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Edaraujo, ARTIGO08 - PDF
Edaraujo, ARTIGO08 - PDF
RESUMO
Este artigo tem o objetivo de analisar de que maneira o comércio interno de ferro
desenvolvido na região da Senegâmbia pode nos auxiliar em uma nova compreensão
sobre as relações sociais que conformaram o espaço senegambiano durante o século
XVI. Critica-se uma visão dicotômica da região caraterizada pela hierarquização dos
povos ao norte e ao sul da região em sociedades que apresentavam ou não organização
estatal. Utilizando-se de relatos de viagem, a principal linha de análise de baseia na
percepção das diferentes rotas comerciais e da construção de espaços sociais proposta
por Jean-Loup Amselle, possível de ser compreendido através dos conceitos de cadeia
de sociedades e espaços de troca.
PALAVRAS-CHAVE: História da África; Senegâmbia; Comércio; Ferro.
ABSTRACT
This article aims to analyze how the internal iron trade developed in the Senegambia
region can help us in a new understanding about the social relations that shaped the
Senegambian space during the 16th century. A dichotomous view of the region
characterized by the hierarchization of peoples to the north and south of the region
in societies with and without state organization is criticized. Using travel accounts, the
main line of analysis is based on the perception of different trade routes and the
construction of social spaces proposed by Jean-Loup Amselle, which can be
understood through the concepts of chain of societies and exchange spaces.
KEYWORDS: African history; Senegambia; Trade; Iron.
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Este trabalho foi desenvolvido no âmbito de Iniciação Científica Voluntária, sob a orientação da
Prof.ª Dr.ª Vanicléia Silva Santos.
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Graduando em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FaFiCH) da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do grupo de pesquisa Áfricas: história, política e
cultura/UFMG, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Vanicléia Silva Santos. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6558350411415783. Endereço de e-mail: lucas.aleixo228@gmail.com.
1. Introdução
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A obra de George E. Brooks, Landlords & Strangers: Ecology, Society, and Trade in Western Africa,
apresenta grande contribuição para os estudos da hierarquia nos povos mande ao abordar os
niamakalaw, artesãos que se dedica ao trabalho do couro e do ferro.
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Para autores como Boubacar Barry e Carlos Lopes, o espaço senegambiano seria formado pela
presença do islã e pela influência política, cultural e social de povos de estruturação mandinga.
Horta ainda afirma que o estudo das representações deve ser acompanhado
do estudo dos códigos culturais do viajante (do qual fazem parte aspectos sociais,
políticos, culturais e econômicos). Sílvio Marcus de Souza Corrêa também defende a
necessidade de se lançar um “olhar acurado para como olhou, quando olhou e de
onde olhou o seu informante, isto é, o viajante” (CORRÊA, 2011, p. 2).
Outros autores, como José da Silva Horta e Eduardo Costa Dias, propõem
uma ampliação da borda sul da região até a Serra Leoa. De acordo com os autores,
deve-se compreender a região não apenas pela relação que esta possuía e ainda possui
com o Islã e o resto da civilização islâmica, mas como um espaço de trocas comerciais,
políticas e culturais (HORTA, 2007). Tal concepção é compartilhada por este trabalho
devido à própria demarcação da região presente na documentação do século XVI
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Futuramente, haverá a busca por em diálogo entre os relatos com a antropologia e arqueologia.
Sabemos que os registros portugueses precisam ser contemporizados com esse outro tipo de fonte.
Depois que passámos o Cabo branco, navegámos á vista delle por nossas
jornadas até ao rio chamado do Senegal, que he o primeiro rio tia terra dos
Negros, entrando por aquella Costa; o qual estrema os Negros dos Pardos
chamados Azenegues [berberes]; e parte tambem a terra seca e arida, que
he o deserto sobredito, da terra fertil, que he paiz de Negros.
(CADAMOSTO, 1812, p.27).7
Quis escrever algumas coisas dos Rios de Guiné Cabo Verde, começando
do Rio Sanagá [Senegal], até Serra Leoa, que é o limite da Ilha de Santiago,
porque dessas partes sei honestamente. (ALMADA, 1841, p. 21-22).
Neste relato, temos uma delimitação da região dos Rios da Guiné do Cabo
Verde, denominação empregada pelos europeus e luso-africanos para se referir à
região da Senegâmbia. O viajante deixa evidente que a região de interesse se estende
do rio Senegal até Serra Leoa. Essa demarcação física vai ao encontro com o conceito
de Senegâmbia articulado por José da Silva Horta, devido ao fundamento dessa
delimitação ser o interesse comercial de Almada.
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Tradução nossa: “Fifteenth- and sixteenth-century Portuguese roteiros, or charts, in spite of their
limited objectives, are extremely useful introductions to the geography and the history of the Upper
Guinea Coast”
7 No processo de transcrição dos trechos documentais, optou-se por preservar a grafia original
colocando-se entre colchetes a grafia atualizada, quando necessário, para uma melhor compreensão.
Como visto nos autores citados, há claramente uma distinção baseada nas
8 Tradução nossa: made Senegambia dependent on the state of the Sudan on the states of the Sudan
and the Sahara until the fifteenth century. Only later, with its opening out onto the Atlantic seaboard,
did the region begin to play its pivotal geographical role in full.
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Até atingir o deserto do Saara, ao norte do atual Senegal.
Esses povos teriam sofrido grande influência dos povos de origem mande
devido à invasão dos mesmos na região de Serra Leoa ocorrida, de acordo com o
relato de André Donelha, no ano de 1545. O comerciante André Donelha escreve
sobre as informações que obteve ao conversar com três manes escravizados de seu
pai, que tinham os nomes de batismo Baltazar, Belchior e Gaspar. De acordo os três
manes, Macarico, mulher importante no Mali, teria tido desavenças com o
Mandimansa10 e, por isso, teria saído de seu domínio com um exército em direção à
região de Serra Leoa.
Vemos então como a concepção das regras sociais que regulam o espaço
senegambiano está em torno da identificação da influência do Islã, da presença de
Estado e de estruturação de hierarquização da vida social. Busca-se, assim, por
grandes estruturas e poder unificado que resultam em uma abordagem “tipológica
(sociedades com Estado/sociedades sem Estado)” (AMSELLE, 2017, p. 44). Tal
perspectiva acaba por privilegiar concepções ocidentais de organização da vida social
devido à preocupação excessiva com a presença do Estado, de poder centralizado e
hierarquias sociais. Com os termos utilizados, há a construção de uma dicotomia de
Estado/sem Estado, religião única/animistas, hierarquias/sem organização social,
etc. que acaba por inferiorizar aqueles que não se encaixam nos moldes dos
parâmetros de conformação utilizados.
Fonte: “The Petite Côte Sephardic Communities and Cacheu and Rio Grande Regions”. In: HORTA,
J. da Silva; MARK, Peter. The Forgotten Diaspora: Jewish Communities in West Africa and
the Making of the Atlantic World. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. Mapa de Peter
Mark e de José da Silva Horta.
O ferro também era importado pela região por meio das rotas comercias pelo
Atlântico, mas não em quantidade suficiente para suprir totalmente a demanda local,
Na obra intitulada Esmeraldo de Situ Orbis, Duarte Pacheco Pereira diz que
“no meio deste caminho [entre o Rio Gâmbia e o Cabo Roxo] estaa hum Rio que se
chama Casamansa a gente do qual são mandiguas [mandingas]” (PEREIRA, 1892, p.
52) e “neste rio de casa mansa [Casamance] val[e] muito ho ferro e aqui há resguate
[comércio] de escrauos por cauallos e por lenços e por pano vermelho” (PEREIRA,
1892 p. 52). O interesse do viajante é registrar as principais informações sobre o trato
nos rios da região – principais aglomerações de rotas comerciais. Duarte Pacheco
aponta a informação crucial para o desenvolvimento do trato na região do rio
Casamansa: naquela região, o ferro é de extrema importância.
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Rio que percorre os atuais países de Guiné e Serra Leoa. Conhecido em Serra Leoa como Scarcies
e em Guiné como rio Kolonté. Na documentação do século XVI, aparece com a denominação de
rio Cases.
Ao falar sobre os jalofos e mandingas na região da foz, diz que “elles não tem
ferro salvo os mercadores que vem dençima [do interior] do ryo de Gambia; estes
traz[em] ferro e dele se [a]basteçe a moor [maior] parte de Gyloffa [reino jalofo] e este
ferro vem pelo sertão de Serra Lyoa em carreto pera este ryo” (FERNANDES, 2011,
p. 707). Vemos então a descrição de uma rota comercial interna de ferro para o rio
Gâmbia que parte da região de Serra Leoa. Não fica evidente quem são os grupos de
comerciantes.
Uma das principais informações para esse estudo está presente no relato de
André Donelha. Ao falar sobre a região dos Rios da Guiné, o cabo-verdiano registra
informações sobre a produção de ferro na região de Serra Leoa antes da invasão dos
Manes. Registra que pelo sertão “há diversas nasois [nações], a saber, cases [ou casses],
gemte guerreira e bem armada das armas yá [já] nomeadas; nos cases se fundia fero
mujto bom, que corja [corria] por diversas partes; depois que forão [foram] sogeitos
[subjugados] aos manes se perdeo esse trato [comércio]” (DONELHA, 1977, p. 107).
Além das rotas internas, o ferro era comercializado entre as diferentes partes
da região através do Atlântico. Devido à alta qualidade do ferro produzido na região
sul, muitos portugueses “compravam ferro em Serra Leoa para vendê-lo em
Senegâmbia e em outros locais, como mostra claramente os livros de registro do navio
Santiago que fez a travessia dessa rota em 1526” (THORNTON, 2004, p. 91).
De acordo com Jean-Loup Amselle, é necessário que haja uma alteração dos
pressupostos que guiam os estudos das sociedades africanas. Amselle defende, para o
período pré-colonial, o que chama de “cadeia de sociedades” e propõe outras
categorias de análise como sociedades englobantes e englobadas. As primeiras
exercem influência/poder em um sistema de relações de dependência. Isto exige
pensar as sociedades africanas de outra forma, pois pressupõe a historicidade das
mesmas.
A partir das análises estabelecidas sobre a Senegâmbia, vimos que a região foi
pensada a partir de uma conformação dicotômica que tinha como principal
perspectiva uma percepção, de acordo com Amselle, tipológica, privilegiando-se uma
perspectiva cultural e política. Tal perspectiva tinha como ênfase
concepções/paradigmas ocidentais de organização da vida social, que resultou numa
divisão da região e de seus grupos populacionais.
Referências
ALMADA, André Álvares. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde dês
do Rio Sanagá até os Baixos de Santa Ana. Porto: Tipografia Comercial
Portuguesa, 1841.
______. A pirâmide invertida: Historiografia africana feita por africanos. In: Actas
do colóquio Construção e ensino de História da África. Lisboa: Linopazas, 1995,
p. 21-29.
REIS, Lucas Aleixo Pires dos. Relatos de viagem: percepções e uso na História da
África ocidental pré-colonial. In: Anais do VIII Encontro de Pesquisa em
História, Belo Horizonte, MG, 13 a 17 de Maio de 2019 [recurso eletrônico] -
História em Tempos Sombrios: estudar, pesquisar, ensinar. / Organizadores: Álvaro
Augusto Lourenço et al. -Belo Horizonte: UFMG, 2019, p. 301- 307.
RODNEY, Walter. A History of the Upper Guinea Coast (1545 to 1800). Oxford:
Clarendon Press, 1970.