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Ecologia Humana e Etnobotânica

Etnobotânica de pescadores artesanais: desde o uso da diversidade de


plantas ao manejo da agrobiodiversidade

N. Peroni et al. Artisanal fishers’ ethnobotany: from plant diversity use to


agrobiodiversity management. Environment, Development and Sustainability journal.
Springer Science+Business Media B.V. 2008.

O estudo objetiva caracterizar a diversidade das espécies vegetais utilizadas


pelos pescadores tradicionais Caiçaras, da costa do estado de São Paulo. Diferentes
níveis de manejo são considerados; assim, são utilizadas duas aproximações: desde as
ações menos intensivas de manejo - como a extração de produtos da floresta - até as
ações mais intensivas - através do cultivo da agrobiodiversidade.

Estudos etnobotânicos anteriores demonstram um rico conhecimento


ecológico tradicional em duas comunidades na costa sul do estado de São Paulo: 272
espécies botânicas conhecidas e utilizadas, a maioria nativa da Mata Atlântica.
Ainda, de acordo com o nível de manejo dos recursos vegetais, pode haver uma
diversidade particular. No estudo em questão, foram encontradas 68 variedades de
mandioca (Manihot esculenta Crantz) na região norte do estado e 58 no sul,
resultantes de agricultura de caráter biodinâmico.

O termo agrobiodiversidade refere-se ao contexto da influência humana sobre


espécies de cultivares. Sistemas agrícolas tradicionais de manejo da
agrobiodiversidade caracterizam-se pela elevada diversidade infra-específica, sendo
poli-específicos e poli-variados. Os principais mantenedores da agrobiodiversidade
são, justamente, os indígenas e agricultores tradicionais, os quais preservam a
diversidade de espécies e as práticas que permitem sua continuidade e evolução, com
a geração de novas variedades. Estudos etnobotânicos reforçam a importância do
conhecimento etnoecológico para a conservação de espécies e para seu uso como
recursos locais. Porém, o princípio ecológico que sustenta tais relações entre
comunidades tradicionais e plantas é ainda pouco compreendido. Assim, o uso local e
o manejo de espécies serve como modelo para a compreensão de como se dá a
conservação da diversidade genética.
O trabalho de campo do referente estudo, com duração de oito anos, abrangeu
cinco comunidades da costa norte do estado de São Paulo e dezesseis comunidades
da costa sul. A coleta de dados se deu através de questionários e de uma abordagem
participativa na pesquisa de plantas. Entrevistas sobre a diversidade inter e intra-
específica, cultivo, origem e tempo de uso dos cultivares forneceram dados sobre a
agrobiodiversidade nas diferentes comunidades. Além disso, entrevistas com
membros das unidades familiares contribuíram para o conhecimento sobre como os
agricultores percebem e categorizam as variedades de plantas. O critério utilizado
para definir "unidade familiar" foi o uso do mesmo sistema de produção por mais de
cinco anos.

Quanto aos dados etnobotânicos, foram obtidos através de entrevistas com


informantes-chave, que indicaram as espécies conhecidas e utilizadas, os locais de
ocorrência e emprego das plantas. Tais informantes foram identificados pelos
habitantes entrevistados como os mais experientes no conhecimento de plantas nas
comunidades em questão. Não foram encontrados agricultores tradicionais na porção
central da costa do estado de São Paulo.

A subsistência dos Caiçara depende diretamente dos recursos provenientes da


Mata Atlântica, sendo o sistema vigente de produção baseado no conhecimento
indígena local. Historicamente, a atividade agrícola dos Caiçaras é baseada no cultivo
de roças para subsistência, sistema itinerante. Porém, a vegetação nativa é utilizada
pelos Caiçaras para múltiplos propósitos, como extração de plantas medicinais,
plantas para confecção de artesanatos e construção civil e plantas ornamentais para
comercialização.

Os estudos etnobotânicos conduzidos nas regiões norte e sul da costa do


estado de São Paulo revelaram diferentes tendências: na região norte, a riqueza de
plantas citadas é diretamente proporcional ao número de entrevistas; enquanto que na
região sul, não ocorre essa relação. A exceção observada nas comunidades da região
sul é decorrente da diferença na metodologia empregada, a qual se baseou em
informantes-chave em vez de amostrar a população para entrevistas
independentemente de seu conhecimento ecológico. Tal inferência é resultante da
análise de dados do presente estudo e de dados compilados de Rossato et al. (1999),
Hanazaki et al. (2000), Araújo (2001), Begossi et al. (1993). Dessa forma, constata-se
que a opção por informantes-chave demanda um menor esforço amostral.

As famílias botânicas geralmente citadas nos estudos etnobotânicos são


Lamiaceae, Asteraceae e Myrtaceae. Sendo as duas primeiras as mais representativas
no conjunto das plantas medicinais. Através de entrevistas em doze comunidades
Caiçara, Begossi et al. (2002) constatou que as plantas medicinais mais citadas eram
geralmente introduzidas. Segundo dados referentes à região sul, as plantas nativas
foram citadas por seu uso no artesanato, construção, como ornamentais ou
alimentícias.

Dados do referente estudo e dos conduzidos por Rossato et al. (1999),


Hanazaki et al. (2000), Araújo (2001), Begossi et al. (1993) mostram que a maior
parte das plantas que contribuem para a riqueza citada de espécies nas comunidades
Caiçaras apresentam pouco ou nenhum manejo. Das poucas espécies facilitadas pelo
manejo humano, destacam-se as ornamentais, cuja extração é uma atividade
econômica crescente.

Em relação à categoria de manejo "plantas frequentemente cultivadas", o


panorama obtido através da riqueza de plantas conhecidas e utilizadas mostrou-se
insuficiente, já que podem ser manejadas muitas variedades dessas espécies,
refletindo o caráter poli-específico e poli-variado do sistema de manejo.

Quanto aos destinos da produção nos sistemas agrícolas itinerantes das


comunidades do norte e sul do estado, há diferenças significativas. Enquanto que no
sul predominam as atividades agrícolas de subsistência, no norte existem
comunidades produtoras de farinha destinada ao comércio. No sul, o mercado de
farinha de mandioca é incipiente.

Outra diferença entre as comunidades das regiões norte e sul está na


distribuição dos agricultores: no sul encontram-se dispersos e no norte estão
agrupados. Além disso, a região sul caracteriza-se pela intensa perda de variedades,
enquanto que no norte existem particularidades associadas ao mercado de farinha de
mandioca e uma organização social dos agricultores pelo direito de uso de suas áreas
agricultáveis tradicionais. Na região sul, a organização social voltada às atividades
agrícolas é fraca ou incipiente.
Em relação à conservação de variedades de mandioca, as comunidades do
norte da costa de São Paulo mantêm tanto as variedades doces quanto as amargas. Já
no sul, há uma transição para o uso quase exclusivo das variedades doces em
detrimento das amargas. Tal transição, que culmina na perda da diversidade infra-
específica, é decorrente da dificuldade no processamento da farinha ao ser empregada
a variedade amarga de mandioca, exigindo etapas posteriores para as quais a mão de
obra é escassa.

Em comunidades agrícolas da região norte do estado, os agricultores cultivam


culturas poli-variadas, predominando a mandioca e a banana. A análise de listagem
livre das variedades revelou a existência de 7 variedades citadas por local, indicando
uma média elevada de variedades por amostra em comparação a outros locais do
Brasil. Nas comunidades do sul, a diversidade infra-específica de Manihot esculenta
também mostrou-se elevada.

Em ambas as regiões, as políticas para a conservação ambiental não se


relacionam com as políticas de conservação da agrobiodiversidade. A perda de
agrobiodiversidade no sul é motivada por mudanças econômicas, conflitos de posse
de terras e desvalorização do conhecimento agrícola tradicional. Na região norte, a
principal dificuldade são os conflitos ambientais, uma vez que a categoria de uso da
área de conservação governamental mais próxima é de proteção integral. Assim, as
práticas itinerantes de cultivo contrapõem-se aos objetivos de conservação biológica.
Porém, a conservação da agrobiodiversidade depende de tais práticas e a alta
incidência de variedades raras deve ser considerada.

Para garantir a conservação da agrobiodiversidade, seriam necessárias ações


in situ e regionalmente distintas, de acordo com seus contextos específicos, já que
grande parte da diversidade cultivada é concentrada dentro de grupos.

Quanto aos sistemas dinâmicos e sua influência nas relações entre pescadores
e plantas, foram identificadas quatro categorias de acordo com o manejo e frequência
de uso dos recursos. Plantas medicinais e as simultaneamente alimentícias e
medicinais correspondem a espécies nativas de uso infrequente e de reduzido nível de
manejo (quina (Quina glaziovii Engl.) e bacupari (Garcinia gardneriana (Planch. &
Triana) D.Zappi).
Plantas de uso menos frequente porém com manejo mais intenso, são as
cosmopolitas ou espécies nativas invasoras (como Phyllanthus spp., Solanum
americanum Mill. e Chenopodium ambrosioides L.). Tais plantas, com propriedades
medicinais, adaptaram-se a habitats antropogênicos, o que reflete uma co-evolução
incidental com as paisagens modificadas.

Quanto às espécies de manejo reduzido porém com elevada frequência de


uso, destacam-se aquelas extraídas para fins comerciais, como as ornamentais.

Entre os pescadores-agricultores, as espécies vegetais intensamente


manejadas e utilizadas fazem parte do contexto do sistema agrícola itinerante
(mandioca, banana, batatas doces e representantes da família Araceae). Trata-se de
espécies de elevado nível de domesticação e elevada diversidade intra-específica,
componentes da agrobiodiversidade cultivada. A intensidade do manejo está
diretamente relacionada ao grau de manipulação dos níveis de organização ecológica.
Por exemplo, a intervenção em nível populacional ocorre em um grau reduzido de
manejo, enquanto que a intervenção em nível de comunidade está relacionada a
atividades mais intensas de manejo.

Observou-se que as comunidades do sul dependem principalmente da


extração de espécies nativas de áreas de floresta e antropogênicas, apresentando um
grau reduzido de manejo. Tal fato relaciona-se com a menor quantidade de
variedades e a perda de agrobiodiversidade no sul, com a redução da riqueza infra-
específica.

Já no norte, onde a agrobiodiversidade é mais acentuada, as comunidades


dependem prioritariamente do cultivo de roças, onde há o intenso manejo de espécies
nativas e introduzidas, resultando em maior riqueza de variedades.

Em um contexto mais amplo, os principais fatores que afetam as relações


entre pescadores Caiçaras e os recursos vegetais são as mudanças econômicas
externas que afetam o sustento local, a sazonalidade e disponibilidade de recursos, a
aceitabilidade de tais recursos nos mercados locais e a dinâmica do conhecimento
ecológico tradicional.

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