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A DESCONSTRUCAO DE JACQUES DERRIDA Marcos Sisear A PROBLEMATICA ESTRUTURALISTA O termo desconstrugio (déconstruction), tal como é conhecido pelos te6ricos da literatura, provém da obra do fil6sofo franco-argelino Jacques Derrida (nascido em 1930 em El-Biar, Argélia e falecido na Franga em 2004), A palavra aparece pela primeira vez na obra Gramatologia, publicada em 1967, como maneira de traduzir ¢ adaptar aos propésitos do autor as palavras do fil6sofo alemao Martin Heidegger Destruktion ou Abbau. Evitando, nesse processo de leitura e traduco, 0 uso da palavra ‘destruigio’, a desconstrugio procura distinguir-se de uma operacio de aniquilagdo que estaria talvez, mais préxima da ‘demoligao’ proposta por Nietzsche. A desconstrugio no prope um movimento negativo de destruigio, de desarticulacio ou de decomposicao do pensamento, apesar da notoriedade jornalistica de que goza essa interpretagao do termo. Como explica no texto ‘Carta a um amigo japonés’, Derrida procurava com essa palavra designar “[.] uma operagio relativa a estrutura ou 4 arquitetura dos conceitos fundadores da ontologia ou a metafisica ocidental” (1987, p. 388, grifo do autor). A desconstrugdo apresenta-se, assim, como uma leitura da analitica existencial heideggeriana, herdeira da fenomenologia de Edmund Husserl, instalando-se no coragao da problemética ‘estruturalista’, propriamente dita. Curiosamente, ao mesn tempo em que o Estruturalismo se estabelecia institucionalmente, tanto na critica literdria quanto em outras ciéncias humanas, Derrida (1967b) propunha uma critica ao conceito de estrutura. No livro A escritura e a diferenca, o autor constata uma ‘invasio estruturalista’, afirmando que na questio da estrutura esta em jogo muito mais do que um fendmeno de moda, Para ele, a opcio pelo conceito € pela ferramenta analitica da estrutura cristaliza maneiras de pensar que séo bem mais antigas. Pode- se dizer, portantn, que a proeminéncia da problemstica estruturalista foi o ponto de partida para que Derrida desenvolvesse uma anilise da nogio de estrutura ¢ a situasse no contexto de uma vasta € rigorosa abordagem de suas raizes e ressonincias em toda a tradigio filos6fico-critica. Para Derrida, a teoria estruturalista, apesar de procurar romper com os discursos da verdade e da centralidade, quer seja ao retomé-los em parte, quer seja 0 rejeité-los em bloco, acaba por manter a suposigio de uma origem e, de certa maneira, a funcionalidade estivel de um centro. Trata-se de constatar que, apesar da radicalidade do gesto antimetafisico, questionador dos fundamentos, 0 salto para fora da metafisica é problemitico, pois “[...] ndo ha nenhum sentido em se abandonar os conceitos da metafisica para abalar a metafisica” (DERRIDA, 1967b, p. 412). A partir da leitura de conceitos desenvolvidos por Saussure, Lévi-Strauss ¢ Foucault, Derrida aponta para a quase inevitavel duplicagéo (redoublement) metafisica efetuada pelo gesto de ruptura antimetafisico. Ao basear-se numa ideia de estrutura como sistema de relagses diferenciais que eliminariam a necessidade da origem, opondo-se ‘0 jogo regrado e centrado caracterfstico da tradicao filosGfica, o gesto estrutural se realiza no ambito de sua propria impossibilidade, A leitura que Derrida faz do Estruturalismo funda-se, portanto, em uma interpretagio do tratamento dispensado a ideia do jogo da estrutura e nao pode ser reduzida & proposiggo do abandono dos referenciais légicos da tradi¢ao. O ‘jogo livre’, ou ogo sem fundamento assegurado, frequentemente interpretado como uma espécie de auséncia generalizada de regras (free play, segundo a expressio difundida peta critica americana), contribuiu para o enorme mal-entendido em relagao a uma suposta indeterminagio do sentido pregada pela desconstrucio. E preciso compreender esse jogo, nao como tentativa de demoligio de qualquer possibilidade de sentido, o que estaria mais préximo de certo trago estruturalista, porém, mais exatamente, como maneira de deserever a légica conflitante do discurso da estrutura, uma das variadas manifestagdes da crenca na ‘presenga’ em nosso pensamento ocidental, A ‘determinagio do ser como presenca’ caracteriza a forma matricial da metafisica ocidental, cujas Variantes seriam a esséncia, a existéncia, a substancia, o sujeito, a transcendentalidade, a consciéncia, Deus, 0 homem ete, A crenga nessa presenca, nessa manifestagdo presente da coisa, inclusive do Préprio sujeito do discurso (0 que determina a ideia de razo e consciéncia), seria uma forma de o pensamento garantir sua estabilidade e a centralidade de seu dizer. O pensamento ocidental, para Derrida, € um ‘logocentrismo’, resultado do privilégio e da centralidade da razdo entendida como presenga. Ao conecito de presenga, ligado a identidade, Derrida articula a palavra différance, sonoramente idéntica palavra francesa diffévence (diferenca), porém comportando um ‘erro’ inaudivel na prontincia dla palavra, um ‘a’ no lugar do ‘e” (différance é traduzida em portugués de diversas maneiras: diferanga, diferencia, diferancia, diferenca). A alteragio gréfica, que nao configura exatamente um neologismo, escapa & ordem do sonoro e do sensivel, inscrevendo-se na légica derivativa da escritura, Com essa dramatizagio retérico-te6rica, Derrida busca evidenciar que a diferenga em relacdo a si é constitutiva do pensamento ¢, mais do que isso, que néo ha como refletir sobre essa diferenga sem inscrevé-la na ‘mesma légica do desvio em relaco ao sentido préprio, sem duplicé-la incessantemente. A palavra différance procura fazer juz a essa constatagio, inserindo a diferenga derivativa na pr6pria formulagéo do coneeito: nao s6 no seu sentido, mas inscrita em seu corpo como escrita. ALOGICADO SUPLEMENTO Nessa focalizagio de problemas abrangentes do pensamento, temos 0 questionamento da ideia de lum sujeito que se sente € se percebe, de uma voz que ouve seu préprio murmirio. O logocentrismo liga-se, historicamente, a um ‘fonocentrismo’, a um privilégio da voz, do ‘murmitirio’ da consciéncia, da sensagio, da natureza como elemento que assegura.a autenticidade da experiéncia. A esse propésito,em Gramatologia, Derrida (1967a) analisa 0 texto e o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, destacando o processo de exclusao, que nele se opera, da escrita como attificio e perda da presenca. Para Rousseau, como mais tarde para Lévi-Strauss, a escrita é um fenémeno da cultura. No sistema de pensamento Tousseaufsta, em consonancia com um privilégio que se inicia na propria filosofia platénica, a voz esté réxima da pureza e, consequentemente, da legitimidade conferida ao natural; a escrita aparece em Rousseau, por outro lado, como um ‘suplemento’ da voz em sua auséncia e, como tal, suspeita de inautenticidade, 196 —TEORIA LITERARIA gesto da desconstruedo consiste aqui em retomar a nogéo de suplemento ¢ analisar suas consequéncias no texto de Rousseau, atentando para os contextos ¢ relagées por ela instaurados, SCONSTRUGKO DE JACQUES DERRIDA Surpreendentemente, do ponto de vista do sistema de pensamento de Rousseau, Derrida encontra ali momentos em que o autor estabelece a necessidade, geralmente culposa, do suplemento a fim de suprir uma falha da natureza. O exemplo mais claro é o da cena em que Rousseau explica porque se tornou eseritor, afirmando que 0 ocultamento provocado pela escrita é necessério para se mostrar a verdade do sujeito que faz suas Confissdes: ‘Eu presente, nfo se saberia o que valho’, escreve Rousseau, O suplemento, necessério para preencher a lacuna do natural, também aparece no momento em que o autoerotismo impée-se sedutoramente como maneira de suprir 0 contato com o sexo ausente. Vemos, nessaanilise, de que maneirao que € condenado como destruigao da presenga (aescrita, oautoerotismo) € reabilitado subrepticiamente como estratégia para se reapropriar daquilo que a experiéncia perdeu. O que era veneno, mostra-se também remédio: um pharmakon, na ambigua palavra usada em Plato e analisada por Derrida, em A farmacia de Platdo (1972a). O ‘suplemento’ torna-se assim o elemento a partir do qual se operam as aporias, os conflitos insoliveis do pensamento. A escrita é um suplemento, na medida em que ela retine em si as caracterfsticas de substituta da presenga (origem da perversio, exterioridade do mal) e as caracteristicas da adi¢ao produtiva (sorte da humanidade, positividade da cultura). Nessa leitura do fil6sofo ¢ romancista Jean-Jacques Rousseau, Derrida nota que a origem é concebida como aquilo que se afirma e se perde concomitantemente, que a imediatez ‘sempre J8’, desde 0 inicio, derivada. Isso se aplica a propria intencionalidade da escrita que € sempre suplementada por algo mais, algo menos ou coisa diferente do que se ‘quer dizer’. Vemnos, exemplarmente, como 0 texto de Rousseau afirma de maneira explicita uma condenagio a escrita, mas a pressupde e a reafirma continuamente, como se incorresse em ‘pontos cegos’ na perspectiva do pensamento. Para Derrida, a leitura néo deve ter como ilusio 0 respeito do contetido dito intencional de um texto, ainda que o dominio do que se considera o aspecto contextual e convencional de tal texto seja instrumento importante de qualquer leitura; nao ha intencionalidade do texto, contetido univoco daquilo que ele ‘quer dizer’. Por outro lado, e de maneira paradoxal, a leitura também nao pode transgredir o texto a partir de referéncias pré-determinadas (metafisica, hist6ria, psicologia), impor-Ihe uma verdade a partir de um conhecimento exterior; ou seja, segundo uma frase conhecida, nao hé um fora do texto (i n'y a pas de hors texte), nao hé referente ou significado transcendental. Na verdade, € por meio das cumplicidades ¢ dissonancias entre o sistema de pensamento e a realizagao da escrita de determinado autor que temos a revelagao de uma textualidade mais ampla, que se afirma e que se nega ao mesmo tempo. O ponto cego, o ndo-visto, € aquilo que abre ¢ I ilidade (0 sentido) de um texto, O seu sentido se localiza, assim, em um lugar intermediairio - 0 kimen, diria Derrida (1972a) em sua anélise de Mallarmé, em La Dissémination — e aporeticamente ‘indecictiver’ Na medida em que o sentido de um texto nao coincide com aquilo que parece ser a sua literalidade ou intencionalidade, toda leitura de texto pode ser considerada como uma produgao de sentido. Assim sendo, a desconstrugio € um gesto produtor de sentido, mas uma producao que tem como particularidade a ativacao ou a aceleracao do movimento conflitante no qual o préprio texto € sua leitura estado implicados. A esse movimento, Derrida preferiré mais tarde dar o nome de duplo gesto ou double bind, usando a expressio inglesa. A desconstrugao interpreta 0 texto como um double bind no qual esté em jogo a prépria (im)possibilidade do sentido ou da experiéncia, Pensada dessa maneira, dando énfase & irredutibilidade ou ao acontecimento do ato de leitura, a desconstrugio dificilmente poderia ser tomadd como ponto de apoio para o estabelecimento de um método de anilise. Tomas Bonwicr / Lucia Osana ZoLin (oncamizavones) — 197 Bhscas LITERATURAE VERDADE ‘Accentralidade do problema da origem nos faz. considerar que aquilo que esté em jogo no discurso (incluindo-se af 0 literério) é sua relagdo com a fundagio do sentido, sua relago com a ‘verdade’, segundo a palavra filosoficamente prestigiada. Nesse sentido, € preciso lembrar que 0 conceito de literatura € uma produgao da filosofia, uma ideia criada por filésofos. Quando Plato, por exemplo, fala de literatura (‘poesia’), ele esté construindo um conceito, um ‘filosofema’. Por isso, podemos dizer, como Derrida (1972a), que a literatura é, de alguma maneira, ‘fitha’ da filosofia, faz parte de sua histéria, é um dos elementos de seu sistema e est marcada consequentemente por uma série de estruturas e nogées de natureza filoséfica (imitacdo, forma, tempo etc.). Nesse sentido, o conceito de literatura, definido tradicionalmente pela ideia de desvio imitativo, funcionaria no fundo como uma estratégia do discurso filosofico para legitimar-se e garantir sua especificidade como discurso neutro. Marcada desde sua origem por tragos caracteristicos do pensamento filosélico, pode-se dizer que na literatura est em jogo @ problemética da verdade. Por extensfo, nela esta também em jogo problema de sua identidade enquanto género ou tipo de discurso. Em outras palavras, a literatura € um lugar no qual a relagdo com a prépria verdade € fundamental para se compreender o sentido de um texto. A consequéncia mais imediata disso € que a literatura nao pode ser vista como objeto a ser classificado ou compreendido exclusivamente por meio de suas préprias convengdes. Se existe literatura, 6 na medida em que esta nfo se deixa apreender em termos de pertenca a um campo ou a uma classe, como afirma Derrida (1985) em texto sobre Franz Kafka. Ou seja, a definigfo do liter: nio pode ser anterior ao literirio. Como dizer 0 que a literatura ‘é’ sem levar em conta o que nela se apresenta como sendo literatura? Como fazé-lo sem projetar sobre ela, do seu ‘fora’, um referente ou um significado transcendental? io ‘Vemos que, se nio existe esséncia da literatura, um dominio propriamente literério, nem por isso aquilo a que chamamos texto literirio exclui o problema da sua nomeagao, de sua ‘verdade’. Pelo contrério, é precisamente esta a questo que parece se impor: o problema da literatura esté presente em todo texto que se coloca como literdrio ou que ao litersrio, de alguma maneira, se ope. Pode- se dizer que a verdade da literatura constitui interesse e sentido do texto literdrio, Na ‘literatura’, realiza- se um drama do nome, uma relago paradoxal com a verdade do nome que comparece aur. proceso de insubstituivel singularidade. Por isso, a ‘lei’ de que fala ‘Diante da lei’, de Kafka, é antes de mais nada a lei da literatura, a lei propria diante da qual um texto se coloca e que 0 define como tal; € a propriedade do proprio lugar do qual se fala que est em jogo, situagao que tem consequén evidentes para problemiticas de natureza ideolégica e psicanalitica, entre outras. Mas se na literatura esté em jogo a verdade, devemos nos interrogar também sobre 0s modos pelos quais essa relagio se estabelece. Sabemos que, tradicionalmente, a relacao da literatura com averdade é tida como ilegitima. A literatura € definida como uma derivagao imitativa, ou seja, como ‘um desvio em relagao ao discurso neutro, sério ¢ responsavel (Platdo). A literatura é dado constituit sua exceléncia dentro do espaco de coeréncia das regras do bom uso da imitagdo (Aristételes) e no naquele de sua relagdo com o lugar da origem, Mas essa constatagio talvez seja ainda muito genérica, Derrida lembra que a histéria dessa relago entre literatura e verdade ¢ organizada, nfo apenas ou nfio exatamente pela mimesis (imitatio, segundo a problemética tradugio latina: ‘imitagio’, em portugues), mas por certas interpretagdes da mimesis. De Plato, que condena a mimesis como falseamento da verdade e irresponsabilidade do poeta, ao poeta sinibolista Mallarmé, que reinscreve 0 problema mimético como ponto de originalidade e de dificuldade do literério, segundo Derrida, “[..] uma hist6ria teve ugar” (1972a, p. 209). Essa histéria constitui o percurso da prépria literatura, ao longo do qual acompanhamos a constante reafirmagao ou contestaco do literério entendido como desvio da neutralidade, da literalidade ou da racionalidade. Pode-se dizer, basicamente, que essa hist6ria consiste na oscilagZo entre duas maneiras de interpretar a mimesis: em um caso, a relagdo entre 0 texto ¢ o mundo € vista como adequagHo, relacdo de semethanca ou de igualdade (homoiosis ou adeequatio); ‘no outro caso, a relagao entre texto e mundo é entendida como desvendamento daquilo que estava oculto (aletheia), 198 —TEORIA LITERARIA ‘Nessas duas interpretagées, a mimesis est vinculada ao processo da verdade, Por um lado, ela interpreta o discurso em sua relagdo de semelhanea com a coisa; por outro lado, ela o interpreta como apresentagio da coisa ela mesma. A oposicdo entre esses dois tracos resumiria as raz6es eos problemas do embate pela ideia de literatura no Ocidente. A literatura deve ser entendida na sua relagio com a realidade pré-existente ou estabelece, ela mesma, a sua realidade? Derrida nao pretende vincular-se a nenhuma dessas alternativas, nem mesmo propor uma terceira; trata-se simplesmente de revelar a ogiea dessa oposi¢ao, as cumplicidades e as consequencias espectficas que caracterizam ¢ delineiam 08 discursos sobre a literatura importante, para Derrida, parece ser a demonstragio de que, nos dois casos, mantém-se intocada a ideia de uma origern reconhecivel. Caracterizando-se por apresentar a coisa ou por assemelhar-se a cla, o discurso literirio mantém intacta a ideia de que essa coisa € delimitavel, relativel, nomedvel, ainda que, por vezes, essa ideia se construa por meio de procedimentos de negacio, de descrenca no poder de nomeagio da linguagem. Ou seja, apesar das diferencas (que se poderiam associar de maneira produtiva as divergéncias atuais entre as ideias de expresso ¢ produgio), encontramos de fato uma cumplicidade que nio altera fundamentalmente a situacio te6rica, tal como a apresentamos, ‘Ao descrever o resgate ou a producao da verdade, estamos permanentemente supondo a possibilidade, ainda quea posteriori, de designar e, portanto, de definir essa verdade. Nao ha diivida de que as diferentes, solugdes para o problema da mimesis literaria esto associadas a préticas histéricas ¢ metodolégicas bem diversas; porém, a0 mesmo tempo, devemos lembrar que essas diferentes abordagens reforgam a vinculagao do pensamento com uma linhagem metafisica que as empenba teoricamente. ‘Apesar da vinculagio com o discurso da verdade, a literatura nao consiste apenas na reiteracdo da légica que a precede. Diferentemente, nesse ponto, da critica de natureza ideol6gica, a referencia & questo é também ocasifo, para Derrida, de sugerir a produtividade daquilo a que chamamos literatura, uma forga deslocadora que nao constitui exatamente uma ruptura, mas um redimensionamento do problema a forga de incorporé-lo em seu proceso. Assim, a0 analisar a obra de Mallarmé, Derrida distingue paralelamente a ocorréncia de um deslocamento na hist6ria da metafisica literéria, quando 6 texto passa a incorporar, em sua textualidade, por meio de encadeamentos miméticos, essas co- implicagées conflituosas com a verdade. A escritura enxerga-se no abismo da propria representagio. ‘Mais do que isso, esse deslocamento operaria uma alteracao na trajet6ria da nossa reflexio sobre a ‘mimesis literéria. Acompanhando a anilise derridiana de outros autores, como Edmond Jabés, Francis Ponge e Paul Celan, por exemplo, fica claro que esté em jogo na literatura uma fungio de abertura para a alteridade (DERRIDA, 1986). A literatura é uma abertura para o ‘acontecimento’, isto €, para a manifestagao do sentido em sua (im)possibilidade (palavra na qual 0s parénteses indicam uma dupla afirmacao, conflituosa ¢ indecidivel). De uma maneira ou de outra, nao € dificil perceber como a literatura, no sentido moderno (isto 6, a partir do romantismo alemao), dramatiza a problematica da mimesis e da relagio com a origem do sentido, colocando-se a dificil tarefa do cruzamento da criagao com a reflexdo erftica. Segundo o critica americano De Man (1999), a hist6ria recente da literatura pode ser entendida como a histéria de uma ‘desmistificacao’, isto é, da revelagdo da historicidade do sentido e da impossibilidade de reter a sua deriva, Analisando a obra de Jean Genet, em Glas, Derrida (1974) afirma que, mais ambiciosamente, o grande desafio do discurso literério é experimentar uma lenta e constante ‘transformagio em coisa’. O projeto do discurso litersrio € constituir 0 texto para além dos limites da representagao; 0 texto literério deseja se realizar nao como texto de (ou sobre a) coisa, mas como texto-coisa. Dessa forma, 1a paixdo do poeta, na qual se realiza sua sabedoria, sustenta Derrida a propésito de Edmond Jabes, 6“[..] traduzir em autonomia a obediéncia a lei da palavra” (1967b, p. 101). A forca de pensar e de claborar a ‘obediéncia’ constitutiva da palavra como convengio ou lei, 0 pocma scria capaz de realizar ‘uma espécie de sentido. Ao fazer isso, estaria transformando e metamorfoseando a prépria lei que se presenta como incontornével. Esse gesto ousado de liberagdo da palavra de sua natureza convencional, reiterativa; expressiva, 6, nao exatamente sua natureza, mas o desafio que a literatura se coloca. ‘Trata-se no fundo de um gesto contraditério, uma vez que a liberagdo da palavra se dé em nome da propria revelagéo dessa impossibilidade. O discurso literério avizinha-se de uma visio da linguagem que revela os limites da Twowas Bonnict / Locia Osana Zoun (oRcanizaoones) — 199 Bhccas ideia de semethanga e adequagiio, ao mesmo tempo em que coloca o gesto literdrio bem préximo de uma légica criacionista na qual o texto é visto como fundagéo mitica do sentido. Pot isso, 0 aspecto ‘onal da linguagem passa a ser apontado como uma espécie de ingenuidade do platonismo © 0 carter performativo como o grande desafio do literdrio, A.cRIAcAo IMPURA 0 ‘performative’, fungao da linguagem teorizada por J. L. Austin, servitia aqui como modelo daquilo a que se propée a linguagem literdria: a realizagio, pelo enunciado, daquilo a que esse enunciado se refere (exemplo: a frase que articula uma promessa, ‘eu prometo’, instaura essa promessa, ela ¢ a prSpria promessa), Trata-se de um uso da linguagem em que ‘dizer’ também ‘fazet".O performative € 0 enunciado no qual esta em jogo o acontecimento de sentido. {ieriria de inspiracio formalista ou devedora do Neto Criticism, que enfatiza a capacidade de produgéo indo, em contrapartida, os vinculos desse texto com elementos extralinguisticos (historia, biografia, cultura etc.). As cumplicidades entre fungao poética (Jakobson) ¢ funcao performativa da linguagem sio patentes, se as tomarmos pela perspectiva de sua relacio com © problema mimético, Uma das ideias mais comuns sobre o texto literario, partilhada alias por virias tendéncias criticas, € justamente a que afirma a unio entre som e sentido, entre forima ¢ contetido, Gutra maneira de dizer que a literatura diz. aquilo que ela faz. A eoincidéncia entre fazer ¢ dizer ¢ de praxe e a identificagao entre esses dois extratos define, para muitos, a natureza do texto literdrio, preserevendo ao mesmo tempo a tarefa da demonstracdo detalhada (as vezes, estratficada) deseay cumplicidades, Ora, analisando 0 performativo, Derrida (1972b) nos mostra outra maneira de pensar essa questio. Segundo ele, a teoria dos Speech Acts nio leva em conta fungées citacionais da linguagem, como a ironia, a parddia, 0 pastiche ete. Para que um performativo seja reconhectvel como tal, ¢ preciso saber se uma promesse, por exemplo, nao € uma encenacio ou uma itonia, se o enunciador Aue di ‘eu prometo’ intenta de fato estabelecer 0 pacto da promessa, Para Ser reconhecido, portanto, © performativo pressupde 0 conhecimento e 0 dominio do contexto (sentido, intencionalidade). E precito duc o contexto seja absolutamente determinavel para que se possa dizer com certeza que usna Manifestagio de linguagem é um performativo e nfo uma citagdo de performativo, uma ‘releréncia’ Derrida constata, nio obstante, que a ideia de contexto nao é problematizada pela teoria dos Speech Aets; 0 contexto € apenas pressuposto como dado. Ora, falamos sempre fora de contesto. A manifestagio da palavra (da ‘fal’, nos termos de Saussure) é um desafio & determinagéo da totalidade de seu contexto. Nesse sentido, o contento da lunna fala nfo € nunca absolutamente determindvel. As teorias das fungées da linguagem, no entanto, opcrarn basicamente a partir da ideia de que o contexto pode ser descrito integralmente. Se penearmion na conhecida “fungio poétiea’ de Jakobson (definida por ele como “ o enfoque da mensagem por ela ‘Mesma’, notamos claramente como a determinagio dessa funcio procutiva da linguagem depende de um eéleulo do contexto e como ela pode ser referda, citada, usada em outros tipos de conterte A natureza dos prdprios exemplos de Jakobson para explicarafungio posta sto esclarecedotes:afungao poética pode estar tanto numa frase publicitéra ou eleitoral (ike Ihe) quanto na linguagem eotidians, Mas como saberemos quando ha citagio, uso parasitério, e quando hé um uso sério de determinada funcio? Ou seja, como saberemos onde termina o poético ¢ onde comeca a publicidade? Jakobson Tesponde a essa pergunta propondo calcular 0 eariter ‘dominante’ de determinada fungao dentro de lum texto, O que define essa dominancia, porém, nao é uma determinagio puramente quantitaiva, roas o problema anterior do reconhecimento do tipo de uso (efetivo ou citacional, sério ot nio-sério) que cada fungio recebe em contextos especifios. Dizer que um slogan eleitoral nfo € postion € apenas ‘eiterar 0 que jf esta dito e percebido pelo senso comum ¢ formalizado numa tautologia (um slogan 200—TEORIA LiTERARIA ¢leitoral é uma frase com funcio eleitoral). Em que condigdes se pode determinar a fungao politica de uma frase? Na teoria dos atos de fala, para que um performativo de fato se realize é preciso que haja essa depuracdo dos dados contextuais, nao podendo haver diividas quanto ao sentido ou a intencionalidade do processo. Em outras palavras, o performativo deve ser necessariamente puro ¢ presente a si mesmo, necessariamente bem sucedido. Considerando a dificuldade de um controle total do contexto, Derrida langa a seguinte questio: 0 que € 0 sucesso quando o fracasso (considerado acidental) continua sendo uma possibilidade estrutural? quando a enunciacéo performativa continua passivel de ser citada, por exemplo? Temos af um caso ‘anormal’ e ‘parasitério’, segundo as palavras de Austin, Austin atribui ao fracasso do performativo as mesmas caracteristicas que a tradigao destina & escritura (0 parasitario, © ndo-sério, 0 nao-ordinério); procurando anular a ‘parasitagem’ do uso anormal do performativo, acaba considerando como uso comum e neutro do performativo uma determinacao teleolégica ¢ ética da linguagem. Assim, conclui Derrida, definir 0 performative depende de sermos capazes de reconhecer 0 que seria sua deformagio; o performativo supde compartilharmos um cédigo. Eis que, “[.] consequéncia paradoxal mas inelutével ~ um performativo bem sucedido é necessariamente um Performativo impuro” (1972b, p. 388, grifo do autor), ou seja, a nogio de performativo dependente de uma estrutura citacional, Como pensar a literatura a partir da fungio performativa, linguagem sem referencia? Em certos contextos, essa alteracdo na concepgio referencial pura, ‘imitativa’, da linguagem pode servir como uma interrogagao importante para a prdpria teoria da linguagem. Pode agir no sentido de liberar 0 texto do controle interpretativo de uma transcendéncia (social, histérica, psiquica etc.) que o precede ¢ 0 determina de antemio. Coloca-se, portanto, como elemento a partir do qual a literatura busca a singularidade e a poténcia nomeadora da palavra. Entretanto, entendida como trago dominante do literario, a fungao produtiva nfo faz senéo reiterar um trago recorrente do discurso sobre a mimesis instauradora, Vimos que, na sua formulagio descritiva, 0 performativo deixa em aberto o problema da relagao com a origem, tal qual o vinhamos discutindo acima. Nao se trata de negar a existéncia de ‘efeitos’ performativos, mas de lembrar que, para existirem, eles pressupdem a possibilidade de fracasso; constituem-se, no fundo, da relagio dissimétrica que mantém com sua possibilidade de fracasso. Em outras palavras, o performativo esta sempre prépria dificuldade ~ ¢ sempre impuro. Esto af as razdes da dificuldade do ‘desafio’ literério. Esse ‘espacamento’ na estrutura do performativo, isto é, essa naio-coineidéncia do performative consigo mesmo, aproxima a escritura daquilo que seria uma criagio, mas uma criagio impura, para a qual a ruptura da presenga aparece como caracteristica de seu modo ambivalente de manifestagao (seu ‘trago’). envolvido com A preferéncia manifestada por Austin Por enunciados em primeira pessoa, na voz ativa e presente a enuneiacao, Derrida prefere retomar a nogdo de assinatura como caso do conflito da presenga no discurso escrito. A originalidade enigmética da ‘assinatura’ se deve a uma singularidade que perdura, “[...]areprodutibilidade pura de um evento puro” (1972b, p. 391). Sendo manifestagao da singularidade do individuo, a assinatura claramente coloca em jogo a natureza ¢ 0 papel do ‘estilo’ em literatura. Em Signéponge (1988), livro sobre o poeta francés Francis Ponge, Derrida explora as implicagées do interesse de Ponge pela assinatura, associando-a inclusive & visdo que o poeta tem da lingua francesa € da necessidade de depuragdo do discurso ornamental, Colocando a poesia na proximidade da mais desarmada ‘ligio de coisas’, a assinatura que confere a Ponge a sua singularidade pressupde constantemente, a0 mesmo tempo, a necessidade de uma contra-ussinatura (a contra-assinatura das ‘coisas’) para poder confirmar-se e validar-se. O que € um ‘estilo’, marca da singularidade (0 estilo €0 préprio homem, segundo o dito famoso de M. de Buffon), quando essa singularidade identitéria precisa do contraponto necessério (¢ as vezes mesmo da injungio, de um ‘vocé deve’) da alteridade manifesta nas coisas? Como no caso dessa leitura da poesia de Ponge, ao entender o estilo a partir das disjungées da assinatura, adesconstrucio nos coloca também a tarefa de rever varios outros elementos que constituem 08 instrumentos de base do discurso literério. Twowas Bonwict / Lacia Osawa Zoun (oRaaNiza00REs) — 201 ‘DESCONSTRUGAO E TEORIA DALITERATURA Accontribuigao da desconstrugdo para a teoria da literatura ainda nao foi suficientemente pensada, embora, ao dizer isso, seja preciso lembrar que a propria ideia de ‘contribuigao’ tem um reco a pagar a uma concepcao acumulativa ¢ teleol6gica de teoria. Do mesmo modo que Derrida no elabora e nao fornece um método de anilise literdria, nao hé como formular uma teoria da literatura da desconstrugao sem trair suas pr6prias proposiges. Isso a comegar pelo simples fato de que a obra de Derrida nao se organiza em torno de formulagdes tedricas. &, alias, caracteristica da obra do autor a rodugio, nao de tratados sobre problemas gerais, mas de andlises de textos e problemas especificos de diversos autores, Pensadores inspirados pelo seu trabalho, como Jean-Luc Nancy e Philippe Lacou Labarthe, na Franca, no deixaram de seguir esse caminho. Para Derrida, como vimos, o problema nao € exatamente 0 de dizer o que uma obra literdria ‘é, mas analisar o sentido daquilo que se acredita ou se afirma ser literatura. A desconstrugdo € menos uma exegese de fatos (uma vez que néo hé fato que nao seja produgio interpretativa) do que um drama da interpretagao, uma vez que a interpretagao configura um fato, ¢ este uma interpretacdo, e assim por diante. Seguindo aqui o diagnéstico de Culler (1999), a polémica estabelecida em torno de problemas da teoria da literatura nfo é tanto pelo que ela pode nos dizer sobre o que é uma obra literéria, mas pelas, consequéncias que essa defini¢ao tem em relacao a escolha dos métodos utilizados na sua andlise. ‘ada maneira de se ler uma obra itnplica tipos de inscrigao estética e cultural muito diferentes entre sie tem consequéncias isaportantes para 0 proprio papel da critica. Perspectiva relativamente diferente em relagéo A maneira de se referir & desconstrucéo tem sido adotada pelos autores anglo-saxdes, preocupados, em alguns casos, em explicar ¢ operacionalizar metodologicamente as propostas desse saber sobre o texto. Nesse sentido, o leitor interessado em tomar a problematica da desconstrugio retrabalhada pela perspectiva das categorias literdrias 1é, com proveito, o trabalho de criticos ingleses e americanos (sobretudo os da chamada ‘desconstrugio americana’) que ajudaram a divulgar o trabalho de Derrida e fizeram importantes intervengées na teoria da literatura das tiltimas décadas. Paul de Man, Jonathan Culler, Geoffrey Hartman, J. Hillis Miller, Peggy Kamutf, Christopher Norris, Derek Attridge e Geoffrey Bennington sio alguns desses autores que, de maneiras diferentes, mas pontuais, ajudaram a estabelecer o prestigio internacional hoje ligado a obra e as ideias de Derrida, De uma maneira ou de outra, a desconstrugio nao tem se omitido em desempenhar um papel de destaque nos debates atuais, sobre a natureza da literatura e sobre seu lugar dentro das relacdes de poder do mundo contemporéneo, ainda que o faa de maneira complexa e eventualmente conflitante, uma vez que, sob o mesmo rétulo ‘desconstrugao’, inclui-se uma gama muito variada de autores, nem sempre afinados em relaedo aquilo que o termo quer dizer. Do ponto de vista da tradicao académica americana (e em parte da brasileira), a desconstrugio € geralmente interpretada como um modo de pensar o texto que questiona os postulados do Estruturalismo e do New Criticism, além de incomodar a boa consciéneia tedrica da critica marxista ortodoxa. Na medida em que esse contexto nos dé um elemento de diélogo, seria possivel reconhecer algumas referéncias e remissées teéricas que aparecem direta ou indiretamente nas andlises propostas por Derrida, as quais podem ser entendidas em contraponto com ideias e conceitos operatérios caracteristicos da critica literéria nas diltimas décadas.. Questionando o privilégio da ideia de presenca a si consciente ¢ estavel, a desconstrucio é um gesto de pensamento que coloca em questio idealidades metodolégicas muito comuns na critica literdria, tais como: a individualidade criadora (a ‘autoria’), a obra como totalidade reconhecivel, a unidade da leitura, 0 caréter acidental da figuracio, 0 papel fundador da experiéncia vivida ou da formalidade linguistica, os conceitos de ‘género’, de ‘forma’, de ‘expressio’, entre outros. Nogdes como a intencionalidade (autoral ou textual) e singularidade do estilo (individual ou histérico), como vimos, so também afetadas por um procedimento que podemos descrever como uma atencio a todo tipo de insténeia na qual esteja envolvida a definigao de presenca ou identidade. Considerando, por 202 —TEORIA LITERARIA exemplo, a maneira pela qual um texto literério trabalha questies como o ‘desejo’,o ‘corpo’, o ‘tempo’, © ‘nacional’, a‘alteridade’ etc., a critica estaria comentando a relagdo desse texto com o acontecimento do sentido. Trata-se nio de negar sistematicamente as referidas ‘idealidades’ do discurso da critica, até porque elas tém papeis muito diferentes no processo de leitura, mas de reconhecer no texto a base de sustentagdo de uma identidade discursiva e mostrar, por meio de seus deslocamentos, exclusoes e hierarquizagbes, os impasses desse discurso do ponto de vista de sua relagéo com a origem. Se considerarmos a desconstrucéo como uma forma de dramatizagéo dos conflitos entre o discurso e suas exclusées, recalques ou cumplicidades nao admitidas, podemos dizer que se trata, fundamentalmente, na leitura de um texto, de sublinhar a estrutura tensa que esté na base da relagio supostamente pacificada com a origem do sentido (arelaedo logocéntrica). Dito de outra maneira, trata- se de dar destaque & discordancia entre a ‘gramética’ (aquilo que um texto faz e diz explicitamente) © ‘ret6rica’ (a produtividade textual implicita) de uma obra, usando as palavras de De Man (1996). ‘Tomemos um exemplo. Em anilise de texto de Marcel Proust, extraido de Em busca do tempo perdido, De Man mostra como o autor trabalha a situagio romanesca por meio das associagées metaforicas. No episédio descrito, o narrador conta sua relagZo com a leitura e a insere na situacao solitéria do quarto envolvido pela penumbra. Essa situacdo ganha sentido a partir da associagéo com a exterioridade da rua, promovendo a aproximagao entre o escuro (luminoso) do quarto e o claro da rua, entre a agitagio externa e o turbilhio da leitura. Com essa correspondéncia interior/exterior, segundo De Man, Proust dé destaque ao procedimento metaférico e, paralelamente, concebe o ato de leitura como momento de correspondéncia entre o significado externo (texto) e 0 entendimento interno (leitura). A gramética do texto de Proust consiste, portanto, numa praxis figurativa que coincide com a defesa explicita de uma espécie de superioridade estética da metéfora. No entanto, segundo De Man, o texto nfo pratica exatamente aquilo que prega. A presenga de uma teoria metafigurativa (que, por meio de procedimentos metaféricos, defende um ponto de vista ‘sobre’ oproblema da figura) complica a ideia de que o conhecimento se constitui como metéfora, De maneii semelhante, as estruturas metonfmicas que sustentam o texto entram em conflito com as articulagées metaf6ricas explicitas. Usada para aumentar 0 grau de persuasio da defesa da metafora, a presenga da elagdo metonimica estabelece uma tensio que corresponde a dissociagao entre a gramitica e a retérica do texto de Proust. Pode-se dizer, nesse caso, que a ret6rica desautoriza a gramética do texto. Apesar de compreender 0 ato de leitura como uma confluéncia entre o fora e 0 dentro, inclusive tematicamente, ou seja, como uma unio do sentido do texto com o sentido da leitura, o texto de Proust se revela justamente no ponto em que a leitura desautoriza a produgdo. Percebemos af uma maneira de trabalhar o texto bastante diferente dos gestos de conciliagio, que procuram articular em um sistema analitico fechado elementos que se apresentam em continua oscilacdo, entre a convergéncia e o descompasso (forma ¢ contetido, social e formal, real e textual ete.), Essa desconstrugio nio concebe o texto como totalidade harménica. Embora o desejo ou o projeto de totalizagao seja uma das insténcias a serem consideradas, a ‘textualidade’ do texto € constituida por um duplo gesto, uma relagdo de cumplicidade conflituosa entre o projeto afirmado e suas exclusées. Nesse sentido, pode-se dizer que a desconstrugio valoriza o reconhecimento do impasse, instaurado por meio de dissimetrias discursivas. Esse reconhecimento no é da ordem da contradigéo Performativa (inconsisténeia tedrica), nem de um puro performativo da contradi¢&o (realizacio oética). Trata-se, mais exatamente, de um efeito que nos leva a experimentar as dissociagdes entre © fazer € o dizer. Se por um lado a desconstrugio questiona o performativo poético, por outro lado, no ‘mesmo gesto, coloca como condigéo de existéncia da literatura a realizagio de um ‘efeito’ de impureza: apenas € literatura aquilo que, nim ceterminado ato de leitura, se realiza como gesto que desauturiza & sua prépria apreenséo como modelo. Nada mais estranho, portanto, ao literério do que consider4-lo como uma forma da ajuda, ou da ‘autoajuda’: a literatura teria aver mais exatamente com a inquietagéo € com o desassossego, ainda que nfo exatamente psicol6gicos. Comportando ao mesmo tempo a impureza e a revelago dessa impureza, a literatura acabaria Produzindo implicages praticamente interminaveis para uma tentativa de definigao do literétio. Quando Fernando Pessoa, no primeiro verso de um poema do livro Mensagem, refere-se ao fato de que Twomas Bonwici / Lacia Osana Zouin (oneanizapones) — 203, todo comego ¢ involuntitio, ele expde o impasse do saber literdrio (do conhecimento que nao pode se conhecer) e se langa no amago de uma ambivaléncia performativa que caber4 a seu poema viver numa arriscada luta corporal, tanto filosdfica quanto histérica, padecendo inclusive dos revezes ¢ dos nds dessa relaco entre hist6ria e verdade, essenciais para a definigdo de sua prépria condigao identitaria, Retomando o sentido mais geral da desconstrugao para a teoria da literatura, podemos dizer que ela discute € coloca em questio, tanto a ideia do literdrio como discurso ilegitimo sobre a verdade, quanto a ideia do literério como ‘forma de conhecimento’ privilegiado. A leitura dos textos de Derrida parece propor que averdade do literério s6 ¢ vislumbrada no impasse ou na paixio de uma experiéncia singular, No texto Che cos’? la poesia (1992), Derrida apresenta a questio da poesia, distinguindo a nogio de texto poético tanto da ideia construtiva implicada no fazer (poiein) quanto do projeto idealista da ‘poesia pura’ e até mesmo da ‘realizagdo-da-verdade’ de inspiracio heideggeriana, Questionando vis6es de texto baseadas no argumento da identidade, o autor propde uma ‘certa paixio da marca singular’ como 0 modo de manifestacdo do pensamento sobre o poético. Nessa mudanga de perspectiva do ponto de vista da teoria da literatura, 6 a pr6pria relagdo com o saber tebrico (com a pratica hist6rica, com a experiéncia identitéria etc.) que se encontra transformada, Passando a incluir o problema da paixdo como maneira de sintetizar a dédiva e a dtivida do conhecimento, somos convidados a suportar a responsabilidade de um sentido que nos ensina e nos desautoriza, no momento mesmo em que acreditamos colocar um ponto final. REFERENCIAS CULLER, J. Teoria da literatura: uma introducio. Teaducio Sandra G. T. Vasconcelos. Sao Paulo: Beca, 1999, DE MAN, P-Alegorias da leitura, ‘Tradugio Lenita Esteves, Rio de Janeiro: Imago, 1996. ___-O ponto de vista da cegueira. Traducio Miguel amen. Lisboa: Angelus Nowus & Cotovi, 1999, DERRIDA, J. Préjugés, devant la loi. In: DERRIDA et sl. La faculté de juger. Paris: Minuit, 1985, p. 87-139. _____- De la grammatotogie. Paris: Seuil, 1967 __.. Glas, Paris: Gallée, 1974. ___- Léeriture et a différence. Paris: Minuit, 1967b, La dissémi jon. Pars: Seu 19725 . Manges deta philosophie. Paris: Minit, 1972, Points de suspension, Pais: Galle, 1992 ___ Payehé: inventions de autre. vis: Gal, 1967. ‘Schibboleth: pour Paul Celan, Pars: Galilée, 1986, . Signéponge(Signsponge. Tiaducfo Richard Rand, Columbia: Columbia University Press, 1988. 204—TEORIA LITERARIA

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