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VIOLÊNCIA E LIBERDADE COMO PARTES DE UMA DICOTOMIA

CRÔNICA

A violência tem sido, até os dias de hoje, um importante fator a se


pensar nas relações entre Estados. Ela vem moldando a forma como a
sociedade global vem se estruturando e vem se opondo cada vez mais à
liberdade. Liberdade essa que tem se tornado um dos direitos humanos
fundamentais, mas que tem sido ameaçada pela violência que está cada vez
mais presente.
Para Jean-Jacques Rousseau não há liberdade sem o contrato social.
Aqui, o Estado que coordena força e poder, sendo que no pacto dos homens
em um estado natural a lei válida é a lei do mais forte, prejudicando assim a
liberdade. Rousseau dizia que a união com outros seres humanos limitaria a
liberdade. Por isso, é preciso dosar corretamente a força e a liberdade, que são
meios fundamentais para a conservação da raça humana. Isso seria feito
através do contrato social, no qual os homens alienam os seus direitos em prol
do todo, produzindo assim o Estado como forma de executar as vontades
coletivas. O poder do Estado é a síntese das vontades dos indivíduos que o
compõem.
De acordo com Samuel Pufendorf, há um princípio imutável de Direito
que não se modifica com tempo e espaço. No estado natural, as leis naturais
são leis que a razão encontra ao analisar a constituição íntima da natureza
humana. Essa constituição é a manifestação do caráter social dos homens.
Para ele, a lei fundamental do Direito natural é a busca por uma sociedade
pacífica. Contudo, a violência ainda tem estado presente em todos os tipos de
sociedade.
Segundo Hannah Arendt, a violência tem um caráter instrumental. Ela
diz que a violência surge quando há uma ameaça ao poder. Nas relações
internacionais isso pode ser entendido como uma presença de um Estado que
ameaça a soberania de outro. Quando há divergência entre Estados, não há
possibilidade de recorrer a uma instância superior, pois o Estado é a maior
autoridade. Quando há conflito, ele recorre ao princípio da autotutela, usando a
guerra como ferramenta. Assim nasce o estado de guerra, partindo do direito
da guerra e perpetrado pela violência.
De acordo com Hegel, a violência é advinda do mal que já está presente
no indivíduo pré-social. O próprio surgimento da política foi um importante
marco para a formação da sociedade, porque se pauta na relação indivíduo -
Estado. Aqui nasce uma ideia da lei como uma forma de se expressar a
vontade humana individual de forma coletiva. Na análise de Rodrygo Macedo,
em sua tese sobre Guerra e Estado em Hegel, a Vontade é como se fosse um
movimento saindo do abstrato para o concreto, sendo a corporificação da ética
presente no plano das Ideias através do ser humano, portador da vontade
racional. Isso significa que a individualidade das vontades se torna plural na
medida em que a vontade se torna representação.
Isso implica em conflitos nas microrrelações de poder. Em Microfísica do
Poder, Michel Foucault disserta sobre a importância das relações de poder
presentes nas microrrelações da sociedade. Como elas influenciam em escala
macroscópica. Exemplificando, nas relações internacionais, as tensões entre
Estados são basicamente a ampliação das microrrelações entre seres
humanos de forma individual. Ao se tornarem macroscópicas, essas relações
conflituosas resultam na violência da guerra, que é advinda da violência dos
homens de forma individual.
O Estado se torna um macrosujeito proveniente da junção das vontades
individuais (MACEDO, 2016). Juntamente, para Pufendorf, a vontade do
Estado é a soma das vontades individuais. Inclusive, em sua visão
transpersonalista, o Estado é um ente moral, e é separado das pessoas que o
compõem. Infelizmente, as microrrelações têm mostrado a violência cada vez
mais presente nas interações entre os homens. Há uma violência absoluta que
se mostra nas sociedades sendo apenas um reflexo de uma violência já
presente no pensamento ao se efetivar em ação. Na materialização da
Vontade, anteriormente citada, toda a violência presente em caráter incorpóreo
se materializa e influi diretamente nas relações Estatais.
O problema da fundamentação microscópica é a ampliação das mazelas
negativas em uma sociedade constituída em boa parte de violência. Onde
surge a violência, surge um contraponto: a busca da libertação dessa violência.
A liberdade, que nasce como um oposto a essas interações conflituosas,
sempre foi ameaçada por elas.
De acordo com Norberto Bobbio, a modernidade surgiu como a “era dos
direitos”, despontando entre todos eles a liberdade. Para ele, a liberdade é um
direito humano fundamental, mas que não pode ser interpretada. Contudo, em
sua própria definição, a liberdade se trata da liberdade de se pensá-la de várias
formas. Ela muda, e se ressignifica ao passar das eras, muda conforme o
contexto histórico. E ela juntamente com os direitos naturais pode ser vista
como um dos principais indicadores de progresso histórico (BOBBIO, 1992).
Quando alguns direitos fundamentais como a liberdade são negados,
viola-se a natureza humana, efetivando a violência no lugar direito. E pode-se
afirmar que a questão dos direitos é preponderantemente política e econômica.
Segundo Castor Bartolomé, o que os afetam são “as estruturas econômico-
políticas de miséria, exploração, exclusão, guerras, desigualdade,
autoritarismo, etc...”. A forma como a sociedade vem se estruturando tem
colocado em xeque tais direitos, e isso vem refletindo no aumento da violência
na sociedade.
Em uma análise feita pelo jornal Zeit, intitulada “Die Freiheit geht um
Thailand, Belarus, Hongkong”, a busca pela liberdade é posta como principal
motivo pelo qual protestos têm eclodido no mundo inteiro. À época da
reportagem ocorreram no mundo diversos protestos, por meio dos chamados
“fermentos revolucionários”, nos quais as populações foram às ruas protestar
contra seus governos. Chegou-se a conclusão que esses movimentos
certamente interagiam, de uma forma curiosa: psicologicamente. Quando um
povo decide ir contra a opressão violenta do Estado, ela incentiva outras a
lutarem por sua liberdade. A força dos movimentos dá força a populações
oprimidas pelo medo. Quando uma manifestação acontece, ela fomenta outras
e cria um ambiente propício para tal. Outro fato interessante é como elas se
influenciam na forma como protestam. A máxima “seja como a água” dos
chineses influenciou também como forma de protesto. Essa estratégia consistia
em dar certa fluidez nas manifestações, nas quais os protestos eram
descentralizados, espaçados e “quebráveis”, como a água.
Além disso, esses protestos mostram para o mundo motivos pelos quais
vale a pena protestar; motivos legítimos. Como já questionado, o ser da
liberdade se encontra em constante mudança a partir dos conceitos históricos,
isso significa que entender o que é a liberdade ainda é um desafio, e não se
sabe certamente o que é opressão do Estado e o que não é. Quando uma
população insatisfeita com determinada situação observa outro povo lutando
contra a mesma situação em seu Estado, ela ganha força e se inflama contra o
fato ou atitude do próprio Estado.
O grande problema dos casos em que o opressor é o próprio Estado, é
que é ele quem deveria assegurar a liberdade. O impasse se instala quando o
Estado tenta assegurar a liberdade, mas usando como ferramenta a violência.
O mal do indivíduo pré-social está presente, e as microrrelações que formam o
Estado se movimentam em caráter violento. Busca-se o equilíbrio entre o mal
das microrrelações que derivam da própria natureza humana e vontade, que é
uma das estruturas básicas do mundo quando se efetiva em representação.
Nas palavras de MACEDO:
“Compreendendo que a gênese da violência se dá
pela existência do mal no indivíduo pré-social,
empreendeu-se a tentativa de identificar quais os
elementos que permitem admitir o Estado como
assegurador pleno da liberdade sem que a guerra fosse
utilizada na sua prática política. No método dialético de
Hegel encontrado na Filosofia do Direito, na
Fenomenologia do Espírito, na Constituição da Alemanha
e na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, a efetivação
da liberdade é acompanhada por contingências, entre
elas a violência (da guerra), que vem associada à
vontade, fonte do direito e da ação do ser humano no
mundo. O Estado, como pessoa moral formada por
indivíduos, se encontra em um impasse: preservar a
liberdade e eliminar as suas negações sem extirpar a
vontade.”

Isso significa que na busca por efetivação da liberdade o Estado


encontra entraves por a violência estar no meio do caminho. É preciso
encontrar um equilíbrio entre garantir a liberdade e conter a violência, mas de
forma a não cancelar a vontade, que é substrato.
Ademais, outro importante questionamento a ser retomado é o que é a
liberdade no atual contexto histórico e a quem essa liberdade atinge. O Estado
é garantidor dessa liberdade, como de todos os direitos fundamentais.
Contudo, nem todos os direitos são garantidos a todas as pessoas. Isso se faz
presente no cerne da própria sociedade segregacionista.
Não é de hoje que sabemos que muitas pessoas ainda não possuem os
direitos fundamentais. Giorgio Agamben disserta sobre o famigerado “estado
de exceção”. Um período de uma anomalia constitucional diante de uma
situação especifica e extraordinária. A soberania do Estado pode encontrar
algumas instabilidades e nesse ponto Estado e povo começam um embate. A
estrutura sociopolítica se encontra em conflito e a resposta do Estado a essa
situação é a instauração de uma deturpação da ordem jurídica e
consequentemente a consumação da violência. Segundo Agamben,

“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse


sentido, como a instauração, por meio do estado de
exceção, de uma guerra civil legal que permite a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas
também de categorias inteiras de cidadãos que, por
qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema
político. Desde então, a criação voluntária de um estado
de emergência permanente (ainda que, eventualmente,
não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das
práticas essenciais dos Estados contemporâneos,
inclusive dos chamados democráticos.”

A exemplo dessa situação abnormal foram os estados instaurados às


épocas do nazismo, facismo, salazarismo e o próprio Estado Novo. Esses
estados se mostraram deveras emblemáticos, e como apenas projeções de
seus próprios soberanos instauradores. Seus ideais eram postos como lei, e o
povo era obrigado a se sujeitar.
O estado de exceção tem se tornado um paradigma político. Podendo
ser visto como o uso do Direito pelo Estado para restringir os direitos de
determinada população. Um decreto que possui força de lei e produz a
sobreposição do executivo ao legislativo. Isso coloca em xeque toda a estrutura
da democracia; e ao ser uma garantia de proteção constitucional, ele se torna
sua ameaça.
O estado de exceção encontra imbróglios na sua estrutura legal. Não se
sabe como entendê-lo, sendo como um ato político ou jurídico. Os direitos
fundamentais são garantidos pela constituição, mas são negados nesse
estado. Se for um ato jurídico, como resolver esse impasse, da constituição
sobrepondo-se a si mesma. Garantir direitos privando uma população de tê-
los? Caso seja um ato político, o estado de exceção não passa de uma
ilegalidade. Mas como prová-la juridicamente, sendo que esse ato político tem
força de lei?
Esses foram os questionamentos feitos por Agamben. Ele observou que
o que levava a esse estado era a necessidade. Um princípio que interpreta
como lícita a sobreposição da lei por necessidade. Isso causa a ruína de todo o
ordenamento jurídico, que ao tentar se proteger, nega a si mesmo. A iminência
de perigo é usada como motivo para suspensão de direitos e uso da violência
pelo Estado sem respaldo na lei.
Ademais, ele identificou que esse estado seria propínquo ao Direito, mas
também à política. Ele se tornava um dilema constitucional ao ser um
mecanismo de defesa da ordem com práticas totalitárias. Ele defende a
democracia infringindo-a.
Na teoria constitucional, esse estado não passa de um estado anômalo.
Uma reação a uma situação extraordinária. Contudo, segundo Walter
Benjamin, o estado de exceção é uma regra. Ao longo da história a opressão
sempre esteve presente. O sistema jurídico possui o monopólio da violência,
pretendendo basicamente perpetuar-se. Ele também questiona a difícil missão
em que o sistema jurídico se alicerça, a concórdia entre os fins universais e as
situações particulares das microrrelações. Para ele, essa estrutura já é um
estado de exceção. O Direito se encontra na região limítrofe entre a lei e sua
realização.
Outro questionamento que ele faz é da impossibilidade de definir o que é
certo ou errado através da linguagem. Usamos línguas vivas, que estão
sempre em transformação. Segundo Ludwig Wittgenstein, a linguagem pode
ser definida a partir de sua relação com a realidade. A verdade seria uma
correspondência entre a linguagem e a realidade. Pode-se afirmar que há um
isomorfismo entre a linguagem e o real, isto é, pode-se afirmar que a forma
lógica ao qual a linguagem é estruturada se equivale à forma a qual a realidade
em si se estrutura. A importância disso está na dificuldade do Direito em decidir
os conflitos pela já citada incapacidade de definir o que é certo ou errado, pelo
caráter fluido da linguagem.
Uma das implicações desse dito estado de exceção perpétuo seria a
segregação das minorias. O próprio Agamben dissertou sobre a existência das
“vidas nuas”, indivíduos condenados à subsistência. Vidas que não “existem”
no plano da linguagem; vidas com uma inexistência útil. Essas pessoas, os
marginalizados da sociedade, possuem uma existência condicionada a
consciência conveniente do Estado. O estado de exceção propõe a existência
dessas pessoas de forma grupal; sua singularidade é suprimida.
Eduardo Galeano propôs a ideia de rituais de adequações das pessoas
marginalizadas. Os rituais feitos pela própria sociedade eram basicamente
transformar essas pessoas em pessoas úteis, ou seja, transformar sua
existência em existências convenientes ao Estado ou simplesmente expulsá-
las do campo de atuação da sociedade, marginalizando-as nos confins da
ordem social. Esses rituais interferem na forma como o Direito atinge as
pessoas, falhando com sua máxima de igualdade.
Atinente ao Direito, Walter Benjamin questionava a violência se
contrapondo a liberdade como constituinte elementar do Direito. Segundo ele,
as relações de poder da sociedade interferiam no cerne do próprio Direito. Ele
dizia que “a lei se mostra ameaçadora como o destino, do qual depende se o
criminoso lhe sucumbe”. Isso significa um destino travestido de Direito; um
determinismo presente na lei derivado do ideal de punições. Seria uma ideia
mítica de que o Direito deriva da concepção de destino.
Nas relações macroscópicas de poder, a violência se faz presente no
Direito ao determinar o futuro de um Direito. No caso do Direito à vida, este é
ameaçado pela pena de morte. O Direito se alimenta do poder de decidir entre
vida e morte. Isso é visto por Benjamin como “um elemento de podridão dentro
do Direito”, que é quando a lei se torna tão cruel quanto a própria realidade. A
violência do Direito se sobrepõe ao seu caráter de proteção e a restrição da
liberdade do indivíduo é o primeiro sintoma dessa violência legal.
Destarte, diante do supracitado, denota-se a importância da relação
entre violência e liberdade para a estruturação da sociedade e do próprio
Estado. Ao se oporem, elas funcionam como um motor que move as
engrenagens sociopolíticas. Contudo, também estão interligados, pois na
busca da liberdade, encontra-se o instrumento violência como principal
ferramenta nessa busca. E, seja na incessante busca por liberdade ou nas
questões conflituais entre Estados, a autopreservação – ou autopreservação do
Estado – se torna o sentimento preponderante das entidades racionais. Tanto
que se sobrepõe ao outro; a alteridade é excluída do plano da existência
conveniente, e, portanto, manifesta-se a necessidade de violência como forma
de extirpar a alteridade e trazer ao plano da realidade o uno. A vontade passa a
querer eliminar o dito inimigo. Eis o estado de guerra; eis a própria guerra.

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