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09 - Abril 2023

O Sacrifício Animal Prática Mágica Votiva:


O Uso de Oferendas
O Tronco Tradicional
da Quimbanda Quimbanda:
Um Grande Arcano
Expediente
Arte de capa:
Exu Tiriri da Calunga, por Diesuganga
(Instagram.com/ruk.rk)

Direção:
Tata Nganga Kamuxinzela
Tata Nganga Zelawapanzu

Diagramação:
Everton Martins

Artes Internas:
Lupe Vasconcelos

Revisão:
Danyo Nascimento

Sumario
Editorial........................................................................................ 4
Quimbanda & Magia Cerimonial: O Sacrifício Animal.... 5
O Tronco Tradicional de Quimbanda.................................15
Prática Mágica Votiva: O Uso de Oferendas......................22
Quimbanda: Um Grande Arcano..........................................24
Editorial
Nesta edição de número nove temos um assunto delicado a tratar
que é a questão da ancestralidade e das raízes do culto de Quimban-
da, principalmente da Quimbanda Nagô.
Há algum tempo há um desmerecimento de outras vertentes mais
novas quanto as Quimbanda mais antigas, de forma desmedida, visto
que essas novas vertentes pegam emprestada tecnologias das raízes
da Quimbanda Nagô.
Nesta edição tentamos dirimir um pouco as dúvidas e desfazer o
processo de desinformação que foi criado para confundir aqueles que
procuram a Quimbanda Nagô e se interessam pelas suas práticas.
Sabemos que Quimbanda é guerra, mas estamos em pleno século
XXI, onde a grande guerra é feita dentro do processo intelectual.
Então aproveite essa edição e exercite bastante seu raciocínio, pois
ele é importante para o Kimbanda. Dentro da Quimbanda não há es-
paço para cérebros preguiçosos e espíritos inertes!
Nguzo ê Quimbanda

Tata Nganga Zelawapanzu


Mestre de Quimbanda Nagô e Quimbanda Mussurumim
Sacerdote do Templo de Quimbanda Cova de Tiriri
Saiba mais em www.covadetiriri.com.br
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

Quimbanda & Magia


Cerimonial:
O Sacrifício Animal
Seção . I . banda empreendia para se organizar como
religião codificada e aceita pela sociedade
Introdução Geral a Ideia de brasileira. Neste processo de validação que
Sacrifício Animal: Mundo a Umbanda buscava conquistar para seus
Antigo, Cultura Africana & rituais, muitas tecnologias mágicas da cul-
Quimbanda tura da macumba foram completamente
aleijadas do exercício religioso e mágico-
A Quimbanda é conhecida – e por isso sacerdotal, fundamentalmente o uso de
muito temida – pelo ostensivo emprego oráculos e a prática do sacrifício animal,
de sacrifícios animais em rituais para os heranças negras de uma ancestralidade
mais diversos fins, inclusive àqueles que africana que precisava irremediavelmen-
se enquadram na categoria de magia ne- te ser extirpada. Somente assim a Umban-
gra.[1] Como vimos na edição anterior,[2] a da conquistaria o coração da sociedade
Quimbanda como tradição iniciatória foi o naquele período. A Quimbanda passou a
efeito colateral direto da busca que a Um- incorporar, portanto, todos os elemen-
tos africanos que a Umbanda buscava ex-
[1] Quimbanda é, efetivamente, técnica e exercício de magia ne- tirpar: o fetichismo totêmico, a divinação
gra, não apenas pelos objetivos materiais a que se presta, mas
pela natureza de sua prática e os espíritos sublunares (ctonianos,
através do oráculo e o vitalismo promovi-
telúricos e aéreos) que dela derivam ou a ela são associados. Des- do pelo sacrifício animal, acrescida de uma
de que as técnicas de feitiçaria animista e fetichista dos bantos alta dose de diabolismo e demonologia a
foram miscigenadas com o espiritismo, por volta de 1890, uma
nova categorização mágico-religiosa nasceu, o baixo espiritismo. partir da década de 1950.[3]
E com a abrangente abertura da Umbanda ao Ocultismo europeu Assim como alguns filósofos e a cris-
entre as décadas de 1930 e 1950, inserem-se no contexto das
práticas umbandistas os termos alta e baixa magia, sinônimos de
tandade na Antiguidade buscaram argu-
magia branca e negra. A Quimbanda foi associada nesse período mentar sobre a invalidade, despropósito
diretamente ao baixo espiritismo, baixa magia ou magia negra. e impiedade dos sacrifícios animais aos
Veja o artigo de Nicholaj de Mattos Frisvold, The Paladins of Earth
and Fire. Conjure Codex, no. 1. Hadean Press, 2011. Veja Louren- antigos deuses, daimones e genii greco-ro-
ço Braga, Umbanda & Quimbanda. Editora Didática e Científica manos,[4] de igual modo à umbanda bran-
Ltda, 1942. Veja também as três obras de Aluízio Fontenelle, em
especial Exu. Parzival Publicações, 2018. Veja as edições ante- [3] Veja as edições anteriores da Revista Nganga para aprofunda-
riores da Revista Nganga. Finalmente, de Humberto Maggi veja mento. Em seu livro Umbanda & Quimbanda (Editora Didática e
Rainhas da Quimbanda. Via Sestra, 2020. Científica Ltda, 1942), Lourenço Braga diz que na década de 2020
Por outro lado, a Quimbanda aglutina no seu escopo inúmeras a Quimbanda passaria por profundas transformações. Isso nós
designações, uma delas sendo nigromancia (magia negra demoní- hoje testemunhamos e grande é o número de militantes, ressen-
aca), que se trata do tráfico com demônios para fins malignos por tidos contra o europeu branco colonialista e o expurgo negro que
meio da agência de demônios. Desde 1950 a Quimbanda se envol- ocorreu na Umbanda e que deu nascimento a Quimbanda, bus-
veu profundamente com a demonologia europeia, sincretizando cando extirpar dela toda ancestralidade europeia. Veja Revista
os Exus com os demônios do Grimorium Verum. Nganga No. 8.
[2] Veja Revista Nganga No. 8, ensaio A Morte do Feiticeiro Branco [4] Duas introduções concisas sobre esse tema: Robert J. Daly S.J.
na Quimbanda. Sacrifice in Pagan & Christian Antiquity. T&TClark, 2021.

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cimento de uma comunicação apropriada
e a manutenção sadia dessa comunicação
com os espíritos do imaginário da macum-
ba: Exus, Caboclos e Pretos-Velhos. Em seu
Yoruba Beliefs and Sacrificial Rites,[6]
Ọmọṣade Awolalu diz:

O sacrifício é um rito no qual algo é des-


truído, sendo seu objetivo estabelecer rela-
ções entre uma fonte de força espiritual e
alguém que precisa de tal força espiritual;
para o benefício deste último.[7]

O sacrifício animal é universalmente


considerado uma fonte de poder capaz de
estabelecer, promover e manter uma boa
conexão e relacionamento entre dois pla-
nos ou realidades: o mundo da potência
espiritual e o mundo das fraquezas huma-
nas, com o objetivo único de fazer o mais
fraco compartilhar do poder do mais forte.
Mas não é só isso! O sacrifício é um
meio através do qual é possível se purifi-
car, se aperfeiçoar e se renovar espiritu-
almente. O sacrifício provê força moral
ao devoto que o oferece. Por um lado, psi-
cologicamente ele naturalmente se sente
confortado e consolado quando faz a sua
[6] Longman Group Limited, 1979. Esse é um dos melhores livros
para compreensão da cultura yorùbá.
[7] Esse é um dos fundamentos mais importantes acerca do sa-
crifício na cultura yorùbá: a Natureza, corpo que agrega todos os
seres sensientes e inanimados, é fonte perpétua de vitalização e,
geralmente, para haver a restauração ou a renovação da fonte de
vida (àṣẹ), é necessário a destruição de um elemento da Natureza
que agrega força e poder. O sacrifício para os yorùbás visa res-
taurar o equilíbrio entre os habitantes do ọrum e os habitantes
do àiyé. Trata-se de uma ponte que se estabelece entre os dois
mundos, permitindo sua harmonia e conexão. Qualquer doença,
obstáculo na vida ou desajustes nas relações sociais constituem
desequilíbrios energéticos que podem ser reajustados através do
sacrifício. Esse entendimento da cultura yorùbá acerca do sacrifí-
ca[5] buscou construir argumentos que cio está em sintonia direta com as ideias de Marcel Mauss e Henri
invalidam e desqualificam o exercício do Hubert no livro Sobre o Sacrifício (Ubu Editora, 2017), onde
elaboram a ideia de que a vítima sacrifical, seja animal ou vege-
sacrifício animal na cultura da macumba. tal, precisa ser destruída. Segundo os autores é este o elemento
Este ensaio é uma defesa da importância pelo qual o sacrifício opera como função mediadora fundamental.
que o sacrifício animal tem no estabele- Todo sacrifício estabelece um meio de comunicação entre os mundos
sagrado e o profano através da mediação da vítima imolada, que no
curso da cerimônia será destruída. Mauss e Hubert ainda acrescen-
Heidi Marx-Wolf. Spiritual Taxonomies and Ritual Authority.
tam que é por meio do sacrifício que as deidades de um grupo ou
PENN, 2016.
sociedade religiosa mantêm seus deuses vivos e que, caso assim
[5] Termo aqui utilizado para se referir ao movimento umban- não fosse, cairiam no esquecimento e perderiam suas forças, o
dista que organizou o Primeiro Congresso de Umbanda no Brasil, que, por outro lado, dissolveria a coesão do grupo ou sociedade.
fazendo ali nascer a Umbanda que seria mais tarde, a partir da Essa ideia está em direta conexão com as noções egípcias acerca
década de 1960, atribuída a criação de Zélio Fernandino de Mo- do sacrifício, que sustentavam a força de seus neteres (i.e. deuses)
rais. Veja uma introdução concisa sobre o tema em Farlen de Jesus por meio de ritos sacrificais. Essa mesma noção ainda é encontra-
Nogueira. O Tata Ti Inkice da Omolocô: Tancredo da Silva Pin- da na Grécia, que herdou muito de sua religiosidade e símbolos
to. Autografia, 2022. hieráticos do antigo Egito.

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parte e seu sacrifício é aceito pelas deida- é uma parte essencial da vida e uma ferra-
des cultuadas. Por outro lado, ele recebe menta para a sobrevivência na terra. Para
do sacrifício à renovação de sua coragem os yorùbás um comportamento adequado
e propósito na vida. O devoto é assim ca- (ìwà-pèlé) consiste em saudar e oferendar
paz de encarar a vida com confiança e en- a terra adequadamente. O termo ìwà-pèlé
tusiasmo renovados, e também com menos vem de ì wà opè ilé, que significa eu venho a
pessimismo. Quem oferece um sacrifício terra reverenciá-la e abençoá-la.
expiatório para remover um problema, em Awolalu diz: oferecer sacrifício é fazer
si, no âmago de sua alma como uma culpa as coisas do jeito que elas foram feitas, para
ou um obstáculo na sua vida secular, sen- obter o resultado desejado. Esses gestos
te-se perdoado, purificado e mais uma vez tornaram-se, com o tempo, uma espécie de
libertado para viver bem e de acordo com mandato que se espera que seja cumprido
as leis da comunidade e os poderes invisí- por membros de uma família, parentes ou
veis. Há um ditado em yorùbá que diz: é o cidade. O sacrifício é a oferta de coisas ma-
sacrifício que resolve os problemas.[8] teriais (alimentos e outros) que se acredita-
Segundo Awolalu,[9] o sacrifício envolve va que uma divindade em particular amava
a destruição de uma vítima com o objetivo enquanto estava na terra.[11] O sacrifício,
de manter ou restaurar a relação correta do portanto, é uma repetição das coisas do
homem com a ordem sagrada. Pode efetuar jeito que elas foram feitas, quer dizer, dos
um vínculo de união com a divindade a quem processos materiais naturais que ocorrem
é oferecido ou constituir uma expiação pecu- nos três reinos, mineral, vegetal e animal.
liar para «cobrir», «extinguir», neutralizar Repetindo esses processos através do ri-
ou levar embora a culpa contraída conscien- tual sacrifical o homem se harmoniza com
te ou involuntariamente. Nessa definição a ordem do cosmos e obtém os resultados
podemos identificar o uso do sacrifício desejados para sua vida. A falha – no cará-
para i. promover uma relação de equilíbrio ter – em manter a harmonia com o cosmos
ou compensação com a ordem do cosmos; é corrigida por meio do sacrifício expiató-
ii. estabelecer comunicação e conexão efe- rio. Para os yorùbás o sacrifício (ẹbọ), sen-
tiva com uma deidade através de um pacto; do adequadamente utilizado para promo-
iii. expiação dos erros e tropeços da con- ver a manutenção da comunicação com as
duta pessoal que causaram desarmonia na deidades (òrìṣà) e a própria harmonia do
ordem do cosmos. O sacrifício, portanto, cosmos, trata-se de uma boa conduta.
promove a manutenção do bom relaciona- Essa ideia yorùbá do sacrifício como
mento entre o homem, o cosmos e a mirí- ferramenta essencial para manutenção da
ade de espíritos que nele habitam. No caso ordem do cosmos está em ressonância di-
da relação ser interrompida por alguma reta com a pedagogia do caráter de Hesío-
culpa, o sacrifício restaura ou repara e re- do (Séc. VIII a.C.) em O Trabalho & os Dias.
concilia o homem com a divindade. Esse poema épico de Hesíodo não se trata
Na Religião Tradicional Yorùbá o sa- apenas de uma narrativa mítica, mas de-
crifício é parte essencial e fundamental riva de uma antiga tradição literária esta-
do culto. Um dos termos associados a essa
cultura religiosa é àdìmúlà, que significa condição, confiabilidade e salvação. Akinmayowa Akin-Otiko se
refere a àdimúlà como òrìṣà-òkè, quer dizer a adoração ao UM, a
aquilo que se mantém pela sobrevivên- fonte criadora do cosmos para o benefício da salvação da alma.
cia,[10] porque para os yorùbás o sacrifício Veja The Significance of Sacrifice in Yoruba Religion and the Scope
of Sacrifice to Èṣù-Òdàrà, the Mediator Divinity. Institute of Afri-
can and Diaspora Studies, University of Lagos. Muitas culturas
[8] Ẹbọ rírú ló ngbe ni.
antigas pré-cristãs apresentam a ideia de salvação associada a
[9] Ọmọṣade Awolalu. Yoruba Beliefs and Sacrificial Rites. sacrifícios propiciatórios. A ressignificada ideia de sacrifício no
Longman Group Limited, 1979. cristianismo e a ideia de salvação da alma tornaram-se quase que
intercambiáveis na cristandade.
[10] Em Jose Beniste, Dicionário Yorubá Português (Bertrand
Brasil, 2009), o termo àdimúlà é traduzido como aquele em que [11] Ọmọṣade Awolalu. Yoruba Beliefs and Sacrificial Rites.
se pode confiar, um dos atributos dados ao Deus yorubá pela sua Longman Group Limited, 1979.

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belecida no Mediterrâneo e Oriente Médio, do sacrifício na atividade religiosa pública
possuindo noções muito próximas dos li- e particular para a manutenção da comuni-
vros sagrados dos hebreus, contemporâne- cação com os deuses; o sacrifício era o eixo
os dos gregos naquele período. Em O Tra- religioso na cultura dos gregos no Mundo
balho & os Dias o autor estabelece que os Antigo. Em sua pedagogia, Hesíodo ensina
sacrifícios aos deuses não são apenas uma um estilo de vida devocional, centrado na
conduta ética, mas uma ação social ade- prática religiosa diligente para alinhar as
quada a restauração da harmonia. Ele diz: ações e o caráter. Todas essas ideias estão
em harmonia com os postulados religiosos
[...] A riqueza nunca deve ser roubada, vis- da cultura yorùbá.
to que os dons divinos são muito melhores.
Quando alguém se apodera à força, com suas Segundo Awolalu o sacrifício para os
mãos, de uma grande fortuna, ou se a conse- yorùbás é: i. um ato religioso;[14] ii. como
gue com sua língua, como não é raro aconte-
cer, ou ainda, quando a cobiça ofusca a men- da Hesíodo provê mais quatro mandamentos de bom comporta-
te dos homens e o desrespeito persegue o mento: i. não fazer mal a um suplicante (mendigo) ou hóspede; ii.
respeito, facilmente os deuses enfraquecem não flertar ou copular com mulheres casadas; iii. não prejudicar
esse homem, fazendo definhar a sua casa. E crianças ou órfãos; iv. não agredir pai, mãe e parentes mais ve-
por pouco tempo a sorte o acompanha. lhos. Terceiro, Hesíodo exorta para que todos cumpram a piedade
Da mesma forma, quem faz mal a um supli- (orações, sacrifícios,* oferendas, oblações etc.) para com os deu-
cante ou a um hóspede, ou sobe ao leito de ses irrevogavelmente, algo muito próximo ao primeiro manda-
seu irmão para desfrutar em segredo das mento judaico-cristão. O sacrifício animal aos deuses tratava-se
intimidades de sua esposa, age de forma do eixo central da religião grega; a piedade para com eles expiava
desprezível. E aquele que prejudica crian- a culpa/erro das más ações, reintegrando o indivíduo a harmo-
ças órfãs ou, por insensatez, ofende o pai nia do cosmos e sociedade. E é interessante notar que Hesíodo
se preocupa em dizer que cada um deveria oferendar aos deuses
ancião, no triste umbral da velhice, agre-
segundo suas capacidades com o se for possível. Trata-se de uma
dindo-o com palavras ásperas, desagrada
pedagogia para o bem-viver e o sacrifício era a engrenagem mais
ao próprio Zeus, que se irrita com as atitu-
importante desse processo. Foge do escopo tecer comentários
des injustas e impõe árdua reparação.
das implicações sociais as que o sacrifício se destina, implicações
Quanto a ti, afasta definitivamente o teu
estas muito semelhantes as dos judeus sobre o mesmo assunto: a
ânimo insensato de todas essas coisas. Se
necessidade do sacrifício em todas as camadas sociais, daí a dis-
for possível, oferece sacrifício aos deuses tinção de sacrifícios mediante as condições financeiras de cada
imortais. Sagrada, imaculamente, queima indivíduo.
em sua honra luzidios pernis. Ou, ainda, tor- *. Existe uma proximidade muito grande entre a ideia do sacrifício
na os deuses propícios com libações e ofe- e a ideia da oração.
rendas, quando adormeceres e ao retornar
a sagrada luz, pois assim terão o coração e o [14] Isso significa que para os yorùbás a palavra sacrifício nunca é
ânimo propícios a ti, para que possas com- utilizada metaforicamente, como por exemplo, um pai que sacrifi-
prar os bens de outros e para que os outros ca seu conforto para pagar a educação dos filhos. Para os yorùbás
não comprem os seus bens.[12] o sacrifício é sempre um ato religioso concreto que agrega cará-
ter, quer dizer, faz parte da boa conduta.
E é interessante notar que Heráclito (540-480 a.C.), um dos filóso-
A quintessência dessa passagem de He- fos gregos mais antigos, distinguiu entre dois tipos de sacrifício: i.
síodo pode ser resumida assim: o que os o sacrifício interior, oferecido por àqueles indivíduos superiores
e puros como os deuses; ii. o sacrifício material e oferenda de san-
deuses provêm é muito melhor do que a gue por àqueles indivíduos que não eram puros. Sobre esse tipo
pilhagem, pois esse comportamento leva o de sacrifício material ele polemizou os debates de sua época, acu-
sando-os de poluir o ar e contaminar a atmosfera. Desenvolvendo
malfeitor à ruína. Faça sacrifícios, ofereça essa mesma ideia cem anos depois, expressando uma visão ética
orações e libações aos deuses que eles o e religiosa sobre o tema, o que agradou posteriormente pensa-
favorecerão. Hesíodo exorta nessa passa- dores, pagãos e cristãos no fim da Antiguidade, Platão (428-348
a.C.) argumentou que os deuses aceitavam adorações e sacrifícios
gem, entre outras coisas,[13] a importância apenas de homens moralmente puros como os próprios deuses.
Algum tempo depois, Séneca (4 a.C. – 65 d.C.), o filósofo estoico
[12] Martin Claret, 2010.
romano, exorta para que os deuses recebam sacrifícios de boas
[13] Primeiro, neste trabalho de Hesíodo, Zeus parece muito dis- intenções e corações prístinos, e não de rios de sangue e carne
tante daquele apresentado em sua obra Teogonia. Em O Trabalho queimada. Para Séneca em sua época, o que decidia a eficácia do
& os Dias, Zeus não é mais um deus mítico-antropomórfico em sacrifício era a conduta reta, e apenas isso bastava para agradar
uma luta violenta por supremacia. Ao contrário, apresenta-se aos deuses. A retidão, desse modo, era o sacrifício interior mais
bem mais sereno, o pai bem feitor dos deuses, esteio dos justos, adequado aos deuses. Sem retidão, qualquer sacrifício, qualquer
mas o flagelo dos injustos. Segundo, O Trabalho & os Dias demons- quantidade de sangue, carne e outras oferendas, não prestaria
tra como a propriedade e a prosperidade eram questões centrais nenhuma homenagem aos deuses.
na cultura grega da época. A passagem citada acima começa e ter- Os yorùbás não invalidam a retidão e entendem sua importância
mina dentro dessa questão, a proibição de roubo de propriedade para ordem cósmica e social, a despeito do primeiro parágrafo
ou fortuna, e o incentivo do sacrifício aos deuses como meio de dessa nota. Eles apenas incluem o sacrifício animal material entre
agradá-los para aquisição de propriedade ou riquezas. Em segui- os elementos da boa conduta e o meio através do qual a má condu-

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um ato religioso, o sacrifício geralmente side no fato de que, ao expirar, todo ser vivo
toma a forma de uma entrega realizada libera energia vital, energia essa que vai se
juntar à da divindade homenageada para
em nome de uma força sobrenatural; iii. o voltar acrescida ao ofertante.[20] Os ani-
exercício do sacrifício muda pouca coisa mais sacrificados, depois que sua energia,
por meio do sangue e por partes específi-
de uma região para outra, demonstrando cas, é absorvida pela divindade, são sempre
certa universalidade no entendimento de utilizados como alimentos a comunidade
seus fundamentos (no contexto da Religião religiosa.[21]
Yorùbá); iv. o sacrifício possui inúmeras fi-
nalidades na vida religiosa.[15] O Dicionário de Filosofia de Nicola
Nós vamos encontrar reformulações Abbagnano,[22] na entrada sobre sacrifício,
dessas ideias e muitas outras[16] em auto- diz:
res antigos e modernos. A Enciclopédia
Destruição de um bem ou renúncia ao mes-
Brasileira da Diáspora Africana de Nei mo, em honra a divindade. O sacrifício é
Lopes,[17] na entrada sobre sacrifício ritu- uma das técnicas religiosas mais difundi-
das. Seu objetivo é a purificação, a libertação
al, diz: de alguma culpa ou pecado:[23] neste caso,
é desinteressado, ou seja, não tem objetivo
Ato em que se oferece algo a uma divinda- utilitário imediato. Seu objetivo também
de. É uma exteriorização do culto religioso, pode ser a consagração, que é uma finalida-
um dos meios utilizados para se estabelecer de mais ou menos utilitária, pois consiste
contato com o mundo extraterreno. Parte em persuadir a divindade a dar garantias à
importante de muitas religiões, o sacrifício coisa ou à pessoa que se consagra.[24] Tan-
pode ser simbólico (como na missa católi- to a consagração quanto a purificação na
ca) ou concreto.[18] Nas religiões africanas maioria das vezes têm caráter simbólico, no
é sempre material, podendo consistir em sentido em que a dádiva sacrificada não tem
oferendas de alimentos, bebidas, animais, apenas o valor econômico que a comunida-
etc.[19] A lógica no sacrifício de animais re- de lhe atribui, mas também certa relação
simbólica com o objetivo (purificação ou
ta pode ser reparada. consagração) da cerimônia sacrifical. Essas
características podem ser identificadas nas
[15] Para os yorùbás, seis distintos tipos de comunicação espiri- técnicas sacrificais de todas as religiões,
tual são estabelecidos com a divindade através dos sacrifícios,
seja qual for seu grau de desenvolvimento
cobrindo inúmeros aspectos da vida religiosa e secular: i. sacrifí-
ou de refinamento intelectual.
cio de agradecimento e comunhão (ẹbọ opé àti ìdàpò); ii. oferenda
votiva (ẹbọ èjè); iii. sacrifício propiciatório/expiatório (ẹbọ ètùtù);
iv. sacrifício preventivo (ọjú kòríbi); v. sacrifício substitutivo (ẹbọ O ensaio Sobre o Sacrifício de Mar-
ayépinnu) e; vi. sacrifício de fundação (ẹbọ ìpìlè). O ọbẹ ètùtù é o
sacrifício o mais significativo quando se trata de pacificar a ira
cel Mauss e Henri Hubert,[25] traz em seu
dos deuses ou fazer compensações por erros. O sangue do animal primeiro capítulo pontuações acerca da
sacrificado substitui tanto a vida do ofensor quanto a de toda a unidade e universalidade do sistema sacri-
sua comunidade.
[16] A busca por uma única definição do sacrifício é inócua, por- da umbanda branca na cultura da macumba. Muito embora o
que ela não conseguirá abranger o grande número de perspec- sacrifício tenha um impacto direto sobre a alma, purificando-a
tivas culturais e religiosas acerca do sacrifício. Acadêmicos que ou alimentando-a, assim como na cultura yorùbá, o sacrifício na
estudam e escrevem sobre o tema nos dias de hoje defendem que Quimbanda sempre é um ato material, cujas implicações são so-
o sacrifício deve ser compreendido regionalmente, levando-se em brenaturais.
contra o imaginário popular, folclore e ciclos míticos de uma cul- [20] No curso deste ensaio nós discorreremos sobre outra lógica
tura, comunidade ou região. Veja Jennifer W. Knust e Zsuzsanna por trás do sacrifício.
Várkelyi, Ancient Mediterranean Sacrifice. Oxoford Universi-
[21] Na Quimbanda nem sempre. Isso dependerá dos fins últimos
ty Press, 2011.
que se deseja conquistar por meio do sacrifício.
[17] Selo Negro Edições, 2011.
[22] Martins Fontes, 2018.
[18] O limiar entre sacrifício interno ou simbólico e sacrifício
[23] Essa noção de sacrifício como piedade de purificação e ex-
externo ou material é antiguíssimo na história religiosa da hu-
piação dos pecados já era difundida entre os hebreus e gregos do
manidade. Na Índia, por exemplo, a espiritualidade e o misticismo
Mundo Antigo. No fim da Antiguidade, como veremos no curso
introspectivo das upaniṣad suplantou o sacrifício védico tradi-
desse ensaio, essa era uma noção difundida por muitos filósofos-
cional, quando o sacrifício interior e simbólico passou a ser mais
teurgos greco-romanos.
apropriado do que o sacrifício exterior material. Assim começou
o Advaita Vedānta, internalizando em uma prática disciplinada de [24] Na Quimbanda o sacrifício propiciatório implica tanto em
yoga os antigos sacrifícios oferecidos aos devas e deuses. purificação quanto em consagração, de modo geral. A Quimbanda
herda não apenas da cultura africana suas noções sobre sacrifí-
[19] A ideia de sacrifício interior ou simbólico é completamente
cio, mas também da cultura greco-romana (via herança ancestral
inexistente na Quimbanda. Exu tem fome. Exu sempre come. Com-
europeia).
preender essa complexidade de Exu é fundamental para eliminar
as distorções acerca do sacrifício produzidas pelos intelectuais [25] Ubu Editora, 2017.

9 Edição 09
fical nas religiões, elaborando as transfor-
mações espirituais proporcionadas pela No totemismo, o totem ou o deus é paren-
te de seus adoradores; são da mesma carne
ação do sacrifício religioso. Segue alguns e do mesmo sangue; o rito tem por objeto
excertos: manter e garantir essa vida comum que os
anima e os associa. Se necessário, ele rees-
tabelece a unidade. A «aliança pelo sangue»
A palavra sugere imediatamente a ideia e a «refeição em comum» são os meios mais
de consagração, e poder-se-ia pensar que simples de atingir esse resultado.
as duas noções se confundem. Com efeito
é certo que o sacrifício sempre implica em
uma consagração: em todo sacrifício um Heidi Marx-Wolf em sua empolgante
objeto passa do domínio comum ao domínio pesquisa Spiritual Taxonomies and Ri-
religioso – ele é consagrado. Mas as consa-
grações não são todas da mesma natureza. tual Authority: Platonists, Priests, and
Há aquelas que esgotam seus efeitos no ob- Gnostics in the Third Century C.E.,[26] diz:
jeto consagrado, seja ele qual for, homem ou
coisa. É o caso, por exemplo, da unção. Na
sagração de um rei, somente a personalida- O sacrifício animal foi tradicionalmente o
de religiosa do rei é modificada; fora dela componente chave dos festivais nas cida-
nada é alterado. No sacrifício, ao contrário, des. Essas comemorações públicas, que en-
a consagração irradia-se para além da coisa volviam a ingestão de carnes derivadas da
consagrada, atingindo, entre outras coisas, matança sacrifical, eram ocasiões onde às
a pessoa moral que se encarrega da cerimô- relações entre os homens e os deuses rea-
nia. O fiel que forneceu a vítima, objeto da firmavam-se. Nessas ocasiões também às
consagração, não é no final da operação o esperanças humanas por segurança, saúde,
que era no começo. Ele adquiriu um caráter bem-estar e sucesso eram reconhecidas.
religioso que não possuía, ou se desembara- [Essas celebrações públicas] afirmavam vi-
çou de um caráter desfavorável que o afli- sivelmente a identidade [religiosa] do gru-
gia; elevou-se a um estado de graça ou saiu po e o lugar do indivíduo dentro do grupo.
de um estado de pecado. Em ambos os casos
ele é religiosamente transformado. Essa linha de raciocínio de Marx-Wolf
[...] A ação irradiante do sacrifício é aqui
particularmente sensível, pois ele produz acerca do sacrifício está em sincronia com
um duplo efeito: um sobre o objeto pelo qual a interpretação de outros estudiosos como
é oferecido e sobre o qual se quer agir, outro Marcel Detienne. Em seu ensaio Culinary
sobre a pessoa moral que deseja e provoca
esse efeito. Às vezes, ele só vem a ser útil Practices and the Spirit of Sacrifice,[27] Die-
sob a condição mesma de ter esse duplo re- tienne diz que o ato sacrifical na Grécia an-
sultado. Quando um pai de família sacrifica
pela inauguração de sua casa, é preciso não tiga envolvia o banquete cerimonial: Todos
apenas que a casa possa receber a sua famí- consomem a carne proveniente da matança
lia, mas também que a família esteja prepa- sacrifical de animais, e o açougueiro que
rada para ocupá-la.
Vê-se qual é o traço distintivo da consagra- derrama o sangue dos animais [sacrificados
ção no sacrifício: que a coisa consagrada e compartilhados] parece exercer a mesma
sirva de intermediário entre o sacrificante,
ou o objeto que deve receber os efeitos úteis função do [sacerdote] sacrificador frente
do sacrifício, e a divindade à qual o sacri- ao altar. Então o sacrifício para os gregos
fício é endereçado. O homem e o deus não estava diretamente relacionado ao consu-
estão em contato imediato. Assim é que o
sacrifício se distingue da maior parte dos mo da carne partilhada diretamente com
fatos designados como «aliança de sangue», os deuses e servia a propósitos políticos
em que se produz, pela troca de sangue, também: todos os cidadãos da pólis eram
uma fusão direta da vida humana e da vida
divina. esperados participar dos festivais sacrifi-
[...] Chegamos então à seguinte fórmula: o cais; qualquer data festiva que envolvia o
sacrifício é um ato religioso que mediante
a consagração de uma vítima modifica o sacrifício animal, seja comemoração aos
estado da pessoa moral que o efetua ou de deuses ou eventos políticos, envolvia o
certos objetos pelos quais ela se interessa. consumo da carne compartilhada por to-
dos os cidadãos. Esses eventos também ga-
No mesmo livro os autores argumen-
rantiam as boas relações e laços políticos
tam sobre a aliança de sangue entre os
membros de um clã aborígene com seu to- [26] PENN, 2016.
tem sagrado, que os une ancestralmente: [27] Artigo publicado em Cuisine of Sacrifice de Marcel Dietien-
ne e Jean-Pierre Vernant. CSAS, 1979.

10 Edição 09
com as diversas colônias gregas no Medi- to aos interesses religiosos, pois através do
terrâneo. Então é possível falar de uma po- ritual a identidade do grupo era reafirma-
lítica do sacrifício onde uma grande quan- da, assim como os símbolos do imaginário
tidade de alimentos era distribuída junto cultural. Martha Rampton no seu último
aos banquetes sacrificais; a carne derivada trabalho Trafficking with Demons: Ma-
destes sacrifícios era dividida de acordo gic, Ritual, and Gender from Late Anti-
com a ordem social entre os homens e os quity to 1000,[31] diz:
deuses. O animal sacrificado era dividido
e compartilhado na intenção de conectar O ritual é formativo e capacita todos
toda estrutura social (que incluía deuses e nele envolvidos porque através do processo
de ritualização o significado [de um símbo-
homens), estabelecendo essa estrutura de lo, ideia etc.] é construído, e valores ou «ver-
forma inquestionável, porque todos dela dades» que informam e dirigem a realidade
participavam. no dia-a-dia [da vida secular e religiosa] são
orquestrados dentro do espaço ritual. [...] O
Outro estudioso, Jonathan Z. Smith processo de significação em um ato ritual
em Ritual Killing and Cultural Foma- se expande para muito além do rito na me-
tion,[28] argumenta que o sacrifício animal dida em que se move para o mundo diário
dos atores, porque [...] o ritual é «o ato so-
parece ser, universalmente, um ritual de ma- cial básico». Através do ritual, a pessoa ou
tança de animais domésticos em sociedades grupo faz declarações ou realiza atos que,
embora inicialmente metafóricos, afetam
agrárias e pastoreias. Ele defende que os premissas do mundo não-ritualizado da
animais sacrificados recebiam cuidados vida diária. Os símbolos falam em uma lin-
especiais como boa comida e melhores guagem que é internalizada holisticamente
e emocionalmente. Eles criam uma retórica
locais de confinamento. O ritual, ele com- difícil de ser contida por argumentos inte-
pleta, começava nos cuidados com os ani- lectuais porque definem o mundo em níveis
profundamente intuitivos. [...] Através do
mais. O autor também enfatiza que o ritual ritual símbolos são reforçados nas profun-
de sacrifício nunca ocorria com uma fera dezas da psique.
selvagem capturada através de caçadas. O
sacrifício, portanto, está inexoravelmen- Segundo estes autores, portanto, o ri-
te conectado a partilha alimentar de um tual de sacrifício animal por um longo pe-
grupo ou sociedade em função de sua co- ríodo de tempo na Antiguidade esteve no
esão.[29] É interessante notar que o autor âmago de muitas culturas, reafirmando
diz que nas culturas onde o sacrifício é te- seus alicerces fundantes em cada indiví-
orizado nos termos de oferenda, uma noção duo que delas pertencia. Por outro lado,
desenvolvida de propriedade também está no pensamento do homem tradicional no
envolvida, porque a «cultura» está em pers- Mundo Antigo a ideia de ritual estava asso-
pectiva. O thysia, ritual grego tradicional ciada diretamente ao sacrifício e a maneira
de sacrifício e oferenda, culminava na jubi- correta de executá-lo, levando em conta as
losa participação da sociedade, o que for- implicações espirituais desagradáveis que
tificava seu imaginário, a visão de mundo a execução mal sucedida poderia implicar.
e o local a que se pertencia na estrutura Como dimensiona Julius Evola:[32]
social, os laços políticos e os valores reli-
giosos. Ritos e sacrifícios eram regulados por nor-
mas tradicionais estritas e detalhadas que
Em ensaios anteriores[30] eu havia men- não deixavam espaço para nada que fosse
cionado que o ritual, quer dizer, a cerimô- arbitrário ou subjetivo. A execução dos ri-
nia ritualística pública na Antiguidade, tos e sacrifícios era imperativa, ius strictum:
o ritual ou sacrifício que fosse negligencia-
servia tanto aos interesses políticos quan- do ou executado por uma pessoa desquali-
ficada, ou mesmo realizado de maneira que
[28] Stanford University Press, 1987. não se conformava as regras tradicionais,
[29] Esses apontamentos estão em sincronia direta com a natu-
reza do sacrifício na Quimbanda, nos cultos agregados da cultura [31] Cornel University Press, 2021.
afro-brasileira e nas culturas banto e yorùbá.
[32] Julius Evola. Revolt Against the Modern World. Inner
[30] Revista Nganga no. 5 Traditions International, 1995.

11 Edição 09
era considerado a causa de infortúnios tan- preparar causas na dimensão invisível.[33]
to para o indivíduo quanto para sociedade,
uma que vez que ele [o ritual mal sucedido]
desencadeia consequências terríveis na or- Então o sacrifício, desde tempos ime-
dem moral e material. Por outro lado, no moriais, tem sido utilizado como meio de
mundo clássico era dito que o sacerdote en- comunicação com os espíritos (deus,[34]
carregado do fogo sagrado «salva» a cidade
por meio do ritual, dia após dia. Na tradição deuses, genii, daimones, heróis, devas, dei-
chinesa, o estabelecimento dos ritos era a dades, demônios, òrìṣà, égún etc.) dentro
primeira das três coisas mais importantes de construções religiosas ritualizadas
de um [novo] governador do império, uma
vez que os ritos construíam os «canais pe- de muitas culturas para agradecimento,
los quais os meios dos céus podiam ser in- louvor, petições ou expiações. O sacrifí-
feridos». Na tradição hindu, os «campos sa-
crificais» eram considerados o assento da cio propiciatório ou a imolação ritual de
«ordem cósmica» (ṛta); é muito significante um animal é um procedimento sacerdotal
que a expressão ṛta (artha no persa) apare- nas vertentes tradicionais de Quimbanda
ça em conexão com concepções análogas na
raiz latina da palavra ritus, «ação ritual». (Nàgô, Mussurumim e Malei),[35] por este
No antigo estilo de vida tradicional, tanto o termo procedimento sacerdotal, deve-se en-
indivíduo quanto em níveis coletivos, toda
ação era conectada com um elemento ritu- tender um sacerdote treinado e preparado
al determinado que atuava como suporte, na arte de se comunicar com os Exus e que
bem como elemento transfigurador e guia sabe prover para eles oferendas diversas,
«que vem de cima». A tradição de ritos e
sacrifícios, que posteriormente foi confun- comidas e sacrifícios propiciatórios, ma-
dida com a tradição legislativa (daí a noção nipulando a força energética dos elemen-
de ius sacrum), era referida nas dimensões tos-base que constituem essas oferendas e
tanto privada quanto pública a um ser não
humano ou que tenha transcendido a con- sacrifícios.
dição humana. Por trás do sacrifício animal existem
muitas camadas ou véus de entendimento,
E explicando a dinâmica espiritual do e o sacerdote deve compreender cada uma
rito sacrifical, Evola nos diz: delas com profundidade para que domine
efetivamente a arte de matar como ofício
Primeiro que tudo, havia um ritual de pu-
rificação que colocava a pessoa que par- sagrado. O sacerdócio implicará em conhe-
ticiparia do rito em contato com as forças cer certas chaves de acesso desconhecidas
invisíveis e facilitaria a possibilidade de aos profanos, nãoiniciados, autoiniciados,
dominá-las. O que se seguia era um proces-
so evocatório que produzia uma saturação curiosos, os bandas de casa, os ressentidos
dessas energias dentro da pessoa que rea- e os falsários. Essas chaves de acesso são
lizava o sacrifício, dentro da vítima [sacri-
fical], ou dentro de ambos – ou até mesmo segredos da tradição e são transmitidas de
dentro de um terceiro elemento que podia lábios a ouvidos.
variar de acordo com a estrutura do ritu- Saber despertar a força de vida (moyo)
al. Finalmente ocorre a ação que induz a
crise (por exemplo, a imolação da vítima) no animal sacrificado é um arcano de mis-
e isso «atualizava» a presença do deus ou tério; saber imantar a vontade ou o propó-
a substância [energética] das influências sito mágico com essa força de vida dire-
evocadas. [...] O que ocorria era a renova-
ção evocatória renovava o contato com as cionada é outro arcano de mistério; saber
forças infernais que atuavam como o subs- transformar a matéria profana em força
trato de deificação primordial, assim como
na violência que os libertava e os elevava sagrada através do sacrifício é mais um ar-
a uma forma superior. Isso explica por-
quê [...] a pessoa que realizava o sacrifício [33] Ibidem.
era chamada de «virile hero». [...] Por ou-
tro lado, a execução correta e diligente da [34] Segundo Jonathan Klawans no ensaio Pure Violence, publi-
ação sacrifical era reputada por ser o apoio cado em Purity, Sacrifice and the Temple (Oxford University
de manutenção para que homens e deuses Press, 2010), o rito sacrifical hebreu era estruturado, pelo menos
providenciem uns para os outros o que ne- em parte, pelo princípio de imitatio Dei, quer dizer, imitação de
cessitam. [...] Nas sociedades tradicionais a Deus. O sacrifício nessa perspectiva envolve matança e banque-
ação par excellence consistia em dar forma te, comportamentos associados com Deus: é Deus que seleciona,
a eventos, relações, vitórias e mecanismos mata, olha dentro das coisas e aparece sobre a terra como uma pira
de defesa por meio do rito, quer dizer, em de fogo que a tudo consome.
[35] Veja o texto O Tronco Tradicional de Quimbanda, nessa edição.

12 Edição 09
cano de mistério; purificar a própria alma propósitos. Inúmeros autores do Mundo
através do sacrifício, lapidando a consci- Antigo como Hesíodo, Plutarco (46-120
ência embrutecida é também um arcano d.C.), Porfírio de Tiro (294-305 d.C.), Jâm-
de mistério; mortificar a si mesmo, seus blico de Calcis (245-325) e muitos outros
desejos, vícios, medos e ilusões no ato do deixaram contribuições profundas acerca
sacrifício, faz parte desse mesmo mistério. do sacrifício animal para nós dos dias de
São muitos os mistérios que envolvem o hoje, contribuições essas que foram peda-
sacrifício. gógicas ao homem do Mundo Antigo, e que
Como veremos nesse ensaio, as ideias são esclarecedoras ao homem pós-moder-
que a Quimbanda apresenta sobre a arte no.[36]
do sacrifício ou imolação ritual são um re- Sobre esse tema, será interessante des-
licário genuíno de toda herança ancestral tacar um corte histórico: o debate e a dis-
do Mundo Antigo. Sacrificar um bode para puta sobre o sacrifício que se estabeleceu
Exu na Quimbanda não é nada distinto de entre Porfírio de Tiro, Jâmblico de Calcis e
sacrificar um touro ao herói da guerra de pensadores cristãos da época. Jâmblico é o
Tróia, Aquiles. Sacrificar ou oferendar aos autor que empreendeu uma verdadeira re-
Maiorais, Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth forma na religião grega ao defender a teur-
não é nada distinto de sacrificar ou ofe- gia. Agostinho de Hipona (354-430 d.C.),
rendar a Luciferus, Baal e Astarte, forças baseando-se quase que totalmente nos
primordiais antiguíssimas. Como venho argumentos de Porfírio (que muito prova-
falando desde o primeiro volume de Dae- velmente foi influenciado profundamente
monium, as técnicas de feitiçaria são uni- por Orígenes – 185-254 d.C.), se opôs ao
versais, mudando pouca coisa de cultura uso religioso dos sacrifícios. Esse debate
para cultura. O sacrifício é, quem sabe, a é importante porque dele nasce premissas
técnica mais antiga de comunicação com e ressignificações cristãs acerca do sacri-
as forças do mundo espiritual. E para fício, pois o cristianismo se apoderou da
quem acompanha os volumes de Daemo- linguagem sacrifical em sua teologia, mas
nium, este é um tema caro em minha car- condenou radicalmente seu exercício reli-
reira magística. gioso. Esse foi um período de intensa dis-
Até aqui fizemos uma introdução geral puta no fim da Antiguidade onde gnósticos,
a ideia do sacrifício na cultura greco-ro- platonistas e cristãos competiam para es-
mana do Mediterrâneo, na cultura yorùbá tabelecer uma narrativa e autoridade espi-
da África e na tradição de Quimbanda no ritual-ritual sobre os costumes religiosos,
Brasil. A Seção II que seguirá abaixo é um as taxonomias e classificação de espíritos
aprofundamento no desenvolvimento da empregadas na época.
ideia do sacrifício nas culturas religiosas A Seção III, que é o tema dessa coleção
do Mundo Antigo. O plano geral dessa se- de ensaios sobre Quimbanda & Magia Ce-
ção cobre um vasto período de tempo que rimonial, tratará do sacrifício animal na
se estende da Antiguidade Clássica até a magia demoníaca dos grimórios, buscan-
Antiguidade tardia e início da Idade Média. do estabelecer pontes com a magia negra
Vamos nos concentrar no debate acerca do da Quimbanda, como fizemos nos ensaios
sacrifício animal nas culturas antigas do
Mediterrâneo e no intercâmbio delas com
[36] As ideias concernentes ao sacrifício no imaginário do Oci-
outras culturas da África e Oriente Médio. dente pós-moderno são derivadas das especulações e ressignifi-
A intenção aqui é buscar uma abordagem cações cristãs que ocorreram no fim da Antiguidade e se desen-
volveram até os dias de hoje. Ao homem do Mundo Antigo não era
panorâmica sobre o tema, trazendo para necessário esclarecer o racional por trás do sacrifício. Tratava-se
nós do presente fundamentos antigos que de uma ação ritual cultural e todos compreendiam seu significa-
do e importância. É ao homem pós-moderno, desprovido deste
nos possibilitem ter uma compreensão entendimento cultural antigo e, por outro lado, educado pelos
mais profunda do sacrifício animal e seus paradigmas cristãos, que é necessário esclarecer os fundamentos
do sacrifício animal.

13 Edição 09
anteriores.[37] No fim da Antiguidade, du- a Chancela Imperial de Maioral, Fontenel-
rante o período apostólico, a presença de le codificou os símbolos fundamentais da
demônios era inferida muitas vezes atra- Quimbanda, associando-a a Tradição Ocul-
vés do mau comportamento das pessoas. ta Ocidental, inserindo no contexto do cul-
Os ritos sacrificais aos antigos deuses gre- to conceitos alquímicos e astrológicos deri-
co-romanos foram considerados, já nesse vados da magia cerimonial. Foi Fontenelle
período, como sacrifícios oferecidos aos também que delineou a ideia dos Maiorais
demônios. Tratava-se, portanto, de um na Quimbanda e elegeu o Baphomet de Eli-
comportamento inadequado, indevido e phas Levi (1810-1875) como ícone central
desviado fazer sacrifícios aos antigos deu- do culto, conectando o trabalho e as ações
ses,[38] porque subordinava o homem aos de Exu a Luz Astral ou Agente Mágico Uni-
caprichos das hostes do mal.[39] Nesse perí- versal de Levi, que em tradições platônicas
odo construiu-se a ideia de que a prática da e mágicas anteriores era identificada como
magia estava diretamente associada ao sa- a alma do mundo.[41] Aluízio Fontenelle es-
crifício aos antigos deuses; logo, qualquer tabeleceu uma ponte concreta entre a feiti-
tipo de prática mágica que ousou se valer çaria brasileira e o ocultismo europeu.
de sacrifícios a partir desse período rece- É na intenção de dar manutenção a essa
beu a alcunha de magia demoníaca porque ponte estabelecida por Fontenelle que ire-
envolve o exercício de ritos e sacrifícios mos propor alguns experimentos de Quim-
aos demônios. Nessa seção serão sugeridos banda prática com os demônios do Gri-
alguns experimentos de Quimbanda práti- morium Verum. Isso inclui o trabalho em
ca com os demônios do Grimorium Verum, conjunto entre os Exus e os demônios no
demonstrando que a Quimbanda é a goécia melhor estilo da Quimbanda Nàgô, que ab-
brasileira.[40] sorveu muitas influências demonológicas
Na década de 1950, Aluízio Fontenelle e diabólicas deste grimório.[42] Mas muita
(1913-1952) estabeleceu definitivamente atenção aqui: estes experimentos são para
Exu-Diabo no imaginário brasileiro. Ele iniciados de fato na Quimbanda Nàgô, e não
conectou os Exus mais conhecidos da épo- simpatizantes ou mesmo curiosos ocultis-
ca a demônios do Grimorium Verum, um tas. A iniciação na Quimbanda fornece as
grimório diabólico do Séc. XVIII. O traba- chaves de acesso que não estarão aqui de-
lho de Fontenelle proveu os rabiscos ini- lineadas, as quais são fundamentais para
ciais da Quimbanda como praticamos hoje, que os experimentos propostos funcionem
sua iconografia e estética diabólica. É em efetivamente.
Fontenelle que pela primeira vez a ideia de
reinos começa a se estabelecer na Quim- Tata Nganga Kamuxinzela
banda, apresentando o Reino das Encruzi-
lhadas e o Reino do Cemitério. Ao divulgar Mestre de Quimbanda Nàgô e
Quimbanda Mussurumin
[37] Veja as edições anteriores da Revista Nganga onde inúmeras
pontes de contato são estabelecidas entre a Quimbanda e a magia Cova de Cipriano Feiticeiro
cerimonial. Contato para agendamentos, consultas
[38] Diferente das culturas anteriores ao cristianismo, o sacrifí- e trabalhos espirituais:
cio aos deuses nas sociedades tradicionais antigas era considera-
do uma boa conduta, um bom comportamento, como vimos nessa instagram.com/tatakamuxinzela
v. www.quimbandanago.com
[39] Valerie Flint. Ensaio Demonizando a magia e a feitiçaria na
Antiguidade Clássica: redefinições cristãs das religiões pagãs. Publi-
cado em Bruxaria e Magia na Europa. Madras, 2004.
[40] Na última edição da Revista Nganga me esforcei por de-
[41] Veja Cornélio Agrippa. Três Livros de Filosofia Oculta.
monstrar tendências higienístas que hoje são propagadas na
Madras, 2008. Veja também Revista Nganga No. 8.
Quimbanda, cuja intenção é invalidar o trabalho da Quimbanda
Nàgô e sua hibridização com a demonologia europeia, classifi- [42] Veja edições anteriores da Revista Nganga para aprofunda-
cando inúmeras famílias de Quimbanda Nàgô como dissidências mento acerca dessa influência demonológica e o impacto prático
ilegítimas. dela na Quimbanda.

14 Edição 09
Táta Nganga Kamuxinzela & Táta Nganga Zelawapanzu
Feitiçaria Tradicional Brasileira

O Tronco Tradicional de
Quimbanda
Seção . I . autores, e não por qualquer tipo de prática
que tenha nascido no Rio Grande do Sul a
A Verdadeira Quimbanda partir da década de 1960. Quando falamos
Tradicional é Derivada de uma gênese da ideia de Quimbanda como
do Tronco Tradicional de sistema de iniciação e estrutura cosmogô-
nica, é nos trabalhos destes autores que de-
Quimbanda
vemos nos voltar.[2]
Este tronco tradicional de Quimbanda
Por esse termo, tronco tradicional de
inaugura as Sete Linhas clássicas de Quim-
Quimbanda, me refiro a sistematização,
banda: Malei, Nàgô, Mussurumim, Almas,
organização e estruturação inicial da
Caveiras, Caboclos Kimbandas e Mista.
Quimbanda como tradição. Essa organiza-
Com o desenvolvimento da estrutura inici-
ção começou com Lourenço Braga (década
ática do culto, dessas Sete Linhas clássicas
de 1940) e Aluízio Fontenelle (década de
nascem tanto à ideia de vertentes quanto à
1950).[1] Esse embrião da Quimbanda como
ideia de reinos. Assim começa a se estrutu-
tradição anunciado por esses dois médiuns
rar a Quimbanda, separada por sistemati-
foi à centelha que deu nascimento a inúme-
zações distintas (as vertentes) e organizada
ras famílias de Quimbanda e a própria esté-
em agrupamentos de espíritos distribuídos
tica do culto. A Quimbanda como operamos
por zonas de poder (os reinos).
hoje, suas cores, símbolos, iconografia dia-
Efetivamente, apenas três linhas de tra-
bólica e magica matter, quer dizer, os ele-
balho, Malei, Nàgô e Mussurumim, torna-
mentos magísticos utilizados no culto, fo-
ram-se vertentes distintas inicialmente. As
ram delineados inicialmente por estes dois
outras quatro linhas permaneceram assim,
[1] É uma desonestidade e falsificação intelectual chamar o tra- linhas de trabalho que se apresentam den-
balho iniciado por Mãe Ieda no Rio Grande do Sul na década de
1960 de Quimbanda Tradicional. A verdadeira e genuína Quim-
tro das vertentes. E dessas três vertentes
banda Tradicional começou a ser delineada a partir da década de iniciais derivaram outras bandas como a
1940 e 1950 com os autores Lourenço Braga e Aluízio Fontenel- Kiumbus, a Mussifin, a Angola,[3] Almas etc.
le. Nomear o trabalho de Mãe Ieda como Quimbanda Tradicional
trata-se de uma busca infantil e ressentida por legitimidade. A
[2] A ideia de que os Exus e a própria Quimbanda se emanciparam
tradição literária está aí para ser estudada e comprovada. Tudo
da Umbanda apenas e a partir do trabalho de Mãe Ieda também é
o que ocorreu com Mãe Ieda a partir de 1960 já estava aconte-
falaciosa. A tradição oral aponta casas de Quimbanda operando
cendo no Rio de Janeiro e São Paulo pelo menos dez anos antes. A
no Rio de Janeiro no fim da década de 1950, período pós Lourenço
Quimbanda apresentada como sendo derivada do trabalho de Mãe
Braga e Aluízio Fontenelle, muito embora isso seja difícil de ras-
Ieda não nasceu como uma vertente tradicional de Quimbanda,
trear devido à falta de documentação escrita. É correto dizer que
mas como um exercício de Culto a Exu derivado do Batuque. No
no Rio Grande do Sul, foi a partir do trabalho de Mãe Ieda que a
trabalho original de Mãe Ieda não existe oráculo ou os Reinos da
Quimbanda se emancipou da Umbanda.
Quimbanda, mas o trabalho que dela derivou apresenta, buscando
essa tecnologia e cosmovisão no trabalho de terceiros. Veja Diego [3] A Quimbanda de Angola deriva diretamente do Candomblé
de Oxóssi. Os Reinos de Quimbanda e os Búzios de Exu. Arole de Joãozinho da Goméia (Táta Londirá). Seu trabalho teve uma
Cultural, 2023. O livro trata-se de uma tentativa escandalosa de profunda fundamentação nàgô: primeiro como Pai de Santo de
invalidar a Quimbanda Nàgô como derivada do tronco tradicional Umbanda e depois como bàbálòrìṣà de Candomblé. Por essa pro-
de Quimbanda e sua cosmovisão, que envolve a afirmação diabó- funda influência nàgô no trabalho de Quimbanda de Táta Londi-
lica e demoníaca de Maioral como o Diabo e os Exus associados rá, equivocadamente levantou-se a teoria de que a Quimbanda
aos demônios. Nàgô nascera de seu trabalho no estado de São Paulo. Veja Diego

15 Edição 09
Como elaborei na Revista Nganga, a quando diz que o mito alimenta a prática e,
tradição literária de um culto, sistema ou por sua vez, a prática alimenta o mito.[4]
religião não ocorre nos seus primórdios, Desse tronco tradicional de Quimbanda
mas no curso de seu desenvolvimento. Os nasceram inicialmente três sistemas distin-
primeiros autores umbandistas colocavam tos, três vertentes com fundamentações e
no papel aquilo que eles viam e viviam no sistematizações de culto diferentes: Malei,
culto. E a partir da troca e confluência de Mussurumim e Nàgô. E como vimos ante-
elaborações sobre o sistema, ele foi se or- riormente, dessas vertentes muitas outras
ganizando e se estabelecendo. Assim é com nasceram como afluentes de um rio que se
qualquer culto religioso e não foi diferente espalham sobre a vasta terra. A vertente
com a Umbanda e a Quimbanda. que mais influenciou as casas de Quimban-
A Quimbanda nasce como sistema ini- da em todo território brasileiro foi a Quim-
ciatório em resposta ou é o efeito colate- banda Nàgô. Muitas vertentes operam com
ral da busca que a Umbanda empreendia fundamentos extraídos Quimbanda Nàgô e
por validação e aprovação social. É dentro nem sabem disso.
deste contexto estrito que nasce a ideia de Estas três vertentes que nasceram do
Quimbanda como a entendemos e a realiza- tronco tradicional de Quimbanda têm fun-
mos hoje: um culto de feitiçaria brasileira damentações completamente distintas.
que aglutina mistérios e arcanos secretos Táta Kilumbu, Mestre de Quimbanda nes-
cujas raízes vêm da África, do Brasil e da sas três vertentes, diz: Quimbanda não é
Europa. Esses mistérios e arcanos secretos tudo igual. Por terem fundamentações bem
são transmitidos de mestre a discípulo den- distintas em diversos aspectos do culto, es-
tro de uma relação iniciática e hierárquica, sas vertentes podem ser classificadas como
em uma cadeia contínua de transmissões ctoniana (Malei), telúrica (Nàgô) e aérea
que se renovam a cada geração. (Mussurumim). Ao entendedor, essa classi-
A Quimbanda como conhecemos e reali- ficação basta para compreender a atuação
zamos tradicionalmente hoje é um sistema energética de cada banda, assim como a
que vem se desenvolvendo desde 1950 após manifestação dos Exus e Pombagiras nelas.
os esforços de Lourenço Braga e Aluízio Assim, quando pensamos em uma Quim-
Fontenelle. E é interessante notar que Lou- banda Tradicional, estamos falando das
renço Braga em 1942 disse que na década vertentes tradicionais citadas acima, deri-
de 2020, a que hoje vivemos, a Quimbanda vadas do tronco tradicional de Quimbanda.
iria passar por uma profunda modificação. Não qualquer prática de Quimbanda que te-
E não é isso que estamos vendo, uma eclo- nha nascido no Rio Grande do Sul e que tra-
são de núcleos, grupos e famílias de Quim- ga forte influência do imaginário e folclore
banda, uns legítimos e outros não, a partir daquela região do país.
de 2020?
Assim nós temos um tronco tradicional
de Quimbanda que pode ser tanto identifi- Seção . I I .
cado quanto rastreado, embora não com- A Quimbanda de Angola não é a
pletamente, através da tradição literária da
Quimbanda Nàgô
Umbanda e Quimbanda. A tradição literária
começa sendo alimentada pela práxis do
Em publicação recente[5] foi levantada
culto, e em seguida ela renova e revigora
a hipótese de que a genuína e verdadeira
a própria práxis na medida em que o culto
Quimbanda Nàgô estaria vinculada ao tra-
se desenvolve. Humberto Maggi fala disso
balho do candomblecista e o provável cria-
de Oxóssi. Os Reinos de Quimbanda e os Búzios de Exu. Arole
Cultural, 2023. Como veremos na próxima seção, Táta Kilumbu
dor de uma linha de trabalho ou vertente de
esclarece que os próprios descendentes espirituais do trabalho
[4] Umberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra, 2020.
de Quimbanda de Táta Londirá i. nunca se proclamaram da Quim-
banda Nàgô e; ii. sempre que podem, se identificam como Quim- [5] Diego de Oxóssi. Os Reinos de Quimbanda e os Búzios de Exu.
banda de Angola. Arole Cultural, 2023.

16 Edição 09
Quimbanda denominada «Angola». A des- A necessidade [que este autor busca][7] é
peito dessa nova hipótese veiculada nesta dar uma coesão ao culto, criando um mito,
da mesma forma que ocorreu com a Umban-
publicação, Táta Kilumbu faz os seguintes da na figura de Zélio de Morais. Esse mito
esclarecimentos: criacionista é uma forma de elitizar e sacra-
mentar uma herança espiritual, que muitas
A Quimbanda do Joãozinho da Goméia não vezes é apenas invencionice.
se nomeia «Nàgô», o mais comum é se in- A tentativa de explicar a Quimbanda Nàgô
titular «Angola». Táta Londirá era baiano pelos olhos do leigo não é admissível. Para
e não há nenhuma indicação que ele tenha se falar da Quimbanda Nàgô deve-se enten-
criado uma nova Quimbanda; ele já recebia der e inquirir quem está dentro da prática.
entidade antes de se iniciar no Candomblé e Não há como dizer que os Tátas que foram
já era pai de santo de Umbanda, depois foi feitos por Joãozinho da Goméia sejam adep-
aprontado no Candomblé. tos da Quimbanda Nàgô, visto a própria
A Quimbanda Nàgô como tratamos ja- natureza dessa família de Quimbanda ser
mais veio de Joãozinho da Goméia, pois a cercada pelo sigilo, mistério e fundamento
Quimbanda é mais antiga que a própria do silêncio.
existência de Joãozinho. As vertentes de A Quimbanda promulgada por Joãozinho
Quimbanda não têm uma marca histórica pode ser atribuída a uma raiz «Angola»,
de fundamento, não dá para definir quem proveniente de um amalgama similar, mas
é a pessoa que criou uma família de Quim- não é a raiz da Quimbanda Nàgô. Visto que
banda, pois é algo orgânico, alinhado com seus próprios sucessores não se enquadram
o propósito e necessidade de cada família. dentro desse espectro [i.e. vertente].
Desta forma, não teremos nomes de inicia- Táta Londirá (Joãozinho da Goméia) teria
dores ou fundadores desses cultos, sendo da Nagô são as que vemos hoje em dia nas redes sociais. [...] Apesar
algo criado coletivamente, e que ganha cor- de Exu Gererê ser o comandante supremo, tornou-se comu8m o uso
po posteriormente.[6] sincrético da estátua de Baphometh. Note que nessa passagem Mu-
loji faz referência a feiticeiros, não a um indivíduo, muito embora
[6] Em seu livro Kiwanda: Raizes Perdidas da Kimbanda Malei
tenha sido Aluízio Fontenelle o autor que expôs essa fusão na dé-
(publicação independente do autor, edição de 2023), o Mestre de
cada de 1950. Isso significa, como demonstrei na Seção I, que a
Quimbanda Muloji diz: A Kimbanda Nagô sempre foi a mais ex-
tradição literária de um culto expõe efetivamente a realidade das
pandida, forte e conhecida em todo território do Brasil, se não foi
práticas assumidas pelo culto, realimentando e reafirmando seu
a primordial. [...] Com o tempo os feiticeiros aderiram a mesclagem
conteúdo simbólico e imagético.
da Kimbanda Nagô a cabalá goétia dos demônios, formando assim
um submundo oculto das práticas proibidas. Essas linhas que saíram [7] Referência ao livro de Diego de Oxóssi.

17 Edição 09
iniciado Táta Gitandê, que por sua vez ini- meio da oralidade. Estar em um culto de an-
ciou Táta Sarrafo e este iniciou Táta Negão cestralidade e ignorar esse fato é no míni-
na década de 1990. De Táta Negão surgiria a mo ingenuidade, mas geralmente descamba
descendência aprontada de Táta Malê, Táta para arrogância.
Kalunga e Táta Sigatana. Contudo, não há Temos que saber que dentro da prática da
menção em obras de Táta Sigatana ou das feitiçaria da Quimbanda o que importa são
informações que podemos auferir publi- os Exus. Os mestres são aprontados por ou-
camente nas mídias de Táta Malê, de que tros mestres, mas isso se perde na memó-
eles são adeptos da Quimbanda Nàgô. Táta ria, sendo que o Exu se mantém sempre em
Kalunga, supostamente nem foi aprontado evidência.
devidamente, tendo seus direitos não atri-
buídos, não sendo de fato Táta, como supos-
ta exposição há alguns anos sobre isto.[8] Termina aqui os apontamentos de Táta
Desta forma, essa linhagem não demonstra Kilumbu sobre essa suposta conexão entre
a feitura de vários outros Tátas que atuam Joãozinho da Goméia e a Quimbanda Nàgô,
dentro do escopo da Quimbanda Nàgô. Po-
demos inferir neste caso que a Quimbanda sendo seu trabalho de Quimbanda, assumi-
de Táta Londirá, provavelmente não era do por seus herdeiros, como Quimbanda de
Nàgô, mas assim como várias outras Quim- Angola.
bandas, usufruíram de conhecimentos da
Quimbanda Nàgô. Por outro lado, atribuir a própria funda-
Quimbanda, principalmente as mais anti- ção da Quimbanda no Brasil ao trabalho de
gas, não se preocupavam em endeusar pes- Mãe Ieda do Rio Grande do Sul é um des-
soas, pois o que é divino são os Exus. Desta
forma, muitas vezes não existe a ideia do pautério, uma busca por validação e a ten-
fundador de uma vertente de Quimbanda tativa de enfiar goela abaixo das pessoas
na forma de uma pessoa, [e se existisse é] uma narrativa construída a base de deso-
provável que ela tenha sido fundamentada
dentro de um coletivo. nestidade intelectual.[9] A Quimbanda da
Na Quimbanda de Almas, por exemplo, o im- Mãe Ieda não é, nunca foi e nem nunca será
portante é cultuar Exu Rei Omulu. Quem foi
o fundador encarnado? Não se sabe e isso tradicional. Trata-se de um fenômeno que
pouco importa. Quem fundou a Quimbanda nasceu no Rio Grande do Sul e está conec-
de Mussurumim? Não se sabe. Pode até vir a tado ao espírito ancestral daquela região.
ser descortinado isto com pesquisa históri-
ca, mas no cerne do que é importante para Podemos até dizer que essa Quimbanda da
a Quimbanda não está a figura do feiticeiro, Mãe Ieda tenha nascimento no Batuque. E
mas a dedicação e culto ao Exu Maioral da- qual o problema disso? Efetivamente ne-
quela Linha.
Desta forma, nenhuma das vertentes tradi- nhum, porque a história da Quimbanda está
cionais possui um registro formal de funda- vinculada a história da Umbanda. O proble-
ção. Quando há um exercício para dar a uma ma nasce quando um indivíduo tenta criar
religião a cara de um indivíduo, provavel-
mente isto é uma forma moderna (hodier- uma narrativa criacionista da Quimbanda e
na) de trazer o pensamento cartesiano para se coloca como o paladino incontestável da
dentro das práticas religiosas, visando dar Quimbanda no Brasil.
credibilidade ou homologar a existência do
culto, pelos olhos dos profanos.
Podemos exacerbar isso dentro do culto
de Nkisi: quem foi que começou o culto de APONTAMENTOS IMPORTANTES
Nkosi? Qual seu nome? Quem fundou o culto
a Ndanda Lunda (Dandalunda)? Quem fun- SOBRE A GÊNSESE DA
dou o culto a Gangazumbá? Ninguém sabe.
Registros históricos físicos são algo muito
QUIMBANDA E A MÃE IEDA
contestados pela historiografia moderna,
apesar de serem extremamente importan- Longe de nós desmerecer a importân-
tes. Entretanto, há um esforço da historio- cia que Mãe Ieda tem para o cenário reli-
grafia em não mais separar Pré-História e
História à partir da invenção da escrita, vis- gioso afro-brasileiro, o que queremos é a
to que muito povos não tinham sistemas de demonstração de que não se pode envere-
escrita, mas mantinham seus saberes por
dar por pensamentos enviesados tentando
[8] No livro de Diego de Osóssi, ele coloca como sucessão genuína contornar a veracidade das coisas, por mais
de Táta Negrão o Táta Kalunga, não levando em consideração que
este indivíduo teria sido expulso da corrente por Táta Negrão e,
que alguém seja realmente importante e
na época, publicamente exposto por Táta Malê e Táta Sigatana. Só
esse fato desabona toda a construção fantasiosa que ele pretende [9] O que é típico de uma parcela de novos autores ou “influen-
estabelecer entre Táta Londirá, seus herdeiros e a Quimbanda cers” de criar narrativas falaciosas na intenção de manipular a
Nàgô. verdade histórica.

18 Edição 09
tenha feito um trabalho edificante na sea- Desta forma, percebemos que a autora
ra espiritualista e religiosa afro-brasileira, Suziene David da Silva aponta que Mãe Ieda
esquecendo-se completamente de todos os é a precursora da Quimbanda afro-gaúcha,
anônimos que estão inseridos nesse cená- ou seja, restrita ao território do Rio Grande
rio e na história. do Sul e aos países vizinhos, denominados
Em dissertação de mestrado denomi- como região do Prata.
nada “A Quimbanda de Mãe Ieda: Religião Percebemos isso no excerto:
Afro-Gaúcha de Exu e Pombagiras”, postu-
lado por Suziene David da Silva para a Uni- “O objetivo deste estudo é apresentar uma
etnografia das religiões ‘afro-gaúchas”, prin-
versidade Federal de Pernambuco em 2008, cipalmente da ‘Quimbanda’. Para tanto, sele-
curso de Antropologia, podemos notar al- cionei uma ‘ casa de religião’ como referência
gumas questões que devem ser levantadas, de pesquisa, por tratar-se de uma sacerdotisa
reconhecida como uma das ‘precursoras des-
questões essas que dentro do livro citado ta modalidade religiosa no Rio Grande do Sul
de Diego de Oxóssi,[10] parece que foram es- e Países do Prata’”. (da Silva, Suziene David,
quecidas. 2008).
A começar do título que se denomina re-
ligião afro-gaúcha, ou seja, um recorte so- Com um pouco de leitura e interpreta-
cial e etnológico de uma parte da geografia ção vemos que a autora denomina Mãe Ieda
brasileira. Quando falamos de Quimbanda, como UMA das precursoras e não A precur-
não podemos nos restringir a um só ponto sora e ainda a limita ao espaço sulista bra-
geográfico, visto que a Quimbanda surge da sileiro. Inclusive mais a frente a autora des-
cisão (natural) entre as macumbas que irão taca uma fala da própria Mãe Ieda dizendo
resultar em Umbanda e Quimbanda, princi- que teve que procurar uma casa de Exu, ou
palmente das macumbas que ocorriam no seja, uma Quimbanda. Se ela foi a “criado-
Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo e ra” não teria como ir buscar algo que não
Minas Gerais. existia.
Esse tipo de discurso contrário é uma
[10] Os Reinos de Quimbanda e os Búzios de Exu. Arole Cultural, forma de validação de um mito e aconteceu
2023 com a Umbanda na figura de Zélio Fernan-

19 Edição 09
dino de Morais, procurando uma personali- veu, está amplamente documentado e tem
dade para se dizer criadora ou canalizadora diversas (milhares) de testemunhas ocu-
de uma sabedoria nova. Esse tipo de artifí- lares. O trabalho de Mãe Cacilda de Assis
cio é usado até hoje em busca de validação foi preparada no Terreiro Pai Benedito do
e em alguns casos em busca de garantir um Congo em Valença, RJ aos 15 anos, aproxi-
legado. Vemos isso ocorrer também na Um- madamente em 1932. O Assentamento de
banda, primeiramente com Zélio de Morais Seu Sete foi feito em 13 de Junho de 1938,
e seus muitos “escolhidos” como Pai Ronal- ou seja, 24 anos antes do “Seu Sete” de Mãe
do Linares,[11] sendo considerado o deten- Ieda ser iniciado.
tor da sabedoria de Zélio e da “Umbanda Em livro de Cristian Siqueira, “O Fenô-
Branca”, posteriormente com a sucessão de meno Seu Sete da Lira”, podemos verificar
W.W. da Matta e Silva por Rivas Neto,[12] a toda essa trajetória, inclusive podemos
sucessão de Rubens Saraceni por seus dis- até pensar sobre o nome do Seu Sete neste
cípulos, que não merecem ter o nome em caso. Conhecido como Seu Sete da Lira, de
destaque. fato seu nome religioso é Exu das Sete En-
Quando este tipo de movimento ocorre, cruzilhadas, Rei da Lira.
podemos perceber algo: “Existe uma ne- O que fazemos aqui não é, reforçando,
cessidade de se provar como sucessor e ter diminuir o trabalho e a importância de Mãe
essa legitimidade, pois chegada é a hora do Ieda, longe disto. Respeitamos esta perso-
mestre partir e do discípulo assumir”. nalidade pela mulher forte, independente
Se formos pensar em como a Quimbanda que cativou e difundiu os cultos afro-brasi-
se desenvolve, se ignorarmos toda a cons- leiros em diversos recônditos do sul do país
trução anônima, podemos refutar a afirma- e fora deste. O que queremos aqui é deixar
ção em livro já citado de que Mãe Ieda é a as coisas mais encaixadas, sem pensamen-
fundadora ou criadora da Quimbanda Tra- tos enviesados ou apropriados para um dis-
dicional, pois tradicional são todos os cul- curso que não se encaixa na realidade.
tos anteriores, que seguem uma determina- Também não há um discurso de “pure-
da métrica e uma determinada ritualística. za” sobre qual Quimbanda é melhor e qual é
Desta forma, as quimbandas conhecidas mais antiga. O que queremos demonstrar é
como Nagô, Mussurumim e Malei já são tra- que como todo fenômeno religioso, atribuir
dicionais por si só. uma figura para a criação e fundamentação
Há uma afirmativa de Mãe Ieda ser quem de um culto é ingênuo ou perigoso. Quan-
trouxe a Quimbanda por meio de seu Exu do restringimos o pensamento e falamos
Rei das 7 Encruzilhadas, porém no próprio sobre algo que não dominamos, devemos
site da ilustríssima Ialorixá percebemos nos informar minimamente para contra-
que ela, pelas mãos de Pai Eliseu de Ogum, por o que está apresentado. Dentro de re-
iniciou seus trabalhos espirituais na Linha ligião não cabe um discurso sobre “pureza”
da Quimbanda em 1962 com seu Exu, cari- e “origem”, apenas deve-se respeitar que o
nhosamente chamado de “Seu Sete”. sagrado tem sua própria forma de culto e
Entretanto, temos outro “Seu Sete” fa- que muitas vezes esse trabalho ocorre no
moso na história da macumba, lá no esta- coletivo e de forma anônima.
do do Rio de Janeiro, o famoso Seu Sete da
Lira ou apenas “Seu Sete”. Porém, o traba- Tata Nganga Kamuxinzela
lho fenomenal que Seu 7 da Lira desenvol-
Mestre de Quimbanda Nàgô e
[11] Existem muitas contestações da veracidade do encontro de
Zélio e Ronaldo Linares. Possivelmente ocorreu, mas há contes-
Quimbanda Mussurumin
tação sobre certa passagem de “baqueta”. Ronaldo encontra Zélio Cova de Cipriano Feiticeiro
quando este já está em seus últimos anos de vida, com idade avan- Contato para agendamentos, consultas
çada. A data do encontro é de 1970. Zélio desencarnara em 1975. A
Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade já não estava mais sobre e trabalhos espirituais:
o seu comando, mas a Cabana de Pai Antônio estava. instagram.com/tatakamuxinzela
[12] Cercada de polêmicas e acusações de várias partes. www.quimbandanago.com

20 Edição 09
Da esquerda para a direita: Tata Nganga Kamuxinzela, Tata Nganga Zelawapanzu e Mameto Mwanajinganga,
mestres de Quimbanda Nagô e Quimbanda Mussurumim
Prática Mágica Votiva:
O Uso de Oferendas
O entendimento primeiro que deve
haver, dentro das práticas mágicas dos
cultos afro-brasileiros, é a sua origem.
Em terras africanas, seja nas localida-
des da cultura Iorubá, Fon ou Banto,
encontramos similaridades na ideia de
saúde plena e bem-aventurança.
Porém, ao contrário do entendimen-
to ocidental, para manter uma boa saú- jam ele de saúde, falta de sorte, cami-
de não basta apenas estar equilibrado nhos fechados, para trabalhos de ataque
fisiologicamente, é preciso estar com a e defesa etc. -, o Kimbanda irá avaliar
energia vital e a ancestralidade em pro- como está a situação espiritual e se há
fundo equilíbrio. falta de Moyo em sua constituição. O
Quando tratamos sobre energia vi- Moyo é recuperado de várias formas,
tal, vendo pela ótica dos cultos como podendo ser por meio da alimentação,
Umbanda, Quimbanda e as muitas ma- da respiração, das vitórias em vida, das
cumbas, estamos nos referindo a uma alegrias, etc. Da mesma forma, pode ser
energia invisível, porém mensurável, perdido por má alimentação, por práti-
que permeia todos os seres vivos, seres cas abusivas, por dificuldades da vida,
inanimados e tudo que há na criação. por doenças físicas crônicas, por magia
Até mesmo os espíritos possuem essa e feitiçaria, por obsessões espirituais
energia vital, de uma outra maneira, de ou por irresponsabilidade própria.
uma outra forma e a prática do culto a O feiticeiro diagnostica a condição
ancestralidade é um modo de manter espiritual do seu consulente e deter-
viva, não só a memória, mas a possibi- mina o caminho que será traçado para
lidade de interação com ente querido o restabelecimento do indivíduo. Para
desencarnado, por meio das manifesta- essas práticas damos o nome de medi-
ções espirituais cinas espirituais, que implicam em de-
Esta energia tem diversos nomes, fumações, banhos de ervas, rituais de
conforme a cultura, mas de certa for- descarregos, Sakulupembas e oferen-
ma se refere a mesma ideia de energia das.
sustentadora da existência – material A oferenda é um dos caminhos prefe-
e espiritual. Os Iorubás chamam-na de ridos dos feiticeiros e isto parte do en-
Axé, os povos bantos chamam de Moyo tendimento da recuperação do Moyo. A
ou Nguzo. oferenda composta de diversos alimen-
Quando um indivíduo procura o tos - conforme é pedido pelos espíritos
Kimbanda[1] por diversos motivos - se- consultados por meio do oráculo - tem
[1] Kimbanda é o praticante com grau sacerdotal ou superior,
a capacidade de nutrir e equilibrar uma
também chamado de Nganga, que pode atender outras pessoas. situação, restituindo o Moyo perdido

22 Edição 09
por meio da troca entre a oferenda vo- imaginário popular, pelo famoso café
tiva e o indivíduo. Em muitos casos há a Santo Antônio ou São Benedito, por
a necessidade da imolação animal, tra- meio do pão dividido em seitas cris-
zendo para o consulente aquele “axé” tãs ou pela própria hóstia católica e na
do bicho, do sangue, da menga, para a “bebida para o Santo” que derrama-se
composição final da prática medicinal. ao chão, o famoso: “Primeiro Gole é do
Sejam oferendas para divindades, Santo”.
como para os Orixás, praticadas em Dentro da Quimbanda essa prática
Candomblés e na Umbanda, sejam as tomou outra forma e uma complexida-
oferendas para as entidades usuais de maior. Quando falamos de complexi-
dentro da Umbanda e da Quimbanda, o dade, não estamos inferindo que a prá-
propósito é sempre o mesmo: criar uma tica se tornou suntuosa ou inacessível,
onda de energia, uma onda de MOYO muito pelo contrário. A complexidade
que possa vir a ser absorvida para o se dá pelo aprofundamento entre os
propósito adequado. diversos elementos que podem ser usa-
Algumas pessoas questionam - prin- dos, mixando várias fontes de Moyo dos
cipalmente magistas cerimoniais - o três grandes reinos: mineral, vegetal
excesso de uso de alimentos dentro das e animal, criando assim uma alquimia
práticas de Quimbanda e Umbanda, mas profunda e sensível a cada caso.
a ideia é mal compreendida por eles. Desta forma não há como definir re-
A comida desempenhava – e continua ceituários, como por exemplo, vemos
desempenhando - um papel fundamen- nos Candomblés e Umbandas, onde os
tal em todas as sociedades fundadoras pratos são pré-definidos. Toda oferen-
das práticas espirituais afro-brasilei- da será montada mediante consulta
ras, seja pela raiz africana, seja pela raiz oracular, conforme a necessidade do
do povo originário e até mesmo dentro momento. É evidente que, em alguns
das práticas de bruxaria e feitiçaria po- casos, podemos encontrar entidades
pular, advindas da península ibérica. que deem preferência a uma determi-
Dar em oferta bebidas e comidas, como nada “receita ou fórmula” para manter
os atos de libação e oblação, sempre fi- equilibrada sua própria energia, mas
zeram parte da cultura religiosa e dos quando falamos em feitiço ou atendi-
feiticeiros. mento, esta mesma entidade pode alte-
Retirar da terra e devolver parte do rar a formulação do seu famoso padê.
que se retirou, permanece dentro do Tudo é definido de forma individual,
com um olhar preciso dentro da neces-
sidade do consulente, com responsabi-
lidade e verdade.

Tata Nganga Zelawapanzu


Sacerdote do Templo de Quimbanda
Cova de Tiriri
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23 Edição 09
Quimbanda: Um Grande Arcano

Quando se analisa o cenário espiritu- culto e da prática de feitiçaria, sem muita


alista brasileiro atual, percebe-se o gran- interferência de outras práticas.
de avanço que a Quimbanda está obtendo. Pode-se analisar as coisas sob uma
Antes, a Quimbanda, era vista como uma perspectiva histórica, partindo desde o
prática fechada, restritiva e inatingível. primeiro contato do homem original des-
Quem ouvia falar sobre Quimbanda, ge- te continente, que hoje chamamos Améri-
ralmente, ouvia histórias fantasiosas e ca, com o primeiro africano trazido para
cheias de erros conceituais sobre o que, cá, como mão de obra escravizada. Dize-
de fato, a Quimbanda é. mos que, nesse primeiro encontro, a quí-
Contudo, com o advento da Internet e mica se formou e a Macumba nascia. Mas,
a velocidade com que as informações são claro que nada ocorre do dia para noite.
disseminadas, podemos ver hoje, uma As raízes das práticas religiosas afro
grande variedade de conhecimento sendo -brasileiras se nutrem de três pilares bá-
aberto ao público, permitindo que encon- sicos originalmente:
trem as tradicionais casas de Quimbanda 1. O pilar indígena, com seus muitos
um pouco mais receptivas. povos e culturas.
Esse movimento é importante – e ape- 2. O pilar africano, com a inclusão, a
sar de alguns não gostarem – é impossível princípio, do conhecimento banto
de ser freado. Mas, mesmo com a divulga- e, posteriormente, do conhecimen-
ção de parte do conhecimento, muito das to Iorubá.
informações e tradições, principalmente a 3. O pilar europeu, com a feitiçaria
do eixo central da prática, continua vela- ibérica e a prática do catolicismo
do a seus iniciados, conforme galgam seus popular. [1]
graus de progresso dentro da tradição es- [1] Quando falamos sobre catolicismo popular nos referimos a
colhida. prática de uma religião que geralmente era sincrética, supers-
ticiosa e que foge das bases de ensino da igreja Romana. Desta
Esse segredo tão bem defendido pelos
forma não está imputada a essa prática popular qualquer regra
quimbandeiros, desde muito tempo, tem ou dogma que permeia a cultura Católica Apostólica Romana e de
um motivo de ser: preservar a forma do suas irmãs cristãs.

24 Edição 09
Obviamente, os povos indígenas, na- ginário de nosso continente, tendo sido
tivos deste país, conheciam as ervas, as introduzido com a vinda europeia, mas
divindades, os animais, os venenos, os an- foi absorvido pelo povo Guaicuru e prati-
tídotos e toda sorte de farmacologia que camente se tornaram mestres na arte de
existia nas matas desta terra, que chama- equitação.
mos de Brasil. Da mesma forma, os povos O que queremos demonstrar é que a
africanos também tinham seus conheci- troca entre culturas e a reinterpretação
mentos, passados por meio religioso, mas das práticas mágico-religiosas sempre
principalmente através do conhecimento aconteceram e continuam a ocorrer até
familiar. hoje. Esta era uma forma de manter a tra-
Quando do processo de escravização, dição viva, a outra opção era se curvar ao
os africanos trazidos forçadamente para processo de catequização e esquecer com-
as terras brasileiras, encontraram indíge- pletamente sua origem (o que muitos, in-
nas, a princípio nas senzalas, mas poste- felizmente, fizeram).
riormente nos Quilombos - há claro enten- Mas quem resistiu – a resistência – ca-
dimento que muitos indígenas eram guias pacitou-se a criar vários outros métodos
para as fugas que ocorriam, mostrando de práticas, que denominamos academi-
os melhores caminhos. Dessa interação, camente de Calundus. A palavra calundu
surgiu a troca entre questões basilares provém do quimbundo kilundu, que sig-
daquela vivência, asso, como nas questões nifica uma alma de alguém que não está
religiosas e mágicas. mais encarnado que, possuindo o corpo
Os africanos, apesar de todo o arca- de outrem, o transforma em alguém mal
bouço de conhecimentos, sabiam que es- -humorado, nostálgico ou tristonho. Essa
tavam em terras estrangeiras, com deu- era a visão que alguns tinham do proces-
ses estrangeiros, com fauna estrangeira, so de transe mediúnico. Porém, o Calundu
com flora estrangeira. Assim, práticas fei- nunca foi uma religião com conhecimento
tas em terras africanas eram impossíveis centralizado, muito longe disto.
de serem reproduzidas, de forma tradicio- Podemos dizer que existiam diversos
nal, nessas novas terras, necessitando se- calundus ou que calundu era uma forma
rem adaptadas ou ressignificadas. Então, genérica de se definir as práticas reli-
nesse momento, há a troca de informação giosas que envolviam o transe mediúni-
entre esses povos, para criar essa nova co para contato com a espiritualidade, o
sistemática, como uma forma de manter êxtase espiritual e o uso de fetiches para
acesa a chama da religiosidade original, alcançar propósitos mágicos. Então, po-
mas sabendo que não havia como se prati- demos nos referir a diversos calundun-
car exatamente a mesma coisa. zeiros, mas nunca a um Calundu original
Isso também ocorre com os povos in- e basilar.
dígenas, aprendendo com os africanos e Uma vez que não existia um sistema
com os europeus, afinal os portugueses centralizado, não temos como definir se
trouxeram diversas plantas e animais esses sistemas se modificaram e quem
que não eram encontrados nestas terras, gerou, inicialmente, outros sistemas ba-
como por exemplo as ervas mediterrâne- seados nos calundus, como é o caso dos
as, vários tipos de especiarias e temperos diversos Candomblés e da Cabula.
e por que não falar sobre o próprio cavalo Candomblé é um termo que muitos
e a pólvora? conhecem hoje e que, por vezes, é utili-
Os indígenas, chamados Guaicurus, zado como sinônimo de prática religiosa
eram conhecidos por serem exímios cava- afro-brasileira. Claro que isso é uma vi-
leiros, montando os cavalos roubados dos são extremamente restritiva sobre o uni-
portugueses, sem sela, mas com grande verso mágico e religioso brasileiro, prin-
maestria. O cavalo não é um animal ori- cipalmente porque muitos ao falarem de

25 Edição 09
No sistema de prática da Cabula, o
sacerdote recebia o nome de Embanda e
este era auxiliado pelo cambone. As reu-
niões eram chamadas de engiras e nessas
incorporações os espíritos se apresenta-
vam como tatas.
Claramente vemos uma grande asso-
ciação com o que hoje vemos na Umban-
da, mas não podemos determinar, com to-
tal certeza, que a Umbanda e Quimbanda
provenham diretamente da Cabula, mas
apenas que elas têm raízes similares.
candomblé associam-no imediatamente
De certa forma, todo esse movimento
as práticas do culto de nação Ketu, que foi
espiritual e cultural acaba gerando ou-
mais estudado academicamente e, desta
tros movimentos, novas iniciativas, novas
forma, mais difundido entre a população
perspectivas do culto aos ancestrais, as
que não era “do santo”.
divindades e as práticas litúrgicas e má-
Mas, a própria palavra Candomblé pro-
gicas. Esses amálgamas que eram forma-
vavelmente surge do termo quimbundo
dos, vez ou outra entravam em erupção e
Kiandombe, que tem etimologia contro-
surgiam um novo tronco religioso, como
versa [2] sendo, muitas vezes, usado para
as práticas das Macumbas Cariocas e
representar o povo negro ou para definir
Paulistas. Apesar do termo Macumba es-
uma forma de dança ritmada por tambo-
tar muito mais associado as práticas que
res. Se a prática possui um nome de ori-
ocorriam nos morros cariocas após a abo-
gem banto, como ela pode ser associada
lição da escravatura, podemos dizer tam-
ao povo Iorubá? Pelo emprego da palavra
bém, por sinergia, que práticas similares
em meio a população que acaba perdendo
já aconteciam em outros grandes centros,
o sentido original, mudando sua forma de
onde as mãos de obra africana e afro-bra-
pronúncia e até mesmo sua grafia, geran-
sileira haviam sido exploradas de alguma
do uma nova significância. Hoje, ao falar
forma, como no Estado de São Paulo.
Candomblé, não vemos uma dança de ba-
Na Macumba temos relatos de que en-
tuques (apesar de ter danças ritmadas por
tidades que se apresentavam como cabo-
batuques), mas uma religião completa.
clos, pretos-velhos e outras mais enér-
A Cabula é outra estrutura religiosa
gicas - alguns chamavam Gangas e Exus
interessante, sendo a sua maior penetra-
-, se mostravam misturadas. Em uma
ção no atual estado do Espírito Santo, mas
mesma sessão – engira – era possível ver
temos registros de práticas similares na
um preto-velho rezando para Jesus e um
Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São
Ganga maldizendo o nazareno. Enquanto
Paulo. A Cabula, para muitos, é vista como
em uma consulta eram versados salmos
a avó da Umbanda e Quimbanda atuais.
e provérbios, em outra o ganga baforava
O termo Cabula também tem etimologia
um grande charuto embebido em marafo,
controversa, sendo que Nei Lopes consi-
enquanto sacrificava um bicho para que
dera duas definições principais.
uma injustiça fosse vingada.
O termo poderia ser derivativo do qui-
A macumba, de certa forma, foi a ver-
congo kimbula que determina uma enti-
dadeira mãe da Umbanda e da Quimban-
dade espiritual aterrorizante, que mete
da, mas não foi uma geração espontânea.
medo ou de kambula, que significa o des-
Muitos indivíduos de classe média, prova-
falecimento (transe ritual).
velmente brancos e com uma certa instru-
[2] Para maiores informações consultar o Novo Dicionário Banto ção escolar que não era acessível a toda
do Brasil de Nei Lopes. população, provavelmente pegaram as

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instruções e as práticas de macumba e as fora abandonada e até mesmo difamada e
adaptaram a sua própria visão de mundo, perseguida.
o que muitos chamam de embranqueci- Sobra para um conjunto de pensado-
mento da macumba. res e religiosos, principalmente de origem
Esses homens brancos, com destaque afro-brasileira, novamente resistir a essa
social, de classe média e com acesso à in- questão e formar núcleos de divergência,
formação, por meio da literatura, definiam como ocorre com o Tata Tancredo da Sil-
novos termos de negócio para as práticas va Pinto e o Omolokô, mas também ocorre
religiosas e que culminam na Umbanda com os polos de famílias de Quimbanda
do século XX, principalmente a Umbanda que começavam a surgir.
Branca e de Demanda de Zélio Fernandino De certa forma coube, aos que não con-
de Morais, a Umbanda Mirim (Esotérica) cordavam com o embranquecimento das
de Benjamim Figueiredo (Caboclo Mirim e raízes litúrgicas da macumba, a missão
Primado de Umbanda) e a Umbanda Eso- de manter, resistir e perpetuar o saber
térica de W.W. da Matta e Silva, que tem original. Desta forma, podemos dizer que
um apelo muito focado no eurocentrismo, a Quimbanda é a grande depositária dos
principalmente dentro do entendimento saberes da Macumba, em suas práticas,
ocultista esotérico, da introdução de co- formas, liturgias e abrangências.
nhecimentos de cabala e principalmente Incumbiu-se a Quimbanda, por meio de
da associação com o espiritismo francês suas linhas e famílias, tentar formalizar
que entrava no país por meio dos filhos sistematicamente um culto e suas práti-
das pessoas abastadas, que voltavam de cas e por meio da transmissão tradicional
seus estudos na Europa com os livros de de boca a ouvido, por meio iniciático, fa-
Allan Kardec a tiracolo. zer com que esse saber não se perdesse ou
Devemos nos lembrar que a prática do fosse alterado a bel prazer da sociedade,
espiritismo ou protoespiritismo era uma que ansiava por ter os domínios das práti-
diversão da alta sociedade e não tinha cas de feitiçaria do povo brasileiro.
cunha científico ou religioso a princípio. Claramente que podemos dizer que
Tudo não passava de uma forma de di- existia uma “Kimbanda” original em ter-
versão nos grandes salões após os bailes ras africanas, mas que não exatamente é
e jantares, que posteriormente seria es- a mesma forma litúrgica e, nem sequer,
tudado pelo pedagogo francês Hyppoli- tem a mesma função. Em terras de cultura
te Léon Denizard Rival, que assumiria o banto, podemos observar a presença dos
pseudônimo de Allan Kardec para publi- Kimbandas, como feiticeiros, curandeiros
cação de suas obras. e conselheiros. Estes Kimbandas pratica-
Mas, nessa movimentação grande, par- vam a Mbanda ou Umbundu, que significa
te de práticas antes tidas como comuns um conjunto de práticas de cura.
foram sendo afastadas dessa Umbanda O feiticeiro, como vemos hoje na Quim-
do Século XX. Os exus deixaram de baixar banda brasileira, que comunga com Exus
constantemente, sendo submetidos as or- (termo iorubá) - que são na verdade an-
dens dos caboclos e pretos-velhos, prin- tepassados divinizados (ngangas, termo e
cipalmente os que tinham uma carga ca- ideia banto) por meio do processo sacrifi-
tólica muito grande. Os santos que antes cial e votivo e que tem seus receptáculos
eram vistos como manifestações sincréti- de poder por meio de assentos ou assenta-
cas começam a se tornar mais importante mentos (entendimento nagô[3] e em partes
do que as forças que os representavam. O banto) -, só vem a surgir de fato em terras
fetichismo e os transes com grande vigor, brasileiras.
começaram a ser coibidos e a prática da
imolação animal, do sacrífico religioso
[3] Nagô aqui é usado como sinônimo de Iorubá.

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cada vez mais distanciado das práticas de
terreiro, focando mais no entendimento
religioso sincrético – o que não era pos-
sível ser de outra forma – mas, princi-
palmente no culto a ancestralidade, res-
peitando o saber dos que vieram antes e
fundamentaram o que hoje temos.
Então, não é difícil de ver em perspec-
tiva abrangente que a Quimbanda, surgin-
do da Umbanda e como uma resistência a
uma Umbanda espírita-cristã, se afasta
originalmente, para hoje se reaproximar,
mas dessa vez trazendo seus conhecimen-
tos para serem acrescentados dentro das
práticas de terreiro, resgatando assim o
entendimento de uma Macumba Brasilei-
ra original.
Eu vejo em minhas práticas, desde o
começo do meu andar, Exus misturando-
se com caboclos em atendimentos, assim
como pretos-velhos e caboclos sem carga
Justamente por essas questões, a
cristã misturado com pretos-velhos por-
Quimbanda antigamente era fechada. Evi-
tando terços e rezando o credo.
tando assim, que seus ensinamentos e co-
Não tenho como definir se isso seria
nhecimentos fossem conspurcados e dete-
positivo ou negativo, apenas dizer que
riorados. Porém, hoje em dia, o que muito
está acontecendo e que se opor a algo que
percebo é um avanço em busca de conhe-
parece um movimento natural de reapro-
cimentos tradicionais[4] e que este resgate
ximação é, no mínimo, perda de tempo.
é mais do que nunca necessário para todo
Claro que as famílias de Quimbanda irão
sistema de macumba.
continuar com seu pensamento e sua tra-
Dentro da minha perspectiva a Umban-
dição e não poderia ser diferente, pois
da – de forma geral, apesar de terem casas
se um dia foi perdido, o que garante que
bem tradicionais, que não seguem estrita-
não será novamente? Então, devemos nos
mente postulados da Umbanda Branca e
manter atentos, mas a atenção também
da Umbanda-Espírita – sente a necessida-
implica em ser inteligente, para entender
de de fundamentos reais e de sua própria
que algumas dessas aproximações podem
raiz. Vejo a Quimbanda, que, antes era o
gerar bons frutos, como o ressurgimento
repositório sagrado desses conhecimen-
da Macumba.
tos, se abrindo para trazer de volta a prá-
Nguzo ê Quimbanda!
tica de Macumba, como ela deveria ter se
mantido e, de certa forma, resgatar sabe-
res perdidos até mesmo dentro das casas Tata Nganga Zelawapanzu
de Umbanda. Sacerdote do Templo de Quimbanda
Hoje, muitas Umbandas resgatam o Cova de Tiriri
sacrifício animal para divindades e enti- Agende seu atendimento espiritual e
dades, - não só para o Orixá Exu e os Exus consulta oracular em
-Entidades-, como parte de suas liturgias.
www.oraculodeexu.com.br
Vemos que o discurso cristianizado está
[4] Vemos isso com um grande volume de pessoas procurando ini-
ciações em Ifá, Culto Tradicional Iorubá e a própria Quimbanda.

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Idealizadores

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