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Os Vencedores Levam Tudo
Os Vencedores Levam Tudo
Prólogo
E mpreparava
outubro de 2011, na pacata vila de Camden, Maine, Amy Cuddy se
para ministrar sua primeira palestra importante fora do meio
acadêmico. Cuddy era psicóloga social na Harvard Business School e havia
passado mais de uma década publicando artigos acerca do exercício do
preconceito, discriminação e sistemas de poder. Ela escrevera a respeito de
como o sexismo que as mulheres enfrentam é um amálgama obscuro da
inveja que os homens sentem por mulheres com uma carreira profissional e a
pena que sentem pelas que não trabalham. Ela havia escrito sobre como a
“obediência socializada” e a “conformidade” influenciaram as decisões tanto
dos sequestradores do 11 de Setembro como dos guardas norte-americanos
em Abu Ghraib que torturavam os prisioneiros. Escrevera também a respeito
de como os brancos que realizavam testes computadorizados de viés
implícito se tornavam mais preconceituosos quando informados de que o
propósito dos testes era mensurar o racismo. Ela escrevera sobre como,
depois do furacão Katrina, as pessoas identificavam com mais facilidade
“angústia, luto, remorso” e outras emoções “intrinsecamente humanas” em
seus pares do que em pessoas de outras etnias. Cuddy também escrevera
acerca do estereótipo da “minoria modelo” que acompanha muitos ásio-
americanos.
Naquele outubro, ela continuava a trabalhar com uma equipe em um projeto
de longo prazo a fim de estudar como a hegemonia masculina, o mais global
dos fenômenos, se adapta às condições locais com o intuito de se enraizar.
Nos Estados Unidos, onde independência e individualismo são os “ideais
culturais” mais importantes, como Cuddy e seus colegas escreveram, a
sociedade é propensa a atribuir essas características aos homens. Na Coreia
do Sul, onde ser interdependente e pensar no outro tem mais valor, a
sociedade costuma considerar que os homens são assim. Como seu artigo
científico afirmava: “Os homens, em geral, são vistos como os maiores
detentores de qualquer característica hipervalorizada culturalmente.” Como
grande parte do trabalho dela, o artigo não oferecia soluções. Fazia parte de
uma nobre tradição intelectual de canalizar as entranhas de um problema.
Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual nenhum dos trabalhos de Cuddy a
levara a ministrar uma palestra além dos muros da universidade — até este
momento.
Ela fora convidada para ministrar uma palestra em uma conferência
chamada PopTech. Era, como o Summit at Sea, uma parada imprescindível
no circuito do Mercado Global. A PopTech fora fundada por um grupo de
pessoas que queria levar grandes ideias ao Maine — entre elas, o inventor da
Ethernet e um ex-CEO da Pepsi e da Apple. Lá, as ideias surgiam facilmente,
em meio a sanduíches de lagostas, festas ao crepúsculo no convés com vista
para o oeste da Baía de Penobscot e saideiras no Natalie’s, localizado no
luxuoso hotel Camden Harbour Inn. Igual a muitas conferências do Mercado
Global, a PopTech cobrava uma expressiva taxa de participação e contava
com patrocinadores corporativos. Quando o Mercado Global organizava
eventos como este, poderia ser difícil evitar que suas tendências e pontos de
vista definissem quais ideias seriam expostas e de que maneira. Não estava
claro o que seus partícipes queriam de Cuddy, já que ela tinha por hábito falar
de problemas, e não de soluções fáceis, desafiava o poder e os sistemas, e,
aparentemente, estava pouco interessada nas mudanças covardes do todos
saem ganhando.
Felizmente, Cuddy tinha um mentor a fim de guiá-la nesse mundo novo,
Andrew Zolli, que, como curador da PopTech, foi o anfitrião da conferência.
Zolli era uma espécie de produtor do Mercado Global, estrategicamente
posicionado na confluência de empresas que querem se associar a grandes
ideias; redes de contatos em busca de sua próxima conferência; e escritores e
pensadores que desejavam alcançar um público mais abrangente e, quem
sabe, bajular as elites influentes do circuito. Zolli, que chamou sua
conferência de “uma máquina para mudar o mundo”, foi consultor e
conselheiro estratégico de empresas como a General Electric,
PricewaterhouseCoopers, Nike e Facebook, além de ONGs, startups e
organizações da sociedade civil; ele figurava no conselho de diversas
organizações do Mercado Global e era presença garantida no circuito de
palestras pagas, nas quais falava de temas como a resiliência. Seu livro
enaltecia as redes elétricas inteligentes e a conservação de recursos marinhos
como representações do todos saem ganhando.
Em outras palavras, Zolli era um expert e perpetuador da cultura do
Mercado Global e de sua visão. Compreendia quais ideias seriam úteis para
os partícipes do Mercado Global, auxiliando-os a prever o futuro e a erradicá-
lo, e entendia quais ideias faziam os vencedores se sentirem socialmente
conscientes e globalmente atentos, mas não culpados ou responsabilizados.
Um ensaio que ele redigiu com o intuito de promover seu livro sobre
resiliência argumentava que o mundo deveria se concentrar menos em
extirpar seus grandes problemas, incluindo a pobreza e a mudança climática,
e mais em conviver com eles. A mensagem tinha efeitos tranquilizadores para
aqueles que estavam plenamente satisfeitos com o status quo e preferiam os
tipos de mudanças que, sobretudo, preservassem-no. Zolli acreditava que o
desejo de solucionar os problemas estruturais é “um objetivo tentador e
moral”, mas, em última instância, equivocado. Talvez os problemas
estivessem entre nós para ficar, e era mais importante, segundo ele, ensinar as
pessoas a enfrentá-los.
Zolli promovia diversos projetos que alocavam recursos para ajudar pessoas
a superar situações ruins, em vez de corrigir essas situações. Elogiou, por
exemplo, uma pesquisa feita na Universidade Emory que ilustra como a
“prática contemplativa” pode “fortalecer a resiliência psicológica e
fisiológica das crianças em acolhimento familiar”, o que era bem mais fácil
do que reestruturar o acolhimento familiar. Ele falava de estruturas infláveis e
microrredes elétricas que poderiam ajudar as comunidades a sobreviver à
explosão de transformadores conforme o nível do mar continuava a subir.
Zolli reconheceu de imediato que nenhum desses tipos de ajustes “é uma
solução permanente e nenhum erradica os problemas estruturais que aborda”.
Ele sabia que era alvo de críticas: “Se nos adaptamos às mudanças
indesejadas, temos a seguinte linha de raciocínio: permitimos que os
responsáveis por essa confusão nos coloquem nela, primeiramente, e
perdemos a autoridade moral de pressioná-los a parar.” Todavia, esse era o
tipo de pensamento que mais se ouvia das pessoas que não ganhavam a vida
como consultores corporativos e como geradores de ideias para o Mercado
Global, mas Zolli insistia. Ele deixara claro que não estava afirmando que
“não existiam sujeitos realmente mal-intencionados e ideias ruins em
atividade, ou que não devíamos fazer nada para mitigar nossos riscos. Mas
também temos que reconhecer que a guerra santa contra as forças trevosas
não deu em nada e, provavelmente, não acontecerá tão cedo. No lugar dela,
precisamos de abordagens mais pragmáticas e politicamente inclusivas —
nadando conforme a maré, e não contra a correnteza”. Você até pode falar de
nossos problemas em comum, mas não seja político, não se concentre nas
origens do problema, não persiga as forças trevosas, nem tente mudar o que é
fundamental. Dê esperança. Nade conforme a maré. É assim que funciona o
Mercado Global.
Cuddy estava com os nervos à flor da pele devido à palestra que ministraria,
pela primeira vez, a centenas de desconhecidos que não faziam parte de seu
campo de atuação, que não eram estudantes empolgados que se inscreveram
para sua aula, que não sabiam nada sobre os conceitos básicos de psicologia
social. Embora seu trabalho acerca da imagem masculina em sociedades
individualistas e coletivistas estivesse em sua pauta, talvez ele não deixasse o
público da PopTech eufórico. Outro artigo que ela publicou na Psychological
Science, “Brief Nonverbal Displays Affect Neuroendocrine Levels and Risk
Tolerance” [Demonstrações Breves Não Verbais Afetam os Níveis
Neuroendócrinos e a Tolerância ao Risco, em tradução livre], se tornaria a
base de sua palestra.
As luzes do palco se acenderem em meio à escuridão. No centro do palco,
Cuddy estava com as mãos nos quadris, seus pés ligeiramente afastados em
um par de botas de caubói marrons, que apenas corroborava ao que viria a ser
sua marca registrada, a chamada “pose de poder”. Na tela gigante atrás dela,
figurava uma imagem da Mulher-Maravilha, cujas mãos e pés estavam na
mesma pose poderosa, ocupando o mesmo espaço, de forma deliberada. O
que ela e seus colegas descobriram era que ficar em uma posição enérgica
como essa poderia despertar a confiança nas pessoas — e, talvez, enfraquecer
alguns efeitos do sexismo que ela estudara por muito tempo. Durante 20
segundos que mais pareceram uma eternidade, Cuddy ficou lá, em sua pose
poderosa e em silêncio, enquanto a música tema da Mulher-Maravilha
tocava. Ela se movia de um lado para o outro, mantendo sua posição. Então,
deixou sua personagem de lado e sorriu.
“Falarei com vocês hoje sobre a linguagem corporal”, começou. O título da
sua palestra, revelado no segundo slide, era “Power Posing: Gain power
through body language” [Pose de Poder: Obtenha poder por meio da
linguagem corporal, em tradução livre]. Ela começou a explicar a pesquisa
que realizou com seus colaboradores, mostrando que, sem modificar
nenhuma das dinâmicas mais abrangentes de poder, sexismo e preconceito,
existiam poses que as pessoas poderiam assumir, por si mesmas, que as
ajudariam a obter confiança. Sem necessariamente ter esta intenção, ela
estava fornecendo ao Mercado Global o que ele mais ansiava de um
pensador: uma forma de circunscrever um problema dentro de seus limites e
proporcionar migalhas de poder àqueles que não o detinham, sem tirar o
poder das mãos daqueles que, de fato, o monopolizavam. Usando uma
metáfora que empregaria mais tarde, ela dava às pessoas uma escada para
transpor uma muralha segregadora — sem propor a derrubada dessa muralha.
Ou, como Zolli poderia dizer, ela estava dando às pessoas uma maneira de
“nadar conforme a maré, e não contra a correnteza”.
medida que Cuddy descobria como abordar esses novos fóruns e públicos, ela
À pôde se beneficiar de muitos exemplos próximos. Essa cultura estava
repleta de ensinamentos, se você estivesse aberto a eles, de como ser
ouvido enquanto intelectual — como deixar de ser um pensador crítico e se
tornar um líder de pensamento. Isso fica evidente quando se consideram
alguns dos contemporâneos de Cuddy que também trilharam o caminho de
líder de pensamento. Percebem-se alguns passos básicos de uma dança
comum, que podemos chamar de os três passos do líder do pensamento.
“Pense na vítima, não no agressor” é o primeiro desses passos. A frase é
proveniente de Adam Grant, um psicólogo organizacional que alcançou as
posições mais altas da liderança de pensamento nos últimos anos — “Grant
traz uma análise inovadora e perspicaz sobre o mundo”, como declara a capa
de seu próprio livro. Ao enfrentar um problema, o instinto humano
geralmente quer caçar um culpado. No entanto, esta é uma abordagem em
que todos saem perdendo na solução de um problema. Grant propõe um
modo mais amigável de lidar com problemas como o sexismo. “Diante da
injustiça, pensar no agressor alimenta a raiva e a agressividade”, escreveu ele.
“Mudar a atenção para a vítima reforça a empatia e aumenta as chances de
canalizar a raiva em uma direção positiva. Em vez de tentar punir as pessoas
responsáveis pelo dano, você terá maior probabilidade de ajudar as pessoas
prejudicadas.”
O segundo passo é levar a política para o lado pessoal. Caso queira ser um
líder de pensamento sem ser menosprezado como crítico, sua função é ajudar
o público a enxergar os problemas como dramas pessoais e individuais, e não
como coletivos e sistêmicos. É uma questão de foco. É possível observar uma
esquina em Baltimore, examinar detalhadamente as pessoas que vestem
calças sagging e considerá-las um problema. Agora, é possível somente
considerar os pontos essenciais e enxergar o problema como o excesso de
policiamento e a falta de oportunidades na área decadente da cidade. É
possível ampliar a análise e ver o problema como o capítulo mais recente de
uma história secular de controle social dos afro-americanos. Por sua natureza
e treinamento, diversos pensadores são propensos a considerar apenas os
pontos essenciais, enxergando as questões em termos sistêmicos e estruturais.
Contudo, se eles querem ser líderes de pensamento, que são ouvidos e
convidados a voltar, é fundamental aprender como examinar o assunto em
detalhes.
Brené Brown, que se tornou amiga de Cuddy, oferece um estudo de caso
sobre como analisar os pormenores com sucesso. Ela era uma estudiosa do
serviço social, um campo que produziu poucos — se é que produziu algum
— grandes líderes de pensamento além dela. Talvez isso se deva ao fato de
que o serviço social é quase inerentemente um domínio em que você só leva
em consideração os pontos essenciais. A análise psicológica de uma criança
problemática pode não ir além dos limites de seus pais e do ambiente
doméstico. Mas a formação de um estudioso de serviço social o leva a
considerar e a escrever artigos em veículos como o Families in Society, a
respeito dos sistemas externos ao lar que nos impactam coletivamente —
bairros assolados pela criminalidade; programas de assistência social
fracassados; pobreza crônica; oferta de assistência médica insuficiente; e
escassez de opções para alimentação. Isso faz com que assistentes sociais
sejam candidatos inadequados à liderança de pensamento, pois a qualquer
momento eles podem dizer alguma coisa séria e fazer com que os vencedores
saiam perdendo.
Como pesquisadora da Universidade de Houston, Brown começou
estudando a conexão humana, o que a levou ao estudo da vergonha, que, por
sua vez, levou ao estudo da vulnerabilidade — “essa ideia de que, para que a
conexão aconteça, temos que nos permitir ser vistos, realmente vistos”.
Brown estudou o assunto ao longo de seis anos, e chegou a uma conclusão
inevitável: “Havia somente uma variável que separava as pessoas que tinham
um forte sentimento de amor e pertencimento das pessoas que realmente
lutavam por isso. E era que as pessoas que tinham um forte sentimento de
amor e pertencimento acreditavam que elas mereciam amor e pertencimento.
Só isso.” Hoje em dia, os estudiosos do serviço social não costumam falar
desse modo. Eles são especialistas no emaranhado de circunstâncias que
dificultam que muitos de nós possamos ser nós mesmos em nossa totalidade
— algumas pessoas conseguem escapar disso por meio do esforço individual,
mas muitas não, dada a natureza estrutural do problema ou a dependência de
medidas tomadas por outros atores, sobre os quais não temos controle.
Brown não enfatizou todas as outras razões, circunstâncias e forças —
pobreza, abuso familiar, tratamento policial, dependência — que fazem
algumas pessoas se sentirem merecedoras e outras não. Ela se tornou uma
líder de pensamento de sucesso apoiada pela Oprah. Também ministrou uma
das palestras TED mais populares de todos os tempos. “Vivemos em um
mundo vulnerável”, disse ela, em que as pessoas adoecem, passam por
dificuldades no casamento, sofrem demissões em massa e têm que demitir em
massa também. Quando ela disse essas palavras, os Estados Unidos estavam
sofrendo uma profunda crise econômica. Milhões de pessoas haviam perdido
seus empregos, casas e até entes queridos devido à crise. Brown alertou as
pessoas que amortecer a dor não era a resposta, embora fosse essa atitude que
os norte-americanos assumiam à medida que eram “os adultos mais
endividados, obesos, viciados e medicados na história dos Estados Unidos”.
(Ao seguir o primeiro passo, focar a vítima e não o agressor, ela não
mencionou os interesses poderosos por trás dos endividamentos, obesidade e
da prescrição de opioides e antidepressivos generalizada.) A resposta para
esses problemas era, para Brown, a aceitação, quando afirmou: “Sou apenas
muito grata, porque sentir-se tão vulnerável significa que estou viva.” Em
uma era saturada de vulnerabilidades, em que os vencedores se mostram
relutantes em mudar qualquer coisa que seja fundamental, esse mantra de se
sentir grato por ser vulnerável se populariza. “Hoje existem 1.800
funcionários do Facebook cujas vidas nunca mais serão as mesmas”, disse
um executivo do Facebook depois que Brown ministrou a palestra no TED.
Os vencedores a amavam, Oprah a amava; logo, todos a amavam. E agora
todo mundo podia presenciar os feitos de Brown conforme ela se tornava um
tipo raro dentre os estudiosos do serviço social — o que tinha se
transformado em produto. Ela oferecia uma gama de cursos online que
prometiam preparar as pessoas para serem líderes arrojados, a “revelar-se por
completo” à vida, se engajar em “autocompaixão” e a viver de modo corajoso
e vulnerável.
O segundo passo era, de algum modo, fazer o contrário do que uma geração
de feministas nos ensinou a fazer. Tal movimento nos deu o slogan “o
pessoal é político”, atribuído a essa passagem de Carol Hanisch: “Problemas
pessoais são problemas políticos. Não existem soluções pessoais no
momento. Só existe ação coletiva para uma solução coletiva.” Era uma ideia
importante e profícua em fevereiro de 1969. Ajudou as pessoas a enxergarem
que o que se passava na tranquilidade da vida pessoal, e também acontecia
sucessivas vezes em escala sistêmica, se dava devido a forças mais poderosas
do que qualquer indivíduo por si só — e isso deveria ser visto, bem como
medidas deveriam ser tomadas, de modo político, vasta e integralmente, e,
acima de tudo, nos lugares onde residia o poder. Um homem agredindo uma
mulher não representava somente um homem agredindo uma mulher; era
parte de um sistema de supremacia e leis masculinas, e de uma cultura de
fazer vista grossa que representava o problema além da solução para a mulher
em questão. A vergonha que se sentia ao realizar um aborto não era um
sentimento inventado de modo desonesto por quem o sentiu; ele era
arquitetado e construído por meio de políticas públicas e do uso ardiloso da
autoridade religiosa. As feministas nos ajudaram a encarar os problemas
dessa maneira.
Em nosso tempo, os líderes de pensamento não raro se mobilizam para nos
ajudar a ver o problema justamente de maneira oposta. Eles abordam
questões que podem facilmente ser consideradas políticas e sistêmicas —
injustiça, demissões em massa, liderança irresponsável, desigualdade,
abandono da comunidade, a precariedade engendrada de cada vez mais vidas
humanas —, mas utilizam seu poder de influência para nos levar a análises
limitadas e a pensar pequeno. As feministas queriam que nos atentássemos
aos problemas enfrentados pelas mulheres, mas também nos preocupássemos
com o Congresso. Os líderes de pensamento querem que olhemos para um
funcionário que foi demitido e examinemos a situação por si mesma, de
modo a enxergar a beleza de seu sentimento, de vulnerabilidade, pois ao
menos ele está vivo. Querem que foquemos sua vulnerabilidade, não seu
sustento.
O terceiro passo é ser prático de modo construtivo. Não há problemas em
escrever e fazer críticas sem oferecer soluções — a menos que você queira
ser um líder de pensamento. Um bom exemplo disso provém de Charles
Duhigg, repórter e editor do New York Times que conseguiu, melhor do que a
maioria, combinar diferentes estilos de vida, o de crítico e o de líder de
pensamento. Jornalista com MBA em Harvard, Duhigg certa vez passou o
verão elaborando modelos financeiros para recuperar empresas em
dificuldades, antes de chegar à conclusão de que preferia ser repórter de
jornal. Ele ganhou o Prêmio Pulitzer por uma investigação que revelou as
artimanhas comerciais da Apple no gerenciamento de fábricas estrangeiras,
no pagamento e sonegação de impostos, e na reivindicação de patentes.
Também desmascarou empresas que violavam legislações ambientais
relacionadas à poluição inúmeras vezes e investigou a decisão quase fatídica
da Fannie Mae [Federal National Mortgage Association — FNMA; empresa
de capital aberto garantida pelo governo norte-americano], antes da Grande
Recessão, de revender os empréstimos imobiliários dos “cantos mais
traiçoeiros do mercado de crédito à habitação”. Apesar de seu diploma em
administração, ele se tornara o que o Mercado Global não valorizava: um
crítico que evidenciava os erros sem oferecer listas de dicas simples de como
consertar essas coisas.
Alguns anos mais tarde, Duhigg começou a escrever livros. Ele poderia ter
seguido a mesma toada, e se supôs que os livros teriam sido importantes. Mas
teriam vendido? “Uma série investigativa do New York Times nunca daria um
bom livro, porque se dá certo, basicamente, ela mostra tudo o que há de
errado com o mundo, com uma empresa específica ou com uma situação”,
contou-me ele. “Mas, ao ler um livro, ninguém quer ler para ficar sabendo o
quanto as coisas são ruins, certo? Quer dizer, esses livros existem e são muito
valiosos. Mas costumam ter, você bem sabe, um público limitado.” As
pessoas, sobretudo os vencedores que modelam as preferências e apadrinham
os líderes de pensamento, querem que as coisas sejam construtivas,
edificantes e deem esperança. “Além de saber o que há de errado, o público
quer aprender o que está certo”, disse Duhigg. E ele gosta de passos fáceis:
“Ele quer aprender o que pode fazer e como melhorar a si mesmo ou tornar o
mundo um lugar melhor.”
Duhigg não acreditava nesse tipo de solução mercadológica enquanto
desempenhava seu papel de repórter investigativo, mas a achava válida em
sua vida emergente como líder de pensamento. “O jornalismo investigativo
está tentando evitar especulações”, disse ele. “Já em um livro, pelo menos
metade de seu empenho deve ser especular a respeito de soluções.” No
entanto, se Duhigg tinha razão quanto à preferência por soluções, isso
deixava cada vez menos espaço aos tipos de pensadores e críticos que foram
fundamentais à nossa sociedade no passado. E abria cada vez mais espaço
para os tipos de livros que Duhigg começara a escrever.
Ele escreveu livros que os partícipes do Mercado Global amaram
instantaneamente, porque os ajudavam ou ensinavam os outros a ser como
eles. O primeiro foi sobre como os hábitos são criados e quebrados, e este
mais do que depressa eliminou o obstáculo de ser prático e construtivo. O
livro versava sobre como Duhigg conseguiu abandonar o hábito de comer um
cookie todas as tardes. E ele se apressou para terminar este primeiro livro,
que inspirou o segundo. Duhigg estava ocupado e sentia que estava fazendo
um pouco de tudo, mas não fazia nada bem. Ele queria ser mais produtivo.
Desse modo, começou a escrever um livro sobre produtividade, que ensinaria
os leitores a “se tornarem mais inteligentes, mais rápidos e melhores em tudo
o que faziam”. Para o Mercado Global, Duhigg se tornou menos ameaçador.
Agora, ele queria aprender com os tipos de pessoas que costumava delatar. O
destaque do livro era sobre o que poderíamos aprender com as equipes mais
produtivas do Google, que no momento do lançamento do livro estava perto
de destronar o ex-alvo de Duhigg, a Apple, como a empresa mais valiosa do
mundo.
Duhigg se tornou um líder de pensamento requisitado — presença constante
na lista de best-sellers e frequentador do circuito de palestras pagas. “Sou
abençoado”, disse ele. “Tenho muita sorte de os empresários quererem ouvir
o que falo e penso.” Isso lhe dava uma satisfação especial por causa do que
alguns de seus colegas da Harvard Business School aparentemente pensavam
quando ele entrou no jornalismo: que, segundo ele, “alguém lhe deu o bilhete
premiado da loteria e você decidiu usá-lo como papel higiênico”. Disse:
“Acho que eles pensavam que, economicamente, fiz uma escolha estúpida,
porque estava entrando em um campo de atuação no qual não ganharia
dinheiro — o que se provou equivocado, mas durante um bom tempo, foi
verdade.”
Uma das coisas que mudou a avaliação negativa de suas prospecções
financeiras foi sua agenda de palestras. Duhigg estava firme em seu propósito
de que elas se tornariam uma fonte de renda, bem como ganharia com a
venda de seus livros práticos e construtivos, sem de modo algum alterar suas
ideias, se corromper ou censurar. Sobre a discussão a respeito da palestra de
sua companheira de viagem Hillary Clinton ao Goldman Sachs, ele disse que
sua experiência “foi exatamente o contrário” do que os críticos de Hillary
apontaram sobre a desonestidade dela nesses eventos — e bastante similar à
própria defesa de Hillary contra eles. “Eles querem muito que eu dê uma
palestra”, disse ele. “Eu sou um tipo de entretenimento, certo? Não uma
pessoa a quem as pessoas querem ter acesso.”
Por um momento, ele pensou se viver às custas de palestras ocasionais
levaria os líderes de pensamento a se censurar. “Você acha que as pessoas
deixam de trilhar o caminho da investigação intelectual porque estão
preocupadas com a possibilidade de isso insultar o público em potencial?”,
perguntava em voz alta. “Ou que eles deturpam os pensamentos de um jeito
que soem mais aceitáveis para o público em potencial?” Claro, admitia, deve
haver algumas pessoas que o fazem, mas isso não era um problema grave. No
entanto, logo depois, acrescentou: “A questão é: você quer ser rico como
escritor ou quer ser um escritor intelectualmente honesto e responsável?”
Há alguns anos, outro peso-pesado da liderança de pensamento, Malcolm
Gladwell — que, como Duhigg (e diferentemente de muitos líderes de
pensamento), conseguiu preservar a respeitabilidade social — escreveu uma
longa nota de “divulgação” em seu site, abordando as complicações de
desempenhar “seus dois papéis”, como escritor e palestrante. Ele afirmou:
Ministrar uma palestra não comprova minha lealdade aos interesses do
meu público. Por quê? Porque ministrar uma palestra paga a um grupo por
uma hora simplesmente não é o bastante para que ele se predisponha a
gostar de você… As relações financeiras correm o risco de se
corromperem quando são, de fato, relações; quando, de alguma forma, são
duradouras, e os recursos, a influência e a informação circulam igualmente
em ambas as direções.
Talvez Gladwell esteja certo de que cada palestra é um evento único e não é
o bastante para corromper uma pessoa honesta. Todavia, é possível que uma
carreira de palestrante nunca estabeleça algo similar a “relações”, que tenha
algum grau de durabilidade e um fluxo de informações e de influência em
ambos os sentidos? Diversas curadorias de apresentações insistem em
telefonar ao palestrante para uma conversa, durante a qual os organizadores
lhe informam o contexto do evento e as “prioridades” dos participantes, e
talvez ofereçam sugestões a fim de que a palestra seja mais relevante.
Certamente, cada apresentação tem suas particularidades, mas muitas delas se
desenvolvem em um mundo comercial que abriga um conjunto de valores e
preferências coerentes para os despolitizados, os que buscam soluções
práticas e para eximir transgressores. Não é fácil construir uma carreira de
entretenimento nessas instituições enquanto se está tão certo quanto Gladwell
de que o efeito cumulativo desse entretenimento, e o desejo de ser bem-
sucedido e não fracassar, não o afetam.
“A questão deveria ser sobre o que eu escrevo. Não me critique por falar
para quem eu falo”, disse o colunista Thomas L. Friedman, do New York
Times, uma vez, também insistindo em sua incorruptibilidade. Contudo, ainda
que alguém acredite em Friedman e em Gladwell no que tange ao efeito do
dinheiro sobre eles como indivíduos, não é nada fácil aceitar a conclusão de
que o financiamento plutocrático das ideias não tem efeito no mercado de
ideias como um todo.
O dinheiro pode libertar os principais líderes de pensamento das instituições
e dos colegas que, de outra forma, poderiam submetê-los a algum tipo de
análise intelectual, ao passo que, às vezes, transformam suas ideias em
publicidade em vez de um trabalho independente. Como escreveu Stephen
Marche sobre Niall Ferguson, o historiador que virou líder do pensamento e,
ao que se sabe, ganha entre US$50.000 e US$ 75.000 por palestra:
Os escritores de não ficção podem ganhar muito mais dinheiro, e com mais
facilidade, do que ganhariam de outro modo, inclusive escrevendo best-
sellers ou lecionando em Harvard…
Essa quantia quer dizer que Ferguson não precisa agradar seus editores, e
com certeza não precisa agradar os estudiosos. Ele tem que agradar as
corporações e as pessoas com uma fortuna astronômica.
Embora haja líderes de pensamento como Gladwell, que possam resistir às
tentações de mudar suas ideias visando, digamos, uma convenção bancária, o
dinheiro dos plutocratas equivale a um tipo de subsídio para as ideias que eles
anseiam ouvir. E os subsídios têm consequências, conforme observa Gautam
Mukunda, professor da Harvard Business School, em um artigo sobre como
Wall Street se agarra com unhas e dentes ao poder, inclusive cultivando
ideias que nos fazem acreditar que “os poderosos são bons e justos, e estão
fazendo a coisa certa”.
A capacidade de um grupo poderoso de recompensar aqueles que
concordam com ele e reprimir os que não concordam deturpa o mercado de
ideias. Não se trata de corrupção — as crenças mudam naturalmente de
acordo com os interesses. Como disse Upton Sinclair: “É difícil fazer um
homem entender alguma coisa quando seu salário depende de não entendê-
la.” O resultado pode ser uma sociedade inteira deturpada a fim de servir
aos interesses do grupo mais poderoso.
A ideia de que os líderes de pensamento passam incólumes por seus
patrocinadores também é desmentida pelos sites dos próprios palestrantes,
que ilustram como os vendedores ambulantes de ideias potencialmente
ameaçadoras são menos assustadores para as reuniões dos abastados e
poderosos.
Anat Admati é uma economista de Stanford e crítica proeminente do setor
financeiro. “Os banqueiros são quase unânimes” acerca do “criticismo
insultuoso e persistente do setor”, o New York Times relata: “As ideias dela
são extremamente impraticáveis, péssimas para a economia norte-americana
e não devem ser levadas a sério.” Os textos de Admati foram elogiados por
sua habilidade de “questionar o status quo”; ela é alguém que “desmantela as
táticas de intimidação dos bancos” e “expõe a falácia dos argumentos
autocentrados que fazem oposição a uma reforma financeira significativa,
promovidos por executivos de Wall Street e políticos fisgados por eles para
atender aos seus interesses”. Admati também é uma líder de pensamento,
representada pela agência de palestras Leigh Bureau, que tem a árdua tarefa
de amenizar o tom ao anunciar os tópicos da palestra dela: “Podemos ter um
sistema bancário mais seguro e saudável, sem sacrificar nenhum de seus
interesses.”
Anne Applebaum, uma colunista do Washington Post que escreve a respeito
do nacionalismo crescente, agressão russa e outras correntes geopolíticas
sombrias, é apresentada em sua página como uma palestrante que fala sobre
“A Política da Transição — Riscos e Oportunidades”.
Jacob Hacker é um cientista político de Yale. Ele foi um dos que estiveram
apreensivos com o aplicativo Even, e é um crítico incisivo do rumo da
econômica dos Estados Unidos na última geração. Escreveu livros como
American Amnesia: How the war on government led us to forget what made
America prosper [“Amnésia Norte-americana: Como a guerra ao governo nos
levou a esquecer o que fez os Estados Unidos prosperarem”, em tradução
livre] e The Great Risk Shift: The new economic insecurity and the decline of
the american dream [“A Grande Mudança Arriscada: A nova insegurança
econômica e o declínio do sonho americano”, em tradução livre]. É um
pensador que representa a situação em que todos saem perdendo e um dos
críticos mais perspicazes do corporativismo norte-americano. Isso representa
um desafio para seus agentes, que, no entanto, encontraram uma saída:
Hacker, um pouco exposto, torna-se um “líder de pensamento político com o
intuito de restaurar a segurança do sonho americano”.
Pode-se contestar que são somente ajustes superficiais na linguagem que
não alteram a mensagem principal. Porém, mesmo que isso fosse verdade em
alguns casos, não fica claro que ceder a esses ajustes não tenha um preço. Há
uma pressão enorme para transformar pensamentos em commodities — em
pequenos produtos funcionais; em insights matinais de segunda-feira para um
CEO; em ideias lucrativas, em vez de autossuficientes. Para ceder a essa
pressão, fazer com que seus pensamentos sejam mais práticos e dominar a
linguagem e as premissas vigentes no mundo dos negócios é necessário se
render. No poema “Conversa sobre Poesia com o Fiscal de Rendas”, de
Vladimir Maiakovski, o poeta percebe que não tem chance de conseguir o
que quer, porque a linguagem em que é obrigado a falar pertence a outro
registro. A amortização do homem de negócios é contabilizada em sua carga
tributária, mas e as “amortizações de almas e corações” do poeta? O homem
de negócios recebe um alívio para suas dívidas, mas poderia o poeta
reivindicar a mesma vantagem pelo seu endividamento “e toda infinidade/a
que eu não pude dar/a sobra de uma ode”?
Os líderes de pensamento podem se tornar como os poetas usando o registro
linguístico do fiscal de rendas, dizendo o que podem ou não falar ou acreditar
por conta própria. E o perigo não reside somente no que dizem nesse novo
registro, mas também na possibilidade de, em determinado momento, eles
pararem de pensar em sua língua nativa.
que acontece com uma sociedade quando não existe uma Amy Cuddy, e
O sim milhares de líderes de pensamento, cada qual fazendo suas barganhas
pessoais, refreando o criticismo a fim de serem convidados a voltar, em um
silêncio persistente e determinante? Qual é o efeito cumulativo de todas essas
omissões?
Em parte, elas originam as teorias de mudanças amenas que são pessoais,
individuais, despolitizadas, que respeitam o status quo e o sistema, e nem de
longe são disruptivas. Quanto mais as críticas genuínas são deixadas de lado
e mais as ideias exultantes, práticas e com propensão a eliminar as demais
forem promovidas, mais superficial a ideia de mudança propriamente dita se
torna. Quando uma líder de pensamento desvincula o problema da política e
dos perpetradores, não raro ela obtém acesso a uma plataforma ainda maior
com o intuito de influenciar os responsáveis pela mudança — no entanto,
também passa a contribuir com um amontoado de narrativas promovidas pelo
Mercado Global que nos dizem que a mudança é fácil, uma situação em que
todos saem ganhando e que não requer sacrifícios.
O que os líderes de pensamento oferecem aos vencedores do Mercado
Global, consciente ou inadvertidamente, é a aparência de estar do lado certo
da mudança. Os tipos de mudanças apoiadas pelo público em uma época de
desigualdade, conforme retratadas vez por outra em algumas plataformas
eleitorais, normalmente são inaceitáveis para as elites. A simples rejeição a
esses tipos de mudanças apenas instigam uma hostilidade maior em relação
às elites. É mais vantajoso que as elites sejam vistas como apoiadoras das
mudanças — seus tipos de mudança, é claro. Tomemos, por exemplo, o
tópico de educar crianças pobres em um momento de declínio da mobilidade
social. Um verdadeiro crítico pode reivindicar o fim do financiamento das
escolas pelos impostos municipais sobre propriedades e a criação, como em
muitos países desenvolvidos, de um fundo nacional comum que subsidie as
escolas de forma mais ou menos igualitária. O que um líder de pensamento
pode oferecer ao Mercado Global e aos vencedores é uma espécie de
contraproposta intelectual — a ideia de, digamos, utilizar o Big Data com o
intuito de remunerar melhor os professores mais importantes e eliminar os
que deixam a desejar. Em matéria de extrema desigualdade de riqueza, um
crítico pode pleitear a redistribuição econômica ou até reparações raciais. Um
líder de pensamento, em contrapartida, poderia opinar sobre como os líderes
de uma fundação deveriam receber salários mais altos, de modo que os
pobres pudessem se beneficiar de uma liderança mais capacitada.
Quando ocorre esse abandono à crítica, não em relação a um ou dois
problemas, mas a todos os problemas importantes, os líderes de pensamento
não estão somente reprimindo suas ideias e intuições. Eles estão participando
da conservação do problemático status quo do Mercado Global ao sinalizar a
realização de mudanças. Recentemente, Bruno Giussani, o homem que havia
apresentado a palestra de Amy Cuddy no TED, estava se debatendo com seu
próprio papel em relação a esse fato. Giussani é um dos poucos curadores da
organização TED e anfitrião de alguns de seus eventos. Foi a partir da
palestra apresentada por ele em Edimburgo que Cuddy se elevou ao estrelato
mundial, anos antes. Ex-jornalista vindo da Suíça, Giussani faz parte de uma
das pequenas equipes de executivos seniores que decidem quem serão os
apresentadores nos palcos principais das conferências, orientam os
palestrantes, editam as palestras e os ajudam a disseminar suas ideias. Ele é
conhecido por ser uma espécie de dissidente do éthos dos aficionados por
tecnologia e dos admiradores do mercado que dominam os eventos do TED,
mas obviamente não a ponto de não trabalhar mais para ele. Ele é o tipo de
pessoa que trabalha nos bastidores, que não tem um nome popular, porém
ajudou a popularizar muitos deles.
Giussani deveria estar aproveitando sua tão esperada licença sabática. Mas,
meses antes, desistiu da folga, pois a ascensão do populismo em todo o
mundo e a disseminação da política de fúria o deixava preocupado e se
questionando sobre o que poderia ter levado as sociedades a enlouquecerem.
A princípio, a fúria contra as elites parecia enigmática, pois nos próprios
círculos sociais de Giussani ele observava uma infinidade de organizações e
pessoas preocupadas e ativas socialmente. “Você vai a qualquer jantar, e não
apenas no TED, Skoll, Aspen ou em qualquer outro lugar, mas ao jantar com
pessoas deste círculo”, afirma ele, “à sua direita está alguém que acabou de
doar US$1 milhão para uma ONG na África, e à sua esquerda, alguém cujo
filho passou seis semanas operando alguém em um hospital de campanha”.
Giussani fez piada dizendo que havia tantos bons samaritanos de elite
tentando mudar o mundo que “se todos pularem ao mesmo tempo,
provavelmente inclinarão o eixo da Terra”. E, no entanto, veja o que estava
acontecendo com o mundo — o populismo, a fúria, a fragmentação, o ódio, a
exclusão e o medo entravam em ebulição.
Ao longo dos últimos anos, Giussani percebeu como as elites pareciam cada
vez mais norteadas por arremedos de mudança. Essas ideias exoneram os
mercados e seus vencedores da análise crítica, a despeito de seu imenso poder
de decidir como as pessoas vivem do modo que vivem e de seu apoio a um
sistema que produzia fortunas e exclusão extraordinárias. Esses conceitos de
mudança foram definidos e limitados pelo complexo de “suposições
intelectuais que dominaram as últimas duas décadas”, disse Giussani. Dentre
elas: “Os negócios são a força motriz do progresso. O Estado deve fazer o
mínimo possível. As forças de mercado são a melhor maneira de alocar os
parcos recursos e solucionar os problemas. As pessoas são basicamente atores
racionais motivados por interesse próprio.” Ao falar como um homem que
controlava o acesso a um dos palcos mais poderosos do mundo, Giussani
disse que, no decurso de nosso tempo, “certas ideias são mais bem
comunicadas porque se encaixam nessas suposições intelectuais”. Outras se
encaixam menos.
O Mercado Global acha certas ideias mais admissíveis e menos
ameaçadoras que outras, ele afirma, e faz sua parte ajudando-as mediante
patrocínio de líderes de pensamento. Giussani observou, por exemplo, que
ideias enquadradas como “pobreza” são mais aceitáveis do que as
enquadradas como “desigualdade”. As duas ideias estão relacionadas.
Todavia, a pobreza é um fato relevante de privação que não acusa ninguém, e
a desigualdade é algo mais preocupante: versa que alguns têm e outros não;
flerta com a ideia de injustiça e iniquidade; é relacional. “A pobreza é
basicamente uma questão que você pode resolver com caridade”, disse ele.
Uma pessoa abastada pode doar alguma quantia e reduzir a pobreza. “Mas
com a desigualdade”, de acordo com Giussani, “isso não acontece, porque a
desigualdade não se trata de retribuição. A desigualdade envolve, em
primeiro lugar, como você ganha o dinheiro que está retribuindo”. A
desigualdade, disse ele, tem a ver com a natureza do sistema. Combatê-la
significa mudar o sistema. Para uma pessoa privilegiada, significa analisar o
próprio privilégio. E, disse ele, “você não pode mudar isso sozinho. Você só
pode mudar o sistema coletivamente. Por meio da caridade, essencialmente,
se tem dinheiro, pode fazer muitas coisas sozinho”.
Essa diferenciação corria paralelamente à mudança de abordagem de Cuddy
para sua mensagem antissexista em sua palestra no TED. O que a motivou a
estudar o tópico foi a desigualdade — especificamente, a ausência de poder
em um grupo de estudantes por causa do poder de outro grupo (e de pessoas
como eles). Era um crime com uma vítima e um agressor. No momento em
que essa ideia aterrissou no TED, a desigualdade, conforme vimos, havia sido
remodelada em pobreza. “As mulheres”, disse Cuddy, “se sentem com menos
poder que os homens de forma crônica”. O crime ainda era crime, mas agora
procurava por suspeitos.
Giussani tinha uma perspectiva mais clara do que a maioria de como os
pensadores eram atraídos a esse tipo de liderança de pensamento. Não era
algo como se não houvesse escolha a não ser se engajar. Você poderia
facilmente desenvolver suas ideias e promovê-las por meio do que ele
chamou de “revistas marginais” e “conferências militantes”. Mas o alcance
seria limitado. Se você teve acesso ao sentimento de querer ajudar outrem em
uma escala de alcance semelhante ao da Coca-Cola na idade em que Hilary
Cohen o teve, e sabia que suas ideias seriam úteis, poderia pensar que mantê-
las imaculadas teria um alcance restrito, o que prejudicaria em vez de ajudar
todas as pessoas que precisassem de você. Segundo Giussani, a alternativa
era fazer o que Cuddy havia feito: parar de dizer o que gostaria para poder ser
ouvida. “Você pode sair e divulgar essas coisas ao condicioná-las de uma
forma que as torne atraentes para grandes apresentações, para públicos
grandes ou de alto nível, e esperar que, nesse contexto, ainda consiga
apresentar o suficiente de tais ideias, de modo que os force a ver, em vez de
apresentar somente o que os agrada ou satisfaz, ou apenas para que o público
lhe dê ouvidos.”
Existe uma tendência no Mercado Global de negar o que Cuddy e Giussani
admitem com sinceridade: que muitas vezes, mas nem sempre, é preciso
manter determinadas ideias à margem a fim de ser ouvido. “Você precisa
abdicar de seus questionamentos morais ou de suas convicções, para
condicionar as ideias de modo que elas se tornem mais agradáveis a esse tipo
de ambiente”, afirma Giussani. Para muitos líderes de pensamentos, segundo
ele, ainda era um acordo excelente. “Se esta é sua opinião”, disse, “você
deseja repeti-la na próxima semana e na semana seguinte — e repetindo,
reiterando, continuando a pesquisar e atingindo mais e mais pessoas, você
está tentando ter um impacto para gerar mudanças”.
Muitos pensadores abrem mão dos questionamentos morais e desviam desse
modo porque dependem demais da aprovação do Mercado Global para
construir suas carreiras. Alguns conseguem estabelecer carreiras sólidas sem
ministrar uma única palestra paga, sem painéis no Aspen Ideas Festival,
patrocinado pela Monsanto e pela Pepsi, sem o uso de plataformas como
TED ou Facebook, em que as ideias exultantes têm mais chances. Continua a
ser, observa Daniel Drezner em The Ideas Industry, “uma classe média de
intelectuais acolhidos no meio acadêmico, think tanks e empresas privadas”.
Mas eles têm poucas oportunidades em comparação aos líderes de
pensamento que deslancham na estratosfera da fama e do reconhecimento
público. “Para permanecer na categoria dos superfamosos, os intelectuais
precisam conseguir conversar fluentemente com a classe plutocrática”,
escreve Drezner, acrescentando: “Caso queiram que os benfeitores em
potencial fiquem contentes, eles não podem se dar ao luxo de proferir a
verdade aos endinheirados.”
Isso não significa que uma dessas elites tenha telefonado para Giussani e lhe
dito para manter determinadas pessoas fora do palco. Não acontece desse
jeito, disse ele. São mantras invisíveis reforçados de modo sutil. Hoje, um
dos meios de se fazer isso é dar preferência a pensadores que lembram os
vencedores de seus êxitos, disse Giussani. Um crítico nos moldes tradicionais
costuma ser um perdedor — uma pedra no caminho, um provocador externo,
um cínico desavergonhado. Os líderes de pensamento em ascensão, apesar de
seus produtos serem ideias, se aproximam menos dos críticos e são mais
parecidos com aliados dos poderosos — comprando casacos nas mesmas
lojas de Aspen, viajando pelo mesmo circuito de conferências, lendo os
mesmos livros de Yuval Noah Harari, sendo pagos pelas mesmas empresas,
acatando o mesmo consenso básico, observando os mesmos tabus
intelectuais.
“As pessoas gostam de vencedores, e de perdedores, e essa é a realidade”,
disse ele. E, sim, sabia que alguém poderia argumentar que pessoas como ele
deveriam desafiar essa preferência em vez de se interessar por ela. “Se as
conferências não colocarem os perdedores no palco, eles permanecerão
perdedores para sempre”, disse Giussani, antecipando as críticas. Mas disse a
si mesmo que era injusto “pedir a um organizador de conferências ou ao New
York Times para resolver um problema social que existe porque as pessoas
gostam de vencedores e não gostam de perdedores. Se eu trouxer somente
perdedores ao palco, me tornarei um deles, pois ninguém virá às minhas
conferências”. (Giussani pontuou que estava usando “perdedores” entre
aspas, de modo a sinalizar como são considerados, não a sua opinião. E, para
ser justo, ele contrabandeara muitos críticos para o palco do TED, o mais
notável foi o Papa Francisco.)
Não era necessariamente maldade ou cinismo que sustentava esses padrões;
no entanto, segundo Giussani, era algo mais banal. As pessoas que servem de
formadores de opinião à elite global — como ele próprio — estavam, como
muitas, em uma bolha intelectual. “Os franceses têm uma expressão para
isso, une pensée unique. Uma única forma de pensar? Todo mundo pensa
igual.” Em seu mundo, disse, isso significava um consenso implícito
(disseminado, mas não generalizado) a respeito de determinadas ideias:
pontos de vista progressistas são preferíveis aos conservadores; a despeito da
instabilidade, a globalização é, em última instância, uma situação em que
todos saem ganhando; a maioria das tendências de longo prazo é positiva
para a humanidade, fazendo com que muitos problemas de curto prazo sejam
supostamente irrelevantes; diversidade e cosmopolitismo e o livre fluxo de
seres humanos são sempre melhores do que as demais alternativas; os
mercados são o modo mais realista de se colocar tudo isso em prática.
O pensée unique fez com que sua tribo “ignorasse muitas questões que são
relevantes para outras pessoas e não o são para nós”, disse Giussani. “E,
quanto mais isso acontecia, mais desconsideramos essas questões e
sensibilidades culturais — cultura que, em um sentido amplo, voltou e está
nos assombrando.” Com isso, refere-se à crescente raiva populista, pela qual
se culpava, ainda que de uma forma modesta.
É claro que não foram somente os curadores e mediadores como ele que
protegeram sua própria visão de mundo e silenciaram os outros. Foi também
a elite, que ouvia apenas o que queria ouvir. Ele deu o exemplo da famosa
palestra TED de Steven Pinker sobre o declínio da violência ao longo da
história, com base em seu livro Os Anjos Bons da Nossa Natureza. Pinker é
um respeitado professor de psicologia em Harvard, e poucos o acusariam de
amenizar as críticas ou ceder às tentações da liderança de pensamento.
Entretanto, sua palestra se tornou o culto predileto entre os investidores de
fundo de hedge, o pessoal do Vale do Silício e outros vencedores. E isso
aconteceu não somente porque ela foi interessante, atual e bem
fundamentada, mas também porque abarcava uma justificativa para, em
partes, manter a ordem social como está.
A questão trazida por Pinker era direta, focada e legítima: que a violência
interpessoal como forma de solução de problemas para os humanos estava
indo por água abaixo. No entanto, para muitos que ouviam a palestra, ela
proporcionava um modo socialmente aceitável de dizer às pessoas que
estavam no ponto máximo de ebulição das desigualdades sociais que
parassem de reclamar. “A coisa se tornou uma ideologia de: talvez o mundo
de hoje possa ser complexo, complicado e confuso de inúmeras maneiras,
mas a realidade é que, se você adotar a perspectiva de longo prazo, perceberá
quanta coisa boa temos”, disse Giussani. A ideologia, segundo ele, dizia às
pessoas: “Você está sendo irrealista e não está analisando os fatos da forma
correta. E se você acha que tem problemas, veja bem, seus problemas
realmente não importam em comparação aos que tínhamos no passado, e não
são, de fato, problemas, porque as coisas estão melhorando.”
Giussani ouvia tanto os abastados fazerem esse tipo de coisa e com tanta
frequência que inventara um verbo para o ato: eles estavam “pinkerizando”
— usando o direcionamento de longo prazo da história humana para
minimizar e deslegitimar as preocupações daqueles que não detinham o
poder. Havia também a economia “pinkerizada”, cujo intuito “é dizer às
pessoas que a economia global tem sido ótima porque 500 milhões de
chineses passaram da pobreza para a classe média. E, claro, é verdade”, disse.
“Mas, se você contar isso ao cara que foi demitido de uma fábrica em
Manchester porque seu emprego foi tomado pela China, ele pode ter uma
reação diferente. Só que não nos importamos com o cara em Manchester.
Logo, esse tipo de ideologia tem muitas facetas, que foram usadas para
justificar a situação atual.”
Veja um exemplo evidente da pinkerização, do psicólogo social Jonathan
Haidt. Repare como observações precisas sobre o progresso humano entre a
época dos caçadores-coletores e o presente se transformam em críticas
vergonhosas:
Somos essas pequenas espécies tribais que, basicamente, estavam quase se
espancando e competindo entre si de todas essas formas possíveis, e, de
um jeito ou de outro, superamos essas características de nosso modelo
inicial. Olho ao redor e digo: Vai, humanidade! Somos fantásticos. Sim,
existe o ISIS e muitas coisas ruins, mas vocês que pensam que as coisas
estão ruins estão esperando demais.
Como curador do TED, Giussani foi uma das muitas pessoas que ajudaram
a engendrar uma nova esfera intelectual nas últimas décadas. Isso
transformou os líderes de pensamento em nossos filósofos mais ouvidos.
Colocou muitos deles na folha de pagamento de empresas e plutocratas,
como meio de se sustentarem. Fomentou um conjunto de ideias amigáveis
para os vencedores de nossa era. Difundiu tantos pensamentos sobre por que
o mundo estava melhorando nos últimos anos que mal conseguiu captar a
mensagem a respeito de todas as pessoas cujas vidas não estavam
melhorando nem um pouco, que não se importavam com a pinkerização, pois
sabiam exatamente o que elas estavam testemunhando: uma sociedade em
que um número ínfimo de pessoas frequentava conferências e seus partícipes
acumulavam boa parte da fatia do progresso que alegavam ser inevitável,
abundante e benéfico para todos.
Agora, nos Estados Unidos, na Europa e além, as revoltas estavam em
marcha. As pessoas rejeitavam o consenso dos vencedores que Giussani
descrevera. O domínio e a distorção do mundo das ideias pelo Mercado
Global teria contribuído para a raiva que o perturbava tanto? “É claro que
essa distorção contribuiu”, disse ele. “Acredito mesmo que seja uma das
maiores motivações disso.” As elites do Mercado Global criaram um casulo
intelectual para si mesmas e continuaram reiterando as narrativas que as
resguardavam contra a mudança profunda. Nesse ínterim, disse Giussani,
milhões de pessoas mundo afora estavam “sentindo que grande parte de sua
realidade estava sendo ignorada, na melhor das hipóteses, censurada ou até
ridicularizada”.
Mais cedo ou mais tarde, eles fariam algo a respeito.
CAPÍTULO 5
OS INCENDIÁRIOS FORMAM OS MELHORES BOMBEIROS
sses receios foram tomando conta de Hinton pouco a pouco. Após cinco
E anos ele deixou a McKinsey; posteriormente, trabalhou em Londres por
vários anos gerenciando um estúdio de cinema e abriu uma boutique de
investimentos; depois, acabou na China, onde passou a trabalhar com
transações financeiras complexas. Esse trabalho resultou em projetos para
Goldman Sachs e Rio Tinto, que, ao verem uma pessoa que já conhecia os
protocolos e trabalhara na Mongólia, pensaram que talvez ele pudesse ajudá-
los e assessorar seus clientes a desviar dos obstáculos no ambiente político do
país. A Mongólia estava no meio de um boom da mineração, e empresas de
grande porte estavam fechando acordos para extrair cobre e outros recursos
do país. A função de Hinton era, como ele a define, servir de intermediário
entre essas empresas e a Mongólia, ajudando os dois lados a se entenderem, a
fim de mitigar os riscos para o projeto. Afinal, contratos de mineração
malsucedidos poderiam gerar custos astronômicos aos investidores.
O papel de Hinton como consultor sênior da Goldman e da Rio Tinto o
colocou diretamente entre as empresas para as quais trabalhava e um país que
ele amava, e tinha muitas contradições contra as quais, mesmo anos depois,
ele parecia se debater. “Eu agia como advogado da parte contrária, mas era
pago por uma empresa de mineração; era pago por um banco de
investimento”, disse ele. “Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que meu
papel não era influenciado a atender às necessidades e ao interesse deles em
um grau significativo. Claro que era.” Ainda não estava claro para ele, ou
qualquer outra pessoa, se os interesses empresariais estrangeiros ajudariam o
país como prometeram ou se, como a história de extração de recursos
demonstrara tantas vezes, eles tomariam tudo que podiam e desapareceriam.
Ele era pago para acreditar e convencer os outros de que o que essas
empresas queriam era o que a Mongólia precisava — a situação em que todos
saem ganhando. Ele fora contratado para conciliar o que talvez fosse
inconciliável. Talvez tenha se dado conta disso e, passado alguns anos, em
determinada altura, Hinton contatou um icônico emissário dos protocolos,
que também estava tendo suas próprias dúvidas.
Michael Porter, professor da Harvard Business School, considerado o
idealizador da estratégia corporativa moderna, chamou a atenção de Hinton
com um artigo de 2011, cuja avaliação crítica deveras modesta à abordagem
predominante dos negócios gerou um rebuliço em um mundo que não está
acostumado ao fogo amigo. Porter estava entre os autores mais citados sobre
negócios e era um padrinho das teorias a respeito de como a concorrência
comercial funciona e o que torna as sociedades “competitivas”, ou seja,
atraentes, para os negócios. Além de lecionar e escrever, ao abrir uma
empresa de consultoria chamada Monitor Group e oferecer seus conselhos a
muitas iniciativas de reforma da assistência médica, ele próprio ingressara no
mundo de divulgação dos protocolos de negócios. “Ele influenciou mais
executivos — e nações — do que qualquer outro professor de negócios do
mundo”, reconheceu a revista Fortune uma vez. E então, em 2011, quando
Porter e um coautor chamado Mark Kramer publicaram o artigo “Criação de
Valor Compartilhado” na Harvard Business Review, o texto despertou a
atenção do mundo dos negócios.
“O sistema capitalista está sitiado”, escreveram Porter e Kramer, passando
nitidamente a impressão de um manifesto do século XIX. A atividade
empresarial estava sendo “cada vez mais vista como uma das principais
causas de problemas sociais, ambientais e econômicos”. Ela “prospera à custa
da comunidade que a cerca”. De quem é a culpa? “Grande parte do problema
está nas empresas em si”, escreveram. E eles culpavam as empresas por terem
“uma abordagem à geração de valor surgida nas últimas décadas e já
ultrapassada”. As empresas estavam focadas demais “otimizando o
desempenho financeiro de curto prazo numa bolha”. Elas adquiriram uma
propensão arriscada “ignorando as necessidades mais importantes do cliente e
influências maiores que determinam seu sucesso em longo prazo”. Repetidas
vezes, as empresas que empregavam milhares de pessoas brilhantes e tinham
consultores externos com o salário altíssimo tomavam decisões que
ignoravam “o esgotamento de recursos naturais vitais para sua atividade, a
viabilidade de fornecedores cruciais ou problemas econômicos das
comunidades nas quais produzem e vendem”. Porter e Kramer estavam
criticando uma cultura que foi além do mundo dos negócios: a cultura criada
pelos protocolos que fragmentavam as coisas e ofuscavam o contexto.
Posteriormente, Hinton se encontrou com Porter com o intuito de pedir seus
conselhos a respeito de como estruturar os acordos das empresas para as
quais trabalhava na Mongólia, a fim de serem menos protocolares e mais
humanos. Agora, anos depois, Porter estava sentado em uma mesa privativa
no restaurante Peacock Alley, localizado no saguão requintado e agitado do
luxuoso hotel Waldorf Astoria em Nova York, explicando como havia
mudado de ideia sobre a finalidade dos protocolos. Ele se interessara pela
desigualdade após a Grande Recessão, especialmente depois de analisar
alguns dados sobre o quão bem algumas empresas e indivíduos norte-
americanos sobreviveram a ela em comparação ao quão mal o cidadão
comum e o trabalhador haviam sobrevivido. Ele alegou: “Começamos a
pensar muito: o que estamos fazendo na Harvard Business School? O que
estamos ensinando aqui? Seja como for, nos perdemos em algum lugar do
caminho.” Essas perguntas o levaram à sua ideia de “valor compartilhado” —
de que existiam novas formas de pensar sobre os objetivos e práticas de
negócios que melhorariam o relacionamento das grandes empresas com suas
comunidades.
Naquele dia, Porter chegou ao Waldorf com uma pauta de esperança. Ele
não queria falar sobre o que as pessoas estavam fazendo de errado. “Minha
opinião é que agora existem forças muito sólidas que podem ser
aproveitadas”, disse ele. As pessoas sabiam que a velha cartilha para fazer
negócios não estava funcionando. Elas queriam coisas novas. “Logo, é uma
questão de estruturar o que ‘deveria’ ser feito em vez de o que ‘não deveria’.”
Essa relutância quanto ao “não” era compreensível para um homem
extremamente influenciado pelo Mercado Global. Mas as ideias de Porter
sobre o “não” pareciam abarcar um sentido maior, porque, se era evidente
para milhões de pessoas fora do Mercado Global que os protocolos de
negócios da última geração haviam acarretado muitos dos problemas que o
mundo hoje enfrentava, tais protocolos não pareciam suspeitos para quem
fazia parte do sistema. Talvez ouvir isso de Michael Porter abalasse as
estruturas dessas outras pessoas que não queriam enxergar a realidade dos
fatos.
Meticuloso e sistemático, Porter começou a expor como a abordagem de
negócios com relação à vida, ao longo de uma geração, contribuiu e muito
com alguns dos males da sociedade que agora se apresentavam como cura.
No cerne de seu relato residia uma avaliação crítica dos protocolos, e como a
abordagem fracionada da realidade e a recusa do todo haviam prejudicado as
pessoas.
Porter discorreu sobre como as empresas da última geração perseguiram
uma visão globalizada, em que não se consideravam em dívida com nenhuma
comunidade. Isso se devia ao fato de que aqueles que foram ensinados por
professores como ele, em locais como a Harvard Business School, preparados
pelas consultorias, por Wall Street e outros espaços de formação,
costumavam não se comprometer com lugar nenhum. Você analisava os
dados e depois ia aonde estava a oportunidade; pouco importava se isso o
fizesse cortar os laços com sua própria comunidade e com seus deveres com
ela. “Existiam muitas coisas que as empresas tradicionalmente faziam para
ajudar a comunidade, desde o treinamento de pessoas até outras atividades
pelas quais assumiam responsabilidade, o que chamamos de investimento no
bem comum”, disse Porter. Por bens comuns, ele se referia aos patrimônios
compartilhados de um lugar — como escolas públicas que beneficiavam
tanto os setores empresariais quanto a população local. “Conforme as pessoas
perderam o vínculo com os lugares, as empresas pararam de reinvestir nesses
espaços. Elas passaram a considerar a globalização do trabalho.”
Essa ausência de vínculo mencionada por Porter foi instigada pela
abordagem descontextualizada e segregadora do “não tente abraçar o mundo”
dos protocolos — em virtude da tendência à fragmentação. Antes de os
protocolos dominarem o mundo dos negócios, uma empresa não ia muito
longe para levantar dinheiro, adquiria matéria-prima nas proximidades,
vendia a clientes não muito distantes, pagava impostos a autoridades locais e,
quando prosperava, depositava o lucro em um banco não muito longe ou
reinvestia em um empreendimento nas redondezas. Mas, nas últimas décadas,
isso começou a mudar conforme a tecnologia facilitava as transações
comerciais com empresas distantes, novos mercados se abriam e, o mais
importante, à medida que os gurus financeiros e consultores administrativos
influenciavam o alto escalão. De posse dos protocolos, esses personagens
coagiam as empresas a adotarem uma nova filosofia: realize cada uma de
suas atividades onde for melhor, onde quer que seja. Agora, você angariava
recursos financeiros com investidores coreanos, comprava do México, vendia
na França, pagava impostos para o Caribe e, quando prosperava, escolhia um
banco suíço ou Bitcoins impalpáveis para armazenar os rendimentos — ou
reinvestia em qualquer empreendimento mundo afora que lhe prometesse o
maior retorno possível. Foi uma expansão de liberdade comercial. Porter
sugeriu, no entanto, que isso havia rompido um velho padrão das empresas de
se comportarem com um senso de cidadania. “Seja como for, existe um
desapego por causa dessa noção de globalização — de que não somos mais
uma empresa norte-americana”, disse ele. “E é provável que, se você estiver
operando em todo o mundo, não terá nenhuma razão especial para se
preocupar com Milwaukee.”
Em algum ponto da trajetória da globalização, disse Porter, a autoimagem
das empresas como um pilar da comunidade havia dado lugar à de “somos
globais agora, e isso não é mais problema nosso”. Ele acrescenta: “Elas
começaram a não aceitar nenhuma responsabilidade por essa comunidade
porque não achavam que era a função delas, que sempre poderiam se mudar
para outro local se essa comunidade não quisesse acatar as suas diretrizes.”
Era uma situação em que um ganhava e outro saía perdendo: as empresas
prosperavam por causa de sua liberdade de se esquivar, e a comunidade sofria
com a falta de incentivos.
O segundo ponto crítico de Porter considerava a “otimização”. Graças, em
parte, aos protocolos emergentes, uma nova cultura de negócios floresceu, na
qual até os menores elementos das atividades de uma empresa tinham que ser
perfeitamente otimizados, e isso, segundo Porter, facilitou o maltrato aos
trabalhadores e a negligência de questões sobre como esse sistema afetava as
pessoas. Esses novos protocolos vingaram, pois o mundo dos negócios que
começaram a conquistar na segunda metade do século XX era restrito a
determinados círculos, provinciano e nada otimizado. Muitas empresas,
mesmo as de grande porte, se comportavam como famílias (que ainda
administravam a maior parte delas): você não vendia em qualquer lugar que
pudesse e pelo melhor preço de mercado de acordo com o lugar; você vendia
onde conhecia alguém, que conhecia outro alguém, que pagava pela melhor
estimativa. Não se pagava os operários conforme a demanda aumentava ou
diminuía; eles recebiam um salário regular.
Empresas de consultoria administrativa, empresas em leveraged buyout
[investimentos em participação acionária alavancados], bancos de
investimento e outros emissários dos protocolos foram arrastados para esse
mundo pitoresco dos negócios nas últimas décadas e passaram a pressionar
para que cada parte dele fosse otimizada. Eles fizeram isso por meio de uma
combinação de projetos de consultoria pagos pelas empresas; ofertas públicas
de aquisição agressivas, após as quais adaptavam os departamentos das
empresas conforme queriam; e pressão dos acionistas para aumentar o valor
das ações. Uma nova ética de otimização se espalhou pelo mundo dos
negócios e, à primeira vista, pelo menos para Porter, parecia ser positiva. Ele
disse: “Aprendemos muito sobre como administrar as empresas de modo
mais produtivo, como operar cadeias de suprimentos, como implementar
melhor a tecnologia e como ser mais inteligente em relação a compras e
aquisições.” Ao longo de uma geração, essas iniciativas, muitas das quais
foram incubadas na Harvard Business School, tornaram a economia como um
todo mais produtiva e competitiva. No entanto, não era uma coincidência,
segundo Porter, que “quando essa margem de manobras se esgotou”, como
ele disse, no mesmo período, a vida começou a ficar bastante difícil para
muitos trabalhadores. “Fizemos as empresas ficarem mais produtivas, o que
possibilitou aumentos salariais por muitos e muitos anos. Mas também, sem
sequer perceber, começamos a desmantelar os vínculos entre a empresa e
seus funcionários.”
Ele mencionou a Starbucks. Como muitas empresas, ela começou a
cronometrar as atribuições dos trabalhadores utilizando ferramentas
ultrainovadoras de “cronograma dinâmico”, que permitiam aos empregadores
alterar os horários com mais frequência, a fim de otimizar continuamente.
Isso ajudava uma empresa a pagar a menor remuneração possível para
atender a uma determinada demanda. Esse tipo de coisa aumentou a
lucratividade da empresa, mas era capaz de instaurar o caos na vida dos
trabalhadores. Eles já não sabiam mais quantas horas trabalhariam, o que
dificultou o pagamento de contas e as compras. Eles tinham que providenciar
quem ficasse com seus filhos de uma hora para outra. Porter afirma: “De
alguma forma, ao serem eficientes, inteligentes e produtivas, as pessoas
acharam que tinham o direito de parar de pensar nos seres humanos e no
bem-estar de todos os outros membros do sistema.” Pode-se perceber essa
mesma cegueira, de acordo com Porter, na insistência de empresas
extremamente lucrativas em pagar salários baixos: “Transformamos essas
pessoas em commodities e as otimizamos para nosso uso, em vez de otimizá-
las de outra forma. Logo, muitas práticas trabalhistas, uma boa parte dessa
ideia de que você deveria contratar trabalhadores e não pagar os benefícios,
todas essas coisas era tidas como inteligentes, e todo mundo justificava
dizendo: ‘Ah, estamos sendo produtivos e maximizando nossos rendimentos,
e, de certa forma, esse é o nosso trabalho.’”
Porter deixava claro que esses tipos de “negócios” não representavam um
número preciso. Eles poderiam ser feitos de diferentes maneiras, seguindo
abordagens distintas. Mas, nas últimas décadas, eles vêm sendo controlados
pelos protocolos que, em nome da otimização de tudo, deram-lhes
autorização para negligenciar e até mesmo prejudicar as pessoas. “Criamos
uma espécie de cartum”, disse Porter, “e, sob essa ótica, se você pode obrigar
seu funcionário a fazer horas extras sem pagar, então deveria fazer isso; este é
o livre mercado e a maximização do lucro”.
Por último, Porter falou de como a disseminação da língua vernacular
financeira dos protocolos fez com que as empresas fossem administradas
cada vez mais em prol dos acionistas, e não em benefício dos trabalhadores,
clientes ou qualquer outra pessoa. “Antes, quando eu lecionava”, afirmou,
“não falávamos sobre valor para os acionistas”. Como as estrelas-guias
direcionavam os negócios naquela época? “Acho que era assim: a empresa
precisa obter um bom retorno contínuo, precisamos disso em longo prazo e
estamos construindo uma empresa ótima”, disse ele, “em vez da ideia de que
são os índices diários da bolsa de valores que determinam se você está
obtendo sucesso ou não”. Antigamente, as empresas eram administradas de
forma mais localizada e menos científica, e também eram geridas por uma
diversidade de pessoas. Os acionistas faziam parte da amálgama, porém as
micro-oscilações dos preços das ações não eram o indicador absoluto do
sucesso de uma empresa, nem o guia de como ela deveria ser gerida.
Obviamente, havia desperdícios: muito capital não foi utilizado da maneira
mais eficiente. E então, nas décadas de 1970 e 1980, quando o neoliberalismo
em ascensão inspirou mudanças nas leis e na cultura, maximizar o valor para
os acionistas passou a ser visto como o primeiro dever de uma empresa. “A
responsabilidade social das empresas é potencializar seus lucros”, declarou o
economista Milton Friedman, da Escola de Chicago, para a New York Times
Magazine, em 1970. Os oriundos de Wall Street, treinados nos protocolos,
viram sua influência aumentar à medida que a forma de avaliar uma empresa
e seu grau de opinião sobre como ela deveria ser administrada paulatinamente
assumiram o controle.
Porter testemunhou esse fenômeno, que costuma ser chamado de
“financeirização”, transformar as empresas em servas de seus donos, em
detrimento de outros fatores. “A mentalidade de valor para o acionista se
tornou muito, muito forte”, disse ele. As pessoas ficaram “obcecadas” por
ele, e, como uma coisa leva à outra, isso levou ao pensamento de “curto
prazo”; provocou decisões que poderiam aumentar temporariamente o preço
das ações, mas que, na verdade, prejudicaram o futuro em longo prazo de
uma empresa, seus funcionários, clientes ou comunidade. “Já participei de
vários conselhos”, afirma Porter, “e acontece a mesma coisa quando vou às
reuniões do conselho e nos preocupamos com o resultado de hora em hora,
começamos a ouvir o responsável pelos resultados, o mercado de capitais, o
que ele acha que devemos fazer”.
Argumentos como “Precisamos pagar aos trabalhadores um salário fixo, o
que terá um custo enorme na baixa temporada, mas nos ajudará a mantê-los
em longo prazo” não tinham mais justificativa. Argumentos como
“Precisamos pagar aos trabalhadores um salário fixo, o que terá um custo
enorme em curto e longo prazo, mas é o certo a se fazer” não tinham a menor
chance. “Acho que, de alguma forma, novamente em busca da eficiência,
sofisticação do mercado financeiro, modelagem e assim por diante,
encontramos diversos meios de ganhar dinheiro”, disse Porter, “mas isso se
distancia do que é o capitalismo, em última instância, que é a economia real”.
As características de investimento dos negócios passaram a dominar outras
esferas, envolvendo construir coisas, atender pessoas, solucionar problemas.
Em conjunto, essas mudanças influenciaram a grande racionalização do
mundo dos negócios, em dois sentidos: eram os instrumentos pelos quais as
atividades comerciais foram racionalizadas e, não menos importante, eram os
instrumentos por meio dos quais as pessoas de negócios haviam
racionalizado suas próprias vidas. Grande parte do que Porter descreveu
havia entrado no mundo dos negócios por meio dos protocolos
categorizantes. Com a ajuda deles, as empresas alinharam suas ações por uma
geração, analisando e otimizando tudo. Porter agora estava admitindo que
muitos deles estavam se excedendo. “Não sei como, mas muitas dessas
práticas, geralmente sensíveis em vários aspectos dos negócios, acabaram
passando dos limites”, disse ele.
O resultado era o sofrimento e o caos em muitas vidas. Atualmente, os
protocolos estavam tomando conta das fundações e agências governamentais,
e empresas de consultoria em combate à pobreza eram a solução para esses
infortúnios.
A lguns anos depois de seu encontro com Porter, Hinton se viu sentado à
frente de outro capitalista apreensivo com o capitalismo moderno.
George Soros precisava de alguém para administrar seu novo programa de
construção de economias mais inclusivas — de preferência alguém que não
acreditasse piamente nos protocolos. Um etnomusicólogo com anos de
experiência na Mongólia Ocidental, que acabara na McKinsey e na Goldman
Sachs, parecia perfeito. Hinton sabia que seu rigoroso treinamento de
negócios fazia parte de seus atrativos. Mas acrescentou: “Provavelmente,
estou aqui, em partes, porque já fiz muita coisa; e espero que eu possa
mostrar um pouco o meu lado de musicista mongol.”
Ele assumiu o novo emprego, dividindo seu tempo entre Nova York e
Londres, e fazendo suas primeiras investidas no novo mundo do setor social.
Surpreendeu-se com o fato de que tantas pessoas agora encarregadas de
ajudar os oprimidos — seja na Fundação Gates, na Omidyar Network ou na
Fundação Clinton — eram ex-consultores e/ou do setor financeiro, como ele.
Hinton sabia como eles trabalhavam. “Essa abordagem falha ao desconsiderar
os beneficiários reais dessa ajuda; seus insights podem ser a resposta aos seus
problemas.” Hinton descreveu as hipóteses do que ele acreditava orientar os
emissários de protocolo em suas novas atribuições de serviço público: “Se
agruparmos recursos intelectuais e dinheiro suficientes, podemos derrubar
isso e resolver esses problemas.” Em seguida, as soluções podem “ser
escaladas”. Segundo ele, essa abordagem “simplesmente não reconhece que
estamos tentando solucionar esses problemas com as mesmas ferramentas e
mentes que os criaram, em primeiro lugar”.
Hinton via como os protocolos, ressignificados para a guerra contra as
adversidades, poderiam ser de grande proveito para o Mercado Global. “Se
de repente podemos ser o cavaleiro branco e cavalgar como o salvador do
resto do mundo, talvez não tenha sido ruim, afinal”, disse ele a respeito do
sistema e das ideias que o Mercado Global defendia. “Talvez tenha sido
realmente bom, e esta seja a chance de redimir o capitalismo.”
A disseminação dos protocolos para questões sociais também concedeu às
elites a chance de restringir o leque de possíveis respostas. “Você restringe
totalmente o conjunto de soluções que está preparado para analisar”, disse
ele. “É meio óbvio, não é? Se você tiver apenas falantes de inglês a bordo, a
solução será em inglês.” Na opinião de Hinton, não era questão de maldade.
“É a banalização da desatenção”, disse ele. “Não é maldade. Não é uma
autocensura consciente. Trata-se de um hábito.” Ele trouxe à baila a reunião
de especialistas nada especializados que estavam naquela sala de conferência
na West 57th Street. “Sou culpado disso”, disse ele. “Tenho uma rede de
contatos bem grande. Mas, quando contata pessoas, busca indivíduos
inteligentes e articulados como você. Quero dizer, todos nós somos assim.
Logo, isso se replica.”
Ele pensava alto se um projeto maior e as fundações por trás dele poderiam
ser geridos de uma forma diferente. Se a disseminação dos protocolos era
uma colonização, como seria a descolonização? “Suponho que a colonização
é inevitável”, disse ele. “Acho que a ideia de independência nem me ocorreu.
Nem me perguntei a respeito. Eu me sinto estúpido. Como seria a
descolonização? Como você reverteria a tendência? Penso que é necessário,
mas ainda não o suficiente, uma mudança radical na postura e nas vozes que
estão ao redor da mesa.” Com isso, ele não falava somente do estímulo usual
quanto à diversidade étnica e de gênero, nem manter por perto um ou dois
representantes de minorias. Mas e quanto a ter como parte da liderança o tipo
de pessoa que as fundações buscam ajudar? Ele se perguntava.
Atualmente, Hinton estava em vias de inaugurar seu comitê de conselheiros
para o novo Programa de Avanço Econômico. “Nem questionei a hipótese de
que estaria procurando pessoas com profunda experiência e credenciais de
elite”, disse ele. Mas e se descartasse essa hipótese e colocasse, digamos, um
professor de escola primária no comitê — um proveniente da Índia? “Na
verdade, eu vou tentar”, falou. Hinton disse que tentaria colocar uma pessoa
comum — uma das pessoas a respeito de quem esse pessoal de empresas de
capital privado e consultoria estava deliberando — no conselho. Ou seja,
talvez a natureza da reunião em si poderia ter que mudar, a fim de acomodar
um leque maior de contextos. Talvez fosse melhor evitar o PowerPoint.
Talvez ele tivesse que apresentá-la na forma de uma conversa ou narrativa,
ou mostrar um filme. As ideias estavam a todo vapor.
Hinton é da religião bahá’í, e a Casa Universal de Justiça, o sumo conselho
da religião, declarou certa vez sobre a maneira apropriada de buscar a
melhoria do mundo e da vida de outras pessoas:
Justiça exige participação universal. Assim, embora a ação social possa
envolver o fornecimento de bens e serviços de alguma forma, sua
preocupação primária deve ser a capacitação de dada população com o
intuito de participar da criação de um mundo melhor. Mudança social não
é um projeto que um grupo de pessoas realiza em benefício de outro.
Hinton acreditava nisso. Em sua própria vida, ele sentia que sua fé era uma
das poucas forças sólidas o bastante a fim de equilibrar o modo de pensar dos
negócios. O grande erro desse modo de pensar, ele disse, é o “materialismo”.
O homem de negócios costumava enxergar o trabalho em termos de utilidade,
como algo que as pessoas fazem para se alimentar e adquirir coisas. Mas
havia também uma dimensão espiritual: “Esse trabalho pode ser a expressão
do desejo interior de ser produtivo e de servir à comunidade — e que a ideia
de negar a alguém a oportunidade de cumprir isso é como não deixar que
uma árvore dê frutos.” Muitos emissários da mentalidade dos negócios
tinham, como ele, um lado religioso ou espiritual, “mas acho que, de alguma
maneira, tal pensamento nunca se sobrepõe a essa mentalidade”. E
acrescentou: “As pessoas não têm permissão para pensar sobre essas coisas
na vida profissional. Decidimos que são domínios distintos, e não é muito
bem visto em meus círculos falar sobre fé religiosa.”
Ele fora contratado por sua habilidade em solucionar problemas de negócios
empregando os protocolos. Seus valores eram problema dele. “Não foi por
isso que fui convidado para a festa”, disse Hinton.
CAPÍTULO 6
GENEROSIDADE E JUSTIÇA
E mWalker
sua trajetória rumo ao alto escalão do mundo filantrópico, Darren
participou de mais eventos beneficentes de gala desse tipo do que
poderia contar, e aturou sua cota de gente branca e rica lhe dizendo coisas
agradáveis a seu respeito, enquanto se recusavam a enxergar uma relação
entre suas vidas e a vida quase inescapável da qual ele havia escapado. E essa
era uma forma de explicar a carta que ele escreveu contestando o acordo de
imunidade, de esclarecer como ele teve o desplante de quebrar o tabu.
“Vejam só o Darren”, ele imitava seus admiradores murmurando
gentilmente. “Por que todos não podem ser como Darren? Quero dizer, olhe
para o Darren. A mãe dele era solteira. Ele insistiu e frequentou a escola.
Você sabe, né, o pai dele era ausente. Ele nem sabia quem era o seu pai.” A
pergunta sobre sua vida que não queria calar para os afortunados era: por que
todos os pobres não podiam terminar como Darren Walker?
“Parte do meu trabalho”, disse-me ele um dia no escritório da Fundação
Ford, “é lembrá-los por que eles não podem ser todos iguais a mim — o que
fizemos para dificultar o caminho de pessoas como eu, com a minha origem,
com o meu histórico, de modo que não conseguissem chegar aonde eu
cheguei — e como, sistematicamente, estamos impossibilitando que histórias
como a minha continuem a surgir nos próximos anos, porque estamos
fazendo coisas lamentáveis agora. Sinto que preciso fazer isso. Eu apenas
sinto que preciso fazer isso”.
Porém esse desejo levou tempo para aflorar, porque, a princípio, Walker
não era um verdadeiro crítico do empreendimento filantrópico, e sim o
próprio garoto-propaganda de suas benfeitorias. Ele nasceu em Louisiana, no
Hospital Beneficente de Lafayette. As famílias ricas eram donas de seus
próprios hospitais e clínicas, e os brancos e afro-americanos pobres eram
atendidos por instituições de caridade. A mãe de Walker se encontrava em
uma situação cruel e difícil: uma mãe negra “em uma cidade pequena, não
casada, teve dois bebês com esse homem e, obviamente, ele não se casaria
com ela”, afirma Walker. Sua mãe, “que era maravilhosa, desafiada de
inúmeras formas, enxergava longe, tinha um objetivo” e percebeu: “Eu
preciso me mudar.” Ela se mudou com a família para a cidade de Ames, em
Liberty County, no Texas — a “cidade negra do condado”, como Walker
disse.
A mãe de Walker estudou para se tornar auxiliar de enfermagem e logo
obteve seu certificado. Ela sempre trabalhou, mas não era o bastante para
mantê-los a salvo da pobreza. Ele se recorda de estar na minúscula casa em
que moravam e o pessoal da empresa de energia elétrica ou da operadora de
telefone aparecer para interromper o serviço, por causa da conta vencida.
Então, Walker negociava com eles, pedia um prazo de carência ou tempo
suficiente para que sua mãe saísse, compensasse o cheque de seu salário e
retornasse.
Um dia, uma mulher apareceu em sua casa perguntando se poderia cadastrar
Darren em um programa chamado Head Start. Sua mãe concordou, sem saber
muito a respeito. Naquele momento, a caridade abençoava Walker mais uma
vez, mas um tipo de caridade que funcionava como um modesto
complemento à ação do governo. A partir da década de 1920, os Rockefeller
e outros benfeitores haviam custeado pesquisas sobre crianças. Grande parte
desses estudos eram efetuados na Estação de Pesquisa de Bem-estar da
Universidade de Iowa, onde os estudiosos definiram os alicerces da polêmica
ideia de que o sucesso das crianças dependia mais das oportunidades que lhes
eram dadas do que da hereditariedade. Ao longo das décadas, esses
pesquisadores argumentavam sem fazer barulho e às margens da política.
Então, o que começou como caridade se transformou em política pública
quando, em 18 de maio de 1965, o presidente Lyndon B. Johnson esteve no
Rose Garden da Casa Branca e anunciou uma nova iniciativa com o objetivo
de assegurar que “os filhos da pobreza não fossem reféns da pobreza para
todo o sempre”. Dentro de semanas, o governo abriria 2.500 programas para
a pré-escola, com o intuito de atingir 530 mil crianças. A meta era prepará-las
para frequentar a escola no segundo semestre e oferecer tratamento aos
milhares que tinham problemas de saúde. Um dentre o primeiro meio milhão
de inscritos seria Walker.
Ele também usufruiu da generosidade e da sabedoria de uma professora
chamada Sra. Majors, que disse a Walker que ele era talentoso, mas que,
devido ao seu comportamento, corria o risco de ser incluído na sala de
educação especial, para onde o sistema educacional enviava muitos meninos
negros que, dali, seguiam o caminho direto e inevitável para a prisão. A
perspectiva sociológica da Sra. Majors era válida: “Seis dos meus primos
estavam presos”, diz Walker. “Um deles cometeu suicídio na prisão. Todos
eles estavam nesse caminho.” O aviso da Sra. Majors o ajudou a mudar de
atitude.
Seu caminho lhe mostrou o poder das intervenções, grandes e pequenas, que
transformam as vidas das pessoas. Mas houve momentos ao longo de sua
trajetória que o lembraram de que nada muda caso você não mude o sistema
como um todo. Por exemplo, aos 12 anos, por necessidade, ele trabalhou
como ajudante de garçom, para complementar o salário de sua mãe a fim de
manter as contas em dia. (Anos depois, ele contaria aos administradores da
Fundação Ford, que o consideravam um líder em potencial, que o serviço no
restaurante o havia preparado para o cargo mais do que qualquer outro que
ele já teve.) Devido à idade, provavelmente trabalhava ilegalmente e teve
uma experiência profunda e sombria do trabalho. Ele sentiu como era viver à
margem da sociedade humana. Era como se passasse um filme em sua
cabeça, os fatos de longa data, abstratos, em uma performance vívida. “Você
anda por um salão, onde existe excesso e abundância, e pessoas com poder
aquisitivo que têm dinheiro à disposição para sair e comer, e pagar mais do
que a comida realmente vale em uma refeição e beber um bom vinho”, disse
Walker. “E caminha nos arredores desse salão, e você é invisível. É invisível
mesmo quando está retirando os pratos e limpando a sujeira das pessoas.
Você é invisível. Ninguém diz ‘obrigado’. Todos ignoram a sua presença. E
essa experiência, para mim, continua sendo a mais íntima e a mais
importante.”
Ainda assim, ele acreditou na história norte-americana de que pessoas
excepcionais poderiam trabalhar e trilhar o próprio caminho para escapar da
impotência. Enquanto seus primos entravam e saíam da prisão, Walker
cursou a Universidade do Texas, em Austin, onde se formou em direito.
Começou a trabalhar no escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton de
direito internacional. Depois, foi para a UBS, empresa de serviços
financeiros, onde trabalhou por sete anos no departamento de mercado de
capitais. Ele deixou o cargo e foi ser voluntário durante um ano no Harlem,
testemunhando a influência da elevação social. A experiência de ajudar
famílias como a dele o emocionou. Ele ingressou na Abyssinian
Development Corporation, uma organização de desenvolvimento comunitário
do Harlem, e se concentrou na construção de habitações sociais e de uma
escola pública. Depois, foi para a Fundação Rockefeller, onde um colega lhe
disse que ele não era o “tipo Rockefeller” comum, não porque ele era negro
— já eram novos tempos —, mas porque era gay. Por fim, conseguiu o
emprego na Ford, supervisionando um portfólio de investimentos de bilhões
de dólares.
De acordo com sua posição oficial e seu magnetismo esfuziante, sua
irreverência cautelosa, seu jeito de dar atenção a todos em uma sala, ele alçou
voos para o alto escalão da sociedade de Nova York. Ele era membro do
Conselho de Relações Exteriores. Fazia parte do conselho do balé da cidade,
da Rockefeller Philanthropy Advisors e da Friends of the High Line. Seu
nome estava na boca dos endinheirados, como se todos fossem seus amigos e
o conhecessem. Você sabe, Darren estava dizendo outro dia… Darren e eu
estávamos em um painel, e… Um dia, ele estava em um jantar de Estado da
Casa Branca com o presidente chinês; no outro, estava no Vale do Silício
ajudando Mark Zuckerberg a ponderar com atenção suas doações.
À medida que Walker se estabelecia no mundo da grande filantropia, os
avisos constantes de que o seu empenho e o de seus colegas não estavam
surtindo efeito eram claros. Uma noite, ele estava em um evento de gala
quando recebeu uma mensagem de sua irmã com fotografias do funeral de
sua tia Bertha. Walker percebeu que em uma das fotos estava seu primo. Ele
vestia um macacão prisional e um homem branco desconhecido estava
parado atrás dele. Walker respondeu: “O que é isso?” Ela respondeu que, na
Louisiana, às vezes eles deixam você sair da prisão para o funeral de um
parente. Você paga uma taxa, e um policial pode acompanhá-lo. Em outro
dia, outra mensagem, outro funeral. Um primo diferente de Walker havia
falecido. A família do primo não tinha dinheiro e, portanto, a mãe de Walker
arcou com os custos — usando o cartão de crédito que ele paga para ela.
A desigualdade de sua própria vida ficava cada vez maior com o passar do
tempo, assim como seu questionamento a respeito de sua cumplicidade.
Naquele ano sua remuneração fora de US$789 mil; ele vestia roupas
fenomenais, tinha amigos bilionários, frequentava eventos de gala
majestosos, jantava em restaurantes suntuosos, morava em um condomínio de
luxo no Madison Square Park, agraciado por um abatimento de imposto de
que não precisava. A redução de impostos incomodava Walker; brincava com
a sua culpa. Ele morava entre milionários e bilionários que asseguraram para
si próprios uma isenção tributária para seus apartamentos e para o imóvel de
Walker — dinheiro que poderia ter sido destinado para seus primos e para
todos os outros que ele deixara no Texas. Ele ou qualquer outra pessoa, por
uma questão de ética, abriria mão da isenção de impostos? Claro que não. Por
isso ele começou a sentir necessidade de falar sobre os sistemas. “Por que
vivemos em uma sociedade em que isso pode acontecer?”, perguntava. “E o
que precisamos para solucionar isso? E nós, que somos privilegiados,
devemos nos envolver nessa questão, porque não podemos dizer, por um
lado, ‘Não é um horror essa crise de moradias com preço acessível que temos
em Nova York?’, e depois, por outro, aceitar um sistema que é basicamente
corrupto.”
Ele ponderou: “Eu realmente me questiono sobre meu próprio privilégio e
se estou à vontade com ele.” Disse que sua culpa “definitivamente me
incomoda todo santo dia”.
Os cientistas sociais falam de “créditos de idiossincrasia”, um tipo de
recurso conquistado por um líder que lhe permite, de vez em quando, inovar
ou até mesmo bater de frente com as normas do grupo. Walker estava
trabalhando arduamente a fim de arrecadar créditos. “Conforme você sobe os
degraus rumo ao topo, é necessário ser sutil e escolher suas batalhas”, disse.
Agora, na Ford, ele chegara ao topo. “As pessoas retornam minhas ligações.
Não preciso visitar Bob Rubin e Roger Altman. Eles é que vêm me ver na
Fundação Ford.” De fato, os dois homens, que haviam entrado e saído dos
mais altos patamares governamentais e financeiros por décadas, tinham
acabado de sair de seu escritório.
A nova posição de Walker o levava a se questionar sobre o que poderia
fazer a respeito, como poderia “alavancar” sua posição no interior desses
círculos com o objetivo de ajudar aqueles que deixara para trás, do lado de
fora. Era a isso que ele se referia quando, durante sua entrevista para a Ford,
os diretores lhe perguntaram: “Que tipo de presidente você será?” E ele
respondeu: “Gostaria de usar a plataforma de ser presidente da Fundação
Ford para questionar a fundo as estruturas, sistemas e práticas culturais em
nosso país, que aumentam as possibilidades da desigualdade em nossa
sociedade, e ainda mais da exclusão e da marginalização das pessoas,
principalmente as pessoas de baixa renda e negras.”
Walker conhecia o tipo de mundo pelo qual desejava lutar e sabia que havia
muitas formas diferentes de empreender essa luta. Uma delas era se retirar
dos patamares estratosféricos aos quais ascendera e abandonar o que ele
chamava de “conjunto de pessoas que viajam mundo afora, indo de Davos a
Bellagio e a Aspen, conversando sobre como erradicar a pobreza”. Walker
lutava com a “contradição disso” e, no entanto, também era realista sobre
quem ele era, uma mistura de ajudante de garçom enraivecido e um
banqueiro do UBS. O que poderia fazer, concluiu, era persuadir os
vencedores que o deixaram entrar no mundo deles. Poderia convencê-los de
que muitas das histórias que contavam a si próprios e a outrem não eram
verdadeiras, e que essas falsas narrativas tiveram consequências desastrosas.
Uma vez que essas histórias viessem à tona, talvez um novo debate a respeito
da igualdade e uma sociedade justa fosse possível. Talvez eles enxergassem
as características de autopreservação em muitas de suas abordagens com
relação à mudança social. Talvez.
O seventos
partícipes do Mercado Global estavam sendo despertados pela fúria. Os
de 2016 foram “o annus horribilis da elite global”, nas palavras
de Niall Ferguson, historiador de Harvard, um notório líder de pensamento,
generosamente pago e um membro estimado da tribo globalista. Ferguson
escreveu ao Boston Globe como ele e seus colegas riram de Donald Trump
em janeiro, em Davos, reivindicando a indicação republicana; e então, após
alguns meses, as repercussões em Aspen, Lago de Como e Martha’s
Vineyard, não levando a sério a campanha para separar a Grã-Bretanha da
União Europeia, somente para vê-la acontecer depois. As elites do mundo
estavam se tornando alvo de revoltas, e talvez essas revoltas tivessem alguma
coisa a ver com o quão desvinculadas elas estavam das realidades das outras
pessoas. Ferguson argumentou que sua tribo de “cosmopolitas sem raízes”
não tinha escolha a não ser concordar com este comentário do ministro da
fazenda alemão: “Cada vez mais, as pessoas não confiam em suas elites.”
Em Nova York, no período que antecedeu a Semana da ONU, essa
desconfiança pairava em vários jantares, salões, painéis de discussão e
reuniões do conselho que se preparavam para as próximas conversas a portas
fechadas. Nessas ocasiões, a pergunta que não queria calar era: por que eles
nos odeiam? “Eles” eram os compatriotas menos refinados dos cosmopolitas
sem raízes, que em diversas localidades estavam sendo atraídos cada vez
mais para o nacionalismo, demagogia e para a discriminação ressentida — e
rejeitando alguns dos credos mais estimados das elites: o mundo sem
fronteiras, a cura mercadológica para todos os males, o progresso tecnológico
inevitável e a gestão tecnocrática inofensiva.
Algumas elites tinham a convicção de que seu sonho maravilhoso tinha que
ser explicado novamente ao povo. A perspectiva de um mundo sem
fronteiras, com progresso tecnológico, gerido por dados e com a supremacia
do Mercado Global era parte da perspectiva ideal vendida de modo errado.
Eles não estavam vendendo a globalização, nem abrindo as fronteiras e
fazendo negócios com entusiasmo suficiente. Eles nem sequer apararam
adequadamente as arestas da mudança com ações como, por exemplo, a
reciclagem profissional para os refugiados.
Havia outra facção dos partícipes do Mercado Global que se perguntava se
o sonho globalista em si era problemático. Não que os membros dessa facção
fossem nacionalistas; eles também costumavam estar mergulhados na visão
globalista de ser bem-sucedido ao praticar o bem. No entanto, a fúria nas
ruas, em tantos lugares ao mesmo tempo, estava começando a atingi-los.
Começaram a perceber que eles e seus comparsas da elite não perceberam, ao
longo das décadas, uma frustração crescente no que dizia respeito às agonias
da mudança e que só agora estavam se tornando manchetes de jornais. Eles
reconheciam que os manifestantes também queriam que o mundo fosse um
lugar melhor, porém queriam mais do que palavras; as pessoas achavam que
as promessas das democracias se importavam com o que pensavam, ainda
que o cumprimento delas deixasse a desejar. No segundo semestre daquele
ano, quando os partícipes do Mercado Global se encontraram em discussões
acaloradas sobre a fúria, alguns sugeriram aos outros: Talvez o problema seja
nós.
E qual seria exatamente a natureza desse problema? Muitos partícipes do
Mercado Global exploravam essa questão publicamente.
Na visão de Ferguson, ele e seus colegas das elites do Mercado Global
haviam sido arrastados para uma nova luta de classes. Já não eram ricos
versus pobres, e sim pessoas que alegavam pertencer a todos os lugares, em
vez de pessoas que ficavam limitadas a um só lugar — repercutindo a ideia
de seu colega Michael Porter de que as pessoas estão em algum lugar e os
negócios estão por toda a parte. Na narrativa de Ferguson, baseada no mesmo
ensaio anterior, o que saiu de errado foi que pessoas ao redor do mundo
simplesmente não eram mais enganadas pela preocupação e pela caridade das
empresas onipresentes, e pelos índices alcançados por essas empresas: “Não
existe recompensas para se adivinhar qual grupo é o mais numeroso. Não
interessa quantas doações a elite global tenha feito, de cunho filantrópico e
político, nunca poderemos compensar essa desigualdade.”
Similares às empresas orientadas por protocolos que Michael Porter
criticou, os vencedores do Mercado Global, de acordo com Ferguson, haviam
renunciado a qualquer lealdade aos locais da comunidade. A questão era que
o mundo ainda era governado localmente e, portanto, as elites cujas lealdades
e projetos eram focados em nível global estavam basicamente se distanciando
da própria democracia. E atualmente alguns dos globalistas mais militantes
estavam admitindo isso. Lawrence Summers, o economista que anteriormente
administrava o Tesouro dos Estados Unidos e a Universidade de Harvard,
escreveu sua própria apologia no Financial Times, apelando para o fim do
“reflexo do internacionalismo” e para um novo “nacionalismo responsável”:
Uma nova abordagem deve se estabelecer a partir da ideia de que a
responsabilidade básica do governo é maximizar o bem-estar dos cidadãos,
não buscar um conceito abstrato de bem global. As pessoas também
querem sentir que as sociedades em que vivem estão sendo transformadas.
Dani Rodrik, colega de Summers em Harvard, publicou um artigo no New
York Times, no sábado anterior à Semana da ONU, advertindo os partícipes
do Mercado Global do lema de que o bom para eles era bom para todo o
mundo. A globalização, argumentou, precisava ser resgatada “não somente
das mãos dos populistas, mas também das mãos de seus apoiadores”. Ele
escreveu: “O novo modelo de globalização definiu prioridades a esmo,
colocando efetivamente a democracia para trabalhar em favor da economia
global, e não o contrário.”
Em um ensaio, Jonathan Haidt propunha outra teoria do que havia saído de
errado naquele ano. “Se você quer entender por que o nacionalismo e o
populismo de direita cresceram tão rápido, deve começar com a análise das
ações dos globalistas”, escreveu. “De certo modo, isso ‘teve início’ com os
globalistas.” Em sua opinião, os globalistas iniciaram tudo isso porque “a
nova elite cosmopolita”, conforme ele a chamava, “age e fala de formas que
insultam, alienam e estimulam muitos de seus compatriotas, principalmente
aqueles que têm uma predisposição psicológica ao autoritarismo”. Para Haidt,
os globalistas eram utópicos. Eles acreditavam na mudança e no futuro. Eles
eram “antinacionalistas”, “antirreligiosos” e “antiprovincianos”, acreditando
que “qualquer coisa que divida as pessoas em grupos ou identidades é ruim; a
extinção das fronteiras e a segmentação são boas”. Pode-se entender seus
adversários, prossegue Haidt, como aparelhados com a intuição dos preceitos
que Émile Durkheim ajudou a reiterar em seu livro de referência O Suicídio:
“As pessoas que têm vínculos fortes por meio de laços familiares, religiosos e
de comunidade local apresentam menores taxas de suicídio.” E Haidt
expressa: “Mas quando as pessoas escapam às obrigações da comunidade,
vivem em um mundo de ‘anomia’ ou de falta de normas, e a taxa de suicídio
aumenta.”
Na análise de Haidt, o globalismo e o antiglobalismo são mundividências
convincentes, com questões e dados válidos que as justificam. Há vantagens
em um mundo socialmente heterogêneo e na mobilidade humana livre e
desenfreada, e há vantagens diferentes em comunidades estáveis e
estreitamente vinculadas. Todavia, segundo Haidt, os globalistas haviam se
convencido a tal ponto da superioridade moral da abertura, da liberdade e de
um mundo único que eram incapazes de analisar o medo legítimo que essas
coisas despertavam em milhões de pessoas.
O que essas manifestações não raro ignoravam era a abundância de racismo,
xenofobia, antissemitismo, machismo e difamação dos imigrantes ilegais e
até mesmo o incentivo dessa intolerância por parte dos populistas. Eram
sentimentos genuínos que desempenharam um papel importante na história
da turbulência política. Ainda assim, também se pode argumentar que os
pecados do Mercado Global — aqueles que foram absolvidos por Ferguson e
tantos outros — eram relativamente culpados por terem concedido espaço aos
populistas de direita, etnonacionalistas, entre outros.
Alguns dias após a CGI e antes da eleição presidencial, em uma entrevista
por e-mail, Bill Clinton opinou sobre o que motivava a onda da fúria
populista. “O sofrimento e a fúria que vemos refletidos nas eleições vêm se
construindo há muito tempo.” Ele achava que a fúria “está sendo alimentada
em parte pelo sentimento de que as figuras poderosas do governo, da
economia e da sociedade não se importam mais com as pessoas ou as
desprezam. Elas querem participar do nosso progresso por meio de
oportunidades, estabilidade e prosperidade compartilhadas”. Mas quando se
tratava da solução de Bill Clinton, ela se assemelhava bastante ao modelo
com que ele já estava comprometido: “A única resposta é firmar uma parceria
criativa e ofensiva, envolvendo todos os níveis governamentais, o setor
privado e as organizações não governamentais visando a melhoria.” Ou seja,
a única resposta é buscar a mudança social deixando de lado os meios
públicos tradicionais, sendo os representantes políticos da humanidade
apenas uma entre tantas contribuições, e as empresas decidirem qual
iniciativa patrocinar ou não. Em partes, era óbvio que a crescente fúria
populista tinha por alvo as mesmas elites que ele procurava reunir, nas quais
ele apostava as fichas de sua teoria da solução de problemas pós-políticos, e
que eram objeto de desconfiança de milhões de pessoas, que se sentiam
traídas, abandonadas e desprezadas.
O que as pessoas contestavam nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na
Hungria e em outros lugares era, na opinião delas, a governança pela mão das
elites globais que colocam a busca do lucro acima das necessidades de seus
vizinhos e conterrâneos. Ao que tudo indica, essas elites eram mais leais
umas às outras do que às comunidades; elites que com frequência tinham um
interesse maior em causas humanitárias distantes do que no sofrimento das
comunidades ao redor. Cidadãos frustrados achavam que não detinham o
mesmo poder sobre as planilhas e os slides de PowerPoint que as elites
detinham, se comparado ao poder que haviam conquistado sobre eles — seja
na mudança de escalas de trabalho, seja na automação fabril ou no desvio das
leis em favor de um novo conteúdo programático elaborado por bilionários
para ser usado na escola de seus filhos.
Eles não gostavam que o mundo fosse mudado sem eles.
s organizadores da última CGI, realizada no auge da revolta antiglobalista,
O decidiram que um painel sobre o assunto era essencial. E concluíram que
o painel deveria contar somente com a participação de globalistas, com
ninguém representando o outro lado. (Esta não foi a única exclusão em cena:
aqueles inspirados pelo assunto que porventura fossem às primeiras fileiras
de assentos da sala, as encontrariam vazias na maior parte do tempo,
reservadas aos patrocinadores cheios da grana, incluindo o McDonald’s e a
Fundação Rockefeller.)
O título formal da sessão era “Partnerships for Global Prosperity” [Parcerias
para a Prosperidade Global]. Um título mais adequado seria “Por que Eles
nos Odeiam?” Bill Clinton era o mediador desse painel. Dele participavam
Maurício Macri, um ex-empresário que havia derrotado os populistas
inflexíveis da Argentina para se tornar presidente; Matteo Renzi, o Primeiro-
Ministro italiano, que espelhou sua própria carreira no progressismo pró-
mercado que Bill Clinton chamou de “Terceira Via”; Ngozi Okonjo-Iweala,
ex-ministra da Nigéria e funcionária do Banco Mundial, vista frequentemente
em Aspen, no TED e em outras partes do circuito do Mercado Global, e que
ingressara recentemente no banco de investimentos Lazard; e Sadiq Khan, o
primeiro prefeito muçulmano de Londres e defensor da condenada campanha
Remain para manter a Grã-Bretanha na União Europeia. Os palestrantes
representavam a esquerda e a direita, e todos no palco faziam parte do
consenso globalista, cosmopolita e tecnocrático do método todos saem
ganhando, promovido e apadrinhado pelo Mercado Global, que vinha sendo
alvo de críticas ultimamente.
Bill Clinton elogiou Macri por instaurar o bom senso em um país afetado
pelo que ele chamou de “uma situação econômica e política totalmente
desacreditada”. Em seguida, convidou-o para compartilhar com os
espectadores “suas descobertas, o que está tentando fazer e como outras
pessoas podem ajudar com isso, sobretudo as pessoas do setor privado e das
organizações sem fins lucrativos”.
“A Argentina, como você sabe, presidente, sofreu décadas com o
populismo”, começou Macri. Ele definiu a vitória de sua campanha em favor
do mercado como uma decisão coletiva de que os argentinos “mereciam viver
melhor. Queríamos fazer parte do mundo. Queríamos romper com as
barreiras do isolacionismo”. Sabendo que o auditório estava interessado em
fazer do mundo um lugar melhor, ele decidiu concentrar seus comentários em
seu plano de reduzir a pobreza na Argentina. Apesar disso, não chegou nem
perto dos conceitos de igualdade, justiça e poder; não abordou temas como
reforma agrária ou concentração de riqueza nas mãos de um grupo de
famílias. Ao contrário, ele falou da viabilização dos negócios. “Sabemos,
todos nós sabemos, que para reduzir a pobreza, é preciso gerar bons
empregos, empregos de qualidade”, disse. “E para isso você precisa
promover um ambiente de confiança, de segurança. Precisa assegurar aos
investidores que respeitará o Estado de Direito, que será digno de crédito.”
O que Macri estava defendendo era o clássico método do todos saem
ganhando do Mercado Global influenciado pelo globalismo: a melhor coisa
para os desfavorecidos na Argentina era fazer seja lá o que for para que os
investidores estrangeiros e as agências internacionais se sentissem em casa.
Por isso, ele alegou, estava tomando “decisões difíceis”: unificar a taxa de
câmbio do país, autorizar o pagamento de dividendos no exterior, solucionar
as disputas do país com os titulares das obrigações estrangeiras. Ele estava
orgulhoso de ter levado uma delegação do Fundo Monetário Internacional
(FMI) para a Argentina há pouco tempo. Estava entusiasmado por ter sediado
um fórum de negócios e investimentos na semana anterior, atraindo algumas
centenas de empresários de dezenas de países. “Precisamos que todas as
empresas globais venham para a Argentina com o objetivo de ajudar no
desenvolvimento do nosso país.” Seu conceito de boa sociedade como um
espaço aconchegante ao capital estrangeiro era uma solução estranha, visto
que a gente comum nadava em ressentimento contra os globalistas e os
vencedores da mudança.
Bill Clinton prosseguiu com Renzi, a quem elogiou por ter a coragem de
levar políticas pró-mercado à Itália — reformar o mercado de trabalho e criar
um referendo controverso (e, em última instância, condenado) com o objetivo
de reduzir o número de legisladores e consolidar seu próprio poder. Renzi era
exatamente o tipo de político aprovado pela Moody’s que a plateia adorava, e
ele disse todas as coisas certas, e novamente eram sobre economia
substituindo a política. A Itália, segundo Renzi, não podia mais se reduzir a
obras-primas e cultura. O país tinha que aceitar o “desafio da mudança”.
Renzi evitou o casual ao falar sobre suas reformas trabalhistas no mercado,
que retratavam outro aspecto do consenso globalista. Ele disse que a reforma,
no ano anterior, das leis de contratação e demissão da Itália finalmente elevou
o país aos padrões da Alemanha e da Grã-Bretanha. E acrescentou:
“Obviamente, os Estados Unidos chegaram a esse nível há 20 anos.” Os
globalistas acreditavam que existiam “respostas certas” para as políticas
públicas — respostas que faziam de um país um lugar seguro aos investidores
estrangeiros com os quais Macri estava preocupado — e que estabeleciam um
mercado de trabalho bastante flexível, fácil de contratar e demitir as pessoas.
Logo, não se chegava à resposta certa por via democráticas: não era a
resposta escolhida pelos italianos, por ação ou omissão, durante aqueles 20
anos de “atraso”. Era um clichê globalista que rondava o país, aguardando
que adotasse a cartilha e seguisse o caminho previdente do mundo. E, quando
por fim o fazia, o primeiro-ministro da nação poderia descrever aqueles anos
anteriores, definidos por outras escolhas, como um atraso. Os italianos, que
não são famosos pela pontualidade, chegaram atrasados à “resposta certa”
dos globalistas. Líderes como Renzi enxergavam o programa de verificação
impulsionado pelas agências multilaterais e pelos investidores estrangeiros
como detentor de uma validade moral que faltava às escolhas democráticas
de seus cidadãos, pois elas eram prejudiciais à eficiência e ao
desenvolvimento.
Agora, Bill Clinton se voltava para o prefeito Khan, a quem elogiou por ser
“um grande exemplo de interdependência positiva”. O Mercado Global
acreditava na interdependência, porque espelhava como o mundo era um só e
também porque se traduzia em mais mercados para as empresas entrarem.
(Na maior parte das vezes, encontramos pessoas nacionalistas, mas raramente
encontramos empresas nacionalistas.) O ex-presidente reconhecia que essa
perspectiva estava em risco, e por enquanto “a intensidade dos sentimentos
das pessoas que resistem à nossa união prevalece sobre a intensidade
daqueles que estão ganhando com ela”.
Seria bom ver alguém no palco que realmente sentisse um pouco do
ressentimento que estava assolando o mundo. Mas ficou a cargo de Khan
explicá-lo. Uma pessoa lhe perguntou: “O que o voto do Brexit tem a ver
com o que está acontecendo em todo o mundo?” “Durante a campanha do
referendo”, respondeu Khan, “as pessoas que enfrentavam dificuldades para
colocar seus filhos em boas escolas no bairro, pessoas que se preocupavam
com a assistência médica e com moradias a preços mais acessíveis foram
levadas para o caminho da política do medo. Foi-lhes dito que a razão de suas
dificuldades e de seus problemas era a União Europeia e os estrangeiros”.
Dito de outro modo, as pessoas que votaram no Brexit foram facilmente
induzidas ao erro.
Bill Clinton intensificou as críticas sobre essa ideia de falsa consciência.
“Todos esses condados ingleses votaram a favor da desistência do auxílio
econômico da UE”, disse ele. “E eles tinham que fazer isso, mas não tinham a
menor ideia do que estavam fazendo. Eles só queriam entrar e fechar a porta.
Temos uma espécie de mentalidade emocional de nós versus eles.” Este era o
diagnóstico do ex-presidente dos Estados Unidos alguns meses após o
inesperado sucesso do Brexit e dois meses antes da derrota imprevista de sua
esposa para um demagogo populista que se aliou à campanha pelo Brexit. As
pessoas que se colocavam na posição de entender a fúria à sua volta estavam
comprometidas com a ideia de que essa fúria não tinha uma base possível na
racionalidade ou na escolha consciente. Elas não conseguiam lidar com
pessoas que enxergavam o mundo fundamentalmente diferente do que os
partícipes do Mercado Global e que, equivocadas ou não, desejavam ser
ouvidas.
“Tenho muito orgulho de Londres ser a única região da Inglaterra a votar
determinadamente a favor da UE”, disse Khan. “Em minha opinião, não é um
jogo de soma zero. E se Londres está caminhando bem não é às custas do
restante do Reino Unido. Se Londres está indo bem, o resto do país
prospera.”
O conceito de que o que era bom para uma megalópole próspera e
interconectada globalmente, repleta de banqueiros e outros profissionais
especializados que podiam se dar ao luxo de viver nela, dominada pelos
príncipes distantes da Arábia Saudita, da Rússia e da Nigéria que subiam o
preço dos aluguéis sem contribuir muito com a economia, com a tributação
ou com as comunidades em que viviam — a ideia de que o que era bom para
uma metrópole desse tamanho era automaticamente bom para toda a Grã-
Bretanha fazia parte do conceito que alguns eleitores rechaçaram,
compreensivelmente, quando confrontados com a escolha do Brexit. Para
citar um contraexemplo, nos últimos anos a Grã-Bretanha havia se envolvido
em uma discussão política sobre austeridade. A espécie de “disciplina” fiscal
corroborada pelas elites bancárias londrinas se traduziu diretamente em cortes
na educação, na saúde e na mobilidade social reduzida, coisa que enfureceu
as pessoas e as levou a se perguntar como é que existia dinheiro para ajudar
os estrangeiros. Contudo, na visão de Khan não havia espaço para a ideia de
que a gente comum sofria, tanto na Grã-Bretanha como no mundo, porque as
coisas eram boas e fáceis demais para a elite, além de serem manipuladas em
seu benefício. Ele estava propondo outra versão do que Macri e Renzi haviam
reiterado: os vencedores da globalização não faziam de modo algum parte do
problema; se os ajudarmos a vencer, todos saem ganhando.
Em um único painel tínhamos a representação do complexo de valores da
CGI: fazer as coisas amigáveis ao mercado em vez das ideais; a ênfase no que
as pessoas supostamente precisavam na economia em detrimento ao que elas
queriam na política; a crença de que as respostas tecnocráticas corretas, com
base em dados, falam por si; a avaliação do sucesso dos políticos mediante os
retornos dos investidores; e a compreensão das forças do mercado como uma
inevitabilidade à qual devemos nos render, adaptar e ceder lugar.
Os quatro membros do painel e Bill Clinton especularam sobre “essas
pessoas”, como Okonjo-Iweala as chamava. Eles ponderaram sobre a fúria do
outro lado e apresentaram teorias convenientes. Bill Clinton afirmou que “o
modelo de conflito funciona melhor em momentos de crises econômicas”.
Okonjo-Iweala sugeriu que facilitar o acesso às vacinas — seu ramo de
especialidade como líder de uma aliança global de vacinas chamada GAVI —
poderia ajudar a apaziguar a fúria. (Ela não mencionou os banqueiros para
quem agora trabalhava, pois, caso fossem punidos pelos seus pecados,
ressarcissem a população pelos resgates financeiros que recebiam e tivessem
a humildade de abandonar essa conduta burlatória, isso também poderia
apaziguar a fúria da sociedade.) Ela falou das vacinas aos espectadores do
Mercado Global em um linguajar que eles entenderiam: as vacinas não
salvavam apenas vidas; eram um investimento, visto que cidadãos saudáveis
geram um crescimento maior, pagam mais impostos e atraem as empresas.
Segundo ela, as vacinas são “uma das melhores aquisições econômicas da
atualidade”, porque cada “US$1 investido em vacinas gera US$16”. Estava
bastante entusiasmada: “A taxa de retorno do investimento é alta.”
Pouco depois, Okonjo-Iweala afirmou que a tribo globalista representada na
sala precisava “desmascarar aqueles que estão tentando usá-los como
plataforma” — “eles” eram os eleitores furiosos. As pessoas estavam sendo
usadas; eram meros ignorantes. A recusa em aceitar que as pessoas
enfurecidas estavam tentando ativa e organizadamente dizer alguma coisa,
ainda que imperfeita, aos seus compatriotas era completa. Mas elas não
estavam participando do painel para lhes dizer pessoalmente o que quer que
fosse.
Os participantes do painel se consideravam superiores e desvinculados da
política medonha e conflituosa. Sua política era tecnocrática, devotada à
identificação de respostas certas que já eram conhecidas de todos e bastavam
ser analisadas e disseminadas. Ela havia tomado emprestado do mundo dos
negócios a adoração e o mutualismo da metodologia do todos saem
ganhando. Era curioso ter cinco personalidades políticas dividindo um palco
e não ter um momento sequer de debate real. Ao que tudo indicava, todos
presumiam que a boa sociedade era a sociedade corporativa, cujo sucesso
correspondia ao da própria sociedade. Cuja concepção do mundo estava entre
as aspirações humanas mais primordiais. Que o governo deveria funcionar
como parceiro do setor privado, não como contrapeso.
Ao observar esse grupo tão civilizado, alguém poderia esquecer que a
política tradicional é objeto de questionamento por um motivo. Não é que os
políticos não saibam ser amigáveis, e sim que a política tem como base o
conceito de uma população grande e heterogênea assumindo as rédeas do
próprio destino. Por natureza, a política é uma ideia complexa de conciliação
e reconciliação de interesses incompatíveis, e de elaborar um projeto decente,
desenvolvido para ser entendido, não amado. Em um contexto participativo
em que todos são convidados a contribuir, isso resolve o problema, visto que
todos são iguais e têm o direito de reclamar por não serem atendidos e
deixados de lado. A política, ao reunir pessoas de interesses divergentes,
necessariamente coloca o sacrifício em cena. Todavia, é mais fácil se
apresentar em eventos como esse, com soluções mágicas em que todos saem
ganhando e todo mundo é um vencedor. Esse tipo de consenso nos lembrava
da pluralidade de pessoas e pontos de vistas que não haviam sido convidados
para a CGI.
Os palestrantes sabiam que viviam em um contexto de fúria violenta e
pareciam estar sondando maneiras de responder a isso. “O mais importante,
em vez de brincar com os medos das pessoas, é resolvê-los”, disse o prefeito
Khan. Bill Clinton confessou seu medo de que os vencedores do Mercado
Global, ao confrontar a fúria ao seu redor, se distanciassem. “Uma das coisas
que acho que deve ser trabalhada em todo o mundo é não permitir que nossas
áreas urbanas, diversificadas, novas e bem-sucedidas economicamente
digam: ‘Isso é desgastante. Vou fugir para as áreas rurais e de tudo isso.’”
Será que a fúria pela secessão da elite simplesmente estimularia mais
secessão? Será que o escapismo corporativo que Porter criticou e o escapismo
cosmopolita dos vencedores de Ferguson, ao deixar à flor da pele as relações
de tantas comunidades e ao alimentar tanta insatisfação, se traduziriam em
resultados — ou melhor, seriam mais fáceis de justificar agora? Bill Clinton
disse: “Este é um grande teste para todos nós.”
ito meses depois, Bill Clinton passeava com seu cachorro perto de sua
o casa, no subúrbio de Chappaqua, na cidade de Nova York. Ele encontrou
um de seus vizinhos, um tipo reacionário e “piadista”, fã de Donald Trump, e
que, semanas depois da última CGI, conseguiu o que queria com a derrota
eleitoral de sua vizinha Hillary. Bill e o vizinho tinham o costume de zombar
do abismo que os separava. Mas, naquele dia, lembrou Clinton, ele estava
“debochando do vizinho”, quando em um determinado momento o homem
disse: “Obama e Hillary começaram a segunda Guerra Civil.”
Bill Clinton contou essa história sentado 40 andares acima de Manhattan,
em seu escritório da fundação, enquanto tomava chá. Ele tivera meio ano para
assimilar a derrota que arrastou os Estados Unidos para a era Trump. Se sua
esposa sofrera mais como candidata cuja plataforma foi malsucedida, o ex-
presidente sofrera de uma maneira diferente e mais abstrata: Trump derrotou
Hillary, contudo as ideias que impulsionaram sua campanha “America First”
eram um repúdio ao consenso globalista que Bill sempre defendeu ferrenha e
incondicionalmente.
“Toda a minha vida política foi marcada por uma versão política, em
pequena escala, da épica disputa global que está em andamento entre a
cooperação inclusiva — envolvendo redes e diversas pessoas trabalhando
rumo a um objetivo comum — e a reafirmação do nacionalismo tribal”,
disse-me ele. Com o mundo exaltado, e até algumas pessoas no sofisticado
subúrbio de Chappaqua sentindo que o país está em uma espécie de guerra
civil, Bill Clinton não pôde fugir à possibilidade de que seu lado estivesse
perdendo a “épica disputa global” que definira sua carreira. Ainda que seu
vizinho fosse piadista, ele acatava a análise recente do escritor Pankaj
Mishra, cuja afirmação sobre esse momento global explosivo de violência
terrorista, auge da xenofobia e convulsão política, dizia: “Os futuros
historiadores podem muito bem enxergar esse caos generalizado como o
início da terceira — e a mais longa e estranha — de todas as guerras
mundiais: uma que se aproxima, em sua onipresença, de uma guerra civil
mundial.”
O mundo estava em “um período de profundo ressentimento”, alegava Bill
Clinton. “Em um tempo de ressentimento extremo, é mais importante para as
pessoas que você odeie as mesmas coisas e os mesmos indivíduos que elas.”
Ele considerava não somente as eleições dos Estados Unidos, como também
o Brexit, a formação dos movimentos de extrema-direita na Europa, a
cruzada descompensada contra as drogas que atualmente motivava as
Filipinas e assim por diante, e chegou à conclusão de que, a despeito da
prosperidade e da promessa de que a nova filosofia se espalhava, “você ainda
tem essa enorme disparidade entre perdas e ganhos no mundo. Apenas um
lado sai ganhando” — pessoas que acreditavam que seu progresso só poderia
se materializar à custa de outra pessoa. E ele seguia acreditando na
linearidade do progresso e na crescente ausência de fronteiras; a suposição
era que o mundo acordaria para a realidade. Ele imaginava, tomando
emprestado uma velha frase sua, que não havia nada de errado com o mundo
que não pudesse ser solucionado por intermédio do que estava certo no
mundo.
Essa crença espelhava a resposta padrão do Mercado Global que Mishra
chamava de “era da raiva”: que, sim, os vencedores de nosso tempo tinham
que fazer um trabalho melhor a fim de compartilhar as vitórias com os outros.
Mas essa era uma resposta simples. Isso fugia à questão mais difícil e
premente que confrontava os vencedores, que tinha a ver com a culpa no
cartório pelo que acontecia, e se eles e o sistema que controlavam teriam que
mudar. Ainda mais admirável era o fato de as elites terem contribuído com as
causas de Bill Clinton. Mas essas elites não assumiriam a responsabilidade da
fúria alimentada pela desconfiança, que estava em ponto de ebulição nos
Estados Unidos e internacionalmente? “Sim, claro”, disse o ex-presidente.
“Mas…”
A parte do “sim” era a confiança excessiva dos vencedores na globalização
enquanto situação em que todos saem ganhando. “Acho que muitas pessoas
que viviam de maneira confortável teoricamente sabem que existem pessoas
que não vivem assim, mas elas pensavam que sempre existiria mais
vencedores do que perdedores.” Essa suposição, pelo visto, não sobrevivera.
Quanto à parte do “mas”, Clinton culpava seus adversários políticos da
direita. “Acredito também que quando as dificuldades se tornarem evidentes,
pelo menos nos Estados Unidos, as pessoas do nosso lado, sejam elas ricas ou
da classe média, estarão mais dispostas a fazer algo a respeito”, afirma, “ao
passo que as pessoas do outro lado perceberão que, se não fizerem nada,
poderão nos culpar e ser recompensadas por sua improbidade”. E ainda
complementa: “Então, somos responsáveis, mas as pessoas que não querem
responder são ainda mais responsáveis.”
Em retrospectiva, disse Bill Clinton, ele e seus colegas globalistas poderiam
ter feito mais para ajudar a gente comum a assimilar os impactos da mudança.
Ele poderia ter insistido, ao assinar o Acordo de Livre Comércio da América
do Norte como presidente, em frear a liberdade corporativa. Ele se
questionava se deveria ter imposto uma taxa alfandegária às empresas que
transferiam suas fábricas para o exterior, desencadeando a perda de
empregos, e então exportavam os produtos para os consumidores norte-
americanos — e se deveria ter condicionado seu apoio ao NAFTA à taxa. Ele
imaginava como seria a situação: “Veja bem, ficarei contente em assinar este
acordo, mas quero uma taxa sobre as exportações, o suficiente para cuidar
das pessoas que perderam os empregos.” O ex-presidente poderia ter se
empenhado com mais afinco, de modo que os recursos financeiros para a
reciclagem de empregos fossem alocados antes da assinatura de acordos
comerciais e incentivos corporativos, com o intuito de assegurar os empregos
no país. Ele acrescentou que, quando o presidente Obama intermediou o
acordo climático global, ele também poderia ter oferecido um plano para os
mineiros de carvão e a outros que perderiam seus empregos por conta da
mudança. Bill Clinton assumiu uma certa responsabilidade por não ter feito
essas coisas, mas percebeu, na medida do possível, que isso bateria de frente
com a oposição republicana em praticamente tudo. Logo, lamentar era
irrelevante.
Mesmo assim, sua oposição política como presidente não conta a história
completa do motivo pelo qual as últimas décadas têm sido extenuantes para
milhões de norte-americanos. Bill Clinton, tal como Obama depois dele,
enfrentou militantes conservadores e liberais, apadrinhados pelos plutocratas,
que detestavam a ideia da solução pública de problemas governamentais em
si. Sejamos claros, esse movimento é o principal responsável pela tomada dos
Estados Unidos por parte da supremacia do mercado — e pelas perspectivas
sombrias de milhões de norte-americanos. Todavia, o Partido Republicano
representava menos da metade da nação, e o Partido Democrata teve a chance
de defender uma alternativa sólida à hegemonia do mercado. E se pode
afirmar que isso aconteceu até determinado ponto, mas não raro, sob o
comando de Clinton e Obama, de um modo hesitante, favorável ao mercado e
corroborado pelos doadores, cedeu tanto fogo aos inimigos do governo que a
causa perdeu a chama do propósito.
Jacob Hacker, cientista político de Yale, que já foi descrito como “um
intelectual, ‘o cara’ no Partido Democrata”, disse em uma entrevista: “Muitos
progressistas ainda acreditam que o governo tem um papel imprescindível a
desempenhar, mas perderam a confiança de que isso aconteça; em muitos
casos, eles não falam mais a mesma língua.” Os republicanos, afirma Hacker,
são objetivos em seu desprezo pelo governo. Os democratas, sobretudo
aqueles da escola de Bill Clinton de política centrista, adeptos da estratégia
da triangulação e favorável ao mercado, não contra-atacam o desprezo,
mediante uma forte adoção ao governo. Em vez disso, candidatos como
Hillary Clinton se expressam em uma linguagem “leve” a respeito de como
“aproximar as pessoas além dos rótulos de classe e etnia” e “solucionar os
problemas de uma forma evasiva”, mas seguem “compreensivelmente
relutantes em falar sobre as medidas do próprio governo”. Eles empreendem
campanhas dessa forma, apesar das políticas que permanecem
comprometidas com a ação governamental. No entanto, mesmo suas
propostas políticas refletiam ambiguidade: assistência médica para todos, mas
não por intermédio dos serviços públicos; subsídios universitários, mas não
universidades públicas; escolas charter, mas não escolas igualitárias. Bill
Clinton havia demonstrado um pouco dessa hesitação quando declarou, em
uma passagem cuja segunda frase raramente é citada: “A era do grande
governo acabou. Mas não podemos voltar ao tempo em que nossos cidadãos
foram deixados entregues a si mesmos.”
Hacker argumenta que essa hesitação e “perda de confiança no governo”
têm “consequências desiguais em ambas as partes”. Ele afirma: “Para os
republicanos e para a direita, na maior parte das vezes, se não sempre, são
propícias aos seus objetivos, porque se o governo não faz as coisas, muitas
vezes, isso é o que eles realmente gostariam que acontecesse. Mas, para a
esquerda e para os democratas, representa uma perda enorme, pois seus ideais
de uma boa sociedade residem no fato de que os bens públicos e os
benefícios valiosos são alicerçados na ação do governo.”
Para exemplificar o pressuposto de Hacker: a doença cardíaca de Bill
Clinton o levou a experimentar dietas mais saudáveis. Por conta disso, ele
decidiu combater o problema da obesidade infantil, ocasionado nitidamente
pelas empresas de alimentos processados e refrigerantes, com grande
influência política e um talento especial para inserir discretamente seus
produtos nas escolas públicas.
Era de se esperar que a resposta da direita para esse problema fosse um
louvor ao livre mercado. A esquerda, no entanto, poderia propor ao governo
federal uma lei com o intuito de proteger as crianças dessas empresas, contra
as quais elas não podem votar, tampouco impedi-las de agir. A partir de um
ex-presidente sem poder legal, mas ainda com a aptidão para reanimar um
movimento, alguém poderia imaginar uma campanha, aos moldes da era
progressista, com o objetivo de pressionar o governo a colocar um ponto-
final nesse mercantilismo abusivo. Todavia, o ex-presidente respondeu com
uma proposta em que seria fácil para as empresas infratoras ganhar dinheiro
vendendo produtos mais saudáveis.
“Se você quiser que elas causem menos danos, isso requer inovação, porque
elas ainda precisam ganhar dinheiro, especialmente as empresas de capital
aberto e fechado”, afirmou Clinton. Essa era, literalmente, a moral da
história.
As necessidades do mercado vinham em primeiro lugar. Até mesmo um
homem que dedicou a vida inteira à política sentia a obrigação de ser
prestativo quando se tratava das preocupações dos empresários. Em vez de
insistir que as empresas parassem de ceifar os anos de vida de nossas
crianças, sobretudo das crianças pobres, tivemos que garantir que elas
tivessem um modelo de negócios melhor e ainda botar a mão na massa para
substituir o modelo nocivo atual.
Bill Clinton contou como foi sua proposta ambivalente às empresas:
“Sabemos que vocês não querem que as crianças em idade escolar tenham
diabetes do tipo 2. Com certeza não querem, porque prejudica o coração,
porque quando essas crianças tiverem 30 e poucos anos estarão presas em
cadeiras de rodas com as pernas amputadas e não vão beber refrigerante.”
Não fazer mal às crianças não era somente a coisa certa a se fazer, mas
também era inteligente para os negócios. Caso contrário, disse Clinton, “seu
próprio modelo de negócios se destruirá”. Ele trabalhou arduamente com as
empresas para minimizar de modo voluntário, em grupo, as calorias de seus
produtos. Todos trabalharam juntos, as crianças estavam com a saúde melhor,
e o governo não precisava ser incomodado. “O melhor governo busca que as
coisas funcionem por intermédio do setor privado”, alega Bill Clinton. E ele
estava orgulhoso por ter ajudado as crianças de modo que preservasse a
capacidade das empresas de obter um retorno razoável. “Todas elas ainda
estão ganhando dinheiro, porque fizeram isso juntas.”
Com base nessa aceitação de se fazer as coisas por intermédio do setor
privado, mesmo quando as empresas de grande porte estão fazendo mal às
crianças, Clinton revelou como fizera as pazes com a supremacia do
mercado. Em determinado momento, ele usou uma frase que traduzia bem a
mensagem dessa aceitação. Ao se deparar com um sistema doente, sabendo
que ele é imperfeito e querendo mudá-lo, mas sem abusar da sua posição, o
que você faz? “Até que ponto iria para fazer a coisa certa?”, perguntou. “O
quanto alimenta o monstro?” Talvez Bill Clinton — como fazem muitos de
seus colegas globalistas adeptos do todos saem ganhando, quando
questionados sobre como combater a influência dos plutocratas na última
geração — tenha alimentado exageradamente o monstro. Qual era a opinião
dele sobre as críticas de que a abordagem liderada pelo setor privado rumo à
mudança social subvertia o costume e a ideia de os governos tomarem as
rédeas da solução de problemas? “Acredito que há um fundo de verdade
nisso”, disse ele. E alegou que tentava, sempre que possível, em suas
iniciativas filantrópicas, trabalhar junto com os governos locais e “aproximar-
se das ONGs da região e estar aberto às sugestões das pessoas”.
Porém essas tentativas de se trabalhar com o governo não eram o mesmo
que confiar no poder governamental, no poder supremo do governo para
melhorar a vida do povo. O ex-presidente aparentemente reconhecia o fato
quando disse que alguns benfeitores globalistas, sejam em sua terra natal, nos
Estado Unidos, ou trabalhando mundo afora, às vezes negligenciavam o
dever de fortalecer a democracia. “Se você faz isso em qualquer escala, tem a
obrigação de fortalecer a capacidade dos governos para solucionar os
problemas do povo e combater a corrupção”, afirmou. No entanto, muitos
globalistas que buscam as mudanças de hoje fazem vista grossa a essa ideia, e
Bill Clinton se preocupava com isso: “O que tentei fazer foi dizer ao
fundador da Toms Shoes — ele faz doações de sapatos, é um homem bom —
e a esses inúmeros empreendedores mais jovens, que em minha opinião são
maravilhosos, é que, se você quiser ter um impacto positivo e duradouro,
precisa, sempre que possível, aumentar a capacidade das autoridades locais,
públicas e eleitas para que cuidem de si mesmas.”
Assim sendo, Bill Clinton propôs um teste para os bons samaritanos com o
intuito de analisar se a ajuda deles estava melhorando as coisas: “Ao fim de
sua ajuda, as coisas serão sustentáveis e o povo será governado por uma
administração mais eficaz, mais responsiva e mais honesta?” Todavia, era
mais fácil implementar essas premissas em um projeto na África do que nos
Estados Unidos, quando se combatia os problemas dos refrigerantes, caixas
de sucos e obesidade infantil. Os plutocratas norte-americanos não tinham o
menor problema com um governo africano mais enérgico. Contudo, em seu
próprio terreno, eles preferiam as soluções em que todos saem ganhando, em
que um governo mais incisivo poderia lhes custar caro.
Bill Clinton não gostava de pensar que seus vínculos e seu enriquecimento
proveniente dos ultrarricos o mudaram ou moldaram a forma como ele
pensava a respeito das coisas. Sim, ele se tornara um dos mandachuvas
mundiais da liderança do pensamento, cobrando milhares de dólares por uma
palestra. Sim, ele almoçava, antes de suas palestras, com grupos pequenos de
plutocratas que pagavam até, digamos, US$10 mil cada, para se sentar à mesa
com ele e ouvir sua opinião sobre o mundo. Porém Bill Clinton argumentava:
“Quando você não toma mais decisões que os beneficiam, essa é a menor das
preocupações.” Ele disse isso como se fosse impossível imaginar que a
oportunidade de ganhar milhões de dólares depois de sair da presidência
pudesse afetar as decisões de escolha de um presidente enquanto estava no
cargo.
Em tempos de fúria, muitas pessoas pressentiam que o fato de seus líderes
se tornarem companheiros de viagens de bilionários e milionários tinha, sim,
influência sobre as crenças deles. Essa intuição prejudicou a campanha
eleitoral de sua esposa. Essa intuição ajudou a campanha improvável de
Bernie Sanders nas primárias e contribuiu com a vitória ainda mais
improvável de Donald Trump nas eleições — e tudo isso causava estranheza,
pelo fato de Trump personificar as questões que Bill Clinton mencionava.
Será que era inevitável que os líderes de uma democracia se associassem a
plutocratas depois que cumprissem seus mandatos? Será que isso tinha
alguma relação com os problemas de desconfiança, alienação e distância
social que espreitavam a fúria, que agora se dirigia à elite?
Bill Clinton afirmou que ministrou 649 palestras por dinheiro e, até onde se
lembra, gastou quase metade da renda em impostos e doou uma parte à
caridade, ajudou amigos e parentes idosos com dívidas de assistência médica.
(Ele ressaltou que você não paga imposto sobre doações caso pague as
despesas médicas direto ao prestador de assistência médica.) “Caso alguém
ache que fui corrompido, eu simplesmente peguei o dinheiro dos ricos e fiz
doações aos desfavorecidos. E, ao contrário de Robin Hood, não precisei usar
o arco e flecha contra eles.”
Será então que não havia motivo para a fúria?
“Lembre-se de que estamos vivendo um período de ressentimento extremo”,
afirmou Clinton. Ele argumentou que parte desse sentimento tinha raízes na
crise financeira: “A raiva das pessoas pelo que aconteceu com elas ainda não
foi de todo saciada pelos ricos que quebraram ou pela quantidade de pessoas
que foram parar na prisão.” Parte desse sentimento provinha do desemprego
resultante da globalização, da tecnologia e de outras mudanças. Dito de outro
modo, o ex-presidente não achava que existia algo errado com o que ele e os
outros faziam. Ele simplesmente achava que as pessoas eram amarguradas e
procuravam bodes expiatórios em razão de suas vidas serem difíceis. “Essas
pessoas”, como sua colega palestrante que trabalhava no Lazard as chamava,
estavam, no final das contas, “sendo conduzidas por um caminho da política
do medo”, semelhante ao que Sadiq Khan havia dito; e, como o próprio Bill
Clinton dissera, muitas das pessoas enfurecidas “não tinham a menor ideia do
que estavam fazendo” e sucumbiam a uma “mentalidade enraizada de nós
versus eles”.
Clinton sabia, no entanto, que o rancor direcionado aos globalistas
ameaçava seu sonho de um mundo unitário. Uma das respostas possíveis
seria entender esse rancor generalizado e ressignificar o sonho — deixar de
lado o velho costume que Dani Rodrik descreve como “colocar efetivamente
a democracia para trabalhar em favor da economia global, e não o contrário”.
Essa não era sua abordagem favorita. Para os globalistas, o sonho de um
mundo unitário era inegociável. O desafio, segundo ele, era descobrir
“primeiro, como cuidar dos Estados Unidos, mas não fugir do resto do
mundo”. Até poderia ser um caso em que todos saem ganhando, ele tinha
certeza disso. A fúria não desencorajava seu modus operandi.
Bill Clinton era um dos pais fundadores de uma era definida pela
globalização, pelas mudanças vertiginosas e pela hegemonia do mercado; era
um produto desta era. Desde longa data ele acreditara nas reformas e também
era um pragmático que, de acordo com amigos e críticos, dizia saber para que
lado o vento soprava. Mas, ao longo de sua carreira política, o vento soprava
de forma cada vez mais favorável ao mercado. Em 1964, ano em que se
formou no ensino médio, 77% dos norte-americanos afirmaram ter um alto
grau de confiança no governo, de acordo com o Pew Research Center; já em
sua adolescência, esse índice caiu. Ao acreditar no poder político para
melhorar a vida das pessoas, tendo presenciado as possibilidades da política
em sua própria vida, Bill Clinton aceitou a mudança. Aceitou que as
empresas deveriam ter retornos financeiros, e que, não raro, ele deveria
equilibrar o interesse das crianças em detrimento desses retornos
impreteríveis. Após a presidência, ele praticou um bem mais concreto e
salvou mais vidas do que talvez qualquer um de seus antecessores; e, ao
mesmo tempo, havia aceitado determinados limites sobre o quanto o bem é
praticado hoje em dia. O triunfo do Mercado Global era tanto que até mesmo
o homem que liderou a máquina estatal mais poderosa da história da
civilização agora ministrava palestras sobre mudanças sociais plutocráticas de
cunho privado: “Isso é o que realmente funciona no mundo moderno.”
Para as pessoas que questionam essa perspectiva, não se trata de refutar a
generosidade alheia, assim como questionar a monarquia não se trata de dizer
aos reis que eles sempre levam a economia ladeira abaixo. É dizer que não
importa o tipo de trabalho que o rei esteja fazendo. É falar que, embora esse
rei esteja fazendo o melhor, ainda não é bom o suficiente, por causa da forma
como esse trabalho é feito: o isolamento; o risco da beneficência contínua do
rei; os erros reais em potencial que podem alterar vidas que não deveriam
sequer ser impactadas. Da mesma forma, questionar os globalistas adeptos de
ser bem-sucedido ao praticar o bem não é duvidar de suas intenções ou de
seus resultados. Pelo contrário, é dizer que, ainda que todas essas premissas
sejam levadas em consideração, existe alguma coisa errada na crença de que
eles estão em condições melhores para empreender as mudanças
significativas. Questionar a supremacia dos globalistas é simplesmente
duvidar do princípio de que o melhor para o mundo é aquilo que os abastados
e poderosos dizem ser. É dizer que você não quer limitar sua imaginação de
como o mundo pode vir a ser ao que pode ser feito com o apoio deles. É dizer
que um mundo definido cada vez mais pela ganância mercantilista e pelo
fornecimento privado dos bens públicos é um mundo que não confia em seu
povo, em sua capacidade coletiva, para imaginar um outro tipo de sociedade.
Apesar de tudo, Bill Clinton enxergava verdades na fúria efervescente ao
seu redor. Ele via como a mudança aos moldes do Mercado Global não
fortalecia a democracia. Ele se preocupava genuinamente com os jovens
perante os problema sociais e, ao contrário de sua geração propensa ao
ativismo, limitava seus questionamentos a quais negócios orientados
socialmente resolveriam o problema. Ele aceitava que tinha supervalorizado a
definição de progresso dos privilegiados em nossa era de digitalização e
globalização. E lamentava que os vencedores da mudança não tivessem
investido o bastante nos perdedores.
Bill Clinton enxergava e reconhecia todas essas coisas. Mas ele não
contestava a elite por seus pecados; ou apelava à redistribuição do poder e às
mudanças sistêmicas fundamentais; ou sugeria que talvez os plutocratas
devessem abrir mão de coisas preciosas para que a gente comum tivesse a
mera chance de superar as condições indecentes em que viviam. Alguém teria
que fazer isso.
EPÍLOGO
“AS PESSOAS QUE NÃO SÃO SEUS FILHOS”
J ácasa,
era altas horas da noite e Andrew Kassoy estava sentado na sala de sua
no Brooklyn, pensando nos limites de sua abordagem extremamente
admirada de mudar o mundo. Será que existia outra maneira? Ele se pergunta.
E, se existisse, essa outra maneira teria lugar para ele?
Kassoy é um garoto-propaganda do método de mudança social do Mercado
Global. É uma das muitas pessoas em nossa época que trocaram uma carreira
longa e bem-sucedida nos negócios pela profissão de buscar fazer do mundo
um lugar mais justo e igualitário — usando as ferramentas e mentalidades de
sua profissão anterior. Ele passou 16 anos no que chama de “ramo
convencional do capital privado” — DL Real Estate Capital Partners, Credit
Suisse First Boston e MSD Capital, no qual ajudou o magnata da tecnologia
Michael Dell a investir sua fortuna pessoal multibilionária. Era o tipo de
carreira com a qual as pessoas sonhavam, embora Kassoy achasse isso uma
estranha coincidência. “Cresci em uma família superprogressista, adepta da
justiça social, acadêmica e, meio que sem querer, acabei nessa carreira”,
disse. Talvez ele tenha sido ludibriado por uma história predominante de sua
época.
Em 2001, foi escolhido para a Henry Crown Fellowship do Aspen Institute.
O programa é uma escola de aperfeiçoamento de prestígio que tem como
objetivo ajudar na transição de ingressar na carreira de negócio e fazer do
mundo um lugar melhor. Sua missão é mobilizar uma “nova geração de
líderes” para “enfrentar os problemas mais espinhosos do mundo”. Todavia,
sua definição de líder é peculiar: “Todos eles são empreendedores
reconhecidos, em grande parte do mundo dos negócios, que chegaram a um
ponto em suas vidas em que, já bem-sucedidos, estão prontos para colocar
seus talentos criativos em prática rumo à construção de uma sociedade
melhor.” Os bolsistas se reúnem para quatro sessões de uma semana durante
dois anos. Eles leem e discutem textos importantes, debatem o que contribui
para uma “boa sociedade” e desenvolvem projetos paralelos com o intuito de
praticar o bem de formas que geralmente não atrapalhem suas oportunidades
de praticar esse bem. Kassoy participou de sua primeira reunião da bolsa de
estudos em Aspen naquele verão, e as leituras e discussões abriram seus
olhos para a injustiça. A experiência o deixou consciente de seu
descontentamento velado com capital privado. “Foi uma experiência bastante
intensa, porque cheguei à conclusão: ‘Estou nesse ramo há 10, 11 anos. Está
na hora de botar minha cabeça para funcionar e pensar qual é o significado da
minha vida’”, disse ele. “Então, quando voltei, a tragédia do 11 de Setembro
aconteceu.”
Entre os ex-financistas, histórias como essas não são incomuns: elas
ocorrem por motivos de força maior (câncer, divórcio, morte), e às vezes
mais de um deles, abalando suas vidas confortáveis. No entanto, conforme
Kassoy descobriu, até mesmo esse baque pode não ser suficiente. Ele
começou a pensar no que mais poderia fazer. “Para ser sincero”, disse, “eu
não tinha nem coragem para fazer algo sobre qualquer coisa que me
interessasse”.
A palavra “coragem” sugeria que a ideia inicial de Kassoy sobre o que
poderia fazer implicava negociar seu privilégio por outro tipo de vida. Ele
supôs que a prática genuína de fazer o bem pressupunha abrir mão de ser
bem-sucedido — talvez um legado político de sua família. Dito de outro
modo, seus primeiros instintos resistiram às mensagens do Mercado Global
— de que, acima de tudo, ele poderia ter o melhor dos dois mundos, ao
ganhar dinheiro e doar dinheiro. Essa suposição o acalmou. “Acabei seguindo
em frente”, disse. O capital privado continuaria sendo seu ganha-pão, ele
ajudaria a outrem, e ambas as partes não correriam nenhum risco. Kassoy se
deparou com uma organização chamada Echoing Green, que fornecia o
capital semente aos empreendedores sociais. “Acabei ingressando no
conselho, porque eles procuravam pessoas com dinheiro para serem
doadoras.”
Após suas outras aventuras, Kassoy se encontrava em um território familiar.
A Echoing Green foi fundada por outra empresa de capital privado, a General
Atlantic. A liderança corporativa, conforme o site da Echoing Green, “previa
que o modelo de investimento de capital de risco que eles empregavam
efetivamente na General Atlantic também poderia ser usado com o objetivo
de promover mudança social”. A revolução seria estimulada; talvez as
ferramentas do mestre pudessem, afinal, desmantelar sua própria casa. A
General Atlantic deu à luz a Echoing Green em 1987, “cujo nome era em
homenagem a um poema de William Blake sobre a criação de um mundo
melhor”.
Agora Kassoy tinha um outro emprego como assessor dos companheiros da
Echoing Green, que costumavam ser empreendedores sociais procurando
expandir suas ideias. Ele começou a perceber um problema comum que os
afligia. Algumas pessoas montam um negócio a fim de obter um lucro alto.
Mas outras, com a mesma predisposição que a Echoing Green, procuram
“criar um negócio com fins lucrativos, porque reconheciam que era a melhor
forma de maximizar a solução para um problema em que eles estavam
interessados”. Ele deu o exemplo de sua assessorada Sara Horowitz, que
fundou o Freelancers Union, que representa trabalhadores autônomos, como
motoristas de Uber e redatores de revistas. A princípio, ela queria trabalhar
como corretora para ajudar esses trabalhadores a comprar um seguro de saúde
em grupo. Então ela percebeu que seria mais fácil e mais produtivo se
simplesmente montasse a própria companhia de seguros de saúde. Contudo, a
economia não estava preparada para pessoas como Horowitz. Uma empresa
que não administra somente os interesses dos acionistas corre o risco de
sofrer ações judiciais por parte de seus investidores. A interpretação
predominante do direito societário, conforme vimos, desde a década de 1970
passou a considerar como dever principal das empresas obter lucros para os
seus acionistas. Uma empresa que colocasse os objetivos sociais acima dos
negócios não tinha um lugar definido nesse regime.
Assim sendo, Kassoy passou a se interessar, conforme ele próprio alega, em
“como arquitetar uma estrutura mercadológica para que as pessoas consigam
fazer negócios de um modo diferente”. Esse interesse consumia cada vez
mais seu tempo, à custa de Michael Dell. “Eu me dei conta de que estava
passando metade do meu dia, todos os dias, sentado na minha sala de
reuniões com as pessoas e deixando a desejar em meu trabalho cotidiano, o
que não me parecia nada bom, nem para o meu empregador, nem para meu
sócio.” Kassoy fora do “seguir em frente” em busca do sucesso nas empresas
de capital privado à conscientização de seus deveres com os outros e à
identificação de maneiras seguras, corroboradas por Wall Street, de lutar
pelas mudanças sociais; e agora ele estava pronto para se dedicar em tempo
integral às realizações de mudanças ao estilo do Mercado Global.
Ele manteve contato próximo com dois amigos desde os tempos em que
estudou em Stanford, Jay Coen Gilbert e Bart Houlahan, que enfrentavam o
mesmo problema. Os dois montaram uma empresa de calçados, na qual
Kassoy havia investido, e estavam vendendo-a depois de muitos anos. A
empresa havia se destacado pelos métodos de produção socialmente
responsáveis. Agora, no entanto, os capitalistas de risco que haviam
financiado a empresa queriam o retorno de seu dinheiro, e isso colocava em
risco as práticas socialmente responsáveis. “Hora de vender”, os investidores
disseram de modo incisivo, segundo Kassoy. “Já se passaram sete anos, e
vocês venderão a empresa para quem oferecer mais.” A questão era que o
comprador “que estava disposto a pagar o melhor preço pela empresa era a
pessoa que teria todas as oportunidades de se livrar de todas essas coisas” —
as práticas socialmente responsáveis — “com o intuito de ganhar mais
dinheiro ainda”.
O trio saiu à procura de ideias para solucionar o problema e, por fim,
chegou a uma visão de se arquitetar um sistema capitalista paralelo,
semelhante ao tradicional, por meio do qual as empresas poderiam ser mais
responsáveis e conscientes, e, apesar disso, angariar dinheiro no mercado de
capitais e estar em conformidade com a lei. Nascia assim as Empresas B, ou
Sistema B, como também é conhecido. Os três amigos criaram um
laboratório sem fins lucrativos chamado B Lab, que facultava às empresas
com melhor comportamento uma certificação fundamentada em uma análise
rigorosa de suas práticas sociais e ambientais. Kickstarter, King Arthur Flour,
Ben & Jerry’s e a empresa brasileira de cosméticos Natura são Empresas B.
Kassoy e seus cofundadores queriam fazer do mundo um lugar melhor e
encontraram um meio de fazê-lo de acordo com os valores do Mercado
Global. Eles facilitaram as coisas às empresas dispostas a praticar o bem, ao
passo que ignoravam as empresas que queriam prejudicar as pessoas. “A
premissa básica era ‘facilitar o bem’”, disse Kassoy. “Primeiro, facilite a
identificação de um bom negócio, sistematize isso com uma marca que as
pessoas entenderão, e peça aos líderes que adotem essa marca e falem aos
quatro ventos sobre seus valores. De um jeito ou de outro, ao fazer isso,
criaremos um novo setor da economia. E, mais cedo ou mais tarde, todos se
darão conta de que este é um setor econômico bastante bem-sucedido e farão
a mesma coisa.”
Kassoy e seus colegas esperavam que, ao certificar empresas conscientes,
eles poderiam mudar o sistema de negócios como um todo. “Acho que
pensávamos, e ainda pensamos, que este é um modelo de mudança dos
sistemas”, disse ele. Porém, à maneira do Mercado Global, eles não
assumiram o sistema diretamente. Eles simplesmente buscavam fomentar
exemplos de um modo diferente. Parte da razão pela qual eles não fizeram
esse trabalho sistêmico, segundo Kassoy, era que “não tínhamos a mínima
noção de como se deslocar entre os espaços. Acho que, em particular, como
nós três vínhamos do setor privado, não fazíamos ideia de como era a política
pública”. Ele ainda mencionou que o trio “tinha uma vaga noção do que era
satisfatório e que, em algum momento, o governo adotaria a ideia em geral”.
Em dez anos, eles transformaram centenas de empresas em Empresas B.
Mas agora, sentado em sua sala de estar, Kassoy disse que o B Lab estava no
meio de um processo de reestruturação, pautado por sua convicção de que “o
que nos trouxe aqui não nos levará aonde estamos indo”. E para onde
exatamente eles queriam ir? Rumo à mudança do sistema que haviam
negligenciado. Kassoy afirma que sabia que eles tinham realizado um bom
trabalho em comprovar um modelo em vez de alterar o jeito como os
negócios funcionavam, mas agora queriam mudar de foco.
Esse momento de reestruturação levantou uma série de perguntas, como se
deveriam ter uma espécie de “Versão Light de Empresas B”, um sistema de
pontuação para empresas que não são elegíveis para serem Empresas B, mas
que gostariam de uma classificação transparente de suas práticas. As
perguntas mais espinhosas e as que aparentemente deixavam Kassoy
angustiado, envolviam adotar o mantra do Mercado Global de “facilitar a
prática do bem”, ou se deveria buscar fazer com que aqueles que causam
danos paguem um preço mais alto — significando uma mudança no sistema
de negócios para todo mundo; um combate não na arena do mercado, e sim
na arena política e jurídica, incentivando a extinção de negócios ruins em
detrimento dos negócios sustentáveis. Kassoy vivia um dilema que envolvia
acatar as premissas e sonhos do Mercado Global e sua teoria do todos saem
ganhando ou buscar outro tipo de mudança que lhe parecesse mais verdadeiro
e menos inalcançável.
Por exemplo, uma das grandes conquistas do B Lab fora a criação de uma
lei corporativa paralela, promulgada pela primeira vez em Maryland e depois
adotada em outros estados, que possibilitava às empresas incorporar uma
missão social em seu negócio sem medo de sofrer ações judiciais, como
denúncias por parte dos acionistas. Proporcionar essa garantia às boas
empresas foi muito importante. Kassoy, no entanto, ainda refletia: “O grande
problema sistêmico aqui é se um sistema de adesão, afinal, pode superar a
influência dos interesses vigentes.” Era mais importante facilitar ao Etsy a
prática do bem ou dificultar que a ExxonMobil prejudicasse a outrem? Seria
possível fazer as duas coisas?
Kassoy tinha um interesse enorme pelo funcionamento dos sistemas, apesar
de ter dedicado a última década à outra abordagem. “Não tenho certeza se
todo mundo diria isso, mas acredito que a regulamentação governamental tem
um papel importante nos negócios”, afirma. “Não vamos mudar todos. Nem
estamos mudando a ganância dos homens. As empresas se comportam muito
mal.” Havia, em particular, “setores exploradores em que o importante é a
existência do setor em si” se traduzindo em males e custos sociais que
consumiam a humanidade. “Não estamos nos livrando dessas coisas”, disse
ele.
Os Estados Unidos tinham milhões de corporações e, após uma década de
evangelização do B Lab, viam-se apenas algumas centenas de Empresas B.
Hoje em dia, Kassoy enxergava com mais clareza do que no início da
empresa que solucionar problemas como a desigualdade, a ganância e a
poluição demandaria muito mais do que a facilitação da prática do bem. Ele
não foi o único dos partícipes do Mercado Global a pensar que seus meios de
operar poderiam ser inadequados ao genuíno trabalho de mudar o mundo, ou
mesmo de mudar somente o próprio país. Todavia, o que, não raro, esses
partícipes do Mercado Global falhavam em compreender era como a
mudança concreta funcionava ou, muitas vezes, sentiam que pisavam em um
terreno duvidoso, e que buscar um tipo diferente de mudança exigia
habilidades que não tinham. Mas se o governo era o meio pelo qual se
mudavam os sistemas, o que eles poderiam fazer enquanto indivíduos? Eles
poderiam peticionar ao governo. Eles poderiam se juntar aos movimentos que
lutam com o intuito de mudar as leis e as políticas. No entanto Kassoy, como
tantos no Mercado Global, se sentia intimidado com essa abordagem. Ele
tinha a impressão de que muitas pessoas no Mercado Global, ao alicerçarem
suas bases nas regras de negócios, sentiam que estavam despreparadas no que
se referia à esfera política, na qual o jogo em que um ganha e outro perde era
normal e os combates tinham que ser frequentemente escolhidos, em vez de
firmar acordos mutuamente aceitáveis. O conflito pode espantar os negócios.
“Não sou um ativista muito bom”, disse Kassoy, “e conheço muitas pessoas
que são, as quais apoio, mas nunca fui muito bom nisso. Não posso afirmar
que seja falta de coragem, falta de entendimento de como ser um — tipo,
acho que ser um bom ativista exige um pouco de manipulação; não sou tão
bom nisso”. Essa ideia de ativismo enquanto manipulação era no mínimo
peculiar; parecia mais uma desculpa a fim de não trabalhar nos sistemas do
que um motivo.
Às vezes Kassoy se sentia determinado em sua hipótese de que bastava
demonstrar como seria um capitalismo melhor e deixar que outros se
encarregassem da mudança do sistema e do enfrentamento dos males. A
mudança do sistema, disse ele, “não era uma das minhas melhores
habilidades” — a linguagem corporativa enfatizava inconscientemente esse
ponto. Isso não fazia parte do seu conjunto de habilidades. A seu ver, havia
um meio de justificar sua abordagem de trabalhar dentro do sistema
comparando-o com o trabalho do Dr. Martin Luther King Jr. “Martin
precisava de Malcolm”, disse. “Não acho que o que estamos fazendo consiga
mudar o capitalismo por si só. Mas acredito realmente que isso cria um
modelo para tal.” Em outros dias, Kassoy não tinha tanta certeza dessa lógica.
Ele persistia na regulamentação. “Sou uma pessoa que acredita no grande
governo. Acredito que o Estado tem um papel muito sólido. Mas não sei
como fazer isso acontecer.”
Os sentimentos paradoxais de Kassoy é o que Jacob Hacker, cientista
político de Yale, parece considerar quando fala dos políticos liberais
filosoficamente comprometidos com o governo, com a solução pública dos
problemas públicos, mas que absorvem, como os fumantes passivos, o
menosprezo da direita à ação pública. À medida que as pessoas da direita
acreditam plenamente na superioridade das soluções mercadológicas, os
liberais como Kassoy fazem isso de modo passivo — aquele tipo de
passividade em que não refutam uma solução pública em teoria, mas buscam
uma solução privada na prática. “Tenho uma discussão constante com meu
pai”, disse Kassoy, “que acha que o ser humano mais maligno que já pisou na
face da Terra foi Ronald Reagan, porque ele sozinho nos convenceu como
sociedade de que o governo é ruim”. Ele complementou: “Se você pensar no
sucesso que Bill Clinton fez na década de 1990, a sua Terceira Via consistia
basicamente em adotar boa parte dessa linguagem. Ou seja, por muito tempo
ninguém nos dizia que o governo era uma coisa boa.” À primeira vista, dizer
isso fez Kassoy refletir se ele havia se transformado no elo mais recente dessa
cadeia de liberais que reiteravam a guerra contra o governo, oferecendo
soluções privadas para os problemas públicos. “Agora nem vou dormir à
noite pensando a respeito”, afirmou.
Sejam lá quais forem as dúvidas pessoais de Kassoy, as Empresas B eram
de fato as vencedoras em todo o Mercado Global. O Aspen Institute havia
concedido não somente a Kassoy, mas a todos os três cofundadores do B Lab
a bolsa de estudos Henry Crown Fellows. A Fundação Ford ofertou subsídios
financeiros ao B Lab. Os fundadores eram constantemente elogiados por
“líderes de pensamento” reconhecidos e se ouvia com frequência os
chamarem do mesmo; dois dos três fundadores ministraram palestras no
TED. As Empresas B certificadas pela equipe de Kassoy figuravam entre as
companhias mais admiradas do Summit at Sea. Seu sistema corporativo de
classificação fora discutido em Davos. O Centro Beeck de Impacto Social e
Inovação, em Georgetown, promoveu a bolsa de estudos do B Lab com o
objetivo de capacitar as pessoas a usar “os negócios como força para o bem”.
Uma Empresa B importante chamada Laureate Education despertou o
interesse de George Soros e da KKR como investidores, e nomeou Bill
Clinton seu “chanceler honorário” — uma atribuição cujo rendimento era de
quase US$18 milhões em cinco anos, segundo o Washington Post. “Vocês
deveriam prestar atenção a essas Empresas B”, afirmou o ex-presidente ao
promover o B Lab e apresentar as empresas no palco principal da CGI.
Kassoy se questionava o quanto ele e o B Lab teriam que mudar com o
objetivo de buscar a reforma do próprio sistema — a fim de assumir uma
posição para dificultar as coisas ruins. Para os iniciantes, o B Lab tinha uma
ética rigorosa de positividade. “Defendemos uma coisa, mas não somos
contra nada” era um de seus mantras. Contudo, uma verdadeira mudança
pode exigir que você faça oposição, e Kassoy sabia disso. Via de regra, as
mudanças efetivas exigiam sacrifícios e, hoje em dia, Kassoy dizia: “Não há
muitas pessoas que queiram se arriscar.” As verdadeiras mudanças podem
implicar em soluções de compensação e a necessidade de escolher suas
prioridades. “Não acredito que as pessoas que tentam ser mais responsáveis
tenham retornos lucrativos mais altos. Existem soluções de compensação”,
afirma Kassoy, “mas ninguém quer contar essa história”.
Às vezes, ele analisava as pequenas iniciativas do Mercado Global ao seu
redor que buscavam mudanças, porém, ao mesmo tempo, evitavam as
mudanças efetivas, e se perguntava se não era apenas uma forma de distribuir
migalhas com o intuito de manter a ordem. Quando as empresas de capital
privado citavam William Blake e falavam sobre mudar o mundo, o quanto
disso era autêntico e em que medida era comercial, conforme Kassoy disse,
“para fazer com que as pessoas sentissem que foram ouvidas, sem ter uma
revolução sangrenta”?
Kassoy ainda acreditava profundamente no que ele e o B Lab estavam
fazendo. Contudo, ele se questionava: “Qual é o momento certo para dizer
‘Ótimo, é dessa forma que todas as empresas devem se comportar’? Por mais
que eu ache que estamos fazendo algo grandioso, isso poderia ser um tiro
certeiro no coração do capitalismo.” Alguma chama intensa e ardente dentro
de Kassoy parecia querer disparar esse tiro; contestar as pessoas com quem
trabalhava em finanças; mudar os negócios para todos, de modo que
seguissem as mesmas regras; ir ao encalço primeiro do que era ruim, em vez
de facilitar o que já era bom — mudar o sistema com o consentimento de
seus cidadãos, não somente buscar uma solução paliativa para sua
degradação. Mas essa chama entrava em conflito com uma rede de mitos
muito poderosa e disseminada — o Mercado Global. Se a chama que pulsava
dentro de Kassoy, se a mudança em si — autêntica, a começar pela raiz dos
males — tivesse uma chance, muitas pessoas precisariam se desvencilhar das
garras desses mitos e se lembrar do que de fato uma mudança é.