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Equatorial v5.28 | jan/jun 2018 ISSN: 2446-5674 TRADUGAO. Aesctita contra a cultura Writing Against Culture Lila Abu-Lughod Joseph L. Buttenwieser Professor of Social Science Departamento de Antropologia Universidade de Columbia na Cidade de Nova York/NY 1a310@columbia.edu Traducio: Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego Doutorando © mestce em Antropologja Social pela Universidade federal do Rio Grande do Noxte dleiton.vsr@gmail.com Leandro Durazzo Doutorando em Antropologia Social pela Universidade federal do Rio Grande do Noxte leandrodurazzo@gmail.com Revisao técnica: Luisa Valentini Dontoranda em Antropologia Social pela iniversidade de Sio Paule A Esarita da Cultura (CLIFFORD, MARCUS, (1986), coletinea que inscreveu uma’ nova e profinda forma de exitica as premissas da antropologia cultural, de certa mancira deixou de lado dois grupos fuandamentais, cujas posicdes claramente expdem ¢ desafiam as mais bisicas de tais premissas: feministas e “mesticos/as” — gente cuja identidade nacional ou cultural € misturada em virtude de migracées, formacao educacional no exterior ou ongens familiares!. Em sua introducio, Clifford (1986a) desculpa-se pela auséncia feminista; ninguém menciona mestigos/as ou antropdlogos/as indigenas com quem se relacionam. Talvez niio fossem, época, numerosos o bastante ou suficientemente autodefinidos como um gmpo*. ‘A importincia desses dois grupos nto reside em qualquer reivindicacio de supetioridade moral ou de primazia em sen fazer antropolégico, mas nos dilemas especificos com que se deparam. Tais dilemas tevelam, com perfeicio, os problemas que surgem quando a antropo- Jogia cultural assume uma distineao fundamental entre si e © outro, Sugeritei que “cultura” opera no discurso antropologico para reforcar separacdes que inevitavelmente carregam sentidos hierarquicos. Desse modo, antropdlogos/as devem buscar, sem esperancas exageradas de gue seus textos venham a mudar 0 mundo, uma vatiedade de estratégins para escrever conta a cultura. Para os interessados em estratégias textuais, analiso as vantagens daquilo que chamo de CRRAATPRAER como insrmmenta de A TT Eus e Outros A nnocio de cultura (especialmente quando funciona para distinguir “culturas”), embo- xa titil durante muito tempo, talvez tenha se tornado algo a que antropdlogos/as poderiam se contrapor, em suas teorias, esctitas € priticas etnogrificas. Uma boa maneira para comecar a compreender 0 porqué disso é considerar 0 que os elementos compattilhados das antropolo- gias femuusta e mestiga esclarecem sobre a distingao eu/outro, central ao paradigma antropo- Jogico. Maxilyn Strathern (1983, 1987) evidencia alguns aspectos feministas que os ensaios de Clifford e Rabinow citam, em Esorita da Cultura, Sua tese é de que a relacio entre antropo- logia ¢ feminismo ¢ inadeqquada. Essa tese leva-a a tentar compreender por que as académicas feministas, apesar de sua ret6rica de sadicalismo, falharam em alterar findamentalmente a antropologia, € as razSes pata o feminismo ter se beneficiado da antropologia ainda menos do que esta se beneficion do feminismo. A inadequacio, cla argumenta, surge do fato de que apesar do interesse comum nas difetengas, as priticas disciplinares de feministas e antropdlogos/as sio “difetentemente es- ‘tauturadas nas maneiras que eles organizam o conhecimento e delimitam fronteiras” (STRA- THERN, 1987, p. 289) e especialmente na “natureza da relaiio dos pesquisadozes com seus bjetos de pesquisa” (1987, p. 284). Académicas feministas, unidas por sua oposiciio comum. aos homens ou ao patuiarcado, produzem um discurso composto de muitas vozes; elas “des- cobrem-se a si a0 se tornarem conscientes da opressio causada pelo Outzo” (1987, p. 289). Antropélogos/as, cujo objetivo é “dar sentido as diferencas” (1987, p. 286), também se cons- (1987, p. tituem “a si” na relacio com tm outro, mas nio ensergam esse omtro “sob ataque’ 289), Ao enfatizar a relacio eu/outro, Stiathern nos leva ao cere do problema. Ainda assim, cla se distancia da problematica do poder (formativa no feminismo) na sua representacao tio estranhamente actitica da antropologia. Quando define a antropologia como uma disciplina que “continua a se considerar como o estudo do comportamento social ou da sociedade em termos de sistemas e representacdes coletivas” (1987, p. 281), ela subestima a distincao eu/ outro. Ao caracterizar a relacao entre 0 eu antropolégico ¢ 0 outro enquanto algo nao confli- oso, ela ignora seu aspecto mais fundamental. O objetivo mais declatado da antropologia pode ser “o estudo do homem [sic],”, mas ela é uma disciplina construida historicamente na divisio entre o Ocidente € 0 nfio-Ocidente. Tem sido e continua a ser primariamente 0 estudo do outzo nio-ocidental pelo eu ocidental, mesmo que, em seu novo formato, procure explici- tamente dar voz ao Outro ou apresentar um didlogo entre 0 eu € 0 outro, seja textualmente, seja por meio de uma explicacio do encontto no trabalho de campo (tal como nos trabalhos de Crapanzano, 1980; Dumont, 1978; Dwyer, 1982; Rabinow, 1977; Riesman, 1977; Tedlock, 1983; e Tyler, 1986). E 0 relacionamento entre o Ocidente ¢ 0 nao-Ocidente, ao menos desde ‘© nascimento da antropologia, tem sido constituido pela dominacio ocidental. Isso sugere que ainadequacio que Strathern sente na relacio entre o feminismo e a antropologia pode set melhor entendida como 0 resultado de processos diametralmente opostos de autoconstmcio por meio da oposicio a outros sujeitos — processos que se originam em diferentes lados de uma divisétia de poder A forca duadoura do que Morsy (1988, p. 70) chamou de “a hegemonia da tradicao do outro-distinto” na antropologia ¢ traida pela defensividade de excecdes patciais. Antropo- logos/as que conduzem tiabalho de campo nos Estados Unidos ou na Europa questionam se nao teriam cruzado os limites disciplinares entre antropologia e outros campos tais como. sociologia ow historia. Um modo de manterem suas identidades como antropdlogos/as é fazer com que as comunidades que estudam parecam-se “outras”. Estudar comunidades ét- nicas ¢ os desprovidos de poder assegnta isso°. O que também € assegutado ao se concent rem na “cultua” (ou no método holista nela baseado, como argumentou Appadurai [1988), como discutitei adiante. Hé dias questdes aqui. Uma é a conviceao de que algném nio pode sex objetivo sobre sua propria sociedade, algo que afeta antropélogos/as indligenas (ocidentais ‘ou nio-ocidentais). O segundo é um entendimento tacito de que antropélogos/as estudam o niio-Ocidente; mesticos/as que estudam suas proptias sociedades ou comunidades niio-oci- dentais relacionadas ainda sio mais facilmente reconheciveis como antropélogos/as do que ameticanos que estudam os ameticanos. :tiopologia continna ¢ ser praticnda como o esmido de “outros” esters, fe uma critica da antropologia considerat a trajetoria que tem levado, em duas décadas, a0 que alguns podem chamar de uma crise da teoria feminista, enquanto outros, de desenvolvi- mento do pés-feminismo. Desde Simone de Beauvoir considera-se, 20 menos no Ocidente moderno, que as mulheres tém sido 0 outro do eu masculina no tem sido movimento devo daomens’..A crise na teoria feminista (telaciona t eres) que se seguiu imediatamente as tentativas feministas de tornarem sujeitos aquelas que haviam sido constituidas como outros — ou, para usar uma metifora popular, que tentacam deixar as snulhetes falarem — surgiu como o problema da “diferenca”. Por quem falayam as feminis- tas? No movimento de mulheres, a objecao de Iésbicas, mulheres afro-americanas e outras “mulheres de cox”, cujas experiéncias como mulheres exam diferentes daquelas de mulheres brancas, de classe média e heterossexuais, problematizava a identidade de mulheres como um. si-mesmo. Pesquisas transculturais sobre as mulheres também deixaram claro que masculino ¢ feminino nao tém, como nés dizemos, os mesmos significados em outras culturas, nem as vidas das mulheres do Terceiro Mundo lembram as vidas das mulheres do Ocidente A partir dessa experiencia de ctise de pessoalidade e sujeitividade, a teotia feminis- ta pode oferecer & antropologia dois lembretes titeis. Primeio, o individuo € sempre uma construgio, nunca uma entidade encontrada ou natural, mesmo que assim parega. Segundo, © processo de cacao de um eu por meio da oposicao a um outro sempre acarreta una vio~ erica repiessone ignomntesobrelourmsormaswdeldifereng. Tedricas feministas tém sido forcadas a exploraras implicacdes para a formacio da identidade e as possibilidades para acio politica trazidas pelo género como um sistema de diferenca intersectado por outros sistemas de diferenca, incluindo, no mundo capitalista moderno, raca e classe. A partir disso, onde se encontia a antropéloga feminista? Stiathern (1987, p. 286) a caractetiza como suyjeita a uma tensio — “apanhada/o em meio a estruturas... diante de duas mianeiras diferentes de se relacionar com seu tema de estudo”. O aspecto mais interessante da situagio femiista, por outzo lado, é que ela compartilha com o mestigo/a: 0 bloqueio na habilidade de assumir confortavelmente o eu da antropologia. Para ambos, embora de modos diferentes, o eu est dividido, preso na interseccao de sistemas de diferenca. Estou menos preocupada com as consequencias existencinis dessa divisio (algo explotado eloquentemente noutro lugar, ex, Joseph, 1988; Kondo, 1986; Narayan, 1989) do que com a consciéncia que tais divisdes getam sobre ties questdes cruciais: posicionalidade, audiéncia, ¢ o poder inerente As distingées entre eu ¢ outro. O que acontece quando o “outro” estudado por antropélogos/ as € simultaneamente construido, a0 menos em parte, como um eu? Antropélogos/as feministas e mesticos/as niio podem evitar facilmente a questio da postioraladhde, Situarse em terreno mmutivel desa claro que toda visio ¢ uma visto de alga (GRE CRIS OMOTRIO UE HALE TRA ALAS AISTMINGD A ntxopologos/as culturais munca foram totalmente convencidos pela ideologia da ciéncia e t2m questionado hi muito tempo o valos, possbilidade e definicio da objetividace* (Uisjmincayassisie/E5/ SSH NCE el 028 SS Duzas objecdes entrelacadas e comuns ao traballno de antropdlogos/as feministas, nz tivos ou semi-nativos, ambas relacionadas 4 parcialidade, escancaram a persisténcia dos ideais dh objetividade. A primeira tem a ver com a parcialidade (como viés ou posigao) de quem observa. A segunda tem a ver com a natureza parcial (iacompleta) da imagem representada, Mestigos/as sio mais associados/as com o primeio problema, ¢as feministas com o segun- do, Diz-se que 0 problema no estudo da propria sociedade é a dlficuldade em estabelecer distincia suficiente. Uma vez qne para mesticos/as o Outro de cesta maneita 0 si mesmo, dizem sex este © petigo compartlhado com antropélogos/2s indigenas: a identificacio ¢ 0 deslize fic para a subjetividade’. Essas preocupagdes sugerem que o/a anttopélogo/a ainda € definido como um ser que precisa permanecer separado do Outro, mesmo quando ele ou cla procura explicitamente superar tal cana, Mesmo Bourdieu (1977, p. 1-2), que analisou com perspicacia os efeitos que esta postura externa tem sobre a (in)compreensao dos antro- pélogos/as sobre a vida social, allow em romper com essa doxa. O ponto dbvio que ele no apreende € 0 fato de que 0 eu externo jamais permanece simplesmente fora. Ele ou cla 98) permanece numa relacio definitiva com 0 Outro do estudo, nao apenas como um ociden- tal, mas como um francés na Argélia durante a guerra da independéacia, um ameticano no ‘Maxrocos durante a guerra érabe-istaclense de 1967, ou uma inglesa na india pés-colonial. O que chamamos externo € uma posigio mo sec de um compleso politico histético mais amplo. Nio menos que o mestico/a, o “indiviso”* encontia-se mma posiciio especifica vis--vis a comunidade em estudo. Os debates sobre antropdlogas feministas sugerem uma segunda fonte de inquietagio acexca da posicionalidade. Mesmo quando se apresentam estudando género, antropélogas feministas sio desdenhadas pot supostamente apresentarem uma imagem apenas patcial das sociedades que estudam, porque as consideram como estudando somente mulheres. Antro- pélogos estudam a sociedade, a forma desmarcada. O estado das mulhetes é uma forma marcada, muito facilmente separada, como nota Stuathera (1985). Ainda assim, poderiamos facilmente argumentar que a maioria dos estudos sobre sociedade tem sido igualmente par- cial. Como indicam os novos estudos de Weiner (1976) sobre os trobriandeses de Malinowski, ou Bell (1983) sobre os bem-estudados aborigenes austialianos, estes tém sido o estudo sobre homens*, Isso nao toma tais estudos menos valiosos; simplesmente nos lembra que devemos atentar constantemente para a posicionalidade do eu antropologico e de suas representacdes do outro, James Clifford (1986a, p. 6), entre outros, tem argumentado de modo convincente que as representacdes etnograficas sfio sempre ‘ ‘Uma pessoalidade fracionada ctia, para os dois grupos aqui discutidos, um seguado problema que é esclarecedor para a antropologia de forma getal as miltiplas audiénicias, Em- bora todos/as 0s/as antropslogos/as estejam comecando a sentit 0 que pode set chamado de efeito Rushdie 105 govemnos dos paises em que teabalham banem livros negam vistos de entrada —, antropélogos/as feministas e mesticos/as enfrentam de maneita pungen- te uma responsabilidade miltipla. Mais do que ter uma audiéncia primaria em meio a outros antropdlogos/as, antropdlogas feministas escrevem para antropdlogos/as e para feministas, dois grupos em discordincia quanto ao tema de estudo ¢ que cobram dos as etndgrafos /as atitudes diferentes". Ademais, citculos femunistas incluem femunistas nao-ocidentais, muitas vezes de sociedades que as antropélogas feministas estudaram, o que exige delas ainda outras responsabilidades! Os dilemas dos/as mesticos/as sio ainda mais extremos. Como antropélogos/as, es- crevem para outros/as antropdlogos/as, majoritariamente ocidentais. Identificados também com comunidades externas ao Ocidente, ou subculturas internas deste, sio instados a se explicar aos membros educados dessas comunidades. Nao apenas por se posicionarem em referencia a duas comunidades, mas porque ao apresentarem o Outro estiio apresentando a si mesmos, eles falam visando 4 recepeio, com uma consciéncia complexa sobre ela. Ambos, antropdlogos/as mesticos/as ¢ feministas, so forcados a confrontar dixetamente as politicas ea ética de suas representagdes. Nao hii solucées faceis para seus dllemas. A terceira questiio que antropdlogos/as femiistas € mesticos/as nos forcam a con- frontar, diferentemente de antropdlogos/as que trabalham em sociedades ocidentais (outro grupo para o qual 0 et ¢ 0 outro estio de alguma maneita enredados), éa dubiedade da ma- nntencao da ideia de que as relacdes entre 0 eu € 0 outro sio desprovidas de poder. Por razées de sexismo, discriminacio racial ou ética, eles/as podem ter expesienciado — como mmbheres, individuos de ascendéncia inter-tacial ou como estrangeitos — set outro para um eu domi- nante, seja na vida cotidiana dos Estados Unidos, Gri-Bretanha ou Franca, seja na academia cide: sto io €simplesmente uma expesgneia da dlfesenca, mas de desigualdade: Men (GURGAON Muheres, ne gros e pessons de grande parte do nio-Ocidente tém sido histonicamente constituidos como outros nos principais sis- temas politicos da diferenca, dos quais depende o mundo desigual do capitalismo moderna. Os estudos feministas ¢ de negritude tém feito muitos progressos na academia que expdem a maaneita pela qual ser estudado pelos “homens brancos” (para usar um termo abreviado que designa uma posicio-de-objeto complexa ¢ historicamente constituida) acaba por dar a estes homens o poder de falar pelos estudados. Isto se torna um simbolo e um instrumento de seu poder. Na antropologia, a despeito de uma longa historia de timida oposicio ao tacismo, da crescente literatura autoctitica sobre suas ligagdes com o colonialismo (ASAD, 1973; CLI- FFORD, 1983, FABIAN, 1983; HYMES, 1969; KUPER, 1988) e da experimentagio com técnicas de etnografia para aliviar 0 desconforto com o poder do antropdlogo/a sobre 0 objeto antropologico, as quest6es fundamentais da dominacio continuam a ser contornadas. Mesmo tentatwas de redefinir informantes como consultores ¢ de “deixar 0 outro falar” em textos dialogicos (TEDLOCK, 1987) ¢ polivocos — QC SRZNCOSNOTNEIONERT — clei- xam intacta a configuracio bisica do poder global em que a antropologia, ligada a outras insti- tmigdes mundiais, se estabelece. Pata ensergar a estranheza de empreitada, basta considerar 1 se homens académicos postulassem seus descjos de tum caso andlogo. Qual seria nossa rea “deixar as mulheres falarem” em seus textos enquanto continuam a dominar todo 0 conhe- cimento sobre elas, conttolando a esctita e ontras priticas académicas, respaldados por seus postos em dada organizacio da vida econdmica, social e politica? (ESTASERIOSTENREETLYPORNETOTAAEAPAEGAR Soa simacio nos permite ver mais claramente que priticas divisOuias, sejam ao naturalizar as diferencas, como em génezo € ra¢a, sejam simplesmente ao elabori-las, como argumentarei 20 falar do conceito de cultura, si0 métodos fundamentais para reforcar a desigualdade. Cultura ¢ Diferenga O conceito de cultura é 0 termo oculto em tudo que ja for dito sobre antropologia. A maiotia dos antropélogos/as ameticanos acredita ou age como se acreckitasse que a “‘cultu- 12”, notoriamente dificil de definir e ambigua como referente, ainda assim fosse o verdadeiro objeto da investigac tante para a antropologia gracas a distingo antropolégica entre eu e outro que nela subjaz. Cultura éa fereamenta essencial para fazer 0 outzo, Sendo um discusso profissional que seflete io antropolégica. Nao obstante, poderiamos dizer que a cultura é impor- sobre 0 sentido da cultura, com vista a referir, explicar e compreender a diferenca cultual, a anteopologia também colabora com sua construcio, producio e manntencia. O discurso antropolégico concede 4 diferenca cultural (¢ a separacio entre grupos de pessoas que isso implica) um ar de evidéncia. Nesse sentido, o conceito de cultua opera de modo similar a seu predecessor — raca —ainda que possua, em sua versio novecentista, algumas vantagens politicas importantes. Di- ferentemente de raca, também diferentemente de cultura em seu sentido oitocentista, como sindnimo de cwvilizacao (contrastada a barbane), o conceito atual permite miltiplas diferen- ‘cas, em vez de bindtias, Imediatamente poe em seque a hiesarqnizacio facil: a madanga para “cultura” (“c mintisculo com a possbilidade de um s a0 final”, conforme Clifford [1988a, p. 234] sugete) possui efeito relativizador. A mais importante das vantagens da cultura, entretan- to, é remover a diferenca dos reinos do natural e do inato. Seja concebida como conjunto de comportamentos, costumes, tradicdes, regras, planos, receitas, instrugdes ou programas (para listar a gama de definicdes fornecidas por Geertz, 1973, p. 44), a cultura é aprendida e pode se alterar _tendéncias a ctistalizar diferencas, algo que conceitos como za¢a também fazer. Isso ve tox mais evidente se observarmos um campo em que a mudanea tenha se dado de um conceito para 0 outro, O orientalismo como discurso académico (entte outras coisas) é, de acordo com Said (1978, p. 2), “um estilo de pensamento baseado em uma distincio légica e epistemologi- ca feita entre ‘o Ouiente’ (na maior parte das vezes) ‘o Ocidente”. O que ele mostra é que, ao cartografar conjuntamente geografia, raca e cultura, o orentalismo fixa certas diferencas entze pessoas “do Ocidente” e pessoas “do Onente” de maneias tio s’gidas que podem facil mente ser consideradas inatas. No século XX, foi a diferenca cultural, e nao a raga, que serviu de objeto basico para o intelectualismo onentalista, agora devotado a interpretar o fendmeno “cultuta” (fundamentalmente teligito e linguagem) ao qual se atribuiam as diferencas de de- senvolvimento, desempenho econédmico, governanca, cariter ¢ tantas outras. Alguns movimentos ¢ lutas anticoloniais recentes tém trabalhado com o que se pode- tia denominar orientalismo reverso, em que tentativas de reverter a relacio de poder ocorrem pela busca de valosizar como proptio o que, no sistema antetios, eta desvalotizado como outro, Um apelo gandhiano a espiritualidade abrangente da India hindu, se comparada 20 matesialismo e a violencia do Ocidente, ou um apelo islamista a uma fé maior em Deus, se comparada 4 imoralidade e a corrupeao ocidentais, ambos aceitam os termos essencialistas das construgées do onentalismo. Ainda que de ponta-cabeca, preservam o rigido sentido de diterenca baseado na cultura, Pode-se ttacar tm paralelo com o feminismo. Um de seus principios é 0 de que “tor na-se mulher, nfo se nasce”. Tem sido importante para a maionia das ferninistas situar diferen- «as sexuais na cultura, nao na biologia ou na natureza. Embora isso tena inspitado algumas tedricas feministas a pensar nos efeitos sociais ¢ pessoais do género enquanto sistema de dife- enca, muitas outras foram levadas a reflexes ¢ esteatégias constituidas sobre a nocio de uma cultura das mulheres. O femunismo cultural (cf ECHOLS, 1984) assume diversas formas, mas possui muitas das caracteristicas do orientalismo reverso acima exposto. Pata feministas fiancesas como lrigaray (1985a, 1985b), Cixous (1983) e Kristeva (1981), masculino e femi- nino, se nfio macho e fémea, representam modbos diferentes de ser. Feministas anglo-amesi- canas tomam outro rumo. Algumas tentam “descrever” as diferengas culturais entre homens ce mulheres ~ Gilligan (1982) ¢ suas seguidoras (como BELENKY ¢f al, 1986), proponentes da nogio de “uma vor diferente” si0 exemplos conhecidos. Outras tentam “explicat” as diferencas, seja por meio de uma teotia psicanalitica socialmente embasada (CHODOROW, 1978), uma teoria marsista sobre os efeitos da divisio do trabalho e do papel da mulher na reproducio social (HARTSOCK, 1985), uma anilise da pritica materna (RUDDICK, 1980) ‘ou mesmo unua teoria da exploracao sexual (MACKINNON, 1982). Muito da teorizacio ¢ pritica feministas busca construir ou reformat a vida social alinhando-se a essa “cultura das mulheres”®. Jf houve proposicées para uma universidade centrada na mulher (RICH, 1979), uma cifncia feminista, uma metodologia feminista para as ciéncias e ciéncias sociais (MEIS, 1983; REINHAN, 1983; SMITH, 1987; STANLEY, WISE, 1983; também HARDING, 1987) e mesmo para uma ccologia ¢ uma espiritualidade feministas. Tais propostas quase sempre se baseiam em valores tradicionalmente associados as mulheres no Ocidente — um. sentido de cuidado e conexio, de ctiacfio maternal, imediatismo da experiencia, envolvimento corpéreo (em vez de abstrato), entre outros. Essa valorizacio de caracteristicas a elas atribuidas e previamente desvalorizadas, en- ‘campada pelas feministas e semelhante a de otientalistas reversos, pode servir provisoxia- mente para forjar um sentido de unidade e estimular lutas por empoderamento. Mas, por deixar intacta a divisio na qual se fundamenta, que esteutura expetiéncias de individualidade € opressio, também perpetua certas tendéncias perigosas. Em primeiro lugar, feministas cul- turais desconsideram as conexdes entre aqueles situados em cada lado da divisao, e também as formas pelas quais definem uns aos outros. Em segundo lugar, negligenciam difereneas no seio de cada categona cuiada pelas priticas civisérias, diferencas tais como as de classe, raga alidade (pata tepetit a ltania feminista sobre categorias problematicamente abstiatas), mas também origem étnica, experiéncia pessoal, idade, modo de vida, satide, situacao rural ow urbana, ¢ experiéncia histérica. Em tetceito, e talvez mais importante, ignotam as formas pelas quais experiéncias tém sido constituidas historicamente, ¢ ttm mudado 20 longo do Tempo. Tanto 0 feminismo cultural quanto os movimentos revivalists costimam se amparar em noses de autenticidade e de retomno a valores positives niio representados pelo outro do- est munante. Como € evidente pelos casos mais extremos, tais movimentos apagam a historia. A invocagio de deusas cretenses em alguns circulos femunistas culturais e, de modo ainda mais grave e compl movimentos islimicos sio bons exemplos. a potente invocacio da comunidade do Proteta, do século VIL, em dados A questo é que a nocio de cultura que ambos os tipos de movimento utlizam nao parece garantir escapatéria de uma tendénaia ao essencialismo. Poder-se-ia argumentar que antropélogos/as usam “cultura” de maneitas mais sofisticadas e consistentes, e que seu com- promisso em utilizéta como ferramenta analitica é mais solido. Ainda assim, muitos hoje se encontram preocupados com as tendéncias pelas quais tal uso cristaliza diferengas. Appadurait (1988), por exemplo, em seu instigante argumento sobre os “nativos” serem fieedes da ima- ginacio aatropologia plan leiadeydoyconceto (ete asTiSontiadAdera (GREATER LOS PO NOSTMOGIUENTASTRATUMMO TEMPO. Necacias as capacidades de movimento, trinsito ¢ interacio geogrifica que para ocidentais sio consideradias evidentes, as culturas estudadas por antropélogos/as tiveram negadas também sua histona. Ainda outros, eu inclusa (1990b), tém argumentado que teorias cultuais também cos- tumam superenfatizar a coeréneia, Clifford observa tanto que ‘a disciplina de uma antropo- logia respaldada pelo trabalho de campo, ao constituir sua autondade, constrdi e reconstréi a coeréncia de outros culturais ¢ s-mesmos intéxpretes” (CLIFFORD, 1988b, p. 112), como também que a etnogratia é uma forma de coletar cultura (como colecionat arte), em que “ex- petiéncias e fatos diversos so selecionados, eunidos, destacados de suas origens temporais € revestidos de valor duradouto dentro de um novo artanjo” (CLIFFORD, 1988b, p. 231). Metiforas onginicas de inteireza ea metodologia do holismo que caracterizam a antropologia, ambas favorecem a coeréncia, que por sua vez contuibui para a percepcio das comunidades smo bem delimitadas e distintas. E certo que distincio nfo precisa implicar valoracio: a maior caracteristica da antro- pologia no século XX foi sua promocio do relativismo cultural em lugar de avaliagdes ¢ jul- gamentos. Se a antropologia sempre foi, em certa medida, uma forma de (auto)exitica culal (MARCUS, FISCHER, 1986), isso se deu pela recusa em hievarquizar diferencas. Entretanto, nenhuma posicio seria possivel sem diferenca. Valeria refletizmos sobre as grandes implica- cOes que a antropologia assume ao manter e perpetuar uma crenga na existéncia de culturas tidas por discerniveis, dlistintas e separadas de nossa propria’ GCHMCEEACa MEGA - infilacio da hieraxqusa? Em Orientalivno, Said (1978, p. 28) detende a eliminacio tanto “do Oriente” quanto “do Ocidente”. Com isso nfo propée © apagamento de todas as diferencas, mas 0 reco- nhecimento de ainda mais diferencas e também das complexas maneitas pelas quais se en- trecruzam. Mais importante, sua anilise de um campo procura demonstrar como e quando determinadas diferencas, neste caso relacionadas a lugates e pessoas a eles ligados, tornam-se implicadas na dominacio de um pelo outro. Deveriam os/as antropdlogos/as tratar “cultura” “culturas” com a mesma suspeita, sendo estes termos-chave num discurso em que outrida- de e diferenca acabam por se tornar, como diz Said (1989, p. 213), “qualidades talisminicas ‘Trés modos de escrever contra cultura Se “cultuza”, escamoteada por coeréncia, atemporalidade e discemibilidade, é 0 prin- cipal instrumental antropolégico para a feitura do “outro”, ¢ se diferenca, como notam femi- nistas € mesticos/as, costuma ser uma telacio de poder, ento os antropdlogos/as podetiam buscar esteatégias para escrever contra a cultura. Apresentarei trés que considero promissores. Embora nem de longe esgotem as possibilidades, 0 tipo de projeto que descreverei — tedtico, substantivo e textual — fara sentido para antropélogos/as sensiveis a questdes de posiciona- Iidade e responsabilidade, ¢ que estejam interessados em tomar a pritica antropolégica algo diferente de um simples escoramento das designaldades globais. Concluitei, contudo, refletin- do sobre as limitacdes de toda reforma antropologica. Discurso e pritica ‘A discuss teética, por ser uma das maneitas pelas quais antropdlogos/as interagem, oferece importante campo para que se conteste a “cultura”. Parece-me que as discussGes € 0 uso de dois termos de populatidade crescente — pritica e discurso — sinalizam certo afasta- mento da cultura. Embora haja o risco de vermos tais termos vindo simplesmente a significar sinénimos para cultusa, ambos tém permitido que analisemos a vida social sem presumit 0 gran de coeténcia que © conceito de culnra acaba por cartegat: Na antropologia, pritica esta associada a Bourdieu (1977; também ORTNER, 1984), cuja abordagem teérica se constrdi em torno de problemas como os de contradicio, equivoco ¢ desconhecimento, favorecendo estratégias, interesses e improvisacdes em lugar dos tropos estiticos e homogeneizantes como regras, modelos e textos. Discurso (cujos usos debato em ABU-LUGHOD, 1989, também ABU-LUGHOD, LUTZ, 1990) possu: fontes e sentidos mais variados na antropologia. Em sua derivacao foucaultiana, relacionada a nogdes como formacées discursivas, dispositivos tecnologias, visa a refiutar a distincAo entre ideias ¢ priti cas, ot1 textos e mundo, que o conceito de cultura tao prontamente estimula. Em sua acepcio mais sociolingnistica, deita atencio sobre 0 S@iSSSRBCiNis eielineieines iizenclosneemSe® (@SBAB Em todo caso, permite-nos reconhecer no seio de um grupo social os aspectos mii tiplos, nmtiveis e concorrentes das acdes emunciativas em jogo, com seus efeitos priticos. ‘Tanto pritica quanto discurso sao titeis por se contraporem A assuncao de uma delimitacio, para nio dizer do idealismo (ASAD, 1983) do conceito de cultura’’. Conexées Outra estratégia de esctita contra a cultura € reorientar os problemas ou temas de estudo abordados pela antropologia. Foco importante poderiam ser as vitias conexdes € interconesées, histnicas ¢ contemporineas, entre dada comunidade e o/a antropélogo/a trabalhando ¢ escrevendo sobie ela, para no mencionarmos o nmindo a0 qual ele ou ela per- Tencem € que os possibilita estar naquele Ingar especifico estudando tal grupo. Isso esté mais para um projeto politico que existencial, embora os/as antropélogos/as reflexivos, que nos ensinaram a focar no encontro de campo como lugar de construcio dos “fatos” etnogrificos, tenham nos alertado para uma dimensio importante da conexio. Outras formas significat- vas de conexio receberam menos atencio, Pratt (1986, p. 42) indica uma constante confustio na esctita etnogrifica, considerando que “o vasto ambito da expansio europeia a que o/a etndgtafo/a acaba vinculado/a, a despeito de sua atitude com relacio a isso, determina seu prOptio relacionamento material com o grupo estudado”. E preciso questionar os processos que tornaram aceitavel que pessoas como nés se envolvessem em estudos antropolégicos de povos como eles, e também questionar a anual situagio do mundo que nos permite realizar tal tipo de traballio em tais lugares especificos, além de pensar sobre o que nos precedeu e ainda petmanece (tutistas,viajantes, missionitios, consultores internacionais, forcas de paz). E pre- ciso questionar a que se conecta, no mundo, essa “vontade de conhecimento” sobre o Outro. ‘Tais questionamentos no podem ser espondidos de forma genética: devem set elaborados e respondidos por meio do mapeamento de situagdes, configuagdes ¢ histéxias especificas. Mesmo que nao se dinjam diretamente ao lugar do etndgrato, ainda que se dediquem a uma superelaboracio que ameaga apagat as intetagdes locais, estudos como os de Wolf (1982) sobre a longa hist6tia de interacio entre determinadas sociedades ocidentais e comunidades ora chamadas de Terceito Mundo tepresentam caminhos importantes pata sanar tais questdes. O mesmo se aplica aos traballios de Mintz (1985), que tracam complexos processos de transformaciio ¢ explotacio envolvendo o acticar, tanto na Europa quanto em contias partes do nmindo. A inclinacio da antropologia para a histéria, rastreando conexdes entre o presente € 0 passado de comunidades especificas, tambem é desenvolvimento impor- tante. Mas nem todos os projetos de conexio precisam ser histricos. Antropdlogos/as atentam cada vez mais para as conexOes nacionais € tuansnacionais entre pessoas, formas culturais, midias, técnicas e mercadotias'®. Estudam a articulacio do capitalismo mundial e da politica internacional com as situagdes de pessoas vivendo em comunidades particulares. Todos estes projetos, que demandam uma mudanga de foco a fim de inchuir fendmenos de conexio, expoem a inadequacao do conceito de cultura ea imprecisio das entidades designa- das pelo tetmo aritumas. Embora no novo modelo possa haver a tendéncia de simplesmente ampliar 0 objeto, passando da cultura para a nacdo como locus de andlise, idealmente haveria atencao com relacio aos agrupamentos, identidades ¢ interacdes mutiveis, dentro ¢ fora das ffonteitas, Se em algum momento antropdlogos/as puderam considerar, sem muita violéncia, que 20 menos algumuas comunidades fossem unidades isoladas, é certo que a natureza das intezagdes globais no presente tora isso impossivel””. Etnografias do particular A terceira estyatégia de escrita contra a cultura demanda aceitarmos a perspicicia de Geertz em um de seus pontos sobre a antropologia, algo em que se baseiam todos os que hoje, neste “momento experimental” (MARCUS, FISCHER, 1986), levam a sétio a tes alidade. Geestz (1975, 1988), considera que uma das principais agdes do antropélogo/a é a cia, ORVERSCRENESTOMICEs (GR(MENAOLMPHASETEMMACUEDS). De Fito, a pritca da escrita etnogrifica recebeu atengao excessiva dos envolyidos na Esarita da Cultura, e de um ni- mero cada vez maior de outros nfo envolvidos na publicacao. Muito da hostilidade ao projeto ‘vem da suspeita de que, por suas inclinacées literirias, acabaram por reduzir com muita faci- lidade o aspecto politico da etnogratia 4 sua poética. De todo modo, chamaram atencio para uum tépico que nao pode ser ignorado. Na medida em que antropdlogos/as trabalham com ue a representacio dos outros por meio de suas esctitas etnograficas, o grau em que as pessoas de tais conmmidades parecem ser “outras” decerto sex parte do que os/as antropdlogos/ as escrevem sobre elas, En dina que um instrumento podetoso para deslocar 0 conceito de cultura e subverter seu processo subjacente de “outramento” é escrever CEORAASMSPPARUOHIA”. A general zacio, modo ¢ estilo caracteristicos da escrita das ciéncias sociais, j4 nao pode ser considerada uma descricio neutra (FOUCAULT, 1978; SAID, 1978; SMITH, 1987). E preferivel evité-la, por dais efeitos infelizes que causam 4 antropologia. Darei maior atencao a cles antes de apre- sentat exemplos de meu proptio trabalho, nos quais vetemos 0 que se pode esperar realizar por meio das etnografias do particular. ‘Nio me ocuparei de uma sétie de problemas frequentemente observados com relacio 8 generalizacio, Por exemple, ja foi muitas vezes indicado que o modo generalizador do dis- curso das ciéncias socinis favorece a abstiaio e a reficagio. A sociéloga feminista Dorothy Smith (1987, p. 130) cuitica vividamente o discurso sociolégico ao observar que a complexa organizacio das atividades de pessoas reais, de suas relacdes re- ais, entrou no discurso por meio de conceitos tais quais classe, modernizacio, corganizacao formal. Criou-se um seino de objetos constituidos teoricamente, liberando 0 reino discursivo de seu solo nas vidas e trabalho dos individuos e possibilitando & pesquisa sociolégica pastar num campo de entidades conceituais. Outras ctiticas se ativeram a defeitos diferentes. A antropologia interpretativa, por exemplo, em sua cutica & busca de leis universais pelas ciéncias sociais positivistas, observou sua deficiéncia em considerar a centtalidade do sentido para a esperiéncia humana. Entretan- to, o resultado foi a substituicio de uma generalizagio sobre os sentidos por generalizacées sobre comportamento. Também quero deixar claso o que a defesa da particularidade nao é: ela no é 0 ar- gumento em favor de privilegiar micro- a mactoprocessos. Etnometodélogos [.] € outros estidantes da vida cotidiana proctuam meios de generalizar microinteracées, enquanto his- toriadores podem ser vistos como se tastreassem as particulatidades dos macroprocessos. ‘Tampouco a preocupacio com particulatidades das vidas individuais implica a desconsidera- io de forcas e dimimicas de base no | IER ERE EE CR SE Qu Ha duas 1azdes para que antropélogos/as sejam cautelosos com a generalizacio. A ptimeira é que, como parte de um discurso profissional de “objetividade” ¢ especializacio, ela inevitavelmente serve como linguagem de poder. De um lado, é a linguagem daqueles que parecem se apartar ¢ distanciar do que descrevem. Aqui, novamente a critica de Smith ao discurso sociologico é relevante. Ela observou (1987, p. 62) que esse modo aparentemente imparcial de refletir sobre a vida social esti, em verdade, localizado: representa a perspectiva dos envolvidos em estruturas profissionais, reguladoras e administuativas e €, por isso, parte dos “dispositives dominantes de tal sociedade”. Essa cxitica também se aplica 4 antropologia, ‘com sua perspectiva mais inter- que intra-societal e suas origens na exploracio e colonizacio do mundo nio-europen mais que na gestio de grupos sociais internos, como trabalhadores, mulheres, negros, pobres ou presidiftios, Por outro lado, mesmo que suspendamos 0 juizo sobre a proximidade das ciéncias sociais com os dispositivos de controle, temos de reconhecer que discursos de profissionali- zacio, por natureza, afirmam hierarquias. A proptia lacuna entre os discursos profissionais ¢ antotizados da generalizacio ¢ a linguagem da vida cotidiana (nossa ¢ dos outros) estabelece unm cisio fundamental entre 0 antropdlogo/a e o povo sobre quem se escteve, o que facilita aconstrucio de objetos antropolégicos ao mesmo tempo diferentes e inferiores. Entio, na medida em que antropélogos/as sio capazes de aproximar a lingnagem do dina dia a linguagem do texto, esse modo de ctiar 0 ontto é tevertido. O problema, como po- demos depreender de uma reflexio sobre a situacio de antropélogas feministas, é que pode haver siscos profissionais para o etndgrafo que busque realizar esta estratégia. Ja argumentei (1990a) que a axguta observacio de Rabinow sobre a carga politica da esczita etoguifiea —a ser encontrada perto de casa, na academua, ¢ no nos mundos colonial e neocolonial — nos ausilia, animadoramente, a compreender determinadas coisas sobre a antropologia feminista ¢ 0 desconforto que mesmo alguém como Clifford detsa transparecer na introducao de A Ezrita da Cultra®, Sua desculpa pela exchsio de antiopélogas feministas era a de que elas nao estavam envolvidas com inovacao textual. Se fssemos concordar com a ditbia distinco que ele presume entre inovacio textual e transformacdes em contetido e teoria, poderiamos aceitar que as antropélogas feministas contribuizam pouco para a nova onda da experimen- tacio formal. ‘Mas entio, apés poncos instantes de reflesto, chegarlamos a compreender a raziio disso. Mesmo sem perguntas basicas com relacio a individuos, instituicdes, patronato e esta- bilidade profissional, podemos nos voltat a politica do projeto feminista em si. Dedicadas a assegurar uma reptesentacio das vidas de anulheres nas desctigGes das sociedades, ¢ também a teorizagao sobre namento, as académicas feministas ttm se ocupado da representacao em seu velho sentido speriéncias de mulheres e do géneto em si nos relatos sobre seu funcio- politico. Conservadorismo formal pode ter sido titil porque 0 objetivo era convencet 0s co- legas de que uma antropologia atenta ao género nao era apenas boa antropologia, mas uma antropologia melhor. A segunda exigéncia & antropologia feminista é a necessidade de assegurar profissio~ nalismo. Contratiamente ao que escreve Clifford (1986a, p. 21), mulheres na verdade proch- zixam “formas de esctita niio convencionais”, Ele apenas as ignorou, negligenciando algu- ‘mas antropélogas profissionais como Bowen (BOHANNON, 1954), Briggs (1970) e Cesara (POEWE, 1982), que experimentaran na forma20, Ainda mais significante éa existéncia, no proptio seio da escrita etnogrifica, do que se pode chamar de uma “ttadicio feminina” desta cada. Por nao ser profissional, entretanto, apenas relutantemente pode ser retvindicada pelas antropdlogas feministas, incertas sobre sua reputagao. Refiro-me as etnografias, muitas ve- zes excelentes € populates, escritas pelas esposas “sem formacao” de antropélogos/as, livros como Guests of the Sheik, de Elizabeth Fernea (1965), Nita, de Marjorie Shostak (1981), The Spirit of the Drum, de Edith Turner (1987), ¢ The House of Lin, de Margery Wolf (1968). Diti- gindo seus textos a puiblicos lig profissionais de etnografias padeio, elas também seguiram convencdes diferent ‘iramente distintos daqueles para quem escrevem os escritores Por que essa outra tzadicio nao se qualifica como uma forma de inovacio textual? Uma sesposta parcial pode ser encontuada no proprio d Exrita da Cultura. Os que propdem experimentos € criticas 4 escrita etnogrifica procuram quebrar a monotonia da antropologia se inspizando em disciplinas de elite, como filosofia e teouia litertia, em vez de observar fon- tes mais prosaicas como a experiencia ordinatia ou os termos pelos quais seus sujeitos antro- pologicos operam®, Rejeitam a retética das ciéncias sociais no em favor de uma linguagem comum, mas pteferindo um discurso tio prenhe de jargdes que um editor se viu motivado a cacoar disso, compondo um poem satitico em que brineava com 0 vocabulitio de tropos, thaumasmos, metonimia, patopeia, fenomenologia, ecfonese, dicticos € hipotiposes — um poema ironicamente inchuido como invoca¢io no preticio do livro (CLIFFORD, MARCUS, 1986, p. ix). Quaisquer que sejam os mézitos de suas contiibuicdes, € dificil nfo zepaar na mensagem de hiperprofissionalismo. Apesar da sensibilidade com relagio a questées de ou- tuidade e poder, e também na relevancia da textualidade para tais problemas, eles utlizam um discurso ainda mais exchudente, portanto ainda mais reforgador de distingdes hieriquicas entre si ¢ os outros antropoldgicos, mais do que a propria antropologia comum que criticam. O segundo problema com a generalizacio no detiva de sua participacio em discur- sos de autoridade e protissionalismo, mas dos efeitos de homogeneidade, coeréncia e atem- Jando se genevalizam as expesiéncias € conversas con ‘Uma auséncia aparente de diferenciacéo interna torna mais ficil potalidade que costuma produzis uu conceber um grupo de pessoas como entidade distinguivel e definivel, feito dizer “os Nuer’ “os Balineses” e “os bechinos Awlad ‘Al’” agem assim e assado, e creem nisto ou naquilo. esforco para produzir descricdes etnogrificas gerais das crencas e aces das pessoas tende a atenuar contradicées, conflitos de interesse, ditvidas e discussdes, isso para ndo mencionar- mos as motivagdes € cxcunstancias mutiveis. O apagamento de tempo e contlito faz com que, por homogeneizacao, o que testa circunscrito pelas fronteixas pareca algo essencial fixo, Tais efeitos sio de importancia especial para antropélogos/as porque contribuem para a ficcio de haver outtos essencialmente diferentes ¢ distintos, passiveis de serem separados de ‘umn também tido por essencial, Na medida em que. diferenca é hierérepica, como apontei, casserodes de separacio sto um modo de negar responsabilidade, a genetalizacio em si deve set encamda com suspeitas, Poressas 1276es, proponho experimentarmos com €(@ 3 Ae aS RCH numa tradi¢io continuada de escrita baseada no campo”. Ao contar histosias sobre indiv duos especificos no tempo e no espaco, tais etnografas compartilhario elementos com a “tadi¢io feminina” acima exposta, Minha espectativa é que clas complementem, mais que substituam, uma gama de outros tipos de projeto antropologico, desde as discusses tedticas até a exploracao de novos temas dentro da disciplina [...] Ao fim deste texto abordare: o mo- tivo pelo qual ainda ¢ importante escrever etnografias. Mas antes, quero explicitar algo de seu valor potencial. Antropélogos/as comumente generalizam sobre as comunidades dizendo serem ca- sactetizadas por certas instituigdes, regras ou modos de fazer as coisas. Por exemplo, podemos dizer, e muitas vezes dizemos, que “os Bongo-Bongo sio poligamos”. Mas h4 como recusar tal generalizacio, questionando-se sobre como um determinado conjunto de individuos— por exemplo, um homem e suas trés esposas em cesta comunidade beduina no Egito, a quem co- heco ha décadas — vive a “instituicio” que chamamos poliginia. Enfatizar a particulasidade ste casamento e construir una imagem sua a partir das discusses, lembrancas, desacordos e aces dos participantes oferecenia civersas observacdes de cunho tedtico. De pattida, recusar generalizagoes destacaria a qualidade de construto daquela tipici- dade tio frequentemente produzida nos relatos convencionais das ciéncias sociais. Depois, apresentar as citcunstancias efetivas e as historias detalhadas dos individuos e de suas relagoes sugetitia que tais particulares, sempre presentes (como sabemos a partir de nossas proprias vivéncias), sio também sempre cruciais para a constituicio da experiencia. Entio, reconstinuit s entendimentos das pessoas, suas justificacdes ¢ interpretacdes daquilo que elas proprias ¢ 5 outros dizem e fazem, explicatia a continnidade da vida social. Mostraria que, apesar dos terms de sens discursos poderem ser fixos (e, como em qualquer sociedade, incluir muitas vezes discursos contraditétios e mesmo historicamente vatiaveis), dentro de tais limites as pessoas contestam interpretagdes sobre 0 que se passa, elaboram estratégias, sofrem e vivem suas vidas. Em certo sentido isso nio é novidade. Bousdicu (1977), por exemplo, teorzou fas a diferenca aqui residitia na procuza por fais do que na simples elaboracio de afitma- sobre a pritica social de maneita semelhant Individuos enfrentam escolhas, disputam uns com os outros, declaram ideias conflitivas, discutem sobre pontos discordantes com relacio a um mesmo evento, enfrentam altos e baixos em diversos relacionamentos e passam por mudancas em suas condicdes e desejos, confrontam ptessdes diferentes, ¢ falham em prever 0 que aconte- cetiia sie aos seus, Por isso se tomna dificil pensar que o termo “cultura beduina”, por exem- plo, faca algum sentido a luz dessas tentativas de ajuntar pistas ¢ expressar como é a vida para uma velha matriatca beduina. Se voce pede para que conte a historia de sua vida, cla dri que se deve apenas pensar em Deus. Ainda assim é capaz de contar hist6rias muito vividas, fixadas de varias formas em sua memoria, sobre suas resisténcias a casamentos arranjados, seus partos ¢ as preocupacées com as filltas adoentadas. Também conta dos casamentos que presenciou, das sacanagens cantadas por jovenzinhos enquanto tosquiavam rebanhos para os ancifios, e também das via- gens em tisis lotados, numa das quais precisou beliscar a bunda de um homem para que ele saisse de seu colo. O aspecto mais regular de seu dia a dia é a espera pelos horitios de oracio. Jé é meio- dia? Ainda nao. Meio da tarde? Ainda nao. O sol jé se pos? Vovo, a senhora ainda nio rezou? O sol jd se pos. Eh estende seu tapete de oragao em frente a0 compo e reza em voz alta. Ao final, enquanto entola o tapete, suplica a Deus que proteja todos os muculmanos. Recita 0 nome de Deus conforme gita suas contas de oragio. A tinica decoracio de seu quarto é uma fotografia na parede, sua e do filho petegrinando em Meca. Com as costas encurvadas que mal Ihe deisam ficar de pé, passa o dia sentada ou dei- tada no colchao. E quase completamente cega, ¢ reclama das muitas dores que sente. As pes- soas entram e saem: seus filhos, sobrinhos, filha, sobrinhas, netas bisneto. Conversam um. poco, conferem com ela as relacées entre outras pessoas, casamentos, parentesco. Ela ofe: ce conselhos; di-lhes bronca por nio fazetem as coisas diseito, E brinca com seu bisneto de tués anos, provocando-o: “Ei, mew zapé acabou. Venha aqui pata eu cheitar essa gordutinha”. Ser seligiosa e ferenha observadora dos protocolos de hospitalidade, visitas de cox tesia ¢ saudacGes nao parece impedi-la de apreciar as histotias mais ultrajantes e os causos imorais. Quando a encontrei em 1987, a historia que mais gostava acabara de ser contada por sua filha, ela propria uma mulher casada e mie de cinco cuancas, vivendo perto de Alamein. [aut O causo dizia de wm casal de velhos que tesclvia sar em visitaa suas filhas, era divertido pela inversio de mundo que evocava. Era um conto que apresentava um mundo onde as pessoas faziam o inconcebivel. Em vez de levar consigo os usuas biscoitos e docinhos, o casal presenteow as filhas com sacos de esterco. Quando a primeita filha na casa de quem pararam foi buscar 4gua no poco, passaram a derramar todo 0 contetido de mel e azeite que seu mando, um comerciante, armazenava em. casa. Quando ela regressowe vito que faziam, mandov-os embora. Entio os dois foram para casa da segunda filha, Quando esta os deisou cuidando do bebé por um instante, o velho matou apenas pata que parasse de chorar. A filha voltou para casa, descobrm o que aconte- cera e ensotou os dois de Ii. Em seguida, passaram por uma casa em que havia uma ovelha abatida, Fizeram cintos com seus intestinos € chapéus com o estémago, ¢ entio se quedatam admiranclo um a0 outro em seus novos adornos. Mas assim que a velha pexguntou ao matido se nao tinha ficado linda com seu novo cinto ele respondeu: “Estaria lindissima, nao fosse essa mosca pousada em seu natiz”. Dizendbo isso, golpeou a mosca, matando a esposa. Con- forme solucava de aflicio, comecou a peidat. Fusioso com o proprio ums, que peidava sobre a morte da esposa, aqueceu uma estaca e enfiow-a Anus adentro, moxrendo no processo. ‘A velha ria sem parat, a0 contar essa historia, assim como gargalhava das historias so- bre velhotas libidinosas, @S{TSRSSEISEHSO Mel Miao esse lc leife oni ia ODSceniCAae NOK _ ia par com sua devogao as preces e sua observancia dos protocolos de decoro# Com se combinavam sua nostalgia do passado ~ quando a regio era desabitada e se podia enxergar quilémetios a0 redor; quando, ainda menina, brineava de desencavar ocasionais cacos de cerimica ou garralas de vidto, na fea hoje cercadla e protegida pela Organizacto Egipcia de Antignidades; quando sua familia migrou com os tebanhos, ordenhando e produzindo man- teiga nas pastagens desertas — ¢ a defesa aferrada a seu neto favorito, cujo pai se enfureceu apés rumores de que 0 mpaz bebera dlcool num casamento local? As pessoas nfio bebem na comunidade, ea bebida é, sem civic, prosctita pela religiio. © que “cultura” poderia signifi- cat, considerando essas complesas reacdes da velha senhora? ter bebido no casamento vende seu videocassete pata um vizinho, levanta algum dinheito € desaparece. Sua avé fica inconsolivel. As tias discutem a situacio. Seu pai nao diz nada. Apenas dias depois é que um parente distante aparece e assegura 4 avé que o rapaz esté bem, ¢ diz saber seu paradeiro (esta trabalhando numa obra a cerca de 100 quilémetros dali). Nin- guém sabe quais serio as consequéncias disso. Ele retornars? O que o pai vai fazer? A honra a familia, a reputacio da piedade ¢ da autoridade paterna estio em jogo. Quando o jovem retozna, vitias semanas mais tarde, acompanhado por um tio materno que mora 50 quilé- metros a leste, ¢ que vai com ele para prevenir mais punicées, a av6, aliviada, cai aos prantos. A situacio poderia facilmente ter terminado de outra manera. Desde o sumico do rapaz, os dias da av6 foram tomados de preocupacio, brigas, espera c falta de expectativas sobre o que fazer em seguica, Aquela surta ¢ aquela fuga, eventos ocorridos no tempo, tornam-se parte da historia daquela familia, dos indivicuos envolvidos e de seus relacionamentos, Nessa sequ- éncia de acontecimentos numa familia particular, no ano de 1987, podemos identificar 0 que chamamos de “orcas maiores” que possibilitaram o ocortido, coisas como as oportunidades crescentes de trabalho assalariado, a comercializacio de casamentos beduinos € o influxo de bens desde as cidades. Entretanto, por tais “forcas” encarnarem tho-somente nas acées de individuos vivendo no tempo € no espaco, etnografias do particular sio capazes de melhor capta-las. Até mesmo o titual, aquela pratica comunal na qual o tempo parece assumir significa~ do diferente, talvez cichco, tipo de pratica que no discurso antropolégico marca tio perteita mente 0 outro cultural (exotico, prmitivo) como diferente, acaba por se mostrar algo especi- fico, tudo menos atemporal. Se observados atentamente, um evento ritual e seus participantes reais envolvem imprevisibilidade. Mesmo no titual, o desenzolar do que no pode ser conhe- cido de antemio gera grande drama ¢ tensio. Deixem-me exemplificar, ontia vez a partit de meu trabalho. Na primeiza semana de minha chegada 4 comunidade beduina no Egito, onde petmanecetia anos, as jovens da casa em que en estava me descreveram a sequéncia exata de eventos que toda noiva deve passar num casamento bedtiino, Ao longo dos anos, presenciei varios casamentos, todos seguindo a mesma estrutuza, ainda que cada um distinto do outro. Para cada noivo € noiva, sem falar em suas familias, o casamento marcaria um momento de profunda transtormacio, nao apenas de status como também de associacées, vida cotidiana, experiéncia e futuro. Cada casamento era diferente no que diz respeito aos tipos de familias ali reunidas, a rede de relacdes criada € os bens trocados, gastos € expostos. Ainda mais importante, os elementos de imprevisibiidade eram muitos. A nowa per- maneceria? O casal se daria bem? Haveria filhos? Em quanto tempo? Mesmo o sito central da cerim6nia —a defloracao ou 0 teste piblico de virgindade — era um evento de grande tensio dramiatica cujo resultado nao se sabia de antemio. O padrio do defloramento, como ja des- cxevi (1988), é modelar: no dia do casamento, quando os convidados estio reunidos, o noivo, nA) acompanhado por seus amigos, penetra a esfera feminina ¢ adentra o quarto onde a nowa es- peta, cercada por vitias senhoras que a ausiliam. Mesmo assim, cada defloragio envolve um conjunto especifico de pessoas ¢ ocorre de uma forma particular As nacrativas das mulheres que petmanecem com a noiva enquanto o noivo tita sua vitgindade enfatizam tal especifi- cidade. Elas descrevem as reacdes da noiva, suas palavzas, a dimensio de sua resisténcia, os lugares especificos do quatto em que elas prOpuias se dispunham e os papéis que assumiam, no evento, as reagdes do noivo, os conselhos que dio a ele, os problemas encontiados, a ten- sfo de impar o sangue. Comparam noivas que ja conhecezam e as manchas de sangue nos tecidos brancos. Avaliam as competéncias ¢ qualidades das vitias senhoras que acompanham as noivas. Suas narrativas, assim como as respostas de todos os participantes do casamento, tevelam a questio central que comporta o drama da cetiménia: haveri sangue? Os eventos tomam rumos diferentes. Em toda parte, esta é a natureza da “vida que se vive” (RIESMAN, 1977) 0. Conclusao: humanismo tatico? As ctiticas recentes 4 antropologia, oriundas de varias partes, encorajam-nos a pergun- tar sobre o que trabalhamos, como escrevemos e para quem o fazemos. Argumentei que a diferenga cultural, 20 mesmo tempo base ¢ produto do discurso antopologico, é uma cons- trucao problematica, e sugeri uma séne de estratégias, a maiona j4 experimentada por outros, de “escrever contea a cultura”. A partic de meu proptio trabalho, dei exemplos de como uma cstratévia -<@EHRTORRARAMGIpatIete — poderia ser um modo especialmente titil de perturbar ‘© conceito de cultura. O valor especial desta estratégia € trazer 4 luz similaridades entre todas as nossas vidas. SELLE STEER. on bem possivel que na simples observacio do cotidiano encontuissemos diferencas fandamen- tais, como aquelas entre a expetiéncia cotidiana em um mundo organizado para produzit efeitos de estrutuas, instinuigdes ou outias abstiagdes (como Mitchell [1988] diz ser o caso do Ocidente) ¢ aqueles mundos que nfo se oxganizam assim. 08 parti- culates indicam que os outzos vivem do mesmo modo como nos vemos vivendo, no como tobés programados por regtas “culturais”, mas como pessoas segniindo a vida e amargando decisdes, cometendo erros, tentando se manter apresentiveis, suportando tragédias ¢ perdas pessoais, desfrutando da convivéncia umas das outras ¢ encontrando momentos de felicidade. ‘A lingnagem da generalizacio no € capaz de transmitit experiéncias e atividades desse tipo. Em ni sas vidas, equilibramos os entendimentos fornecidos pelas ciéncias sociais com a linguagem comum usada em conversas pessoais, ¢ com isso discutimos e compreendemos nossas proptias vidas, amigos, familia e nosso mundo. Com relacio Aqueles que vivem “fora” de nosso mundo, contudo, no possuimos discussos de familiaridade com os quais contraba- Iancar os discursos distanciadores da antropologia e de outras ciéncias soci, discursos estes que também servem a especialistas em desenvolvimento, governos, jomnalistas € outros que Iidam com o Terceito Mundo. Etnografias do particular poderiam prover tal discusso de familiaridade, familiasidade esta que as conven “Ses humanistas das etndgrafas amadoras, tio desvalorizadas, sempre en- irculos pos-esteururalistas corajatam. E. por que invocar 0 humanismo, tio desacreditado nos © pés-modernos?*. Certamente ha raz6es para suspeitar de uma filosofia que tantas vezes escondeu a persisténcia de differencas sociais sistematicas, apelando a um suposto individuo universal como herdi ¢ sujeito auténome; filosofia que nos permitim pensar na dominacio e exploracio da natureza pelo homem como justificada por sua posicio central no universo; filosofia fall em perceber que seu humano essencial possuia caracteristicas cultual e social- mente especificas, que na verdade excluiam a maior parte dos humanos; e uma filosofia que se recusa a entender como nés, como sujeitos, somos constituidos por discursos atrelados a0 poder. Pelo fato de, no Ocidente, humanismo continuar sendo a linguagem da igualdade Inumana que mais forca moral carrega, no podemos abandoné-lo, ao menos niio como con- vengio de esctita, Ao defender novas formas de esctita — pastiche, dilogo, colagem, entre ‘outras — que desestabilizam a narrativa, as identidades dos sujeitos ¢ as identificacdes, os an- tichumanistas pedem que seus leitores adotem estratégias de leitura sofisticadas, a par de tina ctitica social. Antropélogos/as tém o direito de pedi isso? Por ora, algumas reclamacées ja foram levantadas com relacao a etnografias expetimentais, apontando o tédio ¢ uma dificul- dade em set impactado por elas. O humanismo é uma lingua com mais falantes (¢ leitores), ainda que também seja lingua local, ¢ no algo universal como se pretende (PARMISUEEEELERG sobre as pessoas, talvez anda devamos falar esta lingua, mas conhecendo suas limitagoes. Asso podemos chamar (i{aESMOIeetornado politicamente necessario e tam- bém limitado em seus efeitos gracas ao posicionamento da antropologia ao lado da domi- nacio, no contesto de um mundo organizado por desigualdades globais também expressas como diferengas “culturais”. Nao devemos ter a ilusio de que o humanismo titico, na forma de etnografas do particular ou outros expedientes de escrita contra a cultura, contabui com algum tipo de linguagem ou bem universais. Desde nosso Ingar como antropélogos/as, por delicadlas que sejam nossas identificacdes enquanto feministas ou “mesticos/as”, operamos como ocidentais, e contribuimos para um discurso ocidental. Como Mudimbe (1988, p. 19) afisma em seu A invento da Africa, “parece impossivel pensar qualquer antropologia sem um vinculo epistemoldgico ocidental” ¢]aig inTenIteiie naGISe podelestapanajposicionaliclate. Tampouco podemos escapar do fato, apontado de forma tio diteta por Riesman (1982) em sua resposta a proponentes de uma antropologia dialogica, “GSES TATA SESD _ Soas para nossos prdprios interesses, o tempo inteito " « “usando o conhecimento que nox for n@CERRTCORTOD]etNOS GUESSEQUEEUMEGIALARD "Isso ro significa que os objetivos niio sejam validos ou que traballiar com o discurso ocidental no seja crucial. De acordo com Said (1989, p. 44), “representacdes antropologicas carregam elementos tanto do mundo daquele que representa quanto daquilo ou daqueles que sao representados”, O Ocidente ainda pos- sui um poder discursivo, militar e econdmico ‘uemencos,(NOssaesctla pou ahicbisso us ‘Também devemos estar preparados, a despeito de nossos esforcos ditigidos 20 Oci- dente, para sermos confzontados quando nossos empenhios mais humanisticamente clevados aleancatem aqueles em outros contextos, onde as convengées podem no ser reconhecidas & as questdes do poder podem ser lidas de modos diferentes. Novamente, posso ilustrar a partir de meu trabalho. s nt (GASES HATA CCCI". Mesino assim, embora eu 1possa explicar esse contesto aos membros daquela comunidade, o trabalho decerto nto pode sez recebido por eles da mesma forma. Minha tentativa de revelar aos ocidentais os apegos € vulnerabilidades individuais dos beduinos, por meio de sua poesia, a fim de ciiar certo enten- dimento ¢ nao distancia, provocou diferentes reacdes no Egito. Quando uma mulher ouviu algném lendo, no livo, alguns dos poemas que declamara anos antes, exclamou, meio em tom de troca: a '". Pata ela, um livzo sobre pessoas especificas ¢ a Minha apresentacio dos modos pelos quais ideais de antonomia pessoal ¢ indepen- 16) déncia se manifestavam nas vidas dos homens também assumin sentidos complexos e dit tentes no Egito. Uma copia de uma longa resenha (em arabe) de meu livto chegou as mios de um beduino Aviad ‘Ali, servidor ptiblico e aspirante a um posto no governo egipcio. Dai foi confrontar meu anfitido com a resenhia, furioso por eu ter escrito que eles gostavam de catregar armas, sonegar impostos e defender sen diteito a sesolver as proprias disputas, sem envolver 0 governo, Conforme contou meu anfitiiio, o homem bradava acusatonamente: “Sua garota que escreveu isto!”. Nunca saberei o que aconteceu na sequencia, por nao ter estado li e poder contar apenas com a versio de meu anfitrifo. Ele, como sempre, havia sido provocador, retrucando que me dissera tudo que eu sabia. E nto eta verdade? Aquele homem nfo portava armas sem licenga? Havia declarado todas as suas ovellias pata o fisco? Meu anfittiio muitas vezes dissera querer meu livto traduzido para o arabe, para que os egip- cios viessem a compreender ¢ apreciat os paddies morais supetiores de sua commnidade — da qual muitos egipcios desdenhavam. Entretanto, este episodio demonstrou que ele era apenas uma voz na comunidade beduina, e que suas ideias sobre como adquisir respeito divergiam daquelas de alguém leal ao governo. Meu tuabalho, destinado a outro piiblico, adentrou um campo politico local em que 0 telacionamento dos beduinos Awad ‘Ali com o Estado egipcio era motivo de disputa. Como todos os trabalhos antropolégicos hoje, meus textos certamente entrario em diversos outros debates. Nao € 1azio para desespero. Pelo contritio, a0 nos forcar a refletir sobre dilemas da pritica antropologica que jA nao podemos ignorar — por em que é dificil manter as fronteiras da “cultura” em seu higar, ¢ em que a politica global é incerta — tais problemas oferecem oportunidade para escolhermos estratégias provis6tias alinhadas a nossas espectativas, mas sem ihusdes presuncosas a respeito do grande valor de ermos tempos nossas contiibuicdes. Agradecimentos Nenhuma das muitas pessoas com quem estou em débito, com quem conversei 20 Jongo dos anos e que me permiticam refletit, devem ser responsabilizadas pelo que fiz a partir dessas interacdes. Como bolsista Mellow Fellow da Universidade da Pensilvinia, tirei proveito de discusses com Arjun Appadusai, Carol Breckentidge e vitios patticipantes do seminatio sobre “Onentalismo e além’”, no ambito do Programa de Estudos sobre o Sul da Asia. Também sou grata aos integrantes do Seminario de Género de 1987-88, do Instituto de Estudos Avancados (do qual pude participar gracas a0 generoso financiamento do National Endovment for the Himanitei), pelos intensos ¢ proveitosos debates sobre teoria feminista. Dan Rosenberg foi quem inicialmente me motivou a pensar os paralelos entre “cultura” e “aca”. Tim Mitchell ausiliou-me a esclatecer vitios aspectos de minha argumentacio, assim como o fizetam os patticipantes do semindtio avancado na School of Anerican Research, profundamente estimulante, onde apresentet este texto pela primeira vez. Mas acima de tudo, foi a generosi- dade das familias Awlad ‘Ali. com quem vivi no Egito que me permitin ensergar maneitas de questionar certas nogdes de outridade. Minha estada mais recente entre eles, no ano de 198" foi possivel geagas a um financiamento por meio do Fulbright Islamic Chuilization Anuar Notas A. Republicagio autoxizada a partir do original constante em “Recaptuting Anthuopology: Working in the Present”, volune oigenizado por Richatd G. Fox, Copytight 1991 para a School for Advanced Research, Santa Fé, Novo México, Estados Unidos. Toxos os direitos reservados. Os ttadutores aguadecem a atencio e considexacio prestadas pela autora e pelt editora responsivel, Sah E. Soliz, que mito gentilmente ceteram os diteitos desta publicacio. 1. Mest étermo que emprestei de Kitin Narayan (comnicacio pessoa! a. NdT: O tetmo inglés haf, escolhido pela antora, comporta @ nogio de wn stieito composto por distin- tas refeténcias e formacSes (de lf “metade”), Apesar de nao ser ecpivalentedireto de mest, em sentido s6cio-histéxico, optamos por munter esta taducio devido as semelhanas que apresenta com o aspecto de interseccionalidade tanto ética quanto sacial do termo inglés. 2. Do mesmo mocio, Marcus ¢ Clifford (1985) e Marcus e Fischer (1986) indicam as feministas como importantes fontes pava a caitca cultual e antropolégica, mas no discutem seus trabethos. Fischer (1984, 1986, 1988), entretanto, i mito tempo se interessa pelo fendmeno do bicultaralisma, 3. Aina é raro que antropélogos /2s, nesta ou em outras sociedades, ficam.o que Lana Nader defenden bi visios anos (1969) — “study up”. a. NAT: A proposicio “shughng 1d” di eespeito a realizar um estudio jnto As camadas mais privlegiadas, social, cconémica e politicamente de uma sociedade: seus govemnantes, rsponsives peas tomadas de decsio ete. 4, Seas visias estratégias se baseiam nessa divisio e na série de poses (oulnra/nanareza piblico/‘privado, ta- bbaho ‘a, transcendéncia/imeciacio, abstuato /especifico, objetividade /subjetividade, autonomin/conexio ete) a ela ass0- Gadas: a) mmheres devesiam sex capazes de adentun 0 respeitivel mundo dos homens, como se fossem Inomens on tendo seus puivilégios; b) os valores traballos das mulheres, mesmo que diferentes, deveriam ser tio valotizados cpanto os dos hhomens; ou c) mulheres e homens deveriam ambos muckar ¢ adentrar as esferas uns dos outros, a fim de apagar diferencas de ginero. 5. Tss0 no dissolve o feminisno como identdade pottica, agumenta Hauding, mis a questio mais puogente nos citculos feministas €, agora, como desenvolver w{fjpeitieh a Salaedade)SOMERSORERAhce constrnich sobre 0 entendimento das clferengas mais do que una soidatedade wnitarst, cujaidentidade é definida pela oposicio a um outro «qs por sua ve, haviaincalmente conferdo iquea identidade o papel de outta. A reflexio mis interesante neste sentido ‘Baader 6. Pasa um debate sobse a convergéncia das exiticas antropolégicas ¢ feministas com relicio A objetivdade, ver Abu-Laghod (19908). 7. Em seu promunciamento Associaclo Antropolégica Americana, em 1988, 0 ponto centual pata Edward Said em considerar que antropélogos/as deviam niio apenas atentar para o “o higar antropolégica”, mas também para a “situacio cculnwal na qual o trabalho antropolégico de fato se desenvolve” (1989, p. 212) 8. Mito da lteranara sobre antropologia nativa esti voltas com as vantagens e desvantagens desta identificacio, ‘Veja-se Fahim (1982) e Altouki e El-Solh (1988), 9, Ver também minha discussio sobre 0 estudo de gnero na antyopologia do Oriente Mécio (L. Abu-Lughod, 1989) 10, Demodo patalelo, aqueles que estudam a experiéacia negra sio vistos como se estudassem uns forma maxcada

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