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Friedrich Engels
ÍNDICE
I. A D IA L ÉT IC A DO SEXO 11
VI. O A M O R 147
CONCLUSÃO: A REVOLUÇÃO
D EFIN IT IV A 233
I. A DIALÉTICA DO SEXO
11
As primeiras mulheres estão conseguindo escapar
ao massacre, e, inseguras e vacilantes, começam a des
cobrir-se umas às outras. Seu primeiro passo é um a obser
vação cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma
consciência partida. Isto é penoso. Não im porta quantos
níveis de consciência sejam atingidos, o problem a sempre
se aprofunda. Ele se acha em todo lugar. A divisão Yin
e Yang penetra toda a cultura, a história, a economia, e
a própria natureza; as versões ocidentais modernas da
discriminação sexual integram apenas o substrato mais
superficial e recente. Intensificar assim nossa sensibili
dade em relação ao sexismo traz problemas muito piores
do que os que a nova consciência do racismo trouxe
para os militares negros. As feministas têm que questionar
não só toda a cultura ocidental, como a própria organiza
ção da cultura, e, mais; até a própria organização da na
tureza. M uitas mulheres desistem, desesperadas. Se é ne
cessário ir tão longe, elas preferem desconhecer o assunto.
Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento,
sua dolorosa sensibilidade em relação à opressão da mu
lher existe com um único propósito: eliminá-la finalmente.
Contudo, antes que possamos agir para m udar a si
tuação, precisamos saber como ela suraiu e evoluiu, e atra
vés de que instituições ela opera hoje. Citando Engels:
“ [Devemos] examinar a sucessão dos fatos, a partir dos
quais o antagonismo brotou, de m odo a descobrir, nas
condições assim criadas, os meios de pôr fim ao conflito.”
P ara a revolução feminista, precisamos de um a análise
da dinâmica da guerra dos sexos tão completa quanto
para a revolução econômica foi a análise de M arx e
Engels sobre o antagonismo das classes. Mais completa
ainda, Porque lidamos com um problem a mais amplo, com
um a opressão que remonta além da história escrita, até
o próprio reino animal.
Ao criar esta análise, podemos recorrer ao método
analítico de M arx e Engels, mas não a suas opiniões sobre
as mulheres — eles não sabiam quase nada sobre a con
dição dàs mulheres enquanto classe oprimida, reconhe
cendo-a somente quando issò coin&diá com â econòirtiá.
12 '
M arx e Engels superaram seus precursores socialis-
( tas, porque desenvolveram um m étodo de análise ao mes
mo tempo dialética e materialista. Os primeiros a com
preender a História dialeticamente, viram o m undo como
um processo, como um fluxo natural de ação e reação,
j de elementos opostos, porém inseparáveis e interpene
trantes. Por terem sido capazes de perceber a História
mais como um filme do que como fotos instantâneas,
tentaram evitar cair na visão “metafísica” estagnada, que
aprisionou tantas outras grandes mentes. Àté mesmo este
tipo de análise pode ser um produto da divisão sexual,
como discutiremos no Capítulo 9. Combinaram esta vi
são da interação dinâmica das forças históricas com uma
visão materialista, i.e., tentaram pela primeira vez dar
uma base real à m udança histórica e cultural, traçar o
desenvolvimento das classes econômicas, a partir de cau
sas orgânicas. Compreendendo integralmente os meca
nismos da História, esperavam m ostrar ao homem como
dominá-la.
Os pensadores socialistas anteriores a M arx e Engels,
como Fourier, Owen e Bebei, não foram capazes de fazer
mais do que interpretar m oralmente as desigualdades so
ciais existentes, postulando um mundo ideal, onde os pri
vilégios de classe e a exploração não deveriam existir, sim
plesmente graças à boa vontade, do mesmo modo como as
primeiras pensadoras feministas postularam um mundo
onde o privilégio do homem e a exploração não deveriam
existir, simplesmente graças à boa vontade. Em ambos os
casos — p o r não terem os pensadores primitivos com
preendido realmente como a injustiça social tinha evo
luído, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada —
suas idéias caíram rium vazio cultural, utópico. M arx e
Engels, por outro ladò, tentaram um enfoque científico
da História. Trouxeram o conflito das classes às suas ori
gens econômicas reais, projetando um a solução econô
mica, baseada em pré-condições econômicas já existentes:
a tom ada dos meios de produção pelo proletariado levaria
a um comunismo, onde o governo se retrairia, não pre
cisando mais reprimir a classe baixa em benefício da
classe mais alta. N a sociedade sem classe, os interesses
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de todos os indivíduos seriam sinônimos dos da socie
dade.
Mas a doutrina do materialismo histórico, por mais
que tenha representado um avanço significativo em rela
ção à análise histórica anterior, não foi a resposta com
pleta, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque,
apesar de M arx e Engels fundamentarem sua teoria na
realidade, era ela apenas um a realidade parcial. Esta é
a definição estritamente econômica do materialismo histó
rico, tirada de Socialismo: Utópico ou Científico, de
Engels:
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Engels observou que a divisão original do trabalho
entre o homem e a mulher estabeleceu-se para fins de re
produção; que dentro da família o homem era o proprie
tário, a mulher os meios de produção, o filho o trabalha
dor, e que a reprodução da espécie hum ana era um sis
tema econômico importante, distinto dos meios de pro
dução.*1
M as Engels deu crédito demais a esses reconheci
mentos dispersos da opressão das mulheres como uma
classe. N a verdade, só admitiu o sistema sexual de classes
quanto ele se sobrepunha ou iluminava sua estrutura eco
nômica. Engels não foi bem sucedido nesse aspecto. Con
tudo, M arx foi pior. H á um reconhecimento crescente
REVOLUÇAa
HISTÓRIA GRÉCIA RENASCENÇA MODERNA
ESCRITA •-*---- — ------------------► ----------------- ►
C O M U N ISM O
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dos preconceitos de M arx com relação às mulheres (um
preconceito cultural partilhado por Freud, bem como
por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos
forçar o feminismo a entrar numa estrutura marxista orto
doxa — congelando em dogmas o que eram apenas
insights incidentais de M arx e Engels sobre as classes se
xuais. Em vez disso, precisamos ampliar o materialismo
histórico para incluir o que é estritamente marxista, do
mesmo modo como a física da relatividade não invalidou a
física newtoniana, apenas traçou um círculo a sua volta,
limitando sua aplicação — por comparação apenas —
a uma esfera menor. Pois um diagnóstico econômico que
remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos
meios de reprodução, não explica tudo. Existe um nível da
realidade que não deriva diretamente da economia.
A suposição de que, antes de ser econômica, a reali
dade é psicossexual, é geralmente acusada de aistórica
pelos que aceitam um a visão m aterialista dialética da His
tória, porque ela parece nos situar antes do ponto em que
M arx começou: tateando através de um nevoeiro de hipó
teses utópicas, de sistemas filosóficos que podem ser cer
tos ou errados (não há como dizer), sistemas que expli
cam desenvolvimentos históricos concretos por categorias
o priori de pensamento. O materialismo histórico, ao con
trário, tentou explicar o “conhecer” pelo “ser” , e não
vice-versa.
Mas existe uma terceira alternativa ainda não ten
tada; podemos desenvolver uma visão m aterialista da His
tória, baseada no próprio sexo.
As primeiras teóricas feministas foram, para uma
visão materialista do sexo, o que Fourier, Bebei e Owen
foram para um a visão m aterialista das classes. De modo
geral, a teoria feminista tem sido tão inadequada quanto
as primeiras tentativas feministas de corrigir o sexismo.
E ra de esperar que isso ocorresse. O problem a é tão vasto
que, na primeira tentativa, só a superfície poderia ser
examinada, descrevendo-se apenas as desigualdades mais
gritantes. Simone de Beauvoir foi a única que chegou
perto de uma análise definitiva — que talvez a tenha
realizado. Sua penetrante obra O Segmdo 4 b Sexo — que
O Y\
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apareceu recentemente, no início da década de cinqüenta,
para um m undo convencido de que o feminismo estava
morto — pela prim eira vez tentou assentar o feminismo
em bases históricas. De todas as teóricas feministas, Simo
ne de Beauvoir é a mais completa e abrangente, ao relacio
nar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura.
Pode ser que esta virtude também seja seu único
defeito. E la é quase que sofisticada demais, culta de
mais. Onde isto se torna uma deficiência — o que certa
mente é ainda discutível — é na sua interpretação rigida
mente existencialista do feminismo (perguntamo-nos o
quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso
em vista do fato de que todos os sistemas culturais, inclu
sive o existencialismo, são eles próprios determinados
pelo dualismo sexual. Diz ela:
“O homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no
Outro; ele vê o mundo sob o signo da dualidade, que não é,
em primeira instância, de caráter sexual. Mas, sendo diferente
do homem, que se constrói como Mesmo, é certamente à ca
tegoria do Outro que a mulher pertence; o Outro inclui a
mulher. (Grifos da autora.)
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das classes econômicas, as classes sexuais brotaram dire
tamente de uma realidade biológica: os homens e as mu-
’heres foram criados diferentes, e não igualmente privile
giados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa
diferença propriam ente dita não necessitou do mesmo de
senvolvimento de um sistema de classes — a dominação
de um grupo por outro — de que necessitaram as funções
reprodutoras dessas diferenças. A família biológica é um
poder de distribuição inerentemente desigual. A necessi
dade do poder que leva ao desenvolvimento de classes ori
gina-se da formação psicossexual de cada indivíduo, de
acordo com este desequilíbrio básico, e não, como Freud,
Norm an O. Brown e outros postularam — mais um a vez
se excedendo — de um conflito irredutível da Vida contra
a M orte, de Eros versus Tânatos.
A família biológica — a unidade básica de repro
dução hom em /m ulher/criança, em qualquer form a de
organização social — se caracteriza por estes fatos, se
não imutáveis, pelo menos fundamentais:
1) que as mulheres, através de toda a História,
antes do advento do controle da natalidade, estavam à
mercê constante de sua biologia — menstruação, meno-
pausa, e “males femininos” , de contínuos partos dolorosos,
amamentação e cuidado com as crianças, todos os quais
fizeram-nas dependentes dos homens (seja irmão, pai,
marido, amante, ou clã, governe., comunidade em geral)
para a sobrevivência física.
2) que os filhos do homem exigem um tempo ainda
maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto
indefesos e, pelo menos por um pequeno período, de
pendentes dos adultos para a sobrevivência física.
3) que a interdependência básica m ãe/filho existiu
de alguma form a em todas as sociedades, passadas ou
presentes, e conseqüentemente moldou a psicologia de
toda mulher m adura e de toda criança.
4 ) que a diferença natural da reprodução entre os
sexos levou diretamente à primeira divisão de trabalho
baseada no sexo, que está nas origens de toda divisão
posterior em classes econômicas e culturais e possivel
mente se encontra ainda na raiz de todas as castas (dis
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criminação baseada no sexo e outras características bio
logicamente determinadas, como a raça, a idade, etc.).
Estas contingências biológicas da família hum ana não
podem ser entendidas como sofismas antropológicos. Qual
quer um que observe os animais cruzando, reproduzindo-se
e cuidando de seus filhotes terá dificuldade em aceitar a
linha da “relatividade cultural”. Porque, não im porta
quantas tribos se possam encontrar n a Oceania nas quais
a conexão do pai com a fertilidade seja desconhecida,
não importa quantos m atrilineariados, quantos casos de
inversão do papel sexual, de homens assumindo afazeres
domésticos, ou de dores do parto empáticas, fatos que
provam somente um a coisa: a surpreendente flexibilidade
na natureza humana. Mas a natureza hum ana é adaptável
a alguma coisa, i.e., determinada, sim, por suas condi
ções ambientais. E a família biológica que nós descreve
mos existiu em todos os lugares através dos tempos.
Mesmo nos m atriarcados onde a fertilidade da mulher
é cultuada e o papel do pai é desconhecido ou sem impor
tância, embora talvez não o pai genético, existe ainda al
guma dependência da mulher e da criança com relação ao
homem. E, apesar de ser verdade que o núcleo familiar é
apenas um desenvolvimento recente, o qual, como ten
tarei mostrar, apenas intensifica os castigos psicológicos
da família biológica, apesar de ser verdade que através
da História houve muitas variações nesta família biológica,
as contingências que descrevi existiram em todas elas, ge
rando distorções psicossexuais específicas na personali
dade humana.
Mas, admitir que o desequilíbrio sexual do poder
está baseado biologicamente, não significa perder nossa
causa. Nós não somos mais animais há muito tempo. E
o Reino da N atureza não reina absolutamente. Como a
própria Simone de Beauvoir diz:
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assume o controle da natureza em seu próprio benefício. Essa
usurpação não é uma operação interna, subjetiva; ela é reali
zada objetivamente na prática.”
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mais profunda do que ele conhecia quando observou que
a família continha dentro de si mesma em miniatura todos
os antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga
escala dentro da sociedade e do estado. Porque, a não
ser que a revolução transtorne a organização social bá
sica e a família biológica — o germe da exploração nunca
será aniquilado. Precisamos de um a revolução sexual mais
ampla do que revolução socialista — que a inclua —
para verdadeiramente erradicar todos os sistemas de
classes.
Tentamos conduzir a análise de classe um passo à
frente, na direção de suas raízes na divisão biológica
dos sexos. Não dispensamos os insights dos socialistas; ao
contrário, o feminismo radical amplia suas análises, dando
a elas um a base ainda mais profunda em condições obje
tivas, explicando com isso muitas das suas questões inso
lúveis. Como fundamento de nossa própria análise, deve
mos expandir a definição do materialismo histórico de
Engels. A seguir a definição já citada anteriormente, rees-
crita de modo a incluir a divisão biológica dos sexos, em
função da reprodução, que se encontra n a ordem das
classes:
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dade são sempre o produto de modos de organização da uni
dade da família biológica, em função da reprodução da es
pécie, bem como dos modos de produção e troca de bens e
serviços estritamente econômicos. A organização sexual re-
produtora da sociedade sempre fornece a base real, exclusi
vamente a partir da qual podemos formular a explicação úl
tima de toda a superestrutura das instituições econômicas,
jurídicas e demais idéias de um período histórico dado.”
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de seus seguidores a postular construios a priori, como o
Desejo de M orte, para explicar as origens desses impulsos 1
psicológicos universais. Isto, por sua vez, tornou as doen
ças da hum anidade irredutíveis e incuráveis — motivo
pelo qual a solução por ele proposta (a terapia psicanalí-
tica), um a contradição em termos, foi tão pobre, com
parada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tão
retum bante na prática — levando os que tinham alguma
sensibilidade social e política a rejeitar não só sua solução
terapêutica, como também suas descobertas mais pro
fundas.
24
II. FEMINISMO AMERICANO
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possibilitariam às mulheres destruir seus papéis opressivos
eficazmente. A capacidade de reprodução da m ulher era
um a necessidade urgente para a sociedade — e, mesmo
que não o fosse, não se dispunha de meios eficazes de
controle da natalidade. Assim, até a Revolução Indus
trial a revolta feminista estava fadada a permanecer no
plano pessoal.
A vindoura revolução feminista da era tecnológica foi
prenunciada pelas idéias e os escritos de mulheres iso
ladas, membros das elites intelectuais de sua época: na
Inglaterra, Mary Wollstonecraft e M ary Shelley; na Amé
rica, M argaret Fuller; na França, as Bluestockings.* Mas
estas mulheres estavam além de seu tempo. Elas tiveram
muita dificuldade em ver suas idéias aceitas até por seus
próprios círculos avançados, que dirá pelas massas de ho
mens e mulheres de sua época, que mal tinham absor
vido o primeiro choque causado pela Revolução Indus
trial.
Em meados do século dezenove, contudo, com a in
dustrialização em plena atividade, um movimento femi
nista maduro estava em andamento. Sempre forte nos
E U A — onde tinha se fundado pouco antes da Revo
lução Industrial, e conseqüentemente sua história ou tra
dição eram comparativamente pequena — o feminismo
foi atiçado pela luta abolicionista e pelos ideais latentes
da própria Revolução Americana. (A declaração proferida
na prim eira convenção nacional pelos direitos das mulhe
res, realizada em Seneca Falls no ano de 1848, foi mol
dada na Declaração da Independência.)
O primitivo M ovimento pelos Direitos das Mulheres
Americanas2 foi radical. No século dezenove, o fato de as
mulheres atacarem a Família, a Igreja (ver W omarís Bible,
de Elizabeth Cady S tanton), e o Estado (lei) represen-
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tava para elas atacar os próprios fundamentos da socie
dade vitoriana na qual elas viviam — o equivalente a ata
car as próprias distinções sexuais em nossa época. Os
fundamentos teóricos do primitivo W.R.M. se originaram
nas idéias mais radicais da época, sobretudo as dos aboli
cionistas como William Lloyd Garrison, e de utopistas
e livres-pensadores como Fanny Wright. Poucas pessoas
sabem hoje que o feminismo primitivo foi um movimento
verdadeiramente popular: não ouviram falar das torturan
tes jornadas empreendidas pelas pioneiras feministas por
dentro dos sertões e fronteiras, ou de porta em porta nas
cidades para falar sobre os problemas ou para juntar assi
naturas em petições que eram recusadas como ridículas
pelas Assembléias. Tam pouco sabem que Elizabeth Cady
Stanton e Susan B. Anthony, as militantes mais ativas
do movimento, estavam entre as primeiras a dar ênfase à
im portância de organizar as mulheres operárias, tendo
fundado a Associação de Mulheres Trabalhadoras em se
tembro de 1868. (Delegadas na Convenção Nacional da
União das Classes Trabalhadoras já em 1868, posterior
mente elas brigaram por causa da ludibriação das mulheres
trabalhadoras pelo — nada mudou — movimento m as
culino chauvinista das classes operárias.) Outras mulheres
pioneiras organizadoras das classes trabalhadoras tais como
Augusta Lewis e Kate Mullaney, estavam engajadas no
movimento feminista.
Esse movimento radical foi erigido por mulheres que
não tinham literalmente nenhum status civil diante da lei;
que eram declaradas civilmente inúteis depois do casamen
to, ou que permaneciam legalmente menores se não se
casassem; que não podiam assinar testamento nem mes
mo ter a custódia de seus próprios filhos depois do di
vórcio; que não podiam aprender sequer a ler e muito
menos eram admitidas na universidade (as mais privile
giadas eram providas de um conhecimento de bordado,
pintura chinesa, francês, e da arte do cravo); que não
tinham voz política qualquer. Até mesmo depois da Guer
ra Civil mais da metade desta população do país era
ainda legalmente escravizada, literalmente não possuindo
sequer as anquinhas que colocavam nos seus “fundos” .
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As primeiras movimentações dessa classe oprimida,
as primeiras exigências incondicionais de justiça encontra
ram um a violência desproporcionada, um a resistência di
fícil de entender hoje, em que foram enfraquecidas as
fronteiras entre as classes sexuais. Porque, como acontece
em geral, o potencial revolucionário do primeiro despertar
de consciência foi mais claramente reconhecido pelos que
estavam no poder, do que pelos próprios membros da
cruzada. Desde o seu início, o movimento feminista trouxe
um a séria ameça à ordem estabelecida, testemunhando
com a sua própria existência e a sua longa duração as de
sigualdades fundamentais de um sistema que tinha pre
tensões à democracia. Atuando inicialmente juntos, e pos
teriormente separados, o movimento abolicionista e o
W.R.M. ameaçavam arrasar o país. Se, na G uerra Civil,
as feministas não tivessem sido persuadidas a abandonar
sua causa para trabalhar em assuntos “mais im portantes”,
a história inicial da revolução feminista poderia ter sido
menos melancólica.
Nessas circunstâncias, ainda que as forças de Stanton-
Anthony lutassem durante mais vinte anos dentro da tra
dição feminista radical, a espinha dorsal do movimento
tinha sido quebrada. M ilhares de mulheres, no ímpeto
da Guerra Civil, puderam sair de casa para fazer obras
de caridade. O único assunto que poderia unir esses bem
diferentes campos de mulheres organizadas era a necessi
dade de voto — mas, como era de prever, elas não
concordaram sobre o porquê ele era desejável. As con
servadoras form aram a Associação pelo Sufrágio das M u
lheres Americanas, ou se juntaram aos clubes femininos
em expansão, tais como a pia União M oderada das M u
lheres Cristãs. As radicais se separaram através da Asso
ciação Nacional pelo Sufrágio Feminino, interessada no
voto somente como um símbolo do poder político do qual
elas necessitavam para alcançar objetivos mais amplos.
Por volta de 1890, tinham sido alcançadas reformas
legais adicionais, as mulheres tinham entrado na força de
trabalho nas condições que elas ocupam ainda hoje e co
meçado a receber instrução em maior número. Em lugar
de um verdadeiro poder político, foi-lhes dado um lugar
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derivativo e segregado dentro da esfera pública, como clu
bistas. Mas, embora de fato isto representasse um maior
poder político do que antes, era apenas um a versão nova
do lugar habitual do “poder” feminino: atrás do trono
— urna tradicional influência no poder que assumiu uma
forma m oderna nas táticas de influenciamento e de emba-
raçamento. Quando, em 1890, com suas líderes enve
lhecidas e desanimadas, o movimento radical feminista
Nacional juntou-se ao movimento conservador Am eri
cano para form ar a Associação Nacional pelo Sufrágio
das Mulheres Americanas (N A W SA ), tudo parecia per
dido. Tinha vencido o feminismo conservador, com sua
concentração em temas básicos, gerais e unificantes como
o sufrágio, com sua tentativa de trabalhar dentro da es
trutura de poder masculina branca e de aplacá-la —
tentando convencer os homens que estavam mais bem
informados, contudo com a sua própria retórica ornam en
tada. Traído, o feminismo definhou.
Ainda pior do que as feministas conservadoras era
o número crescente de mulheres que, com seu recém-des-
coberto bocadinho de liberdade, atiravam-se entusiastica
mente em todos os radicalismos do dia, nos vários m o
vimentos de reforma social da E ra Progressista, até mes
mo quando estes eram estranhos aos interesses feminis
tas. (Considere-se o velho debate sobre as leis discrimina
tórias de “proteção” ao trabalho para as mulheres.) M ar-
garet Rhondda, líder feminista britânica do período pós-I
G uerra M undial, observou:
“Podemos dividir as mulheres do movimento feminino em
dois grupos: as feministas e as reformistas, que não são de
modo algum feministas; que não dão um centavo pela igual
dade em si m esm a. . . Hoje quase toda organização feminina
reconhece que as reformistas são muito mais comuns do que
as feministas, que a decisão apaixonada de cuidar de seus pró
ximos, de ser útil a eles a seu modo, é muito mais comum
do que o desejo de colocar nas mãos de cada um o poder de
cuidar de si próprio.”
29
feminismo. Elas não eram nem feministas verdadeiras nem
radicais verdadeiras, porque ainda não viam a causa das
mulheres como um problem a em si mesmo legitimamente
radical. Vendo o W.R.M. como apenas tangente a uma
outra política mais importante, elas, num certo sentido,
viam a si mesmas como homens incompletos: os proble
mas femininos pareciam-lhes “especiais”, “sectários”, en
quanto que os problemas relativos aos homens eram “hu
m anos”, “universais”. Crescendo politicamente dentro de
movimentos dominados pelos homens, elas passaram a
se preocupar em reform ar sua posição dentro desses movi
mentos, em vez de sair deles e criar seu próprio m o
vimento. A W om an’s Trade Union League é um bom
exemplo disto: as mulheres politiqueiras desse grupo falha
ram nas incumbências mais básicas, porque foram inca
pazes de rom per seus vínculos com o AFL, movimento
intensamente chauvinista masculino, dirigido por Samuel
Gompers, que as traiu continuamente. Ou, num outro
exemplo, como muitas voluntárias da VISTA, concentra
das em fazer “turismo” entre os pobres “ingratos” , se ati
raram na imatura instalação do movimento, muitas delas
dando suas vidas em troco de nada — apenas para se
tornarem as mais severas, exacerbadas, porém dedicadas
assistentes-sociais da estereotipia. Ou o W oman’s Peace,
criado, em vão, por Jane Addams nas vésperas da inter
venção americana na Primeira G uerra M undial, que, ironi
camente, mais tarde se dividiu em grupos jingoístas que
trabalhavam para a guerra, ou em pacifistas radicais tão
ineficazes quanto extremistas.
Esta frenética atividade organizacional feminista da
E ra Progressista é geralmente confundida com o W.R.M.
propriamente dito. M as a imagem da mulher frustrada e
m andona origina-se menos das feministas radicais do que
das politiqueiras não-feministas, membros de comitês pelas
várias causas importantes do dia. Além dos movimentos
recém-extintos que mencionamos — a W om an’s Trade
Union League, a National Federation of Settlements, e a
W om an’s International League for Peace and Freedom
(anteriorm ente o W oman’s Peace Party, iniciado por
Jane Addams) -— a estrutura inteira da Organized Lady-
30
hood foi fundada no período entre 1890 e 1920: a Gene
ral Federation of Women’s Clubs, a League of Women
Voters, a American Association of Collegiate Alumnae, a
National Consumer’s League, o PTA, e até o DAR. Em
bora estas organizações estivessem associadas aos movi
mentos mais radicais da época, o fato de que sua política
era na realidade reacionária e no fim das contas irreal e
tola foi em primeiro lugar indicado só por suas visões
não-feministas.
Conseqüentemente, a maioria das mulheres que se
organizaram no período entre 1890-1920 — período ge
ralmente citado como ponto alto da atividade feminista
— não tinha nada a ver com o feminismo. Por um lado,
o feminismo tinha-se restringido ao problem a do voto —
o W.R.M. foi (tem porariam ente) transform ado num mo
vimento pelo sufrágio — e por outro lado as energias das
mulheres dispersavam-se em qualquer outra causa radical,
menos a sua própria causa.
M as o feminismo radical estava apenas adormecido.
O despertar começou com a volta, proveniente da Ingla
terra, de H arrie Stanton Blatch, a filha de Elizabeth Cady
Stanton, país onde ela se tinha associado à W oman’s So
cial and Political Union — as Sufragetes inglesas, dentre
as quais as Pankhurts talvez sejam as mais conhecidas —
contrária às Constitucionalistas (feministas conservadoras).
Acreditando ser necessária um a tática combativa para al
cançar os objetivos radicais advogados por sua mãe, ela
recomendou que se atacasse o problem a do voto com a
estratégia, que tinha sido posta de lado, da facção Stan
ton-Anthony: pressão para obter a emenda da Cons
tituição federal. Logo as militantes americanas separaram-
se da conservadora NAWSA para form ar a Congressional
Union (posteriorm ente o W om an’s P arty ), iniciando a
ousada tática de guerrilha e a intransigente linha dura,
pelas quais em geral se louva, impropriamente, todo o m o
vimento sufragista.
Deu resultado. As militantes tiveram que passar por
embaraços, ataques de grupo, espancamento, e até por
greves de fome mas no espaço de uma década o voto foi
31
conseguido. A centelha de feminismo radical era exata
mente aquilo de que o movimento sufragista, que se exte
nuava, precisava para impulsionar sua questão única. Ela
proporcionou um a investida nova e sadia (a pressão para
alcançar uma emenda nacional, em vez do cansativo mé
todo de organização estado-por-estado usado durante trin
ta anos), um a m ilitância que dramatizou a urgência do
problem a feminino, e, acima de tudo, uma perspectiva
mais ampla, na qual o voto era visto como apenas o pri
m eiro entre muitos objetivos e, portanto, a ser conquistado
o mais rapidam ente possível. As suaves exigências das
feministas conservadoras, que tinham quase declarado que
se o voto fosse obtido elas não o usariam, foram bem-vin
das como representando longe o m enor de dois males, em
comparação às exigências do W oman’s Party.
Com a obtenção do voto, o establishment cooptou o
movimento das mulheres. Como sintetizou um cavalheiro
daquela época citado por William 0 ’Neil em Everyone
Was Brave: “N o entanto o sufrágio feminino é um a coisa
boa, mas só se for para acabar logo com ela.” A Sra. Oli
ver H azard Perry Belmont, do W om an’s Party, incitou as
mulheres a boicotarem as eleições: “Poupem seu novo
poder. As sufragistas não lutaram durante dezessete anos
pela emancipação de vocês para permitir que vocês se
turnem escravas dos partidos dos homens.” Charlotte
Perkins Gilman apoiou isso: “O poder que as mulheres
serão capazes de exercer depende de elas não se associarem
ao sistema de partidarismo masculino. O sistema político
partidarista é um artifício dos homens para encobrir os
verdadeiros problemas. As mulheres deveriam lutar pelas
medidas que elas querem alcançar, fora da política de
partidos. É pelo fato de os velhos partidos políticos se
darem conta de que a influência das mulheres dentro dos
partidos políticos será tão insignificante, que eles estão tão
ansiosos por conseguir que as mulheres se associem a eles.”
Mas nada disso teve alguma utilidade. Até a forma
ção de um novo W oman’s Party em 18 de fevereiro de
1921, como um a alternativa para os principais partidos
32
que estavam rapidam ente absorvendo a nova força po
lítica das mulheres, não pôde ressuscitar o movimento
agonizante.8
A obtenção do voto pelo movimento sufragista m a
tou o W .R.M . Em bora as forças antifeministas pareces
sem ceder, elas só o fizeram de boca. Elas nunca perde
ram. Na época em que o voto foi obtido, a prolongada
canalização das energias feministas em função do objeti
vo limitado do sufrágio — visto inicialmente apenas como
um passo para o poder político — tinha esgotado com
pletamente o W.R.M. O M onstro Votação tinha engolido
tudo o mais. Três gerações tinham transcorrido desde a
época do princípio do W .R.M .; as ideadoras do movi
mento estavam todas mortas. As mulheres que mais tarde
se uniram ao movimento feminista para lutar pelo sim
ples problem a do voto nunca tinham tido tempo para de
senvolver um a consciência mais ampla; naquela altura elas
tinham até esquecido para que servia o voto. A oposi
ção tinha imposto a sua vontade.
* * *
33
elas porque emanciparia mais uma metade da raça negra,
bem como acentuaria a hipocrisia do sufrágio masculino
universal), e, finalmente, a própria máquina do governo. O
trabalho implicado para obter esse voto deixou as pes
soas cambaleando. Carrie Chapm an C att calcula que:
i - '* .
“tirar a palavra “masculino” da Constituição custou às
mulheres deste país 52 anos de campanha ininterrupta. . .
Durante esse tempo, elas foram obrigadas a comandar 56
campanhas de plebiscito junto aos homens votantes, 480 cam
panhas junto aos votantes para conseguir legislaturas com
emendas sufragistas, 47 campanhas para conseguir que as con
venções constitucionais estaduais inscrevessem o sufrágio das
mulheres nas constituições estaduais, 277 campanhas para con
seguir que as convenções dos partidos estaduais incluíssem as
plataformas pelo sufrágio feminino, 30 campanhas para con
seguir que as convenções do partido presidencial adotassem
as plataformas pelo sufrágio feminino nas plataformas do par
tido e 19 campanha sucessivas em 19 Congressos sucessivos.”
34
libertas que voltavam continuamente, com quantias enor
mes nos seus ombros para libertar outras escravas em
suas próprias fazendas, foram politicamente mais eficien
tes do que o m alfadado John Brown. M as a maioria das
pessoas hoje nunca ouviu falar sequer de M yrtilla M iner,
Prudence Crandall, Abigail Scott Duniway, M ary Putnam
Jacobi, Ernestine Rose, das irmãs Claflin, de Crystal E ast
man, C lara Lemlich, de Mrs. O.H.P. Belmont, de Doris
Stevens, de A nne M artin. E essa ignorância não é nada
com parada ao desconhecimento da vida de mulheres da en
vergadura de M argaret Fuller, Fanny Wright, das irmãs
Grimké, de Susan B. Anthony, Elizabeth Cady Stanton,
H arriet Stanton Blatch, C harlotte Perkins Gilman, de Alice
Paul.
E no entanto conhecemos Louisa M ay Alcott, C lara
Barton, e Florence Nightingale, assim como conhecemos,
em vez de N at Turner, o triunfo de R alph Bunche, ou
George Washington Carver e o amendoim. A omissão de
personalidades vitais nas versões-modelo da história ame
ricana em favor desses modelos beatos não pode ser
ignorada. Assim como seria perigoso influenciar as crian
ças negras ainda oprimidas a admirarem os N at Turners
de sua história, assim se passa com o W .R.M .: as lacunas
suspeitas em nossos livros de história relativos ao femi
nismo — ou então a confusão de todo o W.R.M. com o
(conservador) movimento sufragista ou com os grupos
de mulheres reformistas da E ra Progressista — não são
meros acasos.
Isto faz parte de um reflexo que nós ainda estamos
sofrendo da reação à prim eira batalha feminista. Os pou
cos modelos sólidos fornecidos às moças que cresceram
durante este silêncio de cinqüenta anos foram modelos
cuidadosamente escolhidos, mulheres como Eleanor Ro-
osevelt, da tradição altruística feminina, opostas às gigan
tes saudavelmente egoístas da rebelião radical feminista.
Esse reflexo cultural era de se esperar. Os homens da
quela época com preenderam imediatam ente a verdadeira
natureza do movimento feminista, reconhecendo nele um a
séria am eaça ao seu poder público e desavergonhado so
bre a mulher. Eles podem ter sido forçados a subornar
35
o movimento das mulheres com reform as de superfície
que as confundissem — um a correção das desigualdades
mais gritantes nos livros, umas poucas m udanças n a rou
pa, no sexo, no estilo ( “você percorreu um longo cam i
nho, m oça” ), todas as quais por coincidência beneficia
ram aos homens. M as o poder perm aneceu em suas mãos.
36
mour, M ademoiselle, Cosmopolitan. A busca de um estilo
* “diferente”, pessoal, através do qual se “expressar” subs
tituiu a antiga ênfase feminina no desenvolvimento da
personalidade através da responsabilidade e da experiên
cia de vida.
> N a década de trinta, após a Depressão, as m ulheres
se tornaram sóbrias. O melindrosismo não fora obviam en
te a solução: elas se sentiram ainda mais griladas e neu
róticas do que antes. M as, como o m ito da em ancipação
avançava a todo vapor, as m ulheres não ousaram recla
mar. Se elas tinham obtido o que queriam e ainda esta
vam insatisfeitas, então alguma coisa deveria estar erra
da nelas. Suspeitavam secretam ente que, afinal, podia ser
que elas realm ente fossem inferiores. Ou podia ser que
esta fosse a ordem social legítima: filiaram-se ao Partido
Com unista, onde mais um a vez deram um a ênfase extre
m a aos oprimidos, sendo incapazes de reconhecer que a
grande identificação que elas sentiam pela classe operária
( explorada originava-se diretam ente de sua própria expe
riência de opressão.
N a década de quarenta, havia um a outra guerra
m undial em que pensar. Os grilos pessoais foram tempo-
, rariam ente ofuscados pelo espírito do Esforço n a Guerra:
o patriotism o e o farisaísmo, intensificados por um a pro
paganda m ilitar ubíqua, foram glorificados em si mesmos.
Além disso, os “caras” tinham ido embora. M elhor ainda,
seus tronos de poder estavam vazios. As mulheres, pela
prim eira vez em várias décadas, tiveram empregos sóli
dos. Verdadeiram ente necessitadas pela sociedade em suas
potencialidades mais amplas, lhes foi tem porariam ente
concedido um status hum ano, contrário ao status “femi
nino”. (D e fato, as feministas se viram forçadas a aco
lher a guerra como a sua única chance.)
O primeiro grande período de paz e riqueza ocorreu
nos últimos anos das décadas de quarenta e cinqüenta.
Mas, em vez do profetizado ressurgimento do feminismo,
depois de tantos becos-sem-saída, havia apenas “A Mís
tica Fem inina”, que Betty Friedan documentou tão bem.
Esse sofisticado aparato cultural foi veiculado com um
propósito específico: as mulheres tinham sido emprega-
37
das durante a guerra, e agora tinham que estar prepara
das para abrir mão de seus empregos. Os novos empre-
gos só tinham existido porque elas tinham sido deseo-
bertas como um a força de trabalho excedente que se
mostrou conveniente e útil, justam ente num a época de
crise — e no entanto, não era possível no momento des-
pedi-las abertamente. Isto desmentiria todo o mito da
emancipação, cuidadosamente cultivado. Um a idéia me
lhor foi fazê-las se demitirem por sua própria vontade.
A Mística Fem inina satisfez admiravelmente ao objetivo.
As mulheres, ainda excitadas, ainda buscando (afinal,
um emprego num a fábrica não é a idéia masculina do
paraíso, mesmo que seja preferível ao inferno enjaulado
das m ulheres), seguiram ainda um outro caminho falso.
Esse foi talvez pior do que qualquer um dos outros.
E le não oferecia nem a sensualidade (frívola) da década
de vinte, a promessa de um (falso) ideal da década de
trinta, nem o espírito coletivo (propaganda) da década
de quarenta. O que ele ofereceu às mulheres foi respei
tabilidade e mobilidade ascendente — junto com o De
sencantado Rom ance, com uma abundância de fraldas e
de reuniões do P T A (a M ãe Nutriente de M argaret
M ead ), discussões familiares, dietas contínuas e inefica-
zes, dramalhões e comerciais na TV para m atar o tédio,
e psicoterapia, caso o sofrimento ainda persistisse. Good
Housekeeping e Parent’s Magazine* dirigiam-se a todas
as mulheres da classe média, assim como True Confes-
sions se dirigia à classe operária. Os anos cinqüenta cons
tituíram a mais desoladora de todas as décadas, talvez a
mais desoladora para as mulheres no período de alguns
séculos. Segundo a versão 1950 do Mito, a emancipação
das mulheres já tinha sido tentada e se revelado deficien
te (pelas próprias mulheres, sem dúvida). A primeira
tentativa de se libertar de uma sufocante M aternidade
Criativa parecia ter fracassado completamente. T oda a
consciência autêntica do antigo movimento feminista ti-
38
nha sido esquecida nessa época, e com isso a consciência
de que o sofrimento atual das mulheres era fruto de um
reflexo ainda virulento.
P ara a juventude da década de cinqüenta criou-se
um aparato cultural ainda mais sofisticado: o “teenageris-
mo” , o último disfarce daquele rom antism o perseverante,
que se empenhava tanto em escorar, através de um decre
to cultural, um a estrutura familiar que desmoronava (ver
Cap. 7, “A Cultura do R om ance” ). Jovens de todas as
idades sonhavam em fugir das casas enfadonhas de suas
mães, através do Rom ance da Adolescência ( “teenage
rom ance” ). O carro estacionado, um a tradição estabele
cida desde a era das melindrosas, tornou-se um a necessi
dade premente, talvez o arrimo que melhor caracterizou
as paixões da década de cinqüenta (ver o environment
de Edward Kienholz, intitulado “Parked C ar” * ). Os ri
tuais dos encontros amorosos adolescentes comparavam-
se na sua formalidade à mais fina tradição cavalheiresca
do Sul, a “bela” do século vinte sendo representada pela
baliza, Doce M enina-M oça anim adora dos Jogos da P ri
mavera. A meta mais alta que uma moça poderia alcan
çar era a “popularidade” , a antiga “graça” sob um a for
ma moderna.
Mas os rapazes não conseguiram suportar isso. Os
saturantes romantismo e sentimentalismo designados para
m anter as mulheres no seu lugar provocaram efeitos late
rais sobre os homens envolvidos com isso. Se devia haver
um ritual de caça-à-mulher, alguns homens também te
riam que ser sacrificados a ele. Barbie precisava de um
Ken.* M as nam orar era um a droga ( “Pai, você pode me
em prestar o carro esta noite?” ). Certam ente deveria haver
um meio mais fácil de fazer amor. Frankie Avalon e Paul
A nka cantavam para as adolescentes; os rapazes ficavam
de fora.
39
N a década de sessenta os rapezes se separaram . F o
ram para a universidade e para o Sul. Viajaram em ban- (
dos pela Europa. Alguns se filiaram ao Peace Corps;
outros ficaram marginais. Mas, onde quer que fossem le
vavam suas seguidoras. Os homens liberados precisavam
de brotinhos avançados que pudessem acom panhar seu ¡
novo estilo de vida: as mulheres tentaram . Eles precisa
vam de sexo: as mulheres obedeceram. M as isso era tudo
o que eles queriam das mulheres. Se o brotinho cismasse
em exigir em troca algum compromisso fora de moda,
ela era tida como “chata” , “fodida” ou, pior ainda, como
um “verdadeiro baixo-astral” . U m a gatinha deveria apren
der a ser independente o suficiente para não se tornar um
entrave para seu homem (em outras palavras, “ agarran
do-se” ). As mulheres não poderiam se m atricular tão rá
pido: cerâmica, tecelagem, artesanato, aulas de pintura,
cursos de literatura e psicologia, terapia de grupo, qual
quer coisa que pudesse fazer que elas deixassem de ser
um peso para seus homens. Elas sentavam-se com lágri- i
mas nos olhos defronte de seus vários cavaletes.
O que não significa insinuar que as “gatinhas” elas
próprias não quisessem originariamente fugir da terra-de-
ninguém. Não havia nenhum lugar para onde elas pudes
sem ir. Onde quer que fossem, seja em Greenwich Villa-
ge c. 1960, Berkeley ou Mississípi c. 1964, Haight-
Ashbury ou E ast Village c. 1966, eram ainda conside
radas apenas “brotinhos” , imperceptíveis como pessoas.
Não havia um a sociedade marginal para onde elas pu
dessem fugir: o sistema de classes sexuais existia em toda
parte. Imunizadas culturalmente pela reação antifeminista
— caso, no longo período de esquecimento, elas tivessem
ouvido falar do feminismo de alguma maneira, fora so
mente através de sua depreciação — elas ainda tinham
medo de se organizar em torno do seu próprio problema.
Assim, caíram na mesma armadilha que tinha engolido
as mulheres das décadas de vinte e trinta: a busca pela
“solução pessoal”.
A “solução privada” da década de sessenta, ironica
mente, foi em geral tanto o “bico” da política (a política
40
radical, conseqüentemente mais marginal e idealista do
que as arenas oficiais, segregadas, do poder) quanto da
arte ou da academia. A política radical deu a cada m u
lher a chance de fazer suas coisas. Repetindo as da dé
cada de trinta, muitas mulheres viram a política não como
um meio para construir uma vida melhor, mas como um
fim em si mesmo. M uitas se associaram ao movimento
pela paz, como sempre um agradável passatempo femi
nino: inofensivo porque politicamente impotente, ele con
tudo proporcionou uma saída vicária para a agressão
feminina.4 Outras se envolveram com o movimento pelos
41
direitos civis: mas, embora em geral ele não fosse politi
camente mais eficaz do que a sua participação no movi
m ento pela paz, os dias contados das mulheres brancas
no movimento negro do início da década de sessenta pro
varam ser um a experiência mais valiosa em termos de
seu próprio desenvolvimento político. Isto é fácil de de
tectar no movimento de liberação feminino atual. As mu
lheres que foram para o Sul são em geral muito mais
perspicazes, flexíveis e evoluídas politicamente do que as
mulheres que entraram para o movimento pela paz, e
tendem a se dirigir muito mais rapidam ente para o femi
nismo radical. Talvez porque sua preocupação com o so
frimento dos negros fosse a tentativa na qual as mulheres
brancas, desde 1920, mais se aproximaram de encarar
sua própria opressão: lutar pela causa dos que são mais
visivelmente oprimidos é uma m aneira eufemística de di
zer que se é oprimido. Assim como o problem a da escra
vidão incitou o feminismo radical do século dezenove,
assim o problem a do racismo estimulou o novo feminis
m o: a analogia entre racismo e sexismo tinha sido final
m ente inferida. Assim que as pessoas admitissem e se
confrontassem com seu próprio racismo, elas não pode
riam negar o paralelo. E se o racismo era eliminável,
por que o sexismo não o seria também?
* * *
42
Descrevi o período de cinqüenta anos situado entre
o fim do antigo movimento feminista e o início do novo
movimento, com o objetivo de examinar os modos espe
cíficos pelos quais o mito da emancipação operou em
cada década para encobrir as frustrações das mulheres
modernas. A tática de encobrir as coisas foi utilizada efi
cazmente para reprivatizar as mulheres das décadas de
vinte e trinta. Depois disso, ela se uniu a um a paralisa
ção da história feminista para que as mulheres se m an
tivessem girando histericamente num labirinto de falsas
soluções: o M ito tinha-lhes negado efetivamente um a saí
da legítima para suas frustrações. A terapia provara ser
um fracasso como saída (ver o capítulo seguinte). V oltar
para casa tam pouco era um a solução — como provaram
as gerações das décadas de quarenta e cinqüenta.
Por volta de 1970, as filhas rebeldes dessa geração
desperdiçada não sabiam mais o que lhes valeria para
todas as finalidades práticas, sequer que tinha existido
um movimento feminista. Ficaram apenas os restos desa
gradáveis da revolução abortada, um a coleção espantosa
de contradições nas suas funções. Por um lado, elas ti
nham o máximo de privilégios legais, a garantia literal
de que eram consideradas cidadãs da sociedade com ple
nos direitos políticos — e no entanto não tinham poder.
Tinham oportunidades de se educar — e no entanto não
eram procuradas para os empregos. Tinham conseguido
as liberdades no vestir e nos hábitos sexuais por elas
exigidos — e no entanto ainda eram exploradas sexual
mente. As frustrações decorrentes de sua situação sem
saída foram exacerbadas pelo desenvolvimento dos mass
media (ver Capítulo 7 ), onde essas contradições foram
expostas abertamente, e foi enfatizada a fealdade dos p a
péis femininos, precisamente através dessa característica
intensificada que fez dos novos media um órgão de pro
paganda tão vantajoso. As doutrinações culturais neces
sárias para reforçar as tradições de papéis sexuais tinham-
se tornado espalhafatosas, de mau gosto, enquanto que
antes tinham sido insidiosas. Bom bardeadas em toda parte
com imagens de si mesmas odiosas ou eróticas, as m u
lheres ficaram de início desnorteadas e finalmente enrai
43
vecidas com essas distorções (isso seria eu?). Inicialmen
te, pelo fato de o feminismo ainda ser um tabu, a sua
raiva e a sua frustração se contiveram num a atitude de
retirada total (Boêmia Beatnik e Geração F lo r/D ro g as),
ou foram canalizadas para outros movimentos dissidentes
que não o seu, particularm ente o movimento pelos direi
tos civis da década de sessenta, onde as mulheres mais
se aproxim aram de um reconhecimento de sua própria
opressão. Mas, finalmente, a analogia evidente entre a
própria situação e a situação dos negros, unida ao espí
rito geral de dissensão, acabaram levando ao estabeleci
mento de um movimento de libertação das mulheres pro
priam ente dito. A raiva revelou-se finalmente como sendo
a própria saída.
M as seria errado atribuir o ressurgimento do femi
nismo exclusivamente ao impulso gerado por outros mo
vimentos e idéias. Pois, embora eles possam ter agido
como catalisadores, o feminismo, na verdade, tem um
m om entum cíclico todo próprio. N a interpretação históri
ca por nós adotada, o feminismo é visto como a reação
feminina inevitável ao desenvolvimento de um a tecnolo
gia capaz de libertar as mulheres da tirania de seus pa-
péis sexuais-reprodutores — tanto a própria condição
biológica fundamental, como o sistema de classes sexuais
em que se baseia e reforça essa condição biológica.
O desenvolvimento progressivo da ciência no século
vinte teria apenas acelerado a primeira reação feminista
à Revolução Industrial. (Só o controle da natalidade, por
exemplo, um problem a para o qual as primeiras feminis
tas não encontraram solução, atingiu a partir de 1920
seu mais alto nível de desenvolvimento na História.)
Tentei descrever a dinâmica da contra-revolução que, jun
to com a crise tem poral da guerra e da depressão, difi
cultou o desenvolvimento do feminismo. Por causa desse
obstáculo, os novos desenvolvimentos científicos que po
deriam ter ajudado enormemente a causa feminista fica
ram nos laboratórios, ao passo que as práticas sociais-
sexuais não só continuaram como antes, mas foram de
fato intensificadas, em reação à ameaça. Os progressos
científicos que ameaçavam enfraquecer ainda mais ou
44
ameaçavam rom per totalm ente a conexão entre o sexo e
a reprodução quase não foram realizados culturalmente.
O fato de a revolução científica não ter tido virtualm ente
nenhum efeito sobre o feminismo apenas ilustra a natu
reza política do problem a: os objetivos do_feminismo
I nunca poderão ser atingidos pela evolução, mas somente
pela revolução. O poder, em bora ele tenha se desdobra
do, nunca será abandonado sem que haja luta.
45
“se deram bem ” — ele é similarmente atacado pelos gru
pos mais jovens de libertação em virtude de seu “carrei-
rism o” ), a NOW concentrou a atenção nos sintomas mais
superficiais do sexismo — as desigualdades legais, a dis
criminação no trabalho, etc.
Assim, na sua política, ela se parece mais com o
movimento sufragista da virada do século, a National
Am erican W om an Suffrage Association, de C arrie C hap-
m an Catt, com sua ênfase na igualdade entre as m ulhe
res e os homens — legal, econômica, etc., dentro do
sistema estabelecido — em vez de na libertação de todos
os papéis sexuais, ou no questionam ento radical dos va
lores da família. Como a NAWSA, ela tende a concentrar
sua atenção em ganhos políticos isolados, mesmo que às
custas dos princípios políticos. Como a NAW SA, ela
atraiu um enorme quadro de associados, que controla
através de procedimentos burocráticos tradicionais.
C ontudo, já para o movimento jovem, é evidente
que essa posição, insustentável até em termos de ganhos
políticos imediatos — como foi atestado pelo fracasso
do último movimento feminista conservador — é mais
um vestígio do antigo feminismo (ou, se preferirem, um
precursor) do que um modelo para o novo movimento.
As inúmeras mulheres que se associaram a ele p o r falta
de um lugar m elhor para onde ir, logo se transferiram
para o feminismo radical — e, assim fazendo, impuse
ram à NOW um radicalismo cada vez maior; enquanto
que outrora a organização não ousava sequer apoiar ofi
cialmente a revogação da lei do aborto, com medo de
afastar aquelas que não conseguiriam ir além de uma
reforma, hoje a revogação da lei do aborto é uma das
suas exigências centrais.
2) A s Politiqueiras. As politiqueiras do movimento
feminino contem porâneo são aquelas mulheres cuja fide
lidade primeira é para com a Esquerda ( “O Movimen
to ” ) , em vez de para com o W omen’s Liberation Move-
m ent propriam ente dito. Como as politiqueiras da Era
Progressista, as politiqueiras contemporâneas vêem o fe
minismo como apenas um a tangente para um a política
radical “verdadeira”, em vez de um centro, diretamente
46
radical em si mesmo. Elas ainda vêem os problem as m as
culinos, p. ex., o recrutam ento, com o universais, e os
problem as femininos, p. ex., o aborto, como sectários.
D entro da categoria das politiqueiras contem porâneas,
existe ainda um a estrutura menor, que pode ser mais ou
menos dividida como se segue:
a) Participação fem inina na esquerda. Hoje, toda
facção im portante da esquerda, e até mesmo alguns sin
dicatos — depois de um a resistência considerável — têm
seus comitês do w om en’s lib onde discutem o chauvinis
mo masculino dentro da organização e incitam a um
m aior poder de decisão das mulheres. As politiqueiras
desses caucus são reformistas no sentido de que seu obje
tivo principal é m elhorar sua própria situação dentro da
arena lim itada da política esquerdista. As outras m ulhe
res são, n a m elhor das hipóteses, o seu primeiro “eleito
rado”, sendo os problem as estritam ente femininos vistos
como nada mais do que um instrum ento “radicalizante”
vantajoso para recrutar mulheres para a “L uta M aior”.
Assim, sua atitude com relação às outras mulheres tende
a ser protetora e evangélica, um a aproxim ação “organi
zadora”. Eis algumas Black Panthers (m ulheres) num a
entrevista concedida ao The M ovem ent, jornal under-
ground, onde, no seu estardalhaço, se expressam de um
m odo talvez constrangedor para a esquerda branca, mas
que, não obstante, é típico (por que tirado dela?) da
m aior parte da retórica revolucionária branca sobre o
assunto:
“É muito importante que as mulheres que são mais esclare
cidas, que já compreendem os princípios revolucionários, vão
até elas e expliquem a elas, e lutem com elas. Temos que re
conhecer que as mulheres são politicamente atrasadas e que
temos que lutar com elas.” (Grifos da autora)
47
rem para si próprias, em termos de se tornarem pequenas
panelinhas petit bourgeois em que se fala o tempo todo de
cuidar das crianças, ou que se tornem uma sessão de reclama
ções.” (Grifos da autora)
48
tação óbvia da análise, da retórica, da tática e da estra
tégia da esquerda (m asculina) tradicional, sejam elas
ou não adequadas à realização de seus próprios objeti
vos distintos, é contrabalançada por um a série de senti-
mentalizações sobre as Irm ãs Oprimidas Distantes. Sua
própria política tende a ser ambígua porque suas fide
lidades são estas: se elas não estão mais tão seguras de
que é o capitalismo que provoca diretam ente a explora
ção das mulheres, elas não vão tão longe ao ponto de
insinuar que os homens poderiam ter algo que ver com
isso. Os homens são Irmãos. As mulheres são Irmãs.
Se é que se deve falar de inimigos de algum modo, por
que não deixar isso em aberto e chamá-los de O Sistema?
c) A s politiqueiras feministas. E sta posição delineia
talvez a m aior proporção dos grupos anônimos fechados
do movimento de libertação das mulheres existentes ao
longo do país. É a posição para a qual muitas das cen
tristas finalmente se inclinam. Basicamente é um feminis
mo conservador com insinuações esquerdistas (ou, tal
vez, diríamos que é um esquerdismo com insinuações
fem inistas). E m bora as politiqueiras feministas adm itam
que as mulheres devem se organizar em torno de sua
própria opressão da m aneira como elas a sentem, que
elas podem realizar isto de um modo m elhor através de
grupos independentes, e que a concentração principal
de todo grupo de mulheres deveria ser nos problem as
das mulheres, todo esforço é feito ainda visando adaptar
essas atividades às análises esquerdistas existentes e às
estruturas prioritárias — nas quais, naturalm ente, as m u
lheres, nunca vêm primeiro.
A pesar da diversidade aparente dentro dessa estru
tura, as três posições podem ser reduzidas a um deno
m inador comum: o feminismo é secundário na ordem
das prioridades políticas, e deve ser talhado de m odo a
ajustar-se a um a estrutura política já existente (criada
pelos hom ens). O medo de que se isso não for obser
vado o feminismo adotará um a resolução tem erária, to r
nando-se divorciado da Revolução, revela o receio de
que o feminismo não seja um a questão legítima em si
49
mesma, a qual requererá (infelizmente) um a revolução
para que sejam alcançados os seus objetivos.
E este é o dilema disso: as mulheres politiqueiras
são incapazes de desenvolver um a política autêntica por
que elas nunca enfrentaram realm ente com coragem a
realidade de sua opressão como mulheres. Sua incapaci
dade de criar um a análise esquerdista feminista própria,
sua necessidade de relacionar o tempo todo o seu pro
blema a algumas “lutas fundamentais”, em vez de vê-lo
como central, ou mesmo revolucionário em si mesmo,
deriva diretamente de seus sentimentos permanentes de
inferioridade como mulheres. A incapacidade de colocar
as próprias necessidades em primeiro lugar, a necessidade
de aprovação m asculina — nesse caso, a aprovação do
¿nú-estabilishment masculino — para legitimá-las politi
camente, torna-as incapazes de se afastarem de outros
movimentos quando necessário, e assim as consigna a
um mero reformismo de esquerda, à falta de originali
dade, e finalmente à esterilidade política.
Contudo, o contraste com o feminismo radical, a
posição mais combativa dentro do movimento de liber
tação das mulheres, forçou as politiqueiras, bem como
as feministas conservadoras, a um a crescente defensiva,
e finalmente a um radicalismo cada vez maior. Inicial
mente, as mulheres cubanas e o N LF foram os modelos
incontestados, idolatrada sua liberdade; hoje existe uma
atitude do tipo esperar-para-ver-o-que-dá. Ano passado,
as questões puram ente feministas nunca eram trazidas à
baila sem que fosse prestado um tributo aos negros, aos
trabalhadores, ou aos estudantes. Este ano, os porta-vo-
zes da esquerda, em vez disso, falam de um modo empo
lado e dando importância à abolição da família nuclear.
Pois a Irm andade da Esquerda correu para ver o que
eles poderiam co-optar — propondo um a declaração con
tra a monogamia, a cujo sinal de, homens, ao trabalho!,
as feministas só poderiam rir amargamente. Mas ainda,
enquanto que o SDS não ligava a mínima há alguns anos
atrás para um tolo movimento feminino, hoje ele passou
a atribuir às suas mulheres um papel cada vez mais
50
atraente, para impedi-las de abandonarem o movimento,
p. ex., a W omen’s Militia, o “ exército de cabelos lon
gos” da facção Weathermen do SDS. H á o inicio do
reconhecimento esquerdista oficial das mulheres como
um im portante grupo oprimido com seus próprios di
reitos; alguma compreensão superficial da necessidade de
um movimento feminista independente; algum grau de
consideração pelos problem as e protestos das mulheres,
p. ex., o aborto ou as creches diurnas; e a crescente po
lítica de derivativos. E, assim como aconteceu nas pri
meiras fases do Black Power, há a mesma tentativa de
pacificar, o mesmo riso liberal nervoso, a mesma insen
sibilidade para a sensação de ser uma mulher, dissimu
lada nos dentes arreganhados de um sorriso do tipo esta-
m os-tentando-ganhar-um-beijo.
3) Feminismo Radical. As duas posições que des
crevemos usualmente geram um a terceira, a posição fe
minista radical. As mulheres de suas fileiras classificam-
se desde em feministas moderadas desiludidas com a
NOW, até em esquerdistas desiludidas com o women’s
lib, e incluem outras que ficaram esperando por esta
alternativa, mulheres para as quais nem o feminismo bu
rocrático conservador, nem o dogma esquerdista im por
tado despertaram muito interesse.
A posição feminista radical contem porânea é a des
cendente direta da linha feminista radical do antigo m o
vimento, sobretudo a defendida por Stanton e Anthony,
e mais tarde pela militante Congressional Union (subse
qüentemente conhecida como W oman’s P arty). E la V£
o problema feminista não só como prioritário para as
mulheres, mas também como central para qualquer aná
lise revolucionária mais ampla. Recusa-se a aceitar a
análise esquerdista atual, nao porque seja excessivamente
radical, mas por não ser suficientemente radical. E la vê
a análise esquerdista atual como anacrônica e superficial,
porque não relaciona a estrutura do sistema de classes
econômicas com suas origens no sistema de classes se
xuais, que constitui o modelo de todos os outros sistemas
de exploração, e assim o germe que deve ser primeiro
eliminado por qualquer revolução autêntica. Nos capítu-
51
los seguintes analisarei a ideologia do feminismo radical
e sua relação com outra teoria radical, de m odo a ilus
trar como só ele consegue colocar em foco as muitas
áreas conturbadas da análise esquerdista, fornecendo pela
prim eira vez uma solução revolucionária completa.
Devemos de imediato observar que o movimento
pode reivindicar para si; um potencial revolucionário
m uito maior, bem como qualitativamente diferente de
qualquer outro movimento do passado.
1) Distribuição. A o contrário dos grupos minoritá
rios (uma contingência histórica) ou do proletariado (um
desenvolvimento econômico), as mulheres sempre consti
tuíram uma classe oprimida majoritária (51 por cento),
espalhada uniformemente por todas as outras classes. Na
América, o movimento mais semelhante ao feminismo,
o Black Power, mesmo que conseguisse mobilizar ime
diatamente todos os negros do país, disporia de apenas
15 por cento da população. N a verdade, todas as mino
rias oprimidas juntas, sem supor nenhuma luta faccioná-
ria corpo a corpo, não constituiriam um a maioria — a
não ser que as mulheres fossem incluídas. O fato de as
mulheres viverem com homens, nalguns níveis nossa pior
desvantagem — pois o isolamento das mulheres umas
das outras foi responsável pela ausência ou pela fraqueza
do movimento de libertação das mulheres no passado —
é, num outro sentido, uma vantagem: um a revolucioná
ria em cada quarto de dormir não pode deixar de abalar
o status quo. E se quem está se revoltando é a sua mu
lher, você não pode escapar para os subúrbios. O femi
nismo, quando ele realmente atingir os seus objetivos,
fará estourar as estruturas mais básicas de nossa sociedade.
2 ) Política Pessoal. O movimento feminista é o pri
meiro a unir efetivamente o “pessoal” ao “político” . Ele
está desenvolvendo um novo modo de relacionamento,
um novo estilo político, que finalmente reconciliará o
pessoal — sempre a prerrogativa feminina — com o
público, com o “mundo exterior”, de modo a reintegrar
o mundo com as suas emoções, e literalmente com os
seus sentidos.
52
A dicotomía entre as emoções e o intelecto impediu
o movimento estabelecido de desenvolver urna base de
massa. De um lado, há os esquerdistas ortodoxos, seja
intelectuais abstratos das universidades sem contato com
a realidade concreta, seja na sua aparência ativista, mi
litantes do machismo, tolerantes na sua ação pouco preo
cupada com a eficácia política. De outro lado, há a N a
ção Woodstock, a Revolta Jovem, a Geração F lor e
Drogas dos Hippies, os Yippies, os Crazies, os M other-
fuckers, os M ad Dogs, os Hog Farm ers e outros, que,
embora compreendam que a velha panfletagem e a aná
lise marxista não funcionam mais — que o problema é
muito mais profundo do que m eramente a luta do pro
letariado, que praticamente constitui a vanguarda ame
ricana — contudo não dispõem de nenhuma análise his
tórica própria com a qual substituí-la; na verdade, são
apolíticos. Assim, o movimento está soçobrando, seja ele
marginal, estilhaçado e ineficaz devido a sua análise rígi
da e anacrônica, seja carecendo de um a base histórica e
econômica séria onde há um apelo para o movimento
de massa. É “escapista”, em vez de revolucionário.
3) O Fim da Psicologia do Poder. A maioria dos
movimentos revolucionários é incapaz de praticar entre
si o que pregam. Cultos intensos à liderança, facciosis-
mo, ego trips, difamações são muito mais a regra do que
a exceção. O movimento das mulheres, na sua curta his
tória, tem um registro um pouco melhor do que a maio
ria nessa área. Um de seus principais objetivos declara
dos é a democracia interna — e ele não mede esforços
(m uitas vezes absurdos) para perseguir essa meta.
O que não quer dizer que ele sejabem sucedido.
Há muito mais retórica do que realidade nesse assunto,
muitas vezes disfarçando hipocritam ente os mesmos ve
lhos estratagemas e jogos de poder — freqüentemente
com novas e complexas variações femininas. Mas é de
mais exigir que, dadas as suas raízes profundas nas clas
ses sexuais e na estrutura familiar, alguém nascido hoje
seria capaz de eliminar a psicologia do poder. E, embora
seja verdade que muitas mulheres nunca tenham assumi
do o papel dominante (poder sobre os outros), existem
53
muitas outras que, identificando sua vida com a dos ho
mens, encontram -se na posição especial de terem que
erradicar, ao mesmo tempo, não só suas naturezas sub
missas, mas também suas naturezas dominadoras, esvain
do-se de um lado e de outro.
M as se existe algum movimento revolucionário que
possa conseguir estabelecer um a estrutura igualitária, este
é o feminismo radical. Questionar as relações básicas
entre os sexos e entre pais e filhos é trazer os modelos
psicológicos de dominação-submissão às suas próprias
origens. Exam inando politicamente esta psicologia, o fe
minismo será o primeiro movimento a lidar com o pro
blem a de um modo materialista.
1
54
III. FREUDISMO: UM FEMINISMO
DESVIRTUADO
55
clichê do hum or moderno (nervoso). Levaríamos algum
tempo para catalogar o número de caricaturas que se
referem à psicanálise. Construímos um a nova simbologia
em torno de um divã solitário.
O freudismo se tornou, com seus confessionários e
penitências, prosélitos e convertidos, com os milhões gas
tos na sua manutenção, a nossa Igreja moderna. Não
conseguimos atacá-lo sem constrangimento, pois nunca
se sabe se, no dia do Juízo Final, ele pode estar com a
razão. Quem tem certeza de que ele não é tão saudável
quanto prega? Quem pode igualá-lo em sua alta capaci
dade? E quem não se espanta com a sua sagacidade?
Quem não odeia o pai e a mãe? Quem não compete
com o irmão? Que mulher não desejou ser um menino
nalgum momento da vida? E as pessoas ousadas que ain
da persistem em seu cepticismo sempre esbarram com
essa terrível palavra: resistência. Elas são as mais doen
tes, é óbvio, pois o combatem tanto.
Houve uma reação. Livros foram escritos, floresce
ram profissões, só a partir das contradições da própria
obra de Freud. Algumas ficaram conhecidas por uma
crítica a apenas um a parte de sua obra (p. ex., refutan
do o desejo de morte, ou a inveja do pênis), e outras,
mais corajosas, ou mais ambiciosas, atacaram os abusos
da totalidade da obra. Teorias críticas abundam em todas
as festinhas e coquetéis. Alguns intelectuais vão longe,
ao ponto de relacionar a morte da comunidade intelec
tual na América com a im portação da psicanálise. Em
oposição à religiosidade do freudismo, foi fundada toda
uma escola empírica, o behaviorismo (em bora a psicolo
gia experimental sofra de seus próprios tipos de precon
ceitos*). E, gradativamente, com tudo isso, o pensamen
to freudiano foi desmontado, seus princípios mais essen
ciais foram sendo abandonados um por um, até não res
tar mais nada a ser atacado.
56
E contudo ele não morreu. Em bora a terapia psica-
nalítica se tenha m ostrado ineficaz, e as idéias de Freud
sobre a sexualidade das mulheres tenham-se revelado li
teralmente erradas (p. ex., o mito do duplo orgasmo de
M asters e Johnson), as velhas concepções ainda circulam.
Os médicos continuam a praticá-las. E no fim de toda
crítica nova encontramos uma homenagem culposa, fren
te ao G rande Pai que começou tudo. Eles não conse
guem matá-lo completamente.
M as eu não penso que isso seja simplesmente uma
falta de coragem em admitir, depois de todos esses anos,
que o “rei estava nu”. Não creio que isso ocorra só
porque eles estejam com isso m inando seu ganha-pão.
Penso que, na maioria dos casos, foi a mesma integri
dade que os fez questionar toda a teoria que os impediu
de destruí-la totalmente. “Intuitivamente” sua “consciên
cia” lhes diz que não se atrevam a desferir esse golpe
final.
Pois ainda sentimos que existe alguma verdade nas
teorias de Freud, embora elas não sejam empiricamente
verificáveis, embora o freudismo, na prática clínica, te
nha levado a absurdos reais, embora, de fato, desde 1913
já se tivesse observado que a psicanálise era a própria
doença que ela pretendia curar, criando uma nova neu
rose no lugar da antiga, e embora se observasse que as
pessoas sob terapia pareciam hoje mais preocupadas con
sigo mesmas do que nunca, tendo chegado a um esta
do de neurose “perceptiva”, repleto de “regressões”, de
“transferências” cegas de amor, e de soliloquios agoni
zantes. Em bora essas pessoas sob terapia sejam domina
das pela confusão quando lhes perguntam, sem rodeios,
“Essas terapias ajudam?”, ou “Elas valem a pena?”, elas
não podem ser menosprezadas completamente.
Freud conquistou a imaginação de todo um conti
nente e de toda um a civilização por um a boa razão.
Em bora, na superfície, sua teoria fosse inconsistente,
ilógica, ou “fora do comum” , seus seguidores, com sua
lógica, seus experimentos e suas revisões cautelosos, não
têm nada de comparável a dizer. O freudismo está tão
saturado e, ao mesmo tempo, é tão impossível de ser
57
recusado, porque Freud tocou no problema crucial da
vida moderna: a sexualidade.
58
Na virada do século havia, então, no pensam ento so
cial e político, na cultura literária e artística, urna enorme
fermentação e idéias relativas à sexualidade, ao casa
mento, à família, ao papel das mulheres. O freudismo
foi apenas um produto cultural dessa fermentação. Ambos,
freudismo e feminismo, surgiram como reações a um dos
períodos mais presunçosos da civilização ocidental, a E ra
Vitoriana, caracterizada por sua centralização da família,
e, conseqüentemente, por sua exagerada opressão e re
pressão sexuais. Ambos os movimentos significaram um
despertar. Só que F reud foi meramente um diagnosticador
daquilo que o feminismo pretendia curar.
2) O freudismo e o feminismo são farinha do mesmo
saco. A grande façanha de Freud foi redescobrir a sexua
lidade. F reud viu a sexualidade como a principal força
vital. M ostrou que a m aneira como a libido se organizava
na criança determinava a psicologia do indivíduo (que,
além disso, reproduzia a psicologia das espécies histó
ricas). Descobriu que, para se ajustar à civilização atual,
o ser sexuado deveria sofrer um processo de repressão
na infância. E que, em bora todo indivíduo sofra essa re
pressão, ela é mais eficaz numas pessoas do que em outras,
gerando um desajuste m aior (psicose) ou m enor (neu
rose), em geral tão intenso que é capaz de arruinar o
indivíduo completamente.
O tratam ento proposto por Freud é menos im por
tante, e, na verdade, foi a causa do mal atual. Por um
processo de trazer à tona as repressões danificadoras, do
reconhecimento consciente e da investigação sem restri
ções, o paciente deve ser capaz de chegar a um acordo
com o id, de recusar conscientemente, em vez de reprimir
inconscientemente os desejos perturbadores do id. Esse
processo terapêutico se inicia com a ajuda do psicana
lista, através da “transferência”, na qual o psicanalista
substitui a figura da autoridade original, que está na base
da neurose repressiva. Como a religião restauradora ou
a hipnose (que, na realidade, Freud estudou, e pela qual
foi muito influenciado), a “transferência” se estabelece
através do envolvimento emocional, e não através da
razão. O paciente se “apaixona” por seu analista. “Pro-
59
jetando” o problem a na suposta tábua rasa da relação
terapêutica, ele é capaz de descobri-lo e de curar-se dele.
Só que simplesmente isso não funciona.1
Filiado à tradição da ciência “pura” , Freud observou
estruturas psicológicas, sem nunca questionar seu contexto
social. Dados a sua própria estrutura psíquica e os seus
preconceitos culturais — ele foi um tirano intolerante
da escola antiga, para quem algumas verdades sexuais
devem ter sido caras — dificilmente poderíamos esperar
que ele tivesse feito desse tipo de investigação um a parte
de sua obra. (Wilhelm Reich foi um dos poucos que se
guiram esse caminho.) Além disso, assim como M arx não
pôde levar em conta o futuro advento da cibernética,
Freud, naquela época, não tinha o conhecimento aluci
nante das possibilidades tecnológicas, de que hoje dispo
mos. Mas se devemos ou não censurar Freud pessoal
mente, o fato de ele não ter questionado a própria socie
dade foi responsável pela grande confusão característica
das disciplinas que surgiram em torno de sua teoria. As
sediados pelos intransponíveis problemas resultantes da
tentativa de pôr em prática um a contradição básica —
a resolução de um problema dentro do meio-ambiente que
o criou — seus seguidores começaram a atacar cada ele
mento de sua teoria, um atrás do outro, até que chegas
sem a “jogar fora a criança, junto com a água da bacia”.
Mas havia algum valor nessas idéias? Reexaminemos
novamente algumas delas, desta vez a partir de um ponto
60
de vista feminista radical. Acredito que Freud falava de
alguma coisa real, embora talvez suas idéias, tomadas
literalmente, sejam absurdas. A esse respeito, considere-
se que o gênio de Freud foi mais poético do que científico.
Suas idéias são mais valiosas como metáforas do que
como verdades literais.
Considerando isto, examinemos primeiro a pedra
angular da teoria freudiana, o Complexo de Édipo, no
qual o menino deseja a mãe sexualmente e deseja m atar
o pai, reprimindo esse desejo, em função do medo de ser
castrado pelo pai.2 O próprio Freud disse em seu último
livro: “Eu me arrisco a afirmar que, se a psicanálise puder
se gabar só da descoberta do Complexo de Édipo, tanto
tempo reprimido, isso, por si só, a faria merecer ser
incluída entre as precisas aquisições novas da humani
dade.” Compare-se isto com o que diz Andrew Salter em
“O Argum ento contra a Psicanálise
61
“O pensamento de Freud sobre o fim “normal” do Com
plexo de Édipo sofre de uma inconsistência em sua lógica.
Se admitimos que o fim do Complexo de Édipo tem sua
origem no m ed o d a castração, não é evidente que a n orm a
lidade é atin gida co m o um resu ltado d o m ed o e d a repressão
exercidas sobre o m enino? E a obtenção da saúde mental
através da repressão não entra em contradição flagrante com
as doutrinas freudianas mais elementares? (Grifos da autora)
62
gica já terá se firmado. Elas agora estão prontas para re
petir a atuação do pai.
É im portante lem brar que as versões mais recentes
da família nuclear, embora possam velar essa relação es
sencial, a ponto de ela ficar irreconhecível, reproduzem
essencialmente o mesmo triângulo de dependências: o pai,
a mãe, o filho. Pois mesmo que a mulher tenha a mesma
instrução, mesmo que ela trabalhe (devemos nos lem brar
de que, antes das difíceis conquistas alcançadas pelo
W.R.M. da época de Freud, as mulheres não iam à escola,
nem podiam ter em pregos), ela raram ente é capaz, dada
a desigualdade do mercado de trabalho, de ganhar tanto
dinheiro quanto seu marido (e maldito seja o casamento
que ela fez). Mas, mesmo que ela pudesse, ainda assim
ela seria completamente incapaz de fazê-lo. Pois, tom ar
as mulheres e as crianças, ambas, totalmente indepen
dentes seria eliminar não só a família nuclear patriarcal,
mas também a própria família biológica.
Esse é, portanto, o clima opressivo no qual a criança
normal cresce. Desde o início, ela é sensível à hierarquia
do poder. Sabe que, em todos os níveis, física, econômica
e emocionalmente, é completamente dependente, e está,
portanto, à mercê dos pais, seja quem eles forem. No
entanto, entre os dois, sempre terá preferência pela mãe.
M antém um vínculo com ela, por serem ambas oprimi
das. Só que, enquanto a criança é oprimida por ambos
os pais, a mãe, pelo menos, é oprimida apenas por um.
O pai, do ponto de vista da criança, detém controle
absoluto. ( “Espere até seu pai chegar do trabalho! M e
nino, você vai apanhar pra valer!” ). A criança então
sente que a mãe está a meio-caminho da autoridade e da
impotência. E la pode correr para o pai, se sua mãe estiver
tentando ser injusta; mas, se o pai bater nela, a mãe não
poderá lhe oferecer muito, além de chá e simpatia. Se
a mãe for sensível à injustiça, ela poderá usar de sua as
túcia e lágrimas para poupá-la. M as ela própria usa de
astúcia e lágrimas nessa idade, e sabe que essas lágrimas
não se comparam com a força genuína. Sua eficácia, de
qualquer maneira, é limitada, dependente de muitas va
63
riáveis ( “m au dia no trabalho!” ). Ao passo que a força
física, ou a sua ameaça, são um trunfo garantido.
Na família tradicional também existe um a polaridade
parental: a mãe deve am ar o filho devotamente, enquanto
que o pai, por outro lado, raram ente se interessa muito
pelas crianças certam ente não no convívio íntimo. E , mais
tarde, quando o filho cresce, ele o ama condicional
mente a sua atuação e a sua realização. Erich From m , em
A A rte de A m a r :
64
Freud, ao contrário de outros, não subestimou o que
se passa com um a criança antes dos seis anos de idade.
Se as necessidades básicas de um a criança são satisfeitas
pela mãe, se é alimentada, vestida e acariciada por ela,
se é am ada “incondicionalmente”, contrariam ente ao am or
“condicional” do pai — ela raram ente o vê e, no caso, só
para ser castigada ou para obter a “ aprovação masculina”
— e se, além disso, sente que ela e a mãe estão unidas
contra o pai mais poderoso, a quem têm que agradar e
satisfazer, então talvez seja verdade que todo homem nor
mal se identifique primeiro com a mãe.
Quanto a desejar a mãe, sim, isso também é verdade.
M as é absurdo aquilo a que um a leitura literal de Freud
pode levar. A criança não sonha ativamente em pene
trar a mãe. As possibilidades são de que ela ainda sequer
consiga imaginar como se poderia realizar esse ato. Nem
ela é fisicamente bastante desenvolvida para ter necessi
dade de um a descarga orgásmica. Seria mais correto ver
essa necessidade sexual de um a m aneira generalizada,
mais negativa: isto é, só mais tarde, devido à estrutura
ção da família em torno do tabu do incesto, a resposta
sexual deverá se separar dos outros tipos de respostas fí
sicas e emocionais. Primeiramente, elas aparecem inte
gradas.
O que acontece aos seis anos, quando se espera do
menino que ele comece a “encorpar” e a agir como um
homenzinho? Palavras como “identificação masculina” c
“imagem do pai” começam a, circular. Os brinquedos
aconchegantes do ano anterior lhe são arrancados. Ele é
levado a jogar futebol. Caminhões e trens elétricos se mul
tiplicam. Se ele chora, é chamado de “m aricas” ; se corre
para sua mãe, é chamado de “filhinho da m amãe”. O
pai, de repente, começa a se interessar ativamente por
ele ( “Você o estragou com mimos!” ) O menino teme o
pai, com razão. Sabe que, entre os dois, quem tende mais
para o seu lado é a mãe. N a maioria dos casos, ele já ob
servou bem nitidamente que o pai faz sua mãe infeliz,
fá-la chorar, não fala muito com ela, discute muito com
ela, e a m altrata (é por isso que se ele presenciou uma
relação sexual, provavelmente a terá interpretado com
65
base no que sempre deduziu do relacionamento de seus
pais, isto é, que o pai está atacando a m ãe). Contudo,
subitamente espera-se que ele se identifique com esse es
tranho, meio animalesco. Naturalm ente, ele não quer.
Resiste. Começa a sonhar com bicho-papão. Começa a
ter medo da sombra. Chora quando vai ao barbeiro.
Pensa que o pai vai cortar-lhe o pênis. Não se com porta
como o homezinho que deveria ser.
Essa é a difícil fase de transição. O que é que, final
mente, convence a criança norm al a inverter sua identi
ficação? From m expressa-o muito bem: “Mas embora o
pai não represente nenhum m undo natural, representa o
outro pólo da existência hum ana; o mundo do pensa
mento, das coisas feitas-pelo-homem, da lei e da ordem,
da disciplina, das descobertas e da aventura. É o pai que
ensina a criança, que lhe mostra o caminho do mundo. . .”
O que finalmente o convence é a promessa do mundo,
quando ele crescer. Ele é solicitado a fazer um a transição
do estado dos sem poder, isto é, as mulheres e as crianças,
para o estado dos potencialmente poderosos, isto é, os
filhos (extensões do ego) de seu pai. A maioria das crian
ças não é tola. Elas não pretendem ficar presas nas vidas
ruins e limitadas das mulheres. Querem essas descobertas
e essa aventura. Mas isso é difícil. Porque, no íntimo,
desrespeitam o pai, com todo o seu poder. Simpatizam com
a mãe. Mas o que elas fazem então? “Reprim em ” a liga
ção profundam ente emocional com a mãe, “reprimem” o
desejo de m atar o pai, e ascendem ao honroso estado da
masculinidade.
Não é de adm irar que essa transição deixe um resí
duo emocional, um “complexo”. Para salvar o próprio
pêlo, o menino teve que abandonar e trair a mãe, e unir-se
a seu opressor. Sente-se culpado. Seus sentimentos pelas
mulheres ficam, em geral, afetados por isso. A maioria
dos homens fez um a transição “gloriosa” para a posição
de domínio sobre os outros; alguns ainda estão tentando.
Outros componentes da teoria freudiana também se
esclarecem, quando examinados à luz do poder, i.e., em
termos políticos. O antídoto do feminismo elimina o pre
conceito sexual que gerou a distorção inicial.
66
Geralmente, acredita-se que o Complexo de Electra
é uma descoberta menos profunda do que o Complexo de
Édipo, porque, como em todas as teorias de Freud sobre
as mulheres, ele só analisa a mulher como um homem ne
gativo. O Complexo de Electra, com seu intrincado com
plexo de castração, em resumo, é o seguinte: a menina,
do mesmo modo que o menino, desenvolve inicialmente
um a fixação pela mãe. Por volta dos cinco anos, quando
descobre que não tem pênis, ela começa a se sentir cas
trada. P ara compensar, ela tenta aliar-se ao pai, através
da sedução, desenvolvendo, assim, um a rivalidade, e um a
subseqüente hostilidade à mãe. O superego se desenvolve
em reação à repressão do pai. Mas, pelo fato de ser o
objeto da sedução dela, ele não a reprime como reprime
o filho, e, assim, a organização psíquica básica da menina
difere da do irmão; é mais fraca. Diz-se de um a menina
oue persiste em identificar-se intensamente com o pai que
ela regrediu ao estágio “clitoral” da sexualidade feminina.
Provavelmente, será frígida ou lésbica.
A característica mais notável dessa descrição, rea
firm ada em termos feministas, é que a menina, também,
se vincula primeiramente com a mãe (o que, em si mes
mo, nega um a heterossexualidade biologicamente deter
m inada). Do mesmo modo que o menino, a menina tam
bém ama à mãe mais do que ao pai, e exatamente pelas
mesmas razões: a mãe cuida dela mais intimamente do
que o pai, e compartilha de sua opressão. Por volta dos
cinco anos, na mesma idade do menino, ela começa a
observar conscientemente o maior poder do pai, seu acesso
a esse mundo mais amplo e interessante, que é negado a
sua mãe. Nesse ponto, ela rejeita a mãe por ser monótona
e familiar, e começa a identificar-se com o pai. A situa
ção complica-se mais tarde, no caso de ela ter irmãos,
pois, então observa que o pai é mais propenso a permitir
que o irmão participe desse mundo, de seu poder, e, no
entanto, esse mundo ainda lhe é negado. Ela, agora, tem
duas alternativas: 1) Avaliando realisticamente a situação,
pode começar a usar da astúcia feminina, ao máximo, na
tentativa de roubar ao pai o poder (então, terá que com
petir com a mãe pelos favores do poderoso), ou 2) Pode
67
recusar-se a acreditar que a diferença física entre ela e
seu irmão implique, para sempre, um a desigualdade de
poder correspondente. Nesse caso, ela rejeita tudo que
se identifica com a mãe, i.e., a servidão e a astúcia, a
psicologia do oprimido, e imita obstinadamente tudo que
ela viu seu irm ão fazer, e que possibilitou a ele o tipo de
liberdade e aprovação que ela busca. (Observe-se que eu
não digo que ela finja uma masculinidade. Essas carac
terísticas não são determinadas sexualmente.) Mas, em
bora tente desesperadamente ganhar os favores do pai,
comportando-se cada vez mais do modo como ele aber
tamente incentivou o irmão a se comportar, isso não
surte efeito para ela. Ela tenta com m aior empenho ainda.
Passa a se com portar como um moleque — e gosta de
ser chamada assim. Essa obstinação face a um a realidade
ofensiva pode até dar resultado. P or algum tempo. Até a
puberdade, talvez. Então ela ficará totalmente sem ação.
Não poderá mais negar o sexo. Ele é confirmado pelos
homens cheios de desejo a sua volta. É nesse momento que
ela, geralmente, desenvolve um a identificação feminina,
com um a vingança. (As adolescentes tão “difíceis” , “cheias
de segredinhos e risinhos” ; no caso dos meninos, essa é
a fase da pirralhice im portuna.)
Quanto à “inveja do pênis”, mais uma vez é mais
prudente vê-la como uma metáfora. Mesmo quando existe
uma preocupação real com os órgãos genitais, é evidente
que qualquer coisa que distinga fisicamente o homem inve
jado, será invejada. Pois a menina não pode, realmente,
compreender como é que, se ela faz exatamente a mes
ma coisa que seu irmão, o com portamento dele é apro
vado e o dela não. Ela pode ou não estabelecer um a rela
ção confusa entre esse comportamento e o órgão que di
ferencia o irmão. Sua hostilidade em relação à mãe, mais
um a vez, só pode ser compreendida se ligada a um a si
milaridade genital observada: tudo que a identifica com a
mãe, e que ela, ião inflexivelmente, tenta rejeitar, é tam
bém rejeitado. M as é muito menos provável uma menina,
por sua própria vontade, atribuir-se o mesmo sexo da
mãe do que ver-se como assexuada. Ela pode até orgu
lhar-se disso. Afinal, não tem protuberâncias óbvias, como
68
os seios que m arcam a feminilidade de sua mãe. E,
quanto aos órgãos genitais, seu buraquinho inocente p a
rece não ter nenhum a semelhança com a floresta cabeluda
que a mãe tem. R aram ente ela sabe sequer que ela tem
uma vagina, porque ela está vedada. Seu corpo, até agora,
c tão ágil e funcional quanto o do irmão, e ela está em
harm onia com ele. E la e o irmão são apenas dois seres
oprimidos pela maior força dos adultos. Sem ter uma
orientação específica, ela pode iludir-se, durante um longo
tempo, de que não acabará por ficar como a mãe. É por
isso que ela é tão incentivada a brincar com bonecas, a
brincar de “casinha”, a ser bonita e atraente. Espera-se
que ela não seja um a das que recusam seu papel, até o
último minuto. Espera-se que ela logo se ajuste a ele
artificialmente, pela persuasão, e não por necessidade;
que a promessa abstrata de um bebê seja um chamariz su
ficiente para substituir aquele mundo excitante de “des
cobertas e aventura.” (O mercado de bonecas, em ex
pansão, capitaliza essa ansiedade parental. No que tange
à criança, ela gosta de presentes, independentemente de
quais sejam as intenções obscuras dos desejos adultos. No
entanto, logo que elas compreendem para que servem as
bonecas, muitas meninas espertas rapidamente decidem
que querem um tipo diferente de brinquedo, ou, pelo
menos, um a boneca “Barbie”.* Afinal, elas preferem
afiar suas garras contra “K en” ** do que representar o
papel da M amãe já-conformada.
À luz dessa interpretação feminista, muitas doutrinas
freudianas periféricas, que pareciam absurdas, agora pas
sam a fazer sentido. Por exemplo, Ernest Jones, em
Papers on Psychoanalysis:
“Em muitas crianças existe um vivo desejo de se torna
rem os pais de seus próprios pais. . . Essa curiosa construção
da imaginação. . . evidentemente está estreitamente relacio
nada com os desejos incestuosos, uma vez que ela é uma forma
exagerada do desejo plebeu de ser o próprio pai de si mesmo.”
69
Tradução feminista: A fantasia das crianças, estando
num a posição de poder acima dos pais, domina particular
mente a única pessoa que realmente alcançou o poder:
o Pai.
Ou Freud, falando sobre o fetichismo:
fe*
“O objeto é o substituto do falo da mãe, que o menino
acredita estar embutido, e do qual não deseja privar-se.”
70
E além disso:
71
sociedade, permanecem na superfície, danificando seria
mente o relacionamento sexual do indivíduo, ou até sua
psique total. Está fadado a falhar quase sempre um sis
tem a no qual a prim eira pessoa a quem a criança res
ponde emocionalmente exigirá dela que reprima um a parte
substancial dessas respostas. E, como R uth Hirschberger
observou em A d a m ’s Rib:
“É significativo que a mesma mulher que despertou o
afeto do menino (e poucas negam o componente sexual em
plena expansão) é, também, a primeira a divulgar o tabu con
tra sua sexualidade. . . A supressão da sexualidade torna-se
o requisito para a afeição da mãe.”
72
Ela pode, devido à rivalidade posterior, nunca aprender
i a reprimir esse vínculo. Ou pode tentar agir como um
menino, para ganhar a aprovação da mãe (infelizmente,
as mulheres também preferem os m eninos). Inversamente,
nos casos em que ela se identifica intensamente com o
i pai, ela pode recusar-se a renunciar ao desejado privilégio
masculino, mesmo depois da puberdade. Em casos extre
mos, ela imagina ser realmente o homem, cujo papel está
representando.
E mesmo as mulheres que parecem sexualmente ajus
tadas, raram ente o são, na verdade. Devemos nos lem
brar que uma mulher pode ter relações sexuais sem sentir
nada; um homem não pode. Em bora poucas mulheres, por
causa da pressão exercida sobre elas para que se confor
mem com sua situação, realmente repudiem seu papel
sexual completamente, tornando-se lésbicas ativas, isso
não significa que a maioria das mulheres se satisfaça se
xualmente nas relações com os homens. (Contudo, a
sexualidade danificada das mulheres é relativamente ino
fensiva em termos sociais; ao passo que a doença sexual
masculina, ou seja, a confusão da sexualidade com o
poder, prejudica os outros.) Essa é um a das razões pelas
quais na sociedade vitoriana, bem como durante um longo
período antes e depois dela, e inclusive hoje, o interesse
das mulheres pelo sexo é menor do que o dos homens.
Esse fato é tão desconcertantemente óbvio que levou um
conhecido psicanalista, Theodore Reik, a concluir, em
1966, “que o próprio impulso sexual é masculino, até
mesmo nas mulheres, porque, num nível de evolução infe
rior, a reprodução é possível sem os machos.”
Desse modo, vemos que na sociedade baseada na fa
mília as repressões originadas no tabu do incesto tornam
impossível uma sexualidade plenamente satisfeita para
qualquer pessoa, e possível só para poucos uma prática se
xual satisfatória. Os homossexuais de nossa época são
apenas as maiores vítimas do sistema de sexualidade re
primida que se desenvolve na família. Mas, embora a ho
mossexualidade hoje seja tão limitada e doentia quanto
nossa heterossexualidade, breve chegará o dia em que a
transexualidade saudável será a norma. Pois, se admitimos
73
que o impulso sexual é, desde o nascimento, difuso e in-
diferenciado da personalidade global, e, como vimos, só
se torna diferenciado em resposta ao tabú do incesto; e
se, além disso, admitimos que o tabú do incesto é hoje
necessário apenas para preservar a família; então, se
destruirmos a familia, estaremos, na verdade, destruindo
as repressões que moldam a sexualidade em estruturas es
pecíficas. Sendo iguais todos os tipos de sexualidade, as
pessoas poderão ainda preferir indivíduos do sexo oposto,
simplesmente porque isto é fisicamente mais conveniente.
Mas até isso não passa de uma enorme suposição. Por
que se a sexualidade em nenhum momento estivesse sepa
rada das outras respostas, e se um indivíduo respondesse
ao outro de um modo total, que incluísse a sexualidade
meramente como um dos componentes de sua resposta,
então é pouco provável que um fator puramente físico
pudesse ser decisivo. Contudo, não temos nenhum meio
de saber disso agora.
O fim da diferenciação entre o nível sexual e a per
sonalidade total poderia também ter implicações cultu
rais importantes. Atualmente, o Complexo de Édipo,
originário do hoje quase universal tabu do incesto, requer
que a criança cedo distinga o “ emocional” do “sexual” .
Um é considerado pelo pai como um a resposta apropria
da para a mãe; o outro, não. Se a criança quiser ganhar
o am or da mãe, deve separar o sentimento sexual de seus
outros sentimentos (a “sublimação” e as “relações inibi
das quanto ao alvo” de F reud). Um desenvolvimento
cultural que provém diretamente dessa dicotomía psico
lógica artificial é a síndrome mulheres boas/m ulheres
más, com a qual culturas inteiras ficaram doentes. Isto é,
a divisão da personalidade é projetada na classe das “mu
lheres” : as que se assemelham com a mãe são “boas” , e,
conseqüentemente, não se deve ter desejos sexuais por
elas; as que não se assemelham com a mãe, que não sus
citam um a resposta total, são sexuais, e, portanto, “m ás”.
Classes inteiras de mulheres, p.ex., as prostitutas, pagam
com a vida por essa dicotomía; outras sofrem em graus
diferentes. Um a boa parte de nossa linguagem é designada
p ara degradar as mulheres até o nível em que é permissí-
74
vel ter desejos sexuais por elas. ( “Puta! Tua cabeça
f está entre as tuas pernas!” ) Essa esquizofrenia sexual
raram ente é superada de todo pelo indivíduo. E, na cultu
ra em geral, desenvolvimentos históricos inteiros, como
a própria história da arte e da literatura, foram direta-
1 mente por ela. Assim, a honra cortesa da Idade M édia,
que exaltava as mulheres, exclusivamente à custa de sua
hum anidade consanguínea — fazendo do sexo um ato
baixo, desligado do am or verdadeiro — desenvolveu-se
no maneirismo, o culto da virgem na arte e na poesia.
Um a canção da época ilustra a divisão:
* No original:
I care not for these ladies
W ho must be wooed and prayed,
Give me kind Amaryllis,
The wanton country maid,
I ’ N ature A rt disdaineth,
Her beauty is her own,
F or when we hug and kiss she cries
“ Forsooth, let us go”
But when we come where comfort is
She never will say no.
75
força, vindo erotizar toda nossa cultura, m udando a sua
própria definição.
* * *
76
mesmas condições históricas, e segundo, a de que o freu-
, dismo e o feminismo baseiam-se no mesmo conjunto de
realidades, acrescentarei uma terceira: o freudismo clas
sificou o feminismo como o menos importante de dois
males.
> M ostramos como o freudismo tocou no mesmo pon
to crucial do feminismo. Ambos, simultaneamente, foram
respostas a séculos de um a crescente privatização da vida
familial, com extrema submissão das mulheres, e com
as repressões sexuais e as neuroses subseqüentes, ge
radas por essa situação. Fieud também foi considerado,
em tempos passados, um maníaco sexual, um destrutivo,
para a sociedade. Ele foi tão ridicularizado e menospre
zado quanto o foram as militantes feministas. Só muito
mais tarde é que o freudismo se tornou tão sagrado quanto
uma religião estabelecida. De que modo essa inversão se
processou?
Consideremos, primeiro, o contexto social do desen-
( volvimento do freudismo e do feminismo. Vimos que as
idéias das primeiras feministas radicais continham os ger
mes da revolução sexual vindoura. Vimos que, embora
em muitos casos as próprias feministas não tenham com
preendido claramente a importância daquilo em que ti
nham esbarrado, embora, freqüentemente, não tivessem
formulado um a crítica radical feminista da sociedade que
fosse completa e consistente — e isto não é de surpreen
der, dado o clima político da época — a reação da so
ciedade contra elas indica que seus inimigos sabiam o
que elas queriam, mesmo que elas próprias não estives
sem seguras disso. A virulenta literatura antifeminista da
época, geralmente escrita por homens respeitáveis e ho
nestos em suas próprias áreas de empenho, ilustra a
ameaça que as feministas representavam para o estabe
lecimento. Também mostrei, no capítulo anterior, como
o movimento foi redirigido, num esforço exaustivo para
obter o voto, e como, desse modo, ele foi desviado e
destruído. Seguindo-se ao fim do movimento feminista,
com a obtenção do direito ao voto, surgiu a era das
“m elindrosas”, um a era que lembra muito a nossa, na
sua sexualidade pseudoliberada. A rebelião feminina mui-
77
to difundida, provocada pelo movimento feminista, não
tinha nesse momento nenhum rumo a seguir. As mulhc- ,
res que tinham cortado o cabelo, encurtado as saias e
entrado para a universidade, não encontravam um sen
tido político para sua frustração; em vez disso, elas se
extravasavam em m aratonas, ou se consumiam cruzando *
a nado o Canal da M ancha e pilotando aviões, através
do Atlântico. Eram uma classe ativa, que não sabia o
que fazer com a consciência. Diziam-lhes, como ainda
nos dizem: “Vocês conseguiram direitos civis, saias cur
tas, e liberdade sexual. Vocês venceram a sua revolução.
O que mais querem?” Mas a “revolução” tinha sido ga
nha dentro de um sistema organizado em torno da fa
mília nuclear patriarcal. E, como H erbert M arcuse mos
tra em Eros e Civilização, dentro dessa estrutura repres
siva só pode resultar uma repressão mais sofisticada
( “dessublimação repressiva” ).
78
ciedades, que ainda declaravam abertam ente a suprema
cia masculina, em pôr “suas” mulheres em liberdade.
( “Amamos nossas mulheres do jeito como elas são: fe
mininas”). Os recrutas americanos voltaram da Segunda
Guerra M undial com histórias dessas grandes mulheres
continentais, que ainda sabiam como fazer um homem
se sentir bem. A palavra castração começou a circular.
E, finalmente, na América, na década dos quarenta, o
freudismo assumiu um lugar importante.
Enquanto isso, o freudismo tinha sofrido profundas
mudanças internas. A ênfase na teoria psicanalítica des
locou-se para a prática clínica. No capítulo final de Eros
e Civilização, M arcuse discute as implicações reacioná
rias dessa mudança. M ostra como a contradição entre as
idéias de Freud e a possibilidade de qualquer “terapia”
eficaz baseada nelas acabou causando a assimilação da
teoria pela prática, para adaptar-se a ela — a psicanálise
não pode realizar a felicidade do indivíduo num a socie
dade, cuja estrutura só pode, no máximo, tolerar uma
felicidade individual, que seja rigorosamente controlada.
79
“ adaptar” ao racismo ou ao sexismo específicos que limi
tam nossa potencialidade, desde o início. Deve-se aban
donar todas as tentativas de autodefinição _ou autodeter
minação. Assim, na visão de Marcuse, o processo da te
rapia torna-se, meramente, “um caminho para a resigna
ção”. Pois, como na freqüentemente citada afirmação de
Freud a um paciente seu (Estudos sobre a Histeria,
1895), “ [M uito se ganhará se conseguirmos, através da
terapia] transform ar o seu sofrimento histérico na infe
licidade cotidiana.”
E, como podem atestar todos os que foram subme
tidos à terapia, esta é exatamente a situação real. A des
crição que Cleaver faz de sua análise, em Soul on Ice,
fala também da experiência de qualquer outra pessoa
oprimida:
80
“As meninas, de vez em quando, cochicham umas para as
outras: “Os homens fazem” isso ou aquilo. Os meninos nunca
se referem às mulheres desse jeito.”
“Uma mulher dá muito mais valor ao fato de ser mu
lher, do que um homem ao fato de ser homem.”
“A maioria das mulheres, quando pede um favor a um
homem, sorri. Na mesma situação, os homens raramente
sorriem.”
“Ser um dândi [laciies’ man] significa ser menos homem.”
“Quase todas as mulheres têm medo de que o homem
que elas amam a deixe. Mas dificilmente um homem tem
medo que uma mulher o deixe.”
“As mulheres, quando em grupo, às vezes dizem: “Meu
mestre e senhor deixou-me sair de casa esta noite.” Os ho
mens dizem, referindo-se a elas: “Meu fardo”.”
81
Eis um a típica interpretação terapêutica:
82
Mas o doutor acaba vencendo:
“Quando chegou a hora de ir embora, ela demorou-se um
pouco mais do que o habitual defronte ao espelho de minha
ante-sala, arrumando os cabelos. Eu observei, sorrindo: ‘Estou
feliz de ainda ver um vestígio de feminilidade’.”
Eis algumas outras reações femininas:
“Quando você me ouve durante um longo tempo, sem
dizer nada, eu geralmente tenho a impressão de que o que
eu digo é uma dessas coisas bobas e sem valor das mulhe
res. É como se você achasse que não vale a pena falar co
migo.”
“Uma mulher, criticando seu psicanalista: ‘Até a sua es
pontaneidade é artificial!’
“A paciente ficou calada por um período mais longo do
que o habitual, e depois disse: ‘Porra! Eu não sei porque estou
aqui! Foda-se você!’
N ão é que essas mulheres não estivessem conscien
tes de sua situação. Ao contrário, elas estavam no con
sultório de Reik, por causa de sua consciência. Não h a
via outro meio de lidar com a sua frustração, porque
não há meio de lidar com ela, a não ser pela revolução.
Chegamos, agora, ao nosso ponto crucial: a im por
tação do freudismo para que o fluxo do feminismo fosse
freado. Nas décadas de vinte e trinta, as mulheres des
cobriram-se eqüidistantemente próximas e afastadas de
seus papéis tradicionais. Conseqüentemente, elas não es
tavam nem isoladas e protegidas do mundo, como antes,
nem aparelhadas para enfrentá-lo. Ambas as suas vidas,
pessoal e profissional, sofriam com isso. Sua frustração
freqüentem ente assumia formas histéricas, complicadas
pelo fato de que elas eram desprezadas em todo o mun
do, até pela pequena falsa liberação que tinham alcan
çado. A perplexidade das massas com relação a elas le
vou-as, em bandos, para os psicanalistas. E de onde ti
nham vindo os psicanalistas? Nessa época, havia uma
guerra na Europa, e grande parte da intelligentsia alemã
e austríaca tinha-se instalado nos Estados Unidos, em
busca de um a prática. Ali era o lugar ideal. Toda uma
classe de pessoas sofredoras os aguardava. E não eram
83
som ente uns poucos entediados, mulheres ricas sorvidas
pela nova religião. Pois a América estava sofrendo vá
rias limitações, p o r deter um a revolução sexual que já
estava bem longe dos estágios iniciais. Surgiram livros
com títulos do tipo deste: Como V iver com um Neuró
tico (porque essa classe oprim ida está sempre lá na sua
cozinha choram ingando, queixando-se e resm ungando).
Logo, os hom ens tam bém apareceram nos psicanalistas.
B em -educados, cidadãos responsáveis, de modo algum
psicóticos. E as crianças também. Inauguraram -se cam
pos inteiram ente novos para atender ao afluxo: psicolo
gia infantil, psicologia clínica, terapia de grupo, serviços
de aconselham ento matrimonial. Q ualquer variante que
você possa im aginar, mencione um nome, e verificará
que já existe. E nenhum a delas foi suficiente. A dem an
da multiplicou-se mais rápido do que se puderam abrir
novos departam entos nas universidades.
N ão é de surpreender que esses novos departam en
tos fossem logo preenchidos pelas mulheres. M assas de
m ulheres, em busca de alguma coisa, estudaram apaixo
nadam ente psicologia, n a esperança de descobrir um a so
lução p ara seus “grilos” . M as, as mulheres que se tinham
to rnado interessadas em psicologia só porque sua m atéria
tocava-lhes nos problem as mais íntimos, logo começaram
a vom itar jargões sobre o ajuste m atrim onial e sobre as
responsabilidades do papel sexual. Os Departam entos de
Psicologia transform aram -se em centros de recuperação
p ara rapidam ente tom arem as mulheres de novo ajusta
das a seus papéis tradicionais de esposas e de mães. As
m ulheres que persistiram em exigir profissões de carreira
tornaram -se, p o r sua vez, instrumentos do sistema edu
cacional repressivo. Seus novos insights psicológicos —
com o aquele balbució de Psicologia Infantil, de Assistên
cia Social, e de Educação Elem entar — serviram para
reprim ir um a geração nova de mulheres e de crianças.
A psicologia tom ou-se reacionária em sua essência, ten
do sido corroído o seu potencial como um a disciplina
séria pela utilidade dela para os que estavam no poder.
E a Psicologia não foi a única disciplina que se
corrom peu. A Educação, o Serviço de Assistência Social,
84
a Antropologia, todas as disciplinas relacionadas às ciên
cias do comportamento permaneceram, durante anos,
pseudociências, sobrecarregadas com uma dupla função:’
a doutrinação das mulheres, bem como o estudo do com
portam ento “hum ano”. Escolas de pensamento reacioná
rias se espandiram. A Ciência Social tornou-se “funcio
nal”, estudando o funcionamento das instituições dentro
do sistema de valores estabelecido, promovendo, assim,
a aceitação do status quo.
Não é de surpreender que estes campos tenham per
manecido “campos femininos”. Os homens logo partiram
para a ciência “pura” (exclusivamente masculina). As
mulheres, ainda semi-instruídas, atemorizadas com a re
cente admissão na universidade, ficaram chafurdando na
merda pseudocientífica. Pois além da função de doutri
nação as ciências do comportamento serviram de represa
para impedir as hordas contestadoras das nouveaux intel-
lectuelles de serem admitidas nas ciências “verdadeiras”
— a física, a engenharia, a bioquímica, etc., ciências que,
num a sociedade tecnológica, mantêm uma relação cada
vez mais direta com os dirigentes dessa sociedade.
Em conseqüência, até o acesso à educação de um
nível mais elevado, uma das poucas vitórias do primiti
vo W.R.M., foi subvertida. Geralmente, a única diferen
ça entre a dona-de-casa moderna, instruída na universi
dade, e seu protótipo tradicional está na gíria que esta
usava para descrever o seu inferno conjugal.
* * *
85
minismo ainda não estão resolvidos hoje. D. H. Lawren-
ce e Bernard Shaw não são hoje menos importantes do
que foram em sua própria época. A Revolução Sexual
de Wilhelm Reich poderia ter sido escrita ontem.
O freudismo foi o “melhor inimigo” do feminismo,
porque embora tivesse tocado no mesmo ponto crucial,
ele teve uma astúcia que o feminismo não teve — nunca
questionou a realidade estabelecida. Em bora ambos, em
sua essência, fossem explosivos, o freudismo foi sendo
gradativamente revisto, para adequar-se às necessidades
pragmáticas da terapia clínica. Ele se tornou um a per
feita ciência aplicada, de técnicos de aventais brancos,
sendo seus conteúdos destruídos, em função de um obje
tivo reacionário: a socialização dos homens e das mu
lheres, num sistema artificial de papéis sexuais. Mas so
brou o suficiente de sua força original para servir de
chamariz aos que buscavam um a saída para sua opres
são. Isto levou o freudismo, aos olhos da opinião pú
blica, a passar de uma posição de extrema desconfiança
e suspeita para seu status atual. A psicanálise, como
especialidade, é a última palavra em tudo, desde as rup
turas conjugais, até os julgamentos criminais nos tribu
nais. Assim, o freudismo ganhou um terreno que o femi
nismo tinha perdido: ele floresceu às custas do feminis
mo, na medida em que agiu como recipiente de sua força
destruidora.
Só recentemente começamos a sentir os efeitos de
gerações de entoxicamento; meio século depois, as mu
lheres acordam. Dá-se um a nova ênfase às condições
objetivas na psicologia, bem como, nas ciências compor-
tamentais, essas disciplinas, somente agora, décadas de
pois dos danos terem sido causados, estão reagindo con
tra a sua longa prostituição, exigindo a verificação cien
tífica — apenas um fim à “objetividade” e um a reintro-
dução aos “juízos de valor” . O grande número de mu
lheres nesses campos brevemente poderá usar desse fato
em seu próprio proveito. E um a terapia que se tivesse
revelado mais nociva do que inútil poderia finalmente
ser substituída pela única coisa que pode fazer bem: a
organização política.
86
IV. ABAIXO A INFÂNCIA!
Para Nechemia
que ultrapassará a infância, antes que ela seja eliminada
* * *
87
isso gerou um culto da infância, vejamos como essa fa
mília nuclear patriarcal se desenvolveu. I
Em todas as sociedades, até a presente data, sem
pre houve alguma modalidade da família biológica, e,
conseqüentemente, sempre houve um a opressão das m u
lheres e das crianças em graus variados. Engels, Reich,
e outros indicam os matriarcados primitivos como exem
plos, tentando m ostrar como o autoritarismo, a explo
ração e a repressão sexual originaram-se com a m ono
gamia. Contudo, voltar ao passado, em busca de con
dições ideais, é muito fácil. Simone de Beauvoir é mais
honesta quando, em O Segundo Sexo, escreve:
Acrescenta:
88
Assim, a biologia reprodutora da mulher foi a res
ponsável por sua opressão original e continuada, e não
alguma espécie de revolução patriarcal inesperada, cujas
origens nem o próprio Freud teve palavras para expli
car. O m atriarcado é um estágio no caminho para o p a
triarcado, para a mais plena realização do homem; o
homem deixa de cultuar a Natureza, através das mulhe
res, para conquistá-la. Em bora seja verdade que a sorte
da mulher piorou consideravelmente sob o patriarcado,
ela nunca foi boa; pois, apesar de toda nostalgia, não
é difícil provar que o m atriarcado nunca foi um a res
posta para a opressão fundamental das mulheres. Basi
camente, ele não passou de um meio diferente de enume
rar linhagem e herança, meio que, embora possa ter tra
zido mais vantagens para as mulheres do que o patriar
cado posterior, não admitiu as mulheres na sociedade
como iguais. Ser reverenciado não significa ter liberda
de1; pois o culto ainda se passa na cabeça de outro, e
essa cabeça é do Homem. Contudo, voltando ao passa
do, embora não forneça modelos autênticos, ele tem
algum valor para a compreensão da relatividade da
opressão: embora essa tenha sido um a condição hum ana
fundamental, ela apareceu sob graus diferentes, em for
mas diferentes. Mas, através de toda a História, em todos
os estágios e tipos de cultura, as mulheres foram opri
midas devido a suas funções biológicas.
A família patriarcal é apenas a mais recente de um a
rede de organizações sociais “prim árias” , todas as quais
definiram a mulher como um a espécie diferente, devido
a sua capacidade única de parir. O term o família foi pela
prim eira vez empregado pelos romanos, para designar
uma unidade social, onde o cabeça governava as mulhe
res, as crianças e os escravos. Pela lei rom ana, ele era
investido de direitos de vida e morte sobre todos os
outros. Famulus significa escravo doméstico, e família
é o número total de escravos pertencentes a um homem.
89
Mas, embora os romanos tivessem cunhado o termo, não
foram eles os primeiros a desenvolver a instituição.
(Leia-se no Antigo Testamento, por exemplo, a descri
ção da caravana de Jacó e sua família, que viaja para
encontrar, depois de longa separação, o irmão gêmeo
E saú.) Esse lar patriarcal primitivo foi apenas um a das
muitas variações da família patriarcal que existiram em
muitas culturas diferentes até o presente momento.
Contudo, a fim de ilustrar a natureza relativa da
opressão das crianças, em vez de com parar essas dife
rentes modalidades da família patriarcal através da His
tória, examinaremos o desenvolvimento de sua versão
mais recente, a família nuclear patriarcal. Até mesmo
sua curta história, aproximadamente do século X IV em
diante, é reveladora. O desenvolvimento de nossos valo
res familiais mais queridos dependeu de condições cul
turais, não sendo seus fundamentos de modo algum abso
lutos. Façamos uma revisão do desenvolvimento da fa
mília nuclear — e de sua estrutura “infância” — desde
a Idade M édia até o presente, baseando nossa análise
em Centuries of Childhood: A Social History of Family
Life, de Philippe Ariès.
A família nuclear m oderna é apenas um desenvol
vimento recente. Ariès m ostra como a família, como a
conhecemos hoje, não existiu na Idade Média, desenvol
vendo-se gradativamente somente do século X IV em
diante. Até então a “família” significava, prim ordialm en
te, a linha hereditária legal de um a pessoa, dando-se
ênfase à linhagem de sangue, em vez de à unidade con
jugal. Com respeito a essas legalidades, como a trans
missão da propriedade, sua função primária, havia co
m unhão de bens entre o marido e a esposa, e comunhão
de propriedade entre os herdeiros. Somente por volta do
fim da Idade M édia, com o aumento da autoridade pa
terna na família burguesa, foi abolida a comunhão de
bens entre o casal, e a comunhão de propriedade entre
os filhos deu lugar às leis de primogenitura. Ariès mos
tra como a iconografia refletia os valores correntes da
sociedade na Idade M édia: os modelos eram ou compo
sições solitárias, ou grandes agrupamentos de pessoas
90
alegres em lugares públicos. H á um a escassez de cenas
de interior, pois a vida não acontecia dentro de um a
“casa”. Pois naquela época não havia abrigo num “grupo
prim ário” privado. Na tradição do lar patriarcal antigo,
o grupo familiar era composto de grande números de
pessoas, num constante estado de fluxo, e, na classe dos
homens pobres, era formado de massas inteiras de servos,
vassalos, músicos, pessoas de todas as classes, bem como
de muitos animais. Em bora o indivíduo pudesse se reti
rar dessa constante interação social, através da vida espi
ritual ou acadêmica, mesmo aí havia um a comunidade,
da qual ele poderia participar.
Essa família medieval — descendente direta das
classes mais altas, e, nas classes mais baixas, nada mais
do que um par conjugal plantado no meio da comuni
dade — gradativamente evoluiu para a família nuclear
que conhecemos. Ariès descreve a mudança:
1. O Mito da Infância
91
Os meninos e meninas da iconografia medieval são adul
tos em m iniatura, refletindo um a realidade social com
pletamente diferente. As crianças, nessa época, eram
adultos pequenos, portadoras de quaisquer que fossem
a classe e o nome com o qual tivessem nascido, desti
nadas a ascender a um a posição social claramente deli
neada. Um a criança via a si mesma como o futuro adul
to, passando por seus estágios de aprendizado; o adulto
era o futuro self poderoso de “quando ela era pequena”.
E la avançava nos vários estágios de seu papel adulto
quase que automaticamente.
As crianças eram tão pouco diferenciadas dos adul
tos, que não havia um vocabulário específico para des
crevê-las. Elas compartilhavam o vocabulário da submis
são feudal. Só mais tarde, com a introdução da Infância
como um estado distinto, esse vocabulário misturado se
diferenciou. A confusão se baseava na realidade: as crian
ças diferenciavam-se socialmente dos adultos, apenas por
sua dependência econômica. E ram tratadas como uma
outra classe servente transitória, com a diferença de que,
pelo fato de todos os adultos começarem nessa classe,
ela não era vista como degradante (um equivalente seria
o aprendiz contratado da história am ericana). Todas as
crianças eram literalmente servas; este era seu aprendi
zado para a maturidade. (Assim, durante um longo pe
ríodo depois, na França, servir a mesa não era conside
rado degradante porque tinha sido praticado como uma
arte por toda a jovem aristocracia.) Essa experiência
comum das crianças e servos e a tradicional intimidade
entre eles foi deplorada até o século XX. Como as clas
ses cresceram cada vez mais isoladas umas das outras,
essa intimidade prolongada foi considerada a causa da
considerável corrupção moral das crianças das classes
alta e média.
A criança era um membro à parte no vasto lar pa
triarcal, sequer essencial para a vida familiar. Em todas
as famílias, a criança era amamentada por um estranho
e, depois, enviada para um a outra casa (aproxim ada
mente, dos sete até os quatorze a dezoito anos) para
fazer o aprendizado de dono de casa, como mencionei,
92
i
geralmente constituindo-se do serviço doméstico, ou o
incluindo. Assim, ela nunca desenvolvia um a dependên
cia excessiva dos pais. Eles eram responsáveis apenas
pelo mínimo de seu bem -estar físico. E, por sua vez,
não “precisavam” dos filhos — certamente os filhos não
recebiam afeição da parte deles. Pois, além da taxa de
m ortalidade infantil, que, por si só, desencorajaria essas
demonstrações de afeto, os pais educavam filhos de
outras pessoas para a vida adulta. E, por serem os lares
assim tão extensos, cheios de vários empregados-de-casa,
bem como de um constante grupo de visitantes, amigos
e clientes, a dependência de uma criança, ou mesmo seu
contato com qualquer um dos pais especificamente era
limitada. Quando um a relação se desenvolvia, ela pode
ria ser melhor descrita como avuncular.
A transmissão de um a geração para a outra era
assegurada pela participação diária das crianças na vida
adulta. As crianças nunca eram segregadas em quartos,
escolas ou atividades especiais. Uma vez que o objetivo
era preparar a criança para a vida adulta logo que pos
sível, era bastante razoável que essa segregação fosse
sentida como um atraso, ou como um bloqueio a uma
perspectiva adulta. Logo que possível, a criança era inte
grada na comunidade, em todos os níveis. Não havia
brinquedos, jogos, ou roupas especiais, nem aulas plane
jadas só para crianças. Os jogos eram partilhados com
grupos de todas as idades. As crianças participavam das
festividades da comunidade adulta. As escolas (só para
habilidades especializadas) conferiam o aprendizado para
quem quer que estivesse interessado, qualquer que fosse
a sua idade. O sistema de aprendizado era aberto tanto
para as crianças, quanto para os adultos.
Depois do século XIV , com o desenvolvimento da
burguesia e da ciência empírica, essa situação começou
a evoluir lentamente. O conceito de infância desenvol
veu-se como um acessório da família moderna. F oi arti
culado um vocabulário para descrever as crianças e a
infância (p. ex., o francês le bébé), e um outro vocabu
lário foi criado especialmente para dirigir-se às crianças.
O “infantilês” tornou-se m oda durante o século X V II.
93
(Desde então, ele se expandiu num a arte e num modo
de vida. Existem todos os tipos de requintes modernos
nessa linguagem infantilesca. Algumas pessoas nunca pas
sam sem ela, e é usada especialmente com as nam ora
das, que são tratadas como crianças crescidas.) Os brin
quedos para criança não apareceram antes de 1600, e
mesmo nessa época não eram usados além da idade de
três ou quatro anos. Os primeiros brinquedos eram ape
nas réplicas, do tam anho das crianças, dos objetos dos
adultos: o cavalinho-de-pau substituiu o cavalo real que
a criança era muito pequena para m ontar. Mas, ao fim
do século X V II, encontramos a introdução de jogos es
peciais para crianças. (N a verdade, eles significavam ape
nas uma divisão: certos jogos, anteriormente partilhados
por crianças e adultos, foram cedidos pelos adultos às
crianças e à classe baixa, enquanto que outros jogos fo
ram acolhidos, a partir de então pelos adultos, para seu
uso exclusivo, tornando-se os “jogos de salão” dos adul
tos das classes altas.)
Assim, durante o século X V II, a infância, como
um conceito novo e da moda, estava “por dentro”. Ariès
m ostra como a iconografia também reflete a mudança,
por exemplo, com o crescimento gradativo das glorifica
das pinturas da relação m ãe/filho, como O Infante nos
Braços de Maria, ou, mais tarde, nos séculos XV e XVI,
com as pinturas de interiores e de cenas de família, in
cluindo até retratos individualizados de crianças, e da
parafernália da infância. Rousseau, entre outros, desen
volveu uma ideologia da “infância”. G rande importância
foi conferida à pureza e à “inocência” das crianças. As
pessoas começaram a se preocupar com a exposição das
crianças ao vício. O “respeito” pelas crianças, assim
como pelas mulheres, desconhecido antes do século XVI,
quando elas eram ainda parte da sociedade em geral,
tornou-se necessário, agora que elas formavam um grupo
oprimido bem definido. Seu isolamento e segregação ti
nham-se instalado. A nova família burguesa, centrada
na criança, impôs um a supervisão constante sobre ela;
toda a independência anterior foi abolida.
94
O significado dessas mudanças é ilustrado pela his
toria da indum entária das crianças. A roupa era um
modo de simbolizar a classe e a prosperidade social —
e continua sendo, sobretudo para as mulheres. O temor
até hoje existente, sobretudo na Europa, de qualquer
impropriedade no vestir deve-se, em primeiro lugar, à
impropriedade de “dissolver as classes sociais”. E, nos
tempos em que as roupas eram caras e a. produção em
série desconhecida, essa função do vestir era ainda maior.
Pelo fato de os trajes descreverem tão vividamente as
disparidades de sexo e classe, a historia da moda para
crianças nos fornece chaves valiosas sobre o que estava
acontecendo com elas.
Os primeiros trajes especiais para crianças aparece
ram no fim do século X V I, data importante na form a
ção do conceito de infância. Inicialmente, os trajes de
crianças eram modelados de acordo com os trajes arcai
cos dos adultos, à m aneira da classe baixa, que também
vestia as roupas usadas da aristocracia. Tais arcaísmos
simbolizavam a crescente exclusão das crianças e do
proletariado da vida pública contemporânea. Antes da
Revolução Francesa, quando foram introduzidas calças
especiais de marinheiro, que mais tarde passaram a di
ferenciar a classe baixa, encontramos a mesma indumen
tária difundida entre meninos das classes altas. Isso é
importante, porque ilustra bem nitidamente que as crian
ças da classe alta constituíam um a classe baixa dentro
dessa classe. Essa diferenciação do vestuário funciona
para intensificar a segregação e deixa claro que as dis
tinções de classe são também corroboradas por um cos
tume dos séculos X V II e X V III, inexplicável em outras
circunstâncias: deveriam ser usadas duas fitas largas, pelo
menino e pela menina, presas à roupa, sobre cada
ombro, e estendidas até as costas. Essas fitas aparen
temente não tinham outra função senão servir de indi
cações de indum entária da infância.
A roupa do menino, mais do que as outras, revela
a conexão do sexo e da infância com a classe econômi
ca. Um garoto passava aproximadamente por três está-
95
gios. O menino passava das tiras-de-pano* para vestes
femininas; mais ou menos na idade de cinco anos mu
dava para uma roupa com alguns elementos da roupa
do homem adulto, p. ex., o colarinho; e, finalmente, já
mais velho, passava a usar todos os emblemas militares.
A roupa vestida pelo menino mais velho, na época de
Luís X V I, era, ao mesmo tempo, antiquada (gola da
R enascença), da classe baixa (calças de m arinheiro), e
masculamente militar (jaqueta e botões). O vestuário
tornou-se um a outra form a de iniciação à masculinidade,
com a criança, em termos modernos, começando a avan
çar na direção das “calças compridas” .
Esses estágios de iniciação à masculinidade, refle
tidos na história da indumentária infantil, estão clara
mente ligados ao Complexo de Édipo, como eu o expus
no capítulo anterior. Os meninos começavam a vida na
classe baixa das mulheres. Vestidos como mulheres, não
se distinguiam absolutamente das meninas. Ambos, nesse
momento, se identificavam com a mãe, a fêmea; ambos
brincavam de boneca. Aproximadamente na idade de
cinco anos, são feitas tentativas para afastar o menino
da mãe, para encorajá-lo, lentamente, passo a passo, a
imitar o pai, p. ex., com a gola masculina. Esse é o pe
ríodo transitório do Complexo de Édipo. Finalmente, o
menino é recompensado por libertar-se do feminino, e por
transferir suas identificações para o homem, através de
um traje especial “adulto” , seus emblemas militares cons
tituem um a promessa do futuro e pleno poder masculino
adulto.
Que dizer dos trajes das meninas? Eis um fato sur
preendente: o conceito de infância não se aplicava às
mulheres. A menina passava das tiras-de-pano para o
vestido feminino adulto. Ela não ia à escola, que, como
veremos, era a instituição que estruturava a infância. Na
idade de nove a dez anos, agia, literalmente, como uma
“mocinha” ; sua atividade não diferia da das mulheres
adultas. Logo que atingia a puberdade, aos dez ou doze
96
anos, ela se casava com um homem muito mais velho
do que ela.
O sistema de classes, na base do conceito de infân
cia, fica exposto: as meninas e os meninos da classe
proletária, ambos, não tinham que ser discriminados por
indumentárias características, pois em seus papéis adul
tos eles seriam subservientes aos homens da classe alta;
não era necessária nenhuma iniciação à liberdade. As
meninas não tinham razão para passar por mudanças de
trajes, quando não havia nada em direção a que elas
crescerem. As mulheres adultas estavam ainda num a clas
se baixa, em relação aos homens. As crianças da classe
operária, e isso mesmo até à época atual, eram livres de
restrições de indumentária, pois seus modelos adultos
também eram “crianças” em relação à classe dominante.
Em bora os meninos das classes média e alta com parti
lhassem temporariam ente do status das mulheres e da
classe operária, gradativamente emergiam dessas classes
submissas; as mulheres e os meninos da classe baixa per
maneciam aí. Não é tam pouco por coincidência que a
efeminização das roupas dos meninos foi abolida na mes
ma época em que as feministas excitaram a opinião pú
blica, no sentido de acabar com as roupas opressivas das
mulheres. Ambos os estilos de indum entária estavam in
teiramente ligados à submissão das classes e à inferiori
dade dos papéis femininos. O pequeno Lord Fauntleroy
foi-se junto com as anáguas. (Entretanto, meu próprio
pai se lembra do seu primeiro dia de calças compridas
e até hoje, em alguns países europeus, esses costumes de
iniciação no vestir ainda são praticados.)
Podemos também compreender a base de classes do
conceito emergente de infância no sistema de educação
que o acompanhou. Se a infância fosse apenas um con
ceito abstrato, então a escola m oderna seria a institui
ção encarregada de estabelecê-la na realidade. Novos
conceitos sobre o ciclo vital se organizam, em nossa so
ciedade, em torno de instituições; p. ex., a adolescência,
uma construção do século XX, foi estabelecida para fa
cilitar o recrutamento para o serviço m ilitar.) A educa
ção da escola m oderna foi, na verdade, a articulação do
97
novo conceito de infância. O ensino foi redefinido. Não
sendo mais confiado ao clero e aos letrados, ele se am
pliou largamente, para tornar-se o instrum ento norm al
de iniciação social — na evolução da infância até a maio
ridade masculina. (Aqueles aos quais a verdadeira m a
turidade nunca era solicitada, p.ex., as moças e rapazes
da classe operária, não freqüentaram a escola durante
vários séculos.2)
Contrariam ente à opinião popular, o desenvolvimento
da escola m oderna teve pouca conexão com a cultura
tradicional da Idade Média, bem como com o desenvolvi
mento das artes liberais e das hum anidades na Renascença.
(De fato, os humanistas da Renascença foram notados pela
inclusão, em suas fileiras, de muitas crianças precoces e
mulheres doutas; deram ênfase ao desenvolvimento do
indivíduo, qualquer que fosse a sua idade ou sexo.) Se
gundo Ariès, os historiadores da literatura exageram a
importância da tradição hum anista na estruturação de
nossas escolas. Os verdadeiros criadores e inovadores fo
ram os moralistas e pedagogos do século X V II, os jesuí
tas, os oratorianos e os jansenistas. Esses homens estive
ram à frente da criação de ambos os conceitos de infância
e sua institucionalização, e do conceito m oderno de edu
98
cação. F oram os primeiros patronos da fragilidade e dã
“inocência” da infância; colocaram a infância num pedes
tal, do mesmo modo como a feminilidade tinha sido posta
num pedestal; pregaram a segregação das crianças do
mundo adulto. A “disciplina” era a linha mestra da edu
cação m oderna, afinal muito mais im portante do que a
comunicação do saber ou da informação. Pois, para eles,
a disciplina era um instrum ento de progresso m oral e
espiritual, adequada menos por sua eficiência em dirigir
grupos grandes no trabalho em comum do que por seu
valor intrínseco moral e ascético.
Assim, a função da escola tornou-se a “educação das
crianças”, acrescida da disciplinadora “psicologia infan
til”. Ariès cita Regulations for Boarders at Port-Royal,
um precursor de nossos manuais de treinamento para pro
fessores:
100
as suas atividades (tais como eram ), dançando profissio
nalmente, atuando e participando em todas as diversões.
Aos sete anos o Delfim começou a usar roupas de homens
adultos, as bonecas lhe foram tiradas, e iniciou-se sua edu
cação, sob a orientação de tutores homens; começou a ca
çar, a andar a cavalo, a atirar e a jogar. Mas Ariès diz:
101
meramente crianças em tam anho maior, com um a expe
riência do mundo — e ao submetê-las artificialmente a
uma proporção na qual cada adulto vale por vinte crian
ças, como poderia ter sido diferente o resultado final de
um nivelamento do grupo a um a inteligência mediana
(m edíocre)? Como se isso não bastasse, depois do século
X V III houve um a rígida separação e distinção de idades
( “séries escolares” ). As crianças não eram mais capazes
de aprender nem com crianças mais velhas e mais infor
madas. Estavam limitadas, na m aior parte de suas horas
ativas, a um grupo bem definido da mesma idade,4 e, além
disso, a um currículo dado “de bandeja”. Essa graduação
rígida aumentou o número de níveis necessários para a
iniciação na vida adulta, e tornou difícil para um a criança
dirigir seus próprios passos. Sua motivação para o estudo
passou a se caracterizar por ser dirigida para fora, e por
uma consciência de aprovação, assassinas certeiras da ori
ginalidade. As crianças, anteriormente vistas simplesmente
como pessoas mais novas — do mesmo m odo como hoje
vemos um fedelho meio crescido em termos de sua m a
turidade futura — agora eram um a classe bem definida,
com suas próprias divisões internas, incentivando à com
petição: “o garoto mais alto do quarteirão”, “o garoto
mais inteligente da escola”, etc. As crianças eram força
das a pensar em termos hierárquicos, todos avaliados pelo
supremo “Quando eu crescer.. .” Assim, o crescimento da
escola refletia o mundo exterior, que estava se tornando
cada vez mais segregado, de acordo com a idade e a
classe da pessoa.
* * *
102
Dentro dessas unidades conjugais, a criança tornou-se
então im portante, pois ela era o produto dessa unidade,
a razão de sua subsistência. Tornou-se conveniente m an
tê-las em casa durante o máximo de tempo possível, e
am arrá-las psicológica, financeira e emocionalmente à
unidade familiar até o tempo em que estivessem prontas
para criar uma nova unidade familiar. Para esse propósito
foi criada a E ra da Infância. Mais tarde, foram acres
centadas extensões, como a adolescência, ou, em termos
americanos do século X X , os teenagers, a “juventude uni
versitária”, os “adultos jovens”. O conceito de infância
prescrevia que as crianças eram um a espécie diferente
da dos adultos não apenas na idade, mas também nas
suas características. Um a ideologia foi desenvolvida para
provar isso: foram escritos tratados fantasiosos sobre a
inocência das crianças e sua proximidade de Deus ( “ anji
nhos” ), conseqüentemente levando à crença de que eram
assexuadas, sendo a atividade sexual infantil vista como
um a aberração — tudo em contraste violento com o pe
ríodo precedente, quando as crianças eram expostas aos
fatos da vida, desde o início.5 Pois qualquer admissão da
sexualidade infantil teria acelerado a transição para a vida
adulta, e isso, na época, tinha que ser retardado a todo
custo. O desenvolvimento de roupas especiais cedo exa
gerou as diferenças físicas entre as crianças e os adultos,
e até entre estas e as crianças mais velhas. As crianças
não jogavam mais os mesmos jogos dos adultos, nem par
ticipavam de suas festividades (hoje, norm alm ente as
crianças não freqüentam jantares elegantes), mas lhes
eram consagrados jogos especiais e artefatos próprios
(brinquedos). O contar histórias, antigamente um a arte
comunitária, foi relegado às crianças, levando, em nossa
própria época, à criação de um a literatura infantil espe
cífica. Os adultos falavam com as crianças num a lingua
gem especial, e nunca se lançavam num a conversa séria
103
na presença delas ( “Não na frente das crianças!” ). Os
“bons-hábitos” de sujeição eram instituídos em casa ( “As
crianças deveriam ser vistas e não ouvidas.” ) M as nada
disso teria atuado no sentido de fazer efetivamente das
crianças um a classe oprimida, se uma instituição especial
não tivesse sido criada para dar conta do recado comple
tam ente: a escola moderna.
A ideologia da escola era a ideologia da infância.
E la funcionava a partir do pressuposto de que as crianças
precisavam de “disciplina”, de que eram seres especiais,
que tinham de ser tratados de um m odo especial (psico
logia infantil, educação infantil, etc.), e que, para faci
litar isso, elas deveriam ser encurraladas num lugar espe
cial com seus semelhantes, e com um grupo de idade o
mais que possível restrito à sua própria idade. A escola foi
a instituição que estruturou a infância, segregando efeti
vamente as crianças do resto da sociedade, e assim retar
dando seu desenvolvimento para a m aturidade e seu
desenvolvimento de habilidades especializadas, das quais
a sociedade precisava. Em conseqüência, elas perm ane
ceram economicamente dependentes por períodos de tem
po cada vez maiores. Desse modo, os laços familiais per
maneceram intactos.
Chamei a atenção para o fato de que existe uma
relação profunda entre as hierarquias da família e as
classes econômicas. Engels observou que, dentro da fa
mília, o marido é o burguês, e a mulher e as crianças
são o proletariado. Foram observadas similaridades entre
as crianças e toda a classe operária ou outros grupos opri
midos, feitos estudos para m ostrar que elas compartilham
da mesma psicologia. Vimos como o desenvolvimento das
roupas proletárias foi paralelo ao das roupas infantis,
como os jogos deixados pelos adultos da classe alta foram
jogados pelas crianças e pelos “caipiras”. Dizia-se de
ambos que gostavam de trabalhar “com as m ãos”, con
trariam ente às altas cerebrações do homem adulto, abstra
ções acima deles. Foi-lhes lembrado a ambos que tinham
a sorte de serem poupados das preocupações da responsa
bilidade adulta — e ambos o desejavam de qualquer
jeito. As relações com a classe dominante, em ambos os
104
casos, tinham um quê de medo, de suspeita, disfarçados
sob um a leve capa de sedução (o adorável balbució, o
virar-de-olhos, e o pisa-m ansinho).
O mito da infância encontra um paralelo ainda m aior
no mito da feminilidade. T anto as mulheres quanto as
crianças foram consideradas assexuadas e, portanto,
“mais puras” do que o homem. Seu status inferior foi
mal disfarçado sob um certo “respeito” requintado. Não
se discutiam assuntos sérios, nem se faziam injúrias na
frente das mulheres e das crianças. Elas eram rebaixadas
abertamente', isto era feito às suas costas. (Q uanto ao
double standard* relativo aos xingamentos: U m homem
pode xingar o mundo, porque cabe a ele xingar — mas
o mesmo xingamento na boca de um a mulher ou de um
menor, i.e., um “hom em ” incompleto a quem o m undo
ainda não pertence, é considerado presunçoso, e, conse
qüentemente, um a impropriedade, ou pior.) Ambas fo
ram discriminadas com roupas ornam entadas e não-fun-
cionais, e lhes foram atribuídas tarefas especiais (respec
tivamente, o serviço doméstico e o dever escolar). Ambas
foram consideradas mentalm ente deficientes ( “O que você
pode esperar de uma mulher?” “Ele é muito pequeno
para entender!” ). O pedestal de adoração no qual ambas
foram colocadas tornou difícil para que respirassem. Cada
interação com o mundo adulto tom ou-se para as crian
ças um dançar conforme a música. Aprenderam a usar de
sua infância para obter o que queriam indiretam ente ( “E la
está tendo um outro acesso de raiva!” ), assim como as
mulheres aprenderam a usar de sua feminilidade ( “L á
vem ela, chorando de novo!” ). Todas as incursões no
mundo adulto tornaram -se terríveis expedições pela so
brevivência. A diferença entre o comportamento natural
das crianças, dentro de seu grupo, e seu com portamento
afetado e /o u tímido diante dos adultos confirma isso.
Analogamente, as mulheres agem de um m odo diferente
entre si, do que diante dos homens. Em cada caso, um a
diferença física foi ampliada culturalmente, com a ajuda
105
de trajes especiais, educação, hábitos e atividades, até que
esse próprio reforço cultural começou a parecer “n a
tural”, e mesmo instintivo, um processo de exagero que
permite um a estereotipação fácil. O indivíduo parece,
finalmente, ser um a espécie diferente do animal humano,
com seu próprio conjunto de leis e com portamentos pe
culiares. ( “Eu nunca compreenderei as mulheres!”. . .
“Você não entende nada de psicologia infantil!” ).
A gíria contem porânea reflete esse estado animal. As
crianças são “ratinhos”, “ coelhinhos”, “gatinhos” ; as m u
lheres são chamadas de “galinhas” , “borboletas”, “vacas”,
“éguas”, “cadelas”. Uma terminologia similar é usada
para referir-se aos homens, e ainda em m aior escala para
referir-se aos homens oprimidos, indicando um a difama
ção do caráter: garanhão, lobo, gavião, veado, macaco.
Nesse caso ela é usada muito mais raram ente, e geralmente
com uma conotação sexual específica.
Pelo fato de a opressão de classe das mulheres e das
crianças ser encoberta na fraseologia do “engraçadinho”,
v . é muito mais difícil lutar do que revelar a opressão. O
/ que um a criança pode responder, quando alguma tia
idiota resolve encarnar nela, ou quando algum estranho
decide bater levemente às suas costas e im itar a fala do ,
' y n bebê? Que mulher tem peito de reagir, quando um estra-
jj ^ nho aue passa oor ela viola a sua privacidade, a seu bel-
-v - prazer? Se ela responde ao seu “Mas como você está
S ~ linda hoje!” com “Estaria m elhor se não o visse!”, ele
< ' -(ro sn ará : “O que mordeu essa puta hoje?”, ou pior. Fre-
^ qüentemente, a natureza real desses comentários aparente
mente cordiais aparece quando a mulher ou a criança
não sorriem em resposta, como deveriam. “M ulher de
merda! Eu não te foderia, nem se você se engraçasse pro
meu lado!” . . . Ou: “Pirralhinho nojento! Se eu fosse seu
pai, eu te surrava até você ficar roxo!”. . . A violência p
surpreendente. Contudo, esses homens acham que a mú-
lher e a criança devem ser censuradas por não serem “cor
diais”. Porque é incômodo para eles saber que a mulher,
ou a criança, ou o negro, ou o operário resmungam; os
grupos oprimidos devem também aparentar gostar de sua
opressão — sorrindo, sem graça, em bora sintam um infer-
106
no por dentro. O sorriso é o equivalente ao pisa-m an-
, sinho da criança/m ulher; ele indica a aquiescência da
vítima ao seu próprio opressor. (E m meu próprio caso,
tive que treinar para me libertar desse sorriso hipócrita,
que é como um tique nervoso em toda adolescente. E isso
I quer dizer que eu sorria raram ente, pois, na verdade, eu
tinha muito menos razões para sorrir. M inha luta “utó
pica” pelo movimento de libertação das mulheres: uma
cam panha de boicote ao sorriso, à qual todas as mulheres
responderiam, im ediatamente, abandonando seus sorrisos
“ amáveis” , daí em diante sorrindo somente quando, algu- l
ma coisa lhes desse prazgj. I5a mesma maneira, a libe
ração das crianças exigiria pôr um fim em todos os cari
nhos não ditados pela própria criança. [Isso, natural
mente, exaltaria um a sociedade, na qual o carinho em
geral não seria mais desaprovado; em geral, as únicas de
monstrações de afeto que um a criança recebe hoje são
essas demonstrações fingidas, que ela pode ainda consi
derar melhor do que nada.] ) Muitos homens não conse
guem compreender que suas intimidades fáceis não são
vistas como um privilégio. Será que eles já pensaram que
a pessoa real, por trás daquele animal neném ou mulher,
( pode preferir não ser acariciada, e nem mesmo notada pojr
èles naquele momento? Imaginem a própria consternação
dFsse homem, se algum estranho se aproximasse dele na
rua, de um modo semelhante, acompanhando seus passos,
sussurrando e falando como criança, sem respeito por sua
profissão, ou sua “m asculinidade” .
Em suma: se os membros da classe operária e dos
grupos minoritários “ agem como crianças” , é porque as
crianças de todas as classes são um a classe baixa, assim
como as mulheres sempre o foram. A ascensão da família
nuclear moderna, com seu acessório a “infância” , estreitou
os laços entre os grupos ainda economicamente depen
dentes, estendendo e reforçando o que tinha sido apenas
um a breve dependência, através dos meios habituais: o
1 desenvolvimento de um a ideologia específica, de um
estilo de vida próprio, linguagem, roupas, maneirismo,
etc. E, com o aumento e o exagero da dependência infan
til, a escravidão das mulheres à m aternidade também foi
107
ampliada até seus limites. As mulheres e as crianças en-
contram-se hoje no mesmo barco furado. Suas opressões
começaram a se reforçar, uma à outra. À mística das gló
rias do parto, da grandeza da criatividade “natural” fe
minina, acrescentou-se agora um a nova mística sobre as
glórias da própria infância e da “criatividade” da educação
das crianças. ( “Pois bem querida, o que poderia ser
mais criativo do que criar uma criança?” ) Hoje as pes
soas esqueceram o que a História tinha provado: que
“criar” uma criança é o equivalente a retardar seu de
senvolvimento. O melhor modo de criar um a criança é
D EIX Á -LA EM PAZ.
108
quadrinhos infantis, balas atraentes para as crianças, etc.
Analistas de mercado estudam psicologia infantil para
descobrir produtos que atraiam as crianças de várias ida
des. Existe um a propaganda, um cinema e um a indústria
de TV construídos só para elas, com sua própria literatura
i especial, programas e comerciais, e até conselhos de cen
sura para decidir exatamente quais os produtos cultu
rais adequados ao seu consumo. H á um a proliferação in
findável de livros e revistas instruindo o leigo na requin
tada arte de educar as crianças ( Parent’s Magazine, do
Dr. Spock*). H á especialistas em psicologia infantil, em
métodos de educação infantil, pediatras, e todos os ramos
especiais de saber que se desenvolveram recentemente
para estudar esse animal peculiar. A educação obrigatória
floresce e hoje está difundida o suficiente para form ar
um a inevitável rede de socialização (lavagem cerebral),
da qual nem os próprios ricos conseguem escapar total
mente. Passaram os dias de Huckleberry Finn. Hoje, os
que fingem ser doentes para escapar ao trabalho, ou que
se desligam, têm que gastar todo o tempo para afastar o
enxame de especialistas que os observam, os programas
governamentais em proliferação, os assistentes-sociais no
, seu encalço.
Observemos mais de perto a form a m oderna que essa
ideologia da infância assume. Visualmente, ela é tão ro
busta, loura e sorridente, quanto um anúncio da Kodak.
Como é o caso da exploração das mulheres como um
objeto (ready-m ade) , como uma classe consumidora, exis
tem muitas indústrias ansiosas por beneficiar-se da vul
nerabilidade física das crianças (p.ex., a Aspirina St. Jo-
seph, para crianças). Mas, ainda mais do que sua saúde, a
palavra-chave para a compreensão da infância m oderna é
felicidade. Só se é criança um a vez na vida. As crianças
devem ser personificações vivas da felicidade (as crianças
m al-humoradas, ou entediadas, ou crianças-problema são
imediatamente antipatizadas; elas fazem do m ito um a
m entira). É dever de todos os pais propiciar aos filhos
109
um a infância memorável (balanços, piscinas infláveis,
brinquedos e jogos, passeios em acampamentos, festas
de aniversário, etc.). Essa é a Idade de Ouro, que a crian
ça relem brará quando crescer para tornar-se um robô
como o pai. Assim, todo pai tenta dar ao filho tudo o que
lhe faltou naquela que deveria ter sido a mais esplêndida
fase da própria vida. O culto da infância como Idade de
Ouro é tão forte que todas as outras épocas da vida são
avalidadas em função do grau com que se assemelham a
ela num culto nacional da juventude. Os “mais velhos”
fazem papel de bobo com sua apologética invejosa (“Ê
claro que eu tenho o dobro da sua idade, meu caro,
mas. . . ” ). H á um a crença geral de que o progresso se fez
porque, pelo menos em nossa época, as crianças foram
libertas da pesada mão-de-obra infantil, e de muitas outras
explorações tradicionais das gerações do passado. De
fato, existe ainda a lamentação invejosa de que as crian
ças estão despertando um a atenção excessiva. Elas são
mimadas. (O “Quando eu tinha a sua id a d e .. . ” corres
ponde ao “Este mundo é das mulheres. . .” )
O mais im portante baluarte desse mito da felicidade
é a constante e rígida segregação das crianças do resto da
sociedade. O exagero de seus traços distintivos fez delas,
como tinha sido planejado, quase que um a outra raça.
Nossos parques fornecem a m etáfora perfeita de nossa so
ciedade etariam ente segregada. Um playground especial
para os Tenros Intocáveis, as mães e as criancinhas (ra
ramente encontramos outras pessoas ali, como se isso
fosse um tab u ), um estádio de atletismo ou um a piscina
para crianças, um recanto aprazível para casais jovens
e estudantes, e um a área de bancos para as pessoas ido
sas. Essa segregação etária continua através de toda a vida
de cada indivíduo moderno. As pessoas passam a ter
muito pouco contato com as crianças, logo que tenham
ultrapassado a própria infância. E, mesmo dentro da
própria infância, existem segregações etárias rígidas, de
modo que um a criança mais velha ficará em baraçada por
ser vista com uma criança mais nova. ( “Dê o fora! Por
que não brinca com gente da tua idade?” ) Durante a
vida escolar, e em nosso século ela dura muito mais tem
110
po, am a criança convive com outras de apenas um ou
dois anos de diferença de idade. As próprias escolas refle
tem essas graduações cada vez mais rígidas: pré-prim ária,
etc., caracterizadas por um sistema complexo de prom o
ções e “form aturas”. Ultimamente, são comuns até for
m aturas em escolas m aternais e /o u em jardins-de-infância.
Assim, na época em que um a criança fica m adura
para a reprodução, ela não m antém nenhum contato com
os que estão fora de seu restrito grupo etário adulto, e
certamente nenhum com as crianças. Por causa do culto
que a rodeia, ela praticam ente não se lembra nem da
própria infância, chegando até a bloqueá-la completamen
te. Mesmo quando criança, ela pode ter tentado am oldar
se ao mito, pensando que todas as outras crianças eram
mais felizes; mais tarde, já adolescente, pode ter-se en
tregado a satisfações desesperadas, atirando-se a “praze-
res”, no espírito do “só se é jovem um a vez na vida” —
quando, na verdade, a adolescência é horrível de ser atra
vessada. (M as a verdadeira juventude não tem consciência
da idade — “a juventude é desperdiçada pela própria ju
ventude” e é caracterizada pela espontaneidade verda
deira, justam ente pela ausência dessa artificialidade. O
armazenamento de uma felicidade que se perdeu é uma
idéia que só os mais velhos poderiam ter criado.) Um a
tal ausência de contato com a realidade da infância arrasta
todo adulto jovem para o mesmo tipo de sentimentalismo
em torno das crianças que ele próprio provavelmente
desdenhou quando era pequeno. E assim por diante, num
círculo vicioso. Os adultos jovens sonham em ter seus
próprios filhos, numa tentativa desesperada de preencher
o vazio causado pela interrupção artificial da juventude.
Mas isso só dura até o momento em que eles se envol
vem com problemas de gravidez e fraldas, babás e pro
blemas escolares, predileções e brigas. Então, por um
curto período, são obrigados a compreender que as crian
ças são tão humanas quanto o resto da gente.
Assim, falemos sobre o que a infância realmente é,
e não sobre o que ela é na mente dos adultos. É claro
que o mito da felicidade infantil floresce amplamente,
não porque satisfaça às necessidades das crianças, mas
111
porque satisfaz às necessidades dos adultos. Num a cul
tura de pessoas alienadas, a crença de que todo mundo
tem, pelo menos, um bom período na vida, livre de preo
cupações e de trabalho, dificilmente morre. E, obviamen
te, não se pode contar com isso na velhice. Logo, uma
pessoa já deve ter passado por ele. Este é o motivo da
nuvem de sentimentalismo que envolve toda discussão
sobre a infância e as crianças. Todo mundo alimenta al
gum sonho secreto em seu próprio interesse.
* * *
112
dão dinheiro, em geral, são mais queridos. Mas assegu
ram-se de que o dinheiro seja dado diretamente à crian
ça!) E m bora ela possa não estar passando fome (nem
isso aconteceria, se as crianças tivessem seu próprio em
prego; as crianças negras, que engraxam sapatos, pedem
esmolas, e cultivam várias negociatas, e os garotos brancos
da classe operária que vendem jornais são invejados em
sua vizinhança), ela é dependente, para a sua sobrevi
vência, de um apadrinhamento, e isso é um estado ruim
experimentar. Essa extrema dependência não vale o seu
sustento.
É nessa área que descobrimos um dos eixos do mito
moderno. Espalhou-se que a infância experimenta gran
de progresso, trazendo-se imediatamente à memória im a
gens dickensianas da criança pobre, lúgubre, lutando
num a mina de carvão. Contudo, mostramos, na breve his
tória da infância apresentada no início do capítulo, que
as crianças da classe média e da classe alta não trabalha
vam no começo da E ra Industrial, e sim ficavam abriga
das, em segurança, nalgumas escolas maçantes, estudando
Hom ero e gramática latina. As crianças da classe baixa,
é verdade, não eram consideradas nem um pouco mais pri
vilegiadas do que os pais, partilhando as torturas desu
manas a que todos os membros de sua classe tinham que
se submeter. De modo que, na mesma época em que havia
Emma Bovarys e Little Lord Fauntleroys ociosos, tam
bém havia mulheres destruindo suas vidas e os pulmões
em fábricas primitivas de tecidos, e crianças peram bu
lando e mendigando. Essa diferença entre as vidas das
crianças de diferentes classes econômicas persistiu até os
dias do direito ao voto feminino, e até a nossa própria
época. As crianças que eram propriedade da classe mé
dia, em função da reprodução, sofreram uma pressão
pior do que a nossa. O mesmo aconteceu com as mulhe
res. M as elas, para compensar isto, tinham uma proteção
econômica. As crianças da classe baixa eram exploradas,
não particularm ente como crianças, mas de um modo
geral, como classe. O mito da infância era extravagante
demais para ser desperdiçado com elas. Aqui, novamente
vemos ilustrado com precisão o grau de arbitrariedade do
113
mito da infância, criado expressamente para atender às
necessidades da estrutura da família da classe média.
Sim, vocês dirão, m as certamente teria sido melhor
para as crianças da classe operária que elas, também,
tivessem podido viver protegidas por esse mito. Pelo
menos, teriam poupado a vida. D e m odo que elas pode
riam esvair a vida espiritual nalgum a sala de aula ou
escritório? A questão é retórica, como a pergunta sobre
se o sofrimento dos negros na América é legítimo, por
que seriam considerados ricos em outro país. Sofrimento
é sofrimento. Não, precisamos pensar em termos mais
amplos aqui. Por exemplo, em primeiro lugar, porque seus
pais eram explorados: o que qualquer pessoa faz num a
mina de carvão? Devemos protestar, não pelo fato de as
crianças serem exploradas como os adultos, mas pelo fato
de que os adultos sejam explorados desse jeito. Precisa
mos começar a falar, não em poupar as crianças, durante
alguns anos, dos horrores da vida adulta, mas em eliminar
esses horrores. Num a sociedade sem exploração, as crian
ças, poderão ser parecidas com os adultos (sem nenhu
ma exploração im plícita), e os adultos poderão ser como
as crianças (sem nenhuma exploração im plícita). A es
cravidão privilegiada (p atro n ato ), que as mulheres e as
crianças suportam, não é liberdade. Pois, a autodeter
minação é a base de toda liberdade, e a dependência está
ria origem de toda desigualdade.
Repressão Sexual. Freud descreve a satisfação primi
tiva da criança: a satisfação do bebê no seio materno, que
ele então tenta recuperar durante o resto da vida; como,
por causa da proteção adulta, a criança é mais indepen
dente do “princípio de realidade” , e lhe é permitido brin
car (atividade realizada pelo prazer dela própria, e não
para obter qualquer outro fim ); como, sexualmente, a
criança é polimorfamente pervertida, e somente mais tarde
é dirigida e reprimida, para tornar-se pronta para o pra
zer genital adulto.
Freud também mostrou que as origens da neurose
adulta se fundavam no próprio processo da infância. Em
bora a criança prototípica possa ter a capacidade de ex
perim entar um prazer puro, isso não significa que ela
114
possa satisfazê-lo completamente. Seria mais correto dizer
que, embora seja propensa, por natureza, ao prazer, no
momento em que se torna socializada (reprim ida), ela
perde essa inclinação. E isso começa exatamente neste
momento.
O “princípio de realidade” não se restringe aos adul
tos. Ele se introduz na vida infantil, quase que autom ati
camente, em sua pequena escala própria. Portanto, en
quanto esse princípio de realidade existir, a noção de
poupar às crianças seus desgostos será um a farsa. N a
melhor das hipóteses, ela pode sofrer um processo repres
sivo retardado. Porém, mais freqüentemente, a repressão
acontece, em todos os níveis, logo que a criança possa
lidar com ela. Não é como se já tivesse havido um pe
ríodo abençoado, no qual a “realidade” era dispensada.
Pois na verdade a repressão começa logo que ela nasce.
As bem conhecidas refeições cronometradas pelo reló
gio são apenas um exemplo extremo. Antes dos dezoitos
meses, afirma R obert Stoller, se estabelece a diferenciação
sexual básica e, como vimos, esse processo, em si mes
mo, requer a inibição do impulso sexual dirigido à mãe.
Assim, desde o início, é negada a liberdade de ação à sua
sexualidade polimorfamente pervertida. (M esmo hoje, com
a existência de uma cam panha para reconhecer a mastur-
bação como normal, várias crianças são impedidas de
brincar com seu próprio corpo, desde a época em que
ainda estão no berço.) A criança é instruída a deixar
de m am ar e a ir ao banheiro o mais cedo possível — duas
coisas traumáticas, nos termos da criança. A repressão
aumenta. O am or m aterno, que, idealmente, representa
a satisfação perfeita ( “incondicional” ), é explorado, à
m aneira do am or paterno: para m elhor dirigir a criança
para a conduta socialmente aprovada. E, finalmente, é
exigida um a identificação ativa com o pai. (Nos lares
onde não há pai, a identificação pode ocorrer um pouco
mais tarde, quando a criança começa a freqüentar a es
cola.) Daí até a puberdade a criança deve ter um a vida
assexuada — ou dissimulada — sem sequer admitir quais
quer necessidades sexuais. Essa assexualidade forçada gera
um a frustração, que é responsável pela extrema rebeldia
115
e agressividade — ou, numa outra alternativa, a docili
dade anêmica — que, geralmente, torna as crianças tão
irritantes à sua volta.
Repressão Familiar. Não precisamos nos aprofundar
nas sutis pressões psicológicas da vida familiar. Cada um
que pense na própria família. E, se isso não for suficiente,
se por acaso você é hoje aquele um-entre-um-milhão
que está realmente convencido de que tem um a “família
feliz”, leia alguma das obras de R. D. Laing, particular
mente a Política da Família, a respeito do Jogo das F a
mílias Felizes. (“Quanto mais uniformemente elas fun
cionam, mais difíceis são elas de estudar.” ) Laing revela
a dinâmica interna da família, explicando sua invisibili
tf dade para o membro normal da família:
C
“Uma coisa, geralmente, é clara para um estranho: exis
£ o tem, planejadas, resistências familiares à descoberta do que
~f~> está se passando, e há estratagemas complicados para manter
-o todas as pessoas ignorantes, e na ignorância de que são igno
rantes. A verdade tem que ser afastada, para que se sustente
+~ 3 uma imagem da família. .. Uma vez que essa fantasia existe
apenas na medida em que ela está ‘dentro’ de todo mundo
3 Ç que
- participa dela, qualquer um que a abandone, destruirá a
‘família’ existente dentro de qualquer outra pessoa.”
^ o
"O Eis algumas criancinhas falando sobre si mesmas. De
novo, citamos Reik:
116
O que é divertido nessas anedotas, se é que elas são
divertidas, é a franqueza das crianças, incapazes de com
preender, ou aceitar o inferno masoquista de tudo isso.
Repressão Educacional. É na escola que a repressão
é cimentada. Quaisquer ilusões remanescentes de liber
dade são, hoje, rapidam ente afastadas. Toda atividade
sexual ou expansão física são barradas. Aqui se realiza
o primeiro jogo altamente supervisionado. O prazer na
tural das crianças em brincar é, então, incorporado, para
melhor socializá-las (reprim i-las). ( “Larry fez a melhor
pintura de dedos! Que menino habilidoso! Sua mãe fica
rá orgulhosa de você!” ) Em algumas escolas liberais, o
tempo todo, é verdade, professores gabaritados tentam
descobrir temas e atividades que interessem verdadeira
mente às crianças. (É mais fácil m anter a sala em ordem,
desse jeito.) Mas, como vimos, a estrutura repressiva da
própria sala de aula, que é segregada, garante que qual
quer interesse natural em aprender, finalmente, acabe
atendendo aos interesses essencialmente disciplinados da
escola. Os jovens professores, que entram no sistema, idea
listas a respeito de seu trabalho, logo se indispõem con
tra ele; alguns desistem desesperados. Se tivessem esque
cido que a escola foi um a prisão para eles, se lembrariam
novamente de tudo. E, cedo, são obrigados a compreen
der que, embora haja prisões liberais e prisões não tão
liberais, por definição, todas elas são prisões. A crian
ça é obrigada a freqüentá-las; a prova disso, é que nunca
vão à escola espontaneamente. ( “Fim das aulas, Fim das
aulas, Pra casa os bobocas vão voltando, Chega de lápis,
Chega de livros, Chega de professores implicando.” *) E,
embora educadores esclarecedores tenham projetado sis
temas completos de atividades disciplinares inerentemente
interessantes, para atrair e seduzir a criança a aceitar a
escola, esses sistemas nunca conseguem obter êxito total
mente, pois um a escola que existisse somente para atender
à curiosidade das crianças, entendida nos seus próprios
termos, e que fosse dirigida por elas próprias, seria uma
* No original: “School’s out, School’s out, Teachers let the fools out,
No more pencils, No more books, No more teacher’s dirty looks.” (N.T.)
117
contradição em seus próprios termos — como vimos, a
escola moderna, em sua definição estrutural, existe para
im plantar a repressão.
A criança despende a maior parte de suas horas pro
dutivas nessa estrutura coercitiva, ou fazendo deveres para
ela. O curto tempo que lhe resta, em geral, é absorvido
pelos afazeres e obrigações familiares. E la é forçada a
assistir a discussões familiares infindáveis, ou, em algu
mas famílias “liberais” , a assistir a “conselhos familiares”.
Existem parentes para os quais ela deve sorrir, e, geral
mente, missas a que ela deve assistir (todas essas horas
gastas de má vontade, com preces, pelas crianças). No
curto tempo restante, pelo menos em nossa classe média
m oderna, ela é “ supervisionada” , bloqueando-se o desen
volvimento de sua iniciativa e de sua criatividade. Sua
escolha de materiais lúdicos está determinada (brinquedos
e jogos); sua área de brincadeira está definida (ginásios,
parques, playgrounds, campings). Geralmente, fica limi
tada, na sua escolha dos companheiros de jogos, às crian
ças da mesma classe econômica, e, nos subúrbios, aos
colegas de escola, ou aos filhos dos amigos de seus pais.
E ntra para um núm ero de grupos maior do que poderia
dar conta (escoteiros, lobinhos, bandeirantes, fadinhas,
acampamentos, clubes extra-escolares, e esportes). Sele
cionam a cultura para ela. N a TV, freqüentemente, só
lhe é permitido assistir aos programas infantis (Papai
Sabe-Tudo), e é proibida de assistir aos filmes (bons)
para adultos. Seus livros e sua literatura, geralmente, são
tirados de listas desgastadas. ( Grandes Homens e M u
lheres Americanas. Crônicas de Babe Ruth. Lassie.
N ancy Drew.)
As únicas crianças que têm a mínima oportunidade
de escapar desse pesadelo supervisionado — apesar de
serem cada vez em menor número — são as crianças dos
guetos e das classes operárias, onde a concepção medie
val de comunidade aberta — m orando na rua — ainda
permanece. Isto é, historicamente, como vimos: muitos
desses processos da infância chegaram tarde nas classes
baixas, e nunca se firm aram realmente nelas. As crian
ças da classe baixa tendem a proceder de grandes fa
118
mílias nucleares, formadas de pessoas de idades muito
diferentes. Mas, mesmo quando isso não acontece, ge
ralmente há meio-irmãos e meio-irmãs, primos, sobrinhas,
sobrinhos, ou tias, num meio de parentes em constante
mudança. As crianças, individualmente, são muito pouco
observadas, e menos ainda supervisionadas; geralmente,
podem andar bem longe de casa, ou brincar nas ruas,
durante horas. E, na rua, se por acaso a família é pe
quena, existem centenas de garotos, muitos dos quais já
têm seus próprios grupos sociais (gangs*) formados. Elas
geralmente não ganham brinquedos, o que significa que
criam seus próprios brinquedos. (Vi garotos dos guetos
fazerem escorregas engenhosos de papelão, e colocá-los
em casas velhas sem degraus; vi outros fazerem carri-
nhos-de-mão e roldanas, com pneus velhos, cordas e cai
xotes. Nenhuma criança da classe média faz isso. E la não
precisa. Mas, em conseqüência, ela logo perde a engenho-
sidade.) Elas exploram as regiões bem longe de seus pe
quenos quarteirões, e, muito mais que seus companheiros
da classe média, travam relações com os adultos, num
mesmo nível. Nas aulas são rebeldes e indisciplinadas,
como, de fato, deveriam ser — pois a sala de aula é
um local que faria qualquer pessoa um pouco liberal sus
peitar dela. Existe um desrespeito persistente pela escola
na classe baixa, pois afinal ela é, na sua origem, um
fenômeno da classe média.
Sexualmente também as crianças dos guetos são
mais livres. Um rapaz me disse que não conseguia se lem
b rar de um a idade em que tivesse tido relação sexual
com outras garotas, sem isso ser um a coisa natural; todos
tinham. Aqueles que ensinam nas escolas das favelas
observaram ser impossível refrear a sexualidade das crian
ças. É um a coisa rotineira; as crianças gostam, e é muito
melhor do que um a aula sobre a Grande Democracia
Americana, ou sobre a contribuição dos hebreus, com a
revelação de Um Deus Ünico (por que revelar um só?),
119
ou sobre o café ou a borracha, como as exportações
mais importantes do Brasil. Assim, elas fazem am or ñas
escadas. E faltam à aula no dia seguinte. Se, na Amé
rica moderna, a infância livre existe nalgum estágio, isso
se dá na classe baixa, onde o mito é menos expandido.
Por que, então, elas “se tornam ” piores em situa
ção do que as crianças da classe média? Talvez isso seja
óbvio. Mas eu responderei com a minha própria experiên
cia, consolidada por ter m orado e ensinado nas favelas.
As crianças das favelas não têm inteligência inferior, até
atingirem a idade adulta, e até isso é discutível. As crian
ças da classe baixa são das crianças mais brilhantes,
mais atrevidas e mais originais. São assim porque são
deixadas em paz. (Se elas não se saem bem nas provas,
talvez precisemos reexaminar as provas, e não as crian
ças.) Mais tarde, defrontando-se com um “princípio de
realidade” muito diferente do da classe média, são con
sumidas e destruídas. Elas nunca conseguirão “ superar”
a sujeição econômica. Assim, é uma opressão do dia-a-dia
que gera esses adultos apáticos e sem imaginação, são
as restrições onipresentes à expansão de sua liberdade
pessoal — e não a infância largada.
Mas as crianças das favelas são apenas relativamen
te livres. Elas ainda são dependentes e oprimidas como
um a classe econômica. Existe um a boa razão para que
todas as crianças queiram crescer. Então, finalmente, elas
sairão de casa, e (finalm ente) terão a oportunidade de
fazer o que quiserem. (Existe um a certa ironia no fato
de que as crianças imaginam que os pais podem fazer
o que querem, e os pais imaginam o mesmo das crian
ças. “Quando eu crescer.. . ” corresponde ao “Ah, ser
uma criança novamente. . .” ) Elas sonham com am or e
sexo, pois vivem o período mais m onótono da vida. Ge
ralmente, quando se defrontam com a miséria dos pais,
juram firmemente que, quando crescerem, isso não acon
tecerá com elas. Constroem lindos sonhos de casamentos
perfeitos, ou de não se casarem de jeito nenhum (as
crianças mais espertas, que percebem que o erro está na
instituição e não nos pais), de dinheiro a ser gasto ao
bel-prazer, de muito amor e aprovação. Pretendem apa-
120
rentar ser mais velhas do que são, e se sentem insulta
das quando alguém diz que aparentam ser mais novas
do que são. Tentam, furiosamente, dissimular a ignorân
cia das avenutras amorosas, que é a desgraça física pe
culiar de todas as crianças. Eis um exemplo, tirado de
O Sexo no H om em e na Mulher, de Reik, das pequenas
crueldades às quais elas são constantemente sujeitas:
121
seu passado diferente, poderiam provocar riso nos outros.
Cada pessoa, na sua primeira viagem a um país estran
geiro, onde não conhece nem as pessoas, nem a lingua
gem, vive a infância.
* * *
122
to bem que muitas mulheres estão enjoadas e cansadas
de serem englobadas junto com as crianças. O fato de
elas não serem mais responsáveis pelas crianças do que
qualquer outra pessoa será uma afirmação crucial para
nossas exigências revolucionárias. É só porque desen
volvemos, em nosso longo período de sofrimentos rela
cionados, uma certa compaixão e compreensão por elas,
que não há razão para perdê-las. Sabemos onde as crian
ças estão, o que estão passando, porque nós, também,
ainda estamos sofrendo o mesmo tipo de opressões. A
mãe que quer m atar o filho, por causa do que teve que
sacrificar por ele (um desejo comum) só aprende a am ar
essa criança, quando compreende que é tão desprotegida
e oprim ida quanto ela, e pelo mesmo opressor. Então,
seu ódio se dirige para fora, e nasce o “amor m aternal”.
Mas iremos mais além. Nossa meta final deve ser a eli
minação das próprias condições da feminilidade e da
infância, que hoje conduzem a essa aliança dos oprimi
dos, abrindo caminho para uma condição “hum ana” to
talmente “hum ana”. Ainda não existem crianças capazes
de escrever seus próprios livros, de contar suas próprias
histórias. Nós teremos que, um a última vez, fazer isso
por elas.
123
V. RACISMO: O SEXISMO DA FAMILIA
DO HOMEM
125
não podem ficar dependentes das mulheres brancas, que
as mulheres brancas têm uma simpatia e um a curiosidade
secreta pelos homens negros, que as mulheres negras de
testam e invejam as mulheres brancas, e assim por dian
te. Mesmo assim, o livro provocou reações imediatas,
como aconteceu depois com os vários livros e artigos
sobre o assunto. P or que isso?
O primeiro movimento pelos direitos civis silenciou
a verdade durante muito tempo. Cerceado e amarrado,
limitou-se a falar em tom baixo sobre o “Problema Ne
gro”. Os negros eram “pessoas de cor” ; queriam apenas
as mesmas coisas simples que os brancos (sem cor) que
riam ( “Somos irmãos” ). E então os brancos amavelmen
te filtraram sua visão para encobrir as evidentes dife
renças físicas, culturais e psicológicas existentes entre
eles. Palavras como “crioulo” foram abandonadas. Afir
mações como “Você gostaria que sua irmã se casasse
com um negro?” tornaram -se de um mau gosto imper
doável, um sinal de educação inferior. “Você é precon
ceituoso!”, foi a acusação do ano. E M artin Luther King
usou magistralmente essa culpa, voltando a retórica cris
tã sobre si mesma.
M as então veio o Black Power. Um estrondo de eu-
-lhe-pedi-sos foi lançado pela nação, sobretudo pela clas
se operária, que estava mais próxima dos negros: O que
eles querem realmente é o nosso poder — estão atrás de
nossas mulheres. A honestidade de Eldrige Cleaver em
Soul on Ice trouxe uma conclusão ao assunto. A natu
reza altamente sexual do problema racial foi revelada.
Também internamente, o movimento do Black Power
cada vez mais se envolvia com um gênero especial de
machismo, tanto proclam ando ativamente a masculinida
de, quanto protestando contra a injustiça racial e de
classes.
M as não foi o elemento machismo do movimento
Black Power que perturbou seus inimigos. Essa parte do
movimento raram ente foi questionada pelo establishment
propriamente dito, ou pelo estabilisment liberal (de fato,
o papel de M oynihan no “m atriarcado negro” pode-se
dizer que criou esse complexo de castração maciço den-
126
tro da comunidade negra que ele descreve), ou pela Nova
Esquerda. E ra altamente compreensível, afinal, que os
homens negros finalmente quisessem o que todos os ho
mens queriam: estar acima de suas mulheres. De fato,
essa parte era tranquilizadora: os homens negros deve
riam começar a se interessar pela beleza negra, em vez
da branca (a onda de artigos recentes lam entando o
“duplo fardo” da mulher negra e sua carência de um
macho que a valorize é suspeita). Eventualm ente um a
“pureza” da pátria e da família levaria, talvez, ao con
servadorismo e ao fatalismo. Não, não foi a masculini
dade negra que fez os brancos reagirem — foi o que a
masculinidade pretende alcançar com suas ações: o Po
der. Os homens negros declaravam-se, agora, abertamen
te participantes na luta pelo poder masculino: queremos
o que vocês alcançaram, chega de saracotear. Os homens
brancos respiraram aliviados e começaram a se armar.
Eles sabiam como vencer isto. Pois, um a vez mais, tra
tava-se de homens versus homens, de um a força pode
rosa (aparelhada) contra outra. Foram para as frentes
de batalha com entusiasmo.
Qual é essa verdade que foi censurada, para tom ar
o movimento pelos direitos civis aceito pela América
Branca? Qual a relação entre o sexo e o racismo, que
faz qualquer livro sobre o assunto vender tão bem? Por
que só olhar para um negro em geral desperta sentimen
tos sexuais tão intensos num homem branco? Por que os
homens negros desejam ardentemente as mulheres bran
cas? Por que o preconceito é, geralmente, expresso em
termos sexuais? P or que o linchamento (em geral acom
panhado de castração) ocorre nas mais extremadas ma
nifestações de racismo?
A conexão entre sexo e racismo é obviamente mui
to mais profunda do que se pode imaginar. Mas, embo
ra a conexão nunca tenha sido explorada mais do que
superficialmente, já com uma década do novo movimen
to, temos um a nova série de chavões referentes ao sexo
e à raça, um novo dogma para os “badalados”. Por
exemplo, no Quem é Quem da Opressão, um a hierar
quia homem branco-m ulher branca-m ulher negra-homem-
127
-negro ainda se encontra em circulação, apesar das re
centes estatísticas do Ministério do Trabalho.1 Além disso
há o Antagonismo do Intelecto versus a Carne, desen
volvido por M ailer, Podhoretz, e outros, e continuado
por Cleaver, basicamente, a mística da m aior virilidade
do homem negro. E o Berço Negro da África, e a G ran
de M ãe Negra em trajes africanos. Mas essa exposição
superficial da relação entre sexo e racismo pretendeu
apenas encaminhar o problema de um modo diferente,
dessa vez atendendo aos interesses do Antiestablishment
masculino.
Neste capítulo, tentarei m ostrar que o racismo é um
fenôm eno sexual. Analogamente ao sexismo na psique
individual, podemos compreender totalmente o racismo,
em termos das hierarquias de poder da família. No sen
tido bíblico, as raças não são senão vários parentes e
irmãos da mesma Fam ília do Homem. E, semelhante ao
desenvolvimento das classes sexuais, a distinção fisioló
gica da raça tornou-se culturalmente im portante, devido
exclusivamente à distribuição desigual de poder. Portan
to, o racismo é o sexismo aumentado.
1. A Família Racial: ..
128
família nuclear. O homem branco é o pai, a mulher bran
ca a esposa-e-mãe, seu status depende disso; os negros,
como as crianças, são sua propriedade, sua diferenciação
física estigmatizando-os como classe servil, do mesmo
modo como as crianças formam nitidamente um a classe
servil vis-à-vis dos adultos. Essa hierarquia de poder cria
a psicologia do racismo, do mesmo m odo como, na fa
mília nuclear, ela cria a psicologia do sexismo.
Previamente, descrevemos o Complexo de Édipo no
homem como sendo a neurose resultante da subserviência
forçada ao poder do pai. Apliquemos essa interpretação
à psicologia do homem negro. O homem negro, à pri
meira vista, se identifica, por um fenômeno de simpatia,
com a mulher branca, que também é visivelmente opri
mida pelo homem branco. Porque ambos foram “castra
dos” (i.e., tornados impotentes, sem poder) do mesmo
modo pelo Pai, existem muitas semelhanças nos tipos de
opressão psicológica que cada um sofre, na natureza sexual
dessas opressões — e, portanto, na formação conseqüente
de seu caráter. Eles mantêm um vínculo específico na
opressão, do mesmo m odo como a mãe e a criança se
unem contra o pai.
Isso é responsável pela freqüente identificação da
mulher branca com o homem negro, num plano pessoal,
e, num plano mais político, por um a identificação com os
movimentos negros, desde o movimento abolicionista (cf.
H arriet Beecher Stow e), até o movimento negro atual.
A natureza vicária dessa luta contra a dominação do ho
mem branco é afim à identificação vicária da mãe com
o filho contra o pai. A mulher não alimenta muitas espe
ranças na sua própria luta, porque, para ela, tudo está
perdido desde o começo. Ela é definida in toto como
um apêndice do homem branco, ela vive sob a vigilância
diária dele, isolada das irmãs; ela tem um a força menos
agressiva. M as a mãe (m ulher branca) sabe que, se ela
129
não o é, pelo menos seu filho (homem negro) é poten
cialmente “m acho”, i.e., poderoso.
M as, enquanto algumas mulheres ainda tentam alcan
çar a.liberdade vicariamente, através da luta dos negros,
ou de. outros grupos racialmente oprimidos (tam bém bio
logicamente distintos), muitas outras mulheres abando
naram completamente a luta. Em vez disso, preferem acei
tar a opressão, identificando os próprios interesses com
os dos homens, na vã ilusão de que o poder possa se
dissipar. A solução delas foi destruir — em geral por amor
— seus fracos egos individuais, para fundir-se completa
mente com os egos poderosos de seus homens.
Essa identificação inútil é o racismo das mulheres
brancas — que, talvez, produza nos homens negros um
rancor ainda maior do que o racismo mais facilmente
compreensível de seus m aridos; pois ele indica um a trai
ção da Mãe. Contudo, esta é um a forma inautêntica de
racismo, porque ela surge de um a falsa consciência de
classe, da ameaça do que é, no fim das contas, apenas
uma ilusão de poder. Se e quando ela é tanto ou mais forte
do que o racismo dos homens brancos, ela ainda continua
sendo diferente na sua natureza. E la é caracterizada por
uma histeria peculiar que, como o conservadorismo da
burguesia negra — ou como a mulher que berra para o
marido que ele trata melhor das crianças do que dela —
é, em si mesma, o produto direto da precariedade de
sua própria situação de (não) classe. Desse modo, o ho
mem negro pode se tornar um bode expiatório do ódio
que a mulher sente pelo marido, mas que é incapaz de
admitir frontalmente.
Assim, a mulher branca tende a oscilar entre um a
identificação vicária com o homem negro e um racismo
histérico (mas inautêntico). As mulheres radicais que,
como a maioria das mulheres, desconfiam dos homens
em geral, particularm ente tendem a confiar e a simpatizar
com os homens negros — e então geralmente se desilu
dem amargamente, quando os homens negros tiram par
tidos delas pessoalmente, ou quando o movimento negro
não se modifica prontam ente o suficiente para apoiar a
causa feminina.
130
Pois raram ente existe amor e simpatia da parte do
homem negro. Voltando a nossa analogia: assim como o
filho estabelece inicialmente um vínculo de simpatia com
a mãe, e logo é exigido, no sentido de transferir sua
identificação da mãe para o pai, para erradicar a mulher
que existe dentro dele, assim também o homem negro,
a fim de “ ser um hom em ”, deve desfazer seu vínculo
com a mulher branca e, caso se relacione com ela, o fará
somente de um modo degradante. Além disso, devido ao
odio virulento e à inveja que ele tem do Possessor dela,
o homem branco, ele deve desejá-la ardentemente, como
urna coisa a ser conquistada, a fim de vingar-se do ho
mem branco. Assim, ao contrário da polarização de sen
timentos bem definida nas mulheres brancas, os senti
mentos do homem negro em relação à mulher branca
são caracterizados por um a ambivalência — um a intensa
mescla de amor e ódio. Entretanto, por mais que ele de
cida expressar essa ambivalência, é incapaz de controlar-
lhe a intensidade.
A recente peça de LeRoi Jones, Dutchman, ilustra
algumas dessas tensões e ambivalências no relaciona
mento do homem negro com a mulher branca. Elas são
personificadas num encontro dentro de um metrô entre
Clay, um jovem burguês negro, e Lula, um a loura vamp:
o desrespeito de Clay por Lula, como o brinquedo do ho
mem branco, misturado com uma atração erótica relu
tante, a compreensão profunda e imediata que ela tem
dele, e, finalmente, a traição dela, term inando literalmente
com um a punhalada pelas costas (depois da qual ela grita
“curra” , escapando ilesa — podemos supor que para
destruir mais outros jovens negros preocupados somente
com seus próprios interesses). Essa é um a visão íntima que
o homem negro tem da mulher branca. Lula nunca chega
a ser um a mulher de verdade, tanto ela é um produto do
Complexo de Édipo racial que eu descrevi.
O relacionamento do homem negro com o homem
branco, similarmente, reproduz a relação do filho com o
pai. Vimos como, num certo momento, a fim de afirmar
o ego, o filho deve transferir sua identificação da mulher
(sem poder) para o homem (poderoso). Ele odeia o pai
131
poderoso. M as lhe é oferecida uma alternativa: se ele
realm ente efetuar a substituição (nos termos do pai, é
claro ), será recom pensado; se recusar isto, sua “masculi
nidade” (hum anidade) será colocada em questão. Um
homem negro, na América, só tem a seguir um destes
caminhos:
1) pode ceder ao homem branco, nos term os do
homem branco, e ser pago pelo homem branco (Pai
Tomismo ). í 1# , u0-v *
2 ) pode recusar essa identificação completamente,
com o que geralmente se entrega à homossexualidade. Ou
pode continuar tentando desesperadamente provar que,
se não é “hom em ” aos olhos da sociedade branca, ao
menos não é um a mulher (Complexo de C afetão). T ra
tando as “putas” com desrespeito visível, dem onstra a
todo mundo que está na classe sexual superior.
3 ) pode tentar derrubar o poder do Pai. Essa ten
tativa pode, apesar de não necessariamente, encerrar um
desejo de se tornar o Pai, pela subordinação a sua posição
de Poder.
A não ser que o homem negro opte pela prim eira
escolha, a identificação com o Pai, nos próprios termos
do Pai, ele estará sempre sujeito à castração (destruição
de sua virilidade, de seu poder masculino ilegítim o),
particularm ente se bulir no tesouro do Pai, o apoio e a
personalidade do poder do Pai — sua mulher. Essa cas
tração racial ocorre não só m etaforicamente, mas também
literalmente, na form a do linchamento.
Apliquemos agora nossa interpretação política do
Complexo de Electra à psicologia da mulher negra. Se o
homem negro é Filho para a família americana, então a
mulher negra é Filha. Sua simpatia inicial pela mulher
branca (m ãe), seu vínculo de opressão com ela (m ãe)
contra o homem branco (pai) é complicado por seu rela
cionamento posterior com o homem branco (p a i). Quando
ela descobre que o homem branco possui esse “m undo de
dtscobertas e aventura”, ela, na posição servil de criança,
tenta identificar-se com ele, para negar a mulher que existe
dentro dela. (E ssa pode ser a causa da agressividade
muito maior da mulher negra, com parada com a docili
132
dade de suas irmãs brancas.) Na tentativa de negar o ele
m ento feminino (sem poder) nela mesma, ela passa a
desrespeitar a M ãe (m ulher branca). Do mesmo m odo
que a filha, ela pode reagir contra sua falta de poder,
de um dos seguintes modos: pode tentar ganhar direta
m ente o poder, imitando os homens brancos, tornando-se
assim um a “grande realizadora”, um a m ulher de forte ca
ráter que sobe na vida ( “especialmente para um a m u
lher negra” ), ou pode tentar ganhar indiretam ente o poder
seduzindo o Pai (voilà a “m arafona” negra), colocando-se
assim num a competição sexual com a mulher branca,
pela preferência do Pai — levando-a a odiar e a invejar
a mulher branca, que ela agora passa a tentar imitar.
Enquanto isso, o relacionamento do Irm ão (hom em
negro) com a irm ã (m ulher negra) é feito de rivalidades
e desrespeito mútuo. C ada um vê o outro sem poder, como
um lacaio tentando desesperadam ente se dar bem com os
Pais (hom em e mulher brancos). C ada um está a par dos
jogos sexuais do outro. É difícil para eles dirigir suas ener
gias eróticas um para o outro. Eles se enxergem, um ao
outro, bem demais.
Podemos nos valer, de um outro modo, da família,
para esclarecer a psicologia do racismo. Encarem os o
racismo como um a forma do E terno Triângulo. Nessa
situação, o homem branco é o M arido, a mulher branca,
a Esposa, e a mulher negra, a O utra M ulher. Vimos
como esse tipo de dicotomia entre a mulher “boa” e a
“m á” é, em si mesmo, um produto do Complexo de Édipo.
Um homem é incapaz de sentir, ao mesmo tempo, sexo e
afeto pelo mesmo objeto, assim ele precisa diferenciar
seus sentimentos. Pela esposa e mãe de seus filhos ele
sente respeito e afeição; pela “outra” mulher, seu recep
táculo sexual, ele sente paixão. A exageração posterior
dessa divisão pelas diferenciações biológicas, p,e. cor3, ou
133
pelas distinções de classes econômicas torna o acting out
da própria esquizofrenia sexual muito conveniente. Não
precisamos de nos preocupar realm ente em degradar nosso
objeto sexual, para anular nossa culpa de termos quebra
do o tabu do incesto; os atributos dele, por definição,
já o degradam. (Talvez o nível de corrupção da psique
masculina individual possa ser avaliado pelo grau
em que ela deseja a carne negra como alguma coisa de
exótica, de erótica, porque proibida.) Em bora destinada a
pagar o preço desse cisma — a exploração sexual —
a m ulher negra ao mesmo é liberta da escravidão da es
trutura familiar. A m ulher branca por sua vez, em bora
reverenciada em seu papel de M ãe, está permanentem ente
acorrentada ao próprio tirano privado.
Como as mulheres que compõem esse Triângulo ra
cial sentem umas às outras? Separar e Vencer: ambas
desenvolveram sentimentos hostis em relação às outras,
as mulheres brancas desrespeitando as “prostitutas” sem
m oral, e as mulheres negras sentindo inveja dos “pom
pons” mimados. A mulher negra inveja a legitimidade,
o privilégio e o conforto da m ulher branca, mas também
sente um desrespeito profundo por ela: as mulheres bran
cas são “putas frígidas”, que têm tudo muito fácil, obri
gando as mulheres negras a fazer todo o seu trabalho de
m ulher branca — desde suprir as necessidades sexuais e
passionais de seus maridos e cuidar de seus filhos, até
fazer suas tarefas de limpeza ( “pau pra toda obra” ).
Analogamente, o desrespeito da m ulher branca pela mu
lher negra vem m isturado à inveja: por causa da m aior
liberdade sexual da mulher negra, por sua fibra, por sua
independência do laço matrimonial. Pois, afinal, a mulher
negra não está sob o domínio de um homem, mas é muito
dona de seu nariz para fazer o que der e vier, para aban
donar a casa, para trabalhar (por mais que se trate de
um trabalho degradante), ou para ser “preguiçosa”.
que a mulher, branca desconhece é que a mulher negra,
por não estar sob o dom inio. de um "homem, p o d e_ealãn
ser esmagada por todos. Não há alternativa para nenhui
delas, além de escolher entre ser uma propriedade públi
134
ca^ou um a propriedade privada. N o entanto, p orque, cada
uma_ acredita que a outra está escapando de alguma
coisa, ambas podem ser enganadas, desviando sua frus-
tração uma para a outra, em vez de volta-la para o inir
migo real, “O Hom em ”.
jfl Sej no teatro "sexual da m ulher branca, ela repre
senta a M ulher (a propriedade privada do hom em ), e a
mulher negra representa a “Prostituta” (a propriedade pú
blica do hom em ), que papel o homem negro representa?
O de Cafetão. O homem negro é um mero joguete na
sexualidade da mulher branca. Pois, como vimos, o ho
mem negro não é um homem completo, tam pouco um
homossexual (que desistiu completamente da luta pela
identidade m asculina), mas um homem rebaixado. (O
fato de cafetão significar um “homem rebaixado” é con
firm ado pelo fato de que, no código masculino, cham ar
alguém de cafetão equivale a propor um duelo. M ostrei
como os termos degradantes de animais, usados tanto
para o homem quanto para a mulher, só ocorrem regular
mente na gíria dos guetos — garanhão, vaca, gavião, ga
linha, égua, etc.) A masculinidade do homem negro é tão
mais frágil que a do Homem, que ela só pode se afirm ar
em termos de seu poder e controle — isto é, m aus-tratos
■— sobre as mulheres, que são ainda menos poderosas
do que ele. Pelo fato de as mulheres serem sua arm a mais
im portante na guerra contra o homem branco pela m as
culinidade, sua relação com elas se corrom pe — é, não
como a relação do homem com a mulher, do m arido com
a esposa, mas como a do cafetão com a prostituta. A
proteção que ele dá à mulher negra é falsa. Em bora, algu
mas vezes ele possa até protegê-la dos males do mercado,
ele o faz visando aos próprios interesses. Mas, mesmo
quando o homem negro mais aparenta ser o explorador
original dela, é, na realidade, apenas o agente indireto
dessa exploração. Pois, embora possa m anobrar as éguas
de seu “estábulo” umas contra as outras, embora possa
tirar o dinheiro delas (fruto suado de sua exploração di
reta pelo homem branco) e gastá-lo no jogo, embora
possa bater nelas e xingá-las, isso nunca o qualificará
como um homem verdadeiro. O homem verdadeiro, am-
135
bos sabem disso, é O Homem. Só ele pode conferir legi
timidade a ambos, ao homem e à mulher negra. E, além
disso, tal como no triángulo Esposa-Prostituta, ele m an
tém o Cafetão e a Prostituta num a balança, lutando
contra cada um deles, através do outro. A m aioria das
tensões destes triângulos sobrepostos aparece na pequena
citação de uma mulher negra dirigida ao seu homem, que
se segue:
136
da mulher negra. Você saberá, antes de morrer, que, durante
a cópula e no momento do orgasmo, a mulher negra [ame
ricana], nas primeiras pontadas de seu espasmo, grita o nome
de Jesus. ‘Oh, Jesus, estou gozando!’, ela grita para ele. E isto
o ofenderá. Será como uma faca em seu coração. Seria o
mesmo se sua mulher, durante o orgasmo, gritasse o nome
de um cara imundo que morasse nas vizinhanças.”
137
branca com o cafetão negro: a mulher branca (m ãe) é
rebaixada a prostituta junto com a mulher negra, uma
bofetada direta no homem branco. E la é a mais pre
ciosa propriedade do Pai, agora revendida a ele como
m ercadoria danificada. Q uanto à própria prostituta bran
ca — nos poucos casos em que isso foi uma opção —
ela exprimiu o máximo de masoquismo. Ela se torna to
talm ente a presa do homem branco, beijando seus pés,
submetendo-se à extrema humilhação: um cafetão negro.
2. “Masculinidade Negra”
138
I
fraco. O homem negro é o Filho Bastardo valentão, o
filho ilegítimo, querendo um a oportunidade para ter esse
poder. Os M eio-Irm ãos fizeram um acordo: o Irm ão de
serdado oferece a sua experiência de rua e a força do seu
descontentam ento para ajudar ao Filho Legítimo mimado
e neurótico, em troca de tática, retórica, e sobretudo por
um a promessa de um a parte dos direitos hereditários
desse filho, quando ele alcançar o trono. Aquilo de que
os dois irmãos realmente falam não é de justiça nem de
igualdade, mas de poder (m asculino).
E quem é a Irmãzinha? Foi permitido às mulheres
brancas da Esquerda seguir de perto, ocasionalmente, os
homens, se elas fizessem o trabalho sujo. Mas, na maioria
das vezes, elas são rebaixadas e excluídas ( “pragas” , com
suas constantes exigências de inclusão, tendo acesso de
raiva diante de qualquer pequena observação “chauvinista
m asculina” ). A Irm ã engana a si mesma, identificando-se
tão intensamente com o G rande Irm ão, que às vezes acre
dita ser exatamente como ele. Ela percebe que é cada
vez mais difícil identificar-se com aquela massa indistinta
de mulheres comuns (M ã e), que ela precisa destruir em
si mesma, para ganhar a aprovação do G rande Irmão.
E le a encoraja a fazê-lo. Sabe que as ilusões do poder
futuro dela a tornarão, afinal, mais dócil. E la pode ser
útil, sobretudo para subornar o Pai.
Além disso, os Irmãos fizeram um pacto de sangue:
você me dá suas gatinhas (o Irm ão Bastardo satisfaz suas
fantasias pela Irmazinha, enquanto que o homem branco
finge não n o tar), e eu te dou as minhas (o homem branco
consegue sua prim eira foda verdadeira, enquanto que o
Irmão Bastardo contém o riso).
E a irmã negra? Ao procurar conseguir a “legiti
midade” dessa vez, os militantes negros masculinos estão
reorganizando sua sexualidade, de modo a ficar de acordo
com o modelo existente. São feitas anualmente tentativas
para instituir a família na comunidade negra, para trans
form ar a comunidade negra de Casa de Prostituição da
família branca em Fam ília Negra. A mulher negra está
sendo convertida de seu papel anterior de Prostituta em
Adorada-Rainha-Negra-M ãe-de-M eus-Filhos. Assim, o F i
139
lho Bastardo assumiu o papel de Pai dentro de sua pró
pria comunidade, na expectativa de seu poder futuro. Eis
um poster muito circulado, afixado num a vitrine da East
Village:
OURO NEGRO
[um perfil marcante, em tamanho grande, de uma
mulher negra com cabelo black power]
SUA NAÇÃO
“Se ele não proteger sua mulher, ele não construirá uma
boa nação. É meu dever ensinar e treinar os jovens, que são
o futuro da nação.
Eu ensino a meus filhos, quando eles são bem pequenos,
a língua, a história e a cultura.
Eu os ensino a amar e respeitar o pai deles, que trabalha
arduamente para que possam ter comida, roupas e casa ade
quada.
Eu cuido de nossa casa, e torno-a confortável para meu
marido.
Eu reflito o amor que ele tem pelas crianças, assim como
a Lua reflete a luz do Sol para a Terra.
Eu sento para conversar com meu marido, para resolver
os problemas diários e as necessidades de funcionamento de
um lar estável e tranqüilo.
O melhor que eu posso dar a minha nação são crianças
fortes, sadias e inteligentes, que se tornarão os líderes de
amanhã.
Eu estou sempre ciente de que o verdadeiro valor de uma
nação se exprime através do respeito e da proteção da mu
lher, portanto eu me conduzo o tempo todo de maneira civi
lizada, e ensino meus filhos a fazerem o mesmo.
Eu sou a Mulher Negra.”
140
como quiser — os negros são dependentes dele para sua
sobrevivência — e as conseqüências psicossexuais dessa
definição inferior continuarão a operar. Assim, o con
ceito de Fam ilia Negra Digna raram ente penetra nos cír
culos da Burguesia M acaq u ead o s, ou entre os V erdadei
ros Adeptos Revolucionários. N a verdade, seria preciso
que acreditássemos fanaticam ente na Revolução, para re
chaçarmos as tendências de mentalidade do atual siste
ma sexual/racial. Só poderíamos adotar essa estrutura re
mota, a partir da antecipação visionária segura de um
m undo diferente. O fato de que o espírito da juventude
do gueto não está ansioso em pôr em prática esta estru
tura familiar é compreensível. Diariam ente, eles estão à
mercê das necessidades sexuais reais da Fam ília Branca;
não podem permitir-se deixar de dançar conforme a mú
sica dessa realidade terrível, ou esquecer por um momen
to que m antêm o poder. Nesse aspecto, os revolucionários
negros são tão perigosos quanto um a pequena banda de
N at Tum ers, tentando instituir o casamento nos bairros
escravos, em antecipação à rebelião vindora. E todas as
advertências em contrário, mesmo as revolucionárias,
encontram dificuldade em libertar-se dessa psicologia se
xual/racial, revelando-se elas próprias ainda irresistivel
mente atraídas pelas “diabas louras” . Pois ela está arrai
gada muito nas suas psiques, sustentada pelo dia-a-dia
das realidades do poder. O próprio Cleaver se debate
num conflito:
141
homem negro, particularm ente o desgastante am or/ódio
pelo “Ogro” (m ulher branca). De fato, o relato de Clea-
ver contém a maioria das ambivaléncias que descrevemos.
Por ele nos vem alguma idéia do que era sua atitude ante
rior com relação às mulheres (negras), antes de apaixo-
nar-se p o r um a m ulher (b ran ca ):
m
142
se com um a m ulata, Kathleen, deixando Beverly desam
parada. As últimas fotos incluem um filho pequeno.)
Suas cartas para Beverly, quase tão personalizadas e ho
nestas quanto provavelmente ele nunca escreveu para
uma mulher, são seguidas de um a carta floreada (teste
munho? doutrina?) Para Todas as Mulheres Negras De
Todos os Homens Negros. Sua imagética genital inclui
preciosidades como:
L em bra-a que:
E finalmente, triunfante:
143
mais do que o ataque vicioso do Cafetão Negro à Rainha
Negra. A R ainha preferiu renunciar totalm ente à iden
tificação (poder) masculina, em vez de aceitar a defini
ção sexual degradante legada pelo homem branco, com
isso ameaçando o Cafetão, que luta por um a batalha
perdida. E , como se esse ataque não fosse suficiente,
Cleaver revela sua insegurança sexual na sua imagem
de Super-garanhão, o Norm an M ailer negro. Alguns lan
çam pragas, a julgar pela histeria de seu protesto m as
culino.
A transform ação da m ulher negra na mulher passiva
tradicional cria um útiT £ario-3e-fu"53o negativo, contra
o qual a própria definição* que o homem negro dá de si
mesmo como masculino £agressivo) pode se lançar. Ê
na sua condição de trampolim ou de saco-de-paricadâT**i
'm uiher'ñégFa e valiosa e deve ser “humildemente” corte
jada. Sua cooperação é im portante, pois o homem negro
só pode ser o “hom em ” se alguém for a “m ulher” .
As mulheres negras, tão afeitas a lábias, parecem
ter caído nesse “papo”. Eis um a repreensão escrita por
outra mulher negra, em resposta à acusação dirigida aos
homens negros por Gail A. Stokes, que eu citei anterior
mente. E la é célebre por seu antifeminismo feminino:
144
passos atrás de você, porque esse é o meu lugar na sua vida...
Você é tudo porque eu estou aqui.”
“Artie, querida . . .
Se eu não lhe amar agora porque eu vi outro dia alguma
coisa no seu rosto que dizia que você era uma revolucionária,
então algo está errado. . . . O que Malik [o filho deles de três
anos] está fazendo? Ensine-o como ajudar as pessoas com
seus exemplos, A r tie .... Artie, espero que você não esteja
sendo egoísta, conservando essa carta com você. Oh, eu sei
que você a está lendo para os outros membros do partido ..
145
Triângulo. Como vimos, a mulher negra representou du-
rante séculos a Prostituta^, usada e abusada pelos ho
mens brancos (seus “trunfos” ) e pelos .homem negros
(seus “cafetões” ). Todo esse tempo, ela olhou com inve
ja para a legitimidade, p—í\ segm ança..da., mulher branca.
Agora, tendo-lhe sido oferecida essa legitimidade, sob
qualquer pretexto, ela é tentada a ter pretensões para m
mesma, desconhecendo as aversões reservadas. A Esposa
é_a única que pode lhe revelar isto, mas elas não se dão.
Pois, como vimos, cada* um a aprendeu a projetar suas
frustrações na outra. Seu longo antagonismo torna difí
cil para as duas trocar as lições valiosas"fe~3o~?orosas) que
elas aprenderam a respeito do H om em, Se elas conseguís-
146
I
146
VI. AMOR
147
níveis mais profundos do que estes. Qs homens pensavam,
escreviam e criavam, porque as mulheres extravasavam
as energias sobre esses homens; as mulheres não criam
cultura, porque estão preocupadas com o amor.
O fato de as mulheres viverem para o amor, e os
homens para o trabalho é um truismo. Freud foi o pri
meiro a tentar situar as bases dessa dicotomia na psique
individual: o filho, rejeitado sexualmente pela prim eira
pessoa de seu interesse, a mãe, “sublima” sua “libido” —
seu reservatório de energias sexuais (vitais) — em proje
tos a longo prazo, na esperança de receber amor, num a
form a mais generalizada. Assim, ele desloca sua necessi
dade de amor para uma necessidade de reconhecimento.
Esse processo não é o mesmo na mulher: nunca deixa
de desejar o calor direto e a aprovação.
Existe também m uita verdade nos chavões de que
“por trás de todo homem existe um a mulher” , ou de que
“ as mulheres são o poder [leia-se: a voltagem] por trás
do trono”. A cultura (m asculina) fundou-se no amor
das mulheres, e à sua custa. As mulheres forneceram a
substância das obras-primas masculinas, e, por milênios,
fizeram o trabalho e suportaram o preço de relações emo;
cionais unilaterais, cujos benefícios iam para os homens,
e para o trabalho dos homens. Portanto, se as mulheres
são um a classe parasita, vivendo afastada e às margens
da economia masculina, o inverso também é verdadeiro:
A cultura (masculina) foi (e é) parasitária, alimentan
do-se da força emocional das mulheres, sem reciprocir
dade.
Além do que, tendemos a esquecer que essa cultura
não é universal, mas, ao contrário, sectária, mostrando
apenas m etade de sua estrutura. A verdadeira estrutura da
cultura, como teremos a oportunidade de ver, está satu
rada por essa polaridade sexual, bem como é, em todos
os níveis, dirigida pelos, para, e conforme os Interesses da
sociedade masculina. Mas, enquanto a metade masculina é
chamada de toda a cultura, os homens não se esqueceram
de que existe uma metade “emocional” feminina. E la é vi
vida às escondidas. Em conseqüência de sua luta para ex
pulsar as mulheres existentes dentro deles (o Complexo
148
de Édipo, como o interpretam os), os homens são incapa
zes de considerar o am or seriamente, como um a questão
cultural. No entanto, eles não podem passar sem ele com
pletamente. O amor é o nervo da cultura (m asculina),
assim como o amor é o ponto fraco de todo homem, em
penhado em provar sua virilidade nesse vasto m undo mas
culino de “descobertas e aventura”. As mulheres sempre
souberam como os homens precisam de amor, e como
eles negam essa necessidade. Talvez isto explique o pe
culiar desrespeito que as mulheres sentem, tão universal
mente, pelos homens ( “os homens são tão bobos” ), pois
elas conseguem compreender que seus homens posam
para o mundo exterior.
I
V
Como esse fenômeno “am or” funciona? C ontraria
mente à opinião popular, o amor não é altruísta. A atra
ção inicial é baseada no estranho encanto (hoje, mais
comumente, a inveja e o ressentimento) pelo autocontro
le, a unidade integrada do outro, e um desejo de tornar-
se, de algum modo, parte de seu Self (leia-se hoje: im-
por-se ou dom inar), de tornar-se im portante para esse
equilíbrio psíquico. A independência do outro origina de
sejos (leia-se: um desafio); a admiração (inveja) do
outro torna-se um desejo de incorporar (possuir) suas
qualidades. Segue-se um conflito de selves, no qual o
indivíduo tenta repelir o crescente poder do outro sobre
ele. O am or é a abertura final para o outro (ou a rendi
ção ao seu dom ínio). O amante dem onstra ao bem-ama-
do como ele próprio gostaria de ser tratado. (“E u tanto
tentei fazê-lo apaixonar-se por mim, que eu mesma aca
bei me apaixonando por ele.” ) Assim, o amor é o auge
do egoísmo. O self tenta se enriquecer, através da absor
ção de um outro ser. A m ar é ser fisicamente vulnerável
ao outro. Trata-se de um a situação de vulnerabilidade
emocional total. Portanto, não deve ser apenas a incor
poração do outro, mas uma troca de selves. Qualquer
coisa desprovida de troca m útua prejudicará um a das
partes.
149
Não existe nada inerentemente destrutivo nesse pro
cesso. Um pouco de egoísmo saudável pode ser um a mu
dança restauradora. O amor entre dois iguais seria um
enriquecimento, cada u jb .expandindo a si mesmo, através
do outro. Em vez de só, fechado na cela de si mesmo,
exclusivamente com sua própria experiência e seu pró
prio ponto de vista, o indivíduo poderia participar da
existência de outro — uma janela extra para o mundo.
Esse é o motivo da satisfação que os amantes bem su
cedidos experimentam. Eles estão tem porariam ente liber
tos do fardo de isolamento que todo indivíduo carrega.
Mas, a satisfação no am or raram ente ocorre. Para
cada experiência de amor bem sucedida hoje, para cada
pequeno período de enriquecimento, existem dez expe
riências de amor destruidoras, “depressões” pós-amorosas
de muito maior duração — em geral terminando com a
destruição do indivíduo, ou pelo menos com um cinismo
emocional que torna difícil ou até impossível am ar nova
mente. Por que aconteceria isso, se não é, hoje, inerente
ao próprio processo de amor?
Falemos do amor, no seu aspecto destrutivo — e
porque ele tom a esse rumo, referindo-nos um a vez mais
à obra de Theodore Reik. A observação concreta de Reik
coloca-o mais próximo da compreensão do processo de
“enamorar-se” , do que muitas mentes superiores, contu
do, ele perde essa compreensão, na medida em que con
funde o amor, como ele existe em nossa sociedade atual,
com o próprio amor. Observa que o amor é uma form a
ção reativa, um ciclo de inveja, hostilidade e possessivi-
dade. Entende que o amor é precedido de uma insatisfa
ção consigo mesmo, de uma ânsia de alguma coisa me
lhor, gerada por um a discrepância entre o ego e o ego-
ideal; que a satisfação que o am or produz deve-se à re
solução dessa tensão pela substituição do outro, no lugar
de nosso próprio ego-ideal; e, finalmente, que o amor
murcha, “porque o outro não pode, mais do que você,
viver à altura de seu elevado ego-ideal, sendo a crítica
tão severa, quanto mais altos forem os graus de exigên
cia sobre si mesmo. “Assim, na visão de Reik, o amor
se desgasta, do mesmo modo como se estimula: A insa
150
tisfação consigo mesmo (quem já ouviu falar de apaixo
nar-se na semana em que se está indo para a Europa?)
leva à admiração pela independência do outro, à inveja,
à hostilidade, ao am or possessivo, e a voltar, de novo, a
exatamente o mesmo processo. Esse é o processo do
amor hoje. Mas por que ele se dá desse modo?
Muitos, por exemplo Denis de Rougemont, em
O A m o r no M undo Ocidental, tentaram esboçar uma
distinção entre o “apaixonar-se” romântico, com sua
“falsa reciprocidade que encobre um duplo narcisismo”
(o Eros P agão), e um amor não egoísta pela outra pes
soa, do jeito que essa pessoa é realmente (o Ágape
C ristão). De Rougemont atribui a paixão m órbida de
Tristão e Isolda (am or rom ântico) a um a vulgarização
das correntes místicas e religiosas específicas da civiliza
ção ocidental.
Sugiro que o amor é, essencialmente, um fenômeno
muito mais simples. Ele se torna complicado, corrompi
do, ou dificultado por um equilíbrio desigual de poder.
Vimos que o amor requer um a vulnerabilidade m útua,
ou se torna destrutivo. Os efeitos destrutivos do amor
só ocorrem num contexto de desigualdade. Mas, por ter
¿"desigualdade sexual permanecido uma constante —
embora seu grau possa ter variado — a corrupção do
amor “rom ântico” tornou-se um a característica do amor
entre os sexos. (Resta-nos apenas explicar porque ela
se intensificou solidamente nos países ocidentais, desde
o período medieval. Será o que tentaremos fazer no pró
ximo capítulo.)
De que modo o sistema de classes sexuais, baseado
na distribuição desigual de poder da família biológica,
afeta o am or entre os sexos? Ao discutir o freudismo,
investigamos a estruturação psíquica do indivíduo dentro
da família, e como essa organização da personalidade
pode ser diferente do homem para a mulher, em virtu
de de seus relacionamentos bem diferentes com a mãe.
Atualmente, a interdependência insular do relacionamen
to m ãe/filho impõe a ansiedade tanto ao filho quanto
à filha de perder o am or da mãe, do qual dependem
para a sobrevivência física. Quando, mais tarde (apesar
151
de Erich F rom m ), a criança compreende que o am or da
mãe é condicional, e que, para ser recom pensada, ela
tem de assumir um comportamento aprovado (i.e., o com
portam ento de acordo com os valores próprios e a gra
tificação pessoal do ego da mãe — pois ela é livre para
m oldar “ criativamente” a criança, seja lá como defina
essa criatividade), a ansiedade da criança se converte
em desespero. Isto, coincidindo com a rejeição sexual
do filho homem pela mãe, provoca, como vimos, uma
esquizofrenia no menino entre o emocional e o físico, e
na menina a rejeição da mãe, ocorrendo por diferentes
razões, gera um a insegurança sobre sua identidade em
geral, criando um a necessidade de aprovação, por toda
a vida. (M ais tarde, seu amante substituirá o pai como
doador da identidade necessária sub-rogada — ela vê
tudo, através dos olhos dele.) Aqui se origina a ânsia
de amor que, mais tarde, lança ambos os sexos à pro
cura, num a pessoa após a outra, de um estado de segu
rança do ego. M as, por causa da rejeição primitiva, no
grau em que ela ocorreu, o homem ficará aterrorizado
de comprometer-se, de “desabafar-se” , e, depois, ser des
pedaçado. A respeito de como isto afeta sua sexualidade,
vimos que: conforme o grau em que um a mulher se asse
melhe à mãe dele, o tabu do incesto funciona para res
tringir seu compromisso sexual/em ocional total. Para
sentir-se a salvo do tipo de resposta total que sentiu
primeiramente pela mãe, e que foi recusada, ele J2l£sisa
rebaixar essa mulher p ara diferenciá-la da mãe. Esse
comportamento, reproduzido em larga escala, explica
muitos fenômenos culturais, inclusive talvez o culto do
amor ideal das eras cavalheirescas, o precursor do ro
mantismo moderno.
A idealização romântica é parcialm ente responsável,
ao menos da parte do homem, por um a característica pe
culiar do “apaixonar-se” : a m udança acontece no am an
te quase que independentemente da personalidade do
objeto amado. Ocasionalmente, o amante, apesar de fora
de si, vê através de outra parte racional de suas faculda
des que, objetivamente falando, a pessoa que ele ama
152
não merece toda a sua dedicação cega; mas, ele é impo
tente para agir sobre isso, “um escravo do am or”. N a
m aioria das vezes, ele se engana completamente. E ntre
tanto, os outros conseguem ver o que se passa ( “Porque
cargas d’água ele poderia amá-la foge à minha compreen
são!” ). Essa idealização ocorre muito menos freqüente
mente da parte da mulher, como foi confirmado pelos
estudos clínicos de Reik. Um homem pode idealizar um a
m ulher acima de todas as outras para justificar sua des
cendência- d é'u m a cla'sse social mais baixa. As mulheres
n ão têm esse motivo para idealizar os homens.' De fato,
quando a vida de alguém depende da habilidade de “sa
car” os homens, essa idealização pode ser realmente pe
rigosa — em bora um medo do poder masculino possa,
em geral, repetir-se nos relacionamentos particulares com
os homens, aparentando o mesmo fenômeno. M as, embo
ra saibam ser inautêntica essa “paixão” masculina, todas
as mulheres, de um m odo ou de outro, exigem dos ho
mens uma prova desse amor, antes que eles possam se
perm itir am ar (genuinamente, no seu caso) em troca.
Pois esse processo de idealização funciona para equali-
zar artificialmente as duas partes, uma precondição mí-
nima p ara o desenvolvimento de um am or não corrom
p id a Vimos que o am or requer uma vulnerabilidade m ú
tua, que é impossível de se realizar num a situação de
poder desigual. Desse modo, “apaixonar-se” não é mais
do que um processo de deformação da visão masculina
— através da idealização, da mistificação, da glorifica
ção — que torna nula a inferioridade da classe feminina.
Contudo, a mulher sabe que essa idealização, que
ela se esforça por produzir, é um a m entira, que é um a
questjfl de tempo ela ficar “transparente” para ele. Sua
vida é um inferno, oscilando entre uma necessidade obses
siva pelo am or e a aprovação masculina, para erguê-la
de sua submissão de classe, e sentimentos persistentes de
inautenticidade, quando ela obtém o am or dele. Assim,
sua identidade total depende da balança de sua vida amo
rosa. Só lhe é permitido am ar a si mesma, se um homem
a considerar digna de amor.
153
Mas, se pudéssemos eliminar o contexto político do
amor entre os sexos, não restaria um certo grau de idea
lização no próprio processo de amar? Creio que sim.
Pois o processo ocorre da mesma maneira, seja quem
for o escolhido pelo am or: o amante “ abre-se” para o
outro. Por causa dessa fusão de egos, na qual cada um
pensa e se preocupa com o outro, como se fosse um
novo self, a beleza/índole do bem-amado, talvez escon
dida para os estranhos sob camadas de defesas, é reve
lada. O “Eu me pergunto o que ela vê nele” significa,
então, não só que “ela é um a tola, cega pelo rom antis
mo”, mas que “seu am or dotou-a de um a visão de
raios-X. Talvez não estejamos percebendo alguma coisa”.
(Note-se que esta frase é mais comumente empregada
em relação às mulheres. A frase equivalente, relativa à
escravidão dos homens ao amor, é, em geral, mais p a
recida com o “ele é um joguete nas mãos dela”, ela o
envolveu de tal forma, que ele é o último a conhecer
seu jogo.) A sensibilidade desenvolvida para os verda
deiros (ainda que ocultos) valores do outro, contudo,
não é uma “cegueira” , ou “idealização”, mas é, de fato,
um a visão mais profunda. Só ^ .fxilsa idealização que
descrevemos acima é que é responsável pela destruição.
Assim, não é o próprio processo do amor que está erra
do, mas sua política, i.e., seu contexo de poder desigual.
O quê, o porquê, o quando e o onde dele é que o tor
nam hoje um holocausto.
II
154
justificando-se (supõe-se que seu Superego o esteja inco
m odando) :
MULHERES:
“Mais tarde, ele me chamou de uma mulher meiga . ..
Eu não respondi. . . o que eu poderia dizer? . . . mas eu sabia
que eu não era, de modo algum, uma mulher doce, e que ele
me via como alguém que eu não sou.”
“Nenhum homem pode amar uma mulher, do modo como
uma mulher ama um homem.”
“Eu posso passar muito tempo sem sexo, mas não sem
amor.”
“É como HoO, em vez de água.”
“Algumas vezes eu penso que todos os homens são sexo-
maníacos, e indigentes sexuais.”
“Tudo o que eles conseguem pensar, quando estão com
com uma mulher, é em ir para a cama com ela.”
“Eu não tenho nada a oferecer a esse homem, além deste
corpo?”
155
“Tirei meu vestido e meu sutiã, e me deitei na sua cama,
e esperei. Por alguns instantes, pensei em mim como num
animal de sacrifício no altar.”
“Eu não compreendo os sentimentos dos homens. Meu
marido me tem. Por que ele precisa de outra mulher? O que
elas têm que eu não tenho?”
“Acredite-me, se todas as esposas, cujos maridos têm ca
sos, os deixassem, nós só teríamos mulheres divorciadas
neste país.”
“Depois que meu marido teve muitos casinhos, eu me
enamorei da fantasia de ter um amante. Por que não? O que
é bom para o pato é bom para a p a ta . . . Mas, eu era es
túpida como uma pata: não admitia para mim ter uma aven
tura extraconjugal.”
“Perguntei a várias pessoas se os homens também, algu
mas vezes, choravam, choravam, e acabavam dormindo. Eu
não acredito nisso.”
156
no amor, que vêm à tona tão freqüentemente nas dis
cussões de sala de visitas, sobre o “double standard” '",
nas quais todos concordam que: as mulheres são mo-
nogâmicas, melhores amantes, possessivas, “ aderentes”,
mais interessadas (altam ente envolvidas) nos “relaciona
mentos” do que no sexo em si mesmo, e que elas con
fundem o afeto com o desejo sexual; que os homens não
se interessam, a não ser por foder (Tchau e obrigado,
dona!), ou então romantizam ridiculamente as mulheres;
que, uma vez seguros dela, tornam -se notórios dom-joões,
nunca satisfeitos; que tomam sexo por emoção. Tudo
isso confirma o que tínhamos discutido — a diferença
nas organizações psicossexuais dos dois sexos, determi
nada pelo primeiro relacionamento com a mãe.
Tiro três conclusões, baseada nessas diferenças:
1) Que os homens não podem amar. (Horm ônios
masculino~s? As mulheres, tradicionalmente, esperam e
aceitam um a invalidez emocional nos homens, que elas
achariam intolerável num a mulher.)
2) Que o comportamento “ adesivo” das mulheres
é ditado p or sua situação social objetiva.
3 7 Que essa situação não m udou significativamente
do que ela sempre foi.
Os homens não podem amar. Vimos porque os ho
mens têm dificuldade de amar, e porque, embora possam
amar, geralmente eles “se apaixonam” — pela sua pró
pria imagem projetada. N a maioria das vezes, batem um
dia com força à porta de uma mulher, e, no dia seguinte,
estão completamente desiludidos com ela; mas é raro as
mulheres abandonarem os homens, e isso geralmente se
dá por mais de uma ampla razão.
É perigoso ter pena de nosso opressor — as mu
lheres são especialmente propensas a essa fraqueza —
mas eu estou tentada a fazê-lo nesta circunstância. Ser
incapaz de am ar é o inferno. É assim que isso acontece:
logo que o homem sente alguma pressão do outro par
ceiro para que ele se comprometa, ele entra em pânico,
e pode reagir de um destes vários modos:
* V. p. 260 (N .T.)
157
1) Pode sair correndo e foder outras dez mulheres,
para provar que a primeira não tem controle sobre ele.
Se ela aceita isso, ele pode continuar a vê-la nessa base.
As outras mulheres verificam a (falsa) liberdade dele.
Discussões periódicas mantêm-lhe o pânico a distância.
Mas as mulheres são um tigre de papel, pois nada de
muito profundo pode acontecer com elas, seja o que for.
O homem contrabalança umas com as outras, de modo
que nenhuma delas possa obter muito dele. M uitas mu
lheres espertas, reconhecendo que isto é apenas um a vál
vula de escape para a ansiedade masculina, “dão bastan
te rédea” a ele. Pois o problema real, por trás de todos
esses medos pelas mulheres é que o homem é incapaz de
comprometer-se consigo mesmo.
2 ) Ele pode exibir concretamente um comportamen
to imprevisível, faltando freqüentemente aos encontros,
sendo vago a respeito da próxima data, dizendo “meu
trabalho vem primeiro” , ou apresentando uma variedade
de outras desculpas. Isto é, embora ele sinta a ansiedade
dela, ele se recusa a tranqüilizá-la de qualquer modo,
ou mesmo a reconhecer-lhe a ansiedade como legítima.
Pois ele precisa da ansiedade dela como um lembrete
constante de que ele ainda é livre, de que a porta ainda
não está completamente fechada.
3) Quando é forçado a um compromisso (incôm o
d o ), ele a faz pagar por isso : lançando olhares para
outras muflieres na presença dela, com parando-a desfa
voravelmente com nam oradas antigas, ou com estrelas
de cinema, com lembretes maliciosos na frente de ami
gos de que ela é seu “fardo”, chamando-a de “égua” ,
de “puta”, de “megera”, ou insinuando que, se ele fosse
apenas um solteirão, estaria em melhores condições. Sua
ambivalência com relação à “inferioridade” das mulhe
res torna-se evidente: comprometendo-se com um a, ele
de algum modo cedeu à abominada identificação femi
nina, que a partir daí ele deve negar repetidamente, se
quiser m anter sua dignidade dentro da comunidade (mas
culina). Essa constante depreciação não é totalmente
encenada, pois, de fato, toda outra mulher subitamente
lhe parece ser melhor. Ele não consegue deixar de sen
158
tir que perdeu alguma coisa — e, naturalmente, sua mu
lher é a culpada. Pois ele nunca desistiu da procura do
ideal; ela o forçou a renunciar a isso. Provavelmente,
m orrerá com a sensação de ter sido enganado, nunca se
dando conta de que não existe m uita diferença entre uma
mulher e outra, que é o amor que cria a diferença.
Existem muitas variações para resistir à mordida.
Muitos homens passam de um a aventura casual para ou
tra, evitando o tempo todo que ela comece a esquentar.
E, no entanto, viver sem am or afinal se revela intole
rável para os homens, tanto quanto para as mulheres.
TÁ questão que fica para todo homem norm al é, portan-
\to , como posso conseguir que alguém goste de mim, sem
'exigir um compromisso igual erri.Jroça?
O comportamento “adesivo” das mulheres é ditado
por sua situação social objetiva. A resposta feminina a
essa situação de histeria masculina diante de qualquer
perspectiva de compromisso mútuo foi desenvolver mé
todos sutis de manipulação, para impingir tantos com
promissos quantos forem possíveis serem impingidos aos
homens. Durante séculos, foram planejadas estratégias,
testadas e passadas de mãe para filha, em tête-à-têtes se
cretos, circuladas nas fofocas dos chás de mulheres ( “Eu
nunca compreendi com que as mulheres gastam tanto
tempo falando!” ), ou, em tempos recentes, via telefone.
Essas não são, de modo algum, sessões triviais de mexe
ricos (como as mulheres preferem que os homens acre
ditem ), mas estratégias desesperadas pela sobrevivência.
Um a garota de colégio misto, num a conversa de um a
hora ao telefone sobre os homens, mostra-se muito mais
brilhante do que quatro anos depois. Também há muito
mais brilhantismo nesse tipo de conversa do que na m aio
ria das manobras políticas masculinas. Não é de admirar
então que, mesmo as poucas mulheres sem “obrigações
' familiares” sempre cheguem exaustas à linha de partida
ae qualque :r empreendimento sério.^ Requer-se o
de sua energia, durante a meinor parte de seus anos criar
tivys para “ agarrar um bom partido”, e uma boa parte do
nrv)
159
como a profissão é para os homens.” ) As mulheres que
preferem retirar-se dessa corrida escolhem uma vida sem
amor, algo que, como vimos, a maioria dos homens não
tem coragem de fazer.
Mas, infelizmente, a Caça ao Homem é caracteriza
da por um a urgência emocional, além desse simples de
sejo de anunciar um compromisso oficialmente. E la é
fundamentada, em primeiro lugar, na própria realidade
de classes que produziu a incapacidade masculina de
amar. Num a sociedade dirigida pelos h omens, que... define
as mulheres como uma £lasse_jjQfgn2£_£_>£ £ |^M £ Íg - a.
mulher que não obtém de algum modo a aprovação mas7
culina é condenada. Para legitimar sua existência, uma
mulher deve ser mais do que uma mulher, deve continua
mente procurar uma saída para sua definição inferior;1
e os homens são os únicos em posição de conceder-lhes
esse estado de graça. Mas, por_ser raramente permitido
à... mulher realizar-se através da atuação na sociedade
(m asculina) - - e, quando isso açonteçe, raram ente lhe
é concedido o reconhecimento que ela merece — torna-
se mais fácil tentar o reconhecimento de um homem do
que de vários; e, de fato, essa é exatamente a opção qu,e
a maioria das mulheres faz. Assim, um a vez mais o fe
nômeno do amor, bom em si mesmo, é corrompido por
seu™contexto de classes: as mulheres devem amar. não só
160
por motivos de bem-estar, mas realmente para validarem
á sua existência.
Além dissó, a contínua dependência econômica das
mulheres torna impossível um a situação saudável de amor
entre iguais. As mulheres, ainda hoje, vivem sob um sis
tema de patronato. Com poucas exceções, elas têm a es
colher, não entre serem livres ou se casarem, mas entre
serem um a propjiedade pública, ou um a p ro p ik d ad ep r i
vada. As mulheres que se unem a um membro da classe
dom inante podem, ao menos. esperar que alguns dos pri
vilégios deles possam, por assim dizer, passar para ela.
Mas as mulheres sem homens estão na mesma situação
das órfãs: são uma subclasse desamparada, que necessi
ta da proteção dos poderosos. Isso é a antítese da liber
dade, elas ainda serem definidas (negativam ente) por
um a situação de classe: pois hoje elas estão num estado
de vulnerabilidade exagerada. Participar do domínio de
alguém escolhendo o seu senhor dá em geral a ilusão de
uma escolha livre; mas, na realidade, a mulher nunca é
livre para escolher o am or sem motivações externas. Para
ela, no momento atual, as duas coisas, amor e status,
devem perm anecer inextricavelmente entrelaçadas.
Agora, supondo que um a mulher não perca de vista
esses fatores fundamentais de sua condição quando ama,
ela nunca será capaz de am ar gratuitamente, mas apenas
em troca de segurança:
1) da segurança emocional que, vimos, ela tem mo
tivos para exigir;
2) da identidade emocional que ela seria capaz de
encontrar pelo trabalho e o reconhecimento, mas que
lhe é negada — forçando-a, assim, a buscar sua defini
ção através de um homem;
3) da segurança da classe econômica que, nessa so
ciedade, está ligada a sua habilidade em “fisgar” um
homem.
Duas dessas três exigências são condições sem vali
dade para o “am or”, contudo são impostas a ele, sobre
carregando-o.
Assim, na sua precária situação política, as mulhe
res não podem se dar ao luxo do amor espontâneo. Isso
161
seria perigoso demais. O am or e a aprovação dos ho
mens são importantíssimos. A m ar impensadamente, antes
de ter assegurado o compromisso legal, poria em risco
essa aprovação. Citemos Reik:
163
real, mas só porque se adaptava primorosamente a ess.e
pedestal? Provavelmente, ele sequer sàbe quem é ela (se (
é que, nesse momento, ela própria o saiba realm ente).
Ele a admitiu não porque a amasse genuinamente, mas
somente porque ela representava tão bem suas fantasias
preconcebidas. Em bora soubesse que o am or dele era i
falso, já que ela própria o maquinara, não pode deixar
de sentir desrespeito por ele. M as tem medo, em primei
ro lugar, de revelar seu eu verdadeiro, pois então até
esse falso amor poderia perder-se. E, finalmente, com
preende que, para ele também, o casamento teve todos
os tipos de motivação que nada têm a ver com o amor.
Ela foi meramente a pessoa mais próxima da imagem
fantasiosa dele. Foi chamada de A Atriz Mais Versátil,
pela multiplicidade de papéis que assumiu na peça dele,
como Alterego, M ãe de Meus Filhos, D ona de Casa,
Cozinheira, Companheira. Foi adquirida para preencher
um espaço vazio na vida dele; mas a vida dela é nada.
Portanto, ela não escapou de ser como as outras
mulheres. Foi erguida para fora dessa classe, somente 1
porque ela agora é um apêndice de um membro da classe
dominante; e ele não pode unir-se a ela, a não ser que
eleve o seu status. M as ela não foi libertada. Foi pro,- .
movida a “negra-da-c’a‘s a,r.'F o i elevada, somente para ser
usada de um modo diferente. Sente-se enganada. Não.
recebeu amor e reconhecimento, e sim possessividade e
controle. É assim que ela se transform a de Noiva R ubo
rizada em Puta, uma mudança que, não im porta quanto
seja universal e previsível, ainda deixa o marido perple
xo. ( “Você não é a mulher com quem eu me casei.” )
A situação das mulheres não mudou significativa
m ente do que ela sempre foi. Pois, durante os últimos
cinqüenta anos, as mulheres tiveram uma dupla ligação
com o amor. Sob a máscara de uma “revolução sexual”,
que se supõe ter ocorrido ( “Ei, venha cá, garota, onde
você esteve? Você não ouviu falar de revolução sexual?”),
as mulheres foram persuadidas a deixar cair a couraça. \
A mulher moderna tem horror de ser tida por uma puta,
que era exatamente o que sua avó esperava que aconte
cesse no decorrer natural das coisas. Também os homens,
164
ainda no tempo das avós, esperavam que toda mulher
digna os deixaria esperando, jogaria todos os jogos nor
mais, sem se sentir mal. Uma mulher que não protegesse
seus interesses desse jeito não era respeitada. A jogada
estava clara.
M as a retórica da revolução sexual, se não trouxe
melhorias para as mulheres, provou ter grande valor para
os homens. Convencendo as mulheres de que os estrata
gemas e as exigências femininas habituais eram desprezí
veis, desonestas, pudicas, antiquadas, e autodestrutivas,
foi criado um novo estoque de mulheres disponíveis, para
expandir o escasso suprimento de mercadorias para a
exploração sexual tradicional, destituindo as mulheres até
da pequena proteção que tão penosamente elas tinham
conquistado. As mulheres, hoje, não se arriscam a fazer
as velhas exigências, por medo de ter um novo vocabu
lário, criado especialmente para esse propósito, gritado
para elas: “fodida”, “castradora”, “provocante”, “uma
verdadeira droga”, “um baixo-astral” — o ideal é ser
uma “gatinha pra frente”.
Mesmo hoje, muitas mulheres sabem o que está se
passando, e evitam a armadilha, preferindo ser xingadas
a serem desenganadas, em função do pouco que elas po
dem esperar dos homens (pois ainda é verdade que mes
mo os mais avançados desejam uma “senhora” relativa-'
mente não muito usada). Mas, cada vez mais as mulhe
res são tragadas pela armadilha, apenas para descobrir,
tarde demais, que as tradicionais estratégias femininas ti
nham um objetivo. Elas se chocam por se surpreende
rem, aos trinta anos, queixando-se num vocabulário peri
gosamente próximo das antigas variedades do eu-fui-usa-
da, os homens-são-gaviões, eles-são-todos-falsos. Even
tualmente, são forçadas a reconhecer a verdade dos ve
lhos ditos populares: uma mulher bonita e generosa é
(n a melhor das hipóteses) respeitada, mas raramente
amada. Eis uma descrição, válida ainda hoje, da mulher
“em ancipada” — no caso, uma artista de seus trinta
anos, do Greenwich Village — tirada de Mosquitoes, um
dos primeiros romances de Faulkner:
165
“Ela sempre teve aborrecimentos com seus hom ens. . .
Mais cedo ou mais tarde, eles acabavam abandonando-a. . .
Os homens nos quais ela reconhecera potencialidades passa- i
ram todos por um violento, porém temporário, período de in
teresse, que cessou tão abruptamente quando começou, sem
deixar sequer fios de ligação com os momentos vividos a dois,
como esses curtos temporais de agosto, que só ameaçam, e 1
se dissipam, sem razão aparente, não produzindo nenhuma
chuva.
“Às vezes, ela procurava, com uma imparcialidade quase
masculina, uma razão para isso. Sempre tentou manter suas
relações no plano que os próprios homens pareciam preferir
— certamente, nenhuma mulher quereria, e poucas consegui
riam, pedir menos de seus homens do que ela pediu. Nunca
tomou seu tempo arbitrariamente, nunca os fez esperar, nem
vê-la em casa em horas inconvenientes, nunca os fez servir
de criados para ela. Ela os satisfaz e elogiou a si mesma por
ser uma boa ouvinte. E, contudo, ela pensava nas mulheres
que conheceu; como todas tinham, pelo menos, um homem
nitidamente extasiado por elas. Pensou nas mulheres que
tinha observado; como pareciam conseguir um homem, quan
do quisessem, e, se não conseguissem tê-lo, facilmente o substi
tuíam por outro.”
166
to de você, mas sejamos razoáveis. . . ” ) E , além disso,
existem os homens que saem com elas para discutir Si
mone de Beauvoir, deixando as mulheres em casa com
as fraldas.) As mulheres “emancipadas” descobriram que
os homens estavam longe de ser os “caras legais” a
quem elas gostariam de se equiparar. Descobriram que,
imitando padrões sexuais masculinos (o olhar volúvel, a
busca pelo ideal, a ênfase na atração física, etc.), não só
não estavam conseguindo a liberação, mas estavam caindo
em algo muito pior do que aquilo a que tinham renuncia
do. Estavam imitando. E tinham inoçiiladn em si pró-
prias uma doença que não havia sequer brotado de sua
própria psique. Descobriram que seu novo “barato” era
superficial e inexpressivo, que suas emoções estavam se
cando por trás disso, que envelheciam e se tornavam de
cadentes. Tinham medo de estar perdendo a capacidade de
amar. Não tinham ganho nada imitando os homens, ape
nas superficialidade e imaturidade, e, ainda por cima, não
eram tão hábeis quanto eles, porque alguma coisa dentro
disso tudo era contra a sua natureza.
Desse modo, as mulheres que decidiram não se casar,
porque eram suficientemente espertas para olhar à volta
e ver aonde o casamento levava., descobriram que era uma
questão de se casar ou de nada. Os homens só se com-
prometiam por um preço; elas participarem (arcarem ) da
vida deles, dependerem do pedestal dele, tornarem-se um
acessório, se n ã o .. . Senão, ficarem consignadas a este
limbo de “gatinhas” que não significam nada, ou pelo
menos nada do que a mãe pretendia. Serem a “outra
mulher” até o resto da vida, usada para provocar a esposa
dele, para provar sua virilidade e /o u sua independência,
saboreada pelos amigos como sua última conquista “inte
ressante”. (Pois, mesmo que ela tenha renunciado a esses
termos, e ao que eles representam, nenhum homem, re
nunciou a eles.) Sim, o amor significa para os homens
uma coisa inteiramente diferente do que para as mulheres.
Significa p osse e controle: significa ciúme, apesar dele
nunca o ter dem onstrado antes, mesmo que ela possa
ter desejado (não im porta se ela era “dura”, ou se tinha
sido violentada antes de pertencer oficialmente a ele; a
167
partir de então é que ele se torna um vulcão, um verda
deiro furacão, porque sua propriedade, a extensão de seu
ego, foi am eaçada). Isso significa um a crescente perda de
interesse, unida a um òlhar volúvel. Quem precisa dissq?
Infelizmente, as mulheres precisam. Eis, mais uma
vez, as pacientes de Reik:
E:
168
VII. A CULTURA DO ROMANCE
169
anteriores, p.ex., enquanto a família anteriorm ente tinha
um a forma frouxa e permeável, hoje ela se aperta ê
rigidifica na família nuclear patriarcal. Ou, enquanto qué
as mulheres outrora eram abertam ente desrespeitadas,
hoje elas são elevadas a estados de falsa adoração.1 O
romantismo é um instrumento cultural do poder masculi-
no. para impedir as mulheres de conhecer sua condição.
Ele é especialmente necessitado — e portanto mais forte
— n os países ocidentais com m aior taxa de industrializa
ção. Hoje, com a tecnologia capacitando as mulheres a
afrouxarem seus papéis de uma vez por todas — o que
foi quase um malogro no início do século X X — o rom an-
tismo nunca esteve tão bem.
De que modo o romantismo funciona como um ins
trum ento para reforçar as classes sexuais? Examinemos
seus componentes, aperfeiçoados''(Tufante séculos, e os
métodos modernos de sua difusão — técnicas culturais
tão sofisticadas e penetrantes que até os homens são
prejudicados por elas.
1) Erotismo. O principal componente do rom antis
mo é o erotismo. Todas as necessidades animais (o afeto
de um filhote que nunca sentiu calor) de amor e calor
são canalizadas para a a sexualidade genital. Nunca se
deve tocar pessoas do mesmo sexo, e, só se pode tocar
pessoas do sexo oposto, quando nos preparam os para um
encontro ( “um passe” ) sexual genital. O isolamento torna
as pessoas ansiosas por afeição física; e, se a única forma
como podem obter é a sexualidade genital, cedo isto será
tudo por que elas ansiarão. Nesse estado de hipersensibili-
dade, o m enor estímulo sensual produz um efeito exage
rado, suficiente para inspirar tudo, desde as escolas de
quadros célebres até o rock and roll. Assim, o erotismo ê
a concentração da sexualidade — geralmente em objetos
altamente carregados (renda “Çhantilly”) — significando
o deslocamento de outras necessidades afetivas/sociais
para o sexo. Ser carente torna você chato: desejar um
170
beiio é em baraçante, a não ser que seja u m beijo erótico.
Só o “sexo” é O.K.; na verdade, ele prova nossa fibra.
A virilidade e a atuação sexual se confundem com o
valor social.2
A constante estimulação erótica da sexualidade mas-
culinãTjuritõ com a proibição de sua expansão pelos ca
nais mais normais são planejados para incentivar o ho-
mem a olhar para as mulheres apenas como coisas cuja
resistência à penetração deve ser vencid^jO bserve-se que
erotismo opera numa única direção. As mulheres são os
únicos objetos “de am or” em nossa sociedade, a tal ponto
gue vèem a. si mesmas como eróticas.3 Isto funciona para
preservar ao homem o prazer sexual direto, reforçando a
deoendência feminilta. As mulheres só podem ser sa
tisfeitas sexualmente pela identificação vicária com o
homem que gosta delas. Portanto, o erotismo preserva o
sistema de classes sexuais.
A única exceção a essa concentração de todas as
necessidades emocionais em relações eróticas são as afei
ções (ocasionais) dentro da família. Mas aqui, também,
a menos que sejam seus filhos, um homem expressa pelas
criancas tão pouco afeto quanto pelas mulheres. Assim,
sua afeição pelos pequenos é também um a arm adilha para
prendê-lo à estrutura matrim onial, reforçando o sistema
patriarcal.
171
2) A Privatização Sexual das Mulheres. O erotismo
é apenas a cam ada mais elevada do romantismo, que re
força a inferioridade feminina. Assim como acontece em
qualquer classe baixa, a consciência de grupo deve ser
amortecida para impedir seus membros de se revoltar.
Nesse caso, por ser sexual a característica distintiva da
exploração das mulheres como classe, deve-se descobrir
um meio especial de torná-las inconscientes de que todas
são consideradas sexualmente iguais ( “bocetões” ). Q uan
do um homem se casa, talvez ele escolha com cuidado
dentre esse grupo indistinto, já que, como vimos, ele con
serva um lugar especial na sua mente para “A Ünica” ,
graças à união íntim a dela com ele. M as, em geral, ele não
consegue ver diferenças entre as gatinhas (louras, m ore
nas, ruivas).4 E ele gosta que seja assim. (“Um balanço
no seu andar, um risinho no seu falar, É DISSO Q U E EU
GOSTO!” ) Quando um homem acredita que todas as
mulheres são iguais, mas quer impedi-las de pensar isso,
o que ele faz? Conserva suas convicções próprias e finge,
para apaziguar as suspeitas da mulher, que o que ela tem
em comum com as outras é exatamente o que a faz dife
rente. Assim, a sexualidade dela finalmente se torna sinô
nimo da sua individualidade. A privatização sexual da
mulher é o processo pelo qual as mulheres ficam cegai
para_sua generalidade como uma classe que as torna invi-
síveis como indivíduos aos olhos masculinos. Não é estra
nho que, como parte das suas funções na Casa Branca, a
Prim eira Dama tenha que ficar ao lado do Presidente em
sua comitiva, como discreto escravo negro?
( V > O processo é insidioso. Quando um homem diz:
“Eu adoro louras!” , todas as secretárias nas redondezas
se aprumam nas cadeiras; elas o tomam pessoalmente,
porque foram privatizadas sexualmente. A loura que cada
uma traz em si se sente pessoalmente lisonjeada, porque
aprendemos a medir nosso valor pelos atributos físicos
172
que nos diferenciam das outras mulheres. N ão se lem
bra mais que qualquer atributo físico que se possa men
cionar é com partilhado por muitas outras, que esses são
atributos acidentais, que não são um a criação sua, que
sua sexualidade é com partilhada pela m etade da hum ani
dade. E ntretanto, num reconhecimento autêntico de sua
individualidade, sua lourice será am ada, mas de um modo
diferente a mulher será am ada primeiro como um a totali
dade insubstituível, e então sua lourice será am ada como
um a das características dessa totalidade.
O aparato da privatização sexual é tão sofisticado
que pode ser que sejam precisos muitos anos para detec-
tá-lo. Isto esclarece vários traços enigmáticos da psico
logia feminina, que assumem as seguintes formas:
M ulheres que são lisonjeadas por seu sexo, i.e., “Ti
rem o chapéu para a m ocinha!”
M ulheres que são chamadas de querida, doçura, can
dura, gatinha, anjo, rainha, princesa, boneca, mulher,
quando estão vestidas de um m odo habitual e impessoal.
M ulheres que são secretamente lisonjeadas por terem
sido beliscadas na bunda em Rom a (Elas fariam melhor
em contar o número de vezes que as bundas de outras
mulheres foram beliscadas.)
O prazer da provocação (m anter os homens num
estado de tesão constante é tido como um símbolo de
valor e atratividade pessoal).
O fenômeno “varal”. (M ulheres, cujos canais de es
cape legítimos de expressão de sua invidualidade são ne
gados, “expressam-se” fisicamente, como no “Eu quero
ver alguma coisa ‘diferente’.” )
Essas são apenas algumas das reações ao processo
de privatização sexual, a confusão da sexualidade com a
individualidade. O processo é tão eficaz que a maioria
dãs "mulheres acabou por acreditar seriamente que o mun-
do necessita de SJM&.Çpntrjhuições sexuais específicas p ara
ir adiante. ( “É la acha que sua xota é feita 3e ouro.” )
M as as canções de am or ainda continuariam a ser escri
tas sem elas.
As mulheres podem ser iludidas, mas os homens sãQ
totalmente conscientes disso como um a técnica de mani-
173
pulação válida. É por isso que tomam o maior cuidado
para evitar falar sobre as mulheres na frente delas ( “não i
na frente de um a dam a” ) — isto revelaria seu jogo. É
traum ático para uma mulher ouvir por acaso um a con
versa entre homens. Assim, todo esse tempo, ela foi apre
ciada como "traseiro” , “carne” , “boceta” ou “m aterial” ,
para servir de “um pedaço de” , “essa vaca” , ou “ essa
puta” , para ser enganada por dinheiro, ou sexo, ou amor!
Compreender, afinal, que não é melhor do que outra mu-
Iner, mas completamente indiferenciável, sobrevêm não só
como um choque, mas também como uma aniquilação
total. M as talvez o momento mais freqüente em que um a
m ulher tem que se defrontar com sua privatização sexual
é numa briga de amor, quando a verdade é revelada.
Então, o homem pode tom ar-se menos cuidadoso e admi
tir que a única coisa pela qual ele realmente semnre gos
tou dela foram seus peitos ( “Duas balas de canhão” ) ou
suas pernas ( “Que coxinhas!” ), e ele pode encontrar isso
em outro lugar, se precisar.
Assim, a privatização sexual estereotipa as mulheres.
Estimula os homens a verem as mulheres como “bonecas”
diferenciadas exclusivamente por atributos superficiais —
não da mesma raça deles — e isto cega as mulheres para
sua exploração sexual como classe, impedindo-as de se
unirem contra isto, e, assim, segregando efetivamente as
duas classes. Um efeito colateral é sua recíproca: enquan
to que as mulheres são diferenciadas apenas por atribu
tos físicos superficiais, os homens mostram-se mais indi
vidualizados e insubstituíveis do que realmente são.
As mulheres, pelo fato do reconhecimento social só
ser conferido a uma individualidade falsa, são impedidas
de desenvolverem um a individualidade forte, que lhes
permitiria libertar-se desse ardil. Se a existência só é admi
tida em sua generalidade, por que dar-se ao trabalho de
desenvolver a personalidade real? É muito menos contro-
vertido alegrar o ambiente com unTsorrisq — . até. o dia
em que a “gatinha” se transform e em “bagulho”, e des
cubra, que seu sorriso não é mais “inimitável” . ,6 ?
3) O Ideal de Beleza. Toda sociedade promoveu um
certo ideal de beleza acima de todos os outros. Qual seja
174
este ideal não importa, porque todo ideal exclui a maio-
ria.JDs ideais, por definição, são moldados em qualidades
rarç f. Por exemplo, na América, a moda atual de modelos
franceses, ou o ideal erótico da Loura Voluptuosa, são
moldados a partir de qualidades verdadeiramente raras.
Poucas americanas são de origem francesa, a maioria não
parece, nem nunca parecerá francesa. M orenas voluptuo
sas podem descorar o cabelo (como fez Marilyn M onroe,
a rainha da sexualidade), mas as louras não podem au
mentar suas curvas à vontade — e a maioria delas, anglo-
saxã, simplesmente não tem essa conformação. Se e quan
do, através de métodos artificiais, a maioria consegue es.-
premer-se dentro da forma ideal, o ideal muda. Se elg
fosse~atinqível. como poderia ser bqm?
A exclusividade do ideal de beleza serve a um a funr
gão política clara. Alguém — na m aioria mulheres —
ficará de fora. E ficarão dispu tando, porque, como vimos,
só foi permitido às mulheres alcançar a individualidade,
através da aparência — atributos definidos como “bons” ,
não por amor à detentora deles, mas por causa de sua
maior ou m enor aproximação de um padrão externo. Essa
imagem, definida pelos hom ens (e comumente por ho
mens homossexuais, em g è r a fmisóginos da pior espécie.),
tqrna-se o ideal. O que acontece? As mulheres, em todo
lugar, se apressam em comprimir-se no sapatinho de
cristal, forçando e mutilando o corpo com dietas e pro-
gramas 'de beleza,, roupas e maquiagem, qualquer coisa
para se tornarem a garota sonhada do príncipe joão-nin-
~ ' M as elas não têm escolha. Se não conseguem amol-
, os castigos são enormes. Sua legitimidade social \
está em perigo.
Assim, as mulheres tornam-se cada vez mais pare
cidas. Mas, ao mesmo tempo, espera-se que elas expres
sem sua individualidade, através da aparência física. As
sim, elas ficam oscilando, tentando, ao mesmo tempQ,
expressar sua semelhança e sua singularidade. As exigên
cias da Privatização Sexual contradizem as exigências do
Ideal de Beleza, provocando a intensa neurose feminina,
em torno da aparência pessoal.
175
M as, mesmo esse conflito tem uma função política
importante. Quando as mulheres começam a ficar cada
vez mais parecidas, diferentes apenas pelo grau em que
elas se distinguem de um papel ideal, elas podem ser
mais facilmente estereotipadas como classe. Elas se pare
cen^ pensam similarmente, e, pior ainda, são tão burras,
que acreditam não serem parecidas.
* * *
176
Verão de Salem, e assim por diante, cada imagem atin
gindo novos graus de sofisticação, até que a própria pes
soa não saiba mais quem ela é. Além do mais, ele lida
com os outros, através dessa imagem-extensão (o Rapaz-
Símbolo encontra a Namorada-Símbolo e consuma um
Rom ance-Sím bolo). Mesmo que um a mulher conseguisse
chegar ao que está por baixo dessa intrincada imagem de
fachada — e isso levaria meses, até anos de um relaciona
mento doloroso, quase terapêutico — ela não encontra
ria gratidão por ter (dolorosam ente) amado o homem
por aquilo que ele é, e sim repulsa e horror da parte dele,
por tê-lo desmascarado. Em vez disso, o que ele quer é a
Garota-Pepsi-Cola, para sorrir amavelmente para seu Zé
Johnny W alker diante da lareira de um albergue.
Mas, embora essa reificação afete igualmente tanto
os homens quanto as mulheres, no caso destas ela é
intensamente complicada pelas formas de exploração se
xual que eu . descrevi. A mulher não é apenas um a ima
gem, ela é um a Imagem com Sex A pyeal. A estereotipa-
ção das mulheres se amplia. Agora não há mais a descul
pa da ignorância. Toda mulher é constante e explicita
mente inform ada de como “ aperfeiçoar” o que a natu
reza lhe deu, de onde com prar os produtos para conseguir
isso, e de como contar as calorias que nunca deveria te:r
ingerido. A competição se torna frenética, porque todo
mundo, agora, está inserido no mesmo circuito. O ideal
de béleza atual torna-se difundido ( “As louras são mais
felizes. . .” ).
E o erotismo se torna erotomania. Estimulado ao li
mite, èle atingiu um nivel epidêmico, nunca igualado na
História. Em toda capa de revista, tela de cinema, canal
de TV, anúncio de metrô, seios balouçantes, pernas, cos
tas, coxas. Os homens andam nas ruas num estado de
constante excitação sexual. Mesmo com a melhor das
intenções, é difícil concentrar-se nalguma outra coisa.
Esse bom bardeam ento dos sentidos, por sua vez, leva a
provocação sexual ainda mais longe: os meios normais
de excitação perderam todo o efeito. As roupas se tornam
mais provocantes: as bainhas sobem, os sutiãs são aban
donados. Os materiais transparentes tornam-se comuns.
177
M as, em toda essa barragem de estímulos eróticos, os pró
prios homens raram ente são retratados como objetos eró
ticos. O erotismo feminino, tanto quanto o masculino, toç-
na-se c3cTã~ vez mais dirigido para as mulheres.
Um a das contradições internas desse sistema de pro
paganda altamente eficaz é expor, aos homens tanto quan
to às mulheres, o processo de estereotipação a que as
mulheres são submetidas. Em bora a intenção fosse fami
liarizar as mulheres com seu papel feminino, os homens
que ligam a TV também acabam recebendo mensagens
D t-SP|Z£^(2. '
178
mente diferente de um objeto inanimado, como a madeira
tentando ser metal?
A tacar o erotismo cria problemas similares. O ero
tismo é excitante. Ninguém quer se desfazer dele. A vida
seria enfadonha e rotineira sem ao menos essa centelha.
O caso é exatamente este. P or que todo o prazer e a exci
tação foram concentrados, dirigidos para um a aléia estrei
ta, difícil-de-achar da experiência hum ana, e todo o resto
deixou-se perder? Q uando exigimos a eliminação do ero-
tismo, não queremos dizer a eliminação do prazer e da
excitação sexual, mas sua redistribuição — há bastante
para que seja suficiente para todos, e ele aum enta com.
o uso :—- p o r toda a extensão de nossas vidas.
179
VIII. CULTURA (MASCULINA)
181
da historia da arte. Os homens são estimulados erótica
mente pelo sexo oposto; a pintura era masculina; logo,
o nu tornou-se um nu feminino. Onde a arte do nu mas
culino atingiu altos níveis, seja no trabalho de um artista
individual, p.ex., Miguel Ângelo, seja em todo um pe
ríodo artístico, como o da Grécia clássica, os homens
eram homossexuais.
O tema da arte, quando ele existe, é hoje ainda mais
amplamente inspirado pelas mulheres. Imaginem a elimi
nação dos personagens femininos nos filmes populares e
ñas novelas, mesmo no trabalho de diretores “intelec
tuais” — Antonioni, Bergman, ou G odard; não restará
muito. Porque, nos últimos séculos, particularm ente na
cultura popular — talvez ligado à posição problem ática
das mulheres na sociedade — as mulheres têm sido o
principal tem a da arte. De fato, correndo os olhos pelos
anúncios publicitários até de um a produção cultural m en
sal, acreditaremos que as mulheres correspondem a tudo
que já se pensou sobre elas.
M as, que dizer das mulheres que contribuíram dire
tam ente para a cultura? Não são muitas. E, nos casos em
que algumas, isoladas, participaram da cultura masculina,
tiveram que fazê-lo em termos masculinos. E isso se
prova. Porque tinham que competir como homens, num
jogo masculino — embora ainda compelidas a se testa
rem em seus papéis femininos antigos, um papel em de
sacordo com as próprias ambições — não é surpreendente
que elas raram ente sejam tão hábeis quanto os homens no
jogo da cultura.
E não se trata de uma questão de ser tão compe
tente, trata-se, também, de uma questão de ser autêntico.
Vimos, no contexto do amor, como as mulheres modernas
imitaram a psicologia masculina, confundindo-a com a
saúde, e, com isso, acabaram ainda em pior situação que
os próprios homens. Elas não estavam sendo verdadeiras,
nem nas suas próprias doenças. E existem ainda camadas
muito mais complexas nessa questão de autenticidade.
As mulheres não têm meios de chegar a um conhecimento
do que ê sua experiência, ou mesmo de que ela é dife
rente da experiência masculina. A cultura, o instrumento
182
da representação e da objetivação de nossa experiência
1 Eã£ã yue possamos lidar com cia, está tão saturada de
preconceitos masculinos, _que as mulheres quase nunca têm
uma chance de ver-se culturalmente, através dos próprios
olhos. D e modo que, finalmente, os sinais de sua experiên-
cia direta, que entram em conflito com a cultura (m as
culina) predominante, são negados e reprimidos.
Assim, por serem as máximas culturais ditadas pelos
homens, m ostrando somente o ponto de vista masculino
— e agora tendo-se criado uma superbarreira — as mu
lheres são impedidas de realizar um a imagem autêntica
de sua realidade. Por que, por exemplo, as mulheres se
excitam com um a pornografia de corpos femininos? N a
sua experiência normal de nudez feminina, digamos num
vestiário de ginásio, a visão de outras mulheres nuas po
deria ser interessante (em bora, provavelmente, só na me
dida em que elas se avaliem segundo os padrões masculi
n o s), mas não diretamente erótica. A distorção cultural
: da sexualidade explica também como a sexualidade femi
nina se entrelaça com o narcisismo. Quando se relacionam
com os homens, em vez de fazer amor diretamente com
eles, as mulheres fazem vicariamente amor consigo mes-
¡ mas. Às vezes, essa barreira cultural entre o hom em /su
jeito e a m ulher/objeto dissensibiliza as mulheres para as
formas masculinas, afetando-as num tal grau, que elas
não chegam a sentir orgasmo.1
H á outros exemplos de distorsões n a visão feminina
de uma cultura exclusivamente masculina. Voltemos, mais
um a vez, à história da pintura figurativa. Vimos como,
na tradição do nu, as inclinações heterossexuais masculi
nas deram ênfase à mulher, em vez do homem, como sendo
a forma mais estética e mais bela. Essa predileção de
183
uma das duas formas sobre a outra, é baseada, é claro,
num a sexualidade que em si mesma é artificial, criada
culturalmente. M as, ao menos poderíamos esperar que o
preconceito oposto prevalecesse na visão das mulheres
pintoras, ainda envolvidas com a tradição do nu. Este não
é o caso. Em qualquer escola de arte no país vemos salas
de aula cheias de moças trabalhando diligentemente com
modelos femininos, aceitando que o modelo masculino é,
de algum modo, menos estético, na melhor das hipóteses,
talvez original, e, certamente, nunca questionando por
que o modelo masculino veste uma sunga, enquanto que
o modelo feminino não sonharia em aparecer nem de
tanga.
Novamente, olhando para os trabalhos das pintoras
célebres ligadas à escola impressionista do século X IX ,
Berthe M orisot e M ary Casatt, espantamo-nos com sua
preocupação obsessiva com assuntos tradicionalm ente fe
mininos: mulheres, crianças, nus femininos, interiores,
etc. Isso é parcialm ente explicado por condições políticas
da época. As mulheres pintoras já eram felizes de lhes
ser consentido pintar qualquer coisa, que dirá modelos
masculinos. E, no entanto, é mais do que isso. Essas
mulheres, com toda sua arte majestosa e sua habilidade
composicional, permaneceram pintoras menores, porque
tinham “abandonado” uma série de tradições e um a visão
de mundo inautêntica para elas. Trabalharam dentro dos
limites do que tinha sido definido como feminino pela
tradição masculina. Viram as mulheres, através de olhos
masculinos, pintaram uma idéia masculina da mulher. E
levaram isso a um extremo, porque estavam querendo su
perar os homens em seu próprio jogo. Deixaram-se se
duzir pela linha (da graciosidade). E daí a falsidade que
corrompe seus trabalhos, tornando-os “femininos” , i.e.,
sentimentais, delicados.
Seria necessário um a recusa de to d a,aJiad Í£ ã 0jCultu-
ral para que as mulheres chegassem a produzir um a arte
“feminina” verdadeira. Pois a mulher que participa na
cultura (m asculina) deve produzir e ser classificada se
gundo padrões de um a tradição de cuja feitura ela não
participou — e, certamente, não há lugar nessa tradição
para um a visão feminina, mesmo que ela possa descobrir
o que ela foi. Nesses casos em que uma mulher, cansada
de perder no jogo masculino, tentou participar na cultura
de um modo feminino, elà foi rebaixada e incompreen
dida, e chamada pelo establishm ent cultural (m asculino)
de “Senhora A rtista”, i.e., de insignificante, inferior. E .
mesmo onde se admite (com relutância) que ela é “há
bil”, é elegante insinuar que é hábil, porém irrelevante —
um modo vulgar de indicar a “ seriedade” e o refinamento
de gosto de alguém.
Talvez seja verdade que um a apresentação só do
lado feminino das coisas — que tende constituir um
longo protesto e reclamação, em vez do retrato de uma
existência ampla e substancial — seja limitada. M as uma
questão igualmente pertinente, em geral muito menos
vezes levantada; é: será esta visão mais limitada do que
a visão masculina predominante sobre as coisas, que —
quando não é tom ada pela verdade absoluta — ao menos
é vista como “séria”, pertinente e importante? M ary
McCarthy, em seu livro O Grupo, seria, de fato, uma
escritora pior do que Norm an M ailer em O Sonho Am eri- r-
cano? Ou estaria ela talvez descrevendo um a realidade
com a qual os homens, os controladores e os críticos do
Establisment Cultural, não conseguem sintonizar?
Que os homens e as mulheres estão sintonizados
com diferentes canais culturais, que de fato existe uma
realidade totalmente diferente para os homens e para as
mulheres — é evidente até em nossa forma cultural mais
rude: as revistas de histórias em quadrinhos. De experiên
cia pessoal: quando era pequena, meu irmão tinha uma
coleção, literalmente falando, do tamanho de um quarto,
de revistas de histórias em quadrinhos. Mas, embora eu
fosse uma leitora voraz, essa vasta biblioteca de revistas
de quadrinhos não me interessava de modo algum. Meu
gosto literário era inteiramente diferente do dele. Ele
preferia histórias “pesadas” , como os quadrinhos de guer
ra (T ra-ta-ta-tá) e o Super-Homem; e, para aliviar, his
tórias como “O Coelho Pernalonga”, “Tweetie and Syl-
vestes”, “Tom e Jerry” , e todos os leitões gagos que
insistem em se manifestar num a mensagem mais do que
185
óbvia. Em bora esses “cômicos” irritassem m inha sensibi
lidade mais estética, eu os leria, na falta de outra alterna
tiva. M as, se eu tivesse tido um a m esada tão grande e
um a supervisão tão pequena dos pais, teria me saciado
com um a coleção de quadrinhos de am or “pesada” . (L á
grimas. Oh, Tod, não fale a Sue sobre nós, ela m orreria!),
um ocasional True Confessions e, para um “leve” des
canso, Archie and Verônica. Ou as variações ocasional
mente mais imaginativas dos quadrinhos dos meninos,
como O Homem-de-Borracha (Super-Homem com um
braço de borracha, que poderia se estender em volta dos
quarteirões), ou Tio Patinhas (E u adorava sua extra
vagância egoísta. Outras mulheres [desprendidas] con
fessaram a mesma paixão de m ocidade). Mais provavel
mente até, eu não teria investido em revistas de quadri
nhos de modo algum. Contos de fada, muito menos realis
tas, eram um a “viagem” melhor.
Meu irmão achava que o gosto das meninas era
“chato”, e eu achava que ele era um grande bobalhão.
Quem estava certo? Os dois. M as ele venceu (ele tinha a h
biblioteca).
Essa divisão continua a operar em níveis culturais
mais elevados. Eu tive que me forçar para ler Mailer,
Heller, Donleavy, e outros, pelas mesmas razões pelas
quais não poderia suportar a biblioteca de meu irmão.
P ara mim, eles pareciam apenas versões complexas (res
pectivamente) do Super-Homem, Tra-ta-ta-tá, e das Aven
turas do Pernalonga. Mas, apenar da biblioteca “mas
culina” continuar a me repelir, no processo de desenvolvi
m ento do “bom-gosto” (segundo padrões m asculinos),
também perdi meu am or pela biblioteca “feminina”. N a
verdade, desenvolvi um a aversão; e — tenho vergonha de
admitir isso — preferia longe ser apanhada com Hemin-
gway do que com Virginia W oolf na mão.
P ara ilustrar essa dicotomia cultural em termos mais
objetivos não precisamos atacar os mais óbvios tigres
de papel (todos os sentidos im plícitos), que consciente
mente apresentam uma realidade “masculina” — a saber,
Hemingway, Mailer, Heller, M iller, Donleavy, e o res
tante. A nova^ Escola da Virilidade na literatura do sé-
186
culo X X é, ela própria, um a resposta direta, na verdade
uma reação cultural masculina à crescente am eaça à
supremacia masculina — Virilidade, Inc., um grupo de
“garotos brigões” culturalmente excluídos, esmurrando-se,
para salvar sua masculinidade. E, apenas de ganharem
mais crédito, esses artistas escrevem sobre a experiência
masculina não mais perceptivelmente do que Doris Lessing,
Sylvia P ath e Anais Nin escreveram sobre a experiência
feminina. De fato, eles são culpados de uma mistificação
da sua experiência, que torna falsos seus escritos.
E m vez disso, examinaremos um preconceito mais
traiçoeiro (porque menos óbvio) dos escritores masculinos
que honestam ente tentaram descrever todo o espectro da
experiência m asculina/fem inina — Bellow, M alamud,
Updike, R oth, etc. — mas que falharam porque, em
geral, sem se dar conta, descreveram esse todo a partir
de um ângulo (m asculino) limitado.
Examinemos brevemente um a história de H erbert
Gold, um escritor que não é “m asculino” nem no estilo,
nem na temática. Ele escreve sobre coisas que dizem res
peito às mulheres, i.e., relações de preferência m asculinas/
femininas, casamentos, divórcios, aventuras. Nessa his
tória, “W hat’s Become of Your C reature?”, ele descreve
o romance entre um problem ático professor de univer
sidade, jovem, e sua aluna loura, boêmia.
A imagem que fazemos de Lenka Kuwaila, a partir
da visão do personagem masculino, é apenas sensual, ainda
que sensitiva nesses termos. A história começa:
187
Mas, a verdade que nós obtemos “direta como a ver
dade surge” é apenas a sua visão da verdade.
188
vou a fazer aquilo, não “compreende as mulheres”. Afinal,
termina admitindo nela “grandes traços de crueldade”
assim como de douçura.
189
de contentamento na face dele, e em seus vinte e cinco anos
de hoje ela só tinha aprendido um meio de responder ao
julgamento dos homens. Inclinou-se para ele, no seu rosto
urna mistura de timidez e pavor, um meio-sorriso de flerte,
um movimento felino, estudado e insinuante, na direção dele,
seus olhos cheios de lágrimas quando os fechou, as lágrimas
balançando em suas pestanas umedecidas, escorrendo pelas
bochechas. ‘Frank’, disse ela hesitando. ‘Eu me esqueci por
um longo tempo, eu não sei, as coisas ficaram difíceis, eu pen
sei que você estivesse muito irritado. . . Mas eu tenho me
lembrado . . . É porque . . . Perdoe ..
“Ele envolveu-a nos braços, apertou-a, porém mais con
fuso do que amoroso ou terno . .
“Então pensou nas cartas sobre as quais ela tinha acaba
do de mentir, e, subitamente, quando ela volvia a cabeça,
querendo ser beijada, sua fantasia mais intensa era esta:
Ela era suja. Seu medo irrefreável, deixava-o confuso—■
ilusão, doença, compaixão secreta, lama e desforra. Sem sa
ber o que ele próprio temia, pensou apenas: sujeira, sujeira
leia, sujeira grossa, mordidas, feridas. Por não poder supor
tar as lamentações dela, pensou: ilusão, astúcia, e doença!"
“Afastou-se, antes que os lábios dela o tocassem; as unhas
dela arranharam seus braços, rasgando-lhe a pele. Fugiu,
ouvindo os soluços dela à porta aberta, enquanto tropeçava
pelos degraus contaminados da escada, descendo até encon
trar o ar livre da rua.”
190
astúcia, e doença!” ). C onhecer um a m ulher além do nível
de sua beleza era demais p ara ele. As mulheres são
jülgàdas só nos termos dele, ou em termos do que elas
godem lhe trazer, seja beleza e alegria, seja sofrimento
e tristeza. Quaisquer que sejam esses termos, ele não os
cjuestiona; não com preendendo que seu próprio com por
tam ento foi ou poderia ser um a influência determinante.
Podemos imaginar um a história completam ente dife
rente sobre esse caso de am or, usando até as mesmas
referências e os mesmos diálogos, só que dessa vez escrita
por Lenka. Seu com portamento então não pareceria mais
irracional, mas inteiram ente compreensível; o personagem
masculino, ao contrário, se m ostraria superficial. Talvez,
de fato, pudéssemos term inar com algo além de um pre
conceito sexual oposto. Poderíam os perceber uns três
quartos do quadro (i.e., F rank é superficial porque é
incapaz de assumir suas em oções), visto que as mulheres,
em geral, em função de um a opressão prolongada, apren
deram a ser mais avançadas em psicologia m asculina do
que vice-versa. M as isto raram ente ocorreu em literatura,
porque a maioria das Lenkas foi destruída pelo uso e
abuso delas em não escrever as próprias histórias coeren
temente.
Assim, a diferença entre a aproximação “m asculina”
e a aproxim ação “feminina” da arte não é, como alguns
pensam, simplesmente um a diferença de “estilo” no tra
tam ento de um mesmo tem a (pessoal, emocional, descri
tivo versus vigoroso, econômico, enérgico, frio, objetivo),
mas um a diferença no próprio tema. O sistema dç papéis
sexuais divide a experiência humana. Os homens e as
mullíeres vivem nessas diferentes metades da realidade.
E a cultura reflete isso.
Somente alguns artistas superaram essa divisão em
seu trabalho. E nos perguntamos se os homossexuais estão
certos em suas reivindicações. M as, se não o fizeram a t n -
vés da expressão física, então de algum outro modo os
maiores artistas se tornaram mentalmente andróginos. No
século X X , por exemplo, escritores da envergadura de
Proust, Joyce, Kafka fizeram-no seja identificando-se fisi
camente com a mulher (P ro u st), seja imaginariamente,
191
atravessando à vontade os limites entre esses mundos
(Joyce), ou retirando-se num m undo imaginário rara
mente afetado pela dicotomia (K afka). M as, não só a
m aior parte dos artistas não superou a divisão, como se
quer estava ciente da existência de um a limitação cultural
baseada no sexo. É assim que a realidade m asculina é
aceita, tanto pelos homens quanto pelas mulheres como
sendo a Realidade.
E, que dizer das mulheres artistas? Vimos que só
nos últimos séculos foi concedido às mulheres participar
— e apenas em bases individuais e em termos masculinos
— da construção da cultura. E, mesmo assim, sua visão
tornou-se inautêntica. Foi-lhes negado o uso do espelho
cultural.
Existem várias razões negativas, pelas quais as m u
lheres ingressaram na arte. A riqueza sempre originou o
diletantismo feminino, p.ex., a “jovem dam a” vitoriana
com seu talento, ou a arte das gueixas japonesas. Pois,
além de servir de símbolo ao luxo masculino, a crescente
ociosidade das mulheres, sob um industrialismo avançado,
apresenta um problem a prático: a insatisfação.iem inina
tem que ser diminuída, para impedir as mulheres d e explo
dir. M as também pode ser que as mulheres estejam ingres
sando na arte como um refúgio. As jmulheres, ainda hoje,
são excluídas dos centros vitais de poder da atividade hu
m ana; e a arte é um a das últimas ocupações autodeter-
minadas restantes — geralmente feita na solidão. Mas,
nesse sentido, são como uma Pequena Burguesa tentando
abrir um a fábrica na era das Corporações Capitalistas.
Pois, ultimamente, a m aior percentagem de mulheres
na arte pode nos dizer mais sobre a situação da arte do
que sobre a situação das mulheres. Devemos nos sentir
animados pelo fato de as mulheres assumirem um a condi
ção que breve será dispensada? (D o mesmo m odo como
noventa e cinco por cento de negros nos Correios não é
sinal de integração; ao contrário, os indesejados estão sen
do empurrados para as posições menos desejáveis: Agora,
entre e bico calado!) Que a arte não é mais um centro
vital que atrai os melhores homens de nossa geração pode
também ser um produto da divisão m asculino/fem inino,
192
como tentarei mostrar no capítulo seguinte. Mas o entu
siasmo das mulheres e dos homossexuais com as artes
pode significar, hoje, a corrida dos urubus para um corpo
agonizante.2
Contudo, se ainda não produziu grandes mulheres
artistas, a literatura feminina criou certamente um a au
diência feminina. Do mesmo modo como as audiências
masculinas sempre exigiram, e receberam, uma arte mas
culina que reforçasse sua visão particular da realidade,
assim também a audiência feminina requer um a arte “fe
minina”, para reforçar a realidade feminina. Daí o nas
cimento da grosseira novela feminina no século X X , que
levou à love story de nossos dias, tão presente na cultura
popular ( o “dram alhão” ); o comércio das revistas femini
nas; Vale das Bonecas. Estes podem ser começos grossei
ros. Mas, de vez em quando, a realidade feminina é do
cumentada tão claramente quanto o foi a realidade mas
culina, como, por exemplo, na obra de Anne Sexton.
Finalmente, devido a toda essa efervescência, talvez
muito breve possamos assistir à emergência de um a arte
feminina autêntica. Mas, o desenvolvimento de um a arte
193
1) A rte de Protesto Masculino — A arte que cons
cientemente glorifica a realidade masculina (contraria
mente a se supor que ela constitua a própria realidade) é
apenas uma manifestação recente. Vejo-a como um a res-
posta direta à ameaça à supremacia masculina, contida no
primeiro enfraquecimento dos rígidos papéis sexuais. Essa
arte é reacionária por definição. Recomendo um exame
m aior de sua personalidade aos homens que acreditam
que essa arte expressa melhor o que eles vivem e sentem.
2) O Ângulo Masculino — Essa arte não consegue
atingir uma visão de mundo ampla, porque não reconhece
que a realidade masculina não é a Realidade, mas apenas
uma metade da realidade. Assim, sua retratação do sexo
oposto e de seu comportamento (m etade da hum anidade)
é falsa: o próprio artista não compreende os motivos femi
ninos. Algumas vezes, como na história de H erbert Gold,
citada por nós, os personagens femininos podem ainda se
sair bem, se o autor tiver sido honesto, ao menos no
como — se não o foi no porque — de seu comportamento.
Um exemplo mais conhecido: o personagem C ata
rina, no filme Jules e Jim, de Truffaut, é tirado da vida
real. Existem, em toda parte, muitas dessas vamps e
fem m es fatales, na realidade, mulheres que recusam acei
tar sua impotência. P ara conservar uma ilusão de igual
dade, e ganhar um poder indireto sobre os homens, C a
tarina deve valer-se do “mistério” (Esfinge), da impre-
visibilidade (atirando-se no Sena), e da astúcia (dor
mindo com o Homem Misterioso, para mantê-lo preso).
Quando, no fim, como todas as mulheres, ela perde até seu
poder ilegítimo, seu orgulho não admite a derrota. Ela
m ata o homem que ousou libertar-se dela, e depois se
mata. Mas, mesmo aqui, num a arte traçada com esmero,
surge o preconceito masculino. O diretor prossegue com a
mística da M ulher Misteriosa; não investiga para desco
brir o que está por trás dela. Além do mais, ele não quer
saber: ele a usa como um a fonte de erotismo. A imagem
que fazemos de Catarina só aparece através de um véu.
3) A Mentalidade Andrógina ( Cultivada Individual
m ente) — Mesmo quando as limitações sexuais tenham
194
sido superadas pelo artista individualmente, sua arte re
vela uma realidade tornada feia por essa divisão. Um
exemplo breve, de novo tirado do cinema: apesar dos
diretores suecos serem notavelmente livres de preconcei
tos sexuais pessoais — as mulheres que eles retratam são
primeiro humanas, e depois mulheres — a retratação que
Liv Ullman faz da Nobre Esposa que acompanha fiel
mente o marido em sua crescente loucura (A Hora do
Lobo, de Bergman) ou que o ama em sua degeneração
moral ( Vergonha, de B ergm an), ou a sensibilidade con
fusa de Lena Nyman em Eu Sou Estranha (A m arela), de
Sjoman, são descrições não de uma sexualidade liberada,
mas de um conflito ainda não resolvido entre as identi
dades sexual e humana.
4) A r te Feminina — É esta uma nova manifestação,
que não deve ser confundida com a arte “masculina” ,
mesmo que, por enquanto, ela seja culpada do mesmo
preconceito, ao inverso. Pois ela pode significar o início
de uma nova consciência, em vez de uma ossificação do
antigo. D entro da década seguinte, poderemos assistir ao
seu desenvolvimento em uma nova arte poderosa' — tal
vez surgindo em conjunção com o movimento político
feminista, ou inspirado nele — que, pela primeira vez,
se relacionará com a realidade na qual as mulheres vivem.
Podemos também assistir a um Criticismo feminista,
dando ênfase, para corrigi-las, às várias formas de precon
ceito sexual que hoje corrompem a arte. Contudo, em
nossa terceira categoria, que fala de uma arte culpada
de só refletir o valor hum ano de uma realidade sexual
mente dividida, deverá ser tomado muito cuidado para que
o criticismo seja orientado não para os artistas, em função
de sua retratação (apurada) da realidade incompleta,
mas para o absurdo dessa própria realidade, como foi
revelada pela arte.
Somente uma revolução feminista pode eliminar com
pletamente o cisma, sexual, causador dessas distorções
culturais. Até que a “ arte pura” se torne uma ilusão —
uma Ilusão responsável, tanto pela arte inautêntica pro
duzida até agora pelas mulheres quanto pela corrupção
195
da cultura (m asculina) em geral. A incorporação da me
tade desprezada da experiência hum ana — a experiência
feminina — no organismo cultural, para criar um a cultura
abrangente, é apenas o primeiro passo, uma precondição.
M as, o próprio cisma da realidade deve ser destruído,
para que possa haver um a verdadeira revolução cultural.
196
IX. DIALÉTICA SEXUAL DA HISTÓRIA
DA CULTURA
197
Porém mesmo que a relação indireta das mulheres
com a ciência seja discutível, é certo que não existe uma
relação direta entre elas. Teríamos que sondar, para encon
trar uma só mulher que tenha contribuído de um modo
im portante para a cultura científica. Além do mais, a
situação das mulheres na ciência não está melhorando.
Mesmo tendo o trabalho de pegquisa passado das inteli
gências mais completas do passado para pequenos grupos
de pesquisa pragmática nas universidades, existe um nú
mero extraordinariamente pequeno de mulheres cientistas.1
Essa ausência de mulheres em todos os níveis das
disciplinas científicas é de tal forma um lugar-comum
que muitas pessoas (também inteligentes) são levadas
a atribuí-lo a alguma deficiência (lógica?) das próprias
mulheres. Ou às próprias predileções das mulheres pelo
emocional e o subjetivo em vez do prático e do racional.
M as a questão não pode ser tratada assim tão simples
mente. É verdade que as mulheres, na ciência, estão em
território alheio — mas, como esta situação evoluiu? Por
que existem disciplinas, ou ramos de pesquisa que só re
querem um a mente “masculina”? Por que uma mulher,
para se qualificar, precisa desenvolver uma psicologia
alheia? Quando e por que a mulher foi excluída desse
tipo de pensamento? Como e por que a ciência veio a ser
definida e restrita ao “objetivo”?
Proponho que não só as artes e as humanidades fo
ram corrompidas pela dualidade sexual, mas também a
ciência m oderna foF determinada oor ela. E além disso
que a cultura reflete essa polaridade na sua própria orga
nização. C.P. Snow foi o primeiro a observar o que se
198
tornava cada vez mais óbvio: uma profunda fratura na
cultura — as artes liberais e as ciências tinham-se tor
nado incompreensíveis umas para as outras. Além disso,
embora o homem universal da Renascença seja muito la
mentado, a especialização não pára de se intensificar.
Esses são alguns dos modernos sintomas de uma longa
doença cultural, baseada no dualismo sexual. Exam i
nemos a história da cultura, de acordo com esta hipótese:
de que existe um a dialética do sexo subjacente a ela.
199
gico do mito ou da fantasia, no século X X sua tecnologia,
o acúmulo de suas habilidades práticas, tornou possível
para ele voar na realidade — ele inventou o avião. Outro
exemplo: na lenda bíblica, os judeus, um povo agricultor
desamparado durante quarenta anos no deserto, foram su
pridos de m aná por Deus, uma substância milagrosa que
poderia ser transform ada em alimentos de qualquer cor,
textura ou sabor. O processo moderno de nutrição, so
bretudo com a “revolução verde” , provavelmente criará
em breve uma produção de alimentos totalmente artifi
ciais, talvez com esses atributos do camaleão. Além disso,
na lenda antiga, o homem podia imaginar espécies mistas,
p.ex., o centauro ou o unicórnio, ou pássaros híbridos,
como um animal nascido do homem, ou uma concepção
imaculada. A revolução biológica em curso, com seu cres
cente conhecimento do processo de reprodução, poderia
agora — mesmo que somente nos estágios mais grosseiros
— criar essas “monstruosidades” na realidade. Duendes
t gnomos, o Golem do saber medieval judaico, o monstro
de Mary Shelley em Frankenstein foram construções ima
ginárias que precederam em vários séculos o acume tecno
lógico correspondente. Muitas outras construções fantás
ticas — os fantasmas, a telepatia, a idade de Matusalém
— aguardam a sua realização pela ciência moderna.
Essas duas respostas diferentes, a idealista e a cien
tífica, não coexistem apenas paralelamente; há um diálogo
entre elas. À construção imaginária precede ra tecnológica,
em bora freqüentemente ela não se desenvolva antes que o
Icnów-How teconológico esteja “em circulação” . Por exem
plo: a arte da ficção científica se desenvolveu, principal
mente, somente meio século na frente da revolução cien
tífica, e agora coexiste com ela, que a está transform ando
em realidade — um exemplo (inofensivo): o vôo à Lua.
As expressões “way out”, “far out” , “spaced” ,* a observa
ção “é como se fosse um a ficção científica” são lingua
gem comum. N a resposta estética, pelo fato de ela sempre
se desenvolver antecipadamente, e assim ser o produto
200
de um a nova era, a mesma realização pode assumir uma
forma sensacional ou fantástica, p. ex., o monstro de
Frankenstein, oposta, por assim dizer, às máquinas faz-tu-
do da General Electric: CAM (M áquinas Antropom ór
ficas Cibernéticas). (U m artista pode nunca chegar a
saber, antecipadamente, como sua visão poderia ser arti
culada na realidade.)
A cultura é, portanto, a soma e a dinámica entre os
dois modos” atraves dos quais a mente tentá sobrepor-se
às limitações e às contingências da realidade. Esses dois
tipos de respostas culturais produzem diferentes métodos
para aTcançar o mesmo fim, a realização do concebível
no possível. Iniclálmente,2 o indivíduo nega as limitações
3a realidade dada, fugindo dela completamente, para criar
seu próprio possível. Nos territórios da imaginação, objeti
vada 3e alguma m aneira — quer através do desenvolvi
mento de um a imagem visual dentro de algum limite arti
ficial, digamos quarenta centímetros quadrados de tela,
quer através de imagens visuais projetadas através de sím
bolos verbais (poesia), ou com sons ordenados num a se
qüência (música), ou idéias verbais ordenadas em progres
são (teologia, filosofia) — o homem cria um mundo ideal,
governado exclusivamente por uma ordem e harm onia ar
tificialmente impostas por ele, um a estrutura na qual ele
conscientemente relaciona cada parte estável (e, portanto,
“eterna” ). O grau em que ele abstrai sua criação da rea
lidade não tem importância, pois mesmo quando mais
parece imitar, ele cria um a ilusão dirigida por seu próprio
— talvez secreto — conjunto de leis artificiais. (Degas
disse que o artista tinha que mentir para dizer a verdade.)
Essa busca pelo ideal, realizada através de um meio artifi
cial, podemos cham ar de M odo Estético.
No segundo tipo de resposta cultural, as contingên
cias da realidade são vencidas, não através da criação de
um a realidade substitutiva, mas através do domínio do
próprio funcionamento da realidade. As leis da natureza
201
são descobertas, e depois voltadas contra ela, para mol
dá-la de acordo com a concepção do homem. Se existe
um veneno, o homem supõe que existe um antídoto; se
existe um a doença, ele procura a cura. Todo fato da na
tureza que é compreendido pode ser usado para modificá-
Ia- Mas, para realizar o ideal através desse procedimento
é preciso muito tempo e é infinitamente mais árduo, so
bretudo nos primeiros estágios do conhecimento. Pois a
vasta e intricada m áquina da natureza pode ser inteira
mente compreendida — e existem sempre camadas novas.
e1imprevistas de complexidade — ^antes de poder ser com
pletamente controlada. Assim, antes que qualquer solução
para as contingências mais profundas da condição hu
mana, p.ex., a morte, possa ser descoberta, os processos
naturais de crescimento e decomposição devem ser cata
logados, as leis mais simples serem relacionadas às mais
complexas. Esse método científico (tam bém tentado por
M arx e Engels em seu enfoque m aterialista da H istória)
é a tentativa do homem de dom inar a natureza, através
da compreensão total de sua mecânica. À coação da rea
lidade para conformá-la à concepção ideal do homem,
mediante a aplicação da informação extrapolada dessa
própria realidade, chamaremos de_M odp_Tggnológigo^
t)eíinim os a cultura como a soma e a dialética entre
os dois modos diferentes através dos quais o homem pode
resolver a tensão criada pela flexibilidade de suas facul
dades mentais dentro das limitações de seu meio-ambiente
dado. A correspondência desses dois modos culturais dife
rentes respectivamente com os dois sexos é inconfun
dível. Observemos como as poucas mulheres que criaram
diretamente a cultura tenderam para as disciplinas dentro
do M odo Estético. Existe um a boa razão para isto: a res
posta estética corresponde ao comportamento “feminino” .
A mesma terminologia pode ser aplicada a qualquer dos
dois: subjetivo, intuitivo, introvertido, fantasista, sonha
dor, relativo ao inconsciente (ao id), emocional, até tem
peram ental (histérico). Analogamente, a resposta tecno
lógica é a resposta masculina: objetiva, lógica, extrover
tida, realista, relativa à mente consciente (ao ego), racio
nal, mecânica, pragmática e terra-a-terra, estável. Assim,
202
a estética é a recriação cultural daquela m etade da estru
tura psicológica que foi reservada às mulheres, enquanto
que a resposta técnica é a magnificação cultural da me
tade masculina.
Assim como admitimos que a divisão biológica dos
sexos em função da procriação é a dualidade “natural”
fundamental a partir da qual nasce toda a divisão de
classes ulterior, assim admitimos agora que a divisão se
xual é também a raiz dessa divisão cultural fundamen
tal. A interação entre essas duas respostas culturais, o
M odo Tecnológico “masculino” e o M odo Estético “fe-
minino”, recria ainda, num outro nível, a dialética dos
sexos — bem como sua superestrutura, a dialética de
classes econômicas e raciais. E assim como a fusão das
distintas classes sexuais, raciais e econômicas é um a pre-
condição para a revolução respectivamente sexual, racial
ou econômica, assim a fusão da cultura estética com a
tecnológica é a precondição para um a revolução cultu- !
ral. E assim como a meta revolucionária das revoluções j
sexual, racial e econômica é, em vez de um mero nive
lamento dos desequilíbrios de classe, um a eliminação
total das categorias de classe, assim o resultado final de
uma revolução cultural deve ser, não m eramente a inte
gração das duas correntes da cultura, mas a eliminação
de todas as categorias culturais, a eliminação da própria
cultura^ como nós a conhecemos. 1Mas, antes de discutir
a revolução cultural definitiva, ou mesmo o estado da
divisão cultural na nossa época, vejamos como esse ter
ceiro nível da dialética do sexo — a interação entre os
M odos Tecnológico e Estético — operou para determi
nar o fluxo da história cultural.
Inicialmente, o conhecimento tecnológico se acumu
lou lentamente. Gradualm ente o homem aprendeu a con
trolar os aspectos mais rudes de seu meio-ambiente —
descobriu a ferram enta, o domínio do fogo, a roda, a
fundição do minério para fazer armas e arados, até, fi
nalmente, o alfabeto — mas essas descobertas foram
muito poucas, em virtude de ele ainda não dispor de
nenhum modo sistemático de iniciação. Contudo, final
mente acumulou suficiente conhecimento prático para
203
construir sistemas complexos, p.ex., a medicina ou a
arquitetura, para criar instituições jurídicas, políticas, so
ciais e econômicas. A civilização evoluiu de um a horda
de caçadores primitivos para uma sociedade agrícola, e,
finalmente, através de estágios progressivos, para o feu
dalismo, o capitalismo e as primeiras tentativas de
socialismo.
Mas, durante todo esse tempo, a habilidade do ho
mem de imaginar um m undo ideal esteve bem à frente
de sua habilidade de criá-lo. As formas culturais prim á
rias das civilizações antigas — a religião e suas ramifi
cações, a mitologia, a lenda, a arte e a magia primitivas,
a profecia e a história — aconteciam no M odo Estético.
Elas impuseram apenas um a ordem artificial, imaginária
a um universo am da misterioso e caótico. Mesmo as
teorias científicas primitivas eram apenas m etáforas poé
ticas do que mais tarde seria realizado empíricamente.
A ciência, a filosofia e a m atem ática da antiguidade clás
sica, precursoras da ciência m oderna, através de proezas
imaginativas simples, operando num vácuo, independen
tes de leis materiais, anteciparam muito do que foi com
provado mais tarde. O átomo de Demócrito e a “subs
tância” de Lucrécio prenunciaram milhões de anos antes
as descobertas da ciência moderna. Mas elas foram rea
lizadas somente no domínio do M odo Estético, um do
mínio imaginário.
N a Idade Média, a herança judaico-cristã foi assi
m ilada à cultura pagã, produzindo a arte religiosa me
dieval, a metafísica de Tomás de Aquino e da Escolás
tica. Em bora, simultaneamente, a ciência árabe, um pro
duto do Período Alexandrino Grego (século III a.C. ao
século V II d.C.) estivesse acumulando informação con
siderável em áreas como a geografia, a astronomia, a fi
siología, a m atem ática — um a tabulação essencial para
o empirismo posterior — havia muito pouco diálogo. A
ciência ocidental, com sua alquimia, sua astrologia, os
“hum ores” da medicina medieval, era ainda um estágio
“pseudocientífico”, ou, em nossa definição, ainda opera
va de acordo com o Modo Estético. Essa cultura estéti
204
ca medieval, form ada pelas heranças clássica e cristã,
culminou no Humanismo da Renascença.
A té a Renascença, a cultura aconteceu no Modo
Estético, porque antes dessa época a tecnologia tinha
sido muito rudim entar, o corpo do conhecimento cientí
fico estava muito longe de ser completo. Em termos da
dialética sexual, esse longo estágio da história cultural
corresponde ao estágio m atriarcal da civilização: o Prin
cípio Fem inino — escuro, misterioso, incontrolável —
reinava, exaltado pelo próprio homem ainda em respeito
à insondável Natureza. Os homens de cultura eram os
principais sacerdotes do culto. Até e durante a Renascen
ça todos os homens de cultura foram profissionais do
M odo Estético idealista, portanto num certo sentido artis
tas. A Renascença, o apogeu do humanismo cultural, foi
a idade de ouro do M odo Estético (fem inino).
E também o início de seu fim. P or volta do século
X V I a cultura sofria um a m udança tão profunda quanto
a mudança do m atriarcado para o patriarcado, em termos
da dialética sexual, e correspondente ao declínio do feu
dalismo na dialética de classes. Essa foi a prim eira fusão
da cultura estética com a tecnológica, representada na
criação da ciência (em pírica) moderna.
N a Renascença, a Escolástica Aristotélica tinha-se
conservado poderosa, em bora já fossem visíveis as pri
meiras fendas na represa. Mas foi só depois de Francis
Bacon, quem primeiro propôs usar a ciência para “esten
der mais além os limites do poder e da grandeza do
homem”, que a união dos M odos foi consumada. Bacon
e Locke transform aram a filosofia, a tentativa de com
preender a vida, de um a especulação abstrata desligada
do mundo real (metafísica, ética, teologia, estética, lógi
ca) em um a descoberta das leis reais da natureza, atra
vés da experiência e da demonstração (ciência em pírica).
No m étodo empírico proposto por Francis Bacon,
o insight e a imaginação deveriam ser usados exclusiva
mente nos primeiros estágios da investigação. Seriam con
cebidas hipóteses experimentais pela indução a partir dos
fatos, e, em seguida, as conseqüências seriam deduzidas
i logicamente e testadas pela consistência entre elas e pela
205
conformidade com os fatos elementares e com os resul
tados de experimentos ad hoc. As hipóteses só se torna
riam um a teoria aceita depois de terem passado por todos
os testes, e permanecerem, ao menos até prova em con
trário, um a teoria capaz de predizer os fenômenos num
alto grau de probabilidade.
A visão empírica sustentava que, registrando e tabu
lando todas as observações e experimentos possíveis dessa
m aneira, a Ordem N atural automaticamente emergiria.
E m bora inicialmente a pergunta sobre o “porquê” fosse
ainda mais freqüentemente solicitada do que a pergunta
sobre o “como”, logo que a informação começou a
acumular-se, cada descoberta somando-se à anterior para
com pletar o quebra-cabeça, os especulativo, o intuitivo e
o imaginativo gradativam ente tornaram -se menos valio
sos. O utrora, quando os fundamentos iniciais foram assen
tados por homens da estatura de Kepler, Galileu e New-
ton — pensadores ainda inspirados na tradição científi
ca “estética” — centenas de técnicos anônimos puderam
se deslocar para preencher os espaços vazios, o que le
vou ao início de um a idade de ouro da ciência, em nos
sa própria época — i.e., ao M odo Tecnológico, corres
pondente ao que o Modo Estético tinha sido para a
Renascença.
206
genética, ou do trabalho de Urey e de M iller, no início
da década de 50, sobre as origens da vida. Estam os per
to do domínio total do processo reprodutjvo, e houve
avanços significativos na compreensão do processo básico
da vida e da morte. A natureza do envelhecimento e do
crescimento, do sono e da hibernação, o funcionamento
químico do cérebro e o desenvolvimento da consciência
e da memória tudo está começando a ser compreendi
do em sua totalidade. Essa aceleração prom ete continuar
por talvez um outro século, não im porta quanto tempo
seja preciso para realizar a m eta do Em pirismo: a com
preensão total das leis da natureza.
Essa acumulação surpreendente de conhecimentos
concretos em apenas algumas centenas de anos é o re
sultado do desvio da filosofia de um M odo Tecnológico.
A associação da ciência “pura”, a ciência do M odo E s
tético, com a tecnologia pura provocou um progresso na
direção da meta da tecnologia — a realização do con
cebível no mundo real — m aior do que tinha sido alcan
çado em milhões de anos da história anterior.
O próprio Empirismo é apenas o método, um a téc
nica mais penetrante e mais eficaz, para a realização da
m eta cultural máxima da tecnologia: a construção do
ideal no mundo real. Um de seus ditados básicos é de
que um a certa quantidade de material pode ser reunida
e arrum ada em categorias, antes que qualquer com para
ção decisiva, análise ou descoberta possa ser feita. Em
vista disso, os séculos de ciência empírica ultrapassaram
um pouco, em termos de tempo, o período da construção
dos fundamentos para as rupturas de nossa própria épo
ca e do futuro. O acúmulo de informação e de compreen
são das leis e dos processos mecânicos da natureza (“pes
quisa pura” ) é m eramente um meio para um objetivo
mais amplo: a compreensão total da Natureza, a fim de
controlá-la finalmente.
Nesse panoram a do desenvolvimento e dos objetivos
da história cultural, a meta final de Engels, citada ante
riormente, no contexto da revolução política, é outra vez
digna de citação:
207
“A esfera total das condições de vida que envolvem o
homem, e que até agora o dirigiram, fica agora sob o domínio
c o controle do homem, que pela primeira vez se torna o ver
dadeiro e consciente Senhor da Natureza.”
208
tas foram praticam ente acidentes de laboratório, com
implicações sociais compreendidas somente pelos cientis
tas que esbarraram com elas. P or exemplo: h á apenas
cinco anos, o professor F. C. Steward, de Cornell, des
cobriu um processo chamado cloning: ao colocar um a
simples célula de cenoura num a substância nutriente ro
tativa, ele conseguiu produzir um a lâmina inteira de cé
lulas de cenoura idênticas, a partir das quais finalmente
recriou a mesma cenoura. A com preensão de um proces
so análogo referente a células animais mais evoluídas, no
caso de escapar ao controle — como aconteceu com as
experiências com drogas “ alucinógenas” — poderia ter
algumas implicações aterradoras. Ou, além disso, imagi
nem a partenogênese, o parto da virgem, como é prati
cado por um gênero de insetos, aplicado de fato à fer
tilidade humana.
Um a outra contradição no interior da ciência empí
rica: a visão-de-mundo mecanicista, determinista, cientí
fica “fria”, que é o resultado dos métodos, mais do que
dos objetivos finais (inerentem ente nobres e geralmente
esquecidos) do Empirismo, a saber, a realização do ideal
na realidade.
O próprio cientista paga um preço particularm ente
elevado, desumanizando-se, tornando-se pouco mais que
um técnico cultural. Pois, ironicamente, para acumular
apropriadam ente a informação que leva a um conheci
m ento concreto e am plo do universo é preciso um a men
talidade ampla e integrada. Em bora, no fim de tudo os
esforços individuais dos cientistas possam levar à dom i
nação do meio-ambiente em benefício da humanidade,
tem porariam ente o m étodo empírico requer de seus pró
prios praticantes que se tornem “objetivos”, “mecanicis-
tas”, superpreciosos. A imagem pública do Dr. Jekyll
vestido de branco, sem sentimentos por seus pacientes,
simples porquinhos-da-índia, não é totalm ente falsa. Não
existe lugar para os sentidos no trabalho do cientista.
Ele é obrigado a eliminá-los ou a isolá-los, lidando ape
nas com riscos ocupacionais. N a melhor das hipóteses,
ele pode resolver esse problema, separando seu eu pro
fissional de seu eu pessoal, compartimentando sua emo
209
ção. Assim, em bora geralmente bem versado num senti
do acadêmico em artes — a freqüência disso é, pelo me
nos, m aior do que a de artistas bem-versados em ciência
— o cientista geralmente não está em contato com suas
emoções e sensações diretas, ou, na melhor das hipóte
ses, é emocionalmente dividido. Sua vida “privada” e sua
vida “pública” são divididas; e, por sua personalidade
não ser integrada, ele pode ser surpreendentemente con
vencional. ( “Querida, eu descobri hoje como reproduzir
pessoas no laboratório. Agora, já podemos sair para
esquiar.” ) Ele não sente contradição por viver conven
cionalmente, nem mesmo por ir à igreja, pois nunca inte
grou o espantoso material da ciência m oderna com sua
vida cotidiana. Geralmente, é preciso que sua descoberta
seja usada impropriamente para alertá-lo para esta cone
xão, que está há muito tempo sepultada em sua mente.
* O catálogo de vícios científicos é bem conhecido:
ele em geral duplica, exagera o catálogo de vícios “mas-
culinos”. Isto era de esperar. Se o Modo Tecnológico
evoluiu do Princípio Masculino, então deduz-se que seus
praticantes desenvolveriam as deformações da personali
dade masculina ao extremo. Mas deixemos a ciência por
um momento, querendo acelerar a revolução cultural de
finitiva, para compreender o que, nesse meio-tempo, tinha
acontecido à Cultura Estética propriamente dita.
Com a filosofia, entendida no sentido clássico mais
geral — incluindo a ciência “pura” — a imperfeita cul
tura estética tornou-se cada vez mais limitada e encrava
da, reduzida às artes e às humanidades, no sentido refi
nado em que nós as conhecemos hoje. A arte (daqui em
diante referente às “ artes liberais”, especialmente às artes
e letras) sempre foi, na sua própria definição, um a busca
pelo ideal, separada do m undo real. Entretanto, nos seus
primórdios, ela foi a serva da religião, articulando o so
nho comum, objetivando “outros” mundos da fantasia co
mum, p.ex., a arte dos túmulos egípcios, para explicar e
justificar esta última. Assim, em bora tenha-se afastado
do mundo real, ela serviu a um a im portante função so
cial: satisfez artificialmente aqueles desejos da sociedade
que não podiam ainda ser realizados na realidade. Em
210
bora tenha sido patrocinada e sustentada exclusivamente
pela aristocracia, a elite culta, ela nunca esteve tão des
ligada da vida quanto mais tarde se tornou. Pois a so
ciedade daqueles tempos era, para todos os fins práticos,
sinônimo da classe dominante, fosse ela o sacerdócio, a
m onarquia ou a nobreza. As massas nunca foram con
sideradas pela “sociedade” como parte legítima da hum a
nidade. Elas eram escravas, nada mais do que animais
humanos, zângãos, ou servos, sem o trabalho das quais
a pequena elite culta jamais se teria conservado.
A p ressão gradual exercida sobre a aristocracia pela
nova classe média, a burguesia, assinalou a erosão da
cultura estética. Vimos que o capitalismo intensificou as
piores características do patriarcado, por exemplo, como
a família nuclear emergiu do vasto e impreciso lar do
passado para reforçar o enfraquecido sistema de classes
sexuais, oprimindo as mulheres e as crianças ainda mais
profundam ente do que antes. O modo cultural favoreci
do por esta nova burguesia excessivamente patriarcal foi
o M odo Tecnológico “masculino” — objetivo, realista,
concreto, de “ senso comum” — em vez do afeminado,
espiritual M odo Estético “rom ântico idealista” . A bur
guesia, buscando o ideal no real, cedo desenvolveu a
ciência empírica que descrevemos. Quando admitiam al
guma utilidade remanescente na cultura estética, isto ocor
ria apenas na arte “realista” , oposta à arte “idealista” da
antiguidade clássica, ou à arte abstrata religiosa dos pe
ríodos primitivos ou medievais. Interessaram-se, durante
algum tempo, por um a literatura que descrevesse a rea
lidade — melhor exemplificada pela novela do século
X IX — e por um a arte de cavalete decorativa: nature
zas-mortas, retratos, cenas de família, interiores. Foram
construídos museus e livrarias públicas, ao lado dos ve
lhos salões e galerias privadas. M as, com sua solidifica
ção como um a classe segura, até principal, a burguesia
não precisou mais imitar a cultura aristocrática. Com o
rápido desenvolvimento de sua nova ciência e tecnologia,
o pouco valor prático que atribuía à arte se eclipsou.
Tomemos, por exemplo, o desenvolvimento científico da
máquina fotográfica. Logo a burguesia deixou de precisar
211
dos pintores de retrato; a câmara se mostrou muito mais
precisa do que os pintores e novelistas.
A arte “m oderna” foi um a represália ( épater le
bourgeoisie) violenta, embora responsável afinal pelo
próprio malogro, dirigida contra estes danos; a evapora
ção da função social da arte, o rom pim ento do cordão
umbilical social, a redução das fontes antigas de patro
nato. A tradição da arte moderna, associada inicialmente
a Picasso e Cézanne, e incluindo todas as principais esco
las do século X X — cubismo, construtivismo, futurismo,
expressionismo, surrealismo, expressionismo abstrato, e
assim por diante — não constitui um a expressão autên
tica da modernidade, por mais que seja um a reação ao
realismo d a burguesia. O pós-impressionismo rejeitou de
liberadamente todas as convenções afirmadoras da reali
dade. N a verdade, o processo começou com o próprio
impressionismo, que destruiu a ilusão em seus valores
formais, engolindo a realidade e cuspindo-a de novo como
arte, e finalmente levou a um purismo da “ arte-pela-arte” ,
a um a negação total da realidade que acabou tornando-a
inexpressiva, estéril e até absurda. (Os motoristas de táxi
são filisteus; eles reconhecem um a sacanagem quando a
vêem.) A deliberada violação, deformação e fraturam en-
to da imagem, chamada arte “m oderna” , não foi senão
uma destruição de ídolos durante cinqüenta anos, que
acabou levando ao impasse cultural do presente.
No século X X esgotou-se a energia e nulificou-se
completamente a função social da arte. E la é despejada
nas classes ricas remanescentes, constituídas por aqueles
nouveaux riches — particularm ente os da América, que
ainda sofriam um complexo de inferioridade cultural —•
empenhados em provar que tinham “acontecido”, eviden
ciando um gosto pela cultura. Vários fatos testemunham
a m orte do humanismo estético: o seqüestro dos intelec
tuais em universidades-torres-de-marfim, onde, excetuan
do o caso das ciências, seu trabalho teve muito pouca
repercussão no mundo exterior, independente do brilhan
tismo de cada um (e eles não são brilhantes, porque não
dispõem do feed-back necessário para sê-lo); o obscuro
— em geral literalmente ininteligível — jargão das ciên-
212
cias sociais; as literaturas de panelinhas, publicadas tri-
, mestralmente, com sua poesia esotérica; as galerias e mu
seus chiques da 57th Street (não é por acaso que elas
ficam ao lado da Saks Fifith Avenue e de Bonwit T eller),
sustentadas, na sua m aioria, por tipos sofisticados de
* homens desmunhecados; e também o estabelecimento crí
tico vulturino, que prospera à custa dos vestígios do que
outrora foi um a cultura grande e vital.
Nos séculos em que a ciência galgou novas alturas,
a arte decaiu. Seu nascimento forçado transform ou-a num
código secreto. P or definição escapista da realidade, a
arte hoje se voltou a tal ponto para si mesma, que cor
roeu seus próprios órgãos vitais. Tom ou-se doente —•
com uma autocompaixão e timidez neuróticas, concen
trando-se no passado (em oposição à orientação futura
da cultura tecnológica) e assim congelando-se em con
venções e academias, ortodoxias das quais a “vanguarda”
é apenas a mais recente. Sustentam-na as lembranças de
glórias passadas, os Grandes Velhos Tempos Em Que a
Beleza Ainda Florescia. Tornou-se pessimista e niilista,
cada vez mais hostil à sociedade em geral, os “filisteus” .
E, quando a jovem e arrogante Ciência tentou cortejar
a A rte na sua torre — eventualmente um sótão — de
mármore, com falsas promessas de um am ante corteja
dor ( “Você agora já pode descer, estamos tornando o
mundo cada dia melhor” ), a arte recusou-se, mais ve
ementemente do que nunca, a lidar com ela, muito me
nos aceitou seus presentes corruptos, retirando-se ainda
mais em suas fantasias: neoclassicismo, romantismo, ex-
pressionismo, surrealismo, existencialismo.
O artista e o intelectual viram-se, individualmente,
tanto como um m em bro de um a elite invisível, de uma
intelligentsia, quanto como um “marginal” , misturando-se
com quem quer que fosse julgado a escória da socieda
de. Em ambos os casos, seja fazendo o papel de A risto
crata, seja o de Boêmio, ele estava à margem da socie
dade como um todo. Ser artista tinha-se tornado um ca
pricho. Sua crescente alienação do m undo a sua volta
— o novo mundo criado pela ciência era, sobretudo em
seus estágios primitivos, incrivelmente horrível, intensifi-
213
cando a necessidade dele de fugir para o mundo ideal
da arte — a falta de um a audiência, tudo isso o levou
a um a mística do “gênio”. Esperou-se do Gênio do Sótão
— mais parecido com um Saint Simeón ascético em seu
pedestal — que criasse obras-primas num vácuo. Mas
sua artéria de ligação com o mundo exterior tinha sido
cortada. Seu trabalho, cada vez mais impossível de ser
realizado, geralmente o compelia literalmente à loucura,
ou ao suicídio.
Preso num canto, sem nenhum outro lugar para
onde ir, o artista conseguiu iniciar um acordo com o
m undo moderno. Ele não serve para nada nesse mundo:
semelhante a um inválido, confinado durante muito tem
po, não conhece nada sobre o mundo: nem política, nem
ciência, nem sequer como viver ou amar. Até o momen
to, e mesmo agora, embora cada vez menos, a sublima-
ção, aquela deformação da personalidade, fora recomen
dável: era o único meio (se bem que indireto) de alcan
çar satisfação. M as o processo artístico quase que sobre
viveu à utilidade dela. E o preço dela é alto.
As primeiras tentativas para enfrentar o mundo mo
derno foram, na sua m aior parte, mal dirigidas. A Bau-
haus, famoso exemplo, fracassou em seu objetivo de su
p lantar um a irrelevante arte de cavalete (a morte desta
é indicada p or apenas algumas ilusões de óptica e cadei
ras com um ar de desigti), acabando num hibridismo,
nem arte nem ciência, e certamente não a soma das duas.
Seus planejadores falharam porque não compreenderam
a ciência nos próprios termos dela. P ara eles, que enxer
gavam através do modo estético antigo, ela era mera
m ente um novo tem a rico, a ser digerido totalm ente pelo
sistema estético tradicional. E ra como se alguém visse um
com putador apenas como um a série harmoniosamente
organizada de luzes e sons, escanando-lhe completamen
te a função propriamente dita. O experimento científico
não é apenas harmonioso, um a estrutura elegante, uma
peça adicional de um quebra-cabeça abstrato, alguma
coisa a ser usada na próxima colagem — embora os
cientistas também vejam, a seu próprio modo, a ciência
como essa abstração divorciada da vida. Ele tem um sen
214
tido intrínseco, real, próprio, semelhante, em bora não o
mesmo, à “presença” , ao “en-soi” da pintura moderna.
Muitos artistas cometeram o erro de tentar anexar a ciên
cia, de incorporá-la a sua própria estrutura artística, em
vez de usá-la para expandir esta estrutura.
Seria desolador o estado atual da cultura estética?
Não, Houve algumas evoluções na arte contemporânea.
Fizemos referência a como a tradição realista n a pintura
m orreu com o aparecimento da m áquina fotográfica. Esta
tradição tinha evoluído, num processo que durou séculos,
para um nível de ilusionismo, obtido com a pincelada,
que foi equivalente e até melhor — observe-se Bouge-
reau — do que a fotografia primitiva, considerada na
época apenas como um novo meio gráfico, como era o
caso da gravura em água-forte. O início da nova arte do
cinema se sobrepôs à tradição realista da pintura atin
gindo o clímax na obra de artistas como Degas, que
usou uma câmara em seu trabalho. Depois a arte realis
ta seguiu um novo curso. Ou se tornou decadente, aca
dêmica, desligada de qualquer mercado e significação,
p.ex., os nus que subsistem nas aulas de arte e nas ga
lerias de segunda categoria, ou ela foi fraturada pela
imagem expressionista ou surrelista, postulando um a rea
lidade interna alternativa ou um a realidade fantástica.
Contudo, enquanto isto, a jovem arte do cinema, basea
da num a síntese verdadeira dos M odos Estético e Tec
nológico (como tinha sido o próprio Em pirismo) levou
avante a tradição realista fundamental. E assim como a
ciência empírica frutificou com o casamento dos Princí
pios Feminino e Masculino, antes separados, assim tam
bém aconteceu com o cinema. Mas, ao contrário de ou
tros suportes estéticos do passado, ele destruiu a divisão
entre o artificial e o real, entre a cultura e a própria vida,
na qual o M odo Estético está baseado.
Outros desenvolvimentos relacionados com isso: a
exploração de materiais artificiais, p.ex., o plástico; a
tentativa de confrontar a própria cultura do plástico (pop
a rt); o esgotamento das categorias tradicionais de media
215
DIALÉTICA REVOLUÇÃO TRANSIÇÃO META FINAL
C L A SS IC A ÍN ASCEN Ç A M ODERNA
DA H ISTÓRIA ESCRITA < ----------------- ►
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( “Arte pela
AR TE E M Á G IC A P R IM IT IV A ...P R O F E C IA ....
ARTE A a rta ")
H IS T O R IA ' '
( média m istos) e das distinções entre arte e realidade
( “happenings", “environm ents"). Todavia, eu acho di
fícil chamar, sem reservas, de progressistas a estes últi
mos desenvolvimentos. A té agora eles produziram traba
lhos altam ente pueris e inexpressivos. O artista ainda não
sabe o que é a realidade, e muito menos como agir nela.
Xícaras de papel enfileiradas num a rua, pedaços de jor
nal lançados num terreno baldio, não im porta o núm ero
de críticas ponderadas que esses trabalhos consigam ti
rar da A rt News, continuam sendo um a perda de tempo.
A total inutilidade dessas tentativas desajeitadas corres
ponde ao grau de esgotamento das “belas”-artes, do qual
elas são sinais.
A fusão do M odo Estético com o M odo Tecnológi
co gradativamente sufocará por completo a elevada arte
“pura”. O prim eiro esgotamento das categorias, a rein-
corporação da arte com um a realidade (tecnologizada)
indica que estamos agora num período pré-revolucionário
de transição, no qual as três correntes separadas, a tec
nologia ( “ciência aplicada” ), a “pesquisa pura” e a mo
derna arte “pura” se fundirão, junto com as rígidas ca
tegorias sexuais que elas refletem.
A dualidade sexual da cultura ainda causa muitas
vítimas. Se até o cientista “puro”, p.ex., o físico nuclear
(sem falar do cientista “aplicado”, p.ex., o engenheiro)
sofre de um a “masculinidade” excessiva, tom ando-se au
toritário, convencional, emocionalmente insensível, inca
paz de compreender o próprio trabalho dentro do que-
bra-cabeça científico — e muito menos do cultural ou
do social — o artista, em termos da divisão sexual, incor
porou todos os desequilíbrios e padecimentos da perso
nalidade feminina: é temperamental, inseguro, paranóide,
derrotista, limitado. E a recente recusa em aceitar refor
ços da retaguarda (a sociedade em geral) exagerou enor
memente tudo isto. O “id” superdesenvolvido do artista
não deixa nada de quebra para contrabalançá-lo. E n
quanto que o cientista puro é “esquizo”, ou pior, total
mente ignorante da realidade emocional, o artista puro
216
rejeita a realidade por causa de sua falta de perfeição,
e, nos séculos m odernos, por causa de sua feiura.3
E quem sofre mais, o cego (cientista) ou o aleijado
(artista)? No plano cultural, tivemos em vista somente
a escolha entre um ou outro papel sexual. Ou a margi
nalidade social, levando à inibição, à introversão, ao der
rotismo, pessimismo, hiper-sensibilidade, e falta de con
tato com a realidade, ou um a personalidade “profissiona
lizada” partida, a ignorância emocional, as vistas estrei
tas do especialista.
CONCLUSÃO:
217
mos nos aproximando — acredito que chegaremos lá,
talvez dentro de um século, se a bola de neve dos co
nhecimentos empíricos não se despedaçar antes com a
sua própria velocidade — de um a revolução cultural,
bem como de um a revolução sexual e econômica. A re
volução cultural, assim como a revolução econômica,
deve predicar a eliminação do dualismo (sexual), que
está ria origem não só das classes, mas tam bém da divi
são cultural.
ORIGENS DA CULTURA
0
0
FJM DA CULTURA
218
conhecimento básico sobre o mundo real. Grandes como
foram, a cultura Estética e a Tecnológica, mesmo em
seus respectivos apogeus, nunca atingiram a universali
dade porque ou foram totalistas, mas divorciadas do
mundo real, ou obtiveram “progresso” à custa da esqui
zofrenia cultural e da falsidade e aridez da “objetivida
de”. O que precisam os ter na próxim a reyplução cultural
é a reintegração do Masculino (M odo Tecnológico) com
õ Feminino (M odo Estético). É criar um a cultura andró
gina, que vá além não só de cada um a dessas correntes
culturais tom adas individualmente, como tam bém da so
ma de sua integração. M ais do que um casamento, é pre
ciso a abolição das próprias categorias culturais, uma
anulação mútua, uma explosão m atéria-antim atériaj que
ponh a Tim à própria ploft! cultura.
Não sentiremos sua falta. Não precisaremos mais
dela. A essa altura, a hum anidade terá dominado com
pletamente a natureza, terá realizado seus sonhos na
realidade. Com a realização total do concebível no real,
não será mais necessário o substituto da cultura. O pro
cesso de sublimação, um desvio da realização dos dese
jos, dará lugar à satisfação direta na experiência, o que
hoje só é experimentado pelas crianças, ou pelos adultos
drogados.5 (E m bora os adultos norm ais “representem”
em graus variados, o exemplo que ilustra mais imedia
tam ente o nível intenso desta experiência futura é o ato
i—. f hippie
5. As tentativas recentes da cultura ■) jovem para voltar a
[ de drogas
esse estado de simplicidade — mesmo se nos tornarmos “dro
gados” por meios artificiais de estimulação química — estão
fadadas a fracassar. As pessoas desenvolveram camadas de re
pressão e de defesas, exclusivamente porque precisam viver em
nosso atual mundo real. Hoje, na melhor das hipóteses, só pode
mos chegar a uma “experiência direta” (“afetada e tímida”)
através do “escapismo”, ignorando o mundo real, por exemplo,
indo para o Colorado (por volta de 1878) com pessoas de men
talidade parecida, e esperando ansiosamente que não se interes
sem em jogar bombas ali. Isso é ingênuo — e reacionário, re
gressivo, aistórico, utópico, etc. — acima de tudo, porém, é
ineficaz.
219
sexual — ele vale zero num a escala de realização, pois
“não se pode m ostrá-lo”, mas sempre vale a pena de
alguma form a.) N ão será mais necessário o controle e o
adiamento da satisfação do “ id” pelo “ego” ; o id poderá
viver livremente. O prazer brotará diretamente no pro
cesso da experiência, no próprio ser e agir, em vez de
brotar da qualidade da realização. Quando o M odo Tec
nológico masculino puder, afinal, produzir na realidade
o que o M odo Estético feminino tinha imaginado, tere
mos eliminado a necessidade de qualquer um dos dois.
220
X. O FEMINISMO NA ERA DA ECOLOGIA
221
agora, pela primeira vez na História, a tecnologia criou
as precondições reais para vencer essas condições “na
turais” opressivas, juntam ente com seus reforços cultu
rais. No caso da nova ecologia, percebemos que, indepen
dentem ente de qualquer postura moral, exclusivamente
por motivos pragmáticos — de sobrevivência — tornou-
se necessário libertar a hum anidade da tirania de sua bio
logia. A hum anidade não pode mais permitir-se perm a
necer no estágio de transição entre a simples existência
animal e o controle total da natureza. E estamos, cer
tamente, muito mais próximos de um salto evolucionário
maior, no sentido de dirigir nossa própria evolução, do
que de uma volta ao reino animal, do qual nós viemos.
Assim, em termos da m oderna tecnologia, um mo
vimento ecológico revolucionário terá o mesmo objetivo
do movimento feminista: o controle da nova tecnologia
para fins humanos, o estabelecimento de um equilíbrio
“hum ano” proveitoso entre o homem e o novo meio-
ambiente que ele está criando, que venha substituir o
equilíbrio “natural” desfeito.
' Quais são as preocupações da ecologia que têm inte
resse direto para o movimento feminista? Discutirei bre
vemente dois temas da nova ecologia que têm um a liga
ção particular com o novo feminismo: a reprodução e
seu controle, incluindo a seriedade do problem a da ex
plosão demográfica e dos novos métodos de controle da
fertilidade, e a cibernética, o futuro encargo de funções
cada vez mais complexas legado às máquinas, alterando
a velha relação do homem com o trabalho e com os
salários.
Previamente fiz anotações detalhadas, escrevi regis
tros completos sobre a explosão demográfica, citando to
dos os tipos de estatística alarmantes sobre a m archa do
crescimento populacional. Mas, pensando bem, pareceu-
me que eu já tinha ouvido falar em tudo aquilo antes,
assim como todo mundo. Talvez, em função dos obje
tivos deste livro, fizéssemos melhor discutir porque estas
estatísticas são ignoradas tão consistentemente. Porque,
apesar dos pronunciamentos cada vez mais terríveis de
todos os especialistas nesse campo, poucas pessoas estão
222
x.
seriamente preocupadas com o problema. N a verdade,
a euforia pública e o laissez jaire parecem atualmente
crescer na proporção direta à necessidade de um a ação
imediata que previna um desastre futuro.
A relação entre as duas situações é direta. A inca
pacidade de enfrentar ou de ocupar-se do problem a cria
uma falsa segurança, cujo grau foi corroborado por recen
te pesquisa do Instituto Gallup (3 de agosto de 1968),
no qual, à pergunta “N a sua opinião, qual o problem a
mais urgente que a nação enfrenta hoje?” menos de 1%
da am ostra nacional de adultos interrogados mencionou
o problema da população. E contudo, para não dizer
que não citamos os especialistas em população, estas são
as palavras de Lincoln H . Day e de Alice Taylor Day
em seu livro Too M any Am ericans: “P ara suportar um
novo crescimento de 180.000.000 (m ais quarenta e qua
tro anos, no ritmo atu al), este país teria que sofrer mu
danças nas suas condições de vida tão radicais quanto
as que ocorreram desde Colombo.” E sta é a mais con
servadora das estimativas. A maioria dos demógrafos,
biólogos e ecologistas são consideravelmente mais pes
simistas. A todo momento são publicados livros sobre o
assunto, cada um com um a nova opinião sobre o terror
da explosão demográfica (Se tivéssemos nos reproduzido
na mesma velocidade desde a época de Cristo, agora
teríam o s.. . . Se continuarmos nessa velocidade, a fome
s e rá .. . no a n o . . . . Um núm ero x de ratos congestiona
dos num quarto produz um comportamento x y z . . . . ) .
Os títulos dos livros são Fom e Coletiva, 1975, A E xplo
são Populacional, e assim por diante. Os próprios cien
tistas estão em pânico. Diz-se que um conhecido biólogo
da Universidade Rockefeller deixou de falar com sua
própria filha depois do nascimento de sua terceira crian
ça. Seus alunos multiplicam-se, pondo a si próprios em
perigo.
Contudo, o público permanece convencido de que
a ciência pode resolver o problema. Um a razão pela qual
o homem da rua acredita tão ardentemente que “eles”
podem m anobrar o problem a — além da existência da
Mística do Feiticeiro, que insinua que “ eles” sempre pa-
223
recem encontrar um a resposta para tudo — é o fato de
a informação vir cuidadosamente filtrada do alto para
baixo. Por exemplo: o público só começou a tom ar co-^j
nhecimento da “revolução verde” quando os cientistas í
deixaram de acreditar nela, vendo-a como um a medida >
tapa-buraco para adiar a fome coletiva mundial até a
geração seguinte. M as, em vez de causar o alarme geral,
provocar a ação imediata, esta informação agiu como
um clichê.
/ O Milagre-da-Nova-Ciência é apenas um dentre todo
um estoque de argumentos, que continuam aflorando
incessantemente, apesar de serem refutados um sem-nú
mero de vezes. H á o argumento da Comida Excedente,
o argumento das Vastas-Extensões-de-Terra-Despovoa-
das, o argumento Econômico (a população aum enta a
capacidade de defesa, cf. o Boogy-Woogy) e muitos ou
tros mais, variando em sua sofisticação, de acordo com
o meio social de seus sugestores. Ê inútil argumentar —
e por isso eu não o farei aqui. Pois não se trata abso
lutamente de um problem a de corrigir a informação ou
j a lógica. O im portante é que h á alguma coisa além disso
Vque une todos estes argumentos. Que coisa é essa?
Por baixo de todos estes argumentos está o chauvi
nismo peculiar que se desenvolve na família. Nos capí
tulos anteriores discutimos alguns dos componentes dessa
psicoTôgíar a m entalidade patriarcal, preocupada exclusi
vamente com os próprios interesses e com a sua descen
dência, somente enquanto ela é a herdeira e a extensão
de seu ego, na sua busca individual de im ortalidade (por
que preocupar-se com o bem -estar social, se — que bela
frase — JNfa hora em que a grande catástrofe chegar
Você e os Seus estarão felizes?). Outros componentes
s ã c ffo chauvinismo do Nós-Contra-liles (o sãrigúè vale
m ais) ; a divisão entre o abstrato e o concreto, o públi
co e o privado (o que poderia ser mais abstrato e pú
blico do que um a estatística demográfica? o que poderia
ser'm ais privado e concreto do que nossa própria repro
d u ç ã o ? )^ a privatização da experiência sexual; a psico
logía 3o poder, e assim por diante.
224
v.
Infelizmente, os esquerdistas e os revolucionários
não são um a exceção a esta pseudopsicologia universal,
gerada pela família. Entregam -se excessivamente ao Nós-
Contra-Elesismo, apesar de agora ele estar invertido. Se
“Nós”, a classe superior e a intelligentsia com pretensões
intelectuais, argumenta que “É melhor não haver uma
redução no índice de nascimentos, senão a ralé e /o u os
débeis mentais predom inarão”, “Eles”, o “zé-povinho”
(ultimamente conhecidos como “lunatic fringe” *) opõem-
se paranoicam ente ao controle da natalidade — “Geno
cídio do Terceiro M undo e dos Indesejados em Casa” .
Este medo é bem fundado. Contudo, ele também é res
ponsável p o r uma falta de capacidade da Esquerda de
enxergar, por baixo dos efeitos prejudiciais do controle
da natalidade, um problem a ecológico genuíno, que ne
nhum número de argumentos fantasiosos e de estatísticas
forjadas pode apagar. É verdade que os governos capi
talistas imperialistas têm muitíssimo prazer em distribuir
planos de controle da natalidade entre o Terceiro M undo
ou entre os negros e os pobres dos U.S.A. (particular
mente entre as mães filiadas à Previdência Social, que
são freqüentemente cobaias das últimas experiências),
enquanto que, na sua própria casa, eles não se preocupam
por ter condenado um homem a dez anos de prisão por
que ele deu um a espuma anticoncepcional para uma alu
na de colégio misto jovem, branca e solteira. É verdade
que uma redistribuição das riquezas e das reservas do
mundo aliviaria enormemente o problem a — mesmo que
ela pudesse ocorrer amanhã. Mas o problem a ainda per
maneceria, porque ele existe independentemente da polí
tica e da economia tradicionais. Essas complicações po
líticas e econômicas são apenas agravantes de um legíti
mo problema de ecologia. U m a vez mais os radicais não
foram capazes de pensar com suficiente radicalidade. O
capitalismo não é o único inimigo, a redistribuição das
riquezas e das reservas não é a única solução, as tenta
tivas de controlar a população não são apenas um a Su
pressão do Terceiro M undo dissimulada.
225
Mas, geralmente, existe um erro mais sério: o uso
impróprio das conquistas científicas é muitas vezes con
fundido com a própria tecnologia. (M as será que as mi
litantes negras que advogam a fertilidade não controlada
para as mulheres negras admitem que elas próprias são
oneradas com ventres pesados e tantos meses de ama
mentação? Deduz-se que elas encontrem no controle da
natalidade algum auxiliar na m anutenção de seus progra
mas de pregação ativa.) Como foi demonstrado na queíP
tão do desenvolvimento da energia atômica, os radicais,
em vez de esbravejarem contra a imoralidade da pesqui
sa científica, foram muito mais eficientes concentrando
todas as suas energias em exigências de controle das des-»
cobertas científicas pelo e para o povo. Pois, assim como
a energia atômica, o controle da fertilidade, a reprodução
artificial e a cibernetização são, em si mesmos, libertado
res, a menos que sejam usados impropriamente.
Quais são os novos desenvolvimentos científicos re
lativos ao controle dessa reprodução perigosamente pro
lifera? Já existe mais e melhor controle da natalidade do
que nunca houve antes na História.1 A velha intervenção
“força-barra” na concepção (diafragmas, camisas-de-vê-
nus, espumas e geléias) foi apenas o início. Breve tere
mos um a compreensão perfeita de todo o processo re
produtor, em toda a sua complexidade, incluindo a sutil
dinâmica dos hormônios e de todos os seus efeitos no
sistema nervoso. O uso de anticoncepcionais orais feito
atualmente é apenas um estágio primitivo (im perfeito),
apenas um dentre os vários tipos de controle da fertili
dade em experimentação hoje. A inseminação e a ovula-
ção artificiais já são um a realidade. A escolha do sexo
do feto, a fertilização em proveta (quando o tempo de
vida do esperma dentro da vagina for totalmente com
preendido) estão a um passo. Várias equipes de cientis-
226
v
tas estão trabalhando no desenvolvimento de uma pla
centa artificial. A té a partenogênese — o parto virginal
— poderá ser desenvolvida muito breve.
Estão as pessoas, os próprios cientistas, preparadas
para qualquer um a dessas descobertas? Decididamente
não. Recente pesquisa de Harris, citada na revista Life,
representativa de uma ampla am ostra de americanos —
incluindo, p o r exemplo, fazendeiros de Iowa — revelou
um surpreendente núm ero de pessoas dispostas a consi
derar os novos métodos. O único empecilho estava em
que esses métodos só seriam levados em consideração
enquanto reforçassem e promovessem os valores atuais
da vida em família e da reprodução, p.ex., para ajudar
uma mulher estéril a ter um filho de seu marido. Q ual
quer questão que pudesse ser interpretada como sendo
um incentivo a um a “revolução sexual” era meramente
rejeitada como antinatural, de m odo categórico. Mas,
note-se que não foi o bebê de “tubo de vidro” que foi
tido como antinatural (25 por cento das pessoas con
cordou, sem hesitação, em usarem elas próprias este mé
todo, geralmente sob a condição de serem observadas as
precondições que descrevemos). Só o novo sistema d
valores, baseado na eliminação da supremacia do homer
e da família, é que foi visto como antinatural._______
É claro que, hoje, esta pesquisa na área da repro
dução está sendo impedida de se desenvolver por causa
do atraso cultural e dos preconceitos sexuais. O mesmo
acontece com a verba distribuída para tipos específicos
de pesquisa — os tipos de pesquisa já concluídos quan
do muito interessam apenas incidentalmente às mulheres.
P or exemplo, ainda é preciso justificar a pesquisa para
desenvolver um a placenta artificial, sob o pretexto de que
ela poderia evitar o nascimento prem aturo de crianças.
Assim, em bora seja tecnicamente muito mais fácil trans
ferir um embrião jovem do que um bebê já quase que
totalmente desenvolvido, todo o dinheiro vai para a últi
ma pesquisa. Ou, por outro lado, o fato de as mulheres
serem excluídas da ciência é diretamente responsável pelo
adiamento da pesquisa de anticoncepcionais orais para
os homens (será possível que se pense que as mulheres
227
são melhores cobaias por que são consideradas “inferio
res” pelos cientistas homens? Ou isso se dá exclusiva
mente porque os cientistas homens cultuam a fertilidade
jnasculina?) São muitos os exemplos desse tipo.
Os medos em relação aos novos métodos de repro
dução são de tal modo difundidos que, até há bem pouco
tempo, o assunto era ainda um tabu, fora dos círculos
científicos. Até mesmo várias mulheres do movimento de
libertação feminina (women’s lib) — e talvez especial
mente estas mulheres — têm medo de expressar qualquer
interesse sobre o assunto, para evitar que se confirmem
as suspeitas de todo mundo de que elas são “antinatu-
rais”. Assim, gastam grande quantidade de energia ne
gando serem contra a maternidade, ou a favor da repro
dução artificial, e assim por diante. Falando francamente:
A gravidez é uma barbaridade. E u não acredito,
como muitas mulheres dizem hoje, que a gravidez seja
vista como feia devido a perversões estritamente cultu
rais. A reação imediata da criança: “O que que aquela
Senhora G orda tem?”, a diminuição culpada do desejo
sexual do m arido; as lágrimas das mulheres diante do
espelho aos oito meses de gravidez — tudo isso são rea
ções instintivas, que não podem ser explicadas como há
bitos culturais. A gravidez é a deformação tem porária do
corpo do indivíduo, em benefício da espécie.
Além disso, o parto dói. E isso não é bom. H á três
mil anos atrás, as mulheres que tinham um parto “na
tural” não tinham necessidade de simular que a gravidez
era um a verdadeira viagem, um orgasmo místico (aquele
olhar longínquo). A Bíblia dizia: sofrimento e trabalho.
O êxtase era desnecessário: as mulheres não tinham esco
lha. Elas não ousavam dar gritos. Mas, finalmente, foi-lhes
possível gritar tão alto quanto quisessem durante as horas
do parto. E quando este terminava, e mesmo durante ele,
elas eram admiradas, dentro de um certo limite, por sua
coragem. O valor delas era medido pelo núm ero de crian
ças (filhos) que elas conseguiam suportar botar no mundo.
Hoje, tudo isso foi confundido. O próprio culto do
parto natural nos mostra como ficamos distante da ver
dadeira identidade com a natureza. O parto natural é
228
v
apenas mais um a faceta do reacionário R etorno-à-Natu-
reza hippie-rousseaniano, e tão forçado quanto cie. T al
vez a mistificação do parto o torne mais fácil na realidade
para a mulher comprometida. Os exercícios pseudo-iogas,
vinte mulheres grávidas respirando profundam ente sobre
o chão, pode ser até que ajudem algumas mulheres a de
senvolverem atitudes “ apropriadas” (como “eu nunca
mais berrei” ). O marido que se contorce à cabeceira da
cama, tal como acontece nas dores de parto empáticas
de membros certas de tribos ( “Veja como eu sofro com
você, querida!” ), pode fazer um a mulher sentir-se menos
só durante sua provação. Mas o fato permanece: o parto
é, na melhor das hipóteses, necessário e tolerável. Não
é divertido.
(É como fazer um cocô do tam anho de uma abóbo
ra, disse-me um amigo, quando eu lhe perguntei sobre a
Grande-Experiência-Que-V ocê-Está-Perdendo. O-que-há-
de-errado-em-cagar-cagar-pode-ser-agradável, diz a Es
cola (m asculina) da G rande Experiência. Dói, ela respon
de. Qual-o-problema-de-sentir-uma-pequena-dor-de-parto
se-ela-não-te-mata? responde a Escola. É chato, diz ela.
A-dor-pode-ser-interessante-como-experiência, responde a
Escola. Não é um preço muito alto que se paga por essa
experiência interessante?, diz ela. M as-você-ganha-uma-
recompensa, fala a Escola: um-bebê-todo-seu-para-você
foder-como-quiser. Bem, isto já é alguma coisa, diz ela.
Mas como eu posso saber se ele vai ser um homem,
como você?)
A reprodução artificial não é inerentemente desumani-
zante. De qualquer maneira, o exercício de uma opção po
derá tornar possível um reexame honesto do antigo valor
da maternidade. No momento, é fisicamente perigoso
para uma mulher declarar-se por princípio abertamente
contra a maternidade. Ela só escapará imune se acrescen
tar que é neurótica, anormal, que tem aversão a crianças,
sendo, portanto, “incapaz”. ( “Talvez mais ta rd e .. . quan
do eu estiver mais preparada.” ) Isto é apenas uma atmos
fera de inquisição livre. Até o tabu se dissipar, até que a
decisão de não ter filhos ou de não tê-los de um modo
“natural” seja considerado, pelo menos, tão legítima quan
229
to o parto tradicional, as mulheres estarão sendo coagi
das dentro de seus papéis femininos.
Um outro avanço científico que achamos difícil de ser
absorvido pelo nosso sistema tradicional de valores é o
início da cibernetização, o encargo de função de traba
lho assumido p or m áquinas que, brevemente, poderão
igualar ou superar o homem no pensamento e na solução
de problemas. E m bora seja possível argumentar, como
no caso da reprodução artificial, que essas máquinas mal
passaram do estágio especulativo, lembremo-nos de que
há apenas cinco ou dez anos atrás os especialistas pre
diziam qye cinco ou seis com putadores seriam suficientes
para suprir permanentem ente as necessidades de todo o
país.
A cibernetização, do mesmo modo que o controle da
natalidade, pode ser uma faca de dois gumes. Imaginá-la,
assim como a reprodução artificial, nas mãos dos poderes
atuais é o mesmo que imaginar um pesadelo. É preciso
não "aperfeiçoar. Todo mundo está familiarizado com
1 9 8 4 : com a crescente alienação das massas, com o inten
sificado papel da elite (talvez cibem etista), com as fá
bricas de bebês, a crescente eficiência governamental (o
G rande Irm ão ), e assim por diante. Nas mãos da socie-
dade atual não hâ dúvida de que a m lquina poderia ser
usada — e o está sendo — para intensificar o aparelho
da repressão e para intensificar o poder estabelecido.
Mas, por outro lado, como no caso da exploração
demográfica e do controle da natalidade, a distinção entre
o uso impróprio da ciência e o valor da própria ciência,
em geral, não é deixada clara. Nesse caso, em bora talvez
a reação possa não ser tão histérica e evasiva, nós ainda
geralmente tendemos mais a um a concentração pouco
imaginosa nos males da própria máquina, do que a um
reconhecimento de seu significado revolucionário. São
abundantes os livros e pesquisas a respeito de como evi
tar 1984 (p.ex., Privacidade e Liberdade, de Alan Wes-
to n ). M as existem muito poucas reflexões sobre como
lidar efetivamente com as mudanças qualitativas no estilo
de vida que a cibernetização trará.
230
Os dois temas do controle demográfico e da cihcr-
netização geram o mesmo tipo de resposta nervosa e su
perficial, porque em ambos os casos o problema básico
não tem precedentes. Trata-se de m udanças qualitativas
nas relações básicas de produção e reprodução da hum a
nidade. Precisaremos quase que de pernoitar para poder
mos lidar com os profundos efeitos do controle da ferti
lidade e da cibernetização, uma nova cultura baseada numa
redefinição radical das relações humanas e do lazer para
as massas. P ara redefinir de um m odo tão radical nosso
relacionamento com a produção e a reprodução é preciso
destruir simultaneamente o sistema de classes, assim como
a família. Estarem os além de discussões do tipo “quem
vai ganhar o pão” — ninguém vai ganhar o pão, porque
ninguém estará “trabalhando”. A discriminação em fun
ção do emprego não terá mais nenhum fundamento para
existir num a sociedade, na qual as máquinas executam o
trabalho melhor do que seres humanos de qualquer ta
manho ou habilidade. Assim, as máquinas poderiam agir
como equalizadores perfeitos, destruindo o sistema de
classes baseado na exploração do trabalho.
Qual poderia ser o impacto imediato da cibernetiza
ção sobre a posição das mulheres? Resumidamente, pode
mos predizer o seguinte: 1) Em bora inicialmente a auto
mação continue a prover novos empregos para as m ulhe
res, p.ex., operador de perfuração, program ador de com
putadores, etc., essas posições provavelmente não durarão
muito (precisam ente porque as mulheres, a força de traba
lho transitória por excelência, são procuradas para preen-
chê-las). Finalmente, esses controles especializados de
máquinas darão lugar a um conhecimento de seu controle
usual e mais difundido e, ao mesmo tempo, nos níveis mais
altos, a um conhecimento especializado e intensificado de
suas funções mais complexas, dominado por um a nova
elite de engenheiros, os cibernetizadores. Os tipos de tra
balho em que as mulheres foram bem-vindas, situados
nos níveis mais baixos dos serviços de escritório, também
serão cibernetizados. Ao mesmo tempo, os trabalhos do
mésticos serão automatizados de um modo mais comple
to, reduzindo ainda mais as funções de trabalho legiti-
231
m ám ente femininas. 2 ) A erosão do status do “ cabeça da
casa”, particularm ente na classe proletária, pode abalar
ainda mais profundam ente a vida fam iliar e os papéis se
xuais tradicionais. 3 ) Crescerá a grande inquietação dos
jovens, dos pobres, e dos desempregados. Como os tra
balhos se tornarão mais difíceis de conseguir, e não haverá
um am ortecimento do choque cultural através de educa
ção para o lazer, o ferm ento revolucionário provavelm en
te se tornará primordial. Assim, no todo, a cibernetização
poderá agravar a frustração que as mulheres já sentem em
seus papéis, impelindo-as à revolução. J
U m a revolução feminista poderá ser o fator decisi
vo no estabelecimento de um novo equilibrio ecológico.
A atenção dada à explosão demográfica, o deslocamento
de ênfase da reprodução para o controle da natalidade, e
as exigências de um desenvolvimento total da reprodução
artificial proporcionarão uma alternativa para as opres
sões da familia biológica. M udando as relações do homem
com o trabalho e com os salários, e substituindo o tra
balho pela diversão (atividade feita em seu próprio bene
fício), a cibernetização perm itirá um a redefinição total
da economia, incluindo a atividade familiar e sua capaci
dade econômica. A dupla maldição, de que o homem terá
que cultivar o solo com o suor de seu rosto e de que a
mulher deverá suportar as dores e o trabalho do parto, se
rão dissipadas pela tecnologia, para tornar o viver hum ano
pela prim eira vez um a possibilidade. O movimento fe
minista tem a missão essencial de criar uma aceitação cul
tural para o novo equilíbrio ecológico necessário à sobrevi
vência da raça hum ana no século XX.
232
CONCLUSÃO
A REVOLUÇÃO DEFINITIVA
1. Imperativos Estruturais
233
rada para o trabalho — geralmente admitindo-se os as
pectos escravizantes disso, mas certamente também todos
os aspectos criativos.
Essa divisão natural do trabalho continuou somente
à custa de um grande sacrifício cultural: os homens e as
mulheres desenvolveram apenas uma metade de si mes
mos, em prejuízo da outra metade. A divisão da psique
em psique masculina e feminina, estabelecida com o fim
de reforçar a divisão em função da reprodução, resultou
trágica. A hipertrofia nos homens do racionalismo, do
impulso agressivo e a atrofia de sua sensibilidade emo
cional representaram um desastre tanto físico (guerra),
quanto cultural. O emocionalismo e a passividade das
mulheres aumentou seu sofrimento (não podemos nos re
ferir a elas de um modo simétrico, já que elas foram
vitimadas pela divisão como um a classe). Sexualmente,
os homens e as mulheres foram canalizados para um a he-
terossexualidade altamente organizada — no tempo, no
lugar, no procedimento, e até no diálogo — e restrita
aos genitais, em vez de espalhada pelo corpo inteiro.
Proponho, então, que a prim eira exigência para qual
quer sistema alternativo deva ser:
1) A libertação das mulheres da tirania de sua bio
logia reprodutora, através de todos os meios disponíveis,
e a distribuição do papel de nutrição e educação das
crianças entre a sociedade como um todo, tanto entre os
homens, quanto entre as mulheres. H á muitas etapas nis
to. Já existe um a aceitação (conseguida com dificuldade)
do “planejamento fam iliar”, ainda que não da contra
cepção em si mesma. São iminentes as propostas de cre
ches que atendam durante o dia, talvez até durante vinte
e quatro horas, com equipes mistas. Mas, na minha opi
nião, tudo isso é tímido como um a transição, se não for
totalmente inútil. Estamos falando de um a mudança
radical. E apesar de, na verdade, ela não poder surgir
de repente, os objetivos radicais devem ser o tempo todo
mantidos em vista. As creches liberam as mulheres. Ali
viam uma opressão imediata, mas não se pergunta por
que essa opressão é feita sobre as mulheres.
234
No outro extremo se situam as soluções mais dis
tantes, baseadas nas potencialidades da embriologia mo
derna, i.e., a reprodução artificial, possibilidades ainda
tão aterrorizantes que raram ente são discutidas com se
riedade. Vimos que o medo é, até certo ponto, justificá
vel: nas mãos da sociedade atual e sob o controle dos
cientistas de hoje (poucos dos quais são mulheres ou
mesmo fem inistas), qualquer tentativa de usar a tecno
logia para “libertar” alguém é suspeita. M as estamos pre
parando-nos para falar sobre sistemas especulativos, e,
para os fins de nossa discussão, devemos supor que haja
flexibilidade e boas intenções nos que estão elaborando
a mudança.
Assim, libertar as mulheres de sua biologia signifi
caria am eaçar a unidade social, que está organizada em
tom o da reprodução biológica e da sujeição das mulheres
ao seu destino biológico, a família. Nossa segunda exi
gência surgirá também como um a contestação básica à
família, desta vez vista como um a unidade econômica:
2) A total autodeterminação, incluindo a indepen
dência econômica, tanto das mulheres, quanto das crian
ças. P ara atingir esta m eta serão necessárias mudanças
fundamentais em nossa estrutura social e econômica. É
por isso que precisamos falar de um socialismo feminista.
No futuro imediato, sob a orientação do capitalismo, na
melhor das hipóteses poderá ocorrer um a integração de
rivativa das mulheres na força de trabalho. Isto porque
se descobriu nas mulheres um suprimento de mão-de-
obra altamente especializado e transitório, extremamente
útil e barato,1 sem mencionar o valor econômico de sua
função tradicional, a reprodução e a educação das crian
ças, um trabalho para o qual elas recebem regalias de
235
seus patrões, mas não são pagas. Mas estas são funções
econômicas essenciais, sejam elas reconhecidas ou não
oficialmente. As mulheres, nessa condição atual, são os
verdadeiros alicerces da superestrutura econômica, vitais
para a existência desta.2 As odes à abnegação da m a
ternidade encontram um fundamento na realidade: a M ãe
é vital para o american way of life, bem mais do que a
torta de maçãs. E la é um a instituição sem a qual o sis
tema realmente se desintegraria. Nos termos capitalistas
oficiais, a fatura p or seus serviços econômicos3 pode
custar tão alto quanto um quinto do produto nacional
bruto. M as o pagamento não é a solução. Pagá-la, como
é freqüentem ente discutido na Suécia, é um a reforma
que não contesta a divisão fundam ental do trabalho, e,
conseqüentemente, nunca poderia erradicar as desastrosas
236
conseqüências psicológicas e culturais desta divisan dn
trabalho.
Quanto à independência econômica das crianças, tra
ta-se realmente de um sonho, até agora não realizado cm
nenhum lugar do mundo. E, no caso das crianças, tam
bém estamos falando de mais do que de um a justa inte
gração na força de trabalho; falamos da abolição da pró
pria força de trabalho sob um socialismo cibernético, da
reestruturação radical da economia de m odo que o “tra
balho”, i.e., o trabalho assalariado não seja mais rele
vante. Em nossa sociedade pós-revolucionária, tanto os
adultos quanto as crianças seriam atendidos nas suas ne
cessidades de subsistência, independentemente de suas
contribuições sociais, no primeiro caso na História de
um a distribuição justa de riqueza.
Com isso atacamos a família num a frente dupla,
contestando aquilo em torno de que ela está organizada:
a reprodução das espécies pelas mulheres, e sua conse
qüência, a dependência física das mulheres e das crian
ças. Elim inar estas condições já seria suficiente para des
truir a família, que produz a psicologia de poder. C ontu
do, nós a destruiremos ainda mais.
3) A total integração das mulheres e das crianças
em todos os níveis da sociedade. Todas as instituições
que segregam os sexos, ou que excluem as crianças da
sociedade adulta, p.ex., a escola m oderna, devem ser
destruídas.
Estas três exigências afirmam um a revolução femi
nista baseada na tecnologia avançada. E, se as distinções
culturais entre hom em /m ulher e adulto/criança forem
destruídas, nós não precisaremos mais da repressão se
xual que m antém estas classes díspares, sendo pela pri
meira vez possível um a liberdade sexual “natural”. Assim
chegaremos à:
4) Liberdade para todas as mulheres e crianças usa
rem a sua sexualidade como quiserem. Não haverá mais
nenhuma razão para não ser assim. (Razões passadas:
a sexualidade plena ameaçava a continuidade da repro
dução necessária para a sobrevivência humana, e, assim,
a sexualidade tinha que ser restringida, através da reli-
237
gião e de outras instituições culturais, a fins reproduto
res, sendo todo o prazer sexual não-reprodutor conside
rado um desvio, ou coisa pior; a liberdade sexual das
mulheres poderia colocar em dúvida a paternidade da
criança, ameaçando assim o patrim ônio; a sexualidade
infantil tinha que ser reprimida porque constituía uma
ameaça ao precário equilíbrio interno da família. Estas
repressões sexuais cresceram em proporção ao grau de
exageração cultural da família biológica.) Em nossa nova
sociedade, a hum anidade poderá finalmente voltar a sua
sexualidade natural “polimorfamente perversa” — serão
permitidas e satisfeitas todas as formas de sexualidade.
A mente plenam ente sexuada, realizada no passado ape
nas em alguns indivíduos (sobreviventes), tornar-se-ia
universal. A realização cultural, feita artificialmente, não
seria mais a única via para a auto-realização sexual. Nós
poderíam os nos realizar plenam ente então, simplesmente
no processo de ser e agir.
2. Medos e Considerações
238
o subjetivo com o objetivo, o emocional com o racional
— o princípio feminino com o masculino.
Quais são os principais componentes desta resistên
cia que está impedindo as pessoas de experimentarem
alternativas para a familia, e de onde vem essa resistên
cia? Estam os todos familiarizados com os detalhes do
Admirável M undo Novo: frias organizações coletivistas,
onde o individualismo é abolido, o sexo, reduzido a um
ato mecánico, onde as crianças se tom am robôs, o G ran
de Irmão se introm ete em todos os aspectos da vida pri
vada, onde existem filas de bebés alimentados por m á
quinas impessoais, um a eugenia m anipulada pelo Estado,
o genocidio dos inválidos e dos retardados em beneficio
de um a super-raça criada por técnicos de avental branco,
onde toda emoção é considerada fraqueza, o am or é des
truido, e assim por diante. A familia (que, apesar da
opressividade do poder do estado, é no momento o últi
mo refúgio deste poder abusivo, um abrigo que supre o
pouco de calor emocional, de privacidade e de conforto
individual viáveis agora) será destruída, deixando o medo
penetrar dentro de casa.
Paradoxalm ente, um a das razões pelas quais o Pe
sadelo, de 1984 ocorre tão freqüentem ente é o fato 49
ele originar-se diretam ente dos males de nossa cultura su-
grémacista masculina atuai, representando um. exagero
dela. Por exemplo, muitos de seus detalhes são tirados
âiretam ente dos orfanatos e das instituições públicas, para
crianças dirigidas pelo Estado.4 O Pesadelo é o resultado
239
direto da tentativa de imaginar um a sociedade na qual
as mulheres tornaram -se iguais aos homens, aleijadas de
modos idênticos, destruindo-se assim um equilíbrio deli
cado de interdependências.
Contudo, estamos sugerindo o oposto; em vez de
concentrar o princípio feminino num refúgio “privado” ,
no qual os homens, como patos, periodicam ente “mer
gulham na água” para descansar, em vez disso queremos
reespalhá-lo — criando pela prim eira vez a sociedade de
baixo para cima. O difícil triunfo do homem sobre a n a
tureza tornou possível restaurar o verdadeiramente natu
ral: ele poderia invalidar as maldições de Adão e de
Eva, e restabelecer o Jardim do Eden n a Terra. Mas,
em seu longo afã, a imaginação lhe foi sufocada: ele
teme um aumento de sua lida com a incorporação da
maldição de Eva à sua própria maldição.
240
M as existe um a razão mais concreta pela qual essa
t imagem subliminar de horror funciona no sentido de des
truir as sérias considerações do feminismo: o malogro
das experiências sociais do passado. Os experimentos ra
dicais, quando aconteceu de solucionarem os problem as
( totalmente, criaram um a série de problem as inteiramente
novos — e não necessariamente m elhorada — em seu
lugar. Lancemos um breve olhar sobre alguns destes ex
perim entos radicais, a fim de determ inar as causas de
seu fracasso — porque eu acredito que o fiasco não foi
de m odo algum surpreendente, dados os postulados ori
ginais do experimento, e seu contexto social específico.
Podemos depois usar essa informação como um a pauta
negativa nova e valiosa, que nos instrua sobre o que mais
deve ser evitado em nosso próprio programa.
O mais im portante malogro de todas as experiências
sociais modernas foi o das comunas russas. (O fracasso
da Revolução Russa é, em geral, um espinho na vida de
todo partido radical; mas raram ente é observada a rela
ção direta entre a sua frustração e a das com unas.) Isto
levou, ironicamente, à suposição de existência de um a
conexão causai entre a abolição da família e o desenvol-
( vimento de um estado totalitário. Nessa visão, a reinsti-
tuição do sistema da família nuclear, feita posteriorm ente
pela Rússia, é vista como uma tentativa desesperada de
recuperar os valores humanistas —■a privacidade, o indi
vidualismo, o amor, etc., naquela altura em rápido de
saparecimento.
M as trata-se do oposto: O fracasso da Revolução
Russa se atribui diretamente à derrota de suas tentativas
para eliminar a família e a repressão sexual. Este fra
casso, por sua vez, como vimos, foi causado pelas limi
tações de um a análise revolucionária de óptica masculi
na, fundam entada exclusivamente em classes econômicas,
que não considerou em nenhum momento a família na
sua função de unidade econômica. A lém disso, todas as
( revoluções sociais até esta data malograram ou malogra
rão precisamente por estas razões. Qualquer liberação
inicial, sob o socialismo atual, deverá sempre reverter à
repressão, porque a estrutura da família é a fonte da
241
opressão psicológica, econômica e política. As tentativas
socialistas de suavizar a estrutura de poder dentro da fa
mília, através da incorporação das mulheres na força de
trabalho ou no exército, não passam de reformistas. As
sim, não é um a surpresa o fato de o socialismo, como
ele é hoje constituído nas várias partes do mundo, não (
só não representar nenhum a melhoria em relação ao ca
pitalismo, como ser freqüentem ente pior do que ele.
Assim se desenvolve um componente im portante da
imagem do Pesadelo: a destruição da família, o último
refúgio da intimidade, do conforto, da privacidade, do
individualismo, etc., e a intrusão total da economia da
superestrutura em todos os aspectos da vida, a convoca
ção das mulheres para um mundo masculino, em vez da
eliminação total das distinções de classes sexuais. Pelo
fato de nenhum a medida ter sido tom ada para restabele
cer o elemento feminino no m undo exterior, para incor
porar o “privado” no “público” , e ainda porque o prin
cípio feminino foi menosprezado ou eliminado, em vez
de ser difundido de modo a hum anizar a sociedade, o !
resultado foi um horror.
Wilhelm Reich, em seu livro A Revolução Sexual,
sintetizou as razões objetivas específicas do fracasso das ¡
comunas russas, num a das melhores análises já feitas até
hoje:
1) Confusão dentro da liderança e evasão do pro
blema.
2 ) A árdua tarefa de reconstrução geral, dados o
atraso cultural da Velha Rússia, a guerra e a fome
coletiva.
3) F alta de Teoria. A Revolução Russa foi a pri
meira de seu gênero. Nenhuma tentativa foi feita para
lidar com os problemas emocionais-sexuais-familiais exis
tentes na formulação da teoria revolucionária fundamen
tal. (O u, nos nossos termos, houve falta de um “ aumen
to de consciência” relativo à opressão das m ulheres/crian
ças e falta de um a análise feminista radical, antes da |
própria revolução.)
4 ) A estrutura psicológica sexual-negativa do indi
víduo, criada e reforçada através de toda a História pela
242
família, impediu a liberação do indivíduo dessa mesma
estrutura. Como propõe Reich:
243
tensamente com seus pais genéticos (ouvem-se repetida
mente as palavras “Em m a Sheli”, “A bba Sheli”, “Minha
m ãe”, “M eu pai” , no mesmo tom em que toda criança
em todo quarteirão dos E U A diz: “Se você não fizer isso
eu vou falar com meu pai” , ou “M inha mãe vai te ba
ter” ). Os laços familiares permanecem fortes, ainda que
suas piores conseqüências sejam evitadas.
Acima de tudo, as crianças ainda são segregadas,
tendo até facilidades, fazendas, horários de refeição e ati
vidades especiais. O conceito de infância permanece, in
cluindo as atividades próprias a ela. O ensino segue o
modelo europeu, ainda que alguns de seus piores aspec
tos, como a graduação, tenham sido eliminados. As salas
de aula se mantêm, na proporção de um adulto para
vinte crianças, sendo ainda o seu objetivo final a apro
vação do adulto, em vez da aprendizagem em si mesma.
Os modelos de papel sexual são adotados vigorosa
mente, a segregação sexual não foi eliminada (há b a
nheiros diferentes para homens e mulheres) e a hom o ou
a bissexualidade são tão desconhecidas que, quando eu
trouxe o assunto à baila, várias mulheres saíram da sala
em sinal de protesto. A pesar dos rumores em contrário,
o kibbutz é cada vez mais conservador em relação ao
sexo (é em baraçante para um a mulher solteira pedir pí
lulas anticoncepcionais, e as doenças venéreas são con
sideradas um a vergonha), e qualquer união que não seja
a união a-longo-prazo com um parceiro aprovado social
mente é vista com maus olhos. A sexualidade no kibbutz
continua sendo estruturada de m odo convencional, pou
co diferente da sexualidade da sociedade em geral. O
tabu do incesto e suas conseqüências simplesmente foram
estendidos da família ao grupo que a substitui.
N a verdade, o kibbutz não representa um a expe
riência radical, mas um comunalismo limitado, instituído
para fins agrícolas específicos ulteriores. O kibbutz não
é nada mais do que um a comunidade de pioneiros da
lavoura, forçados a sacrificar tem porariam ente as estru
turas sociais tradicionais para se adaptarem a um con
junto de condições específicas nacionais. Se e quando
estas condições mudarem, o kibbutz voltará ao “norm al”.
244
Por exemplo: no kibbuíz de extrema esquerda cm que
eu fiquei, as mulheres preocupavam-se em exigir co/i
nhas particulares adicionais à da comunidade, que servia
refeições seis vezes ao dia. Elas ainda estavam confiadas
ao papel da Esposa Perfeita, mas não dispunham das
condições apropriadas para desempenhá-lo. Seu interesse
pelas roupas, moda, maquilagem, charme, não muito fá
cil de saciar, parecia e na verdade era a aspiração da
moça da roça pelos vícios da cidade grande — tanto
mais intensa na fantasia porque difícil de se realizar na
prática. Atravessando a seção residencial do kibbutz, ao
início do entardecer, eu poderia sem nenhum esforço
imaginar que estava caminhando por um subúrbio tran
qüilo ou p or um a cidadezinha dos EUA. As casas p a
dronizadas são cuidadas com a atenção das propriedades
privadas de qualquer pequeno burguês, com a mesma
decoração zelosa dos apartam entos. (O retom o à pro
priedade me foi justificado como sendo “apenas realis
ta”. Anteriormente os membros do kibbutz tinham re
partido entre si até as próprias roupas, mas logo ficaram
saturados.) A propriedade ainda é um a im portante ex
tensão do self — porque as crianças ainda são um a pro
priedade. A fila dos Pequenininhos seguindo a Super-
M ãe num passeio fora da Casa das Crianças é igual a
todos os jardins-de-infância de todo o mundo. As crian
ças ainda continuam oprimidas.
É extraordinário que, apesar da falta de radicalismo
da experiência do kibbuíz, ela tenha funcionado tão bem.
Os resultados proporcionais ainda que de um enfraqueci
mento apenas da divisão do trabalho, da mentalidade de
propriedade, da família nuclear, da repressão sexual, etc.
são espetaculares. M inha impressão foi de que as crian
ças eram física, mental e emocionalmente mais saudáveis
do que as crianças que viviam na estrutura familiar ame
ricana; que não eram mais amistosas e generosas, com uma
grande curiosidade pelo m undo exterior; que seus pais
não eram tão nervosos e briguentos, conseqüentemente
capazes de m anter melhores relações com elas; e que sua
245
criatividade e individualidade eram incentivadas tanto
quando era possível de serem custeadas pela comunidade.6
Uma outra experiência, limitada porém mais elogia
da do que esta, que produziu bons resultados de um
modo desproporcionado, é Summerhill, de A. S. Neill.
No famoso livro sobre sua pequena escola experimental
ao norte da Inglaterra, intitulado Summerhill: A Radical
Approach to Childrearing (um livro obrigatório na estan
te de todo pai liberal digno, radical, boêmio, e /o u uni
versitário), ele descreve a transição das crianças normais
para crianças “livres” que se autodirigem. Mas Summer-
hill não é um enfoque “radical” sobre a educação das
crianças — é um enfoque liberal. Neill, um a espécie de
diretor de escola benevolente e honesto, em vez de um
verdadeiro inovador social,7 construiu um pequeno refú
gio para aquelas vítimas de nosso sistema atual, cujos
pais tinham o dinheiro e a visão liberal necessários para
m andá-las para lá. Dentro deste abrigo, as crianças são
poupadas dos efeitos mais prejudiciais do autoritarismo
existente na estrutura familiar. H á um a aparência de !
igualdade entre as crianças e os que dirigem o lugar (o
voto de Neill conta como sendo somente um, embora
eu imagine que num a crise real a decisão não seja deter
minada por voto. Em todo caso, as crianças sempre sa
bem quem é o chefe, por mais benevolente que ele seja),
e a educação obrigatória é abrandada; em bora as crian
ças aprendam somente quando querem, a estrutura das
aulas, ainda que mais flexível, permanece inalterada. Ape
sar da m asturbação não ser vista com maus olhos, cer
tam ente as relações sexuais não são incentivadas (afinal,
observa Neill, com muita propriedade, “eles” fechariam
246
v.
a escola). E o que é pior: os papéis sexuais não come
çaram a ser eliminados,8 o que estaria um pouco além
dos objetivos desta experiência, visto que as crianças já
estão psicossexualmente form adas pela familia na época
em que entram na escola, aos cinco anos de idade ou
mais. Em todos os aspectos — psicológico, sexual, edu
cacional — temos então apenas um abrandam ento de
alguns dos mais severos aspectos do sistema.
O problem a não foi atacado em suas raízes. Legal
mente, as crianças ainda estão sob a jurisdição dos pais,
que podem fazer delas o que quiserem. (E as crianças
não podem encomendar pelo correio pais do tipo dos
que as enviarão para Summerhill.) Neill queixa-se con
tinuam ente dos pais, que podem desfazer todo o seu tra
balho nas férias, ou arrastar os filhos para fora da esco
la, no momento em que os piores efeitos da vitimação
tiverem desaparecido. Ele tem medo do poder deles so
bre si mesmo. Afinal, ele está às suas ordens: se não
247
estão satisfeitos com O Produto, os “eles” obscuros ainda
têm a palavra final. Mesmo quando acontece serem os
pais seguidores devotos da filosofia de Summerhill,9 eles
incomodam com as suas constantes visitas e perguntas.
As crianças têm que se acostum ar a viver num zoológico,
entre os dois, os visitantes admirados e os investigadores
cheios de dúvidas (incluindo todo um exército de inves
tigadores oficiais), o que constitui um a m udança ínfima
em seu status habitual de objeto.
E como poderia deixar de ser assim? Summerhill é
um refúgio isolado, onde as crianças estão ainda mais
— e não menos — segregadas dos adultos e até da vida
da cidade. E a escola depende totalmente, até p ara exis
tir, da boa vontade dos pais legais e dos doadores libe
rais. E la não passa de um a comunidade auto-suficiente
com um a economia própria e, conseqüentemente, está
propensa a se tornar um acam pam ento que funciona du
rante o ano todo para atender a crianças-problema, cujos
pais foram arrastados para o liberalismo como um últi
mo recurso. Pelo fato de as crianças serem muito mais
numerosas do que os adultos, e constituírem a razão cen
tral da existência de todo o projeto, seus desejos e opi
niões são observados e “respeitados” mais do que na
m aioria dos outros lugares no mundo, mas trata-se de
um respeito artificial, sem bases num a verdadeira inte
gração em um a comunidade legítima.
248
E se, só cora essas reformas superficiais, as crianças
já mostram um comportamento notavelmente aperfeiçoa
do, sendo substituídas a sua agressão, repressão e hostili
dade pela cortesia autêntica, pela liberalidade psicológica
e pela honestidade, imagine-se então o que poderíamos
esperar sob condições verdadeiram ente revolucionárias.
Um estudo detalhado destas e de outras experiên
cias, feito a partir de um ponto de vista femininista radical
constituiria um a contribuição valiosa p ara a teoria femi
nista. Fom os breves por necessidade. Discutimos algumas
das mais importantes experiências sociais modernas, em
primeiro lugar para m ostrar que elas não preenchem as
quatro condições mínimas apresentadas por nós para uma
revolução feminista.
Sintetizemos as causas do fracasso:
1) Os laços especiais das mulheres com a reprodu
ção biológica e a educação das crianças, que levam a
um a divisão desigual do trabalho, ao estabelecimento de
classes baseadas no sexo, à psicologia do poder e a outros
males, nunca foram rompidos. Os papéis femininos fo
ram ampliados, em vez de redefinidos. As mulheres po
dem ter sido (parcialm ente) integradas n a economia mas
culina da superestrutura, e isto geralmente só para preen
cher um a necessidade de trabalho específica e usualmente
transitória, mas nunca o papel feminino foi difundido
pela sociedade como um todo. Assim, as mulheres con
servaram seus antigos papéis e, em alguns casos, m era
mente acrescentaram um papel novo a estes.
2 ) Em alguns casos, como em Summerhill, a expe
riência dependia da economia — e da boa vontade —
de um a comunidade (repressiva) mais ampla, e conse
qüentemente era parasitária, e de fundamentos fracos.
Contudo, naquelas comunidades que tinham o socialismo
na base de sua experiência o problem a não foi tanto este.
As crianças das comunas e do kibbutz sentem-se tão de
pendentes da comunidade em geral quanto de qualquer
pessoa específica. Freqüentem ente elas participam até do
trabalho produtivo. Essas experiências só são ainda falhas
n a divisão do trabalho, e isto, sabemos, deriva de outras
razões.
249
3) A contínua segregação das crianças e um a falta
de reestruturação radical da escola ou de dar um fim
nela. Os métodos de segregação têm variado, desde o ex
trem o dos orfanatos do tipo quartel, até a sua versão
mais liberal, o acampamento isolado de um Summerhill,
ou de um a Beit Yeladim , a Casa das Crianças do kibbutz.
Mas, apesar de seu impacto destrutivo poder ter sido
amortecido, em nenhuma circunstância foi discutido o
conceito de infância, ou foi abandonado completamente
o aparato da infância (a escola moderna, as roupas espe
ciais para crianças, etc.).
4 ) A repressão sexual continuou a atuar, em parte
por causa do fracasso em cortar as conexões especiais
existentes entre as mulheres e as crianças, e em parte
porque os pioneiros não foram capazes de superar suas
próprias estruturas “sexuais negativas” .10
5) Não houve o desenvolvimento de um a consciên
cia e de um a análise feminista, anteriores ao início da
experiência. O melhor exemplo dessa deficiência são nos
sas experiências comunais americanas, feitas atualmente,
que meramente expandem a estrutura da família de modo
a incluir um m aior número de pessoas. A divisão do tra
balho permanece atuando, porque não foi questionado o
papel da mulher junto ao berço (d a criança) ou junto
à cozinha, nem o papel do homem como provisor. E,
um a vez que a relação “m ãe/filho” permanece intacta,
não é de surpreender que, quando acontece um a comuna
se dissolver, desapareçam todos os “padrinhos” , bem
como o próprio pai genético, deixando a mãe engasgada
— sem sequer a proteção de um casamento normal.
Assim, nunca houve um exemplo verdadeiro de uma
associação ampla de mulheres e crianças na sociedade
250
v.
em geral. A experiência social moderna, semelhante ao
estágio m atriarcal da história hum ana, significa apenas
um afrouxamento relativo dentro do movimento mais
amplo em direção à consolidação da supremacia masculi
na através da História. Ela nunca alterou a condição
fundamental de opressão sexual. Alguns benefícios que
reverteram para as mulheres e as crianças foram inciden-
tais diante dos outros objetivos sociais — que, eles pró
prios, foram dificultados pelo vasto e irreconhecível subs
trato da opressão sexual. Porque sua ideologia não estava
fundada nas quatro mínimas premissas feministas afirma
das anteriormente, estas experiências nunca chegaram a
realizar sequer os objetivos democráticos mais limitados
que seus teóricos (hom ens) e líderes haviam predito.
Contudo, seu êxito dentro de esferas limitadas mostra
que a unidade da família biológica é receptiva à m udan
ça. M as teremos que controlar totalmente as suas insti
tuições para que a opressão seja eliminada completamente.
C ontudo — para ser justa — só recentemente, nos
países industriais mais adiantados é que começaram a
existir aquelas precondições autênticas, necessárias para
um a revolução feminista. Pela primeira vez está sendo
possível atacar a família, não só em bases morais — por
ela reforçar as classes sexuais baseadas na biologia, co
locando os homens, que são posteriorm ente divididos
entre si em função da raça e do privilégio de classe,
numa posição acima das mulheres de todas as idades e
da infância masculina — mas também em bases funcio
nais: a família não é mais necessária ou útil como uni
dade social básica da reprodução e da produção. Não
existe mais um a necessidade de reprodução universal,
ainda que o desenvolvimento da reprodução artificial não
venha logo substituir a própria reprodução biológica em
questão. A cibernetização, ao alterar não só a relação
do homem com o trabalho, mas também a sua necessi
dade de trabalho, finalmente arrancará qualquer valor
prático remanescente na divisão do trabalho, que está na
origem da família.
251
3. A Morte Lenta da Família
252
V.
pragmática do que qualquer outra, tornando-a mais
atraente — e conseqüentemente impedindo os indivíduos
de experimentarem outras formas sociais que poderiam
satisfazer suas necessidades emocionais de um modo igual
ou melhor do que este.
Sob um a pressão crescente, minadas as bases prag
máticas da instituição do casamento, os papéis sexuais
afrouxaram a um tal ponto, que teria causado vergonha
a qualquer vitoriano. E le não sofria dúvidas torturantes
em relação ao seu papel, nem em relação à função e
ao valor do casamento. P ara ele, o casamento era sim
plesmente um acordo econômico em seu próprio bene
fício, que poderia satisfazer mais facilmente as necessi
dades físicas e reproduzir seus herdeiros. A esposa tam
bém estava certa de seus deveres e recompensas: devia
a ele, durante toda a vida, a propriedade de si mesma e
de todos os seus serviços sexuais, psicológicos e domés
ticos, em troca de apoio e proteção a longo prazo de um
membro da classe dominante, e por sua vez ele lhe devia
um controle limitado sobre um lar e sobre os filhos dela
até eles atingirem um a certa idade. Hoje em dia, este
contrato baseado em papéis separados foi tão dissimu
lado pelo sentimentalismo que se tom ou completamente
irreconhecível para milhões de recém-casados, e até para
a m aioria dos casais mais antigos.
Mas, este enfraquecimento do contrato econômico
Ê_a. conseqüente confusão dos papéis sexuais não. alixiou
a opressão da mulher num grau significativo Em muitos
casos, ele apenas a colocou num a posição mais vulnerá
vel ainda. Com o acordo de casamento tratado pelos pais
quase abolido, um a mulher, considerada ainda parte de
uma subclasse, deve, hoje, jogar um jogo desesperado
para ganhar o apoio e a proteção indispensáveis de um
homem, perseguindo até pegar machos entendiados, que
aparentam contudo serenidade. E mesmo um a vez casa
da, qualquer sobreposição de papéis geralmente acontece
do lado da mulher e não do marido. A cláusula “trate
com carinho e proteja” é a primeira coisa a ser esqueci
da — ao passo que a esposa ganhou o privilégio de ir
trabalhar para “ ajudar”, e até o de obrigar o marido a
253
ir à escola. Mais do que nunca ela arca com o impacto
do casamento, nao so no plano emocional, mas também
em tnHns ns sens "asnéelos mais práticos.. Ela simples-
mente somou o trabalho dele ao déla.
Um segundo suporte cultural dessa instituição obso
leta é a privatização da experiência do matrimonio. Cada
cônjuge inicia o matrimonio convencido de que aquilo
que aconteceu com seus pais, de que aquilo que acon
teceu com seus amigos não poderá nunca acontecer com
ele. Em bora o Naufrágio do Casam ento tenha-se tom ado
um hobby nacional, um a obsessão universal — como é
testemunhado pela proliferação de manuais para o casa
mento e o divorcio, pela indústria de revistas femininas,
por uma classe afluente de consultores matrimoniais, pe
los repertorios completos de piadas do género “Ball-and-
Chain” *, e pelos produtos culturais tais como a novela
de rádio, o género casamento-e-família da TV, p.ex.,
I L o ve L ucy ou Papai Sabe-Tudo, os filmes e peças de
teatro como Faces, de Cassavetes, e Quem Tem M edo
de Virgínia Woolf? — ainda encontramos em todo lugar
um sinal desafiante de otimismo do género “Nós somos
diferentes”, que cita habitualm ente o único caso de um
bom casamento (mesmo que exemplar externam ente) na
comunidade para provar que isto é possível.
O processo de privatização é caracterizado por obser
vações do tipo “Bem, eu sabia que daria um a ótima m ãe.”
É inútil chamar a atenção para o fato de que todo mundo
diz isso, que os pais ou amigos hoje repudiados como
“m aus” pais e “pobres” parceiros de casamento, todos
começaram o casamento e a paternidade exatamente com
o mesmo espírito. Afinal, será que alguém escolhe um
casamento “ruim”? Será que alguém escolhe ser uma
mãe “ruim”? E, mesmo que se tratasse de um a questão
dos “bons” versus os “maus” cônjuges ou pais, sempre
haveria tantos destes quanto daqueles. Sob o atual siste
m a de casamento e paternidade universal, o núm ero de
esposas e crianças que podem tirar a sorte boa só pode
254
ser exatamente o mesmo das de sorte má. N a verdade,
todas as classificações de “bom” e “m au” estão fadadas
a se reproduzirem em proporções idênticas.12 Assim, o
processo de privatização funciona no sentido de í azer que
as.,pessoas jaflíjnu.em a culpar a si m esm as, em vez de
este fracasso. A pesar da insti-
tuição revelar-se bastante insatisfatória e até podre, ela
incita as pessoas a acreditar de algum modo que sua si
tuação específica será diferente. As advertências podem
não surtir nenhum efeito, porque não existe nenhuma
lógica no por-quê as pessoas se casam. Todo mundo tem
os próprios olhos, os próprios pais. Se alguém prefere
bloquear qualquer evidência, é porque precisa disso. Num
mundo descontrolado, as únicas instituições que lhe dão
uma ilusão de controle, que parecem oferecer alguma se
gurança, proteção ou calor são as instituições “privadas” :
a religião, o casam ento/fam ília, e, mais recentemente, a
terapia psicanalítica. Mas, como vimos, a família não é
nem privada, nem é um refúgio: está, sim, diretamente
relacionada — sendo até a sua causa — aos males t|a
sociedade em peral, males que o indivíduo não é mais
canaz de enfrentar.
Mas os baluartes culturais que acabamos de exami
nar — a confusão do romance com o casamento, o en
fraquecimento das suas funções econômicas e de seus
papéis sexuais rígidos, o processo de privatização, a ilu
são de controle e de refúgio, todos os quais exploram os
medos do indivíduo moderno vivendo dentro de um meio
255
ambiente cada vez mais hostil — não são ainda a res-
posta completa ao porquê a instituição do casamento
continua a florescer. É pouco provável que esses pontos
negativos pudessem m anter sozinhos a unidade familiar
como um a instituição vital. Também seria fácil demais
atribuir a continuidade da estrutura familiar unicamente
a um reflexo. Revendo o casamento em relação às nossas
quatro exigências mínimas feministas, descobriremos, e
eu temo isto, que ele preenche (a seu modo m iserável)
pelo menos uma parte dessas exigências de um m odo
pelo menos igual ou m elhor do que o da m aior parte
das experiências sociais que discutimos.
1) A libertação das mulheres da tirania da repro
dução e da função de educar as crianças mal é preenchi
da. Contudo, as mulheres freqüentem ente têm atenuados
os seus trabalhos mais pesados através da classe das em
pregadas — e, no casamento moderno, através da gine
cologia moderna, do “planejamento familiar”, e da cres
cente atribuição à escola, às creches diurnas, e outras
mais, da função de educação das crianças.
2 ) A pesar de geralmente não ser concedida a inde
pendência financeira às mulheres e às crianças, existe um
substituto para ela: a segurança física.
3) As mulheres e as crianças, segregadas da socie
dade como um todo, estão integradas dentro da unidade
familiar, único lugar onde ocorre esta integração. O fato
de a pequena interação existente entre os homens, as
mulheres e as crianças estar concentrada num a única
unidade social torna esta unidade tanto mais difícil de
ser abandonada.
4 ) Apesar de a família ser a fonte da repressão se
xual, ela garante ao casal um suprimento sexual estável,
senão satisfatório, e supre os outros membros de rela
ções “inibidas quanto ao alvo”, que, em muitos casos,
serão as únicas relações a longo prazo que esses indi
víduos terão.
Assim, estas são vantagens práticas do casamento,
às quais as pessoas se apegam. Não se trata absoluta
m ente de um a propaganda cultural. Num a escala de van
tagens, o casamento — pelo menos na sua versão liberal
256
v.
desesperada — funciona tanto quanto a m aioria das alter
nativas experimentais tentadas até aqui, e que, como vi
mos, também preencheram algumas das exigências e não
outras, ou preencheram todas elas apenas parcialmente.
E o casamento tem som ada a vantagem de ser um a quan
tidade conhecida.
E contudo o casamento, por sua própria definição,
nunca será capaz de preencher as necessidades de seu§
participantes, porque ele se organizou em torno de um a
condição biológica fundam entalm ente opressiva, que ele
refoiça, e que somente agora saberíamos corrigir. |E n-
quanto houver a instituição, subsistirão condições opres-
sivasjiasuquais. ela se baseia,. Precisamos começar a falar
de novas alternativas que satisfaçam, m elhor que o casa
mento, as necessidades emocionais e psicológicas que ele,
arcaico como é, ainda satisfaz. M as qualquer proposta
em nossa escala feminista deve ser pelo menos melhor
que a do casamento, senão, apesar de todas as advertên
cias, as pessoas continuarão presas a ele — n a esperança
de que ao menos essa vez, exatam ente conf"êlas, ò ca
samento dará certo.
4. Alternativas
257
propostas concretas “perigosamente utópicas” — não só
em solidariedade aos meus próprios dias pré-radicais,
quando a Linha Não-Responsável-Pelos-Projetos me dei
xou perplexa, mas também porque estou ciente dos peri
gos políticos decorrentes do fracasso peculiar da imagi
nação em criar alternativas para a família. Existem, como
vimos, várias razões justificáveis para esse fracasso. Em
primeiro lugar, não há precedentes de um a revolução fe
minista na História — rertamentp. hnnve mulheres reva-
lueionárias, mas foragi flSBÉB nelos homens revolucio-
Qjjjjjag, que raram ente sequer faziam protestos pela, igual
dade das mulheres, muito menos por um a reestruturação
radical feminista da sociedade. Além do mais, não nos
foi dada sequer um a imagem literária dessa sociedade
futura; não existe nem mesmo um a literatura feminista
utópica. Em terceiro lugar, a natureza da unidade é tal
que ela penetra no indivíduo num nível mais profundo do
que qualquer outra organização social nossa: ela literal
m ente o toca “no ponto certo” . Mostrei como a família
m olda a psique do indivíduo de acordo com sua estru
tura — até que Analmente ele a imagina absoluta, so^n-
do-lhe a ~rèférência a qualquer outra alternativa c p o
um a perversão. Finalmente, a maioria das alternativas
insinua uma perda até do pouco calor emocional pro
porcionado pela família, colocando o indivíduo em pâni
co. Contudo, o modelo que eu vou traçar agora está su
jeito às limitações de qualquer plano disposto num papel
por um único indivíduo. M antenham em mente que estas
não pretendem ser respostas finais, que na verdade o
leitor provavelmente poderá redigir um outro plano que
atenda tanto ou melhor do que o meu aos quatro impe
rativos estruturais expostos anteriormente. As propostas
que se seguem são portanto um esboço, que pretende
estimular o pensamento a operar em áreas arejadas, em
vez de ditar a ação.
* * *
259
lheres fora de ca sa]. . . que chegamos a suspeitar da exis
tência de um a conspiração, na qual está envolvida toda
a cultura, no sentido de to m ar o papel profissional tão
desagradável que 90 por cento ou mais das mulheres pre
ferirão os afazeres domésticos, por verem neles um a alter
nativa melhor”. Através de um a ampliação de seja quais
forem os papéis de solteiro ainda existentes em nossa
cultura de m odo a incluir as mulheres, através da cria
ção de uma quantidade maior destes papéis, e de um
program a de incentivos que tom e estas profissões com
pensadoras, poderíamos, sem muito esforço, reduzir o
número de pessoas interessadas pela paternidade ou pela
maternidade.
2) “Morar Junto” — Inicialmente praticado exclu
sivamente entre os círculos boêmios ou intelectuais, e
agora cada vez mais pela população em geral — especial
m ente pela juventude das metrópoles — “m orar junto”
está se tornando um a prática social comum. “M orar jun
to” é a forma social maleável n a qual duas ou mais pes
soas, de qualquer sexo, entram num acordo não-lega-
lizado de convivência baseada no sexo e /o u companhei
rismo, e cuja duração varia conforme a dinâmica interna
do relacionamento. O contrato é feito somente entre essas
pessoas; a sociedade não interessa, já que nem a repro
dução, nem a produção — dependência de um a parte sobre
a outra — estão implicadas nele. E sta não-form a bas
tante flexível poderia ser expandida até se tornar a uni
dade padrão, que seria adotada pela maioria das pessoas,
durante a maior parte de suas vidas.
Inicialmente, no período de transição, as relações
sexuais seriam provavelmente monogâmicas (dessa vez no
estilo feminino single standard),* mesmo que o casal deci
disse viver com outras pessoas. Poderíam os até ter a con
tinuação dos acordos de m oradia entre grupos de cará
ter estritamente não-sexual (“companheiros de quarto” ).
Contudo, depois de várias gerações de um m odo de vida
não-em-família, nossas estruturas psicossexuais poderiam
* Expressão usada para indicar os direitos atribuídos socialmente às mu
lheres, em comparação aos direitos muito maiores atribuídos aos homens
(double standard). (N.T.)
260
se transform ar de um modo tão radical que o casal mono-
gâmico, ou os relacionamentos “inibidos quanto ao alvo”
se tornariam obsoletos. Só nos é possível tentar adivinhar
que tipo de relação poderia substituir estas — talvez “gru
pos m atrimoniais” verdadeiros, casamentos entre grupos
transexuais que também envolveriam as crianças mais ve
lhas? Não sabemos.
As duas opções que sugerimos até agora — as pro
fissões de solteiro e o “m orar junto” — já existem, mas
somente fora do padrão geral de nossa sociedade, ou
durante breves períodos na vida do indivíduo normal. Pre
cisamos ampliar essas opções de m odo a incluir nelas um
número muito maior de pessoas e durante períodos maio
res de suas vidas, e de m odo a transferir para essa nova
opção todos os incentivos culturais que sustentam o casa
mento atualmente — tornando finalmente estas alterna
tivas tão comuns e aceitas quanto o casamento é hoje.
Mas, e as crianças? Não é verdade que todo m undo
deseja ter filhos ao menos um a vez na vida? Não se pode
negar que as pessoas hoje sintam um desejo autêntico
de ter filhos. M as não sabemos até que ponto isto é
o produto de um a afeição autêntica pelas crianças, e até
que ponto representa um deslocamento de outras neces
sidades. Vimos que as necessidades parentais só são pos
síveis de serem satisfeitas através do aleijamento do filho.
A tentativa de criar um a extensão do ego através dos
filhos — no caso do homem, significando a “imortaliza-
ção” do nome, da propriedade, da classe, e da identifi
cação étnica, e no caso da mulher, significando a m ater
nidade como a razão de ser de sua existência, e a conse
qüente tentativa de viver através do filho, de ter o filho-
como-um-projeto — acaba prejudicando ou destruindo
conforme seja o caso ou a criança, ou o pai, ou ambos
no caso de nenhum deles vencer.
Talvez quando a paternidade for despida dessas
outras funções seja descoberto um instinto verdadeiro de
paternidade, até mesmo da parte dos homens, nada mais
do que um simples desejo físico de associar-se aos novos.
M as se isso acontecer, nós não teremos perdido nada,
já que um a das exigências básicas de nosso sistema alter
261
nativo é a existência de alguma form a de interação íntima
com as crianças. Se existe de fato um instinto de pater
nidade, ele poderá atuar até mais livremente, quando se
desligar das responsabilidades práticas da paternidade, que
a tornam hoje um inferno agoniante.
Mas, e se, ao contrário, descobrirmos que não existe
afinal um instinto de paternidade? Talvez todo esse tempo
a sociedade tenha persuadido os indivíduos a terem fi
lhos, através do deslocamento para a paternidade de inte
resses do ego que não encontram um a saída adequada.
Isto pode ter sido impossível de evitar no passado —
mas talvez agora seja o momento de começarmos a satisfa
zer de um m odo mais direto essas necessidades do ego.
E nquanto a reprodução natural for ainda necessária, pode
remos planejar incentivos culturais menos destrutivos. M as
é provável que, um a vez eliminados os investimentos do
ego na paternidade, a reprodução artificial seja desenvol
vida e amplamente aceita.
3) Households* — Descreverei agora, em linhas
gerais, um sistema que, acredito, satisfará quaisquer ne
cessidades remanescentes de ter filhos, depois que os inte
resses do ego deixarem de fazer parte de nossas motiva
ções. Suponhamos que um a pessoa ou um determinado
casal deseje, a certa altura da vida, viver ao redor de
crianças, num a unidade tipo família. Em bora a reprodu
ção não mais represente o objetivo vital do indivíduo nor
mal — vimos como os estilos de vida não-reprodutivos
adotados por um a pessoa solteira ou por um grupo podem
ser ampliados de modo a se tornarem satisfatórios para
muitas pessoas, seja durante toda a vida, ou apenas du
rante um bom período dela — algumas pessoas podem
ainda preferir o grupo estilo-comunidade de duração per
manente, e outras podem querer experimentá-lo durante
algum momento de suas vidas, especialmente no começo
da infância.
262
Assim, em qualquer momento, um a parte da popu
lação desejará viver dentro de estruturas sociais reprodu
tivas. Analogamente, a sociedade em geral ainda neces
sitará da reprodução, em bora menos do que antes, e mes
mo que só para criar uma geração nova.
E sta proporção da população será autom aticam ente
constituída por um grupo selecionado, com um mais alto
grau de estabilidade, porque ela terá tido liberdade de es
colha que hoje é, em geral, inviável. Hoje, aqueles que
não se casam, ou que não têm filhos até um a certa idade
são punidos por isto. Sentem-se sozinhos, excluídos e mise
ráveis, à margem de um a sociedade na qual todos além
deles se encontram compartimentalizados em famílias ba
seadas na continuidade geracional, no chauvinismo e no
exclusivismo, suas características principais. (E m Nova
Iorque, o único lugar em que a vida de solteiro chega a ser
apenas tolerável é M anhattan, e mesmo isso pode ser dis
cutido.) A maioria das pessoas ainda é compelida ao ca
samento pela pressão da família, pelo “casam ento-relám
pago”, pelas considerações econômicas, e por outras ra
zões que nada têm a ver com a escolha de um estilo de
vida. Contudo, em nossa nova unidade reprodutora de
contrato limitado (ver adiante), onde a educação das
crianças estará espalhada a ponto de ser praticam ente eli
minada, onde não haverá considerações econômicas, onde
o ingresso de todos os membros participantes será feito
com bases exclusivamente na preferência pessoal, nessa
unidade desaparecerão as estruturas sociais reprodutoras
“instáveis”.
A essa unidade devo cham ar de household, em vez
de família ampliada. A distinção é importante. A palavra
família implica reprodução biológica e em algum grau
de divisão do trabalho em função do sexo, conseqüente
mente nas dependências tradicionais e nas relações de
poder decorrentes, prorrogadas durante gerações. Em bo
ra o tam anho da família — nesse caso, o núm ero maior
da família “am pliada” — possa afetar a força dessa hie
rarquia, ele não altera sua definição estrutural. Contudo,
o household significa apenas um vasto agrupamento de
pessoas que vivem juntas por um tempo e numa série de
263
relações interpessoais não especificados. Como funcionaria
um household!
Contrato Limitado. Se o Household substituísse o
casamento, talvez inicialmente ele seria legalizado do mes
mo modo — se isto fosse absolutamente necessário. Um
grupo de mais ou menos dez adultos de idades variadas13
poderia requerer uma licença de grupo, do mesmo
modo que hoje um casal jovem requer uma licença para
casar, talvez até se submetendo a alguma form a de ce
rimônia ritual, e então procedendo da mesma form a para
m ontar casa. A licença do household valeria, contudo,
somente por um período determinado, talvez de sete a dez
anos, ou por qualquer que fosse o tempo decidido como
sendo o tempo mínimo durante o qual as crianças ne
cessitam de uma estrutura estável para crescer — mas
provavelmente este período seria muito mais curto do que
agora imaginamos. Se no fim deste período o grupo de
cidisse continuar junto, ele poderia sempre obter um a re
novação do contrato. Contudo, nenhum indivíduo estaria
comprometido a continuar depois deste período; talvez
alguns membros da unidade pudessem sair, ou membros
novos pudessem entrar. Ou então a unidade poderia de
bandar completamente.
Existem várias vantagens nos households a curto pra
zo, unidades composicionais estáveis, durando apenas por
períodos de dez anos: o fim do chauvinismo da família,
firmado durante gerações, e dos preconceitos passados de
uma geração para outra; a inclusão de pessoas de todas
as idades no processo de educação das crianças; a inte
gração de grupos de várias idades num a única unidade
social; a amplitude da personalidade decorrente da sua
exposição frente a muitas, em vez de a (idiossincrasia de)
poucas pessoas, e assim por diante.
Crianças. Uma percentagem regular de cada hou
sehold — digamos um terço — seria constituída de crian
264
ças. Mas não im porta se, inicialmente, elas seriam os
filhos genéticos criados pelos casais dentro do household,
ou se, nalgum futuro — depois de algumas gerações de
vida em household terem cortado as ligações especiais dos
adultos com “seus” filhos — elas seriam produzidas arti
ficialmente, ou seriam adotadas. A responsabilidade (m í
nim a) pela dependência física inicial das crianças esta
ria igualmente distribuída entre todos os membros do
household.
Mas, embora ele possa ser estruturalm ente sólido,
devemos nos dar conta de que enquanto usarmos métodos
de parto natural, o household nunca poderá ser um a forma
social totalmente liberadora. Uma mulher que suporta
uma gravidez de nove meses provavelmente sentirá que o
produto de todo aquele sofrimento e desconforto “perten
ce” a ela ( “E pensar no que eu sofri para ter você!” )
Mas precisamos destruir essa possessividade, junto com
seus reforços culturais, de modo que nem um só filho
seja favorecido a priori sobre outro, de modo que os filhos
sejam amados pelo que eles são.
Mas, e se existir um instinto de gravidez? Eu du
vido. Uma vez abandonadas as superestruturas culturais,
pode ser que descubramos um instinto sexual, cujas con
seqüências normais levam à gravidez. E talvez haja tam
bém um instinto de proteção às crianças, logo que elas
venham. Mas, um instinto de gravidez em si seria supér
fluo — poderia a natureza prever o controle da repro
dução pelo homem? E se, quando tivessem sido abandona
das as falsas motivações da gravidez, as mulheres não
quisessem mais “ter” filhos de modo algum? Isto não seria
um desastre, dado que a reprodução artificialmente ainda
não está aperfeiçoada? M as as mulheres não têm um a
obrigação especial de reproduzir a espécie. Se elas não
quiserem mais reproduzir, então terão que ser desenvol
vidos apressadamente métodos artificiais de reprodução,
ou, ao menos, terão que ser fornecidas compensações sa
tisfatórias — que não sejam investimentos destrutivos do
ego — que valham a pena para a mulher.
Os adultos e as crianças mais velhas tom arão conta
dos bebês enquanto eles necessitarem disso. Mas, já que
265
haverá muitos adultos e crianças mais velhas dividindo
as responsabilidades — do mesmo modo que na família
ampliada — nenhuma pessoa jamais ficará involuntaria
mente presa por isso.
As relações adulto/criança se desenvolverão exata
mente como as melhores relações de hoje. Alguns adul
tos poderão preferir certas crianças a outras, assim como
algumas crianças poderão preferir certos adultos a outros.
Estas poderiam se tornar ligações para toda a vida, con
cordando os indivíduos envolvidos em perm anecer juntos,
talvez para form ar algum tipo de unidade não-reprodu-
tora. Assim, todas as relações seriam baseadas exclusiva
mente 110 amor, sem serem corrompidas por dependên
cias objetivas, nem pelas conseqüentes desigualdades de
classe. As relações duradouras entre pessoas de idades
bastante diferentes se tornariam comuns.
Direitos Legais e Transferências. Com 0 enfraqueci
mento e o rompimento dos laços de parentesco, a hierar
quia de poder da família seria destruída. A estrutura legal
— enquanto ela fosse ainda necessária — refletiria essa
democracia na raiz de nossa sociedade. As mulheres se
riam iguais aos homens diante da Lei. As crianças não
seriam mais “menores” sob a proteção dos pais — teriam
plenos direitos. As desigualdades físicas que permaneces
sem poderiam ser compensadas legalmente. P or exemplo:
se uma criança fosse espancada, talvez ela pudesse noti
ficar isso a um tribunal especial e simplificado de house
hold, onde poderia obter imediatamente compensações
legais.
Outro direito especial concedido às crianças seria o
direito de transferência imediata. Se a criança, por qual
quer motivo, não gostasse do household onde tinha nas
cido de um modo tão arbitrário, poderia ser ajudada a
se transferir dele. Por outro lado, um adulto — que ti
vesse vivido um pequeno período num household (sete
a dez anos) — teria que apresentar suas alegações ao
tribunal, que decidiria, como fazem hoje os tribunais de
divórcio, se ele tinha motivos justos para anular seu con
trato. Um certo número de transferências, dentro do pe
ríodo estabelecido de sete anos, poderia ser necessário
266
ao bom funcionamento do household c não seria preju
dicial à sua estabilidade como unidade, desde que fosse
mantido um núcleo. (De fato, a entrada, de vez em
quando, de pessoas novas poderia trazer mudanças revi-
talizantes.) Contudo, a unidade, em função de um melhor
rendimento, poderia ter que estabelecer um teto de trans
ferências, relativo ao número de entradas e saídas, para
evitar o esgotamento, o crescimento excessivo e /o u os
atritos.
Afazeres. No que tange aos serviços domésticos, este
grupo (provavelmente cerca de quinze pessoas), de ta
manho m aior que a família padrão, seria mais prático.
Seriam eliminados o desgaste e a repetição que caracte
rizam os afazeres domésticos na unidade-a-dois da famí
lia nuclear, p.ex., fazer compras e cozinhar para uma
família pequena, sem a perda de intimidade que ocorre
na experiência com comunidades maiores. Provisoriam en
te, qualquer serviço doméstico teria que ser feito em
rodízio; a cibernetização porém, finalmente, autom atiza
ria quase todos os afazeres domésticos.
Planejamento da Cidade. O planejamento da cidade,
a arquitetura, a mobília, todos seriam alterados de modo
a refletir a nova estrutura social. A tendência para as
moradias feitas-em-série provavelmente continuaria, mas
a habitação teria que ser desenhada e até construída (tal
vez com elementos pré-fabricados) por pessoas que mo
rassem nelas, de modo a atender às suas próprias neces
sidades e gostos. A privacidade poderia ser construída no
interior: ou através de cômodos privados em cada house
hold, ou através de “retiros” dentro da cidade, a serem
compartilhados por pessoas de vários houséholds, ou am
bos. O conjunto todo poderia ter o tam anho de uma ci
dade pequena, ou de um campus extenso. Talvez um
campus seja a melhor imagem. Poderíamos ter pequenas
unidades de habitações autogestantes — as partes pré-
fabricadas podendo ser m ontadas ou desmontadas fácil
e rapidam ente de modo a atender às necessidades do
contrato limitado — bem como edifícios centrais perm a
nentes que atendessem às necessidades da comunidade
como um todo, ¡.e., talvez o equivalente de uma “união
267
de estudantes” pela socialização, e restaurantes, uma
grande agência de computadores, um centro moderno de
comunicações, uma livraria e um centro de cinema com-
putalizados, “centros de instrução” dedicados a vários
interesses específicos, e tudo o mais que pudfesse ser ne
cessário numa comunidade cibernética.
A Economia. O fim da estrutura familiar exigiria o
surgimento de mudanças simultâneas na economia. Não
só a reprodução, mas também a produção seria qualita
tivamente diferente. Assim como tivemos que purificar
as relações com as crianças de todas as considerações
externas, teremos inicialmente que ter, para obter pleno
êxito em nossos objetivos, o socialismo de um estado
industrial cibernético, visando não só à redistribuição
eqüitativa do trabalho pesado, como também eliminá-lo,
enfim, completamente. Com o desenvolvimento posterior
e o uso inteligente das máquinas, as pessoas poderão ser
libertas do trabalho pesado, sendo o “trabalho” desvin
culado dos salários e redefinido. Então tanto os adultos
quanto as crianças poderiam entregar-se a um “diverti
m ento” sério tanto quanto quisessem.
No período de transição, enquanto ainda tivermos
uma economia baseada no dinheiro, as pessoas deverão
receber uma renda anual garantida pelo estado para cui
dar das necessidades físicas básicas. Esses rendimentos,
distribuídos equitativamente entre homens, mulheres e
crianças, independente da idade, função, prestígio e nas
cimento, por si só uniformizariam, de uma só vez, o sis
tema de classes econômicas.
Atividade. O que as pessoas fariam dentro dessa
utopia? Acho que isso não será um problema. Se tiver
mos realmente eliminado todos os trabalhos enfadonhos,
as pessoas terão tempo e energia para desenvolver inte
resses sadios. O que hoje só acontece dentro de uma
elite, a busca de interesses específicos por si mesmos,
provavelmente se tornaria a norma.
No que tange às nossas instituições educacionais: a
inadequação do sistema de escolas públicas praticamente
garantirá a sua destruição num futuro próximo. Talvez
pudéssemos substituí-lo por “centros de instrução” não
obrigatória, que combinariam as funções atuais das insti
tuições educacionais de nível mais baixo, ou seja, o ensi
no de habilidades rudimentares, com as das de nível mais
alto, a ampliação do conhecimento, e que incluiriam pes
soas de qualquer idade ou nível, crianças e adultos.
Sim, e as habilidades básicas? Como, por exemplo,
uma criança sem nenhum treino continuado formal po
deria ser admitida num currículo superior como a arqui
tetura? Mas, a aprendizagem tradicional a partir de livros,
a memorização de fatos, que constitui a parte mais subs
tancial do currículo de nossas escolas elementares, seriam
alteradas radicalmente sob o impacto da cibernetização —
o que constituiria uma diferença qualitativa, uma mudan
ça no aparato cultural ao menos tão significativa quanto
foi a imprensa, e até tão importante quanto o alfabeto.
M cLuhan chamou a atenção para o início de uma inver
são caracterizada pelo uso de meios visuais, em lugar de
meios literários no processo de absorção de conhecimen
tos. Podemos esperar o aumento dessa e de outras con
seqüências no desenvolvimento dos media modernos vi
sando a rápida transmissão de informação. E até a quan
tidade necessária de conhecimentos automatizados tanto
para as crianças quanto para os adultos será imensamente
reduzida, já que deveremos dispor de agências de compu
tadores de fácil acesso. Afinal, para que armazenar fatos
na cabeça, se as agências de computadores poderão for
necer informações mais sutis e mais amplas instantanea
mente? (Hoje em dia as crianças já se perguntam porque
devem aprender tabuadas de multiplicação, em vez de
aprenderem a operar uma máquina de som ar.) Qualquer
armazenamento mental de fatos ainda necessário poderá
ser prontam ente realizado por novos meios mecânicos,
máquinas de ensinar, discos e fitas magnéticas, e assim
por diante, os quais, quando se tornarem facilmente aces
síveis, permitirão a extinção do ensino obrigatório de h a
bilidades básicas. Como estudantes estrangeiros em busca
de uma profissão especializada, a criança pode aprender,
nas horas vagas, qualquer “linguagem” básica necessária,
através desses métodos suplementares de máquinas. Mas
é mais provável que as habilidades e os conhecimentos
269
fundamentais necessários sejam os mesmos para os adul
tos e para as crianças: a habilidade de operar máquinas
novas. Program ar especializações pode se tornar uma
coisa universalmente requerida, mas em vez de ser feito
através de anos de escolarização, isso teria que ser apren
dido (rapidam ente) somente em conjunção com as exi
gências de dom inar um a disciplina específica.
No que tange à “indecisão profissional” : hoje, as
pessoas cujo hobby inicial da infância sobreviveu intacto
até tornar-se sua “profissão” adulta, lhe dirão, na maio
ria das vezes, que desenvolveram seu interesse nisso antes
dos nove anos.14 Enquanto ainda houvesse especializações
profissionais, elas poderiam ser trocadas com a mesma
freqüência com que os adultos trocam títulos ou profis
sões hoje em dia. M as se a escolha profissional não se
apoiasse em motivos sobrepostos, e sim em motivos ba
seados exclusivamente no interesse pela própria matéria,
provavelmente haveria muito menos mudanças no-meio-
do-caminho. A incapacidade de desenvolver interesses só
lidos é hoje na maioria das vezes o resultado da corrup
ção da cultura e de suas instituições.
Assim, nossa concepção de trabalho e de educação
estaria mais próxima do aprendizado direto de um a dis
ciplina, característico da Idade Média, do qual partici
pavam pessoas de todas as idades e em todos os níveis.
Como nas universidades de hoje, a dinâmica interna das
várias disciplinas criaria sua própria organização social,
fornecendo os meios de contatar com outras pessoas de
interesses iguais, e de partilhar das atividades intelectuais
e estéticas acessíveis então só a uns poucos escolhidos, a
intelligentsia. O tipo de meio-ambiente social hoje só
encontrado nos melhores departamentos das melhores uni
versidades poderia tornar-se o estilo de vida das massas,
que estariam livres para desenvolver seu potencial desde
o início. Enquanto que hoje só os felizardos ou os perse
verantes chegam (geralm ente só aparentam ) a “fazer suas
14. Se hoje fosse dada às crianças uma idéia realista das pro
fissões disponíveis — não exatamente bombeiro/enfermeira —
elas poderiam chegar a um interesse especial até mais cedo.
270
coisas” , então todos teriam a oportunidade de desenvol
ver seu potencial ao máximo.
Ou de não desenvolvê-lo, se assim o quisessem —
mas isso seria pouco provável, já que toda criança desde
o início m ostra curiosidade pelas pessoas, pelas coisas,
pelo m undo em geral e pelo que o faz girar. É somente
porque a realidade desagradável atrofia a sua curiosidade
que a criança aprende a reduzir seus interesses, tornan
do-se então o afável adulto médio. M as, se pudéssemos
remover esses obstáculos, então todas as pessoas se de
senvolveriam tão completamente quanto só as classes
mais ricas e uns poucos “gênios” isolados foram capa
zes de se desenvolver. C ada pessoa contribuiria para a
sociedade como um todo, não em função de salários ou
outros incentivos de prestígio e poder, mas porque o tra
balho que ela escolheu fazer lhe interessa em si mesmo,
e também, mas talvez só incidentalmente, porque esse tra
balho tenha um valor social para outros (tão saudavel
mente egoísta quanto só a arte o é hoje). O trabalho que
só tivesse um valor social e não um valor pessoal teria
sido eliminado pela máquina.
* * *
271
sada, e a nossa estrutura psíquica (o que certamente
ocorreria de início), então teriam que ser desenvolvidos
incentivos e compensações adequados — outros que não
as gratificações do ego em possuir um filho — para re
compensar as mulheres por sua contribuição social espe
cífica: a gravidez e o parto. A maior parte da educação
das crianças, como vimos, tem a ver com a manutenção
de relações de poder, a internalização forçada das tradi
ções familiares, e muitos outros interesses do ego que
lutam contra a felicidade da criança. Esse processo re
pressivo de socialização seria desnecessário num a socie
dade na qual os interesses do indivíduo coincidissem com
os da sociedade em geral. Q ualquer responsabilidade res
tante pela educação das crianças seria espalhada de modo
a incluir igualmente tanto os homens e as outras crian
ças, quanto as mulheres. Além disso, os novos métodos
de comunicação imediata diminuiriam os nexos de de
pendência da criança até com essa unidade prim ária
igualitária.
2) A independência econômica e a autodetermina
ção de todos. Sob o socialismo, ainda que numa econo
mia de mercado, o trabalho estaria dissociado dos salá
rios, a propriedade dos meios de produção estaria nas
mãos de todos, e as riquezas seriam distribuídas com base
nas necessidades, independentemente do valor social da
contribuição do indivíduo para a sociedade. Visaríamos
eliminar a dependência das mulheres e das crianças do
trabalho dos homens, assim como todos os outros tipos
de exploração do trabalho. Cada pessoa poderia escolher
seu estilo de vida à vontade, mudando-o de modo a sa
tisfazer seus gostos, sem com isso incomodar seriamente
qualquer outra pessoa. Ninguém estaria preso a nenhuma
estrutura social contra a vontade, já que cada pessoa
seria totalmente independente, logo que fosse fisicamente
capaz.
3) A total integração das mulheres e das crianças
na sociedade em geral. Isto foi cumprido. O conceito de
infância foi abolido, tendo as crianças plenos direitos le
gais, sexuais e econômicos, e não sendo suas atividades
educacionais e de trabalho diferentes das dos adultos.
272
v
Durante os poucos anos de sua infAncili, subsliliiíinm u
“paternidade” genética psicologicamente dcstrutlvn dr um
ou dois adultos arbitrários pela difusão da icspnnsnlilll
dade pela saúde física entre um núm ero muior do peí
soas. A criança ainda continuará estabelecendo re in a r*
de amor íntimas, mas em vez de fortalecer laços estratos
com um a “m ãe” e um “pai” legais ela poderá criar csses
laços com pessoas de sua própria escolha, de qualquer
idade ou sexo. Assim, todas as relações entre adultos e
crianças serão escolhidas m utuamente — relações sem
desníveis, íntimas e livres de dependências materiais. A na
logamente, embora haja menos crianças, elas não serão
monopolizadas, e sim participarão livremente de toda a
sociedade, em benefício de todos, satisfazendo assim o de
sejo legítimo de estar junto com os jovens, em geral cha
mado de “instinto” reprodutor.
4) Liberdade sexual, amor, etc. Por enquanto não
falamos muito sobre o amor, nem sobre a liberdade se
xual, porque não há razão para isso ser um problem a:
não haverá nada os impedindo. Com uma licença total,
as relações humanas finalmente seriam redefinidas para
melhor. Se uma criança não conhece a própria mãe, ou
pelo menos não atribui a ela um valor especial em rela
ção às outras pessoas, é pouco provável que ela a escolha
como seu primeiro objeto de am or apenas para depois
ter que desenvolver inibições em relação a esse amor.
É possível que a criança estabeleça suas primeiras rela
ções físicas íntimas com pessoas de seu próprio tamanho,
por mera conveniência física, exatamente como os ho
mens e as mulheres podem preferir um ao outro em vez
de pessoas do mesmo sexo, por mera conveniência física.
Mas, se ao contrário ela escolhesse se relacionar sexual
mente com os adultos, mesmo que isso se desse com a
sua própria mãe genética, não haveria razões a priori
para ela rejeitar seus avanços sexuais, uma vez que o
tabu do incesto teria perdido valor. O household, forma
social transitória, não estaria sujeito aos perigos da
endogamia.
Assim, sem o tabu do incesto, os adultos poderiam
voltar, dentro de poucas gerações, a uma sexualidade
273
mais natural “polimorfamente pervertida” , a concentra
ção na sexualidade genital e no prazer orgásmico dando
lugar a relações físicas/emocionais totais que os incluís
sem. As relações com as crianças incluiriam o grau de se
xualidade genital que as crianças fossem capazes de ter —
provavelmente bem mais do que nós imaginamos hoje
— mas pelo fato de a sexualidade não ser mais o foco
dos relacionamentos, a ausência de orgasmo não consti
tuiria um problema sério. Os tabus referentes à sexuali
dade entre adultos/crianças e à homossexualidade desa
pareceriam, tanto quanto as amizades não-sexuais (o amor
“inibido quanto ao alvo” , de F reud). Todas as relações
íntimas incluiriam o relacionamento físico, desaparecen
do de nossa estrutura psíquica o conceito de relações fí
sicas exclusivas (m onogam ia), bem como a imagem de
um Parceiro Ideal. Mas permanecem em conjuntura o
tempo que levaria para essas mudanças acontecerem e
as formas que elas tomariam. Os casos específicos não
nos interessam aqui. Necessitamos apenas estabelecer as
precondições para uma sexualidade livre. As formas que
ela assumirá representariam seguramente um progresso
dentro do que temos agora, “natural” no seu sentido mais
autêntico.
Na fase de transição, a sexualidade genital adulta
e a exclusividade dos casais poderão ter que ser m anti
das dentro do household, para que a unidade possa fun
cionar tranqüilamente, com um mínimo da tensão interna
gerada pelos atritos sexuais. É irreal querer impor teorias
sobre o que se deveria passar numa psique já fundam en
talmente organizada em torno de necessidades emocio
nais específicas. E é por isso que as tentativas individuais
para eliminar a possessividade sexual são hoje sempre
inautênticas. Faríam os muito melhor em nos concentrar
na mudança das estruturas sociais que produziram essa
organização física, o que permitiria finalmente — senão
na nossa época — a reestruturação (ou devo dizer deses-
truturação) fundamental de nossa psicossexualidade.
Acima, redigi apenas um plano muito grosseiro, com
vista a tornar mais clara a direção geral de uma revolu
ção feminista. A produção e a reprodução das espécies
274
seriam simultaneamente reorganizadas de um modo não-
repressivo. O parentesco das crianças com uma unidade
que se dispersaria ou se recom poria tão cedo as crianças
fossem fisicamente capazes de ser independentes, e que
seria destinada a atender às necessidades imediatas, cm
vez de transm itir poderes e privilégios (a base do patriar
cado é a herança da propriedade adquirida através do
trabalho), eliminaria a psicologia do poder, a repressão
sexual e a sublimação cultural. O chauvinismo da famí
lia, o privilégio de classe baseado no nascimento, seria
eliminado. Os laços de parentesco da mãe para com o
filho seriam finalmente rompidos — se de fato existe
uma inveja do parto “criativo” no homem, breve tere
mos meios de criar a vida independentemente do sexo —
de modo a que a gravidez, hoje abertamente reconhecida
como deselegante, ineficiente e dolorosa, seria considera
da apenas um arcaísmo fútil, exatamente como as mulhe
res hoje vestem o branco virginal em suas núpcias. Um
socialismo cibernético eliminaria as classes econômicas,
e todas as formas de exploração do trabalho, pela con
cessão a todas as pessoas de um a subsistência baseada
apenas em necessidades materiais. Finalmente, os traba
lhos pesados (empregos) seriam eliminados em favor da
diversão (com plexa), atividade feita por seu próprio va
lor, tanto para os adultos, quanto para as crianças.
A revolta contra a família poderia acarretar a pri
meira revolução bem sucedida, ou o que era tido pelos
antigos como a Idade Messiânica. A dupla maldição lan
çada contra a hum anidade quando ela comeu a Maçã
do Conhecimento (o conhecimento crescente das leis do
meio-ambiente indo gerar a civilização repressiva), de
que o homem teria que trabalhar com o suor do seu rosto
para viver, e de que a m ulher suportaria dores e o tra
balho do parto pode ser agora desfeita, mediante as rea
lizações do homem no trabalho. Agora temos conheci
mento para criar de novo um Paraíso na Terra. A alter
nativa para isso é o nosso próprio suicídio através desse
conhecimento, a criação de um Inferno na Terra, seguido
do perdão.
275