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Heterolesão vs.

participação na Autolesão

Figura 1

“Lição de partilha” Pintura de Paulo Luís de Almeida1

Análise do caso rio Fervenças e do Acórdão do Tribunal da Relação de


Lisboa de 18 de setembro de 2018.

“O mal apela, com efeito, à liberdade da pessoa”2

Lisboa,

2023.

1
Disponível em: https://pauloluisalmeida.com/desenhos-protocolares-protocol-drawings/
2
Maria Fernanda Palma. O princípio da desculpa em Direito Penal. 2.ª edição, Lisboa, 2021. p. 95.

1
Cadeira: Direito penal III.
Aluna: Marta David Gondar Diniz.
Subturma: 3/ turma 4º A.
Nº de aluno: 63364.
Sra. Professora Regente: Helena Mourão.
Sr. Professor Assistente: Tiago Geraldo.

Sumário:

I. Introdução: Necessidade de definição do tipo incriminador.


II. O caso Rio Fervenças: Elementos essenciais do tipo incriminador. Ilicitude
Tipicidade objetiva e subjetiva. Culpa. Punibilidade.
III. O caso do Ac. TRL de 18 de setembro de 2018: O facto praticado e os
elementos típicos dos diferentes tipos incriminadores invocados: incitamento e ajuda
ao suicídio (art.º 135 CP), homicídio a pedido da vítima (art.º 134 CP) e homicídio
qualificado (art.º 132 nº2 al j) CP).
IV. Conclusões: a necessidade do tipo incriminador de incitamento e ajuda ao
suicídio (art.º 135 CP).

Palavras-chave: Suicídio, vontade, determinação, estímulo, liberdade,


premeditação, representação e vontade.
Índice de Abreviaturas

Caso RF (Caso Rio Fervenças)


R (Arguido do caso RF)
L (Vítima do caso RF)
V (Vítima do caso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa)
A (Arguida do caso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa)
Ac. (Acórdão)
TRL (Tribunal da Relação de Lisboa)
CP (Código penal)
CRP (Constituição da República Portuguesa)
I. A morte (mais ou menos) intencional.
II. Elementos essenciais do tipo incriminador do art.º 135 CP: o caso RF.
Antes de tudo, devemos sublinhar que o direito penal não deve intervir quando
se verifique que o suicídio advenha de uma vontade consciente e voluntária em retirar
a própria vida (morte intencional), no entanto, quando se verifique que a sua vontade
foi limitada pela influência de qualquer espécie de obrigação, circunstância limitante
ou psicose, o direito penal deve proteger o bem jurídico vida, mas também a
autonomia e decisão individual. A justificação para esta incriminação reside no facto
de apesar do comportamento inicial ser lícito a interferência de um terceiro nesta
decisão é relevante na medida em que implica uma “uma interferência na decisão de
auto-colocação em perigo”3. Assim, a nossa tarefa para determinar o preenchimento
do tipo incriminador do art.º 135 CP, é compreender de que forma foi a vontade de L
determinada pela influência e intervenção de R.
O comportamento típico constante do art.º 135 CP pode consistir na
determinação do agente ao suicídio fazendo com que esta vontade nasça, ou através
do estímulo e encorajamento de uma ideia suicida já existente. No caso RF, apesar de
não se ter provado que a ideia suicida proveio de L, tendo em conta a matéria fáctica
em apreço, pensamos ser de maior rigor a aplicação do crime de incitamento e ajuda
ao suicídio na vertente de estímulo. Entendemos que L não foi utilizada como mero
instrumento humano por parte de R para a ocorrência de seu suicídio, nem todas as
colaborações na participação suicidas devem ser consideradas autorias imediatas de
homicídio. No caso concreto, a agente não se encontrava sob erro, coação ou
desconhecimento provocado, apenas poderia ser arguida a inimputabilidade, uma vez
que, esta teria apenas 15 anos tendo em conta o disposto do art.º 19 CP, no entanto
entendemos que apesar de demonstrar uma clara incapacidade de compreender a
globalidade do sentido de seu comportamento, teria em parte alguma capacidade de
modo que não se pode arguir que terá sido enviada pelas mãos de R à morte por
suicídio. Sublinhamos igualmente que partiu da agente uma certa vontade para a
prática de suicídio, pelo que, não terá sido R igualmente a fazer nascer esta vontade,
uma vez que não temos sequer prova suficiente que nos possa indicar que
comportamento deste conduziu a uma situação insuportável para a vítima, o que

3
Augusto Silva Dias. Crimes contra a vida e a integridade física. 2ª.ed., Lisboa, AAFDL editora, 2007.
p. 67.

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podemos dizer com toda a certeza tendo em conta a matéria fáctica provada 4 é que o
arguido exerceu uma influência determinante para a concretização do suicídio por
parte de L através da aceitação do pacto suicida e tendo em conta o efeito de
ascendência exercido. Este limitou assim a vontade que deve ser individual da vítima,
tendo pleno conhecimento do efeito psicológico de encorajamento e estímulo que
tinha sobre o comportamento da vítima, de acordo com MARIA MANUELA
VALADÃO E SILVEIRA “incitar pode ter um sentido menos decisivo na
provocação do suicídio. Será o caso de, antes da intervenção do agente, existir na
vítima uma voluntas occisiva que aquele irá encorajar” 5. Em todas as situações de
pactos suicidas, em que se verifica uma desistência de uma das partes como aqui se
verificou, uma vez que, se a vontade do agente ao suicídio fosse tão determinante este
não teria fugido depois de ver a vítima morta, verifica-se de acordo com o Sr. Prof
AUGUSTO SILVA DIAS, “a decisão é tomada por influência recíproca”6.
Entendemos que é inegável que se verifica uma ingerência inadmissível na autonomia
e decisão individual da vítima que aumenta exponencialmente o risco para o bem
jurídico vida, não sendo necessária prova concreta deste risco.
O comportamento em causa é ilícito, uma vez que, não se verifica qualquer
causa de exclusão da ilicitude nos termos do art.º 31 CP, o consentimento (art.º 31 nº1
al d) CP), não será relevante nos termos do art.º 38 nº2 e nº3 CP. É ainda um
comportamento típico, tendo em conta, os juízos de tipicidade objetiva e subjetiva,
relativamente ao primeiro, temos que: o comportamento de R criou um perigo para o
bem jurídico que se concretizou na prática do facto. De acordo com o Sr. Prof.
Figueiredo Dias, devemos averiguar se o agente encetou uma influência psíquica
adequada à produção do resultado, ora, em nosso entender, tendo em conta o papel
desempenhado por R na relação que tinha com L e tendo em conta a existência de

4
As partes do processo tinham entre estes uma relação amorosa, sendo R maior e L menor, exercendo
um efeito de ascendência sobre esta, conduzindo a uma alteração do seu comportamento no sentido
negativo. É dito que R manipulava e amedrontava a vítima. Não entendemos que a jovem de 15 anos
tenha conhecimento e maturidade para compreender a conduta encetada e compreender globalmente o
seu sentido. Entendemos que para a jovem se tratava apenas de uma conduta com elevada carga
dramática para se opor aos seus pais, tal como se vê nos filmes de adolescentes. O arguido não
demonstrou qualquer intenção em demovê-la da prática deste ato. Aliás, aceitou e conduziu-os ao local
da prática do facto, encorajando e estimulando por isso a prática do suicídio. O arguido fugiu
imediatamente quando se apercebeu da morte da vítima, apenas tendo prestado informações ao jornal
local, onde declarou que a única coisa em que pensou foi na sua mota.
5
Maria Manuela F. Barata Valadão e Silveira. Sobre o crime de Incitamento e ajuda ao suicídio. 2.ª ed.,
Lisboa, AAFDL, 1997, p. 91.
6
Augusto Silva Dias. Idem, p. 77.

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prova concreta sobre as alterações de comportamento da mesma, entendemos que o
estímulo encetado por R é condição adequada à consumação do suicídio por parte de
L. Podemos referir igualmente a teoria do Sr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, segundo a
qual, deve verificar-se uma relação causal e adequada entre a motivação dada pelo
autor moral e a prática do ato pelo autor material, em nosso caso, a motivação dada
através da aceitação do plano suicida é a única causa adequada para a produção do
suicídio por parte de L tendo igualmente em conta toda a matéria provada.
Relativamente à tipicidade subjetiva, para o preenchimento deste tipo
incriminador será necessário que o instigador represente e oriente a sua vontade no
sentido da consumação do resultado típico, sendo exigido um dolo individual e
concreto. Neste caso, entendemos que o agente representou e dirigiu a sua vontade no
sentido da consumação do suicídio, não podemos tendo em conta a matéria fáctica e a
vontade inicial de R em suicidar-se que este pretenderia a morte de L, mas podemos
arguir que este representou a morte da mesma enquanto consequência necessária da
sua aceitação e validação da vontade suicida de L, pelo que estamos perante um caso
de dolo necessário (art.º 14 nº2 CP)7.
Neste caso, não se verifica qualquer causa de exclusão da culpa (art.º 35 e 37
CP). O agente exerceu toda a liberdade na determinação da sua vontade (art.º 1 e 27
CRP). Verificando-se todos os pressupostos da punibilidade, cumpre aplicação da
moldura de pena agravada nos termos do art.º 135 nº2 CP. Em nosso entender, tendo
em conta a situação débil do ponto de vista social e familiar que se encontrava a
vítima e os seus sucessivos comportamentos impulsivos e autodestrutivos que
denotam uma clara incapacidade de compreender efetivamente o seu conteúdo e
consequências, não se poderá alegar que a vítima dispunha de total capacidade para
determinar corretamente a sua vontade e realizar um juízo de apreensão total da
realidade. Pelo que, em nosso entender, deve o agente ser punido por crime de
incitamento ao suicídio na vertente de estímulo com pena agravada nos termos do art.º
135 n. º1 e 2 CP.

7
Se assim não se entender, poderá ainda ser ponderado o dolo eventual na medida em que se
conformou com o facto de a sua influência ser determinante para a prática suicida de L. Pretendendo
este também o suicídio, concedeu maior importância aos seus interesses do que ao risco criado,
conformando-se com a possibilidade da consumação do suicídio por parte de L.

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III. O caso do AC. TRL 18 de setembro de 2018
Tendo em conta a matéria provada 8, entendemos que a arguida cometeu o
crime de homicídio qualificado nos termos do art.º 132 nº2 al a) e j) CP, à semelhança
da decisão do tribunal. Iniciamos por afastar a aplicação do crime presente no art.º
134 CP, uma vez que, este tipo incriminador implica um pedido expresso, claro e
instante por parte de V para que A o mate, neste caso, isso não sucedeu, a
demonstração desta vontade deve ser claramente dirigida a que outrem o mate, pelo
que, não se pode considerar nesta sede que as expressões de intenções suicidárias se
enquadrem neste tipo incriminador. Relativamente ao tipo incriminador do art.º 135
CP, entendemos não se enquadrar, tendo em conta, a diferença entre participação na
autolesão e heterolesão: neste caso, poder-se ia dizer que o critério passaria pela não
verificação de um dos patamares da teoria da infração penal da conduta da vítima se
esta lesasse bens alheios, no entanto, A de facto incutiu V em erro, no entanto, este
erro nunca iria excluir qualquer patamar da teoria da infração penal pelo que o
comportamento nunca poderia ser punido por homicídio, de acordo com a Sr. Prof
HELENA MORÃO “não há motivo normativo para que se impute a influência de C
a uma execução típica de homicídio”9, pelo que, este também não poderá ser o
critério suficiente para traçar a distinção, em nosso entendimento, esta distinção
poderá passar pela teoria do domínio do facto, na medida em que, enquanto que no
segundo caso a vítima não teve qualquer domínio sobre o facto que conduziu à
consumação do facto, no primeiro caso, L teve domínio ainda que sobre influência da
vontade de R na prática do facto que conduziu à produção do resultado. Assim sendo,
A nunca desejou, estimulou ou determinou V prática do suicídio, esta pretendeu desde
sempre matar a vítima, nunca tendo aderido a qualquer ideia suicida advinda de V,
tendo dominado o facto produtor da morte de V, pelo que não estamos perante um
caso do art.º 135 CP. Estando perante uma hipótese de homicídio, há que ter em
conta que as partes tinham uma relação amorosa em que se verifica a produção de
planos e projetos conjuntos, denotando uma grande laço de intimidade, a vontade em

8
As partes teriam criado uma realidade falsa para os familiares de V que não estariam a conseguir
sustentar, tendo V proposto um projeto suicida conjunto com A, ao que esta aceitou, mas nunca teve de
facto essa intenção. A começa então a realizar buscas sobre a forma como V pretenderia suicidar-se
tendo posteriormente realizado as encomendas necessárias. Sucede, porém, que no dia em que se iriam
suicidar V ingere comprimidos para dormir, mas não A, tendo esta, morto V de acordo com a forma
como este tinha dito que se pretendia suicidar.
9
Helena Morão. Autoria e execução comparticipada. Almedina Edições, p. 238.

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contrair casamento e a atual habitação conjunta, pelo que, deve ser ponderada a
aplicação da alínea a) do nº2 do art.º 132 CP, mas para além deste mero indício de
especial censurabilidade ou perversidade, devemos considerar a forma como foi
orquestrado o homicídio de V, o caso concreto demonstra que A teve um longo
período de reflexão sobre o homicídio de V, desde o momento em que fingiu aceitar o
suicídio conjunto até a prática do homicídio (1 semana), sendo que durante este
período de tempo foi consolidando as suas intenções através de atos preparatórios do
mesmo, como as buscas na internet e a encomenda dos produtos necessários, este
longo tempo reflexivo em que A não se deixa demover da prática de homicídio denota
uma especial intensidade da energia e perigosidade criminosa de A. A premeditação é
especialmente censurada devido ao facto de demonstrar uma persistência clara da
intenção de matar, explicitando uma maior intensidade do dolo, uma vez que, A
representa e dirige a sua vontade diretamente à morte da vítima sem que o decurso do
tempo a demova da sua prática, sendo assim revelador de uma calma imperturbável
face à resolução criminosa, pelo que, se considera preenchida a alínea j) do nº2 do
art.º 132 CP. Não basta, porém, o preenchimento do exemplo-padrão tendo em conta
o princípio da legalidade penal nos termos do art.º 29 CRP, será necessário
igualmente que a agente tenha atuado com especial censurabilidade, o que
efetivamente se verifica, uma vez que, esta agiu com toda a liberdade e sem que se
verifique qualquer situação limitativa e ou excludente de culpa.
IV. Conclusões
O tipo incriminador de incitamento e ajuda ao suicídio (art.º 135 CP) tem
como finalidade acautelar ingerências na vontade suicida, permitindo a aplicação de
uma pena justa a um comportamento que não deve ser considerado completamente
lícito como o suicídio, mas que também não contêm em si a carga sancionatória
associada ao homicídio, permitindo assim que a criação de riscos por vezes bastante
complexos sobre o bem jurídico vida não passem pelos pingos da chuva do direito
penal. No sistema alemão, não existe o tipo incriminador do art.º 135 CP, pelo que, ou
se pune por homicídio ou não se pune, o que em nosso entender conduz a situações
mais injustas e potencialmente perigosas do que no ordenamento jurídico português.

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Bibliografia:
Dias, Augusto Silva, Crimes contra a vida e a integridade física: parte especial. 2ª.ed.,
Lisboa, AAFDL editora, 2007.
Lafayette, Alexandra; Sá Pereira, Victor, Código penal anotado e comentado. 2.ª
edição. Quid Juris sociedade editora, 2014.

Valadão e Silveira, Maria Manuela, Sobre o crime de Incitamento e ajuda ao suicídio.


2.ª ed., Lisboa, AAFDL editora, 1997.

Morão, Helena, Autoria e execução comparticipadas. Almedina editora, 2014.

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