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parte Il a arca de Noé: quando o MLA eA) recusa o VNU Xe fe) 5 teks o ewbarque ov © BTR eRe wundo raceme ee a Pere CRs ener CU aes colonial apressa-se para eee ae outubro de 5748, no porto de La Rae COL aa Aer Cnn as nn aaa reg Rene eae madeira do outro lado do hori SRR to ae Perea RAR Rt Oe uae enero Eons Rea ae Re aaa pe ey Canal Ree ae ent kee eens ee en ee erence a Rete orton nner Ca er Co ot aeaee ere ron cial ene ane Biron SRO cae pier nae eee) perenne oe ea prec Ce SeRnernen ct aaa Remon ‘ es gore de Noé: imagindrio dos iscursos amabientalistas (Os anos 1960 ¢ 197% 160 € 1970 marcaram o inicio de amo inicio de um movimento ambientalista global, incluindo as primeiras Cup er nto de parti imeiras Cipulas da’ bal i *ipulas da Terra, o nascimento de parti es de organizacdes nao oreconhecimento do Earth D. : s ndo govername rados Unidos e, ainda, o relatério do Clube de Roma em 1972, Langarai SF nay lade. Esses alertas globais as oaieceinens co imaginaria do mundo e da a ae nece a chave para a sal Ee ak nem como represen partir de entao, uma importaneia crescente nos d rd eto um scente n0s discursos do emba ina ON, Adlai Stevenso sete ao oN, Severn em 96 ono en Kenneth Boulding e Barbara Ward, oa habe jist Fulle* a bese lames Lovelock aia proposta cm 1970.' Ele assi ; condigdes ambientais fis e quimicas dtimas que garantam a vida no planeta.‘ Lovelock es lock esclarece, entretanto, que o nome Gaia, que el da A Terra, ndo é uma referéncia a divindad le, como se se tratasse de um ser vivo e senc sima fe enciente, e sim a forma como, em inglés, nave us adores Mame sus embaicarte- usin orenae peal iparecem também nos escritos de partidrios do Antro- poceno, como Paul Crutzen, Will ! Crutzen, Will Steffen e John McNeill, tratam suas embarca seriam os comissdrios de bor indo iSuGuekin’ dau eiabiaieecdo un conte de um siste- SA MRELASFAEIGE Te Gus “hunod cue acial real da Nasa, ov-101, como ; partindo rumo & Terra ita representada pela Australia em 1769. «a politica do erabarque ‘tal cena permite apontar a unidade da Terra. O planeta € uno, ¢ OF amanos vivem em um mesmo planeta. Entretanto, a arca de Noe tnbém é uma metdfora politica. Ela estabelece as balizas dos poss eis pensamentos sciaise politicos rlativos as manciras de enfientay tLerise ecoldgica, Assim, a arca de Noé como cena do mundo no ora: do do ambientalismo modern comporta uma politica de embarque- ere simbotiza um impulso inicial de ages e discursos que tem a fun- do de consttuir esse embarque politico © metaforico de um mundo Giante da catdstrofe, embarque esse percebido nao como transit6rio, precisa Hicham-Stéphane Aleissa, mas sim como o objetivo da ago vrante da catdstrofe? E tal embarque diante do “Dilivio" que Miche! ‘sertes propde em seu O contrato natural ‘bimbarcar na arca de Noé é, em primeiro lugar, ter feito um regis- tro de um ponto de vista singular, de um conjunto de limites ro que idicrespeito tanto a carga de “vicios" que a Terra pode suportar como a capacidade de seu “navio". Subir na area de Noé é deixar a Terra ¢ se protege por tras de um muro de célera que um “nds” indiferen- iado teria suscitado. f adotar a sobrevivencia de certos humanos ¢ de cortas no humanos como principio da organizagio social e poli tica, legitimando assim o recurso & seleedo violenta do embarque. Por «politica do embarque”, designs disposiedeseengenharias politica ¢ ociais que tém por objetivo determinar o qué e quem & contabilizado embarcado no navio, assim como o qué e quem € abandonado: que ‘visam impor ao mesmo tempo uma relaco fora-do-solo com a Yerta ‘puma organizagao sociopoltica determinada unicamente pela Logica de sobrevivencia atal catéstrofe. corpos-em-perda ‘onfundindo a Terra globalizada com o mundo, a politica do embar- {que da arca de Noé engendra pessoas que sio conceitualmente des- vaidas de suas respectivas identidades culturais e de suas historic dades, sendo reduzidas a corpos-em-perda. A ecologia da arca de Noé pressupée a perda dos nomes, das culturas e das subjetividades dos que so embarcados. Nesse imagindrio, a arca nao vem assegurar & sobrevivencia: de pessoas, comunidades, culturas e artes ou histérias, ou seja, a preservagdo de um conjunto de relagBes com outros, de re ticas coletivas, e até de ectimenos. A diversidade cultural do ‘mange a pluralidade das histérias so apagadas em proveito de uma cena om que conta apenas o niimero de corpos-em-perda a salvar. Os embar- cados confundem-se em um todo homogeneo e singular, verdadeiro espelho da totalidade Terra. Mergulhado em “massas signntess , afirma Serres, os sujeitos desaparecem. o [Esoa entrada em cena de corpos-em-perda é flagrante nos discur- s0s que abordam a questdo dos “refugiados climsticos”. Certamente, 5 mudangas eta as causadas pelo aquecimento global suscitarao ‘pressivos movimentas de pessoas. Entretanto, ao contratio dos tra- balhos de antropélogos, os discursos ambientalistas que se contentam com os termos “migeantes” ou “refugiados climsticos* constroem um sujeito que, dividido entre seu lugar de origem e seus possiveis pontos de desing, peanetesuspenso etre cls eo nave come un oo sem rosto, destituido de nome, de pertencimentos familiares, ae e comunitiios, de desejo ede capacidades de agi: figuras monstruo- sas ¢ racializadas.* Essa homogeneizagiio em curso para os nia também diz respeito aos ndo humanos que, geralmente, s6 séo convo- cados por intermédio de termos tio homogeneizantes quanto “biodi- versidade”, “Terra” ou “ecossistemas”. E assim que Norman Myers, 0 Inventor A etpeeeta “hte deineivecdade ua perdu eats ae como uma area que naufraga, a sinking Ark." Humanos e os ee formam, entao, uma so matéria indistinta a ser introdu- ‘astronautas wa Terra Nessa cena, a politica do embarque produz paradoxalmente uma rela- fo fora-do-solo com a Terra. A Terra nao é mais o beico dos humanos, sua base, seu arkhé, Bla se torna uma nave da humanidade que vaga fur espago cae No entanto, por meio da passagem de bergo para ave & Tera pd si qualidade fenomenolégica primeira para os & Por Edmund Husserl: a de uma “terra-solo’, 0 refe- te a partir do qual “repouso ¢ movimento tém sentido” Fazer da terra uma spaceship ou uma nave ndo corresponde a uma translagao heliocentrismo, feréncii slo do geocentrismo 20 isiste oe iais fundamentais a par- de pont er remover todas os mazcas paca fu ines pat as Consist ‘experiencia da Terra € pensada, conduzindo a ne Hr da ai aya de ergo para nave consist tambetnem ara i ‘desfazer-se da qualidade matricial oo ae s conse i idio é uma rel wancia desse mattici fa te anos eo que este hans em lef & ae ‘Terra nao seja mais 0 lar-bergo: dos: humane a Se eaat permanente condicdo temporaria, uma humanidade lar ea ee povoam a Ten, poranto, como verdad asiranautzs, (Os humano: 5 ‘conforme exprimem Serres ¢ Lovelock: im globalmente? ‘A que distancia temos de voar para o percebet a a lst ronautas, inteiramente desterritor nog tornamos astronautas, int einalanie ros sme dantes um extn podia so face aum est nunca como ° ‘em relagdo & Terra de todos os homens no seu conjunto: ‘Os astronautas que tiveram a chance de olhar a Terra do espago virarm chance de olhar a Terra como nosso planeta é incrivelmente bonito, e se referem a ele como sao nosso planeta é incrivelmente bonito, uma i jentalistas globais. dos discursos ambiental iis um dos importantes paradoxos a cam dos oa omens num estamos adele rea Tera “todos 1 . ossivel fazer ‘eu conjunto” que se torna p um tr fo camer do que soe Brat Tatoo gesamnto Ter Tovelock no é “daqui-embaixo”® Somente afastando-se me oe tease ¢ langando de volta um olhar ao planeta pertr de um p om aualguer no espago é que se torna possivel fazer dela uma Es ie serecressanc racine: ioe explicitamente a perspectiva fo arte se wna mdguin en de referéncia de uma r do astronatita 0 ponto an Laven oor dmadotar um pont fra-do-solo onde 0 narrador no po tronauta, Se aTerra’s6 pode ser dita partido panto fore-do-solo do astronauts " inabitavel. Os humanos né o a *Terra’ é literalmente inat melee ae ue navegantes sem ponto de fixacao. Inabitada, a Terra raqueos, mn tada, Sem fxagda, os humans so dessolados. © abandono do mundo: os Noés No Ambito politico, o principal problema da cena da arca de Noé diante da tempestade ecolégica consiste em amalgamar a histéria e asobrevivencia de wma familia, ade Noé, a histéria e & sobrevivencia do mundo. Isso significa confundir o oikos (0 lar) ea polis (a cidade). ‘Mas néo se pode utilizar o mesmo relato nem o mesmo foco para uma moradia ¢ parao mundo. Dizer que a Terra é a casa da humanidade ¢ reproduzir para a totalidade da Terra a fantasia excludente que visa esconder a pluralidade de atores e evitar essa tarefa politica humana de compor um mundo com 0 outro: viver junto. Essa politica do embarque no € nada mais do que um abandono do mundo. Apa- gando os sujeitos, essa ecologia da arca de Noé erige um sujeito glo- bal, “o Homem” ou “a humanidade”. Pelo embarque, os sujeitos so deixados 4 margem e dé-se origem & humanidade. Como prope Ser- res, todo mundo se chamaria, entdo, Noé. Anunciando o universal. em suas pretensdes globais, esse ator permanece, entretanto, muito especifico. Ele é emitido e pronunciado a partir de um centro pa cular, 0 dos paises do Norte, ex-colonizadores, e majoritariamente or homens. A arca de Noé também no anuncia o fim dos sujeitos, esim a imposicao de um sujeito, de uma identidade particular sobre (os demais sujeitos: a de Nog, o patriarca, pai e representante julgado legitimo pelos habitantes da Terra. Lembremos que, no Génesis, 0 filho de Cam foi amaldigoado por Noé com estas palavras: “Maldito sefa Canad; servo dos servos serd de seus irmaos”." Como Cam ¢ seus descendentes povoaram a Africa em seguida, esse episddio do Géne- sis foi utilizado tanto por negreitos europeus como pelos comercian- tes drabe-muculmanos do trafico negreiro para justificar a escravi- dio dos Pretos.* Os Noés nao sio, portanto, aqueles que se chamam cfetivamente Noé e trazem com esse nome sua cultura. Os Noés so queles cujos nomes foram encobertos por uma humanidade preten- ‘Samente universal, mas que na pratica é discriminatéria, A historia expoe essa constituicao colonial do embarque diante da catéstrofe. Em julho de 1761, 160 homens, mulheres e criancas mialgaxes embarcaram no navio negreiro Utile (Util, fretado pela Companhia Francesa das fndias Orientais, no porto de Foulpointe, ém Madagascar, destinados a serem vendidos nas ilhas Mauricio. Bra um navio negreiro peculiar, pois também levava a bordo 142 Ba donee g's ccae gee ta ae membros da tripulagio. No caminho, a fragata chocou-se contri jam banco de areia ao largo da ilha Tromelin ¢ socobrou. Uma parte dos escravizados encerrados no pordo morreu No naufragio. Toda a tripulagio eo restante dos malgaxes alcangaram a ilha deserts © plana de um quilometro quadrado. Com os destropos recuperados vo navi, uma nova embarcacao foi construida: uma arca. Em 27 de setembro de 1761, 05 88. malgaxes restantes, que haviam parti- ‘cipado da construgio da area, foram abandonados, enquanto seus senhores € os homens livres ‘embarcaram aliviados. Quinze anos rnais varde, apenas sete mulheres e um bebé foram encontrados vvivos na ilha.” ‘Tanto no ais como a bordo, esse abandono do mundo anun« o fim do viver-junto, © mundo que se instaura entre os humanos por suas atividades politicas, por suas préticas culturais ¢ vida Pocial deve, entdo, suspender o tempo da catastrofe. Quem narra f que acontece no interior da arca de Noé? As representagbes cine matogréficas ¢ romanescas desse episodio se concentram esser- ‘ialmente em todos os processos e dispositivos policiais que levam to embarque de alguns e & rejei¢ao de outros. Jé que a catastrofe 6 apresentada come permanente, o fim do mundo entre os buma- mos torna-se o objetivo dessa ecologia da arca de Noé. As relagoes ‘a bordo sao definidas negativamente, ou seja, pelo que nao acon- eee la. "Portanto, reina a bordo uma tinica lei nao escrita”, declara Serres, “um contrato de nao agressio, um pacto entre os navegan tes, entregues & sua fragilidade, sob a constante ameaga do oceano aque, através dasua forca, zela,inerte mas medonho, pela sua paz” Pode-se apenas compartilhar esse desejo de paz diante das guer- ras de conquistas coloniais e guerras mundiais. Entretanto, nem toda paz é igual. Aquela paz, animada unicamente pela gica da Sobrevivencia, pode ser traduzida por um conjunto de violéncias sem nome, a semelhanca dos navios negreiros Noé e Utlle. A paz. a bordo, tal como apresentada, nfo é uma paz entre diferentes gr: poe ot individuos, pois esses grupos so dissolvidos em um tod omogeneo. Ela se torna uma paz total, como uma auséncia de qualquer atvidade: o fim de um mundo entre os embarcados ¢ tpresentado como a condigdo de uma salvaco diante dacatdstofe. Mas “a verdadeira paz ndo é somente a auséncia de tens" lembra ‘Martin Luther King, “e sim a presenca de justica”* figuras da recusa do mundo Diseratdebo saineetes essa ecologia da arca de Nog reproduz stein a fe 7 ingasdo e dominagiio entre os que entram na Sea a aa entre os eleitos e os excluidos. A arcade Neen a maginiia le um ambientalismo globalizante produz tin dinar lonar seus pettencimentos sociais e comunita- sr Terra e deixar o mundo. Engendrando corpos-em-perda, bec € Noés, a arca de Noé simboliza a recusa de um aioe onde cenit © abundone de mando, Tera Sas mil re nk undo, da Terra e de suas multiplas laden isi e ao humane tomes a sondiete do cobarie as soem sim, a.atca de Noé gera um conjunto de figuras ‘Ser cu ilo tne polttea dc eure Clas Rs inca da neciisa do mundo sio reveladas cheuaceee a primeira figura, 0 indiferente, designa a atitude ativa pela qual duiminne epee deuce diante do rosto dos outros, ferent colocu em priton wi juordacin eases ileus aun fine dete trmper lado tenets fot @ ou, el sar o mundo, fechando-se em um solipsismo ingénuo, itis ba sas lea Otten nage brea Tracom un paces undo dessensibilizada em relacao aos outros. Ele nao ex, ‘0s pratos dos pobres, nao sente 0 odor nat Onde vas pn eosin sete pauese eee ae ‘vé as discriminagdes raciais e de g8nero nem ouve Osa de peo por um mundo. Arcus do mundo do indfrented doa deena prencapaide oor owen igura é a do xenoguerreiro (ou xenocida). O xenoguer- fete éaquele que repartee mundo em fronteiras entre um ns, que eee eum “eles”, que seria responsdvel pela tempes- tad, portato. inmiga le recs aguels que nfo pertenceram & essuniade mason o dito deer detos ate "ne exe le ae so meine a tempestade. Eles so o resultado da agiio do Cae : es fundindo ° mundo ‘com seu corpo ¢ com o da oe noguerreiro considera 0 outro como o elemento )gEnico e viciado que deve ser suprimido por meio de uma ecolo- gin imunitaria. Em uma mescla putrefata de racismo, antissemitismo, terrorismo, xenofobia e misoginia, a travessia da tempestade se traduz por uma guerra que visa, pura e simplesmente, a eliminago do outro. "Aterceira figura éa do sacrificador- Fortalecido por uma aritmética (neo)malthusiana e por um geopoder* de escala global, 0 sacrificador & quem design com legitimidade cientifica os que, estrangeiros ou do, representariam o excesso do mundo e os sacrifia. A invengao da “bomba populacional” de Paul Ehrlich é um exemplo disso. Aqueles ‘do séo simplesmente jogados a0 mar. Eles sio realmente sacrificados. Isso quer dizer que sua eliminacao é narrada como a condigao infeliz: mas necessiria para acalmar os céus e 0 mat agitado pela tempestade ‘ecoldgica de trovdes divinos. 0 sacrificador niio executa um oficio que Ihe seria transmitido por uma autoridade superior. Com seu gesto € seus discursos, ele fabrica a necessidade dessa permuta infame: a pre- servagao dos ecossistemas contra a vida dos Pretos, dos pobres e de ‘outros subalternos. Essa é a equago proposta pela hipstese do bote salvacvidas de Garrett Hardin, que defende o sacrificio dos pobres & ‘das pessoas racializadas.* Bis 0 cAlculo que Holmes Rolston propoe, privilegiando a natureza diante daqueles que morrem de fome em alguns casos. £ também o que o jurista e romancista Preto estaduni- dense Derrick Bell denunciou em seu conto “Space Traders", no qual ‘9s Estados Unidos aceitam a oferta proposta por extraterrestres de libertar todos os Pretos do pais em troca de ouro e de tecnologias des- poluentes dos solos.” 0 eliminado é, portanto, sacrificado para asse- gurar a salvacdo do sacrificador e dos seus. 0 sacrificado néo é mais aquele que nao constitui o objeto de preocupagao, mas sim aquele que 6 considerado como a-ser-sacrificado-pelos-sacrificadores. Aqueles nos quais os efeitos dos testes nucleares garantam o lugar da nacido, ‘aquieles das favelas que recebem o lixo do mundo como meio de vida, ‘aqueles cujas doengas tornam possivel a corrida desenfteada da socie- dade industrial e do capitalismo moderno. No entanto, como peso do seui mundo sobre a caboca ~ e nao sobre os ombros -, 0 sacrificador tua sobre os outros, expulsando-os do mundo com a consciéncia tranquila de um eleito investido de uma miss4o suprema. ‘A quarta figura éa do senkor-patriarca. 0 senhor-patriarca faz dos ‘embarcados seus escravizados. De maneira anéloga aos sacrificado- res, asubjugacdo dos outros a um conjunto de tarefas e situagdes into- leraveis 6 apresentada como o mal necessirio a sobrevivencia dessa arca. Eles sé so admit i i 6 s20 edits a bordo com a condicdo de serem manti- seston dare te ae o pordo ou no convés inferior do navio. »- mas fora-do-mundo, Nada impede a atca de Noé a forma de um navio negrei Tse sareiro. A exemplo dos sem docum: : entos attics considera-se que elesestdoamargemdo mundo. “ ac im. 8 ainta figura €2 do devorador de mundo. Aquiaatengao Eesti unleamente para a area enquanto tl, para airmagio de las ¢ fronteiras (indiferenca), para a eliminaga us tarde Be , para a eliminagao eo sacrificio roguerreiro ¢ o sacrificador), ta es de existéncia a bord Oneve Mie lo (osenhor-patriarca). 0 dev : : os 0 devoradot de mundo oa ‘cujo modo de existéncia se engaja ativamente no consumo ee formas de vida e das outras maneiras de ser no mundo. E oy destruir florestas, vales habitados por povos indigenas, cis, ecossistemas, economias locais de dimensé : eee aes is de dimensdo humana a a arca, de fazer suas velas e nstruir seu aparelho funciona- rem. A existéncia de seu mundo & eee 3 lo & sindnimo do consumo d: cosmogonias: “meu mundo as cu: meet Eade 4s custas do mundo dos outros". e > ros". Essas inco figuras representam cinco maneiras de colocar em pratica essa so da arca de Noé. Consequentemente, a politica do embarque Brod os que serdo abandonados, eliminados, scrfcados, subj los ou devorados para que esse embarque acontesa. — ‘Arecusa do mundo oe ‘indiferente Oabandonodooatio xcnoguerreire seliminagae do out meio ie scilicle do out saubjugasto dooutco “meu monde as custae do | unde dos auteos™ Figures da area de Nos foe da area de Noé,sindnimo de uma recusa de mundo, mos- tule aa mules paises. OCabe no escaa del Oss ca a pa e : rdam os casos do Haiti, de Porto Rico e das as ce eal lescrevem as cenas em que o ambientalismo se ‘itamente pela recusa do mundo. rate ti LM IWAN o wundo (Haiti) la Nr ML Ae Pree rg ere Cun Pee Cee Cea ed ladas, deixa o porto de Nantes. Ancora afiada, ouvide ree ee ee a Seren Africa Ocidental. Soieeen Mic ec UC oe ok ‘im longo ano costeando o local foi propicio a predacio. No porto Beene een rn Apés dois meses de travessia, 201 africanos foram desembarcados Penne one Cn CCE a aas ern ere ony coc anaes fee een “Thomas Mora, Slave Hunt, Demat Swamp, Virgina dos, pintano Sombrio, Virginiaj, 1861-62, Ibook suseum of Art, ula, old sode Laura. Clubb © discurso kecnicista e 0 fora-do-naundo © Uenmnatamento ¢ a consequente poida do biodiversidade conte tuem um grave prc No entanto, a ecologia da arca de Noé limi- ta-o a uma questdo ambiental e técnica que seria adequadamente te cia bor tins Hi de mimeros, de quantidades de he ares de indiapensévels que sejamn. nio bastam para apreender as vieléncies a if is comunidades humanas e nao humanas nem as perdas fon ido : ~ a ambientalista do desmata- conta in e¥emplo gritante no Waitt Priel 1epibles Negra, o Haiti impressiona tanto por suas instabilidades politicas ¢ sua pobreza ctonica como pela amplitude estimada de seu desmata- mento. 0 pais écomposto por 75% de montanhas €25% de planicies. A chegada de Crist6vao Colombo em 1492, 80% da ilha estavam cober- tos por florestas* No momento da indepenciéncia, em 1604, ap9s tres séeulos de colonizacao, a maior parte das planicies haitianas ja havia ‘sido desmatada para abrir espago as plantagdes de cana-de-agticar e de indigo.? Em 2015, a Organizagao das NagSes Unidas para a Alimen= tagio e a Agriculture (F40) estimou que a cobertura florestal repre sentava apenas 3.5% do territorio haitiano Embora o Haiti enfrente efetivamente um grave desmatamento e uma consequente erosio dos solos, esse indice ainda assim é um exagero. Andlises cientificas feitas por meio de imagens de satélite de alta resolugdo mensuram a cobertura florestal em torno de 30%. A persisténcia desse exagero ~ yeieulado a partir de uma imagem da National Geographic de 1987. do livro Colapso, de Jared Diamond, edo documentario Uma verdade inconveniente, de Al Gore ~ contribui para alimentar uma narrativa catastrofica do Haiti, fazendo dele uma monstruosidade fora-do- “mundo, o antiexemplo predileto dos ambientalistas.* ‘A consequéncia desse tecnicismo que atesta 0 fora-do-mundo uma compreensio do reflorestamento sem 0 mundo, sem que © aumento da cobertura florestal seja acompanhado do reconhecimento de um mundo comum, onde o Haiti e seus camponeses ocupariam um lugar digno. Seguem-se técnicas de reflorestamento que se limi- tam ao fora-do-mundo. A imagem do célebre quadro Paradis terrestre {Paraiso terrestre}, do pintor haitiano Wilson Bigaud, a questo ecol6- ‘ica seria reduzida aos contornos fisicos das florestas ¢ as suas medi- das quantitativas. Ironia de um mercado turistico da pintura naif em {que turistas compram, em Pétion-Ville e em Porto Principe, quadros dos morros luxuriantes pintados por artistas oriundos dos morros des- ‘matados’ Essas imagens carregam a fantasia ambientalista ao mesmo tempo que deixam de lado as realidades sociais e politicas daqueles ‘que, no entanto, as fabricaram. Imagens que deixam de lado 0 mundo, a censura injusta dos quilombolas e dos camaponeses £ a partir dessa redugao do desmatamento da floresta que um dis- curso ainda dominante no Haiti acusa, sem julgamento, quilombolas. @ camponeses. Esse discurso apoia-se no fato de que, efetivament. uilombolas e camponeses derrubaram drvores, Fugindo das plan. tations escravagistas das planicies, os primeiros encontraram vehi nos montos, derrubando algumas drvores esparsas para se instal ¢ construir suas moradias, Jd os camponeses so censurados por suas priticas agricolas ¢ por sua produgao de carvao vegetal. Por causa da erosito, 0 camponeses so obrigados a cultivar terras sobre encostas ingremes, de dificil acesso e pobres em nutrientes, 0 que diminui a produtividade a renda deles. ara sobreviver, alguns cortam arvores para fabricar carvao vegetal e vender nas cidades. Na maioria dos lares haitianos, cozinham-se os alimentos a partir da combustio do carvia vegetal’ Os camponeses que tém acesso reduzido aos servigos publi- Cos essenciais, tais como assisténcia médica, educacdo e agua é ‘bo: qualidade, sao obrigados a continuar o desmatamento dos morros fim de methorar suas condiges de vida e ade seus filhose filhas Esse discurso que considera os pobres e os marginalizados como responsaveis pelo desmatamento da Terra é o discurso da injusti (0s eamponeses haitianos vivenclam uma pobteza cénicasssociads a. uma discriminagao social entre rurais e urbanos que, em laa Pontos, sobrepde-se & distingao entre Pretos retintos e de pele clara. iste um clima de desconfianga entre a cidade © o campo, no qual 0s camponeses que fornecem alimentos as cidades nio ‘Snes itab nels, entstant, Iga. Hes cam imtados a uma exsénia fora aunts em um péyi andeyo, “pais-i-parte” (pays-en-dehors|! O ito de serem excluidos da cidade também € resultado de um aban- dono pelo Estado haitiano. Embora seja a grande forga de producao ao pais, 0 campesinaty se encontra desamparado pelos servigos esta- tae ioe enc oprimido, como foi o caso durante o period a los Duy lier (1957-1986)? Investe-se no campo apenas lomento das eleigdes, a fim de angariar votos. O Estado haitiano ‘atlas omumaliberliario de seusserigs dea, dean destino des camponeses& mere do prjetos de once dos dodores 2 oubepnee ae dos camponeses pelo desmatamento é apenas uc le uma desresponsabilizagao ‘do Estado haitiano. Os be ae ee simpatia-sem-vinculo, reconhecendo de eae ae los camponeses, sem, no entanto, estabele- ea lesmatamento em curso e seus préprios modos de imitando o desmatamento apenas & cena da floresta, apenas a0 ato do corte pelas maos dos camponeses, esse ambientalismo dos ticos adota uma visto pés-material da natureza e oculta o mundo.” © reflorestamento sem o Mundo, ovo sacrificio dos cammponeses ‘As politicas de reflorestamento fizeram da plantacio de arvores, endo da instauragao de mundo, seu objetivo. Considerados responséveis, os cam- poneses se tornaram literalmente alvo das “solugGes" técnicas oferecidas. Esse reflorestamento sem o mundo no Haiti assume trés formas distintas. ‘A primeira 6a de uma policia ambiental que impediria as maos dos cam- poneses de cortara drvore e de explorar a terra em encostas ingremes. O ‘gesto ecolégico se torna aquele que expulsa os camponeses dessa imagem idilica da floresta. £ nesse sentido que muitos membros de associagSes ecologistas locais apresentam o fim da ditadura dos Duvalier como 0 fim de uma ordem ecol6gica do Haiti, deixando uma situagao que eles qualificam como “anarquica”." Essa policia ambiental retoma os gestos da gendarmatia colonial, cuja fungao era expulsar os quilombolas dos bosques, como ilustra Thomas Moran em seu quadro Slave Hunt, Dismal ‘Swamp (Caga aos escravizados, pantano Sombrio} ‘A segunda solucio proposta éa implementagao de um conjunto de métodos agricolas e de etnotécnicas, assim como o desenvolvimento de novas tecnologias capazes de reduzir a dependéncia do carvao vegetal. A agrossilvicultura e combinagdes engenhosas de culturas, ‘como as do café sombreado ou das arvores frutiferas, sao testadas a fim de aliar uma preservacio da cobertura vegetal com um modo de exploragdo da terra que garanta renda aos camponeses. Alguns tes- tes de tecnologias domésticas visam substituir a utilizagao do carvio ‘vegetal como combustivel, indo do fogao solar e do fogao a gis até as energias renovaveis, como os briquetes organicos, 0 bagaco, a energia térmica solar, a biometanizacio e diferentes biocombustiveis.” Por fim, aterceira solugéo é uma forma de engenharia social que age sobre certo ntimero de “varidveis” sociais (renda, tamanho das moradias, educacao, tipos de cultura) responsaveis por influenciar a derrubada de érvores no Haiti." Propostas de subsidios associados a praticas de conservagio da floresta permitiriam enfrentar tanto a diminui¢ao da produtividade agricola como o desmatamento. Essas trés solugdes siio necessérias e contribuem para enfre tar a amplitude desse desmatamento generalizado. & evidente me tims orgenizagao eum acordo melhores, que um sjuntamento, que irao’,* dos quais participam organizagdes como o Mouve- ‘ment Paysan Papaye (Movimento Camponés Papaial, mostram-se fara ae ae das condigdes de vida dos camponeses. el ee colocar em prética uma responsabilidade poli- eee Politicas ambientais continuam na via para- juaecopal em insist na responsabilidad daqueles que eas aaa ege nel: Elsjogam nes ombros ds camponeses are: ‘pabilidade do desmatamento, evandoaum triplo sacificio dees. nada pel pla ambinal, decom dele rere L, ide lado a pre ai corpo los camponeses.O carponts deveconer su fone seam cons seu desejo de um lugar no mundo, em pro! do bem comum de uma pre- Pee ee Essa responsabilizacao paradoxal do |, mantendo 0 destino ecolégico do pais sobs : re 08 ombros id curvados de camponeses e camponesas, conduz ao sacrificio de Atlas. a or Zeus a cartegar a abdboda celeste, Atlas 6 0 tité que le Indo a propria existéncia para impedir que o céu caia sobre a cabega dos demais habitantes da Terra. De maneira inversa, 0s ¢ Poneses tans aqeles que devem sistentar ado Tees ee Mmm se aqueles g ‘Terra, Eles devem assuimir essa tesponsabilidade literalmente tit ‘nica, permi Enfim, essa concepgao do desmatamento exige também um sacrificio- a justigar por pare dos camponeses. Forcados a uma existéncia em que os. Unicos meios de subsisténcia vém da terra e dos ecossistemas ects ae sto mantidos socialmente as margens feomuge. Ors ainda que as politics de eflorestamentoassumam a eS igenharia social, nao constituem uma justia social. 0 ivo nao € a hospitalidade de um mundo para os que dele foram ‘excluidos, mas aclareza de uma imagem ambiental desembaragada das s ag it No original, “coumbite”,termo em ‘agricola coletiva no Haiti. [N.1:] proved gah ade ido que o restante do Haiti prossiga com sua existéncia. — & la visite naassacre do parque ne 23 de julho de 2012 f amentoeo sacrificio quese espera cdo teenicista do reflorestament {Sycamores enantaam ume tao eatin no mast camper ite em julho de 2 sdores do parque La Vis Sec vie iar ‘decreto do governo de Jean- La Vsti ctadoem 198 por um deneto do govern de Jean taude Duvalier, que fez um acordo com as 42 familias que ali wea “gpoca Sind a i argue ey 4 mais de2 mil metros de altitude, esse parque engloba oie dene 4o recabertos de Pinus occidentalis s 0 sio recabertos de 2amil hectares, dentre os quais 30 inside iadas-* Localizada no macigo La Selle, ede trechos de latfoliadas: : ale, nse secundéria abriga numerosas esp do Haiti, essa floresta secun 7 e vegeta endmice,comiuindo para fazer do Hal um hotspot de bioiveridade Como ox sas siete em pouuisimes ouras a La Visite, Situado em Seguin, um: habitats eles vio se abrigar no : seo comuna da cidade de narige, para stent odepartamento do Sudeste eo departamento do Oeste além de contr com uma grande biodversdade oa Viste repousa ehre um legal ten qe as tece de agua potavel quase 3 milhies de pessoas. Hoje, €w ti icos parques nacionais do Halt : ‘pede 2, im cont ope, dum ad, camponenes qe vivem em ous aredores~ oem seiner, es um dos pontas de ito ~equepratcam ma agrcalturadesubsistencine, deouto, Sovenno e uma associagzo local, a fundaclo Seguin, que ee peeaa (0s camponeses a to do parque. servacio e no reflorestament Fesidem hos arredores do pargue eram consideraos poo govetn9 a i sma ao Segui responséveis pelo des e pela fundacio Seguin como d cite {que acontece no interior dele, Esse conflito que opde camponcies. govemoe asociagio eulminou em uma cena dramstica no dia 23 de tho de 202 Mantenddgecente politi dereforesamento do dio de representantes do Estado haitiano, arque, uma delegaciio de represen sia, com panhada por alguns capangas,chegou por vlta do melo-dia diane as casas de algumas das 1 families que viviam-n0 interior enoe smredores do pargue para expulsaros camponeses kena dlnnso compreendi odelegndo departamental do Sudeste 0 delegedo de ari juz de paz da comuna de Mari- olicia, o comissario do governo, 0 juiz de u 2 fot, 0 ministro do Meio Ambiente, o ministre do Intron comps ahados de sete catros de policia e de uma ambulancia. Naquele dia, 14 diante dos representantes do Estado, a deixar suas casas, recusa quo eles jé haviam manifestado por oca- sido das reunides com os representantes do governo entre abril ¢ maio do mesmo ano. Apés miltiplas intimacdes, os representantes € 98 capangas do Estado comecaram a derrubar os muuros das pri mmeiras casas com a ajuda de marretas. Em meio a gritos e protes- fos, uma confusdo irrompeu. Entre as bombas de gis lacrimogénio, tiros foram disparados. 0 resultado reflete o desequilibrio de for. as entre as pedras dos camponeses € os fuzis dos representantes do Estado, Do lado camponts, quatro adultos foram mortos e duias do lado dos policiais, um ferido, bois foram mortos. Dois campo- 05 sem julgamento durante dois do governo estivessem presentes que eu saiba nenhum inquérito do pais." Nem o Estado nem a policia teconheceram a responsabilidade Pela morte e pelo desaparecimento daqueles camponeses, Carac- terizando a situacdo como um acidente, o governo nao reconheceu. nem mesmo a necessidade de uma investigacao judicial, Sua tinica asao foi uma contribuigao financeira para os funerais, sempre sob a Pressdo da MissAo das Nacdes Unidas para a Estabilizagio do Haiti (Minustah). Da mesma maneira que propés uma quantia a esses camponeses para deixarem o parque, o Estado deu 150 mil gourdes haltianos (cerca de 1.420 euros) as familias das vitimas para que pudessem providenciar o funeral e enterrar os corpos dos campone- Ses. A agdo do Estado consiste em esconder os corpos, testemunhas do sacrificio injusto dos eamponeses. As situacoes discriminatdrias, as disparidades de acesso a servigos essenciais e as desigualdades Sociais gritantes devem ser mortas, dissimuladas diante do impera- ‘vo ecolégico. Apesar da vontade do Estado de esconder esse crime, de calar as reivindicagdes, os camponeses do La Visite ergueram no meio do parque um grande timulo de conereto, semelhante a uma Pequena casa, onde repousam os quatro mortos de 23 de julho de 9s camponeses recusaram-se criangas dadas como desaparecidas; Sete casas foram destruidas e dois hteses foram detidos e ficaram pres meses. Embora altos funciondrios € tenham testemunhado a cena, judicial foi conduzido pela Justiga "Uma fonte da segdo de direitos humanos da Misco das Nacdes Us ‘Estabilizagdo do Halel (Minustah) me conficmou que o advoga Baddo do caso recebeu amearas endo apresentot queixa, inidas para ido encarre- PARTE Aarca deNoé 2012. Um verdadeiro edificio no meio da floresta, com uma. eae 2 > que ati is de trés metros de altura e se impoe a vist sro que atinge mais de trés m eae ‘timulo no interior do parque, em um gesto de eae permanece um dos vestigios daqueles a quem foi recusado um luga neste mundo. i i ial e a na origem: o habitar colonia fratura quilomabola de mundo Se foram realmente os camponeses que levaram, em parte, s - matamento do Haiti no século xx, eles nao 7 de . responsaveis por esse desmatamento. Um conjunto ae = tes demograficos, econdmicos polite area pet fio, Ndo esquecamos a expressiva expo! : See cc a ot a a @ 4 América do Norte, do if Bec tssnedtcua aE SE depinetoe sobre 0 macico La Selle ¢ estavam em nome de investi a pee canes Ad das spas relate 8 proprodaiedas pit ze arrendamento que nao Pe aes, e é iso mencionar também o aut i oe nee do Estado ATES ea Eee oe eee cana ecanadense, a fim de lutar contra a peste suina africana no in dos anos 1970 e inicio dos anos 1980, despojaram os es a ‘uma importante fonte de renda e acentuaram sua depen =z eo carvlo vegetal. Além disso, quer se trate da pang eas, ceira, da palmeira, da seriguela, do abacateiro e, sobretu ef ae ‘meira, as drvorés possuem uma forte simbologia no vo ee simbologia é tio grande que, em suas campanhas poe en no século xx, igrejas crists cogitaram lutar contra o vodu at a -repositérios”.™ € politicos sejam determinantes, as verdadeiras ee a Pee scaetc as cut ane Reston a fr meno numa perspectiva de longo prazo, como Fernand Braudel onvida a fazer, o desmatamento contemporineo do Haiti encon- {ra seus germes, em primeiro lugar, na colonizacio dailha. Ainda “ Ae o periods colonial nl tesa ahs Anda iment no feulos segunse oe ee elo desma uma maneira vamento foi apresentado como sinénimo de habitar. os Primeiros grandes desbravamentos eo consequente desmatamento foram, ini- cialmente, resultado de uma exploragao extrema dos solos do Haiti, sobretudo por meio da cultura da cana-de-agticar. Além do ‘esgota- Mento dos solos, as florestas. ‘que outrora cobriam as planicies foram rapidamente derrubadas. Em 1782, 0. ‘Viajante suico Girod-Chantrans afirmou que “nao restam outras florestas além das que coroam os morros’.* Tendo esgotado as planicies, a exploracio prosseguiu nas montanhas com a cultura do café. A economia colonial instaurou desde o século xvtuma: ‘concepgao do habitar dessa terra que nao foi questionada pela Revolugao Haitiana nem pelos diferentes regimes Politicos até os dias atuais, Além desse habitar ‘colonial, o desmatamento maci¢o do Haiti foi ossibilitado pela auséncia de mundo comum. ou, mais precisamente, Por uma fratura quilombola do mundo. Se o. ‘aquilombamento se mani- festou por experiéncias de vida e de cultura nas montanhas que, em alguns lugares, levaram & derrubada de arvores, esse fenémeno con- Sagrou, sobretudo, uma fratura no seio do mundo colonial, A. Tespon- sabilidade pelos mottos e montanhas era recusada pelas autoridades Coloniais das planicies, enquanto os quilombolas em fuga nas monta- nnhas no podiam assumir responsabilidade por aqueles mesmos que OS perseguiam. Daj resulta uma constituigao dividida da. experiéncia do mundo e das maneiras de habitar a terra no Haiti, como se as pla- nicies e as montanhas compusessem dois mundos diferentes e estan- ‘ques. Da escravidao colonial aos nossos dias, essa fratura quilombola do mundo persiste entre habitages das planicies e dog campos qui- lombolas nos morros, entre Henti Christophe e Alexandre Pétion no dia seguinte & revolugao, mas também entre camponeses e citadinos durante a ditadura de Duvalier.* 0 desmatamento continua sendo a Consequéncia dessa opressao multissecular dos ‘camponeses das pla- nicies destinados a uma existéncia fora do mundo, no péyi andeyo (Pais-a-parte), que no tiveram outros meios de sobrevivéncia a no Sera cultura dessas terras ingremes. Brosio de terras do Haiti que se “aquilombam” em diego ao mar, 2012. © Foto do autor, Corolério do desmatamento, a erosio de terras no Haiti também é ‘uma manifestagao dessa fratura quilombola. Durante as chuvas, essas terras descem as encostas das montanhas e dos morrose vao encalhar rno mar do Caribe. “O solo vai embora’, declarou a mim com gravi- dade um representante de uma das maiores associagées camponesas do Hai. Mais do que um nimero de metros ebicos uma estimativa ‘numérica de perdas financeiras, as miiltiplas “escapadas” de terra dos ‘morros e montanhas comprovam, acima de tudo, essa ausénciade um solo comum entre pessoas da cidade e pessoas do campo. 0 solo 2 ‘questo nao tem quantidade, nao pode ser reduzido a suas acepyoes ‘geoldgicas e ecol6gicas, tampouco a suas quantificagdes Eee TTal solo também nao é mais aquele solo de origem [Urgrund|fisico designado por Husserl, a partir do qual os movimentos dos een ‘pos ganham sentido. O solo em seu sentido geolégico, condigéo da vida dos homens e de sua possibilidade fisica de se manterem de pé ede se alimentarem, 6 pode ser o lugar de um habitar junto a partir do momento em que é recoberto de um tecido que Arendt chama de “teia das relagdes humanas";* no qual os humanos conversam, agem juntos no seio de espagos e infraestruturas concebidos para esse fim. Esse solo torna-se, entdo, um solo de outra natureza, um verdadeiro solo de um viver-junto* Assim, o problema geologico e ecolégico da erosio dos solos no Haiti permanece uma das facetas do problema filos6fico da construgo de um mundo comum desde a colonizacio. fazer-wauado para reflorestar a Terra A fratura do mundo entre planicie e montanha, entre citadinos e cam- Poneses, em curso no desmatamento nao é um privilégio do Haiti, Em escala mundial, os desmatamentos da Terra também atestam essa auséncia de mundo comum, onde as violéncias dos desmatamentos séo externalizadas num pafs longinquo além do horizonte. As politi- cas de reflorestamento do Haiti e o massacre do parque La Visite mos- tram que a realizacdo de uma Terra compartilhada, a realizagao de um habitar-com, néo deu lugar a um habitar-junto, A realizagao de uma presenga com outros sobre uma mesma Terra néo deu lugar a uma multiplicagio de dilogos entre urbanos e camponeses, entre ministros do Meio Ambiente e carvoeiros, entre ribeirinhos das pla- nicies e habitantes do pais-a-parte. Ao contrario, a realizagio de uma solidariedade fisica e ecol6gica desses mundos traduziu-se num for- talecimento dessa fratura, num prolongamento das dominagies e sacrificios dos camponeses: num reflorestamento sem o mundo No Haiti, assim como em outros lugares, o reflorestamento sem 0 mundo é uma iteragio da ecologia da arca de Noé que usa o pretexto ‘de um dillivio ambiental para recusar o mundo Aqueles que sio mar- Sinalizados. Seria preciso retirar os camponeses da imagem dos par- ques € dos espagos arborizados do Haiti. Entretanto, é justamente af que um mundo comum esté em jogo. f justamentg af que uma ver- dadeira inventividade politica é necesséria. Nao seria possivel ima- ginar maneiras de estar junto que assegurassem a essas pessoas um lugar digno no seio do mundo? Nao seria possivel imaginar que esses camponeses, a exemplo de seus ancestrais quilombolas, pudessem ser crigidos em primeiro lugar defensores dessa floresta, participando de uma tarefa comum? Desde quando os camponeses sia as seres exce- dentes numa terra que conhecem melhor do que todos? Mais do que ar jad gridade de servagao das terras, da bic dade e da integr : ae aoe vi io do mundo que é con Seis par vidio. E essa alterna- as de reflorestamento se sistema eran aes truido ao deixar para trds a colonizagao e 2 iva que pretendi apontar aqui. Ou as politic: Ee aaa a ruptura entre campo e cidade, entre m ongardo, mantend ae rere entre camponesed e citadinos, entre Halt ¢o mundo e planicies, entre ca spostas a esse desiatamento ea essa erosao s oan carat instauragdo de ndo onde tanto uns como outros podem habitar instauragdo de um mundo onde cures pe a s camponeses haitianos sao re juntos, onde os camp haiti ig oj retumbante durante minha entr nidade humana. Esse apelo foi retum eerie .om o senhor Antoine, um dos camponeses do parque La Visite, en 2012: “Ele fo governo] tem que eriar um lugar para que a continuara viver, porque n nou yé [porque nds somos pt © paraiso ou o inferno das reservas (Porto Rico) aaa En Oo ten eee eee eee Cn eee ee etn cette ee Se eM Enis erat tee een SS ee eat eee ee re ern SOU ee cee eee tea fim do mundo para os que nao tém os mesmos deuses e cuja cor é estranha ao Eden. Os pregos so negociados; os vilarejos, saquea- Nn eee ee) conduzidas pelos caminhos subterraneos do porao. Vinte ¢ oito se eu ska etm Concer ate Ge dad ce cree Cee it Se ee ce een eee rete Caan @ 0 paraiso: laberatério colonial ex pntoscomurs. nur bed paaio a Tse oo axisténcia do outro, A violncia de considerar os corpos indigenas, ps espacos colonias, as terras locais e as naturezas tropicais como o paraiso dos ocidentais, soma-se a violéncia da exclusao epistémica, imaginéria e politica desses corpos, espacos, terras e naturezas de um pertencimento comum & Terra e ao mundo. Eles se tomam os outros ppara além dos mares: os ultramarinos. A procura do paraiso na Terra 6 apenas a transformagéo de uma parte da Terra em laboratérios em ‘tamanho real da modernidade, em col6nias. Antes mesmo de sua pro- dug de saberes e de suas experiéncias cientificas, 0 laboratério é um Jugarisolado do mundo, no qual, por meio de uma relacdo de poder de um pesquisador sobre um objeto, uma matéria, um animal humano ou nio humano, esta autorizado o que ndo se pode fazer do lado de fora. Dentro, a morale a justica sfo, se nao suspensas, pelo menos enfraque- ‘cidas. E a partir dessa cumplicidade colonial e ambiental que Richard Grove aponta a invengdo da consciéncia ambiental ocidental no século xxvii nas “has do paraiso”, ou seja, nas colonies tropicals europeias- Grégory Quenet lembra que as colénias ali desempenharam © papel de “laboratério de imaginatios, praticas e saberes”.+A preservagao do paraiso transforma-se numa nova missao civilizadora ocidental, num novo fardo do homem Branco que, abalado pelas descolonizaces do século XX, redescobre um novo vigor e uma nova legitimidade com ‘os avancos cientificos. Esquece-se, no entanto, de que no laboratério colonial do paraiso os colonizados, assim como os porquinhos-da- -india, sdo submetidos aos desejos do pesquisador. Esse tema persiste hoje nos escritos ambientalistas que preten- dem encontrar ou defender o paraiso, bem como nas representagdes do Caribe e das outras ex-coldnias europeias que abordam suas pai- sagens, seus corpos ou seus paraisos fiscais.» Uma das imagens mais ‘comumente associadas ao Caribe no imaginario dos paises da Europa ‘eda América do Norte ¢é a de praias de areia branca aquecidas por um sol célido, pontilhadas por fartos coqueiros e por sombras errantes. Encontram-se também as naturezas luxuriantes de florestas timidas, ‘embaladas pelos cantos alegres de passaros e pelo jorro de rios ‘Limpi- dos. Essa tiltima i srolonga-se hoje pelo discurso de uma bio- iversidade “excepcional” que deve ser salva das maos negligent ‘sem rosto. Abaixo dos trépicos, as lagoas e os manguezais of a : “sé Tascivamente aos olhos ¢ a vinda do verdadeiro ator histéric a habitantes dessas ilhas so reduzidos a corpos-servis, que ae oo eines, rum e cannabis, ou a corposebjetos de ee ab les-fontes para sorver, os seios rijos nas drvores e as madeiras as generosas completam as paisagens desse paraiso inventado. tasias de paraiso coabitam tranquilamente no seo de paises pobies, thatados pela SegTanea aca RS Santo Domingo a Cuba, do Haiti a Curacao, de Granada Porto Ri fs 0s paralsos acomodam-se perfeitamente ao calvdtio dos arredores, @ reserva paradisiaca ou o inferno de Vieques E's um “paraiso desses que « pequenailha de Vieques, stuada a0 largo de Porto Rico, convida, Ela tem a forma de um longo retangulo de 34 quilémetros de comprimento por 4 quilémetros de largura e faz ti do Commonwealth porto-riquenho, dependente dos Estados inidos. Vieques ¢ célebre atualmente por suas praias de areia br por suas duas baias bioluminescentes e por sua reserva aaa tris dessa imagem paradisiaca encontra-se, no entanto, a hist6 ia de uma dominacao colonial e militar imposta pelos Estados Unidi De 1941 82003, Vieques foi utlizada para fins militares pela Marinka norteamericana, que ocupou 105 dos 136 quilmetros quadrados da Pans de tr8s quartos de sua superficie, repartidos em dua 2onas: uma a oeste,reservada para a estocagem de municio,¢ eee ee como campo de bombardeio, Vieques tornou-se {in aboratrio militar e uma regio de experimentao de armas © = ls 0s tipos, inclusive de napalm, foguetes de sinaliza- oe armas de urinio empobrecido, enquanto os 10 mil habitantes Permaneciam confinados em uma estreita faixa no meio da ilhas A Prépria Marinha francesa também foi convidada a utilizar Vieques ara exercicios militares em dezembro de 1985. A ilha era bornbar- an ca ‘média 180 dias por ano. Em 1998, 23 mil bombas foram Jan- eee ilha.* Os empregos que acompanharam a presenca da 1 dos Estados Unidos em Vieques nio foram suficientes para fabitantes enfrentaram. Durante quase conte mesons arm sD sessenta anos, Oto A contaminacio das terras pelos metais Pesan Darden esfas munigdes utlizadas ou armazenadas no local, que oe itarias. ar ho dur até 999 ano em que David Snes, um orador Fees ¢ funciondrio da Marinha americana, fol acidentalmente eo por uma bomba. Em consequéncia da morte de Sanes, howe rmonifestagdes no 06 da populagdo local mas também dos babitan saan ha rincipal de Porto Rico ataindo o apoio de personalidades a ee arpogo-riquenhss, como Robert Kennedy J, Al Sharpton, ance jackson Willie Coldn i 21 de fevereio de 2000, com oapoto eeedades religiosas, a malor manifestacio da hstria de Porto oe rer aepaizada em San fuan ereuniu entre 85 mile 150 mil pes- ree snip nde mato de 2000, mais de hizentas pessoas que ocupavam teuts mais deur ano o campo de bombardeio foram designe dexidas plas auoridaes Federals? Dante desss manifesta oda ess2o internacional, a Marinha norte-americana sedapare beste em 200% eda parte leste em 2008, fechando no ano seg base ilarRooseveltReadsrailha principal Com o fin das operas de bombardelo, ogovero ameting uma deckdo ne minimo surpreendente-Enquanto a popula eperava uma resttuigdo, acompanhada da complete despluo ds ‘nha, estas foram devolvidas & agencia See sees arose omerano depenese visa: gem) para delas fazer uma reserva “natural” onsas ules qua = dasa parte cestedevieguestlizads pela Maina form entegis 2 diferentes agéncias locas eras 17 uilmtroe quadrados min cipalidade de Vieques, 3 quildmetros quadrados a0 alo Tet {Fundo de Preservacio de Potto Ricol © 125 4 aeeaer ao Depariamento do interior, que fezdela imediatamente um aarrace odie fue etgio nacional para vida slvagem) adminis: el exes Ei 200, 0859 qulOTE08 quadrados da part leste ae PelJond Gatws, enipliando asim aatea do reto para cerca de pales quadrados As terras eas éguas adjacentes a essa reer “origat hoje quatro espécies de plantas edez expe alas ames das’ Desde enti, as praiasdesse refigo sdo cals dedesor pm rugas-de-couro, tartarugas-de-pente e tartarugas-verdes. a heterotopia colonial Essa coabitacdo intima - e, a priori, locais paradisiacos e as grandes des vidas humanas, no fundo, Paradoxal - entre a fantasia de truigdes dos ecossistemas e das participa de um principio fundador da colonizagao das Américas: a heterotopia colonial, Michel Foucault define as heterotopias em oposicZo s utopias como lugares “absolu- tamente outros”*A heterotopia atribui a lugares (topos) usos e pré- ticas diferentes (hetero) de um centro geografico ou de uma norma, Paraiso ou inferno, a coldnia caribenha é 0 laboratério em que, con. {rariamente ao centro metropolitano imperial, tudo é permitido e admitido moralmente. Enquanto a escraviddo era proibida na Franca curopeia desde 1315, ela era enquadrada juridicamente nas colénias francesas até 1848? 0 nascimento do lluminismo foi acompanhado Pela intensificasao das formas mais execraveis de desumanizagao.” Essa mesma heterotopia colonial é caracteristica do Plantationoceno, que aceita uma organizagdo violenta, racista e miségina no interior da plantation ao mesmo tempo que a condena nos locais de venda dos produtos que, no entanto, sao oriundos dela. Kis 0 inverso das sociedades democriticas ocidentais apontado por Achille Mbembe: a politica da inimizade que louva a justica aqui para disseminar a injus- lica acolé. Essa heterotopia colonial foi evidente nas tentativas de recriar o Eden nas coldnias das Américas e da Asia, dando origem a lum conjunto de jardins botanicos a imagem do jardim Monplaisir, de Pierre Poivre, na ilha Mauricio, Para além de suas bel interesses cientificos, esses jardins foram concomitantes as conquis- {as ¢& escravido, Ao mesmo tempo que celebravam as praias paradi siacas de Porto Rico e de Vieques pelo turismo, 0s Estados Unidos nao +esitatam em létestar suas bombas, por exemplo o agente laranja na floresta El Yunque, de Porto Rico, eo napalm em Vieques. lezas e de seus ‘a violéncia da pagina em branco 0 desejo de abundancia de riquezas sem fim e o desejo de protesao hos jardins paradisiacos transformam os humanos ¢ os nao huma- nos das paisagens das Américas em paginas em branco e mudas ofe- ecidas As tintas das fantasias coloniais. Esea pgina em branco age ‘PARTE It A area de Nak “ee como 0 véu deserito por W. B. Du Bois, que recusa 0 mundo aquelas @ Aqueles que jd estdo Id, cuja presenca esta impregnada nas paisa: gens." Essa pagina em branco imposta pela colonizagio e recondu- tida pelo ambientalismo moderno resulta em um triplo apagamento do mundo. Em primeiro lugar, tal apagamento opera em wma com- go ambientalista das reservas, a tecusa do encontzo dos outros, “io reconhecimento de suas histérias e de seus lugares, assim como dde suas priticas ecumenais. Dessa forma, as reservas so associadas a0 duplo processo de expulsio do lugar de vida dos povos autécto- nes e A invengdo de uma nova concepgio dessas terras © ecossiste- ‘mas como “virgens” ou “selvagens”. Como foi o caso do Parque de Yosemite: a invengao americana da natureza como uma wilderness {terra selvagem e sem humanos) resultou na expulsao dos amerindios eno apagamento da histéria deles." A preservacdo do meio ambiente ‘como justificativa da colonizacio foi explicita no caso da coloniza¢ao francesa do Magreb no século XIX. Diana Davis mostra que o Império Francés forjou uma narrativa das destruigdes dos indigenas na natu- rezaaa fim de legitimat a expansio colonial francesa." Os genocidios dos amerindios e os matricidios descritos na Parte 1 so os vestigios violentos desse apagamento do mundo. ‘Ateserva de Vieques foi explicitamente associada a expulsio dos habitantes locais por meio da acao da Marinha dos Estados Unidos. Esse caso parece ainda mais peculiar, pois é dificil negar a presenca da mio dos humanos em terras que foram bombardeadas e degrada- das durante sessenta anos. Entretanto, foi justamente o que fizeram ‘os Estados Unidos com 0 “Spence Act”, que faz de uma terra utili- zada como campo de bombardeio um refiigio para a vida selvagem, ‘uma “wilderness area”.* Num relatério de 1980 que se seguiu as criti- cas ambientais do governador da época, Romero Barcel6, a Marinha defendeu sua pratica declarando que os impactos ambientais con- secutivos a suas atividades, incluindo a erosao dos solos em pontos especificos e alguns danos a vegetagao, eram relativamente minimos e podiam ser atenuados de modo simples.” Quanto a vida selvagem, exceto por alguns efeitos indiretos ligados & destruicao de habitats ‘ou 4s mortes decorrentes de balas “perdidas”, a Marinha argumentou que sua presenca e sua atividade eram benéficas, criando um “efeito y.7 Ao impedir que os habitantes locais entrassem nesses santuério”, espagos, a Marinha dos Estados Unidos alegou ter tido um impacto preens Positivo sobre a biodiversidade, impacto que s: zado logicamente pela reserva natural. ~ esignar Vie ttn ocnio snes tna adenine ee ee vs inagio em curso - eects como a resisténcia dos habitantes Aare Alguns membres do Us Fish and Wife Seve descrevem com ae ene escolheram se instalar nas cra- arta ie yombardeios oe nos bunkers onde as munigées cc eae 3 ce vestigios, impressos no solo de Vieques, do pees ao Poténcia militar da Terra, do ator de um aera sofrimentos no mundo todo, esti recobertos pela ngnuspsisagem hatmonosa de pasaosbebericando num one a) _ tigios das violéncias do mundo permanecem. 'o poluidas, e os habitantes no podem entrar nelas sem perigo. Eles reproduz em essa humanidade-astro! tia da aca de NOU soqundo s qual g Tense eee ee portanto, prolon- sservar é pensada a arti de um lugar inabitavel. ae Partir de um lugar inabitavel. Os habitantes continuam a ser rejeita- ‘ los nessas terras e confinados a uma estreita faixa no centro da ilh f ro da ilha, Exclusio de fato pela impossibilidade de ir até lf, por causa da peri gosa poluicdo. Exclusio polit . Politica dos habit: i soso Exclusio politi itantes e das autoric feces telagdo a gestio e as decisdes sobre 0 uso dessas eon set énci ai eens a pea interna feita pelos Hstados Unidos da pia ay Ee and Wildlife Service foi percebida pela populacao rolongamento de uma usurpaga poe nto de uma usurpagio colonial da terra. ei ;pulsdo do mundo é o que institui o tal “paraiso”, Se as reser fr pared ferramentas importantes na panéplia de agdes ooo 3s, elas transformam-se em ‘ se js inferno assim alas ‘ que evacuam a preocu- pac: aro © ambientalismo que s6se concentra no que acontere : a ser vas enicontra-se, entio, ent, num impasse. pests wundo, aquele mesmo que tornou essas reser 3. Em Porto Rico, como em outros lugares, um movimento de justi en ipa ambiental emergiu dessas 4 sas Aguas, lembrand: fizeram dessa ilha uma Mae Terra,"* ee ae oe 407 t) a quimica dos sewhores (Martinica e Guadalupe) ere MLE TA Ree nc oR Rak ra Pee eee ret eee uct ean a Penner ert Ren aed ae rn er CC PAINT rT ec rr ne Franceses ao longo do trajeto, o navio é Ievado a Guadalupe. Cento ¢ ate ec Oe Pen ere nena nal fim do reinado da cana-de-acticar, outra Cavendish, a variedade de banana de mesa, aporta em Guadalupe. A Cavendish embarca em Wrenner ecu rca cots daa isdginos eas dores veladas, as tempestades tdxicus ¢ as paisagens Perret eer onc eae nen ERT ese CeCe rte ene Ue tO CEC Uk aaa ence Benanal na Mastinica, 2017, © Fote do autor. a condigio kéxica do Plantationoceno indo da plantation o principal modo de habitar da Terra, o Plantatio noceno reduz o mundo a um mercado de recursos consumiveis. Os habi- tantes humanos e nao humanos encontram ie jugados as técnicas de : ; tte elas a utilizago de produtos 1uimicos t6xicos na agricultura industrial. Para além das consequéncias Jém das consequéncias da emissio de gases de efeito estufa sobre o clima, o Plantationoceno revela-se também na difusio global de subst utilizadas como tecnologias de governo di tvansformago da Terra em recurs case persistente eva, O programa euro- peu relamentgiadoaubstanciaatica each tl ei +143 mil substncias quimicas declaradas para fins comerciais.’Presente: los, nas aguas, nos produtos alimentares animais e vegetais, no ar os pips corps, eas io soi s em perceptiveis pelo olfato. No entanto, essas moléculas representam gran itarios para ‘humanos e nao humanosUm estudo da Organizacio Mundial da Saiide 3), referente ao ano de 2004, atsibuiu & exposicdo ambiental a prodti- de mortes (ou seja 8:6% do total) ¢ 86 milhdes -m fang das doencas causadas.' 0 Stockholm de Resiliéncia de Estocolmo] apontou a difu- nove limites s condigdes seguras da Ses industriais do século «Desde as revolugdes indus fda dos humanos na Terra.‘ Des r oe eT eearsteineo da industria quimica, esses estat Aa dade humana forjaram uma das condiedes das vidas humana: a condigtotSicado Pantationocena, [Embora todo mundo sejaexposto« esses evossistemas contami dos, nem todo mondo contibuiu da mesma forms, no ae las meamas consequéncias nem possui os mesmes seems tegerdeles. Em puticulat petmanecem grupos a enone oie it ros coincidem cor e tarios, cujos interesses financei ‘ aes yerenes da Terra. A quimica dos senhores designa essa configu A : ico tox smpo, a con- th habit colonial em gue a condigio téxice é um! ote . on suéncia da exploragdo capitalist desses evossistemas por 05 senhores ¢ a causa que reforga a dominagio de tais territérios p senl ‘esses mesmos senhores. tos quimicos 49 milhes: de anos de vida perdidose Resilience Center [Centro so desses téxicos como um dos a clordecona nas Antithas: violéncias e donainagdes oxicas écul: ‘A contaminago da Martinica e de Guadalupe por uma motes ie ‘organoclorada chamada clordecona (C,,¢1..0) canbe ran shes i iigao tSxica do Plantationoceno r ee hae familia do DDT, a clordecona (ct) uma senhores. Da mesm: ; eum meee fabricada nos Estados Unidos, e depois na Franca, utiliza i contra ‘em mais de 2s paises como pesticida, seja para uso done igas, bi f ‘paratas, seja para uso agricola, 0 gas, bichos-do-fumo ou ar ConA toned ‘na Europa e contra a broca-da-bananeira nas ilizaga 2 tudes tropicais nas Américas e na Africa. A utilizagao do ct de 197; r i erras ‘21993 em bananais antilhanos provocou a contaminacao das t ‘ ‘ agticolas pot fo que vai de sessenta anos a varios séculos. jlas por um periodo que vai it ‘Um sexto da produgdo mundial de uma molécula cancerigens ~ eque um desregulador endécrino - foi pulverizado sobre 20 mil hectares mu sgulador endécrin¢ de terras agricolas de duas pequenas i Es i tinica sa conttaminago afeta 0 conjunto dos ecossistemas da Martin! € de Guadalupe. 0 cLp é encontrado nos solos, nos lengéis fredticos, fos manguezais e nas dguas costeiras, em alguns produtos agrico. Jas e animais, bem como em produtos da pesca. Essa contaminagao constitui também um problema sanitério, A exposigao crénica ao CLD diminui o periodo de gestagao, aumenta o risco de nascimento Prematuro,' afeta negativamente o desenvolvimento cognitivo e motor durante a primeira infancia’ e favorece o surgimento ¢ a reci- diva do cancer de préstata.” ‘Muito mais do que uma contaminagio ambiental, o CLD nas Anti- thas é 0 vestigio de diferentes tipos de violencia e dominagao. Em rimeiro lugar, encontram-se as violéncias e as desigualdades sociais em relagao aos trabalhadores agricolas obrigados pelos produtores a utilizar tais pesticidas, frequentemente sem protecdo, para manter 0 emprego. Em 1974, uma das maiores greves dos trabalhadores agrico- las da Martinica exigiu a suspensio do uso da clordecona e de outros rodutos, assim como a disponibilizagao de luvas e roupas de prote- ‘sao. Entretanto, tais demandes foram recusadas nos acordos de fim de greve, ¢ 05 trabalhadores continuaram a ser os primeiros expostos a essa molécula cancerigena.” A violéncia contra os trabalhadores é oreverso de uma violéncia em relagao aos nao humanos e a biodiver- sidade presentes nas plantations. Segue-se uma “violencia lenta” e multidimensional contra os humanos ¢ os no humanos, que se infil ta Ientamente em todos os poros dos ecossistemas antilhanos, des- truindo a qualidade das paisagens e reduzindo a qualidade de vida de seus habitantes.? ‘Tendo ao fundo um passado colonial em comum entre essas antigas coldnias ¢ o Estado franeés, ainda hoje marcado por profundas de: gualdades sociais e estruturais entre a Franga continental ¢ ultrama- ‘tina, o CLD nas Antilhas narra a histéria de uma dominagao ambiental escrita sobre intimeras paisagens da Terra: a histéria da capacidade de ‘um pequeno mimero para impor ao conjunto dos habitantes condi- ‘Ges txicas de vida por varias dezenias, ¢ até centenas; de anos, Mais. do que uma restrigao por efeito de mercado, a dominagao ecoldgica Significa de fato uma imposi¢do pura e simples de uma vida toxica." Por meio desse setor agricola, dos governos e dos servigos estatais que Sustentaram tais escolhas, uma vida num pais contaminado é imposta 0s habitantes dessas illas. Nas Antilhas, o setor agricola é majorita- tlamente controlado por um pequeno mimezo de pessoas pertencen- pee eee cto eee lame: tes A comunidade dos Békés, pessoas que se teconhecem como her- deiras dos primeiros colonizadores escravagistas das Antilhas. Em sociedades pés-escravagistas, 0 retorno de conflitos ecolégicos que ‘opdem pessoas que se reconhecem como descendentes de coloniza- dores escravagistas e pessoas que se reconhecem como descendentes de escravizados apenas exacerba ainda mais as violéncias.* A conta- ‘minagio por CLD nio é um acidente ambiental que seria a conjungao jnfeliz de uma molécula particular e de um solo particular, como da a entender um relatorio parlamentar de 2009. Bla decorre, sobretudo, esse habitar colonial da Terra que transforma o mundo em planta- tion. Transformando essas ilhas em planations, esse habitar colonial confinou os antilhanos ¢ 0 futuro deles no interior das plantations.” una demonstrasdo de forsa téxica que reforsa 0 habitar colonial ‘A quimica dos mestres manifesta-se também na maneira como a contaminacao é gerada em beneficio dos que a causaram, como é 0 caso do CLD - assim, a quimica reforca os senhores. Se os plantadores ‘de banana foram os autores dessa contaminacao, as primeiras con- ‘sequéncias econdmicas e sociais foram sentidas pelos demais seto- res agricolas e piscicolas. A difusdo do CLD no conjunto das bacias hidrogrificas onde se encontravam os bananais afetou as possibi- lidades de uma produgao saudavel para os demais produtotes que propunham uma agricultura de subsisténcia baseada em tubérculos ‘enna criacdo de gado, bem como para os piscicultores. Um conjunto de medidas dos servigos do Estado que visavam proteger as popula- ‘s0es teve como consequéncia a proibicao de determinadas culturas ‘ou produigdes de acordo com os riscos de contaminagao. Como o CLD estava fortemente impregnado nos solos contaminados, as culturas de tubérculos eram mais suscetiveis de conter tracos dessa substan- ‘Assim, a partir de 2003, 0s servigos do Estado impuseram a todos osagricultores que desejassem cultivar tubérculos uma andlise prévia dos solos a fim de investigar a presenga de CLD, A cultura era proibida ‘a partir de determinado limiar. Do mesmo modo, a partir de 2008, a pesea foi proibida nos rios e, de 2009 em diahte, em algumas faixas do litoral das duas ilhas. Alguns agricultores, ctiadores e pescadores ‘que nunca haviam utilizado o CLD tiveram de suspender suas ativida- des, mudar de carreira ou se aposentar antecipadamente. No ambito doméstico, os jardins crioulos apreciados pela populagio também foram contaminados em alguns locais. _ Em contrapartida, por sua forte afinidade com os solos e por sua débil migragio pelo caule das plantas, 0 cLD no se encontra na banana. A propria banana ~género alimenticio que causou a contami- nago dessas ilhas ~ no é contaminada pelo CLD. A presenga dessa substancia no solo nao afeta, portanto, a producao dos bananais. Isso significa que, sobre uma terra contaminada onde nao é mais possi- vel desenvolver uma produgao saudavel de tubérculos, nutriz para as Antilhas, é possivel produzir banana tipo exportacdo. Assim, torna- -se mais lucrativo manter a monocultura da banana - a causa da contaminagao - sobre uma terra contaminada do que implementar um método de despoluigao e trabalhar no sentido de uma agricul- tura de subsisténcia. As propriedades quimicas do cLD favorecem, se nao o desenvolvimento, pelo menos a manutengéo do mesmo setor agricola que esté na origem da contaminagao das Antilhas: a banana Cavendish. Os plantadores, como conta Simone Schwarz-Bart em _seu romance Ti Jean horizon [Ti Jean 0 horizonte}, parecem de fato ‘encontrar uma nova garantia em meio ao desastre”:* a quimaica dos senhores ¢ a mentira da humanidade-astronauta ‘Quer se trate de outros pesticidas perigosos, de residuos da produgio de energia féssil, de detritos nucleares ou ainda de particulas inorgi- nicas, a violéncia da condigio téxica recobriu 0 mundo. Embora as plantations parecam distantes dos centros de decisio, das cidades e das grandes metrépoles, os habitantes da Terra, humanos € nao humanos, de ontem, de hoje e de amanha, continuam subjugados por tais violencias. 0 caso da clordecona nas Antilhas expée a dificuldade das sociedades, Estados e governos em mudar de rumo mesmo apés 0 desastre, A concepedo ambientalista das “poluigdes”, que reduz.essas contaminagées a simples problemas técnicos, legitima a ideia de que as solugdes seriam também de natureza técnica. A imagem dos equipamentos pretensamente protetores usados pelos aplicadores de pesticidas, mantém-se a mentira de uma humanidade-astronauta {que seria preservada das diferentes mortes, dos pesti-cidas pulveri- zados nas plantacées.” Assim, decreta-se que ¢ saudavel continuar ‘um modelo econémiico legado pela constituigio colonial dessas sociedades, que subjuga tais ilhas e seus habitantes a plantation, simplesmente por meio da troca de técnica de produgio. De fato, os plantadores de banana reduziram pela metade o uso de pesticidas, herbicidas e nematicidas desde os anos 2000. Entretanto, quarenta ‘anos apés 0s primeiros alertas dos pesquisadores do Institut National de la Recherche Agronomique [Instituto Nacional de Pesquisa Agro- ‘némical (INRA) sobre a poluicio por ci.p.* as pesquisas referentes 203 métodos de despoluigao desse organoclorado ainda nao apresenta yam uma “solucdo”. Em 2018, estima-se que mais de 90% dos habi tantes estavam contaminados.* Alids, o CLD é apenas uma das muitas ‘moléculas utilizadas nas Antilhas. Outras moléculas potencialmente cancerigenas foram usadas nas plantagées de banana e de cana-de -agticar pelo menos até 2015. Hoje, Martinica e Guadalupe figuram ‘entre os departamentos franceses onde o uso de pesticidas ~ inclu- sive do glifosato ~ é 0 mais intenso,* onde a mentira da humanidade- -astronauta esta inculcada com o maior zelo. ‘Umi conjunto de senhores-proprietarios tem interesse em manter ‘o habitar colonial por meio dessa quimica, ainda que isso conduza o mundo ao naufrgio. A cada divulgagio de um perigo sanitério dos pesticidas, as velas sio recosturadas ¢ as. escotilhas consertadas. As ‘vezes, as tripulacdes sao substituidas e outros Negros so embarcados. ‘Aabordagem ambientalista das despoluigdes serve, entdo, para man- tera rota de um mundo em plantation como o negreiro Cavendish. Entretanto, ouve-se surgir do interior do potdo a célera dos escraviza- dos ¢ os pedidos de justiga dos habitantes afetados no préprio corpo. ‘Na Martinica ¢ em Guadalupe, desde 2006 foram apresentadas quei- xas contra o Estado franeés no caso da clordecona, mas elas ainda aguardam julgamento. Associagées e coletivos como EnVi Asfa, em Guadalupe, bem como 0 coletivo Zéro: ‘Chlordécone e as asso- ciagdes Assaupamar, Ecologie Urbaine e Mun, na Mattinica, preten- dem justamente influenciar uma mudanga politica de rota Essa historia ndo deveria ser uma preocupacdo exclusiva de cida- dios franceses ultramarinos desprezados. Embalados pelo imagindrio da cultura colonial da Terceira Repuiblica,* os metcados da Franca continental hi mais de um século ostentam 0 fruto das plantations colonials e pés-coloniais do antigo Império Francés (Antilhas, Cama- res, Costa do Marfim, Guiné). Mais de 90% das bananas produzidas com 0 CLD foram consumidas alegremente por franceses no conti- rente, Aliangas transatlénticas devem sercriadas para inaugurar outta ‘maneira de viver junto, de habitar essas ilhas tanto quanto a Terra. 9 NTN RZ) doo PReKxelaolxo toe (0) dupla fratura Wildfire [1859-60] Deere Cah ence ee CEC Pe eer nt eg CeCe tentam conté-Io sem se comunicar entre si, Algumas protegem as ee ee oka eS See eee Poorer eee renner ere ee ee ee) navio Wildfire (Fogo selvag Preto Taee Pee er ne en ee orc lado engole 650 corpos-arvores e espalha as cinzas de pessoas em Pern ect ere RS ee tet en Ren ence ao largo de Cuba por seu negécio ilicito, 0 Wildfire € condu: Key West, na Florida, a fim de liberar ali os 507 sobreviventes em Pee NCS t ee nO n E ented ose ae en Ce pee ee ce eee one ee ene Ce en ee UC SCO n Lua esse fogo continua a alimentar a caldeira colonial do mundo. re, As respostas ambientalistas & tempestade ecolégica mantém a dupla fratura moderna. Essa abordagem no apenas engendra um conjunto de violéncias e de recusas do mundo mas também se revela contra producente, pois oculta as desigualdades socioecondmicas e as domi- nagdes politicas que causam a ctiticada destrui¢ao ambiental. Ao riticas ambientais de um lado e as criticas antiescravistas ais de outro, o ambientalismo encarna uma ecologia colo- nial: uma ecologia que tem a funcio de preservar o habitar colonial e as dominagées humanas endo humanas que a ela se ligam. A aborda- gem ambientalista do Antropoceno reproduz.assim um oikos colonial © 0s pordes do mundo. A auséncia de didlogos e de aliancas entre os dois movimentos é precisamente 0 que alimenta esse fogo moderno que devora o mundo, esse wildfire. @ ecologia negreira: o ambientalismo sob a condigdo da escraviddo Por um lado, o pensamento da preservacdo da natureza tomou forma no século xvi em reagao as destru 1par com as injusticas cons © empobrecimento e a erosio do solo das culturas, enquant s ambientais nas coléni ‘tutivas do mundo colonial. inufam a produtividade 0 desmatamento reduzia o abastecimento de madeira necessaria aos engenhos para produzir o agticar e o rum. Para preservar 0s solos, os produtores estenderam o periodo de cul- tura, desenvolveram fazendas de fumo para sua produgio e adotaram téenicas econémicas de cultura do solo. A partir dos anos 1670, em resposta ao desmatamento, empreenderam-se esforcos para melho- rar a eficdcia do processo de transformagao da cana-de-acticar, uti- lizando como combustivel principalmente residuos fibrosos da cana passados no moinko - o bagago -, em Guadalupe ¢ na Martini fim de reduzir a demanda de madeira. Do mesmo modo, as primeiras politicas estatais de preservagio de florestas foram implementadas nas coldnias holandesas, francesas e briténicas. Para o historiador Richard Grove, Ionge dos centros de reflexio metropolitanos, as ori- gens do ambientalismo moderno residiriam n sem se preocu sas experiéncias colo: niais e, especificamente, nas agdes do missionatio, botanico e cultiva- dor de especiarias francés Pierre Poivre. ‘Como intendente da ilha de Franga (antigo nome da ilha Mauri- cio) de 1767 a 1772, Poivre lamentou as agdes de homens guiados pela ganfncia que desmataram a ilha, deixando apenas “terras dridas, abandonadas pelas chuvas c totalmente expostas as tempestades € a0 ‘sol escaldante”-*Inspirado pelos fisiocratas e auxiliado por seus com- panheiros Bernardin de Saint-Pierre e Philibert Commerson, Poivre instaurou politicas de preservago das florestas da ilha com o intuito de conservar 0 indice pluviométrico da regio. Por causa dessa rela~ do explicita entre desmatamento € mudanca climatica local, Poivre & considerado um dos precursores do ambientalismo moderno, fazendo eco & luta contemporanea contra 0 aquecimento climatico global? Entretanto, ao celebrar as ages pioneitas desse botanico, ninguém deu destaque ao fato de que essa preservacao de florestas participava plenamente de uma coldnia escravagista. ‘Essa compreensao truncada da ecologia permitiu que perdurasse a lenda segundo a qual Pierre Poivre se preocupava com os escravizados. De fato, Pierre Poivre dedicou algumas frases em seus escritos ediscur- 508 & critica da escravidao. “A ill de Franca [..] deveria ser cultivada apenas por mios livres”, declarou aos habitantes Brancos da ila em 1767-* Poivre defendeu ate a ideia de que a escravidéo seria contraria a ‘uma boa prética cultural da natureza e menos lucrativa do que a mao de obra livre? Sob o jugo dos feitores, os escravizados seriam, na ver- dade, cultivadores ruins. Entretanto, Pierre Poivre declarou também que os escravizados eram “trabalhadores que se tornaram necessérios” para a colonia Ao introduzir medidas que favoreciam a instrugao na religido catélica, Poivre esperava que os escravizados “se acreditassem franceses” e “que serviriam seus Senhores com fidelidade, como seus benfeitores; e [que], apesar dos horrores da escravidao, eles poderiam ser felizes, conservando essa liberdade preciosa da alma [..)" Longe de ser um defensor da emancipacao dos eseravizados e da igualdade dos Pretos, Pierre Poivre foi decididamente escravagista. ‘Como agente da Companhia Francesa das {ndias Orientais, Poivre comprou dezenove escravizados no Timor em 1754, inaugurando relagdes comerciais com essa coldnia portuguese, todo orgullioso por hhaver encontrado uma mao de obta menos cara e menos propensa a0, aquilombamento.® Como intendente da ilha de Fran¢a, ele foi respon- sével pela conducao do trafico negreiro, negociando pelo menor valor possivel os precos dos seres humanos em Madagascar, na costa orien- tal africana ¢ nas fndias a fim de aumentar seu contingente na ilha Mauricio. No ambito pessoal, Poivre possuia 88 escravizados que tra- balhavam no cultivo das especiarias no jardim de sua habitagao cha- mada “Monplaisit” [Meu prazer) Ao partir, em 1772, Poivre revendeu sua habitagio ao rei, inchisive seus utensilios, seus méveis eo “campo dos Pretos", cedendo-Lhe seus 88 escravizados e seus 50 animais.* De maneira complementar aos decretos de preservacio das drvores nailha Mauricio, o decreto de Poivre sobre a “policia dos escravizados”, que reiterava a necessidade de eles serem instruidos na religio caté- lica e reduzia a trinta o niimero de chibatadas autorizadas," era uma politica de conservagao dos escravizados em escraviddo, contribuindo conforme seus prdprios termos para a sua “multiplicago" A insis- teneia de Poivre na cultura de gros alimenticios, tais como o arroz, mais do que nas culturas de exportacdo, como o café ou 0 algodio, tinha o intuito de alimentaras tropas colonials na rota de expansio do reino rumo ao leste, visando estabelecer outras plantations. A abun- dancia de drvores, escravizados e alimentos devia servir para a pre- servagao das colénias e das plantations do reino. Colonizador, senhor ¢ intendente de uma ilha-colénia escravagista, o ambientalismo de Pierte Poivre, assim como as demais medidas de preservacao dos solos, encaixavamse perfeitamente em uma ecologia negreira crista cujo “objetivo era preservar o habitar colonial da Terra e suas escravidées. a emancipasdo plantationéria: @ aboligdio sob a condicaio das plantations Por outro lado, uma das consequéncias da dupla fratura moderna é pensar que a escravidio dizia respeito apenas ao corpo dos que eram escravizados. Essa compreensio truncada da escravidio teve como consequéncia pensamentos do antiescravismo eda abolicdo que foram dissociados do habitar colonial e de seus efeitos sobre os ecossistemas. Gertamente, em um mundo colonial onde os impérios, as monarquias © as repuiblicas da Europa e das Américas concordavam em tratar 0s, Pretos como matéria Negra, a aboli¢o dos traficos e das escravidées foram avangos politicos e morais importantes. Do século XVIII a0 XIX, ‘em 1793 no Haiti, 1833 na Inglaterra, 1848 na Franca e 1888 no Brasil, foi preciso Iutare discutir para obter tais aboligdes, Entretanto, esses, ‘movimentos abolicionistas fizeram pouco caso do destino ecolégico ‘das colénias, Ao contrario, esses movimentos subordinaram as aboli- ges 8 manutencio da exploracio colonial da terra por meio da plan- tation, originando o paradoxo de uma emancipacio plantationdri Evidentemente, abolicionistas como Granville Sharp e Victor cheelcher tinham plena consciéncia de que a escravidio de Pretos cestava intimamente ligada a uma economia de plantation.* Bles des- ‘construiram o discurso dos produtores escravagistas, segundo o qual a escravidao de Pretos era uma necessidade duplamente natural pela sobrevivencia das colénias de plantation: discurso que apresentava Pretos como sub-humanos nao “civilizados”, naturalmente servis € naturalmente constituidos para trabalhar a terra nas latitudes tropi- cais. Em resposta, 0 trabalho teérico de antiescravistas e abolicionis- tas foi duplo, correspondendo a dois gestos conceituais principais. 0 primeiro, iniciado no século xvi, consistiu em defender e até ‘em estabelecer o lugar dos Pretos escravizados no seio da familia humana. Ele foi inspirado por um igualitarismo evangélico, a exem- plo dos Quakers entre ingleses e americanos, ou por uma igualdade {que repousava no direito natural, entre os franceses, tais como Denis iderot e Condorcet.* Esse gesto deu origem a discursos e ensaios de “negrologia’, que visavam demonstrar a humanidade dos Pretos e atestar que, tirados de sua condigao de escravizados, eles podiam ‘sereducados, civilizados e instruidos na religiéo, contribuindo para a prosperidade das sociedades coloniais.” Apesar da acuidade politica desses esforcos em defesa de Negros escravizados, eles compartilham ‘com os escravagistas o injusto postulado filoséfico que faza avaliagao juridica, politica e moral da escravidio depender de uma investiga- eo sobre a suposta natureza dos Negros. Paradoxalmente, perpe- tuam o imperialismo da ontologia que subordina a ética as questées, “0 que eles sio?”, “Eles so homens e mulheres?” e “Eles sio cristia- nizaveis?".* O medalho de Josiah Wedgwood," o romance A cabana do Pai Tomds, de Hatrict Beecher Stowe, a obra De la littérature des [Négres (Sobre a literatura dos Negros}, do abade Grégoire, e os dis- = Josiah Wedgwood (1730-95), industrial britinico do ramo da porcelana, eee nanan sblitrina m7 coma fs “fn otator ora AS otter [lune sow um homer ou un endo Ooo eaconquitar ‘apoio popular na luta abolicionista. (8-12), cursos de William Wilberforce” tiveram todos a fungao de justificar a consideracdo moral em relagao aos Pretos e de provar que eles perten- ‘em ao género humano, mostrando sua bondade ou sua inteligéncia, Esse gesto permitiu apresentar aos europeus ¢ americanos catélicos Brancos a escravidiio dos Pretos como uma injustiga e como uma vi aco do principio da igualdade natural dos seres humanos. Aos que Pensam que a escravidao é indispensivel 4s colonias, que “perecam as coldnias em vez de um prinefpio”, respondeu Schcelcher.* O segundo gesto consistiu em dissociar a esctavidio dos Pretos da economia de plantation. Tal gesto foi auxiliado pot um desenvolvi- mento do pensamento econdmico dos fisiocratas e dos liberais que ‘mostra a ineficdeia de uma mao de obra servil comparativamente a uma mio de obra livre.” Ele foi mais evidente no movimento interna- ional abolicionista, marcado pela criacao de sociedades nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Franca no fim do século xvii. Estratégico e Politico, esse exercicio de dissociacdo permitiu a coexisténcia de dois interesses percebidos anteriormente como contraditérios: a huma- nidade e a liberdade de principio dos Pretos, de um lado, e a manu- tengdo do habitar colonial por meio da produgao intensiva das plan- tations, de outro.» As vozes dissonantes de Condorcet e Sismondi propondo a divisto das plantations e 0 acesso dos ex-escravizados 4 terra surtiram pouco efeito.* Assim, de acordo com seu livro Des colonies francaises: Abolition immeédiate de Vesclavage (Sobre as col6- nias francesas: aboli¢ao imediata da escravidaol, Scheelcher concilia 4 aboligao da escravidao e a plantation com o emprego do trabalho livre: “As coldnias nao devem perecer, clas nao perecerao.(...] Nao € verdade que o trabalho livre é impossivel nos trépicos, trata-se ape- nas de saber determinar os meios para obté-to |... Toda a questéo para nés reduz-se, portanto, a: ORGANIZAR 0 TRABALHO LIVRE”™* Esse exercicio de dissociacdo deu origem a aliangas insdlitas em que alguns produtores escravagistas se tornaram, eles mesmos, abolicio- nistas, ai entrevendo a possibilidade de uma continuagao préspera de suas plantagées.* Paradoxalmente, a aboligdo da escravidao tornow-se uma aliada das plantations dos antigos senhores. Os decretos da aboli- ‘40 na Franca e na Inglaterra, que “indenizavam’ os proprietirios por suas “perdas’,tiveram a intengo de manter a empresa plantationdria, de exploragao da natureza, dos no humanos ¢ dos humanos. A nao redlistribuigdo de terras e a nio indenizagao dos recém-libertos os man- tinham sob a férula econdmica de seus antigos senhores. Penalizando a vagabundagem ¢ limitandoo acesso& propriedade da terra, 0s decretos que se seguiram a abolicéo da escravidao instituiram formas de “sala- riado bitolado”, que entravaram o desenvolvimento de um campesinato ¢ fixatam ~ em parte ~ 08 iovos “livres” em suas antigas plantations eoficinas a fim de continuar a trabalhar para seus antigos senhores.* ‘ainda, para atemuar a redugdo de mio de obra decorrente das resist2n- cas dos novos livres, a Franca e a Inglaterea rocorreram &servidto por contrato[engagisme). Desde 1853, essa politica trazia uma mao de obra parcialmente servl proveniente da Africa, da China eda fndia que, por tum periodo de tés a seis anos, assumia o trabalho dos ex-escravizados ras plantations.” Da servidio por contrato & organizagao de migragoes diseriminat6rias dos cidadios ultramarinos rumo a Franca continental @umidom) * passando pelos auxilios anuais aos grandes agricutores e pela hipertfofia do funcionalismo, a histdria politica das Antilhas fran- xs { ‘cesas éa histéria da manutenedo da plantation. ‘Uma mesma associagdo entre abolicio e plantation esteve em pré- tica no Haiti, A Revolugdo Haitiana (1761-1804), que combinow anties- cravismo ¢ anticolonialismo, com Céeile Fatiman, Dutty Boukman, ‘Toussaint Louverture e Jean-Jacques Dessalines, entre outros, niéo pro- dluziu uma mudanea radical na relagéo com a exploragio das terras pela ‘plantation. No dia seguinte & aboligao da escravidao, contra a vontade ddos ex-escravizados e diante dos numerosos protestos das mulheres {que jd desejavam ampliar sua agricultura de subsisténcia, o trabalho nas plantagdes fol imposto novamente por Polverel e Louverture. Em 1795 € 1796, este ultimo ni hesitou em reprimir com suas tropas as ebelides de excescravizados que viam nessa medida um retorno & escravidio. pProprietario de varias plantagées, Louverture associava explicitamente ‘a emancipagdo da escravido & continuacdo da plantation, facilitando em certos lugares. retorno de alguns colonizadores Brancos das regioes outrora sob 0 controle britanico.® Louverture foi pego pelo paradoxo plantationério imposto pelas poténcias coloniais europeias e america- nas, areditando que orestabelecimento da produtividade das mesmas plantagées que haviam subjugado os seus continuava a garantit aliber- dade deies diante das demandas internacionais de agticat e café A pri ‘meira Constituicio do Haiti, de 8 dejulho de 1801 ~ ainda uma colénia a época -, consagrou jutidicamente a manutengZo pés-escravagista da plantation, que no pode “softer a menor interrupgio” como principio estruturante da sociedade, legitimando qualquer medida do governa- dor para assegurar sua cultura pelos produtores etrabalhadores raras.” Por fim, lembremos que. -as aboligGes da escravidao, a. ‘principio, abri- ram a participagio politica dos ex-escravizados apenas aos homens. A dlespeito de sua importante participasio nas lutas antiescravistas, as mulheres outrora eseravizadas nao podiam votat, o que mantinha relagSes desiguais entre homens ¢ mulheres ex-esctavizados. Ainda que as aboligdes dos tréficos e das escravidses tenham sido progres- sos politicos, sociais e morais fundamentais para o mundo, deixaram em suspenso tanto as novas formas de subjugacdo pés-escravagistas inerentes ao sistema miségino das plantations como a destruigio dos ecossistemas ligados & exploracdo intensiva dos nao humanos. Essa aboligao sem: ‘ecologia nfo questiona em ahsoluto o habitar colonial, as formas inerentes de exploragdo da Terra e dos nao humanos. A eman- cipapio plantationaria e a abolicao sem ecologia convergem para o ‘mesmo horizonte: a manutencao da plantation negreira e miségina. Assim, a preservasio do habitar colonial ede suas plantations foi acon. digdo da aboligao dos e das escravidées dos Pretos nas. ‘Américas. Deis discursos criticos do mundo colonial moderno esto pre- sentes sem se comunicar. Por um lado, uma cotrente de preservacio da natureza aceita, sem alarde, preservar as florestas sob o fundo da escravidiio e do tréfico negreiro: wna ecologia negreira. Por outro, uta corrente abolicionista contribuiu para a emancipagao dos escraviza- ond ‘do século Xvi ao xvmit, deixando de lado as ‘degradacdes ambien- tais causadas pelos colonizadores: uma aboligio da escraviddo sob a condi¢do da plantation colonial. Uma emancipacdo plantationdria em que os grilhdes da escravidio foram rompidos ao mesmo tempo que se mantinham os ex-escravizados no meio do universo escravizador das plantations de seus antigos senhores. Alguns argumentos abo- licionistas consideravam até uma expansio imperial das plantations por) tneio' da colonizacao da Africa. Esse foi 0 caminho. que o Império Francés tomou nos séculos xix e xx quando, apoiado por uma ciéncia colonial, imps nas Américas, na Africa, na Asia e na Oceania planta- tions coloniais de algodao, borracha, café, cacau, oleaginosas, bananas, bem como a pecuiria e a exploracdo de minérios e de recursos fasseis das terras colonizadas.* Essas plantations: ‘subjugaram 0 conjunto dos indigenas por meio da organizagao republicana do trabalho forgado de homens, mulheres e criancas, do prolongamento da escravidao

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