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Outros livros de Anand Giridharadas

The True American:


Murder and mercy in Texas
India Calling:
An intimate portrait of a nation’s remaking
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Os Vencedores Levam Tudo – A farsa de que a elite muda o mundo
Copyright © 2020 da Starlin Alta Editora e Consultoria Eireli. ISBN: 978-85-508-1528-2
Translated from original Winners Take All. Copyright © 2018 by Anand Giridharadas. ISBN
9780451493248. This translation is published and sold by permission of Alfred A. Knopf the owner of
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Para Orion e Zora,
e para as mais de 300 mil crianças nascidas hoje, com esperança de que
enxerguem além de nossas ilusões.
Estou sentado nas costas de um homem, asfixiando-o, obrigando-o a me
carregar por toda parte, e procuro atestar a mim e as outras pessoas de
que estou desolado por ele e que desejo abrandar sua carga de
qualquer maneira possível… mas sem sair de suas costas.
— LEON TOLSTÓI, WRITINGS ON CIVIL DISOBEDIENCE AND NONVIOLENCE
[ESCRITOS DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL E NÃO VIOLÊNCIA]
A mudança social não é um projeto que um grupo de pessoas realiza em
interesse de outro.
— ESCRITOS DE BAHÁ’Í DA CASA UNIVERSAL DE JUSTIÇA EM HAIFA, ISRAEL
SOBRE O AUTOR
Anand Giridharadas é o autor dos livros The True American e India Calling.
Como correspondente estrangeiro e colunista do New York Times de 2005 a
2016, conduziu expedições para a Itália, Índia, China, Dubai, Noruega, Japão,
Haiti, Brasil, Colômbia, Nigéria, Uruguai e Estados Unidos. Ele também
escreveu para The Atlantic, The New Yorker e The New Republic. É
pesquisador convidado da Universidade de Nova York, analista político da
NBC News e deu uma palestra no palco principal do TED. Suas obras foram
premiadas pela Society of Publishers, na Ásia; pela Poynter Fellowship, em
Yale; e pelo Helen Bernstein Award, da Biblioteca Pública de Nova York.
Nasceu em Cleveland, Ohio, e mora na cidade de Nova York.
AGRADECIMENTOS

No verão de 2015, eu estava apreensivo diante de um púlpito, em Aspen,


Colorado, imaginando o que acontece quando você diz a uma sala cheia de
pessoas endinheiradas e poderosas que elas não são as salvadoras que
acreditam ser.
Quatro anos antes, fui indicado como fellow no Programa Henry Crown do
Aspen Institute. Você já deve ter ouvido falar dele como o programa que
busca implementar uma “nova geração de líderes” para enfrentar os
“problemas mais espinhosos do mundo”. Eu era uma escolha estranha. A
bolsa de estudos afirma aos seus possíveis líderes que “todos são
empreendedores reconhecidos, em grande parte do mundo dos negócios”. Eu
não era, nem nunca fui, empreendedor — e escrever, caso seja um negócio,
não é lá dos melhores. Mas não tenho por hábito recusar viagens a Aspen, e a
bolsa de estudos parecia uma boa — 4 sessões de uma semana com um grupo
de mais ou menos 20 colegas, ao longo de 2 anos, em que leríamos e
debateríamos textos importantes, e discutiríamos nossas vidas e aflições em
segredo, enquanto pensávamos em como “fazer a diferença”.
A princípio, minha experiência com a bolsa de estudos fora definida por
esse pequeno grupo. Estreitei os laços com meus colegas de classe,
partilhamos nossas lutas, e acabei sendo o celebrante no casamento de um
deles. Quando me refugiei no universo do Aspen Institute, havia outros tipos
de prazer, mais questionáveis. Comecei a ter amigos com jatos particulares;
vez ou outra, eu voava neles. Eu me entrosei com os ultrarricos em mansões
decoradas com chifres de veado que tinham vista para o Roaring Fork Valley.
Levei minha mãe para o Aspen Ideas Festival, onde dividimos um quarto de
hotel e não conseguíamos parar de rir tentando decidir quem usaria o roupão
com estampa de tigre e quem ficaria com o de estampa de leopardo.
Mesmo tendo aproveitado esses luxos e contatos, tinha alguma coisa errada
no Aspen Institute. Ali estavam todas aquelas pessoas ricas e poderosas se
reunindo e falando em retribuição, e, no entanto, quem colhia a maior parte
dos frutos dessa reunião, aparentemente, eram as pessoas que ajudavam, não
os ajudados. Comecei a me perguntar o que de fato estava ocorrendo quando
os mais privilegiados não somente tentam fazer a diferença, mas também
reivindicam na prática a responsabilidade de “mudar o mundo”.
Era peculiar que muitas de nossas discussões no Aspen Institute a respeito
de democracia e “sociedade ideal” ocorressem no edifício Koch, nome dado
em homenagem a uma família que fizera tanto para arruinar a democracia,
enquanto gente comum tentava “mudar o mundo”. Foi repulsivo quando os
organizadores da reunião do programa de estudos realizaram um almoço
patrocinado pela Goldman Sachs, no qual as boas ações da empresa foram
alardeadas, e seu papel na crise financeira foi ignorado. Incomodava-me que
a organização pedisse aos colegas que fizessem projetos paralelos íntegros,
em vez de fazerem o seu trabalho cotidiano com mais integridade. O instituto
convidou representantes de instituições de peso, como o Facebook, o fundo
de hedge Bridgewater Associates e a PepsiCo. Em vez de pedir-lhes que suas
empresas fossem menos monopolistas, ambiciosas ou prejudiciais às
crianças, o instituto as incitava a fomentar um alvoroço paralelo para “mudar
o mundo”.
Comecei a me sentir como um participante acidental — e cúmplice
acanhado, além de um covarde favorecido — de uma mentira monstruosa
proferida por uma fala mansa. De quem exatamente éramos líderes? O que
nos conferiu o direito de resolver os problemas do mundo da maneira que
considerávamos mais adequada? Quais interesses e pontos cegos trazíamos
para essa solução de problemas, dados os critérios pelos quais fomos
selecionados? Por que estávamos indo para Aspen? Mudaríamos o sistema ou
seríamos mudados por ele? Desafiaríamos os que detêm o poder, como
fizeram os escritores lidos em nossos seminários, ou os ajudaríamos a tornar
um sistema injusto e intragável mais fácil de digerir? Os problemas
insolúveis a que nos propusemos solucionar poderiam ser resolvidos da
forma como implicitamente exigíamos — a um custo mínimo para as elites,
com uma redistribuição mínima de poder?
No meu quinto ano no programa, fui convidado para dar uma palestra a uma
centena de colegas em nosso encontro de verão. Não era nada incomum. Um
mantra do programa é aprender um com o outro, em vez de trazer palestrantes
de fora. Em um determinado encontro, dezenas de participantes se
pronunciarão de uma forma ou de outra. À medida que o verão despontava e
o encontro se aproximava, os sentimentos conturbados oriundos dos últimos
anos eram como um turbilhão dentro de mim. Minha culpa e incômodo se
debatiam, até que finalmente, vacilante, decidi escrever e proferir a palestra
que foi a semente deste livro.
“Quero sugerir”, disse eu aquele dia no púlpito, “que nem sempre somos os
líderes que pensamos ser”. Descrevi o que chamei de Consenso de Aspen:
“Os vencedores de nosso tempo devem ser desafiados a praticar mais o bem.
Mas nunca, nunca é dito a eles para fazerem menos mal.”
Falar em público normalmente não me apavora, mas naquele dia apavorou.
Eu não sabia o que acontece quando você diz a um grupo de pessoas que se
consideram seus amigos que elas estão vivendo uma mentira. Mas lá estava
eu. Terminei a palestra. As pessoas se levantaram e bradaram, para meu
derradeiro espanto. Logo depois, no entanto, Madeleine Albright, ex-
Secretária de Estado dos EUA, subiu ao palco e gentilmente menosprezou
meu discurso. “¡Que cojones!” [“Que merda!”], outra mulher cochichou para
mim. Seu marido, porém, começou a falar mal de mim pelas minhas costas.
Uma bilionária se aproximou e me agradeceu por expressar o que tem sido a
luta de sua vida. Outros, que faziam parte da liderança do Aspen Institute,
começaram a perguntar freneticamente quem havia permitido que essa
afronta acontecesse. Naquela noite, no bar, algumas pessoas me ovacionaram,
outras me encararam friamente, e um homem que trabalha com fundos de
participação acionária me disse que eu era um “idiota”.
Mais tarde naquela noite, ao lado de uma lareira, David Brooks, colunista
do New York Times, perguntou se ele poderia escrever sobre a minha palestra.
Eu não tinha planejado que minhas palavras saíssem da sala, mas concordei.
Ele escreveu sua coluna. As pessoas começaram e pedir para ver a palestra.
Eu a postei online. Suscitou muito mal-estar e conversas. Eu não planejava
escrever um livro sobre este assunto, porém o assunto me escolheu.
Consequentemente, passei os dois anos seguintes conversando e escrevendo
sobre pessoas que vivem esse paradoxo da mudança pela elite que, por
alguma razão, parece deixar as coisas como estão.
Digo-lhe isso para que conheça as origens deste livro e para que eu possa
agradecer, primeiramente, ao Aspen Institute por me aceitar e descortinar a
mudança social liderada pela elite. E digo isso porque o enredo desta história
faz com que o seguinte reconhecimento seja tão simples quanto merece ser: a
melhor maneira de conhecer um problema é fazendo parte dele.
Além de este livro ser a obra de um crítico, ele também é o trabalho
desenvolvido por uma pessoa que esteve dos dois lados da moeda — do lado
privilegiado e do lado de fora. Eu não encontrei razão para me envolver na
investigação de quase nenhum problema neste livro, nenhum mito, nem
justificativas obscuras em interesse próprio, seja por ingenuidade, cinismo,
racionalidade, ignorância ou necessidade de ganhar a vida. Escolhi não
escrever acerca dessas coisas de um modo pessoal, porque não queria que o
livro fosse sobre mim. Mas, permita-me dizer, à medida que agradeço, que já
trabalhei como analista na McKinsey, que não fiz apenas uma, mas duas
palestras do TED, que ganho uma parte do meu sustento ministrando
palestras, que eu já participava de conferências clamando por “mudar o
mundo” bem antes de enxergá-las como uma farsa. Eu tentei nortear minha
vida de maneira honesta e ética, porém não consigo me desvencilhar do que
critico. Esta é uma crítica a um sistema do qual faço absoluta e
incontestavelmente parte.
Por um bom tempo, ao escrever este livro, lutei com a estranheza de
denunciar as práticas e princípios de um grupo de pessoas entre as quais
tenho muitos amigos. Identifiquei-me prontamente quando me deparei com
uma frase antiga do poeta Czesław Miłosz. Em 1953, ele publicou um livro
chamado Mente Cativa, sobre seu pesar em relação aos seus muitos colegas
intelectuais poloneses sucumbirem, entre racionalização e cada vez mais
desculpas, às hipocrisias e repressões do stalinismo. Ele descreveu seu livro
como “uma discussão com meus amigos que estavam cedendo, pouco a
pouco, à influência mágica da Nova Fé”. Isso me ajudou bastante. O meu
livro também é, entre outras coisas, uma discussão com meus amigos. É uma
carta, escrita com amor e consideração, para as pessoas que vejo cedendo a
uma Nova Fé, muitas das quais sei que são íntegras. Sem dúvidas também é
uma carta ao público, incitando as pessoas a reconquistarem a mudança do
mundo das mãos daqueles que a cooptaram.
Como se trata de uma discussão com meus amigos, alguns dos quais escrevi
a respeito, ao contrário do que me é habitual, pessoas que eu conhecia
socialmente antes de fazerem parte do relacionamento entre jornalista e
matéria: Sean Hinton, Amy Cuddy, Sonal Shah, Andrew Kassoy, Laurie
Tisch. Sou grato por eles estarem dispostos a lidar com esses problemas
comigo, ainda que meus pontos de vista fossem claros para eles. Não sou
menos grato a todas as outras pessoas que eu não conhecia, mas que, em todo
caso, responderam aos meus e-mails e telefonemas, que me levaram a
compartilhar suas histórias e crenças sobre fazer mudanças. Em
pouquíssimos casos, mudei os nomes para proteger a privacidade.
Sou grato a dois professores. À medida que eu lia a obra-prima de Thomas
Piketty, O Capital no Século XXI, me deparei com uma frase que trazia à
baila o propósito do meu livro. “O caráter mais ou menos sustentável de uma
desigualdade tão extrema”, escreve Piketty, “depende não só da eficácia do
aparato repressivo, mas também — e talvez sobretudo — da eficácia das
diversas justificativas para ela”. Naquele dia, decidi que meu livro seria uma
investigação sobre o aparato das justificativas. E Michael Sandel, que me
ensinou em Harvard, foi talvez o primeiro a cultivar em mim o pensamento
de que o dinheiro transcendeu o status de moeda corrente para se transformar
em nossa própria cultura, conquistando nossa imaginação e infiltrando-se nas
esferas que nada tinham a ver com ele.
Quero agradecer às pessoas generosas que dedicaram seu tempo para ler
capítulos ou mesmo todo o manuscrito: Richard Sherwin, Nicholas
Negroponte, Joshua Cooper Ramo, Rukmini Giridharadas, Tom Ferguson,
Hilary Cohen e Casey Gerald. Agradeço também a Zackary Canepari por me
emprestar sua cabana na floresta. Agradeço à minha digníssima esposa, Priya
Parker. Ela é a primeira a saber como está o andamento da escrita porque,
após todos esses anos, ainda insiste em ouvir a produção de todo santo dia em
voz alta. Meus pais sábios e sempre acolhedores, Shyam e Nandini, e um
grupo de amigos numeroso demais para mencionar ajudaram à sua maneira
fundamental: dando conselhos, apoio emocional e distrações quando a escrita
ficava difícil, como sempre fica, e fornecendo um feedback rápido sobre a
mensagem que o texto passava. E, mais uma vez, fui abençoado com os
talentos de Vrinda Condillac, uma editora primorosa e uma amiga genial e
entusiasmada, que se sentou ao meu lado e analisou o manuscrito, parágrafo
por parágrafo, por quase duas semanas.
Minha agente maravilhosa, Lynn Nesbit, é uma daquelas raras pessoas que
merecem seu status lendário. Não existe ninguém melhor que ela para
conduzir e materializar os livros, e para lidar com todos os obstáculos que
surgem em seu caminho. Não existe ninguém mais confiável para um
escritor, ninguém melhor para uma visão de longo prazo e, se ainda existem
pessoas que, como Lynn, usam seus telefones para papear e não somente para
digitar, ninguém faz isso melhor do que ela.
Lynn me levou a Alfred A. Knopf, mas também foi uma espécie de retorno
ao lar. Conheci o editor deste livro, Jonathan Segal, mais ou menos há uma
década, quando eu escrevia sobre a Índia. Ele acabou não adquirindo o livro
em questão, mas o estruturou profundamente, apenas por meio de seus
comentários sobre a proposta. Nós nos encontramos novamente em Os
Vencedores Levam Tudo. Jon é inteligente, dedicado, aficionado por livros e
exigente. Ao passar as anotações a lápis para o computador, tive a sensação
de assistir a um cirurgião-chefe. No início, ele se concentra na incisão. Mas,
em seguida, você observa o corpo que ele está restaurando à saúde,
removendo o que deve ser removido, transplantando, injetando e suturando.
Este livro não existiria sem seus olhos, mãos e confiança. Sou grato também
ao destemido líder de Knopf, Sonny Mehta, por sua dedicação aos livros, e à
Jessica Purcell, Paul Bogaards, Sam Aber, Julia Ringo, Kim Thornton
Ingenito e o restante da equipe.
Este livro é dedicado aos meus filhos, Orion e Zora, e aos seus, que
merecem a nova era que está por vir.
Table of Contents
Agradecimentos

Prólogo

Capítulo 1: Mas como o mundo mudou?

Capítulo 2: Todos saem ganhando

Capítulo 3: Reis rebeldes em boinas alarmantes

Capítulo 4: O crítico e o líder do pensamento

Capítulo 5: Os incendiários formam os melhores bombeiros

Capítulo 6: Generosidade e justiça

Capítulo 7: O que funciona no mundo moderno

Epílogo: “As pessoas que não são seus filhos”

Notas sobre as fontes


PRÓLOGO

or todos os lados, nos Estados Unidos, as inovações repercutem


P vigorosamente — em nossas empresas e na economia, em nossos bairros e
escolas, em nossas tecnologias e no tecido social. Entretanto, não se consegue
converter essas novidades em um progresso amplamente compartilhado e no
aprimoramento de nossa civilização como um todo. Os cientistas norte-
americanos fazem as descobertas mais significativas em medicina e genética
e publicam mais pesquisas biomédicas do que qualquer outro país, mas a
saúde do cidadão norte-americano comum continua a piorar, e melhora
vagarosamente em comparação às pessoas de outros países ricos, e em alguns
anos a expectativa de vida, na verdade, diminuirá. Os inventores norte-
americanos engendram novas formas incríveis de aprender, graças ao poder
do vídeo e da internet, muitos deles gratuitos, porém a média do último ano
do ensino médio demonstra que o nível de leitura hoje deixa mais a desejar
do que em 1992. O país teve um “renascimento culinário”, como afirmava
uma publicação, o mercado de produtos orgânicos e a Whole Foods
cresceram de uma vez só, mas não houve melhoras na alimentação da maioria
das pessoas, com a incidência de obesidade e condições relacionadas
aumentando ao longo do tempo. Ao que tudo indica, as ferramentas para se
tornar um empreendedor estão mais acessíveis do que nunca — para o aluno
que aprende a programar online ou para o motorista do Uber —, todavia, a
parcela de jovens que têm uma empresa desmoronou em dois terços desde a
década de 1980. Os Estados Unidos conceberam uma superloja de livros
online extremamente bem-sucedida chamada Amazon, e outra empresa, o
Google, digitalizou mais de 25 milhões de livros para uso público, mas o
analfabetismo ainda perdura de maneira tenaz, e a parcela dos norte-
americanos que lê, pelo menos, uma obra literária por ano diminuiu quase um
quarto nas últimas décadas. O governo tem mais dados à sua disposição e
mais formas de conversar e ouvir os cidadãos, entretanto somente um quarto
das pessoas o considera digno de confiança, como na tempestuosa década de
1960.
Uma sociedade próspera é uma máquina de progresso. Ela absorve a
matéria bruta das inovações e produz vasto desenvolvimento humano. A
máquina dos Estados Unidos está quebrada. Quando os frutos da mudança
despencaram sobre o país nas últimas décadas, os poucos afortunados
colheram quase todos eles. Por exemplo, a renda média antes da tributação de
impostos de 10% da camada superior dos norte-americanos dobrou desde
1980; a renda de 1% dessa camada mais do que triplicou; e a renda de
0,001% dessa camada superior aumentou mais de sete vezes — ainda que a
renda média antes da tributação de metade da camada inferior dos norte-
americanos tenha permanecido praticamente a mesma. Esses cálculos
conhecidos equivalem a três décadas e meia de mudanças dignas de
assombro, com impacto zero na média salarial de 117 milhões de norte-
americanos. Nesse meio-tempo, a oportunidade de prosperar fora
transformada de uma realidade compartilhada em um privilégio de já estar
prosperando. Entre os norte-americanos nascidos em 1940, os que cresciam
na camada superior da classe média alta e na camada inferior da classe média
baixa tinham cerca de 90% de chance de concretizar o chamado sonho
americano de ter melhores condições que seus pais. Entre os norte-
americanos nascidos em 1984 e que estão hoje na idade adulta, a nova
realidade é bipartida. Aqueles que crescem perto da camada superior da
escala de rendimentos agora têm 70% de chance de concretizar o sonho.
Enquanto isso, os que estão na camada inferior, com mais dificuldades de
alcançar tal escala de rendimento, têm 35% de chance de superar as
condições de seus pais. E não é somente o progresso e o dinheiro que os
privilegiados monopolizam: os homens norte-americanos ricos, que tendem a
viver mais do que os cidadãos comuns de qualquer outro país, agora vivem
15 anos a mais que os homens norte-americanos pobres, que subsistem
apenas como os homens no Sudão e no Paquistão.
Assim sendo, muitos milhões de norte-americanos, tanto de esquerda como
de direita, compartilham de um sentimento: que o jogo é manipulado contra
eles. Talvez seja por esse motivo que ouvimos a reprovação contínua do
“sistema”, já que as pessoas esperam que esse sistema transforme os avanços
fortuitos em progresso social. Mas é o oposto; o sistema — nos Estados
Unidos e no mundo — fora estruturado com o intuito de desviar os ganhos da
inovação para o alto escalão, de modo que as fortunas dos bilionários do
mundo hoje em dia crescem mais do que o dobro, a um ritmo nunca visto
antes, e 10% da humanidade passou a reter 90% da riqueza do planeta. Não é
de admirar que os eleitores norte-americanos — como outros eleitores mundo
afora — tenham ficado mais ressentidos e desconfiados nos últimos anos,
vestindo a camisa de movimentos populistas de esquerda e de direita,
trazendo o socialismo e o nacionalismo para o palco da vida política de um
modo que antes parecia inimaginável, e cedendo a todo tipo de teoria da
conspiração e fake news. Existe um reconhecimento difundido, de ambos os
lados da segmentação ideológica, de que o sistema não funciona e precisa
mudar.
Algumas elites que enfrentavam esse tipo de levante de indignação se
escondiam atrás de muros e portões, e em estruturas fundiárias que os
privilegiavam, aparecendo somente para tentar tirar partido de mais poder
político, a fim de se protegerem da ralé. Mas, nos últimos anos, muitas
pessoas afortunadas também tentaram outra coisa, digna de louvor, mas
também egoísta: tentaram ajudar se apossando do problema.
À nossa volta, os vencedores, em nosso status quo extremamente injusto, se
proclamam partidários da mudança. Eles conhecem o problema e querem
fazer parte da solução. Na realidade, querem liderar a busca de soluções. Eles
acreditam que suas soluções merecem estar na vanguarda da mudança social.
Eles podem se associar ou apoiar movimentos iniciados pela gente comum
que procura resolver as questões de sua sociedade. Na maioria das vezes, no
entanto, essas elites começam iniciativas próprias, assenhorando-se das
mudanças sociais como se fossem apenas mais uma ação em seus portfólios
ou uma corporação para reestruturar. Por serem responsáveis por essas
tentativas de mudança social, elas naturalmente espelham seus vieses.
As iniciativas geralmente não são democráticas, nem refletem as soluções
de resolução de problemas coletivas ou universais. Ao contrário, elas
favorecem o uso do setor privado e seus despojos de caridade, o modo do
mercado de enxergar as coisas, ao se esquivarem do governo. Elas retratam
uma posição bastante influente de que os vencedores de um status quo
injusto, e as ferramentas, mentalidades e valores que os ajudaram a vencer
são o segredo para reparar as injustiças. Aqueles com maior risco de serem
alvos de indignação em uma era de desigualdade são, desse modo,
remodelados como nossos salvadores desta mesma era. Os investidores com
consciência social da Goldman Sachs procuram mudar o mundo por meio de
iniciativas “em que todos saem ganhando”, como “títulos verdes” e
“investimento de impacto”. As empresas de tecnologia como Uber e Airbnb
se propõem a delegar mais poderes aos pobres, ao possibilitar que
transportem as pessoas aos lugares ou aluguem quartos vagos. Os consultores
administrativos e os gênios de Wall Street procuram convencer o setor social
de que devem nortear sua busca por maior igualdade assumindo lugares nos
conselhos administrativos e em posições de liderança. Conferências e
festivais de ideias patrocinados por plutocratas e grandes empresas realizam
painéis sobre injustiça e promovem “líderes de pensamento” dispostos a
limitar suas ideias para melhorar as vidas dentro do sistema deficiente, em
vez de enfrentar as deficiências. Empresas rentáveis idealizadas de formas
duvidosas e empregando meios negligentes se envolvem em responsabilidade
social corporativa, e alguns ricaços ficam sob os holofotes ao “retribuir” — a
despeito do fato de poderem ter causado graves problemas sociais à medida
que construíam suas fortunas. As plataformas da rede da elite, como o Aspen
Institute e a Clinton Global Initiative, preparam os ricos para serem
autoproclamados líderes da mudança social, enfrentando os problemas que
pessoas como eles têm sido determinantes em criar ou preservar. Nasceu uma
nova geração de empresas chamadas B, orientadas à comunidade, espelhando
a crença de que o interesse corporativo flexível — em vez de, digamos, a
regulamentação pública — é a garantia mais segura do bem-estar social.
Alguns bilionários do Vale do Silício custeiam uma iniciativa para repensar o
Partido Democrata, e um deles alega, sem ironia, que seus objetivos são
divulgar as vozes dos desfavorecidos e reduzir a influência política de
pessoas abastadas como eles.
As elites por trás de tentativas como essas costumam usar palavras como
“mudar o mundo” e “fazer do mundo um lugar melhor”, expressões
comumente relacionadas a barricadas, não a estações de esqui. No entanto,
não podemos fugir ao fato de que, na mesma época em que essas elites
fizeram tanto para ajudar, elas continuaram a acumular uma parcela
arrebatadora do progresso, a vida do cidadão norte-americano comum
melhorou muito pouco, e praticamente todas as instituições da nação, com
exceção das Forças Armadas, perderam a confiança do público.
Estamos prontos para entregar de mãos beijadas nosso futuro à elite, a uma
iniciativa que, supostamente, mudará o mundo de uma vez só? Estamos
prontos para admitir que a democracia participativa é um fracasso e decretar
outras formas privadas de realizar mudanças, que abrem um novo caminho
rumo ao progresso? A condição decrépita do autogoverno norte-americano é
uma desculpa para usar subterfúgios e deixá-lo atrofiar ainda mais? Ou é uma
democracia significativa, na qual todos temos voz, pela qual vale a pena
lutar?
Não se pode negar que a elite de hoje talvez esteja entre as mais envolvidas
socialmente da história. Mas também é, pela fria lógica dos números, uma
das mais devastadoras da história. Ao se recusar a comprometer seu modo de
vida, ao rejeitar a ideia de que os poderosos podem se sacrificar pelo bem da
coletividade, a elite se agarra com unhas e dentes a um conjunto de arranjos
sociais que lhe permite monopolizar o progresso e, então, distribuir migalhas
simbólicas aos desvalidos — muitos dos quais sequer precisariam dessas
migalhas caso a sociedade estivesse funcionando de modo justo. Este livro é
uma tentativa de compreender a relação entre a preocupação social e a
exploração por parte dessas elites; entre a ajuda extraordinária e o acúmulo
extraordinário; entre um status quo injusto que surrupia ao máximo — e
talvez seja cúmplice — e as tentativas dos surrupiadores de reparar uma
pequena parte disso. É também uma tentativa de mostrar como a elite enxerga
o mundo, a fim de que possamos avaliar melhor os méritos e as limitações de
suas campanhas para mudar o mundo.
Existem diversos modos de se compreender toda essa preocupação e
exploração da elite. Um deles é que as elites estão fazendo o melhor que
podem. O mundo é o que é; o sistema é o que é; as forças deste século são
maiores do que qualquer um pode resistir; os mais afortunados estão
ajudando. Essa perspectiva viabiliza que esse auxílio seja apenas uma gota no
oceano, mas já é alguma coisa. A perspectiva um pouco mais crítica é que
essa mudança encabeçada pela elite é bem-intencionada, porém insuficiente.
Ela trata os sintomas, não arranca o mal pela raiz; não muda os princípios
básicos que nos afligem. Segundo essa perspectiva, as elites estão se
eximindo do dever de uma restruturação mais significativa.
Mas ainda há outro modo, mais sombrio, de avaliar o que acontece quando
as elites se colocam na vanguarda da mudança social: que elas não somente
deixam a desejar em melhorar as coisas, como também servem para
conservar as coisas como estão. Afinal de contas, é preciso amenizar a
indignação pública devido à exclusão do progresso. Isso melhora a imagem
dos vencedores. Com suas medidas precárias, privadas e voluntárias, elas
desencorajam as soluções públicas que resolveriam os problemas para todo
mundo, e o fariam com ou sem o aval da elite. Não há dúvida de que a
expansão das mudanças sociais lideradas pelas elites em nossa época faz
muito bem, alivia a dor e salva vidas. Mas também devemos nos lembrar das
palavras de Oscar Wilde sobre o auxílio de tal elite “não ser uma solução”,
mas “um agravamento da dificuldade”. Mais de um século atrás, em um
tempo de frenesi como o nosso, ele escreveu: “Os piores senhores eram os
que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim
impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e
compreendido pelos que o contemplavam. Da mesma forma, nas atuais
circunstâncias na Inglaterra, os que mais dano causam são os que mais
procuram fazer o bem.”
A conclusão de Wilde pode parecer radical aos ouvidos contemporâneos.
Como pode existir algo errado em tentar praticar o bem? A resposta pode ser:
quando o bem é conivente com um, ainda que invisível, mal maior. Em nossa
época, esse mal é a concentração de renda e poder nas mãos de poucos, que
colhem desse acúmulo quase um monopólio dos frutos da mudança. E as
boas ações que as elites perseguem costumam não somente preservar essa
concentração, mas ampará-la. Porque, quando as elites assumem a liderança
da mudança social, elas são capazes de ressignificar o que é essa mudança —
e, sobretudo, apresentá-la como algo que nunca ameace os vencedores. Em
uma era caracterizada pelo abismo entre quem tem poder e quem não tem, as
elites disseminaram a ideia de que as pessoas devem ser ajudadas, mas
apenas de modos favoráveis ao mercado, que não perturbem as equações
elementares de poder. A sociedade deve ser mudada de uma forma que não
mude o sistema econômico latente, que possibilitou aos vencedores triunfar e
fomentar muitos dos problemas que procuram solucionar. A fidelidade a esse
preceito ajuda a entender o que observamos ao redor: a luta poderosa para
“mudar o mundo” de formas que basicamente o mantêm do mesmo jeito, e
“retribuir” de maneiras que sustentam uma distribuição indefensável de
influência, recursos e ferramentas. Existe uma forma melhor do que essa?
O secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), uma instituição de pesquisa e política que trabalha em
nome dos países mais ricos do mundo, recentemente comparou a postura da
elite dominante à do personagem italiano Tancredi Falconeri, um aristocrata
que declarou: “Se queremos que as coisas permaneçam como estão, as coisas
terão que mudar.” Caso essa perspectiva esteja correta, grande parte da
inovação social, da caridade e do marketing de retribuição ao nosso redor
talvez não sejam medidas de restruturação, e sim meios de autodefesa
conservadores — medidas que protegem as elites de mudanças mais
alarmantes. Entre os tipos de problemas que estão sendo relegados a segundo
plano, o líder da OCDE, Ángel Gurría, destaca “as desigualdades crescentes
de renda, riqueza e oportunidades; o aumento da incoerência entre as finanças
e a economia real; a divergência crescente nos níveis de produtividade entre
trabalhadores, empresas e regiões; a dinâmica de os vencedores saírem
ganhando em muitos mercados; a progressão limitada de nossos sistemas
tributários; a corrupção e a apropriação de políticas e instituições para
interesses particulares; a falta de transparência e de participação dos cidadãos
comuns na tomada de decisões; a integridade da educação e dos valores que
transmitimos às gerações futuras”. As elites, escreve Gurría, encontraram
uma infinidade de modos de “mudar as coisas superficialmente, para que, na
prática, nada mude”. As pessoas que têm mais a perder com a verdadeira
mudança social se colocam à frente da mudança social, geralmente com o
consentimento passivo dos mais necessitados.
Faz todo o sentido que uma época caracterizada por essas tendências
culmine na eleição de Donald Trump, que é, ao mesmo tempo, uma pessoa
que expõe, explora e personifica o culto à mudança social encabeçada pela
elite. Ele aproveitou, como poucos antes dele, uma intuição vulgarizada de
que as elites alegavam falsamente estar fazendo o que era melhor para a
maioria dos norte-americanos. Ele explorou essa intuição convertendo-a em
raiva desenfreada e, em seguida, direcionando a maior parte dessa raiva não
para as elites, e sim para os norte-americanos mais marginalizados e
vulneráveis. E Trump veio para encarnar a própria falcatrua que alimentou
sua ascensão e que ele havia explorado. Ele se tornou, como as elites que
atacou, o homem do establishment que se apresenta perfidamente como
rejeitado. Ele se tornou o homem rico e educado que se considera o mais
capaz de proteger os pobres e os sem instrução — e que insiste, contra todas
as evidências, que seus interesses nada têm a ver com a mudança que busca.
Ele se tornou o principal vendedor da teoria, predominante entre agentes da
mudança plutocratas, de que o que é melhor para os poderosos é o melhor
para quem não tem poder nenhum. Trump é o reductio ad absurdum de uma
cultura que delega às elites a restruturação dos próprios sistemas que elas
criaram e que excluíram todos os demais.
Uma coisa que une quem votou em Trump e aqueles que se desesperaram
com a sua eleição é o sentimento de que o país requer uma reestruturação
transformacional. Somos confrontados por uma questão: se as elites
abastadas, que já ditam as regras do jogo na economia e exercem uma
influência gigantesca nos corredores do poder político, devem ter a permissão
de continuar com seu apoderamento da mudança social e a da busca por
maior igualdade. A única coisa melhor do que controlar dinheiro e poder é
controlar as tentativas de se questionar a distribuição de dinheiro e poder. A
única coisa melhor do que ser uma raposa é ser uma raposa convidada a
cuidar das galinhas.
O que está em jogo é se a restruturação de nossa vida comum é liderada por
governos eleitos que têm que prestar contas ao povo ou por elites ricas que
alegam conhecer nossos melhores interesses. Devemos decidir se, em nome
de valores em ascensão, como rendimento e escala, estamos dispostos a
permitir que o sentido democrático seja usurpado por atores privados que,
muitas vezes, almejam melhorar as coisas de verdade, contudo, antes de mais
nada, procuram se proteger. Sim, o governo está desestruturado no momento.
Todavia, essa é mais uma razão para tratar sua reabilitação como nossa
imperiosa prioridade nacional. Buscar soluções alternativas para a nossa
democracia conturbada faz a democracia ficar ainda mais conturbada.
Devemos nos perguntar por que perdemos a confiança tão facilmente nas
engrenagens do progresso que nos levaram aonde estamos hoje — nos
movimentos democráticos com o intuito de banir a escravidão; acabar com o
trabalho infantil; restringir a jornada de trabalho; garantir a segurança dos
medicamentos; proteger o dissídio coletivo; criar escolas públicas; levar
eletricidade às zonas rurais norte-americanas; conectar uma nação por meio
das rodovias; adotar o Great Society [programa do presidente Lyndon B.
Johnson] para acabar com a pobreza; estender os direitos civis e políticos a
mulheres e afro-americanos, e outras minorias; disponibilizar assistência
média, segurança e proteção aos nossos compatriotas, e dignidade na velhice.
Este livro apresenta uma série de retratos dessa mudança social liderada
pela elite, favorável ao mercado e que mantém o vencedor intacto. Nestas
páginas, você encontrará pessoas que acreditam piamente nessa forma de
mudança e pessoas que estão começando a questioná-la. Você conhecerá uma
funcionária de startup que acredita que sua empresa com fins lucrativos tem a
solução para os infortúnios dos trabalhadores pobres, e um investidor
bilionário dessa empresa que acredita que somente uma ação pública enérgica
pode estancar a maré crescente de ódio público. Encontrará uma pensadora
que tenta equilibrar o impasse de até que ponto ela pode contestar os ricos e
poderosos caso queira continuar recebendo convites e patrocínios. Conhecerá
um ativista pela igualdade econômica que trabalhou para Goldman Sachs e
McKinsey, e que se questiona sobre sua cumplicidade no que ele chama de
“A Tentativa de Solucionar o Problema com as Ferramentas que o
Provocaram”. Encontrará uma das figuras mais poderosas do mundo
filantrópico, que escandaliza seus admiradores abastados ao se recusar a
honrar a proibição de falar como eles ganham dinheiro. Você verá um ex-
presidente norte-americano que lançou sua carreira acreditando em mudar o
mundo por intermédio da atuação política e então, quando começou a passar
tempo com plutocratas em sua vida pós-presidencial, foi atraído na direção
dos métodos privados de mudança que os beneficiam, em vez de combatê-
los. Você conhecerá um “inovador social” bastante idolatrado, que
discretamente alimenta dúvidas sobre se sua abordagem comercial para
mudar o mundo é tão boa quanto dizem. Conhecerá um filósofo italiano que
nos lembra do que é deixado de lado quando os arquimilionários assumem a
mudança.
O que esses diversos personagens têm em comum é o fato de combaterem
certos mitos poderosos — os mitos que fomentaram uma era de
extraordinária concentração de poder; que concederam que as ações privadas,
parciais e de instinto de sobrevivência da elite passassem por mudanças reais;
que permitiram que muitos vencedores íntegros convencessem a si mesmos, e
a grande parte do mundo, de que seu plano de “ser bem-sucedidos ao praticar
o bem” é uma resposta satisfatória a uma era de exclusão; que colocam um
verniz de altruísmo na proteção de seus privilégios; e que desdenham as
mudanças mais significativas como ingênuas, radicais e vagas.
Minha esperança ao escrever o que se segue é revelar que esses mitos são
exatamente isso. Muito do que aparenta ser uma reestruturação em nossos
dias é, de fato, a defesa de uma estagnação. Quando não nos deixamos
enganar pelos mitos que promovem essa visão equivocada, o caminho para a
verdadeira mudança surge à nossa frente. Mais uma vez, será possível
melhorar o mundo sem o consentimento dos poderosos.
CAPÍTULO 1
MAS COMO O MUNDO MUDOU?

om a mente universitária abarrotada de ensinamentos aristotélicos e do


C banco Goldman Sachs, Hilary Cohen sabia que queria mudar o mundo.
No entanto, ela se debatia com uma questão que atormentava todos à sua
volta: como o mundo deveria ser mudado?
Em 2014, começava o seu último ano na Universidade de Georgetown. Ela
tinha que decidir o que faria a seguir. Deveria ser consultora administrativa?
Ser rabina? Seguir em frente e ajudar as pessoas, trabalhando em uma
organização sem fins lucrativos? Ou deveria, primeiro, aprender as
ferramentas de negócios? Ela captara a mensagem hegemônica, quase
impreterível para o estudante universitário norte-americano de elite, de que
essas ferramentas eram essenciais para servir aos outros. O melhor modo de
concretizar uma reforma significativa era colaborar nas profundezas do status
quo.
Seu interesse em mudar o mundo, embora fosse comum em sua geração,
não era óbvio, dada sua origem. Ela cresceu em Houston, em uma família
amorosa e muito unida, abastada e assinante do Wall Street Journal, com
uma mãe engajada em voluntariado na área de saúde mental e na comunidade
judaica, e um pai que trabalhava na área financeira (apólices municipais, bens
imóveis). Além das atividades parentais corriqueiras, como treinar as equipes
esportivas das quais a filha fazia parte, ele a instruiu na análise de
investimentos. Ele a fazia perambular pelo shopping quando era garotinha,
anotando quais lojas tinham as maiores filas. Às vezes, comprava ações com
base nos comentários da filha, e, quando as ações subiam, se desdobrava para
elogiá-la. A carreira profissional de seu pai bancou as despesas de Cohen, da
pré-escola até a conclusão do ensino médio, na Kinkaid School, em Houston,
instituição preparatória cujo alicerce é a filosofia de educar “a criança como
um todo” e do “desenvolvimento equilibrado — intelectual, físico, social e
ético”. Seu pai a deixava lá quase todas as manhãs, dizendo-lhe que
“aprendesse algo novo”. Como ocorre com muitos estudantes dessas escolas,
havia uma chance considerável de que ela desfrutasse de ideais inspiradores,
cumprisse as exigências de atender à comunidade e conseguisse um emprego
administrativo bem-remunerado igual ao de seu pai.
Mas Cohen também se interessava por política e administração pública
desde que se entendia por gente. Ela vivia dizendo que “trabalhou em todas
as posições governamentais estudantis que você pode imaginar a partir da
terceira série”. Nutria sonhos de infância de uma campanha presidencial de
“Hilary Cohen em 2032”— sonhos apoiados virtualmente por um grupo do
Facebook, e até fisicamente, por camisetas. No ensino médio, ela fez parte de
um Conselho para Juventude, do prefeito de Houston; fez um curso de verão
em Harvard chamado “Congress: Policy, Parties, and Institutions”
[Congresso: Política, Partidos e Instituições, em tradução livre]; e estagiou
em Capitol Hill. Acabou regressando a Washington para frequentar a
universidade em Georgetown, onde parecia se desviar de uma trajetória como
a de seu pai, rumo a outros horizontes.
Cohen chegara com um interesse quase por osmose em finanças, obcecada
por política, e com uma vaga propensão a se estabelecer em matemática, em
alguma ciência ou em algum outro campo de estudo difícil. Mas, quando se
deu conta, estava mudando. Ela não era a primeira estudante universitária a
ser apanhada de surpresa pelo idealismo em meio a edifícios antigos em
pedra e pátios verdejantes. Ela participou de um seminário voltado para
calouros sobre educação e, lá, leu o livro Ética a Nicômaco, de Aristóteles.
Cohen afirma que o livro “me influenciou muito e provavelmente desviou
meu rumo na universidade e, depois, na vida”.
A leitura de Ética a Nicômaco refutava muitas das ideias preconcebidas a
respeito dos propósitos da vida que ela assimilara ao crescer em um bairro
rico em Houston, aprendendo, desde tenra idade, com um investidor e sendo
instruída por uma escola preparatória para atingir as fileiras altamente seletas
da Universidade de Georgetown. “Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma
vida forçada”, diz Aristóteles, “e a riqueza não é evidentemente o bem que
procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra
coisa”. Isso permaneceu com ela, como um chamado a fim de se buscar um
propósito maior que o material. “Ele percorre todas as coisas que você pode
confundir com o propósito de sua vida”, relata Cohen. Glória. Dinheiro
Honra. Fama. “E ele basicamente enumera as razões pelas quais, no final das
contas, essas coisas nunca o preencherão”. O único bem genuinamente
definitivo é a “prosperidade”.
A disciplina estimulou Cohen a ingressar em um mestrado de filosofia. Ela
também fez aulas de psicologia, teologia e ciências cognitivas, porque queria
compreender como as pessoas lidavam com esses dilemas milenares sobre a
melhor forma de se viver. À medida que avançava em sua formação, decidiu
que queria investigar essa ideia de prosperidade em prol dos outros. Como
muitos de seus colegas, ela queria ser uma agente da mudança positiva. Se
esse era o desejo generalizado em sua turma, talvez fosse porque eles eram
constantemente lembrados de estarem entre os afortunados em uma sociedade
cada vez menos benevolente com os desafortunados.
Nos anos de Cohen na Universidade de Georgetown, a partir de 2010, a ira
causada pela desigualdade e por um sonho americano aparentemente
inatingível ainda chegaria ao ápice. Mas já não havia escapatória. O país
ainda se arrastava com dificuldade, voltando à vida após a Grande Recessão.
O cenário universitário em Washington deixou nítida a gentrificação que,
desde o nascimento de Cohen, havia reduzido pela metade a população negra
nas redondezas de Ward Two — fato divulgado pelos alunos no The Hoya, o
jornal do campus. Dois meses depois de Cohen se matricular, e de uma forma
muito diferente, o Tea Party [Partido do Chá, ala ultraconservadora da direita
norte-americana] obteve uma vitória significativa nas eleições parlamentares
de 2010. “Eles simplesmente não pareciam mais se importar com os
trabalhadores”, afirmaram as pesquisadoras Vanessa Williamson e Theda
Skocpol, citando uma membro do Tea Party chamada Beverly em uma
análise aprofundada do movimento, publicada na primavera do primeiro ano
de Cohen na Georgetown.
O movimento Occupy teve início nas primeiras semanas do segundo ano
universitário de Cohen. Graças, em parte, ao seu alvoroço, as buscas por
“desigualdade” no Google mais que dobraram entre os norte-americanos
durante a carreira universitária de Cohen, e as buscas por “1%” mais que
triplicariam. Na primavera de seu primeiro ano na universidade, um novo
papa foi eleito — um jesuíta, tal como os líderes da Universidade de
Georgetown. O Papa Francisco logo apelou para que a pobreza fosse
“drasticamente solucionada, repudiando a autonomia absoluta dos mercados e
a especulação financeira, e atacando as raízes estruturais da desigualdade”,
que ele chamou de “a raiz dos males sociais”. O jornal The Hoya constatou
que as palavras ecoadas em Roma estavam repercutindo no campus. Um
padre jesuíta e professor de ciência política chamado Matthew Carnes, com
quem Cohen em breve trabalharia em um projeto filantrópico, afirmou ao
jornal que os velhos críticos da desigualdade no campus se sentiam
“legitimados” pelo papa. E no verão antes do último ano de Cohen, o
movimento Black Lives Matter nasceu, cativando muitos de seus colegas
rumo a uma das críticas mais ferrenhas à desigualdade que já se viu na
história moderna norte-americana. À medida que a graduação de Cohen se
aproximava, um economista francês pouco conhecido chamado Thomas
Piketty publicou o inesperado best-seller O Capital no Século XXI — um
ataque de quase 1 quilo e 672 páginas à desigualdade.
Mais tarde, Piketty e colaboradores publicaram um trabalho que abarcaria
um fato impressionante sobre 2014, ano da formatura de Cohen e de sua
estreia na independência financeira. O estudo mostrava que alguém com
graduação universitária, como Cohen — partindo do pressuposto confiável de
que ela acabaria ficando entre os 10% melhores —, ganharia, antes de
descontados os impostos, mais que o dobro do que uma pessoa em posição
semelhante em 1980. Se Cohen ingressasse no rol de 1% dos abastados, sua
renda seria mais que o triplo do que o 1% recebia na época de seus pais —
uma média de US$1,3 milhão por ano para esse grupo de elite, em
comparação aos US$428 mil em 1980, ajustados pela inflação. Caso ela
tivesse a ínfima chance de entrar no rol dos 0,001%, sua renda seria mais de
sete vezes maior do que em 1980, com uma média de grupo de US$122
milhões. O estudo contempla o fato impressionante de que a metade da
camada com poder aquisitivo inferior dos norte-americanos teve, no mesmo
período, um aumento da renda média bruta de US$16.000 para US$16.200.
Dito de outro modo, 117 milhões de pessoas foram “totalmente impedidas de
participar do crescimento econômico desde a década de 1970”, escreveram
Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman. Uma geração digna de inovações
vertiginosas não proporcionou quase nada de progresso para metade dos
norte-americanos.
As realidades de um país dividido faziam parte da atmosfera em que Cohen
tomaria as decisões a respeito de seu futuro. A frase que melhor traduzia seus
anseios era, segundo ela, uma das mais comuns nos corredores de
Georgetown: “Mudar a vida de milhões de pessoas.” Ela falava do desejo
generalizado de trabalhar com os problemas sociais em uma época na qual
problemas não faltavam. E dava os indícios de como esse desejo havia sido
influenciado pelas instituições e costumes do capitalismo de mercado.
Cohen explicou que, quando ela e suas amigas idealizavam melhorar o
mundo para outrem, elas o faziam segundo o éthos condizente com a época
em que atingissem certa maturidade. É uma época em que o capitalismo não
tem oponente ideológico de calibre e influência semelhantes, e na qual é
difícil fugir do vocabulário, dos valores e das premissas do mercado, mesmo
quando se pensa em um assunto como a mudança social. Organizações
socialistas deram lugar a organizações de empreendedorismo social nos
campi norte-americanos. Os estudantes também foram influenciados pelos
mandamentos do mundo dos negócios, difundidos por meio de propagandas e
palestras do TED, e de livros dos denominados líderes de pensamento, para
realizar seja lá o que for “em escala”, que é de onde veio a tal coisa de
“milhões de pessoas”. É uma época, além do mais, que tem dito
inexoravelmente aos jovens que eles podem “ser bem-sucedidos ao praticar o
bem”. Desse modo, quando Cohen e suas amigas buscavam fazer a diferença,
suas estratégias se tratavam menos do que queriam desmantelar ou contestar
e mais sobre os empreendimentos que queriam iniciar, disse ela. Muitas delas
acreditavam que havia mais potência em desenvolver o que era bom do que
em confrontar o que era ruim.
Uma geração anterior, quando seus pais falavam em “mudar o
mundo”, muitas pessoas tendiam a adotar esse pensamento com um
linguajar de enfrentar o “sistema”, os “poderes instituídos”, as
“autoridades”. Nas décadas de 1960 e 1970, a Universidade de
Georgetown tinha sido um dentre os campi mais conservadores,
graças em parte aos seus alicerces religiosos. No entanto, estava
repleta de aspirantes a transformar o mundo, que protestaram
contra a Guerra do Vietnã e levantavam questões sobre o sistema, e
que se uniram a grupos como o Radical Union, que em 1970
divulgou uma carta exortando a todos para que lessem as citações
do presidente Mao. “Apenas cerca de um quarto do campus é
moderno — eles vestem trapos”, declarava o livro de Susan
Berman de 1971, The Underground Guide to the College of Your
Choice [“O Guia do Submundo para Escolher Sua Universidade”,
em tradução livre]. “Mas as coisas estão progredindo, visto que, há
três anos, alguns rapazes ainda vestiam casacos esportivos e
gravatas para as aulas.”
Um desses rapazes foi Bill Clinton, que se matriculou em Georgetown em
1964 e ao regressar no segundo ano descobriu, para seu alívio, que a
exigência de camisa e gravata havia sido descartada. O futuro presidente não
se considerava radical, embora na época ele mencionara a um entrevistador,
Maurice Moore, que tinha muitos amigos “que possivelmente seriam
classificados como hippies ou membros da geração off-beat”. Clinton teve o
cuidado de se distanciar do que chamou de “negativismo pouco saudável” do
movimento hippie. Contudo, seu próprio caminho alternativo ilustrava como
os jovens que queriam mudar as coisas naquele tempo pensavam suas opções.
Ele disse a Moore que estava considerando um doutorado ou uma faculdade
de direito e, depois disso, “política interna — campanha eleitoral ou alguma
etapa dela”. Clinton ficou extasiado com as iniciativas impetuosas do
presidente Lyndon Johnson voltadas para os direitos civis e a pobreza, e
acreditava no que não era inusitado acreditar naquela época: que, se você
fosse sincero sobre mudar o mundo, arregaçaria as mangas e trabalharia nos
sistemas cujas raízes são os problemas de sua sociedade.
Nos anos seguintes, porém, a Universidade de Georgetown, os
Estados Unidos e o mundo como um todo, foram dominados por
uma ideologia em ascensão sobre a melhor forma de mudar o
mundo. Essa ideologia é frequentemente chamada de
neoliberalismo, e é, segundo a definição do antropólogo David
Harvey, “uma teoria das práticas político-econômicas que propõe
que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se
as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito
de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à
propriedade privada, livres mercados e livre comércio”. O rumo
tomado pela teoria, “a desregulação, a privatização e a retirada do
Estado de muitas áreas do bem-estar social” tendem a seguir,
escreve Harvey. “Embora a liberdade pessoal e individual no
mercado seja garantida, cada indivíduo é julgado responsável por
suas próprias ações e por seu próprio bem-estar, do mesmo modo
como deve responder por eles. Esse princípio é aplicado aos
domínios do bem-estar social, da educação, da assistência à saúde e
até aos regimes previdenciários.” O filósofo político Yascha
Mounk interpreta as consequências culturais dessa ideologia
quando afirma que ela inaugurou uma nova “era de
responsabilidade”, na qual “a responsabilidade — que outrora
significava o dever moral de ajudar o próximo e o apoio mútuo —
veio para propor uma obrigação de ser autossuficiente”.
Os pais fundadores dessa revolução eram figuras políticas de direita, como
Ronald Reagan e Margaret Thatcher, que ascenderam ao poder maculando o
papel do governo. Reagan declarou que “o governo não é a solução para os
nossos problemas; o governo é o problema”. Dois séculos antes, os pais
fundadores de seu país tinham criado um governo constitucional com o
intuito de “formar uma união mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a
tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e
garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade”.
Agora, o instrumento que criaram — um instrumento que ajudara a tornar os
Estados Unidos uma das sociedades mais bem-sucedidas da história — foi
declarado inimigo de todos esses ideais. Do outro lado do Atlântico, Thatcher
espelhava Reagan, dizendo: “Não existe essa coisa de sociedade. Existem
homens e mulheres, individualmente, e existem famílias. E nenhum governo
pode fazer nada exceto por intermédio das pessoas, e as pessoas devem olhar
para si mesmas primeiro.” O que a revolução deles representou na prática,
nos Estados Unidos e em outros lugares, foram impostos mais baixos,
regulamentação escassa e uma redução esmagadora dos gastos públicos em
escolas, reciclagem profissional, parques e bens comuns em geral.
No entanto, a direita política não conseguiria efetivar sozinha a sua
revolução. É nesse ponto que entra a necessidade de uma oposição leal.
Desse modo, os neoliberais alimentaram na metade esquerda do espectro
político norte-americano um grupo com o qual podiam trabalhar. Essa
subcasta liberal preservaria os objetivos tradicionais da esquerda de melhorar
o mundo e ajudar os mais desfavorecidos, mas os perseguiria, cada vez mais,
de maneiras favoráveis ao mercado. Bill Clinton se tornaria o pater familias
desse grupo, com sua pretensa terceira via, entre a esquerda e a direita, e sua
célebre declaração de que “a era do governo grande acabou”, considerada
histórica desde que fora proferida em 1996.
A evolução de Clinton, de vestir a camisa do ativismo do governo grande de
Johnson nos anos 1960 até declarar seu fim na década de 1990, anunciava
uma transformação cultural cujos efeitos eram perceptíveis na Universidade
de Georgetown, que Cohen constataria no início de 2010. Quando ela e seus
colegas foram estimulados pelo desejo de mudar as coisas, suas próprias
ideias e os recursos disponíveis costumavam direcioná-los para o mercado, e
não para o governo, como se nele os problemas fossem mais bem
solucionados. O impulso secular da juventude de reinterpretar o mundo era
agora moldado e orientado por uma das ideias preponderantes da época: se
você realmente quer mudar o mundo, deve recorrer às técnicas, aos recursos e
ao efetivo do capitalismo. Em 2011, por exemplo, a Universidade de
Georgetown se viu com a quantia de US$1,5 milhão destinada a atividades
estudantis que a administração não queria mais gerenciar. Isso possibilitou
que os alunos votassem em como usar o dinheiro. Entre as muitas propostas,
eles escolheram uma a fim de criar um “fundo administrado pelos estudantes
que investiria em ideias inovadoras de universitários e ex-alunos que
praticassem o bem no mundo”. Cohen entrou para este Social Innovation and
Public Service Fund [Fundo de Inovação Social e Serviços Públicos, em
tradução livre], sendo uma dentre os dois estudantes do Conselho de
Curadoria. Ela atuou em conjunto com o executivo de private equity e outras
pessoas de negócios, além dos professores da Universidade de Georgetown.
Era uma iniciativa extremamente nobre e bem-intencionada, e falava de
quantos jovens haviam sido treinados para pensar em mudança em uma era
dominada por um consenso de mercado: algo que poderia ser alcançado tanto
pelo comitê de investimento quanto pela ação social e política.
Nas últimas décadas, os incentivadores de negócios têm feito um
trabalho excepcional de influenciar a vida no campus e desenvolver
programas elaborados com o intuito de atrair os estudantes. No
início da década de 1970, por exemplo, a Georgetown recebeu um
presente da família do finado George F. Baker, fundador do banco
que se tornaria o Citibank e doador benemérito da Harvard
Business School. Talvez fosse natural que a escola de negócios que
ele ajudara a criar tivesse um programa chamado Baker Scholars,
que reconhecia seus estudantes mais capazes. Porém foi ainda mais
inteligente criar um programa Baker Scholars na Universidade de
Georgetown, focado em estudantes de artes liberais, oferecendo-
lhes “uma oportunidade única” para “aprender sobre o mundo dos
negócios”.
Cohen inscreveu-se no programa, não tanto porque queria ser uma mulher
de negócios, mas porque estava começando a se convencer da ideia de que o
mundo dos negócios proporcionava uma formação polivalente e valiosa para
ser eficaz. Sua candidatura lhe conferiu uma entrevista, que acabou sendo um
interrogatório por parte dos curadores que, “em sua maioria, eram pessoas
que faziam parte ou tinham sido da área de finanças/consultoria”, lembrou
ela. Quando solicitaram que demonstrasse seu interesse nos negócios, Cohen
mencionou a pesquisa que fizera no shopping para o pai. As questões da
entrevista, disse ela, retratavam os antagonismos entre as velhas perspectivas
de mudar o mundo, as tradições jesuítas da Universidade de Georgetown e os
valores dominantes do mercado. “Lembro-me de me pedirem no mesmo dia
para avaliar o dilema sobre se o lucro deve prevalecer em caso de conflito
com os padrões éticos, descrever como eu cumpriria o ideal jesuíta de
‘formar mulheres e homens para os outros’ e apresentar uma articulação clara
da minha ‘marca pessoal’ em duas frases ou menos”, disse ela.
As respostas de Cohen lhe renderam a vaga como Baker Scholar, e
por meio do programa ela foi levada a um tour no mundo dos
negócios, do tipo raramente disponível para pessoas interessadas
em, digamos, assistência jurídica. O programa organizava reuniões
frequentes no campus e a enviou para outras cidades, onde ela
visitou empresas como Kiva, DoSomething, Kind e NASCAR, bem
como empresas de consultoria, de serviços financeiros e
companhias de mídia e tecnologia.
Até quando o programa promovia estudantes de artes liberais para a área de
negócios, um de seus curadores se empenhava discretamente para passar a
mensagem contrária. Ele era um jesuíta chamado Kevin O’Brien e havia sido
um Baker Scholar na década de 1980, o que ajudou a prepará-lo para uma
carreira em direito empresarial. Depois, ele deixou esse mundo e ingressou
no sacerdócio. Ele recebia nove Baker Scholars da turma de Cohen para
jantares regulares. “Como tinha experiência e desistiu do mundo de que a
maioria de nós estava prestes a fazer parte, ele gentilmente fazia questões que
acabavam sendo muito mais estimulantes que aquelas feitas pelos curadores
mais sisudos”, disse ela. “Ele nos desafiava a pensar sobre nossa vocação
mais vezes e sobre sermos pagos na ‘moeda de nossa alma’.”
O estilo de aconselhamento de Padre O’Brien enfrentava a força colossal
dos recrutadores corporativos no campus — a começar pelos “vendedores
ambulantes” de estágios. Em uma cultura de priorização da carreira que
dominava muitas das principais universidades, os verões produtivos que
expõem um aluno a profissões em potencial se tornaram a preparação crucial
para muitos estudantes ambiciosos. Cohen correu atrás desses estágios. Ela
começou em 2010, estagiando no Capitol Hill, que muitos ao seu redor
consideravam um modo antiquado de aprender a fazer mudanças. Montar
empresas e buscar negócios com consciência social, como a Toms Shoes, ou
fundos de investimento de impacto eram coisas mais respeitadas em seus
círculos. Embora Cohen tivesse dificuldades com essa perspectiva, ela
também não a rejeitava. Após Capitol Hill, ela estagiou em uma empresa de
tecnologia educacional. Depois, no verão antes do último ano, quando o
movimento Black Lives Matter estava iniciando, ela acompanhou muitos
outros aspirantes a bons samaritanos em um trabalho de verão como analista
da Goldman Sachs.
Aparentemente essa é uma escolha improvável para alguém que
almeja ajudar as pessoas. Mas não era de todo inusitada em seus
círculos. Cohen dificilmente seria a primeira pessoa a ficar
impressionada com uma perspectiva frequentemente citada,
defendida por empresas como Goldman, de que as habilidades que
ensinam são uma preparação imperativa para exercer qualquer tipo
de mudança. As empresas de consultoria em gerenciamento e
companhias financeiras de Wall Street convenceram muitos jovens
nos últimos anos de que forneciam uma versão superior do que as
artes liberais costumam oferecer: treinamento extremamente
versátil para fazer o que você quiser no futuro. Eles também
diziam, de acordo com Cohen: “Para ser um líder no mundo, você
precisa desse conjunto de habilidades.”
Ela não se rendeu a essas ideias de uma só vez. Considerou empregos no
setor sem fins lucrativos, que haviam sido anunciados no campus ou online.
De alguma forma, porém, sentia que eram arriscados. Claro que estaria indo
ao encontro do que interessa, fazer a diferença, mas não estaria renunciando
ao desenvolvimento de habilidades e ao autoaperfeiçoamento oferecidos
pelas grandes empresas do setor privado? Algumas das ONGs que ela
examinou pareciam não ter plano de carreira para uma pessoa jovem,
nenhuma promessa de uma trajetória de responsabilidades e impacto
emergentes. Muitos desses lugares contratavam somente um ou dois
graduados por ano e esperavam que eles encontrassem o próprio caminho
com pouca estrutura, ao passo que as grandes empresas recrutavam turmas
inteiras para cargos de analistas de nível básico, referindo-se a eles como
“turmas”, jogando sutilmente com a nostalgia da época do dormitório
estudantil.
Cohen ainda era aristotélica; acreditava que o dinheiro não é o fim em si
mesmo que muitas pessoas acham que seja. Porém era um meio, e ela
assimilara a crença ao seu redor de que era preciso aprender com o dinheiro
para fazer do mundo um lugar melhor.
As grandes empresas faziam tudo o que podiam para representar o papel
não somente de ponto de partida para futuros agentes de mudança, mas
também de laboratórios para os agentes contemporâneos. Por exemplo, a
Goldman lançou uma iniciativa chamada 10.000 Mulheres, por meio da qual
investiu em mulheres empresárias e lhes prestou mentoria. Fazer isso, diziam
seus materiais de divulgação, era “um dos meios mais importantes para
reduzir a desigualdade e assegurar um crescimento econômico
compartilhado” — objetivos pelos quais a Goldman, aliás, não era muito
conhecida. Enquanto Cohen era analista na empresa, a Goldman também se
envolvera em um investimento experimental (e, em última instância,
condenado) de US$10 milhões em um programa prisional em Nova York. De
acordo com os termos de um novo instrumento financeiro chamado “contrato
de impacto social”, seria lucrativo se o alvo do investimento, um programa de
educação prisional, reduzisse drasticamente a taxa de reincidência.
A despeito das tentativas de cativar pessoas com as predisposições de
Cohen, um verão na Goldman revelou que aquilo não era para ela. Afastava-
se um bocado da linha de propósito de “ser bem-sucedida” como parte de
“ser bem-sucedida ao praticar o bem”. Uma escolha mais razoável, ela sentia,
era a McKinsey & Company. Ela gostava da ideia de frequentar um programa
de treinamento para solucionar problemas em grande escala, que é como os
recrutadores do campus os definiam. Grande parte dos clientes da McKinsey
é corporativa, mas os recrutadores, sabendo da mentalidade de jovens como
Cohen, enfatizavam os projetos do setor público e social. Ela dissera, em tom
de brincadeira, que era possível sair da sessão de informações pensando que,
caso fosse contratada, passaria a maior parte do seu tempo ajudando o Haiti
com o desenvolvimento pós-terremoto e aconselhando o Vaticano.
Mesmo quando Cohen se empolgou com a ideia, ela tinha medo de estar
tomando “uma decisão menos criativa e mais entediante”, indo trabalhar em
uma empresa de consultoria depois de falar tanto sobre mudar a vida das
pessoas. Entretanto a McKinsey, tal como a Goldman, tinha uma história
persuasiva para lhe contar. A empresa não era apenas um ponto de partida.
Era um lugar onde você poderia mudar o mundo agora. Um panfleto de
recrutamento de 2014, destinado aos aspirantes a analistas de negócios
recém-formados na universidade, parecia contemplar o necessário para que
tudo saísse bem:
Mude o mundo.
Melhore vidas.
Invente algo novo.
Solucione um problema complexo.
Amplie seus talentos.
Cultive relacionamentos duradouros.
Por mais elevadas que fossem as três primeiras promessas, a McKinsey
tentou sustentá-las. Ela havia criado, por exemplo, um Setor de Práticas
Sociais, por meio do qual publicava informações reveladoras sobre como “a
prestação de serviços financeiros via telefone celular poderia beneficiar
bilhões de pessoas incentivando o crescimento inclusivo”. Empresas de
consultoria concorrentes fizeram o mesmo. O Boston Consulting Group
prometera “mudar o mundo tanto no domínio social quanto para nossos
clientes comerciais”. A Bain & Company declarou: “Nosso objetivo é
transformar todo o setor social.”
Essas empresas estavam, na realidade, encarnando um dogma generalizado:
o do mercado como terreno para a mudança do mundo e os tipos de mercado
como agentes ideais da mudança. E, assim, graduados como Cohen eram
bombardeados não somente por histórias de infortúnio econômico e
desigualdade, mas também por uma mensagem insistente sobre como vencer
essas calamidades. Talvez eles tenham visto a campanha publicitária do
Morgan Stanley, “Capital Gera Mudança”, na qual declara-se que “o valor do
capital não é apenas criar riqueza, mas coisas importantes”, e que trabalhar
para o Morgan Stanley é equivalente a “conceder a milhões de pessoas a
chance de uma vida melhor”. Tal como o setor privado reencarnado de John
F. Kennedy, o Morgan Stanley esbravejava: “Vamos potencializar o capital
que constrói coisas que mudam o mundo.” Eles podem ter lido livros
influentes, por exemplo, Como Mudar o Mundo: Empreendedores sociais e o
poder das novas ideias, de David Bornstein, ou ter se deparado com artigos
como “5 Companies Making a Splash for a Better World” [5 Companhias
que Fazem Sucesso Mudando o Mundo, em tradução livre], da Forbes, e “27
Companies that Changed the World” [27 Empresas que Mudaram o Mundo,
em tradução livre], da Fortune. Talvez eles estivessem de acordo com a
conclusão do Airbnb, em um relatório de pesquisa, de que as empresas como
ela não tinham a ver com dinheiro, mas com amor: “A maioria das pessoas
que compartilha faz isso porque quer fazer do mundo um lugar melhor”,
conforme a Fast Company resumiu a pesquisa. Eles podem ter assistido a um
documentário como The Double Bottom Line, que conta a história de duas
empresas, a D.light Design e a LifeSpring Hospitals, que, como tantas agora,
consolidavam dois objetivos: “mudar o mundo” e “lucrar”. Eles podem ter
ouvido falar de empresas se tornando Empresas B [com certificados B Corp,
emitidos pelo B Lab] e assinando uma nova “Declaração de
Interdependência”, em que se comprometiam a usar “o negócio como uma
força para bem” e promover “a mudança que buscamos”.
E talvez eles tenham ouvido os pensadores que respeitavam dizer
que essas novas formas, baseadas no mercado, de mudar o mundo
não eram somente acréscimos às formas já existentes, mas que
eram até preferíveis. Por exemplo, Jonathan Haidt, professor de
psicologia da escola de negócios da Universidade de Nova York e
palestrante popular do TED, era um estudante de esquerda em Yale
no início de 1980, porém, desde então, se voltou contra o tipo de
mudança no mundo que dominava a corrente em que acreditava na
época. Ele expressou claramente a nova convicção em uma
entrevista à apresentadora de rádio Krista Tippett:
As pessoas de nossa idade cresceram presumindo que o engajamento
cívico deve ser ativo, para que possamos fazer o governo reparar os
direitos civis ou algo do tipo — temos que obrigar o governo a fazer
alguma coisa. E os jovens cresceram vendo o governo fazer nada, exceto
desviar do assunto vez ou outra. E, desse modo, o ativismo deles não será
no sentido de compelir o governo a fazer as coisas. Será inventar algum
aplicativo, algum jeito de solucionar os problemas separadamente. E isso
vai funcionar.
O fato de um estudioso como Haidt comparar a invenção de um aplicativo
ao movimento dos direitos civis dá uma noção da atmosfera intelectual em
torno de graduados indecisos como Cohen. Talvez a decisão de entrar no
mercado corporativo não tenha sido entediante, afinal de contas. Tal
pensamento pode ser corroborado pela conversa descontrolada entre os
colegas de Cohen sobre todo assunto que tem a ver com “social” — inovação
social, negócios sociais, empreendimento social, investimento social.
Inclusive, durante o seu último semestre na Georgetown, a universidade
inaugurou no campus o novo Beeck Center for Social Impact & Innovation
[Centro Beeck para Impacto Social e Inovação, em tradução livre],
desenvolvido para promover a abordagem cada vez mais influente do setor
privado às mudanças do mundo que Cohen estava analisando, ressaltando
suas tentações e agravos.
O centro foi fundado graças a uma doação de US$10 milhões de Alberto e
Olga Maria Beeck, cujo dinheiro vinha, em grande parte, de negócios em
mineração na América do Sul. Doadores abastados como eles não raro
tinham interesse financeiro na mudança do mundo de maneira que não mais
se levasse em consideração coisas como tributação, redistribuição, leis
trabalhistas e regulamentos de mineração. E a Universidade de Georgetown,
como outras universidades, ficava feliz em ajudar. A diretora-executiva do
novo centro era Sonal Shah, que tinha o currículo perfeito para isso, como
profissional experiente do Google, da Goldman Sachs e da Casa Branca, onde
criara o Office of Social Innovation and Civic Participation [Gabinete de
Inovação Social e Participação Cívica, em tradução livre] durante o mandato
do presidente Obama. O gabinete, de acordo com seu site, teve “como base
uma ideia simples: não podemos promover mudanças duradouras elaborando
novos programas encabeçados em Washington”. Era uma declaração
surpreendente vinda de um governo liberal — porém nada atípica em uma
época dominada pelo pensamento de mercado — e refletia uma teoria do
progresso que os ricos e poderosos poderiam acatar.
Posteriormente, Shah explorou essa ideia em um ensaio cujas raízes
intelectuais e financeiras refletiam o crescente destaque de soluções privadas
para questões públicas. O ensaio teve como coautor Jitinder Kohli, que
administrou as práticas do setor público na Monitor Deloitte, e figurou como
parte de uma série de ensaios patrocinado pela Deloitte, pela Skoll
Foundation e pela Forbes. O ensaio defendia que a nova mudança privada do
mundo, liderada por pessoas e entidades como essas, era preferível à forma
antiquada, democrática e pública:
Outrora, o governo era exclusivamente responsável por lidar com os
maiores problemas da nação, desde a construção do sistema rodoviário
interestadual até os programas sociais do New Deal. No entanto, os
desafios atuais são mais complicados e mais entrelaçados do que nunca e
não podem ser resolvidos por um único ator ou solução. À vista disso, o
governo tem a oportunidade de se comprometer com os atores da economia
de impacto, desde os não lucrativos até os empresariais.
Era estranho ver o governo dos EUA, indiscutivelmente a instituição mais
poderosa da história da humanidade, reduzido a “ator único” dentre os atores,
incongruente aos problemas modernos. Construir um sistema rodoviário
continental ou instituir o New Deal foi fácil, segundo essa visão. Mas os
problemas da atualidade eram muito difíceis para o governo. Eles tinham,
portanto, que ser resolvidos por meio de parcerias entre doadores ricos,
ONGs e o setor público. Nem se mencionou o fato de que esse método —
colocar os endinheirados em uma posição de liderança para resolver os
problemas públicos — conferia-lhes o poder de boicotar as soluções que os
ameaçassem. Caso sua forma preferida de solucionar grandes problemas exija
meu dinheiro e me conceda um lugar no conselho dessa iniciativa, não posso
incentivar soluções que envolvam tributação sobre herança ou a dissolução
de empresas como aquela a partir da qual ganhei o dinheiro que estou
doando.
Existem também formas mais sutis de influência a serem obtidas do
incentivo privado para a melhoria do mundo. Os materiais promocionais
divulgados pelo novo Centro Beeck ilustravam, por exemplo, como a
linguagem dos negócios conquistou a esfera da mudança social e substituiu a
velha linguagem de poder, justiça e direitos. A finalidade do Centro é
“fomentar a inovação e proporcionar um conjunto de habilidades únicas”. O
centro “envolve líderes globais para impulsionar a mudança social em
escala”. Ele fornece ferramentas para “alavancar o poder do capital, dados,
tecnologia e políticas com o intuito de melhorar vidas”. O comunicado à
imprensa prometia que “por meio do novo centro, os alunos aprenderão a
desenvolver, organizar e arrecadar fundos, visando carreiras com impacto
social, e serão apresentados aos líderes globais que ajudarão na incubação de
suas novas ideias, voltadas para pequenas empresas ou instituições sem fins
lucrativos”. A solução dos problemas públicos mediante ação pública —
mudar a lei, recorrer ao judiciário, organizar os cidadãos, peticionar ao
governo com suas queixas — praticamente nem foi mencionada. Em vez
disso, a universidade prometeu um foco novo no “espírito empreendedor”
como solução para “alguns dos problemas mais prementes do mundo”.
Logo, quando Cohen recebeu sua proposta de emprego da McKinsey
naquele ano, foi possível notar, como ela o fez, que esta era uma escolha sem
graça e cínica; e foi possível notar, assim como ela, que aquilo era um convite
a uma maneira nova de ajudar as pessoas. Uma reunião de outro programa do
qual participava, conhecido como Capstone, exemplificava que ela não estava
sozinha. O programa reunia pequenos grupos de veteranos universitários com
o intuito de discutir as inquietações do último ano e os planos futuros, com a
ajuda de um professor. O anfitrião da nona reunião da turma de Cohen,
realizada no fim de março, mandou por e-mail algumas leituras para iniciar a
discussão; uma delas era um fragmento da The Georgetown Voice, uma
revista organizada por estudantes, fundada em 1969 pelos ex-editores do
Hoya que se opuseram à indecisão do jornal em cobrir a Guerra do Vietnã. O
artigo questionava o que Cohen estava se perguntando naqueles dias: “Por
que Tantos Graduados na Georgetown Estão Trabalhando em Bancos e
Consultorias?”
O artigo mencionava o fato gritante de que mais de 40% dos graduados da
Universidade de Georgetown da turma de 2012 que encontraram emprego em
tempo integral trabalhavam em serviços financeiros ou de consultoria. O
escritor observou que tal tendência “pode parecer contraditória para uma
universidade que se orgulha dos valores jesuítas”. Atribuiu esse excesso aos
altos salários, às dívidas estudantis que muitos alunos assumem e à “cultura
que considera os serviços financeiros e os trabalhos de consultoria
prestigiosos”. Uma aluna entrevistada pela revista acrescentou que “muitas
áreas nas quais seus amigos estão interessados não têm, em termos realistas,
vagas para iniciantes disponíveis que não exijam alguns anos de experiência
em negócios”. Outros ramos de trabalho pareciam estar internalizando o
conto das empresas de consultoria e financeiras como portas de entrada.
Cohen e seus amigos discutiram o artigo naquele dia, o que espelhava sua
própria agonia sobre o que fazer a respeito da McKinsey. Ela afirmou que
pediu prorrogação de prazo para responder à proposta cinco vezes antes de
decidir aceitá-la.
Cohen diz que ficou “ao mesmo tempo deslumbrada e aterrorizada” com o
que encontrou. Ela ficou extremamente impressionada com os talentos à sua
volta. “Eu me lembro de estar em treinamento, e lá você vê todas essas
pessoas bem-preparadas, superarticuladas e com alto desempenho, e
realmente se pergunta: ‘Aqui é o meu lugar? Sou uma dessas pessoas?’, esse
tipo de coisa. Fiquei deslumbrada com a altivez, ou aparente altivez, de meus
parceiros e colegas.” Ela também logo se incomodou com o excesso de
trabalho e com a realidade de que a maioria dos projetos era enfadonha e não
contribuía para salvar o mundo. Ela fora convencida, conforme observava as
coisas, de que “você terá acesso a problemas que normalmente as pessoas não
acessam durante décadas, e aos modos pelos quais você vai mudar a vida de
seus clientes para melhor”. Todavia, a maior parte dos projetos que ela
deparou eram somente suas tarefas habituais de consultoria corporativa —
corte de gastos aqui, planejamento de uma estratégia de entrada no mercado
acolá. “A maior parte do trabalho era fazer coisas um pouco mais triviais”,
menciona Cohen.
E, se o trabalho era mais maçante do que os recrutadores haviam prometido,
o vício em trabalho de seus colegas consultores não condizia com toda aquela
monotonia. Eles trabalhavam como se estivessem solucionando os problemas
que tinham sido convencidos a resolver, mas não estavam. Eles elaboravam
modelos de Excel durante o jantar, o que deixava Cohen espantada, visto que
ela cresceu em uma família “em que você seria severamente repreendido e
censurado” por atender o telefone na hora das refeições. Em um trajeto de
carro de cinco minutos do hotel até o escritório de um cliente, era costume
pegar o telefone e tentar ser produtivo o máximo possível em pouquíssimos
minutos. “Essa é a realidade”, disse Cohen. “É apenas uma cultura insana.”
Em seguida, acrescentou: “Pouco a pouco, mas com toda certeza, você
também começa a fazer isso.”
Cohen começou a duvidar de sua decisão e se pegou pensando se deveria
fazer o que as pessoas que a conheciam melhor frequentemente a
pressionavam a fazer — estudar para ser rabina. No entanto, a lógica dos
negócios era tão poderosa como um caminho para o servir, que ela disse a si
mesma que era uma introdução importante também para o trabalho espiritual
— e caso “ser rabina desse errado”, disse Cohen, seu período na McKinsey
lhe viabilizava um “plano B”. Ela acrescentou que provavelmente era melhor
ser uma rabina conhecida por ter passado pela McKinsey. “Acho que
passamos a entender uns aos outros com base em uma quantidade muito
limitada de informações, e, sem sombra de dúvidas, escolhas, marcas ou
símbolos expressam determinadas coisas.”

o assumir sua função na McKinsey, Cohen ingressou no Mercado Global.


A O Mercado Global é uma elite de poder em ascensão definida pela
motivação conjunta de ser bem-sucedida e praticar o bem, com o intuito de
mudar o mundo enquanto lucra com o status quo. Trata-se de pessoas de
negócios esclarecidas e de colaboradores nas esferas das organizações
beneficentes, academia, mídia, governo e think tanks. Dispõe de seus
próprios pensadores, a quem chama de líderes de pensamento, de seu próprio
linguajar, e até mesmo de seu próprio território — incluindo idas constantes a
arquipélagos para realizar conferências nas quais seus valores são reforçados,
disseminados e transformados em prática. O Mercado Global é uma rede e
uma comunidade, e também uma cultura e um estado de espírito.
Essas elites acreditam e promovem a ideia de que se deve buscar a mudança
social, sobretudo, por meio do livre mercado e da ação voluntária, não por
intermédio da vida pública, da lei e da reestruturação dos sistemas que as
pessoas compartilham; que ela deveria ser acompanhada de perto pelos
vencedores do capitalismo e seus aliados, e não se opor às suas necessidades;
e que os maiores beneficiários do status quo devem desempenhar um papel
de liderança na reforma do status quo.
Em suas primeiras semanas na McKinsey, Cohen ainda precisava sentir
como era o Mercado Global, e, a despeito de seu incômodo com o trabalho,
podia afirmar a si mesma, como o fazem tantos jovens brilhantes hoje em dia,
e seguir desse modo ao longo dos meses e anos: que eles estão entrando no
mundo do dinheiro a fim de dominar as ferramentas necessárias para ajudar
os desamparados. Cohen diz que recobrou sua confiança: “Agora que fui
treinada para estruturar, desmembrar e solucionar problemas de negócios,
posso usar essas mesmas habilidades em qualquer questão ou desafio que eu
escolher.”
Então, ela começou a não se deixar mais levar por essa ideia. De fora, ela se
admirava com a alegação de que as pessoas com formação em negócios
obteriam uma forma inexplicável de pensamento que era fundamental para
ajudar os outros. Uma vez dentro, porém, ela percebeu que, embora essa
forma de pensar fosse de fato vantajosa para ajudar uma empresa de pneus a
reduzir custos, ou para que um fabricante de painéis solares escolhesse um
mercado promissor visando a expansão global, a ideia não merecia seu status
como uma cura para todos os setores. Contabilidade, medicina, educação,
espionagem e navegação têm suas próprias ferramentas e métodos de análise,
mas nenhuma dessas abordagens foi amplamente promovida como a solução
para praticamente todo o resto.
Cohen começou a se preocupar com o fato de que a ideia de formação em
negócios como um caminho para mudar o mundo fosse somente um
estratagema do recrutador, mais fácil de vender devido ao esplendor das
intenções aparentemente nobres do Mercado Global. Qual era o valor dos
métodos de solução de problemas que ela fora contratada para aprender? Ao
trabalhar nos projetos dos clientes, ela começou a fazer um exercício paralelo
em sua mente, ignorando o conjunto de ferramentas da McKinsey e apenas se
perguntando qual era a resposta certa. “Muito raramente, ou nunca, o
processo passo a passo, perfeitamente linear, de ‘aqui está como
conduziremos essa prospecção’, dificilmente revela a resposta certa”, disse
ela. Muitas vezes, esse processo — coisa pela qual a McKinsey era conhecida
— era “usado principalmente para transmitir a resposta, em vez de gerá-la”,
afirma Cohen. As respostas eram obtidas por meio da inteligência e do senso
comum, e, em seguida, a equipe faria com que elas parecessem mais como
respostas de marca registrada da McKinsey: “Nós fazíamos as respostas
reconstituírem o modelo predefinido”, disse Cohen.
Tendo em conta o que ela considerava como possíveis falhas dos métodos
que estava aprendendo, Cohen ficou espantada com a voracidade por tais
métodos fora do âmbito dos negócios. Em nossa era, muitos setores não têm
confiança em suas próprias metodologias e, muitas vezes, estão desesperados
para introduzir a lógica dos negócios em seu trabalho. A confiança nos
negócios é tão eficaz como passaporte universal para progredir, ajudar as
pessoas e mudar o mundo que até mesmo a Casa Branca, por meio de sua
seleção de talentos nacionais, tanto republicanos como democratas, ficou
dependente dos talentos especiais de consultores e investidores na tomada de
decisões sobre como administrar a nação. Em 2009, o Economist declarou
que “é a vez da McKinsey de tentar solucionar o problema do Tio Sam”,
sugerindo que “Obama pode favorecer o pessoal da McKinsey, da mesma
forma que seu antecessor parecia obcecado por contratar ex-alunos do
Goldman Sachs”.
Pode-se argumentar que as próprias pessoas que estavam sendo trazidas
para aconselhar o governo a respeito do interesse público estavam envolvidas
em muitos dos problemas públicos mais urgentes. Consultores
administrativos e investidores eram os protagonistas decisivos na história de
como um pequeno grupo de elites, incluindo eles, havia se apropriado da
maior parte dos espólios valiosos de inovação de uma geração. O setor
financeiro obtinha cada vez mais valor da economia norte-americana, às
custas não somente dos consumidores e trabalhadores, mas também do
próprio setor em si. Cada vez mais os recursos financeiros da nação eram
sorvidos por Wall Street sem assumir a forma de novos investimentos por
parte das empresas ou remunerações mais altas para os trabalhadores. Nesse
ínterim, os consultores conduziram uma revolução no quesito produtividade
para as corporações. Eles lhes ensinaram como otimizar tudo, o que fez com
que suas cadeias de suprimentos ficassem mais enxutas e suas demonstrações
de resultados do exercício fossem menos instáveis. Essa otimização,
logicamente, tornou as empresas menos acolhedoras para os trabalhadores,
que enfrentaram situações como demissões em massa, offshoring,
programação dinâmica e automação como o lado negativo do progresso
corporativo. Isso era parte do motivo pelo qual seus salários estagnavam, ao
passo que a lucratividade e a produtividade das empresas aumentavam.
Cohen disse que seus colegas eram frequentemente alheios a esses fatos. “É
como: ‘Tudo bem, causamos esses problemas, mas também sabemos como
resolver problemas’”, mencionou ela sobre a atitude predominante. “Logo,
este é apenas um problema novo que vamos resolver: o que provocamos.”
Entretanto, Cohen estava perdendo a confiança no poder dessas soluções. E
começara a flertar com a perigosa ideia de que não estava sendo preparada
para mudar o mundo. Ela refletiu seu próximo passo.
Enquanto isso, o presidente Obama, que, recém-saído da
universidade, ganhou experiência como organizador comunitário
em Chicago, estava chegando ao fim de seu segundo mandato.
Conforme os costumes modernos, logo criaria uma fundação e uma
biblioteca. Ele havia decidido que a reestruturação da vida pública
estaria entre suas prioridades. Obama costumava falar que as
corporações e as pessoas abastadas influenciam muito a vida norte-
americana e que as pessoas comuns, quase nada. Ainda assim,
quando esse presidente direcionou sua atenção a tornar a
democracia mais vital, decidiu procurar o aconselhamento da
McKinsey, como muitas pessoas que queriam mudar o mundo
agora costumavam fazer.
Cohen fora convidada a fazer parte da equipe e começou a trabalhar na
questão do que o presidente deveria fazer para fortalecer a cidadania. Ela
disse que Obama recorria aos consultores da McKinsey a fim de analisar o
problema que era ao mesmo tempo “silenciador de minhas dúvidas e
confabulador de tantas outras”. Se um presidente que ela admirava
profundamente achava que os consultores da McKinsey deviam estar
pensando nessas questões, então talvez devessem estar mesmo. Por outro
lado, ela suspeitava que o presidente fora influenciado pelos mesmos mitos
que a haviam ludibriado. “Por que ele não recorria a um grupo de
organizadores comunitários para realizar esse trabalho?”, perguntava-se. O
projeto lhe passou mais “hesitação do que esperança”, pois parecia contribuir
para o crescimento da influência do mundo dos negócios em detrimento da
mudança social. Ela estava em um dilema: a McKinsey ser encarregada desse
trabalho a deixava pouco à vontade; ao mesmo tempo, era o trabalho mais
estimulante que poderia imaginar.
Era possível depreender que Cohen e seus colegas consultores trabalhavam
com o intuito de repensar a democracia à medida que os investidores
aumentavam, abordando um desafio social que ultrapassava seus próprios
interesses. Mas também era possível questionar: as elites empresariais
estavam contribuindo ou estavam assumindo o trabalho de mudar o mundo?
Caso a resposta fosse a última, talvez conferir aos endinheirados a
responsabilidade de uma iniciativa para revitalizar a democracia gerasse
melhores resultados do que facultar essa responsabilidade a outros. Possível,
ainda que improvável. Válido para qualquer pessoa que trate uma doença
reestruturando-a — com seus próprios diagnósticos, medicamentos e
previsões. Assumir um problema é se envolver profundamente com ele, e
conquistar o direito de decidir o que ele não é e como não precisa ser
resolvido. A questão das necessidades humanas, por exemplo, encontrou
soluções bastante diferentes quando passou da proteção dos senhores feudais
para aquela em que as repúblicas representavam os homens detentores de
propriedades, até as democracias com o sufrágio universal adulto.
O maior risco de se colocar uma empresa de consultoria corporativa
responsável por elaborar soluções para problemas sociais é que ela pode
deixar de lado certas questões fundamentais no que diz respeito ao poder. O
solucionador de problemas do Mercado Global não costuma caçar
transgressores e não está interessado em atribuir culpa a alguém. Cohen disse
que ela e seus colegas consultores também corriam o risco de ignorar ou
minimizar as preocupações das pessoas negligenciadas pela democracia, não
por maldade ou intencionalmente, mas por causa de seu modelo mental. Caso
tome o mundo como um problema de engenharia, um painel de indicadores
que se pode ligar e alternar, ativar e desativar e, assim, fazer com que tudo
seja ideal, você nem sempre considera as vozes das pessoas que enxergam
um mundo diferente — entre pessoas e sistemas que protegem o que é deles e
excluem as outras.
Por fim, Cohen deixaria a McKinsey e entraria na Fundação Obama. Porém,
enquanto permanecia na folha de pagamento da empresa de consultoria, ela e
seus colegas estavam sujeitos ao malabarismo da mudança social corporativa.
Eles deveriam fazer com que a democracia fosse mais determinante e efetiva
para os cidadãos comuns, mas de preferência sem se opor muito aos seus
colegas vencedores. Eles deveriam aumentar a confiança do público nas
instituições sem se aprofundar muito na razão pela qual as pessoas que
lideravam essas instituições eram alvo de desconfiança.
Parte do que ainda atraía Cohen para o rabinato era a possibilidade de que
isso proporcionava a fuga dos compromissos relacionados a procurar ser
bem-sucedida ao praticar o bem. “Eu diria que a grande maioria prefere viver
à margem dessa lógica de mercado e do mundo”, afirma. Todavia, ela estaria
mentindo caso dissesse que não gostava do status e do estilo de vida. E
Cohen se agarrava com unhas e dentes ao sonho de fazer mudanças em
escala. Em seu fascínio persistente pela formação religiosa, ela parecia
almejar por uma fé que a libertasse de outra — da fé no mercado, que ela não
havia escolhido, tampouco estava de acordo.
Atualmente, essa fé influencia muitas pessoas honestas e
inteligentes. Muitas delas estão encurraladas naquilo que não
conseguem enxergar por completo. Muitas acreditam que estão
mudando o mundo, quando, ao contrário, podem estar protegendo
um sistema que está na raiz dos problemas que querem solucionar.
Muitas se perguntam, silenciosamente, se existe outro caminho e
qual seria seu lugar.
CAPÍTULO 2
TODOS SAEM GANHANDO

Quer mudar o mundo? Monte um negócio.


— JONATHAN CLARK, EMPREENDEDOR

hora do jantar, e Stacey Asher está sentada ao lado da janela, em uma


É mesa com seis lugares, falando como ajuda as pessoas pobres a usar o
poder dos fantasy sports. Ela mora em Highland Park, em Dallas, não muito
longe do ex-presidente George W. Bush. Asher administra uma instituição de
caridade chamada Portfolios with Purpose. Ela se refere à instituição como
“uma plataforma poderosa que combina a competição saudável com a
contribuição ao próximo” — uma breve frase que consegue expressar as
nuances da tecnoutopia, do capitalismo e da caridade. Ainda que aparente
estar na casa dos 30 e poucos anos, ela conta que trabalhou em “6 ou 7”
fundos de hedge em Nova York antes de se mudar para o Texas, onde
trabalha seu novo marido, também na área de finanças.
Assim como muitas pessoas do mundo dos negócios que acabam se
dedicando a ajudar o próximo, a história de Asher se caracteriza por uma
epifania africana. Durante uma viagem para escalar o Monte Kilimanjaro, ela
visitou um orfanato na Tanzânia. Lá, conheceu crianças que carregavam seus
irmãozinhos bebês nas costas por quilômetros sem fim para garantir uma
única refeição diária. Ela ficou sabendo que às vezes o orfanato fechava as
portas por falta de recursos financeiros, embora seu custo operacional fosse
de reles US$250 por mês. “Minha vida mudou para sempre naquele
momento”, escreveria Asher mais tarde.
Asher começou a refletir sobre como poderia ajudar. Assim como muitos
bons samaritanos do Mercado Global, estava mais interessada em inaugurar
alguma coisa nova do que em analisar como ela e as pessoas à sua volta — e
as instituições das quais faziam parte — poderiam mudar seu modus
operandi. Perguntava-se o que poderia fazer, mas não o que as pessoas de seu
universo já deveriam ter feito. (Desnecessário mencionar que, por exemplo,
se os responsáveis pelos fundos de hedge não fossem deveras engenhosos em
burlar a tributação de impostos, a receita disponível para auxílio internacional
seria maior.)
Naquele exato momento, um dos maiores bancos do mundo, o Standard
Chartered, preparava-se para recorrer ao tribunal da Tanzânia com o intuito
de enfrentar acusações de que, deliberadamente, adquirira “dinheiro sujo”,
maculado pela corrupção, de um investimento em energia, e mais tarde
peticionaria o governo do país a fim de estatizar o projeto, para que o banco
fosse ressarcido com o dinheiro dos cidadãos tanzanianos comuns. A prática
era habitual — e era, pelo menos teoricamente, perniciosa à capacidade do
governo de prestar assistência aos órfãos com os quais Asher se preocupava.
O Grupo Banco Africano de Desenvolvimento afirmou que os denominados
fundos abutres — da mesma espécie que o Standard Chartered era acusado de
criar — compram regularmente dívidas irrecuperáveis com um desconto
generoso e, depois, processam os governos africanos para reembolsá-los
integralmente com dinheiro do contribuinte, ameaçando seus ativos
estrangeiros caso eles discordem. O Grupo disse que “esses fundos abutres
prejudicam o desenvolvimento dos países mais vulneráveis”, citando Angola,
Burkina Faso, Camarões, Congo, Costa do Marfim, Etiópia, Libéria,
Madagascar, Moçambique, República do Níger, São Tomé e Príncipe, Serra
Leoa e Uganda como vítimas da prática, além da Tanzânia.
Uma pessoa bem-intencionada como Asher, versada e bem-relacionada no
mundo das altas finanças, estava em uma posição favorável para lidar com
tamanho problema. Tendo em conta que os fundos abutres despojaram quase
US$1 bilhão dos países devedores, de acordo com o banco de
desenvolvimento, havia um grande potencial para ajudar os órfãos ao
combater essa prática contestável e viabilizar mais dinheiro para os gastos
sociais. Mas esta era precisamente o tipo de empreitada que costumava ser
negligenciada quando os vencedores do Mercado Global se apropriavam dos
problemas dos outros. Seria uma empreitada conflituosa; os nomes das
instituições financeiras que causavam esses problemas seriam denunciados;
haveria conflitos com pessoas que um dia poderiam ser-lhe úteis. Pessoas
como Asher ouviam frequentemente — e passavam a acreditar — que
existiam formas menos agressivas de resolver os problemas do que uma
reforma sistêmica.
Ela sabia que milhões de pessoas gostavam de fantasy football, e todo
mundo gosta de ganhar rios de dinheiro no mercado de ações — e quem não
gosta de ajudar as pessoas? Asher pensou que talvez pudesse imitar o modelo
do fantasy football recorrendo a ações em vez de jogadores, e os lucros
poderiam ser direcionados às instituições de caridade favoritas dos
vencedores. (Noventa por cento dos jogadores da Portfolios with Purpose
afirmaram trabalhar com finanças — e pelo menos um deles aparentemente
afirmou ser analista do Standard Chartered.) Como muitas vezes acontece no
Mercado Global, existe uma ironia decorrente: as mesmas pessoas que
jogavam poderiam, ao mesmo tempo, fazer operações de commodities
recorrendo às práticas de flash trading, de modo que os preços nas
comunidades que elas supostamente estavam ajudando ficassem instáveis;
permitir que suas empresas e clientes continuassem a comprar dívidas
africanas obscuras; ou até mesmo pressionar a administração pública a
reembolsar os investidores abastados que detinham os títulos ao extorquir os
fundos de pensões dos professores e dos bombeiros. Isso nos passa
perfeitamente a mensagem do Mercado Global: você pode mudar as coisas
sem ter que mudar nada.
Asher fora atraída pela promessa irresistível da abordagem em que todos
saem ganhando no que diz respeito à mudança social. Em uma era de
supremacia do mercado, essa abordagem está na moda, e o que lhe despertou
fascínio foi Stephen Covey em seu livro Os 7 Hábitos de Pessoas Altamente
Eficazes, cujo hábito 4 era “Pense em Vencer/Vencer”:
Vencer/Vencer vê a vida como uma cooperativa, não como um local de
competição. Vencer é um estado de espírito que busca constantemente o
benefício mútuo em todas as interações humanas. Vencer/Vencer significa
entender que os acordos e soluções são mutuamente benéficos,
mutuamente satisfatórios. Com uma solução do tipo Vencer/Vencer, todas
as partes se sentem bem com a decisão, e comprometidas com o plano de
ação.
Essa ideia promoveu a abordagem do Mercado Global relacionada à
mudança e o advento de iniciativas sociais — capital de risco social,
investimentos de impacto, corporações filantrópicas, tripés da
sustentabilidade com benefícios em dobro, teorias de negócios de “valor
compartilhado” em favor do interesse empresarial, produto de retribuição e
diversas outras manifestações dessa suposta harmonia entre o que é bom para
os vencedores e bom para todos os demais. “Este É o Segredo de Estar à
Frente?”, perguntava a manchete em uma artigo na New York Times
Magazine sobre a pesquisa de um psicólogo organizacional e
autodenominado “líder de pensamento” chamado Adam Grant. Em um
modelo ideal dessas iniciativas, a vencedora poderia desfrutar de uma
tentadora combinação de ganhar dinheiro, praticar o bem, sentir-se honrada,
trabalhar com problemas complicados e estimulantes, sentir seu impacto,
amenizar o sofrimento, espalhar a justiça, ter um currículo exótico, viajar
pelo mundo e ganhar um discurso inesquecível em algum coquetel.
A confiança generalizada no método em que todos saem ganhando é parte
da razão pela qual Hilary Cohen acabou na McKinsey. Quando estava no
trabalho, sempre que alguém comprava um par de sapatos de pano, ela se
consolava sabendo que outro par de sapatos logo seria colocado nos pés de
uma pessoa pobre. E isso fica claro em um pôster no campus universitário:
“Pesquisas mostram que doar o deixa mais feliz. Seja egoísta & doe.” Pode-
se observar isso também na ideia contemporânea de “riqueza na base da
pirâmide”, promovida pelo falecido estudioso de administração C. K.
Prahalad, que prometia grandes negócios em “uma situação em que todos
saem ganhando: as corporações não apenas tiram proveito de um mercado
dinâmico, mas, ao tratarem os pobres como consumidores, eles não são mais
humilhados; eles se tornam clientes com autonomia”. Para um consultor do
Banco Mundial no tocante aos problemas dos refugiados, talvez isso seja um
atrativo imprescindível, coisa que antes poderia ter sido preconizada
estritamente por razões de compaixão: “Coloque os sírios para trabalhar; é
uma situação em que todos saem ganhando, tanto os países de acolhimento
quanto os refugiados.” Com o objetivo de ganhar prestígio em um mundo
tomado pela ideologia de mercado, uma das maiores calamidades
humanitárias desde a Segunda Guerra Mundial precisou ser vendida como
oportunidade também para as pessoas que ajudavam.
As discussões que permeiam essas muitas ideias assumem o status de uma
promessa indolor. O que é bom para mim será bom para você. E é
compreensível que Asher tenha se interessado por essa linha de pensamento.
Você poderia ajudar as pessoas de formas que lhe permitiriam continuar a
levar sua vida, ao passo que se livra um pouco da sua culpa.
Como demonstra o exemplo de Asher, as muitas situações em que todos
sairiam ganhando estavam apenas esperando para ser descobertas. Mas um
pouco de ceticismo também se justificava. Quando vencedores, como Asher,
interferiam para solucionar um problema à medida que o avaliavam,
colocando em prática as ferramentas que tinham e sabiam usar, não raro eles
ignoravam as raízes do problema e sua participação nele.

J ustin Rosenstein parecia se torturar muito mais do que Asher a respeito


da melhor forma de ajudar os outros. Ainda que fosse bastante
desconhecido para o mundo em geral, ele era uma celebridade no Vale do
Silício, tinha o papel decisivo na invenção de inúmeras tecnologias
revolucionárias. Um fenômeno da programação e do design de produto,
Rosenstein ajudou a desenvolver o Google Drive e foi um dos criadores do
chat do Gmail. Depois, foi trabalhar para o Facebook, onde ajudou a criar as
Páginas e o botão “Curtir”. Mais de 1 bilhão de pessoas utilizavam
constantemente as ferramentas criadas por ele. Rosenstein fora remunerado
com ações que valem milhões de dólares. E ele não tinha nem 30 anos na
época.
Então, Rosenstein enfrentava um dilema nada atípico entre os jovens
empreendedores que se deparavam com o sucesso precoce: o que fazer com
seu dinheiro e com o tempo que lhe resta na Terra. Ele vivia de um jeito
bastante modesto. Tinha um iPhone já bem obsoleto, dirigia um Honda Civic
e morava em uma casa compartilhada em São Francisco com mais de uma
dúzia de pessoas, muitas das quais trabalhavam em áreas como arte, ativismo
e aconselhamento psicológico, e não conseguiam sequer conceber seu nível
de recursos. Quando tinha a opção de alterar sua passagem da classe
econômica para a classe executiva, ele se questionava quantas vidas poderiam
ser salvas investindo o dinheiro extra da alteração em mosquiteiros contra a
malária. Ele queria doar a maior parte de seu dinheiro em prol das causas
filantrópicas.
Rosenstein se considera extremamente espiritualizado, o que fez dele uma
pessoa determinada a servir as outras. “Acho que todos estamos conectados
em um nível mais profundo”, afirmou em uma tarde, em São Francisco. “Em
algum lugar, lá no fundo, todos nós compartilhamos o mesmo princípio vital
a partir do qual basicamente somos feitos — evito a palavra Deus em geral,
mas é como uma consciência — porque temos basicamente uma consciência
vigiando muitas pessoas diferentes.” Rosenstein não acreditava em um Deus
abstrato e manifesto, como as outras pessoas: “Parece que quanto mais me
aprofundo na natureza do meu ser, mais me aproximo de um lugar onde todos
nos conectamos.”
Norteado pelos valores do Mercado Global em que todos saem ganhando,
Rosenstein decidiu melhorar o mundo criando uma empresa, a Asana, que
vendia software de colaboração de trabalho para empresas como Uber,
Airbnb e Dropbox. Como Asher, ele estava ávido para ajudar, mas era difícil
se libertar do terreno do qual provieram suas suposições e ferramentas. Ele
acreditava que o software Asana poderia ser o meio mais contundente de
melhorar a condição humana. “Ao refletir sobre a natureza do progresso
humano”, disse ele, “quando você pensa em como melhorar a assistência
médica ou o governo, criar arte ou fazer biotecnologia, ou filantropia
tradicional, seja lá o que for, todas as coisas que podem contribuir com o
progresso da condição humana, ou talvez com o progresso da condição do
mundo, têm a ver com grupos de pessoas que trabalham juntas. E se
pudéssemos arquitetar um software universal que ajudasse todas as pessoas
que tentam fazer coisas boas no mundo a serem 5% mais rápidas? Acho que
os terroristas ficariam 5% mais rápidos também, mas, no conjunto, achamos
que o impacto seria realmente positivo”.
O desejo de Rosenstein de melhorar a vida das pessoas aumentando um
pouco a produtividade de todo mundo era nobre. Contudo, um dos principais
desafios econômicos enfrentados na atualidade pelos Estados Unidos era a
assombrosa estagnação dos salários de metade dos norte-americanos, apesar
do espantoso crescimento da produtividade. O Economic Policy Institute, um
think tank em Washington, apresenta em um artigo: “Desde 1973, a
remuneração horária da grande maioria dos trabalhadores norte-americanos
não aumentou na mesma proporção que a produtividade na economia. Na
verdade, o valor da remuneração horária praticamente estagnou.” O instituto
constatou que o trabalhador norte-americano comum teve um aumento de
72% na produtividade entre 1973 e 2014, mas o salário médio do trabalhador
aumentou apenas 9% neste período. Em poucas palavras, os Estados Unidos
não têm um problema de defasagem de produtividade, e sim um problema de
que os ganhos resultantes da produtividade estão sendo surrupiados pelas
elites. O setor financeiro cada vez mais parasita é, em parte, responsável por
isso. Ele poderia ser estruturado de outras formas, incluindo regulamentações
comerciais mais rígidas; cargas tributárias mais elevadas para os investidores;
leis trabalhistas mais duras, com o intuito de proteger os trabalhadores das
demissões em massa e da pilhagem da previdência por parte dos detentores
do capital privado; e incentivos que favorecessem o investimento para a
criação de empregos, em detrimento da mera especulação. Medidas como
essas poderiam ajudar a solucionar o problema estrutural, evitando a
apropriação dos ganhos provenientes do aumento da produtividade. Sem
essas medidas, uma iniciativa como a de Rosenstein não resultaria na
mudança prometida. Ela contribuiria ainda mais com o aumento da
abundância, que provavelmente seria acumulada pelas elites (produtividade),
em vez de aumentar o que milhões de pessoas realmente precisam (salários).
A crença quase religiosa na prática em que todos saem ganhando ajudou a
explicar escolhas como a de Rosenstein. “O incrível em tecnologia — e em
outros campos semelhantes, mas acho que é algo essencialmente comum em
tecnologia — é que as possibilidades são tantas que você pode ter o melhor
dos dois mundos também, certo?” afirmou ele. “Existe um estereótipo de que
você deve fazer uma escolha de vida entre praticar o bem e ganhar dinheiro.
Penso que, para muitas pessoas, esta é realmente uma questão de escolha.
Elas não têm um conjunto de habilidades conciliáveis. Mas, no que diz
respeito à tecnologia, existe uma quantidade substancial de oportunidades —
o buscador Google é o maior exemplo de todos os tempos — em que estamos
concomitantemente ganhando dinheiro e praticando o bem no mundo. E, de
fato, acho que muitas vezes você pode chegar ao ponto em que todos falem a
mesma língua, e quanto maior o alcance do bem que está praticando, mais
dinheiro ganhará.” Era uma perspectiva em que a justiça social e a
concentração de poder, de alguma maneira, aumentariam exponencialmente,
ad infinitum.
“Este é um excelente exemplo em que você precisa se esforçar, pensar
cuidadosamente; as coisas são complicadas e turbulentas, mas é fácil
encontrar uma razão lógica”, continuou ele. “Faço isso às vezes quando
procuro uma explicação do tipo ‘Veja bem, isso será o melhor para o mundo’,
só que, na verdade, vou ganhar mais dinheiro. Mas, por outro lado, o legal
das iniciativas lucrativas — existem muitas coisas que não se adéquam às
iniciativas lucrativas, em que você precisa do setor sem fins lucrativos e do
setor governamental — é a autossustentabilidade, pois não é necessário,
constantemente, captar os recursos financeiros.”
Era uma premissa importante para muitos no Mercado Global: as soluções
de negócios poderiam, a despeito das aparências, ser mais altruístas do que as
alternativas, pois os lucros dos vencedores asseguravam as boas ações
constantes. O negócio perfeito, Rosenstein mencionou, tanto gera
faturamento (“o valor que está sendo captado”) como gera consequências
positivas (“o valor criado no mundo, que não está sendo captado”). As
vendas de anúncios do Google representam o faturamento; a facilidade com
que qualquer pessoa, em qualquer lugar, consegue procurar algo representa a
consequência positiva. “No caso de você conseguir arquitetar um sistema que
comporte os dois”, disse Rosenstein, “em que cada centavo que você ganhe
também seja uma consequência positiva, isso é ótimo, porque, assim, é
possível continuar investindo nesse mecanismo. Você pode fazer coisas
maiores. Pode reinvestir. Pode contratar pessoas excelentes”.
Esse negócio era uma forma autossustentável e, sobretudo, conveniente de
praticar o bem, segundo a avaliação de Rosenstein a seus colegas de trabalho.
“A verdade é que eu pesquisei muito sobre isso: pouquíssimas pessoas estão
dispostas a se sacrificar financeiramente para praticar o bem”, disse ele.
“Veja os millennials. Eles querem um emprego que tenha propósito, mas não
estão dispostos a sacrificar a própria renda para fazer o bem. Não os culpo.
Eu teria a mesma atitude; não é difícil se sentir assim. Mas acho que existem
mais oportunidades em que não é preciso escolher do que as pessoas supõem,
nas quais você pode fazer dinheiro e praticar o bem no mundo.”
A crença de Rosenstein nesse tipo de progresso fez com que passasse a
ignorar as consequências indesejáveis. Quando se engendra os tipos de
ferramentas em que ele acreditava, é impossível saber como as pessoas as
usarão. Rosenstein admitiu isso. Ele vê os adolescentes obcecados e ansiosos
com o número de curtidas em seus posts no Facebook e se questiona sobre
seu legado. Talvez ele não enxergasse de que modo as empresas para as quais
trabalhou, Google e Facebook, conseguiam ser bem-sucedidas e praticar o
bem, e ao mesmo tempo concentrar tamanho nível de poder — sobre as
informações e notícias em uma sociedade livre, sobre os detalhes particulares
e localização das pessoas e sobre o conteúdo de todas as suas conversas —
perigosíssimo e quase monopolista, que precisava ser controlado, se não
destruído.
Ao fechar os olhos para esse tipo de problema, fica fácil para a Asana ser
bem-sucedida ao praticar o bem, à maneira do Vale do Silício:
Ao ajudar as pessoas a trabalharem em estreita colaboração com mais
facilidade, simplificamos para os grupos coordenarem a iniciativa coletiva,
de modo que consigam alcançar seus objetivos e revelar os propósitos que
os impulsionam. Nos próximos anos, faremos com que milhões de pessoas
trabalhem em grupos visando melhorar o mundo que todos
compartilhamos. Por meio delas, melhoraremos a vida de cada pessoa no
planeta.
Esse era um sonho inspirador, evidente devido à apropriação da “iniciativa
coletiva” — um termo que historicamente evocava sindicatos, movimentos e
outras formas por meio das quais os cidadãos se engajavam em uma causa
comum na esfera pública. O sonho retratava a verdade nua e crua: não raro,
quando as pessoas se empenham em algo que já estão fazendo, amam aquilo
que fazem e sabem como fazê-lo, e prometem frutos civilizatórios grandiosos
de repercussões inesperadas, as soluções são direcionadas às necessidades do
solucionador, e não às do resto do mundo — a situação em que todos saem
ganhando e que, supostamente, tem a ver com todo mundo, na realidade, tem
a ver com você.
Mais tarde, naquela noite, Rosenstein saiu da Asana direto para Agape, a
casa comunitária onde mora. É uma antiga casa imponente e ornamentada
cujas paredes são adornadas com madeira entalhada. As pessoas estavam
indo para a sala de jantar, onde duas mesas estavam dispostas juntas, e ao
redor havia cadeiras de todos os tipos e um antigo banco de igreja. Quando as
pessoas se reuniam, elas costumavam se abraçar. Eram jovens desamparados
que vinham do meio artístico cuja renda dificilmente seria o bastante para
pagar um modesto aluguel. A comunidade havia sido cofundada por
Rosenstein e era muito querida por ele. Todos se sentaram, deram as mãos,
alguém fez uma oração agradecendo a refeição, e, em seguida, devoraram a
comida cambojana em embalagens para viagem.

os bastidores da Portfolios with Purpose de Asher, da Asana de Rosenstein e


N deradical.
inúmeras outras iniciativas conscientes desse tipo, reside uma teoria
É a nova deturpação de uma velha ideia sobre os efeitos
colaterais vantajosos do interesse próprio. A ideia de longa data se enraizou
nas sociedades comerciais emergentes da Europa urbana há alguns séculos. A
alegação mais famosa é a declaração de Adam Smith acerca dos benefícios
sociais do egoísmo humano:
Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que
esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios
interesses. Apelamos não à humanidade, mas ao amor-próprio, e nunca
falamos de nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter.
Esse postulado de que o amor-próprio se dissemina gradualmente entre as
pessoas é um dos precursores do método em que todos saem ganhando. Em
sua Teoria dos Sentimentos Morais, Smith desenvolve a ideia com sua
famosa metáfora da “mão invisível”. Os ricos, ele escreve:
apesar de seu egoísmo e de sua propensão à rapinagem naturais, posto que
tencionam somente o próprio conforto, ainda que o único fim ao qual
destinam os labores das milhares de pessoas que empregam seja a
satisfação de seus próprios desejos vaidosos e insaciáveis, eles distribuem
com os pobres o fruto de todos os seus progressos. São norteados por uma
mão invisível para fazer quase a mesma distribuição do que é necessário à
vida, e que teria sido feita se os territórios tivessem sido repartidos
igualmente entre todos os seus habitantes e, como consequência, sem o
pretender, sem o saber, fomentam o interesse da sociedade.
A busca egoísta pela prosperidade, argumenta Smith, atende à necessidade
de todos, exatamente como se intenciona fazê-lo. A partir dessa ideia geral se
originam teorias conhecidas, como a economia do gotejamento. Os benefícios
concedidos a poucos possibilitam que todos sejam beneficiados. Os
empreendedores é que fazem o bolo crescer. Smith diz ao homem rico para se
concentrar em gerenciar seus negócios, partindo do pressuposto de que as
consequências sociais positivas virão automaticamente, como um resultado
ditoso de seu egoísmo. Por intermédio da mágica do “livre mercado” — um
paradoxo, desde que a primeira regulamentação lhe foi imposta —, com
consequência, ele estrutura o bem-estar comum.
O tipo de situação em que todos saem ganhando representado pela
Portfolios with Purpose e pela Asana — assim como os novos fundos de
investimento de impacto comprometendo-se a conciliar retornos elevados
com a redução da pobreza, os novos empreendimentos sociais e os varejistas
adeptos do protocolo da base da pirâmide — inovou essa tradição ao
instaurar o caos. A atual situação em que todos saem ganhando foi construída
sobre a mesma premissa de harmonia no interesse dos vencedores e dos
perdedores, dos abastados e dos desprovidos, mas descartou a ideia do bem-
estar social como resultado ou consequência. Não foi dito aos vencedores dos
negócios para ignorar o bem-estar social e manter sua contribuição indireta e
involuntária. Eles deveriam se concentrar na melhoria social direta e
voluntariamente. Não bastava Rosenstein começar uma empresa de software;
ele tinha que começar um negócio que, ao seu ver, provavelmente melhoraria
a condição da humanidade.
Seguindo os passos da teoria de Adam Smith até o cenário em que todos
saem ganhando, o empreendedor passa de um incentivador fortuito do bem-
estar comum ao protagonista e principal responsável por ele. Os negócios
deixam de ser um setor com benefícios sociais para ser o principal veículo
que conduz à melhoria humana. “As empresas que atuam como negócios, e
não como instituições de caridade, são a força mais poderosa [grifo meu]
para abordar as questões prementes que enfrentamos”, declarou Michael
Porter, professor da Harvard Business School, em uma concepção da ideia.
“Os empreendimentos são, em última instância, o melhor jogo de soma
positiva, no qual é possível estabelecer um cenário em que todas as partes
interessadas do negócio saem ganhando”, escrevem John Mackey, diretor-
executivo da Whole Foods Market, e Raj Sisodia, em um livro que se tornou
a bíblia da crença do ganho mútuo, Capitalismo Consciente: Como libertar o
espírito heroico dos negócios.
O novo cenário em que todos saem ganhando é sem sombra de dúvidas uma
teoria muito mais radical do que a “mão invisível”. A velha ideia apenas
insinuava que os capitalistas não deveriam ser excessivamente controlados,
de modo que os resultados ditosos de sua ganância não atingissem os pobres.
A nova ideia vai mais longe, ao sugerir que os capitalistas são mais capazes
do que qualquer governo jamais poderia ser de resolver os problemas dos
desfavorecidos.
Uma declaração influente desse novo credo é encontrada no livro
Philanthrocapitalism: How the rich can save the world [“Filantrocapitalismo:
Como os ricos podem salvar o mundo”, em tradução livre]. Publicado no
segundo semestre de 2008, enquanto milhares de pessoas testemunhavam o
colapso das economias ao seu redor e poderiam ser desculpadas por pensar
que os ricos estavam arruinando o mundo, o livro defendia os ricaços como
os salvadores. Os autores Matthew Bishop e Michael Green destacam que
essa salvação não é mais uma feliz consequência, como antes, e sim uma
ação direta, quando os vencedores assumem a liderança da mudança social:
Os filantrocapitalistas de hoje enxergam um mundo repleto de problemas
importante que eles, e talvez só eles, conseguem e podem remediar.
Certamente, segundo eles, podemos salvar a vida de milhões de crianças
que morrem a cada ano nos países pobres devido à miséria ou a doenças
erradicadas nos países desenvolvidos. E, ao retornar para casa, nos Estados
Unidos ou na Europa, somos nós que precisaremos identificar meios de
fazer nossos sistemas educacionais funcionarem para todas as crianças.
Ao passo que as ideias de Adam Smith eram embasadas em uma análise de
como os mercados funcionam, a nova ideia é fundamentada a partir do ponto
de vista dos próprios arquimilionários. Bishop e Green elencam que as
pessoas que são bem-sucedidas pelos “seus próprios méritos” e que
construíram suas fortunas em meio ao “surto de prosperidade empreendedora
nos últimos 30 anos” são diferentes dos vencedores que os precederam, e não
somente por sua disposição em ajudar os outros ao partilhar a riqueza que
acabaram de conquistar. “Os empreendedores também são, por natureza,
solucionadores de problemas e gostam do desafio de enfrentar situações
complicadas”, escrevem Bishop e Green. Eles descrevem os
“filantrocapitalistas” como:
“hiperagentes” que têm a competência de fazer algumas coisas essenciais
melhor do que qualquer outra pessoa. Eles não disputam eleições
periodicamente, como os políticos, ou sofrem a tirania das exigências dos
acionistas por lucros trimestrais cada vez maiores, como os CEOs da
maioria das empresas públicas. Tampouco precisam dedicar quantidades
de tempo e recursos absurdos a fim de angariar dinheiro, como a maioria
dos líderes de ONGs. Isso os deixa livres para pensar em longo prazo,
refutar a sabedoria convencional, acatar ideias demasiado arriscadas para o
governo, mobilizar recursos substanciais rapidamente quando a situação
assim exigir.
Sob a égide da nova teoria, o empreendedorismo pode se tornar sinônimo de
humanitarismo — um humanitarismo do tipo que lubrifica as engrenagens do
empreendedorismo. “Na última década, ‘praticar o bem’ se tornou uma força
propulsora para a criação de negócios de sucesso e impacto”, escreve Craig
Shapiro, fundador do Collaborative Fund, uma empresa de capital de risco
em Nova York. “Outrora visto como um sacrifício para o crescimento e
retornos financeiros, a busca por uma missão social agora desempenha um
papel fundamental ao atrair clientes e funcionários.” Shapiro usou um
diagrama de Venn a fim de exemplificar a tese de investimento que sua
empresa criou à luz dessa tendência. Um círculo foi classificado como “O
melhor para mim (interesse próprio)”; o outro como “O melhor para o mundo
(interesse mais amplo)”. Sua sobreposição foi classificada como
“oportunidade exponencial”. Uma leitura caridosa dessa ideia é que o mundo
merece se beneficiar de negócios prósperos. Uma leitura mais sombria é que
as empresas merecem se beneficiar de qualquer tentativa de melhorar a
situação do mundo.
Não existe outro lugar em que essa ideia de empreendedorismo enquanto
humanitarismo seja mais arraigada do que no Vale do Silício, onde os
fundadores de empresas falam de si mesmos reiteradamente como
libertadores da humanidade, e de suas tecnologias como intrinsecamente
ideais. Afinal de contas, até mesmo no local de trabalho de uma empresa de
software como a Asana, de Rosenstein, se pode alegar que “melhoramos a
vida de todas as pessoas no planeta”. Há alguns anos, um amigo de
Rosenstein, Greg Ferenstein, se propôs a narrar essas alegações grandiosas e
explicar essa nova mentalidade que emanava do Vale. Ele era um repórter na
Bay Area que tinha escrito para muitas mídias, sobretudo para o TechCrunch,
o boletim informativo que promove o Vale do Silício. Interessara-se pelas
grandes ideias que entusiasmavam as pessoas que entrevistava — o que o
cenário em que todos saem ganhando concebia para o mundo e o que, às
vezes, ofuscava.
Ferenstein entrevistou diversos idealizadores da tecnologia e sintetizou as
ideias deles em uma filosofia de trabalho. Ele a chamou de Filosofia do
Otimismo, embora se assemelhe a uma versão um tanto influenciada pela
tecnologia das questões-padrão do neoliberalismo. A essência da ideologia,
segundo ele, é uma crença na possibilidade do ganho mútuo e da harmonia
dos interesses humanos. “As pessoas normalmente pensam no governo e no
mercado trabalhando um contra o outro — e a regulamentação é a ferramenta
pela qual o governo restringe o mercado”, afirma Ferenstein. “Essa nova
ideologia acredita que o governo é um investidor no capitalismo. O governo
não fiscaliza o capitalismo, ele o serve — trabalha para que o capitalismo seja
próspero, a fim de garantir que as condições para seu sucesso estejam
estabelecidas”. Ou seja, que exista um sistema educacional satisfatório para
capacitar a quantidade necessária de mão de obra; que os acordos comerciais
sejam elaborados de modo a permitir que as empresas comprem e vendam
para lugares remotos; que a infraestrutura possibilite que os caminhões
transportem os produtos para os supermercados antes que eles estraguem; que
o ar não esteja poluído, a fim de que as pessoas tenham uma vida longa e (o
mais importante) produtiva.
“Os alicerces do antigo governo são uma concepção de uma relação de
soma zero entre as diferentes classes — as classes econômicas, entre cidadãos
e governo, entre os Estados Unidos e outros países”, disse Ferenstein. “Uma
vez que se admite esse conflito inerente, você se preocupa com as
disparidades de riqueza. Você quer que os sindicatos protejam os
trabalhadores das corporações. E quer um Estado mínimo, que não dificulte
os negócios. Mas se partir desse princípio, e acreditar que todas as
instituições precisam ser bem-sucedidas e trabalharem juntas, você não quer
sindicatos, regulamentação, soberania ou qualquer outra coisa que proteja as
pessoas umas das outras.
“A maior parte das políticas e a maioria das instituições são construídas em
uma relação de soma zero entre algumas pessoas no grupo”, prossegue
Ferenstein. “Esta é uma ideologia inigualável, e o motivo pelo qual a chamei
de Otimismo é por causa da crença de que todos podem se entender bem. Ou
todo mundo tem, para ser mais específico, preferências que coincidem.”
Esta ideia tem como objetivo se opor à visão democrática moderna de
sociedade, em que os cidadãos são iguais perante a lei, são reconhecidos
como tendo interesses divergentes e concorrem, com base nesses interesses,
por recursos e poder por meio de diferentes órgãos do Estado designados para
representar os tipos distintos de necessidades. O Otimismo remonta a uma
perspectiva de harmonia enquanto progresso que dominou a Idade Média. O
poema “The Fable of a Man, His Belly, and His Limbs” [A Fábula de um
Homem, Seu Estômago e Seus Membros, em tradução livre], do século XII,
de Marie de France, versa sobre as partes do corpo humano que se ressentem
umas das outras até se darem conta de que são interdependentes. De início, as
mãos, os pés e a cabeça (representando os trabalhadores) estão possessos com
o estômago (representando os senhores) pois “ele consome seus ganhos”.
Eles param de trabalhar, de modo a privar o estômago de alimentos — e
basicamente definham quando o estômago não tem alimento para digerir e
passar-lhes os nutrientes. O poema conclui:
Por este exemplo todo mundo pode ver
que toda pessoa livre devia saber:
Não se confere a honra A quem envergonha a seu senhor. Tampouco seu
senhor pode consegui-la Se deseja envergonhar seu povo. Se um empurra
o outro na desgraça
O infortúnio cai sobre todos.
A fábula consente que as mãos, os pés e a cabeça prosperem. Mas, insiste,
eles não podem prosperar quando o estômago também não estiver
prosperando. Acreditar nessa perspectiva não é enjeitar os trabalhadores
servis. É, antes, dizer que o sucesso de todos nunca pode se opor ao sucesso
dos mais fortes.
A audácia dessa ideia do Mercado Global não é nem um pouco moderada.
Ela rejeita a concepção de que existem diferentes classes sociais com
interesses distintos que precisam lutar em favor de suas necessidades e
direitos. Em vez disso, conseguimos o que merecemos por meio das
sistematizações de mercado — seja com o fantasy football para ajudar os
órfãos africanos, com uma plataforma de gerenciamento de trabalho a fim de
que todo mundo seja mais produtivo ou com a venda de pasta de dentes aos
pobres visando aumentar o valor para os acionistas. Essa doutrina em que
todos saem ganhando adquiriu um alcance bem maior do que Adam Smith
jamais teve, ao afirmar que os vencedores tinham competência para zelar
pelos perdedores. Contudo, o que eles têm para ostentar em relação às suas
iniciativas, visto que a era em que todos saem ganhando é também, em
grande parte do Ocidente, a era da desigualdade histórica e escancarada?
Em um país cuja classe média está em decadência, em um mundo
geralmente atormentado pela angústia no que tange à globalização, à
tecnologia e ao desalojamento, qual seria a resposta da teoria em que todos
saem ganhando para a questão do sofrimento? “Essa ideologia não enfatiza
isso”, afirma Ferenstein. O sofrimento pode ser inovado. Deixe os inovadores
lançarem suas startups e o sofrimento será abreviado. Cada empreendimento
poderia se comprometer com um problema social diferente. “No caso do
Airbnb, o modo como amenizar o sofrimento em relação à habitação é
possibilitar que as pessoas compartilhem suas casas”, disse Ferenstein. Ao
seguir essa linha de raciocínio, uma campanha publicitária do Airbnb
mostrava mulheres negras mais velhas prosperando, agora que os
empreendedores as ajudaram a alugar quartos e ganhar uma renda extra. É
claro que muitas pessoas pobres não têm casas ou espaço de sobra para
alugar. E muitos afro-americanos enfrentam dificuldades para alugar imóveis
nessa plataforma — os hotéis não conseguem mais discriminar as pessoas por
causa de sua etnia, mas os anfitriões que alugam os quartos vagos, não raro,
costumam fazê-lo. Porém mais surpreendente do que os pontos fracos dessa
tese era a noção, implícita na ideia de Ferenstein, de que os vencedores
deveriam receber uma comissão pela mudança social.
Na verdade, no caso do Airbnb e de outros em que todos saem ganhando, as
afirmações de um equilíbrio de interesses é a esperança disfarçada de
representação. Ainda existem vencedores e perdedores, poderosos e
impotentes, mas a afirmação de que todos estão juntos no mesmo barco é
como passar uma borracha nas realidades inconvenientes dos outros. “Essa
ideologia supervaloriza de forma drástica quem se beneficiará com a
mudança”, admitiu Ferenstein. No entanto, o que acontecerá quando os que
creem na mudança em que todos saem ganhando acumularem cada vez mais
poder — e não somente poder econômico, mas também o poder de conduzir a
busca pelo aperfeiçoamento da sociedade, por meio de uma startup de cada
vez? “As pessoas serão deixadas para trás”, disse Ferenstein. “Os que não são
inteligentes, os pobres, miseráveis, desmotivados, estes ficarão para trás. As
pessoas que não gostam de mudanças serão marginalizadas. As que gostam
de cidadezinhas suburbanas serão esquecidas. Quem não quer trabalhar 24
horas por dia ficará de fora. As pessoas que, podendo fazê-lo, não vivem para
inventar e criar não terão vez.” Ao que tudo indica, essa lista contradiz toda a
premissa do Otimismo — a de que todos nós estamos imbuídos no sucesso
um do outro e que prosperaremos juntos. Aliás, parecia que agora Ferenstein
estava afirmando que quanto mais os otimistas fizessem, mais as pessoas
ficariam à deriva. Essa afirmação condizia e muito com o que realmente
estava acontecendo no mundo — os frutos do progresso escoam
principalmente para as mãos dos já afortunados; uma exclusão generalizada
daqueles que estão do lado errado da mudança.
Os vencedores pouco se importam que seus próprios feitos se apresentem
como algo tão indissociável do sucesso dos outros. No entanto, sempre
haverá situações em que as preferências e necessidades das pessoas não
coincidem e, na prática, entram em conflito. Mas, então, o que acontece com
os perdedores? Quem protege o interesse deles? E se as elites simplesmente
decidirem usar ainda mais o dinheiro deles com o intuito de que todos os
norte-americanos tenham, digamos, uma escola pública razoável?

L ogo depois de se mudar para a Bay Area com o objetivo de administrar a


Silicon Valley Community Foundation, Emmett Carson fora instruído a
abrir mão do uso do jargão ganhadores/perdedores no que diz respeito à
justiça social. Visto que a justiça social era o trabalho de sua vida, isso
poderia gerar um problema. Mas Carson entendeu uma das regras implícitas
que regem a contribuição da classe empreendedora para a mudança: as coisas
ficam mais acessíveis quando você enquadra os problemas de formas com as
quais os vencedores se sintam bem.
Carson crescera em South Side, Chicago, filho de funcionários municipais;
um menino negro em um bairro estatisticamente cruel com meninos negros.
No entanto, quando tinha 8 anos, um tiroteio do lado de fora da casa dos
Carson fez com que se mudassem para cerca de 30 quarteirões de South Side,
um bairro melhor chamado Chatham Village. A vida de Carson tomou um
rumo diferente. Ele galgou seu caminho para a Morehouse College, depois
para a pós-graduação em Princeton e para cargos de prestígios nas fundações
Ford e Minneapolis. Então, foi para o Vale do Silício, onde se tornou um dos
principais consultores dos empreendedores de tecnologia desejosos para fazer
a diferença no mundo.
Foi quando lhe disseram que parasse de usar a expressão “justiça social”.
Ela havia funcionado bem para ele na Ford e na Minneapolis. No Vale do
Silício, ela pressionava as pessoas de maneira errada. “Passei 25 anos
trabalhando com justiça social”, me disse ele um dia, “e nos primeiros 20 eu
achava importante usar o termo ‘justiça social’”. No Vale do Silício, “as
pessoas interpretam a justiça social de formas diferentes”, muitas vezes com
uma ideia de perdedores/vencedores. “Algumas pessoas dizem que a justiça
social está tirando dos ricos para dar aos pobres”, afirma Carson. “Outras
pensam que a justiça social está dando coisas para pessoas que não merecem
nada.” Sendo assim, Carson começou a utilizar a palavra “equidade”.
Os vencedores do Vale a preferiram. A palavra equidade passava a
impressão de ter mais a ver com pessoas tratadas por sistemas abstratos do
que com a possibilidade de os próprios vencedores serem cúmplices disso.
“Estou prestes a chegar a uma solução”, disse Carson. “Se o uso da palavra
‘equidade’ nos permite afirmar que as coisas estão erradas e precisam ser
mudadas, essa é a melhor palavra para mim. Estou tentando minimizar as
distinções e as divisões, e criar estruturas que pessoas diferentes possam dizer
‘eu acredito nisso’.”
Carson começou a entender que, desde que ninguém questionasse a fortuna
dos empreendedores e seu próprio status quo, eles estavam dispostos a
ajudar. Eles tinham gosto pela filantropia, por se sentirem importantes.
Gostavam da chance de terem a palavra final no que diz respeito à ajuda que
os mais necessitados receberiam, não de organizar essa ajuda por intermédio
da democracia e da ação coletiva (o propósito inicial pré-Asana). “O ponto de
vista de que eles tiraram algo de você em oposição ao de que eles lhe deram
algo muda toda a dinâmica da conversa”, disse Carson. Talvez eles tivessem
a impressão “de que estou sendo alvejado porque sou bem-sucedido, trabalhei
duro, eu consegui; e, porque eu consegui, agora sou o alvo, você acha que
merece um pouco do meu sucesso que você não teve”. Carson deixa claro
que não acreditava que eles tivessem razão em seu sentimento de vitimização.
Porém, com o intuito de fazer o seu trabalho, decidiu respeitar esse
sentimento.
Carson passou a vida inteira trabalhando em questões de pobreza,
oportunidades e desigualdade. Mas agora, convivendo e trabalhando com as
classes filantrocapitalistas em ascensão, ele decidira seguir as regras deles. E
o que esses vencedores queriam era que o mundo fosse mudado conforme
suas diretrizes — pense em escolas charter [com gestão público-privada], em
vez de financiamentos de escolas públicas mais igualitárias, ou em empresas
de tecnologia que reduzem a pobreza em vez de regulamentação antitruste
para as empresas de tecnologia. Os empreendedores estavam dispostos a
fazer do mundo um lugar melhor caso se buscasse esse objetivo de forma que
os isentasse, os celebrasse e dependesse deles. Todos saem ganhando.

elembre-se do diagrama de Venn de Craig Shapiro, o capitalista de risco.


R Existe, segundo ele, um círculo enorme de coisas que fariam o mundo
melhor para ele mesmo e outro círculo imenso de coisas que fariam o mundo
um lugar melhor para todos. A interseção entre esses dois círculos oferece
uma oportunidade excepcional. Além do mais, “a busca por uma missão
social agora desempenha um papel fundamental ao atrair clientes e
funcionários”. Mas e quanto às pessoas que têm muito pouco, e o mundo em
geral?
O ganho óbvio é o acesso aos recursos, inteligência e ferramentas do mundo
abastado. De repente, esse potencial pode ser aproveitado para solucionar seu
problema. Todavia, no diagrama de Venn, de Shapiro, vale notar que a maior
parte desses círculos permanece fora da interseção em que todos saem
ganhando — o que os matemáticos chamam de complemento relativo. O que
acontece com os interesses de outras pessoas que não se enquadram nos
interesses dos vencedores?
Essa pergunta rondava Jane Leibrock enquanto estava atrás do volante do
Ford Bronco amarelo e barulhento que servia como o veículo oficial da
startup a que ela havia recentemente se juntado, à medida que atravessava a
rodovia Nimitz na Bay Area.
Leibrock deixou o Facebook, onde investigava coisas sobre como as
pessoas lidam com as configurações de privacidade, e começou a trabalhar
em uma nova empresa chamada Even. Ela se interessou profundamente pela
tentativa da Even de solucionar um enorme problema social: a crescente
instabilidade de milhões de trabalhadores norte-americanos, graças à prática
generalizada de empregar pessoas de maneira irregular, ao aumento de
empregos de meio período e temporários, e à nova economia sob demanda,
em que as pessoas se viam em uma situação perpétua de caçar trabalho em
vez de construir meios de subsistência.
Quando os salários aumentam e despencam, sem mais nem menos, é difícil
pagar as contas, fazer planos ou imaginar um futuro. A Even chegou a
oferecer uma solução ao estilo Vale do Silício para esse problema, na forma
de, evidentemente, um aplicativo de celular. Por uma taxa, o app nivelaria os
rendimentos oscilantes das pessoas da classe trabalhadora. O plano inicial era
vender um serviço a um custo anual de US$260; ele reservaria parte do
dinheiro do assinante quando ele ganhasse mais do que o habitual e, então,
semanas depois, quando seu rendimento fosse menor, seria complementado
com o dinheiro reservado. Digamos que você ganhe US$500 por semana em
média, mas com oscilações consideráveis.
Em uma semana em que seus ganhos fossem de US$650, US$500 cairiam
em sua conta bancária normal e US$150 seriam depositados em sua conta
Even virtual. Na semana em que você ganhasse US$410, US$500 seriam
depositados em sua conta bancária, cortesia de seus saldos positivos. A Even
se empenharia, com a ambição característica do Vale do Silício, em
contrabalançar os efeitos de uma geração de mudanças de valor nas vidas dos
norte-americanos da classe trabalhadora, enraizadas em escolhas políticas,
transições tecnológicas e situação mundial — incluindo terceirização, salários
estagnados, horas irregulares, sindicatos comprometidos, desindustrialização,
dívida inflacionada, falta de licença médica, escolas deploráveis,
empréstimos devastadores e programação dinâmica —, ao mesmo tempo em
que não fazia nada a respeito desses problemas latentes. Como Rosenstein e
outros adeptos do todos saem ganhando, os fundadores da Even queriam
muito ajudar, porém achavam melhor ajudar de um jeito que criasse também
alguma oportunidade para eles.
Leibrock estava entre as primeiras contratações dos fundadores da Even e,
naquele dia, ela estava na rodovia Nimitz dirigindo, indo de entrevista em
entrevista, aprendendo a respeito das vidas e necessidades dos trabalhadores
pobres, para que a Even pudesse atendê-los efetivamente como clientes. Era
graduada em Yale e nas faculdades particulares de Austin, Texas, e não tinha
nem um vestígio de sotaque. Fazia parte da grande corrida da inteligência da
Califórnia, que estava transformando a Bay Area em uma das regiões mais
inacessíveis, desiguais e inquietantes do país, com moradores locais
rancorosos atirando pedras nos ônibus do Google que transportavam os
funcionários da empresa para South Bay. Leibrock e seus colegas da Even
tinham intenções nobres, todavia ainda era sensato questionar se o esquema
de segurança com fins lucrativos da Even era a resposta mais adequada ao
problema que seus fundadores identificaram. A Even poderia ser interpretada
como uma aposta lucrativa pela qual a nova economia, impreterivelmente,
ilude uma classe já desfavorecida, cujos rendimentos poderiam ser apenas
nivelados, não elevados — e nivelados não pela restrição legal de
determinadas práticas de negócios (alguns ganham/outros perdem), mas pela
cobrança de uma taxa por essa segurança aos trabalhadores (todos saem
ganhando)? “Caso queira sentir como se tivesse um esquema de segurança
pela primeira vez em sua vida, a Even é a resposta”, dizia o site da empresa.
Mas esse era um novo tipo de “esquema de segurança” do Mercado Global
que não solicitava ao público e ao governo ajuda de modo algum.
Lá estava Leibrock em uma Starbucks, conversando com uma mãe solo
sobre a tentativa de conciliar seu trabalho, formação e seu constrangimento
por depender das fraldas que ganha de seus pais. Lá estava Leibrock com
uma funcionária de uma loja da Nike, que explicava como seus chefes a
mantinham em uma escala de trabalho de poucas horas, para que não
precisassem lhe pagar benefícios, enquanto exigiam que ela ficasse
disponível a maior parte da semana, coisa que a impedia de arrumar um
segundo emprego. Lá estava Leibrock em um centro comercial, perguntando
a uma estoquista de mercado chamada Ursula sobre o exercício mental de
administrar pouquíssimo dinheiro, horas de trabalho que variavam
semanalmente e a dificuldade de se fazer planos. Apesar de trabalhar 36
horas por semana, em média, no supermercado, ela não conseguia bancar a
gasolina necessária para buscar seus netos na escola, em São Francisco.
Ursula contou da depressão que a acometia, do Parkinson de seu pai e da
demência de sua mãe.
O trabalho de Leibrock a colocava em contato com uma parte dos Estados
Unidos que o Vale do Silício ignorava. Entrevista após entrevista, Leibrock
apurava o senso desse outro país. Um dia, ela estava entrevistando por Skype
uma mulher chamada Heather Jacobs a respeito de sua vida e finanças. A
conversa começara de um modo estranho, pois Jacobs tinha entendido mal o
que a Even estava oferecendo. Seu marido lhe dissera que a empresa fornecia
crédito livre, o que não era verdade.
Ao perguntar a respeito do trabalho de Jacobs, Leibrock sabia que tinha que
escolher as palavras com cuidado: “Conte-me, você está fazendo algum
dinheiro. Você trabalha em quê? Ou quantos trabalhos tem?”
Jacobs disse que trabalhava em uma rede de massagens corporativa e como
freelancer para ganhar um dinheiro extra. “Então, basicamente, trabalho
muito todos os dias”, disse. Ela explicou como normalmente ganhava
dinheiro trabalhando de 26 a 32 horas semanalmente. Além disso, ia às casas
das pessoas para sessões particulares ou a academias; elas não pagavam, mas
era permitido que recebesse gorjetas.
Todo mês ela perdia um pouco o chão quando o dinheiro estava acabando,
ainda havia contas para pagar e ela não ganhara o bastante. Ela se sentia
como se “estivesse prestes a enlouquecer e arrancar todos os fios de cabelo. É
quando fico desesperada, vou para tudo quanto é lugar com o intuito de
encontrar pessoas para massagear”. Acrescentou: “Geralmente é perto do dia
27, quando a fatura do meu cartão de crédito vence. O pagamento mínimo é
de cerca de US$90 no momento. É quando entro em pânico.”
Jacobs explicou os detalhes de como era paga. Ela esclareceu que, como
tantos trabalhadores norte-americanos, suportava muito mais do que antes era
considerado risco em uma empresa. Caso a empresa conseguisse lhe garantir
mais massagens, ela poderia ganhar US$18 por hora, sem contar as gorjetas.
Se a empresa não tivesse muitas reservas, seu pagamento despencava para o
mínimo e suas horas poderiam ser reduzidas — do mesmo modo que muitos
norte-americanos trabalhavam nos dias de hoje. Em um período de duas
semanas, ela chegou a ganhar US$700; em outros, US$90.
E, ultimamente, tudo estava se acumulando — o trajeto de 70 quilômetros; a
velha dívida que ela estava pagando para seu marido, Greg, entregador de
meio período da Red’s BBQ que estudava na Universidade Estadual da
Califórnia, em Channel Islands; sua própria pontuação de crédito prejudicada,
graças aos US$3.700 em mensalidade da escola de massagem que ela ainda
devia em seu cartão de crédito; o cachorro que precisava de ração. Segundo
ela, esse acúmulo de coisas era “assustadoramente estressante”. Ela disse:
“As coisas estão desmoronando aos poucos”, antes de se perder em seus
próprios pensamentos.
“Não lido bem com muito estresse”, disse logo depois, “porque tenho
transtorno bipolar, passo diretamente para o estado total de estresse, e então
tenho um ataque de pânico”.
Jacobs começou a ter ataques quando pensava em dinheiro — no que era
para contas, no que estava entrando. Quando um ataque se manifestava, ela
sentia um nó na boca do estômago — “como se você estivesse prestes a
sofrer um acidente de carro”. Parecia, disse, como um abraço forçado de
alguém que você não quer abraçar. (E, por acaso, um dos fundadores da Even
decidiu começar a empresa quando leu um artigo na revista Science, “Poverty
Impedes Cognitive Function” [A Pobreza Dificulta a Função Cognitiva, em
tradução livre], a respeito de como pensar em dinheiro pode ser
psicologicamente nocivo quando você é pobre. O estudo descobriu que
abordar as pessoas pobres em um shopping e fazer uma pergunta hipotética
sobre dinheiro, como gastar muito no conserto de um carro imaginário,
poderia reduzir seu QI em um teste posterior em 13 pontos em relação às
pessoas que não foram perguntadas sobre dinheiro; uma queda comparável ao
efeito de ser alcoolista ou perder uma noite de sono.)
Jacobs continuou: “Logo, tenho que tentar conseguir os remédios, mas eles
custam US$60 por mês.”
Leibrock perguntou como Jacobs imaginava uma vida mais saudável e
satisfatória.
“Acho mais animador ter uma renda estável. Imagine, apenas sair e assistir
a um filme sem ter que discutir por uma hora se vale a pena”, disse ela. “Em
vez disso, deveríamos apenas pegar um sorvete e assistir algo na Netflix? Ou
deveríamos sair à noite? Quer dizer, faz praticamente um ano e meio que não
saímos para namorar, sendo honesta com você. Ficamos sempre em casa e
nunca saímos com amigos, porque não podemos pagar nada.”
Jacobs e seu marido costumavam fazer compras no Walmart, porém, em
tempos de vacas magras, eles mudaram para o Dollar Store. Ambos estavam
ganhando peso com as novas escolhas. O alto teor de sal e de açúcar nos itens
baratos e processados que estavam comprando a prejudicava. Ela estava
convencida de que a comida era responsável pela dor que sentia agora pela
manhã, quando saia da cama.
Jacobs vinha de outro Estados Unidos, cuja vida dos moradores se tornara
cada vez mais insegura nos anos de ascensão do Vale do Silício — 117
milhões de pessoas para as quais uma geração de inovações extraordinárias
praticamente não se traduziu em nenhuma renda extra, em média. Os Estados
Unidos estavam produzindo algumas das empresas mais ambiciosas e
admiráveis da história, conectando bilhões de pessoas ao redor do mundo e às
suas redes, mas, à sombra de seu desenvolvimento, era um país cada vez mais
cruel com as pessoas comuns. “A sociedade me diz que tenho que ir à
faculdade, arranjar um bom emprego e depois receber um salário, porque
vivo nos Estados Unidos”, disse Jacobs em outra ocasião. “Foi o que eu fiz, e
agora estou endividada. Estou sufocada.”
A história de Jacobs expõe muitas disfunções da máquina do progresso
norte-americano. Ela resulta no sistema de saúde do país e no problema de
medicamentos inacessíveis; em seu sistema de transporte público; em suas
leis salariais e trabalhistas; em seu sistema alimentar e em seus desertos
alimentares; em sua crise de endividamento estudantil; em sua denominada
grande mudança de risco, pela qual os Estados Unidos corporativos
estabilizaram suas próprias declarações de renda ao longo de uma geração,
sobrecarregando os trabalhadores com a incerteza; e as formas pelas quais os
acionistas gerenciam mais e mais as empresas, em detrimento de todas as
outras partes interessadas.
Vinod Khosla, o bilionário capitalista de risco cuja empresa encabeçou os
investimentos iniciais na Even, passara a alertar as pessoas sobre como a vida
de Jacobs é a realidade iminente de grande parte dos norte-americanos, a
menos que o governo interferisse. Ele vislumbrou isso entre o triunfalismo
que permeava seu círculo do Vale do Silício. Em uma manhã, sentado em sua
sala de conferências no segundo andar, resfriado, Khosla disse que esperava
que as disrupções, que já haviam provocado tanto caos na vida da classe
trabalhadora, continuariam e se intensificariam à medida que a automação se
disseminasse pela economia. Ele esperava que o mundo continuasse a
transbordar inovação, ainda que deixasse a desejar em progresso, se esse
progresso se traduzisse na prosperidade dos seres humanos. Ele acreditava
que, em um futuro não muito distante, a cada dez pessoas, sete ou oito não
teriam trabalho fixo à disposição. Para ele, este futuro próximo era tanto uma
questão de lazer (como poderíamos ocupar a mente de todas as pessoas?)
como política (como impediríamos que elas se revoltassem?).
Khosla, a propósito, não acredita que aplicativos, como aqueles em que ele
investiu na Even, eram a resposta certa para o problema. O que poderia evitar
as tensões sociais, disse ele, é “se — um grande se — fizéssemos uma
redistribuição satisfatória, se instaurássemos condições mínimas de vida a
todos, para que possam trabalhar quando querem trabalhar, e não porque
precisam trabalhar”. Ele sabia que tamanha redistribuição poderia custar caro
para pessoas como ele, na forma de impostos mais altos. Contudo, a seu ver,
era um bom investimento. “Grosso modo, é subornar a população para que se
sinta bem o bastante”, disse ele. “Senão, eles trabalharão para mudar o
sistema, certo?”
A abordagem demasiadamente diferente proposta pela Even tinha
vencedores cobrando dinheiro de pessoas como Jacobs, visando facilitar sua
segurança financeira ao ajudá-la a estabilizar sua vida enquanto gerava
dinheiro para eles. Era compreensível e elucidativo que um vencedor que já
tivesse ganhado mais dinheiro do que precisava se sentisse à vontade para
questionar as limitações de tal abordagem — de modo que os jovens
investidores, com suas fortunas ainda por ganhar, não o fariam. O investidor
bilionário estava descrevendo uma obrigação social coletiva imensa, que os
fundadores nos quais ele investira estavam tentando transformar em uma
situação em que todos saem ganhando, por meio de um app de finanças
pessoais.
Essa ressignificação era fonte de apreensão para Jacob Hacker, um cientista
político da Yale que cunhara o termo “grande mudança de risco” em um livro
homônimo e cujo trabalho ajudou a inspirar os fundadores da Even. “A Even
é uma solução pessoal para um problema público”, contou-me ele. Hacker,
que estava entre os primeiros a fazer com que a crescente instabilidade de
renda fosse uma questão nacional, afirmou que estava “fascinado” pela Even.
Ele achou a ideia “profundamente apelativa e intrigante”, com “muitas
questões a serem trabalhadas, mas também muito a se admirar” em relação ao
modelo de negócios. No entanto, Hacker estava preocupado. “Sua adoção
ameniza a pressão pela ação coletiva, seja uma ação coletiva privada, como
sindicatos, ou pública, como a dos movimentos sociais?”, perguntava. “Seria
uma triste ironia se um grande Band-Aid fosse posto para encobrir uma
grande operação — a expansão do seguro-desemprego, licença parental
remunerada, sindicatos e novas alternativas sindicais, e assim por diante —
que os cidadãos inseguros precisam desesperadamente.” Hacker fazia menção
aos grupos de cidadãos, individualmente impotentes, possivelmente se
unindo para ganhar força em número e enfrentar os interesses dos poderosos
— a ideia, em suma, de ação política. Agora, essa ideia entrava em conflito
com uma abordagem deveras sedutora: os vencedores do mundo decidindo
como e o quanto de generosidade conceder, ou concentrando-se na interseção
do diagrama de Venn para solucionar os problemas dos desfavorecidos que
também os serviam — e fazendo somente o suficiente para evitar o ímpeto
explosivo de união.
Caso você perguntasse: “Qual é a melhor forma de ajudar Heather Jacobs?”,
é bem provável que a resposta franca não seria cobrar US$260 por ano para
equilibrar sua renda. Se você fosse uma pessoa erudita, com privilégios e
acesso a recursos, como eram todos os que trabalhavam na Even, poderia
chegar à conclusão de que deveria fazer alguma coisa para corrigir os
sistemas que estão trabalhando para manter Jacobs pobre. Todavia, caso esses
problemas fossem solucionados, você não teria muito lucro em um negócio
em que todos saem ganhando. Caso se tornasse ilegal empregar as Heather
Jacobs do mundo da forma que elas são empregadas, ou se a ideia de Khosla
de uma redistribuição imensa fosse colocada em prática, talvez a Even fosse
desnecessária.
CAPÍTULO 3
REIS REBELDES EM BOINAS ALARMANTES

m novembro de 2017, Stacey Asher e Greg Ferenstein, assim como


E muitos outros partícipes do Mercado Global, se encontraram a bordo de
um navio de cruzeiros da Norwegian Cruise Line de 145.655 toneladas rumo
às Bahamas. A ideia de ser bem-sucedido ao praticar o bem a outrem é um
evangelho celebrado e reevangelizado em uma cadeia infindável de
assembleias de fiéis da renovação mundo afora. Os integrantes do Mercado
Global podem fortalecer tal missão conferência após conferência: Davos,
TED, Sun Valley, Aspen, Bilderberg, Dialog, South by Southwest, Burning
Man, TechCrunch Disrupt, Consumer Electronics Show, e agora no Summit
at Sea, em um navio de cruzeiro repleto de empreendedores cujo desejo é
mudar o mundo.
O Summit at Sea era uma celebração marítima voluptuosa de quatro dias,
um louvor ao credo de usar os negócios para mudar o mundo — e, talvez,
usar o “mudar o mundo” para prosperar nos negócios. Reunia muitos
empresários e investidores importantes, que investem em empreendedores,
alguns artistas e professores de ioga, com o intuito de manter as coisas
interessantes e saudáveis, e diversas outras pessoas que costumam gerenciar
esses círculos e cujas biografias se referem a elas empregando termos como
“influenciador”, “líder de pensamento”, “curador”, “mediador”, “conector” e
“gerente de comunidade”. O Summit, sendo um dos ingressos mais badalados
para o Mercado Global, despertou o interesse dos fundadores ou
representantes de instituições respeitáveis como AOL, Apple, Bitcoin
Foundation, Change.org, Dropbox, Google, Modernist Cuisine, MTV,
Paypal, SoulCycle, Toms Shoes, Uber, Vine, Virgin Galactic, Warby Parker
e Zappos. Havia alguns bilionários e vários milionários a bordo, e muitos
outros que pagaram o equivalente ao salário mensal de um norte-americano
médio para participar.
Selena Soo, publicitária de Nova York que estava a bordo e representava
muitos desses tipos de empreendedores, captou devidamente a perspectiva
reinante. “Trabalho com clientes cuja missão pessoal é melhorar a vida de
outras pessoas”, escreve ela em seu site. “Quando seus negócios prosperam, o
mundo se torna um lugar melhor.” Blair Miller, que também estava a bordo
do navio e trabalha há muito tempo no que ela enxerga como o elo dos
negócios e do bem-estar social, falou nos seguintes termos, em uma
entrevista publicada por uma boutique de roupas:
A questão para mim nunca foi se eu deveria dedicar minha carreira ao
impacto social; sempre foi: COMO posso causar o maior impacto? Hoje,
os negócios são uma força hegemônica no mundo, e acredito que, se eu
puder influenciar a maneira como os negócios são feitos, posso mudar a
vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
Uma vez que acredite que os negócios são instrumentos por meio dos quais
você muda as coisas nos dias de hoje, uma conferência de empresários
oferece possibilidades ilimitadas. Na verdade, muitos dos que estavam a
bordo do navio haviam recebido recentemente uma mensagem inspiradora de
um dos organizadores da conferência, que circunscrevia a missão do Summit
em termos históricos mundiais:
Ao leste, os ventos estão ficando mais fortes, e, em seis breves dias, algo
transformador despontará do céu e da Lua, e isso pode mudar a história.
Não podemos ver o efeito em sua totalidade agora… mas é assim com
todas as grandes mudanças na cultura. É assim com grandes mudanças
sísmicas entre as placas do planeta Terra.
Um palestrante motivacional e líder de pensamento chamado Sean
Stephenson proporcionaria um relato um pouco mais sincero, se não menos
ambicioso, da finalidade do Summit em uma palestra de boas-vindas aos
participantes. Vinha na forma de três orientações com o objetivo de desfrutar
ao máximo aquela oportunidade. Primeira: “Nesta sala, você pode fazer
contatos que o ajudarão a provocar um efeito dominó na humanidade.”
Segunda: “Você fará amigos que impactarão seu bolso.” Terceira: “Este
cruzeiro não se trata de beber e ficar pelado. Até pode ser. Mas também se
trata de justiça social.”
E, ainda assim, os fatos que persistiam em uma época cuja desigualdade era
flagrante ofuscavam esse cenário de impacto no bolso em favor da justiça
social, e do uso dos negócios para desobstruir as potencialidades e germinar
as sementes da transformação. Quanto mais esses empreendedores
proclamavam a mudança do mundo, mais esses fatos vinham à tona, expondo
ao ridículo suas alegações insignes e egoístas. E isso era válido sobretudo
para uma subtribo de participantes do Summit at Sea: a que vinha do Vale do
Silício e do mundo da tecnologia, com suas alegações audaciosas, inclusive
para os padrões do Mercado Global, de que o que era bom para os negócios,
era ótimo para a humanidade.
Os novos magnatas da tecnologia eram os Rockefellers e os Carnegies de
nosso tempo, acumulando fortunas vultuosas, construindo os alicerces de
uma nova era e afirmando reiteradamente agirem em serviço da própria
civilização. “O incrível em tecnologia”, dissera Justin Rosenstein, levando
em consideração suas experiências no Google, Facebook e com sua própria
startup que visava mudar o mundo, “é que as possibilidades são tantas que
você pode ter o melhor dos dois mundos também, certo?”. Mas, à medida que
se dilapidavam as coisas, não havia como negar que esses nomes da
tecnologia também eram, em parte, responsáveis por alavancar a
desigualdade, que já se tornara insustentável. (Não era por acaso que a cidade
que eles adotaram, São Francisco, tenha se tornado talvez uma das cidades
norte-americanas mais desumanamente injustas, com cada vez menos espaço
e chance para a gente comum construir uma vida.) Muitos deles vociferavam
em favor da eliminação dos sistemas criados, entre outras coisas, a fim de
proteger a igualdade, como sindicatos, regulamentos de zonas urbanas ou leis
que asseguravam postos de trabalho e benefícios para os trabalhadores.
Como se sustentava a crença de que todos saem ganhando, à luz da
evidência de que alguém realmente contribuía para a desigualdade? Como os
novos magnatas atenuam a dissonância cognitiva diante da alegação de
melhorarem a vida das pessoas, enquanto se percebe que talvez a única
melhoria seja em suas próprias vidas? Um dia, no Summit at Sea, na fonte do
Bliss Ultra Lounge no sétimo andar do navio, um sumo sacerdote do mundo
tecnológico, um capitalista de risco chamado Shervin Pishevar, estava
demonstrando meios de assistência humanitária.
Pishevar estava entre os principais capitalistas de risco do Vale do Silício,
um status que ele havia consolidado ao realizar investimentos preliminares no
Airbnb e na Uber. Esses investimentos geraram tanto lucro que seus netos
poderiam ser filantropos em tempo integral. Pishevar era um imigrante
nascido no Irã, cujo país que o acolhera, por intermédio do Departamento de
Segurança Interna, lhe concedera o título Outstanding American by Choice.
Ele era um criador de reis do Vale do Silício, com quem o fundador da Uber,
Travis Kalanick, aprendeu a arte de frequentar baladas em Los Angeles;
segundo o New York Times, Pishevar o ajudava até a se vestir para as baladas.
E os empresários da Summit at Sea sabiam que um capitalista de risco como
Pishevar, cuja empresa se chamava Sherpa Ventures, estava em uma posição
que, se ele desejasse, conduziria qualquer um até o topo do alto escalão.
Ter ciência disso ajudava a explicar a multidão de corpos espremidos que
viera assistir à palestra de Pishevar, intitulada “All Aboard the Hyperloop:
Supersonic storytelling with VC Shervin Pishevar” [Todo Mundo a Bordo do
Hyperloop: A Storytelling Supersônica com o Capitalista de Risco Shervin
Pishevar, em tradução livre]. As pessoas se apinhavam em poltronas e sofás;
algumas sentavam e outras se deitavam no chão; outras se empoleiravam no
mezanino, em volta de uma sacada no oitavo andar, observando o que
acontecia lá abaixo. A multidão ouvia tudo extasiada, em um silêncio
cerimonioso.
O que eles ouviam era um homem poderoso que, aparentemente, se
desdobrava para explicar seu poder e se promover como um cidadão em
busca de coisas mais nobres do que dinheiro. “Compartilhar é cuidar”,
afirmou Pishevar em dado momento. Ele admitiu que era piegas, mas disse
que realmente acreditava naquilo. “No final das contas, não se trata de
dinheiro”, continuava ele. “Trata-se de amor e de momentos definidores de
caráter.” O povo do Summit batia palmas e gritava em reconhecimento. Eles
também acreditavam que não era uma questão de dinheiro, pode-se supor.
Pishevar então se valeu da tecnologia para a longevidade, foco elementar de
seu trabalho no momento. Ele estava longe de ser o único homem do Vale do
Silício que buscava prolongar a vida de pessoas que, supõe-se, poderiam
pagar por isso. “Meu melhor conselho é: nos próximos 20 a 30 anos, esteja
vivo”, disse Pishevar. “Não corra riscos estúpidos” — isso entrava em
conflito com seu mantra de negócios de correr tantos riscos quanto possível
— “fisicamente, estou dizendo. E esteja preparado porque, de acordo com o
que está a caminho em termos de pesquisa genética, nossa expectativa de
vida e nossa saúde serão mais duradouras e entrarão em colapso com os
próprios alicerces de nossa civilização atual: o jeito como as coisas estão
estruturadas hoje não será adequado para o que virá a ser a realidade das
pessoas que, por sua vez, terão mais conhecimento e vidas mais longas e
saudáveis. Esse negócio de se aposentar aos 70 anos será como as pessoas lhe
falarem para se aposentar aos 30 anos”.
Nesse ponto, Pishevar estava engajado na defesa camuflada de uma
profecia, postura comum entre os magnatas da tecnologia e uma das formas
pelas quais eles dissimulavam o próprio poder em uma época abatida pelas
crescentes inquietações dos impotentes. Nos dias de hoje, capitalistas de risco
e empreendedores são estimados por muitos pensadores; suas afirmações
comerciais são tomadas como ideias, e essas ideias muitas vezes endossam o
futuro: alegações sobre o porvir, forjadas pelo acúmulo de teorias
provenientes de suas empresas de portfólios, ou que extrapolam a declaração
de missão de sua própria startup. O fato de as pessoas darem ouvidos a essas
ideias lhes conferia a oportunidade de fazer com que suas esperanças regadas
a interesse próprio fossem aceitáveis, convertendo-se nos prognósticos mais
altruístas sobre o mundo. Por exemplo, um magnata que deseje erradicar os
benefícios dos trabalhadores pode ressignificar esse desejo como uma
previsão sobre um futuro em que todo ser humano é um empreendedor
individual. Um bilionário da mídia social ávido para abocanhar altos lucros
com a publicidade que as postagens que contêm vídeo atraem, comparadas às
contendo texto, consegue ressignificar esse interesse — e recodificar os
poderosos algoritmos a seu dispor para conseguir o que quer — prevendo:
“Acredito que, daqui a alguns anos apenas, viveremos em um mundo no qual
a maior parte do conteúdo que as pessoas consumirão online será em vídeo.”
(A revista New York havia cutucado Mark Zuckerberg depois que ele
divulgou essa previsão no Mobile World Congress, em Barcelona, dizendo:
“A Maior Parte do Conteúdo da Internet Será Vídeo, Afirma o Homem que
Pode Decidir Isso Sozinho.”)
No Vale do Silício, a previsão tem se tornado um método popular de se
competir por um futuro específico, enquanto se afirma estar apenas
descrevendo o que ainda está por vir. A previsão assume ares convenientes de
generosidade. Os prenunciadores não são surpreendidos no presente
momento devido aos seus desejos e interesses. Ao que tudo indica, eles não
estão escolhendo como serão as coisas no futuro, assim como não escolheram
a cor de seus olhos. No entanto, eleger um dentre os muitos cenários
possíveis e convencer todo mundo de sua inevitabilidade — e da futilidade de
uma sociedade escolher coletivamente entre esses muitos destinos — é um
modo engenhoso de modelar o futuro.
À medida que previa a longevidade e “o que está a caminho”, Pishevar
estava de fato empurrando essas coisas caminho abaixo. Ele fazia parte de um
grupo de elites que fora bastante inteligente e deveras afortunado com
investimentos em startups, e que agora tomava decisões de enorme
consequência social sobre o que fazer em relação à expectativa de vida
humana. Esse poder lhes conferia grande responsabilidade e os expunha à
possibilidade de indignação — a menos que eles convencessem as pessoas de
que o futuro pelo qual competiam se revelaria automaticamente; seria fruto
da influência, e não das suas escolhas; da providência, e não do poder. Por
isso a engenhosidade do posicionamento indiferente de Pishevar em seus
próprios objetivos: “O jeito como as coisas estão estruturadas hoje não será
adequado para o que virá a ser a realidade das pessoas.” Prolongar a vida dos
endinheirados era somente uma consequência do que está a caminho. Porém
não se trata de um sistema de saúde melhor para todo mundo.
“Quais são as características das pessoas capazes de conceber ideias que
mudam o mundo?”, alguém na multidão perguntara durante a sessão de
perguntas e respostas.
Essa pergunta fez com que Pishevar apresentasse a si e a seus colegas de
elite como rebeldes contra aqueles que detinham o poder, e não como o
próprio poder. A característica comum que as pessoas que transformarão o
mundo compartilham, segundo Pishevar, é a disposição de lutar pela verdade.
Não tinha nada a ver com o fato de terem nascidos mais afortunados que
você, livres do fardo da discriminação racial e de gênero e com maior acesso
ao capital semente da família e dos amigos. Residia no fato de eles serem
mais corajosos, mais ousados do que você — impiedosos, diriam alguns —,
dispostos a tomar o poder, custe o que custar. Ao citar Travis Kalanick, da
Uber, e Elon Musk, da Tesla, ele disse: “Eles se sentem mais à vontade em
lugares desagradáveis. Ou seja, eles ficam bem à vontade com conversas
desagradáveis. E a maioria de nós quer ficar em harmonia e em paz, está tudo
ótimo, estou feliz, você está feliz, somos bons, amiguinhos, melhores amigos,
e é como: ‘Não. Dane-se! Vamos questionar um ao outro. O que está
acontecendo aqui? Cadê a verdade?’ Quando as coisas ficam desagradáveis é
porque existe um conflito entre a verdade e outra coisa nada verdadeira. E o
único meio de saber mais a respeito e de descobri-la é insistir no assunto. E
pessoas com essa atitude, que colocam as grandes ideias em prática, não
fogem desses conflitos. Elas os abraçam.”
Essa ideia de uma startup em busca de uma verdade absoluta era parte da
própria concepção de rebelde de Pishevar. Um rei governa sobre uma
infinidade de verdades. Mas um rebelde, que não se responsabiliza pelo todo,
é livre para buscar sua verdade própria. Esse é o sentido de ser um rebelde.
Não faz parte do trabalho do rebelde se preocupar com outras pessoas que
possam ter necessidades diferentes das dele. De acordo com Pishevar, quando
uma empresa como a Uber refutava os órgãos reguladores e sindicatos, não se
tratava de interesses antagônicos em jogo e de uma verdade própria
concorrendo com a oposição, mas de rebeldes insurgentes enfrentando um
establishment corrupto. Isso ficou ainda mais claro com sua resposta à
seguinte pergunta:
“Como você encontra o equilíbrio entre moralidade e ambição, tendo que
competir?”
Como Pishevar não se considerava poderoso, pois se negava a enxergar as
empresas nas quais investia como poderosas, ele pareceu não entender a
pergunta. É necessária uma dose de reconhecimento do próprio poder para se
colocar diante de escolhas morais. Se, em vez disso, o que você enxerga no
espelho é um rebelde abatido pelas autoridades, sitiado, lutando pela vida,
talvez você interprete mal as coisas, do mesmo modo que Pishevar estava
fazendo. Ele interpretou a questão como se tratasse dele, um homem de
moral, representando uma empresa moral — mais uma vez, ele escolheu o
exemplo da Uber — resistindo às forças imorais.
“Meu maior problema é com as estruturas e monopólios existentes, um
exemplo são os cartéis de táxi, que são uma realidade”, disse ele. “Participei
de reuniões em que fui ameaçado por esse tipo de gente. Eu os presenciei
dando uma surra em motoristas na Itália. Você vê as manifestações na
França, carros capotados e pedras sendo jogadas. Levei minha filha para a
Disney. Nós estávamos no meio da confusão. O Uber em que estávamos
basicamente teve que fugir de uma zona de guerra.
“Assim, de um ponto de vista moral, qualquer coisa que combata sistemas
moralmente corrompidos, enraizados e baseados em décadas a fio de
corrupção nas cidades, nas câmaras municipais, nas prefeituras etc. — tudo
isso é real, e é ameaçado pelas novas tecnologias e inovações como a Uber e
outras empresas nesse meio. Então, vamos lá, desse ponto de vista,
deveríamos lutar contra isso. E, do ponto de vista moral, temos a
responsabilidade de lutar contra esses focos de controle. E eles permeiam
todos os níveis — municipais e estaduais, e até mesmo níveis nacionais e
globais.”
Pishevar não estava somente promovendo capitalistas de risco e fundadores
de empresas bilionárias como rebeldes contra o establishment, que lutavam
contra os poderes em nome da gente comum. Ele também estava difamando
as instituições que se destinavam a cuidar das pessoas comuns e promover a
igualdade. Ele se referia aos sindicatos como “cartéis”. Descrevia os
protestos, que são uma manifestação relativamente padrão dos movimentos
trabalhistas, como uma “zona de guerra”. Falava dos motoristas de táxi e de
seus representantes em um linguajar próprio dos mafiosos e corruptos, como
se fossem “os outros”: “Esse tipo de gente.” Ali estava presente o maior
investidor de uma empresa, a Uber, que tentava desmantelar os regulamentos
promulgados democraticamente e se esquivar dos sindicatos, que tinham um
histórico de luta verdadeira, e não apenas retórica, em favor das pessoas
comuns; e ele orgulhosamente se apresentava como aquele que estava
lutando a favor do povo contra as estruturas de poder corrompidas. “Em uma
era cujo poder político corrompe, o poder social e do crowdsourcing
purifica”, escreveu Pishevar. “Precisamos cutucar o ninho de vespa para criar
imunidade à picada da corrupção.”
Ao falar das regulamentações e dos sindicatos, dos quais não gostava,
Pishevar afirmou: “Ao encontrar empresas que possam sabotar isso, assuma
uma postura filosófica ética e diga: ‘Vamos usar nossa capacidade e nosso
conhecimento para melhorar o mundo nos livrando desses focos de
controle.’” Em suma, a disrupção tecnológica era o instrumento do capitalista
de risco para fazer do mundo um lugar melhor em benefício de todos.
Aplausos e gritos.
Pishevar discursava como um insurgente, sem a honra e o senso de
compromisso do homem que aceita a realização dos próprios objetivos. Nem
sua conduta sugeria que atualmente a Uber e o Airbnb, sobre os quais gostava
de falar, enfrentavam graves acusações de comportamento exploratório e
ilegal em relação às pessoas que efetivamente não detinham o poder. Na
cabeça de Pishevar, ele e essas empresas eram os vulneráveis. Ele acreditava
que, quando estava em um Uber em Paris, os motoristas que protestavam
criavam uma “zona de guerra”, ameaçando ele e sua filha. Que ele estava
tentando purgar a corrupção ao desobedecer os órgãos regulatórios da cidade.
Ele se agarrou à sua verdade impopular como se Martin Luther reencarnasse
em um capitalista de risco, defendendo seus argumentos às portas da
comissão que regulamenta táxis e veículos de aplicativos em Nova York.
Hoje os capitalistas de riscos estão entre as pessoas mais poderosas do
mundo, mas na cabeça de Pishevar ele era uma pessoa qualquer. Quando seu
líder ainda usa a boina de seu tempo no exército rebelde, você deve ficar com
medo.
No final da sessão de perguntas e respostas, Pishevar elogiou a conferência
do Summit como “um movimento para criação de valor”, mesclando
perfeitamente a linguagem de Selma: Uma luta pela igualdade e da Harvard
Business School.
Com o intuito de amenizar o impacto da expressão “criação de valor” — um
lembrete arriscado às pessoas de que era um multimilionário poderoso —, ele
mais uma vez invocou a linguagem sentimental. A criação de valor, segundo
Pishevar, ganhou vida por meio dos criadores de valor, pessoas que o
colocam “em um ambiente de amor, de confiança, de apoio”. Agora ele
estava se apropriando de uma linguagem característica dos movimentos, e do
amor, da solidariedade e da generosidade, e até mesmo da linguagem
terapêutica de compartilhar por meio do cuidado, a fim de disfarçar a verdade
nua e crua de suas visões oligárquicas. Ele teve a audácia de embarcar em um
navio de cruzeiro para uma conferência caríssima, exclusiva para convidados,
repleta de empreendedores, e ainda afirmar que os taxistas é que
representavam um cartel injusto. Pishevar lucrava e defendia uma empresa
que fazia tudo ao seu alcance para destruir a ideia de um movimento
trabalhista, ao mesmo tempo em que discursava descaradamente em uma
conferência se apropriando da linguagem desse movimento. Como capitalista
de risco do Vale do Silício, era a representação exata do que fazia o país
desigual, ao mesmo tempo em que alegava estar lutando em nome da gente
comum.
recusa de Shervin Pishevar em admitir seu poder não era um caso isolado.
A Essa modéstia é característica marcante do Vale do Silício, epicentro do
novo poder. “Eles lutam como se fossem insurgentes, enquanto agem
como se fossem reis”, escreve Danah Boyd, estudiosa de tecnologia. Ela
chegou à maioridade entre hackers e renegados, e depois ficou decepcionada
com o fato de eles não aceitarem a vitória. Agora, eles eram donos das
ferramentas do poder contemporâneo. Porém a autoimagem do grupo como
“outsider” — resquício das origens contraculturais da categoria — deixava-
os “despreparados para entender suas próprias ações e práticas como parte da
elite, os poderosos”, argumenta Boyd. E pessoas poderosas que “se veem
como desfavorecidas, em um mundo onde a instabilidade e a desigualdade
estão fora do controle, não conseguem perceber que têm uma
responsabilidade moral”. E justamente as duas empresas que fizeram de
Pishevar uma lenda estavam enfrentando problemas legais por se envolverem
nesse tipo de negacionismo.
Os problemas do Airbnb tiveram início alguns meses antes do Summit at
Sea, quando uma mulher afro-americana chamada Quirtina Crittenden tuitou
uma reclamação por haver tendências racistas quando tentava reservar
acomodações pelo seu perfil. Ao postar as capturas de tela das rejeições pelos
anfitriões cujos aluguéis figuravam como disponíveis para um determinado
período, Crittenden adicionava a hashtag #AirbnbWhileBlack. Com o tempo,
outras pessoas começaram a somar seus depoimentos ao de Crittenden, ainda
mais depois que ela foi mencionada pela National Public Radio no ano
seguinte. As histórias começaram a se espalhar: “Um bacharelado, um
mestrado e um doutorado depois, e ainda não consigo alugar seu
apartamento. SMH #AirbnbWhileBlack.” Então, um usuário negro chamado
Gregory Seldon compartilhou uma história de como ele “havia criado um
perfil falso de homem branco e foi aceito imediatamente”. O tuíte de Seldon
viralizou, e assim nasciam os bombardeios das mídias sociais.
Pelo modo como o Airbnb e outras plataformas do Vale do Silício
trabalham, a empresa poderia escolher como responder. O Airbnb poderia
alegar que a plataforma em si tem pouco poder, que não pode ser
responsabilizada pelo que ocorre entre duas pessoas autônomas em seu site.
Mas, alguns meses depois, surpreendeu ao publicar um relatório no qual se
comprometia a fazer “mudanças estruturais e poderosas para reduzir bastante
a oportunidade de anfitriões e convidados se envolverem, consciente ou
inconscientemente, em condutas discriminatórias”. Eram medidas admiráveis
— e também voluntárias.
Dois meses após a viralização bombástica da hashtag #AirbnbWhileBlack,
quando recebeu reclamações do Departamento de Emprego e Habitação da
Califórnia alegando que a empresa “talvez tenha falhado em evitar a
discriminação contra hóspedes afro-americanos” e “pode ter se envolvido em
atos de discriminação”, o Airbnb se retratou. “Embora o Airbnb
simplesmente opere em uma plataforma e não esteja em uma posição
adequada para elucidar as decisões de reserva que os anfitriões tomam em
cada caso”, disse a empresa em resposta legal, “o Airbnb reconhece por conta
própria, com base nos dados disponíveis, que alguns anfitriões em seu site
provavelmente estão violando a política contra discriminação racial do
Airbnb, e que estas políticas e processos, até o momento, foram insuficientes
para solucionar o problema”. Ainda assim, apesar de um estudo da Harvard
Business School que corroborou as alegações de discriminação dos usuários,
a empresa afirmou que estava apenas envolvida na “publicação dos anúncios
de aluguel”, um papel modesto que a “isentava” da responsabilidade. O
Airbnb argumentou que “não pode ser responsabilizado juridicamente pela
conduta de seus usuários”. A lei, segundo a empresa, “não impõe o dever de
prevenir a discriminação cometida por outras pessoas”.
No momento em que a hashtag #AirbnbWhileBlack foi publicada, outro
investimento notório de Shervin Pishevar, a Uber, estava envolvido em seu
próprio caso sobre a veracidade de ser tão modesto e desprovido de poder
quanto alegava. Um grupo de motoristas havia processado a Uber, assim
como sua concorrente, a Lyft, em um tribunal federal, pleiteando o status de
funcionários mediante as leis trabalhistas da Califórnia. O caso foi perdendo
força porque eles tinham assinado acordos de prestação de serviço autônomo
que não estavam sujeitos às leis em questão. Eles aceitaram os termos e
condições que declaravam cada motorista um empreendedor — um agente
livre que escolhe seus horários, sem precisar da infraestrutura regulatória da
qual outras pessoas dependiam. Eles haviam acreditado em uma das ilusões
predominantes do Mercado Global: que as pessoas eram minicorporações.
Então, alguns dos motoristas se deram conta de que, na verdade, eram
simplesmente trabalhadores querendo as mesmas garantias que tantos outros
exigiam perante o poder, a exploração e as vicissitudes das circunstâncias.
Em razão de os motoristas assinarem esse contrato, eles fecharam as portas
de fácil acesso para se tornarem funcionários. Mas, de acordo com a lei, se
conseguissem provar que uma empresa exercia poder constante sobre eles
enquanto trabalhavam, ainda poderiam ser identificados como funcionários.
Quando se é um prestador de serviço autônomo, você abre mão de
determinadas garantias e benefícios em troca da independência, logo essa
independência deve ser concreta. A situação inspirou os juízes em dois casos,
Edward Chen e Vince Chhabria, a lidar com a questão de onde o poder se
esconde em uma nova era de rede.
Não foi de se admirar que a Uber e a Lyft assumiram a posição de rebeldes.
O Airbnb, a Uber e a Lyft alegaram não ser poderosos. A Uber argumentara
que era somente uma empresa de tecnologia que facilitava as ligações entre
passageiros e motoristas, e não uma empresa de serviço de transporte. Os
motoristas que assinaram contratos eram agentes estáveis de seu próprio
destino. O juiz Chen ironizou esse argumento. “A Uber não é uma ‘empresa
de tecnologia’”, escreveu ele, “como se a Yellow Cab fosse uma ‘empresa de
tecnologia’ porque usa serviço de rádios para enviar táxis; a John Deere, uma
‘empresa de tecnologia’ porque usa computadores e robôs para fabricar
cortadores de grama; a Domino Sugar, uma ‘empresa de tecnologia’ porque
usa técnicas modernas de irrigação para cultivar sua cana-de-açúcar”. O juiz
Chhabria igualmente citou e derrubou a tese da Lyft de ser “um tipo de
espectador imparcial, fornecendo meramente uma plataforma que possibilita
aos motoristas e aos motociclistas se conectarem”. Ele escreveu:
A Lyft se preocupa muito mais com ela própria do que simplesmente
conecta usuários aleatórios em sua plataforma. Ela se posiciona
comercialmente para os clientes como um serviço de transporte sob
demanda e procura de forma ativa esses clientes. Fornece aos motoristas
instruções detalhadas sobre como se comportar. Curiosamente, o guia do
motorista da Lyft e as perguntas frequentes afirmam que os motoristas
estão “dirigindo para a Lyft”. Portanto, o argumento de que a Lyft é apenas
uma plataforma e que os motoristas não prestam serviços à Lyft não pode
ser levado a sério.
Os juízes acreditavam que a Uber e a Lyft eram mais poderosas do que
estavam dispostas a admitir, mas também reconheciam que as empresas não
tinham o mesmo poder sobre os funcionários que um empregador da antiga
economia, como o Walmart. “O júri, neste caso, terá que decidir se as
soluções tradicionais se aplicam às circunstâncias específicas”, escreveu o
juiz Chhabria. Nesse ínterim, o juiz Chen queria saber se a Uber, apesar de
alegar ser mera centralizadora impotente da plataforma, exercia uma espécie
de poder invisível sobre os motoristas que pudesse justificar a ação. Com o
objetivo de definir esse novo poder, ele decidiu recorrer a uma fonte a que
poucos juízes recorriam: o falecido filósofo francês Michel Foucault.
Em uma passagem memorável, o juiz Chen comparou o poder da Uber ao
dos guardas no centro do Panóptico, que Foucault celebremente analisou em
Vigiar e Punir. O Panóptico era o modelo de uma instalação prisional
circular, imaginada no século XVIII pelo filósofo Jeremy Bentham. A ideia
era autorizar um guarda solitário em uma torre central da instalação a vigiar
um grande número de presos, não porque ele de fato conseguiria observar
todos de uma vez só, mas porque o modelo impedia que qualquer prisioneiro
soubesse quem estava sendo observado no momento. Foucault analisou a
natureza e o funcionamento do poder no Panóptico, e o juiz o achou
semelhante ao da Uber. Ele citou uma frase a respeito de “um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder”.
O juiz estava sugerindo que as muitas formas pelas quais a Uber
monitorava, rastreava, controlava e dava feedback sobre o serviço de seus
motoristas equivaliam ao “funcionamento do poder”, ainda que as armadilhas
familiares do poder — propriedade de bens, controle do tempo dos
funcionários — estivessem ausentes. Os motoristas não eram como operários
de chão de fábrica, empregados e arregimentados por um estabelecimento,
mas também não eram prestadores de serviço independentes que podiam
fazer o que bem entendessem. Eles podiam ser demitidos por pequenas
infrações. Isso é poder.
Pode ser alarmante que o núcleo de poder emergente mais influente de
nossa era tenha por hábito negar o próprio poder e, consequentemente,
fomentar uma visão de mudança que não muda nada em termos
significativos, enquanto ele próprio enriquece. No entanto, não é uma postura
de todo cínica. O mundo tecnológico tem sustentado há muito tempo que as
ferramentas que cria são inerentemente niveladoras e servirão para
desmoronar as divisões de poder em vez de aumentá-las. Em meados dos
anos 1990, quando a internet começou a fazer parte da vida das pessoas, Bill
Gates previu que a tecnologia ajudaria a igualar um mundo obstinadamente
desigual:
Todos somos criados igualmente no mundo virtual e podemos usar essa
igualdade para ajudar a resolver alguns dos problemas sociológicos que
ainda precisam ser solucionados no mundo físico. A rede não extinguirá as
barreiras de preconceito ou da desigualdade, mas será uma força poderosa
nesse sentido.
Nunca será demais afirmar o quanto essa crença exagerada influenciou o
Mercado Global, sobretudo o Vale do Silício: o mundo é cruel e injusto;
porém, se você espalhar as sementes da tecnologia, brotos de igualdade
germinarão. Se toda menina no Afeganistão tivesse um smartphone… Se
todas as salas de aula tivessem acesso à internet… Se todos os policiais
usassem uma câmera acoplada ao corpo… Mark Zuckerberg e Priscilla Chan
prometeram conectar os desconectados como parte de seu trabalho
filantrópico, pois a internet “fornece acesso à educação, caso você não more
perto de uma boa escola. Ela viabiliza informações de saúde sobre como
evitar doenças ou criar crianças saudáveis, se você não mora perto de um
médico. Ela proporciona serviços financeiros, caso você não more perto de
um banco. Oferece acesso a empregos e oportunidades, se você não vive em
uma economia boa”. Algumas pessoas no Vale do Silício passaram a se
esquivar totalmente no que diz respeito a nivelar os vieses da tecnologia.
“Graças ao Airbnb”, diz o capitalista de risco Marc Andreessen, “agora
qualquer pessoa com uma casa ou apartamento pode oferecer um quarto para
alugar. Logo, a desigualdade de renda diminuiu”. Investidores como
Andreessen, segundo essa perspectiva, são como o movimento Occupy, só
que com casas maiores e resultados mais evidentes.
As redes são a base de grande parte desse novo poder — redes que levam ao
descontrole desse poder ao passo que simultaneamente o absorvem em um
núcleo. Essa ideia se origina de uma autoridade em redes, Joshua Cooper
Ramo, jornalista que se tornou protegido de Henry Kissinger, que há alguns
anos se interessou em como novas variedades de poder estavam subvertendo
as antigas leis de estratégia e geopolítica. O estudo dele sobre as redes e as
entrevistas com seus proprietários se tornou um livro, The Seventh Sense [“O
Sétimo Sentido”, em tradução livre], em que ele afirma que esse novo
poder é definido tanto pela concentração intensa quanto pela distribuição
massiva. Ambas não podem ser entendidas em termos simples. O poder e a
influência podem se tornar ainda mais centralizados do que nas épocas
feudais e mais distribuídos do que nas democracias mais dinâmicas.
Ramo está argumentando que as Ubers, os Airbnbs, os Facebooks e os
Googles mundo afora são ao mesmo tempo radicalmente democráticos e
perigosamente oligárquicos. O Facebook emancipa as pessoas nos porões da
Argélia para escrever o que quiserem, para todo o mundo ver. O Airbnb
possibilita que qualquer pessoa alugue sua casa. A Uber permite que qualquer
pessoa que esteja passando por dificuldades financeiras faça o download do
aplicativo e, com facilidade, comece a ganhar dinheiro. Essas plataformas
estão levando esse poder ao limite — poder que antes estava nas mãos das
empresas de mídia, redes de hotéis e sindicatos de táxis. Todavia, as redes
também estão propensas à concentração extrema. Não é nada divertido se
metade dos seus amigos do ensino médio tem perfil em outra rede social;
logo, o Facebook se torna efetivamente um monopólio. Um princípio
fundamental da teoria da rede é que, quanto maior a rede, mais influência ela
poderá extrair de cada nova conexão. As redes, então, são aquelas raras
criaturas que, quanto mais engordam, mais ficam saudáveis, vigorosas e
rápidas.
Essa ambiguidade da concentração e disseminação simultânea do poder tem
consequências reais na distribuição de influência na sociedade. “O pessoal da
tecnologia gosta de imaginar o setor como um mar agitado de disrupções, em
que todo vencedor está suscetível a ataques surpresa vindos de algum livro,
como um adversário ainda inimaginável”, escreve Farhad Manjoo, colunista
de tecnologia do New York Times. Na realidade, ele observa que o setor é
mais centralizado do que a maioria, com Amazon, Apple, Facebook, Google
e Microsoft controlando basicamente tudo. Em quase todos os aspectos, Os
Cinco Terríveis, como Manjoo os chama, estão “ficando maiores, mais
entranhados em seus próprios setores, mais poderosos em novos setores e
mais fechados contra a concorrência surpresa de novos competidores”. Se a
tecnologia continua gerando Gigantes, é por causa da pressão concentrada
das redes que Ramo descreveu: esses personagens criaram determinadas
redes que são fundamentais, muitas vezes chamadas de “plataformas”, nas
quais os novos competidores têm cada vez menos possibilidades de escolha,
exceto aumentar o tamanho dessas redes. “Não há como fugir dessas
plataformas”, escreve Manjoo, “você pode optar por escapar de uma ou duas,
mas juntas elas formam uma trama que abrange toda a economia”.
O Facebook, apesar de se intitular “comunidade”, redefiniu sozinho a
palavra “amigo” para grande parte da humanidade, baseado no que era
melhor ao seu próprio modelo de negócios. Outra empresa, o Google,
consegue estar a par de tudo o que você busca e compra, todas as piadas
ofensivas que já digitou, todas as frases que falou em sua casa na presença de
seu ajudante de cozinha, cada movimento que fez na frente de suas câmeras
de segurança em sua casa. O Airbnb se vangloriou de ter 1,3 milhão de
pessoas hospedadas em seus imóveis em uma única véspera de ano-novo. À
medida que tecnologias como essas devoram o mundo, um número
relativamente pequeno de pessoas passou a dominar grande parte da
infraestrutura na qual, cada vez mais, o discurso humano, como movimentos,
compra, venda, leitura, escrita, ensino, aprendizagem, cura, transações, é feito
ou sistematizado — ainda que muitas delas façam discursos públicos sobre a
luta contra o establishment.
David Heinemeier Hansson é o cofundador de uma empresa de software
com sede no Colorado chamada Basecamp, um negócio de sucesso, porém
modesto, que se manteve pequeno e evitou a tentação do Vale do Silício de
tentar engolir o mundo. “O problema é que parece que hoje em dia ninguém
se contenta em simplesmente fazer a diferença na vida das pessoas”, escreveu
ele. “Não, eles têm que tomar conta do mundo inteiro. Não basta estar no
mercado, eles precisam dominá-lo. Não basta atender aos clientes, eles
precisam aprisioná-los.”
Maciej Ceglowski, o fundador de uma startup chamada Pinboard, provocou
controvérsia no Vale do Silício — e além dele — ao ministrar uma palestra
comparando os capitalistas de risco primeiro com os senhores feudais da
Inglaterra e, depois, com os planejadores que antes administravam sua terra
natal, a Polônia:
Existe algo de desonesto no capitalismo da Califórnia.
Investir se tornou uma ocupação de finesse das classes abastadas, assim
como costumava ser quando se tinha uma propriedade rural na Inglaterra.
É um indicador de classe e um modo socialmente aceitável de os ricos
fanáticos tecnológicos passarem o tempo. Os senhores investidores
decidem quais ideias valem a pena explorar, e as pessoas que têm tais
ideias adaptam suas propostas de acordo com isso.
As empresas que não seguem esse rumo não estão mais lucrando ou
mesmo faturando. Ao contrário, a medida de seu sucesso é o valuation —
quanto de valor a empresa conseguir convencer as pessoas a dizer que ela
vale.
Existe uma aura de fantasia em todo empreendimento que até a elite da
tecnologia está começando a achar desconcertante.
Tínhamos pessoas assim na Polônia, mas, em vez de capitalistas de risco,
nós os chamamos de planejadores. Eles também eram responsáveis por
alocar quantias enormes de dinheiro que não lhes pertenciam.
Eles também acreditavam piamente que estavam mudando o mundo e
tinham os mesmos tipos de desculpas sobre por que nossa vida cotidiana
não tinha qualquer relação com o mundo radiante e bonito que
supostamente bateria à nossa porta.
Há mais de uma geração que os Estados Unidos têm enfrentado um
problema após o outro, o que, poderia afirmar-se, tem contribuído para a
degradação de sua política e dos meios de subsistência de tantas pessoas. O
contrato social norte-americano se desgastou, a vida dos trabalhadores se
tornou mais precária e a mobilidade diminuiu. Estes são problemas
espinhosos e importantes. Os novos vencedores de nossa era poderiam muito
bem participar da elaboração de um novo contrato social para uma era nova
— uma nova perspectiva de segurança econômica para a gente comum em
um mundo globalizado e digital. Todavia, como vimos, eles de fato pioraram
a situação, tentando arruinar os sindicatos e quaisquer outras garantias
trabalhistas ainda em voga e ressignificar cada vez mais a sociedade como
um mercado de trabalho sempre disponível, em que os trabalhadores
desvalorizam uns aos outros em troca de migalhas de trabalhos temporários.
“Qualquer setor que ainda tenha sindicatos tem energia potencial que pode
ser disponibilizada em forma de startups”, tuitou certa vez o capitalista de
risco do Vale do Silício Paul Graham.
À medida que a desigualdade dos Estados Unidos se propaga em níveis
cada vez mais incontroláveis, os vencedores do Mercado Global
corroboraram com isso. Bastaria eles olharem para dentro de suas próprias
comunidades e saberiam o que é preciso. Fazer de tudo para reduzir a
tributação de impostos, mesmo com amparo da lei, entra em contradição com
suas alegações de serem bem-sucedidos ao praticar o bem. Desviar a atenção
do público de uma questão como bancos offshore agrava os enormes
problemas, ainda que esses partícipes do Mercado Global dispensem atenção
a causas específicas.
Conforme a expectativa de vida diminuía entre as grandes subpopulações de
norte-americanos, os vencedores que saborearam o gosto do sucesso
poderiam ter interferido. Poderiam ter dado atenção ao sistema de saúde que
permitia o fenômeno insólito de um país desenvolvido regredir dessa
maneira, ou à contínua ocorrência de mortes de fácil prevenção nos países
emergentes. Talvez eles não tenham pensado a respeito devido ao tempo que
provavelmente viveriam graças às suas vantagens colossais. “É bastante
egocêntrico que pessoas ricas financiem coisas para que consigam viver mais,
enquanto ainda temos a malária e a tuberculose”, disse Bill Gates.

T alvez o palestrante de destaque mais improvável do Summit at Sea tenha


sido Edward Snowden, delator norte-americano, flagelo da Agência de
Segurança Nacional. Ele estava na Rússia, estando a bordo via vídeo. Seu
entrevistador foi Chris Sacca, um capitalista de risco extremamente bem-
sucedido (Instagram, Kickstarter, Twitter, Uber). Um dos fundadores do
Summit subiu ao palco e disse: “Precisamos de pessoas que dizem a verdade
e de líderes de pensamento como Chris Sacca.” Duas pessoas que diriam a
verdade pelo preço de uma.
Sacca, já no palco, elogiou o Summit por se transformar no que ele chamou
de “uma plataforma para o empreendedorismo, para a justiça”. Falou como se
essas duas palavras fossem a mesma coisa. Em seguida, entrevistou Snowden
por um tempo, incitando o que havia se tornado seu discurso político de
delator. Em dado momento, o homem em Moscou começou a dizer algo que
faria o coração de qualquer um que persiga a glória do Vale do Silício bater
mais rápido. O informante mais famoso do mundo falou sobre a necessidade
de criar novas ferramentas de comunicação que vão além da criptografia, de
modo a serem totalmente irrastreáveis, para que até mesmo uma conversa
ocorrida entre duas pessoas permanecesse indetectável. Ele falou sobre
“tokenizar a identidade”, viabilizando às pessoas maneiras de participar das
comunidades online sem a vulnerabilidade de serem seguidas de plataforma
em plataforma, sem que soubessem todos os livros que leram, todos os
movimentos de que participaram, todos os amigos que tinham feito.
“Ao pensarmos no movimento dos direitos civis”, afirmou Snowden, “ao
pensarmos em todo o progresso social que houve ao longo da história,
voltando ao Renascimento, às pessoas que tiveram ideias hereges — ‘Ei,
talvez a Terra não seja plana’ — até mesmo esses argumentos, refutar as
convenções, contestar as estruturas legais, em determinado momento é uma
violação da lei. E, no instante em que alguém começa a se envolver em um
pensamento herege, o momento em que alguém infringe uma lei, mesmo a
menor delas, se isso pudesse ser detectado imediatamente, interceptado e
resolvido mediante algum tipo de penalidade ou sanção, não somente nunca
veríamos startups como a Uber prosperarem, como também se congelaria o
progresso social humano. Porque você não teria mais a chance de contestar os
dogmas sem ser alvo imediato de críticas, riscado do mapa, sem possibilidade
ou capacidade de construir uma massa crítica que pudesse levar a mudanças.”
Talvez em um esforço de ser complacente com sua plateia empreendedora,
Snowden mencionara uma startup ao expor sua grandiosa perspectiva de
heresia, destruindo assim qualquer chance que ele tinha de que suas ideias
tivessem o efeito esperado. Ele havia assegurado que Sacca, e possivelmente
muitos outros, agora ouviriam suas palavras revolucionárias e pensariam
apenas em investimentos.
“Então, invisto em idealizadores para viver”, disse Sacca, olhando para a
tela gigante. “E tenho que lhe dizer, enquanto o escuto, sinto o cheiro de um
idealizador aqui. Você está falando sobre essas coisas que precisam ser
construídas. Pretende construir alguma delas? Porque provavelmente existem
investidores apenas esperando por você aqui.”
Parecia que Snowden fora apanhado de surpresa. Ali estava ele falando
sobre heresia, verdade e liberdade, e agora lhe perguntavam sobre uma
startup. Atordoado, ele tentou desiludir Sacca de modo educado: “Estou com
muitos projetos em andamento. Mas tenho um ponto de vista um pouco
diferente de muitas pessoas que precisam do capital de risco, que estão
tentando atrair os investidores. Eu não gosto de promover coisas. Não gosto
de dizer que estou trabalhando em um sistema particular para solucionar um
problema específico. Prefiro trabalhar com o mínimo de recursos e depois ser
avaliado com base nos resultados. Se funcionar, se crescer, está ótimo. Mas,
no final das contas, para mim, não costumo pensar que vou trabalhar
comercialmente. Então, prefiro dizer: ‘Vamos esperar e ver.’”
Era uma repreensão gentil ao modo de vida do Mercado Global. Ali estava
um homem que não gostava de se promover, que não almejava dinheiro, que
estava lutando contra o sistema e disposto a perder para que o bem maior
vencesse.
No Summit, Snowden requereu “um local, em qualquer lugar do mundo,
onde possamos experimentar, onde possamos estar seguros”. Para ele, essa
era uma questão séria, talvez de vida e morte. Os empreendedores, como se
quisessem imitar verdadeiros rebeldes, costumavam apelar para a mesma
ideia, porém, no caso deles, tratava-se mais de acumular e proteger o poder
do que contestá-lo. O empreendedor e investidor Peter Thiel apelou a
comunidades flutuantes, “seasteading”, longe do alcance da lei. Larry Page,
cofundador do Google, teria dito: “Como detentores da tecnologia, devemos
ter alguns lugares seguros onde possamos experimentar coisas novas e
identificar o efeito na sociedade.” O investidor em tecnologia Balaji
Srinivasan pediu que os vencedores da revolução digital abrissem mão dos
ideais do mundo ingrato dos ludistas e queixosos — “a saída definitiva do
Vale do Silício”, como disse ele, usando ferramentas como as que Snowden
imaginara, “é criar uma sociedade inclusiva, finalmente fora dos Estados
Unidos, administrada pela tecnologia”.
O que estreita esses vários conceitos é a fantasia de viver livre do governo.
Esses homens ricos e poderosos se engajam no que o escritor Kevin Roose
chamou de “animação de torcida anarquista”, em sintonia com sua imagem
cuidadosamente elaborada como rebeldes contra as autoridades. Apelar para
um território sem regras, como eles fazem, se interessar superficialmente por
essa animação de torcida anarquista, passa a impressão de que você deseja
um novo mundo de liberdade em nome da humanidade. Todavia, uma
linhagem extensa de pensadores nos afirma que os poderosos costumam ser
os grandes vencedores no que diz respeito à criação de mundos tábulas rasas,
livres de regras. Uma declaração famosa a respeito dessa constatação veio da
escritora feminista Jo Freeman, em seu ensaio de 1972, “A Tirania da Falta
de Estrutura”, ao observar que, quando os grupos atuam em termos vagos ou
anárquicos, a falta de estrutura “se torna uma dissimulação para que o forte
ou o afortunado estabeleça uma hegemonia inquestionável sobre os outros”.
A ideia de Freeman remonta ao Iluminismo e a Thomas Hobbes. Hobbes
também acreditava que a ausência de estrutura não era tudo o que as pessoas
diziam, especialmente para os impotentes. O poderoso Leviatã que Hobbes
defendia é constantemente tratado como um caminho para a monarquia ou o
autoritarismo. No entanto, Hobbes preconizou que a escolha não é entre
autoritarismo e liberdade, mas entre dois tipos diferentes de autoritarismo.
Alguém sempre governa; a questão é quem. Em um mundo sem um Leviatã,
ou seja, um estado forte capaz de elaborar e fazer cumprirem-se as leis
universais, as pessoas serão governadas por milhares de Leviatãs em menor
escala, mais próximos delas — por senhores feudais em cujo solo trabalham e
contra os quais quase não conseguem se defender; por príncipes poderosos,
caprichosos e irresponsáveis.
Hobbes expressava a visão de uma autoridade que representava a todos
formal e juridicamente, que se estendia e pertencia a nós, e que prevalecia
sobre as autoridades locais. Ele acreditava que poderia existir uma liberdade
maior ao abrigo de tal autoridade do que em sua ausência: “Os homens não
tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um
enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em
respeito.” Em um mundo sem leis, ele escreveu, “nada pode ser injusto. As
noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde
não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça”. As
virtudes cardeais em um mundo como esse são a “força e fraude”.
Os autodenominados empresários rebeldes estavam de fato tentando
subverter um grande projeto do Iluminismo — o desenvolvimento de leis
universais que se aplicavam a todos igualmente, deixando as pessoas livres
dos particularismos de seus povoados, igrejas e domínios. Ao que tudo
indica, o mundo que essas elites vislumbravam, no qual as leis retrocediam e
os empresários reinavam no mercado, prenunciava um retorno aos palacetes
privados — permitindo que o Conde do Facebook e o Senhor Mor do Google
tomassem decisões importantes sobre nosso destino compartilhado fora da
democracia. Seria um mundo que lhes possibilitaria negar seu poder sobre os
servos ao seu redor, apropriando-se de uma linguagem de comunidade e
amor, movimentos e negócios em que todos saem ganhando. Eles
continuariam falando sobre mudar o mundo. Porém muitos sentiriam, não
sem motivo, que as coisas que desolavam o mundo de alguma forma não
estavam mudando.
É possível evitar que o progresso em nossa época envolva a concentração
do poder em pouquíssimas mãos e que se espalhem histórias por aí sobre os
combatentes poderosos lutando pela gente comum. Existem pessoas
pensando em outras formas mais honestas de fazer do mundo um lugar
melhor, e pensando livremente, sem as exigências onerosas do Mercado
Global de que o progresso deve pender para os vencedores e obedecer às suas
regras. Mas não é fácil competir com o Mercado Global pelos recursos e
poder de uma marca que ele consegue promover em suas criações.
Alguns meses após o Summit, um evento no Instituto Goethe em Nova
York ofereceu uma perspectiva bastante distinta para a era digital. Era uma
conferência sobre um movimento em ascensão chamado “cooperativismo de
plataforma”. Houve uma discussão sobre como melhorar o mundo, que
desviou intencionalmente do mandamento de que todos saem ganhando, de
que os poderosos devem se beneficiar de qualquer mudança a fim de que ela
valha a pena. O cooperativismo de plataforma é um movimento que busca
concretizar o que o Vale do Silício afirma já estar ocorrendo, propondo “um
novo tipo de economia online”, como diz um de seus panfletos digitais:
Devido a todas as maravilhas que a internet nos proporciona, ela é
dominada pelo monopólio da economia, exploração e vigilância. Os
usuários comuns têm pouco controle sobre seus dados pessoais, e o
ambiente de trabalho digital está se infiltrando em todos os cantos da vida
dos trabalhadores. As plataformas online frequentemente exploram e
acentuam as desigualdades existentes na sociedade, ainda que prometam
ser um meio para a equidade. Será que a internet pode ser possuída e
administrada de modo diferente?
Falar desse jeito era flertar com a mudança efetiva, e não retórica, do
mundo. Não se deparava regularmente com ideias como essa no Mercado
Global, embora as suposições por trás delas fossem óbvias: que às vezes os
criadores de tecnologia servem apenas a si mesmos; que às vezes o
humanitarismo e o empreendedorismo são coisas bastante diferentes. A
premissa subversiva da plataforma co-op — como a causa era conhecida
informalmente — não deveria ser tão subversiva assim: de modo que a gente
comum, e não somente os vencedores do Mercado Global, influenciasse um
pouco como a tecnologia se desenvolve; que poderia se desenvolver em mais
de uma direção; que algumas dessas direções seriam melhores do que outras
em traduzir a inovação em progresso para a maioria das pessoas.
Ouvimos dos palestrantes modos de pensar que eram basicamente proibidos
no Mercado Global: a ideia de que havia coisas como poder e privilégio; que
algumas pessoas detinham poder em todas as épocas e outras não; que esse
poder e privilégio exigiam cautela; que o progresso não era inevitável e que a
história não era linear, e sim cíclica; que às vezes as novas e incríveis
ferramentas eram usadas de maneiras que pioravam o mundo; que as trevas
persistiam ainda que sob uma nova luz; que as pessoas tinham um vício
antigo de explorar umas às outras, por mais que elas e suas ideias parecessem
altruístas; que os poderosos são seus iguais como cidadãos, não seus
representantes.
Os participantes não restringiram suas palestras ao domínio de todos saem
ganhando. Eles falavam de exploração, abuso e solidariedade. Falavam de
problemas. Eles não estavam vinculados ao consenso de finesse do Mercado
Global. O público era mais cético do que sonhador; crítico, e não empolgado.
Sabia o que era e não era inovador. Os palestrantes, por sua vez, não tinham a
lábia habitual do Mercado Global. As apresentações não foram nada
tranquilas. Nenhum microfone de lapela estava disponível. Ninguém
perambulava pelo palco como se fosse um leão na savana. Poucas foram as
piadas, quando se ouvia alguma, nas conversas. As pessoas falaram apenas
sobre os problemas que desejavam solucionar. O evento foi radicalmente
mais democrático em comparação ao Summit at Sea e a outros fóruns do
Mercado Global.
Trebor Scholz subiu ao púlpito e explicou por que, alguns anos antes, havia
redigido um pequeno ensaio sobre uma ideia que batizou como
cooperativismo de plataforma. À medida que estudava a remodelação do
mundo pelo Vale do Silício, e principalmente o que antes era chamado de
economia compartilhada, ele começou a reconhecer a verdade por trás
daquele discurso ilusório. Havia um grupo de empresas que prosperavam
servindo como intermediárias entre as pessoas que queriam passear e as que
ofereciam os meios para tal; pessoas que queriam seus móveis Ikea montados
e as que vinham instalá-los; pessoas que arcavam com suas despesas
alugando um quarto e as que o alugavam. Scholz acreditava que não era por
acaso que esses serviços se popularizaram em um dado momento histórico.
Um colapso épico do sistema financeiro mundial custou a milhões de pessoas
suas casas, empregos e seguro de saúde. E, conforme a crise repercutia,
muitos dos desprovidos foram convidados a ingressar em uma nova classe
trabalhadora norte-americana. A precariedade dessa camada inferior, que
demonstrou poucos sinais de melhora muitos anos após o colapso, tornou-se
a base da recompensa em dinheiro para os afortunados — e, observou Scholz,
visando a “canalização da riqueza para cada vez menos mãos”. Por alguma
razão, as tecnologias aclamadas pelo Vale do Silício como algo que poderia
nivelar a situação e emancipar as pessoas promovia uma nova linha que,
digitalmente, dividia a vida social norte-americana.
Não precisava ser assim, segundo Scholz. A tecnologia não era feudal por
natureza, tampouco inerentemente democrática. Existiam, como Ramo
escreveu, ambas as tendências. Qual tendência prevaleceria dependia dos
valores da época e contra o que as pessoas escolhiam lutar. Vivemos em uma
era em que é extremamente fácil, a julgar pelos padrões históricos, construir
uma plataforma como a Uber ou o Airbnb. No entanto, apesar de toda essa
facilidade, as grandes plataformas costumam pertencer a círculos restritos de
investidores, como Shervin Pishevar e Chris Sacca, que trabalham em
benefício próprio e se dedicam a sugar o máximo de valor possível dos
trabalhadores, a preços muito baixos. Se hoje em dia é tão fácil construir
plataformas, pensou Scholz, por que trabalhadores e consumidores não
podiam criar suas próprias plataformas?
Scholz embarcou em uma aventura global com o intuito de identificar e
estudar diversas tentativas de fazer exatamente isso. Os embriões da ideia já
existiam. Nasceram o Fairmondo, a Loconomics, o Members Media e muitos
outros. Mas não se tratava apenas dessas empresas, disse Scholz: “Na
verdade, não estou falando de um aplicativo. Não estou falando da tecnologia
propriamente dita, e sim de uma mudança da mentalidade atualmente baseada
nesse tipo de economia exploradora, de trabalhar para uma economia que seja
baseada em mutualismo e cooperativismo.” Isso demonstrava uma raridade:
uma ideia descompromissada para realmente mudar o mundo.
Quando Scholz falou nos eventos, foi questionado repetidamente sobre
como as ferramentas de propriedade democrática poderiam competir com as
poderosas plataformas corporativas. “Como podemos crescer em escala?” As
pessoas perguntavam. “Como podemos chegar às massas?”
“Nós somos as massas”, lembrou-lhes Scholz.
Ele cedeu o palco para as pessoas que trabalham na plataforma co-op.
Brendan Martin era o fundador do Working World, uma instituição financeira
cooperativa ativa na Argentina, Nicarágua e Estados Unidos. Ele procurava
construir o que chamou de “finanças não extrativas”. Martin disse à plateia
que o desafio representado pela plataforma cooperativa fazia parte de uma
história humana muito antiga:
É possível analisar e observar o histórico das lutas por plataformas, sejam
elas cooperativas ou propriedade de poucos. A luta de classes pode ser
sobre quem é o dono — alguns de nós ou todos nós. São coisas com o
status de bem público que pertencem a algumas pessoas, e elas conseguem
sugar o que quiserem daqueles que precisam usá-las, ou são
compartilhadas para o benefício coletivo. A inovação dessa tecnologia é
que ela é só mais um espaço para enfrentar essa batalha.
Quem é dono daquilo que ninguém tem escolha a não ser usar? É uma velha
pergunta que se tornou fundamental para uma nova era. Martin analisou as
novas plataformas e viu os elos de plataformas anteriores — as plataformas
de celeiros, de ouro e de terra. Revolução após revolução ao longo dos
tempos clamava pelo cancelamento de dívidas e a redistribuição de terras.
“Podemos mudar isso agora, cancelar as dívidas e redistribuir a plataforma”,
disse Martin.
Havia também Emma Yorra, que codirigiu o Programa de Desenvolvimento
Cooperativo no Center for Family Life, no Brooklyn. Ela estava coordenando
um programa de serviço social que, aparentemente, tinha pouca ligação com
tecnologia. Alguns anos antes, o centro havia começado a organizar
cooperativas de trabalhadores para ajudar os imigrantes pobres a conseguir
trabalho em limpeza doméstica, creche, pet care e afins, e a ficar com o
máximo possível da remuneração, em vez de repassá-la a um intermediário.
Um dia, Yorra estava pegando o metrô e viu um anúncio que a enfureceu.
Era de uma das novas plataformas digitais que ofereciam uma limpeza
extremamente fácil. Ela lembrava:
É um anúncio que realmente está se promovendo por sua facilidade
tecnológica de uso. Acho que era algo como: “Tenha um apartamento
limpo com um clique.” E a imagem era uma mão, uma mão com luvas
amarelas. É meio incorpóreo e tem uma esponja, e você terá o apartamento
limpo por alguém que não vê, um elfo mágico de mão amarela. Porque não
se trata de uma pessoa, certo? Tudo se trata da tecnologia.
Era isso que incomodava Yorra. A tecnologia que facilitava a aquisição do
serviço também mudava a natureza da interação. O aplicativo de um clique
escondia a realidade humana confusa dos operários por trás dele, que agora
tinham menos poder de barganha.
Yorra começou a criar o que imaginava como uma resposta cooperativa ao
serviço de limpeza em um clique. Como você não tem escapatória do
Mercado Globo mesmo quando o rejeita, ela havia conseguido financiamento
da Robin Hood Foundation, financiada pelos titãs de Wall Street, para iniciar
seu negócio. A iniciativa ainda estava em andamento naquela noite no
Instituto Goethe. (Mais tarde, sua organização lançaria um novo aplicativo
chamado Up & Go, que permitia aos consumidores contratar serviços de
limpeza doméstica e destinava 95% do dinheiro diretamente para os
trabalhadores, que também tinham seus próprios negócios.) Naquela noite,
com o aplicativo a mais de um ano do lançamento, Yorra ainda tinha um
longo caminho a percorrer para combater uma estatística que a assustava: as
notícias divulgadas pela Oxfam, uma instituição de ajuda humanitária, de que
somente 62 bilionários possuíam a riqueza da metade da humanidade (3,6
bilhões de pessoas), em comparação aos 300 bilionários de alguns anos atrás.
Na verdade, eram 9 bilionários, não 62, como a Oxfam afirmaria mais tarde,
quando surgiram dados melhores. E no ano seguinte o número de bilionários
que representavam metade dos recursos mundiais caiu de 9 para 8.
Seis desses oito ganharam dinheiro em um campo que supostamente usaria
a tecnologia para promover igualdade: Gates; Zuckerberg; Jeff Bezos, da
Amazon; Larry Ellison, da Oracle; Carlos Slim, da Telmex e outras empresas
mexicanas; e Michael Bloomberg, o fornecedor de terminais de computador.
Outro, Amancio Ortega, que construiu a varejista Zara, ficou famoso por usar
tecnologia avançada na produção e por automatizar suas fábricas. O membro
final da gangue, Warren Buffett, era um dos principais acionistas da Apple e
da IBM.
CAPÍTULO 4
O CRÍTICO E O LÍDER DO PENSAMENTO

É difícil fazer um homem entender alguma coisa quando seu salário


depende de não entendê-la.
— UPTON SINCLAIR

E mpreparava
outubro de 2011, na pacata vila de Camden, Maine, Amy Cuddy se
para ministrar sua primeira palestra importante fora do meio
acadêmico. Cuddy era psicóloga social na Harvard Business School e havia
passado mais de uma década publicando artigos acerca do exercício do
preconceito, discriminação e sistemas de poder. Ela escrevera a respeito de
como o sexismo que as mulheres enfrentam é um amálgama obscuro da
inveja que os homens sentem por mulheres com uma carreira profissional e a
pena que sentem pelas que não trabalham. Ela havia escrito sobre como a
“obediência socializada” e a “conformidade” influenciaram as decisões tanto
dos sequestradores do 11 de Setembro como dos guardas norte-americanos
em Abu Ghraib que torturavam os prisioneiros. Escrevera também a respeito
de como os brancos que realizavam testes computadorizados de viés
implícito se tornavam mais preconceituosos quando informados de que o
propósito dos testes era mensurar o racismo. Ela escrevera sobre como,
depois do furacão Katrina, as pessoas identificavam com mais facilidade
“angústia, luto, remorso” e outras emoções “intrinsecamente humanas” em
seus pares do que em pessoas de outras etnias. Cuddy também escrevera
acerca do estereótipo da “minoria modelo” que acompanha muitos ásio-
americanos.
Naquele outubro, ela continuava a trabalhar com uma equipe em um projeto
de longo prazo a fim de estudar como a hegemonia masculina, o mais global
dos fenômenos, se adapta às condições locais com o intuito de se enraizar.
Nos Estados Unidos, onde independência e individualismo são os “ideais
culturais” mais importantes, como Cuddy e seus colegas escreveram, a
sociedade é propensa a atribuir essas características aos homens. Na Coreia
do Sul, onde ser interdependente e pensar no outro tem mais valor, a
sociedade costuma considerar que os homens são assim. Como seu artigo
científico afirmava: “Os homens, em geral, são vistos como os maiores
detentores de qualquer característica hipervalorizada culturalmente.” Como
grande parte do trabalho dela, o artigo não oferecia soluções. Fazia parte de
uma nobre tradição intelectual de canalizar as entranhas de um problema.
Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual nenhum dos trabalhos de Cuddy a
levara a ministrar uma palestra além dos muros da universidade — até este
momento.
Ela fora convidada para ministrar uma palestra em uma conferência
chamada PopTech. Era, como o Summit at Sea, uma parada imprescindível
no circuito do Mercado Global. A PopTech fora fundada por um grupo de
pessoas que queria levar grandes ideias ao Maine — entre elas, o inventor da
Ethernet e um ex-CEO da Pepsi e da Apple. Lá, as ideias surgiam facilmente,
em meio a sanduíches de lagostas, festas ao crepúsculo no convés com vista
para o oeste da Baía de Penobscot e saideiras no Natalie’s, localizado no
luxuoso hotel Camden Harbour Inn. Igual a muitas conferências do Mercado
Global, a PopTech cobrava uma expressiva taxa de participação e contava
com patrocinadores corporativos. Quando o Mercado Global organizava
eventos como este, poderia ser difícil evitar que suas tendências e pontos de
vista definissem quais ideias seriam expostas e de que maneira. Não estava
claro o que seus partícipes queriam de Cuddy, já que ela tinha por hábito falar
de problemas, e não de soluções fáceis, desafiava o poder e os sistemas, e,
aparentemente, estava pouco interessada nas mudanças covardes do todos
saem ganhando.
Felizmente, Cuddy tinha um mentor a fim de guiá-la nesse mundo novo,
Andrew Zolli, que, como curador da PopTech, foi o anfitrião da conferência.
Zolli era uma espécie de produtor do Mercado Global, estrategicamente
posicionado na confluência de empresas que querem se associar a grandes
ideias; redes de contatos em busca de sua próxima conferência; e escritores e
pensadores que desejavam alcançar um público mais abrangente e, quem
sabe, bajular as elites influentes do circuito. Zolli, que chamou sua
conferência de “uma máquina para mudar o mundo”, foi consultor e
conselheiro estratégico de empresas como a General Electric,
PricewaterhouseCoopers, Nike e Facebook, além de ONGs, startups e
organizações da sociedade civil; ele figurava no conselho de diversas
organizações do Mercado Global e era presença garantida no circuito de
palestras pagas, nas quais falava de temas como a resiliência. Seu livro
enaltecia as redes elétricas inteligentes e a conservação de recursos marinhos
como representações do todos saem ganhando.
Em outras palavras, Zolli era um expert e perpetuador da cultura do
Mercado Global e de sua visão. Compreendia quais ideias seriam úteis para
os partícipes do Mercado Global, auxiliando-os a prever o futuro e a erradicá-
lo, e entendia quais ideias faziam os vencedores se sentirem socialmente
conscientes e globalmente atentos, mas não culpados ou responsabilizados.
Um ensaio que ele redigiu com o intuito de promover seu livro sobre
resiliência argumentava que o mundo deveria se concentrar menos em
extirpar seus grandes problemas, incluindo a pobreza e a mudança climática,
e mais em conviver com eles. A mensagem tinha efeitos tranquilizadores para
aqueles que estavam plenamente satisfeitos com o status quo e preferiam os
tipos de mudanças que, sobretudo, preservassem-no. Zolli acreditava que o
desejo de solucionar os problemas estruturais é “um objetivo tentador e
moral”, mas, em última instância, equivocado. Talvez os problemas
estivessem entre nós para ficar, e era mais importante, segundo ele, ensinar as
pessoas a enfrentá-los.
Zolli promovia diversos projetos que alocavam recursos para ajudar pessoas
a superar situações ruins, em vez de corrigir essas situações. Elogiou, por
exemplo, uma pesquisa feita na Universidade Emory que ilustra como a
“prática contemplativa” pode “fortalecer a resiliência psicológica e
fisiológica das crianças em acolhimento familiar”, o que era bem mais fácil
do que reestruturar o acolhimento familiar. Ele falava de estruturas infláveis e
microrredes elétricas que poderiam ajudar as comunidades a sobreviver à
explosão de transformadores conforme o nível do mar continuava a subir.
Zolli reconheceu de imediato que nenhum desses tipos de ajustes “é uma
solução permanente e nenhum erradica os problemas estruturais que aborda”.
Ele sabia que era alvo de críticas: “Se nos adaptamos às mudanças
indesejadas, temos a seguinte linha de raciocínio: permitimos que os
responsáveis por essa confusão nos coloquem nela, primeiramente, e
perdemos a autoridade moral de pressioná-los a parar.” Todavia, esse era o
tipo de pensamento que mais se ouvia das pessoas que não ganhavam a vida
como consultores corporativos e como geradores de ideias para o Mercado
Global, mas Zolli insistia. Ele deixara claro que não estava afirmando que
“não existiam sujeitos realmente mal-intencionados e ideias ruins em
atividade, ou que não devíamos fazer nada para mitigar nossos riscos. Mas
também temos que reconhecer que a guerra santa contra as forças trevosas
não deu em nada e, provavelmente, não acontecerá tão cedo. No lugar dela,
precisamos de abordagens mais pragmáticas e politicamente inclusivas —
nadando conforme a maré, e não contra a correnteza”. Você até pode falar de
nossos problemas em comum, mas não seja político, não se concentre nas
origens do problema, não persiga as forças trevosas, nem tente mudar o que é
fundamental. Dê esperança. Nade conforme a maré. É assim que funciona o
Mercado Global.
Cuddy estava com os nervos à flor da pele devido à palestra que ministraria,
pela primeira vez, a centenas de desconhecidos que não faziam parte de seu
campo de atuação, que não eram estudantes empolgados que se inscreveram
para sua aula, que não sabiam nada sobre os conceitos básicos de psicologia
social. Embora seu trabalho acerca da imagem masculina em sociedades
individualistas e coletivistas estivesse em sua pauta, talvez ele não deixasse o
público da PopTech eufórico. Outro artigo que ela publicou na Psychological
Science, “Brief Nonverbal Displays Affect Neuroendocrine Levels and Risk
Tolerance” [Demonstrações Breves Não Verbais Afetam os Níveis
Neuroendócrinos e a Tolerância ao Risco, em tradução livre], se tornaria a
base de sua palestra.
As luzes do palco se acenderem em meio à escuridão. No centro do palco,
Cuddy estava com as mãos nos quadris, seus pés ligeiramente afastados em
um par de botas de caubói marrons, que apenas corroborava ao que viria a ser
sua marca registrada, a chamada “pose de poder”. Na tela gigante atrás dela,
figurava uma imagem da Mulher-Maravilha, cujas mãos e pés estavam na
mesma pose poderosa, ocupando o mesmo espaço, de forma deliberada. O
que ela e seus colegas descobriram era que ficar em uma posição enérgica
como essa poderia despertar a confiança nas pessoas — e, talvez, enfraquecer
alguns efeitos do sexismo que ela estudara por muito tempo. Durante 20
segundos que mais pareceram uma eternidade, Cuddy ficou lá, em sua pose
poderosa e em silêncio, enquanto a música tema da Mulher-Maravilha
tocava. Ela se movia de um lado para o outro, mantendo sua posição. Então,
deixou sua personagem de lado e sorriu.
“Falarei com vocês hoje sobre a linguagem corporal”, começou. O título da
sua palestra, revelado no segundo slide, era “Power Posing: Gain power
through body language” [Pose de Poder: Obtenha poder por meio da
linguagem corporal, em tradução livre]. Ela começou a explicar a pesquisa
que realizou com seus colaboradores, mostrando que, sem modificar
nenhuma das dinâmicas mais abrangentes de poder, sexismo e preconceito,
existiam poses que as pessoas poderiam assumir, por si mesmas, que as
ajudariam a obter confiança. Sem necessariamente ter esta intenção, ela
estava fornecendo ao Mercado Global o que ele mais ansiava de um
pensador: uma forma de circunscrever um problema dentro de seus limites e
proporcionar migalhas de poder àqueles que não o detinham, sem tirar o
poder das mãos daqueles que, de fato, o monopolizavam. Usando uma
metáfora que empregaria mais tarde, ela dava às pessoas uma escada para
transpor uma muralha segregadora — sem propor a derrubada dessa muralha.
Ou, como Zolli poderia dizer, ela estava dando às pessoas uma maneira de
“nadar conforme a maré, e não contra a correnteza”.

E sta é a melhor época para os líderes de pensamento. E a pior para os


intelectuais públicos, declara Daniel Drezner, um estudioso de política
externa, em seu último tratado The Ideas Industry [“A Indústria das Ideias”,
em tradução livre], um relato parcialmente acadêmico e em primeira pessoa
de como uma era de desigualdade, entre outras coisas, deturpou o trabalho
reflexivo.
Drezner começa estabelecendo dois tipos distintos de pensadores, que
compartilham o desejo de desenvolver ideias importantes e, ao mesmo
tempo, conquistar um público amplo. Um desses tipos, o moribundo, é o
intelectual público, que Drezner descreve como um “crítico” de grande
envergadura e um adversário do poder; talvez ele se mantenha “afastado do
mercado, da sociedade ou do Estado” e orgulhosamente tem o dever de
“apontar quando um imperador está nu”. O tipo em ascensão é o líder do
pensamento, mais simpático aos plutocratas que, atualmente, são os mecenas
de uma vasta produção intelectual. Os líderes de pensamento têm propensão,
segundo Drezner, a “conhecer a respeito de um assunto relevante e acreditar
que sua importante ideia mudará o mundo”; eles não são descrentes, e sim
“verdadeiros adeptos”; são otimistas, contam histórias edificantes; raciocinam
mais com base em sua próprias experiências do que fazem deduções a partir
de autoridades. Eles são brandos com os poderosos. Susan Sontag, William F.
Buckley Jr. e Gore Vidal eram intelectuais públicos; Thomas L. Friedman,
Niall Ferguson e Parag Khanna são líderes de pensamento. Os intelectuais
públicos discutem entre si nas páginas de livros e revistas; os líderes de
pensamento ministram palestras no TED que deixam pouco espaço a críticas
ou réplicas, e ressaltam soluções otimistas em vez de mudança sistêmica. Os
intelectuais públicos representam uma ameaça efetiva aos vencedores; os
líderes de pensamento fomentam seus valores, falando em “disrupção,
autonomia e habilidade empreendedora”.
Três fatores explicam o declínio do intelectual público e a ascensão do líder
de pensamento, segundo Drezner. Um deles é a polarização política: à
medida que a política se torna mais tribal, as pessoas se interessam mais por
confirmar seus pontos de vista — independentemente de quem o faça — do
que por serem contestadas por pensadores interessantes e intelectualmente
rebuscados. Outro fator é uma perda generalizada de confiança nas
autoridades. Nas últimas décadas, os norte-americanos perderam a confiança
em praticamente todas as instituições do país, exceto nas Forças Armadas, em
parte devido à situação econômica difícil vivida nos últimos anos e à
disfunção da esfera pública. As pessoas passaram a acreditar mais nos
quiropráticos do que nos jornalistas. Essa perda de confiança prejudicou o
brio de alguns intelectuais públicos e criou um novo espaço para que
geradores de ideias menos gabaritados competissem por atenção. Entretanto,
na perspectiva de Drezner, foi a desigualdade crescente o que mais alterou o
âmbito das ideias. Ela teve um efeito paradoxal. Por um lado, a desigualdade
extrema criara “uma sede de ideias com o intuito de diagnosticar e tratar os
problemas que parecem assolar os Estados Unidos”. Por outro, deu origem a
“uma nova classe de benfeitores para financiar a geração e a promoção de
novas ideias”. Assim sendo, os Estados Unidos estão mais interessados do
que nunca no problema da desigualdade e da divisão social — e ainda mais
dependentes dos explanadores que, por acaso, caem nas graças dos
bilionários.
Inspirado em suas próprias pesquisas e nos estudos de outras pessoas,
Drezner demonstra como esses explanadores são atraídos para a órbita do
Mercado Global — como os pensadores iguais a ele, Cuddy e outros são
persuadidos a abandonar seus papéis como críticos em potencial e a se tornar
companheiros de viagem dos vencedores. “À medida que a elite norte-
americana fica cada vez mais rica, ela pode se dar ao luxo de fazer qualquer
coisa”, escreve ele. “Acontece que um número espantoso de membros dessa
elite quer retornar à universidade — ou, ainda melhor, fazer a universidade ir
até eles.” Os pensadores são convidados a se tornar os professores da elite no
circuito de “reunião de grandes ideias” — “TED, South by Southwest, Aspen
Ideas Festival, Milken Institute’s Global Conference, qualquer coisa
patrocinada pela The Atlantic”. Em geral, esses pensadores se tornam líderes
de pensamento sem sequer perceber, depois de “pouco a pouco, surgirem
oportunidades difíceis de recusar”.
Pode-se somar à análise de Drezner que, ainda que os plutocratas estejam
oferecendo esses incentivos sedutores, fontes menos corrompidas de
patrocínio intelectual estão diminuindo. Nas últimas décadas, nos campi
universitários dos Estados Unidos, a parcela de acadêmicos que chegam a
fazer parte do quadro permanente de professores das universidades caiu pela
metade. As redações de jornais, outra fonte de apoio para os que estão
competindo no âmbito das ideias, encolheram mais de 40% desde 1990. O
mercado editorial sofre com o desaparecimento das livrarias e a diminuição
das tiragens. Vivemos uma idade de ouro para a disseminação de ideias
digitalmente, contudo tem sido uma idade das trevas para muitos que ganham
o sustento com sua produção intelectual. Muitos pensadores não têm
expectativas além de uma vida permeada de ideias que será extenuante, não
remunerada e sem reconhecimento público. Porém, para aqueles que se
interessam por dinheiro, fama ou influência, as fontes de apoio públicas
foram ofuscadas por outras, orientadas pelo setor privado, e os novos
financiadores têm suas preferências e tabus.
É possível afirmar que o circuito do Mercado Global, e o mundo dos líderes
de pensamento, em termos gerais, gerou muitas consequências nobres.
Tornou as ideias mais acessíveis e disponíveis para muitas pessoas. A partir
de nova forma de palestras gravadas em vídeo, criou uma alternativa aos
livros gigantescos que, sinceramente, muitos não leram desde a geração
passada e nem estão dispostos a começar a ler agora. Aumentou a
oportunidade de atingir um vasto público que esteve excluído pelos antigos
guardiões das editoras e jornais.
Mas o mundo da liderança do pensamento é facilmente conquistado por
charlatões. Há muito tempo que “alegações sem nenhuma crítica
construtiva”, conforme argumenta Drezner, enfatizam belas narrativas e
deixam de lado o alvoroço da disputa que ajuda a aprimorar ideias e evita que
as prejudiciais conquistem muitos adeptos. Isso coloca os pensadores em uma
relação de condescendência exatamente com o que deveriam ser sinceras e
manter sob controle: o poder.
O fenômeno que Drezner descreve ultrapassa as fronteiras do mundo dos
pensadores, porque, pouco a pouco, os líderes de pensamento em ascensão —
que podem ser bons; inofensivos; omissos perante os sistemas e as estruturas
maiores; amigáveis com os abastados; importantes na solução de problemas
privados; ou dedicados ao sistema em que todos saem ganhando —
sobreporão outras vozes, não somente em conferências. Eles são convidados
a escrever artigos de opinião, assinam contratos de livros, dão suas opiniões
na TV, aconselham presidentes e primeiros-ministros. E é possível afirmar
que o sucesso deles ocorre a custa dos críticos. Para todos os líderes de
pensamento que ofereceram conselhos sobre como construir uma carreira em
uma nova economia impiedosa, existem muitos críticos — aos quais quase
ninguém mais dá ouvidos — almejando contribuir com uma economia menos
impiedosa.
As Hilary Cohens, as Stacey Ashers, os Justin Rosensteins, os Greg
Ferensteins, os Emmett Carsons, as Jane Leibrocks, os Shervin Pishevars, os
Chris Saccas e os Travis Kalanicks do mundo precisavam de pensadores que
desenvolvessem as perspectivas de mudança pelas quais viveriam — e
convencessem um público mais abrangente de que eles, a elite, são os agentes
de mudança, são as soluções para o problema e, sob esse aspecto, não são o
problema. Em uma era de desigualdade, esses vencedores queriam sentir, por
um lado, que tinham “algum tipo de filosofia ética”, como Pishevar alegava.
Eles precisavam de uma linguagem com o intuito de justificar a si e aos
outros. Precisavam que a ideia de mudança fosse ressignificada a fim de
salientar o “nadar conforme a maré, e não contra a correnteza”. Os líderes de
pensamento deram aos vencedores o que eles precisavam.

A escolha do tópico de Cuddy na PopTech lhe rendeu frutos. Ela não


mencionara o poder sistêmico masculino. Ela falou a respeito de poses
que as pessoas podem assumir para se sentirem mais poderosas, e a multidão
adorou. A notícia de sua pesquisa cativante e agradável, bem como seu
estratagema de Mulher-Maravilha, se espalhou, e logo depois ela foi
convidada a ministrar uma palestra no palco principal do TED.
Cuddy disse que não desejava mascarar a realidade na palestra. Todavia, ela
decidiu falar do sentimento de impotência que muitas mulheres experienciam,
sem adentrar na causa desse sentimento. Em uma entrevista, anos depois, ela
foi direta acerca da motivação por trás de sua pesquisa das “poses de poder”,
que surgiu, segundo Cuddy, observando suas alunas se calarem em sala de
aula: “Ao observar a linguagem corporal delas, assistindo ao modo como se
fechavam e se encolhiam, eu me identifiquei. Eu observava isso e me dava
conta de que me comportava da mesma forma quando interagia com um
homem que considerava intimidador.” Na entrevista, Cuddy não mediu
palavras para se referir à causa do comportamento. Ele derivava do
“sexismo”. Mas, na palestra, deixou essas ideias mais polidas. Ela descreveu
que, nas salas em que ministrava as aulas, alguns estudantes pareciam
“caricaturas dos alfas”, física e socialmente expansivos, e outros
“praticamente entram em colapso quando os alfas chegam”. Em seguida,
mencionou casualmente o fator gênero, ainda que esta tenha sido a base da
pesquisa. Essa inibição, ela afirma, “parece relacionada ao gênero. As
mulheres são muito mais propensas a fazer isso do que os homens. Mulheres
se sentem com menos poder que os homens de forma crônica, então isso não
é surpresa”.
Cuddy era uma das principais autoridades no que diz respeito a por que as
mulheres se sentem menos poderosas do que os homens, quem fez isso com
elas e como. Mas essa história não foi levada ao palco. Em vez disso, Cuddy
demonstrou à plateia as descobertas dos seus estudos sobre as “poses de
poder”.
Já se sabia que ser e se sentir poderosas fazia com que as pessoas se
posicionassem de maneira mais imponente e ocupassem mais espaço. Mas e
se não houvesse necessidade de remediar esses principais desequilíbrios de
poder para que as mulheres se pronunciassem mais em sala de aula? E se
fosse possível ensiná-las a se posicionar de forma imponente, ocupar mais
espaço, e também ensiná-las a tomar o poder? O que Cuddy e seus colegas se
perguntavam, disse ela naquele dia no TED, era: “Você pode fingir até
conseguir? Você pode fazer isso por um tempinho e de fato passar por uma
mudança de comportamento que te faz parecer mais poderoso?” A grande
conclusão era que sim. “Quando você finge ser poderoso, é mais provável
que, de fato, se sinta poderoso”, disse ela. “Ajustes mínimos”, acrescentou
logo em seguida, “podem levar a grandes mudanças”. E, para encerrar com
chave de ouro, pediu à plateia que fizesse a pose e espalhasse essa ideia,
porque, de acordo com Cuddy, “as pessoas que mais podem se beneficiar
disso são as que não têm recursos ou acesso à tecnologia, nem status ou
poder”. Agora, pelo menos, elas têm novas ferramentas para o fingimento.
Por fim, mais de 40 milhões de pessoas acabariam assistindo à palestra de
Cuddy no TED, que se tornou a segunda palestra mais popular de todos os
tempos — mesmo quando começaram a questionar sua pesquisa. Os
membros do “movimento de réplica” em psicologia social, que têm defendido
padrões mais rigorosos de duplo controle, testaram novamente as descobertas
de Cuddy e relataram que os efeitos hormonais das poses de poder eram
inexistentes, ainda que reconhecessem determinados efeitos na autopercepção
das pessoas. A batalha que se seguiu se tornou pungente, com um dos
coautores negando publicamente sua associação à pesquisa das poses de
poder. Cuddy admitiu no site do TED que “a relação entre a pose e os
hormônios não é tão simples quanto acreditávamos que era”, ainda que
continuasse a defender — e a pesquisar mais — os efeitos das poses de poder
no estado emocional das pessoas. E toda essa controvérsia acadêmica não
impediu que as pessoas a abordassem na rua, entre lágrimas, para agradecê-la
por acreditar nelas. Sua caixa de e-mail foi inundada de mensagens. Em
breve, ela fecharia o contrato de um livro. E se tornaria uma daquelas pessoas
conhecidas por um termo do qual você não tem como escapar — a “pose de
poder” das mulheres para todo o sempre.
Cuddy ainda era Cuddy, ainda era uma feminista determinada, uma
acadêmica e adversária feroz do sexismo. Ainda era mais gabaritada do que a
maioria das pessoas no mundo para explicar que as mulheres não nascem
sentindo-se impotentes, mas têm esse sentimento incutido nelas. Mas na
palestra ela voltou atrás em suas críticas, omitindo suas contestações e
argumentando de forma agradável, construtiva, prática e orientada à liderança
de pensamento, e o mundo a recompensou ouvindo-a.

medida que Cuddy descobria como abordar esses novos fóruns e públicos, ela
À pôde se beneficiar de muitos exemplos próximos. Essa cultura estava
repleta de ensinamentos, se você estivesse aberto a eles, de como ser
ouvido enquanto intelectual — como deixar de ser um pensador crítico e se
tornar um líder de pensamento. Isso fica evidente quando se consideram
alguns dos contemporâneos de Cuddy que também trilharam o caminho de
líder de pensamento. Percebem-se alguns passos básicos de uma dança
comum, que podemos chamar de os três passos do líder do pensamento.
“Pense na vítima, não no agressor” é o primeiro desses passos. A frase é
proveniente de Adam Grant, um psicólogo organizacional que alcançou as
posições mais altas da liderança de pensamento nos últimos anos — “Grant
traz uma análise inovadora e perspicaz sobre o mundo”, como declara a capa
de seu próprio livro. Ao enfrentar um problema, o instinto humano
geralmente quer caçar um culpado. No entanto, esta é uma abordagem em
que todos saem perdendo na solução de um problema. Grant propõe um
modo mais amigável de lidar com problemas como o sexismo. “Diante da
injustiça, pensar no agressor alimenta a raiva e a agressividade”, escreveu ele.
“Mudar a atenção para a vítima reforça a empatia e aumenta as chances de
canalizar a raiva em uma direção positiva. Em vez de tentar punir as pessoas
responsáveis pelo dano, você terá maior probabilidade de ajudar as pessoas
prejudicadas.”
O segundo passo é levar a política para o lado pessoal. Caso queira ser um
líder de pensamento sem ser menosprezado como crítico, sua função é ajudar
o público a enxergar os problemas como dramas pessoais e individuais, e não
como coletivos e sistêmicos. É uma questão de foco. É possível observar uma
esquina em Baltimore, examinar detalhadamente as pessoas que vestem
calças sagging e considerá-las um problema. Agora, é possível somente
considerar os pontos essenciais e enxergar o problema como o excesso de
policiamento e a falta de oportunidades na área decadente da cidade. É
possível ampliar a análise e ver o problema como o capítulo mais recente de
uma história secular de controle social dos afro-americanos. Por sua natureza
e treinamento, diversos pensadores são propensos a considerar apenas os
pontos essenciais, enxergando as questões em termos sistêmicos e estruturais.
Contudo, se eles querem ser líderes de pensamento, que são ouvidos e
convidados a voltar, é fundamental aprender como examinar o assunto em
detalhes.
Brené Brown, que se tornou amiga de Cuddy, oferece um estudo de caso
sobre como analisar os pormenores com sucesso. Ela era uma estudiosa do
serviço social, um campo que produziu poucos — se é que produziu algum
— grandes líderes de pensamento além dela. Talvez isso se deva ao fato de
que o serviço social é quase inerentemente um domínio em que você só leva
em consideração os pontos essenciais. A análise psicológica de uma criança
problemática pode não ir além dos limites de seus pais e do ambiente
doméstico. Mas a formação de um estudioso de serviço social o leva a
considerar e a escrever artigos em veículos como o Families in Society, a
respeito dos sistemas externos ao lar que nos impactam coletivamente —
bairros assolados pela criminalidade; programas de assistência social
fracassados; pobreza crônica; oferta de assistência médica insuficiente; e
escassez de opções para alimentação. Isso faz com que assistentes sociais
sejam candidatos inadequados à liderança de pensamento, pois a qualquer
momento eles podem dizer alguma coisa séria e fazer com que os vencedores
saiam perdendo.
Como pesquisadora da Universidade de Houston, Brown começou
estudando a conexão humana, o que a levou ao estudo da vergonha, que, por
sua vez, levou ao estudo da vulnerabilidade — “essa ideia de que, para que a
conexão aconteça, temos que nos permitir ser vistos, realmente vistos”.
Brown estudou o assunto ao longo de seis anos, e chegou a uma conclusão
inevitável: “Havia somente uma variável que separava as pessoas que tinham
um forte sentimento de amor e pertencimento das pessoas que realmente
lutavam por isso. E era que as pessoas que tinham um forte sentimento de
amor e pertencimento acreditavam que elas mereciam amor e pertencimento.
Só isso.” Hoje em dia, os estudiosos do serviço social não costumam falar
desse modo. Eles são especialistas no emaranhado de circunstâncias que
dificultam que muitos de nós possamos ser nós mesmos em nossa totalidade
— algumas pessoas conseguem escapar disso por meio do esforço individual,
mas muitas não, dada a natureza estrutural do problema ou a dependência de
medidas tomadas por outros atores, sobre os quais não temos controle.
Brown não enfatizou todas as outras razões, circunstâncias e forças —
pobreza, abuso familiar, tratamento policial, dependência — que fazem
algumas pessoas se sentirem merecedoras e outras não. Ela se tornou uma
líder de pensamento de sucesso apoiada pela Oprah. Também ministrou uma
das palestras TED mais populares de todos os tempos. “Vivemos em um
mundo vulnerável”, disse ela, em que as pessoas adoecem, passam por
dificuldades no casamento, sofrem demissões em massa e têm que demitir em
massa também. Quando ela disse essas palavras, os Estados Unidos estavam
sofrendo uma profunda crise econômica. Milhões de pessoas haviam perdido
seus empregos, casas e até entes queridos devido à crise. Brown alertou as
pessoas que amortecer a dor não era a resposta, embora fosse essa atitude que
os norte-americanos assumiam à medida que eram “os adultos mais
endividados, obesos, viciados e medicados na história dos Estados Unidos”.
(Ao seguir o primeiro passo, focar a vítima e não o agressor, ela não
mencionou os interesses poderosos por trás dos endividamentos, obesidade e
da prescrição de opioides e antidepressivos generalizada.) A resposta para
esses problemas era, para Brown, a aceitação, quando afirmou: “Sou apenas
muito grata, porque sentir-se tão vulnerável significa que estou viva.” Em
uma era saturada de vulnerabilidades, em que os vencedores se mostram
relutantes em mudar qualquer coisa que seja fundamental, esse mantra de se
sentir grato por ser vulnerável se populariza. “Hoje existem 1.800
funcionários do Facebook cujas vidas nunca mais serão as mesmas”, disse
um executivo do Facebook depois que Brown ministrou a palestra no TED.
Os vencedores a amavam, Oprah a amava; logo, todos a amavam. E agora
todo mundo podia presenciar os feitos de Brown conforme ela se tornava um
tipo raro dentre os estudiosos do serviço social — o que tinha se
transformado em produto. Ela oferecia uma gama de cursos online que
prometiam preparar as pessoas para serem líderes arrojados, a “revelar-se por
completo” à vida, se engajar em “autocompaixão” e a viver de modo corajoso
e vulnerável.
O segundo passo era, de algum modo, fazer o contrário do que uma geração
de feministas nos ensinou a fazer. Tal movimento nos deu o slogan “o
pessoal é político”, atribuído a essa passagem de Carol Hanisch: “Problemas
pessoais são problemas políticos. Não existem soluções pessoais no
momento. Só existe ação coletiva para uma solução coletiva.” Era uma ideia
importante e profícua em fevereiro de 1969. Ajudou as pessoas a enxergarem
que o que se passava na tranquilidade da vida pessoal, e também acontecia
sucessivas vezes em escala sistêmica, se dava devido a forças mais poderosas
do que qualquer indivíduo por si só — e isso deveria ser visto, bem como
medidas deveriam ser tomadas, de modo político, vasta e integralmente, e,
acima de tudo, nos lugares onde residia o poder. Um homem agredindo uma
mulher não representava somente um homem agredindo uma mulher; era
parte de um sistema de supremacia e leis masculinas, e de uma cultura de
fazer vista grossa que representava o problema além da solução para a mulher
em questão. A vergonha que se sentia ao realizar um aborto não era um
sentimento inventado de modo desonesto por quem o sentiu; ele era
arquitetado e construído por meio de políticas públicas e do uso ardiloso da
autoridade religiosa. As feministas nos ajudaram a encarar os problemas
dessa maneira.
Em nosso tempo, os líderes de pensamento não raro se mobilizam para nos
ajudar a ver o problema justamente de maneira oposta. Eles abordam
questões que podem facilmente ser consideradas políticas e sistêmicas —
injustiça, demissões em massa, liderança irresponsável, desigualdade,
abandono da comunidade, a precariedade engendrada de cada vez mais vidas
humanas —, mas utilizam seu poder de influência para nos levar a análises
limitadas e a pensar pequeno. As feministas queriam que nos atentássemos
aos problemas enfrentados pelas mulheres, mas também nos preocupássemos
com o Congresso. Os líderes de pensamento querem que olhemos para um
funcionário que foi demitido e examinemos a situação por si mesma, de
modo a enxergar a beleza de seu sentimento, de vulnerabilidade, pois ao
menos ele está vivo. Querem que foquemos sua vulnerabilidade, não seu
sustento.
O terceiro passo é ser prático de modo construtivo. Não há problemas em
escrever e fazer críticas sem oferecer soluções — a menos que você queira
ser um líder de pensamento. Um bom exemplo disso provém de Charles
Duhigg, repórter e editor do New York Times que conseguiu, melhor do que a
maioria, combinar diferentes estilos de vida, o de crítico e o de líder de
pensamento. Jornalista com MBA em Harvard, Duhigg certa vez passou o
verão elaborando modelos financeiros para recuperar empresas em
dificuldades, antes de chegar à conclusão de que preferia ser repórter de
jornal. Ele ganhou o Prêmio Pulitzer por uma investigação que revelou as
artimanhas comerciais da Apple no gerenciamento de fábricas estrangeiras,
no pagamento e sonegação de impostos, e na reivindicação de patentes.
Também desmascarou empresas que violavam legislações ambientais
relacionadas à poluição inúmeras vezes e investigou a decisão quase fatídica
da Fannie Mae [Federal National Mortgage Association — FNMA; empresa
de capital aberto garantida pelo governo norte-americano], antes da Grande
Recessão, de revender os empréstimos imobiliários dos “cantos mais
traiçoeiros do mercado de crédito à habitação”. Apesar de seu diploma em
administração, ele se tornara o que o Mercado Global não valorizava: um
crítico que evidenciava os erros sem oferecer listas de dicas simples de como
consertar essas coisas.
Alguns anos mais tarde, Duhigg começou a escrever livros. Ele poderia ter
seguido a mesma toada, e se supôs que os livros teriam sido importantes. Mas
teriam vendido? “Uma série investigativa do New York Times nunca daria um
bom livro, porque se dá certo, basicamente, ela mostra tudo o que há de
errado com o mundo, com uma empresa específica ou com uma situação”,
contou-me ele. “Mas, ao ler um livro, ninguém quer ler para ficar sabendo o
quanto as coisas são ruins, certo? Quer dizer, esses livros existem e são muito
valiosos. Mas costumam ter, você bem sabe, um público limitado.” As
pessoas, sobretudo os vencedores que modelam as preferências e apadrinham
os líderes de pensamento, querem que as coisas sejam construtivas,
edificantes e deem esperança. “Além de saber o que há de errado, o público
quer aprender o que está certo”, disse Duhigg. E ele gosta de passos fáceis:
“Ele quer aprender o que pode fazer e como melhorar a si mesmo ou tornar o
mundo um lugar melhor.”
Duhigg não acreditava nesse tipo de solução mercadológica enquanto
desempenhava seu papel de repórter investigativo, mas a achava válida em
sua vida emergente como líder de pensamento. “O jornalismo investigativo
está tentando evitar especulações”, disse ele. “Já em um livro, pelo menos
metade de seu empenho deve ser especular a respeito de soluções.” No
entanto, se Duhigg tinha razão quanto à preferência por soluções, isso
deixava cada vez menos espaço aos tipos de pensadores e críticos que foram
fundamentais à nossa sociedade no passado. E abria cada vez mais espaço
para os tipos de livros que Duhigg começara a escrever.
Ele escreveu livros que os partícipes do Mercado Global amaram
instantaneamente, porque os ajudavam ou ensinavam os outros a ser como
eles. O primeiro foi sobre como os hábitos são criados e quebrados, e este
mais do que depressa eliminou o obstáculo de ser prático e construtivo. O
livro versava sobre como Duhigg conseguiu abandonar o hábito de comer um
cookie todas as tardes. E ele se apressou para terminar este primeiro livro,
que inspirou o segundo. Duhigg estava ocupado e sentia que estava fazendo
um pouco de tudo, mas não fazia nada bem. Ele queria ser mais produtivo.
Desse modo, começou a escrever um livro sobre produtividade, que ensinaria
os leitores a “se tornarem mais inteligentes, mais rápidos e melhores em tudo
o que faziam”. Para o Mercado Global, Duhigg se tornou menos ameaçador.
Agora, ele queria aprender com os tipos de pessoas que costumava delatar. O
destaque do livro era sobre o que poderíamos aprender com as equipes mais
produtivas do Google, que no momento do lançamento do livro estava perto
de destronar o ex-alvo de Duhigg, a Apple, como a empresa mais valiosa do
mundo.
Duhigg se tornou um líder de pensamento requisitado — presença constante
na lista de best-sellers e frequentador do circuito de palestras pagas. “Sou
abençoado”, disse ele. “Tenho muita sorte de os empresários quererem ouvir
o que falo e penso.” Isso lhe dava uma satisfação especial por causa do que
alguns de seus colegas da Harvard Business School aparentemente pensavam
quando ele entrou no jornalismo: que, segundo ele, “alguém lhe deu o bilhete
premiado da loteria e você decidiu usá-lo como papel higiênico”. Disse:
“Acho que eles pensavam que, economicamente, fiz uma escolha estúpida,
porque estava entrando em um campo de atuação no qual não ganharia
dinheiro — o que se provou equivocado, mas durante um bom tempo, foi
verdade.”
Uma das coisas que mudou a avaliação negativa de suas prospecções
financeiras foi sua agenda de palestras. Duhigg estava firme em seu propósito
de que elas se tornariam uma fonte de renda, bem como ganharia com a
venda de seus livros práticos e construtivos, sem de modo algum alterar suas
ideias, se corromper ou censurar. Sobre a discussão a respeito da palestra de
sua companheira de viagem Hillary Clinton ao Goldman Sachs, ele disse que
sua experiência “foi exatamente o contrário” do que os críticos de Hillary
apontaram sobre a desonestidade dela nesses eventos — e bastante similar à
própria defesa de Hillary contra eles. “Eles querem muito que eu dê uma
palestra”, disse ele. “Eu sou um tipo de entretenimento, certo? Não uma
pessoa a quem as pessoas querem ter acesso.”
Por um momento, ele pensou se viver às custas de palestras ocasionais
levaria os líderes de pensamento a se censurar. “Você acha que as pessoas
deixam de trilhar o caminho da investigação intelectual porque estão
preocupadas com a possibilidade de isso insultar o público em potencial?”,
perguntava em voz alta. “Ou que eles deturpam os pensamentos de um jeito
que soem mais aceitáveis para o público em potencial?” Claro, admitia, deve
haver algumas pessoas que o fazem, mas isso não era um problema grave. No
entanto, logo depois, acrescentou: “A questão é: você quer ser rico como
escritor ou quer ser um escritor intelectualmente honesto e responsável?”
Há alguns anos, outro peso-pesado da liderança de pensamento, Malcolm
Gladwell — que, como Duhigg (e diferentemente de muitos líderes de
pensamento), conseguiu preservar a respeitabilidade social — escreveu uma
longa nota de “divulgação” em seu site, abordando as complicações de
desempenhar “seus dois papéis”, como escritor e palestrante. Ele afirmou:
Ministrar uma palestra não comprova minha lealdade aos interesses do
meu público. Por quê? Porque ministrar uma palestra paga a um grupo por
uma hora simplesmente não é o bastante para que ele se predisponha a
gostar de você… As relações financeiras correm o risco de se
corromperem quando são, de fato, relações; quando, de alguma forma, são
duradouras, e os recursos, a influência e a informação circulam igualmente
em ambas as direções.
Talvez Gladwell esteja certo de que cada palestra é um evento único e não é
o bastante para corromper uma pessoa honesta. Todavia, é possível que uma
carreira de palestrante nunca estabeleça algo similar a “relações”, que tenha
algum grau de durabilidade e um fluxo de informações e de influência em
ambos os sentidos? Diversas curadorias de apresentações insistem em
telefonar ao palestrante para uma conversa, durante a qual os organizadores
lhe informam o contexto do evento e as “prioridades” dos participantes, e
talvez ofereçam sugestões a fim de que a palestra seja mais relevante.
Certamente, cada apresentação tem suas particularidades, mas muitas delas se
desenvolvem em um mundo comercial que abriga um conjunto de valores e
preferências coerentes para os despolitizados, os que buscam soluções
práticas e para eximir transgressores. Não é fácil construir uma carreira de
entretenimento nessas instituições enquanto se está tão certo quanto Gladwell
de que o efeito cumulativo desse entretenimento, e o desejo de ser bem-
sucedido e não fracassar, não o afetam.
“A questão deveria ser sobre o que eu escrevo. Não me critique por falar
para quem eu falo”, disse o colunista Thomas L. Friedman, do New York
Times, uma vez, também insistindo em sua incorruptibilidade. Contudo, ainda
que alguém acredite em Friedman e em Gladwell no que tange ao efeito do
dinheiro sobre eles como indivíduos, não é nada fácil aceitar a conclusão de
que o financiamento plutocrático das ideias não tem efeito no mercado de
ideias como um todo.
O dinheiro pode libertar os principais líderes de pensamento das instituições
e dos colegas que, de outra forma, poderiam submetê-los a algum tipo de
análise intelectual, ao passo que, às vezes, transformam suas ideias em
publicidade em vez de um trabalho independente. Como escreveu Stephen
Marche sobre Niall Ferguson, o historiador que virou líder do pensamento e,
ao que se sabe, ganha entre US$50.000 e US$ 75.000 por palestra:
Os escritores de não ficção podem ganhar muito mais dinheiro, e com mais
facilidade, do que ganhariam de outro modo, inclusive escrevendo best-
sellers ou lecionando em Harvard…
Essa quantia quer dizer que Ferguson não precisa agradar seus editores, e
com certeza não precisa agradar os estudiosos. Ele tem que agradar as
corporações e as pessoas com uma fortuna astronômica.
Embora haja líderes de pensamento como Gladwell, que possam resistir às
tentações de mudar suas ideias visando, digamos, uma convenção bancária, o
dinheiro dos plutocratas equivale a um tipo de subsídio para as ideias que eles
anseiam ouvir. E os subsídios têm consequências, conforme observa Gautam
Mukunda, professor da Harvard Business School, em um artigo sobre como
Wall Street se agarra com unhas e dentes ao poder, inclusive cultivando
ideias que nos fazem acreditar que “os poderosos são bons e justos, e estão
fazendo a coisa certa”.
A capacidade de um grupo poderoso de recompensar aqueles que
concordam com ele e reprimir os que não concordam deturpa o mercado de
ideias. Não se trata de corrupção — as crenças mudam naturalmente de
acordo com os interesses. Como disse Upton Sinclair: “É difícil fazer um
homem entender alguma coisa quando seu salário depende de não entendê-
la.” O resultado pode ser uma sociedade inteira deturpada a fim de servir
aos interesses do grupo mais poderoso.
A ideia de que os líderes de pensamento passam incólumes por seus
patrocinadores também é desmentida pelos sites dos próprios palestrantes,
que ilustram como os vendedores ambulantes de ideias potencialmente
ameaçadoras são menos assustadores para as reuniões dos abastados e
poderosos.
Anat Admati é uma economista de Stanford e crítica proeminente do setor
financeiro. “Os banqueiros são quase unânimes” acerca do “criticismo
insultuoso e persistente do setor”, o New York Times relata: “As ideias dela
são extremamente impraticáveis, péssimas para a economia norte-americana
e não devem ser levadas a sério.” Os textos de Admati foram elogiados por
sua habilidade de “questionar o status quo”; ela é alguém que “desmantela as
táticas de intimidação dos bancos” e “expõe a falácia dos argumentos
autocentrados que fazem oposição a uma reforma financeira significativa,
promovidos por executivos de Wall Street e políticos fisgados por eles para
atender aos seus interesses”. Admati também é uma líder de pensamento,
representada pela agência de palestras Leigh Bureau, que tem a árdua tarefa
de amenizar o tom ao anunciar os tópicos da palestra dela: “Podemos ter um
sistema bancário mais seguro e saudável, sem sacrificar nenhum de seus
interesses.”
Anne Applebaum, uma colunista do Washington Post que escreve a respeito
do nacionalismo crescente, agressão russa e outras correntes geopolíticas
sombrias, é apresentada em sua página como uma palestrante que fala sobre
“A Política da Transição — Riscos e Oportunidades”.
Jacob Hacker é um cientista político de Yale. Ele foi um dos que estiveram
apreensivos com o aplicativo Even, e é um crítico incisivo do rumo da
econômica dos Estados Unidos na última geração. Escreveu livros como
American Amnesia: How the war on government led us to forget what made
America prosper [“Amnésia Norte-americana: Como a guerra ao governo nos
levou a esquecer o que fez os Estados Unidos prosperarem”, em tradução
livre] e The Great Risk Shift: The new economic insecurity and the decline of
the american dream [“A Grande Mudança Arriscada: A nova insegurança
econômica e o declínio do sonho americano”, em tradução livre]. É um
pensador que representa a situação em que todos saem perdendo e um dos
críticos mais perspicazes do corporativismo norte-americano. Isso representa
um desafio para seus agentes, que, no entanto, encontraram uma saída:
Hacker, um pouco exposto, torna-se um “líder de pensamento político com o
intuito de restaurar a segurança do sonho americano”.
Pode-se contestar que são somente ajustes superficiais na linguagem que
não alteram a mensagem principal. Porém, mesmo que isso fosse verdade em
alguns casos, não fica claro que ceder a esses ajustes não tenha um preço. Há
uma pressão enorme para transformar pensamentos em commodities — em
pequenos produtos funcionais; em insights matinais de segunda-feira para um
CEO; em ideias lucrativas, em vez de autossuficientes. Para ceder a essa
pressão, fazer com que seus pensamentos sejam mais práticos e dominar a
linguagem e as premissas vigentes no mundo dos negócios é necessário se
render. No poema “Conversa sobre Poesia com o Fiscal de Rendas”, de
Vladimir Maiakovski, o poeta percebe que não tem chance de conseguir o
que quer, porque a linguagem em que é obrigado a falar pertence a outro
registro. A amortização do homem de negócios é contabilizada em sua carga
tributária, mas e as “amortizações de almas e corações” do poeta? O homem
de negócios recebe um alívio para suas dívidas, mas poderia o poeta
reivindicar a mesma vantagem pelo seu endividamento “e toda infinidade/a
que eu não pude dar/a sobra de uma ode”?
Os líderes de pensamento podem se tornar como os poetas usando o registro
linguístico do fiscal de rendas, dizendo o que podem ou não falar ou acreditar
por conta própria. E o perigo não reside somente no que dizem nesse novo
registro, mas também na possibilidade de, em determinado momento, eles
pararem de pensar em sua língua nativa.

inco anos depois de ministrar sua palestra TED, Cuddy continuou


C vivendo em seu belo mundo novo que havia construído. Agora ela era
famosa, estava entre os principais líderes de pensamento de seu tempo.
Ainda assim, o sucesso e o modo como ele havia chegado eram um dilema
para ela. Ela estudava preconceito e sexismo há quase 20 anos e, mesmo
depois de seu grande êxito, continuou a trabalhar nessas questões junto aos
colegas acadêmicos. Ela costumava abordar esses temas de maneira rigorosa
e culpar os transgressores. Porém uma palestra viral do TED encobriu todas
as outras coisas que ela já havia dito, e agora ela recebia um convite lucrativo
atrás do outro, com o intuito de apresentar suas ideias da mesma forma
cautelosa.
Ela se viu em uma situação em que era frequentemente convidada a
ministrar palestras ou workshops que apresentavam uma expectativa
corporativa de utilitarismo. “Isso é o que me decepciona”, disse-me Cuddy.
“Todo mundo quer que eu chegue e, basicamente, aborde o preconceito e a
diversidade, e os solucione. E, principalmente, sem mencionar essas palavras,
porque isso pode assustar as pessoas. E querem que isso seja feito em uma
hora. Eles têm a impressão de que você pode chegar e reduzir o preconceito
com uma fala de uma hora de duração, o que é absurdo. Estou cansada de as
pessoas me abordarem com questões como: ‘Eu realmente não tenho ideia de
como fazer as mulheres falarem mais em uma reunião.’” Ela estava,
conforme percebeu, tentando facilitar um pouco as coisas por meio de suas
palestras, mas agora as pessoas queriam que ela as transformasse em um
medicamento de ação rápida.
Cuddy se via como uma pessoa que lutara na linha de frente contra o
sexismo durante a maior parte de sua carreira, mas agora estava sendo
representada como uma distribuidora de soluções fáceis. Ainda que ela
considerasse isso somente mais uma ária de seu repertório, o mundo a
enxergava como se ela cantasse uma única canção. Quando o Mercado
Global gosta de você, ele o quer como um produto.
Ela trabalhou a fim de refutar essa percepção. Cuddy fora convidada a
ministrar um dos seminários de formação executiva de Harvard, em que os
executivos de negócios com carreiras ascendentes do mundo todo voavam
para Boston em busca de atualização intelectual. Os organizadores queriam
que ela conversasse com o grupo sobre preconceito e diversidade. Eles lhe
deram mais ou menos uma hora e esperavam que pudesse abordar sexismo,
racismo e outros tópicos. Cuddy pediu três horas; eles concordaram com uma
hora e meia. Ela insistiu em se concentrar em somente um tópico — sexismo
— e em trazer um colaborador do sexo masculino, Peter Glick, de quem ela
pagaria as despesas de seu próprio bolso, para ajudá-la a lidar com um grupo
que, a seu ver, seria complicado. Era um grupo mundialmente reconhecido,
composto em grande parte de homens, e, para o azar de Cuddy, o seminário
fora no dia de uma partida da Copa do Mundo, e alguns dos presentes logo
deixaram claro que preferiam assistir ao jogo.
Cuddy, especialista em linguagem corporal, entrou em uma sala que, desde
o princípio, era um típico caso de plateia resistente. Apesar disso, ela tentou
desempenhar o papel de crítica, não de líder do pensamento. Na realidade, ela
e Glick começaram a infringir a primeira regra de liderança do pensamento.
Em vez de focar a vítima, eles falaram sobre a perpetração do sexismo.
“Começamos tentando explicar como de fato somos intolerantes”, disse ela.
Eles se recusavam a falar do sentimento de impotência que acomete as
mulheres sem indicar quem desperta esse sentimento nelas. Porém estavam
tentando suavizar os fatos. Glick, uma das principais autoridades em
psicologia do sexismo, tentou usar a tática clássica para abordar homens
desconfiados no que tange ao tema: falou de seu próprio sexismo. Ele contou
uma história de como certa vez se pegou comprando uma caneca de princesa
para sua esposa.
Essa abordagem não ajudou. “Na verdade, parei no meio da sessão e falei:
‘Sinto que as pessoas nesta sala estão decepcionadas, então podemos parar
por um momento e conversar sobre o que está acontecendo?’” Mas conversar
não ajudou. “Tínhamos dois slides para o final”, conta Cuddy. “Um deles era
sobre ações individuais que você pode colocar em prática para reduzir o
sexismo em sua organização; e o segundo, sobre questões organizacionais ou
estruturais. Nem chegamos a eles, porque havia muita resistência à ideia de
que existia um problema envolvendo sexismo.”
Agora, ao saber ainda mais a respeito das predileções e das barreiras do
Mercado Global, Cuddy relembra o passado e vê como poderia ter lidado
com a situação de outra forma, embora não tenha certeza de que teria sido de
uma forma honrada. “Se eu tivesse chegado lá e dito: ‘Ei, vamos falar sobre
empoderamento e como obter os melhores resultados de nossos
funcionários’, a coisa teria sido completamente diferente”, disse ela. As
pessoas “teriam reconhecido que algo está acontecendo e é a causa da
dificuldade de as mulheres falarem. Teriam aceitado isso porque se trataria de
resultados. Seria sobre como fazer com que sua organização fosse melhor.
Mas quando você chega e fala: ‘Ei, a verdade é a seguinte: o sistema é
estruturado de forma tendenciosa. Ele favorece os homens brancos.
Desculpem-me, mas é assim’, você não consegue ir além dessa afirmação. É
isso. Você fica presa a ela”.
Quanto mais Cuddy sentia dificuldade em proferir verdades como essa,
mais conhecida ela se tornava. Ela se tornou alvo do sexismo que estudara há
muito tempo: o destino quase inevitável de uma celebridade mundial da
internet. “A misoginia que eu sofro na posição de uma cientista bem-sucedida
é repulsiva, horrorosa, nojenta”, disse ela. Os ataques tiveram um efeito
paradoxal em Cuddy. Por um lado, eles deixavam ainda mais real e pessoal o
sexismo que ela estudou por meio da ótica acadêmica. Tirar o foco do
sistema tornara suas ideias mais acessíveis, o que a deixava mais consciente
de quão execrável este sistema era. No entanto, ao mesmo tempo, os ataques
odiosos constantes a fizeram perder o interesse em dedicar seu trabalho a
combater o sexismo sistêmico. “Chegou uma hora em que eu disse: ‘Estou
cansada de lutar nesta guerra. Eu me sinto sozinha’”, disse Cuddy na
entrevista. “Sendo mulher, era muito mais difícil lutar. Não é nada agradável
lidar tanto com pessoas que não acreditam em mim” — com pessoas, neste
caso, ela queria dizer homens — “quanto com pessoas que tenho
decepcionado” — agora ela se referia às mulheres — “dizendo ‘Ah sim, você
tem razão. Você acha que existe preconceito? Existe, e ele está lhe fazendo
mal’”. Ela detestava admitir, mas não “via os ‘ismos’ desaparecendo” — ela
se referia ao sexismo, racismo e outros preconceitos. “Isso acontece
principalmente porque não vejo as pessoas do alto escalão dispostas a
combatê-los, realmente dispostas a enfrentá-los.” Cuddy tinha parado de
acreditar que “as pessoas fariam mudanças arrebatadoras que de fato
mudariam essas coisas”.
Caso estivesse certa, ela pensou que sua melhor estratégia seria ajudar as
mulheres a enxergarem os tipos de mudanças em pequena escala, que
poderiam colocar em prática sem mudar nada. “Basicamente, consigo lhes
dar uma armadura para que elas possam amenizar e aceitar as coisas, mesmo
quando continuam a acontecer.” Ela as ensinava a nadar conforme a maré.
Ela focaria a vítima, não os agressores.
Tudo isso representa uma ironia sombria: amenizar sua crítica ao sistema
possibilitou que Cuddy fosse extremamente popular entre as elites do
Mercado Global e mais facilmente compreendida pelo mundo; desse modo,
ela se tornou famosa, o que a aproximou do sexismo sistêmico como nunca
antes e aguçou sua consciência a respeito dele; tamanha crueldade a dissuadiu
de enfrentar esse sistema, e a levou à conclusão de que ele nunca poderia
mudar; e tal aceitação fez com que ela desistisse de arrancar as raízes do
sexismo a fim de ajudar outras mulheres a sobreviver. Ela fora convocada
para um exército crescente: o dos teóricos da mudança que deixa os
problemas estruturais intactos.
“Talvez eu tenha um ponto de vista um tanto ortodoxo”, disse Cuddy, “ou
seja, na verdade, realizamos um trabalho ótimo ao documentar os problemas
e suas estruturas”. “De fato entendemos completamente todos os mecanismos
estruturais, psicológicos e neurológicos que levam ao preconceito. Nós
conseguimos.” Talvez essa perspectiva com relação a seu trabalho tenha
facilitado justificar o criticismo moderado ao Mercado Global, mas também
era problemática. Afinal de contas, seus colegas acadêmicos de outras áreas
como etnia, gênero e sexualidade — para mencionar apenas alguns exemplos
— trabalhavam a passos lentos, sinuosos e, não raro, inusitados, gerando
mudanças concretas na expressão de toda uma cultura. Agora, até os políticos
mais avessos ao risco às vezes exprimem conceitos cunhados nas
universidades: “microagressões” (Chester Pierce, psiquiatria, Harvard, 1970);
“privilégio branco” (Peggy McIntosh, estudos feministas, Wellesley, 1988);
“identidade de gênero” (Johns Hopkins School of Medicine);
“interseccionalidade” (Kimberlé Williams Crenshaw, teoria crítica da raça,
Universidade da Califórnia em Los Angeles, 1989).
Entretanto, Cuddy acreditava que, em sua área de atuação, a necessidade
real era de estudiosos determinados, providos de um bom dinheiro para
trabalhar em soluções e na implementação do que já havia sido aprendido. “A
meu ver, precisamos começar agora a conceber uma ciência orientada a
descobertas fundamentais, para intervenções que funcionem, e elas não serão
nada fáceis”, disse ela. As intervenções que tinha em mente envolviam ações
mais profundas e sólidas do que treinamentos ocasionais sobre a diversidade
e afins: “Levará uma vida toda.”
Mas e quanto à acusação de alguns de seus críticos a respeito de as poses de
poder, e talvez outras intervenções similares, serem somente um tipo de
arremedo de feminismo? Cuddy jurava que não. Ela enxergava essas
mudanças como “pequenas mudanças graduais que, com o passar do tempo,
poderiam levar a mudanças mensuráveis em sua vida”. Completou: “Não se
trata de uma bobagem qualquer. É real, acontece e funciona muito melhor do
que tentar realizar uma grande mudança como se fosse uma resolução de ano-
novo.” No entanto, esse era de fato um plano viável com o intuito de mudar o
sistema ou apenas resignação enfeitada com ciclos de feedback?
Por mais estranho que pareça, uma das coisas que facilita a resignação
perante o sistema é quando põe algo em prática e ouve cada vez mais que,
assim, está mudando as coisas. Muitos agentes efetivos da mudança têm que
aceitar o fato de nunca serem vistos como tal, pelo menos não enquanto estão
vivos. Presume-se que os estudiosos mencionados anteriormente, criada a
nova verborreia de uma nação que desperta para as realidades de identidade e
poder, dificilmente eram abordados na rua e informados sobre as diferenças
que tinham feito na vida de fulano ou beltrano. E Cuddy, durante seus anos
na academia criticando o sexismo e outros preconceitos, tinha que acreditar
que estava mudando as coisas, porém isso não era dito pelo público. No
entanto, quando ela afrouxou suas reivindicações, despolitizou, focou a
praticidade, aceitou que não “via os ‘ismos’ desaparecerem”, quando se
concentrou em como as mulheres poderiam desviar individualmente dos
obstáculos em um sistema precário, ironicamente, naquele exato instante em
que abriu mão da esperança de mudar os sistemas de uma forma contundente,
ela começou a ser parada em todos os lugares por onde passava; as mulheres
queriam agradecê-la por mudar suas vidas. Ainda que estivesse limitando
suas ambições, Cuddy se sentia atraída pela gratificação pessoal proveniente
desse tipo de mudança mais viável.
Cuddy crescera em uma cidade de classe operária na Pensilvânia e sentia,
graças à popularidade das poses de poder, que estava ajudando o tipo de
pessoas com quem cresceu. “A maior parte das pessoas que me falaram
‘Você realmente mudou minha vida’ não é poderosa”, disse ela. “São pessoas
que de fato lidam com as piores adversidades e descobrem formas como essa
para superá-las.”
Cuddy afirma que continua empenhada em combater o sexismo como um
sistema de poder e ainda realiza pesquisas nessa linha. Mas é, segundo ela, “e
só estou sendo sincera, menos gratificante para mim”. Mesmo assim, parecia
se questionar sobre suas escolhas: “Não achei que seria desse jeito quando
comecei a atuar nessa área.”

e Cuddy estava presa entre as polaridades da crítica e da liderança do


S pensamento, Simon Sinek estava confiante e bem à vontade nesta segunda
margem. Atualmente, Sinek é famoso pela ideia de que empresas e pessoas
devem “começar pelo porquê”— descobrir e organizar suas vidas em torno
de um único propósito estimulante. O seu próprio “porquê”, segundo ele, é
“inspirar as pessoas a fazer o que as inspiram”.
Ele trilhou o caminho da liderança do pensamento, afirma, devido ao fato de
que, quando jovem, mal conseguia ler. Sua mente saltava e rodopiava demais
de uma ideia a outra para se concentrar em uma página; ele tinha deficit de
atenção. Mas Sinek gosta de ver os problemas como oportunidades
disfarçadas: “Acredito que as soluções que encontramos para nossos desafios
enquanto crianças se transformam em nossos pontos fortes como adultos.”
Ele percebeu que não podia aprender lendo. Só podia aprender conversando.
Quando Sinek se tornou um líder de pensamento extremamente bem-
sucedido, e chegou a hora de escrever um livro, ele fez sua pesquisa de modo
curioso. “Se a leitura for necessária, pedirei a alguém que leia para mim e
depois me explique, e deixe-me fazer perguntas”, disse ele. Esse era seu
caminho deveras singular no que diz respeito a uma característica que
definiria tantos líderes de pensamento: uma certa liberdade imune a qualquer
tipo de tradição intelectual, a desenvoltura em expressar um assunto sem o
fardo do que outras pessoas disseram antes. Essa vantagem, conforme Sinek
viu, logo foi potencializada por outra: anos a fio de treinamento em
publicidade, o que foi proveitoso porque o trabalho do líder de pensamento
era muitas vezes fazer com que as ideias fossem apelativas, aderentes e
compreensíveis como anúncios publicitários e, assim, usá-las para
workshops, palestras pagas e consultoria.
A princípio, Sinek se dispôs a estudar direito na Grã-Bretanha, porém logo
percebeu, ao começar o curso, que “não servia para mim e eu não me
encaixava nele”. Ele interrompeu o curso no meio do primeiro ano, para o
desespero de seus pais, e entrou no mundo da publicidade. Lá, “aprendeu a
importância do papel das emoções”, disse, “que não se tratava apenas de um
argumento, mas que você pode fazer alguém se sentir de uma certa maneira
ou se conectar a outras pessoas de uma certa maneira”. Ele aprendeu que “em
vez de somente fatos e imagens, se conseguir que as pessoas associem a si
mesmas e suas vidas ao que você estiver fazendo, seja lá o que for, e você o
faça valer na vida delas, é bem provável que não crie apenas um produto
vendável, mas também amor”.
Ele se manteve no mundo publicitário por muitos anos, trabalhando para
clientes como Enron e Northwest Airlines. Depois, abriu sua própria agência
de marketing, cuidando de clientes como OppenheimerFunds, ABC Sports,
GE e AOL. Contudo, sua paixão pelo trabalho esmoreceu e ele ficou
estressado com o dever de interpretar um papel para clientes e funcionários.
“Passei a maior parte dos meus dias mentindo, me escondendo e fingindo”,
afirma. “E as coisas ficavam cada vez mais obscuras, e cada vez mais
estressantes. Eu frequentava conferências de negócios para aprender como
fazer as coisas do jeito certo, e elas me faziam sentir muito pior. Tinha um
cara que ficava no palco e me dizia tudo o que eu não estava fazendo.”
Um dia, um amigo perguntou se ele estava bem. Sinek lhe disse que se
sentia deprimido. Tirar esse peso dos ombros “me deu a coragem de começar
a procurar uma solução”. No núcleo da solução que surgiria, havia uma ideia
que Sinek chamou de “Círculo Dourado”. Imagine um círculo. O núcleo do
círculo é o “porquê”, o propósito ou a razão de ser do negócio. O anel fora do
núcleo é o “como”, as ações da empresa para que o objetivo vire realidade. O
anel externo é o “o quê” — os resultados dessas ações, mensurados em
produtos e serviços.
Sinek apresentou os princípios do sistema, ao passo que tentava descobrir
“por que alguns anúncios publicitários funcionam e outros não”. Um dia, ele
estava em um “evento social formal”, disse, e sentou-se ao lado de uma
convidada cujo pai era um neurocientista. Sinek diz que a filha do
neurocientista começou a lhe contar sobre o trabalho do pai com “o cérebro
límbico e o neocórtex”. Isso levou Sinek a fazer suas próprias pesquisas a
respeito do cérebro. “Comecei a perceber que o modo como o cérebro
humano tomava decisões era o mesmo da ideia que eu tinha guardada”, disse
ele. Como Sinek mais tarde alegaria: “Nada do que estou lhe dizendo é minha
opinião. Tudo isso está embasado nos princípios da biologia. Não na
psicologia, mas na biologia. Se você analisar uma seção transversal do
cérebro humano, de cima para baixo, ele é dividido em três componentes
principais que se correlacionam perfeitamente com o Círculo Dourado.” O
porquê e como as pessoas agem, de acordo com a teoria do cérebro de Sinek
(absurdamente controversa e extremamente simplista), é controlado pelo
cérebro límbico, enquanto o que as pessoas fazem é controlado pelo
neocórtex, evolutivamente mais novo. A ciência poderia ser duvidosa, mas
tinha ares de requinte.
Ele iniciou sua nova carreira como um líder de pensamento ajudando as
pessoas a identificar seus porquês ao custo de US$100 cada. Sinek se sentaria
com elas e as entrevistaria, durante quatro horas, sobre suas “elevações
naturais”, seus momentos de inspiração máxima, e depois as informava a
respeito de seus propósitos na vida. O serviço se popularizou tanto que o
levou a ministrar uma palestra TED que fez um sucesso estrondoso, publicar
livros de negócios amplamente lidos, ministrar inúmeras palestras e prestar
aconselhamento corporativo. Esse sucesso astronômico como líder de
pensamento tem uma história original (um tanto questionável). No Canadá,
em viagem de negócios, Sinek saiu para tomar café da manhã com um ex-
cliente. Seu amigo perguntou:
“O que você está fazendo hoje em dia?” Como eu fazia em qualquer lugar,
peguei um guardanapo e comecei a desenhar círculos. E ele me disse:
“Mas isso é fantástico. Você pode vir comigo para compartilhá-lo com
minha CEO?” E olhei para o meu relógio e disse: “Claro.” Então, fomos
até a empresa dele. Eu me sentei para conversar com a CEO. Era uma
empresa pequena. Expliquei a ela sobre o Círculo Dourado e o conceito do
“porquê”, e ela me disse: “Isto é incrível. Você pode ajudar nossa empresa
a descobrir o ‘porquê’?” Respondi: “Claro.” Ela disse: “Você poderia fazer
isso hoje à tarde?” Eu estava tipo: “Claro.” Ela perguntou: “Quanto custa?”
E, obviamente, o que passou pela minha cabeça foram US$100. Então eu
lhe disse: “São US$5.000”, ao que ela respondeu: “Tudo bem.” E ganhei
US$5.000 por duas horas e meia de trabalho, e saí de lá dando risada. Eu
literalmente estava andando pela rua e rindo alto do absurdo desse dia.
Mas, o mais importante, eu tinha percebido que poderia ganhar a vida com
isso. Comecei a fazer as contas na minha cabeça: quantos dias eu teria que
trabalhar para ganhar US$5.000 fazendo a mesma coisa que fazia, já que,
naquela época, eu não ganhava muito.
Sinek não estava sobrecarregado com a multiplicidade de ideias. Essa era a
sua única grande ideia, e agora ele tinha a intenção de divulgá-la. “Sou um
pregador do evangelho e estou procurando pessoas que se juntem a mim na
evangelização e me ajudem a pregar a boa-nova”, afirma. Para um aspirante a
líder de pensamento, é mais importante ter uma ideia do que uma pesquisa
acadêmica sólida — e colocar essa ideia em prática, e vendê-la
incansavelmente. Sinek era bom nisto: ele personificava seu próprio dogma
sobre viver a vida em prol de um único e arrebatador “porquê”. Ele tinha
confiança, fervor e persistência. Sabia como transformar seus pensamentos
em “produtos”, como se costuma dizer no mundo dos negócios. Pouco a
pouco, ele consolidou um negócio gigantesco com duas divisões: uma para
tudo o que ele próprio fazia, como palestrar e escrever; a outra, para o que os
outros faziam sem ele, como palestras ministradas por líderes de pensamento
mais jovens que ele recrutara para sua rede, e as vendas de seus livros e
outros artigos.
O fato de existir alguém à solta disposto a promover um evangelho
duvidoso não é uma coisa tão estranha. O mais espantoso é como as elites
acolhem uma ideia dessa. Sinek aconselha e ministra palestras para uma
variedade de instituições e pessoas influentes, incluindo (de acordo com sua
agência de publicação literária) Microsoft, American Express, Departamento
de Defesa dos EUA, membros do Congresso, Nações Unidas e embaixadores
estrangeiros. Os líderes de pensamento em formação talvez precisem se
engajar, mas tal engajamento pode gerar recompensas suntuosas. E, no
acolhimento que recebem, seus valores não são revelados, e sim os valores da
elite do Mercado Global que os patrocina e sustenta com fervor: o amor à
ideia fácil de digerir, uma ideia que dá esperança enquanto não contesta nada.
O melindre no que tange à autoridade científica, independentemente do quão
pouco convincentes ou duvidosas suas ideias sejam. A necessidade de que as
ideias sejam úteis, voltadas aos resultados e à lucratividade, a fim de granjear
apoio. A desconfiança em relação à proposta política e coletiva, e à
preferência por uma proposta privatizada, transformada em algo pequeno e
micro, aprisionada a empresas e executivos. O interesse deles por um homem
como Sinek, dando aos seus negócios corriqueiros o brilho do heroísmo, a
realização da mudança, a missão em prol de uma causa. Ideias como essas
norteiam os ricos e os poderosos em sua rotina de negócios e são como são.
Mas é com esse tipo de pensamento que queremos nortear a solução de
nossos maiores problemas compartilhados?
O próprio Sinek aparentemente tinha dúvidas sobre a ascensão dos líderes
de pensamento. Ainda que, obviamente, acreditasse em suas próprias ideias,
ele fez questão de criticar os líderes de pensamento charlatões, com os quais
se preocupava, pois estavam sendo gerados por uma nova era de ideias
amparadas pela plutocracia e pela mercantilização do pensamento. “Desprezo
as pessoas no circuito de palestras”, disse ele, mesmo sendo uma das
principais figuras deste circuito. “Ainda que eu esteja nesta categoria junto a
pessoas que têm objetivos como palestrantes e se consideram palestrantes
motivacionais, ou seja lá como se denominam, desprezo esses caras, mesmo
eu que goste deles, que os ache brilhantes, porque lhes assisto no palco dando
palestras a empresas com as quais eu sei que eles não concordam, dizendo
baboseiras que eu sei que não são verdade”, disse Sinek. “Eu chego neles,
tipo, ‘Cara, por que você fez isso?’, e eles dizem: ‘Simon, eu preciso me
sustentar’, e acho que esse ‘preciso me sustentar” é uma justificativa que
damos a nós mesmos para fazermos as coisas desonestamente.” Embora
alguns descrevam o próprio Sinek exatamente nos mesmos termos, ele
encarava isso como uma licenciosidade da qual tinha que manter distância.
“Às vezes é muito difícil, eu entendo esse conflito”, continuou. “Alguém
lhe oferece muito dinheiro para fazer algo, e você diz não em nome da
honestidade. E então lhes oferecem ainda mais dinheiro, porque acham que
essa é a questão e não é. E então você pensa: ‘Bem, eu poderia fazer isso
apenas uma vez. Só uma.’”
Não faz muito tempo, ele foi convidado para um círculo de
aconselhamentos. Eram em torno de dez pessoas no grupo, e muitas eram
líderes de renome como Sinek. “Deveríamos estar falando sobre como
podemos combinar nossos esforços para promover um bem maior”, disse.
“Por isso eu fui. E cada um deles só falava de como aumentar suas listas de e-
mails, como fazer mais dinheiro com X, Y, Z, como vender mais produtos.
Eu simplesmente sentei e fique enojado.” Embora simbolizasse perfeitamente
como as ideias se transformavam em produtos, Sinek encontrou um modo de
se enxergar como um puritano entre os gananciosos. “Torna-se um negócio”,
segundo ele. “E, veja bem, existem muitos caras cujo primeiro livro, o
sucesso deles, era sobre integridade — eles levaram a vida inteira para chegar
lá. E então entra o dinheiro, os negócios se envolvem, a TV se envolve, o
TED se envolve, e tudo fica sedutor. Alguns cedem à sedução, e outros
conseguem geri-la, mas não é nada fácil. Como eu disse, recusei as coisas,
mas não quer dizer que não é estressante recusá-las, porque envolve muito
dinheiro, e posso achar uma justificativa para elas rapidinho.”
O mundo das ideias “é apenas mais um segmento de mercado”, disse Sinek
depois de um momento. “Existe o produto bom e o produto ruim.” A questão
é se uma república consegue prosperar quando as ideias são consideradas um
segmento de mercado, e os incentivos dominantes favorecem bastante o
produto ruim. É desse modo que queremos que as ideias sejam geradas? E as
elites que acolhem e patrocinam essas ideias são compostas de pessoas em
quem confiamos para estruturar nosso futuro?

A my Cuddy quer acreditar que o líder de pensamento pode empregar os


estratagemas de sua profissão para superar os obstáculos da liderança de
pensamento. Ela quer acreditar que existe um caminho estreito que leve a um
mais amplo — que se pode trilhar um caminho de Sheryl Sandberg para
chegar à sociedade digna de Simone de Beauvoir. Ela quer acreditar que um
líder de pensamento também pode ser crítico, que pode utilizar sua adoção
pelos partícipes do Mercado Global para efetuar mudanças que comecem
internamente. Ela julga que o segredo para persuadi-los em direção à reforma
sistêmica pode residir na fusão de dois conceitos discrepantes de seu campo.
Um se trata de como levar as pessoas a se preocuparem com um problema
analisando os pormenores de um único indivíduo. O outro é como fazê-los se
preocuparem ao levar em consideração todo o sistema.
O primeiro desses conceitos é conhecido como “efeito de vítima
identificável”. Como Deborah Small e George Loewenstein, estudiosos da
Universidade Carnegie Mellon, escrevem em um artigo importante:
As pessoas reagem às vítimas identificáveis de forma distinta a que reagem
às vítimas estatísticas, que ainda não foram identificadas. Vítimas
específicas da adversidade costumam despertar atenção e recursos
extraordinários. Porém, não raro, é difícil chamar atenção ou angariar
recursos financeiros para intervenções que visam, antes de tudo, evitar que
as pessoas se tornem as vítimas.
A pesquisa de Small e Loewenstein reitera o que muitos líderes de
pensamento em ascensão intuem ao interpretar os rostos na multidão: que as
pessoas sentem e se importam mais quando você as ajuda a enxergar um
problema no âmbito individual. No caso de Cuddy, ela percebia isso sempre
que falava sobre meninas, e não sobre mulheres adultas, retraindo-se
fisicamente. De repente, os homens com filhas entendiam as coisas. “Um
homem de 60 anos vinha até mim e dizia: ‘Oh, meu Deus, muito obrigado.
Isso é muito importante para minha filha e para meus netos.’ Eles estavam
abertos. De repente, o público que eu nunca consegui conquistar quando
falava ‘Você precisa mudar como líder; precisa dizer que isso não está certo;
precisa fazer isso e aquilo’, pessoas que eram completamente fechadas,
subitamente estavam de coração aberto à medida que eu falava sobre suas
filhas e as oportunidades que elas teriam.”
Cuddy se questionava se uma líder de pensamento poderia usar um
feedback como esse a seu favor. Caso queira falar a respeito do poder
estrutural do sexismo, primeiro faça as pessoas pensarem em suas filhas. “As
pessoas querem que suas filhas tenham acesso a todas as oportunidades, mas
não querem o mesmo para suas colegas de trabalho”, afirma. Para uma líder
de pensamento, a vantagem de se analisar os detalhes, de contar a história do
sexismo, do poder e dos sistemas como uma história a respeito de sua filha é
que você fisga as pessoas. O risco, que o líder de pensamento pode ou não
aceitar, é que você altera a natureza do problema ao pessoalizar as coisas. Ao
circunscrever a questão no terreno paternal, você minimiza a questão. “Existe
o problema de que as pessoas não generalizam quanto se trata da própria
filha, porque sua filha é diferente de outras meninas”, disse Cuddy. “Isso é
chamado subtipagem.” É o fenômeno secular do racista que afirma: “Meu
amigo negro é diferente.”
Muitos líderes de pensamento, ao enfrentar essa pressão, cedem. E Cuddy
insiste que não é porque eles não desejam pressionar a fim de que mudanças
maiores aconteçam, mas porque são humanos. “Não é que você, como
pensador, esteja esquecendo que se trata do grupo. Você não está”, diz ela.
“Quando você está conversando com os outros, quer uma resposta, quer que
eles façam alguma coisa, quer algo que não seja uma expressão de
imparcialidade. Quer uma interação. Você almeja por isso. E, com o tempo,
ao descobrir, conversando sobre essas ideias, que quando começa a falar
sobre indivíduos de repente as pessoas começam a se animar, percebo como
você é levado a esse caminho, ou como segue nele. Não é somente
gratificante; isso dá esperança. Você, na verdade, sente que as pessoas
mudarão. Acho que neste ponto começa a pensar Agora tenho que conquistar
todos eles como indivíduos.”
Ao ouvir Cuddy, foi possível compreender a simbiose que se desenvolveu
entre as elites do Mercado Global e seus líderes de pensamento. Estes
difundem uma profusão de ideias e, como seres humanos, observam o que
emociona as pessoas em lugares como o Aspen Ideas Festival e o TED. O
que particularmente emocionava o público era a representação de problemas
sociais de modo não intimidante, fácil de lidar e de compreender. O líder do
pensamento percebeu isso e falou mais e mais nesses termos. O público
respondia cada vez mais com entusiasmo. A natureza real do problema caía
por terra.
Em vista disso, Cuddy estava interessada nas possibilidades do segundo
conceito de psicologia social, aquele que envolvia considerar a situação como
um todo. Ela sentia que poderia romper com essa simbiose restritiva. O termo
formal para o conceito é “efeito de assimilação”, que ocorre quando as
pessoas assimilam o pessoal e o específico ao contexto social que as rodeiam.
Você conta a história dessa menina e esses homens pensam em suas filhas,
porém depois também “assimilam o conceito de filha para outras meninas.
São meninas que não se parecem com suas filhas. Elas têm pele morena e
provêm de famílias pobres”, disse ela. O desafio, como Cuddy observa, é
humanizar um problema político e social extenso sem desencadear a reação
oposta, chamada “efeito de contraste”. “Meu Deus, minha filha é muito
especial”, disse Cuddy, imitando a reação de contraste. “Ela é tão diferente de
todas as outras garotas. Preciso protegê-la disso. Preciso proteger apenas ela.”
O líder do pensamento, ao despir a política da questão, realiza ajustes no
que diz respeito às ações práticas, em vez de mudanças estruturais,
eliminando os perpetradores da história. Não é por acaso que os líderes de
pensamento, cuja participação em palestras é frequentemente paga pelo
Mercado Global e cujas carreiras são construídas por meio do Mercado
Global, são incentivados a agir dessa forma. Mencionar um problema
envolvendo a filha de um homem abastado é suscitar seu amor. Mencionar
um problema que envolve a filha da gente comum, cuja solução pode
implicar o sacrifício de privilégios e o gasto de recursos significativos, pode
inspirar um homem endinheirado a virar as costas.
Por seu próprio senso de honestidade, Cuddy quer fugir dessa armadilha:
concentrar-se em ajudar as vítimas, despertar o interesse das pessoas para os
problemas ao analisar os detalhes individuais, porém evitar dar passe livre ao
poder. “Como você combina essas coisas?” perguntou. “Passar a mensagem
de que o grupo que analisa os detalhes está errado, a menos que haja
esperança de que isso facilite para que você se torne uma pessoa melhor, este
é o tipo de mensagem que distancia as pessoas.”

que acontece com uma sociedade quando não existe uma Amy Cuddy, e
O sim milhares de líderes de pensamento, cada qual fazendo suas barganhas
pessoais, refreando o criticismo a fim de serem convidados a voltar, em um
silêncio persistente e determinante? Qual é o efeito cumulativo de todas essas
omissões?
Em parte, elas originam as teorias de mudanças amenas que são pessoais,
individuais, despolitizadas, que respeitam o status quo e o sistema, e nem de
longe são disruptivas. Quanto mais as críticas genuínas são deixadas de lado
e mais as ideias exultantes, práticas e com propensão a eliminar as demais
forem promovidas, mais superficial a ideia de mudança propriamente dita se
torna. Quando uma líder de pensamento desvincula o problema da política e
dos perpetradores, não raro ela obtém acesso a uma plataforma ainda maior
com o intuito de influenciar os responsáveis pela mudança — no entanto,
também passa a contribuir com um amontoado de narrativas promovidas pelo
Mercado Global que nos dizem que a mudança é fácil, uma situação em que
todos saem ganhando e que não requer sacrifícios.
O que os líderes de pensamento oferecem aos vencedores do Mercado
Global, consciente ou inadvertidamente, é a aparência de estar do lado certo
da mudança. Os tipos de mudanças apoiadas pelo público em uma época de
desigualdade, conforme retratadas vez por outra em algumas plataformas
eleitorais, normalmente são inaceitáveis para as elites. A simples rejeição a
esses tipos de mudanças apenas instigam uma hostilidade maior em relação
às elites. É mais vantajoso que as elites sejam vistas como apoiadoras das
mudanças — seus tipos de mudança, é claro. Tomemos, por exemplo, o
tópico de educar crianças pobres em um momento de declínio da mobilidade
social. Um verdadeiro crítico pode reivindicar o fim do financiamento das
escolas pelos impostos municipais sobre propriedades e a criação, como em
muitos países desenvolvidos, de um fundo nacional comum que subsidie as
escolas de forma mais ou menos igualitária. O que um líder de pensamento
pode oferecer ao Mercado Global e aos vencedores é uma espécie de
contraproposta intelectual — a ideia de, digamos, utilizar o Big Data com o
intuito de remunerar melhor os professores mais importantes e eliminar os
que deixam a desejar. Em matéria de extrema desigualdade de riqueza, um
crítico pode pleitear a redistribuição econômica ou até reparações raciais. Um
líder de pensamento, em contrapartida, poderia opinar sobre como os líderes
de uma fundação deveriam receber salários mais altos, de modo que os
pobres pudessem se beneficiar de uma liderança mais capacitada.
Quando ocorre esse abandono à crítica, não em relação a um ou dois
problemas, mas a todos os problemas importantes, os líderes de pensamento
não estão somente reprimindo suas ideias e intuições. Eles estão participando
da conservação do problemático status quo do Mercado Global ao sinalizar a
realização de mudanças. Recentemente, Bruno Giussani, o homem que havia
apresentado a palestra de Amy Cuddy no TED, estava se debatendo com seu
próprio papel em relação a esse fato. Giussani é um dos poucos curadores da
organização TED e anfitrião de alguns de seus eventos. Foi a partir da
palestra apresentada por ele em Edimburgo que Cuddy se elevou ao estrelato
mundial, anos antes. Ex-jornalista vindo da Suíça, Giussani faz parte de uma
das pequenas equipes de executivos seniores que decidem quem serão os
apresentadores nos palcos principais das conferências, orientam os
palestrantes, editam as palestras e os ajudam a disseminar suas ideias. Ele é
conhecido por ser uma espécie de dissidente do éthos dos aficionados por
tecnologia e dos admiradores do mercado que dominam os eventos do TED,
mas obviamente não a ponto de não trabalhar mais para ele. Ele é o tipo de
pessoa que trabalha nos bastidores, que não tem um nome popular, porém
ajudou a popularizar muitos deles.
Giussani deveria estar aproveitando sua tão esperada licença sabática. Mas,
meses antes, desistiu da folga, pois a ascensão do populismo em todo o
mundo e a disseminação da política de fúria o deixava preocupado e se
questionando sobre o que poderia ter levado as sociedades a enlouquecerem.
A princípio, a fúria contra as elites parecia enigmática, pois nos próprios
círculos sociais de Giussani ele observava uma infinidade de organizações e
pessoas preocupadas e ativas socialmente. “Você vai a qualquer jantar, e não
apenas no TED, Skoll, Aspen ou em qualquer outro lugar, mas ao jantar com
pessoas deste círculo”, afirma ele, “à sua direita está alguém que acabou de
doar US$1 milhão para uma ONG na África, e à sua esquerda, alguém cujo
filho passou seis semanas operando alguém em um hospital de campanha”.
Giussani fez piada dizendo que havia tantos bons samaritanos de elite
tentando mudar o mundo que “se todos pularem ao mesmo tempo,
provavelmente inclinarão o eixo da Terra”. E, no entanto, veja o que estava
acontecendo com o mundo — o populismo, a fúria, a fragmentação, o ódio, a
exclusão e o medo entravam em ebulição.
Ao longo dos últimos anos, Giussani percebeu como as elites pareciam cada
vez mais norteadas por arremedos de mudança. Essas ideias exoneram os
mercados e seus vencedores da análise crítica, a despeito de seu imenso poder
de decidir como as pessoas vivem do modo que vivem e de seu apoio a um
sistema que produzia fortunas e exclusão extraordinárias. Esses conceitos de
mudança foram definidos e limitados pelo complexo de “suposições
intelectuais que dominaram as últimas duas décadas”, disse Giussani. Dentre
elas: “Os negócios são a força motriz do progresso. O Estado deve fazer o
mínimo possível. As forças de mercado são a melhor maneira de alocar os
parcos recursos e solucionar os problemas. As pessoas são basicamente atores
racionais motivados por interesse próprio.” Ao falar como um homem que
controlava o acesso a um dos palcos mais poderosos do mundo, Giussani
disse que, no decurso de nosso tempo, “certas ideias são mais bem
comunicadas porque se encaixam nessas suposições intelectuais”. Outras se
encaixam menos.
O Mercado Global acha certas ideias mais admissíveis e menos
ameaçadoras que outras, ele afirma, e faz sua parte ajudando-as mediante
patrocínio de líderes de pensamento. Giussani observou, por exemplo, que
ideias enquadradas como “pobreza” são mais aceitáveis do que as
enquadradas como “desigualdade”. As duas ideias estão relacionadas.
Todavia, a pobreza é um fato relevante de privação que não acusa ninguém, e
a desigualdade é algo mais preocupante: versa que alguns têm e outros não;
flerta com a ideia de injustiça e iniquidade; é relacional. “A pobreza é
basicamente uma questão que você pode resolver com caridade”, disse ele.
Uma pessoa abastada pode doar alguma quantia e reduzir a pobreza. “Mas
com a desigualdade”, de acordo com Giussani, “isso não acontece, porque a
desigualdade não se trata de retribuição. A desigualdade envolve, em
primeiro lugar, como você ganha o dinheiro que está retribuindo”. A
desigualdade, disse ele, tem a ver com a natureza do sistema. Combatê-la
significa mudar o sistema. Para uma pessoa privilegiada, significa analisar o
próprio privilégio. E, disse ele, “você não pode mudar isso sozinho. Você só
pode mudar o sistema coletivamente. Por meio da caridade, essencialmente,
se tem dinheiro, pode fazer muitas coisas sozinho”.
Essa diferenciação corria paralelamente à mudança de abordagem de Cuddy
para sua mensagem antissexista em sua palestra no TED. O que a motivou a
estudar o tópico foi a desigualdade — especificamente, a ausência de poder
em um grupo de estudantes por causa do poder de outro grupo (e de pessoas
como eles). Era um crime com uma vítima e um agressor. No momento em
que essa ideia aterrissou no TED, a desigualdade, conforme vimos, havia sido
remodelada em pobreza. “As mulheres”, disse Cuddy, “se sentem com menos
poder que os homens de forma crônica”. O crime ainda era crime, mas agora
procurava por suspeitos.
Giussani tinha uma perspectiva mais clara do que a maioria de como os
pensadores eram atraídos a esse tipo de liderança de pensamento. Não era
algo como se não houvesse escolha a não ser se engajar. Você poderia
facilmente desenvolver suas ideias e promovê-las por meio do que ele
chamou de “revistas marginais” e “conferências militantes”. Mas o alcance
seria limitado. Se você teve acesso ao sentimento de querer ajudar outrem em
uma escala de alcance semelhante ao da Coca-Cola na idade em que Hilary
Cohen o teve, e sabia que suas ideias seriam úteis, poderia pensar que mantê-
las imaculadas teria um alcance restrito, o que prejudicaria em vez de ajudar
todas as pessoas que precisassem de você. Segundo Giussani, a alternativa
era fazer o que Cuddy havia feito: parar de dizer o que gostaria para poder ser
ouvida. “Você pode sair e divulgar essas coisas ao condicioná-las de uma
forma que as torne atraentes para grandes apresentações, para públicos
grandes ou de alto nível, e esperar que, nesse contexto, ainda consiga
apresentar o suficiente de tais ideias, de modo que os force a ver, em vez de
apresentar somente o que os agrada ou satisfaz, ou apenas para que o público
lhe dê ouvidos.”
Existe uma tendência no Mercado Global de negar o que Cuddy e Giussani
admitem com sinceridade: que muitas vezes, mas nem sempre, é preciso
manter determinadas ideias à margem a fim de ser ouvido. “Você precisa
abdicar de seus questionamentos morais ou de suas convicções, para
condicionar as ideias de modo que elas se tornem mais agradáveis a esse tipo
de ambiente”, afirma Giussani. Para muitos líderes de pensamentos, segundo
ele, ainda era um acordo excelente. “Se esta é sua opinião”, disse, “você
deseja repeti-la na próxima semana e na semana seguinte — e repetindo,
reiterando, continuando a pesquisar e atingindo mais e mais pessoas, você
está tentando ter um impacto para gerar mudanças”.
Muitos pensadores abrem mão dos questionamentos morais e desviam desse
modo porque dependem demais da aprovação do Mercado Global para
construir suas carreiras. Alguns conseguem estabelecer carreiras sólidas sem
ministrar uma única palestra paga, sem painéis no Aspen Ideas Festival,
patrocinado pela Monsanto e pela Pepsi, sem o uso de plataformas como
TED ou Facebook, em que as ideias exultantes têm mais chances. Continua a
ser, observa Daniel Drezner em The Ideas Industry, “uma classe média de
intelectuais acolhidos no meio acadêmico, think tanks e empresas privadas”.
Mas eles têm poucas oportunidades em comparação aos líderes de
pensamento que deslancham na estratosfera da fama e do reconhecimento
público. “Para permanecer na categoria dos superfamosos, os intelectuais
precisam conseguir conversar fluentemente com a classe plutocrática”,
escreve Drezner, acrescentando: “Caso queiram que os benfeitores em
potencial fiquem contentes, eles não podem se dar ao luxo de proferir a
verdade aos endinheirados.”
Isso não significa que uma dessas elites tenha telefonado para Giussani e lhe
dito para manter determinadas pessoas fora do palco. Não acontece desse
jeito, disse ele. São mantras invisíveis reforçados de modo sutil. Hoje, um
dos meios de se fazer isso é dar preferência a pensadores que lembram os
vencedores de seus êxitos, disse Giussani. Um crítico nos moldes tradicionais
costuma ser um perdedor — uma pedra no caminho, um provocador externo,
um cínico desavergonhado. Os líderes de pensamento em ascensão, apesar de
seus produtos serem ideias, se aproximam menos dos críticos e são mais
parecidos com aliados dos poderosos — comprando casacos nas mesmas
lojas de Aspen, viajando pelo mesmo circuito de conferências, lendo os
mesmos livros de Yuval Noah Harari, sendo pagos pelas mesmas empresas,
acatando o mesmo consenso básico, observando os mesmos tabus
intelectuais.
“As pessoas gostam de vencedores, e de perdedores, e essa é a realidade”,
disse ele. E, sim, sabia que alguém poderia argumentar que pessoas como ele
deveriam desafiar essa preferência em vez de se interessar por ela. “Se as
conferências não colocarem os perdedores no palco, eles permanecerão
perdedores para sempre”, disse Giussani, antecipando as críticas. Mas disse a
si mesmo que era injusto “pedir a um organizador de conferências ou ao New
York Times para resolver um problema social que existe porque as pessoas
gostam de vencedores e não gostam de perdedores. Se eu trouxer somente
perdedores ao palco, me tornarei um deles, pois ninguém virá às minhas
conferências”. (Giussani pontuou que estava usando “perdedores” entre
aspas, de modo a sinalizar como são considerados, não a sua opinião. E, para
ser justo, ele contrabandeara muitos críticos para o palco do TED, o mais
notável foi o Papa Francisco.)
Não era necessariamente maldade ou cinismo que sustentava esses padrões;
no entanto, segundo Giussani, era algo mais banal. As pessoas que servem de
formadores de opinião à elite global — como ele próprio — estavam, como
muitas, em uma bolha intelectual. “Os franceses têm uma expressão para
isso, une pensée unique. Uma única forma de pensar? Todo mundo pensa
igual.” Em seu mundo, disse, isso significava um consenso implícito
(disseminado, mas não generalizado) a respeito de determinadas ideias:
pontos de vista progressistas são preferíveis aos conservadores; a despeito da
instabilidade, a globalização é, em última instância, uma situação em que
todos saem ganhando; a maioria das tendências de longo prazo é positiva
para a humanidade, fazendo com que muitos problemas de curto prazo sejam
supostamente irrelevantes; diversidade e cosmopolitismo e o livre fluxo de
seres humanos são sempre melhores do que as demais alternativas; os
mercados são o modo mais realista de se colocar tudo isso em prática.
O pensée unique fez com que sua tribo “ignorasse muitas questões que são
relevantes para outras pessoas e não o são para nós”, disse Giussani. “E,
quanto mais isso acontecia, mais desconsideramos essas questões e
sensibilidades culturais — cultura que, em um sentido amplo, voltou e está
nos assombrando.” Com isso, refere-se à crescente raiva populista, pela qual
se culpava, ainda que de uma forma modesta.
É claro que não foram somente os curadores e mediadores como ele que
protegeram sua própria visão de mundo e silenciaram os outros. Foi também
a elite, que ouvia apenas o que queria ouvir. Ele deu o exemplo da famosa
palestra TED de Steven Pinker sobre o declínio da violência ao longo da
história, com base em seu livro Os Anjos Bons da Nossa Natureza. Pinker é
um respeitado professor de psicologia em Harvard, e poucos o acusariam de
amenizar as críticas ou ceder às tentações da liderança de pensamento.
Entretanto, sua palestra se tornou o culto predileto entre os investidores de
fundo de hedge, o pessoal do Vale do Silício e outros vencedores. E isso
aconteceu não somente porque ela foi interessante, atual e bem
fundamentada, mas também porque abarcava uma justificativa para, em
partes, manter a ordem social como está.
A questão trazida por Pinker era direta, focada e legítima: que a violência
interpessoal como forma de solução de problemas para os humanos estava
indo por água abaixo. No entanto, para muitos que ouviam a palestra, ela
proporcionava um modo socialmente aceitável de dizer às pessoas que
estavam no ponto máximo de ebulição das desigualdades sociais que
parassem de reclamar. “A coisa se tornou uma ideologia de: talvez o mundo
de hoje possa ser complexo, complicado e confuso de inúmeras maneiras,
mas a realidade é que, se você adotar a perspectiva de longo prazo, perceberá
quanta coisa boa temos”, disse Giussani. A ideologia, segundo ele, dizia às
pessoas: “Você está sendo irrealista e não está analisando os fatos da forma
correta. E se você acha que tem problemas, veja bem, seus problemas
realmente não importam em comparação aos que tínhamos no passado, e não
são, de fato, problemas, porque as coisas estão melhorando.”
Giussani ouvia tanto os abastados fazerem esse tipo de coisa e com tanta
frequência que inventara um verbo para o ato: eles estavam “pinkerizando”
— usando o direcionamento de longo prazo da história humana para
minimizar e deslegitimar as preocupações daqueles que não detinham o
poder. Havia também a economia “pinkerizada”, cujo intuito “é dizer às
pessoas que a economia global tem sido ótima porque 500 milhões de
chineses passaram da pobreza para a classe média. E, claro, é verdade”, disse.
“Mas, se você contar isso ao cara que foi demitido de uma fábrica em
Manchester porque seu emprego foi tomado pela China, ele pode ter uma
reação diferente. Só que não nos importamos com o cara em Manchester.
Logo, esse tipo de ideologia tem muitas facetas, que foram usadas para
justificar a situação atual.”
Veja um exemplo evidente da pinkerização, do psicólogo social Jonathan
Haidt. Repare como observações precisas sobre o progresso humano entre a
época dos caçadores-coletores e o presente se transformam em críticas
vergonhosas:
Somos essas pequenas espécies tribais que, basicamente, estavam quase se
espancando e competindo entre si de todas essas formas possíveis, e, de
um jeito ou de outro, superamos essas características de nosso modelo
inicial. Olho ao redor e digo: Vai, humanidade! Somos fantásticos. Sim,
existe o ISIS e muitas coisas ruins, mas vocês que pensam que as coisas
estão ruins estão esperando demais.
Como curador do TED, Giussani foi uma das muitas pessoas que ajudaram
a engendrar uma nova esfera intelectual nas últimas décadas. Isso
transformou os líderes de pensamento em nossos filósofos mais ouvidos.
Colocou muitos deles na folha de pagamento de empresas e plutocratas,
como meio de se sustentarem. Fomentou um conjunto de ideias amigáveis
para os vencedores de nossa era. Difundiu tantos pensamentos sobre por que
o mundo estava melhorando nos últimos anos que mal conseguiu captar a
mensagem a respeito de todas as pessoas cujas vidas não estavam
melhorando nem um pouco, que não se importavam com a pinkerização, pois
sabiam exatamente o que elas estavam testemunhando: uma sociedade em
que um número ínfimo de pessoas frequentava conferências e seus partícipes
acumulavam boa parte da fatia do progresso que alegavam ser inevitável,
abundante e benéfico para todos.
Agora, nos Estados Unidos, na Europa e além, as revoltas estavam em
marcha. As pessoas rejeitavam o consenso dos vencedores que Giussani
descrevera. O domínio e a distorção do mundo das ideias pelo Mercado
Global teria contribuído para a raiva que o perturbava tanto? “É claro que
essa distorção contribuiu”, disse ele. “Acredito mesmo que seja uma das
maiores motivações disso.” As elites do Mercado Global criaram um casulo
intelectual para si mesmas e continuaram reiterando as narrativas que as
resguardavam contra a mudança profunda. Nesse ínterim, disse Giussani,
milhões de pessoas mundo afora estavam “sentindo que grande parte de sua
realidade estava sendo ignorada, na melhor das hipóteses, censurada ou até
ridicularizada”.
Mais cedo ou mais tarde, eles fariam algo a respeito.
CAPÍTULO 5
OS INCENDIÁRIOS FORMAM OS MELHORES BOMBEIROS

Ninguém conhece o sistema melhor do que eu, e é por isso que só eu


posso restaurá-lo.
— DONALD J. TRUMP
As ferramentas do mestre jamais vão desmantelar a casa do mestre.
— AUDRE LORDE

À medida que a abordagem todos saem ganhando da mudança social se


difundia mundo afora, George Soros era uma espécie de antagonista.
Com um patrimônio líquido na casa dos bilhões, Soros era um dos homens
mais ricos do mundo. Também era um dos mais generosos e influentes, tendo
estabelecido um império filantrópico que planejava doar US$931 milhões em
2016. Até pouco tempo, suas doações eram pautadas por premissas que iam
de encontro às do Mercado Global. Soros, que durante sua juventude na
Hungria vivera como judeu sob o regime nazista e como aspirante a
capitalista sob o domínio comunista, estava mais interessado do que muitos
endinheirados em justiça, movimentos, direitos e em um bom governo. Sua
instituição Open Society Foundations explicava que sua missão era “construir
sociedades dinâmicas e tolerantes, cujos governos sejam responsáveis e
abertos à crítica, cujas leis e políticas estejam abertas à discussão e à
retificação, e cujas instituições políticas estejam abertas à participação de
todas as pessoas”. Em 2016, suas fundações planejavam doar US$142
milhões para ações voltadas aos direitos humanos e práticas democráticas,
US$21 milhões para jornalismo e US$42 milhões para reforma da justiça e
do Estado de Direito. Soros estava doando um boa quantia de seu dinheiro a
causas não orientadas ao mercado e que não necessariamente beneficiavam os
vencedores.
Todavia, à medida que o evangelho do todos saem ganhando conquistava
cada vez mais território, em muitos círculos se acreditava que a melhor
maneira de ajudar as pessoas era por meio do mercado; havia novas
demandas para novos tipos de mudança. No decurso de seu trabalho, a equipe
de Soros declarou ter encontrado uma jovem cigana na Europa cuja
disposição simbolizava uma mudança cultural. Ela lhes disse que a geração
mais antiga de ciganos na Europa queria direitos, porém a nova queria ser
empreendedora social. O paradoxo apresentado por ela era questionável,
porque se pode alegar que os empreendimentos sociais dependem dos direitos
básicos, mas isso é um indicativo da época. E, em uma época de supremacia
do mercado, uma organização que lutava pelos direitos das pessoas e por
igualdade nos termos da lei corria o risco de decepcioná-lo ao não investir em
seus negócios de justiça social com fins lucrativos.
O Programa de Progresso Econômico das fundações nasceu em 2016 como
resposta a esse desejo da época. Ao adotar a linguagem do todos saem
ganhando, as fundações disseram que o programa “funcionaria na
congruência do desenvolvimento econômico e da justiça social” e
“incentivaria a transformação econômica que maximiza as oportunidades
substanciais de modo a promover sociedades abertas e prósperas”. Em grande
medida, as fundações de Soros furtavam-se a esse tipo de trabalho até então,
dada a preocupação de que isso pudesse ser visto como um conflito de
interesses — um homem que ainda operava nos mercados advogando aos
países como seus mercados deveriam ser estruturados e regulamentados. Mas
evitar já não era uma opção. O novo programa poderia realizar as doações
filantrópicas tradicionais, financiar pesquisas relacionadas à promoção de
economias mais justas e inclusivas, emprestar dinheiro a outras organizações
e aconselhar governos em relação a políticas; além do mais, a última palavra
na metodologia do todos saem ganhando, o programa gerenciaria um fundo
de investimento de impacto cuja função era investir em empresas com fins
lucrativos que promovam sociedades mais abertas e “fomentem os interesses
de populações menos favorecidas”.
Uma nova abordagem para mudar o mundo exigia um novo líder, e,
portanto, as fundações contrataram Sean Hinton, ex-funcionário da
McKinsey, Goldman Sachs e do conglomerado de mineração Rio Tinto,
como executivo-chefe do programa. Hinton e sua equipe passaram meses
elaborando uma teoria operacional do que faria as economias serem mais
inclusivas e justas que nortearia seu trabalho. Agora, precisavam de feedback.
Eles queriam que pessoas de fora das fundações os ajudassem a discutir
questões de suma importância: como poderiam impulsionar economias de
rápido crescimento que também promovessem justiça, governabilidade,
autonomia, coesão social e igualdade? Como as ferramentas tradicionais do
progresso econômico poderiam ser modificadas com o intuito de ajudar, em
vez de prejudicar, as pessoas mais vulneráveis e marginalizadas?
Então um dia, em uma sala de conferências de algum andar da West 57th
Street, em Manhattan, Hinton reuniu um grupo de pessoas que ele respeitava
de sua rede de contatos. E lá estava presente Ruth, consultora sênior de uma
empresa de capital privado focada em investimentos no setor financeiro. Ela
também havia passado um tempo na Bridgewater, o imenso fundo de hedge,
e em outras instituições financeiras, e trabalhou dois anos como consultora-
chefe de investimentos em uma grande cidade norte-americana. Estava
presente Paul, que também trabalhava em uma empresa de capital privado,
além de lecionar em uma universidade de administração da Ivy League. Ele
era ex-banqueiro de investimentos e consultor administrativo. Lá também
estava Aurelien, que liderou uma empresa de consultoria boutique que
assessorava corporações visando estratégias em meio às condições
turbulentas de mercado, era sócio de várias startups no Vale do Silício e já
fora associado da McKinsey. Lá estava Albert, responsável pela marca e
comunicação da Rio Tinto. Estavam também dois figurões do Banco
Mundial/Corporação Financeira Internacional que tinham conhecimento
profissional dos tópicos em questão: a primeira, Charlise, prosseguia nesse
trabalho; o outro, Juan Pablo, posteriormente havia passado um tempo na
Cisco e no Boston Consulting Group. E Hinton, que até assumir esse cargo
havia sido consultor de empresas de mineração, bancos e outras corporações
na China, Mongólia e na África.
Conforme os especialistas afundavam em suas cadeiras vermelhas ao redor
de uma mesa revestida de couro, eles prestavam atenção às televisões na
parede exibindo uma ferramenta que se revelara indispensável para a solução
dos problemas sociais por parte do Mercado Global: o Microsoft PowerPoint.
Os problemas de justiça e igualdade à frente dos convidados estavam entre os
mais difíceis já conhecidos pela humanidade, face à controvérsia de serem os
responsáveis por dezenas de milhares de mortes, somente no século XX. Mas
a discussão não giraria em torno de perspectivas filosóficas, ou o desejo
expresso das pessoas de serem ajudadas, ou a análise das estruturas de poder
que impediam a busca pela justiça e pela igualdade. Pelo contrário, os
problemas, uma vez submetidos ao grupo de partícipes do Mercado Global,
seriam apresentados comercialmente, na forma de slides com gráficos e
tabelas. A questão de se arquitetar economias mais inclusivas seria
decomposta em subcategorias ilimitadas, até que a realidade humana
praticamente desaparecesse. Os problemas principais ficariam quase
irreconhecíveis. A justiça e a desigualdade seriam transformadas em
problemas que o executivo do capital privado era sobretudo competente para
resolver.
Isso ficava ainda mais evidente em reuniões como essa, quando, com
frequência, a discussão se voltava para a apresentação em si. Os gráficos em
cascata eram tão complicados e chamavam tanto a atenção, assim como as
matrizes 2x2 e as subcategorias, que viraram o centro das atenções. Passe
para tal slide. Podemos voltar ao slide anterior? Qual é a linha do tempo
neste gráfico? É como uma briga de casal que deixa de ser sobre determinado
problema e começa a ser sobre o desenrolar da briga em si, fugindo à questão
principal. O gráfico sugere que o progresso econômico ocupava uma posição
moderada entre esses polos, ou era realmente a combinação dessas quatro
coisas? A sala inteira começa a discutir pretensamente a respeito dos
elementos de design gráfico que representam apenas formas imprecisas dos
desafios humanos. Isso desanuvia a mente da executiva de capital privado,
pois agora ela pode não apenas contribuir, mas também liderar. E os
verdadeiros especialistas no assunto e os que são afetados por essas decisões
geralmente recuam, ficam sem palavras. O problema fora reformatado para o
sistema operacional do Mercado Global.
Uma vez que esses solucionadores de problemas com formação em
negócios reestruturaram o problema para que seja solucionado à maneira
deles e relegaram a segundo plano os métodos habituais de se pensar sobre o
tema, agora estavam diante de uma tela em branco e podiam pintá-la com
seus próprios paradigmas e vieses. Logo, na reunião de Soros, quando o rumo
da conversa foi para cadeias de suprimentos agrícolas em uma região afastada
da Índia, a língua franca era a linguagem dos negócios. Era dito que havia
muitos intermediários na cadeia de suprimentos: negociantes e mediadores
demais entre o agricultor indiano e a refeição indiana. A resposta corporativa
era “desintermediar”. O que não passava na cabeça de ninguém na West 57th
Street era a possibilidade de estarem errados acerca da área rural da Índia. E
se os intermediários naquela região passassem a ser mulheres, tornando o
trabalho menos eficiente, mas também assegurasse o progresso social? E se
os intermediários garantissem que produtos frescos chegassem a vilarejos e
aldeias ao longo do percurso até as cidades, para que grandes caminhões
evitassem esse caminho e aumentassem a dependência das pessoas de
alimentos processados? E se existissem outros fatores humanos que os ex-
funcionários do eixo Goldman-McKinsey-Rio Tinto-Bridgewater naquela
sala de reunião não conseguissem enxergar? E se esses vencedores não
soubessem de tudo? E se aqueles que não estavam presentes na sala
soubessem de uma coisa ou outra?

o decurso de uma geração, muitas pessoas e instituições ao redor do


N mundo concluíram que, para fazer uma pequena contribuição em relação
aos problemas dos desafortunados e excluídos, era necessário um conselho
com pessoas de negócios como o que Hinton reunira. Os melhores dirigentes
para a mudança, segundo esse raciocínio, eram aqueles que projetavam,
participavam e defendiam as próprias estruturas de poder que precisam ser
mudadas. Todavia, esse ponto de vista da serventia das ferramentas do mestre
para desmantelar sua casa, tomando emprestado as palavras de Audre Lorde,
nem sempre prevaleceu.
Bem antes de Hinton aprender os protocolos dos negócios, ele trilhava um
caminho muito diferente, como aluno da Guildhall School of Music and
Drama, em Londres. Ele crescera em uma família de artistas e em meio ao
teatro, estudava música clássica e regência. Por algum motivo, em seu quarto
ano da faculdade, teve a ideia de viajar para a Mongólia. De acordo com
Hinton, a única maneira de conseguir entrar naquele país fechado, no final
dos anos 1980, era estudar etnomusicologia lá. Desse modo, ele se inscreveu
para fazer um trabalho de pós-graduação neste tema em Cambridge,
candidatou-se e ganhou uma bolsa do British Council a fim de se mudar para
a Mongólia e estudar a música tradicional do país. Era para ser um período de
um ano. Ele ficaria, com alguns intervalos, pelos próximos sete anos.
Hinton se mudou para Ulan Bator em dezembro de 1988. De início, foi
obrigado a viver sob as severas restrições do governo autoritário do país. Ele
não tinha permissão para se afastar mais de 20 quilômetros da capital sem
estar acompanhado de inspetores, o que limitava sua atuação como
musicólogo. Mas em breve um movimento democrático eclodiria e, em
pouco tempo, sete décadas de regime comunista cairiam por terra. A
revolução o deixou livre para percorrer o país. Hinton se mudou para os
confins mais remotos da Mongólia e viveu com uma família nômade nas
montanhas. Ele baseou sua pesquisa nas canções de amor e nos rituais de
casamento das tribos da Mongólia Ocidental.
Ele gostava do país o bastante para permanecer depois dos estudos, e a
revolução também possibilitou isso. A economia do mercado em expansão
propiciou iniciar um negócio. Os turistas estavam interessados no país recém-
aberto, então Hinton decidiu abrir uma agência de viagens com o intuito de
ajudar as pessoas a terem o tipo de experiências mongóis que ele tivera. Não
havia muitas empresas de estrangeiros na época, e, portanto, segundo Hinton,
ele se tornou um especialista no assunto. Quando as pessoas perguntavam aos
funcionários da embaixada norte-americana em Ulan Bator como abrir um
negócio, não raro as encaminhavam para Hinton. Logo ele se deu conta de
que poderia capitalizar esses conselhos, e o fez. Ele se tornara um tipo
específico de consultor, trabalhando não com planilhas e PowerPoint, mas
ajudando as pessoas a desviar dos obstáculos em uma sociedade em
progresso.
Sete anos após chegar à Mongólia, casado e com seu trigésimo aniversário
se aproximando, Hinton deixou o país e foi procurar emprego. “Todos
queriam me levar para tomar uma cerveja e ouvir minha história sobre como
era viver com os nômades”, conta. “Mas todo mundo estava tipo: ‘Claro que
não podemos lhe arranjar um emprego.’” O escritório de Sydney da
McKinsey foi a exceção. Não era por acaso. A mistura de inteligência e
carisma de Hinton fez dele um funcionário ideal para a McKinsey.
Talvez o aspecto mais desconcertante do novo trabalho tenha sido aprender
uma forma quase contraditória de se relacionar com ambientes
desconhecidos. A função de Hinton na McKinsey compartilhava um ponto
básico com seu trabalho na Mongólia: ele deveria aparecer como outsider e
praticar o bem. Mas, fora isso, as experiências divergiam muito.
Na Mongólia, a abordagem de Hinton era conhecer mais as pessoas ao
sondar o terreno, observar e entender tudo o que não sabia. O sucesso exigia
que deixasse outras pessoas o guiarem, conforme lembra: “As ferramentas
com as quais eu estava acostumado, em grande parte, estavam relacionadas à
percepção e à constatação; tinham muito a ver com intuição; e estavam
principalmente relacionadas à criatividade e à procura de conexões; e elas
tinham muito a ver com as pessoas.” Durante anos, Hinton adquiriu
experiência em resistir a suposições fáceis, evitar a certeza, procurar
sugestões, deixar os outros liderarem. “Você visita uma tenda na Mongólia”,
disse ele, “e presta atenção em tudo — desde onde se senta, onde coloca as
pernas, quando oferece o presente que trouxe — passei a me atentar a tudo
isso. Toda a linguagem corporal — será que estou fazendo certo? O que as
outras pessoas estão fazendo? Você fica completa e absolutamente antenado
ao interpretar esses sinais das pessoas à sua volta”. Essa abordagem de um
ambiente desconhecido era o que ele chamava de humildade. “Se pensar nas
habilidades de viver em uma tenda, em uma cultura diferente, em uma língua
estrangeira, em um ambiente desconhecido, você não tem escolha a não ser
aprender a humildade todos os dias. É preciso sobreviver, e sua própria
sobrevivência se baseia em reconhecer que você não sabe das coisas e em
estar absolutamente aberto a tudo — em assimilar todas as influências ao seu
redor e em ouvir.”
Na McKinsey, era esperado que ele trabalhasse de uma forma bastante
diferente. “Alguns meses depois”, ele disse, “estou sentado ao lado do CEO
de um segmento de negócios importantíssimo na Austrália, e era esperado
que eu tivesse um ponto de vista e uma opinião, uma hipótese para abordar o
problema de que estávamos falando”. Em vez de ouvir, assimilar, tentar
decifrar aos poucos e respeitosamente a dinâmica do espaço em que havia
entrado, esperava-se que o consultor talentoso e bem-remunerado chegasse e
já soubesse de tudo. E até mesmo um consultor como Hinton, formado em
música e especialista em canções de amor da Mongólia Ocidental, poderia
fazer isso, devido aos protocolos que a McKinsey ensinou a seus consultores.
Eles viabilizavam um modo poderoso de entrar em um mundo que você não
conhecia e ressignificar a realidade, a fim de que a solução seja mais óbvia
para você do que para os próprios clientes nativos. Os protocolos
oportunizavam a conquista de uma espécie curiosa de presunção. Munidos
com um jeito especial de decompor os problemas, processar as informações e
chegar a respostas, o consultor virava uma autoridade. Seu trabalho era, como
afirmou Hinton: “Colocar em prática e advogar pela religião dos fatos; fatos
irrefutáveis, científicos, emocionais, insensíveis, e sem o fardo das pessoas.”
Os protocolos que facultavam essa certeza eram, como já foi o latim, uma
língua materna que havia originado muitos vernáculos. Essas línguas
vernáculas compartilhavam um objetivo: manifestar-se tanto no setor como
entre os insiders-outsiders do mundo dos negócios — consultores,
investidores, estudiosos da administração —; elas ofereceram uma maneira
de conhecer mais as situações de outras pessoas. O banqueiro que tentava
negociar o preço inicial das ações de uma empresa química que logo seriam
cotadas não era necessariamente um especialista em fertilizantes. O
experiente estrategista corporativo contratado por uma empresa farmacêutica
não era necessariamente um especialista em distribuição de medicamentos.
Os protocolos — alguns específicos para áreas como finanças ou consultoria,
outros mais transversais — permitiam que esses personagens vasculhassem e
solucionassem um problema de uma forma que despontasse novas realidades,
gerasse insights, deixasse de lado outros solucionadores e os tornasse
indispensáveis.
Hinton aprendeu o vernáculo McKinsey dos protocolos. No livro O Jeito
McKinsey de Ser, de Ethan Rasiel, os protocolos da empresa são destilados
gota a gota: os consultores encontram a “necessidade comercial” ou o
principal problema, embasados na avaliação da empresa e de seu setor. Em
seguida, eles “analisam”. Essa etapa exige a “delimitação do problema:
definir os limites do problema e dividi-lo em elementos constitutivos para
que a equipe de solução de problemas possa elaborar uma hipótese inicial
para solucioná-lo”. Isso promove a certeza no trabalho — a elaboração da
hipótese nasce. Depois, os consultores devem “modelar a análise” e “coletar
os dados” a fim de provar a hipótese e decidir, com base nos resultados, se a
solução teorizada está correta. Caso esteja, a próxima etapa é “apresentá-la”
de maneira enfática, clara e convincente, capaz de conquistar os clientes, que,
compreensivelmente, desconfiam das ideias de desconhecidos. Por fim, a
solução chega à fase de “implementação”, por meio da “iteração que leva à
melhoria contínua”.
As entrevistas de trabalho de Hinton na McKinsey lhe haviam ensinado uma
lição inicial e imprescindível sobre essa abordagem para a solução de
problemas: não se tratava de basear-se no conhecimento, e não raro eles até o
desdenhavam; tratava-se, preferencialmente, de conseguir analisar uma
situação a despeito da ignorância, de superar o desconhecimento. As
perguntas da entrevista que o impressionaram foram do tipo: Quantas bolas
de pingue-pongue caberiam em um Boeing 747? Em quanto você calcularia
o tamanho da indústria siderúrgica boliviana? Quantas lâminas de barbear
são vendidas na Austrália a cada ano? Hinton brincou que seu instinto, ao
ouvir essas perguntas, foi o de ligar para um amigo que pudesse estar
familiarizado com o trabalho e com os fatos relevantes. Todavia, o objetivo
das entrevistas não era acertar os números, e sim demonstrar como você
raciocina com base em suposições. A ideia, segundo ele, era “dividir o
problema em pequenos pedaços logicamente relacionados e dar opiniões bem
fundamentadas combinadas com os fatos disponíveis; ou ao menos ligar os
pontos partindo dos fatos que conseguir relacionar e, então, elaborar uma
resposta lógica e convincente para praticamente qualquer problema”. Dito de
outro modo, a iniciação de Hinton na McKinsey e nos protocolos em geral
estavam pressionando-o para dar uma resposta extremamente confiante a algo
que ele nem sequer dominava.
À medida que se adaptava aos modos da McKinsey, Hinton assimilou as
pequenas regras e figuras de linguagem que viraram piada para muitos
céticos em consultoria, embora continuem sendo ferramentas influentes em
muitas áreas além dos negócios. Por exemplo, ele aprendeu que era melhor
falar usando listas de três, baseada em pesquisas sobre como as pessoas
absorvem informações. Caso tenha duas observações importantes a frisar,
adicione uma terceira; se tem quatro, combine duas ou exclua uma. Hinton
também aprendeu o mandamento de não assumir problemas excessivamente
grandes. Não tente “abraçar o mundo”, dirá alguém já versado nos
protocolos. Os protocolos dizem que se deve reduzir o escopo de seja lá o que
for, restringir a quantidade de informações que absorve, de modo a evitar
ficar sobrecarregado pela dimensão da realidade que o confronta. E, para não
se preocupar com o fato de essa redução de alcance prejudicar sua capacidade
de solucionar o problema, os protocolos oferecem a regra do 80/20. No início
do século XX, o economista italiano Vilfredo Pareto teria observado que 80%
das terras da Itália pertenciam a somente 20% de seu povo, e que 80% das
ervilhas produzidas em seu jardim eram provenientes de somente 20% de
suas vagens. Essas observações deram origem à máxima dos negócios de que
20% de muitos sistemas geram 80% dos resultados — um quinto dos clientes
fornece a maior parte do faturamento, citando o exemplo mais comum. Os
protocolos informavam aos audaciosos solucionadores de problemas que era
possível mergulhar de cabeça, encontrar esses 20%, movimentar alguns
indicadores e desencadear ótimos resultados. Essas artimanhas não tinham a
ver com analisar um problema de maneira integral e abrangente a partir de
diversas perspectivas humanas; elas eram sobre como obter resultados sem
precisar fazer nenhuma dessas coisas.
Na McKinsey, Hinton aprendeu a criar as denominadas árvores de
problemas — mapas visuais que ajudam a dissecar um problema de escopo
em elementos menores, por meio da regra 80/20. Começa com um desafio;
por exemplo, fazer com que um banco seja mais lucrativo. Talvez essa
expansão da lucratividade resulte do aumento do faturamento ou da redução
de custos, a primeira camada de subcategorias. Cada nível de subcategorias
deve seguir, em linguajar corporativo, o princípio “MECE” — mutuamente
exclusivo e coletivamente exaustivo. Em outras palavras, o aumento do
faturamento deve ser absolutamente diferente da redução de custos, e todos
os caminhos rumo ao objetivo final devem passar por eles. Agora, cada
subcategoria pode ser dividida em subcategorias das subcategorias — o
aumento do faturamento, por exemplo, pode se originar de empresas
existentes ou novas. E assim sucessivamente, até que exista uma infinidade
de subcategorias descendentes de outras tantas subcategorias sem-fim. Para
ser franco, esse tipo de exercício permite visualizar, com mais clareza do que
quando se analisa o panorama geral, os indicadores que podem ser
movimentados com relativa facilidade e, ainda, gerar efeitos descomunais —
por exemplo, o fechamento de três agências bancárias cujo aluguel é
caríssimo, em Manhattan, pode resultar em 80% da economia necessária. No
entanto, esse procedimento, seja na língua vernácula da McKinsey ou em
outras, pode às vezes estar condicionado à sua arbitrariedade. Criam-se
categorias que podem ou não corresponder à realidade. Tais categorias
podem estar relacionadas e não ser mutuamente exclusivas. Ao que tudo
indica, dividem-se as coisas de uma forma mais óbvia e prática para quem cai
de paraquedas, mas, não raro, essa fragmentação da realidade em centenas de
pedacinhos faz com que uma solução pareça clara, quando, na verdade, ela
obscurece o problema real. Quem poderia instruir corretamente os que
chegam de paraquedas, que são aqueles que detêm o valioso conhecimento
tradicional e local, não conseguem se comunicar na nova língua do problema;
são analfabetos em sua própria terra.
Mais tarde, Hinton trilhou o caminho da McKinsey — e o declarou
publicamente. Trabalhar nesta empresa foi, segundo ele, “um choque, mas
empolgante e estimulante. Eu não estaria lá se não tivesse assumido todos os
meus pontos fortes”. Um segundo depois, acrescentou: “Ou minhas
fraquezas.” Após todos esses anos, ele ainda estava dividido sobre o que
exatamente havia aprendido.

H inton aprendia os protocolos para entrar na arena dos negócios.


Entretanto, conforme os assimilava, eles iam além dos negócios,
conquistando domínios longínquos da abordagem de decomposição. Os
protocolos nasceram da solução de problemas corporativos, porém, cada vez
mais, os partícipes do Mercado Global os empregavam a fim de submetê-los
à solução de problemas sociais tradicionalmente considerados de outros
ângulos por atores com inclinação pública. E quanto mais as pessoas
aceitavam a ideia de que os protocolos eram vitais para a solução de
problemas públicos, mais o Mercado Global era promovido às esferas
governamentais e à sociedade civil como o melhor instrumento de mudança e
progresso.
Nossa era de supremacia do mercado rendeu louvores aos protocolos, com
uma mudança de destino surpreendente: eles evoluíram de uma maneira
especializada de resolver problemas específicos dos negócios para ser, na
opinião de muitos, o conjunto de ferramentas essencial para solucionar
qualquer coisa. Cada vez mais, os protocolos são considerados aprendizado
fundamental para se trabalhar com caridade, educação, justiça social, política,
assistência médica, artes, redações de jornal e qualquer uma das arenas que
costumam se sentir mais à vontade com seu próprio programa de
aprendizagem interno. Organizações como a Fundação Gates contratam os
emissários dos protocolos com o intuito de solucionar o problema
educacional de crianças pobres nos Estados Unidos. As organizações de
direitos civis inserem os emissários dos protocolos em seus conselhos,
aceitando não somente o seu dinheiro, mas também seus conselhos.
Conforme vimos, jovens como Hilary Cohen são convencidos pela cultura
circundante de que, apenas aprendendo os protocolos, podem ajudar milhões
de pessoas.
Poucas coisas exemplificam melhor até que ponto os protocolos se
disseminaram do que o surgimento de um novo tipo de empresa de
consultoria, devotada à luta dos oprimidos utilizando as ferramentas dos
negócios. Uma delas, a TechnoServe, fundada em 1968, se anuncia como
“Soluções de Negócios para a Pobreza”, e ilustra como os emissários dos
protocolos abrem caminho para a solução de problemas sociais apenas
oferecendo seu próprio estilo de diagnóstico. A TechnoServe se denomina
“líder em aproveitar ao máximo o poder do setor privado a fim de ajudar as
pessoas a sair da miséria”. E, desde o princípio, declara uma teoria da
mudança oriunda diretamente do Mercado Global: “Ao conectar pessoas e
informações, capital e mercados, ajudamos milhões a construir a
prosperidade duradoura para suas famílias e comunidades.” Pode-se ler nas
entrelinhas que as pessoas são pobres devido à ausência desses vínculos, e
não em razão de casta, etnia, país, acúmulo de riqueza, salários, condições de
trabalho e rapinagem; não por qualquer coisa que alguém tenha feito — ou
esteja fazendo — a outrem; não por causa de decisões que as sociedades
tomaram, e que podem ser revertidas.
E, embora isso seja bastante questionável como teoria social, é um
posicionamento astuto, porque, se o problema é a ausência de conexões,
aqueles que são bons em viabilizá-las são promovidos a solucionadores.
Quem se propõe a resolver os problemas de outras formas — sobretudo
analisando o poder, os recursos e outros elementos que desestabilizem os
vencedores — é colocado à margem por essa teoria. E, se a TechnoServe
tiver uma perspectiva limitada do que aflige os pobres, talvez seja por conta
de quem está no comando. Os seus gerentes vêm, em grande parte, de
corporações de setores como banco de investimentos, consultoria
administrativa, serviço de assistência médica e administração de fundos, e de
empresas de renome como Morgan Stanley, Credit Suisse, Monsanto, Qwest,
Cargill, Barclays e (muitos deles) McKinsey. Talvez o indício mais claro da
confiança da TechnoServe na influência dos protocolos para sanar a injustiça
— em vez de, digamos, a experiência de vida — seja a formação de seu
conselho. Dos 28 membros do seu conselho que constam online, 26 são
brancos, conforme a última verificação.
Se a TechnoServe ressalta os vínculos ausentes entre os miseráveis e o
direito à informação, capital e mercados, uma empresa concorrente, a
Bridgespan, alega que muitas das soluções boas são restritas demais — outra
teoria de que o que mantém as pessoas pobres, convenientemente, não tem a
ver com os ricos. Se a TechnoServe é controlada por ex-funcionários da
McKinsey, a Bridgespan é onde aterrizam os ex-funcionários de outra das
três principais empresas de consultoria, a Bain & Company. Os agentes da
mudança do mundo são “apaixonados por melhorar a mobilidade social e
promover a igualdade de oportunidades”, de acordo com a empresa. A
Bridgespan estabelece uma teoria de mudança desde o início: amparar os
pobres ao apoiar coisas que os ajudem a crescer mais do que atualmente. Sua
abordagem “se vale de problemas complexos e identifica soluções práticas
que podem ajudar as organizações a compreender e superar seus maiores
obstáculos ao impacto em escala”. Um dos cofundadores da Bridgespan foi
para a Harvard Business School; o outro lecionou lá e é autor de artigos como
“Transformative Scale” [Escala Transformacional, em tradução livre],
“Scaling Impact” [Impacto em Escala, em tradução livre], “Scaling What
Works” [Escalando o que Funciona, em tradução livre], e “Going to Scale”
[Mudando para o Escalonamento, em tradução livre]. Propor mais do que
funciona na prática certamente era aceitável para o Mercado Global.
Ironicamente, os emissários desses protocolos estavam se apressando com o
intuito de projetar a solução de problemas que seus métodos eram cúmplices
em provocar. Partícipes corporativos dos setores energético e financeiro eram
convocados para projetos beneficentes a fim de proteger o mundo contra a
mudança climática, ainda que o modo como pensavam no lucro, ao praticar
suas funções cotidianas, fosse grande parte do motivo pelo qual a mudança
climática estava ocorrendo. Os líderes de negócios foram convocados com o
intuito de elaborar estratégias para os direitos das mulheres, mesmo que suas
ferramentas fossem responsáveis pela cultura de trabalho 24h, que dificultava
a reivindicação dos direitos por muitas delas, e pela evasão fiscal que
praticamente fazia com que as políticas favoráveis às mulheres fossem mais
ilusórias, como a creche universal. E, como no evento de Soros, eles eram
considerados essenciais para aumentar a igualdade, ainda que suas estruturas
analíticas e sua decomposição da realidade dos trabalhadores e das
comunidades tivessem ajudado a potencializar a desigualdade.
Os protocolos e aqueles que os empregavam tinham muito a oferecer ao
mundo dos problemas sociais: rigor, lógica, dados, capacidade de tomar
decisões com rapidez. À medida que se expandiam para as esferas de
combate a doenças ou da reforma do ensino, eles poderiam tomar uma boa
dose de boa vontade e permitir que o tempo e o dinheiro das pessoas
promovessem mais avanços do que fariam sem eles. Porém sempre havia um
preço a se pagar, e parte desse preço residia no fato de os problemas serem
reformatados de acordo com protocolos e ressignificados à luz da perspectiva
do vencedor. Afinal de contas, quem define um problema é o solucionador,
que descarta outros modos de enxergá-lo. Kavita Ramdas, executiva de longa
data de uma organização sem fins lucrativos, escreveu de modo incisivo
acerca da conquista da mudança social por meio da lógica de “‘consertar o
problema’, que possibilitava às pessoas de negócios serem bem-sucedidas
como gerentes de fundos de hedge, investidoras no mercado de capitais ou
desenvolvedoras de software”. É uma abordagem, escreveu ela, “arquitetada
para produzir soluções mensuráveis e razoavelmente rápidas”. A questão é
que muitas vezes os protocolos substituem os métodos mais simples:
As nuances e a humildade inerente das ciências sociais — a percepção de
que o desenvolvimento tem a ver com pessoas, com a complexidade
humana e social, com as realidades culturais e tradicionais, e sua
disposição para lutar com os aspectos caóticos e multifacetados de um
problema —, não têm nenhum prestígio nessa abordagem orientada por
métricas, que busca a eficiência e se concentra na tecnologia das mudanças
sociais.
Embora Hinton pudesse representar um arquétipo do que Ramdas estava
condenando, ele viria a criticar a grande conquista empresarial, da qual
admitia fazer parte e ao mesmo tempo queria se esquivar. Ele a chamou de
“A Tentativa de Solucionar o Problema com as Ferramentas que o
Provocaram”. A disseminação desses protocolos era, afirma, uma
“continuidade da prepotência colonial e imperialista dos homens brancos
esclarecidos, com acesso ao dinheiro e à ciência, intenções nobres e
benevolentes, e que resolverão esses problemas”. Não tínhamos mais
colonizadores britânicos servindo o seu país. Agora, tínhamos pessoas bem
adaptadas, com notebooks, que ofereciam soluções para problemas sociais,
geralmente em caráter voluntário, sem precisar conhecer muita coisa. Hinton
temia que a ascensão dessa “solução de problemas” azeitada pelo PowerPoint
fosse “um pouco mais científica, um pouco mais racional, mas uma extensão
dessa tradição”.

sses receios foram tomando conta de Hinton pouco a pouco. Após cinco
E anos ele deixou a McKinsey; posteriormente, trabalhou em Londres por
vários anos gerenciando um estúdio de cinema e abriu uma boutique de
investimentos; depois, acabou na China, onde passou a trabalhar com
transações financeiras complexas. Esse trabalho resultou em projetos para
Goldman Sachs e Rio Tinto, que, ao verem uma pessoa que já conhecia os
protocolos e trabalhara na Mongólia, pensaram que talvez ele pudesse ajudá-
los e assessorar seus clientes a desviar dos obstáculos no ambiente político do
país. A Mongólia estava no meio de um boom da mineração, e empresas de
grande porte estavam fechando acordos para extrair cobre e outros recursos
do país. A função de Hinton era, como ele a define, servir de intermediário
entre essas empresas e a Mongólia, ajudando os dois lados a se entenderem, a
fim de mitigar os riscos para o projeto. Afinal, contratos de mineração
malsucedidos poderiam gerar custos astronômicos aos investidores.
O papel de Hinton como consultor sênior da Goldman e da Rio Tinto o
colocou diretamente entre as empresas para as quais trabalhava e um país que
ele amava, e tinha muitas contradições contra as quais, mesmo anos depois,
ele parecia se debater. “Eu agia como advogado da parte contrária, mas era
pago por uma empresa de mineração; era pago por um banco de
investimento”, disse ele. “Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que meu
papel não era influenciado a atender às necessidades e ao interesse deles em
um grau significativo. Claro que era.” Ainda não estava claro para ele, ou
qualquer outra pessoa, se os interesses empresariais estrangeiros ajudariam o
país como prometeram ou se, como a história de extração de recursos
demonstrara tantas vezes, eles tomariam tudo que podiam e desapareceriam.
Ele era pago para acreditar e convencer os outros de que o que essas
empresas queriam era o que a Mongólia precisava — a situação em que todos
saem ganhando. Ele fora contratado para conciliar o que talvez fosse
inconciliável. Talvez tenha se dado conta disso e, passado alguns anos, em
determinada altura, Hinton contatou um icônico emissário dos protocolos,
que também estava tendo suas próprias dúvidas.
Michael Porter, professor da Harvard Business School, considerado o
idealizador da estratégia corporativa moderna, chamou a atenção de Hinton
com um artigo de 2011, cuja avaliação crítica deveras modesta à abordagem
predominante dos negócios gerou um rebuliço em um mundo que não está
acostumado ao fogo amigo. Porter estava entre os autores mais citados sobre
negócios e era um padrinho das teorias a respeito de como a concorrência
comercial funciona e o que torna as sociedades “competitivas”, ou seja,
atraentes, para os negócios. Além de lecionar e escrever, ao abrir uma
empresa de consultoria chamada Monitor Group e oferecer seus conselhos a
muitas iniciativas de reforma da assistência médica, ele próprio ingressara no
mundo de divulgação dos protocolos de negócios. “Ele influenciou mais
executivos — e nações — do que qualquer outro professor de negócios do
mundo”, reconheceu a revista Fortune uma vez. E então, em 2011, quando
Porter e um coautor chamado Mark Kramer publicaram o artigo “Criação de
Valor Compartilhado” na Harvard Business Review, o texto despertou a
atenção do mundo dos negócios.
“O sistema capitalista está sitiado”, escreveram Porter e Kramer, passando
nitidamente a impressão de um manifesto do século XIX. A atividade
empresarial estava sendo “cada vez mais vista como uma das principais
causas de problemas sociais, ambientais e econômicos”. Ela “prospera à custa
da comunidade que a cerca”. De quem é a culpa? “Grande parte do problema
está nas empresas em si”, escreveram. E eles culpavam as empresas por terem
“uma abordagem à geração de valor surgida nas últimas décadas e já
ultrapassada”. As empresas estavam focadas demais “otimizando o
desempenho financeiro de curto prazo numa bolha”. Elas adquiriram uma
propensão arriscada “ignorando as necessidades mais importantes do cliente e
influências maiores que determinam seu sucesso em longo prazo”. Repetidas
vezes, as empresas que empregavam milhares de pessoas brilhantes e tinham
consultores externos com o salário altíssimo tomavam decisões que
ignoravam “o esgotamento de recursos naturais vitais para sua atividade, a
viabilidade de fornecedores cruciais ou problemas econômicos das
comunidades nas quais produzem e vendem”. Porter e Kramer estavam
criticando uma cultura que foi além do mundo dos negócios: a cultura criada
pelos protocolos que fragmentavam as coisas e ofuscavam o contexto.
Posteriormente, Hinton se encontrou com Porter com o intuito de pedir seus
conselhos a respeito de como estruturar os acordos das empresas para as
quais trabalhava na Mongólia, a fim de serem menos protocolares e mais
humanos. Agora, anos depois, Porter estava sentado em uma mesa privativa
no restaurante Peacock Alley, localizado no saguão requintado e agitado do
luxuoso hotel Waldorf Astoria em Nova York, explicando como havia
mudado de ideia sobre a finalidade dos protocolos. Ele se interessara pela
desigualdade após a Grande Recessão, especialmente depois de analisar
alguns dados sobre o quão bem algumas empresas e indivíduos norte-
americanos sobreviveram a ela em comparação ao quão mal o cidadão
comum e o trabalhador haviam sobrevivido. Ele alegou: “Começamos a
pensar muito: o que estamos fazendo na Harvard Business School? O que
estamos ensinando aqui? Seja como for, nos perdemos em algum lugar do
caminho.” Essas perguntas o levaram à sua ideia de “valor compartilhado” —
de que existiam novas formas de pensar sobre os objetivos e práticas de
negócios que melhorariam o relacionamento das grandes empresas com suas
comunidades.
Naquele dia, Porter chegou ao Waldorf com uma pauta de esperança. Ele
não queria falar sobre o que as pessoas estavam fazendo de errado. “Minha
opinião é que agora existem forças muito sólidas que podem ser
aproveitadas”, disse ele. As pessoas sabiam que a velha cartilha para fazer
negócios não estava funcionando. Elas queriam coisas novas. “Logo, é uma
questão de estruturar o que ‘deveria’ ser feito em vez de o que ‘não deveria’.”
Essa relutância quanto ao “não” era compreensível para um homem
extremamente influenciado pelo Mercado Global. Mas as ideias de Porter
sobre o “não” pareciam abarcar um sentido maior, porque, se era evidente
para milhões de pessoas fora do Mercado Global que os protocolos de
negócios da última geração haviam acarretado muitos dos problemas que o
mundo hoje enfrentava, tais protocolos não pareciam suspeitos para quem
fazia parte do sistema. Talvez ouvir isso de Michael Porter abalasse as
estruturas dessas outras pessoas que não queriam enxergar a realidade dos
fatos.
Meticuloso e sistemático, Porter começou a expor como a abordagem de
negócios com relação à vida, ao longo de uma geração, contribuiu e muito
com alguns dos males da sociedade que agora se apresentavam como cura.
No cerne de seu relato residia uma avaliação crítica dos protocolos, e como a
abordagem fracionada da realidade e a recusa do todo haviam prejudicado as
pessoas.
Porter discorreu sobre como as empresas da última geração perseguiram
uma visão globalizada, em que não se consideravam em dívida com nenhuma
comunidade. Isso se devia ao fato de que aqueles que foram ensinados por
professores como ele, em locais como a Harvard Business School, preparados
pelas consultorias, por Wall Street e outros espaços de formação,
costumavam não se comprometer com lugar nenhum. Você analisava os
dados e depois ia aonde estava a oportunidade; pouco importava se isso o
fizesse cortar os laços com sua própria comunidade e com seus deveres com
ela. “Existiam muitas coisas que as empresas tradicionalmente faziam para
ajudar a comunidade, desde o treinamento de pessoas até outras atividades
pelas quais assumiam responsabilidade, o que chamamos de investimento no
bem comum”, disse Porter. Por bens comuns, ele se referia aos patrimônios
compartilhados de um lugar — como escolas públicas que beneficiavam
tanto os setores empresariais quanto a população local. “Conforme as pessoas
perderam o vínculo com os lugares, as empresas pararam de reinvestir nesses
espaços. Elas passaram a considerar a globalização do trabalho.”
Essa ausência de vínculo mencionada por Porter foi instigada pela
abordagem descontextualizada e segregadora do “não tente abraçar o mundo”
dos protocolos — em virtude da tendência à fragmentação. Antes de os
protocolos dominarem o mundo dos negócios, uma empresa não ia muito
longe para levantar dinheiro, adquiria matéria-prima nas proximidades,
vendia a clientes não muito distantes, pagava impostos a autoridades locais e,
quando prosperava, depositava o lucro em um banco não muito longe ou
reinvestia em um empreendimento nas redondezas. Mas, nas últimas décadas,
isso começou a mudar conforme a tecnologia facilitava as transações
comerciais com empresas distantes, novos mercados se abriam e, o mais
importante, à medida que os gurus financeiros e consultores administrativos
influenciavam o alto escalão. De posse dos protocolos, esses personagens
coagiam as empresas a adotarem uma nova filosofia: realize cada uma de
suas atividades onde for melhor, onde quer que seja. Agora, você angariava
recursos financeiros com investidores coreanos, comprava do México, vendia
na França, pagava impostos para o Caribe e, quando prosperava, escolhia um
banco suíço ou Bitcoins impalpáveis para armazenar os rendimentos — ou
reinvestia em qualquer empreendimento mundo afora que lhe prometesse o
maior retorno possível. Foi uma expansão de liberdade comercial. Porter
sugeriu, no entanto, que isso havia rompido um velho padrão das empresas de
se comportarem com um senso de cidadania. “Seja como for, existe um
desapego por causa dessa noção de globalização — de que não somos mais
uma empresa norte-americana”, disse ele. “E é provável que, se você estiver
operando em todo o mundo, não terá nenhuma razão especial para se
preocupar com Milwaukee.”
Em algum ponto da trajetória da globalização, disse Porter, a autoimagem
das empresas como um pilar da comunidade havia dado lugar à de “somos
globais agora, e isso não é mais problema nosso”. Ele acrescenta: “Elas
começaram a não aceitar nenhuma responsabilidade por essa comunidade
porque não achavam que era a função delas, que sempre poderiam se mudar
para outro local se essa comunidade não quisesse acatar as suas diretrizes.”
Era uma situação em que um ganhava e outro saía perdendo: as empresas
prosperavam por causa de sua liberdade de se esquivar, e a comunidade sofria
com a falta de incentivos.
O segundo ponto crítico de Porter considerava a “otimização”. Graças, em
parte, aos protocolos emergentes, uma nova cultura de negócios floresceu, na
qual até os menores elementos das atividades de uma empresa tinham que ser
perfeitamente otimizados, e isso, segundo Porter, facilitou o maltrato aos
trabalhadores e a negligência de questões sobre como esse sistema afetava as
pessoas. Esses novos protocolos vingaram, pois o mundo dos negócios que
começaram a conquistar na segunda metade do século XX era restrito a
determinados círculos, provinciano e nada otimizado. Muitas empresas,
mesmo as de grande porte, se comportavam como famílias (que ainda
administravam a maior parte delas): você não vendia em qualquer lugar que
pudesse e pelo melhor preço de mercado de acordo com o lugar; você vendia
onde conhecia alguém, que conhecia outro alguém, que pagava pela melhor
estimativa. Não se pagava os operários conforme a demanda aumentava ou
diminuía; eles recebiam um salário regular.
Empresas de consultoria administrativa, empresas em leveraged buyout
[investimentos em participação acionária alavancados], bancos de
investimento e outros emissários dos protocolos foram arrastados para esse
mundo pitoresco dos negócios nas últimas décadas e passaram a pressionar
para que cada parte dele fosse otimizada. Eles fizeram isso por meio de uma
combinação de projetos de consultoria pagos pelas empresas; ofertas públicas
de aquisição agressivas, após as quais adaptavam os departamentos das
empresas conforme queriam; e pressão dos acionistas para aumentar o valor
das ações. Uma nova ética de otimização se espalhou pelo mundo dos
negócios e, à primeira vista, pelo menos para Porter, parecia ser positiva. Ele
disse: “Aprendemos muito sobre como administrar as empresas de modo
mais produtivo, como operar cadeias de suprimentos, como implementar
melhor a tecnologia e como ser mais inteligente em relação a compras e
aquisições.” Ao longo de uma geração, essas iniciativas, muitas das quais
foram incubadas na Harvard Business School, tornaram a economia como um
todo mais produtiva e competitiva. No entanto, não era uma coincidência,
segundo Porter, que “quando essa margem de manobras se esgotou”, como
ele disse, no mesmo período, a vida começou a ficar bastante difícil para
muitos trabalhadores. “Fizemos as empresas ficarem mais produtivas, o que
possibilitou aumentos salariais por muitos e muitos anos. Mas também, sem
sequer perceber, começamos a desmantelar os vínculos entre a empresa e
seus funcionários.”
Ele mencionou a Starbucks. Como muitas empresas, ela começou a
cronometrar as atribuições dos trabalhadores utilizando ferramentas
ultrainovadoras de “cronograma dinâmico”, que permitiam aos empregadores
alterar os horários com mais frequência, a fim de otimizar continuamente.
Isso ajudava uma empresa a pagar a menor remuneração possível para
atender a uma determinada demanda. Esse tipo de coisa aumentou a
lucratividade da empresa, mas era capaz de instaurar o caos na vida dos
trabalhadores. Eles já não sabiam mais quantas horas trabalhariam, o que
dificultou o pagamento de contas e as compras. Eles tinham que providenciar
quem ficasse com seus filhos de uma hora para outra. Porter afirma: “De
alguma forma, ao serem eficientes, inteligentes e produtivas, as pessoas
acharam que tinham o direito de parar de pensar nos seres humanos e no
bem-estar de todos os outros membros do sistema.” Pode-se perceber essa
mesma cegueira, de acordo com Porter, na insistência de empresas
extremamente lucrativas em pagar salários baixos: “Transformamos essas
pessoas em commodities e as otimizamos para nosso uso, em vez de otimizá-
las de outra forma. Logo, muitas práticas trabalhistas, uma boa parte dessa
ideia de que você deveria contratar trabalhadores e não pagar os benefícios,
todas essas coisas era tidas como inteligentes, e todo mundo justificava
dizendo: ‘Ah, estamos sendo produtivos e maximizando nossos rendimentos,
e, de certa forma, esse é o nosso trabalho.’”
Porter deixava claro que esses tipos de “negócios” não representavam um
número preciso. Eles poderiam ser feitos de diferentes maneiras, seguindo
abordagens distintas. Mas, nas últimas décadas, eles vêm sendo controlados
pelos protocolos que, em nome da otimização de tudo, deram-lhes
autorização para negligenciar e até mesmo prejudicar as pessoas. “Criamos
uma espécie de cartum”, disse Porter, “e, sob essa ótica, se você pode obrigar
seu funcionário a fazer horas extras sem pagar, então deveria fazer isso; este é
o livre mercado e a maximização do lucro”.
Por último, Porter falou de como a disseminação da língua vernacular
financeira dos protocolos fez com que as empresas fossem administradas
cada vez mais em prol dos acionistas, e não em benefício dos trabalhadores,
clientes ou qualquer outra pessoa. “Antes, quando eu lecionava”, afirmou,
“não falávamos sobre valor para os acionistas”. Como as estrelas-guias
direcionavam os negócios naquela época? “Acho que era assim: a empresa
precisa obter um bom retorno contínuo, precisamos disso em longo prazo e
estamos construindo uma empresa ótima”, disse ele, “em vez da ideia de que
são os índices diários da bolsa de valores que determinam se você está
obtendo sucesso ou não”. Antigamente, as empresas eram administradas de
forma mais localizada e menos científica, e também eram geridas por uma
diversidade de pessoas. Os acionistas faziam parte da amálgama, porém as
micro-oscilações dos preços das ações não eram o indicador absoluto do
sucesso de uma empresa, nem o guia de como ela deveria ser gerida.
Obviamente, havia desperdícios: muito capital não foi utilizado da maneira
mais eficiente. E então, nas décadas de 1970 e 1980, quando o neoliberalismo
em ascensão inspirou mudanças nas leis e na cultura, maximizar o valor para
os acionistas passou a ser visto como o primeiro dever de uma empresa. “A
responsabilidade social das empresas é potencializar seus lucros”, declarou o
economista Milton Friedman, da Escola de Chicago, para a New York Times
Magazine, em 1970. Os oriundos de Wall Street, treinados nos protocolos,
viram sua influência aumentar à medida que a forma de avaliar uma empresa
e seu grau de opinião sobre como ela deveria ser administrada paulatinamente
assumiram o controle.
Porter testemunhou esse fenômeno, que costuma ser chamado de
“financeirização”, transformar as empresas em servas de seus donos, em
detrimento de outros fatores. “A mentalidade de valor para o acionista se
tornou muito, muito forte”, disse ele. As pessoas ficaram “obcecadas” por
ele, e, como uma coisa leva à outra, isso levou ao pensamento de “curto
prazo”; provocou decisões que poderiam aumentar temporariamente o preço
das ações, mas que, na verdade, prejudicaram o futuro em longo prazo de
uma empresa, seus funcionários, clientes ou comunidade. “Já participei de
vários conselhos”, afirma Porter, “e acontece a mesma coisa quando vou às
reuniões do conselho e nos preocupamos com o resultado de hora em hora,
começamos a ouvir o responsável pelos resultados, o mercado de capitais, o
que ele acha que devemos fazer”.
Argumentos como “Precisamos pagar aos trabalhadores um salário fixo, o
que terá um custo enorme na baixa temporada, mas nos ajudará a mantê-los
em longo prazo” não tinham mais justificativa. Argumentos como
“Precisamos pagar aos trabalhadores um salário fixo, o que terá um custo
enorme em curto e longo prazo, mas é o certo a se fazer” não tinham a menor
chance. “Acho que, de alguma forma, novamente em busca da eficiência,
sofisticação do mercado financeiro, modelagem e assim por diante,
encontramos diversos meios de ganhar dinheiro”, disse Porter, “mas isso se
distancia do que é o capitalismo, em última instância, que é a economia real”.
As características de investimento dos negócios passaram a dominar outras
esferas, envolvendo construir coisas, atender pessoas, solucionar problemas.
Em conjunto, essas mudanças influenciaram a grande racionalização do
mundo dos negócios, em dois sentidos: eram os instrumentos pelos quais as
atividades comerciais foram racionalizadas e, não menos importante, eram os
instrumentos por meio dos quais as pessoas de negócios haviam
racionalizado suas próprias vidas. Grande parte do que Porter descreveu
havia entrado no mundo dos negócios por meio dos protocolos
categorizantes. Com a ajuda deles, as empresas alinharam suas ações por uma
geração, analisando e otimizando tudo. Porter agora estava admitindo que
muitos deles estavam se excedendo. “Não sei como, mas muitas dessas
práticas, geralmente sensíveis em vários aspectos dos negócios, acabaram
passando dos limites”, disse ele.
O resultado era o sofrimento e o caos em muitas vidas. Atualmente, os
protocolos estavam tomando conta das fundações e agências governamentais,
e empresas de consultoria em combate à pobreza eram a solução para esses
infortúnios.

A lguns anos depois de seu encontro com Porter, Hinton se viu sentado à
frente de outro capitalista apreensivo com o capitalismo moderno.
George Soros precisava de alguém para administrar seu novo programa de
construção de economias mais inclusivas — de preferência alguém que não
acreditasse piamente nos protocolos. Um etnomusicólogo com anos de
experiência na Mongólia Ocidental, que acabara na McKinsey e na Goldman
Sachs, parecia perfeito. Hinton sabia que seu rigoroso treinamento de
negócios fazia parte de seus atrativos. Mas acrescentou: “Provavelmente,
estou aqui, em partes, porque já fiz muita coisa; e espero que eu possa
mostrar um pouco o meu lado de musicista mongol.”
Ele assumiu o novo emprego, dividindo seu tempo entre Nova York e
Londres, e fazendo suas primeiras investidas no novo mundo do setor social.
Surpreendeu-se com o fato de que tantas pessoas agora encarregadas de
ajudar os oprimidos — seja na Fundação Gates, na Omidyar Network ou na
Fundação Clinton — eram ex-consultores e/ou do setor financeiro, como ele.
Hinton sabia como eles trabalhavam. “Essa abordagem falha ao desconsiderar
os beneficiários reais dessa ajuda; seus insights podem ser a resposta aos seus
problemas.” Hinton descreveu as hipóteses do que ele acreditava orientar os
emissários de protocolo em suas novas atribuições de serviço público: “Se
agruparmos recursos intelectuais e dinheiro suficientes, podemos derrubar
isso e resolver esses problemas.” Em seguida, as soluções podem “ser
escaladas”. Segundo ele, essa abordagem “simplesmente não reconhece que
estamos tentando solucionar esses problemas com as mesmas ferramentas e
mentes que os criaram, em primeiro lugar”.
Hinton via como os protocolos, ressignificados para a guerra contra as
adversidades, poderiam ser de grande proveito para o Mercado Global. “Se
de repente podemos ser o cavaleiro branco e cavalgar como o salvador do
resto do mundo, talvez não tenha sido ruim, afinal”, disse ele a respeito do
sistema e das ideias que o Mercado Global defendia. “Talvez tenha sido
realmente bom, e esta seja a chance de redimir o capitalismo.”
A disseminação dos protocolos para questões sociais também concedeu às
elites a chance de restringir o leque de possíveis respostas. “Você restringe
totalmente o conjunto de soluções que está preparado para analisar”, disse
ele. “É meio óbvio, não é? Se você tiver apenas falantes de inglês a bordo, a
solução será em inglês.” Na opinião de Hinton, não era questão de maldade.
“É a banalização da desatenção”, disse ele. “Não é maldade. Não é uma
autocensura consciente. Trata-se de um hábito.” Ele trouxe à baila a reunião
de especialistas nada especializados que estavam naquela sala de conferência
na West 57th Street. “Sou culpado disso”, disse ele. “Tenho uma rede de
contatos bem grande. Mas, quando contata pessoas, busca indivíduos
inteligentes e articulados como você. Quero dizer, todos nós somos assim.
Logo, isso se replica.”
Ele pensava alto se um projeto maior e as fundações por trás dele poderiam
ser geridos de uma forma diferente. Se a disseminação dos protocolos era
uma colonização, como seria a descolonização? “Suponho que a colonização
é inevitável”, disse ele. “Acho que a ideia de independência nem me ocorreu.
Nem me perguntei a respeito. Eu me sinto estúpido. Como seria a
descolonização? Como você reverteria a tendência? Penso que é necessário,
mas ainda não o suficiente, uma mudança radical na postura e nas vozes que
estão ao redor da mesa.” Com isso, ele não falava somente do estímulo usual
quanto à diversidade étnica e de gênero, nem manter por perto um ou dois
representantes de minorias. Mas e quanto a ter como parte da liderança o tipo
de pessoa que as fundações buscam ajudar? Ele se perguntava.
Atualmente, Hinton estava em vias de inaugurar seu comitê de conselheiros
para o novo Programa de Avanço Econômico. “Nem questionei a hipótese de
que estaria procurando pessoas com profunda experiência e credenciais de
elite”, disse ele. Mas e se descartasse essa hipótese e colocasse, digamos, um
professor de escola primária no comitê — um proveniente da Índia? “Na
verdade, eu vou tentar”, falou. Hinton disse que tentaria colocar uma pessoa
comum — uma das pessoas a respeito de quem esse pessoal de empresas de
capital privado e consultoria estava deliberando — no conselho. Ou seja,
talvez a natureza da reunião em si poderia ter que mudar, a fim de acomodar
um leque maior de contextos. Talvez fosse melhor evitar o PowerPoint.
Talvez ele tivesse que apresentá-la na forma de uma conversa ou narrativa,
ou mostrar um filme. As ideias estavam a todo vapor.
Hinton é da religião bahá’í, e a Casa Universal de Justiça, o sumo conselho
da religião, declarou certa vez sobre a maneira apropriada de buscar a
melhoria do mundo e da vida de outras pessoas:
Justiça exige participação universal. Assim, embora a ação social possa
envolver o fornecimento de bens e serviços de alguma forma, sua
preocupação primária deve ser a capacitação de dada população com o
intuito de participar da criação de um mundo melhor. Mudança social não
é um projeto que um grupo de pessoas realiza em benefício de outro.
Hinton acreditava nisso. Em sua própria vida, ele sentia que sua fé era uma
das poucas forças sólidas o bastante a fim de equilibrar o modo de pensar dos
negócios. O grande erro desse modo de pensar, ele disse, é o “materialismo”.
O homem de negócios costumava enxergar o trabalho em termos de utilidade,
como algo que as pessoas fazem para se alimentar e adquirir coisas. Mas
havia também uma dimensão espiritual: “Esse trabalho pode ser a expressão
do desejo interior de ser produtivo e de servir à comunidade — e que a ideia
de negar a alguém a oportunidade de cumprir isso é como não deixar que
uma árvore dê frutos.” Muitos emissários da mentalidade dos negócios
tinham, como ele, um lado religioso ou espiritual, “mas acho que, de alguma
maneira, tal pensamento nunca se sobrepõe a essa mentalidade”. E
acrescentou: “As pessoas não têm permissão para pensar sobre essas coisas
na vida profissional. Decidimos que são domínios distintos, e não é muito
bem visto em meus círculos falar sobre fé religiosa.”
Ele fora contratado por sua habilidade em solucionar problemas de negócios
empregando os protocolos. Seus valores eram problema dele. “Não foi por
isso que fui convidado para a festa”, disse Hinton.
CAPÍTULO 6
GENEROSIDADE E JUSTIÇA

A riqueza é como um pomar. Você tem que compartilhar os frutos, não


o pomar.
— CARLOS SLIM

D arren Walker, usando um típico chapéu de pele russo, estava sentado no


banco de trás de uma limusine Lincoln e se deslocava lenta e
nervosamente em direção à West 57th Street, que ele chamava de “toca do
monstro”. Sua limusine ia rumo ao escritório da KKR em Nova York, a
empresa de capital privado imortalizada no filme Selvagens em Wall Street
— uma empresa que esteve na vanguarda da grande racionalização, uma
aquisição orientada por um protocolo de cada vez. Walker era o presidente da
Fundação Ford e, portanto, da esfera da justiça social. Ele passava os dias
doando dinheiro.
A função de Walker — enfrentar um grupo de executivos da empresa de
capital privado em um almoço — foi agravada por uma carta muito
divulgada, que ele havia escrito alguns meses antes. A carta contradizia a
afabilidade que costuma prevalecer no mundo filantrópico. Levantava, em
linguagem incisiva e provocativa, a questão do que fazer com a crise da
desigualdade. Esse fato por si só era constrangedor para muitas pessoas ricas,
que preferiam falar em reduzir a pobreza ou maximizar as oportunidades, e
não em reformas mais radicais que talvez exigissem sacrifício. A carta de
Walker culpava diretamente as próprias elites que usavam a filantropia como
instrumento de retribuição com o intuito de ignorar sua cumplicidade em
acarretar os problemas que, mais tarde, buscavam solucionar.
Antes da carta, a popularidade de Walker era unânime entre os plutocratas,
o que não significava que todos não tivessem gostado do que ele havia
escrito. Robert Rubin, ex-funcionário do Goldman Sachs, Citigroup e do
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, disse a Walker que adorou a
carta, achando-a “inovadora e diferente”. Ele afirmara que “nunca tinha lido
nada do tipo”. Todavia, muitos plutocratas se opuseram ao fato de Walker
estar colocando a desigualdade sob os holofotes, em vez de ressaltar as
questões sobre as quais ficavam mais à vontade em falar, como pobreza ou
oportunidade. Eles ficaram insatisfeitos por ele restringir a questão a um
terreno que os acusava, em vez de convidá-los para colaborar com uma
solução. E não gostaram nem um pouco do foco de Walker a respeito de
como se ganha o dinheiro, em vez de como ele é doado. “Acho apenas que
você deveria parar de vociferar contra a desigualdade”, um amigo no setor de
capital privado se apressou em lhe dizer, algumas noites antes do evento
KKR. “Isso realmente aborrece as pessoas.” Walker quebrou tabus
significativos em seus círculos: inspire os endinheirados a praticar mais o
bem, mas nunca, jamais diga a eles para fazerem menos mal; inspire-os a
retribuir, mas nunca, jamais diga a eles para se apossarem de menos; inspire-
os a participar da solução, mas nunca, jamais os acuse de fazer parte do
problema.

título da carta de Walker no site da Ford era: “Toward a New Gospel of


O Wealth” [Rumo ao Novo Evangelho da Riqueza, em tradução livre]. Ele
estava tentando reformular e atualizar — ou talvez abolir — um antigo
evangelho que remonta a uma época bastante parecida com a nossa; um
evangelho que havia transformado as ideias norte-americanas precedentes
sobre ajudar outrem.
O falecido historiador Peter Dobkin Hall, autoridade em tradição
filantrópica norte-americana, refaz o curso histórico ao final do século XVII e
início do século XVIII, quando o comércio colonial de commodities
potencializou as diferenças de riqueza e gerou “uma população cada vez mais
aparente de pobres e dependentes pelas quais se esperava que a sociedade
civil assumisse a responsabilidade”. Antes desse período, escreve Hall,
muitas doações eram direcionadas à esfera pública — às próprias instituições
governamentais ou entidades como Harvard, que “eram consideradas
corporações públicas, sujeitas à fiscalização legislativa e ajudadas
substancialmente na forma de subsídios em dinheiro assegurados por lei”.
Porém a complexidade cada vez maior da economia e da sociedade — graças
ao crescente comércio internacional, imigração, desenvolvimento rápido da
economia de mercado, crescimento populacional e epidemias de doenças,
como a varíola — motivou os norte-americanos a assumir a questão por conta
própria, segundo Hall. Ele atribui à Cotton Mather, o reverenciado clérigo
puritano na Nova Inglaterra, a reformulação das ideias predominantes acerca
da caridade em seu panfleto de 1710, Bonifacius:
O Homem que não está Satisfeito na Sabedoria, em fazer dela a sua Vida
para Praticar o Bem, é sempre mais digno de Comiseração do que um
Néscio, pois um Homem Bom é de fato um Homem Vivo; E quanto Melhor
um Homem for, mais Vivo ele será. Tudo o mais é Morte; ou toma parte
dela.
Mather, segundo o relato de Hall, tinha ideias específicas sobre o que
significava praticar o bem, “defendendo ‘visitas amigáveis’ aos pobres, uso
de associações voluntárias para ajuda mútua e doações filantrópicas por parte
dos ricos a fim de aliviar os pobres e amparar escolas, faculdades e
hospitais”.
Uma característica acentuada das doações norte-americanas antes da era da
grande filantropia foi a ajuda de muitos por muitos. Grupos com esse objetivo
se multiplicaram nos séculos XVIII e XIX. Hall escreve a respeito de uma
opinião generalizada de que “os perigos e incertezas da vida urbana poderiam
ser mitigados por meio de associações fraternas que ajudavam
financeiramente os membros e suas famílias em épocas de enfermidades e
morte. Associações de artesãos protegiam seus membros da exploração e
buscavam assegurar que recebessem preços justos por seu trabalho”. Na
década de 1830, quando Alexis de Tocqueville fez sua peregrinação da
Europa para os Estados Unidos, ele constatou que os norte-americanos não
esperavam reis e papas para ajudar as pessoas. Eles montavam “associações”
— uma expressão que ele ajudou a popularizar — “realizavam festas
beneficentes, faziam seminários, construíam albergues, erguiam igrejas,
distribuíam livros, enviavam missionários aos antípodas”.
À medida que o século XIX avançava, mudanças importantes na vida norte-
americana ajudaram a desenvolver as tendências iniciais do que hoje é
chamado de filantropia organizada. “Atos de bondade humana são tão antigos
quanto a humanidade”, escrevem os estudiosos Lucy Bernholz, Chiara
Cordelli e Rob Reich em seu livro recente, Philanthropy in Democratic
Societies [“Filantropia nas Sociedades Democráticas”, em tradução livre]. “A
prática moderna da filantropia organizada, por outro lado, tem uma origem
mais recente.” Na virada do século, um novo capitalismo industrial floresceu.
Faziam-se fortunas magníficas com ferrovias, aço, petróleo e outros, devido
ao crescimento de uma nação em expansão. Conforme ocorre hoje, a
desigualdade aumentou à medida que alguns se apoderavam das novas
possibilidades e outros eram enjeitados. A fúria entrou em ebulição, e os
impulsos populistas dispararam. O dinheiro que estava sendo ganho no início
dessa Era Dourada, na opinião de muitos, tinha o caráter sórdido no que dizia
respeito à sua quantidade, injusto em sua procedência e inadmissível em
relação ao poder que conferia à república, despertando novos sentimentos
populistas. Serviu também como combustível para novas ideias sobre as
doações: “O crescimento da desigualdade pode ser um adversário da política
da boa vizinhança cívica, mas é um amigo da filantropia privada”, afirma
Reich, cientista político e uma das principais autoridades em filantropia, no
livro.
Nesse ínterim, em meio a uma mistura de altruísmo e desejo de
autopreservação visando apaziguar a indignação popular, alguns magnatas
idosos, principalmente Andrew Carnegie e John D. Rockefeller, começaram a
fazer doações. Frederick Gates, consultor de Rockefeller, escreveu para ele:
“Sua fortuna está se acumulando, se acumulando, como uma avalanche!
Precisa acompanhar o ritmo dela! Você deve distribuí-la mais rápido do que
ela cresce!” Ao que tudo indica, isso sugere que, dentre as coisas que
distinguiam a nova filantropia, se evidenciava a consciência da época. Ao
menos alguns dos doadores sabiam que deviam abrandar essa preocupação e
fúria ameaçadoras.
A nova forma de caridade, que procedeu dessa, foi a fundação privada, que,
de acordo com Reich, era diferente das instituições beneficentes do passado,
tanto no alcance quanto na natureza. Ela era
uma entidade com objetivos amplos e gerais, destinada a ajudar outras
instituições e, na verdade, criar e financiar novas organizações (por
exemplo, institutos de pesquisa), buscando abordar as causas-raíz dos
problemas sociais em vez de oferecer serviços diretos (venda por
“atacado” em vez de “varejo”), e projetada para ser administrada por
conselheiros privados e autônomos, com equipe profissional remunerada,
que atuaria em nome de uma missão pública. Um outro aspecto dessas
fundações era novo: seus recursos incalculáveis lhes permitiam operar em
um alcance diferente de outras entidades de doações mais comuns.
Essas fundações estavam, em outras palavras, viabilizando que um pequeno
grupo de pessoas abastadas como Carnegie e Rockefeller alocasse somas
colossais de dinheiro em prol do bem público e, assim, ganhasse voz nos
veículos de comunicação do país que competiriam com as vozes de muitas
autoridades públicas. Inúmeras novas fundações se preocupavam não com
causas específicas, mas com o bem-estar geral da humanidade, assim como
os estados. A nova filantropia era administrada profissionalmente por uma
entidade similar a uma corporação e, como os governos, recebia conselhos de
especialistas, ao contrário dos conselhos indiscriminados das associações
voluntárias. Rockefeller escreveu na época que era importante fazer “esse
negócio de benevolência de modo apropriado e eficaz”. Essa filantropia
emergente seria cada vez menos sobre ações coletivas locais, testemunhadas
por Tocqueville, a união a fim de resolver problemas comuns, e cada vez
mais sobre “a redistribuição privada da riqueza — em geral obtida por meio
da produção privada capitalista — por intermédio de um ‘setor sem fins
lucrativos’”, escreve Jonathan Levy, historiador da Universidade de Chicago.
A despeito do alcance dessa nova generosidade, houve críticas. Uma delas
tinha a ver com a forma como o dinheiro doado havia sido ganho. As novas
fundações despertavam preocupações, como Reich alega, “porque
representavam a riqueza, possivelmente adquirida de modo ilícito, dos barões
usurpadores da Era Dourada”. Quando Rockefeller propôs estabelecer sua
fundação benevolente com o intuito de lidar com sua avalanche de dinheiro,
vozes poderosas se opuseram, criticando que o dinheiro estava maculado por
suas origens. “Nenhuma instituição de caridade que desembolsa essas
fortunas pode compensar de alguma maneira a improbidade de como elas
foram ganhas”, disse o presidente Theodore Roosevelt. As lembranças do
monopólio de petróleo pouco benevolente de Rockefeller e a sua aversão aos
sindicados trabalhistas ainda eram recentes. Charles e Mary Beard
escreveram acerca da “plutocracia bruta” dos barões ladrões, sobre como eles
“se debatiam em constrangimento, procurando mantos mais respeitáveis de
segurança e redenção”. Na história escandalosa de 1934 do jornalista
Matthew Josephson, The Robber Barons [“Os Barões Ladrões”, em tradução
livre], termo cuja autoria lhe é atribuída, ele escreveu sobre como os barões
“apressaram-se em ceder partes substanciais do espólio, tomadas em
incursões bem-sucedidas, como se temessem que Deus ficasse furioso a
menos que muito dinheiro fosse doado”.
Outras críticas se concentraram em como a nova filantropia não somente
lavava o dinheiro desumanamente ganho, mas também o convertia em
influência sobre uma sociedade democrática. Reich escreve que as novas
fundações “eram alarmantes, porque eram consideradas uma instituição
profundamente antidemocrática, uma entidade que poderia existir para todo
sempre e que não prestava contas a ninguém, exceto a uma assembleia de
conselheiros escolhida a dedo”. Como exemplo, ele menciona as críticas do
reverendo John Haynes Holmes, um ministro unitarista que, durante um bom
tempo, foi presidente da União Americana pelas Liberdades Civis:
Parto do princípio de que os homens que agora estão administrando essas
fundações — por exemplo, os homens que representam a Fundação
Rockefeller — são homens sábios, homens de perspicácia, de visão, e
também são motivados pelas mais nobres causas… Meu princípio é a ideia
da democracia como um todo. Desse ponto de vista, parece-me que essa
fundação, sua própria natureza, é inconciliável com a ideia de uma
sociedade democrática.
Como salienta Reich, é raro ouvir críticas como essa hoje. “Percorremos um
longo caminho em 100 anos”, escreve. “Atualmente, os filantropos são
extremamente admirados, e a criação de fundações pelos abastados não vai ao
encontro do ceticismo público ou político, mas à gratidão cívica.” É difícil
imaginar um presidente norte-americano ou muitos jornalistas influentes
censurando pessoas ricas por doar dinheiro. Na verdade, quando há
jornalistas que fogem a essa regra, ela rapidamente é reiterada por outros.
Quando David Callahan, fundador do site Inside Philanthropy e um dos
poucos cronistas influentes da área com uma inclinação crítica, publicou o
livro The Givers [“Os Doadores”, em tradução livre] sobre este tema, a
atitude de seu crítico do New York Times, um colega jornalista, revelou os
frutos provenientes de um século de persuasão que esses doadores colheram:
“Muitos leitores ficarão irritados. Quer dizer que agora devemos nos
preocupar com pessoas ricas serem socialmente conscientes? O que
exatamente esse cara quer?”
No início do século XX, quando a preocupação com os filantropos era
comum, pareceria inimaginável que no início do século XXI os jornalistas
pudessem refutar as ideias dos colegas por criticarem o poder da elite. Mas
naqueles dias, ao contrário de hoje, realizar doações não tornava o doador
imune. Não fazia as pessoas sorrirem e se calarem a respeito das origens do
dinheiro. Não fazia os jornalistas sentirem pena dos ricos e se apressarem em
defendê-los. Não silenciava as perguntas sobre o sistema em que a riqueza foi
gerada. A cultura por meio da qual as doações conquistaram tal influência
teve que ser inventada e disseminada. Enfim, isso aconteceu, e, entre as
contribuições intelectuais seminais à nova cultura, estava um artigo de 1889
de Andrew Carnegie, um homem com um grande interesse em como a
filantropia seria vista.
O ensaio de Carnegie, intitulado “Riqueza” e amplamente conhecido como
“O Evangelho da Riqueza”, ajudou a instaurar uma nova perspectiva sobre
filantropia, que não só refutava as críticas de que ele e outros eram alvos, mas
efetivamente as deslegitimava e contestava o direito das outras pessoas de
questionar. Carnegie se empenhou em explicar todas as coisas repugnantes
que ele e outros grandes doadores haviam feito para ganhar dinheiro e em
amenizar as preocupações a respeito da ascendência do poder privado sobre
os assuntos públicos em uma democracia. Aparentemente, os críticos
desejavam um mundo em que os Carnegies e os Rockefellers fossem menos
extremos em seu período de rapinagem, o que lhes daria menos recursos para
doar e, portanto, restringiria a parcela de autoridade que exerciam. Se fosse
rebater, Carnegie argumentaria que um período de extrema usurpação
seguido de um período de doação extrema era a melhor alternativa.
Carnegie, em seu Evangelho, publicado pela North American Review,
começou a destrinchar os problemas das críticas. Ele defendia que a
desigualdade era o preço indesejável, mas inevitável, do verdadeiro
progresso. As “condições da vida humana não apenas foram mudadas, mas
revolucionadas”, segundo ele. A desigualdade era melhor do que parecia,
explicou o barão: “O contraste entre o palácio do milionário e a cabana do
trabalhador que hoje existe nos dá uma noção da mudança pela qual passou a
civilização. Essa mudança, entretanto, não deve ser lastimada, mas bem-
vinda como altamente benéfica.” A estratificação era o preço do avanço
subsequente do progresso.
É claro que, embora a desigualdade fosse o preço do progresso, os
milionários em ascensão da época não precisavam tirar muito de suas
atividades econômicas e pagavam pouquíssimo aos operários. Abster-se de
tamanha avareza possibilitaria que os trabalhadores reformassem suas
cabanas, não as transformando em palácios, mas pelo menos em casas
decentes para viver. Carnegie rejeitava tal ideia. Não há escolha, disse ele, a
não ser operar da forma mais radical, ainda que mesquinha, para que você
não vá à falência:
Sob a lei da competição, o empregador de milhares é forçado às mais
estritas economias, dentre as quais predominam arrochos salariais, e com
frequência há conflito entre empregador e empregado, capital e trabalho,
rico e pobre.
Este é o primeiro dos dois passos intelectuais de Carnegie: caso deseje
progredir, precisa permitir que os abastados ganhem dinheiro como puderem,
ainda que isso maximize a desigualdade. Os homens de negócios merecem
tamanho consentimento, disse ele, pois “esse talento para organização e
gerenciamento é raro entre os homens”. Seus métodos não devem ser
contestados. Carnegie escreveu:
Aceitamos e acolhemos, por essa razão, como condições às quais devemos
nos acomodar: a grande desigualdade entre ambientes; a concentração de
negócios industriais e comerciais nas mãos de poucos.
Para que não haja sombras de dúvida de que esses representantes da
industrialização sabem o que é o melhor, Carnegie afirma que o talento deles
é “demonstrado pelo fato de invariavelmente assegurar enormes recompensas
a seus possuidores”. Dito de outro modo, as pessoas ricas devem ser livres
para ganhar dinheiro seja lá como for, pois, dessa forma, elas costumam
ganhar muito dinheiro, o que por sua vez leva o progresso a todo mundo.
Assim sendo, Carnegie decreta efetivamente o sistema econômico que
produz riqueza fora dos limites daquela discussão. Agora, era hora de se
dedicar à metade do evangelho:
Surge então a pergunta (e se o que dizemos estiver correto, será a única
pergunta com a qual teremos que lidar): qual é o modo mais apropriado de
administrar a riqueza depois que as leis sob as quais a civilização se baseia
lançarem-na às mãos desses poucos?
Ao levar em consideração diversas formas de doar a riqueza, Carnegie
desdenhou as duas abordagens mais usuais: doar aos descendentes e doar
após a morte. A primeira gerava crianças inábeis. A última desperdiçava
muitos anos de ajuda em potencial enquanto se aguardava pela morte do
benfeitor. Na realidade, Carnegie, ao contrário de muitas pessoas ricas de sua
época e de hoje, acreditava em uma tributação fiscal de imóveis punitiva que
incentivaria a filantropia: “De todas as formas de tarifação, esta aparenta ser a
mais prudente.” Caso os afortunados soubessem que boa parte do dinheiro se
dissiparia como o vento após a morte, eles poderiam ser convencidos a doá-lo
a boas causas ainda durante a vida.
Doar ativamente a própria riqueza foi a única abordagem apoiada por
Carnegie, porque a riqueza, em sua opinião, pertencia à comunidade. Mantê-
la era acúmulo. Um homem abastado deve “dar um exemplo de uma vida
modesta, comedida, que evita a ostentação e a extravagância”. A riqueza
remanescente tinha nele um “reles guardião e procurador de seu próximo
desfavorecido”. A acumulação era, assim, semelhante a roubar do povo:
Homens que continuam a acumular grandes fortunas no decorrer de suas
vidas, somas que, se usadas de forma republicana, trabalham para o bem da
comunidade de onde vêm sua maioria, devem sentir que a comunidade,
sob a forma do Estado, não pode ser privada do quinhão que lhe é direito.
Aqui, a justificativa da usurpação extrema havia estipulado uma doutrina de
doação extrema. Não é apenas bom doar à gente comum. O dinheiro que não
lhe é necessário e que a gente comum poderia utilizar não é de fato o seu
dinheiro. Carnegie estava propondo uma ideia extremada do direito de ganhar
dinheiro de qualquer forma e da obrigação de distribuí-lo. “É uma imagem
inusitada, aparentemente contraditória”, escreve Levy, o historiador.
“Carnegie, em sua mesa, escrevendo uma carta para seus assessores da
Carnegie Steel Company, implorando para que reduzissem os salários e,
depois, escrevendo outra a um de seus assessores filantrópicos para doar sua
riqueza (os lucros obtidos com a redução desses salários) por livre e
espontânea vontade.”
Logo, para Carnegie, a desigualdade era um breve estado entre os períodos
de usurpação e caridade. Retribuir, escreveu ele, é “o verdadeiro antídoto
para a temporária e desigual distribuição de renda, a reconciliação do rico
com o pobre, um reino de harmonia”. Tal ideia de desigualdade temporária é
crucial: para ele, a desigualdade é transitória — uma necessidade do
progresso, mas, em breve, reversível graças aos frutos desse progresso.
Carnegie parecia prever a objeção de que os desfavorecidos não precisariam
de tanta ajuda se fossem mais bem remunerados. Ao transbordar
paternalismo, ele defendia a necessidade da desigualdade temporária. “Essa
riqueza, passando pelas mãos de privilegiados, é uma força muito mais
potente para a elevação da humanidade do que se fosse repartida em
pequenas frações a toda a população.” Por “pequenas frações” ele deixa claro
nas frases que se seguem que estava se referindo aos salários. Citando o caso
de Peter Cooper — um industrial que virou filantropo e fundador homônimo
da Cooper Union em Manhattan — Carnegie escreveu:
Muito desse recurso, partilhado em pequenas quantidades entre o povo,
seria desperdiçado na indulgência dos apetites, parte dele em excesso, e é
questionável se a parcela aplicada em um melhor uso, o de acrescentar
comodidades ao lar, produziria resultados comparáveis aos alcançados
pelos esforços que foram, e ainda são, empreendidos pelo Instituto Cooper
de geração em geração.
Carnegie acreditava que ele não podia pagar bem aos operários, não podia
se lamentar a respeito das horas trabalhadas em excesso, pois isso
prejudicaria o interesse público. Todavia, poderia retribuir aos operários. Ele
apoiou financeiramente bibliotecas, museus e outros serviços públicos, para o
eventual deleite e educação de seus trabalhadores malremunerados. Escreveu:
Esse é o problema entre ricos e pobres a ser resolvido. As leis da
acumulação permanecerão livres, bem como a da distribuição. O
individualismo perdurará, mas o milionário será um mero gestor do pobre,
a ele será investida a responsabilidade sobre grande parte do patrimônio da
comunidade, administrando por ela com mais competência do que ela
conseguiria fazer por si mesma.
Este é o comprometimento, o cessar-fogo, destilado gota a gota: deixe-nos
em paz no mercado competitivo e cuidaremos de você depois que os
vencedores levarem tudo. O dinheiro será gasto de maneira mais prudente
com você do que seria gasto por você. Você terá a oportunidade de desfrutar
nossa riqueza, da maneira que achamos que deveria desfrutá-la.
Esses trechos apresentam os princípios quase constitucionais que um dia
regeriam a caridade no Mercado Global: a ideia de que a benevolência a
posteriori justifica o vale-tudo no capitalismo; que a indiferença e a injustiça
da exploração implacável do mercado são perdoadas pela filantropia tardia;
que as doações não devem apenas amparar os menos favorecidos, mas
também, e o mais importante, assegurar-lhes que a melhor cura para qualquer
mal é justamente aquilo que o causou — e, acima de tudo, que a
generosidade é um substituto e um meio de se eximir da necessidade de um
sistema justo e equitativo, e de uma distribuição mais equilibrada de poder.

ento e vinte e sete anos após a publicação do ensaio de Carnegie, todos os


C presentes em um evento de gala beneficente, em Nova York, pareciam ter
internalizado seus princípios basilares. A organização do evento arrecadava
dinheiro para ajudar os nova-iorquinos necessitados, vulneráveis e pobres a
encontrar trabalho, moradia, qualificações, rede de apoio e segurança. A noite
inteira era dividida em dois tipos de apresentações no palco. Os jovens
beneficiados, principalmente negros e pardos, dançam repetidamente para
seus benfeitores. Então, entre os espetáculos, homens brancos mais velhos se
apresentam a fim de elogiá-los, conversar e serem aplaudidos por sua
generosidade com o programa.
A maioria desses homens trabalha no setor financeiro. Eles estão entre os
usurpadores corporativos que, buscando maximizar os lucros ao reduzirem os
custos, ajudaram a pôr fim à estabilidade de emprego. Eles são os senhores da
gentrificação, que impuseram os altos preços dos imóveis e fizeram com que
fosse difícil para famílias como as dos jovens que dançavam manter um meio
de subsistência na cidade. Eles são os favorecidos pelas leis tributárias que
lhes concedem benefícios fiscais, contribuindo para manter os cofres públicos
vazios e para a escassez de recursos das escolas frequentadas pelos pobres,
levando-os às ruas e, ocasionalmente, quando dão sorte, aos braços de uma
instituição de caridade. Mas esses homens têm sido generosos, e, em troca de
sua generosidade, esses problemas nem sequer vêm à tona. Ninguém dirá o
que deve ser dito: que essas vidas precárias poderiam ser menos precárias se
o tipo de homem que doa dinheiro a esse programa o investisse de modo
diferente, administrasse as empresas de forma diferente, gerisse a riqueza de
maneira diferente, fizesse doações aos políticos de modo diferente, fizesse
lobby de maneira diferente, pensasse diferente em vez de fingir que mora na
Flórida com o intuito de pagar um imposto menor enquanto vive em Nova
York — em outras palavras, se eles abrissem mão de qualquer coisa que lhes
é estimada. Era apenas uma noite, em uma cidade, mas que retratava o acordo
de imunidade profundo e velado: a generosidade confere aos vencedores a
prerrogativa de fugir a essas indagações.

E mWalker
sua trajetória rumo ao alto escalão do mundo filantrópico, Darren
participou de mais eventos beneficentes de gala desse tipo do que
poderia contar, e aturou sua cota de gente branca e rica lhe dizendo coisas
agradáveis a seu respeito, enquanto se recusavam a enxergar uma relação
entre suas vidas e a vida quase inescapável da qual ele havia escapado. E essa
era uma forma de explicar a carta que ele escreveu contestando o acordo de
imunidade, de esclarecer como ele teve o desplante de quebrar o tabu.
“Vejam só o Darren”, ele imitava seus admiradores murmurando
gentilmente. “Por que todos não podem ser como Darren? Quero dizer, olhe
para o Darren. A mãe dele era solteira. Ele insistiu e frequentou a escola.
Você sabe, né, o pai dele era ausente. Ele nem sabia quem era o seu pai.” A
pergunta sobre sua vida que não queria calar para os afortunados era: por que
todos os pobres não podiam terminar como Darren Walker?
“Parte do meu trabalho”, disse-me ele um dia no escritório da Fundação
Ford, “é lembrá-los por que eles não podem ser todos iguais a mim — o que
fizemos para dificultar o caminho de pessoas como eu, com a minha origem,
com o meu histórico, de modo que não conseguissem chegar aonde eu
cheguei — e como, sistematicamente, estamos impossibilitando que histórias
como a minha continuem a surgir nos próximos anos, porque estamos
fazendo coisas lamentáveis agora. Sinto que preciso fazer isso. Eu apenas
sinto que preciso fazer isso”.
Porém esse desejo levou tempo para aflorar, porque, a princípio, Walker
não era um verdadeiro crítico do empreendimento filantrópico, e sim o
próprio garoto-propaganda de suas benfeitorias. Ele nasceu em Louisiana, no
Hospital Beneficente de Lafayette. As famílias ricas eram donas de seus
próprios hospitais e clínicas, e os brancos e afro-americanos pobres eram
atendidos por instituições de caridade. A mãe de Walker se encontrava em
uma situação cruel e difícil: uma mãe negra “em uma cidade pequena, não
casada, teve dois bebês com esse homem e, obviamente, ele não se casaria
com ela”, afirma Walker. Sua mãe, “que era maravilhosa, desafiada de
inúmeras formas, enxergava longe, tinha um objetivo” e percebeu: “Eu
preciso me mudar.” Ela se mudou com a família para a cidade de Ames, em
Liberty County, no Texas — a “cidade negra do condado”, como Walker
disse.
A mãe de Walker estudou para se tornar auxiliar de enfermagem e logo
obteve seu certificado. Ela sempre trabalhou, mas não era o bastante para
mantê-los a salvo da pobreza. Ele se recorda de estar na minúscula casa em
que moravam e o pessoal da empresa de energia elétrica ou da operadora de
telefone aparecer para interromper o serviço, por causa da conta vencida.
Então, Walker negociava com eles, pedia um prazo de carência ou tempo
suficiente para que sua mãe saísse, compensasse o cheque de seu salário e
retornasse.
Um dia, uma mulher apareceu em sua casa perguntando se poderia cadastrar
Darren em um programa chamado Head Start. Sua mãe concordou, sem saber
muito a respeito. Naquele momento, a caridade abençoava Walker mais uma
vez, mas um tipo de caridade que funcionava como um modesto
complemento à ação do governo. A partir da década de 1920, os Rockefeller
e outros benfeitores haviam custeado pesquisas sobre crianças. Grande parte
desses estudos eram efetuados na Estação de Pesquisa de Bem-estar da
Universidade de Iowa, onde os estudiosos definiram os alicerces da polêmica
ideia de que o sucesso das crianças dependia mais das oportunidades que lhes
eram dadas do que da hereditariedade. Ao longo das décadas, esses
pesquisadores argumentavam sem fazer barulho e às margens da política.
Então, o que começou como caridade se transformou em política pública
quando, em 18 de maio de 1965, o presidente Lyndon B. Johnson esteve no
Rose Garden da Casa Branca e anunciou uma nova iniciativa com o objetivo
de assegurar que “os filhos da pobreza não fossem reféns da pobreza para
todo o sempre”. Dentro de semanas, o governo abriria 2.500 programas para
a pré-escola, com o intuito de atingir 530 mil crianças. A meta era prepará-las
para frequentar a escola no segundo semestre e oferecer tratamento aos
milhares que tinham problemas de saúde. Um dentre o primeiro meio milhão
de inscritos seria Walker.
Ele também usufruiu da generosidade e da sabedoria de uma professora
chamada Sra. Majors, que disse a Walker que ele era talentoso, mas que,
devido ao seu comportamento, corria o risco de ser incluído na sala de
educação especial, para onde o sistema educacional enviava muitos meninos
negros que, dali, seguiam o caminho direto e inevitável para a prisão. A
perspectiva sociológica da Sra. Majors era válida: “Seis dos meus primos
estavam presos”, diz Walker. “Um deles cometeu suicídio na prisão. Todos
eles estavam nesse caminho.” O aviso da Sra. Majors o ajudou a mudar de
atitude.
Seu caminho lhe mostrou o poder das intervenções, grandes e pequenas, que
transformam as vidas das pessoas. Mas houve momentos ao longo de sua
trajetória que o lembraram de que nada muda caso você não mude o sistema
como um todo. Por exemplo, aos 12 anos, por necessidade, ele trabalhou
como ajudante de garçom, para complementar o salário de sua mãe a fim de
manter as contas em dia. (Anos depois, ele contaria aos administradores da
Fundação Ford, que o consideravam um líder em potencial, que o serviço no
restaurante o havia preparado para o cargo mais do que qualquer outro que
ele já teve.) Devido à idade, provavelmente trabalhava ilegalmente e teve
uma experiência profunda e sombria do trabalho. Ele sentiu como era viver à
margem da sociedade humana. Era como se passasse um filme em sua
cabeça, os fatos de longa data, abstratos, em uma performance vívida. “Você
anda por um salão, onde existe excesso e abundância, e pessoas com poder
aquisitivo que têm dinheiro à disposição para sair e comer, e pagar mais do
que a comida realmente vale em uma refeição e beber um bom vinho”, disse
Walker. “E caminha nos arredores desse salão, e você é invisível. É invisível
mesmo quando está retirando os pratos e limpando a sujeira das pessoas.
Você é invisível. Ninguém diz ‘obrigado’. Todos ignoram a sua presença. E
essa experiência, para mim, continua sendo a mais íntima e a mais
importante.”
Ainda assim, ele acreditou na história norte-americana de que pessoas
excepcionais poderiam trabalhar e trilhar o próprio caminho para escapar da
impotência. Enquanto seus primos entravam e saíam da prisão, Walker
cursou a Universidade do Texas, em Austin, onde se formou em direito.
Começou a trabalhar no escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton de
direito internacional. Depois, foi para a UBS, empresa de serviços
financeiros, onde trabalhou por sete anos no departamento de mercado de
capitais. Ele deixou o cargo e foi ser voluntário durante um ano no Harlem,
testemunhando a influência da elevação social. A experiência de ajudar
famílias como a dele o emocionou. Ele ingressou na Abyssinian
Development Corporation, uma organização de desenvolvimento comunitário
do Harlem, e se concentrou na construção de habitações sociais e de uma
escola pública. Depois, foi para a Fundação Rockefeller, onde um colega lhe
disse que ele não era o “tipo Rockefeller” comum, não porque ele era negro
— já eram novos tempos —, mas porque era gay. Por fim, conseguiu o
emprego na Ford, supervisionando um portfólio de investimentos de bilhões
de dólares.
De acordo com sua posição oficial e seu magnetismo esfuziante, sua
irreverência cautelosa, seu jeito de dar atenção a todos em uma sala, ele alçou
voos para o alto escalão da sociedade de Nova York. Ele era membro do
Conselho de Relações Exteriores. Fazia parte do conselho do balé da cidade,
da Rockefeller Philanthropy Advisors e da Friends of the High Line. Seu
nome estava na boca dos endinheirados, como se todos fossem seus amigos e
o conhecessem. Você sabe, Darren estava dizendo outro dia… Darren e eu
estávamos em um painel, e… Um dia, ele estava em um jantar de Estado da
Casa Branca com o presidente chinês; no outro, estava no Vale do Silício
ajudando Mark Zuckerberg a ponderar com atenção suas doações.
À medida que Walker se estabelecia no mundo da grande filantropia, os
avisos constantes de que o seu empenho e o de seus colegas não estavam
surtindo efeito eram claros. Uma noite, ele estava em um evento de gala
quando recebeu uma mensagem de sua irmã com fotografias do funeral de
sua tia Bertha. Walker percebeu que em uma das fotos estava seu primo. Ele
vestia um macacão prisional e um homem branco desconhecido estava
parado atrás dele. Walker respondeu: “O que é isso?” Ela respondeu que, na
Louisiana, às vezes eles deixam você sair da prisão para o funeral de um
parente. Você paga uma taxa, e um policial pode acompanhá-lo. Em outro
dia, outra mensagem, outro funeral. Um primo diferente de Walker havia
falecido. A família do primo não tinha dinheiro e, portanto, a mãe de Walker
arcou com os custos — usando o cartão de crédito que ele paga para ela.
A desigualdade de sua própria vida ficava cada vez maior com o passar do
tempo, assim como seu questionamento a respeito de sua cumplicidade.
Naquele ano sua remuneração fora de US$789 mil; ele vestia roupas
fenomenais, tinha amigos bilionários, frequentava eventos de gala
majestosos, jantava em restaurantes suntuosos, morava em um condomínio de
luxo no Madison Square Park, agraciado por um abatimento de imposto de
que não precisava. A redução de impostos incomodava Walker; brincava com
a sua culpa. Ele morava entre milionários e bilionários que asseguraram para
si próprios uma isenção tributária para seus apartamentos e para o imóvel de
Walker — dinheiro que poderia ter sido destinado para seus primos e para
todos os outros que ele deixara no Texas. Ele ou qualquer outra pessoa, por
uma questão de ética, abriria mão da isenção de impostos? Claro que não. Por
isso ele começou a sentir necessidade de falar sobre os sistemas. “Por que
vivemos em uma sociedade em que isso pode acontecer?”, perguntava. “E o
que precisamos para solucionar isso? E nós, que somos privilegiados,
devemos nos envolver nessa questão, porque não podemos dizer, por um
lado, ‘Não é um horror essa crise de moradias com preço acessível que temos
em Nova York?’, e depois, por outro, aceitar um sistema que é basicamente
corrupto.”
Ele ponderou: “Eu realmente me questiono sobre meu próprio privilégio e
se estou à vontade com ele.” Disse que sua culpa “definitivamente me
incomoda todo santo dia”.
Os cientistas sociais falam de “créditos de idiossincrasia”, um tipo de
recurso conquistado por um líder que lhe permite, de vez em quando, inovar
ou até mesmo bater de frente com as normas do grupo. Walker estava
trabalhando arduamente a fim de arrecadar créditos. “Conforme você sobe os
degraus rumo ao topo, é necessário ser sutil e escolher suas batalhas”, disse.
Agora, na Ford, ele chegara ao topo. “As pessoas retornam minhas ligações.
Não preciso visitar Bob Rubin e Roger Altman. Eles é que vêm me ver na
Fundação Ford.” De fato, os dois homens, que haviam entrado e saído dos
mais altos patamares governamentais e financeiros por décadas, tinham
acabado de sair de seu escritório.
A nova posição de Walker o levava a se questionar sobre o que poderia
fazer a respeito, como poderia “alavancar” sua posição no interior desses
círculos com o objetivo de ajudar aqueles que deixara para trás, do lado de
fora. Era a isso que ele se referia quando, durante sua entrevista para a Ford,
os diretores lhe perguntaram: “Que tipo de presidente você será?” E ele
respondeu: “Gostaria de usar a plataforma de ser presidente da Fundação
Ford para questionar a fundo as estruturas, sistemas e práticas culturais em
nosso país, que aumentam as possibilidades da desigualdade em nossa
sociedade, e ainda mais da exclusão e da marginalização das pessoas,
principalmente as pessoas de baixa renda e negras.”
Walker conhecia o tipo de mundo pelo qual desejava lutar e sabia que havia
muitas formas diferentes de empreender essa luta. Uma delas era se retirar
dos patamares estratosféricos aos quais ascendera e abandonar o que ele
chamava de “conjunto de pessoas que viajam mundo afora, indo de Davos a
Bellagio e a Aspen, conversando sobre como erradicar a pobreza”. Walker
lutava com a “contradição disso” e, no entanto, também era realista sobre
quem ele era, uma mistura de ajudante de garçom enraivecido e um
banqueiro do UBS. O que poderia fazer, concluiu, era persuadir os
vencedores que o deixaram entrar no mundo deles. Poderia convencê-los de
que muitas das histórias que contavam a si próprios e a outrem não eram
verdadeiras, e que essas falsas narrativas tiveram consequências desastrosas.
Uma vez que essas histórias viessem à tona, talvez um novo debate a respeito
da igualdade e uma sociedade justa fosse possível. Talvez eles enxergassem
as características de autopreservação em muitas de suas abordagens com
relação à mudança social. Talvez.

carta de Walker foi disponibilizada na internet em outubro de 2015. Ela


A começou a repercutir em todo o mundo filantrópico; algumas pessoas
recebiam o mesmo e-mail de três ou quatro pessoas diferentes. O escrito
abalou o universo de caridade e as pessoas começaram a falar.
O novo evangelho começou onde tinha que começar, com Carnegie.
Segundo Walker o texto era “o estatuto intelectual da filantropia moderna, e
seus preceitos básicos continuam sendo os alicerces das doações dos EUA e,
por sua vez, influenciaram bastante uma era de empreendimentos
filantrópicos em todo o mundo”. No cerne do artigo de Carnegie, segundo o
entendimento de Walker, estava a ideia de desigualdade extrema como “uma
condição inevitável do sistema de livre mercado” e da filantropia como uma
solução eficaz.
Você pode até imaginar um executivo da KKR lendo e concordando. É isso
mesmo, exatamente, inevitável. Mas então Walker toma um rumo diferente. O
mundo filantropo, escreveu ele, precisava “reconhecer e enfrentar
abertamente a pressão inerente a um sistema que perpetua as diferenças
colossais de privilégio e depois delega aos privilegiados a tarefa de melhorar
o sistema”. Aqui Walker já estava desmantelando o pacto de Carnegie. Ele
estava contestando a ideia de os ricos serem os melhores e os legítimos
dirigentes do excedente da sociedade. Estava se recusando a limitar sua
análise ao que acontece depois que as fortunas são feitas no mercado. Ele
estava interessado em como essas fortunas são feitas e quais escolhas as
possibilitaram. “Quais forças sistêmicas impulsionam a própria desigualdade
cujas consequências procuramos atenuar?”, perguntava.
Walker sugeriu que “estamos colidindo contra os limites do que podemos
fazer com uma interpretação do século XIX da doutrina fundadora da
filantropia”. E ele alega que Martin Luther King Jr. pode apresentar um
complemento útil às ideias impregnadas de Carnegie, com seu apelo para
exaltar a filantropia sem ignorar “as circunstâncias de injustiça econômica
que fazem a filantropia necessária”.
King sustentava que as circunstâncias da injustiça econômica, quando
analisadas, tinham relação com as pessoas no poder, e que a verdadeira
generosidade poderia sugerir a expropriação, e não somente a disseminação
tardia de parte do que havia sido usurpado. A desigualdade, à luz de
Carnegie, era uma consequência natural do progresso. A economia se
transforma, inventam-se novas tecnologias, e alguém descobre como tomá-
las, sua riqueza dispara e as outras pessoas são deixadas à mercê de suas
humildes cabanas. Walker adicionou ainda mais complexidade a esse
panorama ao argumentar que “a desigualdade é edificada sobre antecedentes
— condições preexistentes que variam desde o preconceito enraizado e
preconceitos históricos de cor, gênero e etnia a políticas tributárias retroativas
que definem cumulativamente os sistemas e estruturas que possibilitam que a
desigualdade se intensifique”. Ele alegava que as pessoas não eram
abandonadas e deixadas de fora porque falharam na tentativa de usufruir da
mudança. Muitos já nascem amaldiçoados por quem são, ou seus pais ou seus
tataravós eram, devido ao lugar onde vivem, sua cor ou deficiência — e por
causa das escolhas políticas que a sociedade fez a respeito de como tratá-los.
Isso, na visão de Walker, mostrava a importância de ir além da ideia de
Carnegie de desigualdade temporária como preço do progresso. Os ricos
precisavam se perguntar: “O campo de atuação em que acumulei minha
riqueza é justo? O sistema privilegia pessoas como eu, de um modo que
potencializa as minhas vantagens?” Os ricos eram os guardiões transitórios
dos frutos do progresso, como Carnegie lhes havia apresentado, ou
acumulavam o progresso como sua herança?
Walker defendia que a sociedade deveria influenciar não apenas o que
acontece com as grandes fortunas, mas também como essas fortunas são
feitas. Sem isso, em suas narrativas, o filantropo luta contra si mesmo:
perpetuando, e até piorando, de dia, o mesmo sofrimento que ele procura
aliviar após o anoitecer.
Os privilegiados, prosseguia Walker, agora se beneficiam da vantagem
adicional de ter sua linguagem e mentalidade conquistando outras esferas,
incluindo o mundo da caridade. Eles não desfrutam somente do privilégio de
ter casas e carros bons; hoje em dia também influenciam o modo como os
problemas públicos são resolvidos. “Quando falamos de desigualdade
econômica, podemos reconhecer uma hierarquia sistêmica e tácita em que
tudo está vinculado ao capital. Na maioria das esferas de nossas vidas,
enaltecemos o pensamento monetizado e baseado no mercado em detrimento
de todas as outras esferas e concepções de valor.”
Walker estava demonstrando que o poder dos grandes benfeitores era
perigoso. Fundações como a dele estavam comprometidas por “instintos
paternalistas herdados e estabelecidos”. Os doadores ocidentais costumavam
tratar os beneficiários nos países pobres como sujeitos que recebiam ordens,
como executores, e não parceiros. A grande filantropia precisava melhorar e
“modelar o tipo de igualdade que esperamos alcançar ouvindo, aprendendo e
reerguendo os outros”. Walker escreveu que as fundações — construídas,
como a Ford, por meio da fortuna de pessoas poderosas, muitas vezes
exercendo um poder descomunal — precisavam fazer perguntas difíceis
acerca de sua própria autoridade e se distanciar da própria realidade: “Como
nosso privilégio nos protege de nos envolvermos com as principais causas da
desigualdade e da pobreza que tiram proveito das pessoas?”
Com 2 mil palavras, Walker abalara a plataforma intelectual na qual a
filantropia do Mercado Global se assentava há muito tempo. A publicação da
carta marcou a reconciliação com suas divergências. Tal como Hilary Cohen
e Amy Cuddy, ele havia trabalhado no sistema e se preocupava a respeito,
discutia como se posicionar em relação a ele, se deveria se calar, se afastar ou
contestá-lo. A carta só fazia a diferença porque ele havia trabalhado no
sistema por tempo o bastante e bem o bastante para ascender à presidência da
Fundação Ford. Porém a carta poderia apenas ter sido escrita por um homem
que conhecia o lado errado desse sistema antes de chegar ao patamar
conquistado, e que se recusou a permitir-se desfrutar da escalada sem também
torná-la construtiva.

A limusine Lincoln serpenteou abrindo caminho por entre o tráfego intenso


do meio-dia e chegou à Third Avenue, enquanto Walker pensava na
abordagem apropriada para a KKR. A natureza de seu fardo fora
transformada em virtude da divulgação de seu novo evangelho. Agora que ele
havia proferido uma das verdades mais constrangedoras de sua área de
atuação, sua tarefa mudara: era permanecer no jogo, escutar atentamente e
contestar seus amigos plutocratas sem assustá-los.
À medida que a limusine avançava mais um pouco, parava e avançava
novamente, Walker refletia sobre a resistência desses amigos — os pedidos a
fim de que “parasse de reclamar insistentemente sobre a desigualdade”, e
que, em vez disso, falasse de “oportunidade”. Ele se perguntava o que
queriam dizer aquelas críticas. Será que essas pessoas abastadas estavam em
sintonia profunda com os seus ideais, querendo o mesmo tipo de sociedade
que ele desejava, mas preferiam uma linguagem mais delicada e convidativa?
Ou elas queriam coisas completamente diferentes?
De início, ele as defendia, revelando a franqueza que havia conquistado a
confiança delas ao longo dos anos. Talvez não usassem a sua linguagem da
desigualdade, alega, porém “elas diziam: ‘Não, eu realmente quero um
mundo onde existam oportunidades’”. Ele compreendia o desconforto das
pessoas diante da palavra “desigualdade” e por que alguns de seus amigos
sentiam que ele estava “perturbando-os”. Isso acontecia porque, na visão de
muitos vencedores que ele conhecera, o relato deles não tinha ares de
privilégio, e sim de luta. “Eu não sou nenhum privilegiado”, ele os imaginava
dizendo. “Estou me matando de trabalhar. Estou ralando aqui para convencer
esses babacas, tentando levantar dinheiro com eles, ou tentando vender
minhas coisas, ou seja lá o que for. Então não me venha com essa de que sou
privilegiado. Acordo todos os dias as 4h da manhã, pego o trem de Rye para
Nova York, e isso, e aquilo, e aquilo outro.”
Logo depois, ele reconsiderou sua própria generosidade. “Acho difícil,
muitas vezes, para eles desejarem o que mesmo que eu”, disse. “É difícil
conciliar, pois o que eu quero significa que eles teriam que abrir mão de
alguma coisa. E, assim, o X da questão é que, a fim de reduzir a
desigualdade, precisamos falar sobre redistribuição. Temos que falar sobre
equidade. E isso vai impactá-los.” O que ele queria, e passara bastante tempo
galgando a oportunidade de pedir, era a restrição do poder de pessoas como
eles. Queria que os ricos pagassem impostos mais altos. Queria que
desistissem da sua seleção hereditária nas principais universidades. Disse:
“Quando todos os meus amigos querem falar de educação, você chega e diz:
‘Vamos falar sobre a seleção hereditária. Quando falamos de ações positivas,
estamos falando mesmo de abrir mão de usar nossas relações familiares para
entrar na universidade; não deveríamos nos livrar disso?’ Nem pensar! As
pessoas vão responder ‘De jeito nenhum’.”
Mas talvez o que mais preocupava seus críticos era o ponto de vista de
Walker de que o enriquecimento tinha que mudar. Uma coisa era falar que as
pessoas ricas precisavam pagar impostos mais altos e parar de matricular
furtivamente seus filhos em Harvard; a outra sugeria, como ele agora o fazia,
que o próprio setor com o qual estava indo se reunir era explorador. “Um dos
principais problemas das empresas de capital privado não tem a ver com o
que elas são, e sim com a eficiência e a extração de valor das empresas de seu
portfólio. Ou seja, isso se traduz em gerar mais produtividade com menos
despesas. Então, basicamente, demitem as pessoas ou as dispensam
temporariamente”, afirma Walker. “Sabemos que a produtividade dos últimos
20 anos não beneficiou os trabalhadores. Sua remuneração não aumenta.”
Esses recursos foram “drenados” e agora aparecem como rendimentos para
empresas como a KKR. Boa parte desse dinheiro acabará virando caridade,
aliviando a dor que ajudaram a infligir.
Se era isso que Walker pretendia dizer na KKR, sem sombras de dúvidas
seria um dos almoços mais movimentados de seus convidados.
A despeito de suas ideias, ele tinha a chance rara de conseguir convencer
um público-alvo como aquele, porque sabia conversar com eles e porque não
acreditava que fossem pessoas más. Ele não as difamava. Acreditava que
estavam aprisionadas, como muitos no Mercado Global, a um dogma
ilusório. Walker o explicava: “Você sai mundo afora e ganha o máximo de
dinheiro possível e faz tudo o que estiver ao seu alcance para o capitalismo
funcionar; e depois, você é um filantropo. É uma sequência
compartimentalizada.”
O que ele aprendera ao observar os endinheirados era como esse dogma
fazia com que se sentissem, com relativa facilidade, pessoas boas.
“Compartimentalizar é um meio de lidar com as coisas”, disse, na parte de
trás da limusine. “Portanto, com certeza, eles sabem das coisas, eles veem
isso todo dia e devem, caso tenham algum senso moral, ficar consternados”.
Porém essas pessoas afirmam a si mesmas que “no meu tempo livre, estarei
no conselho daquela escola no Harlem; ou vou orientar esses três meninos
negros em Bed-Stuy, até eles ingressarem na Universidade de Yale”. Isso faz
com que se sintam cidadãos decentes. “O problema disso”, segundo Walker,
“é que você vai estagnar, inclusive, seu senso moral e sua humanidade, que o
levariam a exigir mais de si próprio e do sistema”.

P oucas famílias na vida norte-americana moderna personificam tudo o que


Walker estava abordando como os Sackler. Eles são uma das famílias
mais ricas do país e suas vidas se cruzam com a de Walker em diversos
caminhos da galáxia filantrópica: fizeram doações para as mesmas
organizações; Walker recebera um prêmio de um museu no qual a curadora
era Elizabeth Sackler. Os Sackler eram praticamente o antigo evangelho de
Carnegie encarnado: doe e faça caridade de forma honrosa, previdente,
abundante e, em troca, espere que ninguém o questione sobre as origens do
dinheiro e do sistema em voga.
Os irmãos Sackler — o pai de Elizabeth, Arthur; Raymond; e Mortimer —
eram médicos e cofundadores de uma empresa farmacêutica que passaria a se
chamar Purdue Pharma. Eles fizeram doações generosas ao Metropolitan
Museum of Art (que inaugurou um pátio Sackler como resultado), ao
Guggenheim e ao Museu Americano de História Natural, em Nova York; ao
Museu de Arte Asiática do Smithsonian Institution em Washington, D.C.,
que exibia “alguns dos mais importantes jades e bronzes chineses antigos do
mundo”; ao Tate Gallery e ao Royal College of Art, em Londres; ao Louvre,
em Paris; ao Museu Judaico, em Berlim; às Universidades de Columbia,
Oxford, Edinburg, Glasgow e Salzburgo; e à Universidade de Medicina de
Tel Aviv.
Os irmãos não somente fizeram doações de acordo com seus recursos
pessoais; a empresa deles era admiravelmente benevolente nas comunidades
em que operava. Oferecia subsídios financeiros a grupos locais com o intuito
de “incentivar o desenvolvimento saudável da juventude, ao reduzir
comportamentos de alto risco, como o abuso de substâncias”. Ajudava
organizações que “melhoram a qualidade de vida em nível nacional e em
nossas próprias comunidades.” Patrocinava programas de educação para
“ajudar os profissionais da saúde a reconhecer e reduzir o abuso de
medicamentos”. À sombra de sua matriz em Connecticut, financiou o
Stamford Boys & Girls Club, que prestava serviços aos desabrigados; uma
biblioteca; o Stamford Palace Theatre; o Connecticut Ballet; a Stamford
Symphony; a Stamford Chamber of Commerce; o Business Council of
Fairfield County; o Museu Stamford e o Nature Center; Maritime Aquarium;
a United Way; e a Making Strides Against Breast Cancer.
Nos núcleos de poder e influência dos Estados Unidos e do mundo, era
difícil evitar o legado beneficente dos Sackler. Contudo, Walker agora
levantava uma questão para saber se os benfeitores eram obrigados não
somente a contribuir com soluções, como também a prestar contas a respeito
de seu papel em ocasionar problemas.
Nos negócios, os Sackler haviam se envolvido em práticas que, de início,
despertaram desconfiança e, por fim, criaram vários problemas judiciais.
Arthur Sackler tinha, segundo o New York Times: “Total mérito (alguns
diriam culpa) por elaborar muitas das técnicas de marketing mais ambiciosas
da indústria farmacêutica — por exemplo, realizar conferências para médicos
nas quais os participantes aprendiam sobre a eficácia dos medicamentos da
empresa que a patrocina.” Esse legado de publicidade agressiva de
medicamentos impactou a divulgação de muitos medicamentos diferentes,
mas foi sobretudo expressivo para a Purdue Pharma e suas empresas afiliadas
— e para a sociedade norte-americana, no caso de um analgésico chamado
OxyContin, que começou a ser vendido em 1996. O OxyContin é um
analgésico narcótico potente que proporciona até 12 horas de alívio contra
dores severas. A princípio, era comercializado como um medicamento
revolucionário, com uma fórmula de ação prolongada que o tornava menos
propenso a estimular vícios e abusos.
“Essa alegação”, relata o Times, “tornou-se o elemento-chave da campanha
de publicidade mais agressiva já empreendida por uma empresa farmacêutica
para um analgésico narcótico”. Além dos vinhos e jantares nas conferências,
os profissionais de marketing do OxyContin, incluindo a Abbott
Laboratories, parceira de Purdue, eram habilidosos em sua busca por médicos
— inclusive no caso de um cirurgião ortopédico que não perdia tempo com
os representantes dos medicamentos, até que descobriram seu ponto fraco, de
acordo com o STAT, uma publicação médica. “As enfermeiras e os
funcionários do médico nos disseram que a melhor forma de chamar a
atenção dele e estreitar um relacionamento era por meio de junk food”,
afirmaram os representantes do medicamento em uma nota divulgada pelo
STAT. Mais que depressa, seguiram esse conselho. Na semana seguinte, um
representante da Abbott apareceu no consultório, segundo o STAT, com uma
caixa de donuts e outras guloseimas. Os doces foram dispostos de um modo
especial que soletrava a palavra “OxyContin”. Desta vez, os representantes
conseguiram a atenção do médico. “Depois disso, toda semana o pessoal de
vendas da Abbott visitava o médico para pedir que ele trocasse o
medicamento de pelo menos três pacientes pelo OxyContin”, relata o STAT.
A Purdue também seguiu uma estratégia de promover o OxyContin entre os
clínicos gerais, que costumavam ter a desvantagem (ou a vantagem,
dependendo do seu ponto de vista) de ter menos treinamento que
especialistas, como cirurgiões ortopédicos, no tratamento de dores graves e
na identificação de sinais de abuso de analgésicos por parte dos pacientes. E,
é claro, existiam muito mais clínicos gerais do que médicos especializados.
Esse mutirão gigantesco de publicidade do OxyContin transformou a Purdue
de uma pequena fabricante de medicamentos, em meados da década de 1990,
em uma empresa com um faturamento de quase US$3 bilhões em vendas, em
2001. Quatro quintos dessas vendas eram de OxyContin.
O Oxy, como veio a ser chamado, era uma nova arma poderosa contra a dor,
mas também se tornou rapidamente uma droga que promovia a dependência
química. O uso era por ingestão, o que possibilitava a ação prologada.
Contudo, o Times publicou: “Tanto os toxicodependentes habituais quanto os
iniciantes, incluindo os adolescentes, logo descobriram que mastigar um
comprimido de OxyContin ou esmagá-lo e depois cheirar o pó ou injetá-lo
via intravenosa produzia uma sensação tão poderosa quanto a heroína.” E
assim o OxyContin começou a ser responsabilizado por um número crescente
de overdoses e mortes, concentradas nas áreas rurais relegadas à própria
sorte. Essas mortes, que ocorreram na virada do milênio, acabariam sendo os
primeiros sinais do que, anos mais tarde, viria ser chamado de “epidemia
nacional de opioides”. Conforme o New Yorker denunciava: “Embora muitas
overdoses fatais tenham sido consequência de outros opioides além do
OxyContin, a crise foi inicialmente desencadeada por uma mudança na
cultura da prescrição — mudança esta cuidadosamente planejada pela
Purdue.” Posteriormente, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças
apresentariam um relatório informando que as mortes por overdose de
opioides prescritos quadruplicaram entre 1999 e 2014, ceifando 14 mil vidas
naquele último ano. Nesse mesmo ano, quase 2 milhões de norte-americanos
“abusaram ou dependiam de opioides prescritos”, e um quarto dos pacientes
que usaram os medicamentos para fins não relacionados ao câncer lutavam
contra o vício. Os opioides enviavam mais de mil pessoas por dia para as
salas de emergência. E, em fóruns online, as pessoas trocavam informações a
respeito da melhor forma de “curtir um barato” sem se matarem:
RE: MASTIGAR OU ENGOLIR INTEIRO?
apenas tenha em mente que a sua tolerância aumenta rapidinho!!!
Comi 2 comprimidos de 80mg desde as 10 da manhã e cheirei 1 às 10 da noite.
Isso depois de 3 anos de experiência por sofrer de 2 problemas crônicos que exigem
tratamento para dor, mas 2,5 anos ou um pouco menos já são suficientes. Mas eu me
descontrolo nos finais de semana, e varia bastante se pratico atividades físicas, como
caminhar, etc…
Tomem cuidado. Eu comecei com 2 compridos de 20mg por dia…… e agora, @
300mg/por dia.
Você não vai querer passar pela abstinência se ficar sem comprimido, cara. Você nem
sabe o que passei no ano passado no dia 24 de dezembro, eu estava sem tinha 1
semana e fiquei muito, muito mal. Nem queira saber.

Às vezes, ninguém percebe que um problema social dessa envergadura está


batendo à porta. Este não era o caso. Em 2001, quando as vendas do
OxyContin e de outros opioides dispararam, a equipe do plano de saúde
estadual na Virgínia Ocidental percebeu algo estranho. À medida que a
seguradora recebia a documentação quando algum dos funcionários falecia,
incluindo o laudo do médico-legista sobre a causa mortis, começou a notar
um número crescente de falecimentos atribuídos à oxicodona, o ingrediente
ativo do OxyContin, de acordo com a STAT. Eles já conheciam o
medicamento, porque a prescrição de OxyContin entre seus clientes
deslanchava; uso que passou de US$11 mil em 1996 para US$2 milhões em
2002.
Os funcionários se manifestaram mais do que depressa. Eles defendiam
regulamentações, exigindo que os médicos obtivessem autorização prévia
antes de prescrever receitas de OxyContin, com objetivo de restringir o uso
do medicamento a pessoas que realmente precisavam e mantê-lo longe dos
dependentes conhecidos e de outras pessoas com histórico de abuso. Porém
essas tentativas sofreram a resistência violenta da Purdue Pharma. O STAT
divulgou que impedir qualquer tentativa de restringir as prescrições de
OxyContin se tornou questão de “prioridade máxima” para a Purdue em
2001. Um memorando obtido por essa agência de notícias, descrevendo os
objetivos anuais da operação da empresa na Virgínia Ocidental, identificou:
“Parar qualquer tentativa de pré-autorização para o OxyContin.” Outro
memorando mencionava uma reunião com funcionários da Virgínia
Ocidental a fim de “interromper” quaisquer tentativas de sua parte com o
intuito de diminuir a prescrição do medicamento.
Como um ex-funcionário da Purdue explicou ao STAT: “Queremos evitar
qualquer pré-autorização de qualquer medicamento.” O funcionário
empreendia esses esforços em prol de uma aversão generalizada à
regulamentação. A Purdue encontrou um subterfúgio inteligente usando
empresas intermediárias, conhecidas como farmácias, e beneficiando seus
gerentes para assegurar que os moradores da Virgínia Ocidental pudessem
receber o OxyContin sem pré-autorização. A empresa fez um acordo a fim de
pagar aos gerentes beneficiados uma “bonificação” caso prescrevessem o
medicamento sem essa garantia adicional.
Publicamente, a Purdue trabalhou para construir uma imagem que retratasse
sua conduta benevolente e a de seus proprietários — que a empresa existia
para ajudar as pessoas e estava tão interessada quanto o Estado em prevenir
abusos ou efeitos nocivos. Ainda assim, segundo as petições apresentadas
pelos promotores:
Ao contrário da imagem de prestabilidade e cooperação que a Purdue tenta
passar, seus funcionários tentavam ativa e secretamente impedir a Virgínia
Ocidental de sancionar qualquer controle sobre a venda do OxyContin.
O Condado de McDowell, Virgínia Ocidental, acabou se revelando “o
famoso canário de mina de carvão, no que se refere à emergente crise
nacional de opioides”, afirmou o STAT. Em 2001, quando os funcionários da
seguradora falaram pela primeira vez, o estado como um todo ainda relatava
um índice de 6 mortes por overdose de opioides a cada 100 mil habitantes.
No entanto, o Condado de McDowell já relatava 38 mortes a cada 100 mil, e
essa fatalidade prenunciava o destino da Virgínia Ocidental, que assistiria à
sua taxa de mortalidade mais que triplicar na década seguinte, conferindo ao
estado a maior taxa de mortes por overdoses e prescrições de analgésicos do
país. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas se os funcionários do
estado não tivessem enfrentado obstáculos para regulamentar as prescrições
do OxyContin. O xerife do Condado de McDowell, Martin West, disse aos
repórteres visitantes: “Ouçam o rádio aqui todas as noites. Os socorristas
saem todas as noites, indo para cima e para baixo, gritando e procurando por
alguém que está tendo uma overdose. É deplorável o que está acontecendo.”
Nesse meio-tempo, enquanto outros servidores públicos em todo o país
começaram a se preocupar com a propensão à dependência e ao abuso da
droga, a Purdue recuou, de acordo com o Times, “alegando que a ação
prolongada do medicamento o tornava menos propenso à dependência do que
os narcóticos tradicionais”. O Departamento de Justiça dos EUA discordava:
“O OxyContin não era o que a Purdue alegava ser”, nas palavras de John
Brownlee, o então procurador federal dos Estados Unidos em Roanoke,
Virgínia. “As afirmações da Purdue de que o OxyContin era menos viciante e
menos sujeito à dependência e uso recreativo eram falsas — e a empresa
sabia disso. As declarações falsas da Purdue contribuíram para um problema
nacional grave em termos de abuso deste medicamento prescrito.” A
divulgação fraudulenta da droga, acrescentou, teve “um efeito devastador em
muitas comunidades na Virgínia e nos Estados Unidos”. Brownlee
apresentou acusações contra a empresa, que em 2007 aceitou um acordo.
Reconheceu que havia comercializado o OxyContin “com a intenção de
manipular ou induzir ao erro” e concordou em pagar US$635 milhões em
multas e outras despesas.
Essa foi uma das maiores multas já pagas em um caso; todavia, foi um mero
inconveniente quando comparada ao quão lucrativo o OxyContin estava se
tornando. Em 2015, a Forbes declarou que a família Sackler era a “mais rica
dentre as recém-ricas” e a adicionou à sua lista anual de famílias abastadas,
com um patrimônio líquido de US$14 bilhões. Ao notar que a família havia
desbancado “famílias conhecidas como os Busch, os Mellon e os
Rockefeller”, a revista perguntou: “Como os Sackler construíram a 16ª maior
fortuna dos Estados Unidos? A resposta simples é: fabricando o opioide mais
popular e controverso do século XXI — o OxyContin.”
Outra resposta a essa pergunta talvez fosse: impedindo os guardiões do bem
público sempre que eles tentavam proteger os cidadãos. Mais tarde, foi
relatado que Brownlee havia recebido um telefonema inusitado na noite
anterior, antes da Purdue se declarar culpada. O chefe de gabinete do
Departamento de Justiça, Michael Elston, ligou para Brownlee em seu celular
e “o pressionou a ir com mais calma”, de acordo com o Washington Post.
Brownlee rejeitou a sugestão de seu superior. “Após oito dias”, afirma o
Washington Post, “o nome dele apareceu em uma lista de membros do
Ministério Público compilada por Elston que as autoridades sugeriram que
fossem demitidos”. Era parte de uma grande tentativa de eliminar promotores
e procuradores inconvenientes no governo de George W. Bush. Brownlee
manteve seu emprego; Elston se perdeu em meio à polêmica da lista vir a
público. E o que havia ocasionado a ligação? De acordo com Elston, seu
chefe, o subprocurador da república Paul McNulty, havia lhe pedido que
ligasse para Brownlee depois de receber um pedido de prorrogação de prazo
do advogado que representava um executivo da Purdue.
Os Sackler eram apenas uma família dentre muitas nos Estados Unidos que
poderia ter sido inspirada pelo ensaio de Walker a analisar o próprio passado.
Walker não estava chamando a atenção deles somente pela conduta, mas pelo
campo de atuação que estavam dominando, o sistema no qual suas vantagens
haviam sido forjadas.
Apesar das informações disponíveis e fáceis a respeito do Oxy e dos
Sackler, o Mercado Global abraçou a família de bons samaritanos e se calou
sobre os malefícios. A descrição comum dos membros da família viria na
forma de uma única palavra: “filantropo”.
A generosidade não pode substituir a justiça, mas aqui, como tantas vezes
no Mercado Global, foi permitido que ela o fizesse. As instituições que se
beneficiaram da generosidade dos Sackler demonstraram pouco interesse em
exigir que eles se redimissem de qualquer papel que poderiam ter
desempenhado no fomento de uma crise nacional. A generosidade costumava
estar em lugares onde pessoas influentes se reuniam, ao passo que a injustiça
costumava estar fora de vista, em lugares como o Condado de McDowell,
cuja narrativa tinha pouca chance de competir com uma manchete sobre uma
doação ao Metropolitan Museum of Art. A generosidade figurava na casa dos
milhões; a injustiça ajudou a construir uma fortuna de US$14 bilhões.
Segundo o New Yorker: “Duzentos mil norte-americanos morreram de
overdoses relacionadas ao OxyContin e outros opioides prescritos”, desde
1999.
Em sua carta, Darren Walker, parafraseando o Dr. King, pediu que os
benfeitores como os Sackler não apenas doassem, mas também “subjugassem
a curva de demanda à justiça”. Não seria nada fácil.

A limusine Lincoln estava entre a 49th Street e a Third Avenue. Walker


estava falando sobre como ele tenta alcançar as pessoas — sejam
filantropos como os Sackler, sejam executivos como os da KKR, seja
qualquer outra pessoa endinheirada e poderosa dos círculos que ele frequenta.
O segredo, disse ele, adotando o uso de frases modernas e amadas, é
“entender o ponto da vida das pessoas” e “não julgar”. Neste instante, fez
uma comparação que evidenciava sua maneira de enxergar as coisas. Quando
ele trabalhava no Harlem, não era nada fácil conseguir com que os pais
levassem as crianças para as consultas médicas. A tentação de julgar e criticar
existia: Estamos aqui tentando ajudá-lo e você nem sequer consegue levantar
do sofá. Walker sabia que essa não era a melhor das abordagens. Sabia que
eles tinham sua própria linha de raciocínio, sua própria história. “Você não
bate na porta e diz: ‘Você é um derrotado. Você é ruim…’ É necessário se
colocar no lugar das pessoas.”
“Esta é a minha visão geral das coisas”, continuou. “E, assim, cada pessoa
está em um ponto da vida” — agora ele estava falando dos demasiadamente
privilegiados — “e elas acreditam que estão realmente praticando o bem,
contribuindo com a nossa economia. Que estão contribuindo com as bases de
tributação. Que estão contribuindo com a filantropia, por meio de suas
próprias doações pessoais e compromissos com os conselhos, e seja lá o que
for. Este é o ponto de vista delas”.
É uma comparação emblemática, porque exemplifica como a ética de não
julgar, elaborada com o intuito de proteger os desprivilegiados, também
poderia servir para proteger os privilegiados. Uma coisa é se colocar no lugar
das outras pessoas quando se trata de uma mãe com problemas de saúde
mental no Harlem, fazendo malabarismos com três empregos, dois filhos e
seus compromissos. Outra, é quando se trata do magnata de uma empresa de
capital privado desfrutando do mesmo não julgamento. Deveríamos
realmente nos colocar no lugar dele, tal como faríamos com um
desprivilegiado?
Acomodado em sua limusine Lincoln, Walker disse que a concentração de
riqueza e poder em nossos dias estava causando “um esvaziamento da classe
média” e uma “grande explosão do populismo, nacionalismo e xenofobia”.
Em todo o mundo, as políticas de ódio e vingança estavam a todo vapor,
“porque as pessoas estão se ressentindo como nunca antes na era moderna”.
No entanto, os ricos não queriam falar sobre isso. Eles queriam falar sobre
oportunidade. “Tudo bem, eu me coloco no lugar deles”, disse Walker.
“Vamos falar sobre oportunidade.”
Ainda assim, irritava-o quando se sentava em uma sala de reunião de um
conselho, ou em uma sala qualquer, e ouvia outro magnata idoso e branco,
que herdara a maior parte de seu dinheiro, explicar o motivo pelo qual “não
se tratava de desigualdade”. Walker disse algo no carro que não falou a esses
magnatas, mas sonhava em fazê-lo: “Você tem permissão para viver em um
mundo onde não precisa enfrentar a realidade.” Ainda assim, insistiu Walker,
em preparação para a KKR: “Vou me colocar no seu lugar.”

uitos no Mercado Global não têm o menor interesse em se questionar


M como seu dinheiro foi ganho, conforme propôs Walker. Todavia, outros
estão dispostos a se questionarem e ainda lutam consigo mesmos com o
objetivo de seguir em frente e escapar às garras de suas próprias
justificativas.
Kat Cole é a diretora operacional da Focus Brands, empresa de capital
privado proprietária da Cinnabon, Auntie Anne’s, Moe’s Southwest Grill,
Carvel e outros fornecedores de alimentos. Diferente de muitos filantropos
cujas fortunas já estavam ganhas, Cole é uma mulher de negócios do ramo
operacional que ainda tem a oportunidade de seguir os preceitos de usurpação
e doação do novo evangelho de Walker. Ao mesmo tempo, sua vida
proporciona um estudo de caso dos motivos e das racionalizações contra as
quais o evangelho se opõe.
Cole começou a trabalhar no Hooters aos 17 anos. Entrou para trabalhar em
uma empresa que algumas pessoas consideram moralmente controversa pela
mesma razão que outros o fazem: sobrevivência. Ela cresceu em Jacksonville,
Flórida, em uma família que inicialmente era de classe média. A casa de seus
pais era a única dentre os familiares com 2 carros na garagem. Eles tinham
empregos administrativos. Muitos de seus parentes moravam em parques de
trailers e dependiam de trabalhos instáveis (ferros-velhos, fábricas,
transportadoras), entravam e saíam da prisão e eram toxicodependentes. O pai
de Cole era alcoolista. Ele ficava fora a maior parte do tempo e não era mais
um marido responsável, deixando sua mãe infeliz e contribuindo para uma
família desequilibrada.
Quando tinha nove anos, sua mãe lhe disse: “Acabou. Não sei como vamos
fazer isso, mas temos que ir embora”. Conforme lembra Cole, que se
orgulhava do próprio pragmatismo, ela nem ficou chateada: “Apenas pensei:
‘Por que você demorou tanto?’” Logo sua mãe seria responsável por uma
família com uma renda bem menor e com um orçamento semanal para
alimentação de US$10 para ela e as três filhas. A dieta da família era
deplorável, baseada em carnes e feijão enlatados e sanduíches sloppy joes. A
mãe de Cole continuou a trabalhar como secretária e ganhava um extra
trabalhando à noite e aos fins de semana. Dentro de alguns anos, ela se
casaria novamente e o lar ganharia mais estabilidade. Porém os anos vivendo
na pobreza moldaram Kat, que passaria sua carreira se questionando acerca
de suas responsabilidades com outrem, desprovidos de sorte ou de boas
opções.
Aos 15 anos, Cole começou a vender roupas no shopping. Em seu primeiro
ano do ensino médio, ela aceitou o emprego no Hooters. No ano seguinte, foi
promovida de recepcionista a garçonete e, com essa nova posição, estava
ganhando o bastante para deixar o trabalho no varejo e ainda economizar para
a faculdade. Embora o restaurante promovesse o corpo das garçonetes como
vantagem de venda e se vangloriasse de ser “deliciosamente cafona, porém
sem frescura”, Cole achava isso empoderador. Lá estava ela, no ensino
médio, e depois na universidade, ganhando até US$400 por turno. (Para que
fique claro, Cole insiste, a despeito de todas as probabilidades e comerciais,
que “a rede de restaurantes nunca promoveu o corpo das garçonetes”, e sim o
“apelo sexual geral”.)
Ela era uma garçonete boa e versátil. Caso a comida precisasse ser servida
em outro andar, ela poderia fazer isso. Se o bartender faltasse, ela poderia
cuidar do bar. Seus gestores perceberam suas habilidades e, quando a
empresa Hooters estava procurando por talentos, seu nome estava entre eles.
Aos 20 anos, passou a trabalhar na gerência da sede da empresa. Cole viajou
mundo afora inaugurando novas franquias. Seu salário e suas atribuições
aumentavam rapidamente ano após ano. Ela era uma estrela em ascensão.
Nos papéis que no futuro viria a desempenhar, ela se tornaria uma espécie
de modelo para aspirantes à liderança feminina, convidada a orientar jovens
mulheres e falar com elas em conferências. Cole desempenhava uma função
complicada, já que estava fazendo tudo isso em nome do Hooters.
De início, ela não via nenhuma contradição entre seu próprio
empoderamento por meio do Hooters e o que a empresa representava. A
cadeia de restaurantes já era parte da cultura de Jacksonville. “Na Flórida,
isso não era nada de mais”, disse ela. O endereço existia desde que Cole era
muito jovem. No ensino médio, era onde todo mundo acabava nas noitadas
de sábado — o pessoal do beisebol, a turma do futebol e as líderes de torcida.
“Não parecia estranho, nem suspeito, não passava a impressão de que eles
estavam explorando as mulheres, porque você ia lá e as meninas estavam se
divertindo bastante. E quando você está no ensino médio e vê todas aquelas
garotas lindas se divertindo, elas estão no controle de suas atribuições, são
basicamente minicelebridades à sua maneira; parecia bastante inspirador na
verdade.” Elas também aparentavam estar mais felizes do que as garçonetes
do Applebee’s.
Além de que, a empresa colocava as mulheres em posições de liderança e, à
medida que crescia, a promoção costumava ocorrer internamente, o que na
maioria das vezes significava transformar garçonetes que vestiam roupas
curtíssimas em gerentes. “Então, imediatamente percebi: ‘Esse lugar é
maravilhoso para as mulheres’”, disse Cole. Já aconteceu de homens ficarem
bêbados e agredirem as garotas Hooters. Mas Cole tinha amigas que
trabalhavam no Applebee’s, onde a mesma coisa ocorria, talvez com a
mesma frequência. “Eu não via nada além de empoderamento das mulheres
ao meu redor”, afirma.
Cole era profundamente grata por tudo que o Hooters havia feito por ela e
defendia o nome da empresa. Ao passar a trabalhar na gerência e entregar
seus cartões de visita nas conferências, ela reparava como as pessoas
olhavam com desprezo o logotipo da coruja e como o julgamento era
evidente. Cole ainda se recorda de uma mulher que lhe disse: “Como você
tem a coragem de não apenas trabalhar, mas participar do crescimento de
uma empresa que explora as mulheres?” Ela respondeu dizendo-lhe algo em
que acreditava: “Nós não exploramos as mulheres. Nós as empregamos.”
Cole estava estabelecendo as bases para o sistema de racionalizações que
muitas pessoas do mundo dos negócios precisavam arquitetar a fim de
aplacar suas próprias dúvidas e as dúvidas dos outros. Havia um bem tangível
que ela podia enxergar, e isso era o bastante. Ela não estava disposta a
responder perguntas sobre as contribuições negativas de sua empresa em prol
de um sistema maior, que era abstrato e difícil de compreender.
Posteriormente, Cole se tornou vice-CEO do Hooters. E, quando alcançou
esse patamar, chegou à conclusão de que qualquer mal que as pessoas
percebiam era compensado pelas boas ações. Ela trabalhou em um programa
de reembolso de mensalidade, que ajudou mulheres a ingressar na
universidade. Criou um programa para a elaboração de currículos, com o
intuito de ajudar as pessoas que estavam saindo da rede de restaurantes a
“demonstrar a experiência que tiveram do melhor modo possível, para
minimizar o julgamento do qual sabíamos que seriam alvos”.
No entanto, em algum momento, Cole decidiu que não queria que o Hooters
fosse sua “única história”. Ela voltou a estudar, cursou um MBA (apesar de
não ter um diploma de bacharel) à noite e aos fins de semana. Foi contratada
por uma empresa de capital privado e nomeada presidente de uma das
empresas de seu portfólio, a Cinnabon. Mais tarde, foi promovida a um cargo
executivo sênior na empresa matriz, a Focus Brands. Para trabalhar na
Cinnabon, eram necessárias racionalizações novas. Cole foi responsável por
disponibilizar ao mundo inúmeros itens alimentícios que provavelmente seria
melhor as pessoas não consumirem. Ela racionalizou todos esses produtos
insistindo em chamar a Cinnabon de “padaria”, alegando: “É realmente uma
padaria, que existe há séculos.” Aparentemente ela acreditava nas próprias
palavras, e completou: “Só estamos acrescentando mais açúcar. Que,
basicamente, é uma mudança em relação às padarias de 200 anos atrás.”
Era uma racionalização deveras audaciosa que se misturava com outras
mais convincentes, como a de que, caso existissem empresas ruins, a boa
gente deveria gerenciá-las. “Se, em uma sociedade de livre mercado, houver
demanda para produtos açucarados, bebidas alcoólicas ou garçonetes com
roupas curtíssimas em um restaurante, isso continuará existindo”, afirma
Cole. “E, se existe, o que importa é de que maneira.” Era uma racionalização
importante porque sugeria não apenas que era aceitável para alguém como
Cole devotar seu talento a uma organização como o Hooters ou a Cinnabon,
mas também que talvez fosse preferível usar esse talento em um lugar mais
nobre. Se existiam empresas como essa no livre mercado, e o importante era
como eram administradas, então não trabalhar para elas não resolveria nada;
na realidade, aumentaria a probabilidade de que os líderes mal-intencionados,
que persistiriam na maneira errada, acabassem nessas empresas do mesmo
jeito.
Cole também acreditava piamente que havia cumprido o seu dever ao falar
em público sobre os pãezinhos de canela da Cinnabon. Segundo ela:
“Dizemos o que eles são de verdade. Mostramos que são feitos com açúcar e
gordura. São comercializados como guloseima, e, mesmo quando estou na
mídia, sempre digo que você não deve comê-los no café da manhã, almoço e
jantar.” Novamente, era importante se atentar a esses detalhes e ignorar os
problemas dos sistemas e estruturas, as questões mais embaraçosas e mais
complicadas dos maus hábitos alimentares, opções de alimentação e
obesidade.
Cole achava que tentar ser transparente a respeito de um produto nocivo era
uma forma mais autêntica de virtude corporativa do que a contrapartida moral
que Carnegie promovia. Ela alegou que orientava as marcas sob sua
responsabilidade a não fazer doações para os problemas que elas poderiam ter
ocasionado. Isso era errado, em sua opinião: “É hipocrisia ajudar uma
fundação de crianças com diabetes.” Ela sugeria que informar aos clientes
que seu produto é potencialmente nocivo à saúde e que não se destina ao
consumo regular é uma forma melhor de “compensar”, em termos morais, o
impacto de anunciá-los e vendê-los aos seus clientes.
As racionalizações de Cole eram acentuadas e sinceras. Se Darren Walker
queria mudar o próprio sistema de ganhar dinheiro, ele não estava somente
batendo de frente contra os interesses corporativos poderosos e seus lobistas.
Ele também ia contra a psicologia de milhares de pessoas como Cole e um
modo de encarar a vida que não exigia cinismo ou indiferença ao causar
danos. Era um modo de enxergar as coisas que prejudicava os meros
expectadores nos sistemas maiores à sua volta, que o levava a crer que esses
sistemas não eram problema seu.

eses antes da visita de Walker à KKR, ele estava sentado em seu


M escritório, pensando no prêmio que a filantropa Laurie Tisch lhe daria
naquela noite, no Museu de Arte Moderna. Tisch também daria “um pequeno
jantar para 80 pessoas, depois, no St. Regis”. E Walker estava animado,
porque, como no almoço da KKR, ele sentia que eventos como esses eram
“oportunidades para ser disruptivo”. “Não para dizer: ‘Vocês ricos deveriam
se envergonhar’”, disse ele, “mas somente para fazer perguntas, interrogar e
conversar sobre coisas que deixam as pessoas nada à vontade, como riqueza,
etnia, privilégio e justiça, e o papel que todos desempenhamos em se ter mais
ou menos justiça”.
Walter Isaacson, presidente do Aspen Institute, um dos templos do Mercado
Global, o entrevistaria no palco, e Walker sabia exatamente o que Isaacson
desejava: a improvável história de vida de Darren Walker. “Tenho certeza de
que Walter a trará à tona, ele sempre faz isso, e tudo bem”, disse Walker. “A
ideia era essa. E parte da minha abordagem é dar exatamente o que ele queria.
Contar a ele uma história que lembrava às pessoas que vivemos em um país
onde gente como eu pode transformar seu sonho em realidade.” Mas isso era
somente uma parte do que Walker pretendia fazer no jantar. “Ao mesmo
tempo, temos que dizer: ‘Tudo bem, então você acredita na minha história,
certo?’”— ele imitava o murmúrio dos adoradores, majoritariamente uma
multidão de gente branca. “Sim, acreditamos em sua história. Acreditamos.
Neste momento, você tem que ajudar as pessoas a visualizar uma situação em
que histórias como a minha não serão realidade, como elas pensam, em um
futuro próximo. Minha trajetória e minha história nunca seriam possíveis hoje
devido a tudo o que já sabemos. Durante a minha jornada de ascensão, todas
as coisas que me ajudaram a seguir em frente não existem mais, ou existem
em menor grau, ou, na verdade, impedem que você prossiga.” A sutil arte em
uma noite como essa, disse ele, residia em fazer com que os plutocratas “se
sentissem bem com os Estados Unidos” e “se sentissem bem consigo
mesmos”; e, depois de acalentar seus sentimentos, convencê-los de que seus
Estados Unidos tinham que mudar.
Tisch é uma filantropa que já simpatizava com o apelo de Walker por
mudanças fundamentais e uma nova conversa sobre justiça, mas que também
se debatia a respeito de como chegar a esse ponto. Ela herdou uma fortuna
estimada em US$21 bilhões. Seu finado pai, Preston Robert Tisch, foi
fundador da Loews Corporation, de onde provinha a maior parte do dinheiro
da família. Era uma das famílias mais notoriamente generosas dos Estados
Unidos, sobretudo em Nova York, onde o nome Tisch está presente em
muitos edifícios em virtude de sua benevolência. Graças às suas ações, Laurie
foi copresidente do conselho de administração do Whitney Museum of
American Art, vice-presidente do conselho de administração do Lincoln
Center, conselheira do Aspen Institute e ex-presidente do Centro de Educação
Artística e o Museu Infantil de Manhattan. Ela também era coproprietária do
time de futebol New York Giants.
A julgar pelos padrões de seus colegas plutocratas, Tisch tinha uma relação
paradoxal com sua fortuna. Um dia, no final de uma manhã, há pouco tempo,
ela estava sentada em um espaçoso sofá de canto no Regency Bar & Grill, no
hotel Loews em Nova York, falando o motivo pelo qual sempre se
considerava uma pessoa “atípica” em sua família. Talvez fosse porque
crescera como uma mulher solitária em sua geração dos Tisch, cercada por
dois irmãos e quatro primos. Ela era, disse orgulhosamente, a primeira
mulher Tisch nascida, uma versão atenuada de um nome que passava uma
impressão esquisita nos Estados Unidos do início do século XX, quando seus
avós emigraram da Rússia, se estabelecendo em Bensonhurst, Brooklyn.
Tisch, agora com 60 e poucos anos, relembrou seus dias de estudante na
Universidade de Michigan, nos últimos anos da Guerra do Vietnã. Ela estava
envolvida no que chamava, com eufemismo, de “tipo de política radical” —
imaginem as manifestações no campus, “sem bombas sendo jogadas”. Ela e
seus companheiros tentaram frustrar as ações de recrutamento do ROTC
[Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva] em Michigan. Ainda que
tivesse acesso a uma das novas fortunas da época, ela diz que achava que o
capitalismo “era uma palavra ruim”. Um dia, no caminho para a universidade,
ela informou aos pais que planejava ir a Washington para uma grande
passeata. “Deixe eu ver se entendi direito”, recorda de um dos pais
respondendo. “Então você vai a Washington para gritar ‘Acabem com
corporações’ no carro que nós compramos? Só para saber.” O carro foi
comprado graças ao dinheiro da corporação de seus pais que estava
crescendo. Ela acabou não indo.
Naquela época, ser Laurie Tisch era ser contra o sistema e a personificação
do sistema, e, disse ela rindo, significava “ter dor de cabeça o tempo todo”. E,
ainda que suas ideias e táticas tenham evoluído ao longo dos anos, ela nunca
se viu livre do conflito básico e da dor de cabeça.
Ao longo dos anos, o conflito a fazia se consumir em culpa. Era uma culpa
que seus amigos afortunados aparentemente não sentiam ou tampouco
compreendiam quando lhe diziam para fazer aquele tratamento facial, viajar
até aquele spa, comprar aquela obra de arte — “Claro que deve fazer isso.
Você merece”, ela conta o que eles diziam. A culpa a fazia se questionar: “Eu
mereço isso porque…? Porque herdei muito dinheiro?” Um dia, ela
mencionou esse sentimento a Darren Walker, que de fato achava que sua
culpa era justificada e que havia apostado sua carreira no princípio de que
fazer doações não é o suficiente, mas ele era gentil demais para lhe dizer isso.
“Ele praticamente me dissuadiu disso”, afirma ela. Com o intuito de atenuar
seu sentimento de cumplicidade perante a injustiça, ele elogiou sua
generosidade: “Isso é absurdo. Veja o que você está fazendo!” Porém nem
mesmo Walker era encantador o bastante para exterminar essa culpa. Tisch
contou que passou boa parte da vida atormentada por esse sentimento —
“lutando comigo mesma, sendo um tanto esquizofrênica, me torturando”. Ela
brinca que, quando as organizações sem fins lucrativos querem angariar
dinheiro, devem rastrear os cartões de crédito dela, pois quando seus gastos
aumentam, sua culpa também aumenta, junto com sua propensão a doar
dinheiro.
No entanto, ao ver de Tisch, a culpa não era somente um problema
emocional a ser tratado. Era também um estímulo para acreditar e fazer as
coisas certas à medida que ela as enxergava. “Quando você vai parar de se
sentir culpada?”, um amigo lhe perguntou há um tempo. Afinal, ela havia
feito tantas doações. “Espero que nunca”, respondeu Tisch. “É a minha
bússola.” A culpa não a isenta de se beneficiar de um sistema que considera
arbitrário, mas a impede de esquecer esse fato e lhe serve de inspiração para
fazer o que estiver a seu alcance. Uma de suas razões para iniciar sua própria
fundação, disse, foi “amenizar um pouco a culpa e transformá-la em algo
mais proveitoso. Mas ela sempre me acompanhará”. Isso ocorre em parte,
porque ela sabe que o que faz não é “uma mudança institucional ou sistêmica.
Vou deixar isso a cargo dos meus filhos”.
Mas, se fosse sincera, a culpa também lhe fornecia um sentimento que ela
tinha receio de aceitar — um sentimento de superioridade sobre os ricos
menos culpados e mais indulgentes do que ela. A culpa e os sentimentos de
cumplicidade de Tisch poderiam fazer dela um bom alvo para o novo
evangelho de Walker, baseado em um sistema econômico mais justo e menos
incutido de culpa, e não somente de doações a posteriori. Mas, quando
confrontada de fato com o que um sistema diferente poderia lhe acarretar,
seus instintos de autoproteção começam a subjugar os sentimentos de culpa.
Ela acredita que as heranças deveriam ser taxadas com mais rigor do que
atualmente, como é o caso em muitos outros países? Ela ficou apreensiva.
“Quero dizer, de preferência, definitivamente, não deveria existir
desigualdade entre ricos e pobres. Não deveria.” Mas será que acreditava que
a sociedade seria melhor caso ela não herdasse tamanha fortuna? Isso já era
mais difícil. “Tenho sorte de conseguir fazer o que faço”, alegou sobre a
filantropia cuja herança possibilitava que se engajasse. “Se acho que é o
sistema mais justo? Provavelmente não.”
Sendo assim, ela deveria pagar mais impostos? As heranças de seus filhos
deveriam sofrer uma tributação maior? “Você teria que entender melhor a
história do que eu”, disse. “Quero dizer, é um tipo de sonho meramente
inspirador.” À primeira vista, o que ela sugeria era que impostos mais
elevados para pessoas como seus familiares teoricamente era algo bom, mas
talvez fosse bom apenas em teoria. E nem mesmo disso ela tinha certeza:
caso os filhos dos ricos não herdassem fortunas vultuosas, eles não
continuariam perseguindo o dinheiro, indo para Wall Street ou para qualquer
outro lugar, e tendo menos tempo para ajudar as pessoas?
Será que ela acreditava que uma sociedade com menos riqueza hereditária
seria melhor? “Se seria melhor?”, perguntou. “Acho que o melhor é não ser
pobre.”
No entanto, ela poderia promover essas mudanças? “Por isso que eu disse
que não sou muito boa em história, porque é mera aspiração”, segundo Tisch.
Dito de outro modo, é uma utopia aparentemente boa, mas ela afirmava que
não sabia muito a respeito para adotá-la; “Mas”, logo acrescentou, “a
sociedade em países onde as pessoas estão mais próximas de conseguir isso é
melhor? Provavelmente.”
Mas convém ressaltar que, em lugares como a Escandinávia, onde a pobreza
é menor, há menos dinheiro disponível para pessoas como Tisch realizarem
doações. “Você não precisa fazer tanta doação”, disse ela. Não é necessário
tratar tantos sintomas quando os males são poucos.
No entanto, enquanto vivemos no sistema atual, havia alguma maneira de
ela reconciliar seus ideais imaginários com a forma como realmente vivia?
Ela achava que não. “Acho que até certo ponto é a mesma coisa, como nosso
último presidente ou qualquer outro presidente sendo a favor de uma
educação pública, mas enviando seus filhos para uma escola particular. É
difícil responder isso”, diz.
Sua vida e seus ideais também entravam em conflito com a questão da
influência de pessoas ricas como ela na política. Será que acreditava que essa
influência deveria ser limitada? “Na teoria, você acha isso ótimo, mas não
quer ser a única idiota fazendo esse tipo de coisas”, diz. Ela acreditava que o
sistema financeiro era injusto, e entendia a relação entre essa injustiça e as
vozes sufocadas e a exclusão social que, posteriormente, buscava aliviar por
meio da filantropia. E, no entanto, quando se tratava de apoiar a campanha
presidencial de Hillary Clinton, ela afirmou: “Quantas arrecadações de
fundos ajudei com US$25 mil e US$50 mil?” O ex-marido de Tisch, Donald
Sussman, defende publicamente o que parece ser a lógica deturpada do
megadoador e daqueles contra os megadoadores. Segundo consta, Sussman,
gerente de fundos de hedge, contribuiu com US$40 milhões para os super-
PACs dos democratas e outros grupos externos, fazendo dele o maior
apoiador de Clinton em 2016. Ele disse ao Washington Post que foi inspirado
pelo desejo de suprimir a influência de grandes doadores como ele. “É muito
esquisito doar milhões quando seu objetivo é, sobretudo, afastar o dinheiro da
política. Sou um defensor ferrenho de campanhas financiadas publicamente e
acho que o único modo de concretizá-las é ter alguém como a Secretária de
Estado Hillary Clinton, comprometida em limpar o desastre lamentável
criado pelo ativismo judicial no Citizens United.” Com o intuito de mudar o
status quo, é necessário ceder ao status quo.
Essa dificuldade em escapar ao status quo podia ser percebida claramente
em Tisch quando se tratava da dimensão de sua fortuna que lhe despertava a
maior culpa: o dinheiro oriundo do cigarro. Em 1968, a Loews “tirou
proveito das crescentes preocupações de saúde pública em relação ao tabaco,
comprando uma empresa de cigarros a preço de banana”, segundo o New
York Times. A nova aquisição, Lorillard, fabricava cigarros da marca
Newport, que eram controversos porque visava os afro-americanos
apresentando um produto mais sedutor e mais letal do que a maioria: tinha o
sabor de menta, que facilitava o vício em tabaco, e um teor de nicotina acima
da média, que ajudava a manter a clientela dependente. Quando os sete
executivos famosos da indústria do tabaco se sentaram um ao lado do outro
no Congresso em 1994 e negaram os efeitos nocivos dos cigarros, o primo de
Laurie, Andrew, estava entre eles. Ao lhe perguntarem se ele achava que
existia uma relação entre o câncer e o cigarro, alegou: “Não acredito nisso.”
No ano seguinte, o tio de Laurie, Laurence, então presidente da rede de
emissoras de televisão CBS, despertou a raiva do público quando sua
emissora não transmitiu o programa 60 Minutes cuja reportagem denunciava
a indústria do tabaco, que acabaria sendo retratada no filme O Informante. (A
reportagem somente foi ao ar depois que a Loews anunciou sua intenção de
vender a rede.)
Laurie Tisch sabia de todas essas coisas, e tinha que saber que as pessoas
haviam morrido por causa dos cigarros e dessas tramas egoístas. Não raro, ela
pensava nos cigarros quando as pessoas lhe agradeciam por promover as
artes, investir na vida de jovens ou fornecer subsídios para comprar alimentos
mais saudáveis para as comunidades afro-americanas no Harlem. Não se
sabia se um dia essa dívida seria recompensada; se as vidas salvas
recompensariam as que foram roubadas. No entanto, Tisch afirmou que tinha
essa sensação de culpa quando as pessoas que lhe agradeciam não estavam
cientes do dinheiro proveniente do cigarro. Em outras ocasiões, afirmou:
“Eles sabem a respeito, e eu fico na defensiva.” Ela se questionava em voz
alta: “Os cigarros são piores que o álcool? O álcool é pior que o açúcar? Por
isso também fico na defensiva quando sou criticada pelo tabaco — que minha
família não deve realizar doações ao hospital ou fazer isso ou aquilo.”
Incomodava-a quando ouvia as pessoas dizerem que o dinheiro do tabaco não
tinha vez em um hospital devotado a salvar vidas. Por que sua família era o
único alvo das críticas em relação aos produtos nocivos?
Ainda assim, Tisch, munida da bússola da culpa, se arriscava além de sua
própria defesa. “Acho que pessoas boas e fortes geralmente podem
racionalizar tirando proveito do sistema”, disse. E como elas racionalizam?
Dizendo a si mesmas que esse é o sistema que temos para hoje. “As coisas
são assim. Por que eu deveria ser a única tola?”
Em sua relutância em ser a única tola, Tisch estava revelando o poder que o
status quo tinha sobre ela. Sucessivas vezes, expressava um ideal pelo qual,
no fim, não estava disposta a se sacrificar. Era indispensável que ela se
sentisse superior a seus amigos ricos, entretanto não estava disposta a se
antecipar e ser a única a não tirar proveito de um sistema que ela sabia estar
errado. Suas confissões reiteradas de que não seria a única a promover o
mundo em que acreditava estavam em uma mensagem enviada a Darren
Walker: se ele quer um sistema mais igualitário, terá que buscá-lo apesar de
pessoas como ela, que não estarão ao seu lado; ele pode ter o apoio moral
delas, mas não pode contar com elas para tomar as decisões de mudar o
sistema que as transformou em tudo o que são.
“Por que as pessoas que conseguem tirar proveito do sistema desejariam
mudá-lo?” Tisch afirmou em dado momento. “Talvez elas até doem mais
dinheiro, mas não querem uma mudança drástica.”
Havia algo que ela pudesse imaginar que os persuadisse do contrário — que
pudesse servir de inspiração para um sistema mais igualitário?
“Talvez uma revolução”, disse.

F inalmente, a limusine de Walker estacionou na 9 West com a 57th Street,


e ele foi levado para o andar de cima. Uma prestimosa recepcionista
guardou seu sobretudo bege e seu chapéu de pele. Janice Cook Roberts, que
liderou as relações com investidores na KKR e é filha do lendário formador
de opinião de Washington, Vernon Jordan, conversou amenidades com
Walker a respeito de seu pai. Em seguida, Walker encontrou outro executivo,
Ken Mehlman, ex-presidente do Partido Republicano que ajudou a promover
sua agenda anti-LGBTQI+, até que se assumiu como homossexual alguns
anos mais tarde, depois de renunciar ao cargo, e passou a lutar a favor dos
direitos dos LGBTQI+. Como Carnegie, ele havia feito o que tinha que fazer
e atualmente estava na fase de redenção, a despeito de ser perseguido
enquanto trabalhava na KKR.
A reunião aconteceu em uma sala ampla com serviço de bufê. A sala estava
repleta de cadeiras elegantes de couro branco. A multidão era jovem, em sua
maioria funcionários juniores. Eles pareciam existir como pessoas sem estar
de fato vivas. Walker havia dito que, em sua experiência, muitos desses
funcionários comparecem a tais eventos porque alimentam sonhos de desistir
e se tornar agentes do bem. No entanto, por ora, eles se deixavam levar pela
monotonia e pela alienação, que era um torpor mais sofisticado do que se
observava nos trabalhadores do Walmart. Você entrava nesta sala fazendo
escolhas certas e cuidadosas, repetidas vezes. Como Kat Cole, você aprendia
a se concentrar nos pormenores e não fazer perguntas sobre as coisas das
quais era cúmplice. E como a empresa sabia, de certo modo, o sacrifício
psicológico que tudo isso exigia, tinha a decência de promover uma série de
palestras, em que curadores de museu, especialistas em assistência médica, o
presidente da fundação — pessoas que viviam mais a verdade deles do que
você — poderiam lhe inspirar um pouco. Walker, perceptivelmente
entusiasmado em relação à sua missão, apresentou um contraste
impressionante aos seus expectadores.
Walker diria que eles eram os responsáveis pela ascensão global do
nacionalismo, que o mundo que ele queria atacaria diretamente o ego deles?
Diria que suas práticas comerciais faziam parte do problema ou que eles
precisavam pagar impostos maiores? Ele “conheceria em que ponto da vida
eles estavam”? Era possível fazer todas essas coisas?
Naquele dia, pelo menos, não. Walker, em suas palavras iniciais, se referiu
algumas vezes a Henry Kravis, um dos fundadores da KKR, como “um
filantropo”. Ele não era mais um usurpador corporativo, um pioneiro no tipo
de exploração de valor que Walker lamentou na limusine. Walker falou muito
bem de sua própria experiência no setor de serviços financeiros. Isso lhe
propiciou “habilidades” — algumas das quais, supostamente, eram os
protocolos que ele agora acreditava que havia ressignificado a serviço dos
desprivilegiados. Isso havia o ensinado a realizar várias tarefas, gerenciar um
portfólio complexo de projetos, assimilar dados e transformá-los em insights,
a ter disciplina. Ele não estava adulando seu público. Estava enumerando as
razões pelas quais tantas pessoas como Hilary Cohen, que almejavam ajudar
milhões de pessoas, foram a lugares como a KKR antes de empreender seu
trabalho de mudar o mundo.
Walker tentou deixar as pessoas à vontade, transformando a filantropia em
um conceito relativo. “Quando se fala em filantropia nos Estados Unidos, ela
pode significar coisas bem diferentes”, disse. “Podem ser filantropos
individuais como Henry, e muitas pessoas que vocês conhecem e estão aqui,
porque muitos dos presentes também são filantropos, ainda que não se
considerem.”
Por fim, ele abordou o assunto em questão. “Nos Estados Unidos e no
mundo, temos um nível de desigualdade extrema; não tenho a intenção de ser
exagerado, mas penso que isso de fato é uma ameaça à nossa democracia.
Porque a base da narrativa norte-americana, em nossa democracia, é a
simples ideia de oportunidade.” Foi assim que ele agiu: instigando as pessoas
mediante um pensamento que talvez não fosse o preferido delas e, depois,
colocando-se no lugar delas, usando a linguagem da oportunidade, referência
do Mercado Global.
Em seguida, conforme o esperado, contou a história do hospital beneficente
em Lafayette e todo o resto. Falou sobre como “existia uma jornada de
ascensão que eu poderia trilhar”, sobre “o fomento das oportunidades na
sociedade norte-americana”. No carro, ele havia dito que os ricos, ao
acreditarem que os Estados Unidos têm um problema de oportunidade, e não
um problema de desigualdade, tinham a “permissão para viver em um mundo
onde não precisam enfrentar a realidade”. Agora, diante de uma nova geração
dos “selvagens em Wall Street”, se colocava no lugar deles. “Quanto mais
desigualdade existir em nosso sistema, menos oportunidades existirá”, disse.
E terminou com um toque mais pessoal:
Questiono-me a respeito do meu próprio privilégio todo santo dia e digo:
“Sabe, você é extremamente privilegiado. Tem primos tão inteligentes
quanto você que acabaram na cadeia. Por que isso aconteceu?” Mas, em
minha cabeça, tudo tem a ver com uma conversa sobre privilégios e sobre
estar presente em lugares como esse, com pessoas como vocês, que são
claramente inteligentes, ambiciosas, querem fazer a diferença no mundo e
são privilegiadas.
Na realidade, não era evidente que as pessoas na sala queriam “fazer a
diferença” do modo que Walker sugeriu. Isso ficou bastante claro quando
chegou a hora das perguntas. A primeira foi a respeito de seu estilo de
liderança e como ele motivava os funcionários: um homem de negócios
tentando aprender com ele como ser melhor nos negócios. A segunda, sobre
segurança global. A terceira foi se havia muito dinheiro de caridade em mãos
de pouquíssimos benfeitores. Walker tinha sido discreto, beirando o silêncio,
em relação ao que dissera no carro sobre a cumplicidade do capital privado
na desigualdade, sobre o que eles precisavam fazer menos e não mais. E sua
sutileza e impenetrabilidade conspiraram para garantir que as pessoas de fato
não lhe dessem ouvidos.
De volta à limusine, Walker afirmou que poderia ter dito que o grupo não
entendeu ou assimilou o seu novo evangelho. Ele encontrou alívio, no
entanto, em duas mulheres que estavam no fundo da sala e “concordavam
como todas as questões”. Ele disse: “Os caras brancos na mesa da frente
estavam praticamente estáticos”. E de fato estavam, exceto quando um deles
ouviu a frase “não pagar impostos”, que surgiu algumas vezes na descrição
da organização da Fundação Ford. Então, o tal homem assentiu com a cabeça.
Obviamente Walker sabia que estava conversando com funcionários da
empresa e não com os “mandachuvas”. Estava abordando pessoas ainda em
um período assustador na escalada de suas vidas. Como intuito de atingir os
mandachuvas, segundo Walker, era necessário estar em ambientes mais
privados. “Você se encontra com essas pessoas em eventos privados ou de
outros tipo, como aquele em que eu estava outro dia, onde havia muitos
homens brancos e ricos. E, então, eles estão todos juntos na casa de alguém,
tomando uma bebida, ou seja lá o que for. É um lugar seguro.” Depois,
completou: “Esse tipo de gente não se reúne em lugares públicos ou assiste a
uma palestra em uma biblioteca.”
Essas reflexões levaram Walker a perceber que neste exato momento os
Estados Unidos estavam sendo privatizados. A comunidade norte-americana
tinha suas conversas em público sobre a democracia confusa, e a elite
conversava a portas fechadas. Ele mencionou a proliferação do mercado de
ideias em seu universo social. Trouxe à tona que as pessoas gastam uma
fortuna em um lote de ingressos, e o palestrante vai até suas casas para
ministrar uma prévia aos seus convidados, antes do evento. Isso o fazia se
lembrar de uma viagem ao Brasil. Lá, ele conheceu alguém que cresceu em
um condomínio fechado e seguro — algo comum no país. O que o deixou de
queixo caído era que, quando crianças, esse homem e seus amigos tinham a
própria boate dentro do condomínio. “Eles não podiam frequentar a boate da
cidade porque era muito perigosa”, disse. “Logo, eles construíram sua própria
boate.”
Walker analisou os Estados Unidos de hoje e viu seus amigos abastados
construindo condomínios metafóricos, com portões do lado de fora e boates
do lado de dentro. Comunidades fechadas. Cinema em casa. Escolas
particulares. Jatos particulares. Parques com gestão privada. Salvação do
mundo privado, pelas costas dos desprivilegiados a serem salvos. “A vida
está cada vez mais dentro desses portões”, disse. “Cada vez mais nossas
atividades cívicas e públicas se tornam atividades privadas.”
A desigualdade proporcionava alguns dos recursos para os privilegiados
construírem as próprias boates e se isolarem em seus ambientes fechados.
Contudo, era necessário mais um ingrediente cultural para que esse estilo de
vida fosse possível. As pessoas escolheram viver desse modo ao perder a
confiança no que havia além de seus portões — no público. Em nossa vã
imaginação, elas se sentiam assim quando o “público” tinha a permissão para
atingir um status inferior ao “privado”, em uma reversão da hierarquia
histórica: houve uma época, conforme observa o estudioso jurídico Jedediah
Purdy, quando amávamos o “público” o bastante para depositar nossas
esperanças mais elevadas nas repúblicas, e quando o “privado” trazia à
memória seus termos-irmãos “privação” e “desprivilegiados”. A conquista da
modernidade tem sido rumo à persuasão gradual dos cidadãos para expandir
os limites de suas apreensões além da família e da tribo, para abarcar os
conterrâneos. Mas a desigualdade estava invertendo isso, devorando o país
amado de Walker. O governo ainda tinha responsabilidade, no entanto, cada
vez mais, os ricos faziam as regras.
Era de se pensar se Walker tinha o vigor e a capacidade de fazer com que os
Sackler, Cole, Tisch e KKRs do mundo pensassem mais como ele. Quase um
ano após o lançamento do seu novo evangelho, foi anunciado que ele
ingressara ao conselho da PepsiCo. Isso despertou uma série de críticas, em
parte porque esse militante contra a desigualdade estaria ganhando mais de
US$1 milhão por ano com a presidência da Ford e essa nova e inesperada
função, e em parte porque agora ele assumia a responsabilidade formal pelo
que a Pepsi fazia, incluindo a escolha contínua da empresa de comercializar
suas bebidas açucaradas nocivas. Os críticos poderiam até se consolar ou se
entristecer com o fato de Walker estar longe de ser o único: muitos de seus
colegas das principais fundações atuavam em conselhos de empresas como o
Citigroup e o Facebook. O medo era que, mais uma vez, o Mercado Global se
infiltrasse e vencesse. “A melhor estratégia é manter seus críticos por perto”,
disse um ex-executivo da Fundação Ford ao New York Times. Mas Walker
prometeu e parecia acreditar que ele poderia mudar essas pessoas, e não o
contrário. “Contribuirei com a minha perspectiva de líder de uma organização
de justiça social”, ele afirmou ao Times. “Contribuirei com a minha
perspetiva como alguém extremamente preocupado com o bem-estar das
pessoas em comunidades pobres e vulneráveis.” Até agora, seu único
compromisso fora mudar de Coca Diet para Pepsi Diet.
CAPÍTULO 7
O QUE FUNCIONA NO MUNDO MODERNO

uitas daquelas pessoas vinham assistir à conferência de Bill Clinton há


M anos. Embora costumassem se rotular como doadores, filantropos,
inovadores sociais, investidores de impacto e coisas do gênero, as recentes
agitações políticas conferiram à tribo um nome novo que estava se
destacando. Eles estavam começando a ser conhecidos, por seus amigos e
inimigos, como globalistas. As pessoas que chegavam à Clinton Global
Initiative naquela manhã de setembro de 2016 estavam ansiosas pela semana
que se tornaria uma espécie de reunião de família para os globalistas. E, no
entanto, estavam cientes de se reunir em um momento no qual eram cada vez
mais menosprezadas. Em todo o mundo parecia haver uma desconfiança de
que os membros da alta sociedade que se reuniam para resolver os infortúnios
da humanidade em conclaves fechados eram tanto um problema quanto uma
solução.
A conferência foi um dos muitos eventos que ocorreram durante o que ficou
conhecido, de modo um tanto antiquado, como UN Week [Semana da ONU].
A semana ganhou esse nome em virtude da convocação da maioria dos
chefes de Estado do mundo na cidade de Nova York. Eles compareceram
perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, um por um, e ali, diante de
seu famoso cenário com carpetes verdes, tentaram falar com o mundo.
Devido à presença deles, a segurança em Nova York, nesta manhã de
setembro, era praticamente militar, garantida por homens vestidos de preto,
cujos olhos taciturnos consideravam qualquer um suspeito. A cada minuto,
uma comitiva acompanhada de seguranças passava rapidamente em uma pista
reservada aos chefes de Estado e ministros. Na Second Avenue, um grupo de
manifestantes advertia os dignitários visitantes que “Tirem as mãos da Síria”.
Na outra esquina, duas mulheres vestidas com trajes da África Ocidental
estavam em pé, segurando pranchetas e buscando assinaturas para uma
petição sobre saúde. Os manifestantes estavam estrategicamente posicionados
perto das Nações Unidas. Talvez ninguém lhes tenha dito, em grande parte
graças a Bill Clinton, que as Nações Unidas não eram mais o centro da ação
durante a Semana da ONU.
Bill Clinton deixou a presidência dos Estados Unidos em janeiro de 2001
como um homem de meia-idade que precisava de redenção. Ele havia
sobrevivido a dois mandatos assombrados por escândalos, uma votação de
impeachment pela Câmara dos Deputados dos EUA e uma saída arruinada
pela concessão de indultos duvidosos e alegações de furto da mobília da Casa
Branca. No livro Man of the World [“Homem do Mundo”, em tradução livre],
um relato interno da pós-presidência de Bill Clinton, o jornalista Joe Conason
retrata um ex-presidente angustiado e sob ameaça nos primeiros meses de sua
nova vida. O falatório sobre o escândalo persistia — primeiro, a repercussão
do indulto e dos móveis; depois, a tentativa do ex-presidente de estabelecer
seus escritórios financiados pelo dinheiro dos contribuintes em um prédio no
centro de Manhattan, cujo aluguel ultrapassava o dos escritórios dos outros
quatro ex-presidentes vivos juntos. Bill Clinton aplacou a indignação
montando seu escritório na West 125th Street, no Harlem, onde tentou ajudar
a comunidade afro-americana nas redondezas, recrutando consultores
emissários dos protocolos de negócios com o objetivo de ajudar os
comerciantes gratuitamente. Ainda assim, era difícil fugir à negatividade. O
novo agente cobrava até US$250 mil pelas palestras de Bill Clinton, somente
para testemunhar muitas apresentações serem canceladas, graças ao que
Conason chama de “enxurrada de escárnio público”. No entanto, poucas
apresentações no exterior foram canceladas. Era uma lição para o ex-
presidente. “Logo, ele e sua equipe perceberam que, por mais enfraquecida
que sua popularidade estivesse em sua terra natal, grande parte do resto do
mundo estava pronto para recebê-lo de bom grado e até celebrá-lo”, escreve
Conason.
Orientado por essa descoberta repentina, Bill Clinton começou a realizar
suas primeiras ofensivas pós-presidenciais mundo afora, o que o colocaria no
caminho de se tornar um ícone da filantropia mundial e tema de um
documentário feito para a televisão intitulado President of the World: The
Bill Clinton phenomenon [“Presidente do Mundo: O fenômeno Bill Clinton”,
em tradução livre]. Ele angariou dinheiro para o terremoto em Gujarat, no
oeste da Índia, e intermediou acordos complexos a fim de reduzir os custos
dos medicamentos para HIV/AIDS nos países em desenvolvimento. Então,
em 2005, em sintonia com as correntes de sua época, Bill Clinton decidiu
que, se você realmente desejasse mudar o mundo agora, precisava da ajuda
das empresas e dos plutocratas, e da sua própria conferência no circuito do
Mercado Global.
A ideia original era sediar uma conferência durante a Semana da ONU em
Nova York, com o intuito de tirar partido da permanência de todos os líderes
mundiais na cidade, que talvez pudessem servir de chamariz para os
endinheirados e os generosos à cidade. O ex-presidente atribuiu essa ideia ao
seu assessor de longa data Doug Band. Mais tarde, Bill Clinton recordou a
própria reação: “Eu disse: ‘Sim. E todo mundo teria a experiência
maravilhosa de passar pela cidade de Nova York durante a abertura de um
evento da ONU.’ Depois, provavelmente fui bastante impulsivo e disse: ‘Vou
tentar.’”
Em janeiro de 2005, no palco do Fórum Econômico Mundial em Davos —
uma das conferências inaugurais no circuito do Mercado Global, em que os
partícipes corporativos pagavam quantias vultuosas de dinheiro para
socializar com líderes políticos e outros de posição social semelhante —, Bill
Clinton anunciou a Clinton Global Initiative. Seria uma iniciativa, segundo
ele, como Davos, exceto que exigiria que os abastados e poderosos reunidos
se comprometessem com a condição de comparecer e participar de projetos
concretos para o bem global. “Sou um grande apoiador de Davos, mas os
líderes mundiais dos países ricos e pobres, e todos os demais, vêm à ONU
todos os anos em setembro”, disse Clinton, de acordo com Conason,
acrescentando: “Logo, para este ano, pensamos em uma versão mais enxuta
do que fazemos no Fórum Econômico Mundial, mas que seria focada em
coisas específicas que todos os participantes poderiam fazer.” Decisões e
ações, a solução real para os problemas, seriam a característica distintiva da
CGI. “Todo mundo que vem precisa saber de antemão que sua opinião será
questionada sobre o que devemos fazer em relação a AIDS, tuberculose e
malária; o que o setor privado pode fazer a respeito do aquecimento global”,
disse ele. Além do mais, “você será solicitado a participar de decisões muito
específicas a respeito e a assumir compromissos bem particulares.”
A primeira CGI recebeu críticas calorosas. Tina Brown, uma experiente
editora de revistas, escreveu: “Clinton parece ter encontrado seu papel de
mediador-chefe, nos incitando a abrir mão de nossa passividade nacional
letárgica para começarmos a pensar nas coisas por nós mesmos.” Ela se
referiu à CGI como uma alternativa à forma pública e governamental de
solucionar os problemas, à luz da incapacidade descomunal do Estado,
exposta pelo furacão Katrina no mês anterior. “Apropriar-se do papel do
governo por meio da ação cívica, de repente, parece uma ideia muito
poderosa — visto à alternativa de se encontrar isolado em uma inundação
balançando uma camisa do telhado”, escreveu ela. Na realidade, à medida
que evoluía, a CGI reunia um número crescente de pessoas interessadas em
“apropriar-se do papel do governo”: investidores, empresários, inovadores
sociais, ativistas, artistas, filantropos, executivos de organizações sem fins
lucrativos, consultores munidos com os protocolos e outras mais, que foram
lá para discutir ideias para novos fundos de duplo objetivo de resultado,
elaborar planos contra a malária e também, já que estavam na cidade como
todo mundo, fechar seus próprios acordos. E, a cada ano que passava, a
presença crescente da iniciativa parecia mudar a força gravitacional da
Semana da ONU.
À medida que a CGI evoluía, duas palavras passariam a defini-la: parcerias
e compromissos. Bill Clinton convidou pessoas de diversos setores —
empresários, filantropos, líderes políticos, sindicatos, sociedade civil — a fim
de trabalharem juntas em iniciativas em prol do avanço da sociedade e para
fazer promessas públicas sobre o que planejavam alcançar. Essa abordagem
versava sobre uma perspectiva emergente de como o progresso é feito,
endossada e evangelizada ativamente por Bill Clinton. Quando jovem, ele
estudou na Escola de Direito de Yale e, nas décadas subsequentes, buscou a
melhoria do mundo por meio do instrumento político e jurídico. Ele havia
vestido a camisa de um liberalismo que era, nas palavras do escritor Nathan
Heller, uma “filosofia de construção de sistemas”, cuja revelação era “que a
sociedade, quando sozinha, tinha propensão à entropia e aos extremos, não
porque as pessoas fossem naturalmente malignas, mas porque pensavam in
loco”. Heller escreve que não se pode confiar apenas em indivíduos
propriamente ditos para enxergar o panorama geral de sua sociedade, mas
que “pode-se confiar em uma entidade maior, como o governo”. Quando
começou a exercer funções públicas, Clinton acreditava que os problemas da
gente comum eram mais bem resolvidos por meio do serviço público e da
ação coletiva. No entanto, durante seus anos na Casa Branca, e
principalmente depois, ele foi persuadido pela teoria de que era preferível
solucionar os problemas por intermédio dos mercados e das parcerias entre
entidades privadas e públicas, que identificariam o lugar-comum das causas e
trabalhariam em colaboração nas soluções em que todos saem ganhando.
Desde o início, Bill Clinton se questionava se as pessoas pagariam um bom
dinheiro para participar de um evento cujo objetivo era persuadi-las a
contribuir com mais dinheiro, e ainda se voluntariar. “Quero dizer, quem já
ouviu falar em pagar uma taxa de associação para ser convidado a gastar
ainda mais dinheiro ou mais tempo?”, brincou.
Ele se subestimou. Os compromissos lhe renderiam frutos. Caso você
trabalhasse para uma empresa de bens de consumo e se comprometesse a
disponibilizar filtros de água para milhões de pessoas, ou para uma fundação
que se comprometesse a restabelecer a audição de outras centenas de
milhares de pessoas, você poderia ser convidado para a CGI. Lá, Bill Clinton
ficaria ao seu lado e falaria de seu comprometimento a todos, e o elogiaria.
Esse momento se tornaria, no sistema de ser bem-sucedido ao praticar o bem,
o ponto culminante de uma carreira: pessoas influentes e/ou ricas, mas
relativamente desconhecidas, se deleitavam com status de celebridade. Era
também uma boa maneira de ser notado por muitas pessoas ricas e poderosas
se, digamos, estivesse procurando investidores para seu novo fundo. Se você
fosse dono de um avião e tivesse muito mais dinheiro de onde veio esse com
o qual fez caridade, como o magnata da mineração canadense Frank Giustra,
em breve poderia estar viajando pelo mundo com Bill Clinton como seu
facilitador e parceiro. Você o ajudaria em sua fundação, e ele poderia até
permitir que você entrasse em seu próprio círculo — e estar neste círculo
poderia beneficiá-lo na próxima vez que concorresse para um projeto de
mineração.
Segundo as estimativas de Bill Clinton, as 12 reuniões da CGI fomentaram
cerca de 3.600 compromissos. A organização alegava que esses
compromissos haviam melhorado mais de 435 milhões de vidas em 180
países — um cálculo que era tão admirável quanto difícil de se constatar,
visto que essa nova forma de salvar o mundo era privada, voluntária e não
prestava contas a ninguém. Um compromisso, denominado Creating
Prosperity with Major Corporations [Gerando Prosperidade com as Principais
Corporações], foi apresentado pela TechnoServe, empresa de consultoria de
combate à pobreza, em parceria com empresas como Walmart, Coca-Cola,
Cargill, McDonald’s e SABMiller; posteriormente, apresentou-se um
relatório de acompanhamento que alegava ter implementado um “programa
competitivo de plano de negócios para empreendedores na ‘base da
pirâmide’”. Outro compromisso foi intitulado “WeTech”. Ao recorrer a
parceiros como McKinsey, Google e Goldman Sachs, a iniciativa prometeu
programas de tutoria educacional para meninas e mulheres que buscam
carreiras em ciência e tecnologia.
Essa abordagem geral da mudança correspondia à que Bill Clinton
sustentava enquanto estava no poder: a defesa da globalização; a adoção de
mercados; a solidariedade; o fim declarado entre o conflito trabalho/capital; a
promessa de ricos e pobres se unindo — a insistência de que a flexibilização
da regulamentação era boa tanto para Wall Street como para a gente comum
das cidades pequenas; a publicidade de acordos comerciais desejados pelas
corporações de grande porte como sendo ideais para os operários. O país
estava a dois meses de um referendo sobre o clintonismo. Hillary Clinton
havia vencido Bernie Sanders na última primária; Sanders falava em colocar
a “classe bilionária” em seu devido lugar com o intuito de fazer a classe
operária prosperar, enquanto Hillary Clinton falava em querer que todos
fizessem o melhor. Agora, ela enfrentaria o derradeiro adversário, e apenas
um sairia vencedor, ainda que fosse uma disputa regada a ataques verbais
raciais, autoritários e etnonacionalistas. Donald Trump se aproveitara da
intuição de que aquelas pessoas que acreditavam que você podia empreender
uma cruzada em prol da justiça e ganhar rios de dinheiro, salvar vidas, ser
muito poderoso e realizar doações enormes, tudo isso e mais um pouco, eram
farsantes. Ele se aproveitara desses sentimentos, para o espanto de muita
gente, a despeito de personificar a pseudopreocupação que censurava.
As críticas a respeito do que a CGI fazia e representava foram se
acumulando ao longo dos anos, motivadas por perguntas intermináveis sobre
se a filantropia era um fim em si mesma para muitos dos expectadores ou,
antes, um meio para fins mais egoístas. “É como Davos para o cenário social
de praticar o bem”, disse Darren Walker em uma manhã naquela semana,
sentado em seu escritório da Fundação Ford. A nova Semana da ONU vivia
“nessa confluência de ser bem-sucedido e ser bem-sucedido ao praticar o
bem”. Ele atribuía o crédito a Bill Clinton, cujo evento a Ford estava
patrocinando, em relação à mudança. “Foi graças à CGI que muitos novos
atores foram mobilizados e tantas modalidades diferentes, como o
investimento de impacto e todas essas coisas, tiveram início.” Clinton
utilizara sua descomunal influência de convocação a fim de reunir parceiros
improváveis, e assim surgiram soluções criativas de combate à pobreza e ao
sofrimento. Porém, de acordo com Walker, também foi o caso em que “os
filantropos e os empreendimentos comerciais viram na CGI uma plataforma
que eles poderiam mobilizar com o objetivo de praticar o bem e criar suas
marcas”. Como resultado, a autopromoção flertava perigosamente com o
altruísmo na CGI, na opinião de Walker. Por que todos esses CEOs estavam
voando até lá? “Eles se deslocam para cá porque veem oportunidades de
investimento e de promover sua marca”, disse Walker. A genialidade de Bill
Clinton foi usar seu encontro “como um modo de dar visibilidade às pessoas”
caso elas concordassem em ajudar outrem. Mas isso, segundo as perspectivas
de Walker, ofuscava as motivações da caridade que a CGI estimulava. Agora,
outros seguiam seu exemplo de se conectar à Semana da ONU, e surgiram
“centenas de eventos secundários”, conforme Walker afirmava de um modo
um tanto exagerado. “O risco é a redução do impacto em potencial”, disse
ele. “É a tal ideia de que você pode ajudar uma iniciativa de assistência
médica na Nigéria, no Delta do Níger, com o intuito de reduzir as doenças, a
diarreia ou seja lá o que for, e também investir em uma empresa que polui as
águas do Delta do Níger.”
A fusão dos bens públicos e do desejo privado durante a Semana da ONU,
semeada pela CGI, não estava restrita a ela. De fato, outros eventos de
mudança mundial político-privada aos moldes da CGI, ainda que não
tivessem seu alcance, pipocaram pela cidade, se tornando mais numerosos a
cada ano: encontros chamados Make a Difference [Faça a Diferença], Invest
with Impact [Invista com Impacto] e GODAN Summit o convidavam para
“Participar da Revolução Open Data para Erradicar a Fome Global”; outro se
chamava Leveraging the SDGs for Inclusive Growth [Alavancando os ODSs
para o Crescimento Inclusivo], das fundações de George Soros (os ODS são
os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável); um evento sobre
“finanças sustentáveis” no HSBC; o Concordia Summit, em que os “líderes
de pensamento e inovadores” se reúnem para “analisar os desafios mais
urgentes do mundo e identificar caminhos para a colaboração”, patrocinado
pela Coca-Cola e pela JP Morgan; e, cortesia dos patrocinadores Citi, Mars e
SABMiller, um evento chamado Business Collaborating for Deliver the
SDGs [Colaboração Empresarial para Entrega dos ODSs]; o Africa
Alternative Investment Intensive Forum [Fórum Intensivo para Investimentos
Alternativos na África]; o Catalyzing Climate Change Innovation Through
Charitable and Impact Investment [Catalização da Inovação em Mudanças
Climáticas Por Meio de Investimentos de Caridade e Impacto]; um evento
social chamado Scaling the Clean Economy [Potencializando a Economia
Limpa], organizado pelo escritório de direito internacional Baker McKenzie;
o U.S.–Africa Business Forum [Fórum Empresarial EUA-África], organizado
pela Bloomberg Philanthropies; e o almoço para a alta-roda chamado Every
Woman Every Child Private Sector-Innovation [Todas as Mulheres e
Crianças no Setor Privado de Inovação].
O Social Good Summit foi um desses conclaves privados visando a
mudança mundial, uma conferência de dois dias que reunia “uma
comunidade dinâmica de líderes globais e ativistas grassroots com o objetivo
de discutir soluções para os maiores desafios de nosso tempo”. O evento
aconteceu na 92nd Street Y em Manhattan, e a promessa aos participantes era
que “se uniriam para desbloquear o potencial da tecnologia com o intuito de
fazer do mundo um lugar melhor”. A socialização de pessoas do setor público
e privado acontecia por toda parte neste evento, como em muitos outros. A
conferência foi patrocinada pela Target, Nike e Fundação Taco Bell, contudo
os M&M’s oferecidos no Digital Media Lounge foram estampados com
pequenos ícones que representavam os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU — o principal assunto da Semana da ONU naquele ano.
Mas, antes de as coisas começarem, houve um breve momento de silêncio
para refletir sobre Alan Kurdi, o menino sírio afogado que havia despertado a
atenção do mundo: um incentivo para relembrar a crise dos refugiados. Em
seguida, houve uma enxurrada de palestras de negócios: “Com o objetivo de
alcançar o mundo que queremos até 2030, colaboração e codesign são
fundamentais.” Também ficamos sabendo que “a Fundação Taco Bell
acredita que os jovens precisam sonhar alto”.
Esses inúmeros eventos — o de Bill Clinton e uma série de conferências
que visam mudar o mundo apadrinhadas por empresas que o tomaram como
exemplo — correspondiam a uma espécie de Semana da ONU paralela,
focada nos partícipes do Mercado Global. A poucos quilômetros da CGI,
localizava-se o edifício Langham, no Central Park West, construído ao estilo
do Segundo Império Francês. Na cobertura, que pertencia a um dos barões do
capital privado, alguns africanos foram convidados a conversar com pessoas
abastadas sobre como investir na África, em um jantar organizado por uma
das consultorias de combate à pobreza da McKinsey. Durante o frango ao
curry e a salada, falou-se sobre as possibilidades de acordos na África e a
respeito da estupidez da regulamentação e a importância do alcance. Então,
os convidados da festa embarcaram em um ônibus preto que os esperava no
térreo.
O ônibus transportava seus passageiros rumo ao centro da cidade para uma
festa em homenagem à África. A bordo do veículo estava um executivo alto e
esguio da Uber, que afirmou ser o responsável pela abertura dos mercados
africanos para a empresa. Era para demonstrar como os empenhos
humanitários de inclusão foram definidos para a nova e ampliada Semana da
ONU. O ônibus estacionou no Gramercy Park Hotel. O saguão estava em
alvoroço com a notícia de que o presidente Obama foi visto em um
restaurante próximo. Ele esteve na cidade durante a Semana da ONU, mas
também foi ao U.S.–Africa Business Forum. A comitiva do ônibus desfilou
até a cobertura do hotel, para uma apresentação organizada pelo novo Centro
Africano na Fifth Avenue.
A festa estava repleta de pessoas que alegavam “viver entre” dois lugares.
Salsichas de frango e ovos recheados eram servidos à volta. Um executivo
proeminente do Google podia ser visto fazendo uma nigeriana rir. O vice-
presidente de um dos grandes jornais dos Estados Unidos estava batendo de
leve no ombro da anfitriã da festa perguntando onde o pai dela estava. Ela era
Hadeel Ibrahim, e seu pai, Mo, era considerado o homem mais rico da África.
Sua coanfitriã da festa era Chelsea Clinton, que não compareceu. Mary
Robinson, ex-presidente da Irlanda, esteve de passagem na festa também.
Houve um breve brinde ao Centro Africano e à África. Então, de volta aos
negócios. Alguém murmurava a outra pessoa que deveria conhecer o homem
atrás dela, porque ele tinha uma casa deslumbrante em Martha’s Vineyard, e
na verdade não era bem uma casa, mas três casas separadas, e ele gostava de
convidar pessoas interessantes para visitá-lo.
Diversas pessoas que estavam na festa naquela noite trabalhavam para a
Dalberg, umas das consultorias de combate à pobreza, para a qual aquela foi,
certamente, uma grande semana. A Dalberg divulgou uma lista dos eventos
paralelos na Semana da ONU (ou os principais, dependendo da sua opinião).
Em seu cronograma, a coluna da direita indicava como alguém poderia
participar de cada um. Oito eventos eram de inscrição gratuita, 8 tinham
ingressos sendo vendidos e 48 eram somente para convidados. O percentual
desses eventos mostrava a verdade nua e crua sobre a nova Semana da ONU,
liderada pelo Mercado Global: quando atores privados se voltam para a
solução de problemas públicos, ela se torna cada vez menos parte da esfera
pública.
A privacidade das empreitadas da Fundação Clinton atraiu críticas ao longo
dos anos. Quem exatamente estava realizando as doações em dinheiro?
Quais eram exatamente as motivações? Eles estavam fazendo doações a fim
de assegurar influência ou cargos em um futuro mandato de Hillary Clinton?
Graças, em parte, a essas críticas e à expectativa de que Hillary vencesse em
breve, fazendo com que as críticas fossem ainda mais agressivas, a
conferência que havia feito tanto em prol da transformação da Semana da
ONU se reunia pela décima segunda — e última — vez. E naquela semana na
CGI havia uma nostalgia pairando no ar, e também preocupação. Muitas
sociedades eram dominadas por uma fúria violenta, alimentada pelo
sentimento de que o tipo de elites que viajavam mundo afora se reunindo
nessa conferência trabalhava mais com o intuito de proteger seus próprios
interesses nos últimos anos do que para fazer do mundo um lugar melhor.

O seventos
partícipes do Mercado Global estavam sendo despertados pela fúria. Os
de 2016 foram “o annus horribilis da elite global”, nas palavras
de Niall Ferguson, historiador de Harvard, um notório líder de pensamento,
generosamente pago e um membro estimado da tribo globalista. Ferguson
escreveu ao Boston Globe como ele e seus colegas riram de Donald Trump
em janeiro, em Davos, reivindicando a indicação republicana; e então, após
alguns meses, as repercussões em Aspen, Lago de Como e Martha’s
Vineyard, não levando a sério a campanha para separar a Grã-Bretanha da
União Europeia, somente para vê-la acontecer depois. As elites do mundo
estavam se tornando alvo de revoltas, e talvez essas revoltas tivessem alguma
coisa a ver com o quão desvinculadas elas estavam das realidades das outras
pessoas. Ferguson argumentou que sua tribo de “cosmopolitas sem raízes”
não tinha escolha a não ser concordar com este comentário do ministro da
fazenda alemão: “Cada vez mais, as pessoas não confiam em suas elites.”
Em Nova York, no período que antecedeu a Semana da ONU, essa
desconfiança pairava em vários jantares, salões, painéis de discussão e
reuniões do conselho que se preparavam para as próximas conversas a portas
fechadas. Nessas ocasiões, a pergunta que não queria calar era: por que eles
nos odeiam? “Eles” eram os compatriotas menos refinados dos cosmopolitas
sem raízes, que em diversas localidades estavam sendo atraídos cada vez
mais para o nacionalismo, demagogia e para a discriminação ressentida — e
rejeitando alguns dos credos mais estimados das elites: o mundo sem
fronteiras, a cura mercadológica para todos os males, o progresso tecnológico
inevitável e a gestão tecnocrática inofensiva.
Algumas elites tinham a convicção de que seu sonho maravilhoso tinha que
ser explicado novamente ao povo. A perspectiva de um mundo sem
fronteiras, com progresso tecnológico, gerido por dados e com a supremacia
do Mercado Global era parte da perspectiva ideal vendida de modo errado.
Eles não estavam vendendo a globalização, nem abrindo as fronteiras e
fazendo negócios com entusiasmo suficiente. Eles nem sequer apararam
adequadamente as arestas da mudança com ações como, por exemplo, a
reciclagem profissional para os refugiados.
Havia outra facção dos partícipes do Mercado Global que se perguntava se
o sonho globalista em si era problemático. Não que os membros dessa facção
fossem nacionalistas; eles também costumavam estar mergulhados na visão
globalista de ser bem-sucedido ao praticar o bem. No entanto, a fúria nas
ruas, em tantos lugares ao mesmo tempo, estava começando a atingi-los.
Começaram a perceber que eles e seus comparsas da elite não perceberam, ao
longo das décadas, uma frustração crescente no que dizia respeito às agonias
da mudança e que só agora estavam se tornando manchetes de jornais. Eles
reconheciam que os manifestantes também queriam que o mundo fosse um
lugar melhor, porém queriam mais do que palavras; as pessoas achavam que
as promessas das democracias se importavam com o que pensavam, ainda
que o cumprimento delas deixasse a desejar. No segundo semestre daquele
ano, quando os partícipes do Mercado Global se encontraram em discussões
acaloradas sobre a fúria, alguns sugeriram aos outros: Talvez o problema seja
nós.
E qual seria exatamente a natureza desse problema? Muitos partícipes do
Mercado Global exploravam essa questão publicamente.
Na visão de Ferguson, ele e seus colegas das elites do Mercado Global
haviam sido arrastados para uma nova luta de classes. Já não eram ricos
versus pobres, e sim pessoas que alegavam pertencer a todos os lugares, em
vez de pessoas que ficavam limitadas a um só lugar — repercutindo a ideia
de seu colega Michael Porter de que as pessoas estão em algum lugar e os
negócios estão por toda a parte. Na narrativa de Ferguson, baseada no mesmo
ensaio anterior, o que saiu de errado foi que pessoas ao redor do mundo
simplesmente não eram mais enganadas pela preocupação e pela caridade das
empresas onipresentes, e pelos índices alcançados por essas empresas: “Não
existe recompensas para se adivinhar qual grupo é o mais numeroso. Não
interessa quantas doações a elite global tenha feito, de cunho filantrópico e
político, nunca poderemos compensar essa desigualdade.”
Similares às empresas orientadas por protocolos que Michael Porter
criticou, os vencedores do Mercado Global, de acordo com Ferguson, haviam
renunciado a qualquer lealdade aos locais da comunidade. A questão era que
o mundo ainda era governado localmente e, portanto, as elites cujas lealdades
e projetos eram focados em nível global estavam basicamente se distanciando
da própria democracia. E atualmente alguns dos globalistas mais militantes
estavam admitindo isso. Lawrence Summers, o economista que anteriormente
administrava o Tesouro dos Estados Unidos e a Universidade de Harvard,
escreveu sua própria apologia no Financial Times, apelando para o fim do
“reflexo do internacionalismo” e para um novo “nacionalismo responsável”:
Uma nova abordagem deve se estabelecer a partir da ideia de que a
responsabilidade básica do governo é maximizar o bem-estar dos cidadãos,
não buscar um conceito abstrato de bem global. As pessoas também
querem sentir que as sociedades em que vivem estão sendo transformadas.
Dani Rodrik, colega de Summers em Harvard, publicou um artigo no New
York Times, no sábado anterior à Semana da ONU, advertindo os partícipes
do Mercado Global do lema de que o bom para eles era bom para todo o
mundo. A globalização, argumentou, precisava ser resgatada “não somente
das mãos dos populistas, mas também das mãos de seus apoiadores”. Ele
escreveu: “O novo modelo de globalização definiu prioridades a esmo,
colocando efetivamente a democracia para trabalhar em favor da economia
global, e não o contrário.”
Em um ensaio, Jonathan Haidt propunha outra teoria do que havia saído de
errado naquele ano. “Se você quer entender por que o nacionalismo e o
populismo de direita cresceram tão rápido, deve começar com a análise das
ações dos globalistas”, escreveu. “De certo modo, isso ‘teve início’ com os
globalistas.” Em sua opinião, os globalistas iniciaram tudo isso porque “a
nova elite cosmopolita”, conforme ele a chamava, “age e fala de formas que
insultam, alienam e estimulam muitos de seus compatriotas, principalmente
aqueles que têm uma predisposição psicológica ao autoritarismo”. Para Haidt,
os globalistas eram utópicos. Eles acreditavam na mudança e no futuro. Eles
eram “antinacionalistas”, “antirreligiosos” e “antiprovincianos”, acreditando
que “qualquer coisa que divida as pessoas em grupos ou identidades é ruim; a
extinção das fronteiras e a segmentação são boas”. Pode-se entender seus
adversários, prossegue Haidt, como aparelhados com a intuição dos preceitos
que Émile Durkheim ajudou a reiterar em seu livro de referência O Suicídio:
“As pessoas que têm vínculos fortes por meio de laços familiares, religiosos e
de comunidade local apresentam menores taxas de suicídio.” E Haidt
expressa: “Mas quando as pessoas escapam às obrigações da comunidade,
vivem em um mundo de ‘anomia’ ou de falta de normas, e a taxa de suicídio
aumenta.”
Na análise de Haidt, o globalismo e o antiglobalismo são mundividências
convincentes, com questões e dados válidos que as justificam. Há vantagens
em um mundo socialmente heterogêneo e na mobilidade humana livre e
desenfreada, e há vantagens diferentes em comunidades estáveis e
estreitamente vinculadas. Todavia, segundo Haidt, os globalistas haviam se
convencido a tal ponto da superioridade moral da abertura, da liberdade e de
um mundo único que eram incapazes de analisar o medo legítimo que essas
coisas despertavam em milhões de pessoas.
O que essas manifestações não raro ignoravam era a abundância de racismo,
xenofobia, antissemitismo, machismo e difamação dos imigrantes ilegais e
até mesmo o incentivo dessa intolerância por parte dos populistas. Eram
sentimentos genuínos que desempenharam um papel importante na história
da turbulência política. Ainda assim, também se pode argumentar que os
pecados do Mercado Global — aqueles que foram absolvidos por Ferguson e
tantos outros — eram relativamente culpados por terem concedido espaço aos
populistas de direita, etnonacionalistas, entre outros.
Alguns dias após a CGI e antes da eleição presidencial, em uma entrevista
por e-mail, Bill Clinton opinou sobre o que motivava a onda da fúria
populista. “O sofrimento e a fúria que vemos refletidos nas eleições vêm se
construindo há muito tempo.” Ele achava que a fúria “está sendo alimentada
em parte pelo sentimento de que as figuras poderosas do governo, da
economia e da sociedade não se importam mais com as pessoas ou as
desprezam. Elas querem participar do nosso progresso por meio de
oportunidades, estabilidade e prosperidade compartilhadas”. Mas quando se
tratava da solução de Bill Clinton, ela se assemelhava bastante ao modelo
com que ele já estava comprometido: “A única resposta é firmar uma parceria
criativa e ofensiva, envolvendo todos os níveis governamentais, o setor
privado e as organizações não governamentais visando a melhoria.” Ou seja,
a única resposta é buscar a mudança social deixando de lado os meios
públicos tradicionais, sendo os representantes políticos da humanidade
apenas uma entre tantas contribuições, e as empresas decidirem qual
iniciativa patrocinar ou não. Em partes, era óbvio que a crescente fúria
populista tinha por alvo as mesmas elites que ele procurava reunir, nas quais
ele apostava as fichas de sua teoria da solução de problemas pós-políticos, e
que eram objeto de desconfiança de milhões de pessoas, que se sentiam
traídas, abandonadas e desprezadas.
O que as pessoas contestavam nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na
Hungria e em outros lugares era, na opinião delas, a governança pela mão das
elites globais que colocam a busca do lucro acima das necessidades de seus
vizinhos e conterrâneos. Ao que tudo indica, essas elites eram mais leais
umas às outras do que às comunidades; elites que com frequência tinham um
interesse maior em causas humanitárias distantes do que no sofrimento das
comunidades ao redor. Cidadãos frustrados achavam que não detinham o
mesmo poder sobre as planilhas e os slides de PowerPoint que as elites
detinham, se comparado ao poder que haviam conquistado sobre eles — seja
na mudança de escalas de trabalho, seja na automação fabril ou no desvio das
leis em favor de um novo conteúdo programático elaborado por bilionários
para ser usado na escola de seus filhos.
Eles não gostavam que o mundo fosse mudado sem eles.
s organizadores da última CGI, realizada no auge da revolta antiglobalista,
O decidiram que um painel sobre o assunto era essencial. E concluíram que
o painel deveria contar somente com a participação de globalistas, com
ninguém representando o outro lado. (Esta não foi a única exclusão em cena:
aqueles inspirados pelo assunto que porventura fossem às primeiras fileiras
de assentos da sala, as encontrariam vazias na maior parte do tempo,
reservadas aos patrocinadores cheios da grana, incluindo o McDonald’s e a
Fundação Rockefeller.)
O título formal da sessão era “Partnerships for Global Prosperity” [Parcerias
para a Prosperidade Global]. Um título mais adequado seria “Por que Eles
nos Odeiam?” Bill Clinton era o mediador desse painel. Dele participavam
Maurício Macri, um ex-empresário que havia derrotado os populistas
inflexíveis da Argentina para se tornar presidente; Matteo Renzi, o Primeiro-
Ministro italiano, que espelhou sua própria carreira no progressismo pró-
mercado que Bill Clinton chamou de “Terceira Via”; Ngozi Okonjo-Iweala,
ex-ministra da Nigéria e funcionária do Banco Mundial, vista frequentemente
em Aspen, no TED e em outras partes do circuito do Mercado Global, e que
ingressara recentemente no banco de investimentos Lazard; e Sadiq Khan, o
primeiro prefeito muçulmano de Londres e defensor da condenada campanha
Remain para manter a Grã-Bretanha na União Europeia. Os palestrantes
representavam a esquerda e a direita, e todos no palco faziam parte do
consenso globalista, cosmopolita e tecnocrático do método todos saem
ganhando, promovido e apadrinhado pelo Mercado Global, que vinha sendo
alvo de críticas ultimamente.
Bill Clinton elogiou Macri por instaurar o bom senso em um país afetado
pelo que ele chamou de “uma situação econômica e política totalmente
desacreditada”. Em seguida, convidou-o para compartilhar com os
espectadores “suas descobertas, o que está tentando fazer e como outras
pessoas podem ajudar com isso, sobretudo as pessoas do setor privado e das
organizações sem fins lucrativos”.
“A Argentina, como você sabe, presidente, sofreu décadas com o
populismo”, começou Macri. Ele definiu a vitória de sua campanha em favor
do mercado como uma decisão coletiva de que os argentinos “mereciam viver
melhor. Queríamos fazer parte do mundo. Queríamos romper com as
barreiras do isolacionismo”. Sabendo que o auditório estava interessado em
fazer do mundo um lugar melhor, ele decidiu concentrar seus comentários em
seu plano de reduzir a pobreza na Argentina. Apesar disso, não chegou nem
perto dos conceitos de igualdade, justiça e poder; não abordou temas como
reforma agrária ou concentração de riqueza nas mãos de um grupo de
famílias. Ao contrário, ele falou da viabilização dos negócios. “Sabemos,
todos nós sabemos, que para reduzir a pobreza, é preciso gerar bons
empregos, empregos de qualidade”, disse. “E para isso você precisa
promover um ambiente de confiança, de segurança. Precisa assegurar aos
investidores que respeitará o Estado de Direito, que será digno de crédito.”
O que Macri estava defendendo era o clássico método do todos saem
ganhando do Mercado Global influenciado pelo globalismo: a melhor coisa
para os desfavorecidos na Argentina era fazer seja lá o que for para que os
investidores estrangeiros e as agências internacionais se sentissem em casa.
Por isso, ele alegou, estava tomando “decisões difíceis”: unificar a taxa de
câmbio do país, autorizar o pagamento de dividendos no exterior, solucionar
as disputas do país com os titulares das obrigações estrangeiras. Ele estava
orgulhoso de ter levado uma delegação do Fundo Monetário Internacional
(FMI) para a Argentina há pouco tempo. Estava entusiasmado por ter sediado
um fórum de negócios e investimentos na semana anterior, atraindo algumas
centenas de empresários de dezenas de países. “Precisamos que todas as
empresas globais venham para a Argentina com o objetivo de ajudar no
desenvolvimento do nosso país.” Seu conceito de boa sociedade como um
espaço aconchegante ao capital estrangeiro era uma solução estranha, visto
que a gente comum nadava em ressentimento contra os globalistas e os
vencedores da mudança.
Bill Clinton prosseguiu com Renzi, a quem elogiou por ter a coragem de
levar políticas pró-mercado à Itália — reformar o mercado de trabalho e criar
um referendo controverso (e, em última instância, condenado) com o objetivo
de reduzir o número de legisladores e consolidar seu próprio poder. Renzi era
exatamente o tipo de político aprovado pela Moody’s que a plateia adorava, e
ele disse todas as coisas certas, e novamente eram sobre economia
substituindo a política. A Itália, segundo Renzi, não podia mais se reduzir a
obras-primas e cultura. O país tinha que aceitar o “desafio da mudança”.
Renzi evitou o casual ao falar sobre suas reformas trabalhistas no mercado,
que retratavam outro aspecto do consenso globalista. Ele disse que a reforma,
no ano anterior, das leis de contratação e demissão da Itália finalmente elevou
o país aos padrões da Alemanha e da Grã-Bretanha. E acrescentou:
“Obviamente, os Estados Unidos chegaram a esse nível há 20 anos.” Os
globalistas acreditavam que existiam “respostas certas” para as políticas
públicas — respostas que faziam de um país um lugar seguro aos investidores
estrangeiros com os quais Macri estava preocupado — e que estabeleciam um
mercado de trabalho bastante flexível, fácil de contratar e demitir as pessoas.
Logo, não se chegava à resposta certa por via democráticas: não era a
resposta escolhida pelos italianos, por ação ou omissão, durante aqueles 20
anos de “atraso”. Era um clichê globalista que rondava o país, aguardando
que adotasse a cartilha e seguisse o caminho previdente do mundo. E, quando
por fim o fazia, o primeiro-ministro da nação poderia descrever aqueles anos
anteriores, definidos por outras escolhas, como um atraso. Os italianos, que
não são famosos pela pontualidade, chegaram atrasados à “resposta certa”
dos globalistas. Líderes como Renzi enxergavam o programa de verificação
impulsionado pelas agências multilaterais e pelos investidores estrangeiros
como detentor de uma validade moral que faltava às escolhas democráticas
de seus cidadãos, pois elas eram prejudiciais à eficiência e ao
desenvolvimento.
Agora, Bill Clinton se voltava para o prefeito Khan, a quem elogiou por ser
“um grande exemplo de interdependência positiva”. O Mercado Global
acreditava na interdependência, porque espelhava como o mundo era um só e
também porque se traduzia em mais mercados para as empresas entrarem.
(Na maior parte das vezes, encontramos pessoas nacionalistas, mas raramente
encontramos empresas nacionalistas.) O ex-presidente reconhecia que essa
perspectiva estava em risco, e por enquanto “a intensidade dos sentimentos
das pessoas que resistem à nossa união prevalece sobre a intensidade
daqueles que estão ganhando com ela”.
Seria bom ver alguém no palco que realmente sentisse um pouco do
ressentimento que estava assolando o mundo. Mas ficou a cargo de Khan
explicá-lo. Uma pessoa lhe perguntou: “O que o voto do Brexit tem a ver
com o que está acontecendo em todo o mundo?” “Durante a campanha do
referendo”, respondeu Khan, “as pessoas que enfrentavam dificuldades para
colocar seus filhos em boas escolas no bairro, pessoas que se preocupavam
com a assistência médica e com moradias a preços mais acessíveis foram
levadas para o caminho da política do medo. Foi-lhes dito que a razão de suas
dificuldades e de seus problemas era a União Europeia e os estrangeiros”.
Dito de outro modo, as pessoas que votaram no Brexit foram facilmente
induzidas ao erro.
Bill Clinton intensificou as críticas sobre essa ideia de falsa consciência.
“Todos esses condados ingleses votaram a favor da desistência do auxílio
econômico da UE”, disse ele. “E eles tinham que fazer isso, mas não tinham a
menor ideia do que estavam fazendo. Eles só queriam entrar e fechar a porta.
Temos uma espécie de mentalidade emocional de nós versus eles.” Este era o
diagnóstico do ex-presidente dos Estados Unidos alguns meses após o
inesperado sucesso do Brexit e dois meses antes da derrota imprevista de sua
esposa para um demagogo populista que se aliou à campanha pelo Brexit. As
pessoas que se colocavam na posição de entender a fúria à sua volta estavam
comprometidas com a ideia de que essa fúria não tinha uma base possível na
racionalidade ou na escolha consciente. Elas não conseguiam lidar com
pessoas que enxergavam o mundo fundamentalmente diferente do que os
partícipes do Mercado Global e que, equivocadas ou não, desejavam ser
ouvidas.
“Tenho muito orgulho de Londres ser a única região da Inglaterra a votar
determinadamente a favor da UE”, disse Khan. “Em minha opinião, não é um
jogo de soma zero. E se Londres está caminhando bem não é às custas do
restante do Reino Unido. Se Londres está indo bem, o resto do país
prospera.”
O conceito de que o que era bom para uma megalópole próspera e
interconectada globalmente, repleta de banqueiros e outros profissionais
especializados que podiam se dar ao luxo de viver nela, dominada pelos
príncipes distantes da Arábia Saudita, da Rússia e da Nigéria que subiam o
preço dos aluguéis sem contribuir muito com a economia, com a tributação
ou com as comunidades em que viviam — a ideia de que o que era bom para
uma metrópole desse tamanho era automaticamente bom para toda a Grã-
Bretanha fazia parte do conceito que alguns eleitores rechaçaram,
compreensivelmente, quando confrontados com a escolha do Brexit. Para
citar um contraexemplo, nos últimos anos a Grã-Bretanha havia se envolvido
em uma discussão política sobre austeridade. A espécie de “disciplina” fiscal
corroborada pelas elites bancárias londrinas se traduziu diretamente em cortes
na educação, na saúde e na mobilidade social reduzida, coisa que enfureceu
as pessoas e as levou a se perguntar como é que existia dinheiro para ajudar
os estrangeiros. Contudo, na visão de Khan não havia espaço para a ideia de
que a gente comum sofria, tanto na Grã-Bretanha como no mundo, porque as
coisas eram boas e fáceis demais para a elite, além de serem manipuladas em
seu benefício. Ele estava propondo outra versão do que Macri e Renzi haviam
reiterado: os vencedores da globalização não faziam de modo algum parte do
problema; se os ajudarmos a vencer, todos saem ganhando.
Em um único painel tínhamos a representação do complexo de valores da
CGI: fazer as coisas amigáveis ao mercado em vez das ideais; a ênfase no que
as pessoas supostamente precisavam na economia em detrimento ao que elas
queriam na política; a crença de que as respostas tecnocráticas corretas, com
base em dados, falam por si; a avaliação do sucesso dos políticos mediante os
retornos dos investidores; e a compreensão das forças do mercado como uma
inevitabilidade à qual devemos nos render, adaptar e ceder lugar.
Os quatro membros do painel e Bill Clinton especularam sobre “essas
pessoas”, como Okonjo-Iweala as chamava. Eles ponderaram sobre a fúria do
outro lado e apresentaram teorias convenientes. Bill Clinton afirmou que “o
modelo de conflito funciona melhor em momentos de crises econômicas”.
Okonjo-Iweala sugeriu que facilitar o acesso às vacinas — seu ramo de
especialidade como líder de uma aliança global de vacinas chamada GAVI —
poderia ajudar a apaziguar a fúria. (Ela não mencionou os banqueiros para
quem agora trabalhava, pois, caso fossem punidos pelos seus pecados,
ressarcissem a população pelos resgates financeiros que recebiam e tivessem
a humildade de abandonar essa conduta burlatória, isso também poderia
apaziguar a fúria da sociedade.) Ela falou das vacinas aos espectadores do
Mercado Global em um linguajar que eles entenderiam: as vacinas não
salvavam apenas vidas; eram um investimento, visto que cidadãos saudáveis
geram um crescimento maior, pagam mais impostos e atraem as empresas.
Segundo ela, as vacinas são “uma das melhores aquisições econômicas da
atualidade”, porque cada “US$1 investido em vacinas gera US$16”. Estava
bastante entusiasmada: “A taxa de retorno do investimento é alta.”
Pouco depois, Okonjo-Iweala afirmou que a tribo globalista representada na
sala precisava “desmascarar aqueles que estão tentando usá-los como
plataforma” — “eles” eram os eleitores furiosos. As pessoas estavam sendo
usadas; eram meros ignorantes. A recusa em aceitar que as pessoas
enfurecidas estavam tentando ativa e organizadamente dizer alguma coisa,
ainda que imperfeita, aos seus compatriotas era completa. Mas elas não
estavam participando do painel para lhes dizer pessoalmente o que quer que
fosse.
Os participantes do painel se consideravam superiores e desvinculados da
política medonha e conflituosa. Sua política era tecnocrática, devotada à
identificação de respostas certas que já eram conhecidas de todos e bastavam
ser analisadas e disseminadas. Ela havia tomado emprestado do mundo dos
negócios a adoração e o mutualismo da metodologia do todos saem
ganhando. Era curioso ter cinco personalidades políticas dividindo um palco
e não ter um momento sequer de debate real. Ao que tudo indicava, todos
presumiam que a boa sociedade era a sociedade corporativa, cujo sucesso
correspondia ao da própria sociedade. Cuja concepção do mundo estava entre
as aspirações humanas mais primordiais. Que o governo deveria funcionar
como parceiro do setor privado, não como contrapeso.
Ao observar esse grupo tão civilizado, alguém poderia esquecer que a
política tradicional é objeto de questionamento por um motivo. Não é que os
políticos não saibam ser amigáveis, e sim que a política tem como base o
conceito de uma população grande e heterogênea assumindo as rédeas do
próprio destino. Por natureza, a política é uma ideia complexa de conciliação
e reconciliação de interesses incompatíveis, e de elaborar um projeto decente,
desenvolvido para ser entendido, não amado. Em um contexto participativo
em que todos são convidados a contribuir, isso resolve o problema, visto que
todos são iguais e têm o direito de reclamar por não serem atendidos e
deixados de lado. A política, ao reunir pessoas de interesses divergentes,
necessariamente coloca o sacrifício em cena. Todavia, é mais fácil se
apresentar em eventos como esse, com soluções mágicas em que todos saem
ganhando e todo mundo é um vencedor. Esse tipo de consenso nos lembrava
da pluralidade de pessoas e pontos de vistas que não haviam sido convidados
para a CGI.
Os palestrantes sabiam que viviam em um contexto de fúria violenta e
pareciam estar sondando maneiras de responder a isso. “O mais importante,
em vez de brincar com os medos das pessoas, é resolvê-los”, disse o prefeito
Khan. Bill Clinton confessou seu medo de que os vencedores do Mercado
Global, ao confrontar a fúria ao seu redor, se distanciassem. “Uma das coisas
que acho que deve ser trabalhada em todo o mundo é não permitir que nossas
áreas urbanas, diversificadas, novas e bem-sucedidas economicamente
digam: ‘Isso é desgastante. Vou fugir para as áreas rurais e de tudo isso.’”
Será que a fúria pela secessão da elite simplesmente estimularia mais
secessão? Será que o escapismo corporativo que Porter criticou e o escapismo
cosmopolita dos vencedores de Ferguson, ao deixar à flor da pele as relações
de tantas comunidades e ao alimentar tanta insatisfação, se traduziriam em
resultados — ou melhor, seriam mais fáceis de justificar agora? Bill Clinton
disse: “Este é um grande teste para todos nós.”

sonho de um mundo sem fronteiras dominava a CGI. Vamos avaliar o


O painel mediado por David Miliband, ex-Secretário de Relações
Exteriores britânico, que agora era o responsável pelo Comitê Internacional
de Resgate. O tema eram os refugiados. Era o tipo de problema complexo e
mundial que permitia aos partícipes do Mercado Global subestimar
diretamente as democracias nacionais. Hikmet Ersek, CEO da Western
Union, sentado ao lado de seu colega de painel, o Primeiro-Ministro da
Suécia, afirmou: “Um dos problemas dos políticos, com todo o respeito, Sr.
Primeiro-Ministro, é que o voto é da população local, mas você é responsável
por problemas globais.” Ao ouvir isso, a rainha Rania da Jordânia, que com
frequência participa das reuniões do Mercado Global, acrescentou: “Uma
coisa que acho decepcionante, quando se analisa a maioria dos líderes ao
redor do mundo, é que eles estão limitados a formas lineares de pensamento e
abordagens tradicionais. Ou são consumidos por questões inadiáveis, como
votos e políticas de curto prazo, e não pensam nas disrupções que estão
acontecendo no mundo e nos impactos que terão em um futuro próximo.”
Esta era uma marca da CGI. Ali estava um CEO se lamentando pelo fato de
um político representar um grupo real de uma localidade específica.
Certamente, isso contrastava com um CEO do setor financeiro, que
representava a circulação do capital em toda parte e tinha um interesse
monetário veemente em um mundo sem fronteiras. Porém isso fazia de um
líder eleito, representando um grupo específico de pessoas, cego a essas
questões? E ali estava uma rainha sugerindo que os políticos eram
consumidos pela angariação de votos de modo que não pensem claramente
sobre o mundo. Mas para a rainha Rania, os eleitores não eram um motivo
com o qual ela e seu marido, que também estava na CGI, deviam se
preocupar — muito menos o CEO da Western Union, a propósito. Não se
preocupar com votos era uma das vantagens em ser um monarca ou um CEO.
Ali a tendência antidemocrática do globalismo estava clara. Os globalistas
estimulavam um modo de solucionar os problemas que contemplava todas as
inclinações políticas. Eles não estavam interessados em contribuir para
melhores práticas políticas, e sim insistindo em sua exclusividade de dar ao
mundo o que ele precisava, não necessariamente o que ele queria.
Caso os organizadores da CGI estivessem realmente interessados no porquê
de as pessoas se sentirem ofendidas pelos globalistas, poderiam ter convidado
Dani Rodrik, um economista de Harvard nascido na Turquia e autor de vários
livros acerca da globalização. A vida bicultural de Rodrik evidenciava sua
crença no One Worldism, mas ele se tornara um dos críticos mordazes sobre
como as intenções nobres dos globalistas subvertiam a democracia.
“Não existe um cidadão mais do mundo do que eu”, disse ele por telefone,
de seu escritório na Kennedy School. “Sei mais sobre o resto do mundo do
que sobre os Estados Unidos. Tenho passaporte de dois países, e a maioria
dos meus amigos aqui não são norte-americanos.” Então, seria esperado que
Rodrik recuasse, como muitos dos globalistas fizeram, quando Theresa May,
a Primeira-Ministra britânica, acusou os “cidadãos do mundo” logo após
ascender ao poder na sequência agitada do referendo do Brexit. “Hoje”, ela
disse:
muitas pessoas em posições de poder se comportam como se tivessem
mais em comum com as elites internacionais do que com as próximas
gerações, com as pessoas que empregam, com as pessoas que caminham
pelas ruas. Mas se você acredita que é cidadão do mundo, você é um
cidadão de lugar nenhum. Você não entende o que significa cidadania.
Rodrik constatou uma reação imediata e violenta a essas palavras entre seus
colegas de elites instruídos e que viajavam mundo afora. A reação globalista
quase universal foi que essa declaração era errada e maldosa: “Isso é uma
tentativa de apelar aos instintos mais básicos das pessoas.” O que
surpreendeu Rodrik era que “a reação foi, conforme o esperado, negativa, a
algo que me parecia tão evidente à primeira vista”. Talvez a sugestão de May
fosse problemática, dada sua tentativa de se aproveitar da onda crescente de
xenofobia. Mas, na visão de Rodrik, também se referia a um problema real:
muitas elites — não raro, com boas intenções — que falam solene e
animadamente em fazer do mundo um lugar melhor dificilmente participam
de uma reunião da comunidade; muitas elites que afirmam sentir um vínculo
com toda a humanidade optaram por viver isoladas das pessoas que não são
da sua classe. “As pessoas ao redor da Clinton Global Initiative ou do
establishment globalista liberal acreditam na própria narrativa de que
realmente estão trabalhando em benefício do mundo”, disse Rodrik. “Mas
elas não fazem parte de um processo político. Um processo político exige que
você esteja competindo e testando ideias contra as de outros cidadãos. Os
cidadãos são definidos como membros de uma comunidade política
preexistente. Obviamente, não temos isso em nível global.” Em outras
palavras, a política tem a ver com lugares reais, com histórias compartilhadas
reais. O globalismo, ao perseguir um sonho de um mundo único, corre o risco
de não pertencer a ninguém.
Para Rodrik, não se trata apenas da resolução dos problemas em nível global
(que, na ausência de um governo global, normalmente significa solucionar as
coisas de maneira privada, ou seja, pelos plutocratas) não ter legitimidade. Ao
pressionar as coisas para esse domínio, os globalistas se valem da “garantia
moral ou ética para fugir às suas obrigações domésticas como cidadãos em
seu próprio contexto nacional”. É um meio de praticar o bem que lhes
permite ignorar o fato de que suas democracias não estão indo nada bem. Ou
simplesmente possibilita que eles se esquivem à obrigação que poderiam
sentir de interagir com seus conterrâneos além das divisões, com o intuito de
conhecer os problemas enfrentados por suas próprias comunidades — fato
que poderia comprometer não apenas os globalistas, como suas escolhas e
seus privilégios — em contrapartida aos desafios universais, tais quais
mudanças climáticas ou infortúnios de localidades distantes, como as
plantações de café de Ruanda. Nesses casos, a dispersão ou a distância dessas
áreas lhes poupava das críticas.
Segundo Rodrik, os globalistas aderiram a uma teoria do progresso que não
condizia com a realidade da época. “Existe uma compreensão geral de como
o mundo funciona, e acho a base desse tipo de iniciativa ilusória. E essa
compreensão gira em torno de o mundo sofrer uma carência de cooperação
internacional.” E, segundo ele, ela se coaduna com algumas questões, como
pandemias globais e mudanças climáticas. “Mas quando você pensa em
outros setores, como finanças internacionais, desenvolvimento econômico,
estabilidade comercial e financeira, comércio internacional, o problema a
meu ver não é que não tenhamos governança ou cooperação global suficiente,
ou que não estejamos nos reunindo o suficiente. O problema é que a nossa
governança doméstica está em débito conosco.” Ele ainda acrescenta: “A
maioria dos problemas enfrentados pela economia mundial — restrições
comerciais, instabilidade financeira ou desenvolvimento inadequado, pobreza
mundial, entre outros — seria menos grave se nossa política local estivesse
funcionando adequadamente.”
“E a ideia de que você poderia desenvolver essas soluções externamente, ou
simplesmente cair de paraquedas e colocá-las em prática, ou desconsiderar a
política local em favor desses tipos de iniciativas internacionais até tem seu
mérito; tais iniciativas são válidas como empenho complementar. Agora,
quando visam substituir o trabalho árduo em que todos devemos nos engajar,
no que se refere aos nossos processos político internos, penso que isso se
torne uma perversidade sem tamanho.” Rodrik via uma “relação direta” entre
a antipolítica do ser bem-sucedido ao praticar o bem, vendida pelos
globalistas, e o caos de 2016. “As elites globais financeiras, políticas e
tecnológicas estavam se distanciando de seus compatriotas. Logo, as pessoas
passaram a não confiar mais nelas.”
Há alguns anos, C.Z. Nnaemeka escreveu um ensaio visionário sobre esse
distanciamento na MIT Entrepreneurship Review. O ensaio criticava a
negligência da elite de 20 e 30 e poucos anos ao que ela chamava de
“subclasse comum” — pessoas que não são ricas o bastante para fazer parte
das elites globais nem pobres o suficiente para chamar a atenção delas. “É
possível que se tenham mais pessoas ajudando os moradores em dificuldades
nas favelas em Calcutá, Kibera ou Rio do que ajudando quem passa por
dificuldades nas regiões, por exemplo, da Virgínia Ocidental, Mississippi ou
Louisiana.” Essa predileção pelas necessidades longínquas e pela solução
internacional dos problemas intensifica a sensação de que todos os globalistas
estão em conluio e não prestam atenção aos seus compatriotas. Esse
sentimento assume proporções ainda maiores em decorrência de um
complexo amplo e cínico, resultando em teorias da conspiração e notícias
falsas. Isso ainda se agrava em virtude das mudanças mundiais ao longo da
última geração — cada vez mais decisões que afetam a vida das pessoas são
tomadas em nações onde elas não residem; os brinquedos de suas crianças
são produzidos cada vez mais em cidades cujos nomes elas não conseguem
nem pronunciar; as decisões sobre o que leem estão sendo tomadas por
algoritmos cujos criadores são invisíveis.
Todas essas mudanças ajudam a explicar o sentimento de desorientação que
muita gente tem nos dias de hoje e por que é o momento propício para a elite
ganhar a confiança de seus conterrâneos — e por que as coisas vão por água
abaixo quando isso não acontece. Rodrik também menciona Hillary Clinton.
“Suas propostas teriam feito mais em benefício das classes média e média-
baixa do que as propostas de Trump.” Mas “ela não conseguiu ser aceita, e
acho que é por causa da perda de confiança, pois ela estava associada a um
grupo de elites globalistas ou apenas convivendo com o Goldman Sachs e
assim por diante. E, por mais que suas propostas fossem boas, isso pouco
importava, pois se as propostas políticas vêm de pessoas em quem você não
confia, que acha que não estão considerando seus interesses, elas não serão
levadas a sério.”
Como os globalistas tinham propensão a conviver com seus pares, eles
corriam o risco de ficar presos à sua própria câmara de eco ideológica. De
acordo com Rodrik: “Haviam algumas lendas sobre como a globalização
deveria funcionar, e essas pessoas acreditavam em tais narrativas. E essa
coisa de nadar conforme a maré acabaria afundando todos os barcos. Essa
narrativa continuou sendo contada, e depois reiterada, e qualquer pessoa que
a refutasse estava basicamente protegendo seus próprios interesses.”
Rodrik questionava: “Se você tem uma compreensão do mundo ilusória,
como vai descobrir isso?” Ele respondeu sua própria pergunta: “Em um
mundo democrático ideal, em que se exerce integralmente a cidadania e a
participação, você submete sua ideia a um processo em que os cidadãos
locais são consultados e percebe: ‘Veja bem, espera aí; achei que essa ideia
era boa, mas o que está acontecendo na Carolina do Norte, onde as pessoas
perderam o emprego por causa do NAFTA [Tratado Norte-americano de
Livre Comércio]?’ Talvez não tenhamos colocado em prática o tipo de
proteção necessária, e eu entendo isso. A questão é que ninguém está
prevendo esse tipo de exposição e desafio.”
Seja lá qual for o tipo de posicionamento crítico à globalização, ele tem que
competir com a ostentação moral da ideologia de um mundo unitário,
argumenta Rodrik. A união sempre parece melhor do que a segmentação, e o
engajamento melhor do que a ponderação. O próprio Bill Clinton foi o mestre
em circunscrever a globalização não em um terreno de escolhas, tampouco
em um sistema específico de políticas e incentivos que poderia ser instaurado
razoavelmente, e sim no terreno da inevitabilidade do progresso moral. “Eu
respeito os antiglobalistas e acho que muitas de suas críticas são válidas. Mas
eles querem voltar a um tempo que nunca existiu”, disse ele certa vez em
uma palestra, e acrescentou: “A história humana é uma jornada que sai do
isolamento rumo à interdependência e à integração. Um mundo dividido é
insustentável e perigoso. Os antiglobalistas querem ir da interdependência
para o isolamento, e isso não é possível.” O que muitas vezes era uma
perspectiva bastante limitada da globalização, baseada na premissa de
viabilizar a expansão das empresas e a otimização dos protocolos de forma
mais integrada, assumiu o status retórico de evolução moral. O que permitiu
que as críticas fossem rotuladas como ódio, mesmo quando não tinha nada a
ver com isso. Por exemplo, você quer limitar alguma área comercial no
México? Você odeia o povo mexicano? Não acredita que somos todos filhos
de Deus?
Na opinião de Rodrik, o sonho da harmonia mundial é admirável, e a
filantropia e a preocupação social estimuladas por um evento como a CGI
têm méritos inquestionáveis. O seu receio era que o círculo globalista que
fazia parte desse evento continuava a subverter o conceito da política ao
mesmo tempo em que buscava moldar o mundo. “O locus da política, penso
eu, é a questão fundamental aqui. Qual é o lugar adequado da política e quem
são as autoridades responsáveis pela tomada de decisão? Seriam esses
circuitos e esses encontros internacionais? Ou é algo mais no nível nacional?
Quem deve fazer a mudança e onde a mudança deve ser feita?”
E, quando falava isso, ele já imaginava a objeção dos globalistas: mas não
estamos envolvidos politicamente quando vamos para CGI, Davos, Aspen
Institute ou Skoll. Estamos apenas ajudando as pessoas. “Provavelmente as
pessoas que se reúnem nesses encontros não acham que o que estão fazendo
seja política”, disse Rodrik. “E com certeza é política. É apenas uma política
com um locus diferente e uma perspectiva distinta da que interessa, de como
você pode mudar as coisas, e com uma teoria diferente de mudança e de
quem são os agentes dessa mudança.” Em outros termos, caso esteja tentando
moldar o mundo para melhor, você está se engajando em um ato político — o
que nos leva à questão de se você está empregando um processo político
adequado no processo de moldar o mundo. Segundo Rodrik, o problema com
a perspectiva dos globalistas enquanto cidadãos do mundo que querem mudá-
lo por intermédio de parcerias reside no fato de “não se prestam contas a
ninguém, porque os interlocutores são apenas outros cidadãos do mundo. A
ideia de se ter uma organização política e essas demonstrações trazem
responsabilidades. Mas o sistema político lhe garante isso e essas iniciativas,
não”.
O sistema político sobre o qual Rodrik falava não abarcava apenas o
Congresso, a Suprema Corte ou os governos estaduais. Abarcava todos eles e
mais um pouco. Trata-se da vida cívica. Trata-se do costume de solucionar os
problemas juntos, na esfera pública, por intermédio das ferramentas
governamentais e nas trincheiras da sociedade civil. Trata-se de solucionar os
problemas de modo que as pessoas beneficiadas influenciem essas soluções,
com o intuito de oferecê-las igualitariamente a todos os cidadãos,
possibilitando acesso às suas deliberações ou pelo menos fornecendo um
mecanismo significativo de feedback sobre o que não está funcionando. Não
é reimaginar o mundo em conferências.

A sessão de discussão se chamava “Beyond Equality: Harnessing the Power


of Girls & Women for Sustainable Development” [Além da Igualdade:
Aproveitando o Poder das Meninas e Mulheres em Favor do
Desenvolvimento Sustentável]. “Sejam bem-vindos à nossa missão na CGI”,
disse a mediadora do painel, Melanne Verveer, na abertura. Segundo ela, seu
painel era emblemático, levando em conta o que acontecia atualmente, pois
reunia diversos participantes com diferentes perspectivas sobre o tópico
igualdade das mulheres. Os participantes eram duas executivas empresariais,
um CEO e um conselheiro da ONU. Não estavam presentes pensadoras
feministas, ativistas, advogadas, líderes eleitas, sindicalistas ou mulheres que
genuinamente lutavam por outras mulheres. Talvez as verdadeiras feministas
achassem essa lista de convidados problemática, mas, a julgar pelos padrões
da CGI, não era um painel organizado precariamente. Ao contrário, era
semelhante ao painel sobre o globalismo e seus inimigos, que oferecia a dose
certa de estímulo, sem causar nenhum tipo de incômodo.
Era o painel perfeito para explorar uma questão levantada por Rodrik: será
que essa esfera globalista privada, cheia de boas intenções, ainda que
democraticamente questionável, seria “complementar” às nações que tentam
resolver seus próprios problemas ou serviria inadvertidamente como
“substituta”?
À primeira vista, a resposta era óbvia: como um grupo de pessoas reunidas
substitui uma democracia? Certamente são pessoas abastadas e poderosas, no
entanto os congressos e os parlamentos ainda trabalhavam para isso.
Naturalmente, são eles que definem as políticas.
Não necessariamente. Dois sociólogos de Stanford, Aaron Horvath e Walter
Powell, investigaram a questão e apresentaram uma resposta surpreendente.
Quando as elites resolvem os problemas públicos de maneira privada, podem
fazê-lo de modos que contribuam com a democracia ou de maneiras que a
desestabilizem. A primeira ocorre quando a ajuda da elite “contribui e
expande os bens públicos fornecidos pelo Estado e atende aos interesses que
o Estado não provém facilmente”. Contudo, a mesma ajuda da elite,
respaldada pelas mesmas intenções nobres, pode “desestabilizar” a
democracia quando “substitui a esfera pública por todo o tipo de iniciativas
privadas para fins públicos especiais”. A última é que essas iniciativas
simplesmente não fazem o que o governo não consegue fazer. Elas “excluem
o setor público, ao refrear ainda mais sua legitimidade e sua eficácia, e
substituem os objetivos cívicos por preocupações mais restritas sobre
eficiência e mercados”.
A análise mais interessante de Horvath e Powell é sobre até que ponto as
elites podem impossibilitar a ação do aparelho do Estado. Até que ponto
esses encontros em salões de festas podem instaurar seu próprio meio de
democracia e dispor de seus próprios exércitos? O agente experiente, privado
e astuto da mudança do mundo tem como objetivo modificar “a conversa
pública acerca de quais problemas sociais são importantes, definir como eles
são importantes e estipular quem é o fornecedor de serviços preferido para
lidar com esses problemas, sem qualquer participação dos processos
deliberativos da sociedade civil”. Os atores mais inteligentes da elite
reconhecem que vivem em democracia e a respeitam. Eles não ignoram a
opinião pública, mas isso não quer dizer que levem essa opinião em
consideração quando ajudam as pessoas. A abordagem disruptiva da ajuda
privada, escrevem Horvath e Powell, “em vez de solicitar contribuições do
público, busca influenciar ou mudar a opinião e a demanda pública”.
Logo, pode-se questionar um painel como este: os participantes estavam
apenas complementando a solução dos problemas públicos? Ou estavam
engajados na missão que Horvath e Powell expuseram, a tentativa de
distorcer um problema com suas possíveis soluções em prol dos interesses da
elite, ao ressignificar o modo como as pessoas pensam e falam a respeito
dele?
Desde o início, a escolha da mediadora indicava uma pista para quem
quisesse saber a resposta dessa pergunta. Verveer era uma escolha prudente
para os padrões do Mercado Global. Ela foi a primeira embaixadora dos
Estados Unidos no que se referia aos problemas mundiais das mulheres e,
antes disso, chefe de gabinete de Hillary Clinton, quando seu marido ainda
estava na Casa Branca. Verveer era o tipo de feminista confiável, adequada
aos moldes dos patrocinadores corporativos e convidada para conferências
como essa. (Nesses eventos, você não cruzava com juristas feministas e
intelectuais como Catharine MacKinnon ou escritoras feministas como
Virginie Despentes.) Desde a geração anterior, Verveer era atuante no
movimento de direitos civis. Se um dos membros do painel corporativo a
tivesse consultado antes da palestra e estivesse apreensivo com uma possível
inclinação política, bastava consultar o site do seu grupo de consultoria
estratégica e eles ficariam despreocupados. O site apresentava uma citação,
do CEO da Coca-Cola, sobre como “as mulheres já são a força econômica
mais dinâmica e de maior crescimento do mundo”. (O Mercado Global era
um mundo pequeno; ele também era padrinho de um dos fundadores do
aplicativo Even.) A empresa de Verveer se autodenominava um “centro de
liderança de pensamento”, oferecendo conselhos e organizando “convenções
de impacto” para os clientes. Isso deixava claro que não se tratava de
mudanças sistêmicas reais. A missão do grupo, tomando emprestado um
conceito de Michael Porter, era “criar valor compartilhado — empoderar
mulheres e meninas, e gerar resultados sustentáveis”. Na era mercadológica,
algumas feministas entendiam que a busca pela igualdade seria muito difícil
caso o feminismo não promovesse o retorno financeiro.
Os participantes do painel de Verveer sobre a igualdade de mulheres eram
Bob Collymore, CEO da Safaricom, uma operadora de telefonia móvel do
Quênia; David Nabarro, conselheiro especial do secretário-geral da ONU em
desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas; Carolyn Tastad,
dirigente da Procter & Gamble responsável pela América do Norte; e Jane
Wurwand, fundadora da Dermalogica, que vende produtos para a pele. Todos
fizeram seus discursos de abertura, e, em pouco tempo, a conversa enveredou
para o lugar-comum, onde muitos deles acabaram estacionando — a ideia de
que a solução para o problema (neste caso, a igualdade das mulheres) era o
empreendedorismo. “Para mim, tudo tem a ver com empregos”, disse
Wurwand. Ela constatou que a indústria da beleza gera um grande número de
empregos para as mulheres. A melhor forma de empoderar as mulheres, o
“tudo tem a ver”, era conseguir empregos na indústria da beleza e ajudar as
mulheres a montar seus próprios salões. O empoderamento das mulheres se
tornaria o crescimento da própria fatia do mercado da Dermalogica.
“Excelente! Empreendedorismo!”, Verveer respondia. Eles estavam falando
sobre a igualdade das mulheres, mas agora já pareciam restringir o tema ao
emprego e ao crescimento de seus setores. Estavam falando sobre feminismo
com a premissa de se limitarem à fatia lucrativa dele.
As ideias do Mercado Global não foram promovidas por meio de
propagandas e falsidades, e sim por essa espécie de isolamento. Sua arma não
era a expressão, mas o silêncio, as pessoas que eles não convidavam, o modo
como se encurralava o assunto em uma conversa. Essa abordagem excluía o
tipo de know-how que poderia, de maneira convincente e persuasiva,
formular uma resposta menos favorável ao Mercado Global. Na ausência da
pluralidade de vozes, qualquer crítica a esse painel poderia atrair facilmente
comentários desaforados: Então, você não acha que as mulheres podem ser
donas de seus próprios salões de beleza? O quê? Quer dizer que é melhor as
mulheres ficarem desempregadas? Por isso, era fundamental não ter pessoas
que simpatizassem com essas críticas assistindo ao painel.
Por exemplo, coisas que não foram mencionadas na CGI: não era a própria
indústria da beleza que estimulava a mercantilização das mulheres e
alimentavam a desigualdade de gênero? Em um mundo em que houvesse a
verdadeira igualdade de gênero, a indústria da beleza não encolheria? No
mundo igualitário, que os participantes alegavam querer, seria possível
vender milhões de esmaltes, secadores e bases? Em seu livro O Mito da
Beleza, Naomi Wolf afirma: “Tudo o que for profunda e essencialmente
feminino — a vida na expressão do rosto, o toque da sua pele, o formato dos
seios, as transformações da pele após o parto — está sendo reclassificado
como feio, e a feiura como uma doença.” A percepção dessa feiura, segundo
a autora, é boa para os negócios, porque os setores como o varejo e a
publicidade — sem mencionar os salões e os cirurgiões plásticos — são
“estimulados pela insatisfação sexual”. Não seria a verdadeira igualdade uma
vitória para as mulheres e uma derrota para a Dermalogica?
Nesse tipo de evento, não se entrava em assuntos sobre questões estruturais
e irascíveis. O absurdo atingia um nível em que o progresso de alguém teria
um custo para os negócios de outrem — algum palestrante e/ou patrocinador
da conferência. E como os organizadores haviam cumprido suas funções
diligentemente — desde a seleção de uma mediadora, a escolha dos
participantes do painel até a estruturação do tópico — os riscos de uma
pergunta como essa eram ínfimos. O próprio painel era um espaço
infinitamente positivo e imune a conflitos. Raramente havia uma divergência
filosófica calorosa, fato espantoso dado o tópico da igualdade das mulheres.
Às vezes, quando um pequeno atrito estava prestes a acontecer entre dois
participantes, uma mediadora habilidosa como Verveer se apressava e dizia:
“Não acho que Bob e David estão em contradição.”
Nesses painéis, impedir quaisquer divergências não se tratava somente de
uma decisão elegante. Aos poucos, subvertia o jeito como o mundo
funcionava, porque moldava quais ideias eram debatidas e quais soluções
eram postas em prática quando as pessoas deixavam aquela sala; quais
programas eram financiados ou não, quais histórias eram divulgadas ou não;
e assim a balança pendia a favor dos vencedores mais uma vez, assegurando
a continuidade do jeito favorável ao mercado, da solução privada para
questões públicas em que todos saem ganhando. Quem questionava
firmemente o sistema dominante e imaginava sistemas alternativos não seria
ouvido.
O consenso mercadológico também promovia determinados tipos de
soluções em relação a outras, como se tivesse uma espécie de Selo de
Aprovação. Por exemplo, quando os palestrantes falavam sobre diversidade,
a mediadora contou para todo mundo como sua empresa de consultoria
ganhava um bom dinheiro ao dizer às pessoas que a diversidade não era
apenas justa, mas também lucrativa. “A diversidade só tem vantagens”, disse
ela. Então, eles se voltaram para os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável das Nações Unidas. Tastad, da P&G, tentou incentivá-los
afirmando: “Os ODSs estão extremamente de acordo com o objetivo
principal da nossa empresa, o empoderamento de vidas.” Bom saber.
Depois, a mediadora adotou o mesmo conceito de uma forma diferente,
perguntando se os participantes do painel viam a igualdade das mulheres
ocupando uma parte essencial na estratégia de negócios ou se continuaria
definhando como prioridade dos filantropos e dos departamentos de
responsabilidade social corporativa. Wurwand a considerava uma vantagem
competitiva. “O empoderamento das meninas e das mulheres é a mais nova
imagem corporativa!” E ainda explicou que, no Mercado Global, isso era de
suma importância para valorizar o seu público. “Ou seja, não é apenas a coisa
certa a se fazer”, disse Verveer. “É um negócio inteligente de se fazer.” Este
era o mais alto louvor que uma causa poderia receber.
Agora se falava que a igualdade das mulheres era uma oportunidade de
US$28 trilhões. Isso acabou virando um refrão quase constante no Mercado
Global — repercutindo as oscilações entre as palavras “mulheres”,
“igualdade” e “trilhão”. Caso a lógica de nosso tempo tivesse sido aplicada
aos fatos da era passada, alguém teria apresentado um relatório sugerindo que
o fim da escravidão seria ótimo para minimizar o deficit comercial. “Claro
que você deve fazer isso porque é a coisa certa a fazer, mas também temos
um caso de negócio forte”, disse Collymore, da Safaricom. Em outras
palavras, claro que você deve fazer isso, porque temos uma questão de
moralidade envolvida, no entanto, como todos sabemos que a moralidade não
basta, você deve saber que o caso de negócios é fantástico.
Chegado o momento das perguntas e respostas, a seita do consenso
mercadológico prosseguia. A adoração foi interrompida apenas uma vez.
Uma mulher com sotaque alemão, dizendo ser do Healing Hotels of the
World, levantou-se para fazer um comentário. Ao mencionar as mulheres que
o painel falou em ajudar, disse: “Às vezes acho que todas essas nossas ideias
levam ao tratamento injusto das mulheres.”
Esse simples comentário sugeria um leque de possibilidades. E se o
conjunto de ferramentas para ser bem-sucedido ao praticar o bem estivesse
errado? E se as exclusões, as pessoas não convidadas e os silenciamentos
fossem um equívoco? Mas e se essas omissões, com o enorme apoio
financeiro de que gozavam, tivessem consequências reais na vida das
pessoas? E se, nos últimos séculos, o motivo pelo qual grande parte do
mundo virou as costas para os conclaves às portas fechadas, com pessoas não
eleitas e que não prestavam contas a ninguém das decisões que tomavam em
nome da humanidade, fosse que esses mesmos conclaves faziam mais mal do
que bem? Não teria a democracia se originado em virtude da desconfiança
sensata desses eventos? Mas e se fosse injusto e ilegítimo que um órgão não
eleito cometesse algum erro que influenciasse sobejamente as sociedades e se
infiltrasse na vida de milhões de pessoas que não detinham o poder, nem as
articulações, tampouco as plataformas para assinalar seus interesses e
questionar? E se reimaginar o mundo em eventos desse tipo fosse, na
realidade, a coisa inteligente para os negócios, mas não a coisa certa a se
fazer?
O comentário da mulher do Healing Hotels foi o único que o painel ignorou.
A mediadora ouviu, assentiu e seguiu adiante.

E ssas questões sobre a fúria, participação e democracia pairavam sobre a


conferência e ficavam no ar na sessão final da Clinton Global Initiative. O
título da sessão era “Imagine All the People” [Imagine Todas as Pessoas].
Seu atrativo principal era uma palestra de despedida mais do que esperada de
Bill Clinton. Ele queria apresentar o primeiro rascunho do legado da CGI.
O ex-presidente falou por mais de uma hora, talvez uma de suas últimas
palestras importantes para um mundo que ainda o amava, narrando a história
da CGI e comemorando seus feitos. O grande estímulo desse sucesso era
seduzir os personagens do setor privado para a arena pública de solução dos
problemas. No entanto, nem sempre ficava claro qual era a maior influência.
Bill Clinton falou sobre inovação constante, impacto, escalabilidade, margens
e capacidade. Não era o tipo de linguagem oriunda dos estudos jurídicos em
Yale nem de sua campanha no estado do Arkansas. Um dos maiores
acontecimentos culturais durante sua vida adulta foi a crescente pressão sobre
os líderes políticos para que baixassem o tom do linguajar político e
aumentassem o dos jargões de negócios, caso quisessem ser levados a sério e
ajudados pelo Mercado Global. Ele, como tantos líderes, aceitou a oferta. Era
um dos motivos pelos quais o novo modelo filantrópico que ele promovia
desestabilizava a vida pública, em vez de contribuir com ela: o setor privado
não se contentava em apenas se somar às atividades da esfera pública. Ele
mudava a linguagem em que a esfera pública pensava e agia.
Obviamente que ninguém na CGI seria flagrado enxovalhando a
democracia. O modo alternativo de solucionar problemas alavancado por Bill
Clinton não tinha como objetivo bater de frente com a democracia; ele foi
criado para impulsioná-la. Ele descreveu o modelo de parceria
ultrademocrática da CGI como “prova viva de que pessoas boas, engajadas,
com a cooperação criativa têm um impacto positivo basicamente ilimitado
para ajudar os outros hoje e assegurar aos nossos filhos um futuro melhor”.
Depois, Bill Clinton acrescentou um toque de mestre: “Isso é o que realmente
funciona no mundo moderno.”
Segundo o ex-líder do país mais poderoso da história, adepto do centrismo,
mas vindo da esquerda política, cuja esposa esperava e estava a poucos meses
de sua tão sonhada posição de comando, o que realmente funcionava no
mundo moderno era a economia privada, financiada pelos benfeitores da
mudança, repleta de boas intenções, que não prestava contas à gente comum,
baseada em parcerias do tipo em que todos saem ganhando com empresas,
filantropos e outros atores privados, com as bênçãos (às vezes) das
autoridades públicas. Com efeito, o que funcionava eram projetos elaborados
longe do escrutínio público, em fóruns proporcionados pela Cisco, Diageo,
Procter & Gamble, Swiss Re, Western Union e McDonald’s. A única
abordagem de solução de problemas que funcionava no mundo moderno, de
acordo com Bill Clinton, era aquela que fazia da gente comum alvo da
reflexão a posteriori, para ajudá-la, mas não para ouvi-la.
Agora, Bill Clinton manifestava a sensação de assédio que os globalistas
estavam sentindo. “É uma ocasião em que esse tipo de conversa não está em
voga ao redor do mundo”, afirmava o éthos dos globalistas. “Em todos os
lugares as pessoas ficam tentadas a falar o que direi neste exato momento:
‘Não. Vocês estão errados; a vida é um jogo de perde e ganha, e eu estou
perdendo. Vocês estão enganados; nossas diferenças são mais importantes
do que a nossa condição humana em comum. Que se dane as descobertas
do Projeto Genoma Humano, que somos todos 99,5% iguais. Não.
Alimente o rancor em vez de buscar a reconciliação; alimente a fúria em
vez de buscar respostas; escolha a negação em vez do empoderamento; e
construa muros em vez de pontes’.
Estas não são as escolas certas. As escolhas que você fez aqui ao longo
desses 11 anos é que são as escolhas certas.”
Essa era a única forma de enquadrar as escolhas? Existia algum argumento
a favor das comunidades que queriam contestar a globosfera — um
argumento digno de ser ouvido conforme seus próprios termos, e não
maculado em vão, privilegiando o ressentimento e a diferença? O sonho
globalista de Bill Clinton era admirável, mas era também intolerante com
outros sonhos. Um sonho que buscava transformar escolhas difíceis em
coisas inevitáveis e descomplicadas. Um sonho que procurava confundir o
que era bom aos plutocratas presentes com o que era bom para a gente
comum. Um sonho que disseminava uma perspectiva inspiradora de mudança
mundial, mas que preservava os sistemas dominantes. Bill Clinton tinha
razão sobre sua filosofia encontrar resistência, mas ele tampouco assumia a
responsabilidade por isso. A doutrinação do todos saem ganhando, a partir da
qual ele havia construído seus alicerces, era mais do que ultrapassada. Era
uma das coisas que suscitava revolta, ao fazer com que tantas pessoas se
sentissem impossibilitadas de tomar decisões sobre o futuro de seu próprio
mundo.

ito meses depois, Bill Clinton passeava com seu cachorro perto de sua
o casa, no subúrbio de Chappaqua, na cidade de Nova York. Ele encontrou
um de seus vizinhos, um tipo reacionário e “piadista”, fã de Donald Trump, e
que, semanas depois da última CGI, conseguiu o que queria com a derrota
eleitoral de sua vizinha Hillary. Bill e o vizinho tinham o costume de zombar
do abismo que os separava. Mas, naquele dia, lembrou Clinton, ele estava
“debochando do vizinho”, quando em um determinado momento o homem
disse: “Obama e Hillary começaram a segunda Guerra Civil.”
Bill Clinton contou essa história sentado 40 andares acima de Manhattan,
em seu escritório da fundação, enquanto tomava chá. Ele tivera meio ano para
assimilar a derrota que arrastou os Estados Unidos para a era Trump. Se sua
esposa sofrera mais como candidata cuja plataforma foi malsucedida, o ex-
presidente sofrera de uma maneira diferente e mais abstrata: Trump derrotou
Hillary, contudo as ideias que impulsionaram sua campanha “America First”
eram um repúdio ao consenso globalista que Bill sempre defendeu ferrenha e
incondicionalmente.
“Toda a minha vida política foi marcada por uma versão política, em
pequena escala, da épica disputa global que está em andamento entre a
cooperação inclusiva — envolvendo redes e diversas pessoas trabalhando
rumo a um objetivo comum — e a reafirmação do nacionalismo tribal”,
disse-me ele. Com o mundo exaltado, e até algumas pessoas no sofisticado
subúrbio de Chappaqua sentindo que o país está em uma espécie de guerra
civil, Bill Clinton não pôde fugir à possibilidade de que seu lado estivesse
perdendo a “épica disputa global” que definira sua carreira. Ainda que seu
vizinho fosse piadista, ele acatava a análise recente do escritor Pankaj
Mishra, cuja afirmação sobre esse momento global explosivo de violência
terrorista, auge da xenofobia e convulsão política, dizia: “Os futuros
historiadores podem muito bem enxergar esse caos generalizado como o
início da terceira — e a mais longa e estranha — de todas as guerras
mundiais: uma que se aproxima, em sua onipresença, de uma guerra civil
mundial.”
O mundo estava em “um período de profundo ressentimento”, alegava Bill
Clinton. “Em um tempo de ressentimento extremo, é mais importante para as
pessoas que você odeie as mesmas coisas e os mesmos indivíduos que elas.”
Ele considerava não somente as eleições dos Estados Unidos, como também
o Brexit, a formação dos movimentos de extrema-direita na Europa, a
cruzada descompensada contra as drogas que atualmente motivava as
Filipinas e assim por diante, e chegou à conclusão de que, a despeito da
prosperidade e da promessa de que a nova filosofia se espalhava, “você ainda
tem essa enorme disparidade entre perdas e ganhos no mundo. Apenas um
lado sai ganhando” — pessoas que acreditavam que seu progresso só poderia
se materializar à custa de outra pessoa. E ele seguia acreditando na
linearidade do progresso e na crescente ausência de fronteiras; a suposição
era que o mundo acordaria para a realidade. Ele imaginava, tomando
emprestado uma velha frase sua, que não havia nada de errado com o mundo
que não pudesse ser solucionado por intermédio do que estava certo no
mundo.
Essa crença espelhava a resposta padrão do Mercado Global que Mishra
chamava de “era da raiva”: que, sim, os vencedores de nosso tempo tinham
que fazer um trabalho melhor a fim de compartilhar as vitórias com os outros.
Mas essa era uma resposta simples. Isso fugia à questão mais difícil e
premente que confrontava os vencedores, que tinha a ver com a culpa no
cartório pelo que acontecia, e se eles e o sistema que controlavam teriam que
mudar. Ainda mais admirável era o fato de as elites terem contribuído com as
causas de Bill Clinton. Mas essas elites não assumiriam a responsabilidade da
fúria alimentada pela desconfiança, que estava em ponto de ebulição nos
Estados Unidos e internacionalmente? “Sim, claro”, disse o ex-presidente.
“Mas…”
A parte do “sim” era a confiança excessiva dos vencedores na globalização
enquanto situação em que todos saem ganhando. “Acho que muitas pessoas
que viviam de maneira confortável teoricamente sabem que existem pessoas
que não vivem assim, mas elas pensavam que sempre existiria mais
vencedores do que perdedores.” Essa suposição, pelo visto, não sobrevivera.
Quanto à parte do “mas”, Clinton culpava seus adversários políticos da
direita. “Acredito também que quando as dificuldades se tornarem evidentes,
pelo menos nos Estados Unidos, as pessoas do nosso lado, sejam elas ricas ou
da classe média, estarão mais dispostas a fazer algo a respeito”, afirma, “ao
passo que as pessoas do outro lado perceberão que, se não fizerem nada,
poderão nos culpar e ser recompensadas por sua improbidade”. E ainda
complementa: “Então, somos responsáveis, mas as pessoas que não querem
responder são ainda mais responsáveis.”
Em retrospectiva, disse Bill Clinton, ele e seus colegas globalistas poderiam
ter feito mais para ajudar a gente comum a assimilar os impactos da mudança.
Ele poderia ter insistido, ao assinar o Acordo de Livre Comércio da América
do Norte como presidente, em frear a liberdade corporativa. Ele se
questionava se deveria ter imposto uma taxa alfandegária às empresas que
transferiam suas fábricas para o exterior, desencadeando a perda de
empregos, e então exportavam os produtos para os consumidores norte-
americanos — e se deveria ter condicionado seu apoio ao NAFTA à taxa. Ele
imaginava como seria a situação: “Veja bem, ficarei contente em assinar este
acordo, mas quero uma taxa sobre as exportações, o suficiente para cuidar
das pessoas que perderam os empregos.” O ex-presidente poderia ter se
empenhado com mais afinco, de modo que os recursos financeiros para a
reciclagem de empregos fossem alocados antes da assinatura de acordos
comerciais e incentivos corporativos, com o intuito de assegurar os empregos
no país. Ele acrescentou que, quando o presidente Obama intermediou o
acordo climático global, ele também poderia ter oferecido um plano para os
mineiros de carvão e a outros que perderiam seus empregos por conta da
mudança. Bill Clinton assumiu uma certa responsabilidade por não ter feito
essas coisas, mas percebeu, na medida do possível, que isso bateria de frente
com a oposição republicana em praticamente tudo. Logo, lamentar era
irrelevante.
Mesmo assim, sua oposição política como presidente não conta a história
completa do motivo pelo qual as últimas décadas têm sido extenuantes para
milhões de norte-americanos. Bill Clinton, tal como Obama depois dele,
enfrentou militantes conservadores e liberais, apadrinhados pelos plutocratas,
que detestavam a ideia da solução pública de problemas governamentais em
si. Sejamos claros, esse movimento é o principal responsável pela tomada dos
Estados Unidos por parte da supremacia do mercado — e pelas perspectivas
sombrias de milhões de norte-americanos. Todavia, o Partido Republicano
representava menos da metade da nação, e o Partido Democrata teve a chance
de defender uma alternativa sólida à hegemonia do mercado. E se pode
afirmar que isso aconteceu até determinado ponto, mas não raro, sob o
comando de Clinton e Obama, de um modo hesitante, favorável ao mercado e
corroborado pelos doadores, cedeu tanto fogo aos inimigos do governo que a
causa perdeu a chama do propósito.
Jacob Hacker, cientista político de Yale, que já foi descrito como “um
intelectual, ‘o cara’ no Partido Democrata”, disse em uma entrevista: “Muitos
progressistas ainda acreditam que o governo tem um papel imprescindível a
desempenhar, mas perderam a confiança de que isso aconteça; em muitos
casos, eles não falam mais a mesma língua.” Os republicanos, afirma Hacker,
são objetivos em seu desprezo pelo governo. Os democratas, sobretudo
aqueles da escola de Bill Clinton de política centrista, adeptos da estratégia
da triangulação e favorável ao mercado, não contra-atacam o desprezo,
mediante uma forte adoção ao governo. Em vez disso, candidatos como
Hillary Clinton se expressam em uma linguagem “leve” a respeito de como
“aproximar as pessoas além dos rótulos de classe e etnia” e “solucionar os
problemas de uma forma evasiva”, mas seguem “compreensivelmente
relutantes em falar sobre as medidas do próprio governo”. Eles empreendem
campanhas dessa forma, apesar das políticas que permanecem
comprometidas com a ação governamental. No entanto, mesmo suas
propostas políticas refletiam ambiguidade: assistência médica para todos, mas
não por intermédio dos serviços públicos; subsídios universitários, mas não
universidades públicas; escolas charter, mas não escolas igualitárias. Bill
Clinton havia demonstrado um pouco dessa hesitação quando declarou, em
uma passagem cuja segunda frase raramente é citada: “A era do grande
governo acabou. Mas não podemos voltar ao tempo em que nossos cidadãos
foram deixados entregues a si mesmos.”
Hacker argumenta que essa hesitação e “perda de confiança no governo”
têm “consequências desiguais em ambas as partes”. Ele afirma: “Para os
republicanos e para a direita, na maior parte das vezes, se não sempre, são
propícias aos seus objetivos, porque se o governo não faz as coisas, muitas
vezes, isso é o que eles realmente gostariam que acontecesse. Mas, para a
esquerda e para os democratas, representa uma perda enorme, pois seus ideais
de uma boa sociedade residem no fato de que os bens públicos e os
benefícios valiosos são alicerçados na ação do governo.”
Para exemplificar o pressuposto de Hacker: a doença cardíaca de Bill
Clinton o levou a experimentar dietas mais saudáveis. Por conta disso, ele
decidiu combater o problema da obesidade infantil, ocasionado nitidamente
pelas empresas de alimentos processados e refrigerantes, com grande
influência política e um talento especial para inserir discretamente seus
produtos nas escolas públicas.
Era de se esperar que a resposta da direita para esse problema fosse um
louvor ao livre mercado. A esquerda, no entanto, poderia propor ao governo
federal uma lei com o intuito de proteger as crianças dessas empresas, contra
as quais elas não podem votar, tampouco impedi-las de agir. A partir de um
ex-presidente sem poder legal, mas ainda com a aptidão para reanimar um
movimento, alguém poderia imaginar uma campanha, aos moldes da era
progressista, com o objetivo de pressionar o governo a colocar um ponto-
final nesse mercantilismo abusivo. Todavia, o ex-presidente respondeu com
uma proposta em que seria fácil para as empresas infratoras ganhar dinheiro
vendendo produtos mais saudáveis.
“Se você quiser que elas causem menos danos, isso requer inovação, porque
elas ainda precisam ganhar dinheiro, especialmente as empresas de capital
aberto e fechado”, afirmou Clinton. Essa era, literalmente, a moral da
história.
As necessidades do mercado vinham em primeiro lugar. Até mesmo um
homem que dedicou a vida inteira à política sentia a obrigação de ser
prestativo quando se tratava das preocupações dos empresários. Em vez de
insistir que as empresas parassem de ceifar os anos de vida de nossas
crianças, sobretudo das crianças pobres, tivemos que garantir que elas
tivessem um modelo de negócios melhor e ainda botar a mão na massa para
substituir o modelo nocivo atual.
Bill Clinton contou como foi sua proposta ambivalente às empresas:
“Sabemos que vocês não querem que as crianças em idade escolar tenham
diabetes do tipo 2. Com certeza não querem, porque prejudica o coração,
porque quando essas crianças tiverem 30 e poucos anos estarão presas em
cadeiras de rodas com as pernas amputadas e não vão beber refrigerante.”
Não fazer mal às crianças não era somente a coisa certa a se fazer, mas
também era inteligente para os negócios. Caso contrário, disse Clinton, “seu
próprio modelo de negócios se destruirá”. Ele trabalhou arduamente com as
empresas para minimizar de modo voluntário, em grupo, as calorias de seus
produtos. Todos trabalharam juntos, as crianças estavam com a saúde melhor,
e o governo não precisava ser incomodado. “O melhor governo busca que as
coisas funcionem por intermédio do setor privado”, alega Bill Clinton. E ele
estava orgulhoso por ter ajudado as crianças de modo que preservasse a
capacidade das empresas de obter um retorno razoável. “Todas elas ainda
estão ganhando dinheiro, porque fizeram isso juntas.”
Com base nessa aceitação de se fazer as coisas por intermédio do setor
privado, mesmo quando as empresas de grande porte estão fazendo mal às
crianças, Clinton revelou como fizera as pazes com a supremacia do
mercado. Em determinado momento, ele usou uma frase que traduzia bem a
mensagem dessa aceitação. Ao se deparar com um sistema doente, sabendo
que ele é imperfeito e querendo mudá-lo, mas sem abusar da sua posição, o
que você faz? “Até que ponto iria para fazer a coisa certa?”, perguntou. “O
quanto alimenta o monstro?” Talvez Bill Clinton — como fazem muitos de
seus colegas globalistas adeptos do todos saem ganhando, quando
questionados sobre como combater a influência dos plutocratas na última
geração — tenha alimentado exageradamente o monstro. Qual era a opinião
dele sobre as críticas de que a abordagem liderada pelo setor privado rumo à
mudança social subvertia o costume e a ideia de os governos tomarem as
rédeas da solução de problemas? “Acredito que há um fundo de verdade
nisso”, disse ele. E alegou que tentava, sempre que possível, em suas
iniciativas filantrópicas, trabalhar junto com os governos locais e “aproximar-
se das ONGs da região e estar aberto às sugestões das pessoas”.
Porém essas tentativas de se trabalhar com o governo não eram o mesmo
que confiar no poder governamental, no poder supremo do governo para
melhorar a vida do povo. O ex-presidente aparentemente reconhecia o fato
quando disse que alguns benfeitores globalistas, sejam em sua terra natal, nos
Estado Unidos, ou trabalhando mundo afora, às vezes negligenciavam o
dever de fortalecer a democracia. “Se você faz isso em qualquer escala, tem a
obrigação de fortalecer a capacidade dos governos para solucionar os
problemas do povo e combater a corrupção”, afirmou. No entanto, muitos
globalistas que buscam as mudanças de hoje fazem vista grossa a essa ideia, e
Bill Clinton se preocupava com isso: “O que tentei fazer foi dizer ao
fundador da Toms Shoes — ele faz doações de sapatos, é um homem bom —
e a esses inúmeros empreendedores mais jovens, que em minha opinião são
maravilhosos, é que, se você quiser ter um impacto positivo e duradouro,
precisa, sempre que possível, aumentar a capacidade das autoridades locais,
públicas e eleitas para que cuidem de si mesmas.”
Assim sendo, Bill Clinton propôs um teste para os bons samaritanos com o
intuito de analisar se a ajuda deles estava melhorando as coisas: “Ao fim de
sua ajuda, as coisas serão sustentáveis e o povo será governado por uma
administração mais eficaz, mais responsiva e mais honesta?” Todavia, era
mais fácil implementar essas premissas em um projeto na África do que nos
Estados Unidos, quando se combatia os problemas dos refrigerantes, caixas
de sucos e obesidade infantil. Os plutocratas norte-americanos não tinham o
menor problema com um governo africano mais enérgico. Contudo, em seu
próprio terreno, eles preferiam as soluções em que todos saem ganhando, em
que um governo mais incisivo poderia lhes custar caro.
Bill Clinton não gostava de pensar que seus vínculos e seu enriquecimento
proveniente dos ultrarricos o mudaram ou moldaram a forma como ele
pensava a respeito das coisas. Sim, ele se tornara um dos mandachuvas
mundiais da liderança do pensamento, cobrando milhares de dólares por uma
palestra. Sim, ele almoçava, antes de suas palestras, com grupos pequenos de
plutocratas que pagavam até, digamos, US$10 mil cada, para se sentar à mesa
com ele e ouvir sua opinião sobre o mundo. Porém Bill Clinton argumentava:
“Quando você não toma mais decisões que os beneficiam, essa é a menor das
preocupações.” Ele disse isso como se fosse impossível imaginar que a
oportunidade de ganhar milhões de dólares depois de sair da presidência
pudesse afetar as decisões de escolha de um presidente enquanto estava no
cargo.
Em tempos de fúria, muitas pessoas pressentiam que o fato de seus líderes
se tornarem companheiros de viagens de bilionários e milionários tinha, sim,
influência sobre as crenças deles. Essa intuição prejudicou a campanha
eleitoral de sua esposa. Essa intuição ajudou a campanha improvável de
Bernie Sanders nas primárias e contribuiu com a vitória ainda mais
improvável de Donald Trump nas eleições — e tudo isso causava estranheza,
pelo fato de Trump personificar as questões que Bill Clinton mencionava.
Será que era inevitável que os líderes de uma democracia se associassem a
plutocratas depois que cumprissem seus mandatos? Será que isso tinha
alguma relação com os problemas de desconfiança, alienação e distância
social que espreitavam a fúria, que agora se dirigia à elite?
Bill Clinton afirmou que ministrou 649 palestras por dinheiro e, até onde se
lembra, gastou quase metade da renda em impostos e doou uma parte à
caridade, ajudou amigos e parentes idosos com dívidas de assistência médica.
(Ele ressaltou que você não paga imposto sobre doações caso pague as
despesas médicas direto ao prestador de assistência médica.) “Caso alguém
ache que fui corrompido, eu simplesmente peguei o dinheiro dos ricos e fiz
doações aos desfavorecidos. E, ao contrário de Robin Hood, não precisei usar
o arco e flecha contra eles.”
Será então que não havia motivo para a fúria?
“Lembre-se de que estamos vivendo um período de ressentimento extremo”,
afirmou Clinton. Ele argumentou que parte desse sentimento tinha raízes na
crise financeira: “A raiva das pessoas pelo que aconteceu com elas ainda não
foi de todo saciada pelos ricos que quebraram ou pela quantidade de pessoas
que foram parar na prisão.” Parte desse sentimento provinha do desemprego
resultante da globalização, da tecnologia e de outras mudanças. Dito de outro
modo, o ex-presidente não achava que existia algo errado com o que ele e os
outros faziam. Ele simplesmente achava que as pessoas eram amarguradas e
procuravam bodes expiatórios em razão de suas vidas serem difíceis. “Essas
pessoas”, como sua colega palestrante que trabalhava no Lazard as chamava,
estavam, no final das contas, “sendo conduzidas por um caminho da política
do medo”, semelhante ao que Sadiq Khan havia dito; e, como o próprio Bill
Clinton dissera, muitas das pessoas enfurecidas “não tinham a menor ideia do
que estavam fazendo” e sucumbiam a uma “mentalidade enraizada de nós
versus eles”.
Clinton sabia, no entanto, que o rancor direcionado aos globalistas
ameaçava seu sonho de um mundo unitário. Uma das respostas possíveis
seria entender esse rancor generalizado e ressignificar o sonho — deixar de
lado o velho costume que Dani Rodrik descreve como “colocar efetivamente
a democracia para trabalhar em favor da economia global, e não o contrário”.
Essa não era sua abordagem favorita. Para os globalistas, o sonho de um
mundo unitário era inegociável. O desafio, segundo ele, era descobrir
“primeiro, como cuidar dos Estados Unidos, mas não fugir do resto do
mundo”. Até poderia ser um caso em que todos saem ganhando, ele tinha
certeza disso. A fúria não desencorajava seu modus operandi.
Bill Clinton era um dos pais fundadores de uma era definida pela
globalização, pelas mudanças vertiginosas e pela hegemonia do mercado; era
um produto desta era. Desde longa data ele acreditara nas reformas e também
era um pragmático que, de acordo com amigos e críticos, dizia saber para que
lado o vento soprava. Mas, ao longo de sua carreira política, o vento soprava
de forma cada vez mais favorável ao mercado. Em 1964, ano em que se
formou no ensino médio, 77% dos norte-americanos afirmaram ter um alto
grau de confiança no governo, de acordo com o Pew Research Center; já em
sua adolescência, esse índice caiu. Ao acreditar no poder político para
melhorar a vida das pessoas, tendo presenciado as possibilidades da política
em sua própria vida, Bill Clinton aceitou a mudança. Aceitou que as
empresas deveriam ter retornos financeiros, e que, não raro, ele deveria
equilibrar o interesse das crianças em detrimento desses retornos
impreteríveis. Após a presidência, ele praticou um bem mais concreto e
salvou mais vidas do que talvez qualquer um de seus antecessores; e, ao
mesmo tempo, havia aceitado determinados limites sobre o quanto o bem é
praticado hoje em dia. O triunfo do Mercado Global era tanto que até mesmo
o homem que liderou a máquina estatal mais poderosa da história da
civilização agora ministrava palestras sobre mudanças sociais plutocráticas de
cunho privado: “Isso é o que realmente funciona no mundo moderno.”
Para as pessoas que questionam essa perspectiva, não se trata de refutar a
generosidade alheia, assim como questionar a monarquia não se trata de dizer
aos reis que eles sempre levam a economia ladeira abaixo. É dizer que não
importa o tipo de trabalho que o rei esteja fazendo. É falar que, embora esse
rei esteja fazendo o melhor, ainda não é bom o suficiente, por causa da forma
como esse trabalho é feito: o isolamento; o risco da beneficência contínua do
rei; os erros reais em potencial que podem alterar vidas que não deveriam
sequer ser impactadas. Da mesma forma, questionar os globalistas adeptos de
ser bem-sucedido ao praticar o bem não é duvidar de suas intenções ou de
seus resultados. Pelo contrário, é dizer que, ainda que todas essas premissas
sejam levadas em consideração, existe alguma coisa errada na crença de que
eles estão em condições melhores para empreender as mudanças
significativas. Questionar a supremacia dos globalistas é simplesmente
duvidar do princípio de que o melhor para o mundo é aquilo que os abastados
e poderosos dizem ser. É dizer que você não quer limitar sua imaginação de
como o mundo pode vir a ser ao que pode ser feito com o apoio deles. É dizer
que um mundo definido cada vez mais pela ganância mercantilista e pelo
fornecimento privado dos bens públicos é um mundo que não confia em seu
povo, em sua capacidade coletiva, para imaginar um outro tipo de sociedade.
Apesar de tudo, Bill Clinton enxergava verdades na fúria efervescente ao
seu redor. Ele via como a mudança aos moldes do Mercado Global não
fortalecia a democracia. Ele se preocupava genuinamente com os jovens
perante os problema sociais e, ao contrário de sua geração propensa ao
ativismo, limitava seus questionamentos a quais negócios orientados
socialmente resolveriam o problema. Ele aceitava que tinha supervalorizado a
definição de progresso dos privilegiados em nossa era de digitalização e
globalização. E lamentava que os vencedores da mudança não tivessem
investido o bastante nos perdedores.
Bill Clinton enxergava e reconhecia todas essas coisas. Mas ele não
contestava a elite por seus pecados; ou apelava à redistribuição do poder e às
mudanças sistêmicas fundamentais; ou sugeria que talvez os plutocratas
devessem abrir mão de coisas preciosas para que a gente comum tivesse a
mera chance de superar as condições indecentes em que viviam. Alguém teria
que fazer isso.
EPÍLOGO
“AS PESSOAS QUE NÃO SÃO SEUS FILHOS”

ois meses após o canto do cisne da CGI de Bill Clinton e apenas 3


D semanas depois a vitória de Donald Trump, em um apartamento
majestoso a 26km ao norte da cobertura do presidente eleito na Fifth Avenue,
um grupo de pessoas que o detestavam estava em uma festa regada a
coquetéis e peking duck rolls. Uma mulher, a quem chamaremos de Nicola,
desfilava pela sala de estar, rodeada por pessoas que usavam vestidos
elegantes e ternos refinados, editores e CEOs importantes, e até pelo famoso
médico Mehmet Oz. Nicola estava deprimida. Todos na festa estavam
deprimidos. Todos se perguntavam o que poderiam fazer.
Nicola pressentia uma grande e perigosa transformação mundial que era
contrária a tudo o que sua vida representava. Ela era mexicana, e o novo
presidente norte-americano queria construir um muro para que seus
compatriotas não entrassem nos Estados Unidos. Seu trabalho anterior como
jornalista fazia dela uma “inimiga do povo”, na visão do novo governo. Ela
era uma globalista orgulhosa: fora correspondente estrangeira; estudara em
Londres quando era inimaginável que a Grã-Bretanha votasse para sair da
União Europeia; passara anos trabalhando na organização de uma das
principais conferências do Mercado Global; e agora trabalhava para uma
organização internacional que o presidente eleito criticava regularmente.
Nicola estava angustiada com a crescente política da fúria. Ela e muitas
outras pessoas na festa queriam fazer algo a respeito. Nicola dizia que a
globalização, o comércio, a abertura e “tudo em que acreditamos” — ela
gesticulava para os partícipes do Mercado Global que circundavam o bufê —
devem ser explicados a essas multidões. Nicola afirmou que poderia começar
uma nova iniciativa, talvez sediada no Fórum Econômico Mundial, a
organização por trás da reunião plutocrática anual em Davos. E não era
somente ela que concordava com essa ideia. Em todo o Mercado Global,
naquele fim de ano turbulento, as pessoas estavam planejando soluções para a
revolta dirigida contra elas que dobravam as apostas nas abordagens que nos
trouxeram até aqui.
Se alguém acredita piamente que as mesmas conferências em cidades com
estação de ski e as mesmas bolsas de estudo, os mesmos políticos e políticas,
os mesmos empreendedores e negócios com apelo social, os mesmos
financiadores de campanhas, os mesmos líderes de pensamento, as mesmas
empresas e protocolos de consultoria, os mesmos filantropos e executivos
remodelados da Goldman Sachs, as mesmas iniciativas do todos saem
ganhando e de ser bem-sucedido ao praticar o bem, e as mesmas soluções
privadas para os problemas públicos que faziam promessas grandiosas, ainda
que superficialmente, mudariam o mundo — se alguém acha que o complexo
de pessoas, instituições e ideias do Mercado Global falharam em prevenir
esse caos, ainda que insistissem em fazer a diferença, e cuja negligência
alimentava as chamas do populismo, também é a solução, acorde-o para
realidade, aos poucos, com esse livro. Porque a resposta inevitável à pergunta
que não quer calar — “Para onde vamos a partir daqui?” — é: para outro
lugar que não seja esse em que estamos indo, liderados por pessoas que não
sejam estas que nos lideram.

J ácasa,
era altas horas da noite e Andrew Kassoy estava sentado na sala de sua
no Brooklyn, pensando nos limites de sua abordagem extremamente
admirada de mudar o mundo. Será que existia outra maneira? Ele se pergunta.
E, se existisse, essa outra maneira teria lugar para ele?
Kassoy é um garoto-propaganda do método de mudança social do Mercado
Global. É uma das muitas pessoas em nossa época que trocaram uma carreira
longa e bem-sucedida nos negócios pela profissão de buscar fazer do mundo
um lugar mais justo e igualitário — usando as ferramentas e mentalidades de
sua profissão anterior. Ele passou 16 anos no que chama de “ramo
convencional do capital privado” — DL Real Estate Capital Partners, Credit
Suisse First Boston e MSD Capital, no qual ajudou o magnata da tecnologia
Michael Dell a investir sua fortuna pessoal multibilionária. Era o tipo de
carreira com a qual as pessoas sonhavam, embora Kassoy achasse isso uma
estranha coincidência. “Cresci em uma família superprogressista, adepta da
justiça social, acadêmica e, meio que sem querer, acabei nessa carreira”,
disse. Talvez ele tenha sido ludibriado por uma história predominante de sua
época.
Em 2001, foi escolhido para a Henry Crown Fellowship do Aspen Institute.
O programa é uma escola de aperfeiçoamento de prestígio que tem como
objetivo ajudar na transição de ingressar na carreira de negócio e fazer do
mundo um lugar melhor. Sua missão é mobilizar uma “nova geração de
líderes” para “enfrentar os problemas mais espinhosos do mundo”. Todavia,
sua definição de líder é peculiar: “Todos eles são empreendedores
reconhecidos, em grande parte do mundo dos negócios, que chegaram a um
ponto em suas vidas em que, já bem-sucedidos, estão prontos para colocar
seus talentos criativos em prática rumo à construção de uma sociedade
melhor.” Os bolsistas se reúnem para quatro sessões de uma semana durante
dois anos. Eles leem e discutem textos importantes, debatem o que contribui
para uma “boa sociedade” e desenvolvem projetos paralelos com o intuito de
praticar o bem de formas que geralmente não atrapalhem suas oportunidades
de praticar esse bem. Kassoy participou de sua primeira reunião da bolsa de
estudos em Aspen naquele verão, e as leituras e discussões abriram seus
olhos para a injustiça. A experiência o deixou consciente de seu
descontentamento velado com capital privado. “Foi uma experiência bastante
intensa, porque cheguei à conclusão: ‘Estou nesse ramo há 10, 11 anos. Está
na hora de botar minha cabeça para funcionar e pensar qual é o significado da
minha vida’”, disse ele. “Então, quando voltei, a tragédia do 11 de Setembro
aconteceu.”
Entre os ex-financistas, histórias como essas não são incomuns: elas
ocorrem por motivos de força maior (câncer, divórcio, morte), e às vezes
mais de um deles, abalando suas vidas confortáveis. No entanto, conforme
Kassoy descobriu, até mesmo esse baque pode não ser suficiente. Ele
começou a pensar no que mais poderia fazer. “Para ser sincero”, disse, “eu
não tinha nem coragem para fazer algo sobre qualquer coisa que me
interessasse”.
A palavra “coragem” sugeria que a ideia inicial de Kassoy sobre o que
poderia fazer implicava negociar seu privilégio por outro tipo de vida. Ele
supôs que a prática genuína de fazer o bem pressupunha abrir mão de ser
bem-sucedido — talvez um legado político de sua família. Dito de outro
modo, seus primeiros instintos resistiram às mensagens do Mercado Global
— de que, acima de tudo, ele poderia ter o melhor dos dois mundos, ao
ganhar dinheiro e doar dinheiro. Essa suposição o acalmou. “Acabei seguindo
em frente”, disse. O capital privado continuaria sendo seu ganha-pão, ele
ajudaria a outrem, e ambas as partes não correriam nenhum risco. Kassoy se
deparou com uma organização chamada Echoing Green, que fornecia o
capital semente aos empreendedores sociais. “Acabei ingressando no
conselho, porque eles procuravam pessoas com dinheiro para serem
doadoras.”
Após suas outras aventuras, Kassoy se encontrava em um território familiar.
A Echoing Green foi fundada por outra empresa de capital privado, a General
Atlantic. A liderança corporativa, conforme o site da Echoing Green, “previa
que o modelo de investimento de capital de risco que eles empregavam
efetivamente na General Atlantic também poderia ser usado com o objetivo
de promover mudança social”. A revolução seria estimulada; talvez as
ferramentas do mestre pudessem, afinal, desmantelar sua própria casa. A
General Atlantic deu à luz a Echoing Green em 1987, “cujo nome era em
homenagem a um poema de William Blake sobre a criação de um mundo
melhor”.
Agora Kassoy tinha um outro emprego como assessor dos companheiros da
Echoing Green, que costumavam ser empreendedores sociais procurando
expandir suas ideias. Ele começou a perceber um problema comum que os
afligia. Algumas pessoas montam um negócio a fim de obter um lucro alto.
Mas outras, com a mesma predisposição que a Echoing Green, procuram
“criar um negócio com fins lucrativos, porque reconheciam que era a melhor
forma de maximizar a solução para um problema em que eles estavam
interessados”. Ele deu o exemplo de sua assessorada Sara Horowitz, que
fundou o Freelancers Union, que representa trabalhadores autônomos, como
motoristas de Uber e redatores de revistas. A princípio, ela queria trabalhar
como corretora para ajudar esses trabalhadores a comprar um seguro de saúde
em grupo. Então ela percebeu que seria mais fácil e mais produtivo se
simplesmente montasse a própria companhia de seguros de saúde. Contudo, a
economia não estava preparada para pessoas como Horowitz. Uma empresa
que não administra somente os interesses dos acionistas corre o risco de
sofrer ações judiciais por parte de seus investidores. A interpretação
predominante do direito societário, conforme vimos, desde a década de 1970
passou a considerar como dever principal das empresas obter lucros para os
seus acionistas. Uma empresa que colocasse os objetivos sociais acima dos
negócios não tinha um lugar definido nesse regime.
Assim sendo, Kassoy passou a se interessar, conforme ele próprio alega, em
“como arquitetar uma estrutura mercadológica para que as pessoas consigam
fazer negócios de um modo diferente”. Esse interesse consumia cada vez
mais seu tempo, à custa de Michael Dell. “Eu me dei conta de que estava
passando metade do meu dia, todos os dias, sentado na minha sala de
reuniões com as pessoas e deixando a desejar em meu trabalho cotidiano, o
que não me parecia nada bom, nem para o meu empregador, nem para meu
sócio.” Kassoy fora do “seguir em frente” em busca do sucesso nas empresas
de capital privado à conscientização de seus deveres com os outros e à
identificação de maneiras seguras, corroboradas por Wall Street, de lutar
pelas mudanças sociais; e agora ele estava pronto para se dedicar em tempo
integral às realizações de mudanças ao estilo do Mercado Global.
Ele manteve contato próximo com dois amigos desde os tempos em que
estudou em Stanford, Jay Coen Gilbert e Bart Houlahan, que enfrentavam o
mesmo problema. Os dois montaram uma empresa de calçados, na qual
Kassoy havia investido, e estavam vendendo-a depois de muitos anos. A
empresa havia se destacado pelos métodos de produção socialmente
responsáveis. Agora, no entanto, os capitalistas de risco que haviam
financiado a empresa queriam o retorno de seu dinheiro, e isso colocava em
risco as práticas socialmente responsáveis. “Hora de vender”, os investidores
disseram de modo incisivo, segundo Kassoy. “Já se passaram sete anos, e
vocês venderão a empresa para quem oferecer mais.” A questão era que o
comprador “que estava disposto a pagar o melhor preço pela empresa era a
pessoa que teria todas as oportunidades de se livrar de todas essas coisas” —
as práticas socialmente responsáveis — “com o intuito de ganhar mais
dinheiro ainda”.
O trio saiu à procura de ideias para solucionar o problema e, por fim,
chegou a uma visão de se arquitetar um sistema capitalista paralelo,
semelhante ao tradicional, por meio do qual as empresas poderiam ser mais
responsáveis e conscientes, e, apesar disso, angariar dinheiro no mercado de
capitais e estar em conformidade com a lei. Nascia assim as Empresas B, ou
Sistema B, como também é conhecido. Os três amigos criaram um
laboratório sem fins lucrativos chamado B Lab, que facultava às empresas
com melhor comportamento uma certificação fundamentada em uma análise
rigorosa de suas práticas sociais e ambientais. Kickstarter, King Arthur Flour,
Ben & Jerry’s e a empresa brasileira de cosméticos Natura são Empresas B.
Kassoy e seus cofundadores queriam fazer do mundo um lugar melhor e
encontraram um meio de fazê-lo de acordo com os valores do Mercado
Global. Eles facilitaram as coisas às empresas dispostas a praticar o bem, ao
passo que ignoravam as empresas que queriam prejudicar as pessoas. “A
premissa básica era ‘facilitar o bem’”, disse Kassoy. “Primeiro, facilite a
identificação de um bom negócio, sistematize isso com uma marca que as
pessoas entenderão, e peça aos líderes que adotem essa marca e falem aos
quatro ventos sobre seus valores. De um jeito ou de outro, ao fazer isso,
criaremos um novo setor da economia. E, mais cedo ou mais tarde, todos se
darão conta de que este é um setor econômico bastante bem-sucedido e farão
a mesma coisa.”
Kassoy e seus colegas esperavam que, ao certificar empresas conscientes,
eles poderiam mudar o sistema de negócios como um todo. “Acho que
pensávamos, e ainda pensamos, que este é um modelo de mudança dos
sistemas”, disse ele. Porém, à maneira do Mercado Global, eles não
assumiram o sistema diretamente. Eles simplesmente buscavam fomentar
exemplos de um modo diferente. Parte da razão pela qual eles não fizeram
esse trabalho sistêmico, segundo Kassoy, era que “não tínhamos a mínima
noção de como se deslocar entre os espaços. Acho que, em particular, como
nós três vínhamos do setor privado, não fazíamos ideia de como era a política
pública”. Ele ainda mencionou que o trio “tinha uma vaga noção do que era
satisfatório e que, em algum momento, o governo adotaria a ideia em geral”.
Em dez anos, eles transformaram centenas de empresas em Empresas B.
Mas agora, sentado em sua sala de estar, Kassoy disse que o B Lab estava no
meio de um processo de reestruturação, pautado por sua convicção de que “o
que nos trouxe aqui não nos levará aonde estamos indo”. E para onde
exatamente eles queriam ir? Rumo à mudança do sistema que haviam
negligenciado. Kassoy afirma que sabia que eles tinham realizado um bom
trabalho em comprovar um modelo em vez de alterar o jeito como os
negócios funcionavam, mas agora queriam mudar de foco.
Esse momento de reestruturação levantou uma série de perguntas, como se
deveriam ter uma espécie de “Versão Light de Empresas B”, um sistema de
pontuação para empresas que não são elegíveis para serem Empresas B, mas
que gostariam de uma classificação transparente de suas práticas. As
perguntas mais espinhosas e as que aparentemente deixavam Kassoy
angustiado, envolviam adotar o mantra do Mercado Global de “facilitar a
prática do bem”, ou se deveria buscar fazer com que aqueles que causam
danos paguem um preço mais alto — significando uma mudança no sistema
de negócios para todo mundo; um combate não na arena do mercado, e sim
na arena política e jurídica, incentivando a extinção de negócios ruins em
detrimento dos negócios sustentáveis. Kassoy vivia um dilema que envolvia
acatar as premissas e sonhos do Mercado Global e sua teoria do todos saem
ganhando ou buscar outro tipo de mudança que lhe parecesse mais verdadeiro
e menos inalcançável.
Por exemplo, uma das grandes conquistas do B Lab fora a criação de uma
lei corporativa paralela, promulgada pela primeira vez em Maryland e depois
adotada em outros estados, que possibilitava às empresas incorporar uma
missão social em seu negócio sem medo de sofrer ações judiciais, como
denúncias por parte dos acionistas. Proporcionar essa garantia às boas
empresas foi muito importante. Kassoy, no entanto, ainda refletia: “O grande
problema sistêmico aqui é se um sistema de adesão, afinal, pode superar a
influência dos interesses vigentes.” Era mais importante facilitar ao Etsy a
prática do bem ou dificultar que a ExxonMobil prejudicasse a outrem? Seria
possível fazer as duas coisas?
Kassoy tinha um interesse enorme pelo funcionamento dos sistemas, apesar
de ter dedicado a última década à outra abordagem. “Não tenho certeza se
todo mundo diria isso, mas acredito que a regulamentação governamental tem
um papel importante nos negócios”, afirma. “Não vamos mudar todos. Nem
estamos mudando a ganância dos homens. As empresas se comportam muito
mal.” Havia, em particular, “setores exploradores em que o importante é a
existência do setor em si” se traduzindo em males e custos sociais que
consumiam a humanidade. “Não estamos nos livrando dessas coisas”, disse
ele.
Os Estados Unidos tinham milhões de corporações e, após uma década de
evangelização do B Lab, viam-se apenas algumas centenas de Empresas B.
Hoje em dia, Kassoy enxergava com mais clareza do que no início da
empresa que solucionar problemas como a desigualdade, a ganância e a
poluição demandaria muito mais do que a facilitação da prática do bem. Ele
não foi o único dos partícipes do Mercado Global a pensar que seus meios de
operar poderiam ser inadequados ao genuíno trabalho de mudar o mundo, ou
mesmo de mudar somente o próprio país. Todavia, o que, não raro, esses
partícipes do Mercado Global falhavam em compreender era como a
mudança concreta funcionava ou, muitas vezes, sentiam que pisavam em um
terreno duvidoso, e que buscar um tipo diferente de mudança exigia
habilidades que não tinham. Mas se o governo era o meio pelo qual se
mudavam os sistemas, o que eles poderiam fazer enquanto indivíduos? Eles
poderiam peticionar ao governo. Eles poderiam se juntar aos movimentos que
lutam com o intuito de mudar as leis e as políticas. No entanto Kassoy, como
tantos no Mercado Global, se sentia intimidado com essa abordagem. Ele
tinha a impressão de que muitas pessoas no Mercado Global, ao alicerçarem
suas bases nas regras de negócios, sentiam que estavam despreparadas no que
se referia à esfera política, na qual o jogo em que um ganha e outro perde era
normal e os combates tinham que ser frequentemente escolhidos, em vez de
firmar acordos mutuamente aceitáveis. O conflito pode espantar os negócios.
“Não sou um ativista muito bom”, disse Kassoy, “e conheço muitas pessoas
que são, as quais apoio, mas nunca fui muito bom nisso. Não posso afirmar
que seja falta de coragem, falta de entendimento de como ser um — tipo,
acho que ser um bom ativista exige um pouco de manipulação; não sou tão
bom nisso”. Essa ideia de ativismo enquanto manipulação era no mínimo
peculiar; parecia mais uma desculpa a fim de não trabalhar nos sistemas do
que um motivo.
Às vezes Kassoy se sentia determinado em sua hipótese de que bastava
demonstrar como seria um capitalismo melhor e deixar que outros se
encarregassem da mudança do sistema e do enfrentamento dos males. A
mudança do sistema, disse ele, “não era uma das minhas melhores
habilidades” — a linguagem corporativa enfatizava inconscientemente esse
ponto. Isso não fazia parte do seu conjunto de habilidades. A seu ver, havia
um meio de justificar sua abordagem de trabalhar dentro do sistema
comparando-o com o trabalho do Dr. Martin Luther King Jr. “Martin
precisava de Malcolm”, disse. “Não acho que o que estamos fazendo consiga
mudar o capitalismo por si só. Mas acredito realmente que isso cria um
modelo para tal.” Em outros dias, Kassoy não tinha tanta certeza dessa lógica.
Ele persistia na regulamentação. “Sou uma pessoa que acredita no grande
governo. Acredito que o Estado tem um papel muito sólido. Mas não sei
como fazer isso acontecer.”
Os sentimentos paradoxais de Kassoy é o que Jacob Hacker, cientista
político de Yale, parece considerar quando fala dos políticos liberais
filosoficamente comprometidos com o governo, com a solução pública dos
problemas públicos, mas que absorvem, como os fumantes passivos, o
menosprezo da direita à ação pública. À medida que as pessoas da direita
acreditam plenamente na superioridade das soluções mercadológicas, os
liberais como Kassoy fazem isso de modo passivo — aquele tipo de
passividade em que não refutam uma solução pública em teoria, mas buscam
uma solução privada na prática. “Tenho uma discussão constante com meu
pai”, disse Kassoy, “que acha que o ser humano mais maligno que já pisou na
face da Terra foi Ronald Reagan, porque ele sozinho nos convenceu como
sociedade de que o governo é ruim”. Ele complementou: “Se você pensar no
sucesso que Bill Clinton fez na década de 1990, a sua Terceira Via consistia
basicamente em adotar boa parte dessa linguagem. Ou seja, por muito tempo
ninguém nos dizia que o governo era uma coisa boa.” À primeira vista, dizer
isso fez Kassoy refletir se ele havia se transformado no elo mais recente dessa
cadeia de liberais que reiteravam a guerra contra o governo, oferecendo
soluções privadas para os problemas públicos. “Agora nem vou dormir à
noite pensando a respeito”, afirmou.
Sejam lá quais forem as dúvidas pessoais de Kassoy, as Empresas B eram
de fato as vencedoras em todo o Mercado Global. O Aspen Institute havia
concedido não somente a Kassoy, mas a todos os três cofundadores do B Lab
a bolsa de estudos Henry Crown Fellows. A Fundação Ford ofertou subsídios
financeiros ao B Lab. Os fundadores eram constantemente elogiados por
“líderes de pensamento” reconhecidos e se ouvia com frequência os
chamarem do mesmo; dois dos três fundadores ministraram palestras no
TED. As Empresas B certificadas pela equipe de Kassoy figuravam entre as
companhias mais admiradas do Summit at Sea. Seu sistema corporativo de
classificação fora discutido em Davos. O Centro Beeck de Impacto Social e
Inovação, em Georgetown, promoveu a bolsa de estudos do B Lab com o
objetivo de capacitar as pessoas a usar “os negócios como força para o bem”.
Uma Empresa B importante chamada Laureate Education despertou o
interesse de George Soros e da KKR como investidores, e nomeou Bill
Clinton seu “chanceler honorário” — uma atribuição cujo rendimento era de
quase US$18 milhões em cinco anos, segundo o Washington Post. “Vocês
deveriam prestar atenção a essas Empresas B”, afirmou o ex-presidente ao
promover o B Lab e apresentar as empresas no palco principal da CGI.
Kassoy se questionava o quanto ele e o B Lab teriam que mudar com o
objetivo de buscar a reforma do próprio sistema — a fim de assumir uma
posição para dificultar as coisas ruins. Para os iniciantes, o B Lab tinha uma
ética rigorosa de positividade. “Defendemos uma coisa, mas não somos
contra nada” era um de seus mantras. Contudo, uma verdadeira mudança
pode exigir que você faça oposição, e Kassoy sabia disso. Via de regra, as
mudanças efetivas exigiam sacrifícios e, hoje em dia, Kassoy dizia: “Não há
muitas pessoas que queiram se arriscar.” As verdadeiras mudanças podem
implicar em soluções de compensação e a necessidade de escolher suas
prioridades. “Não acredito que as pessoas que tentam ser mais responsáveis
tenham retornos lucrativos mais altos. Existem soluções de compensação”,
afirma Kassoy, “mas ninguém quer contar essa história”.
Às vezes, ele analisava as pequenas iniciativas do Mercado Global ao seu
redor que buscavam mudanças, porém, ao mesmo tempo, evitavam as
mudanças efetivas, e se perguntava se não era apenas uma forma de distribuir
migalhas com o intuito de manter a ordem. Quando as empresas de capital
privado citavam William Blake e falavam sobre mudar o mundo, o quanto
disso era autêntico e em que medida era comercial, conforme Kassoy disse,
“para fazer com que as pessoas sentissem que foram ouvidas, sem ter uma
revolução sangrenta”?
Kassoy ainda acreditava profundamente no que ele e o B Lab estavam
fazendo. Contudo, ele se questionava: “Qual é o momento certo para dizer
‘Ótimo, é dessa forma que todas as empresas devem se comportar’? Por mais
que eu ache que estamos fazendo algo grandioso, isso poderia ser um tiro
certeiro no coração do capitalismo.” Alguma chama intensa e ardente dentro
de Kassoy parecia querer disparar esse tiro; contestar as pessoas com quem
trabalhava em finanças; mudar os negócios para todos, de modo que
seguissem as mesmas regras; ir ao encalço primeiro do que era ruim, em vez
de facilitar o que já era bom — mudar o sistema com o consentimento de
seus cidadãos, não somente buscar uma solução paliativa para sua
degradação. Mas essa chama entrava em conflito com uma rede de mitos
muito poderosa e disseminada — o Mercado Global. Se a chama que pulsava
dentro de Kassoy, se a mudança em si — autêntica, a começar pela raiz dos
males — tivesse uma chance, muitas pessoas precisariam se desvencilhar das
garras desses mitos e se lembrar do que de fato uma mudança é.

a noite em que Kassoy questionava sua forma de mudar o mundo, sua


N alma mater, Stanford, estava organizando um evento em toda a cidade
que poderia ter lhe custado ainda mais sono caso ele comparecesse. Era um
painel de discussão que versava sobre uma coleção de ensaios intitulada
Philanthropy in Democratic Societies [“Filantropia nas Sociedades
Democráticas”, em tradução livre], apresentando dois de seus editores e
outros dois representantes do mundo filantrópico. O anfitrião do evento foi
David Siegel, um filantropo que, pelo que se sabe, ganhou US$500 milhões
em um único ano e que abriu os escritórios de seu fundo de hedge, Two
Sigma, para sediar o evento, apesar da abordagem bastante crítica do livro no
que dizia respeito aos filantropos.
As pessoas que compareceram, algumas com o objetivo de ouvir a
repreensão tão merecida ao filantropo generoso, estavam reunidas pela
primeira vez na cozinha arejada do fundo de hedge, mordiscando minitacos e
bebericando vinho. O painel começou e, em pouco tempo, Chiara Cordelli,
filósofa política italiana da Universidade de Chicago, que coeditou a coleção
e contribuiu com um ensaio, viu-se sentada a distância de dois assentos de
um filantropo que personificava tudo o que ela contestava em seus escritos
acadêmicos. O filantropo era Sanford Weill, ex-presidente e CEO do
Citigroup, e agora um doador engajado cujo nome figurava em um leque
amplo de causas. Weill era o anti-Kassoy: um produto do sistema que tinha
poucas dúvidas a respeito dele e acreditava piamente na importância de
salvadores privados da elite, como ele.
Weill não tinha sido grande coisa quando estava construindo o Citigroup e,
à época, queria se desvencilhar da regulamentação; atualmente, também não
era grande coisa quando se tratava de solucionar os problemas públicos.
Kassoy achava, naquela época e agora, que era melhor deixar problemas a
cargo de pessoas como Sanford Weill. Naquela noite, Weill disse repetidas
vezes que as pessoas abastadas como ele tinham que intervir e solucionar os
problemas públicos, pois o governo estava falido demais, era incapaz demais
e não estava à altura da tarefa. Ele disse isso, embora fosse pessoalmente um
dos motivos pelos quais o governo de tempos e tempos ficava sem recursos
financeiros. Afinal de contas, Weill fora declarado pela Time uma das “25
Pessoas Culpadas pela Crise Financeira”, em virtude de sua ofensiva
incansável por uma visão dos bancos como “tudo para todos os clientes” e
seu “lobby persistente”, finalmente bem-sucedido, pela revogação da Glass-
Steagall, uma lei que remonta à Grande Depressão e limitava a tomada de
riscos dos investidores. Ele defendia que os bancos eram grandes demais para
falir e conseguiu o que queria, ajudando a desencadear a maior crise
financeira em décadas, que levou o governo a gastar bilhões de dólares em
socorro ao Citi. E agora Sanford Weill lamentava que o governo não tinha
dinheiro e, portanto, ele tinha que colaborar e ajudá-lo. Na terceira ou quarta
vez que Weill disse isso, Cordelli ficou irritada a tal ponto que disse: “O
governo somos nós.”
Weill nem se abalou e permanecia impassível. Todavia, a perspectiva de
Cordelli sobre o que de fato estava acontecendo quando as elites tentavam
mudar o mundo pode ser o estimulante de que Kassoy — e outros partícipes
do hesitante Mercado Global — precisavam para enxergar as próprias
situações com mais clareza e, talvez, mudar o próprio rumo. Porém, o mais
importante, isso poderia fornecer ao resto de nós um senso de autorização
para buscarmos um mundo melhor com ou sem a ajuda deles.
Na manhã seguinte ao painel, Cordelli se sentou em uma sala silenciosa,
com um pé direito alto no SoHo Grand Hotel, em um sofá com um encosto
grande, em frente a uma cabine de DJ vazia. Ela ajeitou o café em um copo
de papel e, falando de um jeito metódico e cuidadoso, tentou desvendar
algumas das autojustificativas do Mercado Global.
Vejamos, por exemplo, a visão de que o Mercado Global tem o dever e o
direito de resolver os problemas públicos — e, de fato, liderar o
desenvolvimento de soluções privadas a esse respeito. Na opinião de
Cordelli, isso era como colocar o réu no comando do sistema judiciário. A
pergunta que as elites se recusavam a fazer, disse ela, é: “Em primeiro lugar,
por que existem tantas pessoas no mundo que precisam de ajuda? Você deve
estar se questionando: suas ações contribuíram para isso? Você provocou
algum mal por meio de suas ações? Em caso afirmativo, o fato de agora estar
ajudando algumas pessoas, por mais positivo que seja, não é o bastante para
compensá-las.”
Cordelli estava falando tanto dos transgressores frequentes que provocavam
o mal como daqueles que eram coniventes passivos. Os transgressores são o
que chama de “casos fáceis”. Segundo ela: “Se você se engajou em uma
campanha contra os impostos sobre a herança, se tentou contornar o
pagamento de impostos, se apoiou e se beneficiou direta e voluntariamente de
um sistema em que havia regulamentações trabalhistas que deixavam a
desejar e uma precariedade maior, logo, você contribuiu diretamente para
uma estrutura que prejudicou desnecessariamente o futuro das pessoas.” Isso
se chama “cumplicidade direta”.
Quanto às pessoas que não ajudaram a gerenciar a Goldman Sachs ou a
Purdue Pharma, que vivem suas vidas de forma decente e tentam fazer do
mundo um lugar um pouco melhor por intermédio do mercado, Cordelli as
chamava de casos mais difíceis. Um economista talvez afirmasse que a
insignificante contribuição ao mundo feita por alguém como Kassoy foi
positiva. Cordelli rejeitava essa análise. Ela enxergava em cada um desses
empenhos não somente um ato moral, mas dois. Além do ato de ajudar, havia
o ato de aceitação.
Esses partícipes do Mercado Global, com sua profusão de iniciativas
privadas, estavam fazendo mais do que simplesmente acrescentar a prática do
bem ao mundo. No passado, eles usufruíram, e não raro continuavam a
usufruir, de um sistema — um conjunto de instituições, leis e normas — que
impossibilitava que muitas pessoas tivessem vidas plenas, e que nas últimas
décadas nos Estados Unidos aumentava ainda mais, em vez de diminuir, a
multidão dos desprivilegiados. Segundo Cordelli, essas elites eram como o
dono de um quadro que descobre que a obra era produto de roubo. Embora o
furto tenha ocorrido antes da compra, “ainda assim, parece que, se você
conhece o antigo dono da pintura roubada, tem a obrigação de devolvê-la.
Talvez com o intuito de se desculpar, reconhecendo que tem em mãos um
objeto que não lhe pertence e fruto de uma injustiça”.
Como a situação de Kassoy, a escolha de solucionar um problema de uma
determinada forma é uma escolha de não resolvê-lo de outra. Se Kassoy
seguisse com sua ideia de colocar obstáculos para as empresas que se
comportam mal, engajando-se politicamente, com a lei e com o próprio
sistema, o sucesso poderia acarretar a perda de oportunidades para os
Kassoys do futuro e até ter um custo no que se referia aos seus rendimentos,
provenientes de sua antiga vida. Não era uma decisão fácil de tomar.
Mas era uma questão de escolha, dizia Cordelli. Praticar o bem acanhada e
modestamente, sem fazer nada a respeito do sistema como um todo, é como
ficar com o quadro roubado. Você está comendo do fruto da injustiça. Pode
trabalhar em um programa educacional penitenciário, mas está escolhendo
não priorizar a busca por leis trabalhistas e salariais que tragam mais
estabilidade à vida das pessoas para que talvez algumas delas não acabem na
prisão. Você pode estar patrocinando uma iniciativa de perdão às dívidas para
estudantes da universidade de direito, mas está escolhendo não priorizar a
busca de um código tributário que exija que você pague mais impostos e
reduza as dívidas deles com o governo. Sua empresa de consultoria
administrativa pode estar elaborando relatórios sobre a oportunidade de
trilhões de dólares devido ao potencial das mulheres, mas está escolhendo
não aconselhar seus clientes a pararem de fazer lobby contra os programas
sociais que foram apresentados em outras sociedades com o intuito de ajudar
as mulheres a alcançar a igualdade fantasiada nos relatórios dos consultores.
Nossa era é dominada pelo raciocínio econômico, e podemos nos sentir
tentados a focar a primeira de cada uma das opções acima — uma
contribuição insignificante que você pode ver e tocar — e ignorar as
segundas opções, que envolvem algo mais vago chamado cumplicidade.
Entretanto, Cordelli estava desafiando as elites a ver o que elas permitem que
fosse feito em seu nome, contra o que se recusavam a lutar, tanto no que dizia
respeito à ação moral quanto às iniciativas que elas promovem ativamente.
O argumento de Cordelli não significa que tudo que acontece no mundo é
culpa sua caso você não consiga impedir. Pelo contrário, sua alegação é que
os cidadãos de uma democracia são coletivamente responsáveis pelo que a
sociedade constantemente permite; que eles têm uma missão especial em
relação aos que falham sistematicamente; e que esse fardo recai sobre os
ombros daqueles mais recompensados pelo mesmo conjunto de acordos que,
em última instância, são arbitrários. “Se você faz parte de uma elite que fez
campanha ou apoiou as políticas certas, ou ainda que não seja cúmplice em
nenhum sentido direto”, disse ela, “ainda me parece que é responsável ou tem
o dever de retribuir aos outros as coisas das quais eles foram injustamente
privados pelas suas instituições comuns”.
Os vencedores são os responsáveis pela condição dessas instituições e pelas
consequências que elas têm na vida de outras pessoas, por duas razões,
segundo Cordelli: “Porque você não vale absolutamente nada sem uma
sociedade e também porque todos nós seríamos dominados por outros sem as
instituições públicas que protegem nossos direitos.”
Por outro lado, ela afirma que você não vale nada sem a sociedade, pois não
podem existir gestores de fundos de hedge, nem violinistas, tampouco
empreendedores de tecnologia, ante a falta de uma infraestrutura
civilizacional que aceitamos como eterna. “Sua vida, seus talentos e o que
você faz não seriam possíveis se as instituições comuns não existissem”, diz
Cordelli. Se as ruas não fossem protegidas ou se as bolsas de valores não
fossem regulamentadas, seria bastante complicado usar seus talentos. Caso os
bancos não fossem obrigados a oferecer uma garantia para salvaguardar o seu
dinheiro, ganhar dinheiro não teria o menor sentido. Ainda que seus filhos
frequentassem escolas particulares, as escolas públicas provavelmente
capacitariam professores e financiariam estradas públicas a fim de que uma
escola isolada fosse acessível à outra ponta da sociedade. Logo, existe o fato
de que, na ausência de um sistema político de instituições compartilhadas,
qualquer um poderia dominar alguém. Toda pessoa que tivesse algo valioso
para proteger estaria correndo risco iminente de saque por todas as outras
pessoas. Viver em uma sociedade sem leis e sem instituições compartilhadas
que façam valer o sistema igualmente a todos seria, segundo Cordelli, viver
“dependente da vontade arbitrária de outra pessoa. Seria como uma forma de
servidão”.
Leve em consideração as pessoas que buscam “mudar o mundo” fazendo o
que pode ser feito em um sistema imperfeito, mas se mantêm relativamente
silenciosas a respeito desse sistema. Pense na pessoa que administra um
fundo de investimento de impacto cujo objetivo é ajudar os pobres, mas que
em sua cabeça, ou mesmo publicamente, não está nem um pouco disposta a
enxergar a relação entre a pobreza e as práticas comerciais dos financiadores
em seu conselho consultivo. Agora imagine centenas de milhões de variações
desses exemplos. Para Cordelli, essa pessoa está se colocando no difícil lugar
moral do mestre de escravos que era generoso.
“Para mim, isso é a mesma coisa que um mestre que nega às pessoas o
direito à liberdade, com a justificativa: ‘Eu sou um mestre benevolente’.
Então, na verdade, sou a favor da escravidão, mas, uma vez que tenha os
escravos, realmente os trato bem e eles vivem em ótimas condições.”
Alguém poderia rebater “mas, se temos a escravidão, claro que é melhor ser
um mestre benevolente do que um mestre ruim. Isso parece óbvio”, afirma
Cordelli. No entanto, quando se trata de uma análise retrospectiva de um
sistema como a escravidão, a maior parte das pessoas concordaria que a única
conduta sensata naquela época seria recusar-se a adquirir um escravo,
recusar-se a participar da escravidão e a pactuar com ela. É quando se leva
em consideração o presente que as coisas ficam mais sombrias. Um sistema
político e econômico que exclui metade da nação do crescimento e do
progresso de uma geração não é algo compreensível ou digno de uma solução
paliativa; a questão é complicada. À medida que alguns temem que seu
posicionamento pareça despropositado, acabam escolhendo a aceitação. Eles
buscam trabalhar mediante e com os culpados da injustiça. Podem até
recorrer aos culpados em busca de orientação ou para fazer parte do conselho
de seu projeto que visa justiça.
Às vezes, essa aceitação se esconde em forma de incompetência ou
ignorância. Sim, alguém como Laurie Tisch poderia alegar que, teoricamente,
o sistema deveria ser mudado. Mas isso não era nada fácil. “As mudanças
estruturais e as mudanças sistêmicas” são adequadas e boas, diz Amy Cuddy;
o problema que ela depara é: “Com quem você fala para que isso se torne
realidade?” Arquitetar um conjunto voluntário de um capitalismo paralelo
bem-comportado é fácil, afirma Andrew Kassoy; agora mudar a lei para todas
as empresas requer talentos de um ativista, que ele alega não ter, e
representantes honoráveis em todos os níveis da política — uma profissão
que não oferece as recompensas lucrativas do Mercado Global.
Cordelli descarta completamente esse fatalismo sobre o sistema, esse
sentimento de impotência em relação à mudança institucional, como
“absurdo”. É um absurdo, diz ela, porque os cidadãos do Mercado Global
“vivem sua vida por meio de uma noção de si mesmos como empreendedores
e agentes da mudança”. Todavia essa atitude efusiva de que o mundo fique de
joelhos ao bel-prazer deles acaba sendo impulsiva. “Quando se trata de
efetuar as mudanças de uma forma que os faça se sentir bem — quando se
trata de construir uma empresa, fazer lobby em prol de determinadas coisas,
ajudar algumas pessoas por intermédio da filantropia, logo, eles são agentes.
Eles podem influente e intencionalmente colocar essas mudanças em prática.”
No entanto, prosseguia: “Quando se trata de pagar mais impostos, defender
instituições mais justas, realmente tentar pôr freio nas injustiças sistêmicas,
ou defender menos desigualdade e mais redistribuição, então eles alegam
estar de mãos atadas. Não conseguem fazer nada.”
“É uma coisa absurda, em termos de que é um conceito de órgão
governamental que não faz sentido filosoficamente e tampouco faz sentido na
prática”, afirma Cordelli. Antes de mais nada, não é necessariamente mais
difícil lutar por uma mudança nas leis corporativas do que inventar uma
infraestrutura paralela do capitalismo. Não é necessariamente mais difícil
buscar uma tributação mais incisiva para os plutocratas que viajam mundo
afora do que organizar uma conferência anual mais elaborada para que eles
retribuam um pouco mais. Cordelli nos alerta que os partícipes do Mercado
Global estão subestimando a si mesmos. Eles fazem coisas de suma
importância, complexas e elaboradas o tempo todo; solucionam problemas
espinhosos. A incapacidade declarada deles de contribuir para soluções em
âmbito político e sistêmico, aparentemente, é falsa. Além disso, o sistema por
meio do qual o Mercado Global prosperou nas últimas décadas não decorre
de um fenômeno natural. Foi engendrado pelo homem. O Mercado Global se
mostrou disposto e capaz de se envolver na arena da política — com o intuito
de “mudar o sistema” — quando buscava tributação menor, comércio mais
livre, revogação de leis como a Glass-Steagall, redução da dívida,
regulamentação mais branda e muitas outras políticas que fizeram da era
atual generosamente abundante para seus próprios partícipes. Contudo, a
reversão de algumas das coisas pelas quais lutou era tida como difícil,
política e grande demais para ser assumida.
Por mais duras que possam ser suas críticas, Cordelli está dando a Kassoy e
outros no Mercado Global uma saída. Ela está confessando, em nome deles, o
que alguns têm medo que seja verdade: que eles são credores que precisam da
misericórdia da sociedade, e não salvadores que precisam de discípulos. Ela
está oferecendo aos partícipes do Mercado Global aquilo que eles tanto
veneram: uma solução. A solução é retornar, contra os seus instintos e quem
sabe até contra seus interesses, à política como o lugar-comum pelo qual
moldaremos o mundo.
Se Cordelli tiver razão, as premissas básicas do Mercado Global estão
equivocadas. Em sua opinião, essa prática do bem perde um tanto o brilho,
visto que sua aceitação importa tanto quanto o que você faz. Pessoas de
negócios que se autodenominam “líderes” e solucionadores dos problemas
sociais mais espinhosos são preocupantes quando apagam suas participações
em ocasioná-los. Por meio das lentes de Cordelli, é bastante estranho que as
pessoas que têm mais a perder com a reforma social sejam frequentemente
convidadas a participar dela. E a mudança do mundo privado do Mercado
Global, em relação a todo bem que praticam, também é, para Cordelli,
caracterizada pelo próprio “narcisismo”. “Parece-me que hoje em dia todo
mundo quer mudar o mundo sozinho. Trata-se deles; trata-se do que eles
fazem. Mas existem outras pessoas ao ser redor, e você deve apoiar
instituições que, em nome de todo mundo, inclusive em seu nome, possam
assegurar determinadas condições para uma vida mais digna.”
Quando uma sociedade ajuda as pessoas por intermédio de suas instituições
democráticas compartilhadas, ela o faz em nome de todos e em um contexto
igualitário. Essas instituições, representando os cidadãos livres e iguais,
realizam uma escolha coletiva de quem e como ajudar. Aqueles que recebem
ajuda não são apenas objetos da operação, mas também sujeitos dela —
cidadãos ativos. Quando a ajuda passa a ser da esfera privada, por mais
eficiente que nos digam que ela seja, o contexto é uma relação de
desigualdade: quem dá e quem recebe, quem ajuda e quem é ajudado, o
doador e o beneficiário.
Ao solucionar um problema política e sistematicamente, a sociedade
manifesta o sentido do todo; ela está falando em nome de todo cidadão. Está
dizendo em que acredita por meio do que faz. Cordelli alega que esse direito
de falar em lugar de outrem é simplesmente ilegítimo quando exercido por
um cidadão poderoso do meio privado. Ela afirma: “Você é um indivíduo.
Não pode falar em nome deles. Talvez eu possa falar em nome do meu filho,
mas outras pessoas não são os seus filhos.
“Este é o significado de indivíduos livres, iguais e independentes e, para o
bem ou para o mal, que compartilham as instituições comuns”, disse ela.
Nossas instituições políticas — nossas leis; nossos tribunais; nossos
representantes eleitos; nossos órgãos governamentais; nossos direitos; nossa
polícia; nossas constituições; nossos regulamentos; nossos impostos; nossa
infraestrutura compartilhada: as milhões de minúsculas partes que sustentam
a nossa civilização e que possuímos juntos — somente elas, disse Cordelli,
“podem agir e falar em nome de todos”. Porém admitiu: “Geralmente não
fazemos isso.” Contudo, este não era o caminho que o Mercado Global
costumava trilhar. “Cabe a nós”, finaliza Cordelli, “obrigá-los a fazer isso,
em vez de trabalhar com o intuito de minar e arruinar as nossas instituições,
pensando que conseguimos realizar as mudanças por nós mesmos. Vamos
começar a trabalhar a fim de criar condições para melhorar essas
instituições”.
NOTAS SOBRE AS FONTES

Este é um trabalho de reportagem. Via de regra, as pessoas sobre as quais


escrevo e cito exaustivamente são aquelas que entrevistei, com algumas
exceções indicadas no texto. Da mesma forma, as cenas que descrevo em
detalhes são aquelas que testemunhei ou tentei reconstruir a partir dos
testemunhos de pessoas que estavam lá. Nos momentos em que recorri aos
livros, citei-os diretamente no corpo do texto, sempre que possível. Assim
sendo, disponibilizo a seguir uma lista de fontes substanciais que não citei no
corpo do texto para evitar tirar a atenção da narrativa e diminuir a ritmo da
leitura. Nem tudo consegui incluir aqui. Acabei deixando de fora as citações
pequenas que estão no livro e são facilmente encontradas na internet ou os
fatos cuja origem é evidente.
PRÓLOGO
A respeito dos cientistas norte-americanos que lideram o mundo na pesquisa
biomédica, veja “Globalization and Changing Trends of Biomedical Research
Output”, de Marisa L. Conte, Jing Liu, Santiago Schnell e M. Bishr Omary
(JCI Insight, junho de 2017). Sobre a saúde do norte-americano “continua a
piorar, e melhora vagarosamente em comparação às pessoas de outros países
ricos”, veja “U.S. Health in International Perspective: Shorter lives, poorer
health”, pelo Institute of Medicine and the National Research Council
(Washington, D.C.: National Academies Press, 2013). Sobre o declínio da
expectativa de vida nos Estados Unidos, veja “Mortality in the United
States”, de Jiaquan Xu et al. (National Center for Health Statistics data brief
nº. 267, dezembro de 2016). A respeito do declínio no nível médio de leitura
no ensino médio, veja “The Condition of Education 2017”, de Joel
McFarland et al. (National Center for Education Statistics, 2017). Sobre a
incidência de obesidade e condições relacionadas, veja “Early Release of
Selected Estimates Based on Data from the 2015 National Health Interview
Survey”, de B. W. Ward, T. C. Clarke, C. N. Nugent e J. S. Schiller (National
Center for Health Statistics, maio de 2016); e outras fontes em:
http://stateofobesity.org. A respeito da queda do empreendedorismo entre os
jovens, veja “Endangered Species: Young U.S. entrepreneurs”, de Ruth
Simon e Caelainn Barr (Wall Street Journal, 2 de janeiro de 2015). Sobre o
Google Livros, veja “Torching the Modern-Day Library of Alexandria”, de
James Somers (Atlantic, abril de 2017). Sobre o alfabetismo nos Estados
Unidos, veja “The U.S. Illiteracy Rate Hasn’t Changed in 10 Years”
(Huffington Post, 6 de setembro de 2013); e dados do National Center for
Education Statistics. A respeito da leitura literária, veja “The Long, Steady
Decline of Literary Reading”, de Christopher Ingraham (Washington Post, 7
de setembro de 2016). Sobre a confiança no governo, veja “Public Trust in
Government Remains Near Historic Lows as Partisan Attitudes Shift” (Pew
Research Center, 3 de maio de 2017).
Sobre a disseminação injusta dos “frutos da mudança”, veja “Distributional
National Accounts: Methods and estimates for the United States”, de Thomas
Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman (National Bureau of Economic
Research Working Paper Nº. 22945, dezembro de 2016). A respeito das
realidades diferentes quando se trata de mobilidade social e “oportunidade de
prosperar”, veja “The Fading American Dream: Trends in absolute mobility
since 1940”, de Raj Chetty et al. (National Bureau of Economic Research
Working Paper Nº. 22910, dezembro 2016). Sobre a diferença de expectativa
de vida dos abastados/pobres, veja “The Association Between Income and
Life Expectancy in the United States, 2001–2014”, de Raj Chetty et al.
(Journal of the American Medical Association, 26 de abril de 2016). Sobre o
índice de crescimento bilionário em relação aos outros e a riqueza dos 10%
mais ricos, veja “How Business Titans, Pop Stars and Royals Hide Their
Wealth”, de Scott Shane, Spencer Woodman e Michael Forsythe (New York
Times, 7 de novembro de 2017).
CAPÍTULO 1: MAS COMO O MUNDO MUDOU?
Os dados complementares de Piketty et al. são do mesmo documento
“Distributional National Accounts” citado anteriormente. Sobre a época de
Bill Clinton na Universidade de Georgetown, veja On the Make: The rise of
Bill Clinton, de Meredith L. Oakley (Nova York: Regnery, 1994). As citações
de David Harvey a respeito do neoliberalismo são provenientes de seu livro A
Brief History of Neoliberalism (Oxford: Oxford University Press, 2007). Em
relação à ideias de Yascha Mounk sobre o significado mutável de
“responsabilidade”, veja The Age of Responsibility: Luck, choice, and the
welfare state (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2017). Conversa
de Jonathan Haidt com Krista Tippett, veja “Capitalism and Moral Evolution:
A civil provocation”, o episódio do programa de rádio e podcast On Being (2
de junho de 2016).
CAPÍTULO 2: TODOS SAEM GANHANDO
Para a opinião do Banco Africano de Desenvolvimento sobre os
denominados fundos abutres, veja o site: www.afdb.org/en/topics-and-
sectors/initiatives- partnerships/african-legal-support-facility/vulture-funds-
in-the-sovereign- debt-context (acessado em setembro de 2017). Para saber
sobre o trabalho do Instituto de Política Econômica em relação à estagnação
dos salários e aumento da produtividade, veja “Understanding the Historic
Divergence Between Productivity and a Typical Worker’s Pay”, de Josh
Bivens e Lawrence Mishel (EPI Briefing Paper Nº. 406, setembro de 2015).
A primeira citação de Adam Smith é proveniente de The Wealth of Nations,
livro I, Capítulo 2; a segunda vem de The Theory of Moral Sentiments, parte
IV, Capítulo 1. A citação de Michael Porter acerca do poder dos negócios
para solucionar problemas é de seu ensaio “Creating Shared Value”, escrito
em coautoria com Mark R. Kramer (Harvard Business Review, janeiro–
fevereiro de 2011). Os escritos de Craig Shapiro e o diagrama de Venn são do
site do seu Collaborative Fund: www.collaborativefund.com/about (acessado
em setembro de 2017).
CAPÍTULO 3: REIS REBELDES EM BOINAS ALARMANTES
A citação de Blair Miller se origina de uma série de entrevistas chamada
“Tastemakers”, publicada pela boutique de roupas de Nova York Otte (não
está mais disponível online). A crítica de Danah Boyd aos magnatas da
tecnologia vem de seu ensaio “It’s Not Cyberspace Anymore” (Points, blog
no Medium, fevereiro de 2016).
Sobre a campanha contra a discriminação no Airbnb, veja “Airbnb Has a
Discrimination Problem. Ask Anyone Who’s Tried to #Airbnbwhileblack”,
de Aja Romano (Vox, 6 de maio de 2016). O relatório do Airbnb em resposta
às acusações se chama “Airbnb’s Work to Fight Discrimination and Build
Inclusion”, de Laura W. Murphy (8 de setembro de 2016):
http://blog.atairbnb.com/wp- content/uploads/2016/09/REPORT_Airbnbs-
Work-to-Fight-Discrimination- and-Build-Inclusion.pdf?3c10be (acessado
em setembro de 2017). As alegações do Departamento de Emprego e
Habitação da Califórnia contra o Airbnb estão em: www.dfeh.ca.gov/wp-
content/uploads/sites/32/2017/06/04-19-17-Airbnb- DFEH-Agreement-
Signed-DFEH-1-1.pdf (acessado em setembro de 2017). A resposta do
Airbnb às acusações da Califórnia também figura no documento acima.
Veredito do juiz Chen sobre a Uber, veja “Order Denying Defendant Uber
Technologies, Inc.’s Motion for Summary Judgment” em O’Connor v. Uber,
Caso N°C-13-3826 EMC, Tribunal Distrital dos Estados Unidos do Distrito
Norte da Califórnia, chamada do processo N°211. Veredito do juiz Chhabria
sobre a Lyft, veja “Order Denying Crossmotions for Summary Judgment” em
Cotter v. Lyft, Caso N°13-cv-04065-VC, Tribunal Distrital dos Estados
Unidos do Distrito Norte da Califórnia, chamada do processo N°69 e 74.
Sobre a crença de Bill Gates na influência igualadora da tecnologia, veja seu
livro The Road Ahead (Nova York: Viking, 1995). Sobre a crença de Mark
Zuckerberg e Priscilla Chan nos poderes da internet, veja “Letter to Our
Daughter” (página de Mark Zuckerberg no Facebook, dezembro de 2015).
A crítica de David Heinemeier Hansson à ética do Vale do Silício é
proveniente de seu ensaio “Reconsider” (Signal v. Noise, blog no Medium, 5
de novembro de 2015). A crítica de Maciej Ceglowski é citada em
“California Capitalism Is Starting to Look a Lot Like Polish Communism”,
publicada em Quartz (24 de setembro de 2015) ou o original em:
http://idlewords.com/talks/what_happens_next_will_amaze_you.htm. As
citações de Hobbes são do Leviathan, livro I, Capítulo 13.
CAPÍTULO 4: O CRÍTICO E O LÍDER DE PENSAMENTO
Os documentos de pesquisa de Amy Cuddy podem ser encontrados em sua
página do Google Scholar: https://scholar.google.com/citations?user=1kdje
woAAAAJ. Para seu artigo a respeito dos homens e percepções de
independência e interdependência, veja “Men as Cultural Ideals: How culture
shapes gender stereotypes” (Harvard Business School Working Paper 10-097,
2010). Para o ensaio de Andrew Zolli, veja “Learning to Bounce Back” (The
New York Times, 2 de novembro de 2012).
Em relação às estatísticas sobre a estabilidade no emprego: os dados são de
“Higher Education at a Crossroads”, um relatório da Associação Americana
de Professores Universitários (março–abril de 2016):
www.aaup.org/sites/default/files/2015-16EconomicStatusReport.pdf
(acessado em setembro de 2017). As informações sobre as redações dos
jornais são de “Newsonomics: The halving of America’s daily newsrooms”,
de Ken Doctor (Nieman Lab, 28 de julho de 2015).
As citações de Adam Grant são de seu livro Originais: Como os
inconformistas mudam o mundo (Sextante, 2017). As citações de Brené
Brown são de “The Power of Vulnerability”, sua palestra no TEDx-Houston
(junho de 2010). A citação de Carol Hanisch é oriunda de seu ensaio “The
Personal Is Political”, disponível em seu site:
www.carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html (acessado em setembro de
2017). A discussão de Malcolm Gladwell sobre o dilema ético da palestra
remunerada pode ser encontrada em “Disclosure Statement” em seu site:
http://gladwell.com/disclosure-statement (acessado em setembro de 2017). A
crítica de Stephen Marche a Niall Ferguson vem de “The Real Problem with
Niall Ferguson’s Letter to the 1%” (Esquire, agosto de 2012). A observação
de Gautam Mukunda vem originalmente de seu ensaio “The Price of Wall
Street’s Power” (Harvard Business Review, junho de 2014).
Para saber mais sobre o “efeito de vítima identificável”, veja “Helping a
Victim or Helping the Victim: Altruism and identifiability”, de Deborah
Small e George Loewenstein (Journal of Risk and Uncertainty, janeiro de
2003). As críticas de Jonathan Haidt às pessoas que esperam “demais” são da
entrevista On Being citada acima.
CAPÍTULO 5: OS INCENDIÁRIOS FORMAM OS MELHORES BOMBEIROS
O orçamento de 2016 da Open Society Foundations pode ser visto em:
www.opensocietyfoundations.org/sites/default/files/open-society-
foundations- 2016-budget-overview-2016-01-21.pdf. A crítica de Kavita
Ramdas à usurpação tecnocrática do mundo sem fins lucrativos vem de seu
ensaio “Philanthrocapitalism Is Not Social Change Philanthropy” (Stanford
Social Innovation Review, dezembro de 2011). A carta ao mundo do bahá’ís é
da edição de 2010 da Mensagem Anual Ridván da Casa Universal de Justiça,
disponível em: http:// universalhouseofjustice.bahai.org/ridvan-
messages/20100421_001.
CAPÍTULO 6: GENEROSIDADE E JUSTIÇA
As citações de Darren Walker se originam, salvo indicação em contrário, das
minhas entrevistas com ele. Para um perfil de revista de Walker e sua vida
extraordinária, veja também “What Money Can Buy,” de Larissa
MacFarquhar (New Yorker, 4 de janeiro de 2016). O relato do falecido
historiador Peter Dobkin Hall acerca das origens da filantropia norte-
americana é de um capítulo de um livro que ele escreveu, “A Historical
Overview of Philanthropy, Voluntary Associations, and Nonprofit
Organizations in the United States, 1600 to 2000”; o livro é The Nonprofit
Sector: A research handbook, 2ª ed. (New Haven, CT: Yale University Press,
2006). As citações de Jonathan Levy são de seu capítulo no livro
Philanthropy in Democratic Societies, mencionado no corpo do texto. A carta
de Walker, “Toward a New Gospel of Wealth”, pode ser encontrada no site
da Fundação Ford: www.fordfoundation.org/ideas/equals-change-
blog/posts/toward-a-new- gospel-of-wealth (acessado em setembro de 2017).
A seção sobre os Sackler, a Purdue Pharma e a epidemia de opioides é, ao
contrário da maior parte do livro, um trabalho de síntese histórica elaborado
inteiramente a partir de relatórios principais de outras pessoas. As
publicações são citadas no decorrer do capítulo, mas quero registrar minha
gratidão pela reportagem, entre outros, de Bruce Weber e Barry Meier no
New York Times, Katherine Eban da Fortune e David Armstrong por seu
trabalho maravilhoso e hercúleo no STAT. As citações de John Brownlee
sobre a Purdue são oriundas do testemunho do congresso que ele deu, em
uma sessão intitulada “Ensuring That Death and Serious Injury Are More
Than a Business Cost: OxyContin and defective products” (Comissão do
Senado dos Estados Unidos sobre o Judiciário, 31 de julho de 2007).
CAPÍTULO 7: O QUE FUNCIONA NO MUNDO MODERNO
As citações de Niall Ferguson a respeito dos globalistas são de seu ensaio
“Theresa May’s Abbanomics and Brexit’s New Class War” (Boston Globe,
10 de outubro de 2016). A citação de Lawrence Summers é de sua coluna
“Voters Deserve Responsible Nationalism Not Reflex Globalism” (Financial
Times, 9 de julho de 2016). A análise de Jonathan Haidt é de “When and
Why Nationalism Beats Globalism” (American Interest, 10 de julho de
2016).
Eu entrevistei Bill Clinton duas vezes para este livro. A primeira entrevista
foi em setembro de 2016, por e-mail. A segunda foi em maio de 2017, uma
conversa de 90 minutos realizada pessoalmente nos escritórios de sua
fundação em Nova York.
A análise de Aaron Horvath e Walter Powell sobre a filantropia ser
“contributiva” ou “fator desestabilizador” da democracia vem de seu capítulo
no livro Philanthropy in Democratic Societies.
EPÍLOGO: “AS PESSOAS QUE NÃO SÃO SEUS FILHOS”
As longas citações de Chiara Cordelli são de uma entrevista comigo. Para
mais informações sobre suas ideias, veja o capítulo de seu livro Philanthropy
and Democratic Societies, em que ela também é coeditora.
Os Quatro
Galloway, Scott
9788550817002
320 páginas

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A Amazon, a Apple, o Facebook e o Google são as quatro
empresas mais influentes do planeta. Quase todo mundo
acha que sabe como eles chegaram lá – e quase todo
mundo está errado. Apesar de tudo o que foi escrito sobre
os Quatro nas últimas duas décadas, ninguém conseguiu
escrever um livro mais perspicaz do que Scott Galloway para
explicar o poder e o incrível sucesso dessas organizações.
Em vez de engolir os mitos que essas empresas tentam
divulgar, Galloway prefere se basear nas respostas a
algumas perguntas instigantes. Como os Quatro
conseguiram se infiltrar em nossa vida a ponto de ser quase
impossível evitá-los (ou boicotá-los)? Por que o mercado
financeiro os perdoa por pecados que destruiriam qualquer
outra companhia? E quem seria capaz de desafiar os Quatro
na corrida para se tornar a primeira empresa trilionária do
mundo? No mesmo estilo irreverente que fez dele uns dos
professores de administração mais famosos do mundo,
Galloway decifra as estratégias que se escondem sob o
verniz reluzente dos Quatro. Ele mostra como essas
empresas manipulam as necessidades emocionais básicas
que orientam o comportamento dos seres humanos desde
que nossos antepassados moravam em cavernas, com uma
velocidade e alcance a que as outras companhias
simplesmente não conseguem igualar. E revela como você
pode aplicar as lições da ascensão dos Quatro em sua
organização ou em sua carreira. Não importa se a ideia for
competir, firmar parcerias ou simplesmente viver em um
mundo dominado por eles, é fundamental entender os
Quatro. Elogios : Uma análise polêmica e estratégica de
como algumas empresas estão transformando o mundo,
bem debaixo de nosso nariz, mas longe de nossa vista.
Pode não ser agradável ler essas verdades, porém é melhor
saber agora do que quando for tarde demais. – Seth Godin,
autor de Tribos e Isso é Marketing Scott Galloway é franco,
ultrajante e polêmico. Este livro acionará seus instintos de
lutar ou fugir como nenhum outro e vai levá-lo a realmente
pensar diferente. – Calvin McDonald, CEO da Sephora Este
livro é um guia abrangente e essencial, como o próprio Scott
Galloway, ao mesmo tempo sagaz, divertido e penetrante.
Como em suas célebres aulas de MBA, Galloway nos
mostra a realidade como ela é, sem poupar nenhum titã
corporativo e nenhuma gigantesca corporação de merecidas
críticas. Uma leitura obrigatória. – Adam Alter, autor de
Drunk tank pink e Irresistible Galloway, professor de
administração da NYU, faz uma análise minuciosa das
maiores empresas de tecnologia e revela como a Amazon, a
Apple, o Facebook e o Google criaram seus enormes
impérios. – Publishers Weekly, "Os 10 mais importantes
livros de negócios do quarto trimestre de 2017"

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Fake: Dinheiro de mentira, professores de
mentira, ativos de mentira
Kiyosaki, Robert
9788550815503
480 páginas

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Imprimir dinheiro de mentira não é novidade. Os antigos e
modernos sistemas bancários são baseados na impressão
de dinheiro de mentira. É assim que os bancos enriquecem.
Eles ganham muito dinheiro porque, há milhares de anos,
têm licença para imprimir dinheiro. Os bancos não são as
únicas organizações autorizadas a fazer isso. O mercado de
ações, de títulos, imobiliário, de derivativos financeiros e
muitos outros mercados também têm essa licença. Quem
trabalha por dinheiro… trabalha para pessoas que imprimem
dinheiro. Um castelo de cartas da economia acontece
quando as elites acadêmicas são responsáveis pelo nosso
dinheiro, nossos professores e nossos ativos. O grande
problema é que nosso sistema não ensina os estudantes a
imprimir dinheiro. Em vez disso, ensina-os a trabalhar para
pessoas que o imprimem. Isso é o que realmente está por
trás da crise financeira que enfrentamos hoje. Em 2019, ao
escrever este livro, o preço do bitcoin e de outras moedas
cibernéticas subia e despencava rapidamente. Mais uma
vez, poucas pessoas entendem como as moedas de
tecnologia bitcoin ou blockchain afetarão suas vidas, seu
futuro e sua segurança financeira. O aumento do preço do
ouro em 1971 e o do bitcoin em 2018 são indícios de
profundas mudanças nas placas tectônicas financeiras de
todo o mundo, que causarão terremotos e tsunamis
financeiros em todo o globo. O objetivo deste livro é dar às
pessoas comuns a possibilidade de sobreviver,
possivelmente prosperar, talvez até ficar muito ricas, mesmo
após o colapso. E é esperado que esse colapso seja de um
quatrilhão de dólares. CONTRA FATOS NÃO HÁ
MENTIRAS DINHEIRO DE MENTIRA Em 1971, o presidente
Richard Nixon desatrelou o dólar do padrão-ouro. Em 1971,
o dólar se tornou moeda fiduciária… dinheiro governamental.
O pai rico o definiu como "dinheiro de mentira". O dinheiro
de mentira deixa os ricos mais ricos. O problema é que deixa
os pobres e a classe média mais pobres. PROFESSORES
DE MENTIRA O que a escola ensina sobre dinheiro? O que
seus pais sabem sobre dinheiro? O que seu consultor
financeiro sabe? O que nossos líderes sabem? Por que 78%
das pessoas vivem de salário em salário? Por que os
estudantes se afundam em dívidas com empréstimos
estudantis? Por que os professores fazem greves, exigindo
mais dinheiro? ATIVOS DE MENTIRA Em 2008, a economia
mundial entrou em colapso, quando ativos de mentira e
financiamentos de alto risco colapsaram. Os mesmos
banqueiros que venderam ativos de mentira em 2008 ainda
os vendem para você, para mim e para os planos de
aposentadoria? Por que tantas pensões são subfinanciadas?
Quantas pessoas de meia-idade ficarão sem dinheiro na
aposentadoria?

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A Terceira Onda da Internet
Case, Steve
9788550816869
256 páginas

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Temos aqui três obras em uma só, por ser uma combinação
de autobiografia de Steve Case, biografia da internet e livro
sobre o futuro da web. Case se vale de sua larga
experiência como empreendedor e investidor para nos
explicar como funciona esta nova era que estamos
vivenciando, na qual veremos uma grande mudança nos
negócios e o renascimento do empreendedorismo, o que o
autor chama de "terceira onda" da internet. A primeira onda
viu a AOL – empresa que Case cofundou – e outras
organizações criarem a base para que consumidores
começassem a se conectar e utilizar a internet, inicialmente
apenas no ambiente profissional. Na segunda onda,
companhias como Google e Facebook lançaram as redes
sociais, e hoje vivemos o tempo todo conectados ao
Instagram e ao Snapchat – o que antes estava apenas no
âmbito do trabalho invadiu nosso dia a dia por completo.
Segundo o autor, agora estamos entrando em uma nova
fase: a terceira onda, momento em que empreendedores
utilizarão a tecnologia para revolucionar o "mundo real". A
Terceira Onda da Internet é leitura fundamental para
prosperar – e até mesmo sobreviver – nesta época de rápida
mudança. Elogios a obra: Segundo o autor, agora estamos
entrando em uma nova fase: a terceira onda, momento em
que empreendedores utilizarão a tecnologia para
revolucionar o "mundo real". A Terceira Onda da Internet é
leitura fundamental para prosperar – e até mesmo sobreviver
– nesta época de rápida mudança. ―Pedro Waengertner,
empreendedor, investidor, fundador e CEO da aceleradora
de startups ACE "Steve faz um guia de como alcançar o
sucesso na próxima onda de inovação. Tendo contribuído
para a criação da primeira onda da internet e na condição de
investidor ativo na segunda, ele é capaz de prever com
solidez como a rede será integrada em nossa vida." ―Walter
Isaacson, autor de biografias consagradas de Steve Jobs,
Albert Einstein, Benjamin Franklin e Henry Kissinger "Fiquei
esperando para ler a história de Steve e não me
decepcionei. Em sua carreira, ele é um exemplo de alguém
que faz acontecer e traz lições importantes para todos os
empreendedores." ―Warren Buffett, CEO da Berkshire
Hathaway "A Terceira Onda da Internet é leitura
indispensável para entender a história da internet e se
preparar para o futuro. Empreendedores que buscam
realmente construir negócios inovadores devem estar
atentos aos perspicazes conselhos de Steve Case." ―Brian
Chesky, cofundador e CEO do Airbnb

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Hacking Growth
Ellis, Sean
9788550816159
328 páginas

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O livro definitivo dos pioneiros do growth hacking, uma das


melhores metodologias de negócios no Vale do Silício.
Parece difícil de acreditar, mas houve um momento em que
o Airbnb era o segredo mais bem-guardado de couchsurfers,
o LinkedIn era uma rede exclusiva para executivos C-level e
o Uber não tinha a menor chance contra a então gigante
rede de táxis amarelos de Nova York. Então, como essas
empresas que começaram de maneira tão humilde
alcançaram tanto poder? Elas não expandiram
simplesmente criando grandes produtos e esperando que
eles ganhassem popularidade. Havia uma rigorosa
metodologia por trás desse crescimento extraordinário: o
growth hacking, termo cunhado por Sean Ellis, um de seus
inventores. A metodologia growth hacking está para o
crescimento de market share assim como a lean startup está
para o desenvolvimento de produtos, e o scrum, para a
produtividade. Growth hacking leva ao crescimento focando
os clientes, alcançando-os, mantendo-os, encantando-os e
motivando-os a voltar e comprar mais. Envolve equipes
multifuncionais que combinam a expertise de analistas,
designers, engenheiros de software e profissionais
marketing para rapidamente gerar, testar e priorizar ideias
importantes para o crescimento.

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Dominando O Ciclo De Mercado
Marks, Howard
9788550808840
336 páginas

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O LENDÁRIO INVESTIDOR MOSTRA COMO IDENTIFICAR


E DOMINAR OS CICLOS QUE REGEM OS MERCADOS.
Todos nós sabemos que os mercados sobem e descem,
mas quando se deve sair e quando se deve ficar? A
resposta nunca é taxativa, preto no branco, mas pode ser
alcançada com algum sucesso por meio de um profundo
entendimento das razões por trás do ritmo dos ciclos. A
confiança sobre onde estamos em um ciclo ocorre quando
você aprende os padrões de altos e baixos que influenciam
não apenas a economia, os mercados e as empresas, mas
também a psicologia humana e os consequentes
comportamentos de investimento. Se você estudar ciclos
anteriores, entender suas origens e permanecer alerta para
o próximo, ficará estreitamente sintonizado com o ambiente
de investimento conforme ele vai se desenvolvendo. Você
estará ciente e preparado, enquanto outros são
surpreendidos por eventos inesperados ou se tornam vítimas
de emoções como o medo e a ganância. Ao seguir os
insights de Marks — oriundos, em parte, de seus icônicos
memorandos criados ao longo dos anos para os clientes da
Oaktree —, você pode dominar esses padrões recorrentes
para ter a oportunidade de melhorar seus resultados. Elogios
a Dominando o ciclo de mercado: "Dominando o Ciclo de
Mercado, de Howard Marks, é leitura obrigatória porque os
ciclos abordados neste livro são importantes e porque
Howard é um dos grandes nomes de sua geração." —Ray
Dalio, codiretor de investimento e copresidente da
Bridgewater Associates "É como eu sempre digo: 'Não há
professor melhor do que a história para determinar o futuro'.
O livro de Howard nos diz como aprender com a história da
empresa… e, assim, ter uma ideia melhor do que o futuro
nos reserva." —Charlie Munger, vice-presidente da
Berkshire Hathaways "Enquanto a maioria dos profissionais
de investimento não sai do padrão — 'não dá para
cronometrar o mercado' —, em Dominando o Ciclo de
Mercado, Howard Marks, uma lenda viva do investimento,
adota o ponto de vista contrário de que não só se pode
investir tempo, mas também é imperativo fazer isso." —Bill
Gurley, sócio administrador da Benchmark "Se você não tem
certeza se haverá uma correção no mercado ou se acha que
não é necessário se preocupar porque 'dessa vez será
diferente', leia este livro antes de implementar uma
mudança" —Carl C. Icahn, presidente da Icahn Enterprises

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