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Quando refletimos sobre a Natureza em geral, ou

sobre a história da humanidade, ou sobre nossa própria


atividade intelectual, vemos em primeiro lugar a imagem
de um incessante emaranhado de relações e reações, de
permutações e combinações, nas quais nada permanece
o-quê, onde e como era, mas nas quais tudo se move,
toma forma e passa. Vem os portanto em primeiro plano
a imagem de um todo, com suas partes ainda mais ou
menos mantidas ao fundo; observamos os movimentos, as
transições, as conexões, em vez das coisas que se m ovem
e combinam e estão ligadas. Esta concepção do mundo
primitivo, naif, porém intrínsecamente correta, é a mesma
da filosofia grega antiga, e foi formulada pela primeira
vez com clareza por Heráclito: tudo é e não é, porque
tudo é fluido, está constantemente mudando, constante­
m ente tomando forma e passando.

Friedrich Engels
ÍNDICE

I. A D IA L ÉT IC A DO SEXO 11

II. FEM INISM O AM ERICA N O 25

III. FREU D ISM O: UM FEM INISM O


D ESVIRTUA DO 55

IV. ABA IX O A IN FÂ N CIA 87

V. RACISCO: O SEXISMO D A FA M ILIA


DO HOM EM 125

VI. O A M O R 147

VII. A CU LTU RA DO ROM ANCE 169

VIII. C U LTU R A (M A SCU LIN A ) 181

IX . D IA LÉTIC A SEXUAL DA HISTÓ RIA


D A C U LTU R A 197

X. O FEM INISM O NA E R A DA EC O LO G IA 221

CONCLUSÃO: A REVOLUÇÃO
D EFIN IT IV A 233
I. A DIALÉTICA DO SEXO

As classes sexuais são tão enraizadas, que se tor­


nam invisíveis. A existência dessas classes pode parecer
um a desigualdade superficial, facilmente solucionável com
algumas reformas, ou talvez com a integração plena das
mulheres na força de trabalho. Mas a reação do homem,
da mulher e da criança comum — “0 que! Ora, não se
pode m udar isto\ Você deve estar louco!” — está mais
próxima da verdade. Falam os de algumas coisas tão pro­
fundas quanto esta. Essa reação instintiva é honesta, pois
mesmo quando o ignoram, as feministas falam de um a
m udança na condição biológica básica. O fato de que
uma m udança tão profunda não possa se ajustar em ca­
tegorias tradicionais de pensamento, p.e., o “político” ,
ocorre não porque essas categorias não se usem, mas por­
que não são suficientemente amplas: um feminismo radi­
cal as perpassa. Se houvesse um outro term o mais abran­
gente, do que revolução, nós o usaríamos.
Até que fosse atingido um certo nível de evolução
e que a tecnologia chegasse à sofisticação atual, questio­
nar condições biológicas básicas era loucura. Por que
deveria um a mulher trocar seu precioso lugar no curral,
por uma luta sangrenta e sem esperança? Entretanto,
pela prim eira vez em alguns países, as pré-condições para
a revolução feminista existem — na verdade, a situação
começa a exigir essa revolução.

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As primeiras mulheres estão conseguindo escapar
ao massacre, e, inseguras e vacilantes, começam a des­
cobrir-se umas às outras. Seu primeiro passo é um a obser­
vação cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma
consciência partida. Isto é penoso. Não im porta quantos
níveis de consciência sejam atingidos, o problem a sempre
se aprofunda. Ele se acha em todo lugar. A divisão Yin
e Yang penetra toda a cultura, a história, a economia, e
a própria natureza; as versões ocidentais modernas da
discriminação sexual integram apenas o substrato mais
superficial e recente. Intensificar assim nossa sensibili­
dade em relação ao sexismo traz problemas muito piores
do que os que a nova consciência do racismo trouxe
para os militares negros. As feministas têm que questionar
não só toda a cultura ocidental, como a própria organiza­
ção da cultura, e, mais; até a própria organização da na­
tureza. M uitas mulheres desistem, desesperadas. Se é ne­
cessário ir tão longe, elas preferem desconhecer o assunto.
Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento,
sua dolorosa sensibilidade em relação à opressão da mu­
lher existe com um único propósito: eliminá-la finalmente.
Contudo, antes que possamos agir para m udar a si­
tuação, precisamos saber como ela suraiu e evoluiu, e atra­
vés de que instituições ela opera hoje. Citando Engels:
“ [Devemos] examinar a sucessão dos fatos, a partir dos
quais o antagonismo brotou, de m odo a descobrir, nas
condições assim criadas, os meios de pôr fim ao conflito.”
P ara a revolução feminista, precisamos de um a análise
da dinâmica da guerra dos sexos tão completa quanto
para a revolução econômica foi a análise de M arx e
Engels sobre o antagonismo das classes. Mais completa
ainda, Porque lidamos com um problem a mais amplo, com
um a opressão que remonta além da história escrita, até
o próprio reino animal.
Ao criar esta análise, podemos recorrer ao método
analítico de M arx e Engels, mas não a suas opiniões sobre
as mulheres — eles não sabiam quase nada sobre a con­
dição dàs mulheres enquanto classe oprimida, reconhe­
cendo-a somente quando issò coin&diá com â econòirtiá.

12 '
M arx e Engels superaram seus precursores socialis-
( tas, porque desenvolveram um m étodo de análise ao mes­
mo tempo dialética e materialista. Os primeiros a com­
preender a História dialeticamente, viram o m undo como
um processo, como um fluxo natural de ação e reação,
j de elementos opostos, porém inseparáveis e interpene­
trantes. Por terem sido capazes de perceber a História
mais como um filme do que como fotos instantâneas,
tentaram evitar cair na visão “metafísica” estagnada, que
aprisionou tantas outras grandes mentes. Àté mesmo este
tipo de análise pode ser um produto da divisão sexual,
como discutiremos no Capítulo 9. Combinaram esta vi­
são da interação dinâmica das forças históricas com uma
visão materialista, i.e., tentaram pela primeira vez dar
uma base real à m udança histórica e cultural, traçar o
desenvolvimento das classes econômicas, a partir de cau­
sas orgânicas. Compreendendo integralmente os meca­
nismos da História, esperavam m ostrar ao homem como
dominá-la.
Os pensadores socialistas anteriores a M arx e Engels,
como Fourier, Owen e Bebei, não foram capazes de fazer
mais do que interpretar m oralmente as desigualdades so­
ciais existentes, postulando um mundo ideal, onde os pri­
vilégios de classe e a exploração não deveriam existir, sim­
plesmente graças à boa vontade, do mesmo modo como as
primeiras pensadoras feministas postularam um mundo
onde o privilégio do homem e a exploração não deveriam
existir, simplesmente graças à boa vontade. Em ambos os
casos — p o r não terem os pensadores primitivos com­
preendido realmente como a injustiça social tinha evo­
luído, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada —
suas idéias caíram rium vazio cultural, utópico. M arx e
Engels, por outro ladò, tentaram um enfoque científico
da História. Trouxeram o conflito das classes às suas ori­
gens econômicas reais, projetando um a solução econô­
mica, baseada em pré-condições econômicas já existentes:
a tom ada dos meios de produção pelo proletariado levaria
a um comunismo, onde o governo se retrairia, não pre­
cisando mais reprimir a classe baixa em benefício da
classe mais alta. N a sociedade sem classe, os interesses

13
de todos os indivíduos seriam sinônimos dos da socie­
dade.
Mas a doutrina do materialismo histórico, por mais
que tenha representado um avanço significativo em rela­
ção à análise histórica anterior, não foi a resposta com­
pleta, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque,
apesar de M arx e Engels fundamentarem sua teoria na
realidade, era ela apenas um a realidade parcial. Esta é
a definição estritamente econômica do materialismo histó­
rico, tirada de Socialismo: Utópico ou Científico, de
Engels:

“O materialismo histórico é aquela visão do curso da


História que busca a causa última e a grande energia móvel
de todos os fatos históricos no desenvolvimento econômico
da sociedade, nas mudanças dos modos de produção e troca,
na conseqüente divisão da sociedade em classes distintas, e nas
lutas entre essas classes.” (Grifos da autora)

M ais adiante, ele afirma:

“. . . que toda a história do passado, com exceção dos


estágios primitivos, foi a história de lutas de classes; que essas
classes conflitantes da sociedade são sempre os resultados dos
modos de produção e troca — numa palavra, das condições
econômicas de sua época; que a estrutura econômica da socie­
dade sempre fornece a base real, exclusivamente a partir da
qual podemos formular tanto a explicação última de toda
a superestrutura das instituições políticas e jurídicas, quanto
a das idéias religiosas, filosóficas e demais idéias de um pe­
ríodo histórico dado.” (Grifos da autora).

Seria um erro tentar explicar a opressão das mulhe­


res, a partir desta interpretação estritamente econômica.
A análise de classes é um belo instrumento de trabalho,
mas é limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela
não se aprofunda o suficiente. H á todo um substrato se­
xual da dialética histórica que Engels algumas vezes per­
cebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente
através de um filtro econômico, reduzindo tudo a isto,
não c capaz de avaliá-la por si mesma.

14
Engels observou que a divisão original do trabalho
entre o homem e a mulher estabeleceu-se para fins de re­
produção; que dentro da família o homem era o proprie­
tário, a mulher os meios de produção, o filho o trabalha­
dor, e que a reprodução da espécie hum ana era um sis­
tema econômico importante, distinto dos meios de pro­
dução.*1
M as Engels deu crédito demais a esses reconheci­
mentos dispersos da opressão das mulheres como uma
classe. N a verdade, só admitiu o sistema sexual de classes
quanto ele se sobrepunha ou iluminava sua estrutura eco­
nômica. Engels não foi bem sucedido nesse aspecto. Con­
tudo, M arx foi pior. H á um reconhecimento crescente

* Ver N.T. à página 260. (N.T.)


1. A correlação que ele estabelece na Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado entre o interdesenvolvimento
desses dois sistemas numa escala de tempo deve ser interpretada
como se segue:

REVOLUÇAa
HISTÓRIA GRÉCIA RENASCENÇA MODERNA
ESCRITA •-*---- — ------------------► ----------------- ►

C O M U N ISM O

15
dos preconceitos de M arx com relação às mulheres (um
preconceito cultural partilhado por Freud, bem como
por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos
forçar o feminismo a entrar numa estrutura marxista orto­
doxa — congelando em dogmas o que eram apenas
insights incidentais de M arx e Engels sobre as classes se­
xuais. Em vez disso, precisamos ampliar o materialismo
histórico para incluir o que é estritamente marxista, do
mesmo modo como a física da relatividade não invalidou a
física newtoniana, apenas traçou um círculo a sua volta,
limitando sua aplicação — por comparação apenas —
a uma esfera menor. Pois um diagnóstico econômico que
remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos
meios de reprodução, não explica tudo. Existe um nível da
realidade que não deriva diretamente da economia.
A suposição de que, antes de ser econômica, a reali­
dade é psicossexual, é geralmente acusada de aistórica
pelos que aceitam um a visão m aterialista dialética da His­
tória, porque ela parece nos situar antes do ponto em que
M arx começou: tateando através de um nevoeiro de hipó­
teses utópicas, de sistemas filosóficos que podem ser cer­
tos ou errados (não há como dizer), sistemas que expli­
cam desenvolvimentos históricos concretos por categorias
o priori de pensamento. O materialismo histórico, ao con­
trário, tentou explicar o “conhecer” pelo “ser” , e não
vice-versa.
Mas existe uma terceira alternativa ainda não ten­
tada; podemos desenvolver uma visão m aterialista da His­
tória, baseada no próprio sexo.
As primeiras teóricas feministas foram, para uma
visão materialista do sexo, o que Fourier, Bebei e Owen
foram para um a visão m aterialista das classes. De modo
geral, a teoria feminista tem sido tão inadequada quanto
as primeiras tentativas feministas de corrigir o sexismo.
E ra de esperar que isso ocorresse. O problem a é tão vasto
que, na primeira tentativa, só a superfície poderia ser
examinada, descrevendo-se apenas as desigualdades mais
gritantes. Simone de Beauvoir foi a única que chegou
perto de uma análise definitiva — que talvez a tenha
realizado. Sua penetrante obra O Segmdo 4 b Sexo — que
O Y\

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apareceu recentemente, no início da década de cinqüenta,
para um m undo convencido de que o feminismo estava
morto — pela prim eira vez tentou assentar o feminismo
em bases históricas. De todas as teóricas feministas, Simo­
ne de Beauvoir é a mais completa e abrangente, ao relacio­
nar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura.
Pode ser que esta virtude também seja seu único
defeito. E la é quase que sofisticada demais, culta de­
mais. Onde isto se torna uma deficiência — o que certa­
mente é ainda discutível — é na sua interpretação rigida­
mente existencialista do feminismo (perguntamo-nos o
quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso
em vista do fato de que todos os sistemas culturais, inclu­
sive o existencialismo, são eles próprios determinados
pelo dualismo sexual. Diz ela:
“O homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no
Outro; ele vê o mundo sob o signo da dualidade, que não é,
em primeira instância, de caráter sexual. Mas, sendo diferente
do homem, que se constrói como Mesmo, é certamente à ca­
tegoria do Outro que a mulher pertence; o Outro inclui a
mulher. (Grifos da autora.)

Talvez ela tenha ido longe demais. P or que postular


como explicação final o conceito básico hegeliano da alte-
ridade, e então cuidadosamente docum entar as circuns­
tâncias biológicas e históricas que em purraram a classe das
“mulheres” em tal categoria, sem levar em conta uma
possibilidade muito mais simples e mais provável, ou seja,
que o dualismo básico brotava do próprio sexo? Não é
necessário postular categorias a priori do pensamento e da
existência — como alteridade, transcendência, imanência
— nas quais a História passa então a ser moldada. M arx
t Engels descobriram que essas próprias categorias filo­
sóficas originavam-se da História.
Antes de admitir essas categorias, tentemos primeiro
desenvolver uma análise, na qual a própria biologia —
a prociação — se encontra na base do dualismo. A su­
posição imediata do leigo, de que a divisão desigual dos
sexos é “natural”, pode ser bem fundada. Nós não pre­
cisamos, de imediato, enxergar além disso. Ao contrário

17
das classes econômicas, as classes sexuais brotaram dire­
tamente de uma realidade biológica: os homens e as mu-
’heres foram criados diferentes, e não igualmente privile­
giados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa
diferença propriam ente dita não necessitou do mesmo de­
senvolvimento de um sistema de classes — a dominação
de um grupo por outro — de que necessitaram as funções
reprodutoras dessas diferenças. A família biológica é um
poder de distribuição inerentemente desigual. A necessi­
dade do poder que leva ao desenvolvimento de classes ori­
gina-se da formação psicossexual de cada indivíduo, de
acordo com este desequilíbrio básico, e não, como Freud,
Norm an O. Brown e outros postularam — mais um a vez
se excedendo — de um conflito irredutível da Vida contra
a M orte, de Eros versus Tânatos.
A família biológica — a unidade básica de repro­
dução hom em /m ulher/criança, em qualquer form a de
organização social — se caracteriza por estes fatos, se
não imutáveis, pelo menos fundamentais:
1) que as mulheres, através de toda a História,
antes do advento do controle da natalidade, estavam à
mercê constante de sua biologia — menstruação, meno-
pausa, e “males femininos” , de contínuos partos dolorosos,
amamentação e cuidado com as crianças, todos os quais
fizeram-nas dependentes dos homens (seja irmão, pai,
marido, amante, ou clã, governe., comunidade em geral)
para a sobrevivência física.
2) que os filhos do homem exigem um tempo ainda
maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto
indefesos e, pelo menos por um pequeno período, de­
pendentes dos adultos para a sobrevivência física.
3) que a interdependência básica m ãe/filho existiu
de alguma form a em todas as sociedades, passadas ou
presentes, e conseqüentemente moldou a psicologia de
toda mulher m adura e de toda criança.
4 ) que a diferença natural da reprodução entre os
sexos levou diretamente à primeira divisão de trabalho
baseada no sexo, que está nas origens de toda divisão
posterior em classes econômicas e culturais e possivel­
mente se encontra ainda na raiz de todas as castas (dis­

18
criminação baseada no sexo e outras características bio­
logicamente determinadas, como a raça, a idade, etc.).
Estas contingências biológicas da família hum ana não
podem ser entendidas como sofismas antropológicos. Qual­
quer um que observe os animais cruzando, reproduzindo-se
e cuidando de seus filhotes terá dificuldade em aceitar a
linha da “relatividade cultural”. Porque, não im porta
quantas tribos se possam encontrar n a Oceania nas quais
a conexão do pai com a fertilidade seja desconhecida,
não importa quantos m atrilineariados, quantos casos de
inversão do papel sexual, de homens assumindo afazeres
domésticos, ou de dores do parto empáticas, fatos que
provam somente um a coisa: a surpreendente flexibilidade
na natureza humana. Mas a natureza hum ana é adaptável
a alguma coisa, i.e., determinada, sim, por suas condi­
ções ambientais. E a família biológica que nós descreve­
mos existiu em todos os lugares através dos tempos.
Mesmo nos m atriarcados onde a fertilidade da mulher
é cultuada e o papel do pai é desconhecido ou sem impor­
tância, embora talvez não o pai genético, existe ainda al­
guma dependência da mulher e da criança com relação ao
homem. E, apesar de ser verdade que o núcleo familiar é
apenas um desenvolvimento recente, o qual, como ten­
tarei mostrar, apenas intensifica os castigos psicológicos
da família biológica, apesar de ser verdade que através
da História houve muitas variações nesta família biológica,
as contingências que descrevi existiram em todas elas, ge­
rando distorções psicossexuais específicas na personali­
dade humana.
Mas, admitir que o desequilíbrio sexual do poder
está baseado biologicamente, não significa perder nossa
causa. Nós não somos mais animais há muito tempo. E
o Reino da N atureza não reina absolutamente. Como a
própria Simone de Beauvoir diz:

“A teoria do materialismo histórico revelou algumas ver­


dades importantes. A humanidade não é uma espécie animal;
é uma realidade histórica. A sociedade humana é uma anti-
physis — no sentido de que ela é contra a natureza; ela não
se submete passivamente à presença da natureza, mas antes

19
assume o controle da natureza em seu próprio benefício. Essa
usurpação não é uma operação interna, subjetiva; ela é reali­
zada objetivamente na prática.”

Assim, o “natural” não é necessariamente um valor


“hum ano”. A hum anidade começou a superar a natureza.
N ão podemos mais justificar a conservação do sistema
discriminatório de classes sexuais, sob o pretexto de que
se originou na natureza. Parece que, exclusivamente por
causas pragmáticas, nós precisamos, na verdade, nos des­
fazer dele (ver o Capítulo 10).
O problema se torna político, exigindo mais do que
um a análise histórica abrangente, pois nos damos conta de
que, apesar do homem ser cada vez mais capaz de liber-
tar-se das condições biológicas que criaram a tirania dele
sobre as mulheres e crianças, ele tem poucas razões para
renunciar a essa tirania. Como Engels diz, no contexto da
revolução econômica:

“O que se encontra na base da divisão de classes é a


lei da divisão do trabalho.” [Note-se que esta própria divisão
originou-se de uma divisão biológica básica.] “Mas isto não
impede a classe dominante, uma vez predominando, de con­
solidar o poder, à custa da classe trabalhadora, de transfor­
mar sua liderança social numa intensificada exploração das
massas.”

Apesar de o sistema de classes sexuais ter-se origi­


nado em condições biológicas básicas, isto não garante
que, um a vez tendo sido varridas as bases biológicas de
sua opressão, as mulheres serão livres. Ao contrário, a
nova tecnologia, especialmente o controle da fertilidade,
pode ser usada contra elas, para reforçar o sistema de
exploração estabelecido.
De modo que, assim como para assegurar a elimina­
ção das classes econômicas, é preciso a revolta da classe
baixa (o proletariado) e, num a ditadura tem porária, a
tom ada dos meios de produção, assim também, para asse­
gurar a eliminação das classes sexuais, é preciso a revol­
ta da classe baixa (as m ulheres) e a tom ada do controle
da reprodução: a restituição às mulheres da propriedade
fle seus próprios corpos, bem como do controle feminino
da fertilidade hum ana, incluindo tanto a nova tecnologia
quanto todas as instituições sociais da nutrição e da edu­
cação das crianças. E, assim como a m eta final da revo­
lução socialista não era apenas a eliminação do privilégio
da classe econômica, mas também da própria distinção
da classe econômica, assim também a meta final da re­
volução feminista deve ser, ao contrário da m eta do pri­
meiro movimento feminista, não apenas a eliminação do
privilégio do homem, mas também da própria distinção se­
xual: as diferenças genitais não mais significariam cul­
turalmente. (U m a volta a uma pansexualidade livre — a
“perversão polimorfa” de Freud — provavelmente substi­
tuiria a hetero, a homo e a bissexualidade.') A reprodu­
ção da espécie por um sexo em benefício dos dois seria
substituída pela reprodução artificial (ou pelo menos por
um a opção entre as espécies): a forma do nascimento das
crianças seria idêntica para o homem e a mulher, ou
então, encarando-se de um outro ponto de vista, ambos
se sentiriam independentes em relação ao nascimento: a
dependência que a criança tem da mãe (e vice-versa) da­
ria lugar a uma dependência muito reduzida de um pe­
queno grupo mais genérico, e qualauer vestígio de infe­
rioridade com relação aos adultos referente às força física
seria compensado culturalmente. A divisão do trabalho
acabaria iunto com a eliminação total do trabalho (ciber­
nética). A tirania da família biológica seria quebrada.
E, com isto, a psicologia do poder. Como Engels rei­
vindicou para a revolução rigorosamente socialista:

“A existência não simplesmente dessa ou daquela classe


dominante, mas de qualquer classe dominante, terá se tornado
um anacronismo obsoleto.”

O fato de o socialismo nunca ter chegado ao ponto


de realizar esse objetivo declarado não é conseqüência de
pré-condições econômicas não realizadas ou falhas, mas
também de que a própria análise marxista foi insuficiente:
ela não pesquisou suficientemente fundo as raízes psicos-
séxuais das classes. M arx estava ciente de alguma coisa

21
mais profunda do que ele conhecia quando observou que
a família continha dentro de si mesma em miniatura todos
os antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga
escala dentro da sociedade e do estado. Porque, a não
ser que a revolução transtorne a organização social bá­
sica e a família biológica — o germe da exploração nunca
será aniquilado. Precisamos de um a revolução sexual mais
ampla do que revolução socialista — que a inclua —
para verdadeiramente erradicar todos os sistemas de
classes.
Tentamos conduzir a análise de classe um passo à
frente, na direção de suas raízes na divisão biológica
dos sexos. Não dispensamos os insights dos socialistas; ao
contrário, o feminismo radical amplia suas análises, dando
a elas um a base ainda mais profunda em condições obje­
tivas, explicando com isso muitas das suas questões inso­
lúveis. Como fundamento de nossa própria análise, deve­
mos expandir a definição do materialismo histórico de
Engels. A seguir a definição já citada anteriormente, rees-
crita de modo a incluir a divisão biológica dos sexos, em
função da reprodução, que se encontra n a ordem das
classes:

“O materialismo histórico é aquela visão do curso da


História que busca a causa última e a grande energia móvel
de todos os fatos históricos na dialética do sexo: a divisão
da sociedade em duas classes biológicas distintas, em função
da procriação, e as lutas dessas classes entre si; nas mudan­
ças dos modos de casamento, reprodução e educação das
crianças; no desenvolvimento análogo de outras classes [castas]
fisicamente diferenciadas; e na primeira divisão do trabalho
baseada no sexo, que se desenvolveu no sistema econômico
de classes.”

A seguir, a superestrutura cultural, bem como a


econômica, que não se reportam apenas às classes (eco­
nôm icas), mas sim a toda a problem ática do sexo:

“Toda a história do passado [observe-se que agora pode­


mos eliminar “com exceção dos estágios primitivos”] foi a his­
tória dc lutas de classes. Essas classes conflitantes da socie­

22
dade são sempre o produto de modos de organização da uni­
dade da família biológica, em função da reprodução da es­
pécie, bem como dos modos de produção e troca de bens e
serviços estritamente econômicos. A organização sexual re-
produtora da sociedade sempre fornece a base real, exclusi­
vamente a partir da qual podemos formular a explicação úl­
tima de toda a superestrutura das instituições econômicas,
jurídicas e demais idéias de um período histórico dado.”

E agora a visão de Engels dos resultados da aplicação


de um enfoque m aterialista à História fica mais realista:

“A esfera total das condições de vida que rodeiam o


homem e que até agora o regeram passa para o domínio
e o controle do homem, que pela primeira vez se torna o ver­
dadeiro e consciente Senhor da Natureza, dono de sua pró­
pria organização social.”

Nos capítulos seguintes analisaremos esta definição do


materialismo histórico, examinando as instituições culturais
que mantêm e reforçam a família biológica (especialmente
sua manifestação atual, a família nuclear) e seu resultado,
a psicologia do poder, um chauvinismo agressivo, hoje
desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto
com uma análise feminista do freudismo: porque o pre­
conceito cultural de Freud, tanto quanto o de M arx e
Engels, não invalida inteiramente sua percepção. N a ver­
dade, Freud teve insights de valor até m aior do que os
dos teóricos socialistas, pela construção de um novo m a­
terialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, então,
correlacionar o melhor de Engels a M arx (o enfoque m a­
terialista histórico) com o melhor de Freud (a compreen­
são do interior do homem e da mulher e do que os forma)
para chegar a um a solução ao mesmo tempo política e
pessoal, baseada contudo em condições reais. Veremos que
Freud observou corretam ente a dinâmica da psicologia, no
seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura
fundamental desse contexto social ser básica para toda a
hum anidade — em diferentes graus — ela aparentava ser
nada menos do que uma condição existencial absoluta,
que seria insensato questionar. Ela forçou Freud e muitos

23
de seus seguidores a postular construios a priori, como o
Desejo de M orte, para explicar as origens desses impulsos 1
psicológicos universais. Isto, por sua vez, tornou as doen­
ças da hum anidade irredutíveis e incuráveis — motivo
pelo qual a solução por ele proposta (a terapia psicanalí-
tica), um a contradição em termos, foi tão pobre, com­
parada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tão
retum bante na prática — levando os que tinham alguma
sensibilidade social e política a rejeitar não só sua solução
terapêutica, como também suas descobertas mais pro­
fundas.

24
II. FEMINISMO AMERICANO

N a visão radical feminista, o novo feminismo não


representa somente o reviver de um movimento político
sério pela igualdade social. Ele é o segundo fluxo da re­
volução mais importante havida na História. Seu objetivo:
a derrocada do mais antiquado e mais rígido dos siste­
mas de classe/casta já existentes, o sistema de classes b a­
seado no sexo — um sistema consolidado ao longo de
milhares de anos, que emprestou aos papéis arquetípicos
de macho e fêmea uma legitimidade imerecida e um a per­
manência aparente. Nessa perspectiva, o pioneiro movi­
mento feminista ocidental representou apenas a primeira
investida violenta, os ridículos cinqüenta anos que o suce­
deram representando apenas a prim eira contra-ofensiva
— o início de um a longa luta pela libertação das opres­
sivas estruturas de poder estabelecidas pela natureza e
reforçadas pelo homem. Sob essa luz, lancemos um olhar
para o feminismo americano.

1. O Movimento pelos Direitos Femininos


na América
A pesar de sempre ter havido mulheres rebeldes na
História,1 nunca antes tinham existido as condições que

1. Por exemplo: as feiticeiras devem ser vistas meramente como


mulheres envolvidas numa revolta política independente. Durante

25
possibilitariam às mulheres destruir seus papéis opressivos
eficazmente. A capacidade de reprodução da m ulher era
um a necessidade urgente para a sociedade — e, mesmo
que não o fosse, não se dispunha de meios eficazes de
controle da natalidade. Assim, até a Revolução Indus­
trial a revolta feminista estava fadada a permanecer no
plano pessoal.
A vindoura revolução feminista da era tecnológica foi
prenunciada pelas idéias e os escritos de mulheres iso­
ladas, membros das elites intelectuais de sua época: na
Inglaterra, Mary Wollstonecraft e M ary Shelley; na Amé­
rica, M argaret Fuller; na França, as Bluestockings.* Mas
estas mulheres estavam além de seu tempo. Elas tiveram
muita dificuldade em ver suas idéias aceitas até por seus
próprios círculos avançados, que dirá pelas massas de ho­
mens e mulheres de sua época, que mal tinham absor­
vido o primeiro choque causado pela Revolução Indus­
trial.
Em meados do século dezenove, contudo, com a in­
dustrialização em plena atividade, um movimento femi­
nista maduro estava em andamento. Sempre forte nos
E U A — onde tinha se fundado pouco antes da Revo­
lução Industrial, e conseqüentemente sua história ou tra­
dição eram comparativamente pequena — o feminismo
foi atiçado pela luta abolicionista e pelos ideais latentes
da própria Revolução Americana. (A declaração proferida
na prim eira convenção nacional pelos direitos das mulhe­
res, realizada em Seneca Falls no ano de 1848, foi mol­
dada na Declaração da Independência.)
O primitivo M ovimento pelos Direitos das Mulheres
Americanas2 foi radical. No século dezenove, o fato de as
mulheres atacarem a Família, a Igreja (ver W omarís Bible,
de Elizabeth Cady S tanton), e o Estado (lei) represen-

dois séculos inúmeras mulheres foram queimadas em fogueiras


pela Igreja — pois a religião era a política daquele período.
* Expressão coloquial para se referir às mulheres intelectuais. (N.T.)
2. American Woman’s Rights Movement, daqui em diante abre­
viado por W. R. M.

26
tava para elas atacar os próprios fundamentos da socie­
dade vitoriana na qual elas viviam — o equivalente a ata­
car as próprias distinções sexuais em nossa época. Os
fundamentos teóricos do primitivo W.R.M. se originaram
nas idéias mais radicais da época, sobretudo as dos aboli­
cionistas como William Lloyd Garrison, e de utopistas
e livres-pensadores como Fanny Wright. Poucas pessoas
sabem hoje que o feminismo primitivo foi um movimento
verdadeiramente popular: não ouviram falar das torturan­
tes jornadas empreendidas pelas pioneiras feministas por
dentro dos sertões e fronteiras, ou de porta em porta nas
cidades para falar sobre os problemas ou para juntar assi­
naturas em petições que eram recusadas como ridículas
pelas Assembléias. Tam pouco sabem que Elizabeth Cady
Stanton e Susan B. Anthony, as militantes mais ativas
do movimento, estavam entre as primeiras a dar ênfase à
im portância de organizar as mulheres operárias, tendo
fundado a Associação de Mulheres Trabalhadoras em se­
tembro de 1868. (Delegadas na Convenção Nacional da
União das Classes Trabalhadoras já em 1868, posterior­
mente elas brigaram por causa da ludibriação das mulheres
trabalhadoras pelo — nada mudou — movimento m as­
culino chauvinista das classes operárias.) Outras mulheres
pioneiras organizadoras das classes trabalhadoras tais como
Augusta Lewis e Kate Mullaney, estavam engajadas no
movimento feminista.
Esse movimento radical foi erigido por mulheres que
não tinham literalmente nenhum status civil diante da lei;
que eram declaradas civilmente inúteis depois do casamen­
to, ou que permaneciam legalmente menores se não se
casassem; que não podiam assinar testamento nem mes­
mo ter a custódia de seus próprios filhos depois do di­
vórcio; que não podiam aprender sequer a ler e muito
menos eram admitidas na universidade (as mais privile­
giadas eram providas de um conhecimento de bordado,
pintura chinesa, francês, e da arte do cravo); que não
tinham voz política qualquer. Até mesmo depois da Guer­
ra Civil mais da metade desta população do país era
ainda legalmente escravizada, literalmente não possuindo
sequer as anquinhas que colocavam nos seus “fundos” .

27
As primeiras movimentações dessa classe oprimida,
as primeiras exigências incondicionais de justiça encontra­
ram um a violência desproporcionada, um a resistência di­
fícil de entender hoje, em que foram enfraquecidas as
fronteiras entre as classes sexuais. Porque, como acontece
em geral, o potencial revolucionário do primeiro despertar
de consciência foi mais claramente reconhecido pelos que
estavam no poder, do que pelos próprios membros da
cruzada. Desde o seu início, o movimento feminista trouxe
um a séria ameça à ordem estabelecida, testemunhando
com a sua própria existência e a sua longa duração as de­
sigualdades fundamentais de um sistema que tinha pre­
tensões à democracia. Atuando inicialmente juntos, e pos­
teriormente separados, o movimento abolicionista e o
W.R.M. ameaçavam arrasar o país. Se, na G uerra Civil,
as feministas não tivessem sido persuadidas a abandonar
sua causa para trabalhar em assuntos “mais im portantes”,
a história inicial da revolução feminista poderia ter sido
menos melancólica.
Nessas circunstâncias, ainda que as forças de Stanton-
Anthony lutassem durante mais vinte anos dentro da tra­
dição feminista radical, a espinha dorsal do movimento
tinha sido quebrada. M ilhares de mulheres, no ímpeto
da Guerra Civil, puderam sair de casa para fazer obras
de caridade. O único assunto que poderia unir esses bem
diferentes campos de mulheres organizadas era a necessi­
dade de voto — mas, como era de prever, elas não
concordaram sobre o porquê ele era desejável. As con­
servadoras form aram a Associação pelo Sufrágio das M u­
lheres Americanas, ou se juntaram aos clubes femininos
em expansão, tais como a pia União M oderada das M u­
lheres Cristãs. As radicais se separaram através da Asso­
ciação Nacional pelo Sufrágio Feminino, interessada no
voto somente como um símbolo do poder político do qual
elas necessitavam para alcançar objetivos mais amplos.
Por volta de 1890, tinham sido alcançadas reformas
legais adicionais, as mulheres tinham entrado na força de
trabalho nas condições que elas ocupam ainda hoje e co­
meçado a receber instrução em maior número. Em lugar
de um verdadeiro poder político, foi-lhes dado um lugar

28
derivativo e segregado dentro da esfera pública, como clu­
bistas. Mas, embora de fato isto representasse um maior
poder político do que antes, era apenas um a versão nova
do lugar habitual do “poder” feminino: atrás do trono
— urna tradicional influência no poder que assumiu uma
forma m oderna nas táticas de influenciamento e de emba-
raçamento. Quando, em 1890, com suas líderes enve­
lhecidas e desanimadas, o movimento radical feminista
Nacional juntou-se ao movimento conservador Am eri­
cano para form ar a Associação Nacional pelo Sufrágio
das Mulheres Americanas (N A W SA ), tudo parecia per­
dido. Tinha vencido o feminismo conservador, com sua
concentração em temas básicos, gerais e unificantes como
o sufrágio, com sua tentativa de trabalhar dentro da es­
trutura de poder masculina branca e de aplacá-la —
tentando convencer os homens que estavam mais bem
informados, contudo com a sua própria retórica ornam en­
tada. Traído, o feminismo definhou.
Ainda pior do que as feministas conservadoras era
o número crescente de mulheres que, com seu recém-des-
coberto bocadinho de liberdade, atiravam-se entusiastica­
mente em todos os radicalismos do dia, nos vários m o­
vimentos de reforma social da E ra Progressista, até mes­
mo quando estes eram estranhos aos interesses feminis­
tas. (Considere-se o velho debate sobre as leis discrimina­
tórias de “proteção” ao trabalho para as mulheres.) M ar-
garet Rhondda, líder feminista britânica do período pós-I
G uerra M undial, observou:
“Podemos dividir as mulheres do movimento feminino em
dois grupos: as feministas e as reformistas, que não são de
modo algum feministas; que não dão um centavo pela igual­
dade em si m esm a. . . Hoje quase toda organização feminina
reconhece que as reformistas são muito mais comuns do que
as feministas, que a decisão apaixonada de cuidar de seus pró­
ximos, de ser útil a eles a seu modo, é muito mais comum
do que o desejo de colocar nas mãos de cada um o poder de
cuidar de si próprio.”

Essas “reformistas”, as mulheres “radicais” de sua


época, foram, na melhor das hipóteses, influenciadas pelo

29
feminismo. Elas não eram nem feministas verdadeiras nem
radicais verdadeiras, porque ainda não viam a causa das
mulheres como um problem a em si mesmo legitimamente
radical. Vendo o W.R.M. como apenas tangente a uma
outra política mais importante, elas, num certo sentido,
viam a si mesmas como homens incompletos: os proble­
mas femininos pareciam-lhes “especiais”, “sectários”, en­
quanto que os problemas relativos aos homens eram “hu­
m anos”, “universais”. Crescendo politicamente dentro de
movimentos dominados pelos homens, elas passaram a
se preocupar em reform ar sua posição dentro desses movi­
mentos, em vez de sair deles e criar seu próprio m o­
vimento. A W om an’s Trade Union League é um bom
exemplo disto: as mulheres politiqueiras desse grupo falha­
ram nas incumbências mais básicas, porque foram inca­
pazes de rom per seus vínculos com o AFL, movimento
intensamente chauvinista masculino, dirigido por Samuel
Gompers, que as traiu continuamente. Ou, num outro
exemplo, como muitas voluntárias da VISTA, concentra­
das em fazer “turismo” entre os pobres “ingratos” , se ati­
raram na imatura instalação do movimento, muitas delas
dando suas vidas em troco de nada — apenas para se
tornarem as mais severas, exacerbadas, porém dedicadas
assistentes-sociais da estereotipia. Ou o W oman’s Peace,
criado, em vão, por Jane Addams nas vésperas da inter­
venção americana na Primeira G uerra M undial, que, ironi­
camente, mais tarde se dividiu em grupos jingoístas que
trabalhavam para a guerra, ou em pacifistas radicais tão
ineficazes quanto extremistas.
Esta frenética atividade organizacional feminista da
E ra Progressista é geralmente confundida com o W.R.M.
propriamente dito. M as a imagem da mulher frustrada e
m andona origina-se menos das feministas radicais do que
das politiqueiras não-feministas, membros de comitês pelas
várias causas importantes do dia. Além dos movimentos
recém-extintos que mencionamos — a W om an’s Trade
Union League, a National Federation of Settlements, e a
W om an’s International League for Peace and Freedom
(anteriorm ente o W oman’s Peace Party, iniciado por
Jane Addams) -— a estrutura inteira da Organized Lady-

30
hood foi fundada no período entre 1890 e 1920: a Gene­
ral Federation of Women’s Clubs, a League of Women
Voters, a American Association of Collegiate Alumnae, a
National Consumer’s League, o PTA, e até o DAR. Em ­
bora estas organizações estivessem associadas aos movi­
mentos mais radicais da época, o fato de que sua política
era na realidade reacionária e no fim das contas irreal e
tola foi em primeiro lugar indicado só por suas visões
não-feministas.
Conseqüentemente, a maioria das mulheres que se
organizaram no período entre 1890-1920 — período ge­
ralmente citado como ponto alto da atividade feminista
— não tinha nada a ver com o feminismo. Por um lado,
o feminismo tinha-se restringido ao problem a do voto —
o W.R.M. foi (tem porariam ente) transform ado num mo­
vimento pelo sufrágio — e por outro lado as energias das
mulheres dispersavam-se em qualquer outra causa radical,
menos a sua própria causa.
M as o feminismo radical estava apenas adormecido.
O despertar começou com a volta, proveniente da Ingla­
terra, de H arrie Stanton Blatch, a filha de Elizabeth Cady
Stanton, país onde ela se tinha associado à W oman’s So­
cial and Political Union — as Sufragetes inglesas, dentre
as quais as Pankhurts talvez sejam as mais conhecidas —
contrária às Constitucionalistas (feministas conservadoras).
Acreditando ser necessária um a tática combativa para al­
cançar os objetivos radicais advogados por sua mãe, ela
recomendou que se atacasse o problem a do voto com a
estratégia, que tinha sido posta de lado, da facção Stan­
ton-Anthony: pressão para obter a emenda da Cons­
tituição federal. Logo as militantes americanas separaram-
se da conservadora NAWSA para form ar a Congressional
Union (posteriorm ente o W om an’s P arty ), iniciando a
ousada tática de guerrilha e a intransigente linha dura,
pelas quais em geral se louva, impropriamente, todo o m o­
vimento sufragista.
Deu resultado. As militantes tiveram que passar por
embaraços, ataques de grupo, espancamento, e até por
greves de fome mas no espaço de uma década o voto foi

31
conseguido. A centelha de feminismo radical era exata­
mente aquilo de que o movimento sufragista, que se exte­
nuava, precisava para impulsionar sua questão única. Ela
proporcionou um a investida nova e sadia (a pressão para
alcançar uma emenda nacional, em vez do cansativo mé­
todo de organização estado-por-estado usado durante trin­
ta anos), um a m ilitância que dramatizou a urgência do
problem a feminino, e, acima de tudo, uma perspectiva
mais ampla, na qual o voto era visto como apenas o pri­
m eiro entre muitos objetivos e, portanto, a ser conquistado
o mais rapidam ente possível. As suaves exigências das
feministas conservadoras, que tinham quase declarado que
se o voto fosse obtido elas não o usariam, foram bem-vin­
das como representando longe o m enor de dois males, em
comparação às exigências do W oman’s Party.
Com a obtenção do voto, o establishment cooptou o
movimento das mulheres. Como sintetizou um cavalheiro
daquela época citado por William 0 ’Neil em Everyone
Was Brave: “N o entanto o sufrágio feminino é um a coisa
boa, mas só se for para acabar logo com ela.” A Sra. Oli­
ver H azard Perry Belmont, do W om an’s Party, incitou as
mulheres a boicotarem as eleições: “Poupem seu novo
poder. As sufragistas não lutaram durante dezessete anos
pela emancipação de vocês para permitir que vocês se
turnem escravas dos partidos dos homens.” Charlotte
Perkins Gilman apoiou isso: “O poder que as mulheres
serão capazes de exercer depende de elas não se associarem
ao sistema de partidarismo masculino. O sistema político
partidarista é um artifício dos homens para encobrir os
verdadeiros problemas. As mulheres deveriam lutar pelas
medidas que elas querem alcançar, fora da política de
partidos. É pelo fato de os velhos partidos políticos se
darem conta de que a influência das mulheres dentro dos
partidos políticos será tão insignificante, que eles estão tão
ansiosos por conseguir que as mulheres se associem a eles.”
Mas nada disso teve alguma utilidade. Até a forma­
ção de um novo W oman’s Party em 18 de fevereiro de
1921, como um a alternativa para os principais partidos

32
que estavam rapidam ente absorvendo a nova força po­
lítica das mulheres, não pôde ressuscitar o movimento
agonizante.8
A obtenção do voto pelo movimento sufragista m a­
tou o W .R.M . Em bora as forças antifeministas pareces­
sem ceder, elas só o fizeram de boca. Elas nunca perde­
ram. Na época em que o voto foi obtido, a prolongada
canalização das energias feministas em função do objeti­
vo limitado do sufrágio — visto inicialmente apenas como
um passo para o poder político — tinha esgotado com­
pletamente o W.R.M. O M onstro Votação tinha engolido
tudo o mais. Três gerações tinham transcorrido desde a
época do princípio do W .R.M .; as ideadoras do movi­
mento estavam todas mortas. As mulheres que mais tarde
se uniram ao movimento feminista para lutar pelo sim­
ples problem a do voto nunca tinham tido tempo para de­
senvolver um a consciência mais ampla; naquela altura elas
tinham até esquecido para que servia o voto. A oposi­
ção tinha imposto a sua vontade.

* * *

De toda essa luta, o que ainda é relembrado? A


luta pelo sufrágio — não muito valiosa para as mulhe­
res, como os fatos confirmaram mais tarde — ela só, foi
um a incessante guerra contra as forças mais reacionárias
da América na época, que, como Eleanor Flexner mos­
tra em Séculos de Luta, abrangiam os maiores interesses
capitalistas do Norte, i.e., o petróleo, a m anufatura, as fer­
rovias, e os lucros com bebidas alcoólicas; o bloco racista
dos Estados do Sul (que, além de sua própria intolerância
para com as mulheres, temia conceder o direito de voto a

3. O Woman’s Party lutou através de uma depressão e várias


guerras, fazendo campanhas para o próximo auxílio legal im­
portante, uma emenda por direitos iguais na Constituição. Cin­
qüenta anos depois as que ainda estão vivas continuam ainda
fazendo campanhas. O estereótipo da esposa excêntrica com seu
guarda-chuva, empenhada em perseguir uma causa que já tinha
sido ganha, é o produto direto da ossificação do feminismo cria­
da pelo Ridículo de Cinqüenta Anos.

33
elas porque emanciparia mais uma metade da raça negra,
bem como acentuaria a hipocrisia do sufrágio masculino
universal), e, finalmente, a própria máquina do governo. O
trabalho implicado para obter esse voto deixou as pes­
soas cambaleando. Carrie Chapm an C att calcula que:
i - '* .
“tirar a palavra “masculino” da Constituição custou às
mulheres deste país 52 anos de campanha ininterrupta. . .
Durante esse tempo, elas foram obrigadas a comandar 56
campanhas de plebiscito junto aos homens votantes, 480 cam­
panhas junto aos votantes para conseguir legislaturas com
emendas sufragistas, 47 campanhas para conseguir que as con­
venções constitucionais estaduais inscrevessem o sufrágio das
mulheres nas constituições estaduais, 277 campanhas para con­
seguir que as convenções dos partidos estaduais incluíssem as
plataformas pelo sufrágio feminino, 30 campanhas para con­
seguir que as convenções do partido presidencial adotassem
as plataformas pelo sufrágio feminino nas plataformas do par­
tido e 19 campanha sucessivas em 19 Congressos sucessivos.”

Assim, a derrota era tão freqüente, e a vitória tão


rara — e além disso alcançada por margens tão reduzidas
— que até ler sobre a luta pelo sufrágio é exaustivo, que
dirá ter passado e lutado por ela. O lapso dos historia­
dores nessa área é incompreensível, quando menos per-
doável.
Mas, como vimos, o sufrágio foi apenas um pequeno
aspecto do que o W.R.M. representava. Centenas de anos
de personalidades brilhantes e de fatos importantes foram
também apagados da história americana. As mulheres ora­
doras que se defendiam dos grupos que as atacavam na
época em que não lhes era permitido falar em público,
para contestar a Família, a Igreja e o Estado, que viaja­
ram por estradas de ferro bem pobres entre as cidades
do Oeste falando para pequenos grupos de mulheres so­
cialmente em estado de inanição, foram bem mais dram á­
ticas do que as Scarlett O’H aras e as H arriet Beecher
Stowes e todas as Damas que chegaram até o nosso co­
nhecimento. Sojourner Truth e H arriet Tubm an, escravas

34
libertas que voltavam continuamente, com quantias enor­
mes nos seus ombros para libertar outras escravas em
suas próprias fazendas, foram politicamente mais eficien­
tes do que o m alfadado John Brown. M as a maioria das
pessoas hoje nunca ouviu falar sequer de M yrtilla M iner,
Prudence Crandall, Abigail Scott Duniway, M ary Putnam
Jacobi, Ernestine Rose, das irmãs Claflin, de Crystal E ast­
man, C lara Lemlich, de Mrs. O.H.P. Belmont, de Doris
Stevens, de A nne M artin. E essa ignorância não é nada
com parada ao desconhecimento da vida de mulheres da en­
vergadura de M argaret Fuller, Fanny Wright, das irmãs
Grimké, de Susan B. Anthony, Elizabeth Cady Stanton,
H arriet Stanton Blatch, C harlotte Perkins Gilman, de Alice
Paul.
E no entanto conhecemos Louisa M ay Alcott, C lara
Barton, e Florence Nightingale, assim como conhecemos,
em vez de N at Turner, o triunfo de R alph Bunche, ou
George Washington Carver e o amendoim. A omissão de
personalidades vitais nas versões-modelo da história ame­
ricana em favor desses modelos beatos não pode ser
ignorada. Assim como seria perigoso influenciar as crian­
ças negras ainda oprimidas a admirarem os N at Turners
de sua história, assim se passa com o W .R.M .: as lacunas
suspeitas em nossos livros de história relativos ao femi­
nismo — ou então a confusão de todo o W.R.M. com o
(conservador) movimento sufragista ou com os grupos
de mulheres reformistas da E ra Progressista — não são
meros acasos.
Isto faz parte de um reflexo que nós ainda estamos
sofrendo da reação à prim eira batalha feminista. Os pou­
cos modelos sólidos fornecidos às moças que cresceram
durante este silêncio de cinqüenta anos foram modelos
cuidadosamente escolhidos, mulheres como Eleanor Ro-
osevelt, da tradição altruística feminina, opostas às gigan­
tes saudavelmente egoístas da rebelião radical feminista.
Esse reflexo cultural era de se esperar. Os homens da­
quela época com preenderam imediatam ente a verdadeira
natureza do movimento feminista, reconhecendo nele um a
séria am eaça ao seu poder público e desavergonhado so­
bre a mulher. Eles podem ter sido forçados a subornar

35
o movimento das mulheres com reform as de superfície
que as confundissem — um a correção das desigualdades
mais gritantes nos livros, umas poucas m udanças n a rou­
pa, no sexo, no estilo ( “você percorreu um longo cam i­
nho, m oça” ), todas as quais por coincidência beneficia­
ram aos homens. M as o poder perm aneceu em suas mãos.

2. Um Ridículo de Cinqüenta Anos

D e que modo o M ito da Em ancipação agiu cultu­


ralm ente durante um período de cinqüenta anos, para
anestesiar a consciência política das mulheres?
N a década de vinte o erotism o entrou em moda.
Começou a gradual identificação do rom ance com a ins­
tituição do casam ento ( “Love and M arriage, Love and
M arriage, go together like a horse and carriag e .. .” )* ,
que serviu p ara repopularizar e reforçar a instituição de­
cadente, enfraquecida pelo último ataque feminista. M as
a convalescença não durou m uito: as mulheres logo fo­
ram reprivatizadas, sua nova solidariedade de classe di­
luída. As feministas conservadoras, que pelo menos ti­
nham enxergado o caráter social de seus problem as, ti­
nham -se organizado em cooperativas, enquanto que as fe­
ministas radicais eram ridicularizadas aberta e efetiva­
mente; finalm ente até as mulheres que eram membros de
comitês de outros movimentos com eçaram a parecer ridí­
culas. A cam panha cultural tinha começado: a emanci­
pação era um problem a de responsabilidade privada; a
salvação era pessoal, e não política. As mulheres se lan­
çaram num a longa procura pela “satisfação”.
Aqui, na década de vinte, se situa o início deste
obsessivo culto moderno do “estilo”, a procura do fascí­
nio (V ocê também pode ser Theda B ara ), um a doença
cultural que ainda hoje desgasta as mulheres — inflam a­
das pelas revistas femininas do gênero de Vogue, Gla-

* Tradução literal, sem observar a rima: “Amor e Casamento, Amor o


Casamento, se combinam com o cavalo e a carruagem”. (N.T.)

36
mour, M ademoiselle, Cosmopolitan. A busca de um estilo
* “diferente”, pessoal, através do qual se “expressar” subs­
tituiu a antiga ênfase feminina no desenvolvimento da
personalidade através da responsabilidade e da experiên­
cia de vida.
> N a década de trinta, após a Depressão, as m ulheres
se tornaram sóbrias. O melindrosismo não fora obviam en­
te a solução: elas se sentiram ainda mais griladas e neu­
róticas do que antes. M as, como o m ito da em ancipação
avançava a todo vapor, as m ulheres não ousaram recla­
mar. Se elas tinham obtido o que queriam e ainda esta­
vam insatisfeitas, então alguma coisa deveria estar erra­
da nelas. Suspeitavam secretam ente que, afinal, podia ser
que elas realm ente fossem inferiores. Ou podia ser que
esta fosse a ordem social legítima: filiaram-se ao Partido
Com unista, onde mais um a vez deram um a ênfase extre­
m a aos oprimidos, sendo incapazes de reconhecer que a
grande identificação que elas sentiam pela classe operária
( explorada originava-se diretam ente de sua própria expe­
riência de opressão.
N a década de quarenta, havia um a outra guerra
m undial em que pensar. Os grilos pessoais foram tempo-
, rariam ente ofuscados pelo espírito do Esforço n a Guerra:
o patriotism o e o farisaísmo, intensificados por um a pro­
paganda m ilitar ubíqua, foram glorificados em si mesmos.
Além disso, os “caras” tinham ido embora. M elhor ainda,
seus tronos de poder estavam vazios. As mulheres, pela
prim eira vez em várias décadas, tiveram empregos sóli­
dos. Verdadeiram ente necessitadas pela sociedade em suas
potencialidades mais amplas, lhes foi tem porariam ente
concedido um status hum ano, contrário ao status “femi­
nino”. (D e fato, as feministas se viram forçadas a aco­
lher a guerra como a sua única chance.)
O primeiro grande período de paz e riqueza ocorreu
nos últimos anos das décadas de quarenta e cinqüenta.
Mas, em vez do profetizado ressurgimento do feminismo,
depois de tantos becos-sem-saída, havia apenas “A Mís­
tica Fem inina”, que Betty Friedan documentou tão bem.
Esse sofisticado aparato cultural foi veiculado com um
propósito específico: as mulheres tinham sido emprega-

37
das durante a guerra, e agora tinham que estar prepara­
das para abrir mão de seus empregos. Os novos empre-
gos só tinham existido porque elas tinham sido deseo-
bertas como um a força de trabalho excedente que se
mostrou conveniente e útil, justam ente num a época de
crise — e no entanto, não era possível no momento des-
pedi-las abertamente. Isto desmentiria todo o mito da
emancipação, cuidadosamente cultivado. Um a idéia me­
lhor foi fazê-las se demitirem por sua própria vontade.
A Mística Fem inina satisfez admiravelmente ao objetivo.
As mulheres, ainda excitadas, ainda buscando (afinal,
um emprego num a fábrica não é a idéia masculina do
paraíso, mesmo que seja preferível ao inferno enjaulado
das m ulheres), seguiram ainda um outro caminho falso.
Esse foi talvez pior do que qualquer um dos outros.
E le não oferecia nem a sensualidade (frívola) da década
de vinte, a promessa de um (falso) ideal da década de
trinta, nem o espírito coletivo (propaganda) da década
de quarenta. O que ele ofereceu às mulheres foi respei­
tabilidade e mobilidade ascendente — junto com o De­
sencantado Rom ance, com uma abundância de fraldas e
de reuniões do P T A (a M ãe Nutriente de M argaret
M ead ), discussões familiares, dietas contínuas e inefica-
zes, dramalhões e comerciais na TV para m atar o tédio,
e psicoterapia, caso o sofrimento ainda persistisse. Good
Housekeeping e Parent’s Magazine* dirigiam-se a todas
as mulheres da classe média, assim como True Confes-
sions se dirigia à classe operária. Os anos cinqüenta cons­
tituíram a mais desoladora de todas as décadas, talvez a
mais desoladora para as mulheres no período de alguns
séculos. Segundo a versão 1950 do Mito, a emancipação
das mulheres já tinha sido tentada e se revelado deficien­
te (pelas próprias mulheres, sem dúvida). A primeira
tentativa de se libertar de uma sufocante M aternidade
Criativa parecia ter fracassado completamente. T oda a
consciência autêntica do antigo movimento feminista ti-

* Do gênero Casa e Jardim e Pais e Filhos brasileiros. (N.T.)

38
nha sido esquecida nessa época, e com isso a consciência
de que o sofrimento atual das mulheres era fruto de um
reflexo ainda virulento.
P ara a juventude da década de cinqüenta criou-se
um aparato cultural ainda mais sofisticado: o “teenageris-
mo” , o último disfarce daquele rom antism o perseverante,
que se empenhava tanto em escorar, através de um decre­
to cultural, um a estrutura familiar que desmoronava (ver
Cap. 7, “A Cultura do R om ance” ). Jovens de todas as
idades sonhavam em fugir das casas enfadonhas de suas
mães, através do Rom ance da Adolescência ( “teenage
rom ance” ). O carro estacionado, um a tradição estabele­
cida desde a era das melindrosas, tornou-se um a necessi­
dade premente, talvez o arrimo que melhor caracterizou
as paixões da década de cinqüenta (ver o environment
de Edward Kienholz, intitulado “Parked C ar” * ). Os ri­
tuais dos encontros amorosos adolescentes comparavam-
se na sua formalidade à mais fina tradição cavalheiresca
do Sul, a “bela” do século vinte sendo representada pela
baliza, Doce M enina-M oça anim adora dos Jogos da P ri­
mavera. A meta mais alta que uma moça poderia alcan­
çar era a “popularidade” , a antiga “graça” sob um a for­
ma moderna.
Mas os rapazes não conseguiram suportar isso. Os
saturantes romantismo e sentimentalismo designados para
m anter as mulheres no seu lugar provocaram efeitos late­
rais sobre os homens envolvidos com isso. Se devia haver
um ritual de caça-à-mulher, alguns homens também te­
riam que ser sacrificados a ele. Barbie precisava de um
Ken.* M as nam orar era um a droga ( “Pai, você pode me
em prestar o carro esta noite?” ). Certam ente deveria haver
um meio mais fácil de fazer amor. Frankie Avalon e Paul
A nka cantavam para as adolescentes; os rapazes ficavam
de fora.

* A mesma prática, na gíria carioca, é conhecida pelo nome de “corri­


da de submarino”. (N.T.)
* Ver as duas N.T. na pág. 69.

39
N a década de sessenta os rapezes se separaram . F o­
ram para a universidade e para o Sul. Viajaram em ban- (
dos pela Europa. Alguns se filiaram ao Peace Corps;
outros ficaram marginais. Mas, onde quer que fossem le­
vavam suas seguidoras. Os homens liberados precisavam
de brotinhos avançados que pudessem acom panhar seu ¡
novo estilo de vida: as mulheres tentaram . Eles precisa­
vam de sexo: as mulheres obedeceram. M as isso era tudo
o que eles queriam das mulheres. Se o brotinho cismasse
em exigir em troca algum compromisso fora de moda,
ela era tida como “chata” , “fodida” ou, pior ainda, como
um “verdadeiro baixo-astral” . U m a gatinha deveria apren­
der a ser independente o suficiente para não se tornar um
entrave para seu homem (em outras palavras, “ agarran­
do-se” ). As mulheres não poderiam se m atricular tão rá­
pido: cerâmica, tecelagem, artesanato, aulas de pintura,
cursos de literatura e psicologia, terapia de grupo, qual­
quer coisa que pudesse fazer que elas deixassem de ser
um peso para seus homens. Elas sentavam-se com lágri- i
mas nos olhos defronte de seus vários cavaletes.
O que não significa insinuar que as “gatinhas” elas
próprias não quisessem originariamente fugir da terra-de-
ninguém. Não havia nenhum lugar para onde elas pudes­
sem ir. Onde quer que fossem, seja em Greenwich Villa-
ge c. 1960, Berkeley ou Mississípi c. 1964, Haight-
Ashbury ou E ast Village c. 1966, eram ainda conside­
radas apenas “brotinhos” , imperceptíveis como pessoas.
Não havia um a sociedade marginal para onde elas pu­
dessem fugir: o sistema de classes sexuais existia em toda
parte. Imunizadas culturalmente pela reação antifeminista
— caso, no longo período de esquecimento, elas tivessem
ouvido falar do feminismo de alguma maneira, fora so­
mente através de sua depreciação — elas ainda tinham
medo de se organizar em torno do seu próprio problema.
Assim, caíram na mesma armadilha que tinha engolido
as mulheres das décadas de vinte e trinta: a busca pela
“solução pessoal”.
A “solução privada” da década de sessenta, ironica­
mente, foi em geral tanto o “bico” da política (a política

40
radical, conseqüentemente mais marginal e idealista do
que as arenas oficiais, segregadas, do poder) quanto da
arte ou da academia. A política radical deu a cada m u­
lher a chance de fazer suas coisas. Repetindo as da dé­
cada de trinta, muitas mulheres viram a política não como
um meio para construir uma vida melhor, mas como um
fim em si mesmo. M uitas se associaram ao movimento
pela paz, como sempre um agradável passatempo femi­
nino: inofensivo porque politicamente impotente, ele con­
tudo proporcionou uma saída vicária para a agressão
feminina.4 Outras se envolveram com o movimento pelos

4. Em janeiro de 1968, 5.000 mulheres inscritas na coligação


chamada Jeanette Rankin Brigade — incluindo todos os nomes
de mulheres importantes no movimento pela paz e até (cf. Co-
retta King) no movimento pelos direitos civis, bem com o todo
grupo importante de mulheres, particularmente os grupos pela
paz, como o Women’s Strike for Peace — promoveram uma
marcha das mulheres pela paz em Washington. A menos que
acontecesse de você ser um dos demonstradores, provavelmente
você nunca ouviria falar disso. Foi uma obra-prima da irrele­
vância política. Até os jornais locais mal acharam que ele va­
lesse uma cobertura: que valor noticiário poderia haver numa
concentração em massa de galinhas, tão ingênua ao ponto de
acreditar que a política fosse meramente uma questão de boa
vontade?
E no entanto é difícil imaginar que uma demonstração
similar composta de 5.000 esquimós, ou índios, ou de até 5.000
poodles circundando a Casa Branca seria tão facilmente igno­
rada. A reclamação das mulheres por serem um grupo oprimido
raramente é sequer levada tanto a sério quanto qualquer grupo
minoritário; na verdade as mulheres não constam sequer do
mapa político: som os politicamente invisíveis. Em 1970, uma
marcha de mulheres se torna um protesto significativo só se
estiverem presentes escoltas, simpatizantes ou mártires mascu­
linos, ainda que sejam os mais desprezíveis, mais explorados,
ou os marginais lunatic fringe*, pois, sejam legítimos ou ilegí­
timos, todos os homens são membros da sociedade; as mulhe­
res não.
Se esta demonstração não deu em mais nada, ela exprimiu
dramaticamente a contínua falta de poder das mulheres. As
mulheres são menos reconhecidas do que eram em 1915, quan­
do eram consideradas uma ameaça, ou pelo menos um incômodo
constante. Hoje, cinqüenta anos depois do voto ser alcançado,
* Lunatic fringe — grupo politizado de idéias anarquistas marginalizado
como delinqüente. (N.T.)

41
direitos civis: mas, embora em geral ele não fosse politi­
camente mais eficaz do que a sua participação no movi­
m ento pela paz, os dias contados das mulheres brancas
no movimento negro do início da década de sessenta pro­
varam ser um a experiência mais valiosa em termos de
seu próprio desenvolvimento político. Isto é fácil de de­
tectar no movimento de liberação feminino atual. As mu­
lheres que foram para o Sul são em geral muito mais
perspicazes, flexíveis e evoluídas politicamente do que as
mulheres que entraram para o movimento pela paz, e
tendem a se dirigir muito mais rapidam ente para o femi­
nismo radical. Talvez porque sua preocupação com o so­
frimento dos negros fosse a tentativa na qual as mulheres
brancas, desde 1920, mais se aproximaram de encarar
sua própria opressão: lutar pela causa dos que são mais
visivelmente oprimidos é uma m aneira eufemística de di­
zer que se é oprimido. Assim como o problem a da escra­
vidão incitou o feminismo radical do século dezenove,
assim o problem a do racismo estimulou o novo feminis­
m o: a analogia entre racismo e sexismo tinha sido final­
m ente inferida. Assim que as pessoas admitissem e se
confrontassem com seu próprio racismo, elas não pode­
riam negar o paralelo. E se o racismo era eliminável,
por que o sexismo não o seria também?
* * *

as mulheres não representam sequer um embaraço. Pois, en­


quanto as mulheres forem politicamente tão impotentes, e o
pior, politicamente invisíveis, quaisquer contribuições que pos-
pam trazer para “o movimento” serão de valor político insigni­
ficante. Seus serviços de datilografia, de mimeografia, de fazer
folhetos, de colar envelopes, fazer café e seus serviços emocio­
nais são inegavelmente úteis: eles liberam os homens para rea­
lizarem seus próprios objetivos organizacionais. Mas os inte­
resses das mulheres de modo algum determinaram estes objeti­
vos, exceto talvez naqueles poucos casos em que acontece de
eles coincidirem com os interesses sectários masculinos. Até que
as mesmas 5.000 mulheres estejam prontas para marchar em
.Washington, dessa vez para protestar contra a sua pura falta de
poder — até que elas tenham se constituído por sua própria
conta numa séria ameaça ao status quo — elas estão fadadas à
contínua impotência política.

42
Descrevi o período de cinqüenta anos situado entre
o fim do antigo movimento feminista e o início do novo
movimento, com o objetivo de examinar os modos espe­
cíficos pelos quais o mito da emancipação operou em
cada década para encobrir as frustrações das mulheres
modernas. A tática de encobrir as coisas foi utilizada efi­
cazmente para reprivatizar as mulheres das décadas de
vinte e trinta. Depois disso, ela se uniu a um a paralisa­
ção da história feminista para que as mulheres se m an­
tivessem girando histericamente num labirinto de falsas
soluções: o M ito tinha-lhes negado efetivamente um a saí­
da legítima para suas frustrações. A terapia provara ser
um fracasso como saída (ver o capítulo seguinte). V oltar
para casa tam pouco era um a solução — como provaram
as gerações das décadas de quarenta e cinqüenta.
Por volta de 1970, as filhas rebeldes dessa geração
desperdiçada não sabiam mais o que lhes valeria para
todas as finalidades práticas, sequer que tinha existido
um movimento feminista. Ficaram apenas os restos desa­
gradáveis da revolução abortada, um a coleção espantosa
de contradições nas suas funções. Por um lado, elas ti­
nham o máximo de privilégios legais, a garantia literal
de que eram consideradas cidadãs da sociedade com ple­
nos direitos políticos — e no entanto não tinham poder.
Tinham oportunidades de se educar — e no entanto não
eram procuradas para os empregos. Tinham conseguido
as liberdades no vestir e nos hábitos sexuais por elas
exigidos — e no entanto ainda eram exploradas sexual­
mente. As frustrações decorrentes de sua situação sem
saída foram exacerbadas pelo desenvolvimento dos mass
media (ver Capítulo 7 ), onde essas contradições foram
expostas abertamente, e foi enfatizada a fealdade dos p a­
péis femininos, precisamente através dessa característica
intensificada que fez dos novos media um órgão de pro­
paganda tão vantajoso. As doutrinações culturais neces­
sárias para reforçar as tradições de papéis sexuais tinham-
se tornado espalhafatosas, de mau gosto, enquanto que
antes tinham sido insidiosas. Bom bardeadas em toda parte
com imagens de si mesmas odiosas ou eróticas, as m u­
lheres ficaram de início desnorteadas e finalmente enrai­

43
vecidas com essas distorções (isso seria eu?). Inicialmen­
te, pelo fato de o feminismo ainda ser um tabu, a sua
raiva e a sua frustração se contiveram num a atitude de
retirada total (Boêmia Beatnik e Geração F lo r/D ro g as),
ou foram canalizadas para outros movimentos dissidentes
que não o seu, particularm ente o movimento pelos direi­
tos civis da década de sessenta, onde as mulheres mais
se aproxim aram de um reconhecimento de sua própria
opressão. Mas, finalmente, a analogia evidente entre a
própria situação e a situação dos negros, unida ao espí­
rito geral de dissensão, acabaram levando ao estabeleci­
mento de um movimento de libertação das mulheres pro­
priam ente dito. A raiva revelou-se finalmente como sendo
a própria saída.
M as seria errado atribuir o ressurgimento do femi­
nismo exclusivamente ao impulso gerado por outros mo­
vimentos e idéias. Pois, embora eles possam ter agido
como catalisadores, o feminismo, na verdade, tem um
m om entum cíclico todo próprio. N a interpretação históri­
ca por nós adotada, o feminismo é visto como a reação
feminina inevitável ao desenvolvimento de um a tecnolo­
gia capaz de libertar as mulheres da tirania de seus pa-
péis sexuais-reprodutores — tanto a própria condição
biológica fundamental, como o sistema de classes sexuais
em que se baseia e reforça essa condição biológica.
O desenvolvimento progressivo da ciência no século
vinte teria apenas acelerado a primeira reação feminista
à Revolução Industrial. (Só o controle da natalidade, por
exemplo, um problem a para o qual as primeiras feminis­
tas não encontraram solução, atingiu a partir de 1920
seu mais alto nível de desenvolvimento na História.)
Tentei descrever a dinâmica da contra-revolução que, jun­
to com a crise tem poral da guerra e da depressão, difi­
cultou o desenvolvimento do feminismo. Por causa desse
obstáculo, os novos desenvolvimentos científicos que po­
deriam ter ajudado enormemente a causa feminista fica­
ram nos laboratórios, ao passo que as práticas sociais-
sexuais não só continuaram como antes, mas foram de
fato intensificadas, em reação à ameaça. Os progressos
científicos que ameaçavam enfraquecer ainda mais ou

44
ameaçavam rom per totalm ente a conexão entre o sexo e
a reprodução quase não foram realizados culturalmente.
O fato de a revolução científica não ter tido virtualm ente
nenhum efeito sobre o feminismo apenas ilustra a natu­
reza política do problem a: os objetivos do_feminismo
I nunca poderão ser atingidos pela evolução, mas somente
pela revolução. O poder, em bora ele tenha se desdobra­
do, nunca será abandonado sem que haja luta.

3. O Women’s Liberation5 Movement

No espaço de três anos, vimos recriada toda a estru­


tura política do antigo movimento das mulheres. A pro­
funda divisão entre as feministas radicais e os dois tipos
de reformistas, as feministas conservadoras e as politi­
queiras, reapareceu sob uma capa moderna. Existem hoje
três campos principais dentro do movimento, eles pró­
prios subdivididos. Sintetizemos brevemente estes campos,
lembrando-nos de que, nesse período de formação, tanto
a política, quanto o quadro de membros de qualquer um
dos grupos estão num constante estado de mudança.
1) A s Feministas Conservadoras. Em bora prolife­
rando agora em miríades de organizações similares, esse
campo é talvez ainda melhor exemplificado pela pioneira
(e conseqüentemente mais radicalm ente feminista do que
em geral se acredita) NOW, a National Organization of
Women, criada em 1965 por Betty Friedan depois da
repercussão com a publicação de sua A Mística Feminina.
Geralmente denominado o NAACP do movimento das
mulheres (e porque de fato ele também está repleto de
profissionais experimentadas — que fizeram carreira, que

5. “Liberação” como oposta a “emancipação” para denotar a


libertação de toda classificação sexual, em vez de meramente
um igualamento dos papeis sexuais. Contudo, eu sempre achei
o nome pesado, excessivamente ao gosto da retórica da Nova
Esquerda, e me envergonhei em reconhecer qualquer relação
com o Feminismo. Prefiro usar “Feminismo Radical”.

45
“se deram bem ” — ele é similarmente atacado pelos gru­
pos mais jovens de libertação em virtude de seu “carrei-
rism o” ), a NOW concentrou a atenção nos sintomas mais
superficiais do sexismo — as desigualdades legais, a dis­
criminação no trabalho, etc.
Assim, na sua política, ela se parece mais com o
movimento sufragista da virada do século, a National
Am erican W om an Suffrage Association, de C arrie C hap-
m an Catt, com sua ênfase na igualdade entre as m ulhe­
res e os homens — legal, econômica, etc., dentro do
sistema estabelecido — em vez de na libertação de todos
os papéis sexuais, ou no questionam ento radical dos va­
lores da família. Como a NAWSA, ela tende a concentrar
sua atenção em ganhos políticos isolados, mesmo que às
custas dos princípios políticos. Como a NAW SA, ela
atraiu um enorme quadro de associados, que controla
através de procedimentos burocráticos tradicionais.
C ontudo, já para o movimento jovem, é evidente
que essa posição, insustentável até em termos de ganhos
políticos imediatos — como foi atestado pelo fracasso
do último movimento feminista conservador — é mais
um vestígio do antigo feminismo (ou, se preferirem, um
precursor) do que um modelo para o novo movimento.
As inúmeras mulheres que se associaram a ele p o r falta
de um lugar m elhor para onde ir, logo se transferiram
para o feminismo radical — e, assim fazendo, impuse­
ram à NOW um radicalismo cada vez maior; enquanto
que outrora a organização não ousava sequer apoiar ofi­
cialmente a revogação da lei do aborto, com medo de
afastar aquelas que não conseguiriam ir além de uma
reforma, hoje a revogação da lei do aborto é uma das
suas exigências centrais.
2) A s Politiqueiras. As politiqueiras do movimento
feminino contem porâneo são aquelas mulheres cuja fide­
lidade primeira é para com a Esquerda ( “O Movimen­
to ” ) , em vez de para com o W omen’s Liberation Move-
m ent propriam ente dito. Como as politiqueiras da Era
Progressista, as politiqueiras contemporâneas vêem o fe­
minismo como apenas um a tangente para um a política
radical “verdadeira”, em vez de um centro, diretamente

46
radical em si mesmo. Elas ainda vêem os problem as m as­
culinos, p. ex., o recrutam ento, com o universais, e os
problem as femininos, p. ex., o aborto, como sectários.
D entro da categoria das politiqueiras contem porâneas,
existe ainda um a estrutura menor, que pode ser mais ou
menos dividida como se segue:
a) Participação fem inina na esquerda. Hoje, toda
facção im portante da esquerda, e até mesmo alguns sin­
dicatos — depois de um a resistência considerável — têm
seus comitês do w om en’s lib onde discutem o chauvinis­
mo masculino dentro da organização e incitam a um
m aior poder de decisão das mulheres. As politiqueiras
desses caucus são reformistas no sentido de que seu obje­
tivo principal é m elhorar sua própria situação dentro da
arena lim itada da política esquerdista. As outras m ulhe­
res são, n a m elhor das hipóteses, o seu primeiro “eleito­
rado”, sendo os problem as estritam ente femininos vistos
como nada mais do que um instrum ento “radicalizante”
vantajoso para recrutar mulheres para a “L uta M aior”.
Assim, sua atitude com relação às outras mulheres tende
a ser protetora e evangélica, um a aproxim ação “organi­
zadora”. Eis algumas Black Panthers (m ulheres) num a
entrevista concedida ao The M ovem ent, jornal under-
ground, onde, no seu estardalhaço, se expressam de um
m odo talvez constrangedor para a esquerda branca, mas
que, não obstante, é típico (por que tirado dela?) da
m aior parte da retórica revolucionária branca sobre o
assunto:
“É muito importante que as mulheres que são mais esclare­
cidas, que já compreendem os princípios revolucionários, vão
até elas e expliquem a elas, e lutem com elas. Temos que re­
conhecer que as mulheres são politicamente atrasadas e que
temos que lutar com elas.” (Grifos da autora)

Ou, além disso, referindo-se a um movimento inde­


pendente das mulheres:

“Elas perderam de vista a Luta Fundamental. Talvez algu­


mas organizações específicas de grupos de mulheres sejam
possíveis, porém elas são perigosas: em termos de se volta-

47
rem para si próprias, em termos de se tornarem pequenas
panelinhas petit bourgeois em que se fala o tempo todo de
cuidar das crianças, ou que se tornem uma sessão de reclama­
ções.” (Grifos da autora)

Vemos aqui um a recusa total dos negros (e não


menos das m ulheres), de seus próprios princípios do
Black Power quando aplicados a um outro grupo: o di­
reito dos oprimidos de se organizarem em torno de sua
opressão como eles a vêem e a definem. Diz-se que o
movimento Black Power, que tanto instruiu as mulheres
sobre as suas necessidades políticas através de paralelos
obvios, seria o último a enxergar este paralelo invertido.
(P ara um a análise mais profunda do porquê isso aconte­
ce, ver o Capítulo 5.) Organizações de origem popular
em torno da própria opressão, o fim da liderança e dos
jogos de poder, a necessidade de um preparo das massas
anterior à luta sangrenta, todos os princípios mais im por­
tantes da política radical inesperadam ente não se aplicam
às mulheres, num double standard* da pior espécie.
Os grupos de libertação das mulheres que ainda ten­
tam atuar dentro do movimento esquerdista mais geral,
não têm nenhum a chance, pois sua linha é ditada de
cima, suas análises e táticas são planejadas pela própria
classe cujo poder ilegítimo elas contestam. E assim ra­
ram ente conseguiram fazer mais do que aum entar a ten­
são que já am eaçava seus debilitados grupos esquerdistas
com a extinção. Se algum dia eles se tornarem realm ente
poderosos, serão dissuadidos com derivativos ou, se ne­
cessário, o grupo todo tranqüilam ente se desintegrará e
reorganizará sem elas. Geralm ente no fim são forçados
a se separar e unir-se ao movimento independente das
mulheres.
b) Politiqueiras de centro. Trabalhando separada­
mente, porém ainda sob a proteção masculina, esses gru­
pos são ambivalentes e confusos. Eles vacilam. Sua imi­

* Ver N.T. à página 260. (N.T.)

48
tação óbvia da análise, da retórica, da tática e da estra­
tégia da esquerda (m asculina) tradicional, sejam elas
ou não adequadas à realização de seus próprios objeti­
vos distintos, é contrabalançada por um a série de senti-
mentalizações sobre as Irm ãs Oprimidas Distantes. Sua
própria política tende a ser ambígua porque suas fide­
lidades são estas: se elas não estão mais tão seguras de
que é o capitalismo que provoca diretam ente a explora­
ção das mulheres, elas não vão tão longe ao ponto de
insinuar que os homens poderiam ter algo que ver com
isso. Os homens são Irmãos. As mulheres são Irmãs.
Se é que se deve falar de inimigos de algum modo, por
que não deixar isso em aberto e chamá-los de O Sistema?
c) A s politiqueiras feministas. E sta posição delineia
talvez a m aior proporção dos grupos anônimos fechados
do movimento de libertação das mulheres existentes ao
longo do país. É a posição para a qual muitas das cen­
tristas finalmente se inclinam. Basicamente é um feminis­
mo conservador com insinuações esquerdistas (ou, tal­
vez, diríamos que é um esquerdismo com insinuações
fem inistas). E m bora as politiqueiras feministas adm itam
que as mulheres devem se organizar em torno de sua
própria opressão da m aneira como elas a sentem, que
elas podem realizar isto de um modo m elhor através de
grupos independentes, e que a concentração principal
de todo grupo de mulheres deveria ser nos problem as
das mulheres, todo esforço é feito ainda visando adaptar
essas atividades às análises esquerdistas existentes e às
estruturas prioritárias — nas quais, naturalm ente, as m u­
lheres, nunca vêm primeiro.
A pesar da diversidade aparente dentro dessa estru­
tura, as três posições podem ser reduzidas a um deno­
m inador comum: o feminismo é secundário na ordem
das prioridades políticas, e deve ser talhado de m odo a
ajustar-se a um a estrutura política já existente (criada
pelos hom ens). O medo de que se isso não for obser­
vado o feminismo adotará um a resolução tem erária, to r­
nando-se divorciado da Revolução, revela o receio de
que o feminismo não seja um a questão legítima em si

49
mesma, a qual requererá (infelizmente) um a revolução
para que sejam alcançados os seus objetivos.
E este é o dilema disso: as mulheres politiqueiras
são incapazes de desenvolver um a política autêntica por­
que elas nunca enfrentaram realm ente com coragem a
realidade de sua opressão como mulheres. Sua incapaci­
dade de criar um a análise esquerdista feminista própria,
sua necessidade de relacionar o tempo todo o seu pro­
blema a algumas “lutas fundamentais”, em vez de vê-lo
como central, ou mesmo revolucionário em si mesmo,
deriva diretamente de seus sentimentos permanentes de
inferioridade como mulheres. A incapacidade de colocar
as próprias necessidades em primeiro lugar, a necessidade
de aprovação m asculina — nesse caso, a aprovação do
¿nú-estabilishment masculino — para legitimá-las politi­
camente, torna-as incapazes de se afastarem de outros
movimentos quando necessário, e assim as consigna a
um mero reformismo de esquerda, à falta de originali­
dade, e finalmente à esterilidade política.
Contudo, o contraste com o feminismo radical, a
posição mais combativa dentro do movimento de liber­
tação das mulheres, forçou as politiqueiras, bem como
as feministas conservadoras, a um a crescente defensiva,
e finalmente a um radicalismo cada vez maior. Inicial­
mente, as mulheres cubanas e o N LF foram os modelos
incontestados, idolatrada sua liberdade; hoje existe uma
atitude do tipo esperar-para-ver-o-que-dá. Ano passado,
as questões puram ente feministas nunca eram trazidas à
baila sem que fosse prestado um tributo aos negros, aos
trabalhadores, ou aos estudantes. Este ano, os porta-vo-
zes da esquerda, em vez disso, falam de um modo empo­
lado e dando importância à abolição da família nuclear.
Pois a Irm andade da Esquerda correu para ver o que
eles poderiam co-optar — propondo um a declaração con­
tra a monogamia, a cujo sinal de, homens, ao trabalho!,
as feministas só poderiam rir amargamente. Mas ainda,
enquanto que o SDS não ligava a mínima há alguns anos
atrás para um tolo movimento feminino, hoje ele passou
a atribuir às suas mulheres um papel cada vez mais

50
atraente, para impedi-las de abandonarem o movimento,
p. ex., a W omen’s Militia, o “ exército de cabelos lon­
gos” da facção Weathermen do SDS. H á o inicio do
reconhecimento esquerdista oficial das mulheres como
um im portante grupo oprimido com seus próprios di­
reitos; alguma compreensão superficial da necessidade de
um movimento feminista independente; algum grau de
consideração pelos problem as e protestos das mulheres,
p. ex., o aborto ou as creches diurnas; e a crescente po­
lítica de derivativos. E, assim como aconteceu nas pri­
meiras fases do Black Power, há a mesma tentativa de
pacificar, o mesmo riso liberal nervoso, a mesma insen­
sibilidade para a sensação de ser uma mulher, dissimu­
lada nos dentes arreganhados de um sorriso do tipo esta-
m os-tentando-ganhar-um-beijo.
3) Feminismo Radical. As duas posições que des­
crevemos usualmente geram um a terceira, a posição fe­
minista radical. As mulheres de suas fileiras classificam-
se desde em feministas moderadas desiludidas com a
NOW, até em esquerdistas desiludidas com o women’s
lib, e incluem outras que ficaram esperando por esta
alternativa, mulheres para as quais nem o feminismo bu­
rocrático conservador, nem o dogma esquerdista im por­
tado despertaram muito interesse.
A posição feminista radical contem porânea é a des­
cendente direta da linha feminista radical do antigo m o­
vimento, sobretudo a defendida por Stanton e Anthony,
e mais tarde pela militante Congressional Union (subse­
qüentemente conhecida como W oman’s P arty). E la V£
o problema feminista não só como prioritário para as
mulheres, mas também como central para qualquer aná­
lise revolucionária mais ampla. Recusa-se a aceitar a
análise esquerdista atual, nao porque seja excessivamente
radical, mas por não ser suficientemente radical. E la vê
a análise esquerdista atual como anacrônica e superficial,
porque não relaciona a estrutura do sistema de classes
econômicas com suas origens no sistema de classes se­
xuais, que constitui o modelo de todos os outros sistemas
de exploração, e assim o germe que deve ser primeiro
eliminado por qualquer revolução autêntica. Nos capítu-

51
los seguintes analisarei a ideologia do feminismo radical
e sua relação com outra teoria radical, de m odo a ilus­
trar como só ele consegue colocar em foco as muitas
áreas conturbadas da análise esquerdista, fornecendo pela
prim eira vez uma solução revolucionária completa.
Devemos de imediato observar que o movimento
pode reivindicar para si; um potencial revolucionário
m uito maior, bem como qualitativamente diferente de
qualquer outro movimento do passado.
1) Distribuição. A o contrário dos grupos minoritá­
rios (uma contingência histórica) ou do proletariado (um
desenvolvimento econômico), as mulheres sempre consti­
tuíram uma classe oprimida majoritária (51 por cento),
espalhada uniformemente por todas as outras classes. Na
América, o movimento mais semelhante ao feminismo,
o Black Power, mesmo que conseguisse mobilizar ime­
diatamente todos os negros do país, disporia de apenas
15 por cento da população. N a verdade, todas as mino­
rias oprimidas juntas, sem supor nenhuma luta faccioná-
ria corpo a corpo, não constituiriam um a maioria — a
não ser que as mulheres fossem incluídas. O fato de as
mulheres viverem com homens, nalguns níveis nossa pior
desvantagem — pois o isolamento das mulheres umas
das outras foi responsável pela ausência ou pela fraqueza
do movimento de libertação das mulheres no passado —
é, num outro sentido, uma vantagem: um a revolucioná­
ria em cada quarto de dormir não pode deixar de abalar
o status quo. E se quem está se revoltando é a sua mu­
lher, você não pode escapar para os subúrbios. O femi­
nismo, quando ele realmente atingir os seus objetivos,
fará estourar as estruturas mais básicas de nossa sociedade.
2 ) Política Pessoal. O movimento feminista é o pri­
meiro a unir efetivamente o “pessoal” ao “político” . Ele
está desenvolvendo um novo modo de relacionamento,
um novo estilo político, que finalmente reconciliará o
pessoal — sempre a prerrogativa feminina — com o
público, com o “mundo exterior”, de modo a reintegrar
o mundo com as suas emoções, e literalmente com os
seus sentidos.

52
A dicotomía entre as emoções e o intelecto impediu
o movimento estabelecido de desenvolver urna base de
massa. De um lado, há os esquerdistas ortodoxos, seja
intelectuais abstratos das universidades sem contato com
a realidade concreta, seja na sua aparência ativista, mi­
litantes do machismo, tolerantes na sua ação pouco preo­
cupada com a eficácia política. De outro lado, há a N a­
ção Woodstock, a Revolta Jovem, a Geração F lor e
Drogas dos Hippies, os Yippies, os Crazies, os M other-
fuckers, os M ad Dogs, os Hog Farm ers e outros, que,
embora compreendam que a velha panfletagem e a aná­
lise marxista não funcionam mais — que o problema é
muito mais profundo do que m eramente a luta do pro­
letariado, que praticamente constitui a vanguarda ame­
ricana — contudo não dispõem de nenhuma análise his­
tórica própria com a qual substituí-la; na verdade, são
apolíticos. Assim, o movimento está soçobrando, seja ele
marginal, estilhaçado e ineficaz devido a sua análise rígi­
da e anacrônica, seja carecendo de um a base histórica e
econômica séria onde há um apelo para o movimento
de massa. É “escapista”, em vez de revolucionário.
3) O Fim da Psicologia do Poder. A maioria dos
movimentos revolucionários é incapaz de praticar entre
si o que pregam. Cultos intensos à liderança, facciosis-
mo, ego trips, difamações são muito mais a regra do que
a exceção. O movimento das mulheres, na sua curta his­
tória, tem um registro um pouco melhor do que a maio­
ria nessa área. Um de seus principais objetivos declara­
dos é a democracia interna — e ele não mede esforços
(m uitas vezes absurdos) para perseguir essa meta.
O que não quer dizer que ele sejabem sucedido.
Há muito mais retórica do que realidade nesse assunto,
muitas vezes disfarçando hipocritam ente os mesmos ve­
lhos estratagemas e jogos de poder — freqüentemente
com novas e complexas variações femininas. Mas é de­
mais exigir que, dadas as suas raízes profundas nas clas­
ses sexuais e na estrutura familiar, alguém nascido hoje
seria capaz de eliminar a psicologia do poder. E, embora
seja verdade que muitas mulheres nunca tenham assumi­
do o papel dominante (poder sobre os outros), existem

53
muitas outras que, identificando sua vida com a dos ho­
mens, encontram -se na posição especial de terem que
erradicar, ao mesmo tempo, não só suas naturezas sub­
missas, mas também suas naturezas dominadoras, esvain­
do-se de um lado e de outro.
M as se existe algum movimento revolucionário que
possa conseguir estabelecer um a estrutura igualitária, este
é o feminismo radical. Questionar as relações básicas
entre os sexos e entre pais e filhos é trazer os modelos
psicológicos de dominação-submissão às suas próprias
origens. Exam inando politicamente esta psicologia, o fe­
minismo será o primeiro movimento a lidar com o pro­
blem a de um modo materialista.

1
54
III. FREUDISMO: UM FEMINISMO
DESVIRTUADO

Se tivéssemos que m encionar a corrente cultural que


mais caracteriza a Am érica no século X X , esta seria a
obra de Freud e as disciplinas que se originaram dela.
Não existe ninguém que não seja hoje atingido por esta
visão da vida hum ana, seja através de incursões na “psi­
que” ; seja através de terapia pessoal, uma experiência
comum às crianças da classe média; ou seja, geralmente,
através de sua penetração na cultura popular. O novo
vocabulário entrou em nossa fala cotidiana, de m odo que
o homem comum pensa em termos de ser “doente”,
“neurótico” ou “esquizo” ; ele checa periodicamente o
“desejo de m orte” de seu “id” e a “fraqueza” de seu
“ego” ; as pessoas que o rejeitam são egocêntricas; admi­
te que tem um “complexo de castração”, que “reprimiu”
um desejo de ter relações com sua mãe, que se envolveu
e ainda se envolve num a “rivalidade com os irm ãos”,
que a mulher “inveja” seu pênis; e provavelmente vê
em toda banana ou cachorro-quente um “símbolo fáli-
co”. Suas discussões conjugais e seus processos de divór­
cio se realizam em jargão psicanalesco. Na m aioria das
vezes não está bem certo sobre o que esses termos sig­
nificam, mas, se não o sabe, pelo menos pode estar certo
de que seu “querido analista” sabe. O vienensezinho de
óculos e cavanhaque, cochilando em sua poltrona, é um

55
clichê do hum or moderno (nervoso). Levaríamos algum
tempo para catalogar o número de caricaturas que se
referem à psicanálise. Construímos um a nova simbologia
em torno de um divã solitário.
O freudismo se tornou, com seus confessionários e
penitências, prosélitos e convertidos, com os milhões gas­
tos na sua manutenção, a nossa Igreja moderna. Não
conseguimos atacá-lo sem constrangimento, pois nunca
se sabe se, no dia do Juízo Final, ele pode estar com a
razão. Quem tem certeza de que ele não é tão saudável
quanto prega? Quem pode igualá-lo em sua alta capaci­
dade? E quem não se espanta com a sua sagacidade?
Quem não odeia o pai e a mãe? Quem não compete
com o irmão? Que mulher não desejou ser um menino
nalgum momento da vida? E as pessoas ousadas que ain­
da persistem em seu cepticismo sempre esbarram com
essa terrível palavra: resistência. Elas são as mais doen­
tes, é óbvio, pois o combatem tanto.
Houve uma reação. Livros foram escritos, floresce­
ram profissões, só a partir das contradições da própria
obra de Freud. Algumas ficaram conhecidas por uma
crítica a apenas um a parte de sua obra (p. ex., refutan­
do o desejo de morte, ou a inveja do pênis), e outras,
mais corajosas, ou mais ambiciosas, atacaram os abusos
da totalidade da obra. Teorias críticas abundam em todas
as festinhas e coquetéis. Alguns intelectuais vão longe,
ao ponto de relacionar a morte da comunidade intelec­
tual na América com a im portação da psicanálise. Em
oposição à religiosidade do freudismo, foi fundada toda
uma escola empírica, o behaviorismo (em bora a psicolo­
gia experimental sofra de seus próprios tipos de precon­
ceitos*). E, gradativamente, com tudo isso, o pensamen­
to freudiano foi desmontado, seus princípios mais essen­
ciais foram sendo abandonados um por um, até não res­
tar mais nada a ser atacado.

* Um informe muito difundido sobre esse tema do movimento de liber­


tação das mulheres é “Kinder, Kuche, Kirche as Scientific Law: Psy-
chology Constructs the Fem ale” (reeditado em A Psicologia Hoje, outu­
bro, 1969, com o título de “As M ulheres como Negros” ), pelo Dr. Nao-
mi Weisstein.

56
E contudo ele não morreu. Em bora a terapia psica-
nalítica se tenha m ostrado ineficaz, e as idéias de Freud
sobre a sexualidade das mulheres tenham-se revelado li­
teralmente erradas (p. ex., o mito do duplo orgasmo de
M asters e Johnson), as velhas concepções ainda circulam.
Os médicos continuam a praticá-las. E no fim de toda
crítica nova encontramos uma homenagem culposa, fren­
te ao G rande Pai que começou tudo. Eles não conse­
guem matá-lo completamente.
M as eu não penso que isso seja simplesmente uma
falta de coragem em admitir, depois de todos esses anos,
que o “rei estava nu”. Não creio que isso ocorra só
porque eles estejam com isso m inando seu ganha-pão.
Penso que, na maioria dos casos, foi a mesma integri­
dade que os fez questionar toda a teoria que os impediu
de destruí-la totalmente. “Intuitivamente” sua “consciên­
cia” lhes diz que não se atrevam a desferir esse golpe
final.
Pois ainda sentimos que existe alguma verdade nas
teorias de Freud, embora elas não sejam empiricamente
verificáveis, embora o freudismo, na prática clínica, te­
nha levado a absurdos reais, embora, de fato, desde 1913
já se tivesse observado que a psicanálise era a própria
doença que ela pretendia curar, criando uma nova neu­
rose no lugar da antiga, e embora se observasse que as
pessoas sob terapia pareciam hoje mais preocupadas con­
sigo mesmas do que nunca, tendo chegado a um esta­
do de neurose “perceptiva”, repleto de “regressões”, de
“transferências” cegas de amor, e de soliloquios agoni­
zantes. Em bora essas pessoas sob terapia sejam domina­
das pela confusão quando lhes perguntam, sem rodeios,
“Essas terapias ajudam?”, ou “Elas valem a pena?”, elas
não podem ser menosprezadas completamente.
Freud conquistou a imaginação de todo um conti­
nente e de toda um a civilização por um a boa razão.
Em bora, na superfície, sua teoria fosse inconsistente,
ilógica, ou “fora do comum” , seus seguidores, com sua
lógica, seus experimentos e suas revisões cautelosos, não
têm nada de comparável a dizer. O freudismo está tão
saturado e, ao mesmo tempo, é tão impossível de ser

57
recusado, porque Freud tocou no problema crucial da
vida moderna: a sexualidade.

1. As Raízes Comuns do Freudismo


e do Feminismo

1 ) 0 freudismo e o feminismo brotaram do mesmo


solo. Não foi por acaso que Freud começou sua obra no
auge do movimento feminista primitivo. Hoje subestima­
mos a importância das idéias feministas na época. As
conversas de salão sobre a natureza dos homens e das
mulheres, a possibilidade da reprodução artificial (bebês
em tubos de vidro), lembradas em O A m ante de Lady
Chatterley, de D. H. Lawrence, não eram ilusórias. O se-
xismo era o assunto mais quente da época. Lawrence ape­
nas o captou, acrescentando-lhe sua própria visão. O se-
xismo também determinou quase que todo o material de
G. B. Shaw. A N ora de Ibsen, em Casa de Bonecas, não
era um a coisa rara. Esse tipo de discussão separava
muitos casamentos reais. A descrição maldosa que Henry
James fez das mulheres feministas em A s Bostonianas e as
descrições mais condescendentes de Virginia Woolf em
Os A n o s e em Night and Day eram tiradas da vida real.
A cultura refletia as atitudes e os interesses predominan­
tes. O feminismo era tema literário im portante, porque
nessa época ele era um problem a vital. Pois os escritores
escreviam sobre o que viam. Descreviam o meio cultural
a sua volta. E nesse meio havia interesse pelos temas do
feminismo. A questão da emancipação das mulheres afe­
tava todas as mulheres, quer elas se declarassem a favor
das novas idéias, quer as combatessem desesperadamente.
Velhos filmes da época mostram a solidariedade crescente
das mulheres, refletindo seu comportamento imprevisível,
e pondo à prova, de m aneira aterradora e geralmente de­
sastrosa, seu papel sexual. Ninguém se m antinha insen­
sível à revolta. E isso não ocorria apenas no Ocidente.
A Rússia, nessa época, experimentava acabar com a
família.

58
Na virada do século havia, então, no pensam ento so­
cial e político, na cultura literária e artística, urna enorme
fermentação e idéias relativas à sexualidade, ao casa­
mento, à família, ao papel das mulheres. O freudismo
foi apenas um produto cultural dessa fermentação. Ambos,
freudismo e feminismo, surgiram como reações a um dos
períodos mais presunçosos da civilização ocidental, a E ra
Vitoriana, caracterizada por sua centralização da família,
e, conseqüentemente, por sua exagerada opressão e re­
pressão sexuais. Ambos os movimentos significaram um
despertar. Só que F reud foi meramente um diagnosticador
daquilo que o feminismo pretendia curar.
2) O freudismo e o feminismo são farinha do mesmo
saco. A grande façanha de Freud foi redescobrir a sexua­
lidade. F reud viu a sexualidade como a principal força
vital. M ostrou que a m aneira como a libido se organizava
na criança determinava a psicologia do indivíduo (que,
além disso, reproduzia a psicologia das espécies histó­
ricas). Descobriu que, para se ajustar à civilização atual,
o ser sexuado deveria sofrer um processo de repressão
na infância. E que, em bora todo indivíduo sofra essa re­
pressão, ela é mais eficaz numas pessoas do que em outras,
gerando um desajuste m aior (psicose) ou m enor (neu­
rose), em geral tão intenso que é capaz de arruinar o
indivíduo completamente.
O tratam ento proposto por Freud é menos im por­
tante, e, na verdade, foi a causa do mal atual. Por um
processo de trazer à tona as repressões danificadoras, do
reconhecimento consciente e da investigação sem restri­
ções, o paciente deve ser capaz de chegar a um acordo
com o id, de recusar conscientemente, em vez de reprimir
inconscientemente os desejos perturbadores do id. Esse
processo terapêutico se inicia com a ajuda do psicana­
lista, através da “transferência”, na qual o psicanalista
substitui a figura da autoridade original, que está na base
da neurose repressiva. Como a religião restauradora ou
a hipnose (que, na realidade, Freud estudou, e pela qual
foi muito influenciado), a “transferência” se estabelece
através do envolvimento emocional, e não através da
razão. O paciente se “apaixona” por seu analista. “Pro-

59
jetando” o problem a na suposta tábua rasa da relação
terapêutica, ele é capaz de descobri-lo e de curar-se dele.
Só que simplesmente isso não funciona.1
Filiado à tradição da ciência “pura” , Freud observou
estruturas psicológicas, sem nunca questionar seu contexto
social. Dados a sua própria estrutura psíquica e os seus
preconceitos culturais — ele foi um tirano intolerante
da escola antiga, para quem algumas verdades sexuais
devem ter sido caras — dificilmente poderíamos esperar
que ele tivesse feito desse tipo de investigação um a parte
de sua obra. (Wilhelm Reich foi um dos poucos que se­
guiram esse caminho.) Além disso, assim como M arx não
pôde levar em conta o futuro advento da cibernética,
Freud, naquela época, não tinha o conhecimento aluci­
nante das possibilidades tecnológicas, de que hoje dispo­
mos. Mas se devemos ou não censurar Freud pessoal­
mente, o fato de ele não ter questionado a própria socie­
dade foi responsável pela grande confusão característica
das disciplinas que surgiram em torno de sua teoria. As­
sediados pelos intransponíveis problemas resultantes da
tentativa de pôr em prática um a contradição básica —
a resolução de um problema dentro do meio-ambiente que
o criou — seus seguidores começaram a atacar cada ele­
mento de sua teoria, um atrás do outro, até que chegas­
sem a “jogar fora a criança, junto com a água da bacia”.
Mas havia algum valor nessas idéias? Reexaminemos
novamente algumas delas, desta vez a partir de um ponto

1. R. P. Knight, em “Avaliação dos Resultados da Terapia Psi-


canalítica” , publicado no American Journal of Psychiatry, em
1941, verificou que a psicanálise fracassou com 56,7 por cento
dos pacientes que ela observou, e teve êxito com apenas 43,3
por cento. Assim, a psicanálise teve um pouco mais de fracasso
do que de êxito. Em 1952, num estudo diferente, Eysenck
mostrou uma taxa de melhoria de 44 por cento, em pacientes
que tinham feito psicanálise; de 64 por cento, em pacientes que
tinham feito psicoterapia; e uma taxa de melhoria de 72 por
cento, naqueles que não tinham recebido nenhum tratamento.
Outros estudos (Barron e Leary, 1955; Bergin, 1963; Cartwright
e Vogel, 1960; Truaux, 1963; Powers e Witmer, 1951) confir­
mam esses resultados negativos.

60
de vista feminista radical. Acredito que Freud falava de
alguma coisa real, embora talvez suas idéias, tomadas
literalmente, sejam absurdas. A esse respeito, considere-
se que o gênio de Freud foi mais poético do que científico.
Suas idéias são mais valiosas como metáforas do que
como verdades literais.
Considerando isto, examinemos primeiro a pedra
angular da teoria freudiana, o Complexo de Édipo, no
qual o menino deseja a mãe sexualmente e deseja m atar
o pai, reprimindo esse desejo, em função do medo de ser
castrado pelo pai.2 O próprio Freud disse em seu último
livro: “Eu me arrisco a afirmar que, se a psicanálise puder
se gabar só da descoberta do Complexo de Édipo, tanto
tempo reprimido, isso, por si só, a faria merecer ser
incluída entre as precisas aquisições novas da humani­
dade.” Compare-se isto com o que diz Andrew Salter em
“O Argum ento contra a Psicanálise

“Mesmo os que mais simpatizam com Freud acham as


contradições do Complexo de Édipo um tanto embaraçosas.
Diz o Dicionário Psiquiátrico, referindo-se à superação do
Complexo de Édipo: ‘O destino do Complexo de Édipo ainda
não foi claramente compreendido.’ Acho que podemos falar,
com toda a segurança, sobre o destino do Complexo de Édipo.
A sorte do Complexo de Édipo será a sorte da alquimia, da
frenología, e da quiromancia. O destino do Complexo de
Édipo é o esquecimento.”

Salter é atorm entador por todas as contradições ha­


bituais de um a teoria que parte do princípio de que o
contexto social, a causa do complexo, é imutável. Diz ele:

2. Se eu me ocupo com os meninos antes de me ocupar com


as meninas, é porque Freud — na verdade toda a nossa cultura
— se ocupa primeiro com o menino. Até para criticar Freud
apropriadamente, temos que seguir as prioridades que ele esta­
beleceu em sua própria obra. D a mesma forma, como o próprio
Freud observou, o Complexo de Édipo tem um significado cul­
tural muito maior do que o de Electra. Eu também tentarei
mostrar que, na verdade, ele é psicologicamente mais prejudicial,
ao menos porque numa cultura dominada pelo homem o dano
causado à psique masculina tem conseqüências mais amplas.

61
“O pensamento de Freud sobre o fim “normal” do Com­
plexo de Édipo sofre de uma inconsistência em sua lógica.
Se admitimos que o fim do Complexo de Édipo tem sua
origem no m ed o d a castração, não é evidente que a n orm a­
lidade é atin gida co m o um resu ltado d o m ed o e d a repressão
exercidas sobre o m enino? E a obtenção da saúde mental
através da repressão não entra em contradição flagrante com
as doutrinas freudianas mais elementares? (Grifos da autora)

Proponho que o Complexo de Êdipo só adquire sen­


tido, quando visto em termos de poder. Devemos ter em
mente que Freud observou que esse complexo era comum
a todo individuo norm al que crescesse na familia nuclear
da sociedade patriarcal, urna form a de organização social
que intensifica os piores efeitos das desigualdades ineren­
tes à própria família biológica. H á provas de que os
efeitos do Complexo de Édipo são menores nas sociedades
nas quais os homens têm menos poder, e de que o enfra­
quecimento do patriarcalism o produz muitas mudanças
culturais, que talvez possam ser remontadas a esse afrou­
xamento.
Lancemos um olhar sobre essa família nuclear pa­
triarcal, na qual o Complexo de Édipo aparece tão inten­
samente. N a família prototípica desse gênero, o homem
é o sustento, e todos os outros membros dessa família são,
portanto, seus dependentes. Ele concorda em sustentar a
esposa, a troco de serviços que ela presta: cuidar da
casa, satisfazê-lo sexualmente, e reproduzir. As crianças
que ela gera, no lugar dele, são ainda mais dependentes do
que ela. Elas são legalmente a propriedade do pai (um a
das primeiras campanhas do primitivo W.R.M. foi contra
a destituição das mulheres que se divorciavam, de seus
filhos), cuja obrigação é alimentá-las e educá-las, e “mol­
dá-las” para terem seu lugar naquela classe da sociedade
à qual ele pertence. Em troca disso, ele conta com a con­
tinuação do nome e da propriedade, que, geralmente, é
confundida com a imortalidade. Ele tem plenos direitos
sobre as crianças. Se não for um p ai/p atrão bondoso,
azar o delas. Pois elas não podem escapar a seu poder
antes de crescerem, e a essa altura a modelagem psicoló­

62
gica já terá se firmado. Elas agora estão prontas para re­
petir a atuação do pai.
É im portante lem brar que as versões mais recentes
da família nuclear, embora possam velar essa relação es­
sencial, a ponto de ela ficar irreconhecível, reproduzem
essencialmente o mesmo triângulo de dependências: o pai,
a mãe, o filho. Pois mesmo que a mulher tenha a mesma
instrução, mesmo que ela trabalhe (devemos nos lem brar
de que, antes das difíceis conquistas alcançadas pelo
W.R.M. da época de Freud, as mulheres não iam à escola,
nem podiam ter em pregos), ela raram ente é capaz, dada
a desigualdade do mercado de trabalho, de ganhar tanto
dinheiro quanto seu marido (e maldito seja o casamento
que ela fez). Mas, mesmo que ela pudesse, ainda assim
ela seria completamente incapaz de fazê-lo. Pois, tom ar
as mulheres e as crianças, ambas, totalmente indepen­
dentes seria eliminar não só a família nuclear patriarcal,
mas também a própria família biológica.
Esse é, portanto, o clima opressivo no qual a criança
normal cresce. Desde o início, ela é sensível à hierarquia
do poder. Sabe que, em todos os níveis, física, econômica
e emocionalmente, é completamente dependente, e está,
portanto, à mercê dos pais, seja quem eles forem. No
entanto, entre os dois, sempre terá preferência pela mãe.
M antém um vínculo com ela, por serem ambas oprimi­
das. Só que, enquanto a criança é oprimida por ambos
os pais, a mãe, pelo menos, é oprimida apenas por um.
O pai, do ponto de vista da criança, detém controle
absoluto. ( “Espere até seu pai chegar do trabalho! M e­
nino, você vai apanhar pra valer!” ). A criança então
sente que a mãe está a meio-caminho da autoridade e da
impotência. E la pode correr para o pai, se sua mãe estiver
tentando ser injusta; mas, se o pai bater nela, a mãe não
poderá lhe oferecer muito, além de chá e simpatia. Se
a mãe for sensível à injustiça, ela poderá usar de sua as­
túcia e lágrimas para poupá-la. M as ela própria usa de
astúcia e lágrimas nessa idade, e sabe que essas lágrimas
não se comparam com a força genuína. Sua eficácia, de
qualquer maneira, é limitada, dependente de muitas va­

63
riáveis ( “m au dia no trabalho!” ). Ao passo que a força
física, ou a sua ameaça, são um trunfo garantido.
Na família tradicional também existe um a polaridade
parental: a mãe deve am ar o filho devotamente, enquanto
que o pai, por outro lado, raram ente se interessa muito
pelas crianças certam ente não no convívio íntimo. E , mais
tarde, quando o filho cresce, ele o ama condicional­
mente a sua atuação e a sua realização. Erich From m , em
A A rte de A m a r :

“Sempre falamos do amor maternal. O amor maternal


é, por natureza, incondicional. A mãe ama a criança recém-
nascida, porque é sua filha, e não porque a criança preencha
alguma condição específica, ou corresponda a alguma expecta­
tiva específica. . . O relacionamento do pai é bem diferente.
A mãe é o lar de que viemos, é a natureza, a terra, o oceano;
o pai não representa nenhum lugar natural. Ele tem muito
pouca ligação com o filho nos primeiros dias de vida, e sua
importância para a criança, nesse período inicial, não pode
ser comparada com a da mãe. Mas, embora o pai não repre­
sente o mundo natural, representa o outro pólo da existência
humana: o mundo do pensamento, das coisas-feitas-pelo-
homem, da lei e da ordem, da disciplina, das descobertas e
da aventura. O pai é aquele que ensina a criança, que lhe
mostra o caminho do mundo . . . O amor paterno é um amor
condicional. Seu princípio é: ‘Eu te amo, porque você preen­
che minhas expectativas, porque você cumpre seus deveres,
porque você é como eu.’ . . . Nessa evolução da centraliza-
ção-em-torno-da-mãe para uma centralização-em-torno-do-pai,
e sua síntese final, reside a base da saúde mental e a realiza­
ção da maturidade.”

Se não fosse esse o caso na época em que ele escre­


veu o livro, certamente o seria hoje. O livro de From m
sobre o am or foi traduzido em dezessete línguas, ven­
dendo — como é dito na capa — 1.500.000 exemplares
só em inglês. Mais adiante, eu me ocuparei da natureza
do am or m aternal, que essa citação adota, e do tipo de
danos que esse ideal provoca, tanto na mãe, quanto na
criança. Por ora, tentarei m ostrar apenas de que modo essa
polaridade tradicional se relaciona com o Complexo de
Édipo.

64
Freud, ao contrário de outros, não subestimou o que
se passa com um a criança antes dos seis anos de idade.
Se as necessidades básicas de um a criança são satisfeitas
pela mãe, se é alimentada, vestida e acariciada por ela,
se é am ada “incondicionalmente”, contrariam ente ao am or
“condicional” do pai — ela raram ente o vê e, no caso, só
para ser castigada ou para obter a “ aprovação masculina”
— e se, além disso, sente que ela e a mãe estão unidas
contra o pai mais poderoso, a quem têm que agradar e
satisfazer, então talvez seja verdade que todo homem nor­
mal se identifique primeiro com a mãe.
Quanto a desejar a mãe, sim, isso também é verdade.
M as é absurdo aquilo a que um a leitura literal de Freud
pode levar. A criança não sonha ativamente em pene­
trar a mãe. As possibilidades são de que ela ainda sequer
consiga imaginar como se poderia realizar esse ato. Nem
ela é fisicamente bastante desenvolvida para ter necessi­
dade de um a descarga orgásmica. Seria mais correto ver
essa necessidade sexual de um a m aneira generalizada,
mais negativa: isto é, só mais tarde, devido à estrutura­
ção da família em torno do tabu do incesto, a resposta
sexual deverá se separar dos outros tipos de respostas fí­
sicas e emocionais. Primeiramente, elas aparecem inte­
gradas.
O que acontece aos seis anos, quando se espera do
menino que ele comece a “encorpar” e a agir como um
homenzinho? Palavras como “identificação masculina” c
“imagem do pai” começam a, circular. Os brinquedos
aconchegantes do ano anterior lhe são arrancados. Ele é
levado a jogar futebol. Caminhões e trens elétricos se mul­
tiplicam. Se ele chora, é chamado de “m aricas” ; se corre
para sua mãe, é chamado de “filhinho da m amãe”. O
pai, de repente, começa a se interessar ativamente por
ele ( “Você o estragou com mimos!” ) O menino teme o
pai, com razão. Sabe que, entre os dois, quem tende mais
para o seu lado é a mãe. N a maioria dos casos, ele já ob­
servou bem nitidamente que o pai faz sua mãe infeliz,
fá-la chorar, não fala muito com ela, discute muito com
ela, e a m altrata (é por isso que se ele presenciou uma
relação sexual, provavelmente a terá interpretado com

65
base no que sempre deduziu do relacionamento de seus
pais, isto é, que o pai está atacando a m ãe). Contudo,
subitamente espera-se que ele se identifique com esse es­
tranho, meio animalesco. Naturalm ente, ele não quer.
Resiste. Começa a sonhar com bicho-papão. Começa a
ter medo da sombra. Chora quando vai ao barbeiro.
Pensa que o pai vai cortar-lhe o pênis. Não se com porta
como o homezinho que deveria ser.
Essa é a difícil fase de transição. O que é que, final­
mente, convence a criança norm al a inverter sua identi­
ficação? From m expressa-o muito bem: “Mas embora o
pai não represente nenhum m undo natural, representa o
outro pólo da existência hum ana; o mundo do pensa­
mento, das coisas feitas-pelo-homem, da lei e da ordem,
da disciplina, das descobertas e da aventura. É o pai que
ensina a criança, que lhe mostra o caminho do mundo. . .”
O que finalmente o convence é a promessa do mundo,
quando ele crescer. Ele é solicitado a fazer um a transição
do estado dos sem poder, isto é, as mulheres e as crianças,
para o estado dos potencialmente poderosos, isto é, os
filhos (extensões do ego) de seu pai. A maioria das crian­
ças não é tola. Elas não pretendem ficar presas nas vidas
ruins e limitadas das mulheres. Querem essas descobertas
e essa aventura. Mas isso é difícil. Porque, no íntimo,
desrespeitam o pai, com todo o seu poder. Simpatizam com
a mãe. Mas o que elas fazem então? “Reprim em ” a liga­
ção profundam ente emocional com a mãe, “reprimem” o
desejo de m atar o pai, e ascendem ao honroso estado da
masculinidade.
Não é de adm irar que essa transição deixe um resí­
duo emocional, um “complexo”. Para salvar o próprio
pêlo, o menino teve que abandonar e trair a mãe, e unir-se
a seu opressor. Sente-se culpado. Seus sentimentos pelas
mulheres ficam, em geral, afetados por isso. A maioria
dos homens fez um a transição “gloriosa” para a posição
de domínio sobre os outros; alguns ainda estão tentando.
Outros componentes da teoria freudiana também se
esclarecem, quando examinados à luz do poder, i.e., em
termos políticos. O antídoto do feminismo elimina o pre­
conceito sexual que gerou a distorção inicial.

66
Geralmente, acredita-se que o Complexo de Electra
é uma descoberta menos profunda do que o Complexo de
Édipo, porque, como em todas as teorias de Freud sobre
as mulheres, ele só analisa a mulher como um homem ne­
gativo. O Complexo de Electra, com seu intrincado com­
plexo de castração, em resumo, é o seguinte: a menina,
do mesmo modo que o menino, desenvolve inicialmente
um a fixação pela mãe. Por volta dos cinco anos, quando
descobre que não tem pênis, ela começa a se sentir cas­
trada. P ara compensar, ela tenta aliar-se ao pai, através
da sedução, desenvolvendo, assim, um a rivalidade, e um a
subseqüente hostilidade à mãe. O superego se desenvolve
em reação à repressão do pai. Mas, pelo fato de ser o
objeto da sedução dela, ele não a reprime como reprime
o filho, e, assim, a organização psíquica básica da menina
difere da do irmão; é mais fraca. Diz-se de um a menina
oue persiste em identificar-se intensamente com o pai que
ela regrediu ao estágio “clitoral” da sexualidade feminina.
Provavelmente, será frígida ou lésbica.
A característica mais notável dessa descrição, rea­
firm ada em termos feministas, é que a menina, também,
se vincula primeiramente com a mãe (o que, em si mes­
mo, nega um a heterossexualidade biologicamente deter­
m inada). Do mesmo modo que o menino, a menina tam ­
bém ama à mãe mais do que ao pai, e exatamente pelas
mesmas razões: a mãe cuida dela mais intimamente do
que o pai, e compartilha de sua opressão. Por volta dos
cinco anos, na mesma idade do menino, ela começa a
observar conscientemente o maior poder do pai, seu acesso
a esse mundo mais amplo e interessante, que é negado a
sua mãe. Nesse ponto, ela rejeita a mãe por ser monótona
e familiar, e começa a identificar-se com o pai. A situa­
ção complica-se mais tarde, no caso de ela ter irmãos,
pois, então observa que o pai é mais propenso a permitir
que o irmão participe desse mundo, de seu poder, e, no
entanto, esse mundo ainda lhe é negado. Ela, agora, tem
duas alternativas: 1) Avaliando realisticamente a situação,
pode começar a usar da astúcia feminina, ao máximo, na
tentativa de roubar ao pai o poder (então, terá que com­
petir com a mãe pelos favores do poderoso), ou 2) Pode

67
recusar-se a acreditar que a diferença física entre ela e
seu irmão implique, para sempre, um a desigualdade de
poder correspondente. Nesse caso, ela rejeita tudo que
se identifica com a mãe, i.e., a servidão e a astúcia, a
psicologia do oprimido, e imita obstinadamente tudo que
ela viu seu irm ão fazer, e que possibilitou a ele o tipo de
liberdade e aprovação que ela busca. (Observe-se que eu
não digo que ela finja uma masculinidade. Essas carac­
terísticas não são determinadas sexualmente.) Mas, em­
bora tente desesperadamente ganhar os favores do pai,
comportando-se cada vez mais do modo como ele aber­
tamente incentivou o irmão a se comportar, isso não
surte efeito para ela. Ela tenta com m aior empenho ainda.
Passa a se com portar como um moleque — e gosta de
ser chamada assim. Essa obstinação face a um a realidade
ofensiva pode até dar resultado. P or algum tempo. Até a
puberdade, talvez. Então ela ficará totalmente sem ação.
Não poderá mais negar o sexo. Ele é confirmado pelos
homens cheios de desejo a sua volta. É nesse momento que
ela, geralmente, desenvolve um a identificação feminina,
com um a vingança. (As adolescentes tão “difíceis” , “cheias
de segredinhos e risinhos” ; no caso dos meninos, essa é
a fase da pirralhice im portuna.)
Quanto à “inveja do pênis”, mais uma vez é mais
prudente vê-la como uma metáfora. Mesmo quando existe
uma preocupação real com os órgãos genitais, é evidente
que qualquer coisa que distinga fisicamente o homem inve­
jado, será invejada. Pois a menina não pode, realmente,
compreender como é que, se ela faz exatamente a mes­
ma coisa que seu irmão, o com portamento dele é apro­
vado e o dela não. Ela pode ou não estabelecer um a rela­
ção confusa entre esse comportamento e o órgão que di­
ferencia o irmão. Sua hostilidade em relação à mãe, mais
um a vez, só pode ser compreendida se ligada a um a si­
milaridade genital observada: tudo que a identifica com a
mãe, e que ela, ião inflexivelmente, tenta rejeitar, é tam ­
bém rejeitado. M as é muito menos provável uma menina,
por sua própria vontade, atribuir-se o mesmo sexo da
mãe do que ver-se como assexuada. Ela pode até orgu­
lhar-se disso. Afinal, não tem protuberâncias óbvias, como

68
os seios que m arcam a feminilidade de sua mãe. E,
quanto aos órgãos genitais, seu buraquinho inocente p a­
rece não ter nenhum a semelhança com a floresta cabeluda
que a mãe tem. R aram ente ela sabe sequer que ela tem
uma vagina, porque ela está vedada. Seu corpo, até agora,
c tão ágil e funcional quanto o do irmão, e ela está em
harm onia com ele. E la e o irmão são apenas dois seres
oprimidos pela maior força dos adultos. Sem ter uma
orientação específica, ela pode iludir-se, durante um longo
tempo, de que não acabará por ficar como a mãe. É por
isso que ela é tão incentivada a brincar com bonecas, a
brincar de “casinha”, a ser bonita e atraente. Espera-se
que ela não seja um a das que recusam seu papel, até o
último minuto. Espera-se que ela logo se ajuste a ele
artificialmente, pela persuasão, e não por necessidade;
que a promessa abstrata de um bebê seja um chamariz su­
ficiente para substituir aquele mundo excitante de “des­
cobertas e aventura.” (O mercado de bonecas, em ex­
pansão, capitaliza essa ansiedade parental. No que tange
à criança, ela gosta de presentes, independentemente de
quais sejam as intenções obscuras dos desejos adultos. No
entanto, logo que elas compreendem para que servem as
bonecas, muitas meninas espertas rapidamente decidem
que querem um tipo diferente de brinquedo, ou, pelo
menos, um a boneca “Barbie”.* Afinal, elas preferem
afiar suas garras contra “K en” ** do que representar o
papel da M amãe já-conformada.
À luz dessa interpretação feminista, muitas doutrinas
freudianas periféricas, que pareciam absurdas, agora pas­
sam a fazer sentido. Por exemplo, Ernest Jones, em
Papers on Psychoanalysis:
“Em muitas crianças existe um vivo desejo de se torna­
rem os pais de seus próprios pais. . . Essa curiosa construção
da imaginação. . . evidentemente está estreitamente relacio­
nada com os desejos incestuosos, uma vez que ela é uma forma
exagerada do desejo plebeu de ser o próprio pai de si mesmo.”

* Chama-se Barbie a boneca cujo corpo apresenta as características


sexuais do sexo feminino. (N .T.)
*“ Chama-se Ken ao boneco de sexo masculino, representado rapazinho,
mas sem pênis. (N .T.)

69
Tradução feminista: A fantasia das crianças, estando
num a posição de poder acima dos pais, domina particular­
mente a única pessoa que realmente alcançou o poder:
o Pai.
Ou Freud, falando sobre o fetichismo:
fe*
“O objeto é o substituto do falo da mãe, que o menino
acredita estar embutido, e do qual não deseja privar-se.”

Realmente, Freud pode tornar-se embaraçador. Não


seria muito mais sensato falar do poder da mãe? As pro­
babilidades são de que o menino nem mesmo tenha visto
a mãe nua, muito menos que tenha observado de perto
a diferença entre o pênis e a vagina. O que ele realmente
sabe é que está ligado a sua mãe, e não quer rejeitá-la,
sob o pretexto de ela não ser poderosa. O objeto esco­
lhido é meram ente o símbolo desse vínculo.
Existem muitos outros desses exemplos, mas eu já
cheguei ao ponto que queria. Através de um a análise fe­
minista, toda a estrutura do freudismo — pela prim eira *
vez — adquire pleno sentido, esclarecendo-se até as im­
portantes áreas, relacionadas entre si, da homossexuali­
dade, e da própria natureza do repressivo tabu do incesto
— dois assuntos intimamente relacionados, que foram I
elaborados, duraate longo tempo, alcançando muito pouca
unanimidade. Podemos compreendê-los, finalmente, ape­
nas como sintomas da psicologia do poder criada pela
família.
Durkheim, como Freud, na virada do século, com
seu trabalho fundamental sobre o incesto, gerou um con­
junto de opiniões contraditórias, que perduraram até hoje.
Durkheim acreditava que o tabu do incesto originara-se
na estrutura do clã:

“[Muitos fatos tendem a provar] que, no início das so­


ciedades humanas, o incesto não foi proibido, até haver uma
divisão em pelo menos dois clãs fundamentais; pois a pri­
meira forma dessa proibição que nós conhecemos, chamada I'
exogamia, parece, acima de tudo, ser correlata a essa orga­
nização. A mais recente dessas formas certamente não é
primitiva.”

70
E além disso:

“Como a estrutura básica do clã foi um estágio pelo qual


todas as sociedades humanas parecem ter passado, e a exo­
gamia esteve estritamente ligada à constituição do clã, não
é surpreendente que o estado moral que o clã inspirou e dei­
xou para trás fosse, ele próprio, comum a toda a humanidade.
Pelo menos, ele foi necessário para triunfar sobre ela, e para
ter particularmente pressionado as necessidades sociais; e isso
explica tanto como o incesto foi legitimado, quanto porque
esses povos continuaram sendo uma exceção.”

Quando a família se tornou o centro do moralismo


religioso, e todas as paixões livres foram banidas de seus
limites, am arradas às mulheres e ao sexo, o tabu contra
o incesto adquiriu bases estáveis e perpétuas.

“na época em que as origens dessa dualidade (entre mo­


ralidade e paixão) desapareceram, ela já estava firmemente
enraizada na cultura. Toda a vida moral tinha sido organi­
zada como resultado desse desenvolvimento; teria sido neces­
sário destruir toda a moralidade para voltar ao estágio ante­
rior.”

Durkheim acrescenta, maravilhosamente: “Se não se


tivessem originado na exogamia, a paixão e o am or entre
os sexos não se teriam tornado sinônimos.” Isto é: para
eliminar o tabu do incesto, teríamos que eliminar a fa­
mília e a sexualidade, como elas são hoje estruturadas.
Isso não seria uma idéia ruim. Pois esta proscrição
tradicional, e hoje quase universal, do incesto nos levou
a aceitar como “norm al” um a sexualidade, onde o poten­
cial individual permanece insatisfeito. Freud descreveu os
castigos psicológicos da repressão sexual, provocados pelo
tabu do incesto, descobrindo, particularm ente, a existên­
cia do Complexo de Édipo em todo menino normal, e a
de seu correlativo, Electra, em toda menina normal.
A homossexualidade é apenas aquilo que acontece
quando essas repressões não “têm êxito” como deviam
— isto é, em vez delas serem suprimidas completamente,
permitindo ao indivíduo pelo menos funcionar dentro da

71
sociedade, permanecem na superfície, danificando seria­
mente o relacionamento sexual do indivíduo, ou até sua
psique total. Está fadado a falhar quase sempre um sis­
tem a no qual a prim eira pessoa a quem a criança res­
ponde emocionalmente exigirá dela que reprima um a parte
substancial dessas respostas. E, como R uth Hirschberger
observou em A d a m ’s Rib:
“É significativo que a mesma mulher que despertou o
afeto do menino (e poucas negam o componente sexual em
plena expansão) é, também, a primeira a divulgar o tabu con­
tra sua sexualidade. . . A supressão da sexualidade torna-se
o requisito para a afeição da mãe.”

Ora, a homossexualidade masculina provém da recu­


sa da criança, aos cinco ou seis anos, de efetuar a transi­
ção da “centralização-em-torno-da-mãe” para a “centrali-
zação-em -torno-do-pai” — geralmente uma transição de
um estado de amor genuíno pela mãe e desrespeito real
pelo pai. (Nos casos em que não há figura paterna, essa
transição não é claramente exigida da criança. M uitas
vezes, é verdade, dada a guerra entre os sexos que existe
na maioria dos casamentos, a mãe incentiva essa vin-
culação-por-despeito, para vingar-se do pai, negando-lhe
a progenitura, único motivo pelo qual ele a tolera. Mas
penso que seria bem mais exato dizer que a criança sim­
plesmente substituiu, nos afetos da mãe, o pai indiferente
e, geralmente, nam orador. Toda mãe, mesmo as mais
“ ajustadas” , espera fazer da m aternidade o foco central
da vida. Geralmente, o filho é o único substituto que ela
encontra para tudo aquilo que lhe foi negado no mundo
em geral, nos termos de Freud, o substituto de seu “pênis”.
Como podemos então exigir que ela não seja “possessiva”,
que ela renuncie subitamente, sem lutar, ao próprio filho
que estava destinado a compensá-la da eterna perda desse
mundo, entregando-o ao mundo de “descobertas e aven­
tura”?
Em bora também se origine da repressão fracassada
(dessa vez do Complexo de E lectra), a homossexuali­
dade é consideravelmente mais complicada. Lembrem-se
de que a menina também se vincula inicialmente à mãe.

72
Ela pode, devido à rivalidade posterior, nunca aprender
i a reprimir esse vínculo. Ou pode tentar agir como um
menino, para ganhar a aprovação da mãe (infelizmente,
as mulheres também preferem os m eninos). Inversamente,
nos casos em que ela se identifica intensamente com o
i pai, ela pode recusar-se a renunciar ao desejado privilégio
masculino, mesmo depois da puberdade. Em casos extre­
mos, ela imagina ser realmente o homem, cujo papel está
representando.
E mesmo as mulheres que parecem sexualmente ajus­
tadas, raram ente o são, na verdade. Devemos nos lem­
brar que uma mulher pode ter relações sexuais sem sentir
nada; um homem não pode. Em bora poucas mulheres, por
causa da pressão exercida sobre elas para que se confor­
mem com sua situação, realmente repudiem seu papel
sexual completamente, tornando-se lésbicas ativas, isso
não significa que a maioria das mulheres se satisfaça se­
xualmente nas relações com os homens. (Contudo, a
sexualidade danificada das mulheres é relativamente ino­
fensiva em termos sociais; ao passo que a doença sexual
masculina, ou seja, a confusão da sexualidade com o
poder, prejudica os outros.) Essa é um a das razões pelas
quais na sociedade vitoriana, bem como durante um longo
período antes e depois dela, e inclusive hoje, o interesse
das mulheres pelo sexo é menor do que o dos homens.
Esse fato é tão desconcertantemente óbvio que levou um
conhecido psicanalista, Theodore Reik, a concluir, em
1966, “que o próprio impulso sexual é masculino, até
mesmo nas mulheres, porque, num nível de evolução infe­
rior, a reprodução é possível sem os machos.”
Desse modo, vemos que na sociedade baseada na fa­
mília as repressões originadas no tabu do incesto tornam
impossível uma sexualidade plenamente satisfeita para
qualquer pessoa, e possível só para poucos uma prática se­
xual satisfatória. Os homossexuais de nossa época são
apenas as maiores vítimas do sistema de sexualidade re­
primida que se desenvolve na família. Mas, embora a ho­
mossexualidade hoje seja tão limitada e doentia quanto
nossa heterossexualidade, breve chegará o dia em que a
transexualidade saudável será a norma. Pois, se admitimos

73
que o impulso sexual é, desde o nascimento, difuso e in-
diferenciado da personalidade global, e, como vimos, só
se torna diferenciado em resposta ao tabú do incesto; e
se, além disso, admitimos que o tabú do incesto é hoje
necessário apenas para preservar a família; então, se
destruirmos a familia, estaremos, na verdade, destruindo
as repressões que moldam a sexualidade em estruturas es­
pecíficas. Sendo iguais todos os tipos de sexualidade, as
pessoas poderão ainda preferir indivíduos do sexo oposto,
simplesmente porque isto é fisicamente mais conveniente.
Mas até isso não passa de uma enorme suposição. Por­
que se a sexualidade em nenhum momento estivesse sepa­
rada das outras respostas, e se um indivíduo respondesse
ao outro de um modo total, que incluísse a sexualidade
meramente como um dos componentes de sua resposta,
então é pouco provável que um fator puramente físico
pudesse ser decisivo. Contudo, não temos nenhum meio
de saber disso agora.
O fim da diferenciação entre o nível sexual e a per­
sonalidade total poderia também ter implicações cultu­
rais importantes. Atualmente, o Complexo de Édipo,
originário do hoje quase universal tabu do incesto, requer
que a criança cedo distinga o “ emocional” do “sexual” .
Um é considerado pelo pai como um a resposta apropria­
da para a mãe; o outro, não. Se a criança quiser ganhar
o am or da mãe, deve separar o sentimento sexual de seus
outros sentimentos (a “sublimação” e as “relações inibi­
das quanto ao alvo” de F reud). Um desenvolvimento
cultural que provém diretamente dessa dicotomía psico­
lógica artificial é a síndrome mulheres boas/m ulheres
más, com a qual culturas inteiras ficaram doentes. Isto é,
a divisão da personalidade é projetada na classe das “mu­
lheres” : as que se assemelham com a mãe são “boas” , e,
conseqüentemente, não se deve ter desejos sexuais por
elas; as que não se assemelham com a mãe, que não sus­
citam um a resposta total, são sexuais, e, portanto, “m ás”.
Classes inteiras de mulheres, p.ex., as prostitutas, pagam
com a vida por essa dicotomía; outras sofrem em graus
diferentes. Um a boa parte de nossa linguagem é designada
p ara degradar as mulheres até o nível em que é permissí-

74
vel ter desejos sexuais por elas. ( “Puta! Tua cabeça
f está entre as tuas pernas!” ) Essa esquizofrenia sexual
raram ente é superada de todo pelo indivíduo. E, na cultu­
ra em geral, desenvolvimentos históricos inteiros, como
a própria história da arte e da literatura, foram direta-
1 mente por ela. Assim, a honra cortesa da Idade M édia,
que exaltava as mulheres, exclusivamente à custa de sua
hum anidade consanguínea — fazendo do sexo um ato
baixo, desligado do am or verdadeiro — desenvolveu-se
no maneirismo, o culto da virgem na arte e na poesia.
Um a canção da época ilustra a divisão:

Eu não me interesso por estas damas


Que podem ser louvadas e decantadas,
Tragam-me a gentil Açucena,
A livre rapariga do campo,
A Natureza despreza a Arte,
Ela tem um a beleza própria,
Pois quando a acariciamos em suas pétalas ela
[exclama
“Oh, céus, deixe-me” ,
Mas quando lhe tocamos o miolo
, Ela nunca dirá não.*

A separação entre sexo e emoção está na própria


base da cultura e da civilização ocidentais. Se a primeira
repressão sexual é o mecanismo básico pelo qual as estru­
turas de caráter que sustentam a servidão política, ideoló­
gica e econômica são produzidas, um fim ao tabu do
incesto, através da abolição da família, poderia ter efeitos
profundos. A sexualidade seria liberta de sua camisa-de-

* No original:
I care not for these ladies
W ho must be wooed and prayed,
Give me kind Amaryllis,
The wanton country maid,
I ’ N ature A rt disdaineth,
Her beauty is her own,
F or when we hug and kiss she cries
“ Forsooth, let us go”
But when we come where comfort is
She never will say no.

75
força, vindo erotizar toda nossa cultura, m udando a sua
própria definição.
* * *

Sintetizando brevemente meu segundo ponto-de-vis­


ta, de que Freud e o feminismo lidaram com o mesmo
m aterial: a hipótese básica de Freud, a natureza da libi­
do e seu conflito com o princípio de realidade, faz muito
mais sentido, quando vista em oposição ao pano de fundo
social da família (nuclear patriarcal). Tentei reanalisar,
em termos feministas, aqueles componentes da teoria de
Freud que se relacionam mais diretamente com o siste­
ma familiar: o tabu do incesto e os conseqüentes Com ­
plexos de Édipo e de Electra, e sua falha comum em
causar um mau funcionamento sexual, ou, em casos gra­
ves, o desvio sexual de hoje. Salientei que essa repressão
sexual requeria de todo indivíduo que, em benefício da
integridade familiar, contribuísse não só para a neurose
individual, mas também para a doença cultural corrente.
Está além do objetivo deste capítulo qualquer coisa
que seja mais do que um esboço de apresentação. Uma
reexposição de Freud, em termos feministas, constituiria,
por si só, um livro valioso. Neste capítulo, eu apenas
sugeri que o freudismo e o feminismo surgiram na mes­
ma época, em resposta aos mesmos estímulos, e que,
essencialmente, eles são feitos da mesma matéria. Exa­
minando os princípios básicos do freudismo, mostrei que
eles são, também, a m atéria-prima do feminismo. A di­
ferença reside apenas no fato de que o feminismo radical
não aceita que o contexto social, no qual a repressão
(e, conseqüentemente, a neurose) se desenvolve, seja
imutável. A submissão do prazer à realidade, i.e., à re­
pressão sexual, não continuará necessariamente, se elimi­
narmos a família (biológica).

2. O Freudismo Classifica o Feminismo

Às duas idéias principais deste capítulo, primeiro,


a de que o freudismo e o feminismo originaram-se das

76
mesmas condições históricas, e segundo, a de que o freu-
, dismo e o feminismo baseiam-se no mesmo conjunto de
realidades, acrescentarei uma terceira: o freudismo clas­
sificou o feminismo como o menos importante de dois
males.
> M ostramos como o freudismo tocou no mesmo pon­
to crucial do feminismo. Ambos, simultaneamente, foram
respostas a séculos de um a crescente privatização da vida
familial, com extrema submissão das mulheres, e com
as repressões sexuais e as neuroses subseqüentes, ge­
radas por essa situação. Fieud também foi considerado,
em tempos passados, um maníaco sexual, um destrutivo,
para a sociedade. Ele foi tão ridicularizado e menospre­
zado quanto o foram as militantes feministas. Só muito
mais tarde é que o freudismo se tornou tão sagrado quanto
uma religião estabelecida. De que modo essa inversão se
processou?
Consideremos, primeiro, o contexto social do desen-
( volvimento do freudismo e do feminismo. Vimos que as
idéias das primeiras feministas radicais continham os ger­
mes da revolução sexual vindoura. Vimos que, embora
em muitos casos as próprias feministas não tenham com­
preendido claramente a importância daquilo em que ti­
nham esbarrado, embora, freqüentemente, não tivessem
formulado um a crítica radical feminista da sociedade que
fosse completa e consistente — e isto não é de surpreen­
der, dado o clima político da época — a reação da so­
ciedade contra elas indica que seus inimigos sabiam o
que elas queriam, mesmo que elas próprias não estives­
sem seguras disso. A virulenta literatura antifeminista da
época, geralmente escrita por homens respeitáveis e ho­
nestos em suas próprias áreas de empenho, ilustra a
ameaça que as feministas representavam para o estabe­
lecimento. Também mostrei, no capítulo anterior, como
o movimento foi redirigido, num esforço exaustivo para
obter o voto, e como, desse modo, ele foi desviado e
destruído. Seguindo-se ao fim do movimento feminista,
com a obtenção do direito ao voto, surgiu a era das
“m elindrosas”, um a era que lembra muito a nossa, na
sua sexualidade pseudoliberada. A rebelião feminina mui-

77
to difundida, provocada pelo movimento feminista, não
tinha nesse momento nenhum rumo a seguir. As mulhc- ,
res que tinham cortado o cabelo, encurtado as saias e
entrado para a universidade, não encontravam um sen­
tido político para sua frustração; em vez disso, elas se
extravasavam em m aratonas, ou se consumiam cruzando *
a nado o Canal da M ancha e pilotando aviões, através
do Atlântico. Eram uma classe ativa, que não sabia o
que fazer com a consciência. Diziam-lhes, como ainda
nos dizem: “Vocês conseguiram direitos civis, saias cur­
tas, e liberdade sexual. Vocês venceram a sua revolução.
O que mais querem?” Mas a “revolução” tinha sido ga­
nha dentro de um sistema organizado em torno da fa­
mília nuclear patriarcal. E, como H erbert M arcuse mos­
tra em Eros e Civilização, dentro dessa estrutura repres­
siva só pode resultar uma repressão mais sofisticada
( “dessublimação repressiva” ).

“Numa sociedade repressiva, a felicidade e o desenvol­


vimento produtivo do indivíduo estão em contradição com a
sociedade; se eles são definidos como valores a serem reali­
zados dentro da sociedade, eles próprios se tornam repressi­
vos . . . 10 conceito de dessublimação repressiva significa] a
liberação da sexualidade nos modos e formas que reduzem
e enfraquecem a energia erótica. Nesse processo, a sexualida­
de se abre a dimensões e relações anteriormente proibidas.
Contudo, em vez de ela recriar essas dimensões e relações â
semelhança do Princípio da Realidade, a tendência oposta
faz valer seus direitos: o Princípio da Realidade estende seu
poder sobre Eros. O exemplo mais vigoroso disso é fornecido
pela introdução metódica da eroticidade no comércio, na po­
lítica, na propaganda, etc.”

N a década de vinte criaram-se os estereótipos da


“moça que trabalha fora e faz carreira” (career girl), da
“ aluna de colégio misto” ( coed) e da mulher-de-negó-
cios “m achona” . Essa imagem da mulher supostamente
“liberada” circulou pelo mundo, via Hollywood. Os efei­
tos desproporcionais da pseudoliberação sobre as mulhe­
res deram aos antifeministas um novo material de com­
bate, e, posteriormente, favoreceram a resistência das so-

78
ciedades, que ainda declaravam abertam ente a suprema­
cia masculina, em pôr “suas” mulheres em liberdade.
( “Amamos nossas mulheres do jeito como elas são: fe­
mininas”). Os recrutas americanos voltaram da Segunda
Guerra M undial com histórias dessas grandes mulheres
continentais, que ainda sabiam como fazer um homem
se sentir bem. A palavra castração começou a circular.
E, finalmente, na América, na década dos quarenta, o
freudismo assumiu um lugar importante.
Enquanto isso, o freudismo tinha sofrido profundas
mudanças internas. A ênfase na teoria psicanalítica des­
locou-se para a prática clínica. No capítulo final de Eros
e Civilização, M arcuse discute as implicações reacioná­
rias dessa mudança. M ostra como a contradição entre as
idéias de Freud e a possibilidade de qualquer “terapia”
eficaz baseada nelas acabou causando a assimilação da
teoria pela prática, para adaptar-se a ela — a psicanálise
não pode realizar a felicidade do indivíduo num a socie­
dade, cuja estrutura só pode, no máximo, tolerar uma
felicidade individual, que seja rigorosamente controlada.

“Os conceitos mais especulativos e “metafísicos”, não su­


jeitos a verificação clínica . . . foram depreciados e descartou-
se deles completamente. Além disso, nesse processo, alguns
dos conceitos mais decisivos de Freud (como a relação entre
o id e o ego, a função do inconsciente, e o alcance e o signi­
ficado da sexualidade) foram redefinidos de um modo tal,
que seu conteúdo quase foi eliminado. . . Os revisionistas
converteram o enfraquecimento da teoria de Freud numa
nova teoria.”

O termo que, talvez, melhor caracterize esse revi­


sionismo neofreudiano seja “adaptação”. Mas, adaptação
a quê? A suposição básica é de que devemos aceitar a
realidade na qual nos encontramos. M as, o que acontece
se formos uma mulher, um negro, ou um membro de
qualquer outra classe da sociedade especialmente infor­
tunada? Nesse caso, somos duplamente desgraçados. Pois
então, não só devemos atingir um a norm alidade que, até
para os privilegiados, é, como vimos, na melhor das hi­
póteses,~ difícil e precária, como também devemos nos

79
“ adaptar” ao racismo ou ao sexismo específicos que limi­
tam nossa potencialidade, desde o início. Deve-se aban­
donar todas as tentativas de autodefinição _ou autodeter­
minação. Assim, na visão de Marcuse, o processo da te­
rapia torna-se, meramente, “um caminho para a resigna­
ção”. Pois, como na freqüentemente citada afirmação de
Freud a um paciente seu (Estudos sobre a Histeria,
1895), “ [M uito se ganhará se conseguirmos, através da
terapia] transform ar o seu sofrimento histérico na infe­
licidade cotidiana.”
E, como podem atestar todos os que foram subme­
tidos à terapia, esta é exatamente a situação real. A des­
crição que Cleaver faz de sua análise, em Soul on Ice,
fala também da experiência de qualquer outra pessoa
oprimida:

“Tive várias seções com um psiquiatra. Sua conclusão


foi que eu odiava minha mãe. Como chegou a essa conclu­
são, eu nunca saberei, porque ele não sabia nada de minha
mãe, e, quando me fazia perguntas, eu lhe respondia com
mentiras absurdas. O que me revoltou contra ele foi o fato
de que ele tinha me ouvido denunciar os brancos, entretanto,
toda vez que isso acontecia, ele deliberadamente trazia de
volta a conversa para minha vida familiar, para minha infân­
cia. Isto, em si mesmo, era correto, mas ele, deliberadamente,
bloqueou todas as minhas tentativas de trazer à tona a ques­
tão racial, e deixou claro que não estava interessado em mi­
nhas atitudes com relação aos brancos. Essa era uma caixa
de Pandora que ele não estava interessado em abrir.”

Theodore Reik, talvez o protótipo do Freud de con­


versa de botequim, exemplifica a obtusidade e a insensi­
bilidade da maioria dos psicanalistas para os problemas
reais de seus pacientes. É extraordinário que, com tantos
escritores que falam das diferenças emocionais entre os
homens e as mulheres, Reik nunca tenha descoberto a
diferença objetiva entre as suas situações sociais. Por
exemplo, ele observa, de passagem, diferenças como as
que se seguem, sem sequer esboçar conclusões adequadas:

80
“As meninas, de vez em quando, cochicham umas para as
outras: “Os homens fazem” isso ou aquilo. Os meninos nunca
se referem às mulheres desse jeito.”
“Uma mulher dá muito mais valor ao fato de ser mu­
lher, do que um homem ao fato de ser homem.”
“A maioria das mulheres, quando pede um favor a um
homem, sorri. Na mesma situação, os homens raramente
sorriem.”
“Ser um dândi [laciies’ man] significa ser menos homem.”
“Quase todas as mulheres têm medo de que o homem
que elas amam a deixe. Mas dificilmente um homem tem
medo que uma mulher o deixe.”
“As mulheres, quando em grupo, às vezes dizem: “Meu
mestre e senhor deixou-me sair de casa esta noite.” Os ho­
mens dizem, referindo-se a elas: “Meu fardo”.”

Eis aqui um exemplo casual dessas contribuições


neofreudianas à compreensão da sexualidade:

“A primeira impressão que temos de uma jovem que en­


tra numa sala cheia de pessoas é a de uma insegurança enco­
berta ou bem-disfarçada. Parece que ser possuidor de um
pênis protege completamente os homens dessa percepção.”
“Os homens não estão à vontade no universo, e, por isso,
têm que explorá-lo. As mulheres que fabricam a série de
todos os seres orgânicos, estão à vontade no mundo, e não
sentem ânsia em descobrir tudo sobre ele.”
“A mim me parece que a investigação psicanalítica que
enfatiza o sentimento de deficiência física que a menina expe­
rimenta na região genital descuidou do valor estético dessa
deficiência e de seu significado no desenvolvimento da atitude
feminina. Suponho que a menina que compara seu órgão
genital com o do menino acha feios os seus órgãos. Não só
a maior modéstia das mulheres, mas também seu incessante
esforço para embelezar e cultuar seus corpos, devem ser en­
tendidos como um deslocamento e uma extensão de seu es­
forço para compensar sua impressão original de que seus ór­
gãos genitais são feios.”
“Acredito que o asseio tem uma dupla origem: a pri­
meira, nos tabus das tribos, e a segunda, provinda de milha­
res de anos, a saber, a consciência das mulheres de seu cheiro
próprio, especificamente os cheiros ruins causados pela secre­
ção de seus órgãos genitais.”

81
Eis um a típica interpretação terapêutica:

“[Uma paciente tinha medo de mostrar-me seu livro.]


Então, ocorreu-me: essa paciente, que tinha revelado, durante
a transferência anterior, indícios claros de um amor transfe­
renciai em relação a mim, agora age como se o livro fosse
um filho que ela tivesse tido de mim. Age como uma mulher
que tem que mostrar, pela primeira vez, seu filho ao marido.
Tem medo de que ele possa não gostar do bebê recém-nas­
cido.”

Lê-se como um livro de anedotas freudianas.


Em contraste com isso, as pacientes de R eik geral­
mente se mostraram comovedoramente perceptivas, e até
brilhantem ente perspicazes. Elas estavam em muito maior
sintonia com a realidade de sua situação do que ele ja­
mais foi capaz de estar:

“Uma mulher parece incapaz de expressar seus fortes sen­


timentos negativos e expressa essa sua incapacidade numa ses­
são psicanalítica: ‘Tenho medo de mostrar essas emoções,
porque se eu o fizesse, seria como abrir uma caixa de Pan­
dora . .. Tenho medo que minha agressividade destruísse
tudo’.”
“Antes de ela sair, levei-a até a janela, e mostrei-lhe as
lojas ao longo da rua, e seus anúncios em letras de neon, e
disse: ‘Esse não é um mundo das mulheres?’ Mas ela não
ficou impressionada com isso, e replicou: ‘Desça Wall Street
e você compreenderá que esse é um mundo dos homens’.”
“[Uma paciente observa que] Os homens são estranhos.
Eles não nos permitem ser apenas mulheres, eu quero dizer,
mulheres com toda a sua franqueza; mas eles, nem por um
momento, nos deixam esquecer de que somos apenas mu­
lheres”.”

Como podem essas mulheres suportar a estúpida mi­


soginia de Reik? N a verdade, elas não o conseguem:

“Quando disse a uma paciente quarentona que ela tinha


querido ser um menino, como seu irmão, ela começou a me
amaldiçoar e a me injuriar, dizendo: ‘Foda-se!’ e ‘Vá para o
inferno!’, e outras expressões impróprias para uma senhora.”

82
Mas o doutor acaba vencendo:
“Quando chegou a hora de ir embora, ela demorou-se um
pouco mais do que o habitual defronte ao espelho de minha
ante-sala, arrumando os cabelos. Eu observei, sorrindo: ‘Estou
feliz de ainda ver um vestígio de feminilidade’.”
Eis algumas outras reações femininas:
“Quando você me ouve durante um longo tempo, sem
dizer nada, eu geralmente tenho a impressão de que o que
eu digo é uma dessas coisas bobas e sem valor das mulhe­
res. É como se você achasse que não vale a pena falar co­
migo.”
“Uma mulher, criticando seu psicanalista: ‘Até a sua es­
pontaneidade é artificial!’
“A paciente ficou calada por um período mais longo do
que o habitual, e depois disse: ‘Porra! Eu não sei porque estou
aqui! Foda-se você!’
N ão é que essas mulheres não estivessem conscien­
tes de sua situação. Ao contrário, elas estavam no con­
sultório de Reik, por causa de sua consciência. Não h a­
via outro meio de lidar com a sua frustração, porque
não há meio de lidar com ela, a não ser pela revolução.
Chegamos, agora, ao nosso ponto crucial: a im por­
tação do freudismo para que o fluxo do feminismo fosse
freado. Nas décadas de vinte e trinta, as mulheres des­
cobriram-se eqüidistantemente próximas e afastadas de
seus papéis tradicionais. Conseqüentemente, elas não es­
tavam nem isoladas e protegidas do mundo, como antes,
nem aparelhadas para enfrentá-lo. Ambas as suas vidas,
pessoal e profissional, sofriam com isso. Sua frustração
freqüentem ente assumia formas histéricas, complicadas
pelo fato de que elas eram desprezadas em todo o mun­
do, até pela pequena falsa liberação que tinham alcan­
çado. A perplexidade das massas com relação a elas le­
vou-as, em bandos, para os psicanalistas. E de onde ti­
nham vindo os psicanalistas? Nessa época, havia uma
guerra na Europa, e grande parte da intelligentsia alemã
e austríaca tinha-se instalado nos Estados Unidos, em
busca de um a prática. Ali era o lugar ideal. Toda uma
classe de pessoas sofredoras os aguardava. E não eram

83
som ente uns poucos entediados, mulheres ricas sorvidas
pela nova religião. Pois a América estava sofrendo vá­
rias limitações, p o r deter um a revolução sexual que já
estava bem longe dos estágios iniciais. Surgiram livros
com títulos do tipo deste: Como V iver com um Neuró­
tico (porque essa classe oprim ida está sempre lá na sua
cozinha choram ingando, queixando-se e resm ungando).
Logo, os hom ens tam bém apareceram nos psicanalistas.
B em -educados, cidadãos responsáveis, de modo algum
psicóticos. E as crianças também. Inauguraram -se cam­
pos inteiram ente novos para atender ao afluxo: psicolo­
gia infantil, psicologia clínica, terapia de grupo, serviços
de aconselham ento matrimonial. Q ualquer variante que
você possa im aginar, mencione um nome, e verificará
que já existe. E nenhum a delas foi suficiente. A dem an­
da multiplicou-se mais rápido do que se puderam abrir
novos departam entos nas universidades.
N ão é de surpreender que esses novos departam en­
tos fossem logo preenchidos pelas mulheres. M assas de
m ulheres, em busca de alguma coisa, estudaram apaixo­
nadam ente psicologia, n a esperança de descobrir um a so­
lução p ara seus “grilos” . M as, as mulheres que se tinham
to rnado interessadas em psicologia só porque sua m atéria
tocava-lhes nos problem as mais íntimos, logo começaram
a vom itar jargões sobre o ajuste m atrim onial e sobre as
responsabilidades do papel sexual. Os Departam entos de
Psicologia transform aram -se em centros de recuperação
p ara rapidam ente tom arem as mulheres de novo ajusta­
das a seus papéis tradicionais de esposas e de mães. As
m ulheres que persistiram em exigir profissões de carreira
tornaram -se, p o r sua vez, instrumentos do sistema edu­
cacional repressivo. Seus novos insights psicológicos —
com o aquele balbució de Psicologia Infantil, de Assistên­
cia Social, e de Educação Elem entar — serviram para
reprim ir um a geração nova de mulheres e de crianças.
A psicologia tom ou-se reacionária em sua essência, ten­
do sido corroído o seu potencial como um a disciplina
séria pela utilidade dela para os que estavam no poder.
E a Psicologia não foi a única disciplina que se
corrom peu. A Educação, o Serviço de Assistência Social,

84
a Antropologia, todas as disciplinas relacionadas às ciên­
cias do comportamento permaneceram, durante anos,
pseudociências, sobrecarregadas com uma dupla função:’
a doutrinação das mulheres, bem como o estudo do com­
portam ento “hum ano”. Escolas de pensamento reacioná­
rias se espandiram. A Ciência Social tornou-se “funcio­
nal”, estudando o funcionamento das instituições dentro
do sistema de valores estabelecido, promovendo, assim,
a aceitação do status quo.
Não é de surpreender que estes campos tenham per­
manecido “campos femininos”. Os homens logo partiram
para a ciência “pura” (exclusivamente masculina). As
mulheres, ainda semi-instruídas, atemorizadas com a re­
cente admissão na universidade, ficaram chafurdando na
merda pseudocientífica. Pois além da função de doutri­
nação as ciências do comportamento serviram de represa
para impedir as hordas contestadoras das nouveaux intel-
lectuelles de serem admitidas nas ciências “verdadeiras”
— a física, a engenharia, a bioquímica, etc., ciências que,
num a sociedade tecnológica, mantêm uma relação cada
vez mais direta com os dirigentes dessa sociedade.
Em conseqüência, até o acesso à educação de um
nível mais elevado, uma das poucas vitórias do primiti­
vo W.R.M., foi subvertida. Geralmente, a única diferen­
ça entre a dona-de-casa moderna, instruída na universi­
dade, e seu protótipo tradicional está na gíria que esta
usava para descrever o seu inferno conjugal.
* * *

Em suma, a teoria freudiana, repolida, em função


de sua nova função de “adaptação social”, foi usada para
exterminar a revolta feminista. Remendando com band-
aids as feridas abertas pela revolução feminista abortada,
ela conseguiu apaziguar a enorme inquietação social e a
confusão de papéis que se sucederam ao primeiro ataque
contra a rígida família patriarcal. É duvidoso que a re­
volução sexual tivesse permanecido paralisada, a meio-
caminho, durante metade de um século, sem a sua ajuda;
pois os problemas despertados pela primeira onda de fe­

85
minismo ainda não estão resolvidos hoje. D. H. Lawren-
ce e Bernard Shaw não são hoje menos importantes do
que foram em sua própria época. A Revolução Sexual
de Wilhelm Reich poderia ter sido escrita ontem.
O freudismo foi o “melhor inimigo” do feminismo,
porque embora tivesse tocado no mesmo ponto crucial,
ele teve uma astúcia que o feminismo não teve — nunca
questionou a realidade estabelecida. Em bora ambos, em
sua essência, fossem explosivos, o freudismo foi sendo
gradativamente revisto, para adequar-se às necessidades
pragmáticas da terapia clínica. Ele se tornou um a per­
feita ciência aplicada, de técnicos de aventais brancos,
sendo seus conteúdos destruídos, em função de um obje­
tivo reacionário: a socialização dos homens e das mu­
lheres, num sistema artificial de papéis sexuais. Mas so­
brou o suficiente de sua força original para servir de
chamariz aos que buscavam um a saída para sua opres­
são. Isto levou o freudismo, aos olhos da opinião pú­
blica, a passar de uma posição de extrema desconfiança
e suspeita para seu status atual. A psicanálise, como
especialidade, é a última palavra em tudo, desde as rup­
turas conjugais, até os julgamentos criminais nos tribu­
nais. Assim, o freudismo ganhou um terreno que o femi­
nismo tinha perdido: ele floresceu às custas do feminis­
mo, na medida em que agiu como recipiente de sua força
destruidora.
Só recentemente começamos a sentir os efeitos de
gerações de entoxicamento; meio século depois, as mu­
lheres acordam. Dá-se um a nova ênfase às condições
objetivas na psicologia, bem como, nas ciências compor-
tamentais, essas disciplinas, somente agora, décadas de­
pois dos danos terem sido causados, estão reagindo con­
tra a sua longa prostituição, exigindo a verificação cien­
tífica — apenas um fim à “objetividade” e um a reintro-
dução aos “juízos de valor” . O grande número de mu­
lheres nesses campos brevemente poderá usar desse fato
em seu próprio proveito. E um a terapia que se tivesse
revelado mais nociva do que inútil poderia finalmente
ser substituída pela única coisa que pode fazer bem: a
organização política.

86
IV. ABAIXO A INFÂNCIA!

Para Nechemia
que ultrapassará a infância, antes que ela seja eliminada

As mulheres e as crianças seinpre são mencionadas


simultaneamente ( “M ulheres e crianças, para trás!” ). O
vínculo especial que as mulheres têm com as crianças é
, reconhecido por todos. Contudo, proponho que a natu­
reza desse vínculo não passa de um a opressão compar­
tilhada. E que, além disso, essa opressão está entrelaça­
da e m utuamente reforçada de modos tão complexos,
* que seria impossível falar da liberação das mulheres, sem,
também, discutir a liberação das crianças, e vice-versa.
O núcleo da opressão das mulheres são seus papéis de
reprodutora e educadora das crianças. E, por sua vez,
as crianças são definidas em relação a esse papel, e são
psicologicamente formadas por ele. O que se tornam
como adultas, e os tipos de relacionamento que são ca­
pazes de estabelecer determinam a sociedade que elas,
em última análise, construirão.

* * *

Tentei m ostrar como as hierarquias de poder na fa-


, mília biológica, e as repressões sexuais necessárias para
mantê-la — especialmente intensas na família nuclear
patriarcal — são destrutivas e caras para a psique indi­
vidual. Antes de continuar a descrever como e porque

87
isso gerou um culto da infância, vejamos como essa fa­
mília nuclear patriarcal se desenvolveu. I
Em todas as sociedades, até a presente data, sem­
pre houve alguma modalidade da família biológica, e,
conseqüentemente, sempre houve um a opressão das m u­
lheres e das crianças em graus variados. Engels, Reich,
e outros indicam os matriarcados primitivos como exem­
plos, tentando m ostrar como o autoritarismo, a explo­
ração e a repressão sexual originaram-se com a m ono­
gamia. Contudo, voltar ao passado, em busca de con­
dições ideais, é muito fácil. Simone de Beauvoir é mais
honesta quando, em O Segundo Sexo, escreve:

“Os povos que permaneceram sob o domínio da deusa-


mãe, os que conservaram o regime matrilinear são também
os que pararam num estágio primitivo da civilização . . . A des­
valorização da mulher [sob o patriarcado] representa um es­
tágio necessário na história da humanidade, pois não é sobre
o valor positivo dela, e sim sobre a fraqueza do homem que |
seu prestígio é fundamentado. Na mulher estão personifica­
dos todos os mistérios perturbadores da natureza, e o homem
liberta-se de seu poder quando se liberta da natureza .. . Assim,
o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso, nem o resul­
tado de uma revolução violenta. Desde o início da humani­
dade, a su perioridade biológica dos homens permitiu-lhes afir­
mar seu statu s como sujeitos únicos e soberanos; nunca abdi­
caram dessa posição; outrora, renunciaram a uma parte de
sua existência independente, em favor da Natureza e da Mu­
lher; mas, posteriormente, recuperaram-na.” (Grifos da au­
tora)

Acrescenta:

“Contudo, talvez se o trabalh o p ro d u tiv o tivesse perm a ­


n ecido d en tro d o s lim ites d e sua resistência, a mulher poderia
ter realizado com o h om em a conquista da natureza. . . atra­
vés de am bos, homem e mulher . . . mas, por não ter compar­
tilhado de modo de trabalhar e de pensar dele, p o r ter p erm a ­
n ecido escrava do s pro cesso s m isterio so s da vida, ela não foi
reconhecida pelo homem como um ser semelhante a ele.”
(Grifos da autora)

88
Assim, a biologia reprodutora da mulher foi a res­
ponsável por sua opressão original e continuada, e não
alguma espécie de revolução patriarcal inesperada, cujas
origens nem o próprio Freud teve palavras para expli­
car. O m atriarcado é um estágio no caminho para o p a­
triarcado, para a mais plena realização do homem; o
homem deixa de cultuar a Natureza, através das mulhe­
res, para conquistá-la. Em bora seja verdade que a sorte
da mulher piorou consideravelmente sob o patriarcado,
ela nunca foi boa; pois, apesar de toda nostalgia, não
é difícil provar que o m atriarcado nunca foi um a res­
posta para a opressão fundamental das mulheres. Basi­
camente, ele não passou de um meio diferente de enume­
rar linhagem e herança, meio que, embora possa ter tra­
zido mais vantagens para as mulheres do que o patriar­
cado posterior, não admitiu as mulheres na sociedade
como iguais. Ser reverenciado não significa ter liberda­
de1; pois o culto ainda se passa na cabeça de outro, e
essa cabeça é do Homem. Contudo, voltando ao passa­
do, embora não forneça modelos autênticos, ele tem
algum valor para a compreensão da relatividade da
opressão: embora essa tenha sido um a condição hum ana
fundamental, ela apareceu sob graus diferentes, em for­
mas diferentes. Mas, através de toda a História, em todos
os estágios e tipos de cultura, as mulheres foram opri­
midas devido a suas funções biológicas.
A família patriarcal é apenas a mais recente de um a
rede de organizações sociais “prim árias” , todas as quais
definiram a mulher como um a espécie diferente, devido
a sua capacidade única de parir. O term o família foi pela
prim eira vez empregado pelos romanos, para designar
uma unidade social, onde o cabeça governava as mulhe­
res, as crianças e os escravos. Pela lei rom ana, ele era
investido de direitos de vida e morte sobre todos os
outros. Famulus significa escravo doméstico, e família
é o número total de escravos pertencentes a um homem.

1. O sofrimento da deusa foi admiravelmente retratado no filme


Devi, de Satyajit Ray.

89
Mas, embora os romanos tivessem cunhado o termo, não
foram eles os primeiros a desenvolver a instituição.
(Leia-se no Antigo Testamento, por exemplo, a descri­
ção da caravana de Jacó e sua família, que viaja para
encontrar, depois de longa separação, o irmão gêmeo
E saú.) Esse lar patriarcal primitivo foi apenas um a das
muitas variações da família patriarcal que existiram em
muitas culturas diferentes até o presente momento.
Contudo, a fim de ilustrar a natureza relativa da
opressão das crianças, em vez de com parar essas dife­
rentes modalidades da família patriarcal através da His­
tória, examinaremos o desenvolvimento de sua versão
mais recente, a família nuclear patriarcal. Até mesmo
sua curta história, aproximadamente do século X IV em
diante, é reveladora. O desenvolvimento de nossos valo­
res familiais mais queridos dependeu de condições cul­
turais, não sendo seus fundamentos de modo algum abso­
lutos. Façamos uma revisão do desenvolvimento da fa­
mília nuclear — e de sua estrutura “infância” — desde
a Idade M édia até o presente, baseando nossa análise
em Centuries of Childhood: A Social History of Family
Life, de Philippe Ariès.
A família nuclear m oderna é apenas um desenvol­
vimento recente. Ariès m ostra como a família, como a
conhecemos hoje, não existiu na Idade Média, desenvol­
vendo-se gradativamente somente do século X IV em
diante. Até então a “família” significava, prim ordialm en­
te, a linha hereditária legal de um a pessoa, dando-se
ênfase à linhagem de sangue, em vez de à unidade con­
jugal. Com respeito a essas legalidades, como a trans­
missão da propriedade, sua função primária, havia co­
m unhão de bens entre o marido e a esposa, e comunhão
de propriedade entre os herdeiros. Somente por volta do
fim da Idade M édia, com o aumento da autoridade pa­
terna na família burguesa, foi abolida a comunhão de
bens entre o casal, e a comunhão de propriedade entre
os filhos deu lugar às leis de primogenitura. Ariès mos­
tra como a iconografia refletia os valores correntes da
sociedade na Idade M édia: os modelos eram ou compo­
sições solitárias, ou grandes agrupamentos de pessoas

90
alegres em lugares públicos. H á um a escassez de cenas
de interior, pois a vida não acontecia dentro de um a
“casa”. Pois naquela época não havia abrigo num “grupo
prim ário” privado. Na tradição do lar patriarcal antigo,
o grupo familiar era composto de grande números de
pessoas, num constante estado de fluxo, e, na classe dos
homens pobres, era formado de massas inteiras de servos,
vassalos, músicos, pessoas de todas as classes, bem como
de muitos animais. Em bora o indivíduo pudesse se reti­
rar dessa constante interação social, através da vida espi­
ritual ou acadêmica, mesmo aí havia um a comunidade,
da qual ele poderia participar.
Essa família medieval — descendente direta das
classes mais altas, e, nas classes mais baixas, nada mais
do que um par conjugal plantado no meio da comuni­
dade — gradativamente evoluiu para a família nuclear
que conhecemos. Ariès descreve a mudança:

“Era como se um organismo polimorfo rígido se tivesse


fragmentado e sido substituído por uma grande quantidade
de pequenas sociedades, as famílias, e por uns poucos grupos
compactos, as classes.”

Essa transform ação provocou mudanças culturais


profundas, bem como afetou a própria estrutura psico­
lógica do indivíduo. Até a visão do ciclo vital do indi­
víduo evoluiu culturalmente, p. ex., a “adolescência”,
que nunca tinha existido antes, entrou em uso. O mais
im portante desses novos conceitos de fases da vida foi
a infância.

1. O Mito da Infância

N a Idade M édia não havia esse conceito de infân­


cia. A visão medieval sobre as crianças era profunda­
mente diferente da nossa. Não se trata apenas de que
ela não fosse “centrada na criança” ; literalmente, não
tinha consciência da criança como distinta do adulto.

91
Os meninos e meninas da iconografia medieval são adul­
tos em m iniatura, refletindo um a realidade social com­
pletamente diferente. As crianças, nessa época, eram
adultos pequenos, portadoras de quaisquer que fossem
a classe e o nome com o qual tivessem nascido, desti­
nadas a ascender a um a posição social claramente deli­
neada. Um a criança via a si mesma como o futuro adul­
to, passando por seus estágios de aprendizado; o adulto
era o futuro self poderoso de “quando ela era pequena”.
E la avançava nos vários estágios de seu papel adulto
quase que automaticamente.
As crianças eram tão pouco diferenciadas dos adul­
tos, que não havia um vocabulário específico para des­
crevê-las. Elas compartilhavam o vocabulário da submis­
são feudal. Só mais tarde, com a introdução da Infância
como um estado distinto, esse vocabulário misturado se
diferenciou. A confusão se baseava na realidade: as crian­
ças diferenciavam-se socialmente dos adultos, apenas por
sua dependência econômica. E ram tratadas como uma
outra classe servente transitória, com a diferença de que,
pelo fato de todos os adultos começarem nessa classe,
ela não era vista como degradante (um equivalente seria
o aprendiz contratado da história am ericana). Todas as
crianças eram literalmente servas; este era seu aprendi­
zado para a maturidade. (Assim, durante um longo pe­
ríodo depois, na França, servir a mesa não era conside­
rado degradante porque tinha sido praticado como uma
arte por toda a jovem aristocracia.) Essa experiência
comum das crianças e servos e a tradicional intimidade
entre eles foi deplorada até o século XX. Como as clas­
ses cresceram cada vez mais isoladas umas das outras,
essa intimidade prolongada foi considerada a causa da
considerável corrupção moral das crianças das classes
alta e média.
A criança era um membro à parte no vasto lar pa­
triarcal, sequer essencial para a vida familiar. Em todas
as famílias, a criança era amamentada por um estranho
e, depois, enviada para um a outra casa (aproxim ada­
mente, dos sete até os quatorze a dezoito anos) para
fazer o aprendizado de dono de casa, como mencionei,

92

i
geralmente constituindo-se do serviço doméstico, ou o
incluindo. Assim, ela nunca desenvolvia um a dependên­
cia excessiva dos pais. Eles eram responsáveis apenas
pelo mínimo de seu bem -estar físico. E, por sua vez,
não “precisavam” dos filhos — certamente os filhos não
recebiam afeição da parte deles. Pois, além da taxa de
m ortalidade infantil, que, por si só, desencorajaria essas
demonstrações de afeto, os pais educavam filhos de
outras pessoas para a vida adulta. E, por serem os lares
assim tão extensos, cheios de vários empregados-de-casa,
bem como de um constante grupo de visitantes, amigos
e clientes, a dependência de uma criança, ou mesmo seu
contato com qualquer um dos pais especificamente era
limitada. Quando um a relação se desenvolvia, ela pode­
ria ser melhor descrita como avuncular.
A transmissão de um a geração para a outra era
assegurada pela participação diária das crianças na vida
adulta. As crianças nunca eram segregadas em quartos,
escolas ou atividades especiais. Uma vez que o objetivo
era preparar a criança para a vida adulta logo que pos­
sível, era bastante razoável que essa segregação fosse
sentida como um atraso, ou como um bloqueio a uma
perspectiva adulta. Logo que possível, a criança era inte­
grada na comunidade, em todos os níveis. Não havia
brinquedos, jogos, ou roupas especiais, nem aulas plane­
jadas só para crianças. Os jogos eram partilhados com
grupos de todas as idades. As crianças participavam das
festividades da comunidade adulta. As escolas (só para
habilidades especializadas) conferiam o aprendizado para
quem quer que estivesse interessado, qualquer que fosse
a sua idade. O sistema de aprendizado era aberto tanto
para as crianças, quanto para os adultos.
Depois do século XIV , com o desenvolvimento da
burguesia e da ciência empírica, essa situação começou
a evoluir lentamente. O conceito de infância desenvol­
veu-se como um acessório da família moderna. F oi arti­
culado um vocabulário para descrever as crianças e a
infância (p. ex., o francês le bébé), e um outro vocabu­
lário foi criado especialmente para dirigir-se às crianças.
O “infantilês” tornou-se m oda durante o século X V II.

93
(Desde então, ele se expandiu num a arte e num modo
de vida. Existem todos os tipos de requintes modernos
nessa linguagem infantilesca. Algumas pessoas nunca pas­
sam sem ela, e é usada especialmente com as nam ora­
das, que são tratadas como crianças crescidas.) Os brin­
quedos para criança não apareceram antes de 1600, e
mesmo nessa época não eram usados além da idade de
três ou quatro anos. Os primeiros brinquedos eram ape­
nas réplicas, do tam anho das crianças, dos objetos dos
adultos: o cavalinho-de-pau substituiu o cavalo real que
a criança era muito pequena para m ontar. Mas, ao fim
do século X V II, encontramos a introdução de jogos es­
peciais para crianças. (N a verdade, eles significavam ape­
nas uma divisão: certos jogos, anteriormente partilhados
por crianças e adultos, foram cedidos pelos adultos às
crianças e à classe baixa, enquanto que outros jogos fo­
ram acolhidos, a partir de então pelos adultos, para seu
uso exclusivo, tornando-se os “jogos de salão” dos adul­
tos das classes altas.)
Assim, durante o século X V II, a infância, como
um conceito novo e da moda, estava “por dentro”. Ariès
m ostra como a iconografia também reflete a mudança,
por exemplo, com o crescimento gradativo das glorifica­
das pinturas da relação m ãe/filho, como O Infante nos
Braços de Maria, ou, mais tarde, nos séculos XV e XVI,
com as pinturas de interiores e de cenas de família, in­
cluindo até retratos individualizados de crianças, e da
parafernália da infância. Rousseau, entre outros, desen­
volveu uma ideologia da “infância”. G rande importância
foi conferida à pureza e à “inocência” das crianças. As
pessoas começaram a se preocupar com a exposição das
crianças ao vício. O “respeito” pelas crianças, assim
como pelas mulheres, desconhecido antes do século XVI,
quando elas eram ainda parte da sociedade em geral,
tornou-se necessário, agora que elas formavam um grupo
oprimido bem definido. Seu isolamento e segregação ti­
nham-se instalado. A nova família burguesa, centrada
na criança, impôs um a supervisão constante sobre ela;
toda a independência anterior foi abolida.

94
O significado dessas mudanças é ilustrado pela his­
toria da indum entária das crianças. A roupa era um
modo de simbolizar a classe e a prosperidade social —
e continua sendo, sobretudo para as mulheres. O temor
até hoje existente, sobretudo na Europa, de qualquer
impropriedade no vestir deve-se, em primeiro lugar, à
impropriedade de “dissolver as classes sociais”. E, nos
tempos em que as roupas eram caras e a. produção em
série desconhecida, essa função do vestir era ainda maior.
Pelo fato de os trajes descreverem tão vividamente as
disparidades de sexo e classe, a historia da moda para
crianças nos fornece chaves valiosas sobre o que estava
acontecendo com elas.
Os primeiros trajes especiais para crianças aparece­
ram no fim do século X V I, data importante na form a­
ção do conceito de infância. Inicialmente, os trajes de
crianças eram modelados de acordo com os trajes arcai­
cos dos adultos, à m aneira da classe baixa, que também
vestia as roupas usadas da aristocracia. Tais arcaísmos
simbolizavam a crescente exclusão das crianças e do
proletariado da vida pública contemporânea. Antes da
Revolução Francesa, quando foram introduzidas calças
especiais de marinheiro, que mais tarde passaram a di­
ferenciar a classe baixa, encontramos a mesma indumen­
tária difundida entre meninos das classes altas. Isso é
importante, porque ilustra bem nitidamente que as crian­
ças da classe alta constituíam um a classe baixa dentro
dessa classe. Essa diferenciação do vestuário funciona
para intensificar a segregação e deixa claro que as dis­
tinções de classe são também corroboradas por um cos­
tume dos séculos X V II e X V III, inexplicável em outras
circunstâncias: deveriam ser usadas duas fitas largas, pelo
menino e pela menina, presas à roupa, sobre cada
ombro, e estendidas até as costas. Essas fitas aparen­
temente não tinham outra função senão servir de indi­
cações de indum entária da infância.
A roupa do menino, mais do que as outras, revela
a conexão do sexo e da infância com a classe econômi­
ca. Um garoto passava aproximadamente por três está-

95
gios. O menino passava das tiras-de-pano* para vestes
femininas; mais ou menos na idade de cinco anos mu­
dava para uma roupa com alguns elementos da roupa
do homem adulto, p. ex., o colarinho; e, finalmente, já
mais velho, passava a usar todos os emblemas militares.
A roupa vestida pelo menino mais velho, na época de
Luís X V I, era, ao mesmo tempo, antiquada (gola da
R enascença), da classe baixa (calças de m arinheiro), e
masculamente militar (jaqueta e botões). O vestuário
tornou-se um a outra form a de iniciação à masculinidade,
com a criança, em termos modernos, começando a avan­
çar na direção das “calças compridas” .
Esses estágios de iniciação à masculinidade, refle­
tidos na história da indumentária infantil, estão clara­
mente ligados ao Complexo de Édipo, como eu o expus
no capítulo anterior. Os meninos começavam a vida na
classe baixa das mulheres. Vestidos como mulheres, não
se distinguiam absolutamente das meninas. Ambos, nesse
momento, se identificavam com a mãe, a fêmea; ambos
brincavam de boneca. Aproximadamente na idade de
cinco anos, são feitas tentativas para afastar o menino
da mãe, para encorajá-lo, lentamente, passo a passo, a
imitar o pai, p. ex., com a gola masculina. Esse é o pe­
ríodo transitório do Complexo de Édipo. Finalmente, o
menino é recompensado por libertar-se do feminino, e por
transferir suas identificações para o homem, através de
um traje especial “adulto” , seus emblemas militares cons­
tituem um a promessa do futuro e pleno poder masculino
adulto.
Que dizer dos trajes das meninas? Eis um fato sur­
preendente: o conceito de infância não se aplicava às
mulheres. A menina passava das tiras-de-pano para o
vestido feminino adulto. Ela não ia à escola, que, como
veremos, era a instituição que estruturava a infância. Na
idade de nove a dez anos, agia, literalmente, como uma
“mocinha” ; sua atividade não diferia da das mulheres
adultas. Logo que atingia a puberdade, aos dez ou doze

* Usadas para enrolar os bebês. (N .T.)

96
anos, ela se casava com um homem muito mais velho
do que ela.
O sistema de classes, na base do conceito de infân­
cia, fica exposto: as meninas e os meninos da classe
proletária, ambos, não tinham que ser discriminados por
indumentárias características, pois em seus papéis adul­
tos eles seriam subservientes aos homens da classe alta;
não era necessária nenhuma iniciação à liberdade. As
meninas não tinham razão para passar por mudanças de
trajes, quando não havia nada em direção a que elas
crescerem. As mulheres adultas estavam ainda num a clas­
se baixa, em relação aos homens. As crianças da classe
operária, e isso mesmo até à época atual, eram livres de
restrições de indumentária, pois seus modelos adultos
também eram “crianças” em relação à classe dominante.
Em bora os meninos das classes média e alta com parti­
lhassem temporariam ente do status das mulheres e da
classe operária, gradativamente emergiam dessas classes
submissas; as mulheres e os meninos da classe baixa per­
maneciam aí. Não é tam pouco por coincidência que a
efeminização das roupas dos meninos foi abolida na mes­
ma época em que as feministas excitaram a opinião pú­
blica, no sentido de acabar com as roupas opressivas das
mulheres. Ambos os estilos de indum entária estavam in­
teiramente ligados à submissão das classes e à inferiori­
dade dos papéis femininos. O pequeno Lord Fauntleroy
foi-se junto com as anáguas. (Entretanto, meu próprio
pai se lembra do seu primeiro dia de calças compridas
e até hoje, em alguns países europeus, esses costumes de
iniciação no vestir ainda são praticados.)
Podemos também compreender a base de classes do
conceito emergente de infância no sistema de educação
que o acompanhou. Se a infância fosse apenas um con­
ceito abstrato, então a escola m oderna seria a institui­
ção encarregada de estabelecê-la na realidade. Novos
conceitos sobre o ciclo vital se organizam, em nossa so­
ciedade, em torno de instituições; p. ex., a adolescência,
uma construção do século XX, foi estabelecida para fa­
cilitar o recrutamento para o serviço m ilitar.) A educa­
ção da escola m oderna foi, na verdade, a articulação do

97
novo conceito de infância. O ensino foi redefinido. Não
sendo mais confiado ao clero e aos letrados, ele se am­
pliou largamente, para tornar-se o instrum ento norm al
de iniciação social — na evolução da infância até a maio­
ridade masculina. (Aqueles aos quais a verdadeira m a­
turidade nunca era solicitada, p.ex., as moças e rapazes
da classe operária, não freqüentaram a escola durante
vários séculos.2)
Contrariam ente à opinião popular, o desenvolvimento
da escola m oderna teve pouca conexão com a cultura
tradicional da Idade Média, bem como com o desenvolvi­
mento das artes liberais e das hum anidades na Renascença.
(De fato, os humanistas da Renascença foram notados pela
inclusão, em suas fileiras, de muitas crianças precoces e
mulheres doutas; deram ênfase ao desenvolvimento do
indivíduo, qualquer que fosse a sua idade ou sexo.) Se­
gundo Ariès, os historiadores da literatura exageram a
importância da tradição hum anista na estruturação de
nossas escolas. Os verdadeiros criadores e inovadores fo­
ram os moralistas e pedagogos do século X V II, os jesuí­
tas, os oratorianos e os jansenistas. Esses homens estive­
ram à frente da criação de ambos os conceitos de infância
e sua institucionalização, e do conceito m oderno de edu­

2. Vestígios destes costumes permanecem até em nossos pró­


prios dias. Os garotos da classe operária tendem a se tornar co­
merciantes, mecânicos, ou equivalentes modernos disso, em vez
de se envolverem num booklarnin*, para eles inútil. Isto é um
remanescente da época em que as crianças da classe baixa ainda
seguiam um sistema de aprendizado, ao passo que as crianças
da classe média tinham começado a freqüentar a escola moderna.
(N ão é por acaso tampouco que tantos grandes artistas da Re­
nascença foram garotos da classe baixa, treinados nas oficinas
dos “mestres”.) Podemos também encontrar remanescentes dessa
história no nosso exército atual, onde estão concentrados os
extremos da sociedade de classes. D e um lado, jovens “esca­
pistas” da classe operária, e do outro, oficiais da classe alta,
cadetes militares da aristocracia — pois a aristocracia tanto
quanto o proletariado tardaram em adotar a estrutura familiar
e o ensino público da burguesia.
* Pronúncia da classe baixa para a palavra booklearning, que significa
cultura livresca. (N .T.)

98
cação. F oram os primeiros patronos da fragilidade e dã
“inocência” da infância; colocaram a infância num pedes­
tal, do mesmo modo como a feminilidade tinha sido posta
num pedestal; pregaram a segregação das crianças do
mundo adulto. A “disciplina” era a linha mestra da edu­
cação m oderna, afinal muito mais im portante do que a
comunicação do saber ou da informação. Pois, para eles,
a disciplina era um instrum ento de progresso m oral e
espiritual, adequada menos por sua eficiência em dirigir
grupos grandes no trabalho em comum do que por seu
valor intrínseco moral e ascético.
Assim, a função da escola tornou-se a “educação das
crianças”, acrescida da disciplinadora “psicologia infan­
til”. Ariès cita Regulations for Boarders at Port-Royal,
um precursor de nossos manuais de treinamento para pro­
fessores:

“Deve ser mantida uma vigilância cerrada sobre as crian­


ças, e elas nunca devem ser deixadas sozinhas em lugar ne­
nhum, encontrem-se mau ou bem de saúde . . . essa supervisão
constante deverá ser exercida imperceptivelmente e com uma
certa confiança calculada para fazê-las pensar que nós as ama­
mos, e que estamos com elas somente para desfrutar de sua
companhia. Isso as fará amar sua supervisão, em vez de te-
mê-la.” (Grifo da autora)

Essa passagem, escrita em 1612, já manifesta o tom


afetado da m oderna psicologia infantil, e a distância pe­
culiar entre adultos e crianças, naquela época esboçada,
mas hoje completamente inconsciente.
A nova educação segregava, efetivamente, as crian­
ças do mundo adulto, por períodos de tempo cada vez
maiores. M as essa segregação da criança do mundo adulto
— e o severo processo de iniciação exigia que se efetuasse
a transição para a vida adulta — indicava um desrespeito
crescente, uma subestimação sistemática das capacidades
da criança.
A precocidade, tão comum na Idade Média, e ainda
durante algum tempo depois, reduziu-se quase a zero
era nossa época.3 Hoje, por exemplo, a proeza de M ozart,
de ser uma criança compositora, é quase inacreditável.
N a sua própria época, ele não era tão fora do comum.
Muitas crianças tocavam e compunham música seriamente
nessa época, e também se envolviam em muitas outras
atividades “adultas”. Nossas aulas de piano de hoje não
são de modo algum comparáveis àquelas. N a verdade,
são apenas indicações da opressão infantil — do mesmo
modo como os tradicionais “dotes femininos”, como o bor­
dado, eram atividades superficiais — dizendo-nos apenas
da submissão da criança aos caprichos dos adultos. E é sig­
nificativo o fato de que esses “talentos” sejam em geral
mais cultivados nas meninas do que nos meninos; quando
os meninos estudam piano, na maioria das vezes, é por­
que são excepcionalmente dotados, ou porque seus pais
são apreciadores de música.
Ariès cita H eroard, em Journal sur L ’Enfance et La
Jeunesse de Louis X III, o relato detalhado dos anos de
infância do Delfim, escrito por seu médico. C onta como
o Delfim tocava violino e cantava na idade de dezessete
meses. Contudo, o Delfim não era um gênio, mais tarde
comprovando não ser, certamente, mais inteügente do que
qualquer membro da aristocracia. E tocar violino não era
tudo o que ele fazia. O registro da vida infantil do Del­
fim, nascido em 1601 — de inteligência média apenas
— mostra-nos como subestimamos a capacidade das crian­
ças. Descobrimos que, na mesma idade em que tocava
violino também jogava malí, o equivalente do golfe para
os adultos daquela época, bem como tênis; jogava jogos de
estratégia militar. Respectivamente aos três e quatro anos,
aprendeu a ler e a escrever. Aos cinco e seis, embora
ainda brincasse com bonecas (!), praticava arco e flecha,
jogava cartas e xadrez (aos seis anos) com os adultos,
e jogava muitos outros jogos adultos. Logo que começou
a falar, juntava-se como um igual aos adultos, em todas

3. No meio judeu ortodoxo, no qual eu cresci, considerado an-


crônico pelas pessoas de fora, muitos meninos ainda iniciam um
estudo sério antes dos cinco anos de idade, e em conseqüência
são comuns os prodígios talmúdicos.

100
as suas atividades (tais como eram ), dançando profissio­
nalmente, atuando e participando em todas as diversões.
Aos sete anos o Delfim começou a usar roupas de homens
adultos, as bonecas lhe foram tiradas, e iniciou-se sua edu­
cação, sob a orientação de tutores homens; começou a ca­
çar, a andar a cavalo, a atirar e a jogar. Mas Ariès diz:

“Devemos ter cuidado para não exagerar [a importância


de seus sete anos]. Apesar de ter parado de tocar, ou de ter
parado de brincar com suas bonecas, o Delfim continuou le­
vando a mesma vida de antes . .. Antes dos sete anos, bonecas
e brinquedos alemães; depois dos sete, caçadas, equitação,
esgrima e possivelmente teatro; a mudança foi quase imper­
ceptível nessa longa sucessão de passatempos que a criança
compartilhou com os adultos.”

O que me parece mais evidente nessa descrição é


que antes do advento da família nuclear e da educação
moderna, a infância era o mínimo possível distinta da
vida adulta. A criança aprendia diretamente com os adul­
tos ao seu redor, emergindo, logo que fosse capaz, na
sociedade adulta. Cerca dos sete anos, havia alguma dife­
renciação de papéis sexuais — isto tinha que começar
nalgum momento, dado o patriarcado em vigor, mas ainda
não era complicado pela posição das crianças como uma
classe inferior. Até então, havia um a distinção apenas
entre homens e mulheres, e ainda não entre crianças e
adultos. Num outro século, esta situação começou a mu­
dar, assim como a opressão das mulheres e das crianças
se entrelaçou cada vez mais.
Sumariando, com o início da família nuclear, cen­
trada na criança, tornou-se necessária um a instituição
para estruturar a “infância” , que mantivesse as crianças
sob a jurisdição dos pais, tanto quanto fosse possível.
As escolas se multiplicaram, substituindo a erudição e o
aprendizado prático por um a educação teorética, cuja
função era “disciplinar” as crianças, em vez de comuni­
car o saber, para o próprio benefício delas. Desse modo,
não é surpreendente que a educação moderna retarde o
desenvolvimento, em vez de acelerá-lo. Ao afastar as crian­
ças do mundo adulto — os adultos, no fim das contas, são

101
meramente crianças em tam anho maior, com um a expe­
riência do mundo — e ao submetê-las artificialmente a
uma proporção na qual cada adulto vale por vinte crian­
ças, como poderia ter sido diferente o resultado final de
um nivelamento do grupo a um a inteligência mediana
(m edíocre)? Como se isso não bastasse, depois do século
X V III houve um a rígida separação e distinção de idades
( “séries escolares” ). As crianças não eram mais capazes
de aprender nem com crianças mais velhas e mais infor­
madas. Estavam limitadas, na m aior parte de suas horas
ativas, a um grupo bem definido da mesma idade,4 e, além
disso, a um currículo dado “de bandeja”. Essa graduação
rígida aumentou o número de níveis necessários para a
iniciação na vida adulta, e tornou difícil para um a criança
dirigir seus próprios passos. Sua motivação para o estudo
passou a se caracterizar por ser dirigida para fora, e por
uma consciência de aprovação, assassinas certeiras da ori­
ginalidade. As crianças, anteriormente vistas simplesmente
como pessoas mais novas — do mesmo m odo como hoje
vemos um fedelho meio crescido em termos de sua m a­
turidade futura — agora eram um a classe bem definida,
com suas próprias divisões internas, incentivando à com­
petição: “o garoto mais alto do quarteirão”, “o garoto
mais inteligente da escola”, etc. As crianças eram força­
das a pensar em termos hierárquicos, todos avaliados pelo
supremo “Quando eu crescer.. .” Assim, o crescimento da
escola refletia o mundo exterior, que estava se tornando
cada vez mais segregado, de acordo com a idade e a
classe da pessoa.
* * *

Concluindo: o desenvolvimento da família m oderna


significou o desdobramento de um a sociedade am pla e in­
tegrada em unidades pequenas, centradas em si mesmas.

4. Isto é levado a extremos nas escolas públicas contemporâ­


neas, onde crianças perfeitamente preparadas par:: o ensino são
recusadas durante um ano inteiro porque sua data de nasci­
mento cai uns poucos dias antes de uma data arbitrária.

102
Dentro dessas unidades conjugais, a criança tornou-se
então im portante, pois ela era o produto dessa unidade,
a razão de sua subsistência. Tornou-se conveniente m an­
tê-las em casa durante o máximo de tempo possível, e
am arrá-las psicológica, financeira e emocionalmente à
unidade familiar até o tempo em que estivessem prontas
para criar uma nova unidade familiar. Para esse propósito
foi criada a E ra da Infância. Mais tarde, foram acres­
centadas extensões, como a adolescência, ou, em termos
americanos do século X X , os teenagers, a “juventude uni­
versitária”, os “adultos jovens”. O conceito de infância
prescrevia que as crianças eram um a espécie diferente
da dos adultos não apenas na idade, mas também nas
suas características. Um a ideologia foi desenvolvida para
provar isso: foram escritos tratados fantasiosos sobre a
inocência das crianças e sua proximidade de Deus ( “ anji­
nhos” ), conseqüentemente levando à crença de que eram
assexuadas, sendo a atividade sexual infantil vista como
um a aberração — tudo em contraste violento com o pe­
ríodo precedente, quando as crianças eram expostas aos
fatos da vida, desde o início.5 Pois qualquer admissão da
sexualidade infantil teria acelerado a transição para a vida
adulta, e isso, na época, tinha que ser retardado a todo
custo. O desenvolvimento de roupas especiais cedo exa­
gerou as diferenças físicas entre as crianças e os adultos,
e até entre estas e as crianças mais velhas. As crianças
não jogavam mais os mesmos jogos dos adultos, nem par­
ticipavam de suas festividades (hoje, norm alm ente as
crianças não freqüentam jantares elegantes), mas lhes
eram consagrados jogos especiais e artefatos próprios
(brinquedos). O contar histórias, antigamente um a arte
comunitária, foi relegado às crianças, levando, em nossa
própria época, à criação de um a literatura infantil espe­
cífica. Os adultos falavam com as crianças num a lingua­
gem especial, e nunca se lançavam num a conversa séria

5. Ver Ariès, op. cit., Capítulo V, “From Immodesty to Inno-


çence”, para uma descrição detalhada desta exposição, baseada
nas experiências sexuais do Delfim, como está registrado no
Heroard Journal.

103
na presença delas ( “Não na frente das crianças!” ). Os
“bons-hábitos” de sujeição eram instituídos em casa ( “As
crianças deveriam ser vistas e não ouvidas.” ) M as nada
disso teria atuado no sentido de fazer efetivamente das
crianças um a classe oprimida, se uma instituição especial
não tivesse sido criada para dar conta do recado comple­
tam ente: a escola moderna.
A ideologia da escola era a ideologia da infância.
E la funcionava a partir do pressuposto de que as crianças
precisavam de “disciplina”, de que eram seres especiais,
que tinham de ser tratados de um m odo especial (psico­
logia infantil, educação infantil, etc.), e que, para faci­
litar isso, elas deveriam ser encurraladas num lugar espe­
cial com seus semelhantes, e com um grupo de idade o
mais que possível restrito à sua própria idade. A escola foi
a instituição que estruturou a infância, segregando efeti­
vamente as crianças do resto da sociedade, e assim retar­
dando seu desenvolvimento para a m aturidade e seu
desenvolvimento de habilidades especializadas, das quais
a sociedade precisava. Em conseqüência, elas perm ane­
ceram economicamente dependentes por períodos de tem ­
po cada vez maiores. Desse modo, os laços familiais per­
maneceram intactos.
Chamei a atenção para o fato de que existe uma
relação profunda entre as hierarquias da família e as
classes econômicas. Engels observou que, dentro da fa­
mília, o marido é o burguês, e a mulher e as crianças
são o proletariado. Foram observadas similaridades entre
as crianças e toda a classe operária ou outros grupos opri­
midos, feitos estudos para m ostrar que elas compartilham
da mesma psicologia. Vimos como o desenvolvimento das
roupas proletárias foi paralelo ao das roupas infantis,
como os jogos deixados pelos adultos da classe alta foram
jogados pelas crianças e pelos “caipiras”. Dizia-se de
ambos que gostavam de trabalhar “com as m ãos”, con­
trariam ente às altas cerebrações do homem adulto, abstra­
ções acima deles. Foi-lhes lembrado a ambos que tinham
a sorte de serem poupados das preocupações da responsa­
bilidade adulta — e ambos o desejavam de qualquer
jeito. As relações com a classe dominante, em ambos os

104
casos, tinham um quê de medo, de suspeita, disfarçados
sob um a leve capa de sedução (o adorável balbució, o
virar-de-olhos, e o pisa-m ansinho).
O mito da infância encontra um paralelo ainda m aior
no mito da feminilidade. T anto as mulheres quanto as
crianças foram consideradas assexuadas e, portanto,
“mais puras” do que o homem. Seu status inferior foi
mal disfarçado sob um certo “respeito” requintado. Não
se discutiam assuntos sérios, nem se faziam injúrias na
frente das mulheres e das crianças. Elas eram rebaixadas
abertamente', isto era feito às suas costas. (Q uanto ao
double standard* relativo aos xingamentos: U m homem
pode xingar o mundo, porque cabe a ele xingar — mas
o mesmo xingamento na boca de um a mulher ou de um
menor, i.e., um “hom em ” incompleto a quem o m undo
ainda não pertence, é considerado presunçoso, e, conse­
qüentemente, um a impropriedade, ou pior.) Ambas fo­
ram discriminadas com roupas ornam entadas e não-fun-
cionais, e lhes foram atribuídas tarefas especiais (respec­
tivamente, o serviço doméstico e o dever escolar). Ambas
foram consideradas mentalm ente deficientes ( “O que você
pode esperar de uma mulher?” “Ele é muito pequeno
para entender!” ). O pedestal de adoração no qual ambas
foram colocadas tornou difícil para que respirassem. Cada
interação com o mundo adulto tom ou-se para as crian­
ças um dançar conforme a música. Aprenderam a usar de
sua infância para obter o que queriam indiretam ente ( “E la
está tendo um outro acesso de raiva!” ), assim como as
mulheres aprenderam a usar de sua feminilidade ( “L á
vem ela, chorando de novo!” ). Todas as incursões no
mundo adulto tornaram -se terríveis expedições pela so­
brevivência. A diferença entre o comportamento natural
das crianças, dentro de seu grupo, e seu com portamento
afetado e /o u tímido diante dos adultos confirma isso.
Analogamente, as mulheres agem de um m odo diferente
entre si, do que diante dos homens. Em cada caso, um a
diferença física foi ampliada culturalmente, com a ajuda

* Ver N.T. à página 260. (N.T.)

105
de trajes especiais, educação, hábitos e atividades, até que
esse próprio reforço cultural começou a parecer “n a­
tural”, e mesmo instintivo, um processo de exagero que
permite um a estereotipação fácil. O indivíduo parece,
finalmente, ser um a espécie diferente do animal humano,
com seu próprio conjunto de leis e com portamentos pe­
culiares. ( “Eu nunca compreenderei as mulheres!”. . .
“Você não entende nada de psicologia infantil!” ).
A gíria contem porânea reflete esse estado animal. As
crianças são “ratinhos”, “ coelhinhos”, “gatinhos” ; as m u­
lheres são chamadas de “galinhas” , “borboletas”, “vacas”,
“éguas”, “cadelas”. Uma terminologia similar é usada
para referir-se aos homens, e ainda em m aior escala para
referir-se aos homens oprimidos, indicando um a difama­
ção do caráter: garanhão, lobo, gavião, veado, macaco.
Nesse caso ela é usada muito mais raram ente, e geralmente
com uma conotação sexual específica.
Pelo fato de a opressão de classe das mulheres e das
crianças ser encoberta na fraseologia do “engraçadinho”,
v . é muito mais difícil lutar do que revelar a opressão. O
/ que um a criança pode responder, quando alguma tia
idiota resolve encarnar nela, ou quando algum estranho
decide bater levemente às suas costas e im itar a fala do ,
' y n bebê? Que mulher tem peito de reagir, quando um estra-
jj ^ nho aue passa oor ela viola a sua privacidade, a seu bel-
-v - prazer? Se ela responde ao seu “Mas como você está
S ~ linda hoje!” com “Estaria m elhor se não o visse!”, ele
< ' -(ro sn ará : “O que mordeu essa puta hoje?”, ou pior. Fre-
^ qüentemente, a natureza real desses comentários aparente­
mente cordiais aparece quando a mulher ou a criança
não sorriem em resposta, como deveriam. “M ulher de
merda! Eu não te foderia, nem se você se engraçasse pro
meu lado!” . . . Ou: “Pirralhinho nojento! Se eu fosse seu
pai, eu te surrava até você ficar roxo!”. . . A violência p
surpreendente. Contudo, esses homens acham que a mú-
lher e a criança devem ser censuradas por não serem “cor­
diais”. Porque é incômodo para eles saber que a mulher,
ou a criança, ou o negro, ou o operário resmungam; os
grupos oprimidos devem também aparentar gostar de sua
opressão — sorrindo, sem graça, em bora sintam um infer-

106
no por dentro. O sorriso é o equivalente ao pisa-m an-
, sinho da criança/m ulher; ele indica a aquiescência da
vítima ao seu próprio opressor. (E m meu próprio caso,
tive que treinar para me libertar desse sorriso hipócrita,
que é como um tique nervoso em toda adolescente. E isso
I quer dizer que eu sorria raram ente, pois, na verdade, eu
tinha muito menos razões para sorrir. M inha luta “utó­
pica” pelo movimento de libertação das mulheres: uma
cam panha de boicote ao sorriso, à qual todas as mulheres
responderiam, im ediatamente, abandonando seus sorrisos
“ amáveis” , daí em diante sorrindo somente quando, algu- l
ma coisa lhes desse prazgj. I5a mesma maneira, a libe­
ração das crianças exigiria pôr um fim em todos os cari­
nhos não ditados pela própria criança. [Isso, natural­
mente, exaltaria um a sociedade, na qual o carinho em
geral não seria mais desaprovado; em geral, as únicas de­
monstrações de afeto que um a criança recebe hoje são
essas demonstrações fingidas, que ela pode ainda consi­
derar melhor do que nada.] ) Muitos homens não conse­
guem compreender que suas intimidades fáceis não são
vistas como um privilégio. Será que eles já pensaram que
a pessoa real, por trás daquele animal neném ou mulher,
( pode preferir não ser acariciada, e nem mesmo notada pojr
èles naquele momento? Imaginem a própria consternação
dFsse homem, se algum estranho se aproximasse dele na
rua, de um modo semelhante, acompanhando seus passos,
sussurrando e falando como criança, sem respeito por sua
profissão, ou sua “m asculinidade” .
Em suma: se os membros da classe operária e dos
grupos minoritários “ agem como crianças” , é porque as
crianças de todas as classes são um a classe baixa, assim
como as mulheres sempre o foram. A ascensão da família
nuclear moderna, com seu acessório a “infância” , estreitou
os laços entre os grupos ainda economicamente depen­
dentes, estendendo e reforçando o que tinha sido apenas
um a breve dependência, através dos meios habituais: o
1 desenvolvimento de um a ideologia específica, de um
estilo de vida próprio, linguagem, roupas, maneirismo,
etc. E, com o aumento e o exagero da dependência infan­
til, a escravidão das mulheres à m aternidade também foi

107
ampliada até seus limites. As mulheres e as crianças en-
contram-se hoje no mesmo barco furado. Suas opressões
começaram a se reforçar, uma à outra. À mística das gló­
rias do parto, da grandeza da criatividade “natural” fe­
minina, acrescentou-se agora um a nova mística sobre as
glórias da própria infância e da “criatividade” da educação
das crianças. ( “Pois bem querida, o que poderia ser
mais criativo do que criar uma criança?” ) Hoje as pes­
soas esqueceram o que a História tinha provado: que
“criar” uma criança é o equivalente a retardar seu de­
senvolvimento. O melhor modo de criar um a criança é
D EIX Á -LA EM PAZ.

2. Nossa Epoca: o Mito é Exagerado

Vimos como a crescente privatização da vida familiar


trouxe ainda mais opressão aos seus dependentes, as m u­
lheres e as crianças. Os mitos correlacionados da femini­
lidade e da infância foram os instrumentos dessa opressão.
N a E ra Vitoriana eles alcançaram proporções tão épicas
que as mulheres finalmente se rebelaram — sua rebelião
afetou periféricamente a infância. M as a rebelião foi des­
truída antes que ela pudesse eliminar esses mitos. Eles
ficaram subterrâneos, até reaparecerem numa versão mais
insidiosa, complicada pelo consumo de massa. Pois, de
fato, nada tinha mudado. No Capítulo 2 descrevi como
a emancipação das mulheres foi sutilmente sabotada. A
mesma coisa ocorreu com a opressão corolária da “in­
fância” .
A pseudo-emancipação das crianças equipara-se per­
feitamente à pseudo-emancipação das mulheres. Em bora
tenhamos abolido todos os sinais superficiais de opressão
— as roupas diferenciadas e pesadas, a palm atória do
mestre-escola — não há dúvida de que o mito da infân­
cia prospera em proporções épicas, no estilo do século
XX. Indústrias completas são construídas para a fabrica­
ção de brinquedos especiais, iogos, alimentação para
criança, café da m anhã infantil, livros e histórias em

108
quadrinhos infantis, balas atraentes para as crianças, etc.
Analistas de mercado estudam psicologia infantil para
descobrir produtos que atraiam as crianças de várias ida­
des. Existe um a propaganda, um cinema e um a indústria
de TV construídos só para elas, com sua própria literatura
i especial, programas e comerciais, e até conselhos de cen­
sura para decidir exatamente quais os produtos cultu­
rais adequados ao seu consumo. H á um a proliferação in­
findável de livros e revistas instruindo o leigo na requin­
tada arte de educar as crianças ( Parent’s Magazine, do
Dr. Spock*). H á especialistas em psicologia infantil, em
métodos de educação infantil, pediatras, e todos os ramos
especiais de saber que se desenvolveram recentemente
para estudar esse animal peculiar. A educação obrigatória
floresce e hoje está difundida o suficiente para form ar
um a inevitável rede de socialização (lavagem cerebral),
da qual nem os próprios ricos conseguem escapar total­
mente. Passaram os dias de Huckleberry Finn. Hoje, os
que fingem ser doentes para escapar ao trabalho, ou que
se desligam, têm que gastar todo o tempo para afastar o
enxame de especialistas que os observam, os programas
governamentais em proliferação, os assistentes-sociais no
, seu encalço.
Observemos mais de perto a form a m oderna que essa
ideologia da infância assume. Visualmente, ela é tão ro­
busta, loura e sorridente, quanto um anúncio da Kodak.
Como é o caso da exploração das mulheres como um
objeto (ready-m ade) , como uma classe consumidora, exis­
tem muitas indústrias ansiosas por beneficiar-se da vul­
nerabilidade física das crianças (p.ex., a Aspirina St. Jo-
seph, para crianças). Mas, ainda mais do que sua saúde, a
palavra-chave para a compreensão da infância m oderna é
felicidade. Só se é criança um a vez na vida. As crianças
devem ser personificações vivas da felicidade (as crianças
m al-humoradas, ou entediadas, ou crianças-problema são
imediatamente antipatizadas; elas fazem do m ito um a
m entira). É dever de todos os pais propiciar aos filhos

* Do gênero Pais e Filhos brasileiro (N.T.)

109
um a infância memorável (balanços, piscinas infláveis,
brinquedos e jogos, passeios em acampamentos, festas
de aniversário, etc.). Essa é a Idade de Ouro, que a crian­
ça relem brará quando crescer para tornar-se um robô
como o pai. Assim, todo pai tenta dar ao filho tudo o que
lhe faltou naquela que deveria ter sido a mais esplêndida
fase da própria vida. O culto da infância como Idade de
Ouro é tão forte que todas as outras épocas da vida são
avalidadas em função do grau com que se assemelham a
ela num culto nacional da juventude. Os “mais velhos”
fazem papel de bobo com sua apologética invejosa (“Ê
claro que eu tenho o dobro da sua idade, meu caro,
mas. . . ” ). H á um a crença geral de que o progresso se fez
porque, pelo menos em nossa época, as crianças foram
libertas da pesada mão-de-obra infantil, e de muitas outras
explorações tradicionais das gerações do passado. De
fato, existe ainda a lamentação invejosa de que as crian­
ças estão despertando um a atenção excessiva. Elas são
mimadas. (O “Quando eu tinha a sua id a d e .. . ” corres­
ponde ao “Este mundo é das mulheres. . .” )
O mais im portante baluarte desse mito da felicidade
é a constante e rígida segregação das crianças do resto da
sociedade. O exagero de seus traços distintivos fez delas,
como tinha sido planejado, quase que um a outra raça.
Nossos parques fornecem a m etáfora perfeita de nossa so­
ciedade etariam ente segregada. Um playground especial
para os Tenros Intocáveis, as mães e as criancinhas (ra­
ramente encontramos outras pessoas ali, como se isso
fosse um tab u ), um estádio de atletismo ou um a piscina
para crianças, um recanto aprazível para casais jovens
e estudantes, e um a área de bancos para as pessoas ido­
sas. Essa segregação etária continua através de toda a vida
de cada indivíduo moderno. As pessoas passam a ter
muito pouco contato com as crianças, logo que tenham
ultrapassado a própria infância. E, mesmo dentro da
própria infância, existem segregações etárias rígidas, de
modo que um a criança mais velha ficará em baraçada por
ser vista com uma criança mais nova. ( “Dê o fora! Por
que não brinca com gente da tua idade?” ) Durante a
vida escolar, e em nosso século ela dura muito mais tem ­

110
po, am a criança convive com outras de apenas um ou
dois anos de diferença de idade. As próprias escolas refle­
tem essas graduações cada vez mais rígidas: pré-prim ária,
etc., caracterizadas por um sistema complexo de prom o­
ções e “form aturas”. Ultimamente, são comuns até for­
m aturas em escolas m aternais e /o u em jardins-de-infância.
Assim, na época em que um a criança fica m adura
para a reprodução, ela não m antém nenhum contato com
os que estão fora de seu restrito grupo etário adulto, e
certamente nenhum com as crianças. Por causa do culto
que a rodeia, ela praticam ente não se lembra nem da
própria infância, chegando até a bloqueá-la completamen­
te. Mesmo quando criança, ela pode ter tentado am oldar­
se ao mito, pensando que todas as outras crianças eram
mais felizes; mais tarde, já adolescente, pode ter-se en­
tregado a satisfações desesperadas, atirando-se a “praze-
res”, no espírito do “só se é jovem um a vez na vida” —
quando, na verdade, a adolescência é horrível de ser atra­
vessada. (M as a verdadeira juventude não tem consciência
da idade — “a juventude é desperdiçada pela própria ju­
ventude” e é caracterizada pela espontaneidade verda­
deira, justam ente pela ausência dessa artificialidade. O
armazenamento de uma felicidade que se perdeu é uma
idéia que só os mais velhos poderiam ter criado.) Um a
tal ausência de contato com a realidade da infância arrasta
todo adulto jovem para o mesmo tipo de sentimentalismo
em torno das crianças que ele próprio provavelmente
desdenhou quando era pequeno. E assim por diante, num
círculo vicioso. Os adultos jovens sonham em ter seus
próprios filhos, numa tentativa desesperada de preencher
o vazio causado pela interrupção artificial da juventude.
Mas isso só dura até o momento em que eles se envol­
vem com problemas de gravidez e fraldas, babás e pro­
blemas escolares, predileções e brigas. Então, por um
curto período, são obrigados a compreender que as crian­
ças são tão humanas quanto o resto da gente.
Assim, falemos sobre o que a infância realmente é,
e não sobre o que ela é na mente dos adultos. É claro
que o mito da felicidade infantil floresce amplamente,
não porque satisfaça às necessidades das crianças, mas

111
porque satisfaz às necessidades dos adultos. Num a cul­
tura de pessoas alienadas, a crença de que todo mundo
tem, pelo menos, um bom período na vida, livre de preo­
cupações e de trabalho, dificilmente morre. E, obviamen­
te, não se pode contar com isso na velhice. Logo, uma
pessoa já deve ter passado por ele. Este é o motivo da
nuvem de sentimentalismo que envolve toda discussão
sobre a infância e as crianças. Todo mundo alimenta al­
gum sonho secreto em seu próprio interesse.
* * *

Assim, a segregação ainda funciona a todo vapor,


p ara reforçar a opressão das crianças, como um a classe.
Em que se constitui essa opressão no século XX?
Dependência Econômica e Física. A diferença física
natural entre as crianças e os adultos — sua m aior fragili­
dade, seu tam anho m enor — é reforçada, em vez de ser
compensada, pela nossa cultura atual. As crianças ainda
são “menores” perante a lei, sem direitos civis, um a pro­
priedade de um círculo de pais arbitrários. (Mesmo que
haja crianças que tenham “bons” pais, existem no mundo
tanto pessoas “ruins” quanto “boas”, e é bem mais pro­
vável que as pessoas “ruins” cuidem das crianças.) O
núm ero de surras e de mortes infantis a cada ano teste­
m unha que as crianças meramente infelizes têm sorte.
E la poderia ser pior. Só recentemente os médicos houve­
ram por bem denunciar essas ocorrências de tal modo
as crianças estavam à mercê de seus pais. Contudo, as
crianças que não têm pais se encontram ainda em situação
pior (assim como as mulheres solteiras, as mulheres sem
a proteção de um marido, estão ainda em pior situa­
ção do que as mulheres casadas). Não há lugar para elas,
a não ser o orfanato, um a espécie de depósito de ferro
velho para os indesejados.
Mas a opressão das crianças está enraizada, mais do
que tudo, na dependência econômica. Qualquer um que
já tenha observado uma criança tentando persuadir sua
mãe a lhe dar dinheiro, sabe que a dependência econô­
mica é a base da vergonha da criança. (Parentes que

112
dão dinheiro, em geral, são mais queridos. Mas assegu­
ram-se de que o dinheiro seja dado diretamente à crian­
ça!) E m bora ela possa não estar passando fome (nem
isso aconteceria, se as crianças tivessem seu próprio em­
prego; as crianças negras, que engraxam sapatos, pedem
esmolas, e cultivam várias negociatas, e os garotos brancos
da classe operária que vendem jornais são invejados em
sua vizinhança), ela é dependente, para a sua sobrevi­
vência, de um apadrinhamento, e isso é um estado ruim
experimentar. Essa extrema dependência não vale o seu
sustento.
É nessa área que descobrimos um dos eixos do mito
moderno. Espalhou-se que a infância experimenta gran­
de progresso, trazendo-se imediatamente à memória im a­
gens dickensianas da criança pobre, lúgubre, lutando
num a mina de carvão. Contudo, mostramos, na breve his­
tória da infância apresentada no início do capítulo, que
as crianças da classe média e da classe alta não trabalha­
vam no começo da E ra Industrial, e sim ficavam abriga­
das, em segurança, nalgumas escolas maçantes, estudando
Hom ero e gramática latina. As crianças da classe baixa,
é verdade, não eram consideradas nem um pouco mais pri­
vilegiadas do que os pais, partilhando as torturas desu­
manas a que todos os membros de sua classe tinham que
se submeter. De modo que, na mesma época em que havia
Emma Bovarys e Little Lord Fauntleroys ociosos, tam ­
bém havia mulheres destruindo suas vidas e os pulmões
em fábricas primitivas de tecidos, e crianças peram bu­
lando e mendigando. Essa diferença entre as vidas das
crianças de diferentes classes econômicas persistiu até os
dias do direito ao voto feminino, e até a nossa própria
época. As crianças que eram propriedade da classe mé­
dia, em função da reprodução, sofreram uma pressão
pior do que a nossa. O mesmo aconteceu com as mulhe­
res. M as elas, para compensar isto, tinham uma proteção
econômica. As crianças da classe baixa eram exploradas,
não particularm ente como crianças, mas de um modo
geral, como classe. O mito da infância era extravagante
demais para ser desperdiçado com elas. Aqui, novamente
vemos ilustrado com precisão o grau de arbitrariedade do

113
mito da infância, criado expressamente para atender às
necessidades da estrutura da família da classe média.
Sim, vocês dirão, m as certamente teria sido melhor
para as crianças da classe operária que elas, também,
tivessem podido viver protegidas por esse mito. Pelo
menos, teriam poupado a vida. D e m odo que elas pode­
riam esvair a vida espiritual nalgum a sala de aula ou
escritório? A questão é retórica, como a pergunta sobre
se o sofrimento dos negros na América é legítimo, por­
que seriam considerados ricos em outro país. Sofrimento
é sofrimento. Não, precisamos pensar em termos mais
amplos aqui. Por exemplo, em primeiro lugar, porque seus
pais eram explorados: o que qualquer pessoa faz num a
mina de carvão? Devemos protestar, não pelo fato de as
crianças serem exploradas como os adultos, mas pelo fato
de que os adultos sejam explorados desse jeito. Precisa­
mos começar a falar, não em poupar as crianças, durante
alguns anos, dos horrores da vida adulta, mas em eliminar
esses horrores. Num a sociedade sem exploração, as crian­
ças, poderão ser parecidas com os adultos (sem nenhu­
ma exploração im plícita), e os adultos poderão ser como
as crianças (sem nenhuma exploração im plícita). A es­
cravidão privilegiada (p atro n ato ), que as mulheres e as
crianças suportam, não é liberdade. Pois, a autodeter­
minação é a base de toda liberdade, e a dependência está
ria origem de toda desigualdade.
Repressão Sexual. Freud descreve a satisfação primi­
tiva da criança: a satisfação do bebê no seio materno, que
ele então tenta recuperar durante o resto da vida; como,
por causa da proteção adulta, a criança é mais indepen­
dente do “princípio de realidade” , e lhe é permitido brin­
car (atividade realizada pelo prazer dela própria, e não
para obter qualquer outro fim ); como, sexualmente, a
criança é polimorfamente pervertida, e somente mais tarde
é dirigida e reprimida, para tornar-se pronta para o pra­
zer genital adulto.
Freud também mostrou que as origens da neurose
adulta se fundavam no próprio processo da infância. Em ­
bora a criança prototípica possa ter a capacidade de ex­
perim entar um prazer puro, isso não significa que ela

114
possa satisfazê-lo completamente. Seria mais correto dizer
que, embora seja propensa, por natureza, ao prazer, no
momento em que se torna socializada (reprim ida), ela
perde essa inclinação. E isso começa exatamente neste
momento.
O “princípio de realidade” não se restringe aos adul­
tos. Ele se introduz na vida infantil, quase que autom ati­
camente, em sua pequena escala própria. Portanto, en­
quanto esse princípio de realidade existir, a noção de
poupar às crianças seus desgostos será um a farsa. N a
melhor das hipóteses, ela pode sofrer um processo repres­
sivo retardado. Porém, mais freqüentemente, a repressão
acontece, em todos os níveis, logo que a criança possa
lidar com ela. Não é como se já tivesse havido um pe­
ríodo abençoado, no qual a “realidade” era dispensada.
Pois na verdade a repressão começa logo que ela nasce.
As bem conhecidas refeições cronometradas pelo reló­
gio são apenas um exemplo extremo. Antes dos dezoitos
meses, afirma R obert Stoller, se estabelece a diferenciação
sexual básica e, como vimos, esse processo, em si mes­
mo, requer a inibição do impulso sexual dirigido à mãe.
Assim, desde o início, é negada a liberdade de ação à sua
sexualidade polimorfamente pervertida. (M esmo hoje, com
a existência de uma cam panha para reconhecer a mastur-
bação como normal, várias crianças são impedidas de
brincar com seu próprio corpo, desde a época em que
ainda estão no berço.) A criança é instruída a deixar
de m am ar e a ir ao banheiro o mais cedo possível — duas
coisas traumáticas, nos termos da criança. A repressão
aumenta. O am or m aterno, que, idealmente, representa
a satisfação perfeita ( “incondicional” ), é explorado, à
m aneira do am or paterno: para m elhor dirigir a criança
para a conduta socialmente aprovada. E, finalmente, é
exigida um a identificação ativa com o pai. (Nos lares
onde não há pai, a identificação pode ocorrer um pouco
mais tarde, quando a criança começa a freqüentar a es­
cola.) Daí até a puberdade a criança deve ter um a vida
assexuada — ou dissimulada — sem sequer admitir quais­
quer necessidades sexuais. Essa assexualidade forçada gera
um a frustração, que é responsável pela extrema rebeldia

115
e agressividade — ou, numa outra alternativa, a docili­
dade anêmica — que, geralmente, torna as crianças tão
irritantes à sua volta.
Repressão Familiar. Não precisamos nos aprofundar
nas sutis pressões psicológicas da vida familiar. Cada um
que pense na própria família. E, se isso não for suficiente,
se por acaso você é hoje aquele um-entre-um-milhão
que está realmente convencido de que tem um a “família
feliz”, leia alguma das obras de R. D. Laing, particular­
mente a Política da Família, a respeito do Jogo das F a ­
mílias Felizes. (“Quanto mais uniformemente elas fun­
cionam, mais difíceis são elas de estudar.” ) Laing revela
a dinâmica interna da família, explicando sua invisibili­
tf dade para o membro normal da família:
C
“Uma coisa, geralmente, é clara para um estranho: exis­
£ o tem, planejadas, resistências familiares à descoberta do que
~f~> está se passando, e há estratagemas complicados para manter
-o todas as pessoas ignorantes, e na ignorância de que são igno­
rantes. A verdade tem que ser afastada, para que se sustente
+~ 3 uma imagem da família. .. Uma vez que essa fantasia existe
apenas na medida em que ela está ‘dentro’ de todo mundo
3 Ç que
- participa dela, qualquer um que a abandone, destruirá a
‘família’ existente dentro de qualquer outra pessoa.”
^ o
"O Eis algumas criancinhas falando sobre si mesmas. De
novo, citamos Reik:

“Ouvi falar de um menino que, até quase os quatro anos,


pensava que seu nome era ‘Cale-se’.”
“Um menino presenciou uma briga violenta entre seus
pais, e ouviu sua mãe ameaçar seu pai com o divórcio. No
dia seguinte, quando voltou para casa, depois da escola, ele
perguntou à mãe: ‘Você já se divorciou?’ Mais tarde, lem­
brou-se que ficara muito desapontado, porque ela não se tinha
divorciado.”
“Um menino de nove anos foi interrogado pelo pai, du­
rante a visita que este lhe fez num acampamento, se tinha
sentido saudade de casa, e o garoto respondeu: ‘Não.’ O pai,
então, perguntou se os outros meninos tinham sentido sau­
dade de casa. ‘Só alguns’, respondeu o garoto, ‘aqueles que
têm cachorro em casa’.”

116
O que é divertido nessas anedotas, se é que elas são
divertidas, é a franqueza das crianças, incapazes de com­
preender, ou aceitar o inferno masoquista de tudo isso.
Repressão Educacional. É na escola que a repressão
é cimentada. Quaisquer ilusões remanescentes de liber­
dade são, hoje, rapidam ente afastadas. Toda atividade
sexual ou expansão física são barradas. Aqui se realiza
o primeiro jogo altamente supervisionado. O prazer na­
tural das crianças em brincar é, então, incorporado, para
melhor socializá-las (reprim i-las). ( “Larry fez a melhor
pintura de dedos! Que menino habilidoso! Sua mãe fica­
rá orgulhosa de você!” ) Em algumas escolas liberais, o
tempo todo, é verdade, professores gabaritados tentam
descobrir temas e atividades que interessem verdadeira­
mente às crianças. (É mais fácil m anter a sala em ordem,
desse jeito.) Mas, como vimos, a estrutura repressiva da
própria sala de aula, que é segregada, garante que qual­
quer interesse natural em aprender, finalmente, acabe
atendendo aos interesses essencialmente disciplinados da
escola. Os jovens professores, que entram no sistema, idea­
listas a respeito de seu trabalho, logo se indispõem con­
tra ele; alguns desistem desesperados. Se tivessem esque­
cido que a escola foi um a prisão para eles, se lembrariam
novamente de tudo. E, cedo, são obrigados a compreen­
der que, embora haja prisões liberais e prisões não tão
liberais, por definição, todas elas são prisões. A crian­
ça é obrigada a freqüentá-las; a prova disso, é que nunca
vão à escola espontaneamente. ( “Fim das aulas, Fim das
aulas, Pra casa os bobocas vão voltando, Chega de lápis,
Chega de livros, Chega de professores implicando.” *) E,
embora educadores esclarecedores tenham projetado sis­
temas completos de atividades disciplinares inerentemente
interessantes, para atrair e seduzir a criança a aceitar a
escola, esses sistemas nunca conseguem obter êxito total­
mente, pois um a escola que existisse somente para atender
à curiosidade das crianças, entendida nos seus próprios
termos, e que fosse dirigida por elas próprias, seria uma

* No original: “School’s out, School’s out, Teachers let the fools out,
No more pencils, No more books, No more teacher’s dirty looks.” (N.T.)

117
contradição em seus próprios termos — como vimos, a
escola moderna, em sua definição estrutural, existe para
im plantar a repressão.
A criança despende a maior parte de suas horas pro­
dutivas nessa estrutura coercitiva, ou fazendo deveres para
ela. O curto tempo que lhe resta, em geral, é absorvido
pelos afazeres e obrigações familiares. E la é forçada a
assistir a discussões familiares infindáveis, ou, em algu­
mas famílias “liberais” , a assistir a “conselhos familiares”.
Existem parentes para os quais ela deve sorrir, e, geral­
mente, missas a que ela deve assistir (todas essas horas
gastas de má vontade, com preces, pelas crianças). No
curto tempo restante, pelo menos em nossa classe média
m oderna, ela é “ supervisionada” , bloqueando-se o desen­
volvimento de sua iniciativa e de sua criatividade. Sua
escolha de materiais lúdicos está determinada (brinquedos
e jogos); sua área de brincadeira está definida (ginásios,
parques, playgrounds, campings). Geralmente, fica limi­
tada, na sua escolha dos companheiros de jogos, às crian­
ças da mesma classe econômica, e, nos subúrbios, aos
colegas de escola, ou aos filhos dos amigos de seus pais.
E ntra para um núm ero de grupos maior do que poderia
dar conta (escoteiros, lobinhos, bandeirantes, fadinhas,
acampamentos, clubes extra-escolares, e esportes). Sele­
cionam a cultura para ela. N a TV, freqüentemente, só
lhe é permitido assistir aos programas infantis (Papai
Sabe-Tudo), e é proibida de assistir aos filmes (bons)
para adultos. Seus livros e sua literatura, geralmente, são
tirados de listas desgastadas. ( Grandes Homens e M u­
lheres Americanas. Crônicas de Babe Ruth. Lassie.
N ancy Drew.)
As únicas crianças que têm a mínima oportunidade
de escapar desse pesadelo supervisionado — apesar de
serem cada vez em menor número — são as crianças dos
guetos e das classes operárias, onde a concepção medie­
val de comunidade aberta — m orando na rua — ainda
permanece. Isto é, historicamente, como vimos: muitos
desses processos da infância chegaram tarde nas classes
baixas, e nunca se firm aram realmente nelas. As crian­
ças da classe baixa tendem a proceder de grandes fa­

118
mílias nucleares, formadas de pessoas de idades muito
diferentes. Mas, mesmo quando isso não acontece, ge­
ralmente há meio-irmãos e meio-irmãs, primos, sobrinhas,
sobrinhos, ou tias, num meio de parentes em constante
mudança. As crianças, individualmente, são muito pouco
observadas, e menos ainda supervisionadas; geralmente,
podem andar bem longe de casa, ou brincar nas ruas,
durante horas. E, na rua, se por acaso a família é pe­
quena, existem centenas de garotos, muitos dos quais já
têm seus próprios grupos sociais (gangs*) formados. Elas
geralmente não ganham brinquedos, o que significa que
criam seus próprios brinquedos. (Vi garotos dos guetos
fazerem escorregas engenhosos de papelão, e colocá-los
em casas velhas sem degraus; vi outros fazerem carri-
nhos-de-mão e roldanas, com pneus velhos, cordas e cai­
xotes. Nenhuma criança da classe média faz isso. E la não
precisa. Mas, em conseqüência, ela logo perde a engenho-
sidade.) Elas exploram as regiões bem longe de seus pe­
quenos quarteirões, e, muito mais que seus companheiros
da classe média, travam relações com os adultos, num
mesmo nível. Nas aulas são rebeldes e indisciplinadas,
como, de fato, deveriam ser — pois a sala de aula é
um local que faria qualquer pessoa um pouco liberal sus­
peitar dela. Existe um desrespeito persistente pela escola
na classe baixa, pois afinal ela é, na sua origem, um
fenômeno da classe média.
Sexualmente também as crianças dos guetos são
mais livres. Um rapaz me disse que não conseguia se lem­
b rar de um a idade em que tivesse tido relação sexual
com outras garotas, sem isso ser um a coisa natural; todos
tinham. Aqueles que ensinam nas escolas das favelas
observaram ser impossível refrear a sexualidade das crian­
ças. É um a coisa rotineira; as crianças gostam, e é muito
melhor do que um a aula sobre a Grande Democracia
Americana, ou sobre a contribuição dos hebreus, com a
revelação de Um Deus Ünico (por que revelar um só?),

* As gangs constituem os únicos grupos de crianças de hoje autodiri-


gidos. O termo gang soa de um modo ameaçador, por boas razões po­
líticas. (N.T.)

119
ou sobre o café ou a borracha, como as exportações
mais importantes do Brasil. Assim, elas fazem am or ñas
escadas. E faltam à aula no dia seguinte. Se, na Amé­
rica moderna, a infância livre existe nalgum estágio, isso
se dá na classe baixa, onde o mito é menos expandido.
Por que, então, elas “se tornam ” piores em situa­
ção do que as crianças da classe média? Talvez isso seja
óbvio. Mas eu responderei com a minha própria experiên­
cia, consolidada por ter m orado e ensinado nas favelas.
As crianças das favelas não têm inteligência inferior, até
atingirem a idade adulta, e até isso é discutível. As crian­
ças da classe baixa são das crianças mais brilhantes,
mais atrevidas e mais originais. São assim porque são
deixadas em paz. (Se elas não se saem bem nas provas,
talvez precisemos reexaminar as provas, e não as crian­
ças.) Mais tarde, defrontando-se com um “princípio de
realidade” muito diferente do da classe média, são con­
sumidas e destruídas. Elas nunca conseguirão “ superar”
a sujeição econômica. Assim, é uma opressão do dia-a-dia
que gera esses adultos apáticos e sem imaginação, são
as restrições onipresentes à expansão de sua liberdade
pessoal — e não a infância largada.
Mas as crianças das favelas são apenas relativamen­
te livres. Elas ainda são dependentes e oprimidas como
um a classe econômica. Existe um a boa razão para que
todas as crianças queiram crescer. Então, finalmente, elas
sairão de casa, e (finalm ente) terão a oportunidade de
fazer o que quiserem. (Existe um a certa ironia no fato
de que as crianças imaginam que os pais podem fazer
o que querem, e os pais imaginam o mesmo das crian­
ças. “Quando eu crescer.. . ” corresponde ao “Ah, ser
uma criança novamente. . .” ) Elas sonham com am or e
sexo, pois vivem o período mais m onótono da vida. Ge­
ralmente, quando se defrontam com a miséria dos pais,
juram firmemente que, quando crescerem, isso não acon­
tecerá com elas. Constroem lindos sonhos de casamentos
perfeitos, ou de não se casarem de jeito nenhum (as
crianças mais espertas, que percebem que o erro está na
instituição e não nos pais), de dinheiro a ser gasto ao
bel-prazer, de muito amor e aprovação. Pretendem apa-

120
rentar ser mais velhas do que são, e se sentem insulta­
das quando alguém diz que aparentam ser mais novas
do que são. Tentam, furiosamente, dissimular a ignorân­
cia das avenutras amorosas, que é a desgraça física pe­
culiar de todas as crianças. Eis um exemplo, tirado de
O Sexo no H om em e na Mulher, de Reik, das pequenas
crueldades às quais elas são constantemente sujeitas:

“Diverti-me com um garoto de quatro anos, a quem eu


disse que tinha botado chiclete numa das árvores do jardim
de seus pais. Eu comprara alguns pacotes de chiclete e tinha
pendurados os chicletes com linhas, no galho mais baixo da
árvore. O garoto trepou na árvore, e colheu os chicletes. Ele
não duvidou que os chicletes tinham brotado da árvore, nem
refletiu sobre o fato de estarem enrolados em papel. Aceitou
de bom grado minha explicação de que os chicletes, brotando
em épocas diferentes, tinham vários sabores. No ano seguinte,
quando eu o lembrei da árvore de chicletes, ficou envergo­
nhado da sua credulidade antiga, e disse: ‘Não fale mais
nisso”.

Algumas crianças, num a tentativa de com bater esse


ridículo constante de sua credibilidade, tentam tirar pro­
veito disso — quando compreendem que sua dolorosa
ignorância é considerada “engraçadinha” — do mesmo
m odo como as mulheres o fazem. Esperando obter abra­
ços e beijos, elas fazem o papel de “burrinhas inocentes”,
trocando de propósito o sentido das coisas, mas rara­
mente isso funciona um a segunda vez, o que as deixa
perplexas. O que elas não compreendem é que a pró­
pria ignorância é considerada “engraçada”, e não suas
manifestações específicas. Pois, a maioria das crianças
não compreende a ordem arbitrária em que os adultos
têm as coisas, explicada impropriamente, mesmo quando
existe um a explicação minuciosa. Mas, em quase todos
os casos, dado o conjunto de informações com os quais
a criança começa, suas conclusões são perfeitamente ló­
gicas. Analogamente, se um adulto chegasse a um pla­
neta estranho e encontrasse seus habitantes construindo
fogueiras sobre seus telhados, ele iria imaginar um a ex­
plicação para isso; mas, as suas conclusões, baseadas no

121
seu passado diferente, poderiam provocar riso nos outros.
Cada pessoa, na sua primeira viagem a um país estran­
geiro, onde não conhece nem as pessoas, nem a lingua­
gem, vive a infância.
* * *

As crianças não são, portanto, mais livres do que


os adultos. Elas são sobrecarregadas por desejos, elabo­
rados na proporção direta às restrições feitas a suas vidas
limitadas; por um a desagradável sensação da própria in­
suficiência e ridículo físicos; por um a constante vergonha
da dependência econômica, e de outras espécies ( “M a­
mãe, eu posso?” ); e por um a humilhação, por causa da
ignorância natural da prática das aventuras amorosas.
As crianças são reprimidas a todo minuto. A infância
é o inferno.
O resultado disso é a pessoa insegura, e, conseqüen­
temente, agressiva/defensiva, geralmente antipática, a que
chamamos de criança. As opressões econômicas, sexuais
e psicológicas revelam-nas tímidas, desonestas, e essas
características desagradáveis, por sua vez, reforçam o
isolamento das crianças do resto da sociedade. Assim,
sua educação, particularmente na fase mais difícil da per­
sonalidade, é abandonada de bom grado às mulheres,
que tendem, pela mesma razão, a exibir essas caracte­
rísticas de personalidade. Excetuando a satisfação do
ego, ocupada em ter o próprio filho, poucos homens
mostram qualquer interesse pelas crianças. E, certamen­
te, não o suficiente para incluí-las em qualquer livro so­
bre revolução.
Assim, cabe às feministas (ex-crianças e ainda crian-
ças-mulheres oprim idas) revolucionárias fazê-lo. Precisa­
mos incluir a opressão das crianças em todo program a
de revolução feminista, ou estaremos sujeitas ao mesmo
fracasso de que tão freqüentemente acusamos os homens:
de não nos termos aprofundado suficientemente em nos­
sas análises, de nos ter escapado um im portante substra­
to da opressão, meramente porque esse substrato não
dizia respeito diretamente a nós. Digo isso, sabendo mui­

122
to bem que muitas mulheres estão enjoadas e cansadas
de serem englobadas junto com as crianças. O fato de
elas não serem mais responsáveis pelas crianças do que
qualquer outra pessoa será uma afirmação crucial para
nossas exigências revolucionárias. É só porque desen­
volvemos, em nosso longo período de sofrimentos rela­
cionados, uma certa compaixão e compreensão por elas,
que não há razão para perdê-las. Sabemos onde as crian­
ças estão, o que estão passando, porque nós, também,
ainda estamos sofrendo o mesmo tipo de opressões. A
mãe que quer m atar o filho, por causa do que teve que
sacrificar por ele (um desejo comum) só aprende a am ar
essa criança, quando compreende que é tão desprotegida
e oprim ida quanto ela, e pelo mesmo opressor. Então,
seu ódio se dirige para fora, e nasce o “amor m aternal”.
Mas iremos mais além. Nossa meta final deve ser a eli­
minação das próprias condições da feminilidade e da
infância, que hoje conduzem a essa aliança dos oprimi­
dos, abrindo caminho para uma condição “hum ana” to­
talmente “hum ana”. Ainda não existem crianças capazes
de escrever seus próprios livros, de contar suas próprias
histórias. Nós teremos que, um a última vez, fazer isso
por elas.

123
V. RACISMO: O SEXISMO DA FAMILIA
DO HOMEM

“O escravo deve ser liberto e a mulher deve permanecer


onde está, mas as mulheres não podem ser libertas e o escravo
continua onde está.”
Angelina Grimké,
numa carta a Theodore Weld
“O que é preciso, eu acredito, é que todos estes proble­
mas, particularmente o mal-estar entre a mulher branca e o
homem negro, sejam revelados, enfrentados e resolvidos. . .
Penso que todos nós, toda a nação, estaríamos em melhores
condições se encarássemos tudo isto frontalmente.”
Eldrige Cleaver, On Becoming

O primeiro livro americano a lidar especificamente


com a relação entre o sexo e o racismo foi Sexo e R a­
cismo na América, de Calvin Hernton. A popularidade
imediata do livro tanto na comunidade negra como na
branca confirmou o que todo mundo já sabia há muito
tempo: que sexo e racismo estão intrinsecamente entre­
laçados. Contudo, sem compreender suficientemente a
profundidade dessas relações, H ernton simplesmente des­
creveu o óbvio: que os homens brancos têm um quê
pelas mulheres negras, que os homens negros têm um
quê pelas mulheres brancas, que os homens negros não
respeitam as mulheres negras, e que os homens brancos

125
não podem ficar dependentes das mulheres brancas, que
as mulheres brancas têm uma simpatia e um a curiosidade
secreta pelos homens negros, que as mulheres negras de­
testam e invejam as mulheres brancas, e assim por dian­
te. Mesmo assim, o livro provocou reações imediatas,
como aconteceu depois com os vários livros e artigos
sobre o assunto. P or que isso?
O primeiro movimento pelos direitos civis silenciou
a verdade durante muito tempo. Cerceado e amarrado,
limitou-se a falar em tom baixo sobre o “Problema Ne­
gro”. Os negros eram “pessoas de cor” ; queriam apenas
as mesmas coisas simples que os brancos (sem cor) que­
riam ( “Somos irmãos” ). E então os brancos amavelmen­
te filtraram sua visão para encobrir as evidentes dife­
renças físicas, culturais e psicológicas existentes entre
eles. Palavras como “crioulo” foram abandonadas. Afir­
mações como “Você gostaria que sua irmã se casasse
com um negro?” tornaram -se de um mau gosto imper­
doável, um sinal de educação inferior. “Você é precon­
ceituoso!”, foi a acusação do ano. E M artin Luther King
usou magistralmente essa culpa, voltando a retórica cris­
tã sobre si mesma.
M as então veio o Black Power. Um estrondo de eu-
-lhe-pedi-sos foi lançado pela nação, sobretudo pela clas­
se operária, que estava mais próxima dos negros: O que
eles querem realmente é o nosso poder — estão atrás de
nossas mulheres. A honestidade de Eldrige Cleaver em
Soul on Ice trouxe uma conclusão ao assunto. A natu­
reza altamente sexual do problema racial foi revelada.
Também internamente, o movimento do Black Power
cada vez mais se envolvia com um gênero especial de
machismo, tanto proclam ando ativamente a masculinida­
de, quanto protestando contra a injustiça racial e de
classes.
M as não foi o elemento machismo do movimento
Black Power que perturbou seus inimigos. Essa parte do
movimento raram ente foi questionada pelo establishment
propriamente dito, ou pelo estabilisment liberal (de fato,
o papel de M oynihan no “m atriarcado negro” pode-se
dizer que criou esse complexo de castração maciço den-

126
tro da comunidade negra que ele descreve), ou pela Nova
Esquerda. E ra altamente compreensível, afinal, que os
homens negros finalmente quisessem o que todos os ho­
mens queriam: estar acima de suas mulheres. De fato,
essa parte era tranquilizadora: os homens negros deve­
riam começar a se interessar pela beleza negra, em vez
da branca (a onda de artigos recentes lam entando o
“duplo fardo” da mulher negra e sua carência de um
macho que a valorize é suspeita). Eventualm ente um a
“pureza” da pátria e da família levaria, talvez, ao con­
servadorismo e ao fatalismo. Não, não foi a masculini­
dade negra que fez os brancos reagirem — foi o que a
masculinidade pretende alcançar com suas ações: o Po­
der. Os homens negros declaravam-se, agora, abertamen­
te participantes na luta pelo poder masculino: queremos
o que vocês alcançaram, chega de saracotear. Os homens
brancos respiraram aliviados e começaram a se armar.
Eles sabiam como vencer isto. Pois, um a vez mais, tra­
tava-se de homens versus homens, de um a força pode­
rosa (aparelhada) contra outra. Foram para as frentes
de batalha com entusiasmo.
Qual é essa verdade que foi censurada, para tom ar
o movimento pelos direitos civis aceito pela América
Branca? Qual a relação entre o sexo e o racismo, que
faz qualquer livro sobre o assunto vender tão bem? Por
que só olhar para um negro em geral desperta sentimen­
tos sexuais tão intensos num homem branco? Por que os
homens negros desejam ardentemente as mulheres bran­
cas? Por que o preconceito é, geralmente, expresso em
termos sexuais? P or que o linchamento (em geral acom­
panhado de castração) ocorre nas mais extremadas ma­
nifestações de racismo?
A conexão entre sexo e racismo é obviamente mui­
to mais profunda do que se pode imaginar. Mas, embo­
ra a conexão nunca tenha sido explorada mais do que
superficialmente, já com uma década do novo movimen­
to, temos um a nova série de chavões referentes ao sexo
e à raça, um novo dogma para os “badalados”. Por
exemplo, no Quem é Quem da Opressão, um a hierar­
quia homem branco-m ulher branca-m ulher negra-homem-

127
-negro ainda se encontra em circulação, apesar das re­
centes estatísticas do Ministério do Trabalho.1 Além disso
há o Antagonismo do Intelecto versus a Carne, desen­
volvido por M ailer, Podhoretz, e outros, e continuado
por Cleaver, basicamente, a mística da m aior virilidade
do homem negro. E o Berço Negro da África, e a G ran­
de M ãe Negra em trajes africanos. Mas essa exposição
superficial da relação entre sexo e racismo pretendeu
apenas encaminhar o problema de um modo diferente,
dessa vez atendendo aos interesses do Antiestablishment
masculino.
Neste capítulo, tentarei m ostrar que o racismo é um
fenôm eno sexual. Analogamente ao sexismo na psique
individual, podemos compreender totalmente o racismo,
em termos das hierarquias de poder da família. No sen­
tido bíblico, as raças não são senão vários parentes e
irmãos da mesma Fam ília do Homem. E, semelhante ao
desenvolvimento das classes sexuais, a distinção fisioló­
gica da raça tornou-se culturalmente im portante, devido
exclusivamente à distribuição desigual de poder. Portan­
to, o racismo é o sexismo aumentado.

1. A Família Racial: ..

Édipo/Electra, o eterno triângulo, o bordel-atrás-dos-


bastidores

Lancemos uma olhadela nas relações raciais na Amé­


rica,2 um macrocosmo das relações hierárquicas dentro da

1. Em 1969, os homens brancos que tinham trabalhado em


tempo integral durante o ano, ganharam uma renda média de
6,497 dólares; os homens negros na mesma situação, $3,859; e
as mulheres negras, $2,674.
Mas só em alguns círculos radicais, afetados pelo M ovi­
mento de Libertação das Mulheres, é que se chega ainda a
admitir que as mulheres negras estão “por baixo” economica­
mente.
2. Eu me ocuparei aqui somente com as relações raciais do­
mésticas com as quais tenho maior familiaridade, embora não

128
família nuclear. O homem branco é o pai, a mulher bran­
ca a esposa-e-mãe, seu status depende disso; os negros,
como as crianças, são sua propriedade, sua diferenciação
física estigmatizando-os como classe servil, do mesmo
modo como as crianças formam nitidamente um a classe
servil vis-à-vis dos adultos. Essa hierarquia de poder cria
a psicologia do racismo, do mesmo m odo como, na fa­
mília nuclear, ela cria a psicologia do sexismo.
Previamente, descrevemos o Complexo de Édipo no
homem como sendo a neurose resultante da subserviência
forçada ao poder do pai. Apliquemos essa interpretação
à psicologia do homem negro. O homem negro, à pri­
meira vista, se identifica, por um fenômeno de simpatia,
com a mulher branca, que também é visivelmente opri­
mida pelo homem branco. Porque ambos foram “castra­
dos” (i.e., tornados impotentes, sem poder) do mesmo
modo pelo Pai, existem muitas semelhanças nos tipos de
opressão psicológica que cada um sofre, na natureza sexual
dessas opressões — e, portanto, na formação conseqüente
de seu caráter. Eles mantêm um vínculo específico na
opressão, do mesmo m odo como a mãe e a criança se
unem contra o pai.
Isso é responsável pela freqüente identificação da
mulher branca com o homem negro, num plano pessoal,
e, num plano mais político, por um a identificação com os
movimentos negros, desde o movimento abolicionista (cf.
H arriet Beecher Stow e), até o movimento negro atual.
A natureza vicária dessa luta contra a dominação do ho­
mem branco é afim à identificação vicária da mãe com
o filho contra o pai. A mulher não alimenta muitas espe­
ranças na sua própria luta, porque, para ela, tudo está
perdido desde o começo. Ela é definida in toto como
um apêndice do homem branco, ela vive sob a vigilância
diária dele, isolada das irmãs; ela tem um a força menos
agressiva. M as a mãe (m ulher branca) sabe que, se ela

tenha dúvidas de que a mesma metáfora poderia ser aplicada


com a mesma propriedade à política internacional e à do Ter­
ceiro Mundo.

129
não o é, pelo menos seu filho (homem negro) é poten­
cialmente “m acho”, i.e., poderoso.
M as, enquanto algumas mulheres ainda tentam alcan­
çar a.liberdade vicariamente, através da luta dos negros,
ou de. outros grupos racialmente oprimidos (tam bém bio­
logicamente distintos), muitas outras mulheres abando­
naram completamente a luta. Em vez disso, preferem acei­
tar a opressão, identificando os próprios interesses com
os dos homens, na vã ilusão de que o poder possa se
dissipar. A solução delas foi destruir — em geral por amor
— seus fracos egos individuais, para fundir-se completa­
mente com os egos poderosos de seus homens.
Essa identificação inútil é o racismo das mulheres
brancas — que, talvez, produza nos homens negros um
rancor ainda maior do que o racismo mais facilmente
compreensível de seus m aridos; pois ele indica um a trai­
ção da Mãe. Contudo, esta é um a forma inautêntica de
racismo, porque ela surge de um a falsa consciência de
classe, da ameaça do que é, no fim das contas, apenas
uma ilusão de poder. Se e quando ela é tanto ou mais forte
do que o racismo dos homens brancos, ela ainda continua
sendo diferente na sua natureza. E la é caracterizada por
uma histeria peculiar que, como o conservadorismo da
burguesia negra — ou como a mulher que berra para o
marido que ele trata melhor das crianças do que dela —
é, em si mesma, o produto direto da precariedade de
sua própria situação de (não) classe. Desse modo, o ho­
mem negro pode se tornar um bode expiatório do ódio
que a mulher sente pelo marido, mas que é incapaz de
admitir frontalmente.
Assim, a mulher branca tende a oscilar entre um a
identificação vicária com o homem negro e um racismo
histérico (mas inautêntico). As mulheres radicais que,
como a maioria das mulheres, desconfiam dos homens
em geral, particularm ente tendem a confiar e a simpatizar
com os homens negros — e então geralmente se desilu­
dem amargamente, quando os homens negros tiram par­
tidos delas pessoalmente, ou quando o movimento negro
não se modifica prontam ente o suficiente para apoiar a
causa feminina.

130
Pois raram ente existe amor e simpatia da parte do
homem negro. Voltando a nossa analogia: assim como o
filho estabelece inicialmente um vínculo de simpatia com
a mãe, e logo é exigido, no sentido de transferir sua
identificação da mãe para o pai, para erradicar a mulher
que existe dentro dele, assim também o homem negro,
a fim de “ ser um hom em ”, deve desfazer seu vínculo
com a mulher branca e, caso se relacione com ela, o fará
somente de um modo degradante. Além disso, devido ao
odio virulento e à inveja que ele tem do Possessor dela,
o homem branco, ele deve desejá-la ardentemente, como
urna coisa a ser conquistada, a fim de vingar-se do ho­
mem branco. Assim, ao contrário da polarização de sen­
timentos bem definida nas mulheres brancas, os senti­
mentos do homem negro em relação à mulher branca
são caracterizados por um a ambivalência — um a intensa
mescla de amor e ódio. Entretanto, por mais que ele de­
cida expressar essa ambivalência, é incapaz de controlar-
lhe a intensidade.
A recente peça de LeRoi Jones, Dutchman, ilustra
algumas dessas tensões e ambivalências no relaciona­
mento do homem negro com a mulher branca. Elas são
personificadas num encontro dentro de um metrô entre
Clay, um jovem burguês negro, e Lula, um a loura vamp:
o desrespeito de Clay por Lula, como o brinquedo do ho­
mem branco, misturado com uma atração erótica relu­
tante, a compreensão profunda e imediata que ela tem
dele, e, finalmente, a traição dela, term inando literalmente
com um a punhalada pelas costas (depois da qual ela grita
“curra” , escapando ilesa — podemos supor que para
destruir mais outros jovens negros preocupados somente
com seus próprios interesses). Essa é um a visão íntima que
o homem negro tem da mulher branca. Lula nunca chega
a ser um a mulher de verdade, tanto ela é um produto do
Complexo de Édipo racial que eu descrevi.
O relacionamento do homem negro com o homem
branco, similarmente, reproduz a relação do filho com o
pai. Vimos como, num certo momento, a fim de afirmar
o ego, o filho deve transferir sua identificação da mulher
(sem poder) para o homem (poderoso). Ele odeia o pai

131
poderoso. M as lhe é oferecida uma alternativa: se ele
realm ente efetuar a substituição (nos termos do pai, é
claro ), será recom pensado; se recusar isto, sua “masculi­
nidade” (hum anidade) será colocada em questão. Um
homem negro, na América, só tem a seguir um destes
caminhos:
1) pode ceder ao homem branco, nos term os do
homem branco, e ser pago pelo homem branco (Pai
Tomismo ). í 1# , u0-v *
2 ) pode recusar essa identificação completamente,
com o que geralmente se entrega à homossexualidade. Ou
pode continuar tentando desesperadamente provar que,
se não é “hom em ” aos olhos da sociedade branca, ao
menos não é um a mulher (Complexo de C afetão). T ra­
tando as “putas” com desrespeito visível, dem onstra a
todo mundo que está na classe sexual superior.
3 ) pode tentar derrubar o poder do Pai. Essa ten­
tativa pode, apesar de não necessariamente, encerrar um
desejo de se tornar o Pai, pela subordinação a sua posição
de Poder.
A não ser que o homem negro opte pela prim eira
escolha, a identificação com o Pai, nos próprios termos
do Pai, ele estará sempre sujeito à castração (destruição
de sua virilidade, de seu poder masculino ilegítim o),
particularm ente se bulir no tesouro do Pai, o apoio e a
personalidade do poder do Pai — sua mulher. Essa cas­
tração racial ocorre não só m etaforicamente, mas também
literalmente, na form a do linchamento.
Apliquemos agora nossa interpretação política do
Complexo de Electra à psicologia da mulher negra. Se o
homem negro é Filho para a família americana, então a
mulher negra é Filha. Sua simpatia inicial pela mulher
branca (m ãe), seu vínculo de opressão com ela (m ãe)
contra o homem branco (pai) é complicado por seu rela­
cionamento posterior com o homem branco (p a i). Quando
ela descobre que o homem branco possui esse “m undo de
dtscobertas e aventura”, ela, na posição servil de criança,
tenta identificar-se com ele, para negar a mulher que existe
dentro dela. (E ssa pode ser a causa da agressividade
muito maior da mulher negra, com parada com a docili­

132
dade de suas irmãs brancas.) Na tentativa de negar o ele­
m ento feminino (sem poder) nela mesma, ela passa a
desrespeitar a M ãe (m ulher branca). Do mesmo m odo
que a filha, ela pode reagir contra sua falta de poder,
de um dos seguintes modos: pode tentar ganhar direta­
m ente o poder, imitando os homens brancos, tornando-se
assim um a “grande realizadora”, um a m ulher de forte ca­
ráter que sobe na vida ( “especialmente para um a m u­
lher negra” ), ou pode tentar ganhar indiretam ente o poder
seduzindo o Pai (voilà a “m arafona” negra), colocando-se
assim num a competição sexual com a mulher branca,
pela preferência do Pai — levando-a a odiar e a invejar
a mulher branca, que ela agora passa a tentar imitar.
Enquanto isso, o relacionamento do Irm ão (hom em
negro) com a irm ã (m ulher negra) é feito de rivalidades
e desrespeito mútuo. C ada um vê o outro sem poder, como
um lacaio tentando desesperadam ente se dar bem com os
Pais (hom em e mulher brancos). C ada um está a par dos
jogos sexuais do outro. É difícil para eles dirigir suas ener­
gias eróticas um para o outro. Eles se enxergem, um ao
outro, bem demais.
Podemos nos valer, de um outro modo, da família,
para esclarecer a psicologia do racismo. Encarem os o
racismo como um a forma do E terno Triângulo. Nessa
situação, o homem branco é o M arido, a mulher branca,
a Esposa, e a mulher negra, a O utra M ulher. Vimos
como esse tipo de dicotomia entre a mulher “boa” e a
“m á” é, em si mesmo, um produto do Complexo de Édipo.
Um homem é incapaz de sentir, ao mesmo tempo, sexo e
afeto pelo mesmo objeto, assim ele precisa diferenciar
seus sentimentos. Pela esposa e mãe de seus filhos ele
sente respeito e afeição; pela “outra” mulher, seu recep­
táculo sexual, ele sente paixão. A exageração posterior
dessa divisão pelas diferenciações biológicas, p,e. cor3, ou

3. Uma ilustração interessante de sua comum e permutável


função política é a substituição psicológica da distinção de casta
racial pela distinção de casta sexual, p. ex., uma lésbica negra
automaticamente assume o papel de homem numa relação les­
biana entre branca-preta.

133
pelas distinções de classes econômicas torna o acting out
da própria esquizofrenia sexual muito conveniente. Não
precisamos de nos preocupar realm ente em degradar nosso
objeto sexual, para anular nossa culpa de termos quebra­
do o tabu do incesto; os atributos dele, por definição,
já o degradam. (Talvez o nível de corrupção da psique
masculina individual possa ser avaliado pelo grau
em que ela deseja a carne negra como alguma coisa de
exótica, de erótica, porque proibida.) Em bora destinada a
pagar o preço desse cisma — a exploração sexual —
a m ulher negra ao mesmo é liberta da escravidão da es­
trutura familiar. A m ulher branca por sua vez, em bora
reverenciada em seu papel de M ãe, está permanentem ente
acorrentada ao próprio tirano privado.
Como as mulheres que compõem esse Triângulo ra ­
cial sentem umas às outras? Separar e Vencer: ambas
desenvolveram sentimentos hostis em relação às outras,
as mulheres brancas desrespeitando as “prostitutas” sem
m oral, e as mulheres negras sentindo inveja dos “pom ­
pons” mimados. A mulher negra inveja a legitimidade,
o privilégio e o conforto da m ulher branca, mas também
sente um desrespeito profundo por ela: as mulheres bran­
cas são “putas frígidas”, que têm tudo muito fácil, obri­
gando as mulheres negras a fazer todo o seu trabalho de
m ulher branca — desde suprir as necessidades sexuais e
passionais de seus maridos e cuidar de seus filhos, até
fazer suas tarefas de limpeza ( “pau pra toda obra” ).
Analogamente, o desrespeito da m ulher branca pela mu­
lher negra vem m isturado à inveja: por causa da m aior
liberdade sexual da mulher negra, por sua fibra, por sua
independência do laço matrimonial. Pois, afinal, a mulher
negra não está sob o domínio de um homem, mas é muito
dona de seu nariz para fazer o que der e vier, para aban­
donar a casa, para trabalhar (por mais que se trate de
um trabalho degradante), ou para ser “preguiçosa”.
que a mulher, branca desconhece é que a mulher negra,
por não estar sob o dom inio. de um "homem, p o d e_ealãn
ser esmagada por todos. Não há alternativa para nenhui
delas, além de escolher entre ser uma propriedade públi­

134
ca^ou um a propriedade privada. N o entanto, p orque, cada
uma_ acredita que a outra está escapando de alguma
coisa, ambas podem ser enganadas, desviando sua frus-
tração uma para a outra, em vez de volta-la para o inir
migo real, “O Hom em ”.
jfl Sej no teatro "sexual da m ulher branca, ela repre­
senta a M ulher (a propriedade privada do hom em ), e a
mulher negra representa a “Prostituta” (a propriedade pú­
blica do hom em ), que papel o homem negro representa?
O de Cafetão. O homem negro é um mero joguete na
sexualidade da mulher branca. Pois, como vimos, o ho­
mem negro não é um homem completo, tam pouco um
homossexual (que desistiu completamente da luta pela
identidade m asculina), mas um homem rebaixado. (O
fato de cafetão significar um “homem rebaixado” é con­
firm ado pelo fato de que, no código masculino, cham ar
alguém de cafetão equivale a propor um duelo. M ostrei
como os termos degradantes de animais, usados tanto
para o homem quanto para a mulher, só ocorrem regular­
mente na gíria dos guetos — garanhão, vaca, gavião, ga­
linha, égua, etc.) A masculinidade do homem negro é tão
mais frágil que a do Homem, que ela só pode se afirm ar
em termos de seu poder e controle — isto é, m aus-tratos
■— sobre as mulheres, que são ainda menos poderosas
do que ele. Pelo fato de as mulheres serem sua arm a mais
im portante na guerra contra o homem branco pela m as­
culinidade, sua relação com elas se corrom pe — é, não
como a relação do homem com a mulher, do m arido com
a esposa, mas como a do cafetão com a prostituta. A
proteção que ele dá à mulher negra é falsa. Em bora, algu­
mas vezes ele possa até protegê-la dos males do mercado,
ele o faz visando aos próprios interesses. Mas, mesmo
quando o homem negro mais aparenta ser o explorador
original dela, é, na realidade, apenas o agente indireto
dessa exploração. Pois, embora possa m anobrar as éguas
de seu “estábulo” umas contra as outras, embora possa
tirar o dinheiro delas (fruto suado de sua exploração di­
reta pelo homem branco) e gastá-lo no jogo, embora
possa bater nelas e xingá-las, isso nunca o qualificará
como um homem verdadeiro. O homem verdadeiro, am-

135
bos sabem disso, é O Homem. Só ele pode conferir legi­
timidade a ambos, ao homem e à mulher negra. E, além
disso, tal como no triángulo Esposa-Prostituta, ele m an­
tém o Cafetão e a Prostituta num a balança, lutando
contra cada um deles, através do outro. A m aioria das
tensões destes triângulos sobrepostos aparece na pequena
citação de uma mulher negra dirigida ao seu homem, que
se segue:

“Naturalmente você dirá ‘Como eu posso te amar e que­


rer estar com você, se quando eu chego em casa você parece
uma palerma? Pois saiba que as mulheres brancas nunca
abrem a porta para seu maridos do jeito que vocês, putas
negras, abrem’.”
‘E eu não poderia adivinhar, não, seu ignorante? Por que
eias estariam nesse estado, se têm empregadas como eu, que
fazem tudo por elas? As crianças não berram no ouvido dela,
ela não fica de pé ao lado do fogão quente; tudo é feito para
ela, e seu homem, amando-a ou não, sempre a sustenta. . .
sustenta . . . você ouviu isso, seu negro? SUSTENTA!’
Gail A. Stoke, em “Black Woman to Black Man”
Liberator, December, 1968.

Mas, não é só a relação do homem negro com a


mulher negra que é corrom pida por sua preocupação
com o homem branco. Pois, embora a mulher negra possa
dar até a sua última moeda para o homem negro tom ar
um drinque, seu envolvimento real também é com o ho­
mem branco. Adiante, a fala do Infiel, tirada da “Alego­
ria dos Eunucos Negros” , de Cleaver:

“Desde então, eu sempre acreditei que, para uma mu­


lher negra, casar-se com um homem branco era como pregar
a última estrela na sua coroa. É o máximo de realização aos
seus olhos, e aos olhos de suas irmãs. Vejam quantas cele­
bridades de famílias negras se casam com homens brancos.
Todas as mulheres negras que não são celebridades desejam
sê-lo, só para também poderem se casar com homens brancos.
A brancura é o seu sonho dourado. Quando elas beijam você,
não é você que elas estão realmente beijando. Elas fecham
os olhos e imaginam seu príncipe encantado cor de neve. Ou­
çam os boatos. . . Jesus Cristo imaculado é o noivo psíquico

136
da mulher negra. Você saberá, antes de morrer, que, durante
a cópula e no momento do orgasmo, a mulher negra [ame­
ricana], nas primeiras pontadas de seu espasmo, grita o nome
de Jesus. ‘Oh, Jesus, estou gozando!’, ela grita para ele. E isto
o ofenderá. Será como uma faca em seu coração. Seria o
mesmo se sua mulher, durante o orgasmo, gritasse o nome
de um cara imundo que morasse nas vizinhanças.”

Assim, a mulher negra tem tanto desrespeito pelo


homem negro quanto por ela — um homem de verdade
poderia elevá-la pelo casamento, graças a sua classe su­
perior. Ela não pode respeitar o homem negro, porque
sabe que ele não tem poder. O homem branco, pelo menos,
“ sustenta” sua mulher, e não bate nela. O homem branco
c civilizado, bom e cortês o tempo todo. Ela não com pren­
de que para ele é interessante ser assim. Desse modo, nem
o Cafetão, nem a Prostituta suspeitarão que seu Cortês
Homem Branco é o responsável pela destruição de ambos.
Assim, a Fam ília Americana é sustentada pela exis­
tência da Casa de Prostituição do gueto negro. O estru-
po da comunidade negra na América torna possível
a existência da estrutura familiar da comunidade branca
em geral, do mesmo modo como a prostituição sexual
mantém a respeitável família da classe média. A comuni­
dade negra é o grupo marginal que supre as necessidades
sexuais da família branca, m antendo seu funcionamento.
E é por isso que não existe solidez familiar no gueto.
O modo como esse sistema sexual/racial é recriado
tão freqüentemente em miniatura na vida privada revela
a profundidade do problema. O lar branco individual é
sustentado pela eterna exploração, tanto doméstica quanto
sexual da mulher negra. O jovem médio do gueto atua
como cafetão, ou então se prostitui como de rotina, sendo
seu valor como “homem” avaliado pelo modo como ele é
capaz de com andar suas putas — e por quantas ele pode
com andar ao mesmo tempo. Ele se torna um mestre da
lábia, do papo de segundas intenções. Se é capaz de
“am arrar” um a “gatinha” branca, esse é um ponto a mais
no seu crédito — pois é um golpe direto no homem bran­
co (P a i). Isso explica a freqüente união da prostituta

137
branca com o cafetão negro: a mulher branca (m ãe) é
rebaixada a prostituta junto com a mulher negra, uma
bofetada direta no homem branco. E la é a mais pre­
ciosa propriedade do Pai, agora revendida a ele como
m ercadoria danificada. Q uanto à própria prostituta bran­
ca — nos poucos casos em que isso foi uma opção —
ela exprimiu o máximo de masoquismo. Ela se torna to­
talm ente a presa do homem branco, beijando seus pés,
submetendo-se à extrema humilhação: um cafetão negro.

2. “Masculinidade Negra”

Qual a atitude da comunidade negra militante diante


dessa degradação psicossexual que é o racismo? Afirmei
que o homem negro tem três alternativas para reagir
ao poder do homem branco sobre ele.
1) pode submeter-se às condições estabelecidas pelo
homem branco (n a melhor das hipóteses, torna-se uma
celebridade negra — comediante, atleta, ou músico —
ou um membro da burguesia negra).
2) pode recusar totalmente a identificação, com todas
as conseqüências de ser definido como menos que “um
homem” (o rapaz arruinado do gueto que eu descrevi).
3) pode tentar revoltar-se contra o Pai, e destroná-
lo, o que pode incluir roubar essa posição de poder para
si mesmo (organização política pela revolução, sobre­
tudo a militância recente).
O movimento negro escolheu a terceira alternativa,
longe de ser a mais saudável. Mas, como pretende pôr
isto em prática? Um dos meios é unir-se às forças brancas
que estão tentando a mesma coisa.4 A família mais uma
vez: o homem branco da esquerda é o Filho Legítimo

4. Aqui e em todo o capítulo, eu estou assumindo a posição


do Partido Black Panther como representante do Black Power,
embora eu esteja muito ciente de que o BPP enfrenta contro­
vérsias violentas com outros grupos do Black Power sobre mui­
tas coisas.

138

I
fraco. O homem negro é o Filho Bastardo valentão, o
filho ilegítimo, querendo um a oportunidade para ter esse
poder. Os M eio-Irm ãos fizeram um acordo: o Irm ão de­
serdado oferece a sua experiência de rua e a força do seu
descontentam ento para ajudar ao Filho Legítimo mimado
e neurótico, em troca de tática, retórica, e sobretudo por
um a promessa de um a parte dos direitos hereditários
desse filho, quando ele alcançar o trono. Aquilo de que
os dois irmãos realmente falam não é de justiça nem de
igualdade, mas de poder (m asculino).
E quem é a Irmãzinha? Foi permitido às mulheres
brancas da Esquerda seguir de perto, ocasionalmente, os
homens, se elas fizessem o trabalho sujo. Mas, na maioria
das vezes, elas são rebaixadas e excluídas ( “pragas” , com
suas constantes exigências de inclusão, tendo acesso de
raiva diante de qualquer pequena observação “chauvinista
m asculina” ). A Irm ã engana a si mesma, identificando-se
tão intensamente com o G rande Irm ão, que às vezes acre­
dita ser exatamente como ele. Ela percebe que é cada
vez mais difícil identificar-se com aquela massa indistinta
de mulheres comuns (M ã e), que ela precisa destruir em
si mesma, para ganhar a aprovação do G rande Irmão.
E le a encoraja a fazê-lo. Sabe que as ilusões do poder
futuro dela a tornarão, afinal, mais dócil. E la pode ser
útil, sobretudo para subornar o Pai.
Além disso, os Irmãos fizeram um pacto de sangue:
você me dá suas gatinhas (o Irm ão Bastardo satisfaz suas
fantasias pela Irmazinha, enquanto que o homem branco
finge não n o tar), e eu te dou as minhas (o homem branco
consegue sua prim eira foda verdadeira, enquanto que o
Irmão Bastardo contém o riso).
E a irmã negra? Ao procurar conseguir a “legiti­
midade” dessa vez, os militantes negros masculinos estão
reorganizando sua sexualidade, de modo a ficar de acordo
com o modelo existente. São feitas anualmente tentativas
para instituir a família na comunidade negra, para trans­
form ar a comunidade negra de Casa de Prostituição da
família branca em Fam ília Negra. A mulher negra está
sendo convertida de seu papel anterior de Prostituta em
Adorada-Rainha-Negra-M ãe-de-M eus-Filhos. Assim, o F i­

139
lho Bastardo assumiu o papel de Pai dentro de sua pró­
pria comunidade, na expectativa de seu poder futuro. Eis
um poster muito circulado, afixado num a vitrine da East
Village:

OURO NEGRO
[um perfil marcante, em tamanho grande, de uma
mulher negra com cabelo black power]

EU SOU A MULHER NEGRA, MÃE DA CIVILIZAÇÃO,


RAINHA DO UNIVERSO. ATRAVÉS DE MIM O HOMEM
NEGRO CONSTRÓI

SUA NAÇÃO

“Se ele não proteger sua mulher, ele não construirá uma
boa nação. É meu dever ensinar e treinar os jovens, que são
o futuro da nação.
Eu ensino a meus filhos, quando eles são bem pequenos,
a língua, a história e a cultura.
Eu os ensino a amar e respeitar o pai deles, que trabalha
arduamente para que possam ter comida, roupas e casa ade­
quada.
Eu cuido de nossa casa, e torno-a confortável para meu
marido.
Eu reflito o amor que ele tem pelas crianças, assim como
a Lua reflete a luz do Sol para a Terra.
Eu sento para conversar com meu marido, para resolver
os problemas diários e as necessidades de funcionamento de
um lar estável e tranqüilo.
O melhor que eu posso dar a minha nação são crianças
fortes, sadias e inteligentes, que se tornarão os líderes de
amanhã.
Eu estou sempre ciente de que o verdadeiro valor de uma
nação se exprime através do respeito e da proteção da mu­
lher, portanto eu me conduzo o tempo todo de maneira civi­
lizada, e ensino meus filhos a fazerem o mesmo.
Eu sou a Mulher Negra.”

Mas, essa transform ação, quando ela ocorre, baseia-


se na fantasia, pois enquanto o homem branco estiver no
poder, ele terá o privilégio de definir a comunidade negra

140
como quiser — os negros são dependentes dele para sua
sobrevivência — e as conseqüências psicossexuais dessa
definição inferior continuarão a operar. Assim, o con­
ceito de Fam ilia Negra Digna raram ente penetra nos cír­
culos da Burguesia M acaq u ead o s, ou entre os V erdadei­
ros Adeptos Revolucionários. N a verdade, seria preciso
que acreditássemos fanaticam ente na Revolução, para re­
chaçarmos as tendências de mentalidade do atual siste­
ma sexual/racial. Só poderíamos adotar essa estrutura re­
mota, a partir da antecipação visionária segura de um
m undo diferente. O fato de que o espírito da juventude
do gueto não está ansioso em pôr em prática esta estru­
tura familiar é compreensível. Diariam ente, eles estão à
mercê das necessidades sexuais reais da Fam ília Branca;
não podem permitir-se deixar de dançar conforme a mú­
sica dessa realidade terrível, ou esquecer por um momen­
to que m antêm o poder. Nesse aspecto, os revolucionários
negros são tão perigosos quanto um a pequena banda de
N at Tum ers, tentando instituir o casamento nos bairros
escravos, em antecipação à rebelião vindora. E todas as
advertências em contrário, mesmo as revolucionárias,
encontram dificuldade em libertar-se dessa psicologia se­
xual/racial, revelando-se elas próprias ainda irresistivel­
mente atraídas pelas “diabas louras” . Pois ela está arrai­
gada muito nas suas psiques, sustentada pelo dia-a-dia
das realidades do poder. O próprio Cleaver se debate
num conflito:

“Um dia, vi numa revista a fotografia da mulher branca,


que tinha flertado [e assim causado a morte dele] com Emmett
Till. Enquanto olhava a foto, senti uma ligeira pressão no
meio do peito, que em geral experimento quando uma mulher
me atrai. Olhei muitas vezes para a fotografia, e, apesar de
tudo que ela representava, ela ainda me atraía. Enfureci-me
comigo mesmo, com a América, com as mulheres brancas,
com a história que tinha gerado essas pressões de sensuali­
dade e desejo em meu peito. Dois dias depois tive um ‘es­
gotamento nervoso’.”

A m aior virtude de Cleaver como escritor é sua


honestidade. Em Soul on Ice conhecemos a psicologia do

141
homem negro, particularm ente o desgastante am or/ódio
pelo “Ogro” (m ulher branca). De fato, o relato de Clea-
ver contém a maioria das ambivaléncias que descrevemos.
Por ele nos vem alguma idéia do que era sua atitude ante­
rior com relação às mulheres (negras), antes de apaixo-
nar-se p o r um a m ulher (b ran ca ):
m

“Sempre respeitei você em segredo. Eu tinha um mau


se R€F€ ficr^\ "A-S

hábito, ao falar sobre, as mulheres, em presença dos homens.


de referir-me a elas como a putas. Essa putà aqui, aquela
BíY\

puta lá, você sabe. Um minuto antes, eu falava de você para


um casal de assassinos e eu disse “essa p u ta . . . ” E me senti
wuLH€n£¿>

muito envergonhado por isso. Julguei a mim mesmo e sofri


espiritualmente depois durante dias. Isso pode parecer in­
f-t0(H£W¿

significante, mas eu atribuo muita importância ao fato, por


causa da série de pensamentos que morreram com isso. Eu
gosto de você, estou envolvido com você, o que é muito novo
e representa uma mudança brusca para Eldridge X.”
Prelúdio ao Amor — Três Cartas

Em geral, nessas cartas, originalmente escritas para


uma advogada em São Francisco, Beverly Axelrod, Clea-
ver tenta livrar-se das “conversas moles” , do engenhoso
olhar convidativo que constituem a marca registrada do
homem negro. Nem sempre ele é bem sucedido. Perce­
bemos que ele tem que lutar contra si mesmo; contém-se
a tempo (quase inteligentemente dem ais), admitindo o
que ele está fazendo:

“AGORA, VIRE O DISCO E TOQUE O OUTRO LADO


Eu tentei seduzir você. Eu não sou de modo algum humilde.”

Mas, quando Beverly expressa cinismo pelo amor


dele, ele a convence primorosamente de que ela deve “ de­
sabafar-se” com ele, acreditar nele.
Beverly estava certa. Seu cinismo feminino, como de
costume, era mais do que justificável — ela não era cí­
nica o bastante. (Cleaver, para citar um exemplo, casou-

142
se com um a m ulata, Kathleen, deixando Beverly desam ­
parada. As últimas fotos incluem um filho pequeno.)
Suas cartas para Beverly, quase tão personalizadas e ho­
nestas quanto provavelmente ele nunca escreveu para
uma mulher, são seguidas de um a carta floreada (teste­
munho? doutrina?) Para Todas as Mulheres Negras De
Todos os Homens Negros. Sua imagética genital inclui
preciosidades como:

“Após o inferno nu de minha masculinidade negada, de


quatrocentos anos [!], sem meu saco, hoje nos defrontamos
um com o outro, minha rainha.”

L em bra-a que:

“Rios de sangue escorrem hoje por entre minhas pernas...”

E finalmente, triunfante:

“Eu entrei na caverna e arranquei meu saco dos dentes


de um leão que ru g ia .. . ”

Suas encantações de páginas inteiras, dirigidas ao


Berço Negro da África, são, é o mínimo que se
pode dizer, o melhor meio de adular um a mulher.
Pois, apesar de sua saudação, à Fem inilidade Negra
( “Rainha-M ãe-Filha da África, Irm ã da M inha Alma,
Noiva Negra da M inha Paixão, Meu Eterno Am or” ), Clea-
ver, nessa suposta carta de amor, está fixado em si mesmo
e na sua “masculinidade”. Não existe um a concepção da
mulher..negra como um ser hum ano com seus propnos
direitos. E la é meramente _um suporte de s u a . própria
imagem (m asculina). O mesmo velho truque na aparên­
cia revolucionária: o homem deiinindo negativamente a
si mesmo, como um homem-forte distinto da mulhèr-
fraca, em função do controle dele sobre ela — como o
cafetão. que rejeita a mulher que existe dentro dele,
obtendo um a falsa impressão de masculinidade (poder)
através da dominação de todas as mulheres da sua vizi­
nhança. A natureza sexual das angústias raciais de Clea-
ver é revelada em seu ataque a Baldwin, que não é nada

143
mais do que o ataque vicioso do Cafetão Negro à Rainha
Negra. A R ainha preferiu renunciar totalm ente à iden­
tificação (poder) masculina, em vez de aceitar a defini­
ção sexual degradante legada pelo homem branco, com
isso ameaçando o Cafetão, que luta por um a batalha
perdida. E , como se esse ataque não fosse suficiente,
Cleaver revela sua insegurança sexual na sua imagem
de Super-garanhão, o Norm an M ailer negro. Alguns lan­
çam pragas, a julgar pela histeria de seu protesto m as­
culino.
A transform ação da m ulher negra na mulher passiva
tradicional cria um útiT £ario-3e-fu"53o negativo, contra
o qual a própria definição* que o homem negro dá de si
mesmo como masculino £agressivo) pode se lançar. Ê
na sua condição de trampolim ou de saco-de-paricadâT**i
'm uiher'ñégFa e valiosa e deve ser “humildemente” corte­
jada. Sua cooperação é im portante, pois o homem negro
só pode ser o “hom em ” se alguém for a “m ulher” .
As mulheres negras, tão afeitas a lábias, parecem
ter caído nesse “papo”. Eis um a repreensão escrita por
outra mulher negra, em resposta à acusação dirigida aos
homens negros por Gail A. Stokes, que eu citei anterior­
mente. E la é célebre por seu antifeminismo feminino:

“Certamente [os homens negros] erram, mas nós também


não erramos? Isso é normal nalguém que está tentando algu­
ma coisa nova, i.e., a liderança. . . Portanto, como você,
Gail Stokes, pode ter a audácia de alfinetar o orgulho do
liomem negro? Como pode você atrever-se a tentar arruinar
a sua sorte? Alguma vez já lhe ocorreu que é você, na ver­
dade, que está errada? Olhe bem para você, irmã; uma mu­
lher reflete o homem que ela tem.”

E la apela para o homem negro:

“Homens negros: Eu também ouvi seu brado, vibrando


de dentro de seu orgulho recém-descoberto e do traje africano.
E a esse brado eu respondo: Conserve seu lugar legítimo à
minha frente, meu a m o r.. . Sim, meu amor negro, você é
um homem de verdade, um homem raro. E em todas as suas
lutas eu quero que você saiba que eu luto apenas a alguns

144
passos atrás de você, porque esse é o meu lugar na sua vida...
Você é tudo porque eu estou aqui.”

E la então aplaca o ego alfinetado dele, assegu­


rando-lhe sua im orredoura lealdade às suas “bolas” :

“Tendo seu saco arrancado de você, e ainda tentando


ser um homem! Ah, esses momentos angustiados da puber­
d a d e .. . esses sofrimentos crescentes.... Diga-me quantos
liomens foram castrados só para desafiar essa castração e
deixar nascer novos sacos!. . . Você precisa ser apoiado e
amado e comunicado de quão maravilhoso você é realmente.”

Edith R. Hambrick, “Black Woman to Black wom an”,


Liberator, Dezembro, 1968.

(Itálicos dela. E observe-se a capitalização do título:


uma advertência à irmã para começar a “entrar na linha”?)

Mas, quando ela própria “entrar na linha”, sua re­


compensa não será um tipo de am or personalizado (como
nas cartas a Beverly A xelrod), e sim um am or impessoal,
dirigido, através dela, a todo o Sexo Feminino Negro.
Eis Bobby Seale na sua conhecidíssima Carta a M inha
Esposa (como a dedicatória do poeta principiante no pre­
sente de N atal dado a sua nam orada, aparecendo inevita­
velmente na publicação de verão do jornal de poesia da
U niversidade):

“Artie, querida . . .
Se eu não lhe amar agora porque eu vi outro dia alguma
coisa no seu rosto que dizia que você era uma revolucionária,
então algo está errado. . . . O que Malik [o filho deles de três
anos] está fazendo? Ensine-o como ajudar as pessoas com
seus exemplos, A r tie .... Artie, espero que você não esteja
sendo egoísta, conservando essa carta com você. Oh, eu sei
que você a está lendo para os outros membros do partido ..

P or que motivo_as mulheres negras, tão espertas em


relação aos seus h omens em geral, fixam-se nesse gênero
de am or protetor, impessoal e insípido? Por causa do

145
Triângulo. Como vimos, a mulher negra representou du-
rante séculos a Prostituta^, usada e abusada pelos ho­
mens brancos (seus “trunfos” ) e pelos .homem negros
(seus “cafetões” ). Todo esse tempo, ela olhou com inve­
ja para a legitimidade, p—í\ segm ança..da., mulher branca.
Agora, tendo-lhe sido oferecida essa legitimidade, sob
qualquer pretexto, ela é tentada a ter pretensões para m
mesma, desconhecendo as aversões reservadas. A Esposa
é_a única que pode lhe revelar isto, mas elas não se dão.
Pois, como vimos, cada* um a aprendeu a projetar suas
frustrações na outra. Seu longo antagonismo torna difí­
cil para as duas trocar as lições valiosas"fe~3o~?orosas) que
elas aprenderam a respeito do H om em, Se elas conseguís-

desses papéis é autodeterjninado. Elas poderiam ficar aler­


tas às admoestações de Eldridge Cleaver, visto que ele
antecipa seu futuro poder masculino, num desses raros
momentos de honestidade com as mulheres:

“AGORA, VIRE O DISCO E TOQUE O OUTRO


LADO:

Eu tentei seduzir você. Eu não sou de modo algum hu­


milde. Eu não tenho humildade e não temo você de modo
algum. Se eu finjo ser tímido, se eu pareço hesitar, é apenas
uma farsa para enganar. Representando o papel de humilde,
cu tapeio meus companheiros e os seduzo, ganhando a sua
confiança. E então, se isso me é vantajoso, finco o pé nisso,
sem compaixão. Eu menti, quando disse que não tinha opi­
nião sobre mim mesmo. Eu estou muito ciente de meu estilo.
Minha vaidade é tão grande, quanto o alcance de um sonho,
meu coração é o de um tirano, meu braço é o braço de um
verdugo. A única coisa que eu temo é o fracasso das minhas
tramas.”

146
I

146
VI. AMOR

Um livro sobre o feminismo radical que não tratas­


se do am or seria um fiasco político. Porque o amor, talvez
ainda mais que o parto, é o pivô da opressão das mulheres
hoje em dia. Eu me dou conta de que isso tem implica­
ções assustadoras. Queremos nos livrar do amor?
O pânico sentido por qualquer ameaça ao amor é
um ótimo indício de seu "significado político. Um outro
sinal de que o amor é central em qualquer análise sobrp
as mulheres, ou sobre a psicologia sexual é sua omissão da
própria cultura, sua relegação à “vida pessoal”, (Quem
ouviu falar de lógica no quarto de dorm ir?) Sim, ele é
retratado em novelas, até na metafísica, mas nelas é des­
crito, ou melhor, recriado, e não analisado. O amor nunca
foi compreendido, em bora possa ter sido amplamente
experimentado, e essa experiência ter comunicado.
Existem motivos para essa falta de análise: A s mu-
lheres_e_ o A m or são escoras. Exam inem-se eles, e a ver­
dadeira estrutura da cultura ficará ameaçada.
A questão já gasta de “O que as mulheres faziam,
enquanto os homens criavam obras-primas?” merece mais
do que a resposta óbvia do “as mulheres eram excluídas
da cultura, exploradas em seu papel de m ãe”. Ou o seu
reverso: As mulheres não tinham necessidade de pintura,
já que criavam filhos. O amor está ligado à cultura em

147
níveis mais profundos do que estes. Qs homens pensavam,
escreviam e criavam, porque as mulheres extravasavam
as energias sobre esses homens; as mulheres não criam
cultura, porque estão preocupadas com o amor.
O fato de as mulheres viverem para o amor, e os
homens para o trabalho é um truismo. Freud foi o pri­
meiro a tentar situar as bases dessa dicotomia na psique
individual: o filho, rejeitado sexualmente pela prim eira
pessoa de seu interesse, a mãe, “sublima” sua “libido” —
seu reservatório de energias sexuais (vitais) — em proje­
tos a longo prazo, na esperança de receber amor, num a
form a mais generalizada. Assim, ele desloca sua necessi­
dade de amor para uma necessidade de reconhecimento.
Esse processo não é o mesmo na mulher: nunca deixa
de desejar o calor direto e a aprovação.
Existe também m uita verdade nos chavões de que
“por trás de todo homem existe um a mulher” , ou de que
“ as mulheres são o poder [leia-se: a voltagem] por trás
do trono”. A cultura (m asculina) fundou-se no amor
das mulheres, e à sua custa. As mulheres forneceram a
substância das obras-primas masculinas, e, por milênios,
fizeram o trabalho e suportaram o preço de relações emo;
cionais unilaterais, cujos benefícios iam para os homens,
e para o trabalho dos homens. Portanto, se as mulheres
são um a classe parasita, vivendo afastada e às margens
da economia masculina, o inverso também é verdadeiro:
A cultura (masculina) foi (e é) parasitária, alimentan­
do-se da força emocional das mulheres, sem reciprocir
dade.
Além do que, tendemos a esquecer que essa cultura
não é universal, mas, ao contrário, sectária, mostrando
apenas m etade de sua estrutura. A verdadeira estrutura da
cultura, como teremos a oportunidade de ver, está satu­
rada por essa polaridade sexual, bem como é, em todos
os níveis, dirigida pelos, para, e conforme os Interesses da
sociedade masculina. Mas, enquanto a metade masculina é
chamada de toda a cultura, os homens não se esqueceram
de que existe uma metade “emocional” feminina. E la é vi­
vida às escondidas. Em conseqüência de sua luta para ex­
pulsar as mulheres existentes dentro deles (o Complexo

148
de Édipo, como o interpretam os), os homens são incapa­
zes de considerar o am or seriamente, como um a questão
cultural. No entanto, eles não podem passar sem ele com­
pletamente. O amor é o nervo da cultura (m asculina),
assim como o amor é o ponto fraco de todo homem, em­
penhado em provar sua virilidade nesse vasto m undo mas­
culino de “descobertas e aventura”. As mulheres sempre
souberam como os homens precisam de amor, e como
eles negam essa necessidade. Talvez isto explique o pe­
culiar desrespeito que as mulheres sentem, tão universal­
mente, pelos homens ( “os homens são tão bobos” ), pois
elas conseguem compreender que seus homens posam
para o mundo exterior.

I
V
Como esse fenômeno “am or” funciona? C ontraria­
mente à opinião popular, o amor não é altruísta. A atra­
ção inicial é baseada no estranho encanto (hoje, mais
comumente, a inveja e o ressentimento) pelo autocontro­
le, a unidade integrada do outro, e um desejo de tornar-
se, de algum modo, parte de seu Self (leia-se hoje: im-
por-se ou dom inar), de tornar-se im portante para esse
equilíbrio psíquico. A independência do outro origina de­
sejos (leia-se: um desafio); a admiração (inveja) do
outro torna-se um desejo de incorporar (possuir) suas
qualidades. Segue-se um conflito de selves, no qual o
indivíduo tenta repelir o crescente poder do outro sobre
ele. O am or é a abertura final para o outro (ou a rendi­
ção ao seu dom ínio). O amante dem onstra ao bem-ama-
do como ele próprio gostaria de ser tratado. (“E u tanto
tentei fazê-lo apaixonar-se por mim, que eu mesma aca­
bei me apaixonando por ele.” ) Assim, o amor é o auge
do egoísmo. O self tenta se enriquecer, através da absor­
ção de um outro ser. A m ar é ser fisicamente vulnerável
ao outro. Trata-se de um a situação de vulnerabilidade
emocional total. Portanto, não deve ser apenas a incor­
poração do outro, mas uma troca de selves. Qualquer
coisa desprovida de troca m útua prejudicará um a das
partes.

149
Não existe nada inerentemente destrutivo nesse pro­
cesso. Um pouco de egoísmo saudável pode ser um a mu­
dança restauradora. O amor entre dois iguais seria um
enriquecimento, cada u jb .expandindo a si mesmo, através
do outro. Em vez de só, fechado na cela de si mesmo,
exclusivamente com sua própria experiência e seu pró­
prio ponto de vista, o indivíduo poderia participar da
existência de outro — uma janela extra para o mundo.
Esse é o motivo da satisfação que os amantes bem su­
cedidos experimentam. Eles estão tem porariam ente liber­
tos do fardo de isolamento que todo indivíduo carrega.
Mas, a satisfação no am or raram ente ocorre. Para
cada experiência de amor bem sucedida hoje, para cada
pequeno período de enriquecimento, existem dez expe­
riências de amor destruidoras, “depressões” pós-amorosas
de muito maior duração — em geral terminando com a
destruição do indivíduo, ou pelo menos com um cinismo
emocional que torna difícil ou até impossível am ar nova­
mente. Por que aconteceria isso, se não é, hoje, inerente
ao próprio processo de amor?
Falemos do amor, no seu aspecto destrutivo — e
porque ele tom a esse rumo, referindo-nos um a vez mais
à obra de Theodore Reik. A observação concreta de Reik
coloca-o mais próximo da compreensão do processo de
“enamorar-se” , do que muitas mentes superiores, contu­
do, ele perde essa compreensão, na medida em que con­
funde o amor, como ele existe em nossa sociedade atual,
com o próprio amor. Observa que o amor é uma form a­
ção reativa, um ciclo de inveja, hostilidade e possessivi-
dade. Entende que o amor é precedido de uma insatisfa­
ção consigo mesmo, de uma ânsia de alguma coisa me­
lhor, gerada por um a discrepância entre o ego e o ego-
ideal; que a satisfação que o am or produz deve-se à re­
solução dessa tensão pela substituição do outro, no lugar
de nosso próprio ego-ideal; e, finalmente, que o amor
murcha, “porque o outro não pode, mais do que você,
viver à altura de seu elevado ego-ideal, sendo a crítica
tão severa, quanto mais altos forem os graus de exigên­
cia sobre si mesmo. “Assim, na visão de Reik, o amor
se desgasta, do mesmo modo como se estimula: A insa­

150
tisfação consigo mesmo (quem já ouviu falar de apaixo­
nar-se na semana em que se está indo para a Europa?)
leva à admiração pela independência do outro, à inveja,
à hostilidade, ao am or possessivo, e a voltar, de novo, a
exatamente o mesmo processo. Esse é o processo do
amor hoje. Mas por que ele se dá desse modo?
Muitos, por exemplo Denis de Rougemont, em
O A m o r no M undo Ocidental, tentaram esboçar uma
distinção entre o “apaixonar-se” romântico, com sua
“falsa reciprocidade que encobre um duplo narcisismo”
(o Eros P agão), e um amor não egoísta pela outra pes­
soa, do jeito que essa pessoa é realmente (o Ágape
C ristão). De Rougemont atribui a paixão m órbida de
Tristão e Isolda (am or rom ântico) a um a vulgarização
das correntes místicas e religiosas específicas da civiliza­
ção ocidental.
Sugiro que o amor é, essencialmente, um fenômeno
muito mais simples. Ele se torna complicado, corrompi­
do, ou dificultado por um equilíbrio desigual de poder.
Vimos que o amor requer um a vulnerabilidade m útua,
ou se torna destrutivo. Os efeitos destrutivos do amor
só ocorrem num contexto de desigualdade. Mas, por ter
¿"desigualdade sexual permanecido uma constante —
embora seu grau possa ter variado — a corrupção do
amor “rom ântico” tornou-se um a característica do amor
entre os sexos. (Resta-nos apenas explicar porque ela
se intensificou solidamente nos países ocidentais, desde
o período medieval. Será o que tentaremos fazer no pró­
ximo capítulo.)
De que modo o sistema de classes sexuais, baseado
na distribuição desigual de poder da família biológica,
afeta o am or entre os sexos? Ao discutir o freudismo,
investigamos a estruturação psíquica do indivíduo dentro
da família, e como essa organização da personalidade
pode ser diferente do homem para a mulher, em virtu­
de de seus relacionamentos bem diferentes com a mãe.
Atualmente, a interdependência insular do relacionamen­
to m ãe/filho impõe a ansiedade tanto ao filho quanto
à filha de perder o am or da mãe, do qual dependem
para a sobrevivência física. Quando, mais tarde (apesar

151
de Erich F rom m ), a criança compreende que o am or da
mãe é condicional, e que, para ser recom pensada, ela
tem de assumir um comportamento aprovado (i.e., o com­
portam ento de acordo com os valores próprios e a gra­
tificação pessoal do ego da mãe — pois ela é livre para
m oldar “ criativamente” a criança, seja lá como defina
essa criatividade), a ansiedade da criança se converte
em desespero. Isto, coincidindo com a rejeição sexual
do filho homem pela mãe, provoca, como vimos, uma
esquizofrenia no menino entre o emocional e o físico, e
na menina a rejeição da mãe, ocorrendo por diferentes
razões, gera um a insegurança sobre sua identidade em
geral, criando um a necessidade de aprovação, por toda
a vida. (M ais tarde, seu amante substituirá o pai como
doador da identidade necessária sub-rogada — ela vê
tudo, através dos olhos dele.) Aqui se origina a ânsia
de amor que, mais tarde, lança ambos os sexos à pro­
cura, num a pessoa após a outra, de um estado de segu­
rança do ego. M as, por causa da rejeição primitiva, no
grau em que ela ocorreu, o homem ficará aterrorizado
de comprometer-se, de “desabafar-se” , e, depois, ser des­
pedaçado. A respeito de como isto afeta sua sexualidade,
vimos que: conforme o grau em que um a mulher se asse­
melhe à mãe dele, o tabu do incesto funciona para res­
tringir seu compromisso sexual/em ocional total. Para
sentir-se a salvo do tipo de resposta total que sentiu
primeiramente pela mãe, e que foi recusada, ele J2l£sisa
rebaixar essa mulher p ara diferenciá-la da mãe. Esse
comportamento, reproduzido em larga escala, explica
muitos fenômenos culturais, inclusive talvez o culto do
amor ideal das eras cavalheirescas, o precursor do ro­
mantismo moderno.
A idealização romântica é parcialm ente responsável,
ao menos da parte do homem, por um a característica pe­
culiar do “apaixonar-se” : a m udança acontece no am an­
te quase que independentemente da personalidade do
objeto amado. Ocasionalmente, o amante, apesar de fora
de si, vê através de outra parte racional de suas faculda­
des que, objetivamente falando, a pessoa que ele ama

152
não merece toda a sua dedicação cega; mas, ele é impo­
tente para agir sobre isso, “um escravo do am or”. N a
m aioria das vezes, ele se engana completamente. E ntre­
tanto, os outros conseguem ver o que se passa ( “Porque
cargas d’água ele poderia amá-la foge à minha compreen­
são!” ). Essa idealização ocorre muito menos freqüente­
mente da parte da mulher, como foi confirmado pelos
estudos clínicos de Reik. Um homem pode idealizar um a
m ulher acima de todas as outras para justificar sua des­
cendência- d é'u m a cla'sse social mais baixa. As mulheres
n ão têm esse motivo para idealizar os homens.' De fato,
quando a vida de alguém depende da habilidade de “sa­
car” os homens, essa idealização pode ser realmente pe­
rigosa — em bora um medo do poder masculino possa,
em geral, repetir-se nos relacionamentos particulares com
os homens, aparentando o mesmo fenômeno. M as, embo­
ra saibam ser inautêntica essa “paixão” masculina, todas
as mulheres, de um m odo ou de outro, exigem dos ho­
mens uma prova desse amor, antes que eles possam se
perm itir am ar (genuinamente, no seu caso) em troca.
Pois esse processo de idealização funciona para equali-
zar artificialmente as duas partes, uma precondição mí-
nima p ara o desenvolvimento de um am or não corrom ­
p id a Vimos que o am or requer uma vulnerabilidade m ú­
tua, que é impossível de se realizar num a situação de
poder desigual. Desse modo, “apaixonar-se” não é mais
do que um processo de deformação da visão masculina
— através da idealização, da mistificação, da glorifica­
ção — que torna nula a inferioridade da classe feminina.
Contudo, a mulher sabe que essa idealização, que
ela se esforça por produzir, é um a m entira, que é um a
questjfl de tempo ela ficar “transparente” para ele. Sua
vida é um inferno, oscilando entre uma necessidade obses­
siva pelo am or e a aprovação masculina, para erguê-la
de sua submissão de classe, e sentimentos persistentes de
inautenticidade, quando ela obtém o am or dele. Assim,
sua identidade total depende da balança de sua vida amo­
rosa. Só lhe é permitido am ar a si mesma, se um homem
a considerar digna de amor.

153
Mas, se pudéssemos eliminar o contexto político do
amor entre os sexos, não restaria um certo grau de idea­
lização no próprio processo de amar? Creio que sim.
Pois o processo ocorre da mesma maneira, seja quem
for o escolhido pelo am or: o amante “ abre-se” para o
outro. Por causa dessa fusão de egos, na qual cada um
pensa e se preocupa com o outro, como se fosse um
novo self, a beleza/índole do bem-amado, talvez escon­
dida para os estranhos sob camadas de defesas, é reve­
lada. O “Eu me pergunto o que ela vê nele” significa,
então, não só que “ela é um a tola, cega pelo rom antis­
mo”, mas que “seu am or dotou-a de um a visão de
raios-X. Talvez não estejamos percebendo alguma coisa”.
(Note-se que esta frase é mais comumente empregada
em relação às mulheres. A frase equivalente, relativa à
escravidão dos homens ao amor, é, em geral, mais p a­
recida com o “ele é um joguete nas mãos dela”, ela o
envolveu de tal forma, que ele é o último a conhecer
seu jogo.) A sensibilidade desenvolvida para os verda­
deiros (ainda que ocultos) valores do outro, contudo,
não é uma “cegueira” , ou “idealização”, mas é, de fato,
um a visão mais profunda. Só ^ .fxilsa idealização que
descrevemos acima é que é responsável pela destruição.
Assim, não é o próprio processo do amor que está erra­
do, mas sua política, i.e., seu contexo de poder desigual.
O quê, o porquê, o quando e o onde dele é que o tor­
nam hoje um holocausto.

II

Entretanto, as abstrações sobre o amor são apenas


mais um sintoma de seu estado doentio. (Com o uma
paciente de Reik tão perspicazmente expressou: “ Os ho­
mens ou amam seriamente demais, ou então não amam
seriamente o suficiente.” ) Analisemos mais concretamen­
te o fato, do modo como nós o vivenciamos hoje, em
sua forma corrompida. Um a vez mais citaremos o Con­
fessionário Reikiano. Pois se o trabalho de R eik tem
algum valor, é onde ele menos poderia suspeitar, i.e., na
sua insignificante ânsia feminina pela “fofoca”. Ei-lo,

154
justificando-se (supõe-se que seu Superego o esteja inco­
m odando) :

“Um ‘já-era’ como eu sempre deve estar nalgum lugar,


cu trabalhar nalguma coisa. Por que eu não deveria me
ocupar com essas pequenas questões que, geralmente, não são
colocadas e, contudo, talvez possam ser respondidas? As
petites questions têm um lugar legítimo ao lado dos grandes
e fundamentais problemas da psicanálise.”
“É preciso coragem moral para escrever sobre certas coi­
sas, como por exemplo sobre um jogo que as meninas jogam
110 intervalo das aulas. Esse tema é realmente digno de um
psicanalista sério, que já passou dos seus setenta e sete anos
de idade?” (Grifos da autora)

E lem bra a si mesmo:

“Mas, em psicanálise não existem pensamentos sem im­


portância; existem apenas pensamentos que fingem não serem
importantes, para não serem revelados.”

Assim ele racionaliza 0 que, na verdade, pode ser


a única contribuição válida de seu trabalho. Eis seus
pacientes, de ambos os sexos, falando eles próprios so­
bre suas vidas amorosas:

MULHERES:
“Mais tarde, ele me chamou de uma mulher meiga . ..
Eu não respondi. . . o que eu poderia dizer? . . . mas eu sabia
que eu não era, de modo algum, uma mulher doce, e que ele
me via como alguém que eu não sou.”
“Nenhum homem pode amar uma mulher, do modo como
uma mulher ama um homem.”
“Eu posso passar muito tempo sem sexo, mas não sem
amor.”
“É como HoO, em vez de água.”
“Algumas vezes eu penso que todos os homens são sexo-
maníacos, e indigentes sexuais.”
“Tudo o que eles conseguem pensar, quando estão com
com uma mulher, é em ir para a cama com ela.”
“Eu não tenho nada a oferecer a esse homem, além deste
corpo?”

155
“Tirei meu vestido e meu sutiã, e me deitei na sua cama,
e esperei. Por alguns instantes, pensei em mim como num
animal de sacrifício no altar.”
“Eu não compreendo os sentimentos dos homens. Meu
marido me tem. Por que ele precisa de outra mulher? O que
elas têm que eu não tenho?”
“Acredite-me, se todas as esposas, cujos maridos têm ca­
sos, os deixassem, nós só teríamos mulheres divorciadas
neste país.”
“Depois que meu marido teve muitos casinhos, eu me
enamorei da fantasia de ter um amante. Por que não? O que
é bom para o pato é bom para a p a ta . . . Mas, eu era es­
túpida como uma pata: não admitia para mim ter uma aven­
tura extraconjugal.”
“Perguntei a várias pessoas se os homens também, algu­
mas vezes, choravam, choravam, e acabavam dormindo. Eu
não acredito nisso.”

HOMENS (para uma ilustração adicional, ver Screw):


“Não é verdade que só a aparência externa da mulher
tem importância. A roupa de baixo também é importante.”
“Não é difícil transar com uma mulher. O que é difícil
é destransar.”
“A mulher me perguntou se eu me preocupava com a
opinião dela. Eu estava tentado a responder que me preo­
cupava mais com sua bunda.”
“ ‘Você já vai?’, ela disse, quando abriu os olhos. Esse
era um chavão de quarto de dormir, não importa se eu saísse
uma hora, ou dois dias depois.”
“Talvez seja necessário enganar a mulher, e fingir que
você a ama. Mas, como eu enganaria a mim mesmo?”
> “Quando ela está angustiada, ela me manda embora.
Mas, quando eu estou angustiado, ela sente pena de mim, e
é mais afetiva do que de costume.”
“Não é suficiente para minha mulher que eu tenha que
ouvi-la falar o tempo todo — blá, blá, blá. Ela também es­
pera que eu ouça o que ela está dizendo.”

Simone de Beauvoir disse: “A palavra am or não


tem, de modo algum, o mesmo sentido para ambos os
sexos, e essa é uma das causas dos sérios mal-entendi-
dos que os separam.” Acima, exemplifiquei algumas das
diferenças tradicionais entre os homens e as mulheres

156
no amor, que vêm à tona tão freqüentemente nas dis­
cussões de sala de visitas, sobre o “double standard” '",
nas quais todos concordam que: as mulheres são mo-
nogâmicas, melhores amantes, possessivas, “ aderentes”,
mais interessadas (altam ente envolvidas) nos “relaciona­
mentos” do que no sexo em si mesmo, e que elas con­
fundem o afeto com o desejo sexual; que os homens não
se interessam, a não ser por foder (Tchau e obrigado,
dona!), ou então romantizam ridiculamente as mulheres;
que, uma vez seguros dela, tornam -se notórios dom-joões,
nunca satisfeitos; que tomam sexo por emoção. Tudo
isso confirma o que tínhamos discutido — a diferença
nas organizações psicossexuais dos dois sexos, determi­
nada pelo primeiro relacionamento com a mãe.
Tiro três conclusões, baseada nessas diferenças:
1) Que os homens não podem amar. (Horm ônios
masculino~s? As mulheres, tradicionalmente, esperam e
aceitam um a invalidez emocional nos homens, que elas
achariam intolerável num a mulher.)
2) Que o comportamento “ adesivo” das mulheres
é ditado p or sua situação social objetiva.
3 7 Que essa situação não m udou significativamente
do que ela sempre foi.
Os homens não podem amar. Vimos porque os ho­
mens têm dificuldade de amar, e porque, embora possam
amar, geralmente eles “se apaixonam” — pela sua pró­
pria imagem projetada. N a maioria das vezes, batem um
dia com força à porta de uma mulher, e, no dia seguinte,
estão completamente desiludidos com ela; mas é raro as
mulheres abandonarem os homens, e isso geralmente se
dá por mais de uma ampla razão.
É perigoso ter pena de nosso opressor — as mu­
lheres são especialmente propensas a essa fraqueza —
mas eu estou tentada a fazê-lo nesta circunstância. Ser
incapaz de am ar é o inferno. É assim que isso acontece:
logo que o homem sente alguma pressão do outro par­
ceiro para que ele se comprometa, ele entra em pânico,
e pode reagir de um destes vários modos:

* V. p. 260 (N .T.)

157
1) Pode sair correndo e foder outras dez mulheres,
para provar que a primeira não tem controle sobre ele.
Se ela aceita isso, ele pode continuar a vê-la nessa base.
As outras mulheres verificam a (falsa) liberdade dele.
Discussões periódicas mantêm-lhe o pânico a distância.
Mas as mulheres são um tigre de papel, pois nada de
muito profundo pode acontecer com elas, seja o que for.
O homem contrabalança umas com as outras, de modo
que nenhuma delas possa obter muito dele. M uitas mu­
lheres espertas, reconhecendo que isto é apenas um a vál­
vula de escape para a ansiedade masculina, “dão bastan­
te rédea” a ele. Pois o problema real, por trás de todos
esses medos pelas mulheres é que o homem é incapaz de
comprometer-se consigo mesmo.
2 ) Ele pode exibir concretamente um comportamen­
to imprevisível, faltando freqüentemente aos encontros,
sendo vago a respeito da próxima data, dizendo “meu
trabalho vem primeiro” , ou apresentando uma variedade
de outras desculpas. Isto é, embora ele sinta a ansiedade
dela, ele se recusa a tranqüilizá-la de qualquer modo,
ou mesmo a reconhecer-lhe a ansiedade como legítima.
Pois ele precisa da ansiedade dela como um lembrete
constante de que ele ainda é livre, de que a porta ainda
não está completamente fechada.
3) Quando é forçado a um compromisso (incôm o­
d o ), ele a faz pagar por isso : lançando olhares para
outras muflieres na presença dela, com parando-a desfa­
voravelmente com nam oradas antigas, ou com estrelas
de cinema, com lembretes maliciosos na frente de ami­
gos de que ela é seu “fardo”, chamando-a de “égua” ,
de “puta”, de “megera”, ou insinuando que, se ele fosse
apenas um solteirão, estaria em melhores condições. Sua
ambivalência com relação à “inferioridade” das mulhe­
res torna-se evidente: comprometendo-se com um a, ele
de algum modo cedeu à abominada identificação femi­
nina, que a partir daí ele deve negar repetidamente, se
quiser m anter sua dignidade dentro da comunidade (mas­
culina). Essa constante depreciação não é totalmente
encenada, pois, de fato, toda outra mulher subitamente
lhe parece ser melhor. Ele não consegue deixar de sen­

158
tir que perdeu alguma coisa — e, naturalmente, sua mu­
lher é a culpada. Pois ele nunca desistiu da procura do
ideal; ela o forçou a renunciar a isso. Provavelmente,
m orrerá com a sensação de ter sido enganado, nunca se
dando conta de que não existe m uita diferença entre uma
mulher e outra, que é o amor que cria a diferença.
Existem muitas variações para resistir à mordida.
Muitos homens passam de um a aventura casual para ou­
tra, evitando o tempo todo que ela comece a esquentar.
E, no entanto, viver sem am or afinal se revela intole­
rável para os homens, tanto quanto para as mulheres.
TÁ questão que fica para todo homem norm al é, portan-
\to , como posso conseguir que alguém goste de mim, sem
'exigir um compromisso igual erri.Jroça?
O comportamento “adesivo” das mulheres é ditado
por sua situação social objetiva. A resposta feminina a
essa situação de histeria masculina diante de qualquer
perspectiva de compromisso mútuo foi desenvolver mé­
todos sutis de manipulação, para impingir tantos com­
promissos quantos forem possíveis serem impingidos aos
homens. Durante séculos, foram planejadas estratégias,
testadas e passadas de mãe para filha, em tête-à-têtes se­
cretos, circuladas nas fofocas dos chás de mulheres ( “Eu
nunca compreendi com que as mulheres gastam tanto
tempo falando!” ), ou, em tempos recentes, via telefone.
Essas não são, de modo algum, sessões triviais de mexe­
ricos (como as mulheres preferem que os homens acre­
ditem ), mas estratégias desesperadas pela sobrevivência.
Um a garota de colégio misto, num a conversa de um a
hora ao telefone sobre os homens, mostra-se muito mais
brilhante do que quatro anos depois. Também há muito
mais brilhantismo nesse tipo de conversa do que na m aio­
ria das manobras políticas masculinas. Não é de admirar
então que, mesmo as poucas mulheres sem “obrigações
' familiares” sempre cheguem exaustas à linha de partida
ae qualque :r empreendimento sério.^ Requer-se o
de sua energia, durante a meinor parte de seus anos criar
tivys para “ agarrar um bom partido”, e uma boa parte do
nrv)

resto de sua vida p ara “conservar” esse partido., ( “Am ar


pode ser um serviço de tempo integral para as mulheres,
ft

159
como a profissão é para os homens.” ) As mulheres que
preferem retirar-se dessa corrida escolhem uma vida sem
amor, algo que, como vimos, a maioria dos homens não
tem coragem de fazer.
Mas, infelizmente, a Caça ao Homem é caracteriza­
da por um a urgência emocional, além desse simples de­
sejo de anunciar um compromisso oficialmente. E la é
fundamentada, em primeiro lugar, na própria realidade
de classes que produziu a incapacidade masculina de
amar. Num a sociedade dirigida pelos h omens, que... define
as mulheres como uma £lasse_jjQfgn2£_£_>£ £ |^M £ Íg - a.
mulher que não obtém de algum modo a aprovação mas7
culina é condenada. Para legitimar sua existência, uma
mulher deve ser mais do que uma mulher, deve continua­
mente procurar uma saída para sua definição inferior;1
e os homens são os únicos em posição de conceder-lhes
esse estado de graça. Mas, por_ser raramente permitido
à... mulher realizar-se através da atuação na sociedade
(m asculina) - - e, quando isso açonteçe, raram ente lhe
é concedido o reconhecimento que ela merece — torna-
se mais fácil tentar o reconhecimento de um homem do
que de vários; e, de fato, essa é exatamente a opção qu,e
a maioria das mulheres faz. Assim, um a vez mais o fe­
nômeno do amor, bom em si mesmo, é corrompido por
seu™contexto de classes: as mulheres devem amar. não só

li. Assim é a situação peculiar em que. as mulheres nunca fa-


zem obiecão~ãos insultos dirigidos às mulheres como uma. classe,
desde que, inclivícfualrnentc, estejam excluídas dela. O pior in­
sulto para uma mulher é dizer que ela é “exatamente como uma
mulher”, i.e., que ela não é superior. O maior elogio é dizer
que ela tem a inteligência, o talento, a dignidade, ou a força
de um homem. De fato, comqjodo membro de uma classe opri­
mida, ela própria participã~3õ?~msultbs dirigidos às outras iguais
a ela, ¿¿parando, corp isso, tornar óbvio que ela, como indivíduo,
está acima do comportamento das outras_. Assim, as mulheres,
como uma classe, se. indispõem . ..umas. com ..as.outras.. .(“Separar
e Vencer” ), g “mitra mnlhp.r” arrpHitamln que a esposa. é uma
“puta*r'qiie “não o compreende”, e a esposa acreditando que a
outrã mulher é uma “oportunista”, _que. está “se aproveitando,”
dele — enquanto que o réu, eie mesmo, escapa furtivamente livre.

160
por motivos de bem-estar, mas realmente para validarem
á sua existência.
Além dissó, a contínua dependência econômica das
mulheres torna impossível um a situação saudável de amor
entre iguais. As mulheres, ainda hoje, vivem sob um sis­
tema de patronato. Com poucas exceções, elas têm a es­
colher, não entre serem livres ou se casarem, mas entre
serem um a propjiedade pública, ou um a p ro p ik d ad ep r i ­
vada. As mulheres que se unem a um membro da classe
dom inante podem, ao menos. esperar que alguns dos pri­
vilégios deles possam, por assim dizer, passar para ela.
Mas as mulheres sem homens estão na mesma situação
das órfãs: são uma subclasse desamparada, que necessi­
ta da proteção dos poderosos. Isso é a antítese da liber­
dade, elas ainda serem definidas (negativam ente) por
um a situação de classe: pois hoje elas estão num estado
de vulnerabilidade exagerada. Participar do domínio de
alguém escolhendo o seu senhor dá em geral a ilusão de
uma escolha livre; mas, na realidade, a mulher nunca é
livre para escolher o am or sem motivações externas. Para
ela, no momento atual, as duas coisas, amor e status,
devem perm anecer inextricavelmente entrelaçadas.
Agora, supondo que um a mulher não perca de vista
esses fatores fundamentais de sua condição quando ama,
ela nunca será capaz de am ar gratuitamente, mas apenas
em troca de segurança:
1) da segurança emocional que, vimos, ela tem mo­
tivos para exigir;
2) da identidade emocional que ela seria capaz de
encontrar pelo trabalho e o reconhecimento, mas que
lhe é negada — forçando-a, assim, a buscar sua defini­
ção através de um homem;
3) da segurança da classe econômica que, nessa so­
ciedade, está ligada a sua habilidade em “fisgar” um
homem.
Duas dessas três exigências são condições sem vali­
dade para o “am or”, contudo são impostas a ele, sobre­
carregando-o.
Assim, na sua precária situação política, as mulhe­
res não podem se dar ao luxo do amor espontâneo. Isso

161
seria perigoso demais. O am or e a aprovação dos ho­
mens são importantíssimos. A m ar impensadamente, antes
de ter assegurado o compromisso legal, poria em risco
essa aprovação. Citemos Reik:

“Finalmente ficou claro, durante a psicanálise, que a pa­


ciente tinha medo de que, se ela mostrasse a um homem que
o amava, ele a consideraria inferior e a deixaria.”

U m a vez que a mulher se entrega emocionalmente,


ela será incapaz de jogar os jogos necessários: seu amor
surgirá primeiro, exigindo expressão. Fingir um a frieza
que não sente, então, seria doloroso demais e, além disso,
seria inútil. Ela banca a durona e com isso está visando
a liberdade de amar. M as, a fim de garantir esse com­
promisso, ela deve refrear as emoções, deve observar as
regras. Pois, como vimos, os homens não se submetem
à abertura m útua e à vulnerabilidade, a não ser que sejam
forçados a isso.
Como, então, ela faz para obrigar o homem a assu­
m ir esse compromisso? U m a das suas armas mais po­
tentes é o sexo — ela pode excitá-lo até ele chegar a
um estado de torm ento físico, com um a variedade de
estratagemas: recusando a necessidade dele, provocan­
do-a, dando e tirando, através do ciúme, e assim por
diante. Um a mulher sob análise se indaga por quê:

“Existem poucas mulheres que nunca se perguntam, em


certas ocasiões, ‘Quanto eu devo ser difícil para um homem?’
Penso que nenhum homem se preocupa com perguntas desse
gênero. Eles talvez perguntem-se apenas: ‘Quando ela ce­
derá?’ ”

Os homens estão certos, quando se queixam de que


falta discriminação às mulheres, que elas raram ente amam
um homem por suas características individuais, mas, an­
tes, pelo que ele tem a oferecer (sua classe); que elas
são calculistas, que usam o sexo para obter outras coi­
sas, etc. De fato, as mulheres não estão em condição de
am ar livremente. Se uma mulher tem bastante sorte para
encontrar “um rapaz decente” que a ame e a sustente,
ela está se saindo bem — e, geralmente, será grata o
bastante para retribuir o am or dele. A única discrimina­
ção que as mulheres são capazes de exercer é a escolha
entre os homens que as escolheram; ou opor um homem,
um poder, contra o outro. Mas provocar o interesse de
um homem, e pegá-lo num a armadilha, logo que ele ex­
presse seu interesse em se comprometer, não é exata­
mente um a autodeterminação.
Agora, o que acontece depois que ela, finalmente,
fisgou seu homem, depois dele ter-se apaixonado por
ela, e estar pronto a fazer qualquer coisa por ela? E la
conta com um a nova série de problemas. Agora, ela pode
afrouxar o controle, abrir a rede e examinar o que pe­
gou. Geralmente, fica decepcionada. Não é nada que a
interessaria, se ela fosse um homem. Geralmente, está
abaixo de seu nível. (Verifique isso algum dia: Fale com
algumas dessas esposas serviçais.) “Ele pode não ser
grande coisa, mas, pelo menos, eu consegui um homem
para mim” é, em geral, a m aneira como ela se sente.
Mas, pelo menos, agora ela pode p arar de encenar. Pela
prim eira vez é seguro amar. Agora, ela pode tentar fu­
riosamente prendê-lo emocionalmente, pretendendo real­
mente o que sempre pretendeu. Freqüentem ente, é ator­
m entada com preocupações de que ele poderá desmasca­
rá-la. Ela se sente uma impostora. É assediada por medos
de que ele não a ame do jeito como ela “realmente” é
— e, geralmente, está certa. ( “E la queria se casar com
um homem com quem pudesse ser tão puta quanto real­
mente é.” )
É nesse momento que ela descobre que amor e ca­
samento significam, para um homem, um a coisa diferente
do que significam para ela. Em bora os homens, em geral,
acreditem que as mulheres são inferiores, todo homem
tem reservado, na sua mente, um lugar especial para a
única mulher que ele elevará acima de todas as outras,
graças à união com ele. Até agora, a mulher, que tinha
ficado de fora, implorava pela aprovação dele, morrendo
de vontade de ascender a esse lugar de destaque. Mas,
uma vez lá, ela se dá conta de que foi elevada acima
das outras mulheres não em reconhecimento ao seu valor

163
real, mas só porque se adaptava primorosamente a ess.e
pedestal? Provavelmente, ele sequer sàbe quem é ela (se (
é que, nesse momento, ela própria o saiba realm ente).
Ele a admitiu não porque a amasse genuinamente, mas
somente porque ela representava tão bem suas fantasias
preconcebidas. Em bora soubesse que o am or dele era i
falso, já que ela própria o maquinara, não pode deixar
de sentir desrespeito por ele. M as tem medo, em primei­
ro lugar, de revelar seu eu verdadeiro, pois então até
esse falso amor poderia perder-se. E, finalmente, com­
preende que, para ele também, o casamento teve todos
os tipos de motivação que nada têm a ver com o amor.
Ela foi meramente a pessoa mais próxima da imagem
fantasiosa dele. Foi chamada de A Atriz Mais Versátil,
pela multiplicidade de papéis que assumiu na peça dele,
como Alterego, M ãe de Meus Filhos, D ona de Casa,
Cozinheira, Companheira. Foi adquirida para preencher
um espaço vazio na vida dele; mas a vida dela é nada.
Portanto, ela não escapou de ser como as outras
mulheres. Foi erguida para fora dessa classe, somente 1
porque ela agora é um apêndice de um membro da classe
dominante; e ele não pode unir-se a ela, a não ser que
eleve o seu status. M as ela não foi libertada. Foi pro,- .
movida a “negra-da-c’a‘s a,r.'F o i elevada, somente para ser
usada de um modo diferente. Sente-se enganada. Não.
recebeu amor e reconhecimento, e sim possessividade e
controle. É assim que ela se transform a de Noiva R ubo­
rizada em Puta, uma mudança que, não im porta quanto
seja universal e previsível, ainda deixa o marido perple­
xo. ( “Você não é a mulher com quem eu me casei.” )
A situação das mulheres não mudou significativa­
m ente do que ela sempre foi. Pois, durante os últimos
cinqüenta anos, as mulheres tiveram uma dupla ligação
com o amor. Sob a máscara de uma “revolução sexual”,
que se supõe ter ocorrido ( “Ei, venha cá, garota, onde
você esteve? Você não ouviu falar de revolução sexual?”),
as mulheres foram persuadidas a deixar cair a couraça. \
A mulher moderna tem horror de ser tida por uma puta,
que era exatamente o que sua avó esperava que aconte­
cesse no decorrer natural das coisas. Também os homens,

164
ainda no tempo das avós, esperavam que toda mulher
digna os deixaria esperando, jogaria todos os jogos nor­
mais, sem se sentir mal. Uma mulher que não protegesse
seus interesses desse jeito não era respeitada. A jogada
estava clara.
M as a retórica da revolução sexual, se não trouxe
melhorias para as mulheres, provou ter grande valor para
os homens. Convencendo as mulheres de que os estrata­
gemas e as exigências femininas habituais eram desprezí­
veis, desonestas, pudicas, antiquadas, e autodestrutivas,
foi criado um novo estoque de mulheres disponíveis, para
expandir o escasso suprimento de mercadorias para a
exploração sexual tradicional, destituindo as mulheres até
da pequena proteção que tão penosamente elas tinham
conquistado. As mulheres, hoje, não se arriscam a fazer
as velhas exigências, por medo de ter um novo vocabu­
lário, criado especialmente para esse propósito, gritado
para elas: “fodida”, “castradora”, “provocante”, “uma
verdadeira droga”, “um baixo-astral” — o ideal é ser
uma “gatinha pra frente”.
Mesmo hoje, muitas mulheres sabem o que está se
passando, e evitam a armadilha, preferindo ser xingadas
a serem desenganadas, em função do pouco que elas po­
dem esperar dos homens (pois ainda é verdade que mes­
mo os mais avançados desejam uma “senhora” relativa-'
mente não muito usada). Mas, cada vez mais as mulhe­
res são tragadas pela armadilha, apenas para descobrir,
tarde demais, que as tradicionais estratégias femininas ti­
nham um objetivo. Elas se chocam por se surpreende­
rem, aos trinta anos, queixando-se num vocabulário peri­
gosamente próximo das antigas variedades do eu-fui-usa-
da, os homens-são-gaviões, eles-são-todos-falsos. Even­
tualmente, são forçadas a reconhecer a verdade dos ve­
lhos ditos populares: uma mulher bonita e generosa é
(n a melhor das hipóteses) respeitada, mas raramente
amada. Eis uma descrição, válida ainda hoje, da mulher
“em ancipada” — no caso, uma artista de seus trinta
anos, do Greenwich Village — tirada de Mosquitoes, um
dos primeiros romances de Faulkner:

165
“Ela sempre teve aborrecimentos com seus hom ens. . .
Mais cedo ou mais tarde, eles acabavam abandonando-a. . .
Os homens nos quais ela reconhecera potencialidades passa- i
ram todos por um violento, porém temporário, período de in­
teresse, que cessou tão abruptamente quando começou, sem
deixar sequer fios de ligação com os momentos vividos a dois,
como esses curtos temporais de agosto, que só ameaçam, e 1
se dissipam, sem razão aparente, não produzindo nenhuma
chuva.
“Às vezes, ela procurava, com uma imparcialidade quase
masculina, uma razão para isso. Sempre tentou manter suas
relações no plano que os próprios homens pareciam preferir
— certamente, nenhuma mulher quereria, e poucas consegui­
riam, pedir menos de seus homens do que ela pediu. Nunca
tomou seu tempo arbitrariamente, nunca os fez esperar, nem
vê-la em casa em horas inconvenientes, nunca os fez servir
de criados para ela. Ela os satisfaz e elogiou a si mesma por
ser uma boa ouvinte. E, contudo, ela pensava nas mulheres
que conheceu; como todas tinham, pelo menos, um homem
nitidamente extasiado por elas. Pensou nas mulheres que
tinha observado; como pareciam conseguir um homem, quan­
do quisessem, e, se não conseguissem tê-lo, facilmente o substi­
tuíam por outro.”

As mulheres de idéias elevadas, que acreditavam ser


possível a emancipação, mulheres que tentaram , desespe­
radam ente, libertar-se dos “grilos” femininos, que tenta­
ram cultivar o que acreditavam ser um a integridade, uma
honestidade e um a generosidade maior dos homens, fo­
ram perversamente enganadas. Descobriram que ninguém
apreciava suas conversas inteligentes, suas aspirações ele­
vadas, seus grandes sacrifícios para evitar que desenvol­
vessem as personalidades de suas mães. Por mais que os
homens tivessem prazer em desfrutar de sua sagacidade,
de seu estilo, de seu sexo, e de suas ceias à luz de vela,
sempre acabavam se casando com A Puta, e então, para
arrem atar isso tudo, voltavam para se queixar que tinha
sido tudo. As mulheres “emancipadas” descobriram que
a honestidade, a generosidade, a camaradagem dos ho- <
mens era uma m entira. Os homens todos tinham muito
prazer em usá-las, e depois dispensá-las, em nome da,
verdadeira amizade. (“Eu te respeito muito e gosto mui-

166
to de você, mas sejamos razoáveis. . . ” ) E , além disso,
existem os homens que saem com elas para discutir Si­
mone de Beauvoir, deixando as mulheres em casa com
as fraldas.) As mulheres “emancipadas” descobriram que
os homens estavam longe de ser os “caras legais” a
quem elas gostariam de se equiparar. Descobriram que,
imitando padrões sexuais masculinos (o olhar volúvel, a
busca pelo ideal, a ênfase na atração física, etc.), não só
não estavam conseguindo a liberação, mas estavam caindo
em algo muito pior do que aquilo a que tinham renuncia­
do. Estavam imitando. E tinham inoçiiladn em si pró-
prias uma doença que não havia sequer brotado de sua
própria psique. Descobriram que seu novo “barato” era
superficial e inexpressivo, que suas emoções estavam se­
cando por trás disso, que envelheciam e se tornavam de­
cadentes. Tinham medo de estar perdendo a capacidade de
amar. Não tinham ganho nada imitando os homens, ape­
nas superficialidade e imaturidade, e, ainda por cima, não
eram tão hábeis quanto eles, porque alguma coisa dentro
disso tudo era contra a sua natureza.
Desse modo, as mulheres que decidiram não se casar,
porque eram suficientemente espertas para olhar à volta
e ver aonde o casamento levava., descobriram que era uma
questão de se casar ou de nada. Os homens só se com-
prometiam por um preço; elas participarem (arcarem ) da
vida deles, dependerem do pedestal dele, tornarem-se um
acessório, se n ã o .. . Senão, ficarem consignadas a este
limbo de “gatinhas” que não significam nada, ou pelo
menos nada do que a mãe pretendia. Serem a “outra
mulher” até o resto da vida, usada para provocar a esposa
dele, para provar sua virilidade e /o u sua independência,
saboreada pelos amigos como sua última conquista “inte­
ressante”. (Pois, mesmo que ela tenha renunciado a esses
termos, e ao que eles representam, nenhum homem, re­
nunciou a eles.) Sim, o amor significa para os homens
uma coisa inteiramente diferente do que para as mulheres.
Significa p osse e controle: significa ciúme, apesar dele
nunca o ter dem onstrado antes, mesmo que ela possa
ter desejado (não im porta se ela era “dura”, ou se tinha
sido violentada antes de pertencer oficialmente a ele; a

167
partir de então é que ele se torna um vulcão, um verda­
deiro furacão, porque sua propriedade, a extensão de seu
ego, foi am eaçada). Isso significa um a crescente perda de
interesse, unida a um òlhar volúvel. Quem precisa dissq?
Infelizmente, as mulheres precisam. Eis, mais uma
vez, as pacientes de Reik:

“Ela, algumas vezes, se sente desiludida por não ser


mais perseguida pelos homens. Nesses momentos de não-per-
seguição ela fica muito deprimida.”

E:

“Todos os homens são egoístas, brutais e desatenciosos —


mas eu gostaria de encontrar um.”

Vimos que uma mulher precisa de amor, em primei­


ro lugar, por sua função naturalm ente enriquecedora, e,
em segundo lugar, por motivos sociais e econômicos que
nada têm a ver com o amor. Negar sua necessidade, é
colocá-la num lugar social e economicamente extravulne-
rável, bem como destruir seu equilíbrio emocional, que,
diferente da maioria dos homens, é basicamente saudável.
Os homens merecem isso? Decididamente não. A maioria
das mulheres sente que fazer tais acrobacias por um ho­
mem seria unir a ofensa à humilhação. Eles continuam
como antes, tirando o melhor partido de_ um a situação
ruim. Se isto se torna demasiado ruim, elas optam por um
afastamento (dos homens em geral):

“Uma vez perguntou-se a uma jovem paciente, durante


uma consulta psicanalítica, se ela preferia um homem ou uma
mulher psicanalista. Sem a menor hesitação ela disse: ‘Uma
mulher, porque eu me sinto muito ansiosa pela aprovação
de um homem.’ ”

168
VII. A CULTURA DO ROMANCE

Até agora não distinguimos “rom ance” de amor.


Porque não existem dois tipos de amor, um sadio (m a­
gante) e outro não (doloroso), e sim alguma coisa
que não chega a ser amor, ou urna angustia diária. Q uan­
do o amor acontece num contexto de poder, a “vida amo­
rosa” de todos fica afetada. Porque poder e am or não
casam.
Portanto, quando falamos de am or rom ântico, que­
remos dizer o am or corrompido por seu contexto de
poder — o sistema de classes sexuais — numa form a de,
amor doentia, que, por sua vez, reforça esse sistema de
classes sexuais. Vimos que a. dependência psicológica
das mulheres em relação aos homens é criada pela con­
tinuidade da opressão econômica e social reais. Con­
tudo, no mundo moderno, as bases econômicas è sociaig
da" opressão não são suficientes em si mesmas para m an­
tê-la. Desse modo, apela-se para o aparato do romantisr
mo. (Parece que temos que dar um a m ãozinha a ela,

romantismo se desenvolve em proporção à liber-


tação das mulheres de sua biologia. À medida que a jpi-
vilização progride e as bases das classes sexuais desmo-
ronam , a supremacia masculina precisa se escorar em
instituições artificiais, ou em exagerações de instituições

169
anteriores, p.ex., enquanto a família anteriorm ente tinha
um a forma frouxa e permeável, hoje ela se aperta ê
rigidifica na família nuclear patriarcal. Ou, enquanto qué
as mulheres outrora eram abertam ente desrespeitadas,
hoje elas são elevadas a estados de falsa adoração.1 O
romantismo é um instrumento cultural do poder masculi-
no. para impedir as mulheres de conhecer sua condição.
Ele é especialmente necessitado — e portanto mais forte
— n os países ocidentais com m aior taxa de industrializa­
ção. Hoje, com a tecnologia capacitando as mulheres a
afrouxarem seus papéis de uma vez por todas — o que
foi quase um malogro no início do século X X — o rom an-
tismo nunca esteve tão bem.
De que modo o romantismo funciona como um ins­
trum ento para reforçar as classes sexuais? Examinemos
seus componentes, aperfeiçoados''(Tufante séculos, e os
métodos modernos de sua difusão — técnicas culturais
tão sofisticadas e penetrantes que até os homens são
prejudicados por elas.
1) Erotismo. O principal componente do rom antis­
mo é o erotismo. Todas as necessidades animais (o afeto
de um filhote que nunca sentiu calor) de amor e calor
são canalizadas para a a sexualidade genital. Nunca se
deve tocar pessoas do mesmo sexo, e, só se pode tocar
pessoas do sexo oposto, quando nos preparam os para um
encontro ( “um passe” ) sexual genital. O isolamento torna
as pessoas ansiosas por afeição física; e, se a única forma
como podem obter é a sexualidade genital, cedo isto será
tudo por que elas ansiarão. Nesse estado de hipersensibili-
dade, o m enor estímulo sensual produz um efeito exage­
rado, suficiente para inspirar tudo, desde as escolas de
quadros célebres até o rock and roll. Assim, o erotismo ê
a concentração da sexualidade — geralmente em objetos
altamente carregados (renda “Çhantilly”) — significando
o deslocamento de outras necessidades afetivas/sociais
para o sexo. Ser carente torna você chato: desejar um

1. A galantería é comumente definida como a “atenção exces­


siva dirigida às mulheres, sem finalidades sérias”, mas o objetivp
sério: através de um falso lisonjeio, impedir as my-
rriàrem consciência de sua condição de classe inferior.

170
beiio é em baraçante, a não ser que seja u m beijo erótico.
Só o “sexo” é O.K.; na verdade, ele prova nossa fibra.
A virilidade e a atuação sexual se confundem com o
valor social.2
A constante estimulação erótica da sexualidade mas-
culinãTjuritõ com a proibição de sua expansão pelos ca­
nais mais normais são planejados para incentivar o ho-
mem a olhar para as mulheres apenas como coisas cuja
resistência à penetração deve ser vencid^jO bserve-se que
erotismo opera numa única direção. As mulheres são os
únicos objetos “de am or” em nossa sociedade, a tal ponto
gue vèem a. si mesmas como eróticas.3 Isto funciona para
preservar ao homem o prazer sexual direto, reforçando a
deoendência feminilta. As mulheres só podem ser sa­
tisfeitas sexualmente pela identificação vicária com o
homem que gosta delas. Portanto, o erotismo preserva o
sistema de classes sexuais.
A única exceção a essa concentração de todas as
necessidades emocionais em relações eróticas são as afei­
ções (ocasionais) dentro da família. Mas aqui, também,
a menos que sejam seus filhos, um homem expressa pelas
criancas tão pouco afeto quanto pelas mulheres. Assim,
sua afeição pelos pequenos é também um a arm adilha para
prendê-lo à estrutura matrim onial, reforçando o sistema
patriarcal.

2. Mas, como toda mulher já constatou, um homem que parece


estas forçando ter sexo geralmente fica bastante aliviado ao
se eximir do desempenho literal: seu ego criou-se dependente
desse contínuo submeter-se à prova, através das conquistas se­
xuais; mas tudo o que ele deve ter realmente desejado era o
pretexto nara entregar-se às afeições sem a perda do amor-
próprio viril. O fato de os homens refrearem mais a manifesta­
ção de suas emoções cfo que as mulheres ocorre porque, como
uma conseqüência a mais do Complexo de Édipo, expressar ter­
nura para uma mulher significa reconhecer sua igualdade. A
não ser que, é claro, ele modere essa ternura — que ele a en:
gula — com alguma demonstração de domínio.
3. Os homossexuais são assim tão ridicularizados porque ao
verem os homens como objetos sexuais, eles vão duas vezes
rontra a corrente atual: nem as mulheres lêem revistas Pretty
Boy*
* Gênero de Play Boy para homossexuais. (N.T.)

171
2) A Privatização Sexual das Mulheres. O erotismo
é apenas a cam ada mais elevada do romantismo, que re­
força a inferioridade feminina. Assim como acontece em
qualquer classe baixa, a consciência de grupo deve ser
amortecida para impedir seus membros de se revoltar.
Nesse caso, por ser sexual a característica distintiva da
exploração das mulheres como classe, deve-se descobrir
um meio especial de torná-las inconscientes de que todas
são consideradas sexualmente iguais ( “bocetões” ). Q uan­
do um homem se casa, talvez ele escolha com cuidado
dentre esse grupo indistinto, já que, como vimos, ele con­
serva um lugar especial na sua mente para “A Ünica” ,
graças à união íntim a dela com ele. M as, em geral, ele não
consegue ver diferenças entre as gatinhas (louras, m ore­
nas, ruivas).4 E ele gosta que seja assim. (“Um balanço
no seu andar, um risinho no seu falar, É DISSO Q U E EU
GOSTO!” ) Quando um homem acredita que todas as
mulheres são iguais, mas quer impedi-las de pensar isso,
o que ele faz? Conserva suas convicções próprias e finge,
para apaziguar as suspeitas da mulher, que o que ela tem
em comum com as outras é exatamente o que a faz dife­
rente. Assim, a sexualidade dela finalmente se torna sinô­
nimo da sua individualidade. A privatização sexual da
mulher é o processo pelo qual as mulheres ficam cegai
para_sua generalidade como uma classe que as torna invi-
síveis como indivíduos aos olhos masculinos. Não é estra­
nho que, como parte das suas funções na Casa Branca, a
Prim eira Dama tenha que ficar ao lado do Presidente em
sua comitiva, como discreto escravo negro?
( V > O processo é insidioso. Quando um homem diz:
“Eu adoro louras!” , todas as secretárias nas redondezas
se aprumam nas cadeiras; elas o tomam pessoalmente,
porque foram privatizadas sexualmente. A loura que cada
uma traz em si se sente pessoalmente lisonjeada, porque
aprendemos a medir nosso valor pelos atributos físicos

4. Quanto aos seus outros esportes”, diz um anúncio publicitário


recente sobre o herói do futebol Joe Namath, “ele prefere as
louras.

172
que nos diferenciam das outras mulheres. N ão se lem ­
bra mais que qualquer atributo físico que se possa men­
cionar é com partilhado por muitas outras, que esses são
atributos acidentais, que não são um a criação sua, que
sua sexualidade é com partilhada pela m etade da hum ani­
dade. E ntretanto, num reconhecimento autêntico de sua
individualidade, sua lourice será am ada, mas de um modo
diferente a mulher será am ada primeiro como um a totali­
dade insubstituível, e então sua lourice será am ada como
um a das características dessa totalidade.
O aparato da privatização sexual é tão sofisticado
que pode ser que sejam precisos muitos anos para detec-
tá-lo. Isto esclarece vários traços enigmáticos da psico­
logia feminina, que assumem as seguintes formas:
M ulheres que são lisonjeadas por seu sexo, i.e., “Ti­
rem o chapéu para a m ocinha!”
M ulheres que são chamadas de querida, doçura, can­
dura, gatinha, anjo, rainha, princesa, boneca, mulher,
quando estão vestidas de um m odo habitual e impessoal.
M ulheres que são secretamente lisonjeadas por terem
sido beliscadas na bunda em Rom a (Elas fariam melhor
em contar o número de vezes que as bundas de outras
mulheres foram beliscadas.)
O prazer da provocação (m anter os homens num
estado de tesão constante é tido como um símbolo de
valor e atratividade pessoal).
O fenômeno “varal”. (M ulheres, cujos canais de es­
cape legítimos de expressão de sua invidualidade são ne­
gados, “expressam-se” fisicamente, como no “Eu quero
ver alguma coisa ‘diferente’.” )
Essas são apenas algumas das reações ao processo
de privatização sexual, a confusão da sexualidade com a
individualidade. O processo é tão eficaz que a maioria
dãs "mulheres acabou por acreditar seriamente que o mun-
do necessita de SJM&.Çpntrjhuições sexuais específicas p ara
ir adiante. ( “É la acha que sua xota é feita 3e ouro.” )
M as as canções de am or ainda continuariam a ser escri­
tas sem elas.
As mulheres podem ser iludidas, mas os homens sãQ
totalmente conscientes disso como um a técnica de mani-

173
pulação válida. É por isso que tomam o maior cuidado
para evitar falar sobre as mulheres na frente delas ( “não i
na frente de um a dam a” ) — isto revelaria seu jogo. É
traum ático para uma mulher ouvir por acaso um a con­
versa entre homens. Assim, todo esse tempo, ela foi apre­
ciada como "traseiro” , “carne” , “boceta” ou “m aterial” ,
para servir de “um pedaço de” , “essa vaca” , ou “ essa
puta” , para ser enganada por dinheiro, ou sexo, ou amor!
Compreender, afinal, que não é melhor do que outra mu-
Iner, mas completamente indiferenciável, sobrevêm não só
como um choque, mas também como uma aniquilação
total. M as talvez o momento mais freqüente em que um a
m ulher tem que se defrontar com sua privatização sexual
é numa briga de amor, quando a verdade é revelada.
Então, o homem pode tom ar-se menos cuidadoso e admi­
tir que a única coisa pela qual ele realmente semnre gos­
tou dela foram seus peitos ( “Duas balas de canhão” ) ou
suas pernas ( “Que coxinhas!” ), e ele pode encontrar isso
em outro lugar, se precisar.
Assim, a privatização sexual estereotipa as mulheres.
Estimula os homens a verem as mulheres como “bonecas”
diferenciadas exclusivamente por atributos superficiais —
não da mesma raça deles — e isto cega as mulheres para
sua exploração sexual como classe, impedindo-as de se
unirem contra isto, e, assim, segregando efetivamente as
duas classes. Um efeito colateral é sua recíproca: enquan­
to que as mulheres são diferenciadas apenas por atribu­
tos físicos superficiais, os homens mostram-se mais indi­
vidualizados e insubstituíveis do que realmente são.
As mulheres, pelo fato do reconhecimento social só
ser conferido a uma individualidade falsa, são impedidas
de desenvolverem um a individualidade forte, que lhes
permitiria libertar-se desse ardil. Se a existência só é admi­
tida em sua generalidade, por que dar-se ao trabalho de
desenvolver a personalidade real? É muito menos contro-
vertido alegrar o ambiente com unTsorrisq — . até. o dia
em que a “gatinha” se transform e em “bagulho”, e des­
cubra, que seu sorriso não é mais “inimitável” . ,6 ?
3) O Ideal de Beleza. Toda sociedade promoveu um
certo ideal de beleza acima de todos os outros. Qual seja

174
este ideal não importa, porque todo ideal exclui a maio-
ria.JDs ideais, por definição, são moldados em qualidades
rarç f. Por exemplo, na América, a moda atual de modelos
franceses, ou o ideal erótico da Loura Voluptuosa, são
moldados a partir de qualidades verdadeiramente raras.
Poucas americanas são de origem francesa, a maioria não
parece, nem nunca parecerá francesa. M orenas voluptuo­
sas podem descorar o cabelo (como fez Marilyn M onroe,
a rainha da sexualidade), mas as louras não podem au­
mentar suas curvas à vontade — e a maioria delas, anglo-
saxã, simplesmente não tem essa conformação. Se e quan­
do, através de métodos artificiais, a maioria consegue es.-
premer-se dentro da forma ideal, o ideal muda. Se elg
fosse~atinqível. como poderia ser bqm?
A exclusividade do ideal de beleza serve a um a funr
gão política clara. Alguém — na m aioria mulheres —
ficará de fora. E ficarão dispu tando, porque, como vimos,
só foi permitido às mulheres alcançar a individualidade,
através da aparência — atributos definidos como “bons” ,
não por amor à detentora deles, mas por causa de sua
maior ou m enor aproximação de um padrão externo. Essa
imagem, definida pelos hom ens (e comumente por ho­
mens homossexuais, em g è r a fmisóginos da pior espécie.),
tqrna-se o ideal. O que acontece? As mulheres, em todo
lugar, se apressam em comprimir-se no sapatinho de
cristal, forçando e mutilando o corpo com dietas e pro-
gramas 'de beleza,, roupas e maquiagem, qualquer coisa
para se tornarem a garota sonhada do príncipe joão-nin-
~ ' M as elas não têm escolha. Se não conseguem amol-
, os castigos são enormes. Sua legitimidade social \
está em perigo.
Assim, as mulheres tornam-se cada vez mais pare­
cidas. Mas, ao mesmo tempo, espera-se que elas expres­
sem sua individualidade, através da aparência física. As­
sim, elas ficam oscilando, tentando, ao mesmo tempQ,
expressar sua semelhança e sua singularidade. As exigên­
cias da Privatização Sexual contradizem as exigências do
Ideal de Beleza, provocando a intensa neurose feminina,
em torno da aparência pessoal.

175
M as, mesmo esse conflito tem uma função política
importante. Quando as mulheres começam a ficar cada
vez mais parecidas, diferentes apenas pelo grau em que
elas se distinguem de um papel ideal, elas podem ser
mais facilmente estereotipadas como classe. Elas se pare­
cen^ pensam similarmente, e, pior ainda, são tão burras,
que acreditam não serem parecidas.
* * *

Estes são alguns dos principais componentes do apa­


rato cultural do romantismo, que, com o enfraquecimento
das limitações “naturais” das mulheres, faz a opressão
sexual continuar intensa. Os usos políticos do rom antis­
mo, durante séculos, tornaram -se cada vez mais comple­
xos. Funcionando sutil ou espalhafatosamente, em todos
os níveis culturais, o romantismo está hoje — nessa época
de m aior ameaça ao papel de poder masculino — am­
pliado por novas técnicas de comunicação, tão penetran­
tes que os homens acabam presos na própria rede. Como
essa ampliação atua?
Com a retratação cultural dos menores detalhes da
existência (p.ex., desodorização debaixo dos braços), a
distância entre a experiência e as percepções que cada um
tem disso fica aumentada por uma ampla rede interpreta­
tiva. Se nossa experiência direta contradiz a interpretação
dela dada por essa rede cultural, a experiência deve ser
negada. Este processo, naturalmente, não se aplica só às
mulheres. A penetração da imagem alterou tão profunda­
m ente nossas relações conosco mesmos, que até os ho­
mens se tornam objetos — quando mais não seja, obje­
tos eróticos. As imagens se tornam extensões do indiví­
duo; torna-se difícil distinguir a pessoa real de sua última
imagem, ainda que, na verdade, o Substrato R eal da
Pessoa não tenha evaporado completamente. Arnie, o
garoto que sentava atrás de você na sexta série, fuchi-
cando o nariz e contando piadas, aquele que tinha um
calombo no ombro esquerdo, está perdido sob as camadas
sucessivas de imagens adotadas: o Palhaço do Ginásio, o
Rebelde da Universidade, Jam es Bond, o Nam orado de

176
Verão de Salem, e assim por diante, cada imagem atin­
gindo novos graus de sofisticação, até que a própria pes­
soa não saiba mais quem ela é. Além do mais, ele lida
com os outros, através dessa imagem-extensão (o Rapaz-
Símbolo encontra a Namorada-Símbolo e consuma um
Rom ance-Sím bolo). Mesmo que um a mulher conseguisse
chegar ao que está por baixo dessa intrincada imagem de
fachada — e isso levaria meses, até anos de um relaciona­
mento doloroso, quase terapêutico — ela não encontra­
ria gratidão por ter (dolorosam ente) amado o homem
por aquilo que ele é, e sim repulsa e horror da parte dele,
por tê-lo desmascarado. Em vez disso, o que ele quer é a
Garota-Pepsi-Cola, para sorrir amavelmente para seu Zé
Johnny W alker diante da lareira de um albergue.
Mas, embora essa reificação afete igualmente tanto
os homens quanto as mulheres, no caso destas ela é
intensamente complicada pelas formas de exploração se­
xual que eu . descrevi. A mulher não é apenas um a ima­
gem, ela é um a Imagem com Sex A pyeal. A estereotipa-
ção das mulheres se amplia. Agora não há mais a descul­
pa da ignorância. Toda mulher é constante e explicita­
mente inform ada de como “ aperfeiçoar” o que a natu­
reza lhe deu, de onde com prar os produtos para conseguir
isso, e de como contar as calorias que nunca deveria te:r
ingerido. A competição se torna frenética, porque todo
mundo, agora, está inserido no mesmo circuito. O ideal
de béleza atual torna-se difundido ( “As louras são mais
felizes. . .” ).
E o erotismo se torna erotomania. Estimulado ao li­
mite, èle atingiu um nivel epidêmico, nunca igualado na
História. Em toda capa de revista, tela de cinema, canal
de TV, anúncio de metrô, seios balouçantes, pernas, cos­
tas, coxas. Os homens andam nas ruas num estado de
constante excitação sexual. Mesmo com a melhor das
intenções, é difícil concentrar-se nalguma outra coisa.
Esse bom bardeam ento dos sentidos, por sua vez, leva a
provocação sexual ainda mais longe: os meios normais
de excitação perderam todo o efeito. As roupas se tornam
mais provocantes: as bainhas sobem, os sutiãs são aban­
donados. Os materiais transparentes tornam-se comuns.

177
M as, em toda essa barragem de estímulos eróticos, os pró­
prios homens raram ente são retratados como objetos eró­
ticos. O erotismo feminino, tanto quanto o masculino, toç-
na-se c3cTã~ vez mais dirigido para as mulheres.
Um a das contradições internas desse sistema de pro­
paganda altamente eficaz é expor, aos homens tanto quan­
to às mulheres, o processo de estereotipação a que as
mulheres são submetidas. Em bora a intenção fosse fami­
liarizar as mulheres com seu papel feminino, os homens
que ligam a TV também acabam recebendo mensagens
D t-SP|Z£^(2. '

para controlar o peso, usar cilios postiços, e ceras de


/n i w i i n j j

assoalho (Será que ela u s a .. . ou não usa?). Essa contra-


corrente de provocações sexuais e de revelações de coisas
comprometedoras é suficiente para fazer qualquer homem
odiar as mulheres, se já não odeia.
ot> jvu

Assim, a extensão do rom antism o através dosjm edia


modernos ampliou enormemente seus efeitos. Se antes a
cultura m antinha a supremacia masculina através do E ro;
tismo, da Privatização Sexual, e do Ideal de Beleza, hoje
esses processos culturais são postos em prática de um,
m odo quase que eficaz em excesso. Os m edia são culpados
de “sobrecarregar” ^ À reabilitação^ do movimento femi­
nino neste momento da História pode ser que se deva a
um tiro saído pela culatra, a uma contradição interna
de nosso moderno sistema cultural de doutrinação. Pois,
na sua expansão da doutrinação sexual, os media revela­
ram, inconscientemente, a deterioração da “feminilidade”.
Concluindo, quero acrescentar um a observação sobre
dificuldades específicas em atacar o sistema de classes se­
xuais, através de seus meios de doutrinação cultural. Os
objetos sexuais são bonitos. Um ataque a eles pode ser
confundido com um ataque à própria beleza. As feminis­
tas não precisam ser tão beatas em seus esforços, a ponto
de sentir que devem repudiar frontalm ente a beleza do
rosto da capa de Vogue. Porque essa não é a questão. A
verdadeira questão é: o rosto é bonito num sentido hu­
mano: ele concede em m ostrar o crescimento, a mudança
e a deterioração, ele expressa emoções tanto negativas,
quanto positivas, ele se desintegra sem os suportes arti­
ficiais — ou ele imita de m aneira falsa a beleza total­

178
mente diferente de um objeto inanimado, como a madeira
tentando ser metal?
A tacar o erotismo cria problemas similares. O ero­
tismo é excitante. Ninguém quer se desfazer dele. A vida
seria enfadonha e rotineira sem ao menos essa centelha.
O caso é exatamente este. P or que todo o prazer e a exci­
tação foram concentrados, dirigidos para um a aléia estrei­
ta, difícil-de-achar da experiência hum ana, e todo o resto
deixou-se perder? Q uando exigimos a eliminação do ero-
tismo, não queremos dizer a eliminação do prazer e da
excitação sexual, mas sua redistribuição — há bastante
para que seja suficiente para todos, e ele aum enta com.
o uso :—- p o r toda a extensão de nossas vidas.

179
VIII. CULTURA (MASCULINA)

A representação do mundo, assim como o próprio


mundo, é tarefa dos homens; eles o descrevem segundo
seu ponto de vista particular que confundem com a ver­
dade absoluta.”
(Simone de Beauvoir)

A relação das mulheres com a cultura tem sido indi­


r e t a Examinamos como a atual organização física dos
dois sexos prescreve que a maioria das mulheres gaste
sua energia emocional com os hom ens, ao passo que os
homens devem “sublimar” sua energia no trabalho. Desse
modo, o am or feminino torna-se combustível para a m á­
quina cultural. (Sem mencionar as Grandes Idéias nasci­
das diretamente das discussões de boudoir m atinais.)
Além de prover seu suporte emocional, as mulhe­
res sustentaram uma outra relação indireta com a cultura,
muito importante. A M usa era feminina. Os homens de
cultura foram deformados emocionalmente pelo processo
de sublimação. Converteram a vida em arte; conseqüente­
mente, não poderiam vivê-la. Mas as mulheres, e os ho­
mens que foram excluídos da cultura, mantiveram-se em
contato direto com sua experiência — serviram de m atéria-
prim a à arte.
O fato de as mulheres terem sido essenciais para o
conteúdo da cultura é confirmado por um exemplo tirado

181
da historia da arte. Os homens são estimulados erótica­
mente pelo sexo oposto; a pintura era masculina; logo,
o nu tornou-se um nu feminino. Onde a arte do nu mas­
culino atingiu altos níveis, seja no trabalho de um artista
individual, p.ex., Miguel Ângelo, seja em todo um pe­
ríodo artístico, como o da Grécia clássica, os homens
eram homossexuais.
O tema da arte, quando ele existe, é hoje ainda mais
amplamente inspirado pelas mulheres. Imaginem a elimi­
nação dos personagens femininos nos filmes populares e
ñas novelas, mesmo no trabalho de diretores “intelec­
tuais” — Antonioni, Bergman, ou G odard; não restará
muito. Porque, nos últimos séculos, particularm ente na
cultura popular — talvez ligado à posição problem ática
das mulheres na sociedade — as mulheres têm sido o
principal tem a da arte. De fato, correndo os olhos pelos
anúncios publicitários até de um a produção cultural m en­
sal, acreditaremos que as mulheres correspondem a tudo
que já se pensou sobre elas.
M as, que dizer das mulheres que contribuíram dire­
tam ente para a cultura? Não são muitas. E, nos casos em
que algumas, isoladas, participaram da cultura masculina,
tiveram que fazê-lo em termos masculinos. E isso se
prova. Porque tinham que competir como homens, num
jogo masculino — embora ainda compelidas a se testa­
rem em seus papéis femininos antigos, um papel em de­
sacordo com as próprias ambições — não é surpreendente
que elas raram ente sejam tão hábeis quanto os homens no
jogo da cultura.
E não se trata de uma questão de ser tão compe­
tente, trata-se, também, de uma questão de ser autêntico.
Vimos, no contexto do amor, como as mulheres modernas
imitaram a psicologia masculina, confundindo-a com a
saúde, e, com isso, acabaram ainda em pior situação que
os próprios homens. Elas não estavam sendo verdadeiras,
nem nas suas próprias doenças. E existem ainda camadas
muito mais complexas nessa questão de autenticidade.
As mulheres não têm meios de chegar a um conhecimento
do que ê sua experiência, ou mesmo de que ela é dife­
rente da experiência masculina. A cultura, o instrumento

182
da representação e da objetivação de nossa experiência
1 Eã£ã yue possamos lidar com cia, está tão saturada de
preconceitos masculinos, _que as mulheres quase nunca têm
uma chance de ver-se culturalmente, através dos próprios
olhos. D e modo que, finalmente, os sinais de sua experiên-
cia direta, que entram em conflito com a cultura (m as­
culina) predominante, são negados e reprimidos.
Assim, por serem as máximas culturais ditadas pelos
homens, m ostrando somente o ponto de vista masculino
— e agora tendo-se criado uma superbarreira — as mu­
lheres são impedidas de realizar um a imagem autêntica
de sua realidade. Por que, por exemplo, as mulheres se
excitam com um a pornografia de corpos femininos? N a
sua experiência normal de nudez feminina, digamos num
vestiário de ginásio, a visão de outras mulheres nuas po­
deria ser interessante (em bora, provavelmente, só na me­
dida em que elas se avaliem segundo os padrões masculi­
n o s), mas não diretamente erótica. A distorção cultural
: da sexualidade explica também como a sexualidade femi­
nina se entrelaça com o narcisismo. Quando se relacionam
com os homens, em vez de fazer amor diretamente com
eles, as mulheres fazem vicariamente amor consigo mes-
¡ mas. Às vezes, essa barreira cultural entre o hom em /su­
jeito e a m ulher/objeto dissensibiliza as mulheres para as
formas masculinas, afetando-as num tal grau, que elas
não chegam a sentir orgasmo.1
H á outros exemplos de distorsões n a visão feminina
de uma cultura exclusivamente masculina. Voltemos, mais
um a vez, à história da pintura figurativa. Vimos como,
na tradição do nu, as inclinações heterossexuais masculi­
nas deram ênfase à mulher, em vez do homem, como sendo
a forma mais estética e mais bela. Essa predileção de

1. A incapacidade feminina de enfocar a fantasia sexual mos­


trou ser a principal causa da frigidez feminina. Masters e John­
son, Albert Eliis, e outros ressaltaram a importância do “enfo­
que sexual” ao ensinar as mulheres frígidas a sentirem orgasmo.
Hilda 0 ’Hare, no Jornal Internacional de Sexologia, observa que
esse problema pode manifestar-se em grande escala porque não
há um correlativo feminino em nossa sociedade para os inume-
li ráveis estimulantes da necessidade sexual masculina.

183
uma das duas formas sobre a outra, é baseada, é claro,
num a sexualidade que em si mesma é artificial, criada
culturalmente. M as, ao menos poderíamos esperar que o
preconceito oposto prevalecesse na visão das mulheres
pintoras, ainda envolvidas com a tradição do nu. Este não
é o caso. Em qualquer escola de arte no país vemos salas
de aula cheias de moças trabalhando diligentemente com
modelos femininos, aceitando que o modelo masculino é,
de algum modo, menos estético, na melhor das hipóteses,
talvez original, e, certamente, nunca questionando por­
que o modelo masculino veste uma sunga, enquanto que
o modelo feminino não sonharia em aparecer nem de
tanga.
Novamente, olhando para os trabalhos das pintoras
célebres ligadas à escola impressionista do século X IX ,
Berthe M orisot e M ary Casatt, espantamo-nos com sua
preocupação obsessiva com assuntos tradicionalm ente fe­
mininos: mulheres, crianças, nus femininos, interiores,
etc. Isso é parcialm ente explicado por condições políticas
da época. As mulheres pintoras já eram felizes de lhes
ser consentido pintar qualquer coisa, que dirá modelos
masculinos. E, no entanto, é mais do que isso. Essas
mulheres, com toda sua arte majestosa e sua habilidade
composicional, permaneceram pintoras menores, porque
tinham “abandonado” uma série de tradições e um a visão
de mundo inautêntica para elas. Trabalharam dentro dos
limites do que tinha sido definido como feminino pela
tradição masculina. Viram as mulheres, através de olhos
masculinos, pintaram uma idéia masculina da mulher. E
levaram isso a um extremo, porque estavam querendo su­
perar os homens em seu próprio jogo. Deixaram-se se­
duzir pela linha (da graciosidade). E daí a falsidade que
corrompe seus trabalhos, tornando-os “femininos” , i.e.,
sentimentais, delicados.
Seria necessário um a recusa de to d a,aJiad Í£ ã 0jCultu-
ral para que as mulheres chegassem a produzir um a arte
“feminina” verdadeira. Pois a mulher que participa na
cultura (m asculina) deve produzir e ser classificada se­
gundo padrões de um a tradição de cuja feitura ela não
participou — e, certamente, não há lugar nessa tradição
para um a visão feminina, mesmo que ela possa descobrir
o que ela foi. Nesses casos em que uma mulher, cansada
de perder no jogo masculino, tentou participar na cultura
de um modo feminino, elà foi rebaixada e incompreen­
dida, e chamada pelo establishm ent cultural (m asculino)
de “Senhora A rtista”, i.e., de insignificante, inferior. E .
mesmo onde se admite (com relutância) que ela é “há­
bil”, é elegante insinuar que é hábil, porém irrelevante —
um modo vulgar de indicar a “ seriedade” e o refinamento
de gosto de alguém.
Talvez seja verdade que um a apresentação só do
lado feminino das coisas — que tende constituir um
longo protesto e reclamação, em vez do retrato de uma
existência ampla e substancial — seja limitada. M as uma
questão igualmente pertinente, em geral muito menos
vezes levantada; é: será esta visão mais limitada do que
a visão masculina predominante sobre as coisas, que —
quando não é tom ada pela verdade absoluta — ao menos
é vista como “séria”, pertinente e importante? M ary
McCarthy, em seu livro O Grupo, seria, de fato, uma
escritora pior do que Norm an M ailer em O Sonho Am eri- r-
cano? Ou estaria ela talvez descrevendo um a realidade
com a qual os homens, os controladores e os críticos do
Establisment Cultural, não conseguem sintonizar?
Que os homens e as mulheres estão sintonizados
com diferentes canais culturais, que de fato existe uma
realidade totalmente diferente para os homens e para as
mulheres — é evidente até em nossa forma cultural mais
rude: as revistas de histórias em quadrinhos. De experiên­
cia pessoal: quando era pequena, meu irmão tinha uma
coleção, literalmente falando, do tamanho de um quarto,
de revistas de histórias em quadrinhos. Mas, embora eu
fosse uma leitora voraz, essa vasta biblioteca de revistas
de quadrinhos não me interessava de modo algum. Meu
gosto literário era inteiramente diferente do dele. Ele
preferia histórias “pesadas” , como os quadrinhos de guer­
ra (T ra-ta-ta-tá) e o Super-Homem; e, para aliviar, his­
tórias como “O Coelho Pernalonga”, “Tweetie and Syl-
vestes”, “Tom e Jerry” , e todos os leitões gagos que
insistem em se manifestar num a mensagem mais do que

185
óbvia. Em bora esses “cômicos” irritassem m inha sensibi­
lidade mais estética, eu os leria, na falta de outra alterna­
tiva. M as, se eu tivesse tido um a m esada tão grande e
um a supervisão tão pequena dos pais, teria me saciado
com um a coleção de quadrinhos de am or “pesada” . (L á­
grimas. Oh, Tod, não fale a Sue sobre nós, ela m orreria!),
um ocasional True Confessions e, para um “leve” des­
canso, Archie and Verônica. Ou as variações ocasional­
mente mais imaginativas dos quadrinhos dos meninos,
como O Homem-de-Borracha (Super-Homem com um
braço de borracha, que poderia se estender em volta dos
quarteirões), ou Tio Patinhas (E u adorava sua extra­
vagância egoísta. Outras mulheres [desprendidas] con­
fessaram a mesma paixão de m ocidade). Mais provavel­
mente até, eu não teria investido em revistas de quadri­
nhos de modo algum. Contos de fada, muito menos realis­
tas, eram um a “viagem” melhor.
Meu irmão achava que o gosto das meninas era
“chato”, e eu achava que ele era um grande bobalhão.
Quem estava certo? Os dois. M as ele venceu (ele tinha a h
biblioteca).
Essa divisão continua a operar em níveis culturais
mais elevados. Eu tive que me forçar para ler Mailer,
Heller, Donleavy, e outros, pelas mesmas razões pelas
quais não poderia suportar a biblioteca de meu irmão.
P ara mim, eles pareciam apenas versões complexas (res­
pectivamente) do Super-Homem, Tra-ta-ta-tá, e das Aven­
turas do Pernalonga. Mas, apenar da biblioteca “mas­
culina” continuar a me repelir, no processo de desenvolvi­
m ento do “bom-gosto” (segundo padrões m asculinos),
também perdi meu am or pela biblioteca “feminina”. N a
verdade, desenvolvi um a aversão; e — tenho vergonha de
admitir isso — preferia longe ser apanhada com Hemin-
gway do que com Virginia W oolf na mão.
P ara ilustrar essa dicotomia cultural em termos mais
objetivos não precisamos atacar os mais óbvios tigres
de papel (todos os sentidos im plícitos), que consciente­
mente apresentam uma realidade “masculina” — a saber,
Hemingway, Mailer, Heller, M iller, Donleavy, e o res­
tante. A nova^ Escola da Virilidade na literatura do sé-

186
culo X X é, ela própria, um a resposta direta, na verdade
uma reação cultural masculina à crescente am eaça à
supremacia masculina — Virilidade, Inc., um grupo de
“garotos brigões” culturalmente excluídos, esmurrando-se,
para salvar sua masculinidade. E, apenas de ganharem
mais crédito, esses artistas escrevem sobre a experiência
masculina não mais perceptivelmente do que Doris Lessing,
Sylvia P ath e Anais Nin escreveram sobre a experiência
feminina. De fato, eles são culpados de uma mistificação
da sua experiência, que torna falsos seus escritos.
E m vez disso, examinaremos um preconceito mais
traiçoeiro (porque menos óbvio) dos escritores masculinos
que honestam ente tentaram descrever todo o espectro da
experiência m asculina/fem inina — Bellow, M alamud,
Updike, R oth, etc. — mas que falharam porque, em
geral, sem se dar conta, descreveram esse todo a partir
de um ângulo (m asculino) limitado.
Examinemos brevemente um a história de H erbert
Gold, um escritor que não é “m asculino” nem no estilo,
nem na temática. Ele escreve sobre coisas que dizem res­
peito às mulheres, i.e., relações de preferência m asculinas/
femininas, casamentos, divórcios, aventuras. Nessa his­
tória, “W hat’s Become of Your C reature?”, ele descreve
o romance entre um problem ático professor de univer­
sidade, jovem, e sua aluna loura, boêmia.
A imagem que fazemos de Lenka Kuwaila, a partir
da visão do personagem masculino, é apenas sensual, ainda
que sensitiva nesses termos. A história começa:

“Uma mulher. Alegre, bela e sombria, ao mesmo tempo


com sinais de doçura e de crueldade. Quando ele procurou
por cigarros na escrivaninha dela, havia uma pilha de calci­
nhas de seda, enlaçadas como flores, entontecendo-o com a
alegria da primavera. Quando ela vestiu uma delas, subita­
mente dilatando a minúscula pétala de roupa em dois botões
pares, era como se o sol tivesse forçado uma flor a um deli­
cado florescer de páscoa. Oh, ele precisava dela, amava-a,
e assim, em respeito aos dois, deixem-nos contar a verdade,
tão direta como a verdade surge.”

187
Mas, a verdade que nós obtemos “direta como a ver­
dade surge” é apenas a sua visão da verdade.

“Há um momento na vida de todo homem em que ele


não consegue fazer nada. Este era o momento da vida de
Frank Curtiss. O desespero com a esposa tinha sucumbido a
um profundo prazer com uma bela moça. Ele até sentia-se
melhor em casa. As coisas esfriavam e se acalmavam. Seu
trabalho ia melhor. Mal precisava dormir, e não sofria de
sua febre normal, que sentia na primavera em que conhecera
Lenka. Sem resfriados, sem olhos vermelhos. Respiração
expandida, visão aguçada. Curou-se da habitual dor de ca­
beça, causada pelo cansaço, com o toque da mão dela, com
sua acolhida quando ele chegava sorrindo, mostrando-lhe os
dentes, através da janela.”

M as a verdade dela deve ter sido completamente


diferente, uma verdade da qual não há traços na histó­
ria, até o dia em que (inesperadam ente) Lenka escreve
uma longa carta para a mulher dele. O casamento fracasa­
do, que se tinha tornado mais estável desde que Frank
iniciara sua aventura com Lenka, é destruído para sempre:

“Lenka deixou Nova Iorque sem vê-lo, depois que rece­


beu seu telefonema angustiado: ‘Por quê? Por quê? Por que
você teve que fazer isso assim, Lenka? Você não consegue
perceber como isso destrói tudo entre nós, até o passado?’
‘Eu não me interesso por recordações. O que acabou
não significa nada. Acabou. Você não queria senão rastejar
na minha janela umas duas vezes na sem ana. . . ’
‘Mas, escrever para ela daquele jeito — o que signifi-
ficava — como . . . ’
‘Você se interessou muito mais por uma puta sem graça
do que por mim. Só porque você tinha um filho.’
‘Por quê? Por quê?’
Ela bateu o telefone.
Ele deu de ombros. As mulheres estavam cortando suas
ligações em todo lugar do mundo. Estava confuso.”

Sentindo-se traído e enganado, F rank desnorteada­


mente trata as feridas. D urante todo o resto da história,
sentimos-lhe a perplexidade. Não compreende o que a le­

188
vou a fazer aquilo, não “compreende as mulheres”. Afinal,
termina admitindo nela “grandes traços de crueldade”
assim como de douçura.

Mas a “crueldade” de Lenka é o resultado direto da


incapacidade dele de vê-la como algo além de “um a pe­
quena” (alegre, bonita, ou som bria), e em vez disso vê-la
talvez como um ser hum ano complexo, com interesses
pessoais diferentes dos seus. Contudo, devido à autenti­
cidade da narrativa dos incidentes e dos diálogos de Gold,
um leitor sensível (provavelmente m ulher) conseguirá ler
nas entrelinhas: Lenka foi a única traída. Eis Frank,
poucos dias depois, em M anhattan:

“Ele procurou uma pequena que comesse com ele uma


maçã. Morderam e sugaram seu doce suco ao amanhecer, e
finalmente beijaram-se como bons amigos, voltando-se de lado
para dorm ir. . . Ele se sentia livre . . . Jogou fora o vidro de
aspirinas. A visão que tinha de si mesmo como um homem
casado, pesado, áspero, um búfalo cansado, deprimido, amor­
daçado, deu lugar a uma outra imagem — ele era magro,
seu estado era bom, ele era um ágil bon-vivant. Quando sua
primeira esposa casou-se de novo, seu último vestígio de culpa
desapareceu. Livre, livre. Jogava tênis duas vezes por semana
com uma francesa que pronunciava ‘Te-nís’.”

Agora um solteirão alegre, F rank um dia, impulsiva­


mente, telefona para Lenka:

“Mas, depois de ter-lhe dito quanto tempo tinha estado


em Nova Iorque, ela disse que não estava interessada em
vê-lo.”
‘Eu guardei um rancor, você pode entender isso’, disse
ele. ‘Eu ainda acho que você estava errada, mas lhe sou
grato de alguma forma. Acabou sendo melhor.’
‘E acabou’, disse ela.”

Mais tarde, encontrou-se com ela, vendo-a acabada


por drogas, prostituindo-se com um músico negro:

“Ela deve ter inventado uma mentira absurda (para


convidá-lo a subir em seu quarto), mas reconheceu um brilho

189
de contentamento na face dele, e em seus vinte e cinco anos
de hoje ela só tinha aprendido um meio de responder ao
julgamento dos homens. Inclinou-se para ele, no seu rosto
urna mistura de timidez e pavor, um meio-sorriso de flerte,
um movimento felino, estudado e insinuante, na direção dele,
seus olhos cheios de lágrimas quando os fechou, as lágrimas
balançando em suas pestanas umedecidas, escorrendo pelas
bochechas. ‘Frank’, disse ela hesitando. ‘Eu me esqueci por
um longo tempo, eu não sei, as coisas ficaram difíceis, eu pen­
sei que você estivesse muito irritado. . . Mas eu tenho me
lembrado . . . É porque . . . Perdoe ..
“Ele envolveu-a nos braços, apertou-a, porém mais con­
fuso do que amoroso ou terno . .
“Então pensou nas cartas sobre as quais ela tinha acaba­
do de mentir, e, subitamente, quando ela volvia a cabeça,
querendo ser beijada, sua fantasia mais intensa era esta:
Ela era suja. Seu medo irrefreável, deixava-o confuso—■
ilusão, doença, compaixão secreta, lama e desforra. Sem sa­
ber o que ele próprio temia, pensou apenas: sujeira, sujeira
leia, sujeira grossa, mordidas, feridas. Por não poder supor­
tar as lamentações dela, pensou: ilusão, astúcia, e doença!"
“Afastou-se, antes que os lábios dela o tocassem; as unhas
dela arranharam seus braços, rasgando-lhe a pele. Fugiu,
ouvindo os soluços dela à porta aberta, enquanto tropeçava
pelos degraus contaminados da escada, descendo até encon­
trar o ar livre da rua.”

Final: F rank acaricia a esposa recentemente grá­


vida, indagando-se o-que-teria-acontecido-a-Lenka.
Essa não é um a história masculina no tema, nem no
“estilo” — há suficiente descrição de emoções para enver­
gonhar qualquer escritor masculino. M as ainda é uma
história, “masculina”, em virtude de sua peculiar limita­
ção de visão: ela não compreende as mulheres. A sen­
sualidade e a beleza de Lenka são determinadas pelo
quanto F rank é capaz de compreendê-las. Os motivos
pelos quais ela escreveu para a esposa dele, sua recusa
em vê-lo, sua tentativa de sedução, descritas com tanto
ódio culpado — F rank não consegue lidar com eles, exa­
tam ente como acontece na vida real com os homens ( “Por
não poder suportar as lamentações dela, pensou: Ilusão,

190
astúcia, e doença!” ). C onhecer um a m ulher além do nível
de sua beleza era demais p ara ele. As mulheres são
jülgàdas só nos termos dele, ou em termos do que elas
godem lhe trazer, seja beleza e alegria, seja sofrimento
e tristeza. Quaisquer que sejam esses termos, ele não os
cjuestiona; não com preendendo que seu próprio com por­
tam ento foi ou poderia ser um a influência determinante.
Podemos imaginar um a história completam ente dife­
rente sobre esse caso de am or, usando até as mesmas
referências e os mesmos diálogos, só que dessa vez escrita
por Lenka. Seu com portamento então não pareceria mais
irracional, mas inteiram ente compreensível; o personagem
masculino, ao contrário, se m ostraria superficial. Talvez,
de fato, pudéssemos term inar com algo além de um pre­
conceito sexual oposto. Poderíam os perceber uns três
quartos do quadro (i.e., F rank é superficial porque é
incapaz de assumir suas em oções), visto que as mulheres,
em geral, em função de um a opressão prolongada, apren­
deram a ser mais avançadas em psicologia m asculina do
que vice-versa. M as isto raram ente ocorreu em literatura,
porque a maioria das Lenkas foi destruída pelo uso e
abuso delas em não escrever as próprias histórias coeren­
temente.
Assim, a diferença entre a aproximação “m asculina”
e a aproxim ação “feminina” da arte não é, como alguns
pensam, simplesmente um a diferença de “estilo” no tra­
tam ento de um mesmo tem a (pessoal, emocional, descri­
tivo versus vigoroso, econômico, enérgico, frio, objetivo),
mas um a diferença no próprio tema. O sistema dç papéis
sexuais divide a experiência humana. Os homens e as
mullíeres vivem nessas diferentes metades da realidade.
E a cultura reflete isso.
Somente alguns artistas superaram essa divisão em
seu trabalho. E nos perguntamos se os homossexuais estão
certos em suas reivindicações. M as, se não o fizeram a t n -
vés da expressão física, então de algum outro modo os
maiores artistas se tornaram mentalmente andróginos. No
século X X , por exemplo, escritores da envergadura de
Proust, Joyce, Kafka fizeram-no seja identificando-se fisi­
camente com a mulher (P ro u st), seja imaginariamente,

191
atravessando à vontade os limites entre esses mundos
(Joyce), ou retirando-se num m undo imaginário rara­
mente afetado pela dicotomia (K afka). M as, não só a
m aior parte dos artistas não superou a divisão, como se­
quer estava ciente da existência de um a limitação cultural
baseada no sexo. É assim que a realidade m asculina é
aceita, tanto pelos homens quanto pelas mulheres como
sendo a Realidade.
E, que dizer das mulheres artistas? Vimos que só
nos últimos séculos foi concedido às mulheres participar
— e apenas em bases individuais e em termos masculinos
— da construção da cultura. E, mesmo assim, sua visão
tornou-se inautêntica. Foi-lhes negado o uso do espelho
cultural.
Existem várias razões negativas, pelas quais as m u­
lheres ingressaram na arte. A riqueza sempre originou o
diletantismo feminino, p.ex., a “jovem dam a” vitoriana
com seu talento, ou a arte das gueixas japonesas. Pois,
além de servir de símbolo ao luxo masculino, a crescente
ociosidade das mulheres, sob um industrialismo avançado,
apresenta um problem a prático: a insatisfação.iem inina
tem que ser diminuída, para impedir as mulheres d e explo­
dir. M as também pode ser que as mulheres estejam ingres­
sando na arte como um refúgio. As jmulheres, ainda hoje,
são excluídas dos centros vitais de poder da atividade hu­
m ana; e a arte é um a das últimas ocupações autodeter-
minadas restantes — geralmente feita na solidão. Mas,
nesse sentido, são como uma Pequena Burguesa tentando
abrir um a fábrica na era das Corporações Capitalistas.
Pois, ultimamente, a m aior percentagem de mulheres
na arte pode nos dizer mais sobre a situação da arte do
que sobre a situação das mulheres. Devemos nos sentir
animados pelo fato de as mulheres assumirem um a condi­
ção que breve será dispensada? (D o mesmo m odo como
noventa e cinco por cento de negros nos Correios não é
sinal de integração; ao contrário, os indesejados estão sen­
do empurrados para as posições menos desejáveis: Agora,
entre e bico calado!) Que a arte não é mais um centro
vital que atrai os melhores homens de nossa geração pode
também ser um produto da divisão m asculino/fem inino,

192
como tentarei mostrar no capítulo seguinte. Mas o entu­
siasmo das mulheres e dos homossexuais com as artes
pode significar, hoje, a corrida dos urubus para um corpo
agonizante.2
Contudo, se ainda não produziu grandes mulheres
artistas, a literatura feminina criou certamente um a au­
diência feminina. Do mesmo modo como as audiências
masculinas sempre exigiram, e receberam, uma arte mas­
culina que reforçasse sua visão particular da realidade,
assim também a audiência feminina requer um a arte “fe­
minina”, para reforçar a realidade feminina. Daí o nas­
cimento da grosseira novela feminina no século X X , que
levou à love story de nossos dias, tão presente na cultura
popular ( o “dram alhão” ); o comércio das revistas femini­
nas; Vale das Bonecas. Estes podem ser começos grossei­
ros. Mas, de vez em quando, a realidade feminina é do­
cumentada tão claramente quanto o foi a realidade mas­
culina, como, por exemplo, na obra de Anne Sexton.
Finalmente, devido a toda essa efervescência, talvez
muito breve possamos assistir à emergência de um a arte
feminina autêntica. Mas, o desenvolvimento de um a arte

é seu correlativo, a Escola da Virilidade masculina. Ao


contrário, ele é progressista. Üma exploração da reali­
dade estritamente feminina é um passo necessário para
corrigirh áBerração de um a cultura sexualmente precpn-
ceituosa^Só depois de termos integrado a face escura da
Lua em nossa~visão de mundo é que poderemos falar
seriamente de uma cultura universal,
* * *

Assinij toda a cultura foi corrompida, em diferentes


grau só p ela polarização sexual. Sintetizaremos as várias
formas que essa corrupção assume, da seguinte maneira:

2. Contudo, a presença das mulheres nas artes e humanidades


é ainda viciosamente sustentada pelos poucos homens restantes,
em proporção à insegurança de sua própria posição — parti­
cularmente precária nas escolas tradicionais, humanistas, como a
pintura figurativa.

193
1) A rte de Protesto Masculino — A arte que cons­
cientemente glorifica a realidade masculina (contraria­
mente a se supor que ela constitua a própria realidade) é
apenas uma manifestação recente. Vejo-a como um a res-
posta direta à ameaça à supremacia masculina, contida no
primeiro enfraquecimento dos rígidos papéis sexuais. Essa
arte é reacionária por definição. Recomendo um exame
m aior de sua personalidade aos homens que acreditam
que essa arte expressa melhor o que eles vivem e sentem.
2) O Ângulo Masculino — Essa arte não consegue
atingir uma visão de mundo ampla, porque não reconhece
que a realidade masculina não é a Realidade, mas apenas
uma metade da realidade. Assim, sua retratação do sexo
oposto e de seu comportamento (m etade da hum anidade)
é falsa: o próprio artista não compreende os motivos femi­
ninos. Algumas vezes, como na história de H erbert Gold,
citada por nós, os personagens femininos podem ainda se
sair bem, se o autor tiver sido honesto, ao menos no
como — se não o foi no porque — de seu comportamento.
Um exemplo mais conhecido: o personagem C ata­
rina, no filme Jules e Jim, de Truffaut, é tirado da vida
real. Existem, em toda parte, muitas dessas vamps e
fem m es fatales, na realidade, mulheres que recusam acei­
tar sua impotência. P ara conservar uma ilusão de igual­
dade, e ganhar um poder indireto sobre os homens, C a­
tarina deve valer-se do “mistério” (Esfinge), da impre-
visibilidade (atirando-se no Sena), e da astúcia (dor­
mindo com o Homem Misterioso, para mantê-lo preso).
Quando, no fim, como todas as mulheres, ela perde até seu
poder ilegítimo, seu orgulho não admite a derrota. Ela
m ata o homem que ousou libertar-se dela, e depois se
mata. Mas, mesmo aqui, num a arte traçada com esmero,
surge o preconceito masculino. O diretor prossegue com a
mística da M ulher Misteriosa; não investiga para desco­
brir o que está por trás dela. Além do mais, ele não quer
saber: ele a usa como um a fonte de erotismo. A imagem
que fazemos de Catarina só aparece através de um véu.
3) A Mentalidade Andrógina ( Cultivada Individual­
m ente) — Mesmo quando as limitações sexuais tenham

194
sido superadas pelo artista individualmente, sua arte re­
vela uma realidade tornada feia por essa divisão. Um
exemplo breve, de novo tirado do cinema: apesar dos
diretores suecos serem notavelmente livres de preconcei­
tos sexuais pessoais — as mulheres que eles retratam são
primeiro humanas, e depois mulheres — a retratação que
Liv Ullman faz da Nobre Esposa que acompanha fiel­
mente o marido em sua crescente loucura (A Hora do
Lobo, de Bergman) ou que o ama em sua degeneração
moral ( Vergonha, de B ergm an), ou a sensibilidade con­
fusa de Lena Nyman em Eu Sou Estranha (A m arela), de
Sjoman, são descrições não de uma sexualidade liberada,
mas de um conflito ainda não resolvido entre as identi­
dades sexual e humana.
4) A r te Feminina — É esta uma nova manifestação,
que não deve ser confundida com a arte “masculina” ,
mesmo que, por enquanto, ela seja culpada do mesmo
preconceito, ao inverso. Pois ela pode significar o início
de uma nova consciência, em vez de uma ossificação do
antigo. D entro da década seguinte, poderemos assistir ao
seu desenvolvimento em uma nova arte poderosa' — tal­
vez surgindo em conjunção com o movimento político
feminista, ou inspirado nele — que, pela primeira vez,
se relacionará com a realidade na qual as mulheres vivem.
Podemos também assistir a um Criticismo feminista,
dando ênfase, para corrigi-las, às várias formas de precon­
ceito sexual que hoje corrompem a arte. Contudo, em
nossa terceira categoria, que fala de uma arte culpada
de só refletir o valor hum ano de uma realidade sexual­
mente dividida, deverá ser tomado muito cuidado para que
o criticismo seja orientado não para os artistas, em função
de sua retratação (apurada) da realidade incompleta,
mas para o absurdo dessa própria realidade, como foi
revelada pela arte.
Somente uma revolução feminista pode eliminar com­
pletamente o cisma, sexual, causador dessas distorções
culturais. Até que a “ arte pura” se torne uma ilusão —
uma Ilusão responsável, tanto pela arte inautêntica pro­
duzida até agora pelas mulheres quanto pela corrupção

195
da cultura (m asculina) em geral. A incorporação da me­
tade desprezada da experiência hum ana — a experiência
feminina — no organismo cultural, para criar um a cultura
abrangente, é apenas o primeiro passo, uma precondição.
M as, o próprio cisma da realidade deve ser destruído,
para que possa haver um a verdadeira revolução cultural.

196
IX. DIALÉTICA SEXUAL DA HISTÓRIA
DA CULTURA

Por enquanto, tratam os a “cultura” como sinônimo


de “artes e letras”, ou no seu sentido mais amplo de
“hum anidade”. Essa é uma confusão bastante comum.
Entretanto, ela é surpreendente em seu contexto. Pois
descobrimos que, embora relacionadas com a arte, ainda
que só indiretamente, as mulheres foram totalmente ex-
cluidas de uma metade igualmente importante da cultura:
a ciência. Se, ao menos no setor das artes, conseguimos
encontrar material sobre a relação das mulheres com a
cultura — seja indiretamente, como influência, estímulo,
ou tema, seja até ocasionalmente, como participantes di­
retas — suficiente para preencher ao menos um capítulo,
com muita dificuldade descobrimos uma relação das mu­
lheres com a ciência, digna de discussão. Talvez no senti­
do mais geral, nossa afirmação de que as mulheres são
a força emocional por trás de toda a cultura (m asculina)
seja verdadeira — mas estendemos o problema para in­
cluir a ciência moderna, onde o método empírico, espe­
cificamente, requer a exclusão da personalidade do cien­
tista de sua pesquisa. A satisfação de suas necessidades
emocionais através de um a mulher, nas suas horas vagas,
pode torná-lo mais estável, e assim mais calmo no tra­
balho, mas isto é forçado.

197
Porém mesmo que a relação indireta das mulheres
com a ciência seja discutível, é certo que não existe uma
relação direta entre elas. Teríamos que sondar, para encon­
trar uma só mulher que tenha contribuído de um modo
im portante para a cultura científica. Além do mais, a
situação das mulheres na ciência não está melhorando.
Mesmo tendo o trabalho de pegquisa passado das inteli­
gências mais completas do passado para pequenos grupos
de pesquisa pragmática nas universidades, existe um nú­
mero extraordinariamente pequeno de mulheres cientistas.1
Essa ausência de mulheres em todos os níveis das
disciplinas científicas é de tal forma um lugar-comum
que muitas pessoas (também inteligentes) são levadas
a atribuí-lo a alguma deficiência (lógica?) das próprias
mulheres. Ou às próprias predileções das mulheres pelo
emocional e o subjetivo em vez do prático e do racional.
M as a questão não pode ser tratada assim tão simples­
mente. É verdade que as mulheres, na ciência, estão em
território alheio — mas, como esta situação evoluiu? Por
que existem disciplinas, ou ramos de pesquisa que só re­
querem um a mente “masculina”? Por que uma mulher,
para se qualificar, precisa desenvolver uma psicologia
alheia? Quando e por que a mulher foi excluída desse
tipo de pensamento? Como e por que a ciência veio a ser
definida e restrita ao “objetivo”?
Proponho que não só as artes e as humanidades fo­
ram corrompidas pela dualidade sexual, mas também a
ciência m oderna foF determinada oor ela. E além disso
que a cultura reflete essa polaridade na sua própria orga­
nização. C.P. Snow foi o primeiro a observar o que se

1. Eu fiquei engasgada com isso num recente seminário do


Women’s Liberation programado pelo departamento de ciências
de uma universidade de alto nível do Leste. Das cinqüenta mu­
lheres presentes, apenas uma ou duas estavam envolvidas com
pesquisa, sem falar na pesquisa de alto nível. As outras eram
técnicas de laboratório, assistentes de titulares, professoras de
ciência no ginásio, esposas de catedráticos, etc.

198
tornava cada vez mais óbvio: uma profunda fratura na
cultura — as artes liberais e as ciências tinham-se tor­
nado incompreensíveis umas para as outras. Além disso,
embora o homem universal da Renascença seja muito la­
mentado, a especialização não pára de se intensificar.
Esses são alguns dos modernos sintomas de uma longa
doença cultural, baseada no dualismo sexual. Exam i­
nemos a história da cultura, de acordo com esta hipótese:
de que existe um a dialética do sexo subjacente a ela.

1. Os Dois Modos da História Cultural

Para efetuar nossa análise, precisamos definir a cultu­


ra do seguinte modo: a cultura é a tentativa dos homens
de realizar o imaginável no possível. A consciência que o
homem tem de si mesmo, dentro de seu meio-ambiente,
distingue-o dos animais inferiores, e transform a-o no único
animal capaz de fazer cultura. Essa consciência, sua fa­
culdade mais elevada, permite ao homem projetar mental­
mente estados de ser que não existem no momento. Capaz
de construir um passado e um futuro, ele se torna uma
criatura do tempo — um historiador e um profeta. Mais
do que isso, ele pode imaginar objetos e estados de ser
que nunca existiram e podem nunca chegar a existir no
mundo real — ele se torna um fazedor de arte. Assim,
por exemplo, embora os gregos antigos não soubessem
voar, ainda assim eles poderiam imaginá-lo. O mito de
Ícaro foi a formulação, na fantasia, da concepção dos
gregos do estado de “voar”.
Mas o homem não foi somente capaz de projetar
o imaginável na fantasia. Também aprendeu a impô-lo à
realidade. Acumulando conhecimentos, aprendendo, atra­
vés da experiência, sobre essa realidade, e a como mani­
pulá-la, ele pode moldá-la a seu gosto. Esse acúmulo de
habilidades para controlar o meio-ambiente, a tecnolo­
gia, é um outro meio de atingir o mesmo objetivo, a reali­
zação do concebível no possível. Assim, em nosso exem­
plo, se, na era a. C. o homem podia voar no tapete m á­

199
gico do mito ou da fantasia, no século X X sua tecnologia,
o acúmulo de suas habilidades práticas, tornou possível
para ele voar na realidade — ele inventou o avião. Outro
exemplo: na lenda bíblica, os judeus, um povo agricultor
desamparado durante quarenta anos no deserto, foram su­
pridos de m aná por Deus, uma substância milagrosa que
poderia ser transform ada em alimentos de qualquer cor,
textura ou sabor. O processo moderno de nutrição, so­
bretudo com a “revolução verde” , provavelmente criará
em breve uma produção de alimentos totalmente artifi­
ciais, talvez com esses atributos do camaleão. Além disso,
na lenda antiga, o homem podia imaginar espécies mistas,
p.ex., o centauro ou o unicórnio, ou pássaros híbridos,
como um animal nascido do homem, ou uma concepção
imaculada. A revolução biológica em curso, com seu cres­
cente conhecimento do processo de reprodução, poderia
agora — mesmo que somente nos estágios mais grosseiros
— criar essas “monstruosidades” na realidade. Duendes
t gnomos, o Golem do saber medieval judaico, o monstro
de Mary Shelley em Frankenstein foram construções ima­
ginárias que precederam em vários séculos o acume tecno­
lógico correspondente. Muitas outras construções fantás­
ticas — os fantasmas, a telepatia, a idade de Matusalém
— aguardam a sua realização pela ciência moderna.
Essas duas respostas diferentes, a idealista e a cien­
tífica, não coexistem apenas paralelamente; há um diálogo
entre elas. À construção imaginária precede ra tecnológica,
em bora freqüentemente ela não se desenvolva antes que o
Icnów-How teconológico esteja “em circulação” . Por exem­
plo: a arte da ficção científica se desenvolveu, principal­
mente, somente meio século na frente da revolução cien­
tífica, e agora coexiste com ela, que a está transform ando
em realidade — um exemplo (inofensivo): o vôo à Lua.
As expressões “way out”, “far out” , “spaced” ,* a observa­
ção “é como se fosse um a ficção científica” são lingua­
gem comum. N a resposta estética, pelo fato de ela sempre
se desenvolver antecipadamente, e assim ser o produto

* Referem-se estas expressões a pessoa “viajando” ou “desligada” em


função do uso de drogas. (N.T.)

200
de um a nova era, a mesma realização pode assumir uma
forma sensacional ou fantástica, p. ex., o monstro de
Frankenstein, oposta, por assim dizer, às máquinas faz-tu-
do da General Electric: CAM (M áquinas Antropom ór
ficas Cibernéticas). (U m artista pode nunca chegar a
saber, antecipadamente, como sua visão poderia ser arti­
culada na realidade.)
A cultura é, portanto, a soma e a dinámica entre os
dois modos” atraves dos quais a mente tentá sobrepor-se
às limitações e às contingências da realidade. Esses dois
tipos de respostas culturais produzem diferentes métodos
para aTcançar o mesmo fim, a realização do concebível
no possível. Iniclálmente,2 o indivíduo nega as limitações
3a realidade dada, fugindo dela completamente, para criar
seu próprio possível. Nos territórios da imaginação, objeti­
vada 3e alguma m aneira — quer através do desenvolvi­
mento de um a imagem visual dentro de algum limite arti­
ficial, digamos quarenta centímetros quadrados de tela,
quer através de imagens visuais projetadas através de sím­
bolos verbais (poesia), ou com sons ordenados num a se­
qüência (música), ou idéias verbais ordenadas em progres­
são (teologia, filosofia) — o homem cria um mundo ideal,
governado exclusivamente por uma ordem e harm onia ar­
tificialmente impostas por ele, um a estrutura na qual ele
conscientemente relaciona cada parte estável (e, portanto,
“eterna” ). O grau em que ele abstrai sua criação da rea­
lidade não tem importância, pois mesmo quando mais
parece imitar, ele cria um a ilusão dirigida por seu próprio
— talvez secreto — conjunto de leis artificiais. (Degas
disse que o artista tinha que mentir para dizer a verdade.)
Essa busca pelo ideal, realizada através de um meio artifi­
cial, podemos cham ar de M odo Estético.
No segundo tipo de resposta cultural, as contingên­
cias da realidade são vencidas, não através da criação de
um a realidade substitutiva, mas através do domínio do
próprio funcionamento da realidade. As leis da natureza

2. O modo idealista, que corresponde grosseiramente ao modo


de pensamento “metafísico”, supra-histórico e não-materialista,
contra o qual Marx e Engels se revoltaram.

201
são descobertas, e depois voltadas contra ela, para mol­
dá-la de acordo com a concepção do homem. Se existe
um veneno, o homem supõe que existe um antídoto; se
existe um a doença, ele procura a cura. Todo fato da na­
tureza que é compreendido pode ser usado para modificá-
Ia- Mas, para realizar o ideal através desse procedimento
é preciso muito tempo e é infinitamente mais árduo, so­
bretudo nos primeiros estágios do conhecimento. Pois a
vasta e intricada m áquina da natureza pode ser inteira­
mente compreendida — e existem sempre camadas novas.
e1imprevistas de complexidade — ^antes de poder ser com­
pletamente controlada. Assim, antes que qualquer solução
para as contingências mais profundas da condição hu­
mana, p.ex., a morte, possa ser descoberta, os processos
naturais de crescimento e decomposição devem ser cata­
logados, as leis mais simples serem relacionadas às mais
complexas. Esse método científico (tam bém tentado por
M arx e Engels em seu enfoque m aterialista da H istória)
é a tentativa do homem de dom inar a natureza, através
da compreensão total de sua mecânica. À coação da rea­
lidade para conformá-la à concepção ideal do homem,
mediante a aplicação da informação extrapolada dessa
própria realidade, chamaremos de_M odp_Tggnológigo^
t)eíinim os a cultura como a soma e a dialética entre
os dois modos diferentes através dos quais o homem pode
resolver a tensão criada pela flexibilidade de suas facul­
dades mentais dentro das limitações de seu meio-ambiente
dado. A correspondência desses dois modos culturais dife­
rentes respectivamente com os dois sexos é inconfun­
dível. Observemos como as poucas mulheres que criaram
diretamente a cultura tenderam para as disciplinas dentro
do M odo Estético. Existe um a boa razão para isto: a res­
posta estética corresponde ao comportamento “feminino” .
A mesma terminologia pode ser aplicada a qualquer dos
dois: subjetivo, intuitivo, introvertido, fantasista, sonha­
dor, relativo ao inconsciente (ao id), emocional, até tem ­
peram ental (histérico). Analogamente, a resposta tecno­
lógica é a resposta masculina: objetiva, lógica, extrover­
tida, realista, relativa à mente consciente (ao ego), racio­
nal, mecânica, pragmática e terra-a-terra, estável. Assim,

202
a estética é a recriação cultural daquela m etade da estru­
tura psicológica que foi reservada às mulheres, enquanto
que a resposta técnica é a magnificação cultural da me­
tade masculina.
Assim como admitimos que a divisão biológica dos
sexos em função da procriação é a dualidade “natural”
fundamental a partir da qual nasce toda a divisão de
classes ulterior, assim admitimos agora que a divisão se­
xual é também a raiz dessa divisão cultural fundamen­
tal. A interação entre essas duas respostas culturais, o
M odo Tecnológico “masculino” e o M odo Estético “fe-
minino”, recria ainda, num outro nível, a dialética dos
sexos — bem como sua superestrutura, a dialética de
classes econômicas e raciais. E assim como a fusão das
distintas classes sexuais, raciais e econômicas é um a pre-
condição para a revolução respectivamente sexual, racial
ou econômica, assim a fusão da cultura estética com a
tecnológica é a precondição para um a revolução cultu- !
ral. E assim como a meta revolucionária das revoluções j
sexual, racial e econômica é, em vez de um mero nive­
lamento dos desequilíbrios de classe, um a eliminação
total das categorias de classe, assim o resultado final de
uma revolução cultural deve ser, não m eramente a inte­
gração das duas correntes da cultura, mas a eliminação
de todas as categorias culturais, a eliminação da própria
cultura^ como nós a conhecemos. 1Mas, antes de discutir
a revolução cultural definitiva, ou mesmo o estado da
divisão cultural na nossa época, vejamos como esse ter­
ceiro nível da dialética do sexo — a interação entre os
M odos Tecnológico e Estético — operou para determi­
nar o fluxo da história cultural.
Inicialmente, o conhecimento tecnológico se acumu­
lou lentamente. Gradualm ente o homem aprendeu a con­
trolar os aspectos mais rudes de seu meio-ambiente —
descobriu a ferram enta, o domínio do fogo, a roda, a
fundição do minério para fazer armas e arados, até, fi­
nalmente, o alfabeto — mas essas descobertas foram
muito poucas, em virtude de ele ainda não dispor de
nenhum modo sistemático de iniciação. Contudo, final­
mente acumulou suficiente conhecimento prático para

203
construir sistemas complexos, p.ex., a medicina ou a
arquitetura, para criar instituições jurídicas, políticas, so­
ciais e econômicas. A civilização evoluiu de um a horda
de caçadores primitivos para uma sociedade agrícola, e,
finalmente, através de estágios progressivos, para o feu­
dalismo, o capitalismo e as primeiras tentativas de
socialismo.
Mas, durante todo esse tempo, a habilidade do ho­
mem de imaginar um m undo ideal esteve bem à frente
de sua habilidade de criá-lo. As formas culturais prim á­
rias das civilizações antigas — a religião e suas ramifi­
cações, a mitologia, a lenda, a arte e a magia primitivas,
a profecia e a história — aconteciam no M odo Estético.
Elas impuseram apenas um a ordem artificial, imaginária
a um universo am da misterioso e caótico. Mesmo as
teorias científicas primitivas eram apenas m etáforas poé­
ticas do que mais tarde seria realizado empíricamente.
A ciência, a filosofia e a m atem ática da antiguidade clás­
sica, precursoras da ciência m oderna, através de proezas
imaginativas simples, operando num vácuo, independen­
tes de leis materiais, anteciparam muito do que foi com­
provado mais tarde. O átomo de Demócrito e a “subs­
tância” de Lucrécio prenunciaram milhões de anos antes
as descobertas da ciência moderna. Mas elas foram rea­
lizadas somente no domínio do M odo Estético, um do­
mínio imaginário.
N a Idade Média, a herança judaico-cristã foi assi­
m ilada à cultura pagã, produzindo a arte religiosa me­
dieval, a metafísica de Tomás de Aquino e da Escolás­
tica. Em bora, simultaneamente, a ciência árabe, um pro­
duto do Período Alexandrino Grego (século III a.C. ao
século V II d.C.) estivesse acumulando informação con­
siderável em áreas como a geografia, a astronomia, a fi­
siología, a m atem ática — um a tabulação essencial para
o empirismo posterior — havia muito pouco diálogo. A
ciência ocidental, com sua alquimia, sua astrologia, os
“hum ores” da medicina medieval, era ainda um estágio
“pseudocientífico”, ou, em nossa definição, ainda opera­
va de acordo com o Modo Estético. Essa cultura estéti­

204
ca medieval, form ada pelas heranças clássica e cristã,
culminou no Humanismo da Renascença.
A té a Renascença, a cultura aconteceu no Modo
Estético, porque antes dessa época a tecnologia tinha
sido muito rudim entar, o corpo do conhecimento cientí­
fico estava muito longe de ser completo. Em termos da
dialética sexual, esse longo estágio da história cultural
corresponde ao estágio m atriarcal da civilização: o Prin­
cípio Fem inino — escuro, misterioso, incontrolável —
reinava, exaltado pelo próprio homem ainda em respeito
à insondável Natureza. Os homens de cultura eram os
principais sacerdotes do culto. Até e durante a Renascen­
ça todos os homens de cultura foram profissionais do
M odo Estético idealista, portanto num certo sentido artis­
tas. A Renascença, o apogeu do humanismo cultural, foi
a idade de ouro do M odo Estético (fem inino).
E também o início de seu fim. P or volta do século
X V I a cultura sofria um a m udança tão profunda quanto
a mudança do m atriarcado para o patriarcado, em termos
da dialética sexual, e correspondente ao declínio do feu­
dalismo na dialética de classes. Essa foi a prim eira fusão
da cultura estética com a tecnológica, representada na
criação da ciência (em pírica) moderna.
N a Renascença, a Escolástica Aristotélica tinha-se
conservado poderosa, em bora já fossem visíveis as pri­
meiras fendas na represa. Mas foi só depois de Francis
Bacon, quem primeiro propôs usar a ciência para “esten­
der mais além os limites do poder e da grandeza do
homem”, que a união dos M odos foi consumada. Bacon
e Locke transform aram a filosofia, a tentativa de com­
preender a vida, de um a especulação abstrata desligada
do mundo real (metafísica, ética, teologia, estética, lógi­
ca) em um a descoberta das leis reais da natureza, atra­
vés da experiência e da demonstração (ciência em pírica).
No m étodo empírico proposto por Francis Bacon,
o insight e a imaginação deveriam ser usados exclusiva­
mente nos primeiros estágios da investigação. Seriam con­
cebidas hipóteses experimentais pela indução a partir dos
fatos, e, em seguida, as conseqüências seriam deduzidas
i logicamente e testadas pela consistência entre elas e pela

205
conformidade com os fatos elementares e com os resul­
tados de experimentos ad hoc. As hipóteses só se torna­
riam um a teoria aceita depois de terem passado por todos
os testes, e permanecerem, ao menos até prova em con­
trário, um a teoria capaz de predizer os fenômenos num
alto grau de probabilidade.
A visão empírica sustentava que, registrando e tabu­
lando todas as observações e experimentos possíveis dessa
m aneira, a Ordem N atural automaticamente emergiria.
E m bora inicialmente a pergunta sobre o “porquê” fosse
ainda mais freqüentemente solicitada do que a pergunta
sobre o “como”, logo que a informação começou a
acumular-se, cada descoberta somando-se à anterior para
com pletar o quebra-cabeça, os especulativo, o intuitivo e
o imaginativo gradativam ente tornaram -se menos valio­
sos. O utrora, quando os fundamentos iniciais foram assen­
tados por homens da estatura de Kepler, Galileu e New-
ton — pensadores ainda inspirados na tradição científi­
ca “estética” — centenas de técnicos anônimos puderam
se deslocar para preencher os espaços vazios, o que le­
vou ao início de um a idade de ouro da ciência, em nos­
sa própria época — i.e., ao M odo Tecnológico, corres­
pondente ao que o Modo Estético tinha sido para a
Renascença.

2. As Duas Culturas Hoje

Agora, na década de 1970, estamos experimentan­


do um a ruptura científica importante. A nova física, a
relatividade, e as teorias astrofísicas da ciência contem­
porânea foram já formuladas na prim eira parte deste
século. Agora, na última parte, estamos chegando, com
a ajuda do microscópio eletrônico e de outros instrumen­
tos novos, a feitos semelhantes na biologia, na bioquí­
mica, e em todas as ciências da vida. Descobertas impor­
tantes são feitas anualmente por pequenas equipes de '
trabalho, espalhadas por todos os Estados Unidos, bem
como por outros países — da magnitude do DNA em

206
genética, ou do trabalho de Urey e de M iller, no início
da década de 50, sobre as origens da vida. Estam os per­
to do domínio total do processo reprodutjvo, e houve
avanços significativos na compreensão do processo básico
da vida e da morte. A natureza do envelhecimento e do
crescimento, do sono e da hibernação, o funcionamento
químico do cérebro e o desenvolvimento da consciência
e da memória tudo está começando a ser compreendi­
do em sua totalidade. Essa aceleração prom ete continuar
por talvez um outro século, não im porta quanto tempo
seja preciso para realizar a m eta do Em pirismo: a com­
preensão total das leis da natureza.
Essa acumulação surpreendente de conhecimentos
concretos em apenas algumas centenas de anos é o re­
sultado do desvio da filosofia de um M odo Tecnológico.
A associação da ciência “pura”, a ciência do M odo E s­
tético, com a tecnologia pura provocou um progresso na
direção da meta da tecnologia — a realização do con­
cebível no mundo real — m aior do que tinha sido alcan­
çado em milhões de anos da história anterior.
O próprio Empirismo é apenas o método, um a téc­
nica mais penetrante e mais eficaz, para a realização da
m eta cultural máxima da tecnologia: a construção do
ideal no mundo real. Um de seus ditados básicos é de
que um a certa quantidade de material pode ser reunida
e arrum ada em categorias, antes que qualquer com para­
ção decisiva, análise ou descoberta possa ser feita. Em
vista disso, os séculos de ciência empírica ultrapassaram
um pouco, em termos de tempo, o período da construção
dos fundamentos para as rupturas de nossa própria épo­
ca e do futuro. O acúmulo de informação e de compreen­
são das leis e dos processos mecânicos da natureza (“pes­
quisa pura” ) é m eramente um meio para um objetivo
mais amplo: a compreensão total da Natureza, a fim de
controlá-la finalmente.
Nesse panoram a do desenvolvimento e dos objetivos
da história cultural, a meta final de Engels, citada ante­
riormente, no contexto da revolução política, é outra vez
digna de citação:

207
“A esfera total das condições de vida que envolvem o
homem, e que até agora o dirigiram, fica agora sob o domínio
c o controle do homem, que pela primeira vez se torna o ver­
dadeiro e consciente Senhor da Natureza.”

A ciência empírica representa para a cultura o que


a mudança para o patriarcado foi para a dialética sexual,
e o que o período burgués é para a dialética m arxista
— um estágio m oderno antes da revolução. Além disso,
as três dialéticas estão integralmente relacionadas entre
si, tanto vertical quanto horizontalmente. A ciência em­
pírica originária da burguesia (o período burguês é em
si mesmo um estágio do período patriarcal) sucede ao
humanismo da aristocracia (o Princípio Fem inino, o m a­
triarcad o ), e, com seu desenvolvimento do m étodo empí­
rico para arm azenar conhecimento legítimo (o desenvol­
vimento da indústria m oderna p ara acum ular capital),
finalmente acaba por expulsar a si mesma d a História.
O corpo das descobertas científicas (os novos modos
produtivos), consegue finalmente superar o m odo empí­
rico (capitalista) de usá-las.
E , assim como as contradições internas do capitalis­
mo se tornarão necessariamente cada vez mais visíveis,
o mesmo deverá acontecer com as contradições internas
da ciência empírica — como no caso do desenvolvimen­
to do conhecimento puro, quando ele chega ao ponto de
assumir um a vida própria, p.ex., a bom ba atômica. E n­
quanto o homem estiver empenhado somente com os mé­
todos para sua realização final — o registro das condi­
ções da natureza, a acumulação de conhecimento “puro”
— o controle da natureza, que é o saber do homem,
pelo fato de não ser completo, será perigoso. Tão pe­
rigoso que muitos cientistas se perguntam se deveriam
pôr um limite em certos tipos de pesquisa. M as esta so­
lução é irremediavelmente inadequada. A m áquina do
empirismo tem seu próprio m om entum e, para estes fins,
está completamente fora de controle. Poderíamos deci­
dir realmente o que descobrir ou não descobrir? Isto é, i
p or definição, antitético ao processo empírico total acio­
nado por Bacon. M uitas das mais importantes descober-

208
tas foram praticam ente acidentes de laboratório, com
implicações sociais compreendidas somente pelos cientis­
tas que esbarraram com elas. P or exemplo: h á apenas
cinco anos, o professor F. C. Steward, de Cornell, des­
cobriu um processo chamado cloning: ao colocar um a
simples célula de cenoura num a substância nutriente ro­
tativa, ele conseguiu produzir um a lâmina inteira de cé­
lulas de cenoura idênticas, a partir das quais finalmente
recriou a mesma cenoura. A com preensão de um proces­
so análogo referente a células animais mais evoluídas, no
caso de escapar ao controle — como aconteceu com as
experiências com drogas “ alucinógenas” — poderia ter
algumas implicações aterradoras. Ou, além disso, imagi­
nem a partenogênese, o parto da virgem, como é prati­
cado por um gênero de insetos, aplicado de fato à fer­
tilidade humana.
Um a outra contradição no interior da ciência empí­
rica: a visão-de-mundo mecanicista, determinista, cientí­
fica “fria”, que é o resultado dos métodos, mais do que
dos objetivos finais (inerentem ente nobres e geralmente
esquecidos) do Empirismo, a saber, a realização do ideal
na realidade.
O próprio cientista paga um preço particularm ente
elevado, desumanizando-se, tornando-se pouco mais que
um técnico cultural. Pois, ironicamente, para acumular
apropriadam ente a informação que leva a um conheci­
m ento concreto e am plo do universo é preciso um a men­
talidade ampla e integrada. Em bora, no fim de tudo os
esforços individuais dos cientistas possam levar à dom i­
nação do meio-ambiente em benefício da humanidade,
tem porariam ente o m étodo empírico requer de seus pró­
prios praticantes que se tornem “objetivos”, “mecanicis-
tas”, superpreciosos. A imagem pública do Dr. Jekyll
vestido de branco, sem sentimentos por seus pacientes,
simples porquinhos-da-índia, não é totalm ente falsa. Não
existe lugar para os sentidos no trabalho do cientista.
Ele é obrigado a eliminá-los ou a isolá-los, lidando ape­
nas com riscos ocupacionais. N a melhor das hipóteses,
ele pode resolver esse problema, separando seu eu pro­
fissional de seu eu pessoal, compartimentando sua emo­

209
ção. Assim, em bora geralmente bem versado num senti­
do acadêmico em artes — a freqüência disso é, pelo me­
nos, m aior do que a de artistas bem-versados em ciência
— o cientista geralmente não está em contato com suas
emoções e sensações diretas, ou, na melhor das hipóte­
ses, é emocionalmente dividido. Sua vida “privada” e sua
vida “pública” são divididas; e, por sua personalidade
não ser integrada, ele pode ser surpreendentemente con­
vencional. ( “Querida, eu descobri hoje como reproduzir
pessoas no laboratório. Agora, já podemos sair para
esquiar.” ) Ele não sente contradição por viver conven­
cionalmente, nem mesmo por ir à igreja, pois nunca inte­
grou o espantoso material da ciência m oderna com sua
vida cotidiana. Geralmente, é preciso que sua descoberta
seja usada impropriamente para alertá-lo para esta cone­
xão, que está há muito tempo sepultada em sua mente.
* O catálogo de vícios científicos é bem conhecido:
ele em geral duplica, exagera o catálogo de vícios “mas-
culinos”. Isto era de esperar. Se o Modo Tecnológico
evoluiu do Princípio Masculino, então deduz-se que seus
praticantes desenvolveriam as deformações da personali­
dade masculina ao extremo. Mas deixemos a ciência por
um momento, querendo acelerar a revolução cultural de­
finitiva, para compreender o que, nesse meio-tempo, tinha
acontecido à Cultura Estética propriamente dita.
Com a filosofia, entendida no sentido clássico mais
geral — incluindo a ciência “pura” — a imperfeita cul­
tura estética tornou-se cada vez mais limitada e encrava­
da, reduzida às artes e às humanidades, no sentido refi­
nado em que nós as conhecemos hoje. A arte (daqui em
diante referente às “ artes liberais”, especialmente às artes
e letras) sempre foi, na sua própria definição, um a busca
pelo ideal, separada do m undo real. Entretanto, nos seus
primórdios, ela foi a serva da religião, articulando o so­
nho comum, objetivando “outros” mundos da fantasia co­
mum, p.ex., a arte dos túmulos egípcios, para explicar e
justificar esta última. Assim, em bora tenha-se afastado
do mundo real, ela serviu a um a im portante função so­
cial: satisfez artificialmente aqueles desejos da sociedade
que não podiam ainda ser realizados na realidade. Em ­

210
bora tenha sido patrocinada e sustentada exclusivamente
pela aristocracia, a elite culta, ela nunca esteve tão des­
ligada da vida quanto mais tarde se tornou. Pois a so­
ciedade daqueles tempos era, para todos os fins práticos,
sinônimo da classe dominante, fosse ela o sacerdócio, a
m onarquia ou a nobreza. As massas nunca foram con­
sideradas pela “sociedade” como parte legítima da hum a­
nidade. Elas eram escravas, nada mais do que animais
humanos, zângãos, ou servos, sem o trabalho das quais
a pequena elite culta jamais se teria conservado.
A p ressão gradual exercida sobre a aristocracia pela
nova classe média, a burguesia, assinalou a erosão da
cultura estética. Vimos que o capitalismo intensificou as
piores características do patriarcado, por exemplo, como
a família nuclear emergiu do vasto e impreciso lar do
passado para reforçar o enfraquecido sistema de classes
sexuais, oprimindo as mulheres e as crianças ainda mais
profundam ente do que antes. O modo cultural favoreci­
do por esta nova burguesia excessivamente patriarcal foi
o M odo Tecnológico “masculino” — objetivo, realista,
concreto, de “ senso comum” — em vez do afeminado,
espiritual M odo Estético “rom ântico idealista” . A bur­
guesia, buscando o ideal no real, cedo desenvolveu a
ciência empírica que descrevemos. Quando admitiam al­
guma utilidade remanescente na cultura estética, isto ocor­
ria apenas na arte “realista” , oposta à arte “idealista” da
antiguidade clássica, ou à arte abstrata religiosa dos pe­
ríodos primitivos ou medievais. Interessaram-se, durante
algum tempo, por um a literatura que descrevesse a rea­
lidade — melhor exemplificada pela novela do século
X IX — e por um a arte de cavalete decorativa: nature­
zas-mortas, retratos, cenas de família, interiores. Foram
construídos museus e livrarias públicas, ao lado dos ve­
lhos salões e galerias privadas. M as, com sua solidifica­
ção como um a classe segura, até principal, a burguesia
não precisou mais imitar a cultura aristocrática. Com o
rápido desenvolvimento de sua nova ciência e tecnologia,
o pouco valor prático que atribuía à arte se eclipsou.
Tomemos, por exemplo, o desenvolvimento científico da
máquina fotográfica. Logo a burguesia deixou de precisar

211
dos pintores de retrato; a câmara se mostrou muito mais
precisa do que os pintores e novelistas.
A arte “m oderna” foi um a represália ( épater le
bourgeoisie) violenta, embora responsável afinal pelo
próprio malogro, dirigida contra estes danos; a evapora­
ção da função social da arte, o rom pim ento do cordão
umbilical social, a redução das fontes antigas de patro­
nato. A tradição da arte moderna, associada inicialmente
a Picasso e Cézanne, e incluindo todas as principais esco­
las do século X X — cubismo, construtivismo, futurismo,
expressionismo, surrealismo, expressionismo abstrato, e
assim por diante — não constitui um a expressão autên­
tica da modernidade, por mais que seja um a reação ao
realismo d a burguesia. O pós-impressionismo rejeitou de­
liberadamente todas as convenções afirmadoras da reali­
dade. N a verdade, o processo começou com o próprio
impressionismo, que destruiu a ilusão em seus valores
formais, engolindo a realidade e cuspindo-a de novo como
arte, e finalmente levou a um purismo da “ arte-pela-arte” ,
a um a negação total da realidade que acabou tornando-a
inexpressiva, estéril e até absurda. (Os motoristas de táxi
são filisteus; eles reconhecem um a sacanagem quando a
vêem.) A deliberada violação, deformação e fraturam en-
to da imagem, chamada arte “m oderna” , não foi senão
uma destruição de ídolos durante cinqüenta anos, que
acabou levando ao impasse cultural do presente.
No século X X esgotou-se a energia e nulificou-se
completamente a função social da arte. E la é despejada
nas classes ricas remanescentes, constituídas por aqueles
nouveaux riches — particularm ente os da América, que
ainda sofriam um complexo de inferioridade cultural —•
empenhados em provar que tinham “acontecido”, eviden­
ciando um gosto pela cultura. Vários fatos testemunham
a m orte do humanismo estético: o seqüestro dos intelec­
tuais em universidades-torres-de-marfim, onde, excetuan­
do o caso das ciências, seu trabalho teve muito pouca
repercussão no mundo exterior, independente do brilhan­
tismo de cada um (e eles não são brilhantes, porque não
dispõem do feed-back necessário para sê-lo); o obscuro
— em geral literalmente ininteligível — jargão das ciên-

212
cias sociais; as literaturas de panelinhas, publicadas tri-
, mestralmente, com sua poesia esotérica; as galerias e mu­
seus chiques da 57th Street (não é por acaso que elas
ficam ao lado da Saks Fifith Avenue e de Bonwit T eller),
sustentadas, na sua m aioria, por tipos sofisticados de
* homens desmunhecados; e também o estabelecimento crí­
tico vulturino, que prospera à custa dos vestígios do que
outrora foi um a cultura grande e vital.
Nos séculos em que a ciência galgou novas alturas,
a arte decaiu. Seu nascimento forçado transform ou-a num
código secreto. P or definição escapista da realidade, a
arte hoje se voltou a tal ponto para si mesma, que cor­
roeu seus próprios órgãos vitais. Tom ou-se doente —•
com uma autocompaixão e timidez neuróticas, concen­
trando-se no passado (em oposição à orientação futura
da cultura tecnológica) e assim congelando-se em con­
venções e academias, ortodoxias das quais a “vanguarda”
é apenas a mais recente. Sustentam-na as lembranças de
glórias passadas, os Grandes Velhos Tempos Em Que a
Beleza Ainda Florescia. Tornou-se pessimista e niilista,
cada vez mais hostil à sociedade em geral, os “filisteus” .
E, quando a jovem e arrogante Ciência tentou cortejar
a A rte na sua torre — eventualmente um sótão — de
mármore, com falsas promessas de um am ante corteja­
dor ( “Você agora já pode descer, estamos tornando o
mundo cada dia melhor” ), a arte recusou-se, mais ve­
ementemente do que nunca, a lidar com ela, muito me­
nos aceitou seus presentes corruptos, retirando-se ainda
mais em suas fantasias: neoclassicismo, romantismo, ex-
pressionismo, surrealismo, existencialismo.
O artista e o intelectual viram-se, individualmente,
tanto como um m em bro de um a elite invisível, de uma
intelligentsia, quanto como um “marginal” , misturando-se
com quem quer que fosse julgado a escória da socieda­
de. Em ambos os casos, seja fazendo o papel de A risto­
crata, seja o de Boêmio, ele estava à margem da socie­
dade como um todo. Ser artista tinha-se tornado um ca­
pricho. Sua crescente alienação do m undo a sua volta
— o novo mundo criado pela ciência era, sobretudo em
seus estágios primitivos, incrivelmente horrível, intensifi-

213
cando a necessidade dele de fugir para o mundo ideal
da arte — a falta de um a audiência, tudo isso o levou
a um a mística do “gênio”. Esperou-se do Gênio do Sótão
— mais parecido com um Saint Simeón ascético em seu
pedestal — que criasse obras-primas num vácuo. Mas
sua artéria de ligação com o mundo exterior tinha sido
cortada. Seu trabalho, cada vez mais impossível de ser
realizado, geralmente o compelia literalmente à loucura,
ou ao suicídio.
Preso num canto, sem nenhum outro lugar para
onde ir, o artista conseguiu iniciar um acordo com o
m undo moderno. Ele não serve para nada nesse mundo:
semelhante a um inválido, confinado durante muito tem ­
po, não conhece nada sobre o mundo: nem política, nem
ciência, nem sequer como viver ou amar. Até o momen­
to, e mesmo agora, embora cada vez menos, a sublima-
ção, aquela deformação da personalidade, fora recomen­
dável: era o único meio (se bem que indireto) de alcan­
çar satisfação. M as o processo artístico quase que sobre­
viveu à utilidade dela. E o preço dela é alto.
As primeiras tentativas para enfrentar o mundo mo­
derno foram, na sua m aior parte, mal dirigidas. A Bau-
haus, famoso exemplo, fracassou em seu objetivo de su­
p lantar um a irrelevante arte de cavalete (a morte desta
é indicada p or apenas algumas ilusões de óptica e cadei­
ras com um ar de desigti), acabando num hibridismo,
nem arte nem ciência, e certamente não a soma das duas.
Seus planejadores falharam porque não compreenderam
a ciência nos próprios termos dela. P ara eles, que enxer­
gavam através do modo estético antigo, ela era mera­
m ente um novo tem a rico, a ser digerido totalm ente pelo
sistema estético tradicional. E ra como se alguém visse um
com putador apenas como um a série harmoniosamente
organizada de luzes e sons, escanando-lhe completamen­
te a função propriamente dita. O experimento científico
não é apenas harmonioso, um a estrutura elegante, uma
peça adicional de um quebra-cabeça abstrato, alguma
coisa a ser usada na próxima colagem — embora os
cientistas também vejam, a seu próprio modo, a ciência
como essa abstração divorciada da vida. Ele tem um sen­

214
tido intrínseco, real, próprio, semelhante, em bora não o
mesmo, à “presença” , ao “en-soi” da pintura moderna.
Muitos artistas cometeram o erro de tentar anexar a ciên­
cia, de incorporá-la a sua própria estrutura artística, em
vez de usá-la para expandir esta estrutura.
Seria desolador o estado atual da cultura estética?
Não, Houve algumas evoluções na arte contemporânea.
Fizemos referência a como a tradição realista n a pintura
m orreu com o aparecimento da m áquina fotográfica. Esta
tradição tinha evoluído, num processo que durou séculos,
para um nível de ilusionismo, obtido com a pincelada,
que foi equivalente e até melhor — observe-se Bouge-
reau — do que a fotografia primitiva, considerada na
época apenas como um novo meio gráfico, como era o
caso da gravura em água-forte. O início da nova arte do
cinema se sobrepôs à tradição realista da pintura atin­
gindo o clímax na obra de artistas como Degas, que
usou uma câmara em seu trabalho. Depois a arte realis­
ta seguiu um novo curso. Ou se tornou decadente, aca­
dêmica, desligada de qualquer mercado e significação,
p.ex., os nus que subsistem nas aulas de arte e nas ga­
lerias de segunda categoria, ou ela foi fraturada pela
imagem expressionista ou surrelista, postulando um a rea­
lidade interna alternativa ou um a realidade fantástica.
Contudo, enquanto isto, a jovem arte do cinema, basea­
da num a síntese verdadeira dos M odos Estético e Tec­
nológico (como tinha sido o próprio Em pirismo) levou
avante a tradição realista fundamental. E assim como a
ciência empírica frutificou com o casamento dos Princí­
pios Feminino e Masculino, antes separados, assim tam ­
bém aconteceu com o cinema. Mas, ao contrário de ou­
tros suportes estéticos do passado, ele destruiu a divisão
entre o artificial e o real, entre a cultura e a própria vida,
na qual o M odo Estético está baseado.
Outros desenvolvimentos relacionados com isso: a
exploração de materiais artificiais, p.ex., o plástico; a
tentativa de confrontar a própria cultura do plástico (pop
a rt); o esgotamento das categorias tradicionais de media

215
DIALÉTICA REVOLUÇÃO TRANSIÇÃO META FINAL
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ARTE A a rta ")
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( média m istos) e das distinções entre arte e realidade
( “happenings", “environm ents"). Todavia, eu acho di­
fícil chamar, sem reservas, de progressistas a estes últi­
mos desenvolvimentos. A té agora eles produziram traba­
lhos altam ente pueris e inexpressivos. O artista ainda não
sabe o que é a realidade, e muito menos como agir nela.
Xícaras de papel enfileiradas num a rua, pedaços de jor­
nal lançados num terreno baldio, não im porta o núm ero
de críticas ponderadas que esses trabalhos consigam ti­
rar da A rt News, continuam sendo um a perda de tempo.
A total inutilidade dessas tentativas desajeitadas corres­
ponde ao grau de esgotamento das “belas”-artes, do qual
elas são sinais.
A fusão do M odo Estético com o M odo Tecnológi­
co gradativamente sufocará por completo a elevada arte
“pura”. O prim eiro esgotamento das categorias, a rein-
corporação da arte com um a realidade (tecnologizada)
indica que estamos agora num período pré-revolucionário
de transição, no qual as três correntes separadas, a tec­
nologia ( “ciência aplicada” ), a “pesquisa pura” e a mo­
derna arte “pura” se fundirão, junto com as rígidas ca­
tegorias sexuais que elas refletem.
A dualidade sexual da cultura ainda causa muitas
vítimas. Se até o cientista “puro”, p.ex., o físico nuclear
(sem falar do cientista “aplicado”, p.ex., o engenheiro)
sofre de um a “masculinidade” excessiva, tom ando-se au­
toritário, convencional, emocionalmente insensível, inca­
paz de compreender o próprio trabalho dentro do que-
bra-cabeça científico — e muito menos do cultural ou
do social — o artista, em termos da divisão sexual, incor­
porou todos os desequilíbrios e padecimentos da perso­
nalidade feminina: é temperamental, inseguro, paranóide,
derrotista, limitado. E a recente recusa em aceitar refor­
ços da retaguarda (a sociedade em geral) exagerou enor­
memente tudo isto. O “id” superdesenvolvido do artista
não deixa nada de quebra para contrabalançá-lo. E n­
quanto que o cientista puro é “esquizo”, ou pior, total­
mente ignorante da realidade emocional, o artista puro

216
rejeita a realidade por causa de sua falta de perfeição,
e, nos séculos m odernos, por causa de sua feiura.3
E quem sofre mais, o cego (cientista) ou o aleijado
(artista)? No plano cultural, tivemos em vista somente
a escolha entre um ou outro papel sexual. Ou a margi­
nalidade social, levando à inibição, à introversão, ao der­
rotismo, pessimismo, hiper-sensibilidade, e falta de con­
tato com a realidade, ou um a personalidade “profissiona­
lizada” partida, a ignorância emocional, as vistas estrei­
tas do especialista.

CONCLUSÃO:

A R EV O LU Ç Ã O C U LTU R A -A N TIC U LTU RA

Tentei m ostrar como a história da cultura reflete a


dicotomía sexual na sua própria organização e desenvol­
vimento. A cultura se desenvolve não só a partir da dia­
lética econômica, mas também da dialética sexual mais
profunda. Assim não existe apenas um a dinâmica hori­
zontal, mas também um a dinâmica vertical. C ada um
desses três estratos cria mais um a história dentro da dia­
lética da História, que está baseada no dualismo bioló­
gico. Atualm ente, atingimos os estágios finais do P atriar­
cado, do Capitalismo (capitalism o das grandes corpora­
ções) e das Duas Culturas ao mesmo tempo. Brevemen­
te, teremos um a série triplicada de precondições para a
revolução, cuja inexistência foi responsável pela falência
das revoluções do passado.
A discrepância entre o que é quase possível e o
que já existe está gerando forças revolucionárias.4 Esta-

3. Um pintor abstrato que eu conhecia, que tinha experimen­


tado os horrores dos campos de batalha norte-africanos durante
a Segunda Guerra Mundial — campos de homens (camaradas)
apodrecendo ao sol com ratos saindo do estômago — passou
anos movendo um simples círculo bege em volta de um simples
quadrado bege. Desse modo, a arte “moderna” nega a feiúra da
realidade (ratos no estômago de companheiros) em favor de
harmonias artificiais (círculos dentro de quadrados).
4. Os revolucionários, por definição, são visionários do Modo
Estético, os idealistas ...da política (pragmática).

217
mos nos aproximando — acredito que chegaremos lá,
talvez dentro de um século, se a bola de neve dos co­
nhecimentos empíricos não se despedaçar antes com a
sua própria velocidade — de um a revolução cultural,
bem como de um a revolução sexual e econômica. A re­
volução cultural, assim como a revolução econômica,
deve predicar a eliminação do dualismo (sexual), que
está ria origem não só das classes, mas tam bém da divi­
são cultural.

ORIGENS DA CULTURA
0

0
FJM DA CULTURA

Como seria essa revolução cultural? Ao contrário


das “revoluções culturais” do passado, não deve ser me­
ramente uma progressão quantitativa, mais e melhor cul­
tura, no sentido em que a Renascença foi um ponto alto
do M odo Estético, ou no sentido em que a ruptura tec­
nológica atual é o resultado da acumulação de séculos de

218
conhecimento básico sobre o mundo real. Grandes como
foram, a cultura Estética e a Tecnológica, mesmo em
seus respectivos apogeus, nunca atingiram a universali­
dade porque ou foram totalistas, mas divorciadas do
mundo real, ou obtiveram “progresso” à custa da esqui­
zofrenia cultural e da falsidade e aridez da “objetivida­
de”. O que precisam os ter na próxim a reyplução cultural
é a reintegração do Masculino (M odo Tecnológico) com
õ Feminino (M odo Estético). É criar um a cultura andró­
gina, que vá além não só de cada um a dessas correntes
culturais tom adas individualmente, como tam bém da so­
ma de sua integração. M ais do que um casamento, é pre­
ciso a abolição das próprias categorias culturais, uma
anulação mútua, uma explosão m atéria-antim atériaj que
ponh a Tim à própria ploft! cultura.
Não sentiremos sua falta. Não precisaremos mais
dela. A essa altura, a hum anidade terá dominado com­
pletamente a natureza, terá realizado seus sonhos na
realidade. Com a realização total do concebível no real,
não será mais necessário o substituto da cultura. O pro­
cesso de sublimação, um desvio da realização dos dese­
jos, dará lugar à satisfação direta na experiência, o que
hoje só é experimentado pelas crianças, ou pelos adultos
drogados.5 (E m bora os adultos norm ais “representem”
em graus variados, o exemplo que ilustra mais imedia­
tam ente o nível intenso desta experiência futura é o ato

i—. f hippie
5. As tentativas recentes da cultura ■) jovem para voltar a
[ de drogas
esse estado de simplicidade — mesmo se nos tornarmos “dro­
gados” por meios artificiais de estimulação química — estão
fadadas a fracassar. As pessoas desenvolveram camadas de re­
pressão e de defesas, exclusivamente porque precisam viver em
nosso atual mundo real. Hoje, na melhor das hipóteses, só pode­
mos chegar a uma “experiência direta” (“afetada e tímida”)
através do “escapismo”, ignorando o mundo real, por exemplo,
indo para o Colorado (por volta de 1878) com pessoas de men­
talidade parecida, e esperando ansiosamente que não se interes­
sem em jogar bombas ali. Isso é ingênuo — e reacionário, re­
gressivo, aistórico, utópico, etc. — acima de tudo, porém, é
ineficaz.

219
sexual — ele vale zero num a escala de realização, pois
“não se pode m ostrá-lo”, mas sempre vale a pena de
alguma form a.) N ão será mais necessário o controle e o
adiamento da satisfação do “ id” pelo “ego” ; o id poderá
viver livremente. O prazer brotará diretamente no pro­
cesso da experiência, no próprio ser e agir, em vez de
brotar da qualidade da realização. Quando o M odo Tec­
nológico masculino puder, afinal, produzir na realidade
o que o M odo Estético feminino tinha imaginado, tere­
mos eliminado a necessidade de qualquer um dos dois.

220
X. O FEMINISMO NA ERA DA ECOLOGIA

A ciência empírica deixou repercussões na esteira de


seu caminho: o súbito avanço da tecnologia transtornou
a ordem natural das coisas. Mas o interesse recente pela
ecologia, o estudo do relacionam ento do homem com o
meio-ambiente, surgido por volta de 1970, pode ser que
tenha chegado tarde demais. Certamente, é tarde demais
para o conservacionismo, a tentativa de restabelecer os
equilibrios naturais. O que é preciso é um program a eco­
lógico revolucionário, que tente estabelecer um equilibrio
artificial (feito pelo hom em ), em lugar do equilibrio
“natural”, realizando, assim, a meta original da ciência
empírica: o total domínio da natureza.
As mais recentes e melhores correntes da ecologia
e do planejamento social concordam com os objetivos
feministas. A coincidência aparente que marcou a erup­
ção destes doís fenômenos ilustra uma verdade histórica:
as novas teorias e os novos movimentos não se desen-
võTvem no vácuo; surgem como pontas-de-lança das so­
luções necessárias para os novos problemas, gerados por
contradições no meio-ambiente. Neste caso, ambos os
movimentos surgiram em resposta à mesma contradição:
vida animal segundo um a tecnologia. No caso do femi­
nismo, o problem a é moral. A unidade daT família H ó-
íógica sempre oprimiu as mulheres e as crianças, mas

221
agora, pela primeira vez na História, a tecnologia criou
as precondições reais para vencer essas condições “na­
turais” opressivas, juntam ente com seus reforços cultu­
rais. No caso da nova ecologia, percebemos que, indepen­
dentem ente de qualquer postura moral, exclusivamente
por motivos pragmáticos — de sobrevivência — tornou-
se necessário libertar a hum anidade da tirania de sua bio­
logia. A hum anidade não pode mais permitir-se perm a­
necer no estágio de transição entre a simples existência
animal e o controle total da natureza. E estamos, cer­
tamente, muito mais próximos de um salto evolucionário
maior, no sentido de dirigir nossa própria evolução, do
que de uma volta ao reino animal, do qual nós viemos.
Assim, em termos da m oderna tecnologia, um mo­
vimento ecológico revolucionário terá o mesmo objetivo
do movimento feminista: o controle da nova tecnologia
para fins humanos, o estabelecimento de um equilíbrio
“hum ano” proveitoso entre o homem e o novo meio-
ambiente que ele está criando, que venha substituir o
equilíbrio “natural” desfeito.
' Quais são as preocupações da ecologia que têm inte­
resse direto para o movimento feminista? Discutirei bre­
vemente dois temas da nova ecologia que têm um a liga­
ção particular com o novo feminismo: a reprodução e
seu controle, incluindo a seriedade do problem a da ex­
plosão demográfica e dos novos métodos de controle da
fertilidade, e a cibernética, o futuro encargo de funções
cada vez mais complexas legado às máquinas, alterando
a velha relação do homem com o trabalho e com os
salários.
Previamente fiz anotações detalhadas, escrevi regis­
tros completos sobre a explosão demográfica, citando to­
dos os tipos de estatística alarmantes sobre a m archa do
crescimento populacional. Mas, pensando bem, pareceu-
me que eu já tinha ouvido falar em tudo aquilo antes,
assim como todo mundo. Talvez, em função dos obje­
tivos deste livro, fizéssemos melhor discutir porque estas
estatísticas são ignoradas tão consistentemente. Porque,
apesar dos pronunciamentos cada vez mais terríveis de
todos os especialistas nesse campo, poucas pessoas estão

222
x.
seriamente preocupadas com o problema. N a verdade,
a euforia pública e o laissez jaire parecem atualmente
crescer na proporção direta à necessidade de um a ação
imediata que previna um desastre futuro.
A relação entre as duas situações é direta. A inca­
pacidade de enfrentar ou de ocupar-se do problem a cria
uma falsa segurança, cujo grau foi corroborado por recen­
te pesquisa do Instituto Gallup (3 de agosto de 1968),
no qual, à pergunta “N a sua opinião, qual o problem a
mais urgente que a nação enfrenta hoje?” menos de 1%
da am ostra nacional de adultos interrogados mencionou
o problema da população. E contudo, para não dizer
que não citamos os especialistas em população, estas são
as palavras de Lincoln H . Day e de Alice Taylor Day
em seu livro Too M any Am ericans: “P ara suportar um
novo crescimento de 180.000.000 (m ais quarenta e qua­
tro anos, no ritmo atu al), este país teria que sofrer mu­
danças nas suas condições de vida tão radicais quanto
as que ocorreram desde Colombo.” E sta é a mais con­
servadora das estimativas. A maioria dos demógrafos,
biólogos e ecologistas são consideravelmente mais pes­
simistas. A todo momento são publicados livros sobre o
assunto, cada um com um a nova opinião sobre o terror
da explosão demográfica (Se tivéssemos nos reproduzido
na mesma velocidade desde a época de Cristo, agora
teríam o s.. . . Se continuarmos nessa velocidade, a fome
s e rá .. . no a n o . . . . Um núm ero x de ratos congestiona­
dos num quarto produz um comportamento x y z . . . . ) .
Os títulos dos livros são Fom e Coletiva, 1975, A E xplo­
são Populacional, e assim por diante. Os próprios cien­
tistas estão em pânico. Diz-se que um conhecido biólogo
da Universidade Rockefeller deixou de falar com sua
própria filha depois do nascimento de sua terceira crian­
ça. Seus alunos multiplicam-se, pondo a si próprios em
perigo.
Contudo, o público permanece convencido de que
a ciência pode resolver o problema. Um a razão pela qual
o homem da rua acredita tão ardentemente que “eles”
podem m anobrar o problem a — além da existência da
Mística do Feiticeiro, que insinua que “ eles” sempre pa-

223
recem encontrar um a resposta para tudo — é o fato de
a informação vir cuidadosamente filtrada do alto para
baixo. Por exemplo: o público só começou a tom ar co-^j
nhecimento da “revolução verde” quando os cientistas í
deixaram de acreditar nela, vendo-a como um a medida >
tapa-buraco para adiar a fome coletiva mundial até a
geração seguinte. M as, em vez de causar o alarme geral,
provocar a ação imediata, esta informação agiu como
um clichê.
/ O Milagre-da-Nova-Ciência é apenas um dentre todo
um estoque de argumentos, que continuam aflorando
incessantemente, apesar de serem refutados um sem-nú­
mero de vezes. H á o argumento da Comida Excedente,
o argumento das Vastas-Extensões-de-Terra-Despovoa-
das, o argumento Econômico (a população aum enta a
capacidade de defesa, cf. o Boogy-Woogy) e muitos ou­
tros mais, variando em sua sofisticação, de acordo com
o meio social de seus sugestores. Ê inútil argumentar —
e por isso eu não o farei aqui. Pois não se trata abso­
lutamente de um problem a de corrigir a informação ou
j a lógica. O im portante é que h á alguma coisa além disso
Vque une todos estes argumentos. Que coisa é essa?
Por baixo de todos estes argumentos está o chauvi­
nismo peculiar que se desenvolve na família. Nos capí­
tulos anteriores discutimos alguns dos componentes dessa
psicoTôgíar a m entalidade patriarcal, preocupada exclusi­
vamente com os próprios interesses e com a sua descen­
dência, somente enquanto ela é a herdeira e a extensão
de seu ego, na sua busca individual de im ortalidade (por
que preocupar-se com o bem -estar social, se — que bela
frase — JNfa hora em que a grande catástrofe chegar
Você e os Seus estarão felizes?). Outros componentes
s ã c ffo chauvinismo do Nós-Contra-liles (o sãrigúè vale
m ais) ; a divisão entre o abstrato e o concreto, o públi­
co e o privado (o que poderia ser mais abstrato e pú­
blico do que um a estatística demográfica? o que poderia
ser'm ais privado e concreto do que nossa própria repro­
d u ç ã o ? )^ a privatização da experiência sexual; a psico­
logía 3o poder, e assim por diante.

224
v.
Infelizmente, os esquerdistas e os revolucionários
não são um a exceção a esta pseudopsicologia universal,
gerada pela família. Entregam -se excessivamente ao Nós-
Contra-Elesismo, apesar de agora ele estar invertido. Se
“Nós”, a classe superior e a intelligentsia com pretensões
intelectuais, argumenta que “É melhor não haver uma
redução no índice de nascimentos, senão a ralé e /o u os
débeis mentais predom inarão”, “Eles”, o “zé-povinho”
(ultimamente conhecidos como “lunatic fringe” *) opõem-
se paranoicam ente ao controle da natalidade — “Geno­
cídio do Terceiro M undo e dos Indesejados em Casa” .
Este medo é bem fundado. Contudo, ele também é res­
ponsável p o r uma falta de capacidade da Esquerda de
enxergar, por baixo dos efeitos prejudiciais do controle
da natalidade, um problem a ecológico genuíno, que ne­
nhum número de argumentos fantasiosos e de estatísticas
forjadas pode apagar. É verdade que os governos capi­
talistas imperialistas têm muitíssimo prazer em distribuir
planos de controle da natalidade entre o Terceiro M undo
ou entre os negros e os pobres dos U.S.A. (particular­
mente entre as mães filiadas à Previdência Social, que
são freqüentemente cobaias das últimas experiências),
enquanto que, na sua própria casa, eles não se preocupam
por ter condenado um homem a dez anos de prisão por­
que ele deu um a espuma anticoncepcional para uma alu­
na de colégio misto jovem, branca e solteira. É verdade
que uma redistribuição das riquezas e das reservas do
mundo aliviaria enormemente o problem a — mesmo que
ela pudesse ocorrer amanhã. Mas o problem a ainda per­
maneceria, porque ele existe independentemente da polí­
tica e da economia tradicionais. Essas complicações po­
líticas e econômicas são apenas agravantes de um legíti­
mo problema de ecologia. U m a vez mais os radicais não
foram capazes de pensar com suficiente radicalidade. O
capitalismo não é o único inimigo, a redistribuição das
riquezas e das reservas não é a única solução, as tenta­
tivas de controlar a população não são apenas um a Su­
pressão do Terceiro M undo dissimulada.

* Ver nota à p. 41. (N.T.)

225
Mas, geralmente, existe um erro mais sério: o uso
impróprio das conquistas científicas é muitas vezes con­
fundido com a própria tecnologia. (M as será que as mi­
litantes negras que advogam a fertilidade não controlada
para as mulheres negras admitem que elas próprias são
oneradas com ventres pesados e tantos meses de ama­
mentação? Deduz-se que elas encontrem no controle da
natalidade algum auxiliar na m anutenção de seus progra­
mas de pregação ativa.) Como foi demonstrado na queíP
tão do desenvolvimento da energia atômica, os radicais,
em vez de esbravejarem contra a imoralidade da pesqui­
sa científica, foram muito mais eficientes concentrando
todas as suas energias em exigências de controle das des-»
cobertas científicas pelo e para o povo. Pois, assim como
a energia atômica, o controle da fertilidade, a reprodução
artificial e a cibernetização são, em si mesmos, libertado­
res, a menos que sejam usados impropriamente.
Quais são os novos desenvolvimentos científicos re­
lativos ao controle dessa reprodução perigosamente pro­
lifera? Já existe mais e melhor controle da natalidade do
que nunca houve antes na História.1 A velha intervenção
“força-barra” na concepção (diafragmas, camisas-de-vê-
nus, espumas e geléias) foi apenas o início. Breve tere­
mos um a compreensão perfeita de todo o processo re­
produtor, em toda a sua complexidade, incluindo a sutil
dinâmica dos hormônios e de todos os seus efeitos no
sistema nervoso. O uso de anticoncepcionais orais feito
atualmente é apenas um estágio primitivo (im perfeito),
apenas um dentre os vários tipos de controle da fertili­
dade em experimentação hoje. A inseminação e a ovula-
ção artificiais já são um a realidade. A escolha do sexo
do feto, a fertilização em proveta (quando o tempo de
vida do esperma dentro da vagina for totalmente com­
preendido) estão a um passo. Várias equipes de cientis-

1. Devo pedir ao leitor que me perdoe aqui — este capítulo


foi escrito antes de Pill Hearings (Interrogatórios sobre as Pi­
lulas), na verdade antes da propagação do próprio movimento
ecológico. Essa é a marcha das comunicações modernas — um
livro é ultrapassado antes mesmo de estar no prelo.

226
v
tas estão trabalhando no desenvolvimento de uma pla­
centa artificial. A té a partenogênese — o parto virginal
— poderá ser desenvolvida muito breve.
Estão as pessoas, os próprios cientistas, preparadas
para qualquer um a dessas descobertas? Decididamente
não. Recente pesquisa de Harris, citada na revista Life,
representativa de uma ampla am ostra de americanos —
incluindo, p o r exemplo, fazendeiros de Iowa — revelou
um surpreendente núm ero de pessoas dispostas a consi­
derar os novos métodos. O único empecilho estava em
que esses métodos só seriam levados em consideração
enquanto reforçassem e promovessem os valores atuais
da vida em família e da reprodução, p.ex., para ajudar
uma mulher estéril a ter um filho de seu marido. Q ual­
quer questão que pudesse ser interpretada como sendo
um incentivo a um a “revolução sexual” era meramente
rejeitada como antinatural, de m odo categórico. Mas,
note-se que não foi o bebê de “tubo de vidro” que foi
tido como antinatural (25 por cento das pessoas con­
cordou, sem hesitação, em usarem elas próprias este mé­
todo, geralmente sob a condição de serem observadas as
precondições que descrevemos). Só o novo sistema d
valores, baseado na eliminação da supremacia do homer
e da família, é que foi visto como antinatural._______
É claro que, hoje, esta pesquisa na área da repro­
dução está sendo impedida de se desenvolver por causa
do atraso cultural e dos preconceitos sexuais. O mesmo
acontece com a verba distribuída para tipos específicos
de pesquisa — os tipos de pesquisa já concluídos quan­
do muito interessam apenas incidentalmente às mulheres.
P or exemplo, ainda é preciso justificar a pesquisa para
desenvolver um a placenta artificial, sob o pretexto de que
ela poderia evitar o nascimento prem aturo de crianças.
Assim, em bora seja tecnicamente muito mais fácil trans­
ferir um embrião jovem do que um bebê já quase que
totalmente desenvolvido, todo o dinheiro vai para a últi­
ma pesquisa. Ou, por outro lado, o fato de as mulheres
serem excluídas da ciência é diretamente responsável pelo
adiamento da pesquisa de anticoncepcionais orais para
os homens (será possível que se pense que as mulheres

227
são melhores cobaias por que são consideradas “inferio­
res” pelos cientistas homens? Ou isso se dá exclusiva­
mente porque os cientistas homens cultuam a fertilidade
jnasculina?) São muitos os exemplos desse tipo.
Os medos em relação aos novos métodos de repro­
dução são de tal modo difundidos que, até há bem pouco
tempo, o assunto era ainda um tabu, fora dos círculos
científicos. Até mesmo várias mulheres do movimento de
libertação feminina (women’s lib) — e talvez especial­
mente estas mulheres — têm medo de expressar qualquer
interesse sobre o assunto, para evitar que se confirmem
as suspeitas de todo mundo de que elas são “antinatu-
rais”. Assim, gastam grande quantidade de energia ne­
gando serem contra a maternidade, ou a favor da repro­
dução artificial, e assim por diante. Falando francamente:
A gravidez é uma barbaridade. E u não acredito,
como muitas mulheres dizem hoje, que a gravidez seja
vista como feia devido a perversões estritamente cultu­
rais. A reação imediata da criança: “O que que aquela
Senhora G orda tem?”, a diminuição culpada do desejo
sexual do m arido; as lágrimas das mulheres diante do
espelho aos oito meses de gravidez — tudo isso são rea­
ções instintivas, que não podem ser explicadas como há­
bitos culturais. A gravidez é a deformação tem porária do
corpo do indivíduo, em benefício da espécie.
Além disso, o parto dói. E isso não é bom. H á três
mil anos atrás, as mulheres que tinham um parto “na­
tural” não tinham necessidade de simular que a gravidez
era um a verdadeira viagem, um orgasmo místico (aquele
olhar longínquo). A Bíblia dizia: sofrimento e trabalho.
O êxtase era desnecessário: as mulheres não tinham esco­
lha. Elas não ousavam dar gritos. Mas, finalmente, foi-lhes
possível gritar tão alto quanto quisessem durante as horas
do parto. E quando este terminava, e mesmo durante ele,
elas eram admiradas, dentro de um certo limite, por sua
coragem. O valor delas era medido pelo núm ero de crian­
ças (filhos) que elas conseguiam suportar botar no mundo.
Hoje, tudo isso foi confundido. O próprio culto do
parto natural nos mostra como ficamos distante da ver­
dadeira identidade com a natureza. O parto natural é

228
v
apenas mais um a faceta do reacionário R etorno-à-Natu-
reza hippie-rousseaniano, e tão forçado quanto cie. T al­
vez a mistificação do parto o torne mais fácil na realidade
para a mulher comprometida. Os exercícios pseudo-iogas,
vinte mulheres grávidas respirando profundam ente sobre
o chão, pode ser até que ajudem algumas mulheres a de­
senvolverem atitudes “ apropriadas” (como “eu nunca
mais berrei” ). O marido que se contorce à cabeceira da
cama, tal como acontece nas dores de parto empáticas
de membros certas de tribos ( “Veja como eu sofro com
você, querida!” ), pode fazer um a mulher sentir-se menos
só durante sua provação. Mas o fato permanece: o parto
é, na melhor das hipóteses, necessário e tolerável. Não
é divertido.
(É como fazer um cocô do tam anho de uma abóbo­
ra, disse-me um amigo, quando eu lhe perguntei sobre a
Grande-Experiência-Que-V ocê-Está-Perdendo. O-que-há-
de-errado-em-cagar-cagar-pode-ser-agradável, diz a Es­
cola (m asculina) da G rande Experiência. Dói, ela respon­
de. Qual-o-problema-de-sentir-uma-pequena-dor-de-parto
se-ela-não-te-mata? responde a Escola. É chato, diz ela.
A-dor-pode-ser-interessante-como-experiência, responde a
Escola. Não é um preço muito alto que se paga por essa
experiência interessante?, diz ela. M as-você-ganha-uma-
recompensa, fala a Escola: um-bebê-todo-seu-para-você
foder-como-quiser. Bem, isto já é alguma coisa, diz ela.
Mas como eu posso saber se ele vai ser um homem,
como você?)
A reprodução artificial não é inerentemente desumani-
zante. De qualquer maneira, o exercício de uma opção po­
derá tornar possível um reexame honesto do antigo valor
da maternidade. No momento, é fisicamente perigoso
para uma mulher declarar-se por princípio abertamente
contra a maternidade. Ela só escapará imune se acrescen­
tar que é neurótica, anormal, que tem aversão a crianças,
sendo, portanto, “incapaz”. ( “Talvez mais ta rd e .. . quan­
do eu estiver mais preparada.” ) Isto é apenas uma atmos­
fera de inquisição livre. Até o tabu se dissipar, até que a
decisão de não ter filhos ou de não tê-los de um modo
“natural” seja considerado, pelo menos, tão legítima quan­

229
to o parto tradicional, as mulheres estarão sendo coagi­
das dentro de seus papéis femininos.
Um outro avanço científico que achamos difícil de ser
absorvido pelo nosso sistema tradicional de valores é o
início da cibernetização, o encargo de função de traba­
lho assumido p or m áquinas que, brevemente, poderão
igualar ou superar o homem no pensamento e na solução
de problemas. E m bora seja possível argumentar, como
no caso da reprodução artificial, que essas máquinas mal
passaram do estágio especulativo, lembremo-nos de que
há apenas cinco ou dez anos atrás os especialistas pre­
diziam qye cinco ou seis com putadores seriam suficientes
para suprir permanentem ente as necessidades de todo o
país.
A cibernetização, do mesmo modo que o controle da
natalidade, pode ser uma faca de dois gumes. Imaginá-la,
assim como a reprodução artificial, nas mãos dos poderes
atuais é o mesmo que imaginar um pesadelo. É preciso
não "aperfeiçoar. Todo mundo está familiarizado com
1 9 8 4 : com a crescente alienação das massas, com o inten­
sificado papel da elite (talvez cibem etista), com as fá­
bricas de bebês, a crescente eficiência governamental (o
G rande Irm ão ), e assim por diante. Nas mãos da socie-
dade atual não hâ dúvida de que a m lquina poderia ser
usada — e o está sendo — para intensificar o aparelho
da repressão e para intensificar o poder estabelecido.
Mas, por outro lado, como no caso da exploração
demográfica e do controle da natalidade, a distinção entre
o uso impróprio da ciência e o valor da própria ciência,
em geral, não é deixada clara. Nesse caso, em bora talvez
a reação possa não ser tão histérica e evasiva, nós ainda
geralmente tendemos mais a um a concentração pouco
imaginosa nos males da própria máquina, do que a um
reconhecimento de seu significado revolucionário. São
abundantes os livros e pesquisas a respeito de como evi­
tar 1984 (p.ex., Privacidade e Liberdade, de Alan Wes-
to n ). M as existem muito poucas reflexões sobre como
lidar efetivamente com as mudanças qualitativas no estilo
de vida que a cibernetização trará.

230
Os dois temas do controle demográfico e da cihcr-
netização geram o mesmo tipo de resposta nervosa e su­
perficial, porque em ambos os casos o problema básico
não tem precedentes. Trata-se de m udanças qualitativas
nas relações básicas de produção e reprodução da hum a­
nidade. Precisaremos quase que de pernoitar para poder­
mos lidar com os profundos efeitos do controle da ferti­
lidade e da cibernetização, uma nova cultura baseada numa
redefinição radical das relações humanas e do lazer para
as massas. P ara redefinir de um m odo tão radical nosso
relacionamento com a produção e a reprodução é preciso
destruir simultaneamente o sistema de classes, assim como
a família. Estarem os além de discussões do tipo “quem
vai ganhar o pão” — ninguém vai ganhar o pão, porque
ninguém estará “trabalhando”. A discriminação em fun­
ção do emprego não terá mais nenhum fundamento para
existir num a sociedade, na qual as máquinas executam o
trabalho melhor do que seres humanos de qualquer ta­
manho ou habilidade. Assim, as máquinas poderiam agir
como equalizadores perfeitos, destruindo o sistema de
classes baseado na exploração do trabalho.
Qual poderia ser o impacto imediato da cibernetiza­
ção sobre a posição das mulheres? Resumidamente, pode­
mos predizer o seguinte: 1) Em bora inicialmente a auto­
mação continue a prover novos empregos para as m ulhe­
res, p.ex., operador de perfuração, program ador de com­
putadores, etc., essas posições provavelmente não durarão
muito (precisam ente porque as mulheres, a força de traba­
lho transitória por excelência, são procuradas para preen-
chê-las). Finalmente, esses controles especializados de
máquinas darão lugar a um conhecimento de seu controle
usual e mais difundido e, ao mesmo tempo, nos níveis mais
altos, a um conhecimento especializado e intensificado de
suas funções mais complexas, dominado por um a nova
elite de engenheiros, os cibernetizadores. Os tipos de tra­
balho em que as mulheres foram bem-vindas, situados
nos níveis mais baixos dos serviços de escritório, também
serão cibernetizados. Ao mesmo tempo, os trabalhos do­
mésticos serão automatizados de um modo mais comple­
to, reduzindo ainda mais as funções de trabalho legiti-

231
m ám ente femininas. 2 ) A erosão do status do “ cabeça da
casa”, particularm ente na classe proletária, pode abalar
ainda mais profundam ente a vida fam iliar e os papéis se­
xuais tradicionais. 3 ) Crescerá a grande inquietação dos
jovens, dos pobres, e dos desempregados. Como os tra­
balhos se tornarão mais difíceis de conseguir, e não haverá
um am ortecimento do choque cultural através de educa­
ção para o lazer, o ferm ento revolucionário provavelm en­
te se tornará primordial. Assim, no todo, a cibernetização
poderá agravar a frustração que as mulheres já sentem em
seus papéis, impelindo-as à revolução. J
U m a revolução feminista poderá ser o fator decisi­
vo no estabelecimento de um novo equilibrio ecológico.
A atenção dada à explosão demográfica, o deslocamento
de ênfase da reprodução para o controle da natalidade, e
as exigências de um desenvolvimento total da reprodução
artificial proporcionarão uma alternativa para as opres­
sões da familia biológica. M udando as relações do homem
com o trabalho e com os salários, e substituindo o tra­
balho pela diversão (atividade feita em seu próprio bene­
fício), a cibernetização perm itirá um a redefinição total
da economia, incluindo a atividade familiar e sua capaci­
dade econômica. A dupla maldição, de que o homem terá
que cultivar o solo com o suor de seu rosto e de que a
mulher deverá suportar as dores e o trabalho do parto, se­
rão dissipadas pela tecnologia, para tornar o viver hum ano
pela prim eira vez um a possibilidade. O movimento fe­
minista tem a missão essencial de criar uma aceitação cul­
tural para o novo equilíbrio ecológico necessário à sobrevi­
vência da raça hum ana no século XX.

232
CONCLUSÃO
A REVOLUÇÃO DEFINITIVA

1. Imperativos Estruturais

Antes de falar sobre as alternativas revolucionárias,


façamos um resumo de tudo o que foi visto — p ara de­
term inar as coisas específicas que precisam ser cuidado­
samente excluídas de todas as novas estruturas. Em se­
guida podemos avançar até “ especulações utópicas” orien­
tadas, ao menos, p o r pautas negativas.
Vimos como as mulheres, no plano biológico, são
diferenciadas dos homens, e no plano cultural são dife­
renciadas do “hum ano”. A natureza produziu a desigual­
dade fundamental — m etade da raça hum ana deve nutrir
e educar as crianças de toda a raça — que foi, mais tar­
de, consolidada e institucionalizada, em benefício dos ho­
mens. A reprodução da espécie custa muito às mulheres,
não só emocional, psicológica e culturalmente, como tam ­
bém em termos estritamente materiais (físicos). Antes do
aparecim ento recente dos métodos anticoncepcionais, os
partos sucessivos levaram as mulheres a experimentarem
constantes “males femininos”, ao envelhecimento precoce
e à morte. As mulheres eram a classe escrava que m an­
tinha a espécie, a fim de que a outra m etade fosse libe-

233
rada para o trabalho — geralmente admitindo-se os as­
pectos escravizantes disso, mas certamente também todos
os aspectos criativos.
Essa divisão natural do trabalho continuou somente
à custa de um grande sacrifício cultural: os homens e as
mulheres desenvolveram apenas uma metade de si mes­
mos, em prejuízo da outra metade. A divisão da psique
em psique masculina e feminina, estabelecida com o fim
de reforçar a divisão em função da reprodução, resultou
trágica. A hipertrofia nos homens do racionalismo, do
impulso agressivo e a atrofia de sua sensibilidade emo­
cional representaram um desastre tanto físico (guerra),
quanto cultural. O emocionalismo e a passividade das
mulheres aumentou seu sofrimento (não podemos nos re­
ferir a elas de um modo simétrico, já que elas foram
vitimadas pela divisão como um a classe). Sexualmente,
os homens e as mulheres foram canalizados para um a he-
terossexualidade altamente organizada — no tempo, no
lugar, no procedimento, e até no diálogo — e restrita
aos genitais, em vez de espalhada pelo corpo inteiro.
Proponho, então, que a prim eira exigência para qual­
quer sistema alternativo deva ser:
1) A libertação das mulheres da tirania de sua bio­
logia reprodutora, através de todos os meios disponíveis,
e a distribuição do papel de nutrição e educação das
crianças entre a sociedade como um todo, tanto entre os
homens, quanto entre as mulheres. H á muitas etapas nis­
to. Já existe um a aceitação (conseguida com dificuldade)
do “planejamento fam iliar”, ainda que não da contra­
cepção em si mesma. São iminentes as propostas de cre­
ches que atendam durante o dia, talvez até durante vinte
e quatro horas, com equipes mistas. Mas, na minha opi­
nião, tudo isso é tímido como um a transição, se não for
totalmente inútil. Estamos falando de um a mudança
radical. E apesar de, na verdade, ela não poder surgir
de repente, os objetivos radicais devem ser o tempo todo
mantidos em vista. As creches liberam as mulheres. Ali­
viam uma opressão imediata, mas não se pergunta por­
que essa opressão é feita sobre as mulheres.

234
No outro extremo se situam as soluções mais dis­
tantes, baseadas nas potencialidades da embriologia mo­
derna, i.e., a reprodução artificial, possibilidades ainda
tão aterrorizantes que raram ente são discutidas com se­
riedade. Vimos que o medo é, até certo ponto, justificá­
vel: nas mãos da sociedade atual e sob o controle dos
cientistas de hoje (poucos dos quais são mulheres ou
mesmo fem inistas), qualquer tentativa de usar a tecno­
logia para “libertar” alguém é suspeita. M as estamos pre­
parando-nos para falar sobre sistemas especulativos, e,
para os fins de nossa discussão, devemos supor que haja
flexibilidade e boas intenções nos que estão elaborando
a mudança.
Assim, libertar as mulheres de sua biologia signifi­
caria am eaçar a unidade social, que está organizada em
tom o da reprodução biológica e da sujeição das mulheres
ao seu destino biológico, a família. Nossa segunda exi­
gência surgirá também como um a contestação básica à
família, desta vez vista como um a unidade econômica:
2) A total autodeterminação, incluindo a indepen­
dência econômica, tanto das mulheres, quanto das crian­
ças. P ara atingir esta m eta serão necessárias mudanças
fundamentais em nossa estrutura social e econômica. É
por isso que precisamos falar de um socialismo feminista.
No futuro imediato, sob a orientação do capitalismo, na
melhor das hipóteses poderá ocorrer um a integração de­
rivativa das mulheres na força de trabalho. Isto porque
se descobriu nas mulheres um suprimento de mão-de-
obra altamente especializado e transitório, extremamente
útil e barato,1 sem mencionar o valor econômico de sua
função tradicional, a reprodução e a educação das crian­
ças, um trabalho para o qual elas recebem regalias de

1. A maioria dos patrões fracassaria totalmente se tivesse que


assumir o trabalho de suas secretárias ou se tivesse que traba­
lhar sem elas. Conheço várias secretárias que assinam sem pen­
sar o nome de seus patrões embaixo de suas próprias resolu­
ções (até brilhantes). As habilidades das mulheres das universi­
dades custariam uma fortuna se calculadas em termos materiais
de trabalho masculino.

235
seus patrões, mas não são pagas. Mas estas são funções
econômicas essenciais, sejam elas reconhecidas ou não
oficialmente. As mulheres, nessa condição atual, são os
verdadeiros alicerces da superestrutura econômica, vitais
para a existência desta.2 As odes à abnegação da m a­
ternidade encontram um fundamento na realidade: a M ãe
é vital para o american way of life, bem mais do que a
torta de maçãs. E la é um a instituição sem a qual o sis­
tema realmente se desintegraria. Nos termos capitalistas
oficiais, a fatura p or seus serviços econômicos3 pode
custar tão alto quanto um quinto do produto nacional
bruto. M as o pagamento não é a solução. Pagá-la, como
é freqüentem ente discutido na Suécia, é um a reforma
que não contesta a divisão fundam ental do trabalho, e,
conseqüentemente, nunca poderia erradicar as desastrosas

2. Margaret Benston (“A Polícia Econômica da Libertação das


Mulheres”, Monthly Review, setembro de 1969) ao tentar mos­
trar que a opressão das mulheres é na verdade econômica —•
embora as análises econômicas anteriores tenham sido incorretas
— faz distinção entre a economia de superestrutura masculina,
baseada na produção de mercadorias (propriedade capitalista dos
meios de produção e trabalho assalariado) e a economia redu-
plicativa pré-industrial da família, a produção para uso imediato.
Pelo fato de a última não fazer parte da economia contempo­
rânea oficial, geralmente se faz vista grossa para sua função na
base dessa economia. Falar em arrastar as mulheres para a eco­
nomia de mercadorias da superestrutura falha em lidar com
tremenda quantidade de produção necessária do tipo tradicional
hoje realizada pelas mulheres sem receber pagamento. Quem
a fará?
3. Juliet Mitchell, em “Women: The Longest Revolution” (New
Left Review, dezembro de 1966), afirma que “o trabalho do­
méstico é enorme se qualificado em termos de trabalho produ­
tivo. Na Suécia, 2.340 milhões de horas ao ano são gastas por
mulheres nos serviços domésticos, comparadas aos 1.290 mi­
lhões de horas gastas por uma mulher na indústria”. O The Chase
Manhattan Bank estima em 99,6 horas uma semana inteira de
trabalho doméstico feito pela mulher. Margaret Benston calcula
a sua estimativa mínima relativa a uma mulher casada sem filhos
em 16 horas, perto de metade de uma semana regular de tra­
balho. Uma mãe precisa gastar pelo menos seis ou sete dias na
semana, trabalhando cerca de 12 horas.

236
conseqüências psicológicas e culturais desta divisan dn
trabalho.
Quanto à independência econômica das crianças, tra­
ta-se realmente de um sonho, até agora não realizado cm
nenhum lugar do mundo. E, no caso das crianças, tam ­
bém estamos falando de mais do que de um a justa inte­
gração na força de trabalho; falamos da abolição da pró­
pria força de trabalho sob um socialismo cibernético, da
reestruturação radical da economia de m odo que o “tra ­
balho”, i.e., o trabalho assalariado não seja mais rele­
vante. Em nossa sociedade pós-revolucionária, tanto os
adultos quanto as crianças seriam atendidos nas suas ne­
cessidades de subsistência, independentemente de suas
contribuições sociais, no primeiro caso na História de
um a distribuição justa de riqueza.
Com isso atacamos a família num a frente dupla,
contestando aquilo em torno de que ela está organizada:
a reprodução das espécies pelas mulheres, e sua conse­
qüência, a dependência física das mulheres e das crian­
ças. Elim inar estas condições já seria suficiente para des­
truir a família, que produz a psicologia de poder. C ontu­
do, nós a destruiremos ainda mais.
3) A total integração das mulheres e das crianças
em todos os níveis da sociedade. Todas as instituições
que segregam os sexos, ou que excluem as crianças da
sociedade adulta, p.ex., a escola m oderna, devem ser
destruídas.
Estas três exigências afirmam um a revolução femi­
nista baseada na tecnologia avançada. E, se as distinções
culturais entre hom em /m ulher e adulto/criança forem
destruídas, nós não precisaremos mais da repressão se­
xual que m antém estas classes díspares, sendo pela pri­
meira vez possível um a liberdade sexual “natural”. Assim
chegaremos à:
4) Liberdade para todas as mulheres e crianças usa­
rem a sua sexualidade como quiserem. Não haverá mais
nenhuma razão para não ser assim. (Razões passadas:
a sexualidade plena ameaçava a continuidade da repro­
dução necessária para a sobrevivência humana, e, assim,
a sexualidade tinha que ser restringida, através da reli-

237
gião e de outras instituições culturais, a fins reproduto­
res, sendo todo o prazer sexual não-reprodutor conside­
rado um desvio, ou coisa pior; a liberdade sexual das
mulheres poderia colocar em dúvida a paternidade da
criança, ameaçando assim o patrim ônio; a sexualidade
infantil tinha que ser reprimida porque constituía uma
ameaça ao precário equilíbrio interno da família. Estas
repressões sexuais cresceram em proporção ao grau de
exageração cultural da família biológica.) Em nossa nova
sociedade, a hum anidade poderá finalmente voltar a sua
sexualidade natural “polimorfamente perversa” — serão
permitidas e satisfeitas todas as formas de sexualidade.
A mente plenam ente sexuada, realizada no passado ape­
nas em alguns indivíduos (sobreviventes), tornar-se-ia
universal. A realização cultural, feita artificialmente, não
seria mais a única via para a auto-realização sexual. Nós
poderíam os nos realizar plenam ente então, simplesmente
no processo de ser e agir.

2. Medos e Considerações

Estes imperativos categóricos devem constituir a base


de um program a feminista radical ainda mais específico.
M as nossas exigências revolucionárias provavelmente vão
dar com alguma coisa, desde um a leve oposição (“utópi­
c o . . . irre a l. . . afetado. . . muito distante no fu tu ro . . .
im possível.. . bem, isso pode ser um a droga, mas vocês
não conseguiram nada m e l h o r ...” ) até a histeria ( “de­
sumano . . . an tinatural. . . doentio. . . corrom pido.. . co­
m unista. . . 1984. . . o quê? a m aternidade criativa des­
truída por bebês em tubos de vidro, monstros feitos pelos
cientistas?, etc.” ) Vimos porém que essas reações nega­
tivas podem paradoxalm ente significar o tanto que esta­
mos atingindo o íntimo das pessoas. O feminismo revo­
lucionário é o único program a radical que faz estourar
imediatamente os estratos emocionais subjacentes à polí­
tica “séria”, reintegrando assim o pessoal com o público,

238
o subjetivo com o objetivo, o emocional com o racional
— o princípio feminino com o masculino.
Quais são os principais componentes desta resistên­
cia que está impedindo as pessoas de experimentarem
alternativas para a familia, e de onde vem essa resistên­
cia? Estam os todos familiarizados com os detalhes do
Admirável M undo Novo: frias organizações coletivistas,
onde o individualismo é abolido, o sexo, reduzido a um
ato mecánico, onde as crianças se tom am robôs, o G ran­
de Irmão se introm ete em todos os aspectos da vida pri­
vada, onde existem filas de bebés alimentados por m á­
quinas impessoais, um a eugenia m anipulada pelo Estado,
o genocidio dos inválidos e dos retardados em beneficio
de um a super-raça criada por técnicos de avental branco,
onde toda emoção é considerada fraqueza, o am or é des­
truido, e assim por diante. A familia (que, apesar da
opressividade do poder do estado, é no momento o últi­
mo refúgio deste poder abusivo, um abrigo que supre o
pouco de calor emocional, de privacidade e de conforto
individual viáveis agora) será destruída, deixando o medo
penetrar dentro de casa.
Paradoxalm ente, um a das razões pelas quais o Pe­
sadelo, de 1984 ocorre tão freqüentem ente é o fato 49
ele originar-se diretam ente dos males de nossa cultura su-
grémacista masculina atuai, representando um. exagero
dela. Por exemplo, muitos de seus detalhes são tirados
âiretam ente dos orfanatos e das instituições públicas, para
crianças dirigidas pelo Estado.4 O Pesadelo é o resultado

4. Embora seja verdade que as crianças dos orfanatos não rece­


bem sequer o calor e a atenção que os pais dão ao filho, com
resultados danificantes — os testes revelaram que o QI das crian­
ças em instituições era mais baixo, o desajustamento emocional
era maior, e até, como no famoso experimento com macacos
desprovidos de cuidado maternal, o funcionamento sexual é da­
nificado ou destruído — aqueles que citam estas estatísticas tão
triunfantemente só para desmerecer as alternativas radicais, não
reconhecem que o orfanato é uma conseqüência daquilo que nós
estamos tentando corrigir.
O orfanato é o subterrâneo da família, assim como a pros­
tituição é o produto direto da instituição do casamento patriarcal.

239
direto da tentativa de imaginar um a sociedade na qual
as mulheres tornaram -se iguais aos homens, aleijadas de
modos idênticos, destruindo-se assim um equilíbrio deli­
cado de interdependências.
Contudo, estamos sugerindo o oposto; em vez de
concentrar o princípio feminino num refúgio “privado” ,
no qual os homens, como patos, periodicam ente “mer­
gulham na água” para descansar, em vez disso queremos
reespalhá-lo — criando pela prim eira vez a sociedade de
baixo para cima. O difícil triunfo do homem sobre a n a­
tureza tornou possível restaurar o verdadeiramente natu­
ral: ele poderia invalidar as maldições de Adão e de
Eva, e restabelecer o Jardim do Eden n a Terra. Mas,
em seu longo afã, a imaginação lhe foi sufocada: ele
teme um aumento de sua lida com a incorporação da
maldição de Eva à sua própria maldição.

No mesmo sentido em que a prostituição complementa o casa­


mento, o orfanato é o mal complementar necessário de uma so­
ciedade na qual a maioria das crianças vive sob um sistema de
patronato, de pais genéticos. De um lado, porque as mulheres
vivem sob o patronato, as mulheres desamparadas pagam um
preço especial; do outro lado, porque as crianças são possessões
de indivíduos específicos, em vez de serem membros livres da
sociedade, as crianças desamparadas sofrem.
Os órfãos são essas crianças infortunadas que não têm pais
numa sociedade que dita que todas as crianças precisam ter pais
para sobreviver. Quando todos os adultos são monopolizados
pelos seus filhos genéticos, não sobra ninguém para cuidar dos
desamparados. Contudo, se ninguém tivesse relações exclusivistas
com as crianças, então todos estariam livres para todas as crian­
ças. O interesse natural pelas crianças se espalharia por todas
as crianças, em vez de se concentrar estreitamente na própria
criança de cada um.
Os males deste sistema de orfanato, a existência-tipo-quar-
tel, a impessoalidade, o anonimato surgem porque estas institui­
ções são depósitos para os rejeitados num sistema familiar ex­
clusivista; ao passo que nós queremos espalhar as emoções fa-
miliais por toda a sociedade. Assim, as instituições para crianças
e suas conseqüências estão entre os passos mais distantes nas
alternativas revolucionárias porque elas violam quase que todos
os nossos postulados essenciais: a integração das crianças numa
sociedade total, e a concessão de plena liberdade econômica e
sexual.

240
M as existe um a razão mais concreta pela qual essa
t imagem subliminar de horror funciona no sentido de des­
truir as sérias considerações do feminismo: o malogro
das experiências sociais do passado. Os experimentos ra­
dicais, quando aconteceu de solucionarem os problem as
( totalmente, criaram um a série de problem as inteiramente
novos — e não necessariamente m elhorada — em seu
lugar. Lancemos um breve olhar sobre alguns destes ex­
perim entos radicais, a fim de determ inar as causas de
seu fracasso — porque eu acredito que o fiasco não foi
de m odo algum surpreendente, dados os postulados ori­
ginais do experimento, e seu contexto social específico.
Podemos depois usar essa informação como um a pauta
negativa nova e valiosa, que nos instrua sobre o que mais
deve ser evitado em nosso próprio programa.
O mais im portante malogro de todas as experiências
sociais modernas foi o das comunas russas. (O fracasso
da Revolução Russa é, em geral, um espinho na vida de
todo partido radical; mas raram ente é observada a rela­
ção direta entre a sua frustração e a das com unas.) Isto
levou, ironicamente, à suposição de existência de um a
conexão causai entre a abolição da família e o desenvol-
( vimento de um estado totalitário. Nessa visão, a reinsti-
tuição do sistema da família nuclear, feita posteriorm ente
pela Rússia, é vista como uma tentativa desesperada de
recuperar os valores humanistas —■a privacidade, o indi­
vidualismo, o amor, etc., naquela altura em rápido de­
saparecimento.
M as trata-se do oposto: O fracasso da Revolução
Russa se atribui diretamente à derrota de suas tentativas
para eliminar a família e a repressão sexual. Este fra­
casso, por sua vez, como vimos, foi causado pelas limi­
tações de um a análise revolucionária de óptica masculi­
na, fundam entada exclusivamente em classes econômicas,
que não considerou em nenhum momento a família na
sua função de unidade econômica. A lém disso, todas as
( revoluções sociais até esta data malograram ou malogra­
rão precisamente por estas razões. Qualquer liberação
inicial, sob o socialismo atual, deverá sempre reverter à
repressão, porque a estrutura da família é a fonte da

241
opressão psicológica, econômica e política. As tentativas
socialistas de suavizar a estrutura de poder dentro da fa­
mília, através da incorporação das mulheres na força de
trabalho ou no exército, não passam de reformistas. As­
sim, não é um a surpresa o fato de o socialismo, como
ele é hoje constituído nas várias partes do mundo, não (
só não representar nenhum a melhoria em relação ao ca­
pitalismo, como ser freqüentem ente pior do que ele.
Assim se desenvolve um componente im portante da
imagem do Pesadelo: a destruição da família, o último
refúgio da intimidade, do conforto, da privacidade, do
individualismo, etc., e a intrusão total da economia da
superestrutura em todos os aspectos da vida, a convoca­
ção das mulheres para um mundo masculino, em vez da
eliminação total das distinções de classes sexuais. Pelo
fato de nenhum a medida ter sido tom ada para restabele­
cer o elemento feminino no m undo exterior, para incor­
porar o “privado” no “público” , e ainda porque o prin­
cípio feminino foi menosprezado ou eliminado, em vez
de ser difundido de modo a hum anizar a sociedade, o !
resultado foi um horror.
Wilhelm Reich, em seu livro A Revolução Sexual,
sintetizou as razões objetivas específicas do fracasso das ¡
comunas russas, num a das melhores análises já feitas até
hoje:
1) Confusão dentro da liderança e evasão do pro­
blema.
2 ) A árdua tarefa de reconstrução geral, dados o
atraso cultural da Velha Rússia, a guerra e a fome
coletiva.
3) F alta de Teoria. A Revolução Russa foi a pri­
meira de seu gênero. Nenhuma tentativa foi feita para
lidar com os problemas emocionais-sexuais-familiais exis­
tentes na formulação da teoria revolucionária fundamen­
tal. (O u, nos nossos termos, houve falta de um “ aumen­
to de consciência” relativo à opressão das m ulheres/crian­
ças e falta de um a análise feminista radical, antes da |
própria revolução.)
4 ) A estrutura psicológica sexual-negativa do indi­
víduo, criada e reforçada através de toda a História pela

242
família, impediu a liberação do indivíduo dessa mesma
estrutura. Como propõe Reich:

“Deve ser lembrado que os seres humanos têm um medo


enorme daquele gênero de vida por que eles tanto ansciam,
mas que diverge de sua própria estrutura.”

5) As complexidades concretas e explosivas da se­


xualidade.
No quadro que Reich descreve da época, sentimos
a imensa frustração das pessoas tentando se libertar, mas
não dispondo de um a ideologia bem -estruturada para
orientá-las. N o fim das contas, o fato de terem tentado
tanto sem haver um preparo adequado tornou seu fra­
casso ainda maior. Destruir o equilíbrio da polarização
sexual sem eliminá-lo totalmente foi pior do que não
fazer absolutamente nada.
Um outro sistema comunitário experimental, muito
elogiado, é o kibbutz em Israel. Aqui, contudo, não exis­
te um fracasso total. Geralm ente se diz que as crianças
do kibbutz carecem de individualismo, que existe um
“grupismo” na sua psicologia, que é o preço da elimi­
nação da família ( “E se você quiser pagar o preço,
b e m .. . ” ) Nesse caso eu prefiro falar da minha própria
experiência, embora haja vários livros sobre a matéria.
Esta é a minha impressão da vida no kibbutz'.
A divisão do trabalho é tão pronunciada quanto
sempre foi (um a mulher explicou-me que dirigir um tra­
tor é capaz de arruinar a natureza fem inina). As moças
estrangeiras são as únicas que ainda discutem porque as
mulheres não estão no campo, e sim confinadas à sozi­
nha, à lavanderia, à sala de costura, ou, na m elhor das
hipóteses, ao galinheiro.5 As crianças identificam-se in­

5. Durante curta estada, observei o seguinte: Uma amiga minha


americana, embora fosse uma enfermeira registrada, não poderia,
apesar de uma disputa infindável, conseguir um emprego na
enfermaria — porque todas as mulheres eram necessárias na
cozinha. Um emprego numa loja de sandálias foi dado a um
rapaz inexperiente, preferido a uma moça especializada em ar­
tesanato.

243
tensamente com seus pais genéticos (ouvem-se repetida­
mente as palavras “Em m a Sheli”, “A bba Sheli”, “Minha
m ãe”, “M eu pai” , no mesmo tom em que toda criança
em todo quarteirão dos E U A diz: “Se você não fizer isso
eu vou falar com meu pai” , ou “M inha mãe vai te ba­
ter” ). Os laços familiares permanecem fortes, ainda que
suas piores conseqüências sejam evitadas.
Acima de tudo, as crianças ainda são segregadas,
tendo até facilidades, fazendas, horários de refeição e ati­
vidades especiais. O conceito de infância permanece, in­
cluindo as atividades próprias a ela. O ensino segue o
modelo europeu, ainda que alguns de seus piores aspec­
tos, como a graduação, tenham sido eliminados. As salas
de aula se mantêm, na proporção de um adulto para
vinte crianças, sendo ainda o seu objetivo final a apro­
vação do adulto, em vez da aprendizagem em si mesma.
Os modelos de papel sexual são adotados vigorosa­
mente, a segregação sexual não foi eliminada (há b a­
nheiros diferentes para homens e mulheres) e a hom o ou
a bissexualidade são tão desconhecidas que, quando eu
trouxe o assunto à baila, várias mulheres saíram da sala
em sinal de protesto. A pesar dos rumores em contrário,
o kibbutz é cada vez mais conservador em relação ao
sexo (é em baraçante para um a mulher solteira pedir pí­
lulas anticoncepcionais, e as doenças venéreas são con­
sideradas um a vergonha), e qualquer união que não seja
a união a-longo-prazo com um parceiro aprovado social­
mente é vista com maus olhos. A sexualidade no kibbutz
continua sendo estruturada de m odo convencional, pou­
co diferente da sexualidade da sociedade em geral. O
tabu do incesto e suas conseqüências simplesmente foram
estendidos da família ao grupo que a substitui.
N a verdade, o kibbutz não representa um a expe­
riência radical, mas um comunalismo limitado, instituído
para fins agrícolas específicos ulteriores. O kibbutz não
é nada mais do que um a comunidade de pioneiros da
lavoura, forçados a sacrificar tem porariam ente as estru­
turas sociais tradicionais para se adaptarem a um con­
junto de condições específicas nacionais. Se e quando
estas condições mudarem, o kibbutz voltará ao “norm al”.

244
Por exemplo: no kibbuíz de extrema esquerda cm que
eu fiquei, as mulheres preocupavam-se em exigir co/i
nhas particulares adicionais à da comunidade, que servia
refeições seis vezes ao dia. Elas ainda estavam confiadas
ao papel da Esposa Perfeita, mas não dispunham das
condições apropriadas para desempenhá-lo. Seu interesse
pelas roupas, moda, maquilagem, charme, não muito fá­
cil de saciar, parecia e na verdade era a aspiração da
moça da roça pelos vícios da cidade grande — tanto
mais intensa na fantasia porque difícil de se realizar na
prática. Atravessando a seção residencial do kibbutz, ao
início do entardecer, eu poderia sem nenhum esforço
imaginar que estava caminhando por um subúrbio tran­
qüilo ou p or um a cidadezinha dos EUA. As casas p a­
dronizadas são cuidadas com a atenção das propriedades
privadas de qualquer pequeno burguês, com a mesma
decoração zelosa dos apartam entos. (O retom o à pro­
priedade me foi justificado como sendo “apenas realis­
ta”. Anteriormente os membros do kibbutz tinham re­
partido entre si até as próprias roupas, mas logo ficaram
saturados.) A propriedade ainda é um a im portante ex­
tensão do self — porque as crianças ainda são um a pro­
priedade. A fila dos Pequenininhos seguindo a Super-
M ãe num passeio fora da Casa das Crianças é igual a
todos os jardins-de-infância de todo o mundo. As crian­
ças ainda continuam oprimidas.
É extraordinário que, apesar da falta de radicalismo
da experiência do kibbuíz, ela tenha funcionado tão bem.
Os resultados proporcionais ainda que de um enfraqueci­
mento apenas da divisão do trabalho, da mentalidade de
propriedade, da família nuclear, da repressão sexual, etc.
são espetaculares. M inha impressão foi de que as crian­
ças eram física, mental e emocionalmente mais saudáveis
do que as crianças que viviam na estrutura familiar ame­
ricana; que não eram mais amistosas e generosas, com uma
grande curiosidade pelo m undo exterior; que seus pais
não eram tão nervosos e briguentos, conseqüentemente
capazes de m anter melhores relações com elas; e que sua

245
criatividade e individualidade eram incentivadas tanto
quando era possível de serem custeadas pela comunidade.6
Uma outra experiência, limitada porém mais elogia­
da do que esta, que produziu bons resultados de um
modo desproporcionado, é Summerhill, de A. S. Neill.
No famoso livro sobre sua pequena escola experimental
ao norte da Inglaterra, intitulado Summerhill: A Radical
Approach to Childrearing (um livro obrigatório na estan­
te de todo pai liberal digno, radical, boêmio, e /o u uni­
versitário), ele descreve a transição das crianças normais
para crianças “livres” que se autodirigem. Mas Summer-
hill não é um enfoque “radical” sobre a educação das
crianças — é um enfoque liberal. Neill, um a espécie de
diretor de escola benevolente e honesto, em vez de um
verdadeiro inovador social,7 construiu um pequeno refú­
gio para aquelas vítimas de nosso sistema atual, cujos
pais tinham o dinheiro e a visão liberal necessários para
m andá-las para lá. Dentro deste abrigo, as crianças são
poupadas dos efeitos mais prejudiciais do autoritarismo
existente na estrutura familiar. H á um a aparência de !
igualdade entre as crianças e os que dirigem o lugar (o
voto de Neill conta como sendo somente um, embora
eu imagine que num a crise real a decisão não seja deter­
minada por voto. Em todo caso, as crianças sempre sa­
bem quem é o chefe, por mais benevolente que ele seja),
e a educação obrigatória é abrandada; em bora as crian­
ças aprendam somente quando querem, a estrutura das
aulas, ainda que mais flexível, permanece inalterada. Ape­
sar da m asturbação não ser vista com maus olhos, cer­
tam ente as relações sexuais não são incentivadas (afinal,
observa Neill, com muita propriedade, “eles” fechariam

6. Num kibbutz encontrei um rapaz de dezessete anos que tinha


construído seu próprio ateliê de artista, onde ele ia com seus
amigos pintar regularmente. Isto foi feito, tipicamente, como o
seu projeto inteiro.
7. Neill fala de si mesmo: “Embora escreva e diga o que penso
da sociedade, se eu tentasse reformar a sociedade pela ação
a sociedade me mataria como sendo uma ameaça pública. ..
[Acredito] que meu trabalho primordial não é a reforma da
sociedade, mas levar felicidade para algumas poucas crianças.”

246
v.
a escola). E o que é pior: os papéis sexuais não come­
çaram a ser eliminados,8 o que estaria um pouco além
dos objetivos desta experiência, visto que as crianças já
estão psicossexualmente form adas pela familia na época
em que entram na escola, aos cinco anos de idade ou
mais. Em todos os aspectos — psicológico, sexual, edu­
cacional — temos então apenas um abrandam ento de
alguns dos mais severos aspectos do sistema.
O problem a não foi atacado em suas raízes. Legal­
mente, as crianças ainda estão sob a jurisdição dos pais,
que podem fazer delas o que quiserem. (E as crianças
não podem encomendar pelo correio pais do tipo dos
que as enviarão para Summerhill.) Neill queixa-se con­
tinuam ente dos pais, que podem desfazer todo o seu tra­
balho nas férias, ou arrastar os filhos para fora da esco­
la, no momento em que os piores efeitos da vitimação
tiverem desaparecido. Ele tem medo do poder deles so­
bre si mesmo. Afinal, ele está às suas ordens: se não

8. Neill comenta sobre a volta às divisões de papéis sexuais


com um pouco de frustração, mas com uma aceitação geral.
Na verdade, ele e sua esposa Ena agem dentro dos papéis de
modelos benevolentes, embora talvez para uma família maior.
Eis Neill falando sobre o assunto: “Num dia bom pode ser que
você não veja os meninos “gangsters” [?] de Summerhill. Eles
estão em cantos distantes nas suas aventuras. Mas você verá as
meninas. Elas estarão dentro ou perto de casa, e nunca muito
longe dos mais velhos.
Você geralmente encontrará a Sala de Artes cheia de me­
ninas pintando e fazendo coisas em tecidos. Contudo, principal­
mente eu creio que os meninos menores são mais criativos; pelo
menos eu nunca ouvi um menino dizer que está aborrecido por­
que não sabe o que fazer, enquanto que de vez em quando eu
ouço as meninas dizerem isso.
Talvez eu ache os meninos mais criativos do que as me­
ninas porque a escola deve estar melhor equipada para os me­
ninos do que para as meninas. As meninas de dez ou mais anos
têm pouca utilidade para uma sala de ferro e madeira. . . Elas
têm seus trabalhos de arte, que incluem cerâmica, cortar moldes
de linóleo, pintura, costura, mas para algumas isto não é su­
ficiente.
As meninas tomam parte menos ativa nas reuniões da es­
cola do que os meninos, e não encontro qualquer explicação
para o fato.” (Grifos da autora)

247
estão satisfeitos com O Produto, os “eles” obscuros ainda
têm a palavra final. Mesmo quando acontece serem os
pais seguidores devotos da filosofia de Summerhill,9 eles
incomodam com as suas constantes visitas e perguntas.
As crianças têm que se acostum ar a viver num zoológico,
entre os dois, os visitantes admirados e os investigadores
cheios de dúvidas (incluindo todo um exército de inves­
tigadores oficiais), o que constitui um a m udança ínfima
em seu status habitual de objeto.
E como poderia deixar de ser assim? Summerhill é
um refúgio isolado, onde as crianças estão ainda mais
— e não menos — segregadas dos adultos e até da vida
da cidade. E a escola depende totalmente, até p ara exis­
tir, da boa vontade dos pais legais e dos doadores libe­
rais. E la não passa de um a comunidade auto-suficiente
com um a economia própria e, conseqüentemente, está
propensa a se tornar um acam pam ento que funciona du­
rante o ano todo para atender a crianças-problema, cujos
pais foram arrastados para o liberalismo como um últi­
mo recurso. Pelo fato de as crianças serem muito mais
numerosas do que os adultos, e constituírem a razão cen­
tral da existência de todo o projeto, seus desejos e opi­
niões são observados e “respeitados” mais do que na
m aioria dos outros lugares no mundo, mas trata-se de
um respeito artificial, sem bases num a verdadeira inte­
gração em um a comunidade legítima.

9. Se a experiência escolar isolada de Summerhill funciona num


grau “limitado”, a “casa” Summerhill falha gritantemente. Não
há nada mais triste do que o espetáculo dos pais tentando ini­
ciar sua versão particular própria de Summerhill na sua vida
familiar, nunca compreendendo a profunda contradição entre a
família nuclear e a verdadeira liberdade da criança. Eu estive
em casas em que as mães restringiam-se a implorar aos filhos
para pararem de bater nas visitas (eu) — elas não se atreviam
a usar o poder que o filho, pelo menos, sabia que estava lá e
de fato estava provocando. Há outras famílias em que as crian­
ças são arrastadas periodicamente para conselhos de família; e
assim por diante. Mas no entanto, apesar de todas estas medi­
das progressivas, as crianças instintivamente sabem — e agem
a partir desse conhecimento — que quaisquer decisões serão
baseadas em realidades práticas, que os pais controlam.

248
E se, só cora essas reformas superficiais, as crianças
já mostram um comportamento notavelmente aperfeiçoa­
do, sendo substituídas a sua agressão, repressão e hostili­
dade pela cortesia autêntica, pela liberalidade psicológica
e pela honestidade, imagine-se então o que poderíamos
esperar sob condições verdadeiram ente revolucionárias.
Um estudo detalhado destas e de outras experiên­
cias, feito a partir de um ponto de vista femininista radical
constituiria um a contribuição valiosa p ara a teoria femi­
nista. Fom os breves por necessidade. Discutimos algumas
das mais importantes experiências sociais modernas, em
primeiro lugar para m ostrar que elas não preenchem as
quatro condições mínimas apresentadas por nós para uma
revolução feminista.
Sintetizemos as causas do fracasso:
1) Os laços especiais das mulheres com a reprodu­
ção biológica e a educação das crianças, que levam a
um a divisão desigual do trabalho, ao estabelecimento de
classes baseadas no sexo, à psicologia do poder e a outros
males, nunca foram rompidos. Os papéis femininos fo­
ram ampliados, em vez de redefinidos. As mulheres po­
dem ter sido (parcialm ente) integradas n a economia mas­
culina da superestrutura, e isto geralmente só para preen­
cher um a necessidade de trabalho específica e usualmente
transitória, mas nunca o papel feminino foi difundido
pela sociedade como um todo. Assim, as mulheres con­
servaram seus antigos papéis e, em alguns casos, m era­
mente acrescentaram um papel novo a estes.
2 ) Em alguns casos, como em Summerhill, a expe­
riência dependia da economia — e da boa vontade —
de um a comunidade (repressiva) mais ampla, e conse­
qüentemente era parasitária, e de fundamentos fracos.
Contudo, naquelas comunidades que tinham o socialismo
na base de sua experiência o problem a não foi tanto este.
As crianças das comunas e do kibbutz sentem-se tão de­
pendentes da comunidade em geral quanto de qualquer
pessoa específica. Freqüentem ente elas participam até do
trabalho produtivo. Essas experiências só são ainda falhas
n a divisão do trabalho, e isto, sabemos, deriva de outras
razões.

249
3) A contínua segregação das crianças e um a falta
de reestruturação radical da escola ou de dar um fim
nela. Os métodos de segregação têm variado, desde o ex­
trem o dos orfanatos do tipo quartel, até a sua versão
mais liberal, o acampamento isolado de um Summerhill,
ou de um a Beit Yeladim , a Casa das Crianças do kibbutz.
Mas, apesar de seu impacto destrutivo poder ter sido
amortecido, em nenhuma circunstância foi discutido o
conceito de infância, ou foi abandonado completamente
o aparato da infância (a escola moderna, as roupas espe­
ciais para crianças, etc.).
4 ) A repressão sexual continuou a atuar, em parte
por causa do fracasso em cortar as conexões especiais
existentes entre as mulheres e as crianças, e em parte
porque os pioneiros não foram capazes de superar suas
próprias estruturas “sexuais negativas” .10
5) Não houve o desenvolvimento de um a consciên­
cia e de um a análise feminista, anteriores ao início da
experiência. O melhor exemplo dessa deficiência são nos­
sas experiências comunais americanas, feitas atualmente,
que meramente expandem a estrutura da família de modo
a incluir um m aior número de pessoas. A divisão do tra­
balho permanece atuando, porque não foi questionado o
papel da mulher junto ao berço (d a criança) ou junto
à cozinha, nem o papel do homem como provisor. E,
um a vez que a relação “m ãe/filho” permanece intacta,
não é de surpreender que, quando acontece um a comuna
se dissolver, desapareçam todos os “padrinhos” , bem
como o próprio pai genético, deixando a mãe engasgada
— sem sequer a proteção de um casamento normal.
Assim, nunca houve um exemplo verdadeiro de uma
associação ampla de mulheres e crianças na sociedade

10. Reich discute a incapacidade russa de lidar com os primei­


ros sinais de uma sexualidade livre infantil. O sexo na criança
foi interpretado em termos puritanos como o sinal de uma de­
cadência moral, em vez de como o primeiro estágio da volta a
uma sexualidade natural.

250
v.
em geral. A experiência social moderna, semelhante ao
estágio m atriarcal da história hum ana, significa apenas
um afrouxamento relativo dentro do movimento mais
amplo em direção à consolidação da supremacia masculi­
na através da História. Ela nunca alterou a condição
fundamental de opressão sexual. Alguns benefícios que
reverteram para as mulheres e as crianças foram inciden-
tais diante dos outros objetivos sociais — que, eles pró­
prios, foram dificultados pelo vasto e irreconhecível subs­
trato da opressão sexual. Porque sua ideologia não estava
fundada nas quatro mínimas premissas feministas afirma­
das anteriormente, estas experiências nunca chegaram a
realizar sequer os objetivos democráticos mais limitados
que seus teóricos (hom ens) e líderes haviam predito.
Contudo, seu êxito dentro de esferas limitadas mostra
que a unidade da família biológica é receptiva à m udan­
ça. M as teremos que controlar totalmente as suas insti­
tuições para que a opressão seja eliminada completamente.
C ontudo — para ser justa — só recentemente, nos
países industriais mais adiantados é que começaram a
existir aquelas precondições autênticas, necessárias para
um a revolução feminista. Pela primeira vez está sendo
possível atacar a família, não só em bases morais — por
ela reforçar as classes sexuais baseadas na biologia, co­
locando os homens, que são posteriorm ente divididos
entre si em função da raça e do privilégio de classe,
numa posição acima das mulheres de todas as idades e
da infância masculina — mas também em bases funcio­
nais: a família não é mais necessária ou útil como uni­
dade social básica da reprodução e da produção. Não
existe mais um a necessidade de reprodução universal,
ainda que o desenvolvimento da reprodução artificial não
venha logo substituir a própria reprodução biológica em
questão. A cibernetização, ao alterar não só a relação
do homem com o trabalho, mas também a sua necessi­
dade de trabalho, finalmente arrancará qualquer valor
prático remanescente na divisão do trabalho, que está na
origem da família.

251
3. A Morte Lenta da Família

A crescente erosão das funções da família, gerada


pela tecnologia moderna, poderia já ter produzido agora
alguns sinais de seu enfraquecimento. Contudo, a situa­
ção não é absolutamente esta. Em bora a instituição seja
arcaica, foram importados, para escorá-la, alguns refor­
ços culturais artificiais: sermões sentimentais, manuais de
liderança, colunas diárias em jornais e revistas, cursos
especiais, serviços e instituições para casais (profissio­
n ais), pais e educadores infantis, nostalgia, advertências
às pessoas que questionam a família ou que a abando­
nam , e, finalmente, um a reação verdadeira, incluindo
um a perseguição implacável aos inconformistas, no caso
de o núm ero de deserções se to m ar um a ameaça séria
à família. Isto só não aconteceu ainda porque não foi
realmente necessário.
O casamento encontra-se na mesma situação da
Igreja. Ambos, do ponto de vista funcional, estão viran­
do cadáveres, p or mais que seus pregadores andem por
aí anunciando um renascimento, angariando avidamente
conversões num dia de pavor. E , exatamente como se
declarou a morte de Deus muitas vezes, e ele sempre
encontra este modo furtivo de ressurgir, assim também
todo m undo desmascara o casamento, mas acaba se
casando.11
O que é que m antém o casamento de pé? Chamei
a atenção para alguns dos baluartes culturais do casa­
mento no século X X . Vimos como a tradição rom ântica
do am or não-conjugal, o hetairismo que foi um auxiliar
indispensável na m anutenção do casamento monogâmico,
foi propositalmente confundida com esta instituição mais

11. Noventa e cinco por cento das mulheres americanas ainda


se casam e noventa por cento têm filhos, na maioria das vezes
mais de dois. As famílias com crianças em número médio (dois
a quatro) são tão predominantes como sempre, o que não é
mais atribuível ao surto de bebês do pós-guerra.

252
V.
pragmática do que qualquer outra, tornando-a mais
atraente — e conseqüentemente impedindo os indivíduos
de experimentarem outras formas sociais que poderiam
satisfazer suas necessidades emocionais de um modo igual
ou melhor do que este.
Sob um a pressão crescente, minadas as bases prag­
máticas da instituição do casamento, os papéis sexuais
afrouxaram a um tal ponto, que teria causado vergonha
a qualquer vitoriano. E le não sofria dúvidas torturantes
em relação ao seu papel, nem em relação à função e
ao valor do casamento. P ara ele, o casamento era sim­
plesmente um acordo econômico em seu próprio bene­
fício, que poderia satisfazer mais facilmente as necessi­
dades físicas e reproduzir seus herdeiros. A esposa tam ­
bém estava certa de seus deveres e recompensas: devia
a ele, durante toda a vida, a propriedade de si mesma e
de todos os seus serviços sexuais, psicológicos e domés­
ticos, em troca de apoio e proteção a longo prazo de um
membro da classe dominante, e por sua vez ele lhe devia
um controle limitado sobre um lar e sobre os filhos dela
até eles atingirem um a certa idade. Hoje em dia, este
contrato baseado em papéis separados foi tão dissimu­
lado pelo sentimentalismo que se tom ou completamente
irreconhecível para milhões de recém-casados, e até para
a m aioria dos casais mais antigos.
Mas, este enfraquecimento do contrato econômico
Ê_a. conseqüente confusão dos papéis sexuais não. alixiou
a opressão da mulher num grau significativo Em muitos
casos, ele apenas a colocou num a posição mais vulnerá­
vel ainda. Com o acordo de casamento tratado pelos pais
quase abolido, um a mulher, considerada ainda parte de
uma subclasse, deve, hoje, jogar um jogo desesperado
para ganhar o apoio e a proteção indispensáveis de um
homem, perseguindo até pegar machos entendiados, que
aparentam contudo serenidade. E mesmo um a vez casa­
da, qualquer sobreposição de papéis geralmente acontece
do lado da mulher e não do marido. A cláusula “trate
com carinho e proteja” é a primeira coisa a ser esqueci­
da — ao passo que a esposa ganhou o privilégio de ir
trabalhar para “ ajudar”, e até o de obrigar o marido a

253
ir à escola. Mais do que nunca ela arca com o impacto
do casamento, nao so no plano emocional, mas também
em tnHns ns sens "asnéelos mais práticos.. Ela simples-
mente somou o trabalho dele ao déla.
Um segundo suporte cultural dessa instituição obso­
leta é a privatização da experiência do matrimonio. Cada
cônjuge inicia o matrimonio convencido de que aquilo
que aconteceu com seus pais, de que aquilo que acon­
teceu com seus amigos não poderá nunca acontecer com
ele. Em bora o Naufrágio do Casam ento tenha-se tom ado
um hobby nacional, um a obsessão universal — como é
testemunhado pela proliferação de manuais para o casa­
mento e o divorcio, pela indústria de revistas femininas,
por uma classe afluente de consultores matrimoniais, pe­
los repertorios completos de piadas do género “Ball-and-
Chain” *, e pelos produtos culturais tais como a novela
de rádio, o género casamento-e-família da TV, p.ex.,
I L o ve L ucy ou Papai Sabe-Tudo, os filmes e peças de
teatro como Faces, de Cassavetes, e Quem Tem M edo
de Virgínia Woolf? — ainda encontramos em todo lugar
um sinal desafiante de otimismo do género “Nós somos
diferentes”, que cita habitualm ente o único caso de um
bom casamento (mesmo que exemplar externam ente) na
comunidade para provar que isto é possível.
O processo de privatização é caracterizado por obser­
vações do tipo “Bem, eu sabia que daria um a ótima m ãe.”
É inútil chamar a atenção para o fato de que todo mundo
diz isso, que os pais ou amigos hoje repudiados como
“m aus” pais e “pobres” parceiros de casamento, todos
começaram o casamento e a paternidade exatamente com
o mesmo espírito. Afinal, será que alguém escolhe um
casamento “ruim”? Será que alguém escolhe ser uma
mãe “ruim”? E, mesmo que se tratasse de um a questão
dos “bons” versus os “maus” cônjuges ou pais, sempre
haveria tantos destes quanto daqueles. Sob o atual siste­
m a de casamento e paternidade universal, o núm ero de
esposas e crianças que podem tirar a sorte boa só pode

* A expressão refere-se ao gênero clássico de piadas girando em torno


da imagem da corrente presa a uma bola usada pelos presos. (N.T.)

254
ser exatamente o mesmo das de sorte má. N a verdade,
todas as classificações de “bom” e “m au” estão fadadas
a se reproduzirem em proporções idênticas.12 Assim, o
processo de privatização funciona no sentido de í azer que
as.,pessoas jaflíjnu.em a culpar a si m esm as, em vez de
este fracasso. A pesar da insti-
tuição revelar-se bastante insatisfatória e até podre, ela
incita as pessoas a acreditar de algum modo que sua si­
tuação específica será diferente. As advertências podem
não surtir nenhum efeito, porque não existe nenhuma
lógica no por-quê as pessoas se casam. Todo mundo tem
os próprios olhos, os próprios pais. Se alguém prefere
bloquear qualquer evidência, é porque precisa disso. Num
mundo descontrolado, as únicas instituições que lhe dão
uma ilusão de controle, que parecem oferecer alguma se­
gurança, proteção ou calor são as instituições “privadas” :
a religião, o casam ento/fam ília, e, mais recentemente, a
terapia psicanalítica. Mas, como vimos, a família não é
nem privada, nem é um refúgio: está, sim, diretamente
relacionada — sendo até a sua causa — aos males t|a
sociedade em peral, males que o indivíduo não é mais
canaz de enfrentar.
Mas os baluartes culturais que acabamos de exami­
nar — a confusão do romance com o casamento, o en­
fraquecimento das suas funções econômicas e de seus
papéis sexuais rígidos, o processo de privatização, a ilu­
são de controle e de refúgio, todos os quais exploram os
medos do indivíduo moderno vivendo dentro de um meio

12. Mas o que realmente significa essa dicotomia do bom/mau?


Talvez, afinal, ela seja apenas uma distinção eufemística de
classes: sensíveis e educados, opostos aos ineducados, desprote­
gidos, esgotados e portanto indiferentes. Mas, embora mesmo uma
criança nascida de pais educados e da classe alta seja mais feliz
em todos os aspectos, e esteja capacitada a receber um bom
número de privilégios em virtude de sua classe, de seu nome,
e da propriedade, que ela está apta a herdar, a distribuição das
crianças é igual em todas as classes — se de fato as crianças
nascidas dos infortunados não excederem em número às outras
— desse modo reproduzindo a proporção idêntica da desigual­
dade original.

255
ambiente cada vez mais hostil — não são ainda a res-
posta completa ao porquê a instituição do casamento
continua a florescer. É pouco provável que esses pontos
negativos pudessem m anter sozinhos a unidade familiar
como um a instituição vital. Também seria fácil demais
atribuir a continuidade da estrutura familiar unicamente
a um reflexo. Revendo o casamento em relação às nossas
quatro exigências mínimas feministas, descobriremos, e
eu temo isto, que ele preenche (a seu modo m iserável)
pelo menos uma parte dessas exigências de um m odo
pelo menos igual ou m elhor do que o da m aior parte
das experiências sociais que discutimos.
1) A libertação das mulheres da tirania da repro­
dução e da função de educar as crianças mal é preenchi­
da. Contudo, as mulheres freqüentem ente têm atenuados
os seus trabalhos mais pesados através da classe das em­
pregadas — e, no casamento moderno, através da gine­
cologia moderna, do “planejamento familiar”, e da cres­
cente atribuição à escola, às creches diurnas, e outras
mais, da função de educação das crianças.
2 ) A pesar de geralmente não ser concedida a inde­
pendência financeira às mulheres e às crianças, existe um
substituto para ela: a segurança física.
3) As mulheres e as crianças, segregadas da socie­
dade como um todo, estão integradas dentro da unidade
familiar, único lugar onde ocorre esta integração. O fato
de a pequena interação existente entre os homens, as
mulheres e as crianças estar concentrada num a única
unidade social torna esta unidade tanto mais difícil de
ser abandonada.
4 ) Apesar de a família ser a fonte da repressão se­
xual, ela garante ao casal um suprimento sexual estável,
senão satisfatório, e supre os outros membros de rela­
ções “inibidas quanto ao alvo”, que, em muitos casos,
serão as únicas relações a longo prazo que esses indi­
víduos terão.
Assim, estas são vantagens práticas do casamento,
às quais as pessoas se apegam. Não se trata absoluta­
m ente de um a propaganda cultural. Num a escala de van­
tagens, o casamento — pelo menos na sua versão liberal

256
v.
desesperada — funciona tanto quanto a m aioria das alter­
nativas experimentais tentadas até aqui, e que, como vi­
mos, também preencheram algumas das exigências e não
outras, ou preencheram todas elas apenas parcialmente.
E o casamento tem som ada a vantagem de ser um a quan­
tidade conhecida.
E contudo o casamento, por sua própria definição,
nunca será capaz de preencher as necessidades de seu§
participantes, porque ele se organizou em torno de um a
condição biológica fundam entalm ente opressiva, que ele
refoiça, e que somente agora saberíamos corrigir. |E n-
quanto houver a instituição, subsistirão condições opres-
sivasjiasuquais. ela se baseia,. Precisamos começar a falar
de novas alternativas que satisfaçam, m elhor que o casa­
mento, as necessidades emocionais e psicológicas que ele,
arcaico como é, ainda satisfaz. M as qualquer proposta
em nossa escala feminista deve ser pelo menos melhor
que a do casamento, senão, apesar de todas as advertên­
cias, as pessoas continuarão presas a ele — n a esperança
de que ao menos essa vez, exatam ente conf"êlas, ò ca­
samento dará certo.

4. Alternativas

A armadilha clássica para apanhar qualquer revolu­


cionário é sempre a mesma: “Qual a alternativa que
você apresenta?” M as mesmo que você pudesse oferecer
um plano ao interrogador, isto não significa que ele o
usaria. N a maioria dos casos ele não é sincero quando
dem onstra querer saber. Na verdade, este é um ataque
comum, uma ténnira nara flesviar a ira revolucionária e
voltá-la contra si mesma. Além do mais, os oprimidos
não têm o 3ever de convencer todas_ as pessoas. Tudo
q que eles precisam saber é .a u e Q sistema atual os está.
ggrimjmda
Mas, apesar de ser necessário que qualquer direção
específica surja organicamente da própria ação revolucio­
nária, eu ainda me sinto tentada a lançar aqui algumas

257
propostas concretas “perigosamente utópicas” — não só
em solidariedade aos meus próprios dias pré-radicais,
quando a Linha Não-Responsável-Pelos-Projetos me dei­
xou perplexa, mas também porque estou ciente dos peri­
gos políticos decorrentes do fracasso peculiar da imagi­
nação em criar alternativas para a família. Existem, como
vimos, várias razões justificáveis para esse fracasso. Em
primeiro lugar, não há precedentes de um a revolução fe­
minista na História — rertamentp. hnnve mulheres reva-
lueionárias, mas foragi flSBÉB nelos homens revolucio-
Qjjjjjag, que raram ente sequer faziam protestos pela, igual­
dade das mulheres, muito menos por um a reestruturação
radical feminista da sociedade. Além do mais, não nos
foi dada sequer um a imagem literária dessa sociedade
futura; não existe nem mesmo um a literatura feminista
utópica. Em terceiro lugar, a natureza da unidade é tal
que ela penetra no indivíduo num nível mais profundo do
que qualquer outra organização social nossa: ela literal­
m ente o toca “no ponto certo” . Mostrei como a família
m olda a psique do indivíduo de acordo com sua estru­
tura — até que Analmente ele a imagina absoluta, so^n-
do-lhe a ~rèférência a qualquer outra alternativa c p o
um a perversão. Finalmente, a maioria das alternativas
insinua uma perda até do pouco calor emocional pro­
porcionado pela família, colocando o indivíduo em pâni­
co. Contudo, o modelo que eu vou traçar agora está su­
jeito às limitações de qualquer plano disposto num papel
por um único indivíduo. M antenham em mente que estas
não pretendem ser respostas finais, que na verdade o
leitor provavelmente poderá redigir um outro plano que
atenda tanto ou melhor do que o meu aos quatro impe­
rativos estruturais expostos anteriormente. As propostas
que se seguem são portanto um esboço, que pretende
estimular o pensamento a operar em áreas arejadas, em
vez de ditar a ação.
* * *

Qual seria a alternativa para 1984, se nos fosse pos­


sível realizar a tempo nossas próprias exigências?
A característica mais importante a ser m antida cm
qualquer revolução é a flexibilidade. Proporei, então, um
program a de opções múltiplas, algumas transitorias, outras
distantes no futuro, que existiriam simultaneamente, com­
binando-se umas às outras. Um a pessoa deve escolher
um “estilo de vida” por um período de um a década, e
preferir um outro estilo no período seguinte.
1) Profissões de Solteiro — Uma vida de solteiro,
organizada em torno das exigências de um a escolha pro­
fissional, em que as necessidades sociais e emocionais do
indivíduo sejam satisfeitas através da própria estrutura
ocupacional particular dessa profissão, poderá constituir
um a solução atraente para muitos indivíduos, especial­
mente no período de transição.
As profissões de solteiro praticam ente desaparece­
ram, apesar do incentivo à reprodução não ser mais um a
preocupação socialmente válida. Os papéis antigos de
solteiro, como a vida religiosa celibatária, os papéis cor­
tesãos — de bufão, músico, mensageiro, cavaleiro e es­
cudeiro real — os vaqueiros, marinheiros, bombeiros,
choferes de caminhão, detetives, pilotos, tinham um pres­
tígio todo próprio. Não havia nenhum estigma ligado ao
fato de ser profissionalmente solteiro. Infelizmente, estes
papéis raram ente foram franqueados às mulheres. A maio­
ria dos papéis femininos de solteiro (como tia solteiro­
na, freira, ou cortesã) eram ainda determinados por sua
natureza sexual.
Vários cientistas sociais estão hoje propondo como
solução para o problem a demográfico o incentivo de
“estilos de vida anormais” que por definição implicam
a não-fertilidade. Richard M eier sugere que as atraentes
profissões de solteiro, previamente atribuídas somente aos
homens, poderiam agora ser abertas às mulheres, como,
por exemplo, a de “astronauta”. Observa que quando
essas ocupações são entregues às mulheres, é porque elas
estão baseadas nos atrativos sexuais de um a moça, e con­
seqüentemente não podem ser consideradas senão como
estações intermediárias limitadas no caminho em direção
a um m elhor emprego ou ao casamento. E acrescenta,
“tantas são as limitações impostas [ao trabalho das mu-

259
lheres fora de ca sa]. . . que chegamos a suspeitar da exis­
tência de um a conspiração, na qual está envolvida toda
a cultura, no sentido de to m ar o papel profissional tão
desagradável que 90 por cento ou mais das mulheres pre­
ferirão os afazeres domésticos, por verem neles um a alter­
nativa melhor”. Através de um a ampliação de seja quais
forem os papéis de solteiro ainda existentes em nossa
cultura de m odo a incluir as mulheres, através da cria­
ção de uma quantidade maior destes papéis, e de um
program a de incentivos que tom e estas profissões com­
pensadoras, poderíamos, sem muito esforço, reduzir o
número de pessoas interessadas pela paternidade ou pela
maternidade.
2) “Morar Junto” — Inicialmente praticado exclu­
sivamente entre os círculos boêmios ou intelectuais, e
agora cada vez mais pela população em geral — especial­
m ente pela juventude das metrópoles — “m orar junto”
está se tornando um a prática social comum. “M orar jun­
to” é a forma social maleável n a qual duas ou mais pes­
soas, de qualquer sexo, entram num acordo não-lega-
lizado de convivência baseada no sexo e /o u companhei­
rismo, e cuja duração varia conforme a dinâmica interna
do relacionamento. O contrato é feito somente entre essas
pessoas; a sociedade não interessa, já que nem a repro­
dução, nem a produção — dependência de um a parte sobre
a outra — estão implicadas nele. E sta não-form a bas­
tante flexível poderia ser expandida até se tornar a uni­
dade padrão, que seria adotada pela maioria das pessoas,
durante a maior parte de suas vidas.
Inicialmente, no período de transição, as relações
sexuais seriam provavelmente monogâmicas (dessa vez no
estilo feminino single standard),* mesmo que o casal deci­
disse viver com outras pessoas. Poderíam os até ter a con­
tinuação dos acordos de m oradia entre grupos de cará­
ter estritamente não-sexual (“companheiros de quarto” ).
Contudo, depois de várias gerações de um m odo de vida
não-em-família, nossas estruturas psicossexuais poderiam
* Expressão usada para indicar os direitos atribuídos socialmente às mu­
lheres, em comparação aos direitos muito maiores atribuídos aos homens
(double standard). (N.T.)

260
se transform ar de um modo tão radical que o casal mono-
gâmico, ou os relacionamentos “inibidos quanto ao alvo”
se tornariam obsoletos. Só nos é possível tentar adivinhar
que tipo de relação poderia substituir estas — talvez “gru­
pos m atrimoniais” verdadeiros, casamentos entre grupos
transexuais que também envolveriam as crianças mais ve­
lhas? Não sabemos.
As duas opções que sugerimos até agora — as pro­
fissões de solteiro e o “m orar junto” — já existem, mas
somente fora do padrão geral de nossa sociedade, ou
durante breves períodos na vida do indivíduo normal. Pre­
cisamos ampliar essas opções de m odo a incluir nelas um
número muito maior de pessoas e durante períodos maio­
res de suas vidas, e de m odo a transferir para essa nova
opção todos os incentivos culturais que sustentam o casa­
mento atualmente — tornando finalmente estas alterna­
tivas tão comuns e aceitas quanto o casamento é hoje.
Mas, e as crianças? Não é verdade que todo m undo
deseja ter filhos ao menos um a vez na vida? Não se pode
negar que as pessoas hoje sintam um desejo autêntico
de ter filhos. M as não sabemos até que ponto isto é
o produto de um a afeição autêntica pelas crianças, e até
que ponto representa um deslocamento de outras neces­
sidades. Vimos que as necessidades parentais só são pos­
síveis de serem satisfeitas através do aleijamento do filho.
A tentativa de criar um a extensão do ego através dos
filhos — no caso do homem, significando a “imortaliza-
ção” do nome, da propriedade, da classe, e da identifi­
cação étnica, e no caso da mulher, significando a m ater­
nidade como a razão de ser de sua existência, e a conse­
qüente tentativa de viver através do filho, de ter o filho-
como-um-projeto — acaba prejudicando ou destruindo
conforme seja o caso ou a criança, ou o pai, ou ambos
no caso de nenhum deles vencer.
Talvez quando a paternidade for despida dessas
outras funções seja descoberto um instinto verdadeiro de
paternidade, até mesmo da parte dos homens, nada mais
do que um simples desejo físico de associar-se aos novos.
M as se isso acontecer, nós não teremos perdido nada,
já que um a das exigências básicas de nosso sistema alter­

261
nativo é a existência de alguma form a de interação íntima
com as crianças. Se existe de fato um instinto de pater­
nidade, ele poderá atuar até mais livremente, quando se
desligar das responsabilidades práticas da paternidade, que
a tornam hoje um inferno agoniante.
Mas, e se, ao contrário, descobrirmos que não existe
afinal um instinto de paternidade? Talvez todo esse tempo
a sociedade tenha persuadido os indivíduos a terem fi­
lhos, através do deslocamento para a paternidade de inte­
resses do ego que não encontram um a saída adequada.
Isto pode ter sido impossível de evitar no passado —
mas talvez agora seja o momento de começarmos a satisfa­
zer de um m odo mais direto essas necessidades do ego.
E nquanto a reprodução natural for ainda necessária, pode­
remos planejar incentivos culturais menos destrutivos. M as
é provável que, um a vez eliminados os investimentos do
ego na paternidade, a reprodução artificial seja desenvol­
vida e amplamente aceita.
3) Households* — Descreverei agora, em linhas
gerais, um sistema que, acredito, satisfará quaisquer ne­
cessidades remanescentes de ter filhos, depois que os inte­
resses do ego deixarem de fazer parte de nossas motiva­
ções. Suponhamos que um a pessoa ou um determinado
casal deseje, a certa altura da vida, viver ao redor de
crianças, num a unidade tipo família. Em bora a reprodu­
ção não mais represente o objetivo vital do indivíduo nor­
mal — vimos como os estilos de vida não-reprodutivos
adotados por um a pessoa solteira ou por um grupo podem
ser ampliados de modo a se tornarem satisfatórios para
muitas pessoas, seja durante toda a vida, ou apenas du­
rante um bom período dela — algumas pessoas podem
ainda preferir o grupo estilo-comunidade de duração per­
manente, e outras podem querer experimentá-lo durante
algum momento de suas vidas, especialmente no começo
da infância.

* Optei aqui por conservar o termo em inglês, porque as palavras que


poderiam traduzi-lo, como lar e comunidade, já trazem em nossa língua
uma carga cultural que alteraria o sentido do original. O termo se refere
a um tipo de estrutura substitutivo à família, proposto pela autora.
(N.T.)

262
Assim, em qualquer momento, um a parte da popu­
lação desejará viver dentro de estruturas sociais reprodu­
tivas. Analogamente, a sociedade em geral ainda neces­
sitará da reprodução, em bora menos do que antes, e mes­
mo que só para criar uma geração nova.
E sta proporção da população será autom aticam ente
constituída por um grupo selecionado, com um mais alto
grau de estabilidade, porque ela terá tido liberdade de es­
colha que hoje é, em geral, inviável. Hoje, aqueles que
não se casam, ou que não têm filhos até um a certa idade
são punidos por isto. Sentem-se sozinhos, excluídos e mise­
ráveis, à margem de um a sociedade na qual todos além
deles se encontram compartimentalizados em famílias ba­
seadas na continuidade geracional, no chauvinismo e no
exclusivismo, suas características principais. (E m Nova
Iorque, o único lugar em que a vida de solteiro chega a ser
apenas tolerável é M anhattan, e mesmo isso pode ser dis­
cutido.) A maioria das pessoas ainda é compelida ao ca­
samento pela pressão da família, pelo “casam ento-relám ­
pago”, pelas considerações econômicas, e por outras ra­
zões que nada têm a ver com a escolha de um estilo de
vida. Contudo, em nossa nova unidade reprodutora de
contrato limitado (ver adiante), onde a educação das
crianças estará espalhada a ponto de ser praticam ente eli­
minada, onde não haverá considerações econômicas, onde
o ingresso de todos os membros participantes será feito
com bases exclusivamente na preferência pessoal, nessa
unidade desaparecerão as estruturas sociais reprodutoras
“instáveis”.
A essa unidade devo cham ar de household, em vez
de família ampliada. A distinção é importante. A palavra
família implica reprodução biológica e em algum grau
de divisão do trabalho em função do sexo, conseqüente­
mente nas dependências tradicionais e nas relações de
poder decorrentes, prorrogadas durante gerações. Em bo­
ra o tam anho da família — nesse caso, o núm ero maior
da família “am pliada” — possa afetar a força dessa hie­
rarquia, ele não altera sua definição estrutural. Contudo,
o household significa apenas um vasto agrupamento de
pessoas que vivem juntas por um tempo e numa série de

263
relações interpessoais não especificados. Como funcionaria
um household!
Contrato Limitado. Se o Household substituísse o
casamento, talvez inicialmente ele seria legalizado do mes­
mo modo — se isto fosse absolutamente necessário. Um
grupo de mais ou menos dez adultos de idades variadas13
poderia requerer uma licença de grupo, do mesmo
modo que hoje um casal jovem requer uma licença para
casar, talvez até se submetendo a alguma form a de ce­
rimônia ritual, e então procedendo da mesma form a para
m ontar casa. A licença do household valeria, contudo,
somente por um período determinado, talvez de sete a dez
anos, ou por qualquer que fosse o tempo decidido como
sendo o tempo mínimo durante o qual as crianças ne­
cessitam de uma estrutura estável para crescer — mas
provavelmente este período seria muito mais curto do que
agora imaginamos. Se no fim deste período o grupo de­
cidisse continuar junto, ele poderia sempre obter um a re­
novação do contrato. Contudo, nenhum indivíduo estaria
comprometido a continuar depois deste período; talvez
alguns membros da unidade pudessem sair, ou membros
novos pudessem entrar. Ou então a unidade poderia de­
bandar completamente.
Existem várias vantagens nos households a curto pra­
zo, unidades composicionais estáveis, durando apenas por
períodos de dez anos: o fim do chauvinismo da família,
firmado durante gerações, e dos preconceitos passados de
uma geração para outra; a inclusão de pessoas de todas
as idades no processo de educação das crianças; a inte­
gração de grupos de várias idades num a única unidade
social; a amplitude da personalidade decorrente da sua
exposição frente a muitas, em vez de a (idiossincrasia de)
poucas pessoas, e assim por diante.
Crianças. Uma percentagem regular de cada hou­
sehold — digamos um terço — seria constituída de crian­

13. Uma vantagem adicional do household é que ele possibilita


que as pessoas mais velhas, que já passaram dos seus anos de
fertilidade, possam participar plenamente na paternidade quando
o quiserem.

264
ças. Mas não im porta se, inicialmente, elas seriam os
filhos genéticos criados pelos casais dentro do household,
ou se, nalgum futuro — depois de algumas gerações de
vida em household terem cortado as ligações especiais dos
adultos com “seus” filhos — elas seriam produzidas arti­
ficialmente, ou seriam adotadas. A responsabilidade (m í­
nim a) pela dependência física inicial das crianças esta­
ria igualmente distribuída entre todos os membros do
household.
Mas, embora ele possa ser estruturalm ente sólido,
devemos nos dar conta de que enquanto usarmos métodos
de parto natural, o household nunca poderá ser um a forma
social totalmente liberadora. Uma mulher que suporta
uma gravidez de nove meses provavelmente sentirá que o
produto de todo aquele sofrimento e desconforto “perten­
ce” a ela ( “E pensar no que eu sofri para ter você!” )
Mas precisamos destruir essa possessividade, junto com
seus reforços culturais, de modo que nem um só filho
seja favorecido a priori sobre outro, de modo que os filhos
sejam amados pelo que eles são.
Mas, e se existir um instinto de gravidez? Eu du­
vido. Uma vez abandonadas as superestruturas culturais,
pode ser que descubramos um instinto sexual, cujas con­
seqüências normais levam à gravidez. E talvez haja tam ­
bém um instinto de proteção às crianças, logo que elas
venham. Mas, um instinto de gravidez em si seria supér­
fluo — poderia a natureza prever o controle da repro­
dução pelo homem? E se, quando tivessem sido abandona­
das as falsas motivações da gravidez, as mulheres não
quisessem mais “ter” filhos de modo algum? Isto não seria
um desastre, dado que a reprodução artificialmente ainda
não está aperfeiçoada? M as as mulheres não têm um a
obrigação especial de reproduzir a espécie. Se elas não
quiserem mais reproduzir, então terão que ser desenvol­
vidos apressadamente métodos artificiais de reprodução,
ou, ao menos, terão que ser fornecidas compensações sa­
tisfatórias — que não sejam investimentos destrutivos do
ego — que valham a pena para a mulher.
Os adultos e as crianças mais velhas tom arão conta
dos bebês enquanto eles necessitarem disso. Mas, já que

265
haverá muitos adultos e crianças mais velhas dividindo
as responsabilidades — do mesmo modo que na família
ampliada — nenhuma pessoa jamais ficará involuntaria­
mente presa por isso.
As relações adulto/criança se desenvolverão exata­
mente como as melhores relações de hoje. Alguns adul­
tos poderão preferir certas crianças a outras, assim como
algumas crianças poderão preferir certos adultos a outros.
Estas poderiam se tornar ligações para toda a vida, con­
cordando os indivíduos envolvidos em perm anecer juntos,
talvez para form ar algum tipo de unidade não-reprodu-
tora. Assim, todas as relações seriam baseadas exclusiva­
mente 110 amor, sem serem corrompidas por dependên­
cias objetivas, nem pelas conseqüentes desigualdades de
classe. As relações duradouras entre pessoas de idades
bastante diferentes se tornariam comuns.
Direitos Legais e Transferências. Com 0 enfraqueci­
mento e o rompimento dos laços de parentesco, a hierar­
quia de poder da família seria destruída. A estrutura legal
— enquanto ela fosse ainda necessária — refletiria essa
democracia na raiz de nossa sociedade. As mulheres se­
riam iguais aos homens diante da Lei. As crianças não
seriam mais “menores” sob a proteção dos pais — teriam
plenos direitos. As desigualdades físicas que permaneces­
sem poderiam ser compensadas legalmente. P or exemplo:
se uma criança fosse espancada, talvez ela pudesse noti­
ficar isso a um tribunal especial e simplificado de house­
hold, onde poderia obter imediatamente compensações
legais.
Outro direito especial concedido às crianças seria o
direito de transferência imediata. Se a criança, por qual­
quer motivo, não gostasse do household onde tinha nas­
cido de um modo tão arbitrário, poderia ser ajudada a
se transferir dele. Por outro lado, um adulto — que ti­
vesse vivido um pequeno período num household (sete
a dez anos) — teria que apresentar suas alegações ao
tribunal, que decidiria, como fazem hoje os tribunais de
divórcio, se ele tinha motivos justos para anular seu con­
trato. Um certo número de transferências, dentro do pe­
ríodo estabelecido de sete anos, poderia ser necessário

266
ao bom funcionamento do household c não seria preju­
dicial à sua estabilidade como unidade, desde que fosse
mantido um núcleo. (De fato, a entrada, de vez em
quando, de pessoas novas poderia trazer mudanças revi-
talizantes.) Contudo, a unidade, em função de um melhor
rendimento, poderia ter que estabelecer um teto de trans­
ferências, relativo ao número de entradas e saídas, para
evitar o esgotamento, o crescimento excessivo e /o u os
atritos.
Afazeres. No que tange aos serviços domésticos, este
grupo (provavelmente cerca de quinze pessoas), de ta­
manho m aior que a família padrão, seria mais prático.
Seriam eliminados o desgaste e a repetição que caracte­
rizam os afazeres domésticos na unidade-a-dois da famí­
lia nuclear, p.ex., fazer compras e cozinhar para uma
família pequena, sem a perda de intimidade que ocorre
na experiência com comunidades maiores. Provisoriam en­
te, qualquer serviço doméstico teria que ser feito em
rodízio; a cibernetização porém, finalmente, autom atiza­
ria quase todos os afazeres domésticos.
Planejamento da Cidade. O planejamento da cidade,
a arquitetura, a mobília, todos seriam alterados de modo
a refletir a nova estrutura social. A tendência para as
moradias feitas-em-série provavelmente continuaria, mas
a habitação teria que ser desenhada e até construída (tal­
vez com elementos pré-fabricados) por pessoas que mo­
rassem nelas, de modo a atender às suas próprias neces­
sidades e gostos. A privacidade poderia ser construída no
interior: ou através de cômodos privados em cada house­
hold, ou através de “retiros” dentro da cidade, a serem
compartilhados por pessoas de vários houséholds, ou am­
bos. O conjunto todo poderia ter o tam anho de uma ci­
dade pequena, ou de um campus extenso. Talvez um
campus seja a melhor imagem. Poderíamos ter pequenas
unidades de habitações autogestantes — as partes pré-
fabricadas podendo ser m ontadas ou desmontadas fácil
e rapidam ente de modo a atender às necessidades do
contrato limitado — bem como edifícios centrais perm a­
nentes que atendessem às necessidades da comunidade
como um todo, ¡.e., talvez o equivalente de uma “união

267
de estudantes” pela socialização, e restaurantes, uma
grande agência de computadores, um centro moderno de
comunicações, uma livraria e um centro de cinema com-
putalizados, “centros de instrução” dedicados a vários
interesses específicos, e tudo o mais que pudfesse ser ne­
cessário numa comunidade cibernética.
A Economia. O fim da estrutura familiar exigiria o
surgimento de mudanças simultâneas na economia. Não
só a reprodução, mas também a produção seria qualita­
tivamente diferente. Assim como tivemos que purificar
as relações com as crianças de todas as considerações
externas, teremos inicialmente que ter, para obter pleno
êxito em nossos objetivos, o socialismo de um estado
industrial cibernético, visando não só à redistribuição
eqüitativa do trabalho pesado, como também eliminá-lo,
enfim, completamente. Com o desenvolvimento posterior
e o uso inteligente das máquinas, as pessoas poderão ser
libertas do trabalho pesado, sendo o “trabalho” desvin­
culado dos salários e redefinido. Então tanto os adultos
quanto as crianças poderiam entregar-se a um “diverti­
m ento” sério tanto quanto quisessem.
No período de transição, enquanto ainda tivermos
uma economia baseada no dinheiro, as pessoas deverão
receber uma renda anual garantida pelo estado para cui­
dar das necessidades físicas básicas. Esses rendimentos,
distribuídos equitativamente entre homens, mulheres e
crianças, independente da idade, função, prestígio e nas­
cimento, por si só uniformizariam, de uma só vez, o sis­
tema de classes econômicas.
Atividade. O que as pessoas fariam dentro dessa
utopia? Acho que isso não será um problema. Se tiver­
mos realmente eliminado todos os trabalhos enfadonhos,
as pessoas terão tempo e energia para desenvolver inte­
resses sadios. O que hoje só acontece dentro de uma
elite, a busca de interesses específicos por si mesmos,
provavelmente se tornaria a norma.
No que tange às nossas instituições educacionais: a
inadequação do sistema de escolas públicas praticamente
garantirá a sua destruição num futuro próximo. Talvez
pudéssemos substituí-lo por “centros de instrução” não
obrigatória, que combinariam as funções atuais das insti­
tuições educacionais de nível mais baixo, ou seja, o ensi­
no de habilidades rudimentares, com as das de nível mais
alto, a ampliação do conhecimento, e que incluiriam pes­
soas de qualquer idade ou nível, crianças e adultos.
Sim, e as habilidades básicas? Como, por exemplo,
uma criança sem nenhum treino continuado formal po­
deria ser admitida num currículo superior como a arqui­
tetura? Mas, a aprendizagem tradicional a partir de livros,
a memorização de fatos, que constitui a parte mais subs­
tancial do currículo de nossas escolas elementares, seriam
alteradas radicalmente sob o impacto da cibernetização —
o que constituiria uma diferença qualitativa, uma mudan­
ça no aparato cultural ao menos tão significativa quanto
foi a imprensa, e até tão importante quanto o alfabeto.
M cLuhan chamou a atenção para o início de uma inver­
são caracterizada pelo uso de meios visuais, em lugar de
meios literários no processo de absorção de conhecimen­
tos. Podemos esperar o aumento dessa e de outras con­
seqüências no desenvolvimento dos media modernos vi­
sando a rápida transmissão de informação. E até a quan­
tidade necessária de conhecimentos automatizados tanto
para as crianças quanto para os adultos será imensamente
reduzida, já que deveremos dispor de agências de compu­
tadores de fácil acesso. Afinal, para que armazenar fatos
na cabeça, se as agências de computadores poderão for­
necer informações mais sutis e mais amplas instantanea­
mente? (Hoje em dia as crianças já se perguntam porque
devem aprender tabuadas de multiplicação, em vez de
aprenderem a operar uma máquina de som ar.) Qualquer
armazenamento mental de fatos ainda necessário poderá
ser prontam ente realizado por novos meios mecânicos,
máquinas de ensinar, discos e fitas magnéticas, e assim
por diante, os quais, quando se tornarem facilmente aces­
síveis, permitirão a extinção do ensino obrigatório de h a­
bilidades básicas. Como estudantes estrangeiros em busca
de uma profissão especializada, a criança pode aprender,
nas horas vagas, qualquer “linguagem” básica necessária,
através desses métodos suplementares de máquinas. Mas
é mais provável que as habilidades e os conhecimentos

269
fundamentais necessários sejam os mesmos para os adul­
tos e para as crianças: a habilidade de operar máquinas
novas. Program ar especializações pode se tornar uma
coisa universalmente requerida, mas em vez de ser feito
através de anos de escolarização, isso teria que ser apren­
dido (rapidam ente) somente em conjunção com as exi­
gências de dom inar um a disciplina específica.
No que tange à “indecisão profissional” : hoje, as
pessoas cujo hobby inicial da infância sobreviveu intacto
até tornar-se sua “profissão” adulta, lhe dirão, na maio­
ria das vezes, que desenvolveram seu interesse nisso antes
dos nove anos.14 Enquanto ainda houvesse especializações
profissionais, elas poderiam ser trocadas com a mesma
freqüência com que os adultos trocam títulos ou profis­
sões hoje em dia. M as se a escolha profissional não se
apoiasse em motivos sobrepostos, e sim em motivos ba­
seados exclusivamente no interesse pela própria matéria,
provavelmente haveria muito menos mudanças no-meio-
do-caminho. A incapacidade de desenvolver interesses só­
lidos é hoje na maioria das vezes o resultado da corrup­
ção da cultura e de suas instituições.
Assim, nossa concepção de trabalho e de educação
estaria mais próxima do aprendizado direto de um a dis­
ciplina, característico da Idade Média, do qual partici­
pavam pessoas de todas as idades e em todos os níveis.
Como nas universidades de hoje, a dinâmica interna das
várias disciplinas criaria sua própria organização social,
fornecendo os meios de contatar com outras pessoas de
interesses iguais, e de partilhar das atividades intelectuais
e estéticas acessíveis então só a uns poucos escolhidos, a
intelligentsia. O tipo de meio-ambiente social hoje só
encontrado nos melhores departamentos das melhores uni­
versidades poderia tornar-se o estilo de vida das massas,
que estariam livres para desenvolver seu potencial desde
o início. Enquanto que hoje só os felizardos ou os perse­
verantes chegam (geralm ente só aparentam ) a “fazer suas

14. Se hoje fosse dada às crianças uma idéia realista das pro­
fissões disponíveis — não exatamente bombeiro/enfermeira —
elas poderiam chegar a um interesse especial até mais cedo.

270
coisas” , então todos teriam a oportunidade de desenvol­
ver seu potencial ao máximo.
Ou de não desenvolvê-lo, se assim o quisessem —
mas isso seria pouco provável, já que toda criança desde
o início m ostra curiosidade pelas pessoas, pelas coisas,
pelo m undo em geral e pelo que o faz girar. É somente
porque a realidade desagradável atrofia a sua curiosidade
que a criança aprende a reduzir seus interesses, tornan­
do-se então o afável adulto médio. M as, se pudéssemos
remover esses obstáculos, então todas as pessoas se de­
senvolveriam tão completamente quanto só as classes
mais ricas e uns poucos “gênios” isolados foram capa­
zes de se desenvolver. C ada pessoa contribuiria para a
sociedade como um todo, não em função de salários ou
outros incentivos de prestígio e poder, mas porque o tra­
balho que ela escolheu fazer lhe interessa em si mesmo,
e também, mas talvez só incidentalmente, porque esse tra­
balho tenha um valor social para outros (tão saudavel­
mente egoísta quanto só a arte o é hoje). O trabalho que
só tivesse um valor social e não um valor pessoal teria
sido eliminado pela máquina.
* * *

Assim, no amplo contexto de um socialismo ciber­


nético, o estabelecimento do household como a alterna­
tiva para a família, no plano da reprodução das crianças,
combinado com todos os estilos de vida imagináveis para
aqueles que decidam viver sós ou em unidades não-re-
produtoras, resolveria todos os dilemas básicos que hoje
se originam da família, impedindo a felicidade humana.
Examinemos nossas quatro exigências mínimas para ver
como nossa construção imaginária aconteceria.
1) A libertação das mulheres da tirania de sua bio­
logia, através de todos os meios disponíveis, e a distri­
buição do papel de nutrição e educação das crianças entre
a sociedade como um todo, tanto entre os homens, quan­
to entre as mulheres. Isto foi corrigido. A nutrição das
crianças poderia ser assumida pela tecnologia, e se isso
se mostrasse excessivamente contra a nossa tradição pas­

271
sada, e a nossa estrutura psíquica (o que certamente
ocorreria de início), então teriam que ser desenvolvidos
incentivos e compensações adequados — outros que não
as gratificações do ego em possuir um filho — para re­
compensar as mulheres por sua contribuição social espe­
cífica: a gravidez e o parto. A maior parte da educação
das crianças, como vimos, tem a ver com a manutenção
de relações de poder, a internalização forçada das tradi­
ções familiares, e muitos outros interesses do ego que
lutam contra a felicidade da criança. Esse processo re­
pressivo de socialização seria desnecessário num a socie­
dade na qual os interesses do indivíduo coincidissem com
os da sociedade em geral. Q ualquer responsabilidade res­
tante pela educação das crianças seria espalhada de modo
a incluir igualmente tanto os homens e as outras crian­
ças, quanto as mulheres. Além disso, os novos métodos
de comunicação imediata diminuiriam os nexos de de­
pendência da criança até com essa unidade prim ária
igualitária.
2) A independência econômica e a autodetermina­
ção de todos. Sob o socialismo, ainda que numa econo­
mia de mercado, o trabalho estaria dissociado dos salá­
rios, a propriedade dos meios de produção estaria nas
mãos de todos, e as riquezas seriam distribuídas com base
nas necessidades, independentemente do valor social da
contribuição do indivíduo para a sociedade. Visaríamos
eliminar a dependência das mulheres e das crianças do
trabalho dos homens, assim como todos os outros tipos
de exploração do trabalho. Cada pessoa poderia escolher
seu estilo de vida à vontade, mudando-o de modo a sa­
tisfazer seus gostos, sem com isso incomodar seriamente
qualquer outra pessoa. Ninguém estaria preso a nenhuma
estrutura social contra a vontade, já que cada pessoa
seria totalmente independente, logo que fosse fisicamente
capaz.
3) A total integração das mulheres e das crianças
na sociedade em geral. Isto foi cumprido. O conceito de
infância foi abolido, tendo as crianças plenos direitos le­
gais, sexuais e econômicos, e não sendo suas atividades
educacionais e de trabalho diferentes das dos adultos.

272

v
Durante os poucos anos de sua infAncili, subsliliiíinm u
“paternidade” genética psicologicamente dcstrutlvn dr um
ou dois adultos arbitrários pela difusão da icspnnsnlilll
dade pela saúde física entre um núm ero muior do peí
soas. A criança ainda continuará estabelecendo re in a r*
de amor íntimas, mas em vez de fortalecer laços estratos
com um a “m ãe” e um “pai” legais ela poderá criar csses
laços com pessoas de sua própria escolha, de qualquer
idade ou sexo. Assim, todas as relações entre adultos e
crianças serão escolhidas m utuamente — relações sem
desníveis, íntimas e livres de dependências materiais. A na­
logamente, embora haja menos crianças, elas não serão
monopolizadas, e sim participarão livremente de toda a
sociedade, em benefício de todos, satisfazendo assim o de­
sejo legítimo de estar junto com os jovens, em geral cha­
mado de “instinto” reprodutor.
4) Liberdade sexual, amor, etc. Por enquanto não
falamos muito sobre o amor, nem sobre a liberdade se­
xual, porque não há razão para isso ser um problem a:
não haverá nada os impedindo. Com uma licença total,
as relações humanas finalmente seriam redefinidas para
melhor. Se uma criança não conhece a própria mãe, ou
pelo menos não atribui a ela um valor especial em rela­
ção às outras pessoas, é pouco provável que ela a escolha
como seu primeiro objeto de am or apenas para depois
ter que desenvolver inibições em relação a esse amor.
É possível que a criança estabeleça suas primeiras rela­
ções físicas íntimas com pessoas de seu próprio tamanho,
por mera conveniência física, exatamente como os ho­
mens e as mulheres podem preferir um ao outro em vez
de pessoas do mesmo sexo, por mera conveniência física.
Mas, se ao contrário ela escolhesse se relacionar sexual­
mente com os adultos, mesmo que isso se desse com a
sua própria mãe genética, não haveria razões a priori
para ela rejeitar seus avanços sexuais, uma vez que o
tabu do incesto teria perdido valor. O household, forma
social transitória, não estaria sujeito aos perigos da
endogamia.
Assim, sem o tabu do incesto, os adultos poderiam
voltar, dentro de poucas gerações, a uma sexualidade

273
mais natural “polimorfamente pervertida” , a concentra­
ção na sexualidade genital e no prazer orgásmico dando
lugar a relações físicas/emocionais totais que os incluís­
sem. As relações com as crianças incluiriam o grau de se­
xualidade genital que as crianças fossem capazes de ter —
provavelmente bem mais do que nós imaginamos hoje
— mas pelo fato de a sexualidade não ser mais o foco
dos relacionamentos, a ausência de orgasmo não consti­
tuiria um problema sério. Os tabus referentes à sexuali­
dade entre adultos/crianças e à homossexualidade desa­
pareceriam, tanto quanto as amizades não-sexuais (o amor
“inibido quanto ao alvo” , de F reud). Todas as relações
íntimas incluiriam o relacionamento físico, desaparecen­
do de nossa estrutura psíquica o conceito de relações fí­
sicas exclusivas (m onogam ia), bem como a imagem de
um Parceiro Ideal. Mas permanecem em conjuntura o
tempo que levaria para essas mudanças acontecerem e
as formas que elas tomariam. Os casos específicos não
nos interessam aqui. Necessitamos apenas estabelecer as
precondições para uma sexualidade livre. As formas que
ela assumirá representariam seguramente um progresso
dentro do que temos agora, “natural” no seu sentido mais
autêntico.
Na fase de transição, a sexualidade genital adulta
e a exclusividade dos casais poderão ter que ser m anti­
das dentro do household, para que a unidade possa fun­
cionar tranqüilamente, com um mínimo da tensão interna
gerada pelos atritos sexuais. É irreal querer impor teorias
sobre o que se deveria passar numa psique já fundam en­
talmente organizada em torno de necessidades emocio­
nais específicas. E é por isso que as tentativas individuais
para eliminar a possessividade sexual são hoje sempre
inautênticas. Faríam os muito melhor em nos concentrar
na mudança das estruturas sociais que produziram essa
organização física, o que permitiria finalmente — senão
na nossa época — a reestruturação (ou devo dizer deses-
truturação) fundamental de nossa psicossexualidade.
Acima, redigi apenas um plano muito grosseiro, com
vista a tornar mais clara a direção geral de uma revolu­
ção feminista. A produção e a reprodução das espécies

274
seriam simultaneamente reorganizadas de um modo não-
repressivo. O parentesco das crianças com uma unidade
que se dispersaria ou se recom poria tão cedo as crianças
fossem fisicamente capazes de ser independentes, e que
seria destinada a atender às necessidades imediatas, cm
vez de transm itir poderes e privilégios (a base do patriar­
cado é a herança da propriedade adquirida através do
trabalho), eliminaria a psicologia do poder, a repressão
sexual e a sublimação cultural. O chauvinismo da famí­
lia, o privilégio de classe baseado no nascimento, seria
eliminado. Os laços de parentesco da mãe para com o
filho seriam finalmente rompidos — se de fato existe
uma inveja do parto “criativo” no homem, breve tere­
mos meios de criar a vida independentemente do sexo —
de modo a que a gravidez, hoje abertamente reconhecida
como deselegante, ineficiente e dolorosa, seria considera­
da apenas um arcaísmo fútil, exatamente como as mulhe­
res hoje vestem o branco virginal em suas núpcias. Um
socialismo cibernético eliminaria as classes econômicas,
e todas as formas de exploração do trabalho, pela con­
cessão a todas as pessoas de um a subsistência baseada
apenas em necessidades materiais. Finalmente, os traba­
lhos pesados (empregos) seriam eliminados em favor da
diversão (com plexa), atividade feita por seu próprio va­
lor, tanto para os adultos, quanto para as crianças.
A revolta contra a família poderia acarretar a pri­
meira revolução bem sucedida, ou o que era tido pelos
antigos como a Idade Messiânica. A dupla maldição lan­
çada contra a hum anidade quando ela comeu a Maçã
do Conhecimento (o conhecimento crescente das leis do
meio-ambiente indo gerar a civilização repressiva), de
que o homem teria que trabalhar com o suor do seu rosto
para viver, e de que a m ulher suportaria dores e o tra­
balho do parto pode ser agora desfeita, mediante as rea­
lizações do homem no trabalho. Agora temos conheci­
mento para criar de novo um Paraíso na Terra. A alter­
nativa para isso é o nosso próprio suicídio através desse
conhecimento, a criação de um Inferno na Terra, seguido
do perdão.

275

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