparada norte-americana, Harold
Noah e Max Eckstein identificaram o período de empréstimo educacional, “quando
a principal motivação era o desejo de aprender lições úteis a partir de práticas
estrangeiras” (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 3), como o segundo estágio no
desenvolvimento da educação comparada.5 Na mesma linha, Gail P. Kelly refere-se
ao período da história da educação comparada em que “os cavalheiros viajavam com
frequência e escreviam sobre as diferenças entre as nações” (KELLY, 1992, p. 14).
David Phillips cunhou a expressão “atração por políticas transnacionais”
(PHILLIPS, 2004; ERTL, 2006) para apreender, sob uma perspectiva histórica, o
interesse britânico pelo provimento educacional alemão durante um período
considerável de tempo. Esse referencial de interpretação é útil para compreender o
interesse continuado de analistas de políticas de um dado sistema educacional pelo
provimento educacional, pelas estratégias de reforma e por outras características

5. Noah e Eckstein (1969) identificam no desenvolvimento da educação comparada os cinco estágios a seguir: (1)
relatos de viajantes; (2) empréstimo educacional; (3) cooperação internacional em educação; (4) estudos sobre
sociedade e escolarização, incluindo estudos de caráter nacional; e (5) fundamentação da educação comparada
nas ciências sociais. Noah e Eckstein foram criticados por sua afirmação de que as ênfases filosófica e histórica
iniciais da educação comparada haviam sido substituídas por uma ênfase nas ciências sociais, e principalmente
por seu endosso entusiástico a métodos quantitativos de pesquisa em educação comparada. Sua explanação
histórica sobre os cinco estágios está em sintonia com o que foi observado por outros acadêmicos. Talvez seu
entusiasmo quanto ao grande potencial da pesquisa quantitativa pudesse ser mais moderado, mas – a despeito
de afirmações em contrário (MASERMANN, 2006; ver também STEINER-KHAMSI, 2006, nota 12) –
certamente não há dúvida de que a história e a filosofia foram as bases da pesquisa inicial em educação comparada
e, na verdade, de qualquer outra pesquisa educacional nos Estados Unidos e na Europa.
600 Steiner-Khamsi

institucionais de outros sistemas. No caso dos analistas norte-americanos de


políticas, no entanto, aplica-se o contrário: apatia em relação a experiências de
outros lugares. Parece que nada há a ser aprendido com outros sistemas
educacionais, e que experiências alheias não são consideradas instrutivas para o
desenvolvimento de políticas domésticas. Existem exceções: de fato, há uma atração
por políticas entre o Reino Unido e os Estados Unidos, mas certamente não há
sinais de transmigração notável de políticas por parte dos analistas norte-
americanos. Em outros contextos, a atração por políticas transnacionais é a regra,
não a exceção. Por exemplo, nos primeiros anos que se seguiram à divulgação dos
resultados do Pisa, inúmeros analistas de políticas de diversas partes do mundo
deslocaram-se para a Finlândia para explorar os motivos do desempenho
excepcional dos estudantes finlandeses em letramento em idiomas.

O desafio da comparação contextualizada


A comparação contextualizada, ou o distanciamento em relação às análises de
contrastes, só foi redescoberta na educação comparada com a reviravolta cultural
geral nas ciências sociais, na década de 1980. Nessa época, as pesquisas sociais
antropológicas e históricas se aproximaram e, consideradas paradigmaticamente
mais como irmãs do que como primas, influenciaram positivamente a discussão
de métodos nas ciências sociais, na pesquisa educacional e na pesquisa em
educação comparada. Não só consideraram problemático o foco exclusivo em
sistemas nacionais de educação, incluindo outras unidades de análise (salas de
aula, escolas, comunidades, regiões, o mundo), como também solicitaram uma
abordagem mais hermenêutica ao estudo de sistemas educacionais, o que implicou
maior atenção ao contexto histórico e cultural. Em decorrência, os estudos de um
único país, ou estudos de caso, apresentaram-se como uma ferramenta
metodológica na qual todas as unidades de análise, da sala de aula ao mundo,
estavam interligadas, e pela qual poderiam ser estabelecidas conexões causais entre
diferentes unidades ou níveis de análise.
Eu gostaria de argumentar que a reviravolta cultural na educação comparada
dominou o campo em detrimento de outros métodos quantitativos e mistos de
estudo comparativo. Atualmente, os estudos qualitativos de caso ou estudos em
um único país são o gênero mais utilizado de investigação metodológica na
educação comparada e internacional dos Estados Unidos. Reiterando o argumento
de Noah, já mencionado (NOAH, 2006), “por que isto é educação comparada?”.
Em princípio, estudos em um único país podem perfeitamente ser comparativos.
Em um exame mais detalhado, no entanto, a maioria dos estudos de um único
país publicados nos periódicos de educação comparada e internacional não envolve
estudos comparativos, o que se aplica particularmente a estudos de caso que evitam
os três tipos possíveis de métodos de comparação: comparação no tempo (análise
histórica), no espaço (análise cultural entre países, ou dimensional) ou de padrões
Comparação: quo vadis? 601

socialmente estabelecidos (por exemplo, estudos do tipo OCDE/IED). Pode-se


argumentar que a comparação entre países é apenas um dos diversos métodos de
comparação. Até a década de 1960, um método utilizado com muita frequência
na educação comparada era a historiografia comparada, que analisava e comparava
a educação em um país estrangeiro por um longo período de tempo. Demandas
de análises mais interdimensionais ocorreram (BRAY; THOMAS, 1995), mas
raramente foram implementadas na pesquisa. Considero a pesquisa com estudo de
caso uma ferramenta poderosa para a análise de políticas sob duas condições: o
pesquisador deve definir claramente o caso (o que esse caso pretende?) e deve
construir de forma convincente histórias causais internas ao caso (TILLY, 1997, p.
5) investigando de que forma os diversos atores, agendas, níveis de políticas e
práticas educacionais relacionam-se entre si. Consequentemente, um estudo de
caso deve ser considerado como uma descrição densa baseada em uma amostra
pequena (N pequeno), mas em muitas variáveis (RAGIN, 1997).
Por exemplo, no estudo de caso sobre importação educacional na Mongólia
(STEINER-KHAMSI; STOLPE, 2006), tivemos que lidar com as imprecisões dos
estudos de caso (BASSEY, 2001, p. 6; ver também HAMMERSLY, 2001; PRATT,
2003). A incerteza das predições está relacionada com a informação contextual em
que o estudo de caso deve estar fundamentado. Embora algumas vezes tenhamos
incluído observações feitas em outros contextos, o corpo principal de nossos
achados estava profundamente enraizado no contexto mongol de reforma
educacional. A imprecisão dos estudos de caso é ao mesmo tempo um ponto forte
e um ponto fraco em termos metodológicos. O que explica a imprecisão é a
complexidade (muitas variáveis) de uma questão que se desdobra quando se dá
atenção aos diversos atores, agendas, unidades de análise e práticas dentro de um
contexto. No estudo de caso na Mongólia, por exemplo, utilizamos
consistentemente três unidades de análise, correspondentes a três níveis diferentes
de políticas – discurso, ação e implementação; a lista de atores, agendas e práticas
variou em cada capítulo do livro (STEINER-KHAMSI; STOLPE, 2006), e seria
excessivamente longo reiterá-los aqui.
Estudos comparativos ou comparações contextuais consistentes tipicamente
baseiam-se em informações específicas ao(s) caso(s), assim como em comparações
com outros casos. O problema que observo, no entanto, é que muitos estudos
não fazem nem uma coisa nem outra. Ou seja, ou focalizam um caso – e são
altamente contextuais em relação a esse caso, mas carecem de maior amplitude
em seu quadro de referência ou em sua perspectiva, muitas vezes porque o
pesquisador enfatiza (demais) diferenças contextuais, e por isso se recusa a fazer
comparações; ou são muito precisos na descrição de mudanças no tempo para
certo número de casos, mas omitem detalhes importantes em cada caso. Essas
diferenças metodológicas não são simples nuances, porque produzem teorias
diferentes, dependendo do método de investigação e da perspectiva adotada. Por
602 Steiner-Khamsi

exemplo, no fascinante debate intelectual sobre a existência de uma convergência


internacional na direção de um único modelo (internacional) de educação, as
considerações metodológicas são instrumentais para a determinação da crença
ou da descrença dos acadêmicos em uma convergência internacional sobre
escolarização supostamente decorrente da globalização.
A globalização é vista usualmente como um ato de desterritorialização
(APPADURAI, 1990). Por implicação, os estudos de globalização investigam o
fluxo transnacional de dinheiro, comunicações, crenças ou, como no caso da
pesquisa educacional comparativa, o trânsito de reformas educacionais de um
contexto cultural para outro. Como estudiosos da globalização, podemos basear-
nos em uma tradição já estabelecida em educação comparada, investigando o
empréstimo de políticas (NOAH; ECKSTEIN, 1969; HOLMES, 1981) entre
contextos e, consequentemente, examinando fenômenos globais ou transnacionais.
Nessa área-chave de pesquisa na educação comparada, a reviravolta cultural nas
ciências sociais que corresponde, mais especificamente, à reviravolta
desenvolvimentista da educação comparada, teve amplas repercussões para o estudo
do empréstimo transnacional de políticas ou da globalização da educação. O que
estamos presenciando hoje é uma bifurcação da pesquisa comparativa sobre
empréstimos, em que um dos setores realiza comparações entre nações, e o outro
enfatiza cultura ou contextos locais. Nesse espaço binário, um grupo de acadêmicos
– associado à sociologia neoinstitucionalista – investiga mudanças no longo prazo
para identificar uma convergência de sistemas nacionais de educação, crenças e
práticas ao longo do tempo (MEYER; RAMIREZ, 2000; RAMIREZ, 2003;
BAKER; LETENDRE, 2005; KAMENS; BENAVOT, 2006). Diametralmente
oposto está um grupo de pesquisadores que representa uma orientação específica
dentro da antropologia cultural, que produz estudos de um único país para enfatizar
que as forças globais ou externas são profundamente reinterpretadas e adaptadas
localmente, e, portanto, têm impacto apenas limitado sobre estruturas, crenças e
práticas locais (ANDERSON-LEVITT, 2003).
Embora os desacordos entre os dois campos – sociólogos neoinstitucionalistas
e antropólogos culturais antineoconstitucionalistas – tenham desencadeado um
debate acirrado sobre os pontos fortes e as limitações de cada referencial de
interpretação, falta-nos uma discussão sobre limites metodológicos e pontos cegos
das disciplinas. Os estudos de caso apresentados no livro de Anderson-Levitt
criticam o neoinstitucionalismo ou teoria da cultura mundial a partir de uma
perspectiva antropológica. No volume organizado pela autora (ANDERSON-
LEVITT, 2003), cada um dos nove estudos de caso reflete sobre a maneira pela
qual influências exógenas na educação (forças globais) foram interpretadas em uma
comunidade particular (encontro local).
Como anunciado no título do livro, os autores dos estudos de caso investigam
significados locais de visões e pressões de escolarização global e encontram uma
Comparação: quo vadis? 603

multiplicidade de significados (locais). Sua crítica apoia-se nesses achados e serve


de argumento para denunciar os efeitos homogeneizadores da globalização
afirmados pela teoria da cultura mundial. Os autores mostram que, ainda que
escolha, aprendizagem centrada no aluno, educação baseada em resultados,
mercantilização das escolas etc. tenham-se tornado globais, não substituíram
modelos já existentes, e nem significam o mesmo em diferentes contextos culturais.
Por exemplo, a opção pelo idioma de instrução, promovida pelos missionários
norte-americanos na Tanzânia (STAMBACH, 2003) é, por diversas razões, algo
completamente diferente da escolha de métodos de instrução em matemática que
eram combatidos por facções da associação de pais e mestres na Califórnia
(ROSEN, 2003). Essas variações fazem muita diferença para os autores que
contribuem para o livro, uma vez que revelam que os indivíduos de uma
determinada comunidade compartilham uma compreensão sobre o que significam
os modelos globais de reforma em seu próprio contexto cultural. Criticam seus
opositores – os acadêmicos da teoria da cultura mundial, ou sociólogos
neoinstitucionalistas – por assumirem os modelos globais de escolarização por seu
valor aparente, sem examiná-los abaixo de sua superfície, analisando de que maneira
se efetivam diferencialmente no nível da comunidade. Dizendo mais
explicitamente, os teóricos da cultura mundial parecem ter confundido pirataria
de marcas tais como escolha, educação baseada em resultados, educação centrada
no aluno etc., apropriadas em um lado do mundo e lançadas para outro, com
indícios de uma convergência internacional da educação.
Em contraste, o neoinstitucionalismo, ou teoria da cultura mundial, reconhece
variações locais (RAMIREZ, 2003, p. 247) do modelo global de escolarização, mas
as considera meramente como manifestações de ajuste frouxo entre políticas oficiais
e efetivadas, ou como parte de uma cultura mundial que promove diferença e
diversidade. Simplesmente não interessa aos sociólogos comparativistas analisar de
que forma e por que exatamente a mesma reforma escolar – digamos, escolha – é
interpretada e implementada de maneiras diferentes em contextos culturais
diversos, o que pouco contribui para dar um sentido mais adequado às tendências
no nível de sistemas. O fato de formuladores de políticas em diversas partes do
mundo justificarem escolhas, vouchers, privatização da educação e uma série de
outras reformas neoliberais em termos de progresso e justiça apenas reafirma sua
teoria sobre a convergência internacional na educação.
A pesquisa antropológica tem muito a oferecer para a compreensão da forma
pela qual a globalização se efetiva nas comunidades, uma vez que dispõe dos
instrumentos metodológicos para compreender o que globalização significa para
grupos e comunidades: por que ela é apropriada ou rejeitada, e de que forma ela é
adaptada e modificada em seus contextos culturais. Analisando os encontros locais
com forças globais, aprendemos mais a respeito de contextos culturais do que sobre
a própria globalização. Em contraste, definir o global ou o que está lá fora
604 Steiner-Khamsi

(ANDERSON-LEVITT, 2003, p.17) não é o ponto forte desse tipo de pesquisa


antropológica. Na verdade, em alguns poucos estudos de caso apresentados no livro
organizado por Anderson-Levitt (2003), as forças externas ou a globalização (o “lá
fora”) de fato estavam aqui dentro. Notei nesse livro algumas poucas construções:
de um lado, os autores assumem que o global se manifesta nas reformas neoliberais
(escolhas, programas de eficiência econômica), personificadas em grupos específicos
vistos como de fora (imigrantes russos em Israel, missionários norte-americanos na
Tanzânia); de outro lado, quando fracassam todos os outros métodos para distinguir
o global e o local, simplesmente utilizam um método quase subtrativo (o resíduo
daquilo que já existia localmente é considerado como sendo o global), e assim
correm o risco de não dar atenção a qualquer inovação. No entanto, nem tudo que
está lá fora no mundo mais amplo (ANDERSON-LEVITT, 2003, p. 55) é
qualificado como global. Exatamente porque o global muitas vezes está aqui dentro,
diversos antropólogos assinalaram que os conceitos de determinismo espacial ou
do local têm valor limitado (por exemplo, CAMAROFF; CAMAROFF, 2001) e,
ao mesmo tempo, reconheceram as separações entre vários desenvolvimentos
transnacionais (APPADURAI, 1990). Esse outro grupo de antropólogos nos força
a abordar explicitamente as linhas imprecisas entre global e local, externo e interno,
e assumir a superposição desses dois espaços como objeto de estudo.
O esforço para investigar o impacto da globalização sobre a educação é mais
ambicioso do que aparenta. O maior desafio é evitar a armadilha de estabelecer
primeiramente fronteiras nacionais, apenas para demonstrar mais tarde que essas
fronteiras na verdade foram atravessadas. Reformas não têm pátria, território ou
nacionalidade, e, portanto, não pertencem a um sistema educacional em particular.
Os indivíduos concebem as reformas e, dependendo de sua localização geográfica
e institucional, e do quanto estão conectados globalmente, conseguem que suas
ideias sejam disseminadas em todo o mundo. Assim sendo, o que é importante
para a pesquisa comparativa é o motivo que leva analistas e formuladores de
políticas a referir-se à globalização – isto é, geram pressões de reforma apontando
reformas educacionais de outros países.

Comparativistas que compreendem

A título de conclusão de minhas observações metodológicas, destaco alguns dos


desafios da comparação que já mencionei anteriormente. A reviravolta no
desenvolvimento do final da década de 1950 e início da década de 1960 reforçou
uma tendência preexistente na pesquisa em educação comparada: maior atenção
ao contexto (cultura, história, idioma) e relutância em fazer comparações, a menos
que houvesse uma base sólida para a defesa da comparabilidade dos contextos.
Como menciona Noah (2006), a maioria dos artigos do periódico da Sociedade
de Educação Comparada e Internacional dos Estados Unidos, “Comparative
Comparação: quo vadis? 605

Education Review”, relata estudos em um único país. Os autores que fazem


comparações correm o risco de ser criticados como insensíveis a questões culturais
ou por realizar comparações descontextualizadas.
Devido à cautela em relação à comparação, a questão da comparabilidade
assumiu um significado monumental. Evidentemente, nada é comparável por si
só (TILLY, 1998; RAGIN, 1997). A menos que o pesquisador identifique um
aspecto em comum, ou construa com maior precisão uma dimensão específica em
relação à qual dois ou mais casos/contextos possam ser comparados, a comparação
está excluída. Estabelecer um tertium comparationis – isto é, gerar, justificar e aplicar
um constructo em relação ao qual dois ou mais sistemas educacionais são
comparados – tornou-se uma das maiores preocupações dos pesquisadores
comparativistas. O tertium comparationis mudou com o tempo. Sob uma
perspectiva histórica, civilização, modernização, desenvolvimento e democracia –
para listar apenas os principais constructos utilizados na pesquisa norte-americana
em educação comparada – têm servido como referencial interpretativo ou como
tertium comparationis para justificar comparações entre contextos ou casos, ou –
nas primeiras pesquisas em educação comparada – entre sistemas educacionais
nacionais. Os primeiros comparativistas, como Sadler e Kandell, utilizaram a teoria
da civilização para construir a comparabilidade. Grupos, povos e nações percebidos
como estando no mesmo estágio de civilização eram considerados comparáveis
(STEINER-KHAMSI, 2002; WELCH, 2000). Uma vez que os Estados-nação
recém-formados do século XIX supostamente estavam no mesmo estágio (elevado)
de civilização, justificava-se a transferência transatlântica de modelos educacionais.
Da mesma forma, na passagem para o século passado, pesquisadores norte-
americanos e britânicos acreditavam que afro-americanos, americanos nativos e
africanos (e mais tarde, todos os povos colonizados do Império colonial britânico)
estivessem no mesmo estágio (atrasado) de civilização. Uma vez que esses grupos
eram considerados comparáveis, a transferência de modelos educacionais de um
continente (América do Norte) para outro (África) era vista como admissível, em
termos tanto metodológicos quanto morais. Um caso que ilustra bem esse aspecto
é a transferência da educação adaptada, de Hampton e Tuskegee (escolas do Sul
segregado nos Estados Unidos) para Achimota (Gana colonial), na década de 1920
(STEINER-KHAMSI; QUIST, 2000).
É necessária uma historiografia da comparação que explique as mudanças nas
noções de comparabilidade. Com a proliferação de pesquisas sobre indicadores nas
décadas de 1980 e 1990, o desenvolvimento foi estruturado em termos
quantitativamente mensuráveis (IDH, PIB, PNB etc.). Pode-se argumentar que a
quantificação do desenvolvimento torna demasiadamente fácil justificar a
comparação. Talvez mais do que os conceitos teóricos, coeficientes tendem a ocultar
os pressupostos de um modelo de estágios que varia de zero (não desenvolvido) a
um (desenvolvido). Ao mesmo tempo, devemos reconhecer como positivo o fato
606 Steiner-Khamsi

de o grande número de indicadores de desenvolvimento evidenciar que as


definições de desenvolvimento diversificaram-se. Embora cada organização
internacional formule seu próprio modelo de estágios relativo às dimensões que
lhe interessam (por exemplo, dimensões econômicas para os bancos de
desenvolvimento, direitos das crianças e das mulheres para o UNICEF, ausência
de corrupção para o Transparência Internacional etc.), não dispomos de uma
reflexão crítica sobre a maneira pela qual os bancos de dados sobre desenvolvimento
e outros indicadores, estabelecidos por cada uma das organizações internacionais,
contribuem ativamente para a construção do desenvolvimento ou do
subdesenvolvimento.
Como já foi mencionado, estamos vindo de duas décadas de ceticismo crescente
sobre o lugar e os objetivos de comparações entre nações e entre contextos
(STEINER-KHAMSI, TORNEY-PURTA; SCHWILLE, 2002). Os ataques
contra comparações de grande escala entre países não são incidentes isolados. Além
disso, não são promovidos apenas por antropólogos culturais. Tampouco são
dirigidos exclusivamente a sociólogos, como parecem sugerir os debates sobre a
teoria da cultura mundial. Entretanto, esses ataques negligenciam a existência de
pesquisadores de educação comparada que a um só tempo contextualizam e
comparam. Por exemplo, não só em suas análises históricas amplamente conhecidas
sobre Estados-nação (ou Estados nacionais, como ele os denomina) e sobre
cidadania, mas também em suas contribuições metodológicas à sociologia e à
história comparadas, Charles Tilly enfatiza a necessidade de examinar
simultaneamente interações intranacionais e transnacionais. O autor recomenda
aos pesquisadores de estudos comparativos que explorem as histórias causais que
estão enraizadas em cada caso ou contexto, e que repousam sobre “diferentes
encadeamentos de relações causa-efeito” (TILLY, 1997b, p. 50). Para dar um
exemplo concreto, sua comparação entre diversas situações revolucionárias
europeias no início da década de 1990 e sua discussão sobre os diferentes desenlaces
políticos nesses países da Europa Central e Oriental são uma de suas obras-primas
metodológicas que integram a comparação entre países e a análise contextual. No
campo da pesquisa de estudos comparativos de políticas em educação, a abordagem
metodológica de Tilly ajuda-nos a entender por que uma solução de políticas é
escolhida de preferência a outra em um dado contexto, e de que forma fatores
externos influenciam as políticas locais e se entrelaçam e com elas.
O grupo de acadêmicos que está desenvolvendo comparações contextuais tem
sido bastante produtivo na pesquisa em educação comparada. Esse grupo tem boa
visibilidade em uma das áreas tradicionais da pesquisa em educação comparada:
políticas de empréstimo entre nações. Enraizados em um referencial teórico de
teoria de sistemas (LUHMAN, 1990), Jürgen Schriewer e seus colegas propõem-
se a estudar o contexto local de forma a compreender a “socio-lógica”
(SCHRIEWER; MARTINEZ, 2004, p. 33) da externalização. De acordo com essa
Comparação: quo vadis? 607

teoria, as referências a outros sistemas educacionais servem como alavanca para a


promoção de reformas que, de outro modo, seriam contestadas. Schriewer e
Martinez consideram também como indicador da “socio-lógica” de um sistema o
fato de apenas alguns sistemas educacionais específicos serem utilizados como fontes
externas de autoridades. Quais são os sistemas utilizados como sociedades de
referência e quais não o são diz alguma coisa a respeito das inter-relações de atores
no interior de vários sistemas mundiais. Considero o conceito de externalização
útil para estudos comparativos de políticas, porque nos permite compreender de
que forma as forças globais são às vezes induzidas localmente com a finalidade de
gerar reformas em desenvolvimentos domésticos (STEINER-KHAMSI, 2004).
Verifiquei que é precisamente em um momento de aguçamento da contestação de
políticas que são feitas referências a outros sistemas educacionais, a padrões
internacionais de educação amplamente definidos, ou à globalização. Concluí que
o empréstimo de políticas entre os países, seja discursivo ou factual, tem um efeito
de certificação para o discurso doméstico de políticas. O deslindamento das inter-
relações entre o local e o global requer um foco duplo que nos possibilite investigar
o contexto local de forma meticulosamente detalhada e em vários níveis de políticas,
e, simultaneamente, comparar o caso particular com outros casos nos quais as
políticas levaram a resultados semelhantes ou diferentes. Sucessivamente, os
pesquisadores comparativistas, desde Michael Sadler até Brian Holmes e Robert
Cowen, têm alertado contra a análise da educação fora de seu contexto e a utilização
de comparações de determinadas formas que promovem cegamente o empréstimo
de políticas entre as nações. Robert Cowen (2000) revisita a questão centenária de
Sadler: “o que podemos aprender com o estudo de sistemas estrangeiros?” Cowen
exemplifica que, na prática, o estudo comparativo de sistemas educacionais
alimentou um culto à carga, isto é, à exportação e importação em larga escala de
modelos educacionais através de fronteiras nacionais. Cowen faz parte de um grupo
crescente de pesquisadores de estudos comparativos que insiste na necessidade de
comparações mais contextualizadas. Esse grupo de pesquisadores tenta seriamente
desafiar a alegação de que aqueles que comparam não compreendem, e aqueles que
compreendem não comparam.
608 Steiner-Khamsi

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72

TECNOLOGIA DIGITAL E EDUCAÇÃO:


CONTEXTO, PEDAGOGIA E RELAÇÕES SOCIAIS

Andrew Brown

Introdução
As tecnologias digitais e particularmente as tecnologias de informação e
comunicação são frequentemente referidas na literatura acadêmica
contemporânea de educação comparada, ainda que de forma bastante oblíqua.
A capacidade dessas tecnologias de possibilitar redes e comunicações
internacionais rápidas normalmente é invocada como fator facilitador no
processo de globalização, ou, de modo mais geral, como um componente-chave
da formação das sociedades contemporâneas, sejam essas identificadas como pós-
moderna, tardiamente moderna, pós-industrial, centrada no conhecimento ou
alguma variante dessas sociedades. Raramente, no entanto, dedica-se atenção
continuada às características e às utilizações das próprias tecnologias, o que é
lamentável, uma vez que a falta de um exame crítico pode levar-nos a aceitar
alguns pressupostos questionáveis sobre o que as tecnologias digitais fazem e
podem fazer em relação à educação e à sociedade.
É muito fácil ser atraído por visões utópicas que, por exemplo, consideram os
mundos virtuais como novas fronteiras nas quais as limitações materiais e a opressão
física podem ser descartadas na criação de novas democracias digitais, abrindo acesso
e oportunidades para grupos marginalizados e menos favorecidos. Da mesma forma,
é igualmente fácil imaginar e elaborar o complemento negativo virtual dessas utopias
– a corrupção moral e cultural potencialmente ilimitada e desregulada da sociedade.
Uma perspectiva comparativa – que, por definição, fundamenta e contextualiza as
atividades – sobre as utilizações da tecnologia digital advertiria e protegeria contra
a imersão em qualquer perspectiva unitária particular. A atividade de comparar
requer diferença, diversidade e, na melhor das hipóteses, diálogo. Sendo uma
atividade acadêmica, requer explicação, compreensão e desenvolvimento teórico.
Entretanto esse exame comparativo acadêmico está amplamente ausente em relação
às tecnologias digitais.
Essa falta de atenção específica às tecnologias digitais constitui mais uma
oportunidade perdida para o desenvolvimento da educação comparada. Cowen
argumenta:

611
612 Brown

O campo de estudos acadêmicos denominado educação comparada deve tratar sempre dos
problemas intelectuais provocados pelos conceitos de contexto (o local, a inserção social dos
fenômenos educacionais) e de transferência (o movimento de ideias, políticas e práticas
educacionais de um lugar para outro, em geral através de fronteiras nacionais); e de suas relações
(COWEN, 2006, p. 561).

O estudo acadêmico sobre educação e tecnologia digital provê oportunidades


abundantes para a exploração da dinâmica pedagógica, social e cultural, assim como
de práticas educacionais e culturais enraizadas, e oferece uma constelação sempre
crescente de exemplos de transferência de práticas e tecnologias de um contexto
para outro. Acima de tudo, oferece oportunidades valiosas para a exploração dos
efeitos da recontextualização – não só à medida que essas tecnologias e práticas
associadas a elas deslocam-se de um contexto para outro, mas também à medida
que as próprias tecnologias atuam como condutor para a transferência de
conhecimentos, para a reunião de indivíduos e de grupos, assim como de suas
práticas pedagógicas, culturais e sociais. Diante disso, mais do que tratar dos
impactos locais e globais das tecnologias digitais em termos gerais, abordarei neste
capítulo uma série de dimensões e exemplos específicos da utilização educacional
de tecnologias digitais em diversos contextos.
No processo de planejamento e compilação do “World Yearbook of Education
2004” (BROWN; DAVIS, 2004), que abordou o tema tecnologia digital,
comunidades e educação, Niki Davis e eu focalizamos as utilizações de tecnologias
digitais por indivíduos e grupos em diversos contextos, tanto em relação à sua
própria aprendizagem quanto na criação de redes e comunidades de aprendizagem.
Tal como neste capítulo, trabalhamos com uma concepção ampla de tecnologia
digital, incluindo tecnologias de produção e manipulação de artefatos digitais –
tais como vídeo e áudio digitais –, mídias e tecnologias digitais de comunicação –
tais como internet e telefonia móvel –, que implicam uma convergência entre
produção e distribuição digital. Exploramos também a utilização de tecnologias
digitais em contextos muito variados – por exemplo, em atividades individuais e
coletivas, em contextos educacionais formais e informais, e em comunidades ricas
e pobres em termos econômicos. O material resultante foi igualmente diverso
quanto à perspectiva adotada e ao foco substantivo dos artigos, variando desde a
consideração sobre o impacto da tecnologia digital sobre modelos pedagógicos e
currículos escolares – por meio da ampliação tecnológica de práticas culturais e
atividades econômicas cotidianas de crianças e de adultos – até a ampliação de
localidades, redes e comunidades de um espaço geográfico para um espaço virtual.
Retomo neste capítulo alguns dos temas centrais explorados e os analiso à luz
de desenvolvimentos recentes das práticas. Em particular, quero explorar a relação
entre a prática e seu contexto quanto à produção e à reprodução de relações sociais
na educação e por meio dela – uma preocupação caracteristicamente sociológica,
mas não incompatível com a estrutura da educação comparada acadêmica proposta
Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 613

por Cowen. O envolvimento com tecnologia digital e suas utilizações desafia nossas
concepções sobre o que é um contexto (por exemplo, por meio da facilitação de
comunidades virtuais) e, a despeito de sua capacidade de atuar como condutor
dentro e entre contextos, enfatiza a necessidade de compreender os processos e os
efeitos da transferência.

Tecnologias de aprendizagem
A comparação internacional da educação primária em cinco países feita por
Alexander (2001) ilustra a complexidade da relação entre as práticas de educação
formal e as condições políticas, sociais, econômicas e culturais históricas e
contemporâneas das sociedades em questão. A organização de espaços pedagógicos,
modos de regulação, conteúdo curricular, expectativas dos alunos, construção de
identidades, reconhecimento de realizações, e assim por diante estão inter-
relacionados, são moldados por um complexo de fatores desde o nível sistêmico
até o individual, e variam entre os contextos. As tecnologias digitais colocam uma
série de desafios para essas práticas, mas, evidentemente, dada a forma pela qual a
prática é moldada em diferentes contextos, esses desafios assumem formas diferentes
e têm consequências diversas.
Como argumentou Kress (2004), a maneira pela qual a informação é
apresentada – por exemplo, nas telas dos computadores e em equipamentos digitais
portáteis – desafia as noções de letramento existentes. À medida que formas
multimodais de apresentação e representação tornam-se cada vez mais comuns,
aumenta a demanda por recursos para a produção e a interpretação não apenas de
textos escritos lineares, mas também de áudio, imagens digitais estáticas, animação,
vídeo, e assim por diante. A reunião de todas essas formas de representação em
hipertextos não lineares complexos amplia ainda mais o que podemos considerar
como sendo as competências comunicacionais básicas na era digital.
A mídia das novas telas oferece, a um só tempo, meios para a produção de textos e para sua
disseminação. Dados os fatos da diversidade social, de desaparecimento, atenuação ou ausência
do poder central, e acima de tudo, do deslocamento, pelo mercado, do Estado como fonte
principal de poder, já não existe mais um modo canônico de representação. Ao invés, as
características da audiência (que já não é vista como composta por cidadãos, mas por
consumidores), suas necessidades, seus desejos e suas aspirações reais ou atribuídas passam a
ocupar o centro do cenário. O modo de representação torna-se uma questão de planejamento:
este grupo prefere imagens ou escrita? Imagens estáticas, ou em movimento? Qual conjunto de
modos de apresentação atenderá melhor às minhas necessidades retóricas diante desta audiência?
(KRESS, 2004, p. 38).

O próprio impacto potencial das tecnologias digitais sobre a escolarização é


multidimensional. A incorporação de competências relativas à utilização de
tecnologias digitais no currículo escolar evidentemente transforma seu conteúdo;
porém, mais do que isso, argumenta Kress, o potencial produtivo da criação de
614 Brown

textos multimodais requer uma revisão radical dos modelos de aprendizagem


subjacentes – da reprodução de significados para a produção individual e coletiva
de significados; de um currículo baseado em transmissão para um currículo baseado
em planejamento. Além disso, como observou Jewitt (2003), o movimento de
afastamento da aquisição de competências na direção de promoção da criatividade
e da inovação, com a consequente remodelagem do currículo e da pedagogia, cria
a necessidade de transformação das práticas de avaliação dentro da escola:
A remodelagem multimodal da construção de entidades curriculares e as práticas de leitura
decorrentes do contexto multimodal de aprendizagem, particularmente a aprendizagem mediada
pelo computador, têm consequências importantes para o letramento e a avaliação. É necessário
ir além da linguagem para compreender a complexidade da aprendizagem e do letramento no
ambiente multimodal da sala de aula. Além disso, para avaliar o que é aprendido, a avaliação
deve mudar de foco, de forma a atentar para toda a diversidade de modos envolvidos na
aprendizagem (JEWITT, 2003, p. 100).

Dessa forma, a utilização de tecnologia digital, tanto dentro quanto fora da


escola, tem o potencial de promover transformações no currículo, na pedagogia e
na avaliação, em virtude da importância crescente atribuída à comunicação
multimodal e, particularmente, à produção multimodal na educação
contemporânea. As tecnologias digitais podem também ser incorporadas à escola
como recursos pedagógicos, e utilizadas para o ensino e a aprendizagem em todo o
currículo (por exemplo, no desenvolvimento de ambientes de aprendizagem virtuais
e administrados, no uso de produção digital visual e em áudio, no uso da internet
para acessar informações e facilitar a colaboração). Embora grande parte da literatura
sobre educação e sobre tecnologia digital apresente essas transformações como
necessidades (uma forma levemente velada de determinismo tecnológico), há
variações marcantes no nível da prática. Isso não deve surpreender porque, a partir
de estudos como o de Alexander, já compreendemos que as práticas de escolarização
são diversificadas, e resultam de influências complexas. A tecnologia digital, assim
como as práticas e os potenciais associados a ela, dentro ou fora da educação formal,
são entendidos e incorporados, e são transformados no interior de sistemas de
escolarização, no contexto dessa diversidade e dessa complexidade.
Os estudos sobre a utilização de tecnologia digital em contextos específicos
apresentam um quadro previsivelmente diversificado da efetivação desse potencial
na prática. Como parte do Módulo 1 do “Second information technology in
education study” (SITES M1) foi realizado um levantamento sobre a utilização de
TIC em escolas primárias e secundárias em 26 países (PELGRUM; ANDERSON,
1999). O levantamento revelou uma diversidade substancial na extensão com que
novas tecnologias eram utilizadas nas escolas e apontou como principais fatores as
diferenças no acesso às novas tecnologias e a variação no conhecimento dos
professores. O Módulo 2 (SITES M2) prosseguiu colhendo relatos sobre práticas
pedagógicas inovadoras (definidas e identificadas localmente por grupos de
Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 615

especialistas nacionais) de cada um dos países participantes (KOZMA, 2003). Em


sua análise dos 130 estudos de caso resultantes, Law afirma que há evidências de uma
mudança na direção de “modos de aprendizagem mais produtivos, envolvendo mais
colaboração, dirigidos para o aluno e baseados em investigação” (LAW, 2004, p. 151).
No entanto essa afirmação baseia-se em exemplos do que seria considerado pelos
grupos de especialistas como as melhores práticas, e que, portanto, não são
necessariamente representativos das práticas em geral. Agrupando esses casos em seis
tipos de atividades (de investigação científica inovadora e trabalho em projetos,
produção de mídias e cursos online até aprendizagem mais convencional, baseada em
tarefas e ensino expositivo), Law explora a seguir o papel desempenhado pelo
professor e as estratégias pedagógicas utilizadas.
O quadro que emerge é que, embora haja evidências de práticas inovadoras
substanciais que utilizam a nova tecnologia, em termos de tipos de atividades
estabelecidas o papel do professor e os tipos de estratégias pedagógicas que utiliza
são mais convencionais. Law observa que, embora práticas inovadoras estejam quase
igualmente representadas nos estudos de caso das cinco regiões estudadas
(Américas, Europa Oriental, Europa Ocidental, África Meridional e Ásia), a
distribuição da pedagogia inovadora é acentuadamente variável. A partir disso, a
autora sugere que, embora a disseminação e a transferência de tipos de atividades
entre as regiões estejam relativamente bem estabelecidas, na prática a transformação
de procedimentos pedagógicos ou de papéis de professores é menos comum e mais
difícil. Pode-se sugerir que estes sejam menos suscetíveis de mudança por estarem
associados tanto à identidade profissional dos professores quanto às culturas
pedagógicas locais. Por exemplo, a extensão daquilo que é pedagogicamente possível
em uma região, ou em um país, ou em uma escola na transição entre formas
predominantemente didáticas de pedagogia para abordagem mais facilitadoras pode
divergir amplamente entre esses contextos. A próxima fase dos estudos SITES
(PLOMP; PERGRUM; LAW, 2007) inclui a exploração dos fatores internos e
externos à escola que podem atuar na modelagem de práticas pedagógicas e de
utilização de tecnologia digital na sala de aula, e entre eles os fatores contextuais
que podem predispor professores e escolas em relação a práticas inovadoras.
Em estudos multinacionais com ampla extensão e em grande escala, como os
SITES, é difícil explorar de forma significativa a relação entre tecnologia digital,
prática pedagógica e o impacto sobre o desempenho dos alunos (dada a diversidade
de formas de escolarização). Alguma compreensão sobre essa relação pode ser obtida
em estudos mais detalhados e nuançados, em contextos específicos e mais limitados.
Tome-se, por exemplo, a avaliação do uso de lousas digitais interativas nas escolas
londrinas, realizada por Moss e colegas (2007). Em países economicamente ricos
houve um investimento substancial no provimento de lousas digitais interativas para
as escolas. Esses equipamentos possibilitam aos professores o desenvolvimento de
materiais de ensino que incorporam recursos multimodais (entre os quais imagem,
616 Brown

som e movimento), e sua utilização de forma interativa com turmas de alunos. Moss
e colegas propuseram-se a determinar o impacto do investimento em larga escala
nessa tecnologia pedagógica particular na cidade de Londres focalizando
especialmente o processo de ensino-aprendizagem, a motivação de alunos e
professores, comportamento e frequência dos alunos, e padrões de desempenho dos
alunos em disciplinas centrais do currículo. Nesse estudo, mais uma vez, as formas
de utilização da tecnologia no ensino são muito variáveis, evidenciando-se as práticas
mais inovadoras na atuação daqueles que lideraram a introdução da tecnologia.
Ao avaliar o potencial dessa tecnologia na transformação da pedagogia, os
pesquisadores observam que isso depende do que os professores pensam a respeito.
Verificam que o pensamento dos professores sobre as lousas digitais interativas gira
em torno do potencial para um ritmo mais acelerado de ensino, maior
multimodalidade dos recursos de ensino, e uma forma mais interativa de ensinar
em sala de aula. No entanto, o grau em que é possível promover mudança
pedagógica depende de quão profundamente a tecnologia é integrada à abordagem
pedagógica adotada, e da maneira pela qual os recursos oferecidos pela tecnologia
relacionam-se a formas estabelecidas de pedagogia na sala de aula e à natureza da
disciplina que está sendo ensinada. Em termos mais simples, a velocidade da
ministração do ensino ou a utilização de formas variadas de representação podem
ser ou não benéficas para o ensino e a aprendizagem de aspectos particulares de
disciplinas particulares. O potencial da tecnologia relaciona-se, portanto, com as
práticas pedagógicas existentes e com as culturas pedagógicas e os conteúdos
curriculares da área que está sendo ensinada e aprendida. Independentemente do
potencial percebido e das práticas observadas, a pesquisa não conseguiu encontrar
evidências de qualquer relação entre o desempenho dos alunos nas disciplinas
centrais do currículo e a utilização intensificada de lousas digitais interativas no
decorrer do ano em que se realizou o estudo.
Mais uma vez, o ponto aqui é que, na prática, a forma de efetivação da
tecnologia digital está relacionada ao contexto em que está inserida. O significado
da tecnologia modifica-se à medida que se desloca de um lugar para outro. Ao
mesmo tempo em que é transformada pelo contexto, a própria tecnologia o
transforma. Kress e colegas veem a tecnologia digital como modos transformadores
de representação e comunicação que, por isso mesmo, requerem transformações
em nossos modelos de aprendizagem e de práticas educacionais. Essas tecnologias
e sua utilização estão radicalmente contextualizadas nas práticas da educação formal
e informal e, como demonstram estudos internacionais, como os SITES, e estudos
mais localizados, como o de Moss e colegas, fatores como a cultura pedagógica de
um determinado contexto (em qualquer nível, do sistema a uma determinada sala
de aula), as habilidades e as compreensões dos professores, e as expectativas dos
alunos atuam na modelagem do que é possível, e resultam em uma variedade de
práticas, que se ajustam ou divergem em graus variáveis em relação a qualquer ideal
Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 617

imaginado. Entretanto, há mais a compreender além da dinâmica da contingência


das práticas. Essas práticas têm potenciais e consequências sociais e, para explorá-
las, quero desviar a atenção de um aspecto da relação pedagógica para outro, e
examinar o envolvimento dos alunos (embora possa ser difícil sustentar ao longo
do tempo uma distinção nítida entre professores e alunos) focalizando o interesse
particularmente nas estratégias pelas quais se alcançam as diferenciações. Desviarei
a atenção também dos contextos fisicamente definidos da escola e da sala de aula
para contextos pedagógicos virtuais e outros.

Espaços pedagógicos
Mudar os modos de comunicação e de representação em processo de mudança
não atenua necessariamente a tendência da educação a produzir e reproduzir
diferenças sociais e culturais na distribuição de oportunidades de realização e de
vida. Por exemplo, o estudo de Gino (2006) sobre comunicação visual em uma
área urbana economicamente carente, em Israel, explorou a maneira pela qual
crianças de três grupos culturalmente diversificados, que viviam em locais
próximos, baseavam-se em suas histórias culturais diferenciadas para produzir e
interpretar imagens. Essas crianças moravam na mesma área física, mas em sua vida
cotidiana tinham poucas oportunidades de interagir com crianças das outras
comunidades. A comunicação visual, e particularmente a produção de imagens
para representar aspectos de sua experiência de vida naquela localidade podem ser
consideradas uma oportunidade de compartilhar experiências e perspectivas, e de
criar um espaço e um modo compartilhado de comunicação que supere diferenças
linguísticas. Entretanto, apesar de trabalhar em conjunto e compartilhar seu
trabalho, as diferenças culturais entre os grupos produziram diferentes tipos de
imagens, não apenas em termos de convenções visuais, mas também quanto ao que
pode ser representado.
Nesse caso seria possível considerar que, ao invés de atenuar diferenças
culturais, o movimento na direção do visual as reforçam. Essa constatação levanta
questões interessantes a respeito do potencial da representação multimodal
mediada pelo computador, tanto em relação ao aprender a dar sentido a uma
diversidade de formas de texto (onde e quando isso poderia ocorrer?), quanto ao
potencial da comunicação intercultural (em que medida comunidades online,
dispondo de práticas e compreensões compartilhadas, facilmente a seu alcance,
reforçam separações construídas e vividas em locais como esses?). Temos aqui
três comunidades em um espaço físico muito limitado, com recursos e
experiências comuns compartilhados, mas cujas redes de identificação são
definidas fora desse espaço e estendem-se para além dele. A comunicação online
oferece diversas possibilidades – em virtude, por exemplo, de suas convenções
visuais dominantes – para cada grupo, e, ao mesmo tempo, provê o potencial
para escapar, para o bem ou para o mal, da interação com outros grupos
618 Brown

proeminentes em sua vizinhança física, e para reforçar diferenças sociais, culturais


e, em última instância, econômicas.
Um estudo de Dowling e Brown (2009), realizado em três escolas secundárias
que atendiam comunidades bastante diferenciadas na África do Sul pós-apartheid,
explora a relação entre características de uma comunidade – como cultura e práticas
de alunos e de pais, e posicionamento dos professores e da escolarização em relação
à comunidade e a suas aspirações – e práticas e relações pedagógicas dentro das
escolas – como disposição física das salas de aula, utilização de textos, modos de
interação entre alunos e professores, e estratégias de ensino e aprendizagem de
professores e estudantes. A maneira pela qual os alunos da escola se posicionam
em relação à sua localidade e à sua comunidade imediata, e visualizam suas futuras
trajetórias em relação a essas comunidades tem impacto claro sobre suas orientações
relativas a redes e comunidades virtuais.
Os estudantes de uma escola predominantemente branca localizada em um
subúrbio rico, por exemplo, viam-se como parte de uma rede global e tinham
aspirações que se estendiam por toda essa rede (o que era consistente com as
aspirações e identificações da escola). Em contraste, alunos de uma escola africana
municipal com população predominantemente negra identificavam-se mais
fortemente com sua comunidade imediata, mas aqueles que procuravam sair dessa
comunidade (inclusive professores que aspiravam a outras carreiras) consideravam
o esforço individual em uma comunidade provedora de apoio em uma educação
formal como o meio para atingir esse objetivo (DOWLING; BROWN, 2009).
Embora não se refira diretamente a tecnologias digitais, esse estudo demonstra a
relação complexa entre comunidade e prática pedagógica de uma forma que nos
leva a refletir cuidadosamente sobre a suposição de que espaços virtuais são
socialmente e culturalmente neutros; e a considerar de que forma poderiam atuar
como contextos para a produção e a reprodução de desigualdades sociais, como
fazem os espaços e as práticas pedagógicas de natureza física.
Doherty (2006) oferece uma ilustração e uma análise da complexidade da
projeção de práticas pedagógicas e dos pressupostos subjacentes de uma cultura para
uma ou mais outras culturas por meio de um programa online de educação a
distância. Esse estudo focaliza uma unidade do MBA oferecida internacionalmente
por uma universidade australiana. No planejamento desse curso online, tomou-se
cuidado especial no sentido de respeitar as identidades culturais dos participantes e
de tratar a diversidade de suas experiências e perspectivas como recurso pedagógico
– por exemplo, pela criação de discussões em pequenos grupos em torno das
narrativas sobre locais de trabalho dos membros desses grupos intencionalmente
constituídos como culturalmente diversos. Isso, por si só, cria um paradoxo difícil
de administrar. Os membros individuais dos grupos tornam-se informantes
privilegiados sobre conjuntos de práticas localizadas e culturalmente demarcadas e,
portanto, são fortemente identificados com elas. Essa representação do eu por meio
Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 619

de abstração e redescrição (para uma audiência internacional) das experiências no


local de trabalho envolve claramente o risco de definir indivíduos e grupos por
referência à cultura (ou às culturas) dominante(s) no programa. Pode também criar
tensões em relação às aspirações de participantes que estabeleceram um compromisso
positivo com a matrícula em um programa internacional como forma de ampliar
ou complementar suas identidades nacionais, e de ter acesso ao que podem
considerar como um discurso internacional ou global potencialmente valioso.
Mais previsivelmente, outros problemas identificados por Doherty giram em
torno de suposições por vezes sistêmicas de homogeneidade cultural, tais como
convenções padronizadas de nomeação com viés etnocêntrico no ambiente virtual
de aprendizagem, o pressuposto de conhecimento de convenções textuais na
avaliação de trabalhos do curso, e os efeitos de deslocamentos no tempo e no espaço
sobre o provimento de feedback para os participantes. Embora a análise de Doherty
e outros trabalhos relacionados sobre programas internacionais, tais como Singh e
Doherty (2004), sejam mais abrangentes, o ponto em questão aqui é que cursos
on-line em contextos virtuais estão tão alinhados ao jogo de identidades
pedagógicas, sociais e culturais quanto qualquer programa educacional presencial,
localizado, situado e demarcado. Na verdade, podem oferecer contextos
particularmente promissores para outros desenvolvimentos da “sociologia da
pedagogia” (SINGH; LUKE apud BERNSTEIN, 1996, p. xiii).
Em uma coletânea de artigos que exploram “os padrões e a dinâmica da
sociedade em rede em sua dimensão política” (CASTELLS; CARDOSO, 2006,
p. xix), Collis (2006) considera a transformação da educação em contextos
corporativos, profissionais e de ensino superior à luz do movimento rumo a uma
economia do conhecimento. A autora focaliza particularmente o potencial da
e-learning (aprendizagem via rede) para o apoio à produtividade em uma
situação na qual – citando a colocação do Ministério de Desenvolvimento
Econômico da Nova Zelândia, a respeito das habilidades necessárias para
sustentar as economias do conhecimento contemporâneas – “saber por que e
saber quem importa mais do que saber o quê” (COLLIS, 2006, p. 216). Embora
isso ecoe claramente uma antiga aspiração de formas cada vez mais progressistas
de educação, Collis observa que grande parte da prática em e-learning, na qual a
tecnologia digital é utilizada na gestão e no provimento de educação e capacitação,
particularmente em contextos corporativos, opera na direção contrária, ministrando
fragmentos descontextualizados de conhecimento por meio de ambientes de
aprendizagem geridos de forma despersonalizada. Collis apresenta uma série de
exemplos em contrário, nos quais a tecnologia digital, e particularmente o uso de
recursos baseados na internet, em interação online e em repositórios digitais, tem
sido e poderia ser utilizada para promover construção e compartilhamento de
conhecimento corporativo interdisciplinar, desenvolvimento de comunidades de
práticas profissionais fisicamente distantes, mas que se apoiam mutuamente, e
620 Brown

modos de avaliação na educação superior que promovem reflexão,


compartilhamento e construção cumulativa de conhecimento.
Entretanto, é perceptível que, ainda que as tecnologias digitais sejam
apresentadas como indutoras centrais do desenvolvimento da economia do
conhecimento, são remotas as condições para a apropriação e a utilização produtiva
de tecnologias digitais na educação. Por exemplo, considera-se que a utilização
produtiva de portfólios eletrônicos na educação superior requer mais investimento
institucional, flexibilidade dos órgãos de credenciamento, reforma nas práticas de
professores, e mudanças nas expectativas dos estudantes. Como observou Selwin
(2007), a distância entre a aspiração dos defensores da tecnologia educacional,
como Collis, e a atual utilização limitada, rígida e restrita da tecnologia digital que
se evidencia no ensino superior não pode ser facilmente vencida. Segundo Selwin,
a utilização de tecnologia digital no ensino superior é modelada por uma
diversidade de forças em vários níveis do sistema, desde preocupações
governamentais com a competividade econômica global, passando pelas novas
preocupações de gestão da administração universitária e os interesses comerciais
dos provedores de software, hardware e sistemas, até a experiência, os interesses e as
preocupações dos estudantes universitários. Nessa perspectiva, o desenvolvimento
de um engajamento produtivo com a tecnologia digital na educação superior formal
requer, portanto, engajamento político em níveis micro e macro, para que sejam
efetivadas as aspirações dos tecnólogos educacionais.
Enquanto escolas e instituições de ensino superior lutam para incorporar
utilizações criativas e flexíveis da tecnologia educacional e para criar programas nos
quais a produção de conhecimentos em colaboração seja ostensivamente priorizada
sobre a transmissão, há na internet, em diferentes graus, comunidades de agentes
fisicamente dispersos, engajados de forma coletiva e produtiva na construção
colaborativa do conhecimento, em atividades em cooperação e em
compartilhamento de informações e aperfeiçoamento de estratégias.
Particularmente visíveis são as florescentes comunidades informais baseadas em
interesses comuns, tais como os fãs de um determinado programa de televisão ou
de um jogo de computador, ou aqueles que se interessam por certas atividades
tecnológicas, culturais ou políticas, ou compartilham identidades e práticas. No
entanto essas comunidades não escapam ao jogo do capital social e cultural, que
demarca empreendimentos semelhantes no espaço dos lugares.
Em um estudo sobre fãs de sites da internet, Whiteman (2006) explora a
maneira pela qual a autoridade dessas comunidades de fãs se estabelece e se mantém
na interação online. Longe de estar abertos a um jogo livre de posições, perspectivas,
vozes e identidades, e ainda que altamente produtivos em termos de troca de ideias
e informações, e na produção de comentários sobre suas áreas de interesse
especializadas e relacionadas, esses sites são fortemente regulados em relação às
contribuições feitas pelos participantes e em função delas. As estratégias utilizadas
Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 621

pelos participantes atuam para estabelecer uma variedade delimitada de identidades


legítimas possíveis, e suas posições determinam quem pode dizer o quê, e em que
contextos. As estratégias podem ser vistas como pedagógicas no sentido de que
atuam para induzir os participantes a certos modos de envolvimento e interação,
além de produzir e reproduzir conhecimentos em suas áreas de interesse escolhidas.
Ao conduzir a pesquisa, Whiteman utiliza uma estratégia amplamente comparativa,
no sentido de examinar dois sites claramente diferentes (embora a maneira pela
qual podem ser diferenciados para além de uma descrição superficial seja tanto
produto quanto ponto de partida da análise). Um dos sites – City of Angels (COA)
– é dedicado à série televisiva Angel, e o outro – Silent Hill Heaven (SHH) – refere-
se à série de jogos eletrônicos Silent Hill.
Por meio da análise de postagens nas listas de discussão, a autora explora de que
forma a autoridade e o status se estabelecem nessas comunidades de fãs, e a maneira
pela qual a afinidade em relação a certos objetos é obtida e regulada. Identifica
continuidades e descontinuidades entre os dois sites, e consegue explorar as diversas
estratégias utilizadas pelos participantes para o estabelecimento de uma identidade
online, para reclamar autoridade, para construir e regular uma comunidade, e assim
por diante. Em cada caso, obtém-se um equilíbrio entre abertura e regulação em
contextos que, de forma ostensiva, são completamente abertos. Cada um deles, no
entanto, tem sua própria cultura e exibe a utilização de uma variedade de estratégias
pedagógicas por meio das quais os participantes são induzidos a comportamentos
adequados e são incluídos, posicionados e excluídos (WHITEMAN, 2006).
Embora não sejam concebidos formalmente como tais, esses são espaços
pedagógicos, e dentro deles são produzidas e reproduzidas diferenças, relações e
estruturas sociais.

Exclusão digital
O acesso à tecnologia digital evidentemente não é uniforme entre contextos e
dentro de cada contexto. Para aqueles que veem a tecnologia digital como um
recurso-chave para a educação na atualidade, o acesso diferencial a essas tecnologias
é uma preocupação básica na abordagem ao que é comumente considerado como
“exclusão digital”, em que é claramente perceptível a relativa riqueza ou pobreza
de acesso em comunidades, regiões e países ricos e pobres. Embora o acesso a essas
tecnologias seja claramente uma questão importante, este capítulo tentou
demonstrar que não é a única questão envolvida na compreensão e na abordagem
à desigualdade social e cultural na educação e para além desta. O esforço para
garantir um acesso mais equitativo à tecnologia digital precisa ser acompanhado
pela tentativa de compreender de que forma essas desigualdades são (re)produzidas
através dos diversos modos de engajamento com essas tecnologias e por meio delas.
Não o fazendo, corre-se o risco de tratar a tecnologia como fetiche e buscar o acesso
como um projeto social em si mesmo e por si mesmo.
622 Brown

Essa situação torna-se evidente no projeto One Laptop per Child (OLPC – Um
laptop por criança), iniciado por Nicholas Negroponte e outros membros do corpo
docente do laboratório de mídia do Instituto Massachusetts de Tecnologia (MIT).
A meta aqui é desenvolver um computador laptop de baixo custo que possa ser
amplamente distribuído para crianças no mundo desenvolvido e no mundo em
desenvolvimento.1 Alega-se que o laptop e seu software foram desenvolvidos para
exemplificar uma abordagem construcionista à aprendizagem, e assim facilitar o
aprender a aprender. Embora se alegue que se trata de um projeto educacional, e
não de um projeto tecnológico, seu núcleo foi o desenvolvimento do equipamento,
e não os princípios para sua utilização. Esse projeto não foi bem aceito
universalmente. O governo da Índia, por exemplo, recusou a oferta de participação
no projeto, porque isso desviaria recursos de outras necessidades já estabelecidas
(THE HINDU, 25 jul. 2006). Outros argumentaram que esse esforço estava
desfocado, uma vez que até mesmo pequenas quantias de dinheiro poderiam fazer
uma enorme diferença em termos de oportunidades de vida em regiões
desesperadamente pobres do mundo, fornecendo, por exemplo, água limpa e
medicamentos vitais. Paralelamente, o próprio projeto incorreu em uma série de
problemas relativos a produção da tecnologia, especificação e orçamento e a
suposições feitas a respeito das condições de vida das pessoas, de dificuldades para
arcar com o custo de funcionamento das máquinas, e de provimento e manutenção
de infraestrutura básica.
É seriamente questionável a própria suposição de que o provimento de um laptop
(ou, nesse caso, um equipamento simplificado que só se assemelha superficialmente
a um laptop comercial) e de software selecionado (embora, nesse caso, não seja um
software empresarial e educacional reconhecido) representaria uma contribuição
substancial para as perspectivas de vida e de educação de estudantes de escolas
caracterizadas por essa enorme variedade de circunstâncias sociais, econômicas e
culturais. Até mesmo em salas de aula nos Estados Unidos, pesquisadores lançaram
dúvidas sobre o valor agregado pelo acesso individual a laptops. Por exemplo, em
um estudo em duas escolas do ciclo médio, Dunleavy, Dexter e Heinecke (2007)
verificaram que a razão 1:1 entre laptops e alunos nas salas de aula analisadas não
agregava valor automaticamente e sugeriram que o alto custo e os desafios de gestão
colocados para os professores pelo provimento de laptops criam uma demanda radical
de desenvolvimento profissional para garantir que os docentes sejam capazes de criar
e administrar ambientes de aprendizagem adequados.
Isso não significa necessariamente abrir mão da tecnologia digital em qualquer
circunstância que não seja economicamente privilegiada (e com isso aprofundar
ainda mais a exclusão). Uma estratégia alternativa é selecionar e prover tecnologias
digitais de uma forma mais afinada com o contexto e as circunstâncias específicas

1. Disponível em: <http://laptop.org>.


Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 623

de sua utilização. À luz dos estudos citados até o momento neste capítulo, seria
particularmente valioso o foco no desenvolvimento profissional dos professores.
Leach e Moon (2002) exploram as maneiras pelas quais as tecnologias digitais
podem ser implementadas na formação de professores, em tentativas mais
abrangentes de reformar a escolarização e cumprir metas nacionais e internacionais,
tais como a Educação Primária Universal. Apresentam uma série de exemplos de
contextos, que variam desde comunidades rurais pobres na África ao Sul do Saara,
que estão tentando reconstruir a educação em situações de guerra e doença, até
escolas urbanas de países ocidentais ricos, que estão tentando prover educação para
populações cada vez mais diversificadas em termos linguísticos, culturais e
econômicos. Em todos os casos, a criação e a manutenção de uma força de trabalho
docente suficientemente grande e dotada de conhecimentos e competências
profissionais adequadas são consideradas desafios-chave, para cujo enfrentamento
as tecnologias digitais e novas abordagens à formação de professores podem dar
uma contribuição.
O ponto forte da abordagem proposta e dos exemplos apresentados é a
sensibilidade ao contexto e a adequação das intervenções. Em muitos casos, não
são factíveis formas convencionais de formação de professores, devido à escala do
empreendimento e ao nível de recursos disponíveis. Nesses contextos, a utilização
de tecnologias de comunicação para facilitar a aprendizagem dos professores e o
estabelecimento de redes pode ampliar significativamente as possibilidades de
desenvolvimento dos professores do que o investimento convencional em
edificações e outras instalações físicas que concentram recursos em uma área,
criando distância entre as atividades de desenvolvimento profissional e o contexto
em que eventualmente serão aplicadas.
O Digital Education Enhancement Project (DEEP)2 é um desses projetos de
pesquisa e desenvolvimento que focaliza a utilização das tecnologias digitais na
promoção do desenvolvimento de conhecimentos e práticas pedagógicas de
professores, e explora o impacto da intensificação de estratégias de tecnologia sobre
a motivação e o desempenho dos estudantes em 12 escolas da cidade do Cairo,
Egito, e em 12 escolas de cidades e de áreas rurais da província de Eastern Cape,
na África do Sul. Como parte do projeto, Leach e Moon (2004) exploraram o uso
de computadores palmtop pelos professores, verificando que esses equipamentos
pequenos, portáteis, flexíveis e fáceis de usar integraram-se facilmente ao cotidiano
de trabalho dos professores, e tiveram impacto substancial sobre profissionalismo,
organização e planejamento, colaboração e aprendizagem compartilhada,
desenvolvimento de novas práticas em sala de aula, e autoestima dos professores.
Estudos como esse oferecem alguma indicação sobre o potencial das novas
tecnologias na formação e no desenvolvimento de professores. No entanto, deve

2. NT: Projeto de Intensificação da Educação Digital.


624 Brown

ficar claro que os resultados não são função da tecnologia, mas sim de sua interação
com fatores contextuais nas situações em que as tecnologias e as práticas
relacionadas a elas estão inseridas. Isso não significa apenas que é preciso ter cautela
quanto à suposição de que essas tecnologias ou práticas possam ser transferidas para
outros locais com os mesmos efeitos, mas também de que a efetividade observada
da própria intervenção tende a ser transitória, à medida, por exemplo, que a
tecnologia adquira com o tempo novos significados sociais e culturais, e que outras
condições se modifiquem.

Considerações finais
Considera-se que as tecnologias digitais possibilitam comunicação rápida a
distância. Possibilitam a produção e a distribuição de informações e de artefatos
digitais, sob a forma de textos, gráficos, sons e vídeos. À medida que esses artefatos
se deslocam de um lugar para outro, sua forma pode (ou não) permanecer estável,
mas seu significado pode transformar-se ao ser transferido de um sistema de
significados para outro, e à medida que são lidos e relidos por diferentes agentes, que
introduzem novos significados e novas compreensões em sua interpretação. Isso não
é novidade e, na verdade, é a essência da corrente de educação comparada acadêmica
que tenta compreender a relação entre sistemas e práticas abordando, por exemplo,
empréstimos, transferências e traduções entre um sistema e outro. Assim, práticas
associadas na Inglaterra à educação centrada na criança, tais como a exibição pública
dos trabalhos individuais das crianças como forma de comemorar as realizações
individuais e encorajar empreendimentos coletivos, passam a significar algo muito
diferente quando são transferidas para salas de aula de áreas rurais na Indonésia. Essa
nova contextualização constitui uma transformação, na medida em que as práticas
são desligadas de uma rede de significados, ou cultura, e conectadas a outra.
Vistas sob essa perspectiva, essas práticas não podem ser compreendidas como
dotadas de um significado essencial; em vez disso, só podem ser compreendidas
em relação ao contexto em que se realizam. O movimento dos artefatos digitais
entre um contexto e outro também pode ser compreendido dessa forma. No
entanto os espaços através dos quais e nos quais se deslocam são ao mesmo tempo
virtuais e geográficos (e aqui esse “e” tem importância fundamental). Contudo,
não são apenas os textos e os artefatos digitais que enfrentam esse destino: são
também as próprias tecnologias digitais.
A ênfase deste capítulo foi a compreensão de tecnologias digitais e sua utilização
educacional, formal e informal, em relação aos contextos em que estão inseridas.
Esses contextos, por sua vez, podem estar inseridos em outros contextos. Cada
escola, por exemplo, está inserida em conjuntos particulares (que podem ser
definidos por idade dos alunos, formas de financiamento, localização geopolítica,
e assim por diante), dentro de um determinado sistema educacional (que pode ser
definido em termos de redes nacionais, regionais ou transnacionais de instituições
Tecnologia digital e educação: contexto, pedagogia e relações sociais 625

interligadas ou associadas, e assim por diante). Cada nível mais alto de organização
atua de forma a prover um reservatório de significados potenciais para suas partes
constituintes o que, por sua vez, por meio da concretização desse nível mais alto
como um repertório de casos, permite-nos descrever, compreender e explicar suas
características. Portanto, salas de aula devem ser compreendidas em relação aos
sistemas nos quais operam e, por sua vez, atuam de forma a constituir o sistema
como casos particulares deste. Essa relação opera em qualquer nível, da ação
individual aos sistemas transglobais.
Fica evidente que os espaços pedagógicos formais e informais que foram
considerados neste capítulo não são neutros do ponto de vista social. Tal como
qualquer contexto ou comunidade materiais, os contextos e comunidades virtuais
são demarcados pelo jogo do capital social e cultural, e por meio deste são
produzidos e reproduzidos padrões de relações sociais. Embora seja possível
considerar que a passagem da reprodução de conhecimentos e artefatos para a
produção e a disseminação que é facilitada pela tecnologia digital tem o potencial
de subverter as instituições de educação formal, na prática os padrões de relações
sociais e culturais existentes e as práticas a eles associadas atuam contra essa
subversão. Um exemplo é a necessidade identificada de capacitar professores e
alunos para que utilizem tecnologias especializadas de determinada maneira.
Inverte-se assim a noção de transformação da educação pelas novas tecnologias,
por meio da leitura dessas tecnologias como demandas de novas competências de
professores e alunos, que precisam ser adquiridas antes que as tecnologias possam
efetivamente ser utilizadas em contextos pedagógicos. Essa condição cria déficits
e padrões potenciais de distribuição de competências e, portanto, inclusão e
exclusão, e sucesso e fracasso na utilização da tecnologia segundo certos modos
particulares estabelecidos.
As próprias tecnologias já são, cada vez mais, parte da experiência cotidiana
de estudantes e de professores. No entanto, não fazem parte da vida cotidiana de
todos os estudantes de maneira equitativa (e assim, por exemplo, será variável o
grau de ressonância entre a cultura, as práticas e as competências comuns em casa
e na escola); tampouco estão igualmente disponíveis para todas as escolas os
recursos materiais e simbólicos (tais como conhecimento e competência dos
professores) que possibilitam a incorporação das tecnologias ao currículo. Ainda
que estivessem, a relação entre as culturas das crianças e as culturas da escola seria
diferente. A estruturação da exclusão digital como relativa predominantemente
ao acesso a equipamentos e programas adequados desconsidera esse fato. O estudo
da OCDE realizado em 23 países por Venezky e Davis (2002) constatou que as
escolas estavam claramente conscientes das desigualdades potenciais que poderiam
ser produzidas pela utilização de tecnologias digitais na escolarização, mas as
estratégias citadas para a superação do problema relacionavam-se apenas ao apoio
a famílias pobres para lhes dar acesso a essas tecnologias. O relatório aponta que
626 Brown

poucas escolas dispunham de dados para monitorar diferenças relacionadas a


gênero, renda ou resultados.
Nenhuma dessas relações é determinante, mas envolvem potenciais e
significados e, portanto, evidentemente, implicam facilitações e limitações. Grande
parte da discussão sobre a relação entre educação e tecnologia digital entre contextos
e dentro dos contextos confunde potencial com prática, e possibilidade com
necessidade. Considerar a tecnologia digital a partir de uma perspectiva
comparativa, que reconhece a inserção social dos fenômenos com que lida e procura
compreender o que acontece à medida que as entidades se deslocam ou se
manifestam em contextos diferentes, pode ajudar-nos a evitar, ou pelo menos
mitigar essas confusões e fusões de significados. O potencial das tecnologias digitais
de desligar-se de um contexto e inserir-se em um novo contexto também representa
um desafio para a educação comparada quanto ao questionamento sobre a utilidade
das fronteiras estabelecidas em torno dos contextos – por exemplo, em torno de
sistemas nacionais – e, na verdade, constitui um desafio para a noção de fronteira,
na medida em que elementos de um contexto são projetados – e lidos e relidos –
em outros. Em termos metodológicos e conceituais, o engajamento na utilização
de tecnologias digitais em contextos de educação formal e informal oferece uma
oportunidade para a ampliação e o avanço no desenvolvimento da produtividade
de uma abordagem comparativa, tanto acadêmica quanto aplicada.

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73

REPENSANDO O CONTEXTO
EM EDUCAÇÃO COMPARADA

Michael Crossley

A preocupação com o contexto está no coração da educação comparada. Reflete-


se em grande parte nos primeiros textos do campo e continua central em muitos
desenvolvimentos, discursos e posicionamentos intelectuais contemporâneos.
Questões contextuais são centrais também na maioria dos acalorados debates
teóricos e metodológicos encontrados na literatura de pesquisa – no passado e no
presente. Assim, questões contextuais são muito reveladoras sobre a história da
educação comparada e, ao mesmo tempo, inspiram e modelam algumas das
pesquisas e dos trabalhos acadêmicos mais desafiadores que estão atualmente na
vanguarda do campo.
Este capítulo explora a natureza e as implicações desses debates e dos temas
contextuais que desempenham um papel estratégico na contextualização do futuro
de algumas das abordagens mais inovadoras à educação comparada e internacional
em todo o mundo. Essa exploração é levada a cabo por meio de referências a
desenvolvimentos que deram uma contribuição significativa à evolução da pesquisa
em educação comparada, e a meu próprio trabalho relativo à questão nesse campo
multidisciplinar.

Reflexões históricas e tensões paradigmáticas


As tensões entre formas positivistas de pesquisa comparativa que buscam leis e
predições generalizáveis em contextos educacionais, e perspectivas mais
hermenêuticas ou interpretativas, desenvolvidas com vistas a gerar insights e uma
compreensão mais adequada podem ser identificadas nos fundamentos intelectuais
da educação comparada como campo especializado de investigação. Embora os
detalhes dessa história possam ser facilmente encontrados em outras fontes
(BRICKMAN, 1960, 1966; WILSON, 1994; CROSSLEY; WATSON, 2003), as
implicações dos debates paradigmáticos relacionados a ela em torno de inovação e
criatividade teórica e metodológica na contemporaneidade justificam uma
reconsideração cuidadosa.
A influência crucial do plano de Marc-Antoine Jullien para a educação
comparada no ambiente intelectual da Paris de 1817, por exemplo, criou os

629
630 Crossley

alicerces positivistas do campo, com esforços no sentido de “deduzir princípios


verdadeiros e caminhos determinados, de forma que a educação se transformasse
em uma ciência quase positivista” (FRASER, 1964, p. 20). Para muitos autores
ocidentais, Jullien é visto como o pai fundador da pesquisa sistemática do que, à
época, era um campo novo. A influência de Jullien ainda está viva e forte
atualmente, e reflete-se nos esforços de agências internacionais, como a UNESCO
e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), para
produzir anualmente anuários de estatísticas internacionais de educação, de forma
a facilitar comparações globais. É visível também no trabalho de órgãos como a
International Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA)1,
pioneira na realização de testes internacionais de desempenho e na construção de
tabelas internacionais de classificação (POSTLETHWAITE, 1999) – e no influente
Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa), da própria OCDE
(OECD, 2004).
Embora ainda haja muito a aprender com o entusiasmo atual por estudos
interculturais de desempenho, é preciso atentar também para suas limitações e para
os perigos de sua utilização inadequada – seja ou não intencional. Por exemplo, a
Finlândia tem apresentado consistentemente bons resultados nas tabelas
internacionais de classificação, ao passo que a África do Sul tem obtido resultados
desapontadores. A visibilidade dessas classificações pode subsidiar e inspirar melhorias
qualitativas, mas pode também mostrar-se prejudicial e pouco útil, como argumentou
Reddy (2005) no contexto sul-africano – e, talvez mais surpreendentemente, como
mostrou Simola (2005) para a Finlândia. O que une esses dois casos muito diversos
é a atenção às limitações de levantamentos comparativos de larga escala em levar em
conta adequadamente a influência de diferenças contextuais e culturais. Por exemplo,
Reddy argumenta que os benefícios potenciais dos estudos transnacionais de
desempenho só se efetivariam na África do Sul caso:
[...] os países participantes contribuíssem mais para a modelação desses estudos, de forma a
atender às suas próprias necessidades. As relações de poder inerentes à pesquisa transnacional
também merecem maior reconhecimento, e é necessário criar mecanismos que ajudem a diminuir
esses diferenciais. Informações derivadas de estudos de múltiplos países requerem análises mais
cuidadosas para que venham a ser relevantes para contextos locais específicos, e é importante
também que a cultura das organizações internacionais que promovem e coordenam esse trabalho
se modifique, para que possam acomodar melhor as implicações de experiências e contextos
diferentes (REDDY, 2005, p. 76).

Em segundo lugar, como demonstra Simola (2005), pressupostos e valores


pedagógicos distintos estão profundamente inseridos nos testes transnacionais de
desempenho e, de forma algo irônica, frequentemente priorizam modos formalistas
de ensino e aprendizagem que muitos tomadores de decisão e interessados na

1. NT: Associação Internacional para Avaliação de Realizações Educacionais.


Repensando o contexto em educação comparada 631

educação alegam estar questionando por serem inadequados para as demandas do


século XXI. Portanto, para que possamos compreender os dilemas associados aos
testes transnacionais de desempenho, o uso das tabelas de classificação, e os riscos
de efeitos retroativos que implicam (ver também DORE, 1976; LITTLE, 1997)
sobre as culturas pedagógicas e profissionais na área da educação em todas as partes
do mundo, é evidente que questões de contexto estão envolvidas.
Voltando às bases históricas e epistemológicas desses debates, pode-se observar
de que forma a preocupação com o contexto sustenta também uma das questões
centrais enfrentadas por comparativistas em muitos campos e disciplinas – isto é,
de que forma podemos aprender mais com a experiência de outros lugares? Foram
essas questões que inspiraram desafios aos alicerces positivistas do campo propostos
por Jullien e às preocupações do século XIX com a transferência ou o empréstimo
entre os países de suas práticas e políticas educacionais (PHILLIPS; OCHS, 2004;
PHILLIPS; SCHWEISFURTH, 2006). A influência amplamente reconhecida de
Michael Sadler sobre o campo emergente da educação comparada, no início do
século XX, refletiu claramente um desafio a esses pressupostos positivistas e
representou um reposicionamento sociopolítico que, a um só tempo, reconhecia
os perigos da transferência internacional acrítica de práticas e políticas e destacava
a importância do contexto e da cultura no desenvolvimento de sistemas
educacionais (SADLER, 1900; HIGGISON, 1979; SISLIAN, 2003). Em anos
subsequentes, comparativistas eminentes, tais como Isaas Kandel (1933), Nicholas
Hans (1964), Vernon Mallison (1975) e Edmund King (1979a), desenvolveram e
aplicaram suas próprias abordagens diferenciadas à pesquisa comparativa, em
sintonia com o espírito da influência de Sadler e do paradigma hermenêutico-
interpretativo. No entanto, na década de 1960, evidenciou-se na literatura ocidental
uma ressurgência das abordagens científicas à pesquisa em ciências sociais, que
favorecia dados quantificáveis que oferecessem a possibilidade de generalizações
deterministas e de planejamento e engenharia social mais sólidos na educação.
Assim, as aspirações positivistas voltaram à moda, sob a forma de contribuições
pós-guerra que procuravam levar adiante a ciência educação comparada. Noah e
Eckstein (1969) são bastante conhecidos pelo desenvolvimento desse tipo de
trabalho nos Estados Unidos, enquanto, no Reino Unido, Holmes (1965, 1981)
tentava levar adiante o modelo científico, por meio da promoção do que chamou
de abordagem de problemas às ciências sociais e à educação comparada.
Entretanto as tradições hermenêuticas e interpretativas, defendidas por autores
como Grant (1977), King (1989) e Kazamias (2001), continuaram a influenciar
muitos pesquisadores comparativistas. Na década de 1970, avanços da nova
sociologia da educação, na teoria crítica e em abordagens qualitativas à pesquisa
em ciências sociais também estimularam um entusiasmo e um rigor renovados. O
discurso presidencial de Stenhouse (1979) ao que era então o setor britânico da
Comparative Education Society in Europe (Cese)2 caracterizou-se pela defesa de maior
632 Crossley

atenção a estudos de casos subsidiados por trabalho de campo qualitativo e


detalhado (ver também CROSSLEY; VULLIAMY, 1984/2006). À época, isso foi
considerado um desafio às práticas e às preocupações correntes com políticas, por
abrir novas unidades de análise em nível micro, e por focalizar mais firmemente a
atenção dos pesquisadores nas práticas observadas e nas experiências vividas dos
temas das pesquisas. Para muitos observadores, isso exemplificava:
[...] a mudança que ocorreu desde a década de 1960 em todos os aspectos dos estudos sociais
(entre os quais o estudo da educação). Dimensões fenomenológicas ou localmente significativas
do cenário educacional recebiam agora maior atenção em expressões que seriam utilizadas pelos
principais participantes (KING, 1979b, p. 1).

Meu próprio trabalho contribuiu para esses desenvolvimentos, por meio da


defesa de que se dedicasse maior atenção a contextos profissionais locais em países
em desenvolvimento, como forma de desafiar a transferência internacional acrítica
de estratégias de reforma curricular (CROSSLEY, 1984). Dessa forma, novas vozes
passaram a ser mais ouvidas e, com a influência da teoria crítica, a política de
diferentes discursos era mais e mais reconhecida em todos os níveis do processo de
pesquisa. O trabalho de Masemann (1982) sobre etnografia crítica ilustra muito
bem esse ponto, e seu discurso presidencial no Cies sobre “modos de conhecer”
(MASEMANN, 1990) chamou a atenção diretamente para a importância de
questões contextuais nos debates epistemológicos relativos à natureza, às
características e à qualidade da educação comparada. Muito mais poderia ser dito,
mas, embora a intenção aqui não seja recuperar os detalhes dessa história, é útil
observar de que forma o que veio a ser chamado de guerras de paradigmas inspirou
novos avanços metodológicos que se refletiram em novos desenvolvimentos teóricos
nas ciências sociais, e contribuíram para eles. Um panorama dessas tendências
históricas e de sua influência sobre a educação comparada, e relacionado a ela, é
oferecido também em outro trabalho (CROSSLEY et al., 2007). O que é mais
pertinente à presente análise é que, em grande medida, todos esses
desenvolvimentos debateram-se (e ainda se debatem) em relação ao lugar do
contexto na pesquisa e no trabalho acadêmico com orientação teórica e empírica.
É para a natureza e a importância dos desenvolvimentos intelectuais mais recentes,
para a centralidade do contexto nesses processos e suas implicações para o futuro
da pesquisa comparada e internacional em educação que nos voltamos agora.

Reflexões e reformulações: repensando o lugar


do contexto na pesquisa comparativa em educação
Embora as tensões entre formas positivistas e interpretativas de educação
comparada continuem a influenciar o cenário das pesquisas até os dias de hoje, foi

2. NT: Sociedade de Educação Comparada na Europa.


Repensando o contexto em educação comparada 633

profundo o impacto da teoria crítica, das perspectivas pós-modernas e de outros


posicionamentos epistemológicos e teóricos relacionados. As últimas décadas
enfrentaram desafios paradigmáticos dramáticos e novas formas de repensar a
educação comparada, à medida que o desenvolvimento do perfil de pesquisas na
área era afetado pela intensificação e pelo impacto da globalização em todo o
mundo (CROSSLEY; WATSON, 2003; DALE; ROBERTSON, 2005).
Esta história pode parecer familiar para alguns leitores, mas a principal
motivação deste capítulo é, a partir de uma visão diferente sobre os eventos,
argumentar que são os fatores contextuais e a consciência crescente sobre sua
importância na pesquisa e na mudança educacional que dão sustentação a muitos
dos principais desenvolvimentos de nosso tempo. Isso, por sua vez, indica o
potencial muito concreto da pesquisa comparativa em educação de contribuir para
aumentar a compreensão sobre essas questões, recorrendo à riqueza desse campo
em termos de experiências diretamente relevantes. Podemos agora ilustrar esse
aspecto revisitando algumas mudanças de paradigma selecionadas e possibilidades
futuras e refletindo sobre elas de forma mais detalhada, a partir dessa perspectiva
explicitamente contextual.
Talvez, e de forma mais óbvia, seja possível reconhecer de que forma
pesquisadores qualitativos, como Stenhouse e Masemann, desempenharam papel
significativo na mudança do foco da atenção dos comparativistas, antes
concentrado no contexto do Estado-nação e da análise de políticas no nível macro.
As contribuições para o livro de Crossley e Vulliamy (1997) ilustram claramente
esse ponto em relação a estudos de educação e de desenvolvimento internacional
que empregam estudos de caso, etnográficos, e outras estratégias de pesquisa que
acessam, em nível micro, os contextos de escolas e comunidades em todo o
hemisfério sul. Enquanto esses estudos e a influente pesquisa europeia de
Broadfoot, Osborn e colegas (1993, 2000, 2003) muitas vezes combinaram a
sensibilidade em relação ao contexto local com análises sociais e políticas mais
amplas, Bray e Thomas (1995) deram mais uma contribuição destacando a
importância de análises em múltiplos níveis por meio da construção de um útil
modelo teórico tridimensional, no qual:
Os autores observaram que grande parte das pesquisas permanecia em um único nível, e dessa
forma negligenciava o reconhecimento das maneiras pelas quais os padrões nos níveis inferiores
dos sistemas educacionais são modelados por padrões dos níveis superiores e vice-versa (BRAY;
ADAMSON; MASON, 2007, p. 8).

No entanto Bray e Thomas defendiam mais uma vez a justaposição de diferentes


níveis de contexto e a comparação entre eles.
Em uma série de desenvolvimentos correlatos, os esforços no sentido de
compreender melhor as perspectivas locais e as vozes e necessidades de
profissionais da educação ajudaram a inspirar a aplicação de pesquisa-ação e de
634 Crossley

estratégias de pesquisadores profissionais em investigações comparativas –


reduzindo, dessa forma, a distância entre pesquisador e pesquisados. O estudo de
Stuart, Morojele e Lefoka (1997) sobre práticas em sala de aula em Lesoto
demonstra o potencial dessas formas de pesquisa-ação; e as reflexões de Choksi e
Dyer (1997) sobre sua pesquisa em colaboração realizada na Índia chamam a
atenção para os benefícios decorrentes da sensibilidade em relação ao contexto,
gerada por meio da colaboração Norte-Sul. Sob a influência de autores como
Freire (1971, 1982), Chambers (1994) e Kennis (1997), a contribuição potencial
de abordagens participativas envolvendo adeptos da pesquisa comparativa e
internacional passou a ser cada vez mais reconhecida pela academia, assim como
por governos, agências de desenvolvimento e órgãos de financiamento. Essa
situação estimulou o avanço na geração de uma diversidade de modelos
inovadores, que incluem participatory rural appraisal (PRA)3 (CHAMBERS, 1994,
1995) e a pesquisa-ação participativa (SELNER, 1997). As abordagens
participativas à pesquisa foram assim cada vez mais reconhecidas por sua
contribuição ao desenvolvimento educacional contextualizado e ao aumento
contextualizado do controle das comunidades.
Da mesma forma, grande parte da lógica subjacente à aplicação de perspectivas
pós-coloniais (HICKLING-HUDSON, 1998; HICKLING-HUDSON;
MATHEWS; WOODS, 2003) baseia-se em “uma abordagem interpretativa que
combina história e epistemologia em localidades específicas [e que é] útil para
demonstrar o quanto o presente pós-colonial está entrelaçado com o passado
colonial” (HICKLING-HUDSON, 1998, p. 328).
A preocupação aqui é compreender o mundo sob a perspectiva do Sul, dos que
foram colonizados, dos marginalizados, a partir de suas distintas posições
privilegiadas – e inspiradas em suas próprias sensibilidades políticas e contextuais.
Não surpreende que a teoria crítica frequentemente subsidie essa pesquisa
comparativa (BURNS; WELCH, 1992; APPLE, 1993; RIZVI, 2004), inspirada
pelo compromisso de garantir que a pesquisa desempenhe um papel no
questionamento de relações desiguais de poder e influencie a natureza e a direção
das mudanças (FOUCAULT, 1972; HABERMAS, 1978; APPLE, 2001). Uma
edição especial do periódico “Comparative Education” (CROSSLEY; TIKLY,
2004) explora essas possibilidades pós-coloniais de pesquisa comparativa e
internacional em educação refletindo sobre a questão à luz de uma crítica
relacionada às influências pós-modernas sobre a pesquisa educacional.
O que o pós-colonialismo e o pós-modernismo têm em comum é sua crítica à
metateoria com orientação global e aos pressupostos da ciência iluminista, além da
celebração da diversidade, da diferença e do contexto. Citando Gadamer, “todo
conhecimento reflete os contextos socio-históricos de sua produção”

3. NT: Avaliação rural participativa.


Repensando o contexto em educação comparada 635

(HAMMERSLEY, 1995, p. 14). Ao chamar a atenção para os contextos políticos


e intelectuais da produção e da legitimação do conhecimento, os pesquisadores
começam a focalizar a desconstrução dos pontos de vista dominantes sobre o
mundo, e a explorar a relação entre política, conhecimento e poder. Segundo
Cowen (1996a, 1996b), esses avanços chegaram tardiamente ao campo da educação
comparada, embora haja atualmente muitos trabalhos na literatura contemporânea
que sugerem que essas influências são cada vez mais significativas – ainda que um
pouco indiretas e marginalizadas das arenas de formulação de políticas. Entretanto,
isso não ocorre necessariamente, como demonstra a coleção organizada por Ninnes
e Mehta (2004), intitulada “Re-imagining comparative education: post-
foundational ideas and applications for critical times”, e os trabalhos de Larsen e
Mehta em andamento (a serem publicados), que exploram o impacto sobre a
educação da insegurança gerada na América do Norte pelos acontecimentos de
setembro de 2001. Para os presentes objetivos, no entanto, o foco das próximas
seções são as sensibilidades contextuais envolvidas nos fundamentos filosóficos do
pensamento pós-modernista, pós-colonial e pós-estruturalista, que em nossa
avaliação têm muito a oferecer aos pesquisadores comparativistas, e as iniciativas
de pesquisa selecionadas que capturam elementos desse potencial.

Contextos de pesquisa em mudança,


tendências emergentes e novas possibilidades
Apesar dos muitos e variados avanços paradigmáticos das últimas décadas, em
muitos setores, atualmente o contexto global de pesquisa prioriza mais uma vez
concepções positivistas nas ciências sociais. No Reino Unido e nos Estados Unidos,
por exemplo, ideologias neoliberais, associadas aos interesses do Estado e a
princípios de gestão, tiveram impacto poderoso sobre a natureza e o foco dos
ambientes e dos processos de pesquisa (STCLAIR; BELZER, 2007). Críticas
recorrentes à pesquisa social e educacional têm argumentado que são inúmeros os
trabalhos que carecem de um corpo teórico coerente, que não são suficientemente
confiáveis, e que frequentemente não contribuem para práticas e políticas
(HARGREAVES, 1996; KENNEDY, 1997; HILLAGE, 1998; TOOLEY;
DARBY, 1998). Em resposta, formuladores de políticas, financiadores de pesquisa
e outros interessados poderosos engajaram-se naquilo que Furlong (2004) chamou
de abordagem da grande ciência às evidências baseadas em pesquisas, o que pode
ser entendido como um processo de supressão de outras abordagens,
particularmente das estratégias qualitativas que mais contribuíram para o estudo
contextualizado de práticas. Em 2003, em seu discurso como presidente na British
Association for International and Comparative Education (Baice)4, Vulliamy (2004)
questiona o impacto global dessas tendências, referindo-se diretamente a suas

4. NT: Associação Britânica de Educação Comparada e Internacional.


636 Crossley

implicações para a educação comparada. Ao fazê-lo, aponta de que maneira a


educação comparada agora deve enfrentar:
[...] o interesse internacional crescente em metodologias de revisão sistemática e o privilégio
associado que, nas políticas baseadas em evidências, é atribuído a estratégias quantitativas de
pesquisa, tais como ensaios com controle casualizado (VULLIAMY, 2004, p. 261).

É nesse contexto intelectual e profissional que muitos membros da comunidade


de pesquisa educacional – entre os quais os comparativistas – devem trabalhar
atualmente. Diante disso, consideramos a seguir caminhos alternativos,
argumentando, em sintonia com Furlong (2004, p. 243), que:
[...] precisamos defender uma diversidade rica e múltipla de abordagens à pesquisa, promovendo
o debate sobre qualidade em diferentes subcomunidades e estimulando uma discussão aberta que
atravesse fronteiras epistemológicas e metodológicas (FURLONG, 2004, p. 243).

Na verdade, argumenta-se também que isso passa a ser ainda mais importante
na arena de pesquisas transculturais, internacionais e comparativas – em que as
diferentes visões de mundo somam-se de forma significativa às complexidades e às
implicações éticas, políticas e contextuais (HAYHOE; PAN, 2001). Ao explorar
caminhos possíveis à frente, este capítulo recorre agora a exemplos de pesquisas
comparativas inovadoras, juntamente com aspectos de meu próprio trabalho, que
se sugere tenham potencial para trajetórias futuras de pesquisas educacionais
comparativas e internacionais sensíveis ao contexto.
Olhando para o futuro, referimo-nos inicialmente a dois argumentos
relacionados que contribuem para reunir uma série de temas relacionados ao
contexto. Em primeiro lugar, trata-se de revisitar minhas preocupações com a
reconceituação da pesquisa comparativa e internacional em educação de
determinadas formas que reconheçam mais efetivamente o potencial e as limitações
das diversas abordagens à educação comparada e suas modalidades (CROSSLEY,
2003). Em segundo lugar, esse argumento é desenvolvido juntamente com esforços
para estimular cada vez mais a “criação de pontes entre culturas e tradições”
(CROSSLEY, 2000; CROSSLEY; WATSON, 2003) dentro do campo e, por
exemplo, entre posições paradigmáticas e disciplinares, estudos teóricos e aplicados,
políticas e práticas, níveis micro e macro de análise, humanidades e ciências sociais,
estudos sobre o passado e sobre o presente, e pesquisas no Norte e no Sul.
Argumenta-se que esses esforços contribuiriam significativamente para a abordagem
a muitos dos desafios colocados a respeito do impacto, da confiabilidade e da
acessibilidade de pesquisas sociais e educacionais apontados acima – e que isso é
possível mesmo em contextos que enfrentam dificuldades e dilemas gerados por
mudanças problemáticas no ambiente de pesquisa mais amplo.
Além disso, embora possa estimular um obscurecimento de fronteiras entre
profissionais, paradigmas e comunidades, esse processo de criação de pontes não
Repensando o contexto em educação comparada 637

deve ser, de forma alguma, considerado como equivalente a um compromisso


intelectual ou profissional, ou a uma busca cega de consenso. Pelo contrário, como
argumentado em outro trabalho (CROSSLEY; WATSON, 2003), são priorizadas
e valorizadas a criatividade e a originalidade contínuas que podem ser geradas pela
justaposição de diferentes visões de mundo e – o que nesse caso é muito pertinente
– o aumento da consciência das implicações de diferenças culturais e contextuais.
Portanto essa tese de criação de pontes valoriza e celebra a diferença – e o potencial
de diferentes modalidades de educação comparada –, e aplica perspectivas e
processos comparativos para gerar novas criatividades. A esse respeito é útil a
compreensão de Bakhtin sobre esses processos, quando sugere que:
Um significado só revela sua profundidade quando se encontra e entra em contato com outro
significado, um significado estranho a ele [...] Levantamos novas questões para uma cultura
estrangeira, questões que ela própria não levantou; encontramos nisso respostas a nossas questões;
e a cultura estrangeira nos responde revelando-nos seus novos aspectos e novas profundidades
semânticas [...] esse encontro dialógico entre duas culturas não resulta em mistura ou fusão. Cada
uma delas conserva sua própria unidade e sua totalidade aberta, mas ambas se enriquecem
reciprocamente (BAKHTIN, 1986, p. 7).

À luz desse posicionamento conceitual e teórico, muito se pode ganhar com


exemplos de modos pelos quais foram desenvolvidos os estudos comparativos
recentes sobre colaborações internacionais entre equipes de pesquisa do Norte e do
Sul, associando paralelamente o trabalho acadêmico teórico com estudos destinados
a subsidiar políticas e práticas em seus contextos. Três desses projetos de pesquisa
que se originaram de meu próprio trabalho no decorrer da última década foram
desenvolvidos em colaboração com colegas das universidades de Bristol e de Bath,
e com equipes que trabalham em universidades, faculdades e ministérios de
educação em Belize, no Quênia, em Ruanda e na Tanzânia.
O primeiro estudo (1994-1999) foi planejado para documentar a natureza e a
qualidade do ensino e da aprendizagem em escolas primárias de Belize – e para ajudar
a avaliar o impacto, na prática, do Projeto de Desenvolvimento da Educação Primária
em Belize, financiado pelo Department for International Development (DFID)5
(CROSSLEY; BENNETT, 1997). O segundo projeto, com duas fases, consistiu na
avaliação formativa e cumulativa da implementação do Primary School Management
Project (PRISM)6, destinado a capacitar diretores em habilidades de liderança no
Quênia (1996-2000). Esse projeto foi associado a uma análise reflexiva e situada
historicamente (2001-2005), que abordava a fundamentação teórica do projeto e as
estratégias de pesquisa e avaliação associadas a ela (CROSSLEY et al., 2005). O
terceiro estudo (2000-2002) examinou as implicações da globalização para a educação
e as políticas de treinamento em Ruanda e na Tanzânia (TIKLY et al., 2003).

5. NT: Departamento para o Desenvolvimento Internacional.


6. NT: Projeto de Gestão da Escola Primária.
638 Crossley

Para os presentes objetivos, pode-se considerar que essas iniciativas são


construídas cumulativamente e reciprocamente. Embora cada uma delas tenha um
foco substantivo diferente, todas foram financiadas pelo DFID e todas priorizaram
melhores parcerias e metas processuais que visavam contribuir para o fortalecimento
da capacidade de pesquisa e de avaliação no Sul. Considerou-se, desde o início,
que isso incluiria modos de melhorar a sensibilidade ao contexto e as competências
e experiências de pesquisa transcultural de todos os envolvidos – inclusive os
parceiros do Norte.
Os resultados concretos de cada estudo específico são relatados em outros
trabalhos, mas pode-se observar que, coletivamente, demonstram dimensões
diferentes da tese de construção de pontes aplicadas na prática. Portanto, são as
metas processuais e as estratégias de pesquisa associadas a elas que são mais
esclarecedoras para os objetivos atuais. Nos três casos, a pesquisa foi desenvolvida
por equipes internacionais de pesquisadores – enfatizando a colaboração de longo
prazo entre organizações e pessoal do Norte e do Sul. Essa situação apresentou a
vantagem de combinar pessoal de dentro, familiarizado com os contextos culturais
em questão, e pessoal de fora, que pode trazer perspectivas novas e desafiadoras –
uma estratégia muito recomendada na literatura internacional (SPINDLER;
SPINDLER, 1982). Nos estudos relativos a Belize e Quênia, foi enfatizado também
o envolvimento de profissionais sob a forma de avaliação e pesquisa-ação ou
participativa, o que é consistente com a proposta de Delanty (1997) no sentido de
conceituar a pesquisa social como prática discursiva, por meio da qual os problemas
são democraticamente identificados, definidos e examinados. Em uma linha
relacionada, Chambers, um defensor da pesquisa participativa no trabalho sobre
desenvolvimento, sugere que o papel do pesquisador seja transformado da mesma
forma, para que:
[...] [em vez] de planejamento, emissão de ordens, transferência de tecnologia e supervisão, que
passem a congregar, facilitar e buscar o que as pessoas necessitam e oferecer apoio. [Em vez] de
professores, que se tornem facilitadores da aprendizagem (CHAMBERS, 1994, p. 34).

Portanto, nesses três estudos foram construídas pontes entre o Norte e o Sul,
entre pesquisadores, formuladores de políticas e profissionais, e entre os de fora e
os de dentro. Além disso, os três estudos tiveram caráter multidisciplinar,
ofereceram treinamento em pesquisa que atravessou fronteiras paradigmáticas,
incorporou níveis micro e macro de análise, e situou a crítica contemporânea de
políticas em um referencial histórico extensamente pesquisado. Por fim, cada um
dos estudos ilustra de modo útil as possibilidades e os dilemas encontrados quando
são empreendidos esforços para investigar questões de desenvolvimento com maior
sensibilidade em relação ao que Arnove e Torres (2003) chamam de dialética do
global e do local. A esse respeito, podemos observar de que forma essas iniciativas,
planejadas inicialmente para ajudar a fortalecer a capacidade local de pesquisa e
Repensando o contexto em educação comparada 639

avaliação, ancoram-se firmemente em perspectivas centrais da pesquisa comparativa


e internacional disciplinada e sensível ao contexto.
Atualmente a influência e o potencial dessas abordagens de pesquisa em
colaboração estão sendo mais explorados sob a forma de um novo consórcio de
programas de pesquisa (Research Programme Consortium – RPC), financiado pelo
DIFD e dirigido por Leon Tikly, Angeline Barrett e colegas.7 Esse consórcio focaliza
estudos planejados para ajudar a melhorar a qualidade da educação em países de
baixa renda, e seu modo de operação continua a enfatizar parcerias internacionais
de longo prazo e o fortalecimento da capacidade de pesquisa (CROSSLEY, 2006).
Uma segunda área na qual o foco maior em contexto tem considerável potencial
para a futura pesquisa comparativa relaciona-se ao trabalho de um RPC paralelo,
financiado pelo DIFD, que focaliza o acesso à educação8 e às discussões anteriores
sobre estudos transnacionais de desempenho em educação e as tabelas de
classificação correspondentes. Em um discurso recente como presidente da Baice,
Lewin (a ser publicado) baseia-se no trabalho inicial do RPC liderado por Sussex
sobre “acesso à educação para todos”, e demonstra de que forma é possível obter
melhor compreensão sobre essas questões a partir da utilização inovadora de
conjuntos de dados estatísticos, recorrendo a procedimentos que, ao invés de
mascarar, destacam variações locais e diferenças de contexto. Citando as
considerações finais de Lewin:
À medida que os processos de EPT se desenvolveram, pelo menos nos países mais pobres e mais
dependentes de ajuda externa, as convergências no diagnóstico e na prescrição obscureceram cada
vez mais as divergências entre contextos e padrões de exclusão. Se isso persistir, é possível no
mínimo supor que o progresso possa vir a ser prejudicado por metas e alvos homogêneos,
aplicados sem muita fundamentação contextual ou relação dinâmica com circunstâncias mutantes
(LEWIN, no prelo).

De fato, quando se dá atenção mais próxima ao contexto, essas pesquisas


orientadas por estatísticas ajudam a indicar de que forma pesquisas quantitativas e
qualitativas podem oferecer contribuições complementares, com importante
potencial para o desenvolvimento e a crítica de políticas e para o avanço teórico –
nesse caso, relativos ao acesso à escola e à retenção, e à busca de consecução dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Da mesma forma, a crítica a testes transnacionais de desempenho educacional,
à utilização de tabelas de classificação (de quaisquer tipos e em todos os setores da
sociedade) e ao estabelecimento de metas merece mais atenção por parte das
ciências sociais comparadas – idealmente, por meio da incorporação de métodos
mistos (OSBORN, 2004), de colaboração entre pesquisadores com enfoque
quantitativo e equipes com enfoque qualitativo atentas a implicações relacionadas

7. Disponível em: <www.edqual.org/>.


8. Disponível em: <www.create-rpc.org>.
640 Crossley

ao contexto. Goldstein, por exemplo, apoia-se em uma carreira reconhecida de


trabalho com métodos estatísticos, mas engaja-se em críticas comparativas e
sensibilidades a contextos de uma forma extremamente desafiadora quando
argumenta que organizações como a UNESCO deveriam questionar sua
[...] orientação atual [...] que parece derivar de filosofias oficiais de estabelecimento de metas e
marcos determinados centralmente, que prevaleceram em certas partes do mundo anglófono pelo
menos desde meados da década de 1980. Entretanto, na perspectiva dos países identificados
como aqueles que provavelmente não conseguirão atingir as metas atuais, uma perspectiva
contextualizada localmente pareceria ter maior potencial de melhoria. Afinal, são exatamente
esses países que mais necessitam de ajuda (GOLDSTEIN, 2004, p. 13).

Refletindo sobre a importância e o impacto dos estudos do IEA, Goldstein


expressa sentimentos semelhantes, sugerindo estudos mais cuidadosos e inspirados
sobre procedimentos de teste, conclusões e implicações, e apontando que “[...]
quando os sistemas educacionais têm objetivos e currículos diferentes, as
interpretações sobre o desempenho dos estudantes precisam ser relacionadas a esses
contextos diferentes” (GOLDSTEIN, 1996, p. 126).
O terceiro e último grupo de exemplos de pesquisas inovadoras sensíveis ao
contexto pode ser extraído de avanços recentes na aplicação do estudo de narrativas
em pesquisas comparativas. O livro organizado por Trahar (2006) é um dos
primeiros a abordar explicitamente essas combinações, e cada um de seus capítulos
traz uma contribuição valiosa para o debate metodológico, ao mesmo tempo que
indica possibilidades futuras. Como argumenta Hayhoe em seu prefácio a esse livro,
por meio de pesquisa baseada em narrativas:
[...] pessoas de diferentes contextos compartilham seus pensamentos e suas experiências sobre
mudanças educacionais decorrentes da globalização e contribuem para a reconceituação da
pesquisa comparativa e de noções de internacionalização de forma que reflitam suas localizações
geopolíticas distintas (HAYHOE, 2006, p. 9).

Portanto, as abordagens narrativas podem ser construídas de forma mais eficaz


com base em outras tradições qualitativas que já desempenharam um papel no
avanço de pesquisas hermenêuticas e interpretativas; mas podem também ajudar a
criar pontes entre esse trabalho e perspectivas teóricas, tais como pós-colonialismo
(FOX, 2006) e investigações baseadas nas artes, nas quais contos, poesias e outras
formas de representação são utilizados para compreender o contexto (ver
HOLMES; CROSSLEY, 2004). Bainton (2007), por exemplo, concluiu
recentemente uma pesquisa de doutorado que desenvolveu uma abordagem
narrativa crítica para explorar o impacto da educação ocidental sobre o
conhecimento nativo na região de Ladakh, no Himalaia indiano. Nesse estudo
altamente inovador, o pesquisador priorizou abordagens pós-estruturalistas e
narrativas, associadas com filosofia budista, para investigar as práticas de
subsistência e as experiências educacionais de comunidades rurais em Ladakh. Ali,
Repensando o contexto em educação comparada 641

em sua própria experiência e convivência e na interação com fazendeiros, escultores,


poetas, sacerdotes e famílias locais, encontrou a fonte de insights teóricos e de crítica
política em que:
[...] as tensões produtivas entre os diferentes aspectos da abordagem de narrativa crítica permitem
um ensaio de análise comparativa de uma produção de conhecimentos possivelmente contra-
hegemônicos. Nesse aspecto, considera-se que a filosofia budista, como uma forma de teoria
nativa, oferece novas formas de crítica e, ao mesmo tempo, uma leitura esperançosa da
possibilidade de atuação do ser humano (BAINTON, 2007, p. i).

Nessa pesquisa, é fundamental a análise da transferência internacional acrítica,


e o contexto constitui tanto o foco quanto a metodologia – o contexto é o próprio
coração da pesquisa.

Conclusões
Sugere-se que repensar o lugar do contexto na educação comparada tem muito
a oferecer a todos os envolvidos na pesquisa e no desenvolvimento relacionados
à educação. De fato, como mostrou Schriewer (2006a), pode-se identificar nos
estudos comparativos uma abordagem culturalista que atravessa as ciências sociais
e que há muito “se orientou para o exame dos fenômenos, não de forma isolada
e desconectada, mas em termos de sua afiliação histórica e de sua dependência
em relação a condições contextuais sociais e culturais mais abrangentes”
(SCHRIEWER, 2006b, p. 1). Por sua vez, as implicações da presente análise têm
potencial para trajetórias futuras de pesquisa em muitos campos e disciplinas na
área de ciências sociais. O ano de 2002, por exemplo, testemunhou o
lançamento, pela Associação Americana de Sociologia, de um novo periódico
intitulado simplesmente “Contexts”, objetivando “tirar a pesquisa sociológica de
sua torre de marfim e situá-la em uma perspectiva do mundo real” (ASA,
Contexts Brochure). No âmbito da psicologia, avanços inovadores e desafiadores
de Rogoff (1990), Wertsch (1995) e Elliot e Grigorenko (2007) refletem muitos
princípios comparativos, demonstrando de que forma a teoria sociocultural
compreende o crescimento pessoal, individual como sendo modelado pelos
contextos sociais e culturais nos quais ocorre. Da mesma forma, ao explorar
direções futuras de desenvolvimento da economia global, as palestras Reith da
BBC apresentadas por Jeffrey Sachs, em 2007, também situam o aumento de
sensibilidade ao contexto no cerne das futuras deliberações políticas
internacionais que visam à redução da pobreza, à gestão da mudança climática e
à prevenção de guerras (SACHS, 2007). Voltando ao campo da educação
comparada, Stromquist prioriza preocupações semelhantes em relação a igualdade
e equidade internacionais, com implicações de maior vinculação entre
interessados e comunidades. A autora argumenta que a influência da educação
comparada e internacional:
642 Crossley

[...] é determinada não apenas por seu valor intelectual, mas também pela proximidade daqueles
que a exercem com os círculos de poder. Aqueles que exercem influência não são os acadêmicos,
e sim os membros de organizações internacionais e seus pares transnacionais, que subscrevem os
modelos de desenvolvimento dominantes orientados para o mercado, que não são substanciados
por pesquisas empíricas (STROMQUIST, 2005, p. 107).

Portanto o futuro da pesquisa comparada e internacional nas ciências sociais


será excitante, desafiador, e cada vez mais engajado com a natureza, o papel e o
impacto do contexto.
Neste capítulo, foram exploradas novas maneiras de investigar a importância e
as implicações do contexto, à luz de seu lugar já há muito reconhecido na pesquisa
e no trabalho acadêmico nesse campo multidisciplinar. Argumenta-se que revisitar
e repensar essas implicações pode representar uma contribuição significativa para
o futuro da pesquisa comparada e internacional em educação. Vulliamy, entretanto,
retoma as questões paradigmáticas discutidas no início deste capítulo e alerta:
A preocupação com a sensibilidade ao contexto cultural tem constituído um componente-chave
do campo da educação comparada na Inglaterra – desde seus pioneiros. até seus expoentes atuais.
Essa preocupação com contextos culturais também perpassa as tradições sociológicas dando apoio
ao desenvolvimento de pesquisas qualitativas [...] O desafio para os futuros pesquisadores na área
de educação comparada e internacional é promover uma simbiose dessas duas tradições, de forma
a resistir à crescente hegemonia de um discurso global positivista na pesquisa educacional e na
formulação de políticas. Esse discurso global ameaça minar os resultados e as análises da pesquisa
em educação comparada, seja desconsiderando totalmente o contexto cultural, seja relegando a
cultura à simples condição de variável interveniente a ser analisada em termos estatísticos
(VULLIAMY, 2004).

Espera-se que as reflexões críticas apresentadas aqui contribuam para que outros
desafiem a transferência internacional acrítica de paradigmas de pesquisa e de
políticas sociais e educacionais; que contribuam de alguma forma para direções
futuras na educação comparada; e que ajudem a demonstrar até que ponto o
contexto faz diferença, mais do que é normalmente reconhecido, não apenas por
formuladores de políticas, mas também por muitos pesquisadores que trabalham
em educação e em todo o campo das ciências sociais.

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74

PEQUENAS E GRANDES ESTÓRIAS: PARA ALÉM DE


TEORIAS EM DISPUTA, RUMO AO “MULTIÁLOGO”

Sonia Mehta

Introdução
Dedicado a Rolland G. Paulston

Para nossos descendentes, o fato de ter havido um tempo em que uma guerra
podia ser deflagrada entre relativistas, que sustentavam que a linguagem só se refere
a si mesma, e realistas, que sustentavam que a linguagem ocasionalmente
corresponde a um estado real de coisas, parecerá tão estranho quando a ideia de
uma guerra pelas relíquias sagradas (LATOUR, 1999).

À guisa de introdução: uma pequena estória


Como estudante internacional de educação comparada, cheguei ao campo da
educação comparada internacional trazendo comigo uma tradição acadêmica e uma
estória cultural muito diferenciadas. Eu via esse campo como um durbar (ou uma
“corte real”, em hindi) de teorias, presidida por uma estrutura organizacional que
o posicionava em um determinado espaço de referenciais disciplinares acadêmicos.
Esse léxico disciplinar tornou-se ainda mais disciplinado pela escolha de conteúdos
curriculares pelos professores catedráticos. Essa era uma corte poderosa, e seus
argumentos eram familiares, ainda que distantes. Apressei-me em aprender sua
linguagem. Prestava atenção às promessas deslumbrantes das estórias maiores: a
elevação de toda a humanidade e a promessa de progresso. Eu as utilizava como
pedestais para a grande obra acadêmica que planejava realizar. A desilusão foi
inevitável: parecia não haver maneira de articular os conjuntos de estórias diversas
e separadas (e preciosas para mim) que carregava comigo como um segredo. Havia
um motivo para meu ingresso no campo com minhas pequenas estórias, pensando
que elas significariam alguma coisa em um quadro maior, e eu não estava sozinha:
outros estudantes traziam outras pequenas estórias. Descobri que minhas estórias
tornavam-se mais obscuras à medida que a linguagem não as expressava, e a prática
socioeducacional as marginalizava. Não havia defesa para elas no durbar dos estudos
de educação comparada, menos por alguma malignidade específica do que por
negligência e insularidade. Minhas histórias, e as histórias de alguns de meus

647
648 Mehta

colegas, simplesmente não eram importantes, eram menos imediatas, ou eram


traduzidas e modificadas à medida que eram transplantadas lentamente em
alternativas mais poderosas de pesquisa, em discursos educacionais mais poderosos
e disseminados. A minha era apenas uma pequena história, e esse era apenas um
problema nebuloso no esquema mais amplo dos problemas educacionais, mas que
me levou a considerar esse curioso posicionamento de histórias no contexto
educacional e social, e intimamente humano.
Agradeço a dois amigos queridos por sua sabedoria ao ajudar-me a escapar dessa
autoanulação e da compressão da rica diversidade humana em uma lógica binária
opressiva. Peter Ninnes e Rolland Paulston, com suas abordagens distintas ao
trabalho acadêmico e sua imensa humanidade, sua compaixão e sua visão
mostraram-me uma paisagem fluida e maleável de compreensões, e outra realidade
possível para mim mesma e para minha ação por meio da educação.

Tempos de disputas em um campo em disputa


Este ensaio de compreensão situa-se no contexto dos estudos anglo-americanos
de educação comparada. Começo rastreando uma vertente de trabalho acadêmico
nesse campo, que abre caminho para maneiras novas e diferentes de fazer pesquisa
em educação comparada, e, ao mesmo tempo, apontando a reviravolta que
provocou nesse ambiente acadêmico. A educação comparada tem-se debatido com
suas próprias histórias. O campo de educação comparada foi considerado eclético
e diversificado (LASKA, 1973; PAULSTON, 1994), a expressão por excelência do
conhecimento em um campo com imensas possibilidades (SCHRIEWER, 2000).
Durante muito tempo o campo foi dominado pelo modernismo, mas também se
deslocou em direção a outras ideologias (PAULSTON, 1999; RUST, 1991;
KELLY, 1992; WELCH; MASEMANN, 1997; COWEN, 1996, 2000). Houve
muitas interrogações quanto ao que é excluído das histórias da educação comparada
e de suas histórias de origem e preocupações em relação às narrativas excluídas
(COWEN, 1996, 2000; NINNES, 2002). Revisitando uma preocupação da
educação comparada com identidade e ideologias iniciais, Cowen sugere um olhar
reflexivo e crítico sobre a literatura e, ao fazê-lo, aponta um valor crítico implícito
em todas as pequenas histórias.
[Para que] a educação comparada de boa qualidade venha a combinar a compreensão da
interseção de forças históricas, estruturas sociais e biografias individuais, é fundamental que seja
absorvido na nossa literatura o tema das identidades pessoais. Qualquer leitura do mundo
contemporâneo em termos da escala de diásporas e migrações sugere que a educação comparada
está agora excessivamente distante de uma literatura sobre o outro, que ela ajudou a criar
(COWEN, 2000, p. 336).

Em 1990, Masemann escreveu: “é muito provável que a disseminação de formas


lineares fragmentárias de educação, como aquelas que conhecemos hoje, venha a ser
Pequenas e grandes histórias 649

desacelerada ou interrompida”, “em um mundo que consegue valorizar a diversidade”


(MASEMANN, 1990, p. 473). A autora defendeu ainda o “olhar para além do que
pode ser uma forma adaptativa de resposta [...] para onde o conhecimento sagrado
está sendo gerado por pesquisadores e acadêmicos” (MASEMANN, 1990, p. 469).
Em minha leitura, Masemann, Cowen e outros estão entre os que defendem modos
alternativos de pensar sobre a educação em um mundo diversificado e estão sugerindo
que há necessidade de formas conectivas, não lineares, de educação que possam abordar
o mundo de diversidade com o qual estamos lidando. Por menor que tenha sido o
influxo de ideias pós-coloniais e pós-modernas, devido em grande parte à busca de
modos mais relevantes e inclusivos de pensar sobre os estudos de educação comparada,
esse influxo sinalizou um desvio ou uma mudança de rumo nas histórias ortodoxas de
origem da educação comparada. Sugiro que isso representou um desvio/um
rompimento, no sentido de ter provocado disrupção da história prevalente sobre o
que é ou poderia ser a educação comparada, mas também uma mudança de rumo, ou
um movimento de distanciamento das premissas amplamente modernistas do campo
na educação comparada anglo-americana. Essa mudança de rumo (PAULSTON,
2004) enfrentou vigorosa oposição por parte daqueles que prefeririam a familiaridade
e a previsibilidade de uma visão do mundo tal como o viam os fundadores da educação
comparada e da educação em geral. O texto mais recente nesse acalorado debate é o
ensaio de Epstein e Carroll “Abusing ancestors: historical functionalism and the
postmodern deviation in comparative education” (EPSTEIN; CARROLL, 2005).
Três anos antes (2002), Ninnes publicou seu artigo “Origin stories and the discursive
constitution of comparative education” na Universidade de Stanford, Estados Unidos.
Em 2005, Paulston desenhou seus mapas definitivos, referindo-se especificamente a
essa colisão entre as culturas do conhecimento e da academia. Esses mapas serão
explicados mais adiante neste capítulo.
Em seu trabalho, Ninnes interrogou as histórias de origem da educação
comparada e traçou (e também deslocou) o discurso dominante nessa área
utilizando a análise crítica do discurso (ACD) no exame de textos e publicações
que estão sendo usados para contar a história da educação comparada (NINNES,
2002). Em 1994, Paulston apresentou à comunidade da educação comparada e da
teoria educacional em geral um mapa das diversas perspectivas existentes no campo.
Ao fazê-lo, introduziu também um modo particular de focalizar a teoria e a pesquisa
mais inclusivo do que exclusivo em relação às várias comunidades de conhecimento
em educação comparada. Dessa forma, Rolland Paulston conseguiu destacar
importantes envolvimentos da área com a multiplicidade e a diferença. As
representações sobre o conhecimento continuaram a mudar e a desenvolver-se nos
estudos de educação comparada, como demonstra o mapeamento do campo
elaborado por Paulston (2004).
Estes ainda são tempos de disputa. Antigas ortodoxias estão sendo questionadas
enquanto conflitos locais se avolumam em guerras disciplinares, ainda que a
650 Mehta

academia já não seja mais dividida entre o científico e o não científico pelas antigas
batalhas. Acima disso, críticas do nascimento das ciências sociais apontaram que
os iluministas, com toda a sua elegância e beleza da razão e da ideologia
humanitária, moldaram uma sociedade hostil às diferenças sociais e às culturas não
ocidentais (vistas também como culturas do conhecimento não científicas), e
provocaram o efeito social indesejável de promover uma intolerância rígida em
relação à diversidade humana, e de inculcar diferenças sociais em indivíduos e
grupos (SEIDMAN, 2004). Isso não significa que diferenças sociais não fossem
afirmadas em indivíduos e grupos muito antes que o Iluminismo tivesse qualquer
coisa a ver com isso, em razão de categoriais religiosas ou sociais, separando seitas,
castas, homens, mulheres, e assim por diante. No discurso educacional, entretanto,
como talvez em outros aspectos da construção da identidade, ainda estamos lutando
por relíquias sagradas, por nossas pequenas ou grandes histórias. Enquanto algumas
formas de conhecimento forem consideradas mais válidas ou mais valiosas do que
outras, sempre existirá a dissonância de debates ácidos a respeito da validade e da
ética de uma teoria contra a outra.
Durante muito tempo nos envolvemos, nesse campo, em diversas maneiras não
harmônicas de contar histórias educacionais e sociológicas – um debate que
recentemente se tornou tenso e aguerrido, com a inclusão das teorias pós-iluministas
(pós-modernas, pós-estruturais, pós-coloniais, entre outras), cuja defesa ou
condenação levou os envolvidos no campo a alinhar-se de um lado e de outro de
uma dicotomia teórica divisória. Sugiro que se trata de uma divisão artificial: opor-
se às histórias universais da sociologia moderna não implica oposição à ciência
empírica ou à ideia de que as ciências humanas podem criar um mundo melhor.
Implica, no entanto, considerar que o privilégio atribuído à verdade científica acima
de todas as outras limita as opções epistemológicas e a compreensão integral da
diversidade humana. O abandono de divisões dicotômicas sugere também que a
compreensão da condição humana na sociedade seria mais favorecida desde que não
fosse descartada a promessa de uma explicação das realidades sociais, mas que suas
lógicas de verdade e de progresso social fossem substituídas por lógicas de justiça
social e reflexividade moral crítica, colocando genealogias e narrativas no lugar de
comparações de modelos e funções. No entanto as comunidades acadêmicas
continuam investidas de posturas teóricas opostas associadas a poder, prestígio,
sanção institucional, ego pessoal ou outras razões, conservando a divisibilidade de
culturas de conhecimento diversificadas. A divisão teórica é particularmente
prejudicial para os estudantes do campo de estudos de educação comparada, mas
também poderia ter o efeito mais amplo de circunscrever pesquisas que têm
implicações diretas para indivíduos e instituições que planejam e implementam
decisões de políticas baseadas em pesquisas educacionais, especificamente em
pesquisas na área de educação comparada. A lógica binária e o territorialismo na
academia também servem para dizimar nossa simples (e complexa) humanidade.
Pequenas e grandes histórias 651

Este ensaio de compreensão procura ter uma visão mais ampla do que a visão
conflituosa, e procura encontrar a paisagem que privilegia e atribui poder à
aprendizagem, e não ao território. Dessa forma, aqueles que estão envolvidos na
modelagem de opções ontológicas podem engajar-se primeiramente na prática de
desaprender (um termo cunhado por Heredero [1989], no contexto de consciência
social), aprender e reaprender – em outras palavras, reflexividade –, um termo que
faz referência à prática de compreender um texto por meio de sua própria
construção, ou à compreensão do pesquisador por meio da possibilidade de
construção de suas próprias histórias. Ao fazê-lo, utilizo os mapas e a última
pesquisa de Rolland Paulston para identificar e navegar por pequenas e grandes
histórias rumo a uma metodologia comparativa que inclui o processo pelo qual
essas histórias são construídas e tornam-se pequenas ou grandes; e como mostrou
Paulston em seus mapas, o processo pelo qual as narrativas se veem e se situam
reciprocamente em uma rede inter-relacionada de conexões. Utilizando métodos
de mapeamento e interpretações da ACD, meu ensaio leva adiante a discussão de
como fazer o múltiplo (mapear as múltiplas perspectivas de conhecimento), tanto
como metanarrativas quanto como mininarrativas, em particular, combinando uma
modalidade de ACD e a cartografia social pós-moderna em uma pedagogia para
os estudos de educação comparada. Para aqueles que sofrem de fadiga da linguagem
pós-iluminista, permitam-me dizer que esse é (simplesmente) um exercício de
criação da possibilidade de mais opções de linguagem e de registro, por meio das
quais será possível descrever nossos diversos mundos e pontos de vista. Nosso
ambiente acadêmico globalizado, interconectado e conflituoso, de atividades
acadêmicas e instituições, permite examinar as várias guerras de ideias e desilusões,
e perguntar: ao final do processo de contestação e desacordos, o que serve aos
propósitos de uma comunidade de aprendizagem e ensino?

Grandes e pequenas histórias


McCarthy e Dimitriadis problematizam a organização do conhecimento na
própria escolarização posterior à era industrial:
contra a maré [...] de correntes de mudança, no entanto os pensadores educacionais da linha
dominante [...] tenderam a definir uma linha divisória nítida entre o currículo escolar estabelecido
e o mundo fervilhante de multiplicidades que floresce na vida cotidiana dos jovens além da escola
(McCARTHY; DIMITRIADIS, 2001, p. 2).

E apontam um dos problemas de excluir algumas histórias dos conjuntos de


conhecimentos destinados a ensinar e instruir. Sob as lentes da genealogia, quando
se adere a visões binárias, são concebidos dois conjuntos de conhecimento distintos:
um deles com opiniões e teorias dissidentes, que podem ser excluídas de outros
conjuntos de conhecimentos, ou rejeitadas por eles; e outro, que inclui crenças locais
e ontologias heterogêneas que são mutáveis e transgressivas. Nesse impasse entra em
652 Mehta

jogo a exibição de autoridade e de poder construindo o discurso do conhecimento


legítimo, acadêmico ou oficial, admitido como conhecimento e excluindo como
não conhecimento o conjunto alternativo de conhecimentos, em seu sentido
genealógico; escolhendo uma cultura de conhecimento acima das muitas outras.
Mininarrativas (pequenas histórias locais, experienciais, subjetivas e disruptivas,
transgressivas ou questionadoras de metanarrativas) e metanarrativas (grandes
histórias globais, teóricas, objetivas e que excluem pequenas histórias) tornam-se
então discursos que se excluem mutuamente. Essa bifurcação tem efeitos
particulares sobre o processo mais amplo de pesquisa e compreensão. Em primeiro
lugar, vozes são emudecidas à medida que lutam para fazer parte de um discurso
dominante, e versões dessas histórias se perdem, ou são traduzidas, à medida que
se tornam parte do discurso visível (de pesquisa, de descrição metafórica densa ou
sociológica, de políticas, e assim por diante). Em segundo lugar, ocorre o que
chamo de problema invisível (invisível, uma vez que houve supressões): negar aos
estudantes de questões educacionais uma visão mais plural – um problema
importante em um campo que baseia sua identidade no transcultural e no
multidisciplinar. O problema das supressões ocorre entre linguagens e identidades,
entre experiências e lutas. Defrontamo-nos então com o problema de criar
problemas; de como as questões são construídas, e a lógica é explicitada quando
de fato estão ausentes orientações de conhecimento. Enfrentamos também
problemas de inclusão, o que deve ou não deve ser incluído; o que vale ou não
como conhecimento, o que então se torna legítimo no discurso.

Grandes e pequenas narrativas


Grandes histórias, ou metanarrativas, são ideologias teóricas totalizadoras, ou
histórias universais. Mininarrativas, ou pequenas histórias, são especificidades,
antiteorias subjetivas e onipresentes (todos têm sua própria pequena história).
Quando é plantada (SOMMERS, 1999) em um código binário que estabelece um
sistema de regras de exclusão e envolvimento – por exemplo, naturalismo social,
ou valores religiosos –, qualquer narrativa pode tornar-se metanarrativa. O código
binário transforma então a narrativa em uma força mais potente de autoridade e
poder, dando-lhe uma sustentabilidade naturalizada ou divina diante de evidências
contrárias. Isso significa também que há uma oposição intrínseca na divisão binária,
que torna sua alternativa algo indesejável, contrária ao conjunto natural ou
verdadeiro de regras no qual a metanarrativa está enraizada. Por exemplo, a
metanarrativa do Iluminismo é de tal forma naturalizada como um estado do ser
social que passa a ser suficientemente monolítica para gerar qualquer número de
teorias relativas à necessidade natural de aprimoramento da sociedade, sustentando
a alegação de que, na verdade, essa é uma aspiração universal. Meu ponto aqui não
é demonizar o desejo subjacente às metanarrativas, ou demonizar qualquer narrativa
em relação a esse desejo. Minha intenção é destacar a parte do processo de formação
Pequenas e grandes histórias 653

de metanarrativas que se torna internalizada, entrincheirada e assumida como mitos


verdadeiros a respeito do estado da sociedade ou dos indivíduos nela inseridos. No
ensaio em que retraça a construção de uma metanarrativa, Sommers sugere que,
quando se tornam metanarrativas, as narrativas não podem ser facilmente
desestabilizadas. Por estarem baseadas em uma lógica binária, produzem dois efeitos
importantes: criam e mantêm fronteiras de inclusão e exclusão, tornando-se vigias
epistemológicos de fronteiras (SOMMERS, 1999, p. 145), em que culturas de
conhecimento baseadas nesse esquema de conhecimento fundacional, ou lógica
binária, tornam-se as mais válidas, e aquelas que se baseiam em lógica contingente
são consideradas menos válidas. Dessa forma, as culturas de conhecimento são
construídas como oponentes e mutuamente excludentes.
Sugiro que as pequenas histórias frequentemente questionam as metanarrativas,
são plurais e locais, e às vezes referidas como discurso subversivo quando aparecem
em oposição à metanarrativa. Mini (pequenas) narrativas questionam a autoridade
de uma metanarrativa e são, em geral, o espaço de revelação das limitações da teoria.
Andreas Musolf (2006) chama as pequenas histórias de conceitos-fonte, e analisa
sua organização em mininarrativas na construção de debates sociais. Mininarrativas
são os veículos úteis empregados nos estudos sociológicos em benefício de um
pesquisador que se envolve na construção do padrão dessas histórias incipientes,
ou, segundo Conle, narrativas experienciais (CONLE, 1992, p. 165-190), contra
uma estrutura conceitual ou, em outras palavras, uma grande história de escolhas.
No entanto, pequenas histórias são o que seus proponentes dizem que são, e
permanecem desconhecidas até que sejam trazidas para o domínio público. Nesse
dunbar, a retomada dos mapas de culturas do conhecimento de Paulston em
grandes e pequenas histórias oferece uma disrupção bem-vinda: todas as histórias
são mapeadas como textos, contando um tipo de história específica, que, portanto,
tem determinados efeitos e implicações. Ainda mais importante, o mapa fornece
um caminho para que os textos falem um com o outro, e as histórias encontrem
conexões. Para um estudante que se defronta com alegações concorrentes de
verdade e poder, tem valor inestimável o fato de ser capaz de ver essa paisagem
como um sistema de interações, que pode então ser novamente mapeado, de forma
a alterar a dinâmica ali apresentada. Ao final, trata-se da necessidade de escolha de
uma linguagem alternativa, de acesso à alternativa e da capacidade de elaborar o
próprio registro nas linguagens das metas e das mininarrativas.
Paulston elaborou seu mapa definitivo para o Congresso Anual de 2004 da
Sociedade de Educação Comparada e Internacional (Cies), à qual não pôde
comparecer por motivo de saúde, mas que ofereceu indicações ricas e geradoras de
estudos futuros em educação comparada. A seção a seguir é dedicada ao mapa que
ele desenhou à mão (aqui reproduzido eletronicamente), acompanhado por minha
leitura desse mapa e de suas possibilidades para a elaboração de uma pedagogia
diferente para estudos de educação comparada.
654 Mehta

Rolland perguntou a si mesmo: “de que forma devemos praticar nossa arte
comparativa nestes tempos de heterogeneidade e mudanças tumultuadas?” Até o
momento, foram apresentadas diversas opções. Uma delas é agarrar-se às verdades
eternas de nossos pais fundadores. Outra é abraçar e privilegiar as diferenças
culturais de outros. E há também aqueles que simplesmente evitariam a questão,
utilizando uma forte dose de rigor científico – e talvez, de tapa-olhos culturais. Por
outro lado, eu gostaria de argumentar em favor da reinscrição de todas as grandes
histórias em um espaço, ou campo, de pequenas histórias. Esse desvio
epistemológico e ontológico em relação a uma lógica binária de exclusão oferece a
possibilidade de uma representação cartográfica mais diversificada e interativa de
nosso campo. Assim, os debates sobre perspectivas de construção de conhecimento
podem ser mapeados em redes de diferenciação abertas a outros atores e a outras
histórias possíveis, o que não significa argumentar em favor de uma posição ou de
uma linguagem neutras por meio das quais comparar as diferenças. Todas as
escolhas teóricas oferecem uma visão de mundo em seus próprios termos, e todas
podem ser criticadas a partir da posição de outra teoria. Podemos, por exemplo,
insistir na ortodoxia e na absoluta validade de nosso ponto de vista, e tentar excluir
outras visões como desviantes. Ou podemos adotar a grande “recusa” de Clifford
Geertz à imposição de uma única história reducionista sobre a maravilhosa
diversidade de compreensões humanas. Ao final da longa estrada acadêmica,
escolho reunir-me àqueles que, voluntariamente, tentam o que pode parecer uma
tarefa impossível: “reconhecer a parcialidade de sua própria história (e na verdade,
de todas as histórias) e, ainda assim, contá-la com autoridade e convicção”
(SCOTT, 1991, p. 42-43), situando-a ao mesmo tempo no campo de debates da
educação comparada. Dessa forma, começamos a visualizar de que modo nosso
campo pode ser entendido como uma “representação, um retrato de nossa
complexa realidade multidimensional” (PAULSTON, 2004).
O mapa de Paulston (reproduzido nas páginas seguintes) mostra a divisão
ontológica que separa os espaços onde é possível a emergência de pequenas histórias
e, ao mesmo tempo, ilustra as condições dessa possibilidade.
O mapa de Paulston descreve e situa cinco gêneros discursivos em termos de
valores nucleares, ontologia, epistemologia e foco disciplinar. Os gêneros de
discurso escolhidos aqui são o ideográfico, o nomotético, o etnográfico, o agnóstico
e o cartográfico, explicados integralmente na tabela de atributos de gênero que
acompanha o mapa (Tabela 1). Pode ser útil para os leitores imaginar texto como
narrativa – escrita ou falada – com seu início específico, seus eventos presentes
(meio) e seus fins, desenlaces ou conclusões que ajustam a narrativa ou sua visão
de mundo a uma cultura de conhecimento particular.
Embora o mapa apresente constructos opostos de conhecimento, estes não estão
necessariamente em oposição, a menos que os sistemas de valores dos narradores
(mapeadores) sejam construídos de forma a ser opostos. Eu sugeriria que a natureza
Pequenas e grandes histórias 655

circular do mapa de culturas do conhecimento mostra também o que está excluído


da narrativa de cada um quando esta aparece ao lado de outra. Assim, o mapa inicia
um diálogo ou um multiálogo (engajamento em comunicação em múltiplos níveis),
na direção de um desaprender e reaprender, à medida que se mapeia novamente e se
interroga o próprio mapa, e que se dá o envolvimento com outras narrativas, porque
o outro está agora em um discurso relacional comigo. Espera-se que o mapa e suas
coordenadas provoquem seu próprio debate. Para fins deste ensaio, esse mapa levou-
me a reconfigurar minhas próprias posições teóricas e a repensar minha própria
cultura do conhecimento. Um comentário sobre possíveis modalidades pedagógicas
para o campo da educação comparada finaliza este ensaio sobre compreensão.
Um original do mapa reproduzido aqui pode ser encontrado na coleção
University of Pittsburgh Occasional Papers (EUA) (Figura 1).

Fazendo o múltiplo: de que forma a cartografia social pós-


-moderna e a análise crítica do discurso atuam em conjunto
Persiste a pergunta sobre como operacionalizar multiplicidade e subjetividade.
Sugiro uma modalidade chamada multiálogo, que constitui uma série de temas
pedagógicos. No nível do texto, a ACD focaliza contextos sociais, históricos e
políticos do discurso. Essa escola de pensamento examina as relações entre
discursos, os efeitos do discurso sobre a subjetividade humana, e de que forma
poder e conhecimento circulam por meio desses efeitos (FOUCAULT, 1980).
Tabela 1. De que forma as cinco perspectivas de investigação e gêneros discursivos mapeados
656

na Figura 1 podem ser considerados de modo a construir uma educação comparada diferenciada?
Mehta
Pequenas e grandes histórias 657

Fig1. Mapa em estilo alexandrino comparando espaços de conhecimento e gêneros de investigação no discurso
da educação comparada
Fonte: Paulston (2004)
Ver no Apêndice A os minicânones que constroem cada gênero

Segundo Foucault e Derrida, nos escritos de Luke, a linguagem e o discurso


não [são] meios transparentes ou neutros para a descrição e a análise do mundo social [...]
(Foucault) refere-se de forma mais geral a palavras-chave e a afirmações reiteradas que são
recorrentes em textos locais de todos os tipos. Essas afirmações aparecem intertextualmente ao
longo dos textos, e compreendem padrões familiares de conhecimento e práticas disciplinares e
paradigmáticos (LUKE, 1999, p. 163).

Derrida questiona se interpretações confiáveis são de todo possíveis, uma vez


que todos os textos são polissêmicos (o jogo dinâmico de diferenças no qual
significados múltiplos, imprevisíveis e idiossincráticos podem ser atribuídos por
múltiplos leitores em múltiplos contextos sociais). Assim, na cartografia social,
658 Mehta

texto passa a ser narrativa. Os múltiplos usuários do mapa podem remapear,


recontar seus textos em relação às outras narrativas nele incluídas.
Assim sendo, a ACD parte de certas suposições de “assimetrias sistemáticas de
poder e recursos entre locutores e ouvintes, leitores e escritores, que podem ser
associadas a seu acesso desigual a recursos linguísticos e sociais” (LUKE, 1999, p.
167). Fairclough e Wodak (1997) avançam na elaboração da tarefa da ACD como
simultaneamente construtiva e desconstrutiva. Segundo Fairclough e Wodak, o
momento de desconstrução da ACD provoca uma disrupção na dinâmica do poder
de eventos textuais e verbais, e problematiza os temas desses eventos. Em sua tarefa
construtiva, a ACD oferece recursos para que os estudantes analisem criticamente
as relações sociais, distribuindo os recursos do discurso em um processo equitativo.
De acordo com uma revisão da literatura de ACD por Peter Ninnes (NINNES,
2002), a análise crítica do discurso pressupõe que, por meio da linguagem, discursos
são formas de prática social e são constituídos dialeticamente no interior de
situações sociais, que também são constituídas por eles em um processo recíproco.
Ninnes demonstra como o discurso tem efeitos materiais que podem modelar,
reproduzir, romper e reconfigurar relações de desigualdade e, portanto, é uma
forma de ação social. No tratamento de material textual (palavra escrita), a ACD
utiliza em alguma medida métodos linguísticos funcionais sistêmicos. Como
argumentam Halliday e Hasan, o emprego de características léxicas e gramaticais
dos textos cumpre três funções:
No nível do ‘campo’: os textos representam e retratam o mundo natural e social
No nível do ‘conteúdo’: os textos constroem e efetivam relações sociais
No nível do ‘modo’: os textos desenvolvem convenções identificáveis em mídias particulares
(HALLIDAY; HASAN, 1989).

O campo também representa os textos, como palavra falada e escrita, como


visões de mundo particulares e selecionadas ou posições sujeitos. As relações podem
ser entendidas como posições de leitura que o texto estabelece como relações sociais.
Por meio de seu modo de estabelecimento de posições de leitura, os textos podem
posicionar os leitores, situando-os em relações identificáveis de poder e atuação
diante do texto.
Na ACD, as posições sujeitos (dos textos) têm analisado normalmente
pressupostos culturais da macroestrutura textual, focalizando tradições escolhidas
relativas a valores, ideologias, vozes e representações. Essas técnicas permitem que
o texto seja analisado de forma a demonstrar como estruturam e estipulam relações
sociais entre sujeitos humanos e “como constroem relações diferenciais de poder e
de atuação entre leitores e escritores, entre estudantes e livros didáticos” (LUKE,
1999, p. 170). Nessa perspectiva, os discursos também podem ser vistos como
reconstituídos discursivamente pelos próprios discursos que foram utilizados para
limitá-los e dividi-los. Dessa forma, devido à atuação repetida dos estudantes e dos
professores sobre os textos do discurso, estes, em última instância, estão nas mãos
Pequenas e grandes histórias 659

daqueles que atuam sobre eles. Os tópicos da análise, tal como sistemas de valores
e crenças sobre educação, ou redução da pobreza, constituem aquilo que as pessoas
dizem ou pensam que (os tópicos) sejam (GAME; METCALF, 1996).
A ACD estuda, por assim dizer, a malha interpretativa do que é dito, do que
não é dito e do que não pode ser dito no texto e na fala. Esse método focaliza as
condições específicas sob as quais são propostas e sustentadas alegações sobre
realidade, verdade e conhecimento, e as condições sob as quais determinados
discursos e discursos implícitos são considerados mais dominantes do que outros.
Em certo sentido, a ACD torna-se um processo-chave na criação de um mapa
elaborado por múltiplos usuários, como o passo fundamental no sentido de
estabelecer as coordenadas do mapa.
Foucault descreveu de que forma alguns discursos, e não outros, tornam-se
proeminentes em contextos particulares, as condições dessa proeminência e de sua
manutenção, e as relações de poder entre seu funcionamento recíproco e sua
transformação, seja de forma independente, recíproca ou correlativa (FOUCAULT,
1972). A ACD permite questionar os discursos perguntando de que maneira os
diversos textos simbólicos, escritos e falados constituem e definem o conhecimento,
o aprendiz, o educador, as identidades acadêmicas e institucionais no interior de
relações de poder e de condições sócio-históricas por meio das quais esses discursos
se manifestam. As ACD não se ocupam apenas do conteúdo dos documentos, mas
também do processo de seu desenvolvimento e resultados.
O desafio de mapear a multiplicidade seria enfrentado quando há mais de um
participante trabalhando na criação de um mapa de constructos de conhecimento.
Como assinala Paulston, o mapeamento reconhece e padroniza diferenças.
Uma mudança de direção espacial nos estudos comparativos focalizaria menos teoria formal e
alegações concorrentes sobre verdades, e mais a forma pela qual conhecimentos contingentes
podem ser vistos como incorporados, construídos localmente e reapresentados como
posicionamentos opostos, mas complementares, em campos em transformação (PAULSTON,
1996, p. xvii).

Paulston apresenta um esquema geral do processo de mapeamento em seis estágios:


1. Escolha de questões e debates a serem mapeados.
2. Escolha da variedade dos textos que constroem esses debates.
3. Realização de leitura minuciosa e macroanálise desses textos (ou narrativas).
4. Identificação da diversidade de posições na mescla intertextual.
5. Compartilhamento: Paulston recomenda que sejam identificadas comunidades
textuais que compartilham modos de ver e de comunicar a realidade, e suas
localizações no mapa. Podem-se também encontrar diferenças.
6. Remapeamento: o último ponto – e, na minha opinião, o mais importante no
processo de mapeamento no que se refere à pedagogia – é a recomendação de
Paulston de que o mapa seja testado com os indivíduos ou as comunidades de
660 Mehta

conhecimento em questão, e que, na sequência, seja redesenhado da forma


desejada, e/ou que as interpretações conflitantes do mapa sejam compartilhadas.
O processo de mapeamento requer a escolha das coordenadas segundo as quais
serão mapeadas as diversas histórias contadas pelo texto. Isso pode ser negociado
entre diferenças e similaridades, que também podem divergir entre si, levando ao
remapeamento. A ACD pode entrar no processo de mapeamento a qualquer
momento e com qualquer narrativa, cuja análise alteraria seu lugar no mapa.

Multiálogo
O conceito de “multiálogo”, cunhado por mim, questiona a ideia de que a
pedagogia da diferença só pode ser elaborada na sala de aula. Ao final, o espaço
mais fluido pode ser encontrado fora dos espaços tradicionais (como as salas de
aula), talvez em versões, no espaço virtual, de uma combinação de ACD (que
utiliza a linguagem para desconstruir o discurso), de métodos pós-modernos de
mapeamento (que mobilizam o posicionamento e o arranjo dos atores que optam
por entrar no discurso), e de outras ferramentas de crítica e representação
orientadas para o processo. O conceito de “multiálogo” amplia os contextos
pedagógicos de construção do significado, da sala de aula para qualquer ambiente
no qual esteja representado um espaço comum e/ou diferente. Toma os conceitos
de diálogo e os multiplica de forma que possa ocorrer a criação de um mapa
interno e externo, bem como a capacidade de compartilhar e discutir as diferenças
que esses mapas manifestam. A meu ver, o espaço comum que representa o
discurso do mapeamento como grupo, oferece os meios para transformar
coordenadas ontológicas e epistemológicas e introduzir novas coordenadas. Assim,
os atores do discurso devem estar engajados na construção de uma forma
profundamente significativa de criar conhecimento, ou talvez até mesmo de
resolução de problemas, de um modo que permita a expressão pessoal, bem como
a interação coletiva com outros no discurso.
Rolland Paulston assumiu como obra de sua vida a construção e a reconstrução
de perspectivas de conhecimento, para que sejam ou venham a ser cada vez mais
reflexivas e inclusivas. Indo além dos debates conflitantes entre modernos e pós-
modernos, ortodoxias e heterodoxias, o autor olhou para o futuro do trabalho
acadêmico internacional em relação a sua heterogeneidade: redes e sinergia. Isso é
uma manifestação da crença em múltiplas realidades, com espaço para grandes e
pequenas histórias, multidimensionais, complexas, mutáveis e incorporadas, em
que relações intertextuais assumem o que as metanarrativas omitiram. Dessa forma,
passamos de histórias compartilhadas e isolacionistas – as grandes histórias dos
sistemas nacionais e dos movimentos sociais, e interrupções de pequenas
divergências e outras histórias, ou mininarrativas – para um processo de sinergia e
um discurso em contínua transformação.
Pequenas e grandes histórias 661

O multiálogo opera sob a seguinte estrutura conceitual:


• Preocupação com alteridade e com criação de alteridade, como conceitos
construtivos e destrutivos.
• Reconhecimento da existência simultânea de múltiplas vozes.
• Viés agudo e autoconsciente em favor da habilitação de vozes inseguras e
silenciadas.
• Reconhecimento da existência de um estado de intermediação, hibridação,
transições ou transitologias e movimento em todas as narrativas, e culturas do
conhecimento.
• Reconhecimento de que desconstrução e reconstrução, arranjo e fluidez são
desejáveis e atribuem poder em um processo de aprendizagem.
• Reconhecimento da existência e dos efeitos do poder.
• Reconhecimento dos limites de cada história: todo conhecimento é parcial e
construído na interação do leitor com o texto, bem como entre comunicações
múltiplas.
• Reconhecimento de que tudo é perigoso, e de que a capacidade de envolvimento
reflexivo em todos os níveis mantém a geração de forças conectivas, ao invés de
forças estáticas e silenciadoras.
A combinação de ACD e cartografia social pós-moderna oferece um caminho
para a operacionalização de uma espécie de multiálogo. Segundo a teoria literária
de Mikhail Bakhtin, na década de 1920, toda emissão é dialógica, no sentido de
que antecipa a resposta do interlocutor, e orienta-se para uma nova resposta. Ou
seja, por meio da linguagem somos definidos por nossa relação percebida com
outros. Bakhtin escreveu sobre a conectividade intrínseca das relações temporais e
espaciais em situações cognitivas, e de criação de significados. Entretanto foram
Foucault e Lefèbvre (1974) que privilegiaram o espaço em relação ao tempo,
assinalando o fim da história desespacializada. Em “Seeking passage: post-
structuralism, pegadogy, ethics”, Rebecca Martusewicz descreve a ideia de ruído
proposta por Serras (frequentemente descartada em tantas pequenas histórias):
“Serras escreve sobre o ‘ruído belo’, ou o ‘empírico excessivo’ de cada texto e de
cada demanda por conhecimento, nos espaços de significações que escapam à
captura da representação” (MARTUSEWICZ, 2001, p. 13). Se a investigação for
tão configurada pedagogicamente a ponto de incluir esse ruidoso terceiro por meio
de um processo de multiálogo, como é possível com o processo de mapeamento,
há um espaço – talvez muitos espaços – aberto ao conhecimento dentro do
empírico excessivo. De fato, isso poderia abrir o discurso para outras formas e
outros significados potenciais para o processo criativo de aplicação de todas as partes
plurais do aprendiz individual, para o desejo eclipsado ou suprimido, e para a
compreensão da condição humana, nos contextos públicos e privados de criação
de conhecimento.
662 Mehta

Além do pós-moderno: à guisa de conclusão


Os temas pós-modernos são úteis na pedagogia porque modificam todo o
paradigma com o qual se abordam os conhecimentos, e ao mesmo tempo destroem
o sistema de estabelecimento paradigmático de fronteiras. Stronach e McLure
(1997) demonstram de forma muito eficaz de que forma uma releitura da pesquisa
educacional – ou talvez seu desfazimento – não só rompe com a prática de
estabelecimento e manutenção de fronteiras, como também faz emergir novos
insights em pesquisas antigas. Nesse sentido, as pedagogias pós-modernas são tanto
micro quanto macro: micro, por ocupar-se de pequenos detalhes das relações de
pesquisa; e macro, por ocupar-se dos efeitos e das ações e influências que se situam
fora e além desses detalhes.
O ponto forte dos estudos de educação comparada talvez esteja na capacidade
(ou possibilidade) de permitir diversidade no campo para de fato informá-lo.
Afinal, uma coisa é apresentar diferenças em conceitos e teorias, e outra muito
diferente é operacionalizá-las na pesquisa do campo. A apresentação de teorias pode
significar que estas são apresentadas como espaços distantes, estáticos, a serem ou
não utilizados dependendo do contexto definido. Meu argumento foi no sentido
de apresentar uma multiplicidade de pontos de vista que permitem um processo e
também a interferência de atuação pessoal (seja do professor, do aprendiz ou do
Outro), e que permitem ainda a possibilidade de movimento, de relações, talvez
de tecido conectivo. Tal como a ACD e a cartografia social pós-moderna, o
multiálogo aborda os efeitos não estudados do poder dentro de um paradigma de
conhecimento experiencial (quando o mapeamento se dá como uma investigação
do desejo), permitindo que todos os atores se posicionem em um discurso de forma
autoconsciente. Em última instância, o multiálogo rompe a barreira e a relação de
poder entre instrutor e instruído, envolvendo ambos no processo de aprendizagem.
Somente um coletivo pode produzir um modelo operativo de multiálogo, e isso
sugere uma fase seguinte nas formas tradicionais de fazer pesquisa. Em certo
sentido, essa fase tem início com um reajustamento de valores, como uma
pedagogia invisível, um processo iniciado antes que ocorram a manifestação
(mapeamento) de histórias e a aprendizagem compartilhada (remapeamento).
Graças ao trabalho de Rolland Paulston, e às extensas interpretações de ACD
feitas por Peter Ninnes e outros, tornou-se possível olhar através das exclusões
rígidas das metanarrativas e das marcantes subjetividades das mininarrativas, e
depois para além delas, na direção de processos que ilustram conectividades
possíveis (ao invés de divisões estáticas) entre essas escolhas ou culturas de
conhecimento, bem como sua dependência recíproca. Para um estudante que tenta
contar uma história ou um conjunto de histórias em um espaço onde se compete
por validações de vários tipos, trabalhar por meio do texto e de mídias visuais,
espaciais, pode oferecer uma rota de escape e uma afirmação pessoal diante da
censura monolítica da legitimação acadêmica. As reações daqueles que pensavam
Pequenas e grandes histórias 663

que devemos conter e disciplinar o campo sob a forma de uma comunidade mais
segura e previsível certamente compreendem que não há caminho de volta, porque
o passado nunca foi estático, e porque os conteúdos, as pessoas e os lugares da
educação comparada são diversificados. A comunidade de estudiosos da educação
comparada está globalmente engajada, seja em conflito ou em harmonia. Na
verdade, a identidade da maioria deles é plural em termos culturais, étnicos e talvez
até mesmo éticos.
É assustador pensar nas histórias inimagináveis que aguardam representação;
mapear o inimaginável é imprevisível, desconfortável. Tomando Rolland Paulston
e Peter Ninnes por modelo, quero propor o desafio de permitir que os processos
autoconscientes e tendenciosos de multiálogo passem a ser uma escolha
metodológica, e não uma escolha de consolidação teórica com o objetivo de tornar-
se um método. Dessa forma, a teoria passa a ser um veículo rumo a desenlaces
imprevisíveis da pesquisa. Dito de forma simples, é preciso começar de algum lugar,
que será necessariamente e reconhecidamente míope e limitado, mas intensamente
subjetivo e íntimo, portanto inestimável. Depois, na conceituação de Paulston,
continuamos a pensar sob a perspectiva de um mapa circular e simplificado,
tornando o ponto de partida de pesquisa apenas vestigial em sua linearidade,
focalizando, não a finalização (embora conclusões venham a ser obtidas), mas a
continuação e a aprendizagem por meio do debate e do discurso. Ao final, serão os
estudantes de educação comparada que afastarão fronteiras de forma significativa,
mas somente se houver liberdade para assumir o impossível, o subversivo e o
impensado, e a alternativa, qualquer que seja. No nível mais superficial, isso
significaria a incorporação da reflexividade em cada evento de ensino, perguntando
a cada pesquisa: “qual é a alternativa? onde está e quem é o invisível?”, como faz
Susan Star (1991) em seu ensaio sobre a “Sociologia do invisível”, sendo capaz de
nomear alternativas conhecidas, e em seguida, permitir que outras possibilidades
nomeiem a si próprias. Isso não implica, de forma alguma, que o “pós” alguma
coisa seja a nova e deslumbrante direção que deveríamos desejar seguir. Apenas
reforça que não devemos permanecer à mercê de uma ou outra ortodoxia. No
entanto seria necessário um espírito acadêmico de muita coragem para colocar a
paisagem do contexto (o presente múltiplo), da história (o passado múltiplo) e da
abstração (os múltiplos futuros possíveis) a serviço da aprendizagem, acima do
atendimento da agenda ou do ego. É uma direção conturbada, mas, acredito,
infinitamente criativa. Os defensores da obediência aos textos sagrados podem fazê-
lo devido à previsibilidade do método e da investigação. Se previsibilidade significa
estar a salvo, é claro, fiquemos a salvo. Não deveríamos então estar a salvo sendo
diferentes e divergindo, e não deveríamos ter um espaço seguro no qual incluir
essas diferenças? Como qualquer campo de investigação transcultural, a educação
comparada merece pelo menos isso.
664 Mehta

Apêndice A: De que forma se pode considerar que perspectivas


diversas de conhecimento modelam uma educação comparada
pós-fundacional (©Rolland Paulston)

Um minicânone proposto para a perspectiva do conhecimento no 1


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75

EDUCAÇÃO COMPARADA EM DOIS


CONTEXTOS ASIÁTICOS: UMA
JUSTAPOSIÇÃO E ALGUMAS QUESTÕES

Wang C., Dong, J. e Shibata, M.

Introdução
É fascinante a diferença entre China e Japão na história da educação comparada.
Evidentemente, os dois países compartilham muitos aspectos de história cultural,
principais sistemas de crenças e alguns aspectos de tradição governamental
(inclusive a tradição de premissas confucionistas a respeito de harmonia política e
social). No entanto as histórias individuais (mas que se sobrepõem) dos dois países
são acentuadamente distintas, e os levaram a direções radicalmente diversas em
vários momentos do final do século XIX e ao longo do século XX.
É possível oferecer uma análise justaposta sobre esses desenvolvimentos, mas,
paradoxalmente, escrever as histórias é uma tarefa para o futuro: será necessário
muito trabalho para definir e discutir essas histórias de forma séria e comparativa.
Já existe um grande volume de trabalhos sobre as várias educações comparadas
da Europa, ou da Europa e da América do Norte. Certamente, com a reunião de
análises individuais de educação comparada para diversos países e sociedades
profissionais, começam a ser compilados os tipos básicos de informação que
permitem reflexão.
No entanto ainda estamos longe de apreender as sociologias e geografias
comparadas da educação comparada: de que modo se modificam ao longo do
tempo a forma e o estilo da educação comparada, sob o efeito de políticas e
sociologias de contextos específicos?

Não temos certezas


Sugere-se, portanto, que essas histórias da educação comparada na China e no
Japão – que aqui são simplesmente justapostas – são indicativas de parte do trabalho
que será preciso realizar no futuro. As histórias da educação comparada no Leste da
Ásia requerem definição e resgate. Essas breves anotações são apenas um primeiro
passo, uma pista sobre questões não resolvidas, um esboço das formas pelas quais o
conhecimento – a educação comparada – se relaciona ao contexto social. Portanto,
como autores, optamos por apresentar nossos esboços separadamente.

671
672 Wang, Dong e Shibata

China: a evolução da educação


comparada chinesa [Wang C., Dong, J.]
A maioria das análises de educação comparada enfatiza a tradição
anglófona, mas a educação comparada também tem uma tradição importante
no Leste da Ásia.
Alguns acadêmicos chineses de educação comparada afirmam que a educação
comparada chinesa passou por estágios de desenvolvimento semelhantes aos de
países ocidentais (LI, 1983; CHENG, 1985; WU e YANG, 1999). A partir de
1949, a educação comparada chinesa foi fortemente influenciada pelas mudanças
políticas, sociais e culturais no país, e seguiu um caminho acidentado.

O estágio da pré-história
Na China Antiga, havia discussões sobre educação sob uma perspectiva
comparativa e, em estágios posteriores, difundiram-se artigos ou relatos de viajantes
sobre a educação estrangeira. Dificilmente se pode dizer que houvesse nesse estágio
algum estudo comparativo em educação. Durante o período da Primavera e do
Outono (770-476 a.C.), os registros históricos mostram que Confúcio e Mêncio
fizeram comparações entre políticas, culturas e educação das dinastias Xia, Shang
e Zhou (WANG, 1999). No sétimo século da dinastia Tang, as obras de Huang
Zunxiang – “Registros sobre o Japão” – e de Xuan Zang – “Registros sobre regiões
ocidentais” – (602-664) apresentaram um quadro geral sobre a educação no Japão
e na Índia (LI, 1983; WU; YANG, 1999; WANG, 1999). Os intercâmbios de
cultura e educação com países vizinhos, como Coreia, Japão e Índia, remontam à
dinastia Han (202 a.C.).
A introdução detalhada da educação estrangeira na China começou nos últimos
anos do século XVI e prosseguiu no século XVII, principalmente por meio dos
missionários ocidentais, sob a forma escrita (LI 1983; WU; YANG, 1999). Os
sistemas educacionais, métodos de ensino e história da educação ocidental
tornaram-se cada vez mais populares na China, o que, no século XIX, resultou em
um grande e prolongado debate em todo o país.

O estágio de descrição e empréstimo


A China tem uma longa tradição de 5 mil anos de cultura e civilização. Nas
antigas dinastias, o complexo de superioridade cultural no campo acadêmico
chinês resultou em negligência em relação ao estudo de culturas estrangeiras,
inclusive quanto à educação. Foi somente com a Guerra do Ópio, em 1840,
quando forças estrangeiras industriais e militares abriram as portas da China para
o mundo exterior, que começou a haver um autoquestionamento dos intelectuais
chineses quanto a buscar caminhos estrangeiros para a China em todos os
campos. A educação desempenhou um papel importante nesse aspecto.
Educação comparada em dois contextos asiáticos 673

No final do século XIX e início do século XX, começou nos círculos intelectuais
o debate de âmbito nacional sobre o quê e como aprender e a tomar emprestado
as experiências estrangeiras, entre as quais a educação. Teve início igualmente a
experimentação, na educação, de todos os estilos de vida e de práticas copiados de
sistemas educacionais estrangeiros. O debate sobre “essência chinesa,
funcionamento ocidental” (Zhong Ti Xi Yong), que se baseava na noção de que
“os orientais veneram Dao [a civilização espiritual], e os ocidentais veneram
técnicas” (a civilização material) chegou ao auge durante o Movimento de 4 de
Maio – um novo movimento cultural. Até certo ponto, tratava-se de um
movimento contra a tradição, anticonfucionista. A recusa a tudo que fosse
estrangeiro era tomada como um dos maiores obstáculos que impediam o progresso
da China na direção da modernização. Em resposta, foi formulada a estratégia de
Democracia e Ciência Ocidental. Durante esse período, a educação comparada
conquistou reconhecimento gradualmente dentro do campo mais amplo de estudos
educacionais (CHENG, 1985; WU; YANG, 1999).
Diversos artigos, livros traduzidos e até mesmo materiais de ensino de caráter
descritivo e introdutório sobre educação estrangeira foram publicados e adotados.
A primeira publicação realmente sobre educação comparada aparece já em 1901
(final da dinastia Qin), em uma revista intitulada “Educação mundial”. No mesmo
ano, foi adotado um compêndio de ensino em quatro volumes, que introduzia a
educação (praticada) por Alemanha, França, Estados Unidos, Grã-Bretanha e Japão,
desenvolvido pelo departamento provincial de educação de Hubei. Outra
publicação, organizada por Lu Feikui, em 1911 (LI 1983; CHENG, 1985), foi o
“Status quo da educação mundial”. As três publicações deram início aos estudos
comparativos nesse campo. Nos anos seguintes, foram publicados mais de 40 livros
de educação comparada, organizados ou traduzidos por acadêmicos chineses. Luo
e Wei traduziram o trabalho de Kandel sobre educação comparada (CHENG,
1985; WU; YANG, 1999). A publicação introduziu na China a metodologia de
educação comparada, amplamente adotada por acadêmicos chineses desse campo.
Nesse estágio, todas as publicações sobre educação comparada focalizavam
principalmente a introdução da educação ocidental, ao lado dos achados de
pesquisas da educação comparada ocidental.

O estágio do estudo profissional


O termo “comparativa” é encontrado pela primeira vez em um livro intitulado
“Educação na Alemanha, França, Grã-Bretanha e Estados Unidos sob uma
perspectiva comparativa”, organizado por Yu Ji em 1917 (LI, 1983). Seu principal
fundamento foi um trabalho semelhante de um acadêmico japonês, não tendo
praticamente nenhuma contribuição adicional do próprio autor. O verdadeiro
início da pesquisa em educação comparada ocorreu depois do Movimento de 4 de
Maio de 1919, com a introdução da educação russa e palestras de diversos
674 Wang, Dong e Shibata

educadores norte-americanos, como Dewey, Monroe, Michael etc., também muito


influentes no campo da educação (WANG, ZHU; GU, 1985).
Esse período do estudo comparativo pode ser representado por quatro livros
que constituem os trabalhos mais importantes e influentes nesse campo, escritos
por Zhuang (1929), Zhong (1935), Chang (1936-1937) e Luo (1939) (CHENG,
1985; WU; YANG, 1999). Os livros baseavam-se na análise comparativa da
educação ou dos sistemas escolares em uma ampla gama de países, com análises
detalhadas sobre educação de diferentes tipos e níveis na Alemanha, na França, na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
A publicação do trabalho de Zuang – “Análise comparativa da educação em
diversos países” – resultou na criação de um curso obrigatório de educação
comparada na Universidade Normal da China e nos departamentos de educação
das universidades (LI, 1983).
Os trabalhos de acadêmicos chineses nesse estágio podem ser diferenciados em
três categorias: a primeira, uma introdução temática de diversos tipos de educação
em vários países de forma justaposta; a segunda, um quadro completo da educação,
país por país; e a terceira, uma descrição integrada das duas primeiras categorias
(WU; YANG, 1999). As metodologias – ou seja, a abordagem histórica – adotadas
nos estudos eram, em sua maior parte, copiadas de colegas de países ocidentais.

Mudanças e desenvolvimentos em
educação comparada depois de 1949
Diferentemente da tradição ocidental de educação comparada (em meu
entendimento, os estágios de desenvolvimento da educação comparada em países
ocidentais estão mais ou menos associados aos trabalhos publicados pelos
acadêmicos mais eminentes do campo), depois de 1949, quando da fundação da
nova China, os desenvolvimentos da educação comparada chinesa estão
estreitamente associados às mudanças políticas, sociais e culturais no país, o que
pode ser caracterizado de forma aproximada em quatro estágios, representados por
alterações rápidas de direção.
O primeiro estágio vai de 1949 a 1957, um período de nacionalização e
reorganização. Esse estágio presenciou um processo de apropriação do sistema
educacional e das instituições do antigo regime da república – e a formulação de um
controle altamente centralizado da educação. O sistema educacional, e aspectos como
organização e estrutura, teorias e práticas educacionais, e até mesmo currículos e livros
didáticos eram padronizados exclusivamente segundo o modelo soviético. A educação
comparada chinesa não foi exceção. Uma vez que não existia educação comparada
na União Soviética, a educação comparada foi abolida na China, tanto como
disciplina independente quanto como conteúdo de ensino (LI, 1983; CHENG,
1985). Os estudos e os pesquisadores educacionais focalizavam exclusivamente o
sistema soviético. Na década de 1950, foi grande o número de trabalhos soviéticos
Educação comparada em dois contextos asiáticos 675

traduzidos e publicados na China versando sobre educação – isto é, história da


educação, pedagogias, psicologia educacional etc. (WU; YANG, 1999).
Entre o final da década de 1950 e a primeira metade da década de 1960, a
educação comparada chinesa deu um grande salto adiante. Nesse estágio, em
sintonia com o grande salto adiante no campo econômico e a adoção de uma
política externa positiva, os intercâmbios com outros países aumentaram
rapidamente em todas as áreas, inclusive na educação. Nesse meio tempo, no início
da década de 1960 houve uma ruptura abrupta na relação amistosa com a União
Soviética. Em decorrência, surgiram mudanças radicais em todas as esferas da
sociedade, entre as quais a educação. Nesse momento crítico, a China precisou
voltar os olhos para outras partes do mundo. A educação comparada chinesa
acompanhou a mesma direção. Entre 1961 e 1964, foram criados cinco institutos
de pesquisa sobre educação estrangeira nas universidades de Pequim, Qinhua e na
Universidade Normal de Pequim, com foco na educação europeia e norte-
americana, soviética, japonesa e coreana (WU; YANG, 1999; WANG, 1999). Em
meados da década de 1960, as principais atribuições desses institutos de pesquisa
eram, em primeiro lugar, aprender e estudar e, em segundo lugar, coletar
informações e materiais. A única publicação interna era um periódico denominado
“Tendências na educação estrangeira”, editado pelo instituto de pesquisa da
Universidade Normal de Pequim1 (LI, 1983; WU; WANG, 1999).
Em sintonia com a ideologia do Estado, marxismo, leninismo e maoísmo eram
adotados como princípios orientadores da educação comparada. As teorias e
metodologias adotadas no campo comparativo eram o materialismo histórico e a
dialética defendidos por Marx, Lênin e Mao. Outras teorias e outros métodos de
educação comparada originados no Ocidente eram amplamente rejeitados, e até
mesmo criticados.
A Grande Revolução Cultural (1966-1976) assistiu a outro estágio de
estagnação no campo da educação comparada. Tudo que era estrangeiro foi
abandonado e criticado como lixo e antirrevolucionário. Mais uma vez, a vítima
foi a educação comparada chinesa. Todas as instituições de estudo de educação
estrangeira foram fechadas e muitos acadêmicos eminentes do campo foram
perseguidos (LI, 1983). Embora existissem, os estudos fragmentários sobre
educação estrangeira na década de 1970 serviam apenas ao atendimento de
necessidades políticas (LI, 1983; CHENG, 1985; WU; YANG, 1999).
O período de 1977-1985 viveu uma fase de reabilitação e recuperação da ordem
política, econômica e social segundo as orientações dos tempos que antecederam a
Revolução Cultural, quando a educação também passou por um processo de
recuperação. A partir daí, a China desviou seu foco nacional para a economia
adotando a política de abertura em questões políticas e socioeconômicas. A partir
1. Em 1990, o periódico “Foreign Education Trends” da Universidade Normal de Pequim tornou-se o “Periódico
da Sociedade” e, em 1992, mudou seu título para “Comparative Education Research”.
676 Wang, Dong e Shibata

de 1979, a questão da mudança e da reforma da estrutura educacional entrou na


agenda nacional; em maio de 1995, decidiu-se pela reforma da estrutura
educacional. Essa mudança foi representada por uma reforma de âmbito nacional
no sistema educacional, abrangendo quase todas as esferas da educação. A educação
comparada chinesa também viveu um período de recuperação e de acentuado
desenvolvimento.
Em 1977, o Ministério da Educação organizou um seminário sobre a
recuperação da educação comparada chinesa, com a participação de acadêmicos
dos quatro institutos anteriores de pesquisa comparativa (LI, 1983). Os quatro
institutos de pesquisa não apenas foram restabelecidos como também expandidos
em termos institucionais e da área de pesquisa. Além disso, construíram-se novas
unidades ou institutos de pesquisa, como a unidade de pesquisa em educação
comparada no Instituto Nacional de Pesquisa Educacional (1979), e um setor de
pesquisa sobre educação estrangeira, no departamento de educação dirigido pelo
professor Wang Chengxu, da Universidade de Hangzhou (1979).
As duas últimas décadas testemunharam um estágio de desenvolvimento sem
precedentes na educação comparada chinesa, representado pelo estabelecimento
de princípios orientadores dos estudos comparativos nesse campo. A mudança do
foco do país na construção da economia resultou em um ajustamento dos objetivos
nacionais de educação e suas orientações de pesquisa. Em termos de educação
comparada, a afirmação de Deng Xiaoping2 – “a educação deve estar orientada
para a modernização, o mundo e o futuro” – é considerada a ideologia diretiva
para a construção da disciplina, juntamente com teorias, pontos de vista e
abordagens do marxismo e do leninismo. Além disso, as pesquisas e os estudos em
educação comparada focalizaram leis e práticas bem-sucedidas de educação global
para contribuir para a construção da modernização socialista com características
chinesas (ZHANG; WANG, 1979). Nessa linha, as diversas teorias e os diversos
métodos trazidos de fora foram introduzidos no campo e amplamente adotados
pelos acadêmicos de educação comparada, levando em conta o contexto nacional.
Os focos e os temas de interesse vêm mudando com os contextos políticos,
socioeconômicos e culturais do país. No final da década de 1980 e início da década
de 1990, tendo em mente que o duplo objetivo da educação comparada era
centralizar-se na excelência da educação e promover reforma e desenvolvimento
educacional na China, em conformidade com os planos de desenvolvimento
nacional, o foco inicial do estudo comparativo centrou-se principalmente nos
sistemas educacionais de seis países desenvolvidos – Estados Unidos, União
Soviética, Grã-Bretanha, França, Alemanha Ocidental e Japão –, incluindo desde
a educação pré-escolar até o ensino superior, e passando pelo ensino secundário
técnico e profissional, pela formação de professores e pela administração da
2. NT: Deng Xiaoping: secretário-geral do Partido Comunista Chinês, líder político do país depois da morte
de Mao e criador do “socialismo de mercado”.
Educação comparada em dois contextos asiáticos 677

educação (LI, 1983; WANG, ZHU; GU, 1985; GU, 2005). Paralelamente, o foco
de pesquisa incluiu também materiais de segunda mão sobre educação estrangeira,
para que as informações e os dados que poderiam ser úteis para a reforma e o
ajustamento da estrutura educacional do país fossem processados e analisados para
atender a necessidades práticas.
Acompanhando a defesa cada vez maior de políticas nacionais de abertura, os
intercâmbios internacionais de pessoal e de documentação foram significativamente
estimulados e acelerados. Os profissionais do campo da educação comparada tiveram
amplas oportunidades de estudar e pesquisar em países de seu interesse, utilizando
materiais de primeira mão e suas próprias experiências. A diversificação foi a
principal característica do estágio da década de 1990. Os focos e os temas da
educação comparada foram amplamente expandidos e tornaram-se mais específicos.
Além do estudo de teorias e práticas de reformas estruturais da educação em outros
países, foram abordados temas como tradição cultural e modernização educacional,
educação e economia de mercado, educação e progresso social etc. Ocorreu também
uma diversificação em termos de teorias e abordagens adotadas no campo da
educação comparada. Foram traduzidos e publicados na China inúmeros livros sobre
educação comparada, oriundos principalmente de países ocidentais. Ao mesmo
tempo, foi estimulada a adoção de nossos próprios métodos e de nossas próprias
filosofias nos estudos comparativos, que passaram a ser mais analíticos do que
descritivos. A educação comparada chinesa entrou em um estágio de estudos
temáticos. Em outras palavras, a pesquisa em educação comparada deslocou-se “de
pesquisas macro, como os estudos de sistemas, para um nível micro, isto é,
currículos, modos e métodos de ensino etc. – todos estreitamente relacionados com
a reforma e o desenvolvimento da educação na China” (GU, 2005).
A diversificação evidencia-se também nas publicações de educação comparada.
Publicações e resultados de pesquisa sobre uma grande variedade de tópicos foram
produzidos em grande número. Desde a década de 1980, as publicações nesse
campo podem ser agrupadas em quatro categorias: (1) materiais de ensino para
instituições de ensino superior, sendo as mais importantes “Educação comparada”,
organizada pelos professores Wang, Zhu e Gu, primeiro material de ensino
publicado desde 1949, sendo a primeira edição de 1982 e a segunda, de 1985; e
outra, intitulada “Pedagogias comparadas”, desenvolvida e organizada por Wu e
Yang em 1989, e revisada em 1999; (2) trabalhos de pesquisa abrangentes e
temáticos – isto é, uma breve história em três volumes sobre os estudos
comparativos de educação chinesa e estrangeira, organizada por Zhang e Wang em
1979 – um trabalho pioneiro sobre educação comparada chinesa, que visa a situar
a análise comparada da história da educação chinesa e estrangeira em um quadro
de referência amplo de contextos históricos e culturais mundiais, e que se espera
que ofereça bases teóricas e práticas para a reforma educacional na China; (3)
coletâneas e artigos traduzidos; e (4) séries, das quais as mais influentes são
678 Wang, Dong e Shibata

“Educação estrangeira”, com mais de 30 volumes entre o final da década de 1970


e a década de 1980; e na década de 1990, “Educação comparada”, com nove
volumes cobrindo uma grande variedade de tópicos, como “Introdução à educação
comparada: educação e desenvolvimento nacional”, de Gu e Xue; “História da
educação comparada”, de Wang; “Teorias comparadas de ensino”, de Wu, “Estudo
comparativo de legislação educacional em diferentes países”, de Hao e Li etc. (LI,
1983; WU; YANG, 1999).
Desde o início da década de 1990, a China ingressou em sua segunda etapa de
reformas e abertura, e acelerou seu processo de integração à comunidade
internacional liderada pelos Estados Unidos. Há um número crescente de
acadêmicos envolvidos em projetos, em colaboração com agências internacionais
e instituições educacionais de outros países. As áreas de estudo de educação
comparada foram significativamente ampliadas e mantêm-se atualizadas com o
campo internacional – isto é, perspectiva cultural de estudo, educação internacional
e nativa etc. Atualmente o desenvolvimento da educação comparada chinesa segue
duas linhas: uma de estudos acadêmicos ou profissionais, com análises em
profundidade, e outra baseada em necessidades práticas. A primeira focaliza
prioritariamente pesquisas teóricas e científicas, e tem impacto limitado sobre a
formulação de políticas e práticas; a segunda é centrada em estudos baseados em
evidências, e tem impacto maior sobre as práticas de educação atuais.
Em um número cada vez maior de países, os formuladores de políticas vêm-se conscientizando
quanto aos desenvolvimentos em educação e capacitação necessários para atender os desafios da
globalização. Os estudos de educação comparada e internacional podem oferecer as informações
necessárias aos formuladores de políticas para subsidiá-los em sua busca por práticas e inovações
educacionais necessárias para enfrentar os desafios (WILSON, 2003).

Essa situação é muito evidente na China. A prática comparativa vem-se


tornando parte indispensável dos processos de tomada de decisões em educação
no país. O Centro Nacional de Desenvolvimento de Pesquisas Educacionais e
outros departamentos de intercâmbio e cooperação internacional do Ministério da
Educação são os componentes principais que assumem a missão de desenvolver
estudos comparativos e prover informações. Principalmente no ministério circula
uma série de números especiais de periódicos, boletins ou referências em análise
comparativa e introdução descritiva de estratégias, políticas e práticas em todas as
áreas da educação em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Durante o período de recuperação, surgiram as sociedades acadêmicas do campo
de educação comparada. A Sociedade de Pesquisa em Educação Estrangeira (CCES,
mais tarde renomeada como Sociedade Chinesa de Educação Comparada) foi
fundada em 1979, e em 1984 foi admitida no Conselho Mundial. O periódico da
sociedade, “Educação estrangeira”, foi criado em 1980. O primeiro congresso
nacional da Sociedade teve lugar em 1978, com 50 participantes; e a mais recente
– a 13ª Conferência Nacional, em 2005 – contou com 260 participantes (entre os
Educação comparada em dois contextos asiáticos 679

quais acadêmicos de Hong Kong, Taiwan e estudantes de pós-graduação em


educação comparada). O número de membros aumentou de 130, em 1981, para
mais de 500, em 1989 (Beijing Normal University: <www.compe.cn>).
Na década de 1980, a educação comparada foi introduzida como disciplina
obrigatória ou eletiva nos programas de bacharelado nas universidades normais ou
nos departamentos de educação das universidades abrangentes.3 A partir de 1979,
a educação comparada foi introduzida como disciplina independente nos
programas de mestrado e doutorado (WU; YANG, 1999). A Universidade de
Hanzhou, por exemplo, introduziu em 1980 a educação comparada para estudantes
de pós-graduação, com o professor Wang Chengxu. Em um estágio posterior, foi
oferecido um curso de mestrado, em 1982, e um doutorado, em 1984, na mesma
universidade (agora denominada Universidade Zhejiang). Atualmente o título de
doutor é concedido em sete universidades, e os cursos de mestrado são oferecidos
em 30 universidades (WANG, 2006; GU, 2006).
Entre as principais publicações quinzenais – periódicos acadêmicos – estão:
“Comparative Education Research”, da Universidade Normal de Pequim (também
conhecida como “Revista da Sociedade”); “Prospect for Global Education”, da
Universidade Normal do Leste da China; “Foreign Education Review”, da
Universidade Normal do Nordeste da China; e “Primary and Secondary Education
Abroad”, da Universidade Normal de Xangai. Além disso, a versão chinesa de
“Prospects”, do Escritório Internacional de Educação da UNESCO (International
Bureau of Education – IBE) começou a ser traduzida e publicada em 1980. É cada
vez maior o número de relatórios e documentos preparados por organizações
internacionais como UNESCO, UNICEF, PNUD (Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento) e Banco Mundial que vêm sendo traduzidos para o idioma
chinês, e acrescentados ao corpo de publicações em educação comparada da China.

Japão: introdução
[Masako Shibata]
Esta parte do capítulo tenta traçar a história da educação comparada no Japão.
No caso do Japão e em outros lugares, o surgimento e a atuação do estudo
comparativo não tiveram lugar necessariamente na universidade. As ideias e a
atuação dos estudos comparativos foram esboçadas essencialmente no processo de
construção, destruição e reconstrução do Estado e da sociedade modernos. A partir
desse referencial analítico, entendo que a educação comparada como campo de
estudos é um projeto moderno. Portanto, este capítulo sobre o Japão parte de
minha compreensão sobre o desenvolvimento desse país como Estado moderno,
antes de examinar de que forma o estudo foi moldado como campo acadêmico na

3. NT: Comprehensive University – instituição de ensino superior que abrange grande variedade de áreas
científicas, de artes e humanidades e profissionais.
680 Wang, Dong e Shibata

universidade. O processo da curva abrupta da aprendizagem do Japão ao investigar


e absorver modelos estrangeiros evidenciou uma gênese lenta da história da
educação comparada no país – ou seja, esse campo de estudos foi moldado no
interior dos processos generativos e regenerativos do Japão moderno, de sua
sociedade e de sua educação.
Para confirmar essa colocação, serão discutidos diversos aspectos modernos da
educação comparada, com especial referência ao Japão: em primeiro lugar, o
conceito de Estado e de seu poder como tema central do estudo; em segundo
lugar, as noções lineares, não questionadas, de progresso; e em terceiro, as
aspirações da ciência.

O início da curva abrupta do processo


japonês de aprender com outros
Na Europa e na América do século XIX, a educação era considerada uma
instituição social importante para o desenvolvimento do país. Franceses, ingleses e
norte-americanos, por exemplo, reconheciam que encontrar e absorver a melhor
educação era uma chave e uma estratégia muito eficaz para melhorar sua própria
educação. Durante esse período, seus burocratas educacionais investiram tempo e
trabalho examinando a educação em outros países. O mesmo fizeram os japoneses:
procuraram uma educação melhor em sociedades mais avançadas fora do país, para
torná-lo rico, poderoso e esclarecido.
A curva abrupta de aprendizagem do Japão ao estudar países estrangeiros teve
início antes que se tornasse um Estado, na Era Meiji (1868-1912). Apesar da
tradição de isolamento político dos xogunatos, os senhores feudais do xogunato
Tokugawa investiam na ida de seus jovens samurais para o exterior, ou fingiam não
perceber sua ocorrência. Alguns senhores feudais, como Satsuma e Choshu
(apelidado Satcho), cujos samurais desempenharam mais tarde um papel central
na restauração Meiji, já haviam apelado ao shogunato para que reconhecesse a
necessidade de absorver conhecimentos da Europa e dos Estados Unidos.
Nesse aspecto, esses senhores feudais mostraram visão ao argumentar que, em
última instância, estariam atuando na direção do interesse nacional. Em
decorrência, 60 samurais, dos quais 37 eram de Satcho, foram para países
ocidentais, principalmente Inglaterra (34), Estados Unidos (30), França (5) e
Holanda (2) (ISHIKUZI, 1972, p. 104). No processo de construção do Estado
japonês moderno, aqueles que abriram os olhos para países estrangeiros –
exclusivamente da Europa e da América, mas não da Ásia – assumiram, na era
seguinte, a liderança dos negócios do Estado. A lista de passageiros exibe os nomes
dos principais membros da equipe do regime Meiji, tais como ministros da
Educação e professores da Universidade Imperial de Tóquio. Ao final, o próprio
xogum enviou 80 homens para a França (27), Holanda (18), Inglaterra (15), Rússia
(6), Estados Unidos (3) e outros países (ISHIZUKI, 1972, p. 104).
Educação comparada em dois contextos asiáticos 681

No processo de desconstrução do antigo regime semifeudal Tokugawa e de


construção de um Japão moderno, não foi apenas de tecnologia avançada que os
líderes Meiji sentiram que o país carecia. O que chamou sua atenção foi a
progressividade das sociedades ocidentais que, para eles, significava sociedades civis
baseadas em um senso de individualismo e igualdade social. No Ocidente, o termo
“moderno” está frequentemente associado ao avanço tecnológico e à construção
de uma sociedade democrática e igualitária (BENDIX, 1967). Nesse ponto, os
líderes Meiji viam claramente que tornar-se moderno e ser reconhecido como tal
pelos ocidentais era imperativo para que o Estado japonês reclamasse sua
legitimação e lhes impusesse sua independência política. Arinori Mori – um
samurai que havia estudado na Inglaterra e na América do Norte, e que foi
indiscutivelmente o mais influente ministro da Educação da Era Meiji (1885-1889)
– era um grande admirador dessas sociedades civis e de seus valores sociais. Tal
como outros líderes nacionais do Japão, também se inspirou profundamente na fé
cristã. O que aqueles estudantes samurais viram nas sociedades ocidentais
influenciou significativamente o formato da política educacional Meiji. Na viagem
de investigação do governo ao Ocidente, o principal enviado notou, em 1871, que:
Nada é mais importante do que as escolas para melhorar as condições sociais e extirpar os males
sociais. [Uma base nacional sólida] depende da educação, apenas da educação. [...] Nosso povo
não é diferente dos norte-americanos ou dos europeus de hoje; é tudo uma questão de educação,
ou de falta de educação (KUME, 2002, p. xiii).

Os líderes Meiji também mostraram visão ao sustentar que “coisas externas à


escola fazem diferença e governam coisas internas à escola”. Desde esse estágio, o
governo e os educadores japoneses, em graus variáveis e com diferentes abordagens,
tentaram refletir os valores sociais das sociedades ocidentais no sistema e nas ideias
educacionais do país. Especialmente a partir do final do século XIX e até meados
do século XX, ocorreram mudanças drásticas na educação, por intermédio da
absorção de ideias e sistemas que, estritamente falando, eram estranhos ao país.
Para o governo e os educadores japoneses, o principal objetivo de estudar países
estrangeiros era construir um país que consistisse em uma aproximação aceitável
do Estado moderno, da sociedade civil e da tecnologia industrial em termos norte-
americanos e europeus. O núcleo da legitimação do Estado e do orgulho nacional
era a conquista do reconhecimento do Japão pelos países ocidentais como país
dotado dessas qualidades.
Em sintonia com essa ideia, a Universidade Imperial de Tóquio lançou-se no
país como instituição marcadamente internacional, com 24 professores ocidentais
(43% do total). O governo determinou que o ensino superior fosse ministrado em
idiomas estrangeiros, e um bom domínio de idiomas estrangeiros tornou-se fator
de elitização na educação superior japonesa (DoE, 1876, p. 26; DoE, 1893, p.
112). Estudar no Ocidente passou a ser fundamental para o desenvolvimento da
682 Wang, Dong e Shibata

carreira acadêmica no Japão. Professores e estudantes de outras universidades


imperiais também receberam financiamento do governo para seus estudos no
exterior. Por meio dessas janelas institucionais para o Ocidente, a elite acadêmica
nacional foi equipada com conhecimentos avançados.
Desde então, tornou-se recorrente na política e na educação do país o tema da
restauração do equilíbrio entre a atração pelo Ocidente e o orgulho exclusivo no
eu. No período Meiji, a curva de aprendizagem japonesa havia dado passos drásticos
com o crescimento da economia, o poder militar e o sentimento de orgulho
nacional. Os professores estrangeiros foram finalmente substituídos por japoneses
que voltavam do Ocidente, e o idioma japonês tornou-se exclusivamente
dominante na instrução universitária. Desde então, a academia japonesa, em sua
maior parte, permaneceu praticamente monolíngue. Nos chamados “processos de
equiparação” era possível observar um sentimento de superioridade em relação aos
países asiáticos. Educadores eminentes sustentavam que o Japão moderno deveria
desligar-se de seus “velhos e infelizes amigos asiáticos”, como China e Coreia
(FUJITA, 1995, p. 33). Na Exposição Internacional de Filadélfia, em 1876, o
governo japonês introduziu orgulhosamente suas realizações para a audiência
ocidental: “a aprendizagem [...] deve ser a herança igualitária de nobres e plebeus,
camponeses e artesãos” e “homens e mulheres são admitidos sem distinções” (DoE,
1876, p. 20-22, 125). Era importante para os japoneses apresentar uma face digna
de crédito do Japão moderno no espelho da civilização ocidental.
Em conjunto, a educação funcionou principalmente como marco político,
social e cultural do desenvolvimento do país até tornar-se ciência. Dessa forma, no
contexto de construção de um Japão moderno, sua curva abrupta de aprendizagem
prosseguiu, em última instância, em benefício da segurança nacional. O tema
dominante do progresso continuou a ser perseguido na educação fora do país.
Europa e América do Norte haviam sido durante muito tempo os mentores do
Japão, até que, na década de 1980, a economia deste suplantou a daqueles. Mesmo
depois da derrota japonesa pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial –
ou devido a ela –, essa tendência política e acadêmica manteve seu poder.

A linearidade do desenvolvimento social e a noção de ciência


A derrocada do Estado imperial nacionalista reforçou a tendência de
ocidentalização da academia japonesa. No mundo pós-guerra havia também uma
aspiração crescente pela reconstrução de sociedades democráticas. Tanto educadores
japoneses quanto norte-americanos empreenderam a reforma drástica pela
democratização da educação japonesa por meio do reconhecimento de que um
Japão democrático era essencial não apenas para o próprio Japão, mas também para
a região da Ásia e Pacífico.
À parte a própria reforma educacional, a ocupação norte-americana deixou
influências sobre o desenvolvimento e a direção da academia japonesa do pós-
Educação comparada em dois contextos asiáticos 683

guerra. Durante a ocupação, educadores japoneses eminentes deram apoio às


autoridades norte-americanas na reformulação das ideias educacionais do Japão
pré-guerra. Essa cooperação oferecida por japoneses foi imensamente útil para as
autoridades norte-americanas e, para surpresa até mesmo dos Estados Unidos,
tiveram longo alcance (SHIBATA, 2005). Tokiomi Kaigo, por exemplo, trabalhou
com os norte-americanos na análise e na reformulação de livros didáticos.
Mantarou Kido também desempenhou um papel de liderança no Comitê de
Reforma da Educação Japonesa que, como lembra um funcionário norte-
americano, “mais do que qualquer outra agência, inclusive a da Ocupação, foi
responsável pelas realizações da educação japonesa” (TRAINOR, 1983, p. 119).
Muitos dos japoneses que criaram as bases da nova educação japonesa haviam
exercido autoridade profissional na academia japonesa do pós-guerra.
Masunori Hiratsuka era um estudante que havia cultivado sua capacidade
intelectual com o jovem professor Kaigo, na Universidade Imperial de Tóquio,
desde o período pré-guerra. Hiratsuka veio a tornar-se o líder da fundação da
Sociedade Japonesa de Educação Comparada (Japanese Comparative Education
Society – JCES, inicialmente denominada Comparative Education Society in Japan).
Nascido em uma família de clérigos, Hiratsuka inspirou-se na pedagogia de
Pestalozzi. Alegava frequentemente uma forte influência cristã em seu compromisso
com a educação. Sua devoção pela educação comparada baseava-se também, em
grande parte, em sua escolarização inicial por missionários (HIRATSUKA, 1975).
Seu trabalho no curso de graduação em Tóquio tornou-se um livro – “Kyuyaku-
seisho no kyoiku-shiso” (“Filosofia educacional do Velho Testamento”). E outra
de suas obras – “Nihon Kirisuto-shigi-kyoioku bunka-shi” (“História cultural da
educação cristã no Japão”) – chamou a atenção das autoridades norte-americanas
da ocupação, e foi traduzida por elas para o inglês. Como professor da Universidade
Kyushu e, posteriormente, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais,
Hiratsuka operou essas duas instituições como pioneiras e centros da educação
comparada no Japão. Suas realizações foram celebradas pela JCES com o Prêmio
Hiratsuka, criado em 1990.
Coincidindo com a fundação da Sociedade de Educação Comparada na
América do Norte, em 1956, aumentou também o número de estudos sobre
educação estrangeira no Japão. A cátedra de educação comparada foi criada em
Kyushu, em 1952. Seguiram-se Hiroshima, Quioto e Tóquio. A JCES começou,
em 1965, com 94 membros (em 2005, eram 827). Em 1975, a Sociedade publicou
seu próprio periódico – “Nihon Hikaku-kyoiku-gakkai Kiyou” (renomeado, em
1990, como “Hakaku-kyoiku-gaku Kenkyu”), com um corpo editorial encabeçado
por Tetsuya Kobayashi, em Quioto.
Apesar do crescimento contínuo da Sociedade, este campo de estudos não
conquistou um reconhecimento acadêmico adequado na academia japonesa. Os
educadores com enfoque comparativo carregavam a reputação marginal de
684 Wang, Dong e Shibata

especialistas em outros países. De modo geral, considerava-se que o estudo da


educação comparada oferecia apenas um resumo descritivo de questões educacionais
estrangeiras, ou era utilizado como pretexto para viagens dos acadêmicos para o
exterior (IKEDA, 1975). De fato, um extenso trabalho publicado em uma série de
dez volumes por aqueles que tinham interesses comuns na educação estrangeira –
“Sekai no kyoiku” (“Educação no mundo”) – apresentava basicamente uma
descrição, e não uma análise, de políticas e sistemas vigentes no exterior (KIDO et
al., 1958). Os acadêmicos da educação comparada estavam cientes dessa reputação,
de práticas desse tipo, e dos problemas que precisavam enfrentar. O JCES propôs
como principal meta no primeiro congresso, em Hiroshima: “como introduzir a
educação comparada no ensino universitário”. Desde então, a sociedade lutou para
tornar o campo de estudos uma disciplina do ensino universitário autorizada pela
academia. A Sociedade acreditava que não seria possível lidar com o baixo nível de
trabalho em educação comparada sem que esta tivesse estabelecido sua própria
metodologia (IKEDA, 1975). Nesse período, admitia-se no Japão e em outros
lugares que a pesquisa educacional se unisse à ciência. Kido afirmava que o propósito
da pesquisa é conhecer os fatos (KIDO, 1958). No entanto, esses debates populares
sobre ciência e metodologia não contribuíam, por si sós, para um desenvolvimento
inovador no Japão, onde os estudos se concentravam na introdução das teorias e
das metodologias de Hans, Kandel, Bereday, King, Holmes e outros (ANDO, 1965;
IKEDA, 1969). Em decorrência, a educação comparada como campo acadêmico
no Japão não havia ultrapassado seu estágio infantil, a despeito da atenção crescente
a esse campo no mundo do pós-guerra (SUZUKI, 1958).
Apesar de tudo, nos círculos de educação comparada ao redor do mundo, a
JCES, como organização, havia crescido de forma sólida e tornara-se, em 1970,
membro fundador do World Council of Comparative Education Societies (Conselho
Mundial de Sociedades de Educação Comparada – WCCES). Em 1980, a
Sociedade conseguiu organizar o Quarto Congresso da WCCES, em Tóquio. O
tema principal do congresso foi “Tradição e inovação em educação”. Por referência
ao tema principal, a questão da educação moral foi proposta como subtema. No
Japão do pós-guerra, os educadores mal conseguiam discutir questões como
tradição e educação moral sem que se lembrassem da educação “errada” do pré-
guerra e sua rejeição pelos Estados Unidos após 1945. Uma vez que a nova educação
japonesa partia da denúncia da educação do pré-guerra que havia sido controlada
durante longo tempo pelo Estado imperial, o poder do Estado permaneceu como
tema dominante em praticamente todos os campos do estudo educacional no
período pós-guerra. Para os japoneses em geral, essas questões recordam o
nacionalismo etnocêntrico do pré-guerra e, para algumas pessoas, constituem um
potencial para seu ressurgimento. Os temas do congresso de Tóquio refletiram a
preocupação dos japoneses com essa discussão, especialmente forte antes do fim
da Guerra Fria, mas nunca inteiramente esquecida.
Educação comparada em dois contextos asiáticos 685

Houve também um legado da guerra e da ocupação para o desenvolvimento da


educação comparada no Japão. Na década de 1980, as indústrias japonesas haviam-se
desenvolvido em moldes capitalistas, o suficiente para alarmar até mesmo os Estados
Unidos, que tinham colocado o Japão nesse caminho depois da guerra. Enquanto os
líderes norte-americanos sentiam sua nação em risco, o Japão alcançara uma posição
importante na economia mundial, particularmente na região do Pacífico. Supunha-
se de modo geral que o padrão educacional e de aplicação de recursos humanos no
Japão constituía uma base sólida para seu sucesso miraculoso no desenvolvimento de
indústrias e da economia nacional (ASIAN DEVELOPMENT BANK, 1991). Os
funcionalistas-estruturalistas sugeriam também que o crescimento econômico era
contingente ao estoque de capital humano, e que a qualidade do capital humano
dependia da qualidade da educação. Na década de 1980, a educação japonesa havia
atraído muita atenção em todo o mundo (KING, 1986). Ao lado de outros centros
de educação comparada, Tóquio conquistou o privilégio de organizar um congresso
mundial depois do congresso de Londres (JCES, 2004).
Ao mesmo tempo, a década de 1980 foi também um período em que se
esperava que o Japão desse uma contribuição maior à comunidade internacional
do que havia dado anteriormente. O Ad-hoc Education Reform Council (1984-1987)
(Conselho ad hoc de Reforma Educacional), convocado pelo governo Nakasone
(1983-1987), pedia a internacionalização da escola e da universidade no Japão.
Com base no plano governamental de 100 mil estudantes estrangeiros nos campi
japoneses, houve a admissão de um número crescente de estudantes estrangeiros.
Em consonância, a educação internacional popularizou-se, e cursos com esse nome
ou com identificação semelhante foram rapidamente criados nos currículos
universitários. Em 1993, foram oferecidos em todo o país 168 cursos de educação
comparada internacional em 62 universidades e três instituições de pesquisa
(UMAKOSHI, 1996).
Devido à posição que o Japão ocupava no mundo em termos econômicos,
políticos e educacionais, o olhar dos japoneses começou a deslocar-se – não
literalmente, mas culturalmente – do Ocidente para o Oriente. Com o crescimento
da contribuição monetária do Japão para instituições internacionais, tornou-se
disponível para os japoneses um número maior de vagas do que existia
anteriormente. Nesse contexto, governo e educadores consideravam útil e
importante oferecer a experiência japonesa como modelo, particularmente para
países em desenvolvimento. Embora temas e painéis sobre educação ocidental ainda
fossem dominantes nas conferências da JCES, desde o final da década de 1980 era
possível observar uma expansão de temas e painéis asiáticos (JCES, 2004). A partir
desse período, essa tendência para o Oriente persistiu na educação comparada no
Japão. Um sinal característico é que, com exceção de um sobre a Alemanha e outro
sobre a Austrália, todos os demais livros agraciados com o Prêmio Hiratsuka (desde
o primeiro, em 1990, até o 15o, em 2004) referiam-se à Ásia.
686 Wang, Dong e Shibata

De modo geral, essa interpretação sobre a educação japonesa deve muitos


insights à tradição intelectual da educação comparada desenvolvida na Europa. Em
primeiro lugar, os japoneses aprenderam que era importante para o Estado assumir
a liderança na educação do povo, estabelecendo seu próprio modelo. Esse caminho
conduziria o país para sua estabilidade política e social, sua prosperidade econômica
e sua segurança. Aprenderam também que é muito útil e muito importante
examinar outros modelos, o que permitiria ao governo e aos educadores saber o
que seria uma educação melhor ou mais avançada; e os dados e sua apresentação
sistemática contribuiriam para demonstrar esse ponto de vista.
A educação comparada é, de fato, um projeto moderno (COWEN, 1996).
Os japoneses perseguiram a aspiração das ideias de liberalismo, democracia,
sociedade civil, ciência e desenvolvimento. Embora sua crença nesses valores
tenha acentuado sua curva abrupta de aprendizagem, a busca dessas ideias e a
crença nelas como ato acadêmico pareceram ser lineares, e não suficientemente
complexas. Um foco vigoroso em coleta de dados, a concentração em descrições
e nas aspirações simples do positivismo – o que pode ser chamado práticas de
“um erro epistemológico” (COWEN, 1999; COWEN, 2002) –, há muito tempo
também são tratados como problemas no Japão. Apesar disso, aparentemente
não foram abordados com seriedade. Ao lidar com as demandas por um novo
conhecimento, esse campo de estudos no Japão é visto como incapaz de superar
seu anacronismo (JCES, 2004). Ainda é um projeto moderno. Talvez tenha
omitido um velho tema: a educação como práticas culturais. Certamente a adesão
a noções lineares de conhecimento e desenvolvimento social não será útil para
chegar a um entendimento com o padrão mutante da educação formal em um
mundo em processo de globalização.

Considerações finais
O que é interessante (entre outras coisas, nesses relatos justapostos) é a maneira
pela qual ocorre uma mescla de educação comparada como ação e como modo de
pensar. Evidentemente, esses temas podem ser encontrados em toda parte (por
exemplo, nos Estados Unidos ou na França), mas as histórias dramáticas de
modernização e remodernização na China e no Japão tornam o tema muito complexo.
Também fascinante é a forma pela qual as políticas de guerra e revolução afetam
o que é visto como educação comparada. Essas histórias potenciais são diferentes
das mudanças identificadas por alternâncias entre escolas de pensamento, de
disputas sobre método, de conflitos a propósito do declínio e da queda de
departamentos ou de periódicos, que são parte integrante da literatura sobre
educação comparada no norte da Europa e da América do Norte.
Em terceiro lugar, com base nesses relatos (justapostos acima), um tema
fascinante para pesquisas futuras é a questão: o que acontece quando é visível e
forte a associação entre educação comparada e Estado? De que forma o Estado
Educação comparada em dois contextos asiáticos 687

como ator comparado começa a afetar a educação comparada como forma de


pensar (e vice-versa)? Talvez não haja um vice-versa.
Assim, há também uma questão final e permanentemente relevante a ser
formulada que, de certa forma, subordina todos os temas tratados acima. Uma das
questões mais importantes para trabalhos futuros é: por meio de quais lentes ou
(utilizando outro vocabulário) por meio de quais categorias descritivas poderá ser
construída uma interpretação sobre a educação comparada no Leste da Ásia?

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76

IDENTIDADES CULTURAIS NACIONAIS, ANÁLISE


DE DISCURSO E EDUCAÇÃO COMPARADA

Eleftherios Klerides

Introdução
As noções de nacionalidade e de identidade cultural têm sido há muito tempo
temas fundamentais da educação comparada (EC) (MASON, 2006; NINNES;
NURNETT, 2004; TIKLY, 1999). Na literatura produzida nesse campo pelo menos
desde o início do século XX, essas noções aparecem seja como hipóteses subjacentes,
seja como objetos de estudo. São parte importante do capital profissional e
intelectual do trabalho de educadores comparativistas, a ponto de se afirmar que
estão entre ideias-unidade do campo (COWEN, 2002a; COWEN, 2002b).
Recentemente, Cowen (2002b, 1996) fez um apelo por uma revisão na
abordagem dessas ideias-unidade na EC. A necessidade de renegociá-las faz parte
de um apelo mais amplo pela renovação do campo no novo milênio (NINNES;
MEHTA, 2004; KAZAMIAS, 2001; CROSSLEY, 2000; BROADFOOT, 2000;
WATSON, 1999). Acredita-se que esse apelo seja determinado por um mundo
transformado ou em transformação – nas palavras de Kazamias, “o novo cosmo da
modernidade tardia” (KAZAMIAS; 2001, p. 439), – e, principalmente, pelo que
é visto como uma necessidade premente de incorporar à pesquisa educacional
comparativa as novas e complexas visões de identidade, cultura e nação, que
emergiram ou estão emergindo principalmente por meio do pós-estruturalismo,
do pós-modernismo e do pós-colonialismo (NINNES; MEHTA, 2004; NINNES;
BURNETT, 2004; COWEN, 2002b; TIKLY, 1999).
Ainda que o mundo tenha-se transformado ou esteja em transformação, isso
não significa necessariamente que as perspectivas mais antigas sobre essas ideias-
unidade devam ser automaticamente abandonadas. Sua renegociação não implica
o desenvolvimento de um pensamento a-histórico. Antes, a prática de sua
redefinição deve ser vista “como consolidação e maturidade que constroem de
forma cumulativa, confiante e crítica a partir de realizações passadas” (CROSSLEY,
2000, p. 239). Assim, a interpretação histórica desses conceitos do campo deve ser
revista, para determinar quais ideias podem ser mantidas, quais devem ser
readaptadas e quais devem ser descartadas.
Este capítulo procura contribuir para a reconceituação dessas ideias-unidade da
EC, por meio de um envolvimento crítico tanto com as tradições do campo quanto

689
690 Klerides

com os novos modos de conceber nacionalidade e identidades nacionais. Parte-se


de uma análise da literatura histórica do campo, buscando delinear de que forma
esses conceitos foram concebidos, e que implicações sua compreensão acarreta para
o estudo da educação em diferentes contextos.
Segue-se um esboço da emergência de novas perspectivas sobre identidade e
nação em outras áreas de estudo, tais como estudos culturais, sociologia e
sociolinguística. Argumenta-se que essas novas perspectivas tornam premente a
revisão do pensamento sobre o modo pelo qual a EC aprecia essas noções e o
surgimento de uma nova agenda de pesquisa em educação comparada, a partir de
sua rearticulação. Sugere-se, então, que a análise do discurso é uma abordagem útil
para colocar em prática as novas prioridades de pesquisa, e para alcançar novas
complexidades na compreensão da formação de identidade nas práticas escolares.
O principal argumento apresentado aqui é que a análise do discurso pode ser uma
ponte teórica e metodológica no estudo da identidade e da nacionalidade em contextos
culturais diversos. O capítulo termina com um apelo por um olhar para além dos
aspectos econômicos da educação e da globalização em direção a um tema de análise
cultural e histórico, reinventado, mas em sintonia com as novas visões
emancipatórias sobre nacionalidade e identidade cultural.

Nacionalidade e identidade cultural


no cânone da educação comparada
As noções de identidade, nação e cultura, e seu estudo em diferentes contextos,
sempre foram um tema central em uma vertente particular da EC. Por exemplo,
no trabalho de Kandel (1933), Mallison (1975) e Schneider (1966), encontrava-
se a ideia de “caráter nacional”. Hans (1958) também enfatizou, por meio de seus
fatores (principalmente raça, religião, idioma e filosofias políticas), um conceito
ampliado de identidade e cultura nacionais. Um referencial cultural caracterizou
também a afirmação de Sadler de que “coisas externas à escola fazem ainda mais
diferença do que coisas internas à escola” (SADLER, 1964, p. 310).
Subjacente a essa literatura histórica anterior deste campo havia certo conjunto
de alegações sobre a natureza da nacionalidade e da identidade nacional,
frequentemente percebidas como entidades naturais e objetivas, que, para usar os
termos de Gellner, existiam “na própria natureza das coisas” (GELLNER, 1983,
p. 48). Essa suposição reflete-se na literatura como uma tendência a escrever e falar
sobre esses conceitos com um vocabulário organicista e naturalista. Um exemplo
dessa tendência encontra-se em Hans, que diferenciou nações maduras e imaturas,
e fez uma analogia entre comunidades nacionais e seres humanos, da seguinte
forma: “o crescimento das nações pode ser comparado ao crescimento de um
indivíduo” (HANS, 1958, p. 11). O paralelismo entre um grupo nacional e um
ser humano manifesta-se ainda no trabalho de Kandel, que também atribuiu a cada
nação, e a todas elas, características e qualidades similares às de uma pessoa.
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 691

Nacionalidade, escreve ele, “é para um povo o que a personalidade é para um


indivíduo, a expressão de sua vida e de sua cultura” (KANDEL, 1933, p. xxiv).
Havia também uma tendência nessa literatura, e particularmente no trabalho
de Mallison (1975), de tomar nacionalidade como equivalente a expressões como
“consciência nacional” e “sentimentos nacionais”. Essa terminologia revela a forma
pela qual ele e outros pesquisadores com enfoque comparativista pensavam sobre
identidades: eram essências interiores e inatas. Esse pensamento é particularmente
dominante em seus pontos de vista sobre a noção de caráter nacional. Mallison,
por exemplo, o definia como “uma constituição mental fixa”, um determinante
do comportamento nacional, e não uma forma de comportamento nacional. O
autor também atribui sua origem “à existência de um conjunto de atitudes
relativamente permanentes nesses valores primordiais – comuns a uma nação”
(MALLISON, 1975, p. 14). Em seus escritos sobre o conceito, Kandel,
reconhecendo o perigo das generalizações, o define como uma forte possibilidade
de comportamento coletivo com certas formas específicas. Em suas palavras, “certos
grupos tendem a agir de modos diferentes dos de outros grupos de acordo com sua
história, suas tradições, seu ambiente, seus ideais e seus pontos de vista intelectuais”
(KANDEL, 1933, p. 23). Ainda assim, não conseguiu escapar de generalizações
com caráter de essência, como “o inglês não gosta de pensar ou formular planos de
ação” e “mais do que qualquer indivíduo de outra nacionalidade, o inglês acredita
que um grama de prática vale um quilo de teoria” (KANDEL, 1933, p. 25).
As afirmações acima ilustram também uma leitura específica do cosmo. Aos
olhos desses educadores com enfoque comparativista, o mundo estava
inevitavelmente e fatalmente organizado em uma liga de nações singulares e
independentes, cada uma com identidade, cultura e destino diferenciados. O
trabalho de Mallison também indica essa leitura: escreveu que toda e qualquer
nação é “senhora de seu próprio destino, não devendo obediência a qualquer outro
poder fora ou acima dela, e livre para estabelecer a si mesma do modo que considere
mais adequado” (MALLISON, 1975, p. 265). Na literatura estudada, no entanto,
não se verificou consenso sobre em que consistia uma nação ou uma identidade
nacional. Pelo contrário: os educadores comparativistas frequentemente definiam
a si mesmos com base em combinações extraídas de critérios étnicos e cívicos.
Afirmava-se que a nacionalidade era determinada por elementos etnoculturais, tais
como um idioma comum, uma religião comum, experiência histórica coletiva, um
conjunto compartilhado de tradições e costumes ou uma descendência comum;
ou por características político-territoriais, tais como um território comum, um
corpo de valores e aspirações cívicas comum a todos os cidadãos, ou uma
ancestralidade de instituições e leis comuns.
Os aspectos essenciais das identidades e nacionalidades culturais eram
entendidos ainda como presentes desde o nascimento, unificados e contínuos,
imutáveis em meio a todas as mudanças, eternos. Citando novamente Mallison, o
692 Klerides

caráter nacional era descrito como “a totalidade das disposições de pensar, sentir e
comportar-se peculiares a certo povo e nele disseminadas, e manifestadas com maior
ou menor continuidade ao longo das gerações” (MALLISON, 1975, p. 14). Os
exemplos em seu trabalho multiplicam-se: a identidade de uma sociedade “é o
modo de vida total daquela sociedade” e “compreende tudo o que é herdado”; “é
uma expressão de continuidade, uma percepção da extensão de um povo no tempo,
em número e no espaço”; e “baseia-se em uniformidade de costumes e maneiras
com prolongada continuidade” (MALLISON, 1975, p. 7, 263-264).
Resumindo até aqui, as noções em discussão eram vistas nessa literatura comparada
inicial como entidades essenciais, homogeneizadas, fixas e perenes. Sua concepção
específica é uma manifestação da colonização da EC pelo paradigma chamado de
primordialista e perenialista no estudo da nacionalidade e do nacionalismo
(ÖZKIRIMLI, 2000; SMITH, 1999). Por outro lado, essa leitura da identidade
nacional e da nação produziu e legitimou: (a) certos pontos de vista sobre a natureza
da educação e seus objetivos; (b) a forma pela qual eram moldados os sistemas
nacionais de educação e o conhecimento educacional; e, portanto, (c) certo tipo de
educação comparada com ênfases e prioridades particulares em termos de pesquisa.
Uma vez que nação e identidade eram vistas como unidades essenciais, eram
por outro lado, consideradas como existentes independentemente das práticas
escolares; e se existiam antes dessas práticas, um sistema nacional de educação não
era mais do um mero reflexo delas. A afirmação de Kandel ilustra esse ponto: “cada
sistema nacional de educação é característico da nação que o criou, e expressa algo
peculiar ao grupo que constitui aquela nação” (KANDEL, 1993, p. xxiv). Hans
reitera Kandel, enfatizando que os sistemas educacionais “são a expressão exterior
do caráter nacional e, como tal, representam a nação em contraste com outras
nações” (HANS, 1958, p. 9).
Assim, o objetivo principal da educação nacional era proteger, preservar e
transmitir a chamada herança cultural de uma nação e, por meio dessa herança,
promover entre os cidadãos um sentimento de pertencimento nacional, garantindo
a continuidade cultural da nação. Um exemplo dessa linha de pensamento é
oferecido por Mallison: “é por meio da educação dos imaturos que cada sociedade
luta para proteger e perpetuar suas tradições e aspirações” (MALLISON, 1975, p.
8). Da mesma forma, Kandel fala de educação em termos de “transmissão da
herança cultural que foi considerada necessária para a preservação da sociedade”
(KANDEL, 1933, p. 365). Sob esse ponto de vista, a educação era uma instituição
na qual as crianças de um país eram assimiladas na cultura nacional e aprendiam
a forma de ser nacionalmente. Essa forma de socialização nacional baseava-se na
suposição de que as crianças já eram sujeitos étnicos, mas que sua realização integral
deveria ser alcançada pela educação.
Uma vez que eram concebidas como entidades determinadas, as mentalidades
e tradições nacionais e sua trajetória histórica tendiam a ser tratadas na EC como
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 693

“as coisas fora da escola” (SADLER, 1964, p. 310), “forças espirituais e culturais
intangíveis, impalpáveis” (KANDEL, 1933, p. xix) ou os fatores (HANS, 1958)
que afetam a configuração da educação. Colocado de outra forma, a escola de
pensamento de forças e fatores abordava o contexto cultural e a história do contexto
cultural no qual a educação estava inserida em termos de uma narrativa causal
(COWEN, 2002a; KAZAMIAS, 1961): eram os determinantes e as causas de
certas formas de conhecimento e de sistemas educacionais nacionais.
Assim, como forma de pesquisa e abordagem ao conhecimento, sob o impacto
das alegações nacionalistas do primordialismo e do perenialismo, a EC era concebida
como uma episteme multidisciplinar dedicada ao estudo da educação em seu contexto
cultural e histórico mais amplo (KAZAMIAS, 1961, 2001; COWEN, 1996, 2002a).
Esse ponto talvez seja mais ilustrado com maior clareza pelo trabalho de Mallison.
Esse autor definia a pesquisa e o estudo comparativos em educação como
um exame sistemático de outras culturas e outros sistemas educacionais derivados dessas culturas,
para descobrir semelhanças e diferenças, causas subjacentes às semelhanças e diferenças, e por
que (e com quais resultados) eram experimentadas soluções diferentes para problemas que
frequentemente são comuns a todos (MALLISON, 1975, p. 10).

Essa vertente epistêmica do campo tentava especificar os contextos culturais que


sempre são relevantes para a modelação de todos os sistemas educacionais e de todo
o conhecimento educacional. Encontrava-se, entretanto, à margem da tendência
dominante da EC, que se preocupava principalmente com a modernização e o
desenvolvimento de sistemas educacionais dentro de uma abordagem funcionalista
e positivista mais ampla (KAZAMIAS, 2001; COWEN, 1996).
Em meados da década de 1970 e início da década de 1980, o campo sofreu uma
mudança de rumo (KAZAMIAS, 2001; TIKLY, 1999; COWEN, 1996). Seu
interesse centrava-se em colonialismo, neocolonialismo e imperialismo cultural,
examinando padrões educacionais nas antigas colônias, a partir de uma perspectiva
da teoria de dependência. Nesse paradigma (CARNOY, 1974; ALTBACH; KELLY,
1978; WATSON, 1982), a pesquisa comparativista em educação focalizava, entre
outras coisas, a especificação das formas e dos conteúdos das identidades culturais
criadas pelas práticas escolares em contextos coloniais (COWEN, 1996). No entanto,
ocupando-se principalmente de facetas econômicas do subdesenvolvimento, “não se
prestava facilmente a uma análise de questões de raça, cultura, idioma e identidade”
(TIKLY, 1999, p. 609).
Apesar disso, o que foi comum a todos os trabalhos produzidos nesse período
foi a visão sociológica da educação como mecanismo de reprodução cultural. A
manifestação mais explícita dessa tendência na EC é o livro de Brock e Tulasiewicz
(1985), no qual o conceito de identidade cultural foi utilizado para explicar o papel
da educação na reprodução de normas culturais. Na introdução desse livro, os
organizadores escrevem a respeito dessa noção: “a identidade cultural do grupo é
694 Klerides

mantida por referência constante ao reservatório de sua cultura” e “nasce de uma


herança comum” (BROCK; TULASIEWICZ; 1985, p. 3-4).
Assim sendo, embora formas de identidade na educação tenham-se tornado
unidades de análise comparativa, como destaca a afirmação acima, as noções de
identidade e nação continuaram a ser percebidas como entidades essenciais e fixas
(NINNES; BURNETT, 2004; TIKLY, 1999). Em decorrência, esse novo corpo
de literatura comparada tomou como inquestionáveis as categorias modernistas de
colonizador e colonizado – e as reproduziu e perpetuou. Tratou as relações entre
essas categorias sem problematizá-las, e necessariamente como uma relação de
onipotência, negligenciando o exame dos efeitos do colonialismo sobre as
identidades das nações colonizadoras. Deu pouca atenção também a heteroglossias,
antinomias e tensões em relação à formação de identidade, tanto nos contextos
coloniais quanto nos metropolitanos; à resistência cultural dos povos colonizados
aos planos culturais imperialistas e à hibridização cultural como consequências
desses conflitos; e à fragmentação da experiência colonial em termos de gênero,
classe, etnia e outras linhas. Ou seja, fracassou justamente no exame de todas as
questões que atualmente são consideradas como características das noções de
identidade nacional e de nacionalidade.

Novas perspectivas sobre nação e identidade


Na segunda metade do século XX, surgiram diversos trabalhos influentes nos
campos da ciência política, história e sociologia (KEDOURIE, 1960; GELLNER,
1964, 1983; ANDERSON, 1983; HOBSBAWM; RANGER, 1983), sinalizando
uma mudança de rumo no estudo do nacionalismo: “de uma noção primordialista
e essencialista de nação, para a visão atualmente dominante de nação, como sendo
construída ou inventada” (ELEY; SUNY, 1996, p. 6). Alguns acadêmicos (SMITH,
2001, 1999) falam dessa mudança em termos do surgimento de um novo paradigma
de explicação da natureza e da origem das nações – o chamado paradigma
modernista que, à parte a tese de construção social da nacionalidade, defende sua
modernidade. Outros (HALL, 1992) veem essa mudança como o início do processo
emancipatório de desconstrução de identidades e culturas nacionais.
Mais recentemente, durante a década de 1990, surgiu um novo conjunto de
abordagens (BHABHA, 1990; HALL, 1992, 1996b; BILLIG, 1995;
WOODWARD, 1997; WODAK et al., 1999). Essas abordagens pós-modernas e
pós-coloniais não representam uma categoria explanatória diferenciada de nação,
mas empregam um modo construtivista de pensamento para sustentar e
operacionalizar os argumentos modernistas (SMITH, 1999). Para Eley e Suny,
essas recentes abordagens e técnicas metodológicas deslocaram o estudo da
nacionalidade e do nacionalismo para “o âmbito do discurso e da geração de
significados” (ELEY; SUNY, 1997, p. 6). Especificamente, tentam explicar de que
forma as nações e suas identidades são socialmente construídas em dois sentidos:
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 695

(a) quais meios e recursos particulares são empregados para construí-las; e (b) quais
elementos constituem a metanarrativa da nação. A tarefa dos parágrafos seguintes
é oferecer um panorama desses desenvolvimentos mais recentes no estudo do
nacionalismo.
O ponto de partida da discussão é a tese de Anderson de nações como
“comunidades políticas imaginadas”. Para ele, todas as nações são necessariamente
imaginadas, porque se estendem para além da experiência imediata – abrangem
muito mais pessoas do que aquelas das quais seus membros têm conhecimento
pessoal, e muito mais lugares do que já visitaram. Como abstração, a nação é
imaginada como finita, delimitada, autônoma e horizontalmente uniforme:
A nação é imaginada como limitada, porque mesmo a maior delas, envolvendo talvez um bilhão
de seres humanos, tem fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais situam-se outras
nações [...] É imaginada como soberana porque [...] as nações sonham em ser livres e, caso
estejam submetidas a Deus, essa submissão é direta[...]. Por fim, é imaginada como uma
comunidade, porque, independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que nela
possam prevalecer, a nação é sempre concebida com uma camaradagem profunda e horizontal
(ANDERSON, 1983, p. 7).

Da mesma forma, a identidade nacional pode ser concebida como um


constructo mental – um constructo que cria um senso de solidariedade entre um
grupo de pessoas, promovendo a noção de fazer parte de uma imagem comum e
compartilhá-la; um constructo que enfatiza a delimitação dessa imagem, oferecendo
uma unidade imaginária contra outros povos que existem para além de suas
fronteiras, e em relação aos quais o grupo é percebido como autônomo; e um
constructo pensado como uma unidade, escondendo a heterogeneidade e as
distâncias reais existentes no interior de suas fronteiras.
A releitura de nações e identidades como entidades imaginadas não nega sua
realidade e seus efeitos materiais. É, antes, um reconhecimento do fato de que são
contingentes às práticas humanas, sendo construídas na interação entre seres
humanos e seu mundo, e a partir dessa interação. Assim, nas palavras de Anderson,
nações e nacionalidades “são diferenciadas não por sua falsidade/genuinidade, e
sim pela representação com a qual são imaginadas” (ANDERSON, 1983, p. 6).
Tal como Anderson, Hall também aponta que a identidade é imaginada como
uma forma de solidariedade. O autor prossegue sugerindo que isto se dá por meio
de “um recurso discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade”
(HALL, 1992, p. 297). Assim, por mais diferentes que sejam os membros de uma
nação em termos de classe, gênero, região, etnia, idade ou raça, esse recurso de
identidade retrata todos como possuidores das mesmas características e pertencentes
à mesma família nacional. Isso significa que a unidade, que todas as identidades
nacionais tratam como fundamental, não é uma estrutura natural, mas sim
imaginativa, de solidariedade, efetivada por meio do exercício de certas formas de
poder simbólico.
696 Klerides

Embora a diversidade dentro da nação seja frequentemente reprimida e


subestimada nas identidades nacionais, diferenças internacionais tendem a ser
destacadas e enfatizadas (WOODWARD, 1997; BAUMAN, 1997; HALL, 1996a;
HALL, 1996b; BILLIG, 1995). Dessa forma, qualquer identidade tem a ver com
imaginar um Eu nacional tanto quanto com imaginar os Outros em relação à nação.
Como coloca Hall, “não há identidade que exista sem uma relação dialógica com
o Outro. O Outro não é externo, mas também interno ao Eu, à identidade”
(HALL, 1996b, p. 345). Em uma perspectiva estruturalista, a presença da alteridade
no imaginário nacional é crítica para a construção da uniformidade nacional: “é
apenas por meio da relação com o Outro, da relação com o que não é, exatamente
com aquilo que falta, com o que tem sido chamado de externo constitutivo, que o
significado ‘positivo’ de qualquer termo – e, portanto, sua identidade – pode ser
construído” (HALL, 1996a, p. 4-5).
Se nações e identidades nacionais são um complexo imaginário de ideias que
contém, no mínimo, os elementos definidores de unidade e diferença, a imagem é
real, à medida que os cidadãos estão convencidos dela, acreditam nela e identificam-
se emocionalmente com ela. A questão aqui é de que forma a comunidade
imaginada chega à mente daqueles que estão convencidos a seu respeito – de que
forma é comunicada e constituída em representação. De fato, segundo Hall, as
nações não são apenas formações políticas, mas também sistemas de representações
culturais. É por meio desses sistemas que um povo representa, interpreta e produz
conhecimento sobre si mesmo.
[...] identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, são formadas e transformadas
no interior de representações e em relação a elas. Só sabemos o que é ser inglês devido à maneira
pela qual a qualidade de ser inglês, como conjunto de significados, veio a ser representada pela
cultura nacional inglesa. Uma nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz
significados – um sistema de representação cultural. Uma nação é uma comunidade simbólica,
e é isso que explica seu poder de gerar um senso de identidade (HALL, 1992, p. 292).

Bhabha assinala que um dos modos de representação que têm sido utilizados
para produzir e fazer circular a imagem de nação é a narrativa. “Nações, tal como
narrativas”, escreve ele,
têm suas origens perdidas nos mitos de tempo, e só reconhecem inteiramente seus horizontes com
os olhos da mente. Essa imagem de nação – ou narração – pode parecer impossivelmente romântica
e excessivamente metafórica, mas é dessas tradições de pensamento político e linguagem literária
que a nação emerge como uma ideia histórica poderosa (BHABHA, 1990, p. 1).

Em um trabalho mais recente, Benwell e Stokoe enfatizam o mesmo ponto ao


escrever que “a prática da narração envolve o fazer da identidade” (BENWELL;
STOKOE, 2006, p. 138). Essa perspectiva é frequentemente relacionada à noção
de identidade narrativa, vista como a identidade de um personagem – o Eu nacional
– em um conto” (WODAK et al., 1999; MARTIN, 1995). A quintessência de tal
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 697

identidade é o fato de a nação extrair sua identidade do enredo do conto, e não de


ser descrita nele.
Em todas as abordagens acadêmicas que destacam as narrativas como locais do
trabalho de construção de identidade, há também uma ênfase na multiplicidade
de identidades. Nas palavras de Özkirimli, “os diferentes membros de uma nação
promovem construções de nacionalidade diferentes, frequentemente conflitantes”
(ÖZKIRIMLI, 2000, p. 228). Assim, “não há uma narrativa singular da nação”
(ÖZKIRIMLI, 2005, p. 169). No entanto, a ideia de múltiplas identidades não se
refere simplesmente à articulação de narrativas diversas por grupos sociais
diferentes. Refere-se também à construção de diferentes narrativas de acordo com
o tipo de ocasião de comunicação social na qual são contadas, e com a posição
histórica e institucional de seu(s) narrador(es). A concepção de identidades como
entidades situacionais é captada de maneira mais completa na formulação de
Wodak e colegas de que “não existe algo como uma identidade nacional. Pensamos
que, em vez disso, diferentes identidades são construídas de acordo com a
audiência, o contexto, o tópico e o conteúdo substantivo” (WODAK et al., 1999,
p. 4). As várias versões de identidade nacional em uma determinada sociedade estão
em relações de adequação e em relações de complementaridade, tradução, oposição
e exclusão entre si.
Diversas implicações para a teorização sobre identidade e nação podem ser
destacadas em relação a esta tese de pluralidade. Em primeiro lugar, sua construção
pode ser vista como um processo contestado, e esses próprios conceitos como arenas
de contestação (ÖZKIRIMLI, 2005; SMITH, 1999). Em segundo lugar, são
marcados por fragmentação, contradições e hibridização. Compõem-se de fragmentos
narrativos parciais e diversos, do Eu e dos Outros, que frequentemente tendem
para direções diferentes. Assim, para Martin, “o Eu é um corpo misto” (MARTIN,
1995, p. 17); para Hall, as identidades culturais são fragmentadas e fraturadas
(HALL, 1996a, p. 4); para Calhoun, as nações são “objetos heterogêneos de análise”
(CALHOUN, 1997, p. 21); e para Bauman, toda identidade de grupo é “uma
identidade de palimpsesto” (BAUMAN, 1997, p. 53). Em terceiro lugar, identidades
são entidades ambivalentes, e há vários tipos de ambivalência. Bhabha (1990)
sustenta que as identidades oscilam entre tradição e modernização. Segundo Hall
(1990, 1992), estão situadas ambiguamente entre passado e futuro, pertencendo
tanto ao futuro quanto ao passado. Billig (1995) fala sobre a tensão entre
postulações particularistas e universalistas de nação. Em seus vários trabalhos, Smith
(2003, 1991) sugere, por fim, que elas flutuam entre realidade e ficção, cultura e
política, inclusão e exclusão.
Além disso, identidades mudam de forma não só no espaço, através de campos
sociais, instituições e ocasiões, mas também no tempo: “a identificação nacional, e
o que se pensa que ela implica, pode mudar e deslocar-se no tempo, mesmo no
decorrer de um período muito curto” (HOBSBAWN, 1992, p.11). Da mesma
698 Klerides

forma, Bauman vê a identidade “como uma tarefa inconclusa, ainda não terminada”,
um conceito que “está fadado a permanecer não apenas eternamente irrealizado,
mas também para sempre precário” (BAUMAN, 2004, p. 20-21). Hall também
fala da identidade como uma formação em estado de fluxo constante, e da
construção de identidade como “um processo sempre incompleto – sempre ‘em
processo’. A identidade não é determinada, no sentido de que sempre pode ser
ganha ou perdida, mantida ou abandonada” (HALL, 1996a, p. 2). Hall enfatiza
ainda que as mudanças na forma e no tipo de uma identidade sempre estão
associadas às “suas condições determinadas de existência”, entre as quais se incluem
recursos materiais e simbólicos.
Se a identidade nacional é vista agora como produto de representação narrativa,
a questão é “o conjunto de ideias e compreensões que veio a cercar o significante
‘nação’ nos tempos modernos” (SUNY, 2001, p. 870). Sugere-se que uma
identidade construída narrativamente contém quatro elementos principais.
O primeiro pilar é a noção de espaço nacional comum: “uma nação é mais do
que uma comunidade imaginada de pessoas, pois também é preciso imaginar um
lugar – uma terra-mãe” (BILLIG, 1995, p. 74). O corpo geográfico da nação é
articulado de diversas maneiras (SMITH, 2003, 1986) – como uma terra natal
sagrada, uma entidade unificada que começa e termina em fronteiras demarcadas,
para além das quais se situam outros territórios nacionais. É imaginada como uma
terra histórica ancestral, uma terra que pertence espiritualmente e organicamente
a seu povo, como o povo à sua terra. É imaginada ainda como uma terra única,
peculiar, bela e autossuficiente, o que separa o que é “nosso” do que é “deles”.
Em segundo lugar, há um tempo nacional coletivo na representação narrativa das
identidades nacionais. “Se as nações existem no espaço”, sugere Smith, “estão
igualmente ancoradas no tempo” (SMITH, 2003, p. 166). O tempo nacional é
frequentemente segregado em três elementos – passado, presente e futuro
compartilhados. É representado como se estendendo no passado, em um nevoeiro
de obscuras gerações de ancestrais, e no futuro, nas gerações igualmente
incognoscíveis de descendentes (CALHOUN, 1997; MILLER, 1995; SMITH,
1986). Entre essas três facetas do tempo, Hobsbawm privilegia o passado na
construção da nacionalidade: “o que faz uma nação é o passado; o que justifica
uma nação contra outras é o passado, e os historiadores são aqueles que o
produzem” (HOBSBAWM, 1996, p. 255). Em qualquer historicidade nacional,
há certo número de temas recorrentes – a unicidade do povo, a superioridade de
sua cultura e de seu caráter, sua pureza racial e cultural, sua longevidade, a
importância de sua autonomia, e os efeitos negativos da heteronomia (BERGER
et al., 1999).
Um terceiro aspecto da identidade é a ideia de uma cultura nacional
compartilhada. Escreve Gellner que “o homem [sic] moderno, o que quer que ele
[sic] diga, não é leal a um monarca, a uma terra, a uma fé, e sim a uma cultura”
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 699

(GELLNER, 1983, p. 35). Da mesma forma, para Martin, a construção de


qualquer identidade coletiva implica “uma seleção de traços culturais preexistentes,
que serão transformados em emblemas de identidade” (MARTIN, 1995, p. 13).
A identidade nacional é representada como a soma dos grandes artefatos de uma
alta cultura, tal como apresentada nas obras clássicas da literatura, da pintura, da
música e da filosofia, e, para além disso, de práticas cotidianas que constituem a
vida das pessoas comuns – as formas amplamente disseminadas de música popular,
arte, desenho e literatura, ou as atividades de massa dos entretenimentos e do tempo
de lazer (HALL, 1997; SMITH, 1991; GELLNER, 1983).
O último aspecto da narração da identidade é um habitus nacional comum: “a
identidade nacional tem seu próprio habitus característico, que Bourdieu define
como o complexo de noções ou esquemas de percepção comuns, mas diferenciados,
de atitudes e disposições emocionais relacionadas a ele, assim como de convenções
e disposições comportamentais” (WODAK, 2006, p. 106). Aqui, em vez da
expressão tradicional “caráter nacional”, prefere-se a noção de habitus, com base
no fato de que não indica algo inerente e eterno, e sim um conjunto de crenças ou
opiniões, emoções, atitudes e normas comportamentais que podem mudar de uma
fase para outra, e que são internalizadas ou adquiridas individualmente no curso
da socialização. Assim, um habitus nacional vai além de imagens estereotipadas
sobre “nós” e “eles”, incluindo características como a disposição de tomar o partido
da nação quando se tem um senso de pertencimento, ou a prontidão para defendê-
la quando se sente que ela está ameaçada (WODAK et al., 1999).
Assim, acompanhando Billig (1995), possuir uma identidade nacional é ter certas
formas banais, prosaicas, rotineiramente familiares, de escrever e falar sobre a
nacionalidade – sobre o espaço nacional, o tempo nacional, a cultura nacional e o
habitus nacional. No entanto, “mais do que estar refletida no discurso, a identidade
é ativamente, continuamente e dinamicamente constituída no discurso” (BENWELL;
STOKOE, 2006, p. 4). Igualmente, para Wodak e colegas, “identidades nacionais,
como formas particulares de identidades sociais, são produzidas e reproduzidas,
transformadas e desfeitas discursivamente” (WODAK et al., 1999, p. 3-4); e para
Özkirimli, “nacionalismo é, nesse sentido, uma forma de discurso, uma maneira de
ver e interpretar o mundo” (ÖZKIRIMLI, 2005, p. 2). Essa abordagem discursiva
aos fenômenos do nacionalismo baseia-se na filosofia linguística estruturalista e pós-
estruturalista. Essa teoria vê a linguagem não como uma mídia neutra, que
simplesmente reflete a realidade, mas sim como um meio de criar experiências,
identidades e sistemas de conhecimento sobre o mundo (BENWELL; STOKOE,
2006; JØRGESEN; PHILLIPS, 2002; FAIRCLOUGH, 1992).
Essa leitura recente de identidades como inscrições no discurso tem sido
criticada, com o argumento de que diz pouco sobre atuação, especialmente sobre
a forma pela qual os sujeitos interagem com o discurso, e de que modo podem
resistir, modificar, negociar ou rejeitar narrativas sobre o Eu nacional (BENWELL;
700 Klerides

STOKOE, 2006). Em uma tentativa de encontrar um ponto intermediário, Hall


emprega o termo “identificação”, definindo esse conceito como
o ponto de encontro, o ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam
interpelar, falar conosco ou situar-nos como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro
lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos sobre os quais
se pode falar. Identidades são, portanto, pontos de ligação temporária a posições do sujeito que
as práticas discursivas constroem para nós (HALL, 1996a, p. 5-6).

A identidade nacional pode ser igualmente concebida como um conceito


posicional. É uma posição de identificação, a ligação do sujeito com o que pode
ser chamado de posição de sujeito nacionalista. Isso é constituído pelo discurso
nacionalista, quer seja, segundo Hall (1992), o discurso da cultura nacional, ou,
de acordo com Calhoun (1997), o discurso do nacionalismo. Ambos os discursos
têm a nação ou o povo como objeto de significação. Os membros de uma nação
identificam-se com essa posição para a qual são convocados e procuram envolver-
se com o discurso ou buscar a adesão de outros. Como aponta Hall , “culturas
nacionais constroem identidades produzindo sentidos a respeito da nação com os
quais podemos nos identificar” (HALL, 1992, p. 293). Essa premissa – a reunião
de autores e leitores em estruturas de convenções e significados nacionalistas – é
consensual na literatura.

Implicações para a educação


comparada: uma nova agenda de pesquisa?
À luz dos pontos de vista desconstrutivos, é problemático tratar a nacionalidade
e a identidade cultural na EC como essenciais, unificadas, eternas e fixas. Pelo
contrário, a emergência dessas novas abordagens teóricas torna urgente a renovação
do pensamento a respeito da maneira pela qual o campo avalia os conceitos de
identidades e de nações. Sua renegociação e sua reconceituação apoiam-se nas
tradições do campo, e são exploradas aqui em relação à natureza e à função da
educação, bem como ao modo pelo qual se constitui o conhecimento educacional.
Assim sendo, sugere-se que dessa releitura emergem diversas novas questões de
pesquisa com as quais a EC deve envolver-se. Em lugar de impor uma conclusão,
a intenção aqui é identificar algumas áreas potenciais de pesquisa e abrir o debate.
Uma vez que identidades nacionais e nacionalidade são vistas agora como
produtos da linguagem e do discurso, é problemático tratá-las como tendo
existência independente dos processos de escolarização. Do ponto de vista das novas
teorias, as práticas produtoras de significado na educação – por exemplo, produção
e distribuição de currículos e de livros didáticos, e sua utilização na escola e na sala
de aula –, assim como em outros domínios sociais, não são meros reflexos do
caráter, da história e da cultura diferenciadas de uma nação. Em vez disso, devem
ser vistas como lócus de sua construção discursiva. Qualquer prática educacional de
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 701

significação, seja uma aula de civismo, a leitura de um poema, um livro de geografia


ou um mapa histórico, desde que tenha explicitamente ou implicitamente a nação
ou o povo como objeto privilegiado de atenção, pode ser vista como uma instância
de articulação da identidade nacional. Em qualquer dessas instâncias, a produção
da imagem da nação é uma práxis histórica e socialmente contingente, que depende
de uma série de fatores: o tópico e a audiência para qual é relacionada uma instância
de construção de identidade, as características gerais (inclusive os propósitos) do
contexto pedagógico e do sistema educacional em que essa instância tem lugar, e,
de forma mais geral, a sociedade mais ampla e sua trajetória histórica na qual está
inserida a formação da identidade.
Portanto, o papel da educação nacional não é tanto proteger, preservar e
transmitir a herança cultural da nação. Ao invés disso, do ponto de vista das
abordagens pós-modernas, pós-estruturais e pós-coloniais a identidades e
nacionalidade, o propósito da educação é participar da construção e da transmissão
dessa herança para as massas – por exemplo, a crença na unificação nacional, na
diferenciação entre Eu e Outros, e na singularidade do povo, da ideia de
continuidade nacional no tempo e no espaço e, de modo mais geral, de certos tipos
de subjetividades nacionais. Alguns acadêmicos que trabalham no campo da
história da educação, por exemplo, começaram recentemente a abordar essas
funções da educação (LOWE, 1999; FRANGOUDAKI; DRAGONA, 1997;
GREEN, 1997), e outros, particularmente, a estudá-las sob uma perspectiva
comparativista (FOSTER; CRAWFORD, 2006; VICKERS; JONES, 2005).
Apesar desses desenvolvimentos positivos, há ainda muito a ser feito, especialmente
para o desenvolvimento da dimensão teórica deste trabalho.
Além disso, a centralidade de uma abordagem histórica e culturalmente
contextualizada ao estudo de questões educacionais em cenários nacionais – isto é,
a visão de Sadler de que as coisas externas à escola modelam e regulam as coisas
internas à escola, e de que a educação é o desenlace de antigas batalhas – ainda
deveria ser relevante para o campo atualmente. Por exemplo, à luz dos novos modos
de ver a nacionalidade e as identidades culturais, espera-se que constructos de
identidade nacional em educação sejam associados à articulação da nacionalidade
em outros campos sociais (político, acadêmico, de mídia) e influenciados por ela,
sincronicamente e diacronicamente. O valor da contextualização na investigação
de práticas educacionais e a relevância das especificidades culturais na modelação
de conhecimentos e práticas educacionais também foram reiterados recentemente
por alguns acadêmicos de EC (MASON, 2006; CROSSLEY, 2000;
BROADFOOT, 2000; ALEXANDER, 2000). Outros, dos quais os que mais se
manifestam são Kazamias (2001), Watson (1999) e Sweeting (1999), ampliaram a
noção de contexto cultural, pedindo a reinvenção do histórico na EC.
Entretanto, na perspectiva das novas concepções de identidade e nacionalidade,
o elo entre coisas externas à escola e coisas internas à escola precisa ser relido em
702 Klerides

termos de uma dialética: as coisas internas são constituídas pelas coisas externas, mas,
ao mesmo tempo, as constituem. Portanto, para que a EC leve em conta as novas
complexidades da formação de identidade, qualquer instância educacional de
constituição de identidade deve ser pensada agora como “a inserção da história
(sociedade) em um texto, e desse texto na história” (KRISTEVA, 1986, p. 39). Por
“inserção da história em um texto”, entende-se que a identidade absorve e é
construída a partir de convenções disponíveis em uma sociedade e em sua história,
estando, dessa forma, envolvida na realização de continuidade com o passado e de
reprodução. Por inserção desse texto na história entende-se que a identidade trabalha
novamente os sentidos disponíveis naquela sociedade e, ao fazê-lo, ajuda a fazer
história, contribuindo para processos de mudança na imagem do Eu nacional.
Além disso, e mais uma vez acompanhando as novas teorias de construção de
identidade, a relação da educação com o contexto cultural e com a história desse
contexto não deve ser concebida ou examinada em bases deterministas – “forças e
fatores espirituais e culturais intangíveis, impalpáveis” como determinantes de
formas de educação e de conhecimento. Ao invés, esse tema da literatura histórica
comparada deve ser reconceituado com base na ideia de possibilidade – “forças
espirituais e culturais intangíveis, impalpáveis” como condições para a articulação
de certas narrativas nacionalistas e, ao mesmo, delimitadoras da possibilidade de
outras formas de representação e construção do conhecimento sobre o Eu. Esse
ponto será revisitado e explicado com maior clareza mais adiante neste capítulo.
Com base em um envolvimento crítico tanto com as tradições do campo quanto
com as novas perspectivas sobre identidades e nacionalidade, podem ser esboçadas
agora diversas novas prioridades de pesquisa.
É necessário que a EC comece a questionar as noções de nacionalidade e
identidade cultural em diferentes contextos nacionais. O ponto de partida desse
processo seria uma interpretação dessas noções como produtos do discurso e da
linguagem, materializados em currículos, textos sobre políticas, livros didáticos ou
práticas em sala de aula. Desse insight emerge uma grande variedade de novos temas
de pesquisa. São particularmente relevantes, por exemplo, o estudo das maneiras
pelas quais as nacionalidades são construídas como unidades primordiais, nações e
culturas são apresentadas como homogêneas, continuidade e singularidade são
enunciadas, distinções entre o Eu e os Outros são constituídas, identidades são
apresentadas como entidades eternas e naturais. A implicação aqui para a EC é
envolver-se em investigações sobre as formas pelas quais essas ideias nacionalistas
– unidade, atemporalidade, unicidade, diferença e assim por diante – são
construídas em diferentes lugares. Essa abordagem, que focaliza o como, e não o
quê, não é uma prática usual na EC e em outros campos educacionais. Na literatura,
identidades nacionais e nacionalidade são estudadas frequentemente por meio de
métodos de análise de conteúdo que negligenciam o papel da linguagem na
constituição do conteúdo (OTEIZA, 2003).
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 703

Outra área de estudo é o aprofundamento da compreensão sobre a forma pela


qual as posições nacionalistas do sujeito são construídas no processo de escolarização
em diferentes contextos culturais. Esse tipo de análise pode ser desenvolvido por
meio da identificação e da descrição de questões como: que tipo de conhecimento
sobre o passado e a cultura nacional é recebido pelas crianças; que tipos de opiniões,
emoções e atitudes sobre o Eu e o Outro e em relação ao Eu são disponibilizados
para elas; que representações do corpo geográfico da nação lhes são apresentadas; e
que senso de destino presente e futuro é cultivado nelas. É por meio da identificação
com leituras nacionalistas particulares do tempo, da cultura, do habitus e do espaço
que as crianças tornam-se certos tipos de sujeitos nacionais.
Para que a EC possa começar a examinar a construção de subjetividades
nacionais, é necessário dedicar atenção também ao estudo das maneiras pelas quais
os alunos são chamados a identificar-se com narrativas de nacionalidade, e se há
algum espaço criado para que possam negociar, resistir, modificar ou rejeitar as
mitologias nacionais. Esse tipo de análise pode ser ampliado para abranger as formas
pelas quais os professores ou os autores de material curricular se posicionam, eles
próprios, em relação a discursos sobre o Eu. Uma implicação crucial para a pesquisa
comparativa aqui é identificar e explicar possíveis variações entre contextos culturais
quanto à interpelação dos alunos e ao posicionamento dos autores em relação a
discursos nacionalistas.
Além disso, o estilo – para usar um termo de Anderson (1983) – que representa
nações e identidades na forma como são imaginadas em diferentes lugares não
precisa ser examinado em termos de coerência e consistência. Antes, deve-se partir
da ideia de que ele é marcado por fragmentação, ambivalência, heterogeneidade,
contradições e pluralismo, implicando que a busca pela natureza e pelas origens
dessas características pode ser a base da comparação. Essa implicação, como já foi
dito, deriva do axioma pós-moderno e pós-colonial de que o imaginário da nação
é fraturado, fluido e híbrido, ponto de conflito e contestação, de ambiguidade,
dilemas e paradoxos.
A historicidade inerente a qualquer identidade nacional – o fato de que imagens
de nação estão sujeitas a mudança ou perpetuação – implica a necessidade de
examinar de que forma a nacionalidade é desafiada, transformada, mantida ou
defendida em diferentes contextos culturais. Os trabalhos recentes de Vickers e Jones
(2005) sobre identidade nacional e nacionalidade no Leste da Ásia, e de Schissler e
Soysal (2005) na Europa oferecem dois exemplos de aplicação dessa abordagem de
forma comparativa. No entanto, embora os colaboradores desses livros analisem
políticas em processo de mudança em relação à nação, frequentemente negligenciam
a persistência de mitos nacionais mais antigos e enraizados; e, o que é mais
importante, a hibridização da identificação derivada de coarticulações de imagens
nacionais novas e mais antigas. A complexa justaposição do novo e do velho e a
criação de novos híbridos também devem ser levadas em conta.
704 Klerides

Uma última área de pesquisa comparativa abordada aqui deriva da visão de que
identidade nacional é contingente ao contexto ideológico, político, sociocultural e
histórico no qual está inserida, e é constitutiva desse contexto de modos criativos
ou normativos. Essa visão implica a necessidade de explorar tanto o papel atribuído
à educação na modelação e na transmissão de certas percepções de nacionalidade,
quanto as condições para a (re)produção de certos estilos de identidade. O exame
da condicionalidade deve tentar captar e ilustrar tanto a unicidade como a
interdependência das culturas. Algumas das complexas conexões entre constructos
educacionais de identidade e as condições mais amplas nas quais se relacionam
podem ser reveladas por meio da análise do discurso.

O discurso como ponte teórica e metodológica


Esta seção procura mostrar de que forma a análise do discurso pode ser utilizada
produtivamente para ajudar a EC a operacionalizar algumas das novas prioridades
do estudo comparativo que emergem, por um lado, de uma releitura das tradições
do campo, e por outro, das noções de nacionalidade e identidade nacionais. Como
método de pesquisa e abordagem teórica ao conhecimento, a análise do discurso
oferece um conjunto de conceitos e técnicas valiosos para o estudo sistemático de
nações e nacionalidades em lugares diversos. Argumenta-se aqui que a própria
noção de discurso pode constituir uma ponte teórica e metodológica entre
contextos culturais. Seu poder analítico reside em sua possibilidade de captar o que
é comum a lugares diferentes – isto é, a (re)construção discursiva da nacionalidade
e da identidade nacional – e, ao mesmo tempo, de não disfarçar a história, a cultura
e a diferença – “os temas que tornam a educação comparada intelectualmente
interessante” (COWEN, 2002a, p. 419). Reside também no fato de que constrói
pontes não apenas entre culturas, mas também entre disciplinas, níveis micro e
macro de análise, estudos teóricos e empíricos – os temas de uma educação
neocomparada (BROADFOOT, 2000; KAZAMIAS, 2001; CROSSLEY, 2000;
BRAY; THOMAS, 1995).

Identificando e descrevendo identidades discursivas

Os estilos com os quais as identidades nacionais são imaginadas em uma


variedade de textos educacionais – currículos, livros didáticos, documentos de
políticas, pronunciamentos de professores ou escritos de alunos – em diferentes
contextos culturais podem ser identificados e descritos por meio de três níveis de
análise inter-relacionados: o nível dos conteúdos proposicionais, o nível das
estratégias discursivas, e o nível da realização linguística. Essa estrutura tripartida na
análise do discurso nacionalista deriva de uma visão do discurso como um conjunto
de afirmações sobre um tópico específico, cuja organização é regular e sistemática
(MILLS, 2004; HALL, 2001; FAIRCLOUGH, 1992; FOUCAULT, 1972):
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 705

• Primeiro, há o nível dos tópicos e proposições. O objetivo da análise discursiva


neste caso é revelar as escolhas temáticas do discurso nacionalista e as mensagens
nele codificadas. Seus conteúdos são organizados em termos das quatro
categorias de identidade narrativa apresentadas e definidas anteriormente – as
categorias de tempo, espaço, cultura e habitus.
• O segundo nível de análise é o nível das estratégias. De acordo com a vertente
austríaca da análise crítica do discurso (WODAK, 2006; REISIGL; WODAK,
2001; WODAK et al., 1999), uma estratégia é definida como o plano
particular, consciente ou inconsciente, adotado pelos escritores ou pelos
locutores para alcançar as metas de constituir e transmitir principalmente a
unidade e a diferença em relação às categorias de tempo, espaço, habitus e
cultura. No entanto, a identidade, como já foi dito, tem a ver também com a
construção de diversas outras noções nacionalistas – as ideias de continuidade,
unicidade, superioridade, autonomia nacional, apresentação positiva do Eu e
apresentação negativa do “outro”, e assim por diante.
• Todas essas estratégias são de natureza construtiva – isto é, tentam implementar
certo tipo de identidade promovendo uniformidade, diferença, continuidade e
assim por diante. Há também estratégias de perpetuação (que visam a manter,
defender e reproduzir uma identidade nacional) e de transformação (que
transformam uma determinada identidade e suas bases de sustentação em
outras). Todos esses tipos de estratégia emergem de uma visão de que o discurso
tem, simultaneamente, as seguintes funções: construtiva, transformadora e
perpetuadora (WODAK, 2006; WODAK et al., 1999).
• Há outro grupo de estratégias – as de envolvimento ou de distanciamento, e as
de intensificação ou mitigação (REISIGL; WODAK, 2001). O primeiro grupo
refere-se à forma pela qual os escritores ou locutores expressam seu
envolvimento ou seu distanciamento em relação a um discurso nacionalista
representado, e posicionam seu ponto de vista no fluxo discursivo. O outro
grupo é utilizado para qualificar ou modificar o status epistêmico de uma
proposição nacionalista, e expressar seu compromisso com a verdade. Os dois
grupos de estratégias estão relacionados ao modo pelo qual ouvintes ou leitores
são chamados a identificar-se com o discurso nacionalista.
• O terceiro nível é a análise dos meios e dos recursos linguísticos envolvidos na
expressão de conteúdos e estratégias. As duas camadas – conteúdos e estratégias,
de um lado, e linguagem do outro – “estão conectadas pelo processo de
realização: a gramática e o léxico realizam o semântico, o linguístico realiza o
social” (BENWELL; STOKOE, 2006, p. 108). Em outras palavras, esse
processo baseia-se na ideia de que o conteúdo e as formas da linguagem são
inseparáveis (FAIRCLOUGH, 2003). Uma dimensão central da realização
linguística do discurso nacionalista é o que pode ser chamado de léxico da
nacionalidade. E como assinala Billig, “as palavras cruciais do nacionalismo
706 Klerides

banal são frequentemente as mais curtas: ‘nós , ‘isto’ e ‘aqui’, que são as palavras
da dêixis linguística” (BILLIG, 1995, p. 94). Isso significa que se espera que
um determinado discurso nacionalista construa narrativas sobre o tempo
nacional, o espaço nacional, o habitus nacional e a cultura nacional, assim como
sobre continuidade, diferença, singularidade, autonomia, de modos específicos
realizados linguisticamente por meio de escolhas específicas de vocabulário.
Essa estrutura tripartida para a identificação e a descrição de identidade, baseada
na análise dos conteúdos, estratégias e formas de linguagem nacionalistas, é
ilustrada por exemplos de minha própria pesquisa sobre identidade nacional e
historiografia escolar no Chipre e na Inglaterra.
O excerto a seguir é extraído de um livro didático grego cipriota. Ele codifica
leituras particulares do passado e do presente na comunidade grega de Chipre,
assim como de seu habitus, seu destino, sua terra e sua cultura. Essas leituras
associam-se a três estratégias – a estratégia de ênfase na continuidade, da diferença
e da unidade –, e tanto conteúdos como estratégias são constituídos e comunicados
por meio de certos recursos linguísticos:
Muitos povos (ou grupos) passaram pelo Chipre ou o conquistaram: fenícios, assírios, egípcios,
persas, ptolemaicos, romanos, árabes, cruzados, francos, venezianos, turcos e ingleses. Entretanto,
os habitantes preservaram seu caráter grego, que se havia formado desde que os micênicos
estabeleceram-se na ilha, no final da Idade Tardia do Bronze; isso se evidencia no idioma tanto
quanto na tradição.

É proeminente aqui a projeção da continuidade do caráter grego da população,


definido culturalmente pelo idioma e pela tradição grega. São utilizados dois
recursos linguísticos para realizar a estratégia de continuidade. Primeiro, o tempo
verbal que expressa os lugares comparativos de diferença e similaridade. Esses dois
lugares constroem a visão do passado distante como origem do caráter grego do
povo, e do presente como a época em que esse caráter ainda está evidente. Segundo,
a conjunção “entretanto” é empregada para realizar o lugar contrastivo da
comparação. Isso sugere a leitura de que o povo salvaguardou (um verbo que carrega
a conotação de preservação) seu caráter, a despeito do contato recorrente com povos
diferentes em termos de etnia e de religião, e da tentativa desses povos de suprimi-
lo, modificá-lo ou destruí-lo.
Nesse excerto, há também uma ênfase estratégica na diferença e na
uniformidade, que se manifesta linguisticamente nos nomes que constituem grupos
– tais como “turcos”, “francos” e no epíteto “grego” (que evoca um povo grego
unificado). Por meio dessas duas estratégias, cria-se tanto a constituição do Eu e
dos Outros, como sua diferenciação, insinuando uma fronteira simbólica entre um
mundo grego de subjugação, rebeldia, resistência e conflitos, e um mundo não
grego de poder, conquistas, opressão e ameaças. Essa separação salienta o destino
do Eu em um mundo de nações: preservar seu caráter grego, defendendo-o de
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 707

Outros que tentaram modificá-lo ou destruí-lo. Isso, por sua vez, relaciona-se com
a mensagem implícita sobre Chipre como uma terra grega, tanto no presente
quanto no decorrer da história, bem como com uma perspectiva específica sobre a
natureza e o habitus do Eu – “nós” somos uma comunidade cultural grega, com
idioma e tradições compartilhados, e teimosamente leais a eles, dispostos inclusive
a lutar por sua manutenção contra povos poderosos.
As categorias de conteúdo do discurso também são valiosas para esboçar os
diversos estilos com os quais as identidades são imaginadas diacronicamente e
sincronicamente nas várias culturas. Isso pode ser ilustrado com o passado. Nas
histórias inglesas, dois dos principais aspectos da representação do passado nacional
são aqueles que em minha análise identifiquei como a “vertente narrativa do
crescimento constitucional” e a “vertente narrativa do expansionismo imperial”.
Em contraste, as histórias greco-cipriotas, como mencionado acima, promoviam o
passado como um passado de preservação da cultura grega na ilha. A construção
do passado no estilo grego dominou a historiografia na escolarização greco-cipriota
desde as primeiras décadas do século XX. Depois da divisão territorial do Chipre,
em 1974, foi acrescentada uma nova narrativa aos padrões existentes. Trata-se da
vertente da heteronomia e da autonomia, que conta a história de um povo cipriota
que luta contra grandes potências pela sobrevivência física e pela liberdade.
As categorias de conteúdo também podem ser importantes para revelar os temas
de fragmentação, ambivalência, dilemas e hibridização que caracterizam a
constituição da identidade. Nos relatos ingleses, por exemplo, a narrativa de
crescimento constitucional promove uma nação democrática, inicialmente inglesa
e depois britânica (com a criação do Reino Unido) que, com o passar do tempo,
ampliou suas liberdades. Na narrativa expansionista, o Eu também é articulado de
forma ambígua: por um lado, existe a imagem de uma nação inglesa poderosa e
progressista, que conseguiu submeter ao controle inglês seus vizinhos celtas fracos
e atrasados; por outro, a imagem de uma nação britânica civilizada e superior, que
abraçou a missão de difundir a civilização junto a povos incivilizados e inferiores.
Da mesma forma, a coocorrência da narrativa de preservação cultural grega e a
narrativa cipriota de heteronomia e autonomia nas histórias greco-cipriotas depois
de 1974 também exemplificam a natureza heterogênea, fragmentada, ambivalente
e dilemática da identidade. Cada uma dessas duas vertentes promove uma posição
diferente de identificação nacional: uma posição grega – a narrativa de preservação
cultural grega, por meio da qual o Eu é construído como um povo grego que é
parte inseparável da comunidade helênica; e uma posição cipriota – a narrativa de
autonomia e heteronomia, por meio da qual o Eu é visto como um povo cipriota
independente e diferente da comunidade mais ampla do helenismo.
Ambivalência e heterogeneidade podem ser estudadas também por meio do
tema discursivo da realização linguística. Isso é ilustrado por um excerto de um
livro didático inglês de 1966, que também indica a persistência da construção
708 Klerides

oitocentista whig1 sobre o passado inglês como uma marcha triunfante e


ininterrupta rumo à democracia política:
Assim como uma criança cresce até a maturidade, ensinando e aprendendo com a experiência,
também um país precisa desenvolver suas próprias instituições e ideias, transformando-se no
decorrer de sua história em uma nação responsável. Algumas lições são difíceis, algumas
experiências, como a Guerra Civil no reinado de Carlos I, são esmagadoras, mas todas
desempenham seu papel. Na Grã-Bretanha, nós nos desenvolvemos gradualmente para nos
tornarmos um país onde a lei protege nossas liberdades, e o Parlamento representa a maioria de
nossos desejos.

Nessa passagem, não está claro se os termos “país” e “nação”, o dêitico “nós” e
o pronome possessivo “nosso” denotam o povo inglês ou o povo britânico. Isso
decorre do fato de que o texto mistura elementos do discurso da identidade inglesa
– a historicidade whig, que se manifesta, por exemplo, no episódio da Guerra Civil
– e elementos do discurso da identidade britânica – o Parlamento britânico como
representante da vontade da nação, e a lei britânica como guardiã das liberdades
nacionais. Da mesma forma, o termo “Grã-Bretanha” parece ambivalente quanto
a referir-se à Grã-Bretanha ou à Inglaterra, salientando o chamado enigma da
identidade nacional na Inglaterra – britânico ou inglês? (KUMAR, 2003). Esse
exemplo indica também que a meta da análise de discurso de ler nas entrelinhas só
pode ser alcançada por meio de uma combinação de análise linguística detalhada
do texto e insights explanatórios de outras disciplinas sociais (FAIRCLOUGH,
2003; REISIGL; WODAK, 2001).
A noção de realização linguística também é útil para traçar as diferentes
formações de identidade de acordo com a audiência e, de modo geral, a ideia de
múltiplas identidades nas práticas educacionais de significação. Essa noção inclui
o ponto de vista de que ainda que uma certa proposição ou estratégia seja a mesma
em dois casos diferentes de formação de identidade, sua realização na linguagem
pode diferir. Um exemplo é a diferente realização linguística da ideia de preservação
da cultura e da identidade gregas ao longo do tempo nos livros didáticos da escola
elementar e secundária. As histórias greco-cipriotas para a escola elementar
frequentemente comunicam essa ideia por meio de uma linguagem simples – por
exemplo, com verbos e advérbios que denotam continuidade e com tempos verbais:
“os cipriotas continuaram a amar a Grécia. Esse amor nunca deixou de existir”. A
mesma mensagem muitas vezes é expressa nos livros didáticos para o ensino
secundário por meio de frases nominais abstratas – “A continuidade do helenismo
sob condições extremamente adversas” – ou por negação: “Mas, apesar de todo o
sofrimento que os ataques árabes provocaram para os greco-cipriotas, não
produziram efeito algum sobre seu caráter grego”.

1. NT: Whig – referente ao pensamento de um partido político inglês (século XVIII a meados do século XIX)
que posteriormente se tornou o Partido Liberal.
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 709

À parte as categorias de conteúdo, a categoria analítica de estratégia discursiva


também é uma ferramenta útil para o desvelamento de mudanças de identidade.
Para dar um exemplo, à luz da descolonização e da literatura pós-colonial, as
histórias inglesas procuraram reconstruir a leitura do passado imperial britânico
por meio de uma estratégia de transformação. Considere-se este extrato de uma
seção de um livro didático intitulada Interpretações em mudança:
Por mais de cinquenta anos, os historiadores do século XX concordaram com a visão oitocentista
de que o Império Britânico levou os benefícios da civilização europeia para povos nativos [...]
Na década de 1970, a maioria dos países do Império tornaram-se independentes da Grã-Bretanha,
alguns deles depois de guerras amargas. Os historiadores britânicos já não consideravam o Império
simplesmente do ponto de vista europeu ou britânico. A. J. P. Taylor apontou que o domínio
britânico não beneficiou necessariamente os povos do Império.

Por meio de referências temporais, esse extrato adota o locus da diferença para
projetar duas compreensões sobre a relação entre o império e os povos nativos. A
primeira é a leitura do século XIX (ainda evidente em sua maior parte no século
XX) de que o Império trouxe a esses povos os benefícios da civilização. A segunda
é a visão da década de 1970 em diante, de que o Império não necessariamente os
beneficiou. O que conecta essas duas interpretações históricas é a mudança – da
antiga certeza de que o Império era favorável aos povos colonizados, para uma nova
visão de que o Império não foi necessariamente benéfico para esses povos.
As estratégias de distanciamento/envolvimento e de mitigação/intensificação
também são muito valiosas, especialmente quando se examina comparativamente
a maneira pela qual escritores ou locutores posicionam-se em relação a discursos
representados sobre nacionalidade, e o modo como ouvintes ou leitores são
chamados a identificar-se com eles. Isso também é ilustrado por exemplos de minha
própria análise das historiografias escolares no Chipre e na Inglaterra, notadamente
em relação à forma pela qual expressões estereotípicas aparecem nos livros didáticos.
Considerem-se dois extratos:
1. Os irlandeses vivem como animais, são mais incivilizados, sujos e bárbaros em
seus costumes do que em qualquer outra parte do mundo (na fonte 4E: relato
de um inglês na época de Elizabeth I, extraído de um livro didático inglês).
2. Os venezianos violavam sem qualquer esforço a liberdade pessoal, a honra e a
dignidade, e os cortejos (encontrado na narrativa principal de um livro didático
greco-cipriota).
No livro didático inglês, a utilização do relato direto para expressar o estereótipo
negativo dos irlandeses como incivilizados indica uma disposição, por parte do
autor do livro, de distanciar-se explicitamente desse estereótipo e de desafiá-lo
implicitamente como verdade universal. Ao mesmo tempo, essa estratégia de
distanciamento reduz a força de verbalização intencional do estereótipo e seu poder
de persuasão dos leitores, dizendo-lhes que essa é apenas uma opinião e, portanto,
710 Klerides

gerando espaço para que os leitores a negociem. Em contraste, o texto greco-


cipriota não deixa muito espaço para que os leitores negociem o estereótipo dos
venezianos como um povo autocrático. O estereótipo é comunicado como uma
verdade universal (por meio do tempo verbal no pretérito simples) e sua força de
verbalização é ainda mais intensificada por meio da expressão adverbial “sem
qualquer esforço”. Essas características destacam também o envolvimento
estratégico do autor na construção, na naturalização, na legitimação e na
perpetuação do estereótipo.

Condições para a construção da


identidade discursiva: contextos de possibilidade

A análise do discurso pode ser valiosa também no estudo comparativo das


condições em que são construídas certas identidades – por meio da ideia de
contexto de possibilidade. “O discurso”, apontam Fairclough e Wodak, “não é
produzido fora de contexto, e não pode ser compreendido sem que o contexto seja
considerado” (FAIRCLOUGH; WODAK, 1997, p. 276). Blommaert avança na
elaboração da noção de contexto como devendo ser construída “como condições de
produção do discurso” (BLOMMAERT, 2005, p. 66). Essa posição reitera Foucault
(1972), que definiu essa noção como as regras de formação do discurso. Para ele,
o contexto opera como um regime de possibilidades, permitindo, e ao mesmo
tempo restringindo, o que pode ser pensado, dito e escrito – nesse caso, sobre o Eu
nacional. Portanto, o contexto não determina a articulação de uma identidade
nacional, mas é antes “o que possibilita que ela apareça, se justaponha a outros
objetos, se situe em relação a eles, defina suas diferenças, sua redutibilidade e talvez
até mesmo sua heterogeneidade; em resumo, para que se coloque em um campo
de exterioridade” (FOUCAULT, 1972, p. 45).
A leitura do contexto como condições de possibilidade relativamente à
representação e à construção da nacionalidade difere de duas formas das abordagens
mais antigas da EC ao estudo de contextos históricos e culturais. Em primeiro
lugar, reconhece a possível existência de uma variedade finita de posições de
identificação nacional baseadas em interpretações diferentes do contexto de
possibilidades e de interações com esse contextos, e derivadas delas pelos membros
de uma comunidade nacional. As abordagens mais antigas, que viam nações e
culturas basicamente como entidades essenciais, não acomodavam a diversidade
da imaginação nacionalista. Em segundo lugar, a tentativa de identificar as
condições de possibilidade subjacentes à formulação de um discurso sobre
nacionalidade é uma atividade muito menos fixa, segura ou transparente do que
implicavam os velhos argumentos deterministas. Embora também implique que
uma variedade de forças e fatores está associada à sua construção, a noção de
contexto de possibilidade reconhece que o pesquisador provavelmente não consegue
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 711

apreender todos eles, e principalmente os mais insignificantes, e talvez mais cruciais.


E dessa forma, deixa espaço para condições que ainda estão por ser identificadas.
Em outras palavras, o conceito é mais sensível ao local, mais inclinado a captar a
vasta complexidade do surgimento de um discurso nacionalista, e aponta as
limitações da análise e da interpretação.
Entretanto a linha divisória entre contextos de possibilidade e causas ou
determinantes é muito estreita e imprecisa. Utilizando em seu trabalho uma
distinção semelhante, Larsen (2004) observa que devem ser desenvolvidas maneiras
de reunir essas duas noções sem recorrer ao determinismo. Uma forma talvez
produtiva de resolver esse problema seria procurar esses contextos nos próprios
textos, ao invés de decidir arbitrariamente sobre eles com base na literatura e nas
teorias disponíveis. Essa sugestão deriva da ideia de que qualquer discurso é definido
por suas relações com outros, e pela condicionalidade material à qual está relacionado
(REISIGL; WODAK, 2001; FAIRCLOUGH, 1992; FOUCAULT, 1972).
Um exemplo da forma pela qual essa abordagem interdiscursiva pode revelar
as condições que tornam possível a produção de um discurso nacionalista é a
mudança na representação do domínio colonial em relatos escolares ingleses.
Como já foi dito, as histórias do período pós-imperial procuram transformar a
visão de que o domínio colonial trouxe os benefícios da civilização para os povos
coloniais em uma visão de que o Império não os beneficiou necessariamente. Isso
significa que foram a descolonização e a emergência de novas histórias pós-
coloniais (nas quais os livros didáticos se basearam) que tornaram possível a
ocorrência dessa mudança na construção do passado colonial. Uma condição
adicional para a reconstrução da identidade nacional foi a existência de práticas
de uma nova história na historiografia escolar – notadamente a crença de que a
história é apenas uma leitura do passado que nunca é definitiva, mas que se
modifica à luz de novas evidências históricas.
Um segundo exemplo também provém de livros didáticos ingleses de história.
Os relatos escolares do início do século XX frequentemente representavam a Magna
Carta como “o fundamento de nossas liberdades” ou como o ato que “resgatou
nossos ancestrais de grande parte da tirania opressiva do sistema feudal”. Em ambas
as afirmações, o pronome possessivo “nós” comunica a visão da Magna Carta como
benéfica para todos os ingleses. Em contraste, em livros didáticos de períodos
posteriores do século XX, a representação da Magna Carta tendeu a ser apresentada
como favorável apenas a algumas pessoas: “foi promulgada para todos os homens
livres do reino (não para os servos)”. Mais uma vez, essa mudança tornou-se possível
com a emergência da nova história como paradigma do ensino e dos textos de
história, bem como de novas historiografias acadêmicas no período do pós-guerra,
promovendo esse ato como o fundamento dos direitos das camadas sociais
privilegiadas da Inglaterra – e não das pessoas comuns. Assim, a nova história, as
novas historiografias constitucionais e pós-coloniais acadêmicas, assim como a
712 Klerides

descolonização e o colapso do Império britânico fizeram parte dos contextos de


possibilidade de constituição da identidade nos livros didáticos ingleses pós-
imperiais.
Da discussão acima decorre que os exemplos de construção de identidade
nacional também se posicionam necessariamente em relação a aspectos não
discursivos do contexto. Talvez esse ponto fique mais claro com um exemplo de
um livro didático greco-cipriota, que ilustra exatamente de que forma as condições
materiais modelam a construção de uma imagem particular do presente nacional
e do destino do Eu nacional:
Quatro anos se passaram desde o golpe e a invasão turca. Quarenta por cento de nossa terra está
sob ocupação turca. Quatro mil dos nossos estão mortos e dois mil estão desaparecidos. Cerca
de 200 mil gregos foram obrigados a abandonar suas casas e seus bens, e vivem como refugiados
em condições miseráveis. Os que ficaram estão sendo humilhados e sofrendo nas mãos do
conquistador e, à mercê de numerosas chantagens, estão sendo também obrigados a abandonar
a terra de seus pais.

Sob condições materiais específicas – as ofensivas militares gregas e turcas, a


divisão territorial da ilha, o deslocamento violento de populações, mortes e
circunstâncias sociais e econômicas abjetas –, o presente comum é construído em
termos negativos, como um presente de provações, ocupação, luto, expulsão e
opressão, transmitindo implicitamente uma imagem do Eu como um povo
vitimizado.
A conceituação de possibilidade, juntamente com aspectos discursivos e
materiais, indica que a abordagem proposta aqui não se alinha com a reificação
pós-moderna dos discursos como atores autônomos ardilosos que dirigem locutores
e escritores, ouvintes e leitores. Tampouco subscreve o dogma pós-estruturalista de
que “não existe nada fora do texto”. Antes, tenta encontrar um meio termo: as
práticas discursivas produzem, reproduzem, transformam e desmontam aspectos
materiais do mundo, assim como elementos da realidade material modelam o que
pode ser pensado, falado ou escrito (FAIRCLOUGH; WODAK, 1997).

Considerações finais
A emergência de novas perspectivas complexas sobre nacionalidade e identidade
cultural em outros campos de estudo não implica apenas a necessidade de uma
reformulação radical do pensamento sobre o modo pelo qual a EC trata essas ideias-
unidades. E o que talvez seja mais importante, também salienta para os educadores
comparativistas que é preciso que ampliem sua agenda de pesquisa e,
particularmente, que olhem para além das preocupações econômicas da
globalização, para questões não econômicas que incluem identidade, etnia, cultura,
nação, raça e gênero. Esse é um apelo que tem sido repetidamente enfatizado na
literatura recente (KAZAMIAS, 2001; WATSON, 1999; TIKLY, 1999; COWEN,
Identidades culturais nacionais, análise de discurso e educação comparada 713

1996). Eu gostaria de ampliar aqui esse apelo argumentando que é importante


começar a estudar esses conceitos não econômicos, partindo de sua compreensão
como discursos e como produtos do discurso, e examinar os complexos elos
dialéticos de sua articulação em contextos educacionais com os contextos culturais
e históricos de possibilidade mais amplos nos quais estão inseridos. Este capítulo
exemplificou – assim espero – que a análise do discurso pode ajudar a EC a levar
adiante essas prioridades de pesquisa e, assim, recuperar sua preocupação com duas
de suas tradições mais antigas, mas amplamente marginais – o estudo da cultura e
a história da cultura.

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77

TEMPOS DE REVOLUÇÃO CIENTÍFICA?


DA EDUCAÇÃO COMPARADA À CIÊNCIA
COMPARADA DE APRENDIZAGEM1

Patricia Broadfoot

Uma nova aurora para a educação comparada?


A escala e o alcance deste livro são um testemunho bem-vindo da efervescência
atual do campo da educação comparada – um testemunho de sua energia
intelectual, de seu alcance teórico e de sua considerável diversidade. Em anos
recentes, a educação comparada saiu da estagnação em que se encontrava durante
a última década do século XX conquistando ao mesmo tempo uma nova clareza
de objetivos e reconhecimento externo significativamente maior sobre seu valor
como abordagem. Isso se deve a diversas razões.
Uma das mais importantes foi o empenho dos educadores com enfoque
comparativo em aproveitar as oportunidades criadas pelo advento de perspectivas
pós-modernistas; em progredir, dos debates entre perspectivas positivistas e
humanistas que dominaram a era anterior, para a adoção do rico potencial
intelectual da ênfase sociológica emergente em cultura e experiência vivida. Os
educadores comparativistas não se esquivaram dos desafios implicados em uma
forma mais fraturada de olhar o mundo; nem deixaram de responder às implicações
das mudanças sísmicas que estão ocorrendo no mundo. Na verdade, grande parte
do interesse recente na caracterização do campo da educação comparada centrou-
se exatamente nessas questões – como evidenciam, por exemplo, as duas edições
comemorativas do milênio do periódico “Comparative Education” (CROSSLEY;
JARVIS, 2000, 2001).
Assim, em lugar do foco anteriormente mais típico sobre sistemas e políticas
educacionais, contextos nacionais e pesquisas internacionais, presenciamos com
frequência cada vez maior tentativas ousadas de reconfigurar a epistemologia do
campo; de aplicar perspectivas teóricas até então inexploradas; de conceber novas
unidades de análise e de ampliar a diversidade dos elementos construtivos que
constituem seu foco, tais como estudos comparativos no nível micro do cotidiano

1. NT: A autora cria um neologismo – learnology – que, como ela própria afirma adiante, não é gramaticalmente
defensável em uma exegese cuidadosa.

717
718 Broadfoot

em sala de aula. Em suma, como este livro demonstra de forma convincente, o


campo da educação comparada encontra-se em fermentação – um caldeirão
borbulhante de novas ideias e perspectivas que emergem em resposta às
significativas mudanças intelectuais de um mundo cada vez mais globalizado.
Porém, por mais que esse estado de coisas nos agrade, ainda persistem
atualmente aspectos da educação comparada significativamente menos
efervescentes. Entre estes, destaca-se a questão da metodologia – o rigor do próprio
processo de pesquisa. Não me refiro ao tipo de debate academicista sobre
epistemologias que por muito tempo caracterizou o campo. Refiro-me, antes, às
questões aparentemente mais simples, mas ainda assim fundamentais, relativas à
forma pela qual os dados são coletados; de que maneira são analisados e relatados;
de que modo são armazenados e tornados acessíveis a outros pesquisadores e às
futuras gerações. Como argumentaram Crossley e Broadfoot (1992), essa é uma
área que recebeu relativamente pouca atenção na literatura de educação comparada.
Entretanto é fundamental para a qualidade da pesquisa que vem a ser produzida.
Novos tempos propõem novos desafios à pesquisa. Se por um lado, como
sugerido acima, há hoje um reconhecimento crescente entre os acadêmicos do
campo da necessidade de reconceituar os elementos construtivos fundamentais da
educação comparada (ver, por exemplo, ALEXANDER et al., 1999), por outro
lado eu argumentaria que é tempo de lançar um novo olhar à adequação das
ferramentas tradicionais da área para a abordagem às novas questões de pesquisa
que vêm emergindo atualmente. Talvez não seja excessivamente fantasioso sugerir
que a educação comparada está em processo de transição – de uma adolescência
prolongada para o início da fase adulta. Como todos os adolescentes, precisa
enfrentar o desafio de separar-se de suas disciplinas-mãe como parte do processo
de explorar sua própria contribuição potencialmente singular; de suportar um
período de tempo durante o qual não estava segura de sua própria identidade, no
qual experimentou diversas perspectivas e abordagens diferentes, no qual não tinha
a autoconfiança de um campo amadurecido. Em decorrência, ocorreram na
literatura extensas discussões sobre o estado da arte (ver, por exemplo, BRAY, 2003;
WATSON, 2001) e, ocasionalmente, disputas por território entre ortodoxias rivais.
No entanto, com o advento do reconhecimento explícito das implicações da
globalização, os governos vêm-se tornando cada vez mais ávidos por insights
comparativos. Em decorrência, há uma oportunidade sem precedentes para um
aumento significativo da importância atribuída a estudos comparativos de todos
os tipos, o que, por sua vez, requer o desenvolvimento da capacidade do campo de
produzir pesquisas adequadas para o atendimento desses interesses em termos de
escopo e de sofisticação. Como sempre, tornar-se adulto implica aumento de
responsabilidades. Tal como outros campos comparados, a educação comparada
precisa ser capaz de apresentar resultados de pesquisas que tenham proeminência
internacional, ampla, nas quais o rigor do processo de conceituação, gestão da
Tempos de revolução científica? 719

pesquisa, coleta e análise de dados sejam, ao mesmo tempo, suficientemente sólidos


para enfrentar ataques motivados por interesses políticos, e suficientemente novos
e originais para prover validação independente, ou desafiar o status quo que é sua
raison d’être.
Assim sendo, quais poderiam ser as características dessa mudança portentosa
na escala e na sofisticação da pesquisa em educação comparada? Argumento neste
capítulo pela necessidade de duas reorientações fundamentais que me parecem
particularmente urgentes. A primeira dessas reorientações é, sugiro, uma mudança
de foco – do fundamento epistemológico daquilo que atualmente denominamos
educação comparada, e dos conceitos que emolduram as questões de pesquisas que
estão sendo formuladas. A segunda reorientação em favor da qual argumento refere-
se às metodologias atualmente empregadas pelos pesquisadores comparativistas.
Assim, na primeira parte do que segue, procuro ilustrar a necessidade de um
reexame radical dos preceitos básicos do campo. Na segunda parte do capítulo,
exploro alguns dos novos e excitantes desafios metodológicos da educação
comparada, que provavelmente se apresentarão nos próximos anos para que a área
atenda ao critério de disciplina científica adulta no século XXI. Em conjunto, essas
duas seções oferecem a base para uma seção de conclusões, que descreve um futuro
no qual a educação comparada realmente se terá tornado adulta: uma abordagem
a estudos comparativos que combina o melhor de uma tradição ilustre com uma
orientação teórica renovada e maior rigor empírico. Sugere-se que esses novos
desenvolvimentos no campo sustentarão, por sua vez, a possibilidade de realização
de estudos comparativos, tanto em uma escala sem precedentes quanto com
impacto internacional sobre o pensamento convencional em relação ao provimento
de educação.

Da educação comparada à teoria comparada da aprendizagem


Em um trabalho anterior, critiquei o mundo da educação por sua lentidão em
desafiar o modelo de provimento aceito na escolarização convencional (bem como
atualmente, cada vez mais, no ensino superior) (BROADFOOT, 2001). Chamei
a atenção para a ironia do fato de que, se por um lado seria difícil que um cirurgião
transportado de um cenário cirúrgico de, digamos, 1900, para um cenário do século
XXI compreendesse as funções de praticamente qualquer dos equipamentos ali
existentes, por outro lado, um professor daquela época se sentiria imediatamente
à vontade com a parafernália convencional de uma sala de aula contemporânea.
Embora um pouco injusta, essa comparação destaca quão pouco foi questionada
até hoje a sabedoria aceita a respeito de provimento educacional. A educação ainda
é amplamente concebida como transmissão de um determinado corpo de
conhecimentos, seja por um professor, por um livro, ou por alguma combinação
dos dois – um conhecimento que é estudado pelo aluno e, espera-se,
suficientemente bem aprendido para ser reproduzido em algum tipo de processo
720 Broadfoot

de avaliação. Se tudo correr bem, o aluno é aprovado nos exames e todos ficam
satisfeitos; se não correr tão bem, o fracasso geralmente é explicado seja por falta
de aplicação do estudante (“precisa se esforçar mais”) ou como reflexo de alguma
deficiência inata por parte dele (“estudante menos capaz”). Esse modelo de
aprendizagem não se ajusta adequadamente ao que sabemos com base no corpo
crescente da ciência da aprendizagem (CLAXTON, 1999), até mesmo no mundo
ocidental onde se deu predominantemente seu desenvolvimento. Ajusta-se ainda
menos às abordagens e às tradições relativas à aprendizagem em outras culturas
(ver, por exemplo, WATKINS; BIGGS, 1996; HUFTON et al., 2003).
Dada a natureza em grande parte não questionada desse paradigma, seja por
estudiosos da teoria da educação, seja por formuladores de políticas, não surpreende
que praticamente toda a pesquisa educacional, inclusive em educação comparada,
focalize, de uma forma ou de outra, aspectos desse provimento. Seja sobre formação
de políticas educacionais, administração e gestão educacional, capacitação de
professores, questões de organização escolar, desenvolvimento de currículo,
procedimentos de avaliação ou qualquer outro dos tópicos que constituem o foco
da pesquisa educacional, esses estudos quase sempre são concebidos dentro do status
quo, no sentido de que se referem a maneiras de melhorar as soluções para
problemas atuais de organização e provimento: de que forma podemos prover
educação de maneira mais eficiente, mais equitativa ou mais efetiva. São raras as
ocasiões em que a lente teórica ou empírica é focalizada no exame de premissas e
questões muito diferentes relativas à educação e à aprendizagem.
Assim, ainda que no campo da educação comparada venha aumentando a
pressão pelo reconhecimento da importância da carne cultural que reveste o
esqueleto de leis e políticas – sistemas e recursos que definem formalmente o
provimento educacional –, essa tendência ainda não desafiou os parâmetros
estabelecidos do campo. Ainda é preciso que desafie o discurso que define questões
educacionais em termos de um modelo educacional de provimento que envolve
incontáveis milhares de crianças e jovens em todo o mundo de forma mais ou
menos bem-sucedida, por meio de pacotes curriculares determinados de maneira
centralizada, e que os ensina a competir entre si na função de regurgitar seus
conhecimentos de maneiras específicas. Portanto, em sua maior parte, os
desenvolvimentos contemporâneos no campo da educação comparada devem ser
considerados essencialmente como debates no interior do paradigma existente.
Sustento que é necessário aplicar mais ferramentas conceituais pós-modernas para
criar uma educação neocomparada (BROADFOOT, 1977, 2001), que reconheça
as evidências de pesquisa bastante consideráveis já existentes quanto às limitações
dos modelos convencionais de educação. Pode-se argumentar que a lente crítica
oferecida pela pesquisa em educação comparada desempenha um papel central na
busca de conceitos e abordagens que serão mais produtivos no século XXI. Pois
enquanto o modelo educacional de provimento pode ter servido suficientemente
Tempos de revolução científica? 721

bem em tempos em processo mais lento de mudança, vem-se tornando cada vez
mais evidente que não está equipado para responder a um mundo de tecnologia
informacional disseminada, mercados de trabalho em rápida mudança, e ausência
de um cânone comum de valores e normas comportamentais.
Até o momento, uma das características mais definidoras do século XXI é a
erosão das fronteiras entre educação formal e outras atividades desempenhadas na
vida. Os mundos do trabalho e do lar, do lazer e do estudo vêm-se tornando cada
vez mais integrados. Isso significa que a concepção modernista de educação como
forma de atividades definida e organizada, realizada em uma instituição
especializada, e concebida como uma preparação para a vida adulta torna-se cada
vez mais anacrônica. De fato, pode-se dizer que, em um mundo crescentemente
pós-moderno, o emprego continuado de paradigmas modernistas de organização
educacional e de ensino e avaliação é uma força reacionária poderosa, que ajuda a
manter o status quo. Para que a ciência normal (KUHN, 1962) da educação seja
desafiada, a pesquisa precisa constituir-se como a sementeira para a revolução
científica ou a mudança de paradigma.
Sugiro que essa mudança de paradigma precisa colocar a própria aprendizagem
no centro do cenário, como foco de estudo. Questões tais como de que modo
ajudar os indivíduos a envolver-se satisfatoriamente com as inúmeras modalidades
de oportunidades de aprendizagem disponibilizadas pelo desenvolvimento
tecnológico propõem novos desafios para a pesquisa educacional. Particularmente
no caso da educação comparada, o território mais amplo e mais amorfo de
aprendizagem desafia o foco tradicional em sistemas educacionais e em problemas
de provimento. Se, ao invés do provimento para a aquisição de aprendizagem ou a
avaliação de seus resultados, a própria aprendizagem for aceita como o novo centro
gravitacional da disciplina, pode ser razoável refletir esse desenvolvimento em uma
mudança de nomenclatura. O descritor educação comparada pode ser substituído
por teoria comparada da aprendizagem como uma nova designação para a pesquisa
que busca compreender melhor a aprendizagem por meio da comparação
sistemática de contextos e culturas. Ainda que talvez não seja defensável diante de
uma exegese aprofundada, a utilização do descritor teoria comparada da
aprendizagem ofereceria um sinal sólido de que o centro da atenção desses estudos
é o próprio processo de aprendizagem e as forças que modelam o engajamento dos
indivíduos nesse processo.
Como foi sugerido acima, isso é particularmente importante porque, apesar do
enorme volume de pesquisas sobre ensino e aprendizagem realizadas ao longo da
década, há ainda uma lacuna considerável em nossa compreensão sobre como
melhorar os resultados de aprendizagem nos inúmeros e diferentes contextos em
que esta ocorre. Quando existe a preocupação com o que funciona, como ocorre
cada vez mais em meio a governos ansiosos pela elevação de padrões, há uma
tendência correspondente a ignorar a inevitável complexidade do processo de
722 Broadfoot

aprendizagem e, consequentemente, ao fracasso em levar em consideração algumas


das forças sociais complexas que têm impacto sobre ele. Entre estas encontram-se,
tais como identificadas por James e Brown, as seguintes:
• A influência que o ambiente (as características dos aprendizes ou o contexto de
aprendizagem) exerce sobre o sucesso de uma determinada abordagem na
promoção da aprendizagem.
• A dificuldade de conceituar claramente alguns aspectos da aprendizagem que
são considerados altamente desejáveis (por exemplo, atitudes, disposições,
valores, identidades), mas que não têm uma interpretação comum, como é o
caso de habilidades cognitivas ou práticas diretas.
• A dificuldade de avaliação nos casos em que uma conceituação clara da
aprendizagem ainda está por ser estabelecida.
• Problemas em nível teórico decorrentes de falta da conexão entre muitas teorias
de aprendizagem e as teorias de ensino ou instrução (isto é, falta de pedagogia).
• A necessidade de prover evidências de aprendizagem sob uma forma que, além
de convencer pesquisadores acadêmicos, convença também a comunidade
(JAMES; BROWN, 2005, p. 9).
Como argumentam James e Brown, o modo pelo qual os indivíduos aprendem
em contextos e culturas diferentes, e de que forma esse processo pode ser mais
facilitado são perguntas cujas respostas não são simples nem desprovidas de
ambiguidade. De fato, os fatores envolvidos são tão complexos que, como
argumentou Kazamias (BOUZAKIS, 2000), seu esclarecimento é tão provável a
partir da tradição humanista – utilizando, por exemplo, uma abordagem histórica,
estudos de caso e outras formas de dados qualitativos – quanto dos estudos mais
sistemáticos e controlados da tradição positivista. O estudo comparativo de
Alexander sobre aprendizagem em cinco países oferece um bom exemplo dessa
abordagem, recorrendo aos fundamentos de estudos anteriores, tais como o de
Osborn e colegas (2003).
Ao desafio da busca de compreensão da interação entre processos de
aprendizagem e do impacto de contextos particulares soma-se o fato de que a própria
aprendizagem assume muitas formas diferentes. Muitos esforços vêm sendo
empreendidos para definir os elementos principais, entre eles os de Gardner (1993).
Recentemente, o advento de novas técnicas de pesquisa neurológica contribuiu para
estimular esses esforços, com um interesse sem precedentes no próprio cérebro, como
parte da tentativa de compreender o processo de aprendizagem (ver, por exemplo,
PERKINS, 1995). Essa aplicação das neurociências fundamenta o campo da ciência
da aprendizagem como um campo importante de esforços de pesquisa, que está se
desenvolvendo para complementar perspectivas educacionais mais tradicionais.
Até mesmo uma categorização de nível relativamente alto dos diferentes tipos
de aprendizagem, como aquela proposta por James e Brown (2005, p. 9), ilustra
Tempos de revolução científica? 723

de forma contundente a importância dessas perspectivas quando a aprendizagem


é o foco central de investigação:
• Realizações – entre as quais conhecimento do tema ou competências de trabalho.
• Compreensão – de ideias, conceitos e processos.
• Aprendizagem cognitiva e criativa – envolvendo desempenho ou novos
conhecimentos.
• Utilização – envolvendo a aplicação de habilidades práticas ou tecnológicas.
• Aprendizagem de ordem superior – incluindo metacognição.
• Disposições – atitudes, percepções, motivações.
• Pertencimento, incluindo autovalorização – a modelação da identidade do aprendiz.
A contribuição particular que os estudos comparativos podem dar à nossa
compreensão dessas complexidades é o esforço de entender a interação complexa
entre diferentes tipos de aprendizagem e diferentes contextos culturais e
institucionais – como as tentativas de explicar e avaliar a significância dos vários
tipos de aprendizagem priorizados por cada cultura. Além disso, um ponto
particularmente forte de uma abordagem comparativa na ciência da aprendizagem,
tal como aquela incorporada em uma teoria comparada da aprendizagem, seria o
respeito pela integridade cultural dos conceitos-chave. Essa abordagem de pesquisa
não faria suposições prévias sobre a forma pela qual os objetivos e os processos de
aprendizagem estão sendo definidos no contexto estudado.
Embora nesse aspecto as diferenças entre culturas provavelmente não sejam tão
significativas no mundo atual – pós-colonial e globalizado – como já podem ter
sido, há ampla evidência nas páginas de periódicos antropológicos e de educação
comparada de que os processos e as metas de aprendizagem continuam a variar
enormemente ao redor do mundo. Além disso, à medida que prioridades se
modificam em resposta a mudanças sociais e econômicas, é provável que aumente
a fragmentação dos modelos e das ferramentas educacionais tradicionais.
A avaliação educacional oferece um exemplo poderoso da diferença potencial
entre as perspectivas educacionais modernista e pós-modernista. A citação a seguir
descreve uma perspectiva mais humanista e individualizada sobre essa tecnologia
educacional caracteristicamente positivista:
Se ser um aprendiz tem a ver com tornar-se membro de uma comunidade e engajar-se em
normas de prática social e emprego de ferramentas, ou se a ‘criação de conhecimento’ é
admitida como um resultado importante da aprendizagem em uma sociedade do
conhecimento, a necessidade percebida de instrumentos válidos e confiáveis de avaliação [...]
poderia desaparecer [...] Se os resultados da aprendizagem que nos interessam são dinâmicos,
mutantes, e às vezes originais e únicos, precisamos de uma nova metodologia de avaliação,
talvez mais baseada em etnografias ou em abordagens às ciências sociais revistas por pares,
apreciação e conhecimento especializado em artes e advocacia, testemunhos e julgamentos
legais (JAMES; BROWN, 2005, p. 19).
724 Broadfoot

Tal abordagem à avaliação contrasta radicalmente com o tipo de abordagem


modernista incorporada na maioria das formas contemporâneas de avaliação e
testes que são recomendados a partir de uma postura objetivista. O conjunto de
pesquisas internacionais sobre desempenho educacional em anos recentes oferece
um dos exemplos mais poderosos dessa tradição, pela utilização que tais pesquisas
fazem de metodologias quantitativas sofisticadas para fins comparativos. Revendo
o papel central da OCDE nesses estudos, McGaw (2004) faz a seguinte descrição
da busca, por um consórcio de 30 países membros, de indicadores educacionais
que permitiriam:
O exame e a avaliação sistemáticos do desempenho de um Estado por outros Estados, com o
objetivo final de ajudar o Estado avaliado a aprimorar sua formulação de políticas, adotar práticas
mais adequadas e ajustar-se a padrões e princípios estabelecidos (PAGANI, 2002, p. 1).

Esse projeto baseia-se em um modelo de educação que assume o formato tamanho


único. Evidentemente, trata-se de um modelo imperfeito, não só por não levar em
consideração diferenças contextuais importantes entre os países envolvidos, mas
também por não questionar as estruturas e o provimento aceitos da educação formal,
tal como essa educação evoluiu ao longo do último século, aproximadamente.
Entretanto, embora muitos pesquisadores com enfoque comparativo tenham
deplorado ao longo da década as inadequações técnicas dessas avaliações
internacionais de desempenho (ver, por exemplo, GOLDSTEIN, 2004; BROWN,
1999), até agora houve poucas tentativas de desafiá-las nos termos expostos acima
– isto é, de que essas avaliações de desempenho representam a imposição global,
cada vez mais forte, de um modelo unidimensional de educação que reforça e
celebra apenas uma pequena parte da rica trama da aprendizagem efetiva e
potencial. Quanto mais os países se esforçam para fazer comparações entre si por
meio desses critérios comuns, mais improvável se torna a busca por outros tipos
de resultados de aprendizagem menos suscetíveis de avaliação formal, ainda que
possam ser mais importantes.
Ensaio esses argumentos para destacar a necessidade urgente de reconhecimento,
pelos educadores comparativistas, de que o campo vem-se tornando cada vez mais
influente em termos de políticas, de modo que também aumenta
proporcionalmente a responsabilidade da educação comparada de ser autocrítica
em relação a seu foco e à sua metodologia. Na verdade, seria uma triste ironia que
o dinamismo contemporâneo do campo se mostrasse, ao final, como uma força
reacionária, ao invés de realizar seu potencial singular de provocar um
questionamento fundamental de perspectivas aceitas na educação.
Se a revolução digital e a aurora da era da informação significam que o
provimento de educação formal vem-se tornando uma parte relativamente pequena
da diversidade de oportunidades de aprendizagem disponíveis para os indivíduos,
os estudos comparativos sobre essas aprendizagens precisam incluir a maior
Tempos de revolução científica? 725

variedade possível de perspectivas teóricas, e todo o cânone de metodologias


disponíveis, de análises estatísticas complexas, baseadas em enormes bancos de
dados quantitativos em um dos extremos, até estudos etnográficos intensivos, no
outro. Um foco comparativo no próprio processo de aprendizagem oferece um
projeto intelectual muito mais ambicioso, com um potencial de pesquisa que
engloba a contribuição de disciplinas em escala e com diversidade que dificilmente
seriam imagináveis anteriormente, para abordar, por exemplo, o domínio muito
negligenciado do afetivo – o papel desempenhado por percepções e sentimentos
do aprendiz individual. Assim, estudos comparativos poderiam recorrer aos insights
derivados de áreas desde a antropologia, a neurociência, a ciência política, até
engenharia de sistemas e artes, de forma a alcançar uma compreensão muito mais
profunda sobre as constantes e os contextos da aprendizagem.
A contribuição inicial da adoção de uma perspectiva de teoria comparada da
aprendizagem seria problematizar o discurso da educação comparada, uma vez que
o aparato existente de terminologias e premissas educacionais muito provavelmente
encorajaria viseiras conceituais coletivas. Até mesmo os termos mais familiares –
comparativo, internacional, sistema e política – incorporam um conjunto de
suposições que não são questionadas a respeito do foco e dos conteúdos desses
estudos. Sendo assim, esses termos, como forma de discurso, são em si mesmos
fonte de poder e de controle (FOUCAULT, 1977).
O leitor cético pode sentir, justificadamente, que essa difusão de um novo jargão
não é necessária nem útil. Sem dúvida, é verdade que durante um século ou mais
a educação comparada ofereceu uma grande variedade de insights valiosos sobre
aspectos da prática e do provimento educacional – a gestão deliberada da
aprendizagem –, e que são esses insights que constituem a base da ascendência atual
do campo. Entretanto, apesar desses sucessos, sugiro que, se a educação comparada
permanecer nesse paradigma no futuro, vai encontrar-se em um círculo vicioso de
autorreferenciamento e autoreforço, no qual a pesquisa fracassa em desafiar de
qualquer modo fundamental as maneiras convencionais de conceber a
aprendizagem e, portanto, as questões e os problemas educacionais. Não se
mostrando à altura do desafio da mudança, a educação comparada descobrirá que
a validade e a confiabilidade do processo de pesquisa estão sujeitas a uma erosão
progressiva e, com elas, o potencial de impacto do campo.
Em contraste, um estudo comparativo da aprendizagem, a que me refiro aqui
como teoria comparada da aprendizagem, oferece uma diversidade excitante de
novas rotas de pesquisa. Essa educação neocomparada conservaria um lugar
importante para o projeto existente de comparação de processos educacionais em
diferentes culturas. No entanto tenderia a envolver uma abordagem mais
interdisciplinar, até mesmo metadisciplinar, na qual diversas disciplinas sociais,
como sociologia, política, economia, geografia, estudos culturais, antropologia e
história se combinam ocasionalmente com ciências físicas e medicina, para iluminar
726 Broadfoot

as realidades complexas e inter-relacionadas que afetam a aprendizagem. Exemplos


a esse respeito poderiam incluir a interação entre dieta e resultados de aprendizagem
em diferentes culturas, ou o impacto da poluição sobre o funcionamento cerebral
em diferentes contextos nacionais. Em ambos os casos, embora possa haver
diferenças significativas entre as intervenções educacionais nos contextos
comparados, essas intervenções podem, em última instância, ser menos
significativas do que diferenças provocadas por fatores muito diferentes entre as
populações estudadas. Sugiro que o foco na aprendizagem, mais do que na
educação em si, aumenta a probabilidade de levar em consideração esses outros
fatores e essas perspectivas. Isso, por sua vez, encoraja o desafio às fronteiras
estabelecidas do campo – um desafio que provocará novas questões e preocupações,
assim como, ao final, produzirá novos insights que questionarão a dominância dos
discursos prevalentes sobre o que é desejável na educação, e de que forma pode ser
alcançado de maneira mais eficaz.

Alguns problemas de metodologia


A mudança do foco do estudo comparativo da educação para a aprendizagem
requer também o desenvolvimento e a utilização de novas ferramentas de pesquisa
que extraiam o máximo de vantagens dos avanços tecnológicos contemporâneos em
relação à sua capacidade de captar e comparar realidades sociais. Esses
desenvolvimentos permitem antecipar a possibilidade de que o século XXI testemunhe
uma evolução significativa em rigor, escala e inovação dos métodos de comparação.
Trinta anos atrás, escrevendo para uma edição especial do periódico
“Comparative Education” dedicado ao estado da arte naquela ocasião, sugeri que
“educação comparada não é uma disciplina, e sim um contexto” (BROADFOOT,
1977); que precisa ser concebida como parte de uma perspectiva concebida de
modo mais geral – e a repetição de palavras aqui é intencional – de ciência social
interpretativa. Os desafios da educação comparada são, portanto, os desafios da
ciência social como um todo. Como pesquisadores com enfoque comparativo,
tentamos constantemente tornar o estranho familiar, reconhecer que, em uma
ciência cujas principais ferramentas são as palavras, é necessária uma busca contínua
de novas epistemologias, novas ferramentas metodológicas e novos pontos de vista.
Entretanto os estudos comparativos também representam um desafio particular,
uma vez que estão potencialmente entre as mais poderosas de todas as metodologias
da ciência social, uma vez que constituem algo como um laboratório virtual para
o estudo de diferentes abordagens a aspectos da organização social. É o
reconhecimento desse potencial que alimenta atualmente o crescimento
significativo de estudos comparativos internacionais de larga escala, tais como o
European Social Survey (ESS)2, que envolve uma série de levantamentos

2. Disponível em: <www.europeansocialsurvey.org>.


Tempos de revolução científica? 727

colaborativos entre mais de 20 países, para comparar aspectos centrais da vida


contemporânea nesses países.
Mas se os estudos comparativos oferecem talvez a melhor aproximação, no
campo da ciência social, aos métodos sistemáticos de pesquisa da ciência natural,
também estão associados a alguns dos desafios metodológicos mais difíceis. Isso se
aplica particularmente ao estudo comparativo da aprendizagem, uma vez que este
envolve uma interação tão complexa de diferentes fatores. Assim, como esbocei
acima, uma teoria comparada da aprendizagem provavelmente requer abordagens
metodológicas sofisticadas que se aproveitem ao máximo das novas tecnologias de
pesquisa social atualmente em desenvolvimento.

Culturas e contextos
Não surpreende que os desafios enfrentados pelo desenvolvimento da educação
comparada sejam amplamente compartilhados com outros campos de pesquisa social
aplicada, como políticas sociais. Atualmente todas as disciplinas da ciência social
devem responder aos desafios da globalização, o que se reflete na importância
crescente de um foco internacional tanto para as questões de pesquisa quanto para a
organização de equipes de pesquisa. Por exemplo, a iniciativa recente da União
Europeia de criar redes de excelência3 é típica da tendência crescente a colaborações
internacionais mais amplas envolvendo vários países e o desenvolvimento de
comunidades de pesquisadores de diferentes nacionalidades. No entanto, embora em
princípio apoie a lógica e a prática dos estudos comparativos, essa cooperação também
salienta os problemas endêmicos do trabalho em diversos contextos e culturas.
Embora esses problemas estejam presentes em estudos quantitativos tanto
quanto em estudos qualitativos, é em relação a estes últimos que algumas das
questões centrais dos estudos comparativos se tornam particularmente intratáveis.
A dificuldade de obter equivalência de conceitos e comparabilidade de significados
entre culturas e contextos, por exemplo, ou a representatividade dos casos
escolhidos para estudo são particularmente salientes quando a possibilidade de
generalização depende de um número relativamente pequeno de casos. A lógica
que subsidia a escolha dos casos ou a seleção dos países afeta criticamente a validade
do estudo. Embora a premissa-padrão seja comparar os casos mais semelhantes,
este nem sempre é o formato mais produtivo, o que não é fácil identificar no início
de um estudo qualitativo. Quando os estudos dependem muito de palavras, mais
do que de dados codificados numericamente, pode ser problemático trabalhar com
dados brutos que raramente são traduzidos na íntegra, ou que já foram traduzidos,
uma vez que esses dados estão inevitavelmente sujeitos à sobreposição da
interpretação humana dos entrevistadores e tradutores, assim como dos próprios
pesquisadores. Além disso, os dados nos quais a análise se baseia são frequentemente

3. Disponível em: <www.frontierseu.org/networks>.


728 Broadfoot

resumos de casos – casos que muitas vezes não são comparáveis por terem sido
produzidos por uma equipe internacional, e principalmente quando são derivados
de fontes governamentais.
Entretanto, por mais difíceis que sejam em termos metodológicos, esses
problemas precisam ser abordados para que se possa obter uma base suficientemente
rigorosa para estudos comparativos qualitativos. Como argumentou Stenhouse
(1979), é necessária uma ênfase muito maior nas evidências na realização de estudos
comparativos, porque é por meio do provimento de evidências que:
[...] a experiência é tornada pública para convidar avaliações pelo diálogo, e essas avaliações
repousam sobre a possibilidade do apelo a evidências. Essas evidências, fonte fundamental de
dados para a educação comparada, devem ser descritivas. E vou argumentar que desde que se
tornou uma área autoconsciente de estudo acadêmico, a educação comparada dedicou muito
pouca atenção à observação e à descrição, preferindo enfatizar abstrações como estatísticas ou
medidas, por um lado, e sistemas escolares, por outro [...] [Uma] base comparativa para a
interpretação é extremamente importante. Estou [...] pedindo que se desenvolva em nosso campo
uma representação mais bem-fundamentada da realidade educacional cotidiana com base no
estudo cuidadoso de casos particulares (STENHOUSE, 1979, p. 10).

Compartilhando o acesso aos dados


Se o ponto de partida de uma teoria comparada da aprendizagem é a realidade
vivida do aprendiz individual, seus sentimentos e suas experiências, o tipo de
observação e descrição pedido por Stenhouse precisa ser seu ponto de partida. Essa
abordagem requer a aplicação de métodos qualitativos específicos, entre os quais a
coleta de dados biográficos e visuais, de forma a compreender a diversidade da
experiência individual e o impacto de mudanças – isto é, métodos que possam captar
a interseção de tempo e espaço. Essas comparações baseadas em casos, mais do que
aquelas baseadas em variáveis, proveem uma compreensão das diferentes camadas do
contexto. Podem constituir a base para comparações controladas ou apresentar-se
simplesmente sob a forma de uma colcha de retalhos de estudos de caso qualitativos.
Mas qualquer que seja seu desenho, os dados produzidos por estudos que
enfatizam observação e evidências colocam um desafio particular em termos de
acumulação, armazenamento e acesso futuro. Quando grandes somas de dinheiro
são investidas em um projeto comparativo transnacional, é claramente desejável
que seus produtos sejam armazenados de forma a ser facilmente acessíveis a outros
pesquisadores no futuro. Mais uma vez, foi Stenhouse quem exortou os
pesquisadores a ser “meticulosos em relação a seus registros e, assim que
completarem seus estudos, esses registros de observações e entrevistas em primeira
mão devem ser armazenados em arquivos nacionais que possam ser replicados
internacionalmente em microcópias”.
Se a primeira parte da exortação de Stenhouse já se mostrou de difícil realização
– por exemplo, a exigência do Reino Unido de armazenar todos os dados
Tempos de revolução científica? 729

qualitativos derivados de pesquisas financiadas pelo ESRC4 no arquivo nacional


Qualidata revelou-se dispendiosa e trabalhosa para os pequisadores em termos de
organização, financiamento, proteção e obrigações legais –, seria ainda muito mais
desafiador obter repositórios semelhantes em escala internacional, com todas as
questões legais e idiomáticas envolvidas. O rápido desenvolvimento da grey
literature5 na internet, associado ao desenvolvimento de repositórios com livre
acesso, representa um significativo passo à frente em nossa capacidade técnica
coletiva de compartilhar dados e análises. No entanto, persistem desafios
importantes quanto à gestão e ao acesso a essas fontes. Tal como ocorre em
qualquer equipe numerosa de pesquisadores, há questões mais ou menos
complexas de propriedade, autoria e arquivamento de dados, proeminência
crescente de questões de ética e de governança da pesquisa, e exigência de
transparência em relação aos respondentes, sugerindo uma necessidade crescente
de protocolos e padrões, orientações de pesquisa e um código de ética acordados
internacionalmente. Porém, no momento não existe órgão internacional que
traduza essas pressões em ações.

Restrições de financiamento
Os problemas associados à gestão e ao acesso a dados em larga escala são
agravados pelo regime predominante de financiamento de pesquisas.
Historicamente, os estudos em educação comparada têm tido dificuldade para
atrair financiamento. Mais recentemente, o reconhecimento cada vez maior por
parte dos governos quanto à importância de estudos comparativos tem implicado
maior disponibilidade de recursos, que, no entanto, normalmente mantêm um
foco nacional e de curto prazo. Isso não apenas dificulta a proposição de projetos
com foco mais internacional, como também torna os estudos e os dados produzidos
por eles vulneráveis a agendas políticas nacionais e a protecionismo quanto ao
acesso. Embora estejam surgindo alguns sinais positivos quanto à cooperação
internacional em armazenamento de dados e disponibilização de acesso, esses
desenvolvimentos ainda não mobilizaram o esforço internacional continuado que
seria necessário para criar repositórios de dados na escala internacional significativa
que prevalece atualmente em outros campos, como o da medicina.

O déficit de habilidades
Há ainda o problema do déficit de habilidades – de uma equipe técnica
internacional de pesquisadores capacitados em nível suficientemente alto não só

4. NT: ESRC – Economic and Social Research Council (Conselho de Pesquisas Econômicas e Sociais).
5. NT: Grey literature – todos os tipos de literatura não disponíveis nos canais normais de comercialização,
incluindo relatórios, memorandos, panfletos, notas técnicas ou outros documentos produzidos e publicados
por agências governamentais, instituições acadêmicas e outros agentes.
730 Broadfoot

nas metodologias quantitativas e qualitativas básicas da educação comparada, mas


também nas competências linguísticas, teóricas e metodológicas específicas
necessárias para a realização de estudos comparativos rigorosos. A tarefa
excepcionalmente desafiadora de estudar dois ou mais locais, cada um dos quais
com seus diversos níveis de contexto e de cultura que têm impactos complexos
sobre a aprendizagem, demanda indivíduos com capacitação e experiência muito
específicas. Como exemplificam diversos estudos recentes de educação comparada
(OSBORN et al., 2003; ALEXANDER, 2000), o antropólogo que empreende um
estudo etnográfico em determinado contexto de sala de aula ou em uma
determinada tradição cultural de aprendizagem enfrenta uma tarefa
exponencialmente mais complexa quando o estudo se torna uma comparação entre
múltiplos locais e baseada em uma equipe. A necessidade de trabalhar em equipes
cada vez mais interdisciplinares e de ser capaz de acessar e utilizar metadados de
todos os tipos tende a exigir uma elevação significativa no nível de capacitação
metodológica, tanto de pesquisadores novatos quanto dos mais experientes, para
que disponham das habilidades necessárias para tirar proveito desses novos recursos.
Como argumentou Holmwood (2005), em consequência de todos esses
problemas associados à pesquisa comparativa, é grande o número de estudos
comparativos, entre os quais muitos no campo da educação comparada, que
apresentam aprofundamento sem amplitude, sob a forma de estudos em
profundidade com foco estreito em um único contexto ou em um único caso; ou,
no extremo oposto, amplitude sem profundidade, manifestada em projetos
comparativos transnacionais em grande escala, frequentemente quantitativos, que
procuram armazenar dados básicos sobre um grande número de casos.
A realização de estudos comparativos de aprendizagem – ou o que chamei de
teoria comparada da aprendizagem – requer o rico poder descritivo de uma
abordagem qualitativa, uma vez que apenas esse tipo de abordagem pode preservar
a integridade cultural e, portanto, representar com validade a integridade
situacional da aprendizagem. Embora seja incorreto depreciar o valor de pesquisas
comparativas mais quantitativas e em larga escala, tanto para a formulação quanto
para o teste de hipóteses, sugiro que esses estudos tendem a reforçar modos
ultrapassados de pensar sobre o provimento educacional e, particularmente, sobre
a aprendizagem. A atração espúria daquilo a que o primeiro-ministro britânico
oitocentista Benjamin Disraeli se referiu como “mentiras, malditas mentiras e
estatísticas” tem um grande potencial de reificação. Como é amplamente
reconhecido, dados estatísticos, por si sós, tendem a não ser capazes de explicar e
situar os padrões que documentam.
A Figura 1 oferece um exemplo típico a esse respeito. Utilizando dados do Pisa,
da OCDE, a figura apresenta um conjunto muito interessante de dados sobre a
relação entre desempenho em matemática, considerado como função de diferenças
internas às escolas e entre escolas, e background social. Por mais poderosas que
Tempos de revolução científica? 731

sejam, essas comparações seriam substancialmente mais valiosas se estivessem


inseridas em uma base de dados muito mais abrangente, com diferentes tipos de
dados interdisciplinares sofisticados e consistentes, coletados ao longo de um
período extenso.
Pelo mesmo argumento, os estudos qualitativos são atormentados pela
dificuldade de produzir resultados que sejam ao mesmo tempo em grande escala e
suficientemente convincentes em termos de rigor para que sejam capazes de desafiar
ortodoxias aceitas. A consecução bem-sucedida de uma teoria comparada da
aprendizagem que ofereça insights abrangentes e generalizáveis sobre aprendizagem
exigirá que esses dois desafios sejam superados. Isso vai requerer uma mudança no
ritmo da escala de coleta e na gestão atual de dados e, ao mesmo tempo,
financiamentos em maior volume e mais contínuos, e um aumento significativo
da cooperação internacional.
Até aqui argumentei que a contribuição potencial da educação comparada, tal
como de outros campos de estudo comparativo, tem sido limitada, tanto pelo
peso do acúmulo de posições epistemológicas abstratas e diferenciadas, que podem
ser encontradas na história do campo, quanto pelas limitações inerentes às
abordagens estabelecidas de coleta e análise de dados. Na terceira seção deste
capítulo, exploro as perspectivas de superação dessas limitações em relação ao
potencial de expansão exponencial da escala e da qualidade do empreendimento,
mantendo-se a validade ecológica do tema. Considero inicialmente a contribuição
metodológica potencial de novas ferramentas metodológicas e, por fim, a
perspectiva epistemológica que deveria mobilizar a utilização futura desses novos
e poderosos instrumentos de pesquisa.
100
80
60
40
20
0
-20
-40
-60
-80
Entre
Entre escolas, não explicada
expliccada por background
backgrroound social
soocial
Broadfoot

Entre
Entre escolas, explicada por
p background
backgrroound social
Dentro
De o das escolas
entr
Fig1. Variância no desempenho dos estudantes em matemática no Pisa 2003, separada em componentes intra e interescolares. Fonte: OECD, 2004, p. 383.
732
Tempos de revolução científica? 733

Novas questões, novas ferramentas


Como foi sugerido acima, um dos desenvolvimentos contemporâneos mais
promissores nos estudos comparativos é a contribuição potencial das novas
tecnologias. No nível mais básico, essas tecnologias estão transformando as
possibilidades de colaboração internacional entre pesquisadores. O advento dos
Access Grid Nodes6, por exemplo, que possibilitou reuniões eletrônicas virtuais, está
modificando as restrições de tempo e de custo que inibiam essas colaborações no
passado. Por outro lado, essas oportunidades de discussão e compartilhamento ao
vivo tornaram muito mais praticável a combinação de diferentes perspectivas
culturais, tão necessária para estudos comparativos autênticos.
Ainda mais significativa, potencialmente, é a capacidade das novas tecnologias
de transformar a escala de coleta e de armazenamento de dados. Vem-se tornando
cada vez mais possível captar desempenhos ao vivo de vários tipos, não apenas nos
registros mais usuais, em áudio ou vídeo, mas também utilizando digitalização, o
que, por sua vez, permite acesso a dados a distância, bem como comparações mais
sofisticadas entre seus conteúdos. Assim, por exemplo, os dados das três rodadas
existentes do European Social Survey (ESS) – que visa a oferecer uma medida de
alta qualidade da mudança a longo prazo em atitudes internacionais – envolvem
atualmente 27 países europeus e produziram um vasto volume de informações
comparativas sobre esses países, facilmente acessível a acadêmicos de todo o mundo
em seus próprios computadores.
Além disso, o acesso a grandes bancos de dados internacionais parece fadado a
crescer exponencialmente, em consequência dos avanços da e-Science. Trata-se da
capacidade de transportar enormes volumes de dados digitais por meio da Grid –
uma rede internacional de computadores de alta potência. Desenvolvidas por
profissionais de ciências naturais, essas tecnologias vêm sendo utilizadas por
cientistas sociais, para tornar possível o advento da e-Social Science. Atualmente é
possível começar a utilizar essas técnicas para, por exemplo, recuperar dados
arquivados – de forma a captar a realidade histórica em toda a sua riqueza. Assim,
no Reino Unido, por exemplo, o programa de digitalização JISC está possibilitando
a tradução de cerca de 600 volumes de relatórios censitários relacionados às Ilhas
Britânicas no período de 1801 a 1933, que estarão disponíveis para qualquer
pesquisador que deseje acessá-los. Histórias noticiadas desde 1896 e noticiários de
TV desde 1955 também estão sendo convertidos em um arquivo histórico digital.
No momento, esses projetos não focalizam diretamente a educação, mas é fácil
ver de que forma a disponibilidade de uma grande quantidade de dados digitais –
sejam numéricos, pictóricos ou textuais – transformará nossa capacidade coletiva
de questionar a realidade da vida social em uma base comparativa. No devido

6. NT: Access Grid Nodes – conjunto de sistemas e serviços gerenciados e programados como uma unidade.
São os componentes básicos de um evento virtual.
734 Broadfoot

tempo, a disponibilidade de levantamentos qualitudinais – bancos de dados


qualitativos longitudinais sobre aspectos da vida social em diferentes países –
complementarão os levantamentos quantitativos longitudinais existentes, que
constituem há muito tempo a base de sustentação dos estudos epidemiológicos em
saúde pública e, em certa medida, em educação.
Esses desenvolvimentos permitem começar a imaginar o advento de estudos
comparativos de uma ordem de magnitude bem diferente daquela de estudos
realizados no passado, com bancos de dados e ferramentas de busca associadas que
começam a rivalizar com algumas das instalações mais prestigiosas das ciências
naturais, como o acelerador de partículas de alta velocidade no CERN7, na Suíça,
viabilizado por meio de colaboração científica de muitos países. Já não é tão difícil
começar a visualizar um futuro no qual a capacidade coletiva de realização de
estudos comparativos será amplamente aprimorada pela disponibilidade de grandes
bancos de dados bem organizados e textualmente ricos, dotados de interfaces
amigáveis. Esses recursos tendem também a trazer novos desafios metodológicos
em termos de gestão e propriedade de dados e acesso a eles, proteção da
confidencialidade, e assim por diante. Além de requerer protocolos éticos e
administrativos muito mais sofisticados, a operação desses laboratórios
comparativos em uma base de colaboração internacional apresenta desafios políticos
e metodológicos inteiramente novos. Isso já se evidencia nas tentativas da União
Europeia de criar um observatório europeu para as Ciências Sociais – European
Research Observatory for the Humanities and Social Sciences (EROHS).
Para aproveitar esses desenvolvimentos, será necessário que os acadêmicos do
campo da educação comparada, assim como de outros campos de ciências sociais
comparadas, sejam profissionais altamente capacitados em metodologia, bem como
no tema de estudo que escolheram, capazes de trabalhar com outras culturas e
disciplinas como uma comunidade global de pesquisadores. Como vem sendo cada
vez mais reconhecido, problemas e questões sociais prementes de nossa época são
globais e complexos, exigindo um grau sem precedentes de colaboração
interdisciplinar e internacional. Como já sugeri, uma dessas questões globais
contemporâneas é a necessidade de abordar os desafios novos e bastante substanciais
que o mundo da educação vem enfrentando, por meio da utilização de métodos
comparativos que permitam melhor compreensão da aprendizagem em todas as
suas modalidades e em todos os seus contextos.
Esses desenvolvimentos metodológicos e organizacionais têm potencial para
distanciar-nos significativamente do território tradicional da educação comparada.
Sugerem a possibilidade de que a coleta e a coordenação de dados relativos à
educação e à aprendizagem passem a ser tão sofisticadas e internacionalmente

7. NT: CERN – originalmente Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (Conselho Europeu para Pesquisa
Nuclear); atualmente denominado Organização Europeia para Pesquisa Nuclear. A sigla é utilizada também
em referência ao laboratório onde está instalado o acelerador de partículas.
Tempos de revolução científica? 735

coordenadas quanto ocorre atualmente em outros campos – como saúde ou


mudanças climáticas –, mantendo, no entanto, a profundidade necessária e a
diversidade de material qualitativo que é essencial para preservar a integridade
cultural dos dados. Como ilustra a afirmação a seguir, do Conselho de Pesquisa
Econômica e Social do Reino Unido, até agora isso normalmente não tem ocorrido,
nem mesmo onde já houve uma gestão de dados coordenada internacionalmente
e substancialmente interdisciplinar:
[...] o pesado investimento de organizações internacionais, como Conselho da Europa, Eurostat,
Organização Internacional do Trabalho, Nações Unidas e Organização Mundial da Saúde, na
obtenção de dados e harmonização post hoc de dados nacionais [...] não foi correspondido por
um nível equivalente de atenção à metodologia, à capacitação em métodos, desenho de pesquisa
e processos de pesquisa por parte dos financiadores. Em decorrência, muitos projetos financiados
por organizações internacionais limitam-se a séries de estudos paralelos (não comparáveis).
Frequentemente, equipes nacionais coletam dados sobre um fenômeno específico de seus próprios
países sem uma discussão prévia de questões metodológicas cruciais, tais como a construção social
de conceitos em diferentes condições culturais e comunidades nacionais de pesquisa, ou contextos
ideológicos (HOLMWOOD, 2005, p. 2).

É cada vez maior o reconhecimento de que toda a ciência social é global por
definição, e que, portanto, a utilização de métodos comparativos é fundamental
para a ciência social. Historicamente, a visão de muitos campos comparativos tem
sido limitada por disciplinas e escala e por um foco nacional. O potencial desses
estudos também foi limitado pelo insucesso em trabalhar em colaboração, e por se
satisfazer com uma abordagem caseira em termos de financiamento, sofisticação
metodológica e provimento de infraestrutura em larga escala.
Embora a educação comparada tenha sido caracterizada por algumas tentativas
louvavelmente ambiciosas de aumentar sua escala e seu impacto, como no caso do
estudo do Pisa anteriormente referido, essas colaborações internacionais estão longe
de ser típicas. Além disso, os desafios políticos e metodológicos inerentes a essas
colaborações resultaram inevitavelmente em limitações e compromissos em termos
de profundidade e comparabilidade dos dados coletados.

Rumo a uma educação neocomparada


Argumentei neste capítulo que, com as novas possibilidades metodológicas
propiciadas pelos avanços políticos e tecnológicos, é tempo para o engajamento
em um desafio coletivo de reengenharia da educação comparada. Isso não significa
simplesmente a busca de estudos mais ricos, mais aprofundados, de maior escala
ou com maior colaboração. Tampouco significa a criação de observatórios
comparativos sustentados ou laboratórios de armazenagem de dados em uma escala
até agora inimaginável no mundo das ciências sociais, e ainda assim acessível em
computadores pessoais, por mais importantes que esses desenvolvimentos
prometam ser. Novas oportunidades técnicas e metodológicas como essas terão
736 Broadfoot

pouca utilidade a menos que sejam acompanhadas pela disposição de repensar as


questões que motivam essas coletas e análises de dados.
Pois por mais sofisticada que se tornem as tecnologias de coleta e gestão de dados,
no que se refere às ciências sociais, é preciso que haja também um envolvimento
reflexivo do pesquisador com o contexto e a cultura. Há diferenças fundamentais
entre as ciências naturais e as ciências humanas, uma vez que, como argumentou
Habgood (1998), estas últimas são fundamentalmente interpretativas. As bases
filosóficas das ciências humanas, sugere Habgood, são definidas em termos:
[...] que não podem excluir o papel da mente humana na expressão de intenções, na geração de
significados e no discernimento de valores. [...] As ciências humanas buscam a compreensão por
meio de um processo de interpretação e da experiência vivida integral de ser humano [...] sem
permitir que disciplinas individuais obscureçam a complexidade e a interconexão da existência
humana real. [...] Mas ao refletirmos sobre o que somos, ou sobre o que nossa história nos tornou,
todas as disciplinas são relevantes, porque estamos situados no ponto de encontro entre todas
elas, tanto como observadores quanto como objetos de estudo (HABGOOD, 1998, p. 6, 10).

A educação comparada sempre teve um caráter implicitamente ou explicitamente


reformador, ou, na famosa expressão de Nicholas Hans, intencionalmente
reformador. O motivo da realização de estudos em educação comparada
normalmente não foi apenas o interesse acadêmico, embora haja lugar para ele.
Antes, como na maioria das demais áreas de pesquisa educacional, a meta tem sido
historicamente descobrir o que funciona e utilizar esses insights para subsidiar práticas
educacionais e a formulação de políticas educacionais. Embora poucos estejam
dispostos a questionar essa aspiração ampla como meta prospectiva, na prática a
busca de sua consecução repousa em um julgamento sobre o que constitui reforma
ou aprimoramento. Para mapear uma viagem, é preciso ter uma visão clara sobre
seu destino final, o que, por sua vez, implica a necessidade de um exame paralelo
das bases epistemológicas do que conhecemos como educação comparada.
O argumento central deste capítulo foi que aquilo a que nos referimos
atualmente como educação comparada precisa ampliar seu foco de forma a adotar
a aprendizagem de qualquer tipo como seu foco central. Sugeri que o campo
contemporâneo está limitado por circunscritores conceituais associados a premissas
modernistas sobre provimento educacional. Esses conceitos, que foram produto
de uma época muito diferente, continuam a ser um foco importante e produtivo
para o estudo comparativo da educação. No entanto, à medida que o próprio
mundo da educação passa a estar sujeito a mudanças cada vez mais radicais, da
mesma forma, sugiro, o centro de gravidade da educação comparada precisa
deslocar-se na direção de um foco mais centralizado na aprendizagem do que na
educação por si só. Devemos começar a questionar se no futuro o mundo da
educação precisará de salas de aula e escolas, de livros e de professores, de programas
de disciplinas e de exames como os que conhecemos hoje; qual será o impacto das
novas tecnologias – com sua capacidade para a aprendizagem individualizada, para
Tempos de revolução científica? 737

tornar a aprendizagem divertida, para prover retroalimentação imediata, e para ser


acessível em qualquer momento e em qualquer lugar – em diferentes culturas? Qual
será o peso da aprendizagem em instituições formais, em casa, na escola e no
trabalho, em idades diferentes e para finalidades diferentes? Que tipos de
aprendizagem serão mais importantes? Será que o aprender a aprender, por
exemplo, substituirá o aprender o quê ou o aprender como, como móvel principal
da aprendizagem? Onde estará situada a aprendizagem moral e espiritual em
comparação com outros tipos de conteúdos curriculares e de desenvolvimento de
habilidade nas sociedades do futuro?
É sobre as respostas a essas e outras perguntas semelhantes que repousa o foco
legítimo dos estudos comparativos futuros em educação. Sugeri particularmente que
a educação comparativa do futuro precisará ser capaz de estruturar e captar a
diversidade de aprendizagens que ocorrem bem além daquilo que o termo educação
abrange convencionalmente no presente. Felizmente, o advento dessa mudança de
foco de estudo na educação comparada coincide com a disponibilidade crescente
de ferramentas de pesquisa muito mais poderosas para a coleta e a análise de dados.
Sugiro que a capacidade dessas novas ferramentas para captar a rica complexidade
da vida cotidiana e para tornar esses dados amplamente disponíveis em uma base
internacional oferece uma oportunidade sem precedentes para que a educação
comparada se promova – de um empreendimento caseiro para o nível de uma
corporação multinacional. Pode-se esperar que, no futuro, colaborações
internacionais, contínuas e em larga escala, de equipes altamente capacitadas venham
a oferecer ao estudo abrangente da aprendizagem, cada vez mais, a colaboração até
hoje associada apenas a estudos de desempenho internacionais quantitativos.
À medida que consiga desenvolver essa capacidade de interdisciplinaridade e
de estudos qualitativos de aprendizagem em escala significativa, a educação
comparada tende a sair da posição de ferramenta pouco eficaz dos formuladores
de políticas, por um lado, ou, por outro lado, de empreendimento acadêmico
enigmático, para tornar-se uma força poderosa de mudança na forma pela qual
pensamos a educação. Acredito que essa educação neocomparada, centrada nos
próprios processos de aprendizagem, pode dar uma contribuição significativa para
o re-exame urgentemente necessário das metas da educação no mundo globalizado
contemporâneo. Adequadamente (ainda que não gramaticalmente) denominada
teoria comparada da aprendizagem, essa nova orientação poderá ser o primeiro
passo de uma revolução científica.
738 Broadfoot

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78

REIVINDICANDO UMA HERANÇA


PERDIDA: A VISÃO HISTÓRICA
HUMANISTA NA EDUCAÇÃO COMPARADA

Andreas M. Kazamias

Introdução
A história da educação comparada na segunda metade do século XX foi marcada
periodicamente por crises sistêmicas no sentido dado por Alvin Gouldner. O
historiador pode identificar essas crises sistêmicas no final da década de 1950 e início
da década de 1960, em meados da década de 1970 e primeiros anos da década de
1980, e nos últimos anos da década de 1990 e primeiros anos do novo milênio.
Segundo Gouldner, “a implicação central de uma crise não é que o paciente vá
morrer”, mas sim que o sistema “mudará de forma significativa em relação à sua
condição presente” (GOULDNER, 1970, p. 341), e que essa mudança pode
produzir “uma metamorfose básica em seu caráter total”. Em consequência desses
episódios de crise, a educação comparada pode não ter sofrido “uma metamorfose
em seu caráter total”, mas modificou-se de forma significativa. Uma mudança
significativa foi a metamorfose da educação comparada – de uma episteme
essencialmente histórico-filosófico-humanista em uma episteme essencialmente de
ciência social. O foco deste capítulo é duplo. Em primeiro lugar, examinam-se
criticamente as duas variedades de educação comparada como sistemas de
pensamento ou modos de investigação e formas de conhecimento. Os sistemas em
questão baseiam seus insights teóricos e suas abordagens metodológicas nos domínios
da história e da ciência social, e serão referidos aqui respectivamente como “educação
comparada histórica” e “educação comparada científica”. O segundo objetivo deste
capítulo é argumentar em favor de outro sistema intelectual, modo de investigação
e de conhecimento, ou outra variedade de educação comparada que, baseando-se
tanto na história quanto na ciência social, evite suas respectivas limitações. Esse
sistema alternativo será referido como “análise histórica comparativa”.

A educação comparada histórico-filosófico-humanista


Como foi examinado em detalhes na primeira seção deste livro, até a década de
1950 a abordagem dominante no estudo da educação comparada, tal como
exemplificada por acadêmicos notáveis, como Michael Sadler, Isaac Kandel, Nicholas

739
740 Kazamias

Hans e Robert Ulich, foi o que pode ser denominado abordagem “histórico-
filosófico-humanista”, ou “histórico-humanista-meliorista”. Outros comparativistas
– por exemplo, Brian Holmes – referiram-se aos principais representantes desse
gênero de educação comparada como “historiadores comparativistas” ou
“historiadores estudiosos da educação comparada” (HOLMES, 1965, p. 64).
Em forma epigramática, as principais características da geração histórico-
filosófico-humanista do discurso da educação comparada incluíram:
• A educação comparada é uma ciência humana, com a conotação e a denotação
do termo grego episteme e do alemão Wissenschaft; não é uma ciência social
empírica ou positivista. Segundo Hans, “a educação comparada como disciplina
acadêmica está exatamente na linha divisória entre as humanidades e as ciências
e, portanto, assemelha-se à filosofia, que é a formulação de ambas” (HANS,
1959, p. 299).
• Em associação com a colocação acima, e utilizando a classificação das ciências
de Karl Popper, a educação comparada é uma ciência histórica, e não uma
ciência social generalizadora. Como ciência histórica, seu foco epistêmico está
no esclarecimento e na explicação do particular, de eventos específicos, e não
em leis históricas universais (POPPER, 1957, p. 254).
• Em associação com a colocação acima, a educação comparada é uma episteme
hermenêutica, explanatória, que visa à interpretação histórica. Em uma das muitas
afirmações a respeito da natureza da educação comparada, Kandel escreveu:

A tese de que estudar a educação sem estudar todos os contextos antecedentes que lhe dão
sentido é reduzi-la à absorção com técnicas que, por mais úteis que sejam, só oferecem uma
abordagem restrita aos conceitos e propósitos fundamentais da educação. É significativo que
as primeiras e até hoje mais vívidas contribuições à filosofia da educação não tratem a
educação de forma isolada, mas em seu contexto político, social e ético. A real contribuição
da história da educação é introduzir o estudante à apreciação da relatividade da educação
quanto à multiplicidade de forças em seu contexto contemporâneo [...] Educação comparada,
o estudo de teorias e práticas educacionais atuais como sendo influenciada por diferentes
contextos, não é mais do que o prolongamento da história da educação para o momento
presente (KANDEL, s/d, p. 164-165).

E novamente:
O estudo da educação comparada como método de esclarecimento e interpretação de
questões educacionais tem seu lugar próprio e de direito ao lado do estudo da história da
educação; ignorar esses dois métodos de abordagem é deixar de reconhecer seu valor para a
construção de uma filosofia da educação e, consequentemente, correr o risco de tecer as teias
educacionais de Penélope (KANDEL, s/d, p. 185).

• Na medida em que trata de educação, não apenas no sentido estrito de


escolarização, mas no sentido amplo de paideia/cultura, a principal preocupação
da educação comparada como ciência humana deve ser com o ser humano, o
Reivindicando uma herança perdida 741

anthropos (homem). Deve, portanto, ser antropocêntrica (centrada no homem).


Como tal, deve ser permeada por uma filosofia humanista, e preocupada com
os grandes problemas – políticos, sociais, mas também éticos – enfrentados pela
humanidade.
Na década de 1960, período durante o qual a ciência social emerge como
sistema intelectual hegemônico, o discurso histórico-filosófico-humanista em
educação comparada, tal como indicado na Seção I deste livro, foi criticado por
uma nova geração de pesquisadores comparativistas com orientação científica, mas
também por historiadores revisionistas. Em decorrência, a trajetória metodológica,
epistemológica e pari passu a trajetória ideológica da educação comparada
desviavam-se para um caminho científico social.

Educação comparada baseada na ciência social


Tal como o enfoque histórico-filosófico-humanista na educação comparada, o
enfoque científico-social que se tornou dominante nos anos que se seguiram à
primeira crise dessa episteme, na década de 1960, é examinado em profundidade
na primeira seção deste livro. E tal como em relação àquele enfoque, vou aqui
referir-me muito brevemente às características distintivas desse gênero do discurso
da educação comparada, e comentá-lo criticamente. Pode ser útil começar
delineando algumas das características mais importantes da ciência social e do
método científico.
Predição e controle constituem o propósito último das ciências não humanas.
Ao perseguir esse propósito, os cientistas em geral formulam hipóteses explícitas,
testam-nas em laboratórios ou em outros locais ou contextos, e buscam estabelecer
generalizações ou leis universais. Enquanto os cientistas naturais ou físicos buscam
estabelecer leis universais relativas aos fenômenos físicos, os cientistas sociais tentam
fazê-lo em relação aos fenômenos sociais. Outra característica da ciência é que os
achados estão sujeitos a replicação para fins de confirmação ou refutação. Além
disso, uma das preocupações essenciais do cientista social é a explicação – isto é,
além de descrever os fenômenos sociais, ele está interessado em explicar por que
esses fenômenos são como são. Contudo, deve-se notar aqui que explicação nas
ciências sociais empíricas é diferente de explicações históricas.
Como participante dos debates sobre a natureza e o escopo da educação
comparada durante a crise da década de 1960 (KAZAMIAS, 1963), citei o método
de covariações de Nadel como um bom exemplo do método comparativo tal como
é utilizado nas ciências sociais. Segundo Nadel, as variações nos fenômenos sociais
inicialmente são observadas, e depois chega-se a uniformidades ou regularidades
gerais. Essas correlações ou covariações não são conexões causais; são do tipo: “X
varia da mesma forma que Y varia”, ou “quando ocorre A, ocorre também B”
(NADEL, 1951, p. 222-226). Embora eu considerasse o método de covariações
742 Kazamias

de Nadel um esquema extremamente valioso para a pesquisa em educação


comparada, indiquei também que, se não fosse utilizado com cautela, apresentava
certo grau de limitações e perigos. Afirmei que “tal como ocorre com a maioria
das ‘leis sociais gerais’, a lei do tipo ‘se A então B’ é necessariamente limitada, pois
obviamente as situações S(n) são limitadas”. Comentei então a natureza das leis
científicas nas ciências sociais, e especialmente na sociologia, que à época
subsidiavam os estudos comparativos em educação, em particular na sociologia
funcional. Escrevi a propósito:
Na medida em que a sociologia é uma ciência, as leis sociológicas devem necessariamente
corresponder a leis científicas com aplicabilidade universal e com poderes de explicação e predição.
Alguns sociólogos de fato tentaram [...] estabelecer proposições universais ou leis gerais do
comportamento humano. Entretanto, como notou Barrington Moore, pode-se afirmar com
segurança que ‘as generalizações da ciência social não chegam de forma alguma a ser tão amplas
e racionalmente necessárias quanto as da física e da química’ (KAZAMIAS, 1963, p. 391).

Em avaliações subsequentes da abordagem sociológica funcional em educação


comparada, escrevi:
No entanto, a perspectiva funcional-estrutural da década de 1960: a) resultou em tendências
reducionistas; b) restringiu os tipos de questões propostas; c) forçou os educadores comparativistas
a assumir uma ideologia conservadora em relação à escola; e d) levou-os a negligenciar aspectos
importantes da mudança educacional (KAZAMIAS, 1972, p. 408).

E mais: “o funcionalismo estrutural, como quadro de referência para a análise


e a interpretação da sociedade e das mudanças sociais, foi avaliado como orientado
para o consenso, politicamente conservador e a-histórico” (KAZAMIAS;
SCHWARZ, 1977, p. 162). Na mesma linha, Benjamin Barber afirmou:
Apesar de sua alegada neutralidade, o funcionalismo está permeado de valores instrumentais,
como estabilidade (homeostase) e eficiência (bom funcionamento per se), que lhe dão um traço
estático e politicamente conservador [...] ao mesmo tempo, por recusar-se a abordar frontalmente
os propósitos categóricos e os projetos humanos, o funcionalismo despolitiza seu objeto de estudo
e banaliza seus conteúdos (BARBER, 1972, p. 430-435).

Outra variante da educação comparada científica foi defendida por cientistas


sociais positivistas, dos quais os mais proeminentes foram Harold Noah e Max
Eckstein, da Universidade de Columbia, e George Psacharopoulos, anteriormente
da London School of Economics e, mais tarde, do Banco Mundial. Como escrevi em
outro trabalho:
Noah e Eckstein, dois influentes comparativistas, defenderam uma educação comparada científica
que se conformaria a toda a armadura epistemológica e metodológica daquilo que Benjamin
Barber havia chamado de ‘metodologismo’ e que viemos a chamar de ‘empirismo metodológico’
– ou seja, formulação e teste de hipóteses, verificação, controle, explicação científica, predição,
quantificação, positivismo e construção de teorias (KAZAMIAS, 2001, p. 441).
Reivindicando uma herança perdida 743

Alguns dos comparativistas contemporâneos, entre os quais este autor,


criticaram o discurso científico emergente na educação comparada, especialmente
o mote positivista. Entre outras coisas, criticamos os paradigmas científicos
emergentes por serem a-históricos. Critiquei também, como apontei acima, a
abordagem histórico-filosófico-humanista tradicional. Pedi, ao invés, uma
abordagem “histórica revisionista, uma abordagem que combine história e ciência
social” (KAZAMIAS, 1961, 1963). Referi-me a essa abordagem como análise
histórica comparativa, uma abordagem que construiria uma episteme educacional
histórica comparada, afim à história comparada e à sociologia histórica comparada.

História comparada, sociologia histórica


comparada e educação histórica comparada
Segundo Marc Bloch, historiador da Escola dos Annales Franceses de
Historiografia, a história comparada é uma disciplina puramente científica,
orientada para o conhecimento, não para resultados práticos. A história, aponta
ainda Bloch, “não é animada pelo amor ao passado, e sim pela paixão pelo presente;
é a capacidade de compreender os vivos [que] é, na verdade, a maior qualidade do
historiador” (BLOCH, 1964, p. 43; LARSEN, 2001). E, na mesma linha
epistemológica, o eminente Max Weber notou que a história comparada utiliza o
método comparativo como ferramenta para lidar com a explicação de um
determinado problema histórico.
Considerando a história comparada mais sob uma perspectiva sociológica – isto
é, de ciência social – do que sob uma perspectiva histórica, Theda Skocpol,
socióloga historiadora comparativista, notou que há pelo menos três variantes da
história comparada:
Algumas histórias comparadas, tais como ‘Rebellious century, 1830-1930’, de Louise e Richard
Tilly, pretendem mostrar que um dado modelo sociológico geral é válido em diferentes contextos
nacionais. Outros estudos, como ‘Nation-building and citizenship’, de Reinhard Bendix, e
‘Lineages of the absolutist State’, de Perry Anderson, utilizam comparações principalmente para
salientar contrastes entre nações ou civilizações tomadas como conjuntos unidos. Mas há ainda
uma terceira versão da história comparada – que estou chamando aqui de método de análise
histórica comparativa –, na qual a intenção principal é desenvolver, testar e refinar hipóteses causais,
explanatórias, sobre eventos ou estruturas integrais em macrounidades, como Estados-nação
(SKOCPOL, 1974, p. 36).

E mais uma vez, sob a mesma perspectiva, de Skocpol e Somers:


A história comparada funciona como um modo auxiliar de demonstração teórica. Exemplos
históricos são justapostos para demonstrar que os argumentos teóricos aplicam-se
convincentemente a múltiplos casos que devem ajustar-se, caso a teoria em questão seja de fato
válida [...] O objetivo da comparação é identificar uma similaridade entre os casos – similaridade
em termos da aplicabilidade comum dos argumentos teóricos gerais [...] apresentados. E
novamente [...] a elaboração de hipóteses e modelos teóricos antes de voltar-se para ilustrações
744 Kazamias

de casos históricos é característica de todos os trabalhos de história comparada paralela


(SKOCPOL; SOMERS, 1980).

Essas referências salientam os elementos quintessenciais da história comparada


que seriam inerentes a uma episteme de educação comparada reinventada, orientada
historicamente. Um deles é o elemento de explicação e interpretação, a fim de
compreender qualquer aspecto do empreendimento educacional. Apenas esse
elemento epistêmico já diferencia a abordagem histórica comparativa de outras
abordagens prevalentes no campo, particularmente dos paradigmas científicos
positivistas. Esse elemento também coloca esse tipo de análise comparativa na
categoria de ciência explanatório-interpretativa, e não de ciência preditiva. Há uma
grande diferença entre essas duas modalidades de estudo comparativo, mas sua
elaboração está além do escopo deste capítulo. Em outras palavras, a análise histórica
comparativa trata mais de explicação e interpretação do que de predição. É uma
análise retrospectiva e não prospectiva, no sentido de que parte de condições históricas
particulares – causas, se preferirem – relacionadas ao sistema/evento focalizado.
O outro elemento quintessencial da história comparada que está implicado
acima, e que seria relevante para uma abordagem histórica reinventada para a
educação comparada, é o uso de conceitos, modelos e teorias na análise comparativa
de fenômenos educacionais. Em sua maioria, os historiadores não são teóricos, mas
quase todos os historiadores comparativistas utilizam, em maior ou menor grau,
insights teóricos de outras disciplinas. No entanto cientistas sociais e sociólogos são,
em sua maioria, teóricos. Os pesquisadores de história comparada com orientação
sociológica buscam combinar teoria social com análise e interpretação históricas,
com graus variáveis de ênfase na generalidade da teoria.
Em alguns desses estudos – por exemplo, em “Social change in the Industrial
Revolution”, de Neil Smelser –, padrões, estruturas, instituições ou processos
históricos específicos são abordados, analisados ou esclarecidos em termos de
modelos conceituais formais, explícitos, deduzidos de tradições teóricas sociológicas
– ou como exemplos desses modelos. A preocupação com um modelo conceitual
explícito, igualmente deduzido da teoria sociológica (nesse caso, uma combinação
de funcionalismo e marxismo), caracteriza também a abordagem de sistema-mundo
de Immanuel Wallerstein, aplicada em seu livro “Modern world system”. A
diferença entre essas duas abordagens é a generalidade da teoria. Smelser formula
uma teoria de mudança social de média amplitude, ao passo que Wallerstein propõe
um modelo com aplicabilidade universal, que pretende explicar o desenvolvimento
global desde a Revolução Neolítica até épocas recentes.
Ainda em outras formas de história comparada, podem não ser invocadas ou
utilizadas explicitamente teorias (por exemplo, funcionalismo, marxismo,
modernização, pós-colonialismo, ou outros tipos) ou modelos conceituais formais.
Em vez disso, no entanto, recorre-se a conceitos com aplicabilidade limitada ou
mais geral (por exemplo, “classe”, “capitalismo”, “poder”, “conflito”, “violência”,
Reivindicando uma herança perdida 745

“reprodução”, “dependência”, “democratização”, “globalização”, “sistematização”


e “segmentação”), que fornecem as “lentes”, ou o meio para selecionar, organizar
e interpretar o material histórico.
A maioria dos historiadores comparativistas e orientados histórica e
teoricamente, ou conceitualmente, evita utilizar teorias abrangentes do tipo
apontado acima. Um tipo de historiador comparativista e orientado teoricamente
é o que tem sido chamado de “usuário eclético”, descrito como segue:
Este acadêmico interessa-se por teoria, mas não consegue encontrar uma teoria abrangente
que seja inteiramente satisfatória. Assim, o usuário eclético reúne diferentes insights teóricos
sempre que pareçam ser aplicáveis, ou sempre que contribuam para esclarecer determinada
situação histórica. O historiador eclético é às vezes muito explícito quanto a seu ecletismo, e
chega a experimentar teorias diferentes sobre o mesmo conjunto de dados históricos
(KAESTLE, 1984).

Evidentemente, há poucos estudos educacionais comparativos orientados


historicamente que tenham utilizado teoria, seja no sentido abrangente sistemático,
seja no sentido eclético. Entre esses poucos, são dignos de nota os seguintes:

• Margaret Archer, “Social origins of educational systems” (1979).


• Andy Green, “Education and State formation” (1990).
• Philip Foster, “Education and social change in Ghana” (1965).
• Andreas Kazamias, “Education and the quest for modernity in Turkey” (1966).
• Andreas Kazamias, “Transfer and modernity in Greek and Turkish education”,
em A. M. Kazamias e E. P. Epstein (orgs.) “Schools in transition” (1968).
• Kazamias, A. M. e Massialas, B. G. “Tradition and change in education: a
comparative study”. Englewood Cliffs, NJ (1965).
• Muller, D., Ringer, F. e Simon, B., “The rise of the modern educational system”
(1989).
• Carnoy Martin, “Education and cultural imperialism” (1974).
• Carnoy Martin e Joel Samoff, “Education and social transition in the Third
World” (1990).
• Shipman, M. D. “Education and modernisation” (1971).
• Michalina Vaughan e Margaret S. Archer, “Social conflict and educational
change in England and France, 1789-1848” (1971).

Outra característica dos estudos históricos comparativos é que essas


investigações pertencem mais à tradição de pesquisa qualitativa do que à de pesquisa
quantitativa, o que, entre outras coisas, envolve comparação de configurações. Esses
aspectos da perspectiva epistemológica e metodológica histórica comparativa foram
bem colocados por Charles C. Ragin em seu livro “The comparative method”:
746 Kazamias

A tradição qualitativa não apenas se orienta para totalidades de casos como configurações, mas
também tende a ser historicamente interpretativa; o trabalho interpretativo orientado
historicamente tenta explicar desenlaces históricos específicos, ou conjuntos de desenlaces, ou
processos comparáveis, escolhidos para o estudo devido à sua importância para os arranjos
institucionais atuais ou para a vida social em geral. Tipicamente, esse trabalho procura extrair
sentido de casos diferentes, reunindo evidências de uma forma que respeita a cronologia, e
oferecendo generalizações históricas limitadas que, ao mesmo tempo, são objetivamente possíveis
e reconhecem as condições que viabilizam o contexto e os meios que limitam (RAGIN, 1987).

Ragin explica ainda:


Em sua maioria, os comparativistas, particularmente aqueles que têm orientação qualitativa,
buscam também interpretar experiências e trajetórias de países específicos (ou de categorias de
países). Ou seja, interessam-se pelos próprios casos, especialmente por suas diferentes experiências
históricas, e não simplesmente por relações entre variáveis que caracterizam categorias amplas de
casos (RAGIN, 1987, p. 3-6).

O último ponto formulado acima por Ragin indica mais um e último elemento
para nossos propósitos aqui: o elemento quintessencial dos estudos educacionais
históricos comparativos. Em nossa perspectiva, o historiador comparativista
interessa-se pela interpretação e pelo esclarecimento de experiências e trajetórias
específicas – isto é, pelos próprios casos particulares. Também nesse aspecto a
abordagem histórica comparativa à educação difere das variantes científicas
apresentadas acima, especialmente das empírico-metodológicas e da abordagem de
sistemas-mundo.
Os estudos históricos comparativos citados acima são exemplos de pesquisa
histórica comparativa desenvolvida principalmente no nível macro de análise
sociocultural. Eu gostaria de acrescentar aqui que há outros estudos históricos
comparativos dignos de nota, que examinam sincronicamente problemas e questões
educacionais no nível micro e, diacronicamente, aspectos e problemas da educação
na mesma sociedade. Há também estudos que focalizam uma sociedade, um tipo
de educação histórica comparativa, como é ilustrado pelos estudos de A. Sweeting
sobre Hong Kong (SWEETING, 1999).

Reinventando a visão histórica humanista em educação comparada


Ao argumentar pela reivindicação do legado histórico em processo de
desaparecimento na educação comparada, enfatizei em outro trabalho que a história
é também uma episteme humanista:
Ela trata da condição humana, com seres humanos como sujeitos, e não como mercadorias ou
números; com culturas humanas em sua totalidade, e não de forma estreita como culturas
econômicas, e com valores humanos; em suma, com conhecimento humanista e humanizador
no sentido amplo do termo (KAZAMIAS, 2001, p. 447).
Reivindicando uma herança perdida 747

E em meus comentários críticos nesse texto, apontei que o discurso histórico-


filosófico-humanista da educação comparada estava permeado por uma filosofia
humanista que se ocupava dos grandes problemas – políticos, sociais e éticos – que
a humanidade enfrenta.
A meu ver, a reivindicação do elemento humanista na educação comparada
também está implicada na visão de Patricia Broadfoot de uma educação
neocomparada. Em suas palavras:
Precisamos reconhecer que há uma posição de valor implícita em qualquer conceituação de um
problema e na escolha do método para seu estudo. Os educadores comparativistas precisam,
portanto, estar dispostos a engajar-se em debates fundamentais sobre a natureza de uma ‘vida
boa’ e sobre o papel da educação em relação a isso em um mundo no qual, cada vez mais, nada
é inquestionável. Em nosso papel singular que nos possibilita levar em consideração culturas e
países, perspectivas e tópicos, temos a responsabilidade de promover o debate para além da
discussão apenas de meios, e rumo à discussão de fins (BROADFOOT, 1999, p. 228-229).

Considerações finais
Recentemente, alguns comparativistas de nível sênior, como Rolland Paulston,
Max Eckstein, Robert Cowen, Joe Farrell, Wolfgang Mitter, Jurgen Schriewer, Val
Rust, Robert Arnove e Andreas Kazamias, e outros mais novos, como Patricia
Broadfoot, Vandra Masemann, Nelly Stromquist, Anthony Welch, Francisco
Ramirez e Carlos Torres, para nomear apenas alguns, assumiram o desafio do
ingresso no novo milênio e da reviravolta pós-moderna na teorização e/ou no
pensamento sociocultural e político-educacional, como uma oportunidade para
refletir sobre a tradição intelectual da educação comparada e, ao mesmo tempo,
engajar-se ativamente no mapeamento de novas trajetórias ou novos paradigmas
epistemológicos e metodológicos. Na nova era da modernidade tardia, e mesmo
da pós-modernidade, está criado o cenário para o desempenho de um novo ato
dramatúrgico na episteme mutável e multifacetada da educação comparada. No
Congresso da Comparative and International Education Society (Cies)1 de 2001, em
Washington DC, Marianne Larsen, uma jovem comparativista, dirigiu-se a nós e
à comunidade mais ampla de educadores que assumem esse enfoque nos seguintes
termos:
No Congresso de 2000 da Cies, Rolland Paulston encorajou-nos a usar a imaginação para visualizar
novas formas espaciais, visuais e discursivas de verdade, enquanto Andreas Kazamias proclamou a
necessidade de reinventarmos o histórico na educação comparada, para podermos compreender
melhor o mundo. Embora possamos concluir inicialmente que essas duas abordagens são
completamente divergentes, não é bem esse o caso. Nas discussões mais amplas sobre o futuro da
educação comparada, há múltiplas opções metodológicas e epistemológicas para todos os

1. NT: Sociedade de Educação Comparada e Internacional.


748 Kazamias

pesquisadores comparativistas. Temos muito a ganhar com o desafio às barreiras que limitam o
debate e o diálogo mais amplos. A educação comparada pode beneficiar-se da reinvenção de nossa
tradição passada de pesquisa histórica e, ao mesmo tempo, adotar de forma imaginativa uma postura
pluralista, estratégias multi-interpretativas e uma descrença geral quanto a metanarrativas
totalizadoras trazidas pelo pós-modernismo para a tradição do social científico (LARSEN, 2001).

Referências bibliográficas
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WEBER, M. Economy and society. New York: Bedminster Press, 1968.
79

ANTES E AGORA: IDEIAS-UNIDADE


E EDUCAÇÃO COMPARADA

Robert Cowen

Introdução
Na educação comparada, nunca desenvolvemos seriamente interpretações
comparativas de processos educacionais em contextos de tirania, guerra ou
revolução. Por que não? Não temos uma educação comparada que ofereça uma
compreensão comparativa dos processos educacionais em cidades-Estado (italianas
ou gregas). Por que não? Temos inúmeras narrativas sobre educação em países
pequenos. Alguma vez já aspiramos a uma educação comparativa de grandes
Estados? Temos algumas análises sobre o colonialismo e seus padrões educacionais.
Não temos trabalho comparativo sério sobre impérios. Por que não?
Em outras palavras, só temos examinado alguns espaços sociais, alguns tempos
sociais e apenas alguns processos políticos. Há como compreender por que isso
ocorre? Quais têm sido nossas regras de ordem epistêmica, e quais processos sociais
contribuíram para moldá-las e moldar nossas agendas mutáveis de atenção
acadêmica? E agora – com que devemos nos preocupar, senão com o fato de que
simplesmente não há um número suficiente de pessoas para realizar o trabalho que
precisa ser feito?

Antes e agora
Houve um tempo em que tínhamos algumas estabilidades simples, algumas
certezas reconfortantes na educação comparada: havia metodologias. Para um
estudante de mestrado em Londres, era estratégico saber diferenciar sua ciência
positivista (má) de sua ciência hipotético-dedutiva (boa). De modo geral, as
metodologias funcionavam como um princípio vital de exclusão: o conhecimento
dessa literatura diferenciava os pesquisadores de educação comparada de outras
tribos acadêmicas (como os sociólogos).
Em meados da década de 1960, havia uma segunda certeza em educação
comparada: todos os educadores comparativistas deveriam adquirir um
conhecimento sólido específico de regiões onde não viviam. Olhariam para outros
lugares – por exemplo, para a Europa Oriental e a União Soviética, ou para a França
e a Alemanha, ou para o Japão, ou para a China. Idealmente, isso significava morar

749
750 Cowen

nesses lugares, aprender os idiomas relevantes e desfrutar do conhecimento de uma


cultura estrangeira. Assim, o capital autobiográfico de uma geração expatriada de
pesquisadores de educação comparada (Bereday, Hans, Kandel, Lauwerys e assim
por diante) foi convertido no capital intelectual esperado, rotineiro, transmitido
institucionalmente para a geração seguinte. Esses temas remontam às
recomendações de George Bereday (1964), no Teachers College Columbia, quanto
ao treinamento de doutorandos e à constituição da equipe de docentes de educação
comparada no momento de seu apogeu. A mesma política de recrutar especialistas
via contexto de Estados-nação – normalmente um desastre epistêmico – foi
utilizada em Londres, a essa mesma época, no departamento de educação
comparada. De modo geral, independentemente de como fosse adquirido o
conhecimento específico por áreas geográficas de locais estrangeiros (o que podia
ser adquirido com um bacharelado em idiomas ou com experiência como membro
das forças armadas, ou como estrangeiro e imigrante), esse conhecimento era um
princípio vital de inclusão: era o conhecimento que diferenciava os pesquisadores
de educação comparada de outras tribos acadêmicas (como os sociólogos).
A consequência desses dois padrões foi realmente extraordinária. Nem mesmo
o brilho dourado das lembranças e o prazer genuíno que tive como estudante em
aprender, pensar e falar sobre a França e o Japão, ou a União Soviética, ou os
Estados Unidos, ou sobre filosofias da ciência e metodologias pode disfarçar a
insipidez intelectual da literatura que estava sendo produzida. Limitando-me a
criticar os amigos, o livro muito bem escrito de Nigel Grant sobre a União Soviética
(1968) era mais extenso e mais detalhado do que o livro subsequente de Janusz
Tomiak (1972) sobre o mesmo país, mas era – e continua a ser – difícil encontrar
em qualquer dos dois textos um argumento intelectual consistente. Os livros de
W. D. Hall sobre a França (1965, 1976) eram extremamente bem-fundamentados,
mas qual era seu argumento teórico? Esses livros estavam entre os melhores de sua
categoria, mas eram livros de narrativa. Constituíam um tipo de educação
comparada à espera de se construir, cujo nadir era, provavelmente, o esforço para
reunir descrições padronizadas de sistemas educacionais em regiões específicas, com
alguns comentários sobre o contexto social (McLEAN; COWEN, 1983).
A literatura anglo-saxônica sobre metodologia também se esquivava da tarefa
importante de criar uma educação comparada com uma problemática intelectual
complexa. A literatura metodológica ocupava muito tempo e muito espaço nos
periódicos – em uma época em que havia muito poucas pessoas especializando-
se em educação comparada. O debate metodológico também construiu um tipo
de educação comparada à espera de acontecer. No entanto, aquilo por que se
esperava nunca aconteceu. A educação comparada sofreu mais uma de suas
descontinuidades.
Entretanto, em meados da década de 1960, para se definir dentro da
universidade (em lugares como os Estados Unidos, o Canadá, o Reino Unido, a
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 751

Austrália), o campo de estudo precisava oferecer abordagens metodológicas


aparentemente diferenciadas em um momento de competição acirrada por prestígio
e espaço na universidade entre a filosofia da educação, a história da educação, a
sociologia da educação e a psicologia – os chamados fundamentos da educação
(COWEN, 1982). Se o pessoal da educação comparada provinha de toda parte
(literalmente) em relação a suas disciplinas acadêmicas originais, aparentemente, a
julgar pelo grande número de publicações (FRASER, 1964; BRICKMAN, 1966;
FRASER; BRICKMAN, 1968; HAUSMANN, 1967; NOAH; ECKSTEIN,
1969), era necessário ter uma história, e ter metodologias especializadas.
Deve-se notar mais uma vez, como alerta crucial, que a história comparativa
completa da educação comparada está ainda por ser escrita. Portanto, mais tarde
seria importante identificar de que modo essas proposições não eram válidas para,
digamos, a França, os países nórdicos, a Itália, a Espanha e a Alemanha (e
naturalmente, o Japão, a Coreia do Sul, a China e a União Soviética). Em grande
parte da Europa, e certamente na Alemanha Ocidental, a sociologia interna da
universidade e a fundamentação filosófica dos estudos educacionais estavam
produzindo uma tradição acadêmica diferente na educação comparada (Mitter,
Rust, nestes volumes), embora a agenda alemã de atenção ao exterior (seus estudos
de área) tenha acompanhado rapidamente linhas políticas de poder. Ambas as
proposições também são válidas para a Alemanha Oriental, naturalmente por
motivos diferentes.
O fato é que, enquanto o campo de estudo anglófono se reinventava em torno
de suas novas histórias e de suas novas abordagens, houve uma rápida mudança na
leitura do global.
Subitamente a educação comparada (como na Alemanha Ocidental) passou a
ser remodelada por novas linhas de poder internacional e de política externa, e pela
disponibilidade de financiamentos de pesquisa, mudando o que era estudado e
pesquisado: América Latina, China, Japão, Sudeste Asiático, Oriente Médio e
África ganharam novo destaque. Havia competição internacional por influência
internacional, principalmente na África, no Oriente Médio e no subcontinente
indiano. No Instituto de Educação em Londres, por exemplo, a mudança de rótulos
epistêmicos refletiu as mudanças na política externa: o antigo Departamento
Colonial foi substituído por educação em regiões tropicais, que rapidamente
mudou para educação em países em desenvolvimento. Essa rotulação voltaria a
mudar posteriormente, pelo menos duas vezes.
De modo mais geral, a palavra “internacional” não foi introduzida apenas nos
títulos departamentais – como aconteceu algumas vezes no Instituto de Educação
em Londres –, mas também no discurso profissional, como um definidor de um
campo de atuação e de influência. E o que é fascinante, isso ocorreu cada vez mais
nos títulos de um número cada vez maior de associações profissionais (MANZON;
BRAY, 2007).
752 Cowen

Diante do aguçamento das políticas externas, da mudança para educação e


desenvolvimento, da evidente capacidade de descrever contextos culturais e padrões
educacionais, e de suas novas pretensões ao status científico, a educação comparada
estava em melhor posição para reivindicar recursos da universidade – mas pagou
um preço alto.
Em primeiro lugar – e levou algum tempo para que as consequências
epistêmicas ficassem claras –, em termos de políticas externas norte-americana e
britânica, a educação comparada e internacional posicionou-se politicamente de
forma muito diferente daquela dos primeiros centros de estudos da educação
comparada no mundo anglófono, acadêmica e pedagogicamente desenvolvidos em
universidades como La Trobe, em Melbourne, algumas universidades canadenses
e algumas poucas universidades na Escócia, no País de Gales e na Irlanda do Norte.
Em segundo lugar, esse novo contexto político – e a agenda de pesquisa
substantiva derivada de políticas internacionais, o envolvimento dos governos em
desenvolvimento, e a competição política acirrada (FRASER, 1965) por estudantes
internacionais – salientou uma estranha lacuna: não havia na própria educação
comparada acadêmica de língua inglesa agenda alguma de atenção intelectual clara,
consensual, com algum nível de complexidade teórica. O apelo de Noah (em 1974)
pela busca de loose fish1 foi extraordinariamente revelador.
Em terceiro lugar, muito poucos trabalhos estavam sendo publicados, apenas
alguns bons artigos curtos, que combinavam clareza teórica e conceitual com uma
interpretação comparativa; em outras palavras, havia poucas publicações orientadas
deliberadamente para a teoria, e estas eram majoritariamente de sociólogos, entre
os quais a análise de R. H. Turner (1964) sobre mobilidade seletiva e mobilidade
equitativa; a tipologia de sistemas educacionais de Earl Hopper (1971); e vários
dos ensaios em Halsey, Floud e Anderson (1961), que interpretaram os imperativos
aparentes na relação de economias industriais com sistemas educacionais.
Esses ensaios contribuíram para começar a colocar de volta na garrafa (por
algum tempo) o gênio narrativo – o projeto infinitamente extensível de escrever
relatos sobre contextos específicos –, e o debate metodológico foi interrompido

1. NT: As expressões loose fish e, mais adiante, fast fish (literalmente, “peixe solto” e “peixe rápido”) são
emprestadas do artigo de Noah (1974) “‘Loose fish’ and ‘fast fish’ in comparative education”, no qual esse
autor remete a um capítulo de “Moby Dick”, de Herman Melville, para fazer uma analogia entre esses termos,
tal como empregados por Melville, e a situação da educação comparada. Em Melville, as expressões referem-
se a duas regras de posse de peixes (na verdade, baleias) nas disputas entre caçadores de baleias: loose fish é de
quem o pegar mais cedo; fast fish é de quem estiver com o peixe. Na analogia de Noah, a educação comparada
como área de estudo é ao mesmo tempo um fast fish, no sentido de que seus pesquisadores tornaram o estudo
comparativo e internacional da educação sua própria área de especialização; e um loose fish, porque
pesquisadores de outras disciplinas têm interesse nos fenômenos de educação e escolarização, e também
utilizam análises comparativas para o avanço de seus próprios campos de estudo. Noah pergunta então quais
são os fast fish da educação comparada – sobre o quê esse campo tem um domínio seguro? E, inversamente,
quais são seus loose fish – o que está disponível lá fora e que os pesquisadores da área têm capacidade e energia
para captar?
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 753

por um redirecionamento da atenção intelectual, assinalado pelos trabalhos de


Carnoy (1974) sobre imperialismo cultural, de Altbach e Kelly (1978) sobre
colonialismo, e por fim, de Robert Arnove (1980), em um ensaio teórico sério que
discute a análise de sistemas-mundo.
Ocorriam mudanças evidentes na educação comparada, mas alguns dos temas
vinham de fora. Havia pelo menos quatro dessas influências externas.
Em primeiro lugar, surgiram algumas ideias que normalmente não haviam sido
utilizadas na educação comparada (na América do Norte e na Europa Ocidental),
e essas ideias incluíam o marxismo e as variantes nele inspiradas – por exemplo,
Paulo Freire. Havia uma influência marxista nos textos sobre colonialismo que
eram, por si mesmos, uma nota que antecipava a importante questão levantada por
Arnove (1980) sobre uma educação comparada que examinasse um mundo de
poder hierárquico internacional. Em segundo lugar, como já foi indicado, alguns
dos melhores trabalhos comparativos do período eram de sociólogos. Por exemplo,
Turner e Hoper analisavam comparativamente a contextualização social da ambição
– um tema que normalmente não era explorado de maneira explícita (à época) na
literatura da educação comparada. Em terceiro lugar, havia um grande número de
trabalhos comparativos de historiadores da educação. Mais uma vez, esse era um
conjunto de trabalhos oferecidos por pessoas cuja área de atuação era externa à
educação comparada. Entre os acadêmicos estavam Wilkinson (1964, 1969),
Vaughan e Archer (1971), Ringer (1979) e Scotford-Archer (1979). A quarta
influência – também externa à educação comparada, a menos que seja incluída
aqui parte do trabalho de Kazamias sobre a Turquia (1966) –, foram as análises do
colapso das estruturas sociais das sociedades agrárias com o avanço da
modernização, concebidas sociologicamente, historicamente, comparativamente e
magnificamente por acadêmicos como Skocpol (1979) como revoluções sociais.
Houve também excelentes trabalhos realizados sobre países considerados “cisnes
negros”, cujas histórias contradiziam a teoria convencional de modernização – por
exemplo, de Beasley (1972, 1975) e Hall e Beardsley (1965), sobre o Japão.
Assim, a educação comparada revitalizou-se intelectualmente a partir do
exterior, no sentido de que pela primeira vez foi sensível a uma variedade de teorias
de dependência da América Latina, assumidas e re-elaboradas na América do Norte.
Acadêmicos de uma nova geração, que viveram o movimento estudantil de 1968,
reconfiguraram o colonialismo: este não deveria mais ser visto como um fato social
ligeiramente desafortunado, que existira antes que pudessem ter início (ou pior,
ser planejados) projetos de educação e desenvolvimento para o terceiro mundo
seriamente liberais e fundamentados em teorias. Agora o colonialismo era
finalmente interpretado na educação comparada como uma força social e histórica
importante, que havia modelado países e sistemas e identidades educacionais, e
essas forças e suas consequências requeriam uma exploração comparativa teórica e
consistente. Paralelamente, os temas da revolução e das mudanças sociológicas e
754 Cowen

históricas rumo à modernidade, iniciadas no século XIX e que continuaram no


século XX, tornavam-se disponíveis para uma exploração comparativa – ou seja,
para os educadores comparativistas. Até então a literatura da educação comparada
sobre revoluções era um pouco escassa – embora, como sempre, possam ser
encontrados bons relatos históricos narrativos (BARNARD, 1969; ou mesmo –
embora não fosse o ponto principal de seu texto – PASSIN, 1965). A inserção da
análise do colonialismo e de sistemas-mundo (do tipo que estava sendo esboçado
por Arnove) foi muito promissora no sentido de que essas perspectivas, quase que
axiomaticamente, abordariam simultaneamente relações políticas, econômicas e
educacionais internacionais.
Portanto, todos esses dados da evolução foram reposicionamentos intelectuais
e teóricos claros – vindos de fora – sobre o que seria considerado um trabalho de
boa qualidade em educação comparada. O que estava sendo rejeitado?
Os pressupostos sobre o universo social e o objetivo da educação comparada
incluíam quatro regras de ordem, que haviam moldado o campo em seus discursos
acadêmicos na década de 1950 e na maior parte da década de 1960 – assim como
haviam afetado sub-repticiamente grande parte do discurso metodológico, e elaborado
o projeto conjunto americano e britânico dos “World Yearbooks” de educação naquele
período. As regras de ordem epistêmica incluíam a concepção do tempo como uma
seta; a reforma educacional como uma série de linearidades graduais; os sistemas sociais
e educacionais como equilíbrios em evolução; e o pressuposto de que o objetivo da
educação comparada era reformar sistemas educacionais.
Todas essas hipóteses esfacelaram-se gradualmente na educação comparada
acadêmica (talvez também na educação internacional) na década seguinte, em parte
como consequência dos desafios intelectuais identificados acima. Esses desafios
perturbaram a problemática de baixo nível que satisfazia a educação comparada:
descrever sistemas educacionais, políticas educacionais e dinâmicas contextuais;
observar semelhanças e diferenças; e naturalmente, ensaiar e retomar seu momento
metodológico que, em retrospecto e à primeira vista, parece ser meramente um
momento de discussões ligeiramente divergentes entre pessoas com antecedentes
culturais e disciplinares extremamente diferentes quanto à forma de compreender
o que deveria ser chamado de educação comparada.
Essas influências externas ajudaram a reequilibrar a agenda – a tríade do que
chamei anteriormente neste trabalho “transferência, tradução e transformação”.
Essa tríade de relações tornava-se claramente visível (principalmente por meio do
tema do colonialismo). No entanto nossa preocupação com a tríade é maior e mais
profunda: a escola elementar prussiana, que há tanto tempo despertava interesse,
era comparativa nesse sentido: também havia levantado questões de transferência,
tradução e transformação. Mas essa agenda havia-se tornado temporariamente
obscura, em grande parte devido às maneiras pelas quais Jullien e Sadler haviam
sido interpretados à medida que foram sendo construídas as histórias do campo.
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 755

As influências externas esboçadas acima eram essencialmente intelectuais, mas


deve-se notar também que afetaram o campo em um momento em que havia
mudanças importantes na política mundial: a Guerra Fria mudava de forma e
desenvolvia uma competição cultural, econômica e política em relação ao que talvez
pudesse ser chamado agora de poder brando em partes do Leste da Ásia,
especialmente Japão e Coreia, na África e em grande parte da América Latina.
“Guerras por satélite ou por representação” (se é que esses termos técnicos podem
ser utilizados para guerras que mataram tanta gente) tornavam-se um padrão visível;
e a própria guerra do Vietnã alcançava grande visibilidade internacional.
Essas mudanças políticas importantes sugeriram uma releitura do global que
começou a redefinir a educação comparada. Em parte como consequência (e
ocasionalmente como uma consequência escandalosa), os acadêmicos passaram a
ser usados pelos governos ocidentais, liberais e eleitos democraticamente como
profissionais das ciências sociais aplicadas. Esse processo passou a incluir um
número cada vez maior de educadores com enfoque comparativo e internacional.
Dessa forma, o rompimento com a preocupação quase compulsiva com
metodologia e descrições intermináveis de contexto – que, a meu ver, decorriam
de uma superestimação altamente ideológica do aspecto de espírito vivo da
problemática que Sadler (HIGGINSON, 1979) tinha colocado em seu curto
ensaio sobre “até que ponto podemos aprender alguma coisa de valor prático”
– deu-se por meio do duplo distúrbio provocado por novas opções
epistemológicas e por uma leitura diferente do global. Nesse sentido, o tema do
colonialismo foi o marco simbólico de uma mudança radical no campo – mas
não foi apenas uma mudança epistêmica que empurrou o campo para novos
padrões de pesquisa e para agendas de atenção e inquietação intelectual: houve
também mudanças políticas.

Agora e antes
De modo geral, pode-se sugerir que isso acontece na educação comparada – agora
e antes. Naturalmente, levanta-se a questão de quando e por que ocorrem situações
do tipo “de vez em quando”. Levanta-se ainda mais um problema: esses saltos, ou
irregularidades, parecem, inicialmente, ter esfacelado o campo; devem ser anormais,
porque esses momentos são aqueles em que ocorrem nossas “descontinuidades
lamentáveis” e, evidentemente, descontinuidades são ruins (não são?).
Em termos analíticos pode ser mais útil sugerir que descontinuidades são
produtivas e necessárias. Não apenas acontecem inevitavelmente (o mundo social
muda mais rapidamente do que nossas teorizações a seu respeito), mas são também
muito estimulantes, como acabamos de argumentar. As descontinuidades
assinalam uma dupla mudança: uma mudança de episteme, que é a nossa
preocupação usual, aquilo que discutimos normalmente; e uma mudança nas
políticas internacionais, sobre as quais também falamos profissionalmente, mas
756 Cowen

que raramente apreendemos de forma analítica, juntamente com as mudanças nos


pressupostos epistêmicos do campo.
Em outras palavras, o argumento interpretativo que está sendo proposto aqui é
que a educação comparada e sua re-estimulação e seus renascimentos – e, portanto,
seus novos potenciais – estão longe de ser “descontinuidades lamentáveis”, que
representam um problema especial na educação comparada. São, antes,
compreensíveis analiticamente.
No entanto normalmente vemos nossa história e a nós mesmos de forma
bastante peculiar. Mesmo observando que as novas gerações de acadêmicos
precisam encontrar espaço intelectual para si mesmas, na educação comparada
provavelmente fomos longe demais ao contrastar tão frequentemente duas
singularidades – antes e depois. De uma forma ou de outra, inventamos uma
pletora de rótulos para identificar uma série de singularidades propostas. O processo
começou cedo, com a invenção de categorias tais como “os precursores” (NOAH;
ECKSTEIN, 1969). Ainda consideramos intrigantes as mudanças de uma
singularidade para outra e tendemos a nos angustiar com as descontinuidades – e
um indício é a criação de edições especiais nos periódicos sobre o estado da arte
nesses momentos de perplexidade –, isto é, a menos que um milênio esteja
prontamente à mão. Os indícios podem incluir também novas alegações sobre a
importância de uma perspectiva ausente (por exemplo, sociologia, ou antropologia,
ou feminismo, ou pós-modernismo); haverá cris de coeur2 de oposição ou
reprovação, e o campo poderá ler o global e pensar sobre si mesmo de uma nova
maneira. No entanto, provavelmente é importante enfatizar que o apelo epistêmico
não é por si só suficiente – os acadêmicos, principalmente, costumam fazer novos
apelos epistêmicos a todo momento. É necessária uma dupla mudança: novos
apelos epistêmicos e uma nova leitura da economia política internacional.
Hipoteticamente (e mais uma vez, dada a inexistência de uma história
comparada da educação comparada), pode-se sugerir que ocorreram três momentos
desse tipo desde 1945 – com grandes variações locais, tais como no Canadá, na
China continental, na Alemanha e na África do Sul onde, ou a sociologia do
conhecimento universitário foi diferente, ou ocorreram desafios políticos diferentes.
Um desses momentos já foi ilustrado para dar algum sentido à complexidade
do que deveria ser identificado no exame da mudança que passou de uma
preocupação com metodologia e com narrativas sobre contextos (no vocabulário
de Edmund King, envelopes culturais) para uma preocupação com o colonialismo,
as histórias e as sociologias de sociedades que transitavam do feudalismo para várias
formas de modernidade, e as perspectivas de sistemas-mundo. Sugeriu-se
anteriormente que esses distúrbios epistêmicos também foram afetados por eventos
políticos internacionais importantes, tais como a maneira como a Guerra Fria foi
moldada sociologicamente em novos padrões de relações políticas internacionais –
2. NT: Em francês, no original: “apelos apaixonados”.
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 757

para ser travada por representação (e brutalmente) em alguns lugares, e, em outros,


de forma branda, por meio de políticas culturais e educacionais.
A segunda descontinuidade – outro conjunto de possibilidades ou influências
potenciais externas – foi trazida à atenção dos pesquisadores de educação
comparada particularmente pela enumeração muito atenta, proposta por Val Rust
(1991), de fatores que poderiam definir o início de momentos pós-modernos nessa
área de estudos. Múltiplas alegações epistêmicas fora da educação comparada
ofereciam novas maneiras de pensar. Rust recupera essas alegações: a estrutura
superficial eclética de seu artigo representa com precisão o assombroso ecletismo
das opções epistêmicas que estavam sendo discutidas fora da educação comparada.
No entanto, o início da década de 1990 foi também um momento marcado
por uma mudança histórica de grandes proporções nas estruturas contemporâneas
de poder, notadamente na Europa, e pela emergência de novas formas de Estado –
incluindo Estados regionais e um novo destaque para os Estados pós-socialistas
(BIRZEA, 1994; KARSTEN; MAJOOR, 1994; MAUCH; SABLOFF, 1995;
STING; WOLF, 1994). Em outras palavras, novas formações estatais – entre as
quais a União Europeia – foram rapidamente identificadas como um desafio
normal do campo, e a leitura do global e das novas mudanças políticas na Europa
tornaram temporariamente invisíveis algumas das reivindicações epistêmicas entre
as diversas que Rust havia identificado.
A terceira descontinuidade poderia, em uma análise (futura) mais completa, ser
identificada como o momento em que a política de mudanças econômicas chamada
de globalização se sobrepôs à política madura do neoliberalismo em meados da
década de 1990 (OECD, 1996, 1996a). Enquanto essas mudanças na economia
política internacional eram analisadas, ocorreu a segunda competição epistêmica
– que mais tarde, evidentemente, fez parte da dupla mudança.
Havia duas reivindicações muito diferentes. Uma delas afirmava que vivemos
em um mundo racionalizado de escolarização eficaz e eficiente, de mensuração e
avaliação – um mundo no qual até mesmo os sistemas educacionais deveriam ser
substituídos por sistemas de formação de habilidades. Assim, o caminho correto
para o futuro da educação comparada seria fortalecer a pesquisa empírica que obtém
dados sólidos e relevantes, particularmente úteis para os formuladores de políticas.
Esses temas são extremamente bem explorados, com agudo senso crítico, no recente
“World Yearbook” sobre pesquisa e política educacionais, e sobre como orientar a
economia baseada no conhecimento (OZGA; SEDDON; POPKEWITZ, 2006)
e, mais resumidamente, em Hartley (2004) e St. Clair e Belzer (2007).
Nos estudos educacionais e na educação comparada, havia também um contra-
argumento claro e sólido, baseado em literatura acadêmica importante e em novas
ideias: este é um mundo pós-moderno (por exemplo, EDWARDS; USHER, 2000)
e as abordagens pós-modernas são o caminho para o avanço da educação
comparada (por exemplo, NINNES; MEHTA, 2004).
758 Cowen

Naturalmente, há alertas importantes a serem feitos em relação a uma


descontinuidade – qualquer descontinuidade, lamentável ou não. Como mostra a
história das heresias (ou sob a perspectiva dos hereges, ou sob a perspectiva de
qualquer que seja a Igreja verdadeira na ocasião), as coisas não cessam simplesmente.
E então transformam-se inteiramente. Há continuidades rotineiras. Exemplos disso
são o excelente trabalho dos historiadores que pensavam comparativamente, bem
como as alegações contínuas sobre a importância de uma perspectiva histórica. Esse
trabalho prossegue nos escritos de Muller e colegas (1987), de Andy Green (1990),
e nos temas consistentemente justificados de Kazamias (2001). Da mesma forma,
as preocupações persistentes com identidade são facilmente identificáveis não apenas
nos temas culturais dos autores da escola londrina de educação comparada
(LAUWERYS, 1965), mas também, por exemplo, no pensamento posterior e
original sobre educação comparada e nas decisões editoriais de Burns e Welch
(1992), na literatura colonial (MANGAN, 1993) e na excelente análise de Fortna
(2000), que é particularmente feliz ao apreender as relações entre estruturas sociais,
história e identidade educada. Essas questões de identidade incluem, de forma muito
poderosa, o tema de gênero (ver Stromquist, neste trabalho), conhecimento,
legitimidade, classe e Estado (WELCH, 1992, 1993). Houve até mesmo questões
iniciais sobre educação comparada como ciência aplicada (COWEN, 1973), e
questões mais tardias sobre metodologia (HOLMES, 1981).

E então?
E então – aparentemente em 2007 – estamos mais uma vez em uma
descontinuidade. Não temos apenas uma dupla mudança – alegações epistêmicas
claras (NINNES; BURNETT, 2003) e uma mudança na economia política
internacional e na forma como é lida (COULBY; COWEN; JONES, 2000; DALE;
ROBERTSON, 2005). Temos ainda indicadores de que há algo errado: têm sido
observadas estranhas lacunae (COOK; HITE; EPSTEIN , 2004), e pelo menos um
cri de coeur muito claro foi ouvido (EPSTEIN; CARROLL, 2005). Em outras
palavras, temos um momento que lembra aquele mencionado anteriormente,
quando Harold Noah expôs sua teoria de fast fish and loose fish, e um outro momento
ainda não mencionado, quando Psacharopoulos (1990) assinalou a futilidade e a
irresponsabilidade de pensamentos vagos quando a educação comparada poderia
estar enraizada no mundo real – isto é, no mundo real dele.
De minha parte, penso que estamos em um momento do que estou chamando
de descontinuidade (embora obviamente as evidências ainda estejam surgindo,
principalmente na literatura publicada em periódicos). No entanto acredito que
essa descontinuidade atual contém uma reversão interessante em nossa
autopercepção (e em nosso desapontamento em relação a ela).
Pode valer a pena, neste momento, enfatizar que a educação comparada está
confiante como ciência aplicada – embora não devesse estar (COWEN, 2006) –,
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 759

e um pouco ansiosa quanto à sua identidade epistêmica – embora, como será


argumentado a seguir, não devesse estar.
Para desenvolver o argumento, por onde podemos começar, senão pela releitura
de quase todos os capítulos deste livro? Ou então observando que o trabalho
intelectual no campo de estudo tornou-se mais excitante do que tem sido há já
algum tempo (por exemplo, ARNOVE; TORRES, 2003; BURBULES; TORRES,
2000; CHARLE; SCHRIEWER; WAGNER, 2004; COULBY; ZAMBETA,
2005; DALE; ROBERTSON, 2005; JONES, 2007; PAULSTON, 1999;
NINNES; MEHTA, 2004; NÓVOA; LAWN, 2002; OXGA; SEDDON;
POPKEWITZ, 2006; PHILLIPS; OCHS, 2004; PHILLIPS; SCHWEISFURTH,
2006; SCHRIEWER, 2006; STEINER-KHAMSI, 2004).
Podemos começar pelo meu clichê (embora eu me apresse em acrescentar que não
era um clichê quando o escrevi pela primeira vez) de que há várias educações
comparadas. Por exemplo, ainda temos uma educação comparada de soluções oferecidas
por agências como a OCDE ou o Banco Mundial; uma educação comparada de
avaliações internacionais – os estudos IEA e Pisa, e o movimento eficaz e eficiente das
escolas, que ainda está vivo; uma educação comparada das dicotomias politicamente
santificadas ou politicamente corretas (tradicional/moderno; desenvolvido/em
desenvolvimento; capitalista/socialista; Oriente/Ocidente; Norte/Sul); e uma literatura
de educação superior comparada especializada e de boa qualidade.
É possível, no entanto, sugerir o que raramente é sugerido: que há alguns
pressupostos básicos e relativamente invisíveis que estruturam grande parte da
educação comparada com orientação acadêmica em qualquer período de tempo
determinado. Os desafios normais de cada período de tempo variam, mas há alguns
temas básicos que todos os acadêmicos de educação comparada vêm explorando
há muito tempo: há uma agenda profunda surpreendentemente semelhante.
Em outras palavras, estou sugerindo que as formas de educação comparada com
orientação acadêmica, baseadas na universidade, e cuja literatura normalmente nos
interessa, estão focalizadas em uma agenda mutável e em revolução, mas que se
modifica dentro e em torno de uma constelação de ideias centrais.
São essas ideias centrais do campo de estudo que quase o unificam – e que
também permitem uma compreensão dos deslocamentos de suas pequenas placas
tectônicas, aquilo que chamei de suas descontinuidades. As descontinuidades ocorrem
dentro de um referencial básico de ideias-unidade utilizadas na educação comparada
(reconheço com prazer que a expressão “ideias-unidade” é tomada emprestada de
Robert Nisbet [1967] e seu brilhante livro “The sociological tradition”).
Em outro trabalho (COWEN, 2002), sugeri que as ideias-unidade da educação
comparada são:
• Espaço
• Tempo
• O Estado
760 Cowen

• Sistema educacional
• Identidade educada
• Contexto social
• Transferência
• Práxis
O que acontece em cada momento particular é que uma ou algumas dessas
ideias-unidade tornam-se quase invisíveis.
Por exemplo, no início da década de 1980, quando escrevi sobre tempo na
educação comparada (COWEN, 1982) o conceito de tempo estava quase invisível,
exceto pelo pensamento notável de alguns sociólogos (MARTINS, 1974). Os
educadores comparativistas não tratavam do tempo (tratavam do espaço). Os
historiadores tratavam do tempo (para tomar emprestada uma frase): o tempo era
parte de sua agenda de trabalho. Agora se tornou muito fácil encontrar conceitos
de tempo na literatura (COWEN, 1998, 2002), e houve uma explosão de interesse
por tempo e espaço como uma problemática teórica importante na educação
comparada. A título de ilustração, ver Sobe e Fisher (e a literatura que citam) sobre
espaço-tempo, nesse trabalho.
É possível examinar cada uma dessas ideias-unidade mostrando como cada um
dos conceitos foi definido no passado e como a utilização que fazemos dos conceitos
nos aprisionou em certos tipos de trabalhos, ou certas perspectivas – embora as
coisas venham-se tornando mais flexíveis rapidamente. Por exemplo, o conceito de
“o Estado” na educação comparada, em seu tratamento ingênuo na literatura do
período entre as guerras e pós-1945, foi abalado pelas perspectivas pós-
estruturalistas – e pelo fato óbvio do crescimento de formas regionais de
governança. O tema do império (como formação política) vem adquirindo nova
visibilidade nas ciências históricas e sociais – e recentemente deu-se atenção a
formas globais de governança (JONES, 2007). O tema de um Estado mercado
certamente também é digno de uma exploração mais completa (BOBBITT, 2003).
Da mesma forma, sugeri anteriormente (em um dos editoriais curtos neste
trabalho) que o conceito de sistema educacional contribuiu para nos aprisionar em
uma educação comparada modernista, que excluía implicitamente a exploração da
educação das cidades-Estado da Itália; ou da educação do cortesão na França do século
XVIII, ou no Japão Tokugawa; ou a análise comparativa de Atenas e Esparta, e do que
eu chamaria de suas “Rosettas3 educacionais”; ou a educação das elites e o uso social
do que, com excessiva informalidade, é chamado de língua franca – o latim – no
Império romano e em épocas posteriores (HEATHER, 2005; WAQUET, 2001).
Naturalmente, é necessário repensar o conceito de sistema educacional e o pressuposto
3. NT: Referência à Pedra de Rosetta, encontrada no século XVIII perto da cidade de Rosetta (Rashid), no
Delta do Nilo, e que continha inscrições em três idiomas – o que permitiu o deciframento da escrita
hieroglífica. “Rosettas educacionais” é um conceito que rotula uma construção teórica que está sendo
atualmente trabalhada por Robert Cowen, objetivando a “decodificação” de sistemas educacionais.
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 761

de que nossa práxis é reformar esses sistemas. Dessa forma, por extensão, ampliamos
a variedade de Estados – formações políticas – que consideramos dignos de atenção.
Por exemplo, nossa educação comparada é peculiarmente limitada de outra forma
surpreendente: não desenvolvemos teorização que trate de tiranos e regimes
autoritários, e dos padrões educacionais associados – e isso em um século que conviveu
com Hitler, Stalin e Mao. Da mesma forma, não desenvolvemos (na educação
comparada) teorizações comparativas sobre processos educacionais construídos por
militares envolvidos em política – e isso em um século de intervenções na política das
forças armadas brasileiras, gregas, japonesas e turcas, embora as pistas estivessem
presentes na literatura das ciências sociais (VOIGT, 1939; LIPSET; SOLARI, 1967).
O ponto estratégico crucial, entretanto, é que todas as ideias-unidade precisam
agora ser repensadas. A questão é apenas em parte quais eram as temáticas anteriores
das ideias-unidade. A questão crucial é em que elas estão se transformando.
Todas as ideias-unidade são importantes para pensar sobre algo que está no
núcleo da educação comparada: as relações triádicas de transferência e seu problema
osmótico duplo; as raízes de aspectos da educação em uma cultura de origem e sua
inserção em um padrão social osmótico diferente, que tem suas próprias
imunologias ou permeabilidades. Não sabemos quais são essas imunologias ou
permeabilidades. Portanto, no momento não temos clareza sobre a tradução – de
que forma a antiga instituição se modifica em seu novo contexto. Por exemplo, de
que forma a universidade alemã vai-se modificar em seu novo contexto, os Estados
Unidos, a Grécia ou a Suécia. E assim também não temos clareza sobre o tema da
transformação – embora existam na literatura trabalhos sobre mudança de forma
(BEECH, nesta obra; ISHI, 2003; KIM, 2001; LARSEN, 2004; LAW, 1996;
POPKEWITZ, nesta obra; SHIBATA, 2005; TANAKA, 2005). Sem esse trabalho
– e as ideias-unidade são cruciais para realizá-lo –, um de nossos conceitos básicos
em educação comparada – mudança de forma – continuará mal identificado,
estacionado em uma fase narrativa de histórias densas ou pobres de mudanças de
forma de ideias e instituições educacionais, à medida que se deslocam para outros
lugares. Evidentemente, mudança de forma é uma ideia tola: nebulosa e de difícil
conceituação.
Infelizmente, é provável que seja necessário enfrentar a tarefa para que possamos
compreender as relações triádicas de transferência, tradução e transformação.
Felizmente, afirma-se que Albert Einstein sugeriu que “se uma ideia não parecer
absurda inicialmente, não há esperança para ela”. Assim, além de mudança de
forma, penso que há dois outros temas analíticos que podem ajudar-nos a repensar
a educação comparada atualmente.

Possibilidades e compressões
Uma delas é a ideia de transitologias. Uma transitologia pode ser pensada como
uma forma muito específica de revolução, mas evita algumas das ambiguidades
762 Cowen

desse termo. Assim, uma transitologia pode ser definida como “os processos, em
um período de aproximadamente dez anos, de destruição e reconstrução, mais ou
menos simultâneas, de visões políticas sobre o futuro, aparatos estatais (polícia,
forças armadas, burocracias, instituições políticas), sistemas de estratificação social
e econômica, e reforma e reestruturação deliberadas do sistema educacional, para
que possa ser utilizado como parte da construção da transitologia” (COWEN,
1999, 2000).
O ponto relevante desse conceito aparentemente desajeitado é que ele nos
permite ver algo a mais. A compressão tempo-espaço, que é uma transitologia, algo
como um relâmpago, ilumina as formas de expressão do poder social (econômico,
político, cultural) no sistema educacional e, ao mesmo tempo, evidencia, de forma
breve e brilhante, as mudanças nessas compressões do poder social sob forma
educacional, incluindo, naturalmente, mudanças na identidade educada. A Grã-
Bretanha de Thatcher, a Revolução Cultural de Mao, a Turquia de Atatürk, o
colapso da Alemanha Oriental (Polônia, Hungria e União Soviética) são – a
depender de uma revisão acadêmica crítica continuada – transitologias.
Assim, a questão teórica é: de que forma podemos decodificar essas mudanças
na compressão do poder social dando-lhes forma educacional? Como fazê-lo,
evitando descrever o sistema educacional nas categorias rotineiras da descrição
comparativa que – como foi argumentado anteriormente nesta obra – se sobrepõem
a categorias úteis na administração, no financiamento e na gestão da educação
primária, secundária e superior?
A questão provavelmente pode ser subdividida teoricamente se começarmos
por pensar sobre identidades educadas (seja em termos de classe, gênero, raça, ou
definidas por região ou religião) e sobre certos processos educacionais cruciais,
tendo em mente o problema levantado por Wright Mills: dar sentido a forças
históricas, estruturas sociais e biografias individuais.
Assim, uma das questões passa a ser: quais eram os “espaços sagrados” e as “rotas
santas” no sistema educacional soviético, e quais eram suas formas de “conhecimento
consagrado”?, e assim por diante. (Evidentemente, o modelo de uma Rosetta
educacional é bastante complexo e deve atender a diversos critérios, tais como
abranger e compreender processos não elitizados de educação.) Aqui, neste esboço
de possibilidades, a linguagem é escolhida deliberadamente, devido ao choque
comparativo que resulta de impor sobre secularidades soviéticas tão enfatizadas pelo
sistema social, econômico e político, um vocabulário de outro discurso.
De modo geral, acredito ser possível desenvolver uma teoria de Rosettas
educacionais, captando as codificações do poder social sob forma educacional.
Assim, quando ocorre mudança educacional (na Alemanha Oriental ou em Estados
direcionados para a economia do conhecimento pelo Banco Mundial), o que
potencialmente se revela são as regras da gramática dos sistemas educacionais, ou
a maneira pela qual esses sistemas absorvem osmoticamente o contexto e as
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 763

maneiras pelas quais interagem com as relações políticas, econômicas, culturais e


educacionais internacionais. Essa aspiração – de compreender as codificações do
poder sob formas educacionais – requer a adesão a linhas de análise pós-coloniais,
pós-modernas e pós-estruturalistas que já estão revitalizando a educação comparada.
Mais uma vez, trata-se de uma questão de abertura: a educação comparada não
deve recuar intelectualmente para dentro de si mesma. Contudo, também não deve
expandir-se aleatoriamente sem uma reflexão muito cuidadosa sobre o papel social
e político das universidades, aceitando como justos e adequados os tópicos que as
agências internacionais (ou a União Europeia) alegam ser problemas importantes.
No entanto esse tipo de aspiração acadêmica – de compreender a mudança de
forma e as codificações de poder em Rosettas educacionais – é absurda. Ótimo, ou
pelo menos ótimo, segundo Einstein.
Mudanças de forma e as codificações do poder em Rosettas educacionais, o retorno
à tríade de relações (transferência, tradução e transformação) e uma leitura renovada
do global – esses tipos de absurdo – estão entre as coisas que poderiam libertar-nos da
armadilha modernista persistente na educação comparada: o canto de sereia e o
contrato faustiano de sermos úteis para os governos. Há outras coisas a fazer, entre as
quais tentar revelar as maneiras pelas quais as compressões do poder em certas formas
educacionais detêm exatamente o que deveriam estar facilitando: a educação.
Pela primeira vez, nossa crise contemporânea, nossa atual “descontinuidade
lamentável” na educação comparada não é uma questão de problemática intelectual
de baixo nível. Nossa questão provavelmente é termos nos tornado ainda mais
vaidosos do que éramos no final da década de 1980 (HALLS, 1989): o conceito
de educação comparada está atualmente sobrecarregado por um excesso de
significados.

Conclusão
Para ajudar-nos a repensar, provavelmente precisamos reconhecer três coisas.
Uma delas é que o momento metodológico da década de 1960 não foi sobre
metodologia, e sim sobre metanarrativas de educação comparada: metanarrativas
que definiriam a escolha de formas narrativas, a natureza das generalizações tentadas
e, em contrapartida, como discutiu certa vez Geogre Parkyn, as particularidades
que, embora sendo particularidades, podiam ser aceitas como educação comparada,
e as políticas de sua posição de emancipação. O quê e quem devia ser emancipado
por seu conhecimento?
O segundo tema foi subestimado em minha análise anterior neste capítulo e,
ao escrevê-lo, convenci-me de sua importância analítica central: a universidade e
seu ambiente de trabalho são um componente crucial da educação comparada
(COWEN, 1997).
Aqui um tema fascinante seria uma comparação completa entre pelo menos
duas educações comparadas da América do Norte. Não se trata apenas do fato de
764 Cowen

que as políticas domésticas diferenciadas do Canadá modelam a educação


canadense de forma distinta do que ocorre nos Estados Unidos. Tampouco são
apenas as biografias de indivíduos como Mallea ou Zachariah, Doug Ray ou Joe
Katz, Hayhoe ou Masemann, David Livingstone ou David Wilson que definem o
campo. São também a universidade canadense e seus comprometimentos sociais e
pedagógicos com um contexto doméstico e político canadense (LARSEN;
MAJHANOVICH; MASEMANN, 2007; WILSON, 1994), e com a posição
política internacional do Canadá. O mesmo argumento pode ser defendido
enfatizando-se as grandes diferenças em políticas domésticas e internacionais: não
se trata apenas do fato de a União Soviética socialista, ou o regime nazista, ou os
Estados neoliberais atuais terem políticas domésticas e internacionais diferentes.
Trata-se também do fato de, por formas sutis ou brutais, a universidade (a
universidade nazista, a universidade soviética, a universidade gerida de forma
neoliberal) abolir ou redefinir a educação comparada. A universidade não o faz
apenas – mutatis mutandis – exilando ou exterminando acadêmicos, ou limitando
interesses intelectuais, mas também recompensando-os de novas maneiras.
Atualmente, por exemplo, em diversos países neoliberais, é difícil manter
qualquer tipo de agenda intelectual orientada academicamente, tendo em vista as
pressões sobre as ciências sociais e os estudos educacionais para que demonstrem
que podem ser aplicados. A questão histórica grave para a universidade –
conhecimento aplicado a quê, por quem, para o quê e para quem – ainda persiste
entre nós em meio às banalidades dos sistemas de avaliação e da garantia de
qualidade, tal como são praticados hoje em um número significativo de países, e
não apenas na Inglaterra.
A terceira possibilidade seria rever as formas de educação comparada que são
chamadas de internacionais. Qual é o significado atual desse rótulo, e a que
propósitos políticos está servindo? Serão essas formas de educação comparada, que
hoje são qualificadas como comparadas e internacionais, simplesmente declarativas
e exortatórias? O que significam para o internacional os conceitos de pós-
desenvolvimento? Educação internacional é parte atualmente de um movimento
mundial pela paz? A questão tem importância vital e estratégica, como, embora
sem utilizar o vocabulário de “internacional”, Jennifer Chan (2007) demonstrou
decisivamente (e delicadamente) em sua análise sobre epistemes competitivas nas
reformas globais de governança.
Educação comparada e intercultural como uma agenda para a construção social
de interculturalidade global? Evidentemente, há agendas em torno das quais
poderíamos atingir estabilidade – até mesmo as ciências sociais – que são piores do
que a busca por justiça social e por uma interculturalidade adequada ao nosso
tempo e ao nosso lugar: o mundo.
Entretanto, antes de adotarmos essa visão respeitável – e antiga –, é fundamental
observar que temos educações comparadas porque o que chamamos de educação
comparada, em seu desenvolvimento, em suas mudanças de forma, faz parte das
Antes e agora: ideias-unidade e educação comparada 765

relações internacionais, políticas, econômicas, culturais e educacionais. Está na


interseção de políticas internacionais e domésticas, mas, em sua forma centenária,
está abrigada em um local muito especial e privilegiado: a universidade. E, portanto,
tem tido, por mais de um século, uma forma acadêmica muito especial.
Precisamos dessa base, e precisamos dessas formas iniciais, dessas primeiras
questões e discussões, e de algumas sugestões de insucessos: elas nos dão uma
perspectiva sobre as possibilidades de sermos prejudicados por banalidades sobre
qualidade acadêmica, e também sugestões sobre os riscos de sermos liberados por
visões totalizadoras.
De modo geral, portanto, este capítulo sugeriu que há continuidades profundas
no trabalho acadêmico da educação comparada, baseado na universidade, e que o
campo, que vez por outra parece estar em uma crise terminal, não está. No entanto,
na primeira parte do capítulo, sugerimos que o próprio campo é excepcionalmente
responsivo à interseção de políticas domésticas e internacionais e, portanto, suas
agendas superficiais frequentemente se alteram com rapidez em vários momentos –
as descontinuidades a respeito das quais ficamos tão ansiosos. A agenda superficial
da educação comparada é também drasticamente diferente em lugares diferentes. São
as linhas de poder internacional, as mudanças epistêmicas e as políticas domésticas
que nos ajudam a começar a pensar sobre variações locais na educação comparada –
como provavelmente ilustraria uma análise comparativa consistente da educação
comparada no Canadá e nos Estados Unidos (ou na Alemanha Oriental e Ocidental).
A segunda metade do capítulo, entretanto, enfatizou alguns dos conceitos
estratégicos, cruciais e relativamente permanentes que, como sugerimos, unificam
o campo da educação comparada, além da tríade nuclear de transferência, tradução
e transformação. Tomando emprestada a expressão de Robert Nisbet, esses temas
são chamados de “ideias-unidade” da educação comparada. A ênfase nessas ideias
permite-nos repensar e reescrever grande parte de nossa história.
A ênfase nessas ideias, e talvez em mais algumas, como transitologias, Rosettas
educacionais e mudança de forma, poderia nos permitir também repensar e
reescrever grande parte do nosso futuro.
No mínimo, a ênfase no que estou chamando de ideias-unidade da educação
comparada poderia também permitir-nos desaprender, escapar das armadilhas
modernistas da educação comparada que nos estimulam a conservar pressupostos
mais antigos: (i) que é normal e intelectualmente aceitável pensar sobre educação
somente a partir do século XIX; (ii) que uma de nossas tarefas principais é sermos
úteis em termos de aconselhamento político para governos eleitos
democraticamente; e (iii) que temos uma responsabilidade especial pela reforma
da educação e da vida das pessoas em outras partes do mundo. Como acadêmico,
não aceito essas proposições. Vamos esperar que possamos continuar a construir,
geração após geração, uma visão mais sutil e mais importante de nossas
responsabilidades políticas, humanas e acadêmicas.
766 Cowen

No mínimo, devemos começar a compreender que o próprio campo


acadêmico de estudos tradicionalmente denominado educação comparada é
parte das relações políticas, econômicas, culturais, internacionais e
internacionalmente históricas que constituem seu objeto de estudo. Além disso,
existimos nas universidades como vozes acadêmicas significativamente afetadas
pela interseção de políticas domésticas e internacionais em termos de temas
candentes. Provavelmente, é por isso que temos descontinuidades tão visíveis –
mais do que, digamos, a sociologia ou a filosofia como campos de estudo. E é
também o motivo pelo qual precisamos continuar a tentar compreender, sob
nossas imagens exteriores variadas e camaleônicas, qual é nossa agenda mais ou
menos permanente – além de caçar gafanhotos (ou loose fish) e aparentemente,
mudar de cor de vez em quando.
No entanto (se estou bem informado), camaleões não mudam realmente de
cor. Penso que nós também não. Temos uma agenda e, a meu ver, é uma agenda
permanente, uma agenda acadêmica e digna: revelar as compressões do poder social,
econômico e cultural sobre as formas educacionais, especialmente por serem mais
visíveis em seus momentos de transferência, tradução e transformação.
Compreender esses processos nos permitiria sustentar a verdade perante o Estado,
e também perante algumas outras pessoas.

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80

CONCLUSÃO

Robert Cowen e Andreas M. Kazamias

“Pois as palavras do ano passado pertencem à linguagem


do ano passado, e as palavras do próximo ano esperam
uma outra voz. E criar um fim é criar um começo”.
T. S. Eliot, “Little Gidding”

Evidentemente, o problema é desaprender. Quando você se senta para escrever


um livro, uma tese, um artigo acadêmico, normalmente rabisca as palavras
“introdução” e “conclusão”, e depois se concentra nas ideias principais ou no
argumento interpretativo, ou nas fontes de evidência que vão construir
substantivamente o corpo principal do artigo, da tese ou do livro. Normalmente
pressuposições funcionam. Se você reúne adequadamente as ideias centrais e as
fontes de evidência, a introdução e a conclusão podem ser feitas mais tarde.
Evidentemente, o problema aqui é desaprender. Obras como esta não
funcionam desse modo.
Parte do sentido de que um panorama é olhar para trás (o que foi feito neste
campo de estudos, o que pretendemos?). Contudo, um panorama também olha
para frente. Panoramas contêm condicionalidades poderosas: “se já estamos lá... se
agora estamos quase chegando lá... devemos avançar para explorar”. Na prática,
portanto, os panoramas são orientados para o futuro.
Isso é válido até mesmo para as imperfeições dos panoramas. Panoramas atraem
automaticamente críticas vigorosas, que podem enfatizar o fato de alguns temas
estarem ausentes – coesão social, educação na primeira infância, Estados
fragilizados, terrorismo; ou de alguns temas terem sido subestimados: pós-
estruturalismo, pós-modernismo, pós-desenvolvimentismo, pós-feminismos,
pós-marxismos e assim por diante. Alguns comentários críticos reivindicam e
reposicionam o futuro do campo.
Pelo menos em princípio, algumas reivindicações devem ser bem-vindas,
exatamente porque um panorama não é uma conclusão. Um panorama não tem a
pretensão de congelar um campo, fixar um cânone, e sim ensaiar e, a seguir, propor
um campo de estudos. Um panorama pode conter um reordenamento e uma
renovação do passado, mas deve abordar futuros possíveis e colocar novos desafios.
Novas educações comparadas que não foram imaginadas neste trabalho podem ser
– e serão – criadas.

771
772 Cowen e Kazamias

Porém, algumas das questões e dos temas deste livro provavelmente não
desaparecerão. Podem – e devem – reaparecer no futuro. Com que outras vozes
acadêmicas a educação comparada se sobrepõe e estabelece interseções? Quais
categorias de análise referenciam seu pensamento? Quais são, serão ou devem ser
os temas candentes da educação comparada, e por quê? Quem afirma que são
candentes? Com que autonomia e com quais outros agentes a educação comparada
atua no mundo?
O tema que unifica essas questões não é simplesmente a compreensão da
sociologia do conhecimento universitário, mas também o eterno problema das
políticas do conhecimento, o problema de decidir o que, atualmente, em nosso
momento político, constitui o potencial de emancipação da educação comparada.
A maioria das novas teorias sociais, todos os partidos políticos e algumas agências
internacionais proclamam seu potencial de emancipação. E nós? Conhecemos
nossas antigas respostas sobre nós mesmos como campo de estudo. O que
propomos agora?

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