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FONOLOGIA E SUAS INTERFACES:

contribuições para pesquisa,


descrição e ensino de línguas

Organizadores
Natália Cristine Prado
Fábio Pereira Couto
Fonologia e suas interfaces:
contribuições para pesquisa,
descrição e ensino de línguas
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

Reitora Marcele Regina Nogueira Pereira


Vice-Reitor José Juliano Cedaro

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

CONSELHO EDITORIAL COMISSÃO CIENTÍFICA

Presidente Samilo Takara Marília Lima Pimentel Cotinguiba


Lou-Ann Kleppa Patrícia Goulart Tondineli
Carlos Alexandre Trubiliano Quesler Fagundes Camargos
Crisitane Marina Teixeira Girard Auxiliadora dos Santos Pinto
Gean Carla Silva Sganderla
Geane Valesca da Cunha Klein
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Júlio César Schweickardt
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Editora da Universidade Federal de Rondônia


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Fonologia e suas interfaces:
contribuições para pesquisa,
descrição e ensino de línguas

Organizadores:
Natália Cristine Prado
Fábio Pereira Couto

Coleção Pós-Graduação da UNIR

Porto Velho - RO
2023 by Natália Cristine Prado, Fábio Pereira Couto (Organizadores)
Esta obra é publicada sob a Licença Creative Commons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Internacional.

Revisão:
Marília Lima Pimentel Cotinguiba

Projeto gráfico:
Edufro - Editora da Universidade Federal de Rondônia

Diagramação:
Rogério Mota Diagramação & Temática Editora

ASSESSORIA CIENTÍFICA

Dra. Célia Regina Delácio Fernandes


Universidade Federal da Grande Dourados

Dr. José Batista Sales


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Dra. Sandra Teixeira de Faria


Universidad Complutense de Madrid

Catalogação da Publicação na Fonte


Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR

F675 Fonologia e suas interfaces: contribuições para pesquisa, descrição e


ensino de línguas /(orgs.) Natália Cristine Prado e Fábio Pereira Couto.
- Porto Velho, RO: Edufro, 2023.
326 f.: il.
Inclui referências.
Livro disponível somente on-line pelo site: www.edufro.unir.br.
ISBN: 9788577641031
1. Fonologia. 2. Pesquisa. 3. Ensino de línguas. I. Título
Biblioteca Central  CDU 81'34

Bibliotecário(a) Marcelo Garcia Cardoso CRB-11/1080


Sumário

7 FONÉTICA E FONOLOGIA: PERCURSO HISTÓRICO E


CONTRIBUIÇÕES PARA OS ESTUDOS E ENSINO DE LÍNGUAS
Fábio Pereira Couto
Natália Cristine Prado

23 ENSINANDO ORTOGRAFIA NA ALFABETIZAÇÃO


Valdene Moura Lopes
Valdeci Scaliante de Santana
Luiz Carlos Cagliari

59 VARIAÇÃO FONOLÓGICA E ENSINO: DESCRIÇÃO E


ANÁLISE DE DESVIOS ORTOGRÁFICOS DE ALUNOS
DO ENSINO FUNDAMENTAL II
Marcus Garcia de Sene

83 FONÉTICA, FONOLOGIA E FORMAÇÃO DOCENTE:


UMA REFLEXÃO SOBRE O APAGAMENTO DO /S/
A PARTIR DA PERSPECTIVA DO PROFESSOR
Joana D’Arc de Camillo Corrêa
Natália Cristine Prado

119 “MEXEU COM UMA, MEXEU COM TODAS”: SOBRE


O PAPEL DE INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS EM
SISTEMAS FONÉTICO-FONOLÓGICOS MULTILÍNGUES
Ubiratã Kickhöfel Alves
Felipe Guedes Moreira Vieira

155 FONÉTICA E FONOLOGIA: FORMAÇÃO DOCENTE, ESCRITA


E ENSINO BILÍNGUE NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INDÍGENA
Fábio Pereira Couto
195 DESAFIOS NA NORMATIZAÇÃO DA ESCRITA DE LÍNGUAS
INDÍGENAS BRASILEIRAS: O CASO PAITÉR (SURUÍ)
Ana Suelly Arruda Câmara Cabral
Edineia Aparecida Isidoro

217 OS ESTUDOS FONOLÓGICOS DA LÍNGUA KAIOWÁ


Andérbio Márcio Silva Martins

245 CONSOANTES LATERAIS DUPLAS EM POSIÇÃO


INTERVOCÁLICA: ANÁLISE DA POSSIBILIDADE
DE GEMINAÇÃO NO PORTUGUÊS DOS TROVADORES
Débora Aparecida dos Reis Justo Barreto
Gladis Massini-Cagliari

273 FRICATIVAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO:


DA PRODUÇÃO À PERCEPÇÃO
Audinéia Ferreira-Silva

297 AS INTERROGATIVAS DE UMA AMOSTRA DO


PORTUGUÊS BRASILEIRO EM DIFERENTES ATITUDES:
UMA DESCRIÇÃO GESTUAL E ACÚSTICA
Karina Dias
Vera Pacheco
Marian Oliveira

323 SOBRE OS AUTORES


FONÉTICA E FONOLOGIA: PERCURSO HISTÓRICO E
CONTRIBUIÇÕES PARA OS ESTUDOS E ENSINO DE LÍNGUAS

Fábio Pereira Couto


Natália Cristine Prado

Como a “langue” consiste em regras ou normas, é um sistema, ou melhor,


vários sistemas parciais, o que a “parole” não é. As categorias gramaticais
formam um sistema gramatical, as categorias semânticas, vários sistemas
semânticos. Todos esses sistemas estão devidamente equilibrados, de modo
que todas as partes se apoiam umas às outras, complementam-se e se rela-
cionam entre si. Só por isso é possível relacionar a infinita variedade de con-
ceitos e ideias que aparecem no ato da fala aos componentes dos subsiste-
mas do sistema da linguagem. Isso também vale para o aspecto significante.
O fluxo sonoro do evento de fala concreto é uma sequência ininterrupta e
aparentemente desordenada de movimentos sonoros que se fundem um no
outro. As unidades do aspecto significante do sistema de linguagem, por
outro lado, formam um sistema ordenado. E devido ao fato de que elemen-
tos individuais ou momentos do fluxo sonoro realizados no evento de fala
podem ser relacionados a unidades individuais desse sistema, o fluxo sonoro
é ordenado. (Trubetzkoy, 1969, p. 3). (Tradução nossa1).

Do original: Since langue consists of rules or norms, it is a system, or better, several partial
1

systems, which parole, is not. The gramatical categories form a gramatical system, the seman-
tic categories vairious semantic systems. All these systems are properly balanced, so that all
parts lend support too ne another, complemente one another, and relate too ne another. It is
Only for this reason that it is possible to relate the infinite varietu of concepts and ideas that
appear in teh act of speech to the componentes of the subsystems of the language system. This
i salso true for the signifier aspect. The soud flow of the concrete speech event is na uninter-
rupted, seemingly unordered sequence of sound movements merging into Other. The units of
the signifier aspecto of the language system, on the other hand, form na ordered sustem. And
due to the fact that individual elements or moments of the sound flow realized in the speech
event can be related to individual units of that system, the soud flow is ordered.

7
A contribuição da Fonética e da Fonologia para os estudos da lingua-
gem é notório, e por isso elas, em especial, não deveriam ser objetos priorizados
por poucos grupos de linguistas, mas, sim, de todos os professores e pesqui-
sadores que, de alguma forma, tenham o estudo da linguagem como objetivo.
O interesse pelos estudos e pela compreensão das estruturas sonoras e de suas
contrapartidas abstratas das línguas foi e vem sendo preferência de poucos.
Os primeiros registros de escrita, da tentativa de sistematizar os sons
das línguas, se deu por volta de 1500 a.C. As reflexões de Platão (424-348
a.C.) acerca da linguagem, descritas em seus diálogos, dão conta das primeiras
tentativas mais claras de se explicar e refletir sobre as características dos sons
e de como se organizam dentro dos sistemas das línguas. Na Arte Gramatical
de Dionísio Trácio (170-90 a.C.), se propôs, para o grego, uma análise do sis-
tema sonoro de forma mais detalhada, sendo descrito para a língua grega, por
exemplo, 24 consoantes e 7 vogais, algo que ainda não se tinha feito até então.
Avançando no tempo, já no Renascimento, temos na Gramatica de la
lengua castellana (1498), de autoria de Elio Antônio de Nebrija (1441-1522),
um estudo gramatical mais detalhado de uma língua ocidental moderna. Nesta
obra, temos as primeiras tentativas de descrever os aspectos acústico-articula-
tórios do sistema sonoro de uma língua. A título de exemplo, o autor classifica
e descreve as consoantes em: limpias, espessas e escura, respectivamente, em ter-
minologia atual, em surdas, sonoras e nasais.
Já os primeiros indícios de uma análise sobre o sistema sonoro da língua
portuguesa, se dá na obra Gramatica da lingoagem portuguesa (1536) de Fernão
de Oliveira (1507-1580). Nessa obra, o autor além de propor uma descrição
para o sistema fonético da língua portuguesa, avança em relação à natureza
distintiva dos sons, afirmando, por exemplo, que uma letra é um conceito abs-
trato, que possui figura, nome e voz. Sobre essa questão, Mateus (2001, p. 58),
afirma:

Os atuais linguistas portugueses herdaram, dos filólogos e linguistas que os


precederam, um espólio de grande riqueza que incidia, sobretudo, na histó-
ria da língua portuguesa e na identificação das características do português

8
antigo, na dialectologia e na descrição das peculiaridades dialectais. Em
todos estes domínios o estudo dos sons foi sempre privilegiado. Recorde-se
que na primeira gramática portuguesa, Fernão de Oliveira consagra 23 dos
50 capítulos da obra à análise dos sons e das letras, e que nas gramáticas
surgidas entre os séculos 16 e 19 a ortografia, a ortoepia e a prosódia têm
lugar de destaque principalmente com objetivos normativos e pedagógicos.

As terminologias Fonética e Fonologia, na perspectiva que conhecemos


e que são aplicadas nos dias atuais, só começam a ser mais amplamente divul-
gadas em meados do século XIX pelos filólogos que estudavam as línguas per-
tencentes ao grupo genético denominado de indo-europeu, em especial, pelos
estudos realizados sobre as línguas românicas. Esses trabalhos eram, em sua
maioria, conhecidos como estudos histórico-comparativos. Porém, esses estu-
dos ainda não tinham em sua essência a investigação fonológica como conhe-
cemos atualmente, pois somente em 1894 surge o termo fonema no interior
do Círculo de Kazan, tendo na figura do pesquisador Jan Ignacy Niecislaw
Baudouin de Courtenay (1845-1929) o seu idealizador.
Quase nessa mesma época, mais especificamente em 1916, e com a
publicação póstuma da obra Cours de linguistique générale de Ferdinand de
Saussure, é que surge a primeira grande corrente linguística conhecida como
Estruturalismo. Nesta obra, Saussure afirma que os estudos dos sons estão
ligados à parole, em seus aspectos acústicos e articulatórios. Assim, para o autor,
a fonética estaria relacionada aos estudos diacrônicos. Contudo, a visão teó-
rica estruturalista de Saussure influenciou muitos outros estudos posteriores,
inclusive aqueles que se propuseram a fazer a análise psicológica (abstrata) dos
sistemas sonoros das línguas, seja ela na perspectiva da fonêmica (versão ame-
ricana) seja da fonologia (versão europeia).
Sob esse olhar, a fonologia, no sentido que conhecemos e aplicamos
hoje, continuava a ser desenvolvida no continente europeu, tendo, por exemplo,
nos estudos de Lev Vladimirovič Ščerba (1880-1944), a descrição e afirmação
mais clara e enfática do propósito funcional e abstrato do fonema. É desse

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autor as primeiras discussões mais sólidas da época acerca de fonemas, pares
mínimos e distribuição complementar, por exemplo.
Nesse cenário, e com o surgimento do Círculo de Praga, na segunda
metade da década de vinte, é que se avançou fortemente em direção aos estu-
dos fonéticos e principalmente fonológicos sobre as línguas do mundo. É
dessa época, por exemplo, a publicação da obra póstuma de Nikolaj Sergeevič
Trubeckoj (1890-1938), intitulada Grundzüge der Phonologie, em que se faz
análise de vários sistemas fonológicos de línguas distintas pelo mundo.
Pertencentes ao Círculo Linguístico de Praga, temos em Trubetzkoy e
Jakobson fundamental contribuição para o desenvolvimento dos estudos lin-
guísticos da época e em especial sobre a evolução da fonologia dita moderna.
A proposta teórica e de estudos desses pesquisadores ficou conhecida como
Fonologia Estruturalista desenvolvidas na Europa, teoria essa que teve e tem
grande influência nos estudos linguísticos posteriores, sendo utilizada ampla-
mente até os dias atuais. É, por exemplo, de Jakobson o conceito moderno mais
aceito de fonema e é de Trubetzkoy os termos e conceitos: neutralização, trian-
gulo das vogais e arquifonema. Termos esses que são amplamente utilizados
ainda hoje nas diversas teorias fonológicas.
Essas ideias, desenvolvidas no leste da Europa, foram levadas para os
Estados Unidos, onde lá ficou conhecida como Fonêmica Americana, que
era o correspondente à fonologia desenvolvida no continente europeu. A esse
respeito, Trubetzkoy (1969, p. 8-9), diz:

Nos últimos tempos os britânicos tem empregado o termo “fonêmica” no


sentido em que usamos o termo “fonologia”. Como em inglês o termo
“fonologia” já recebeu outro significado, o termo “fonêmica” será rema-
nejado para os falantes de inglês. Seria, talvez, útil introduzir este termo
também no sueco. Mas em outras línguas em que o termo “fonologia” não
tenha outro significado, deve ser usado no sentido proposto por nós. Em
todo caso, o termo “psicofonética” (que Baudouin de Courtenay quis desig-
nar como “fisiofonética”) está muito mais preocupado com os fenômenos

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psíquicos do que a fonologia, está lidando com valores sociais supraindivi-
duais. (Tradução Tradução nossa2).

Nessa perspectiva teórica e metodológica, se destacaram, entre outros,


os trabalhos de Sapir (1925), Bloomfield (1933), Swadesh (1934), Pike (1943,
1947) e Hockett (1955).
No início da década de cinquenta, com a publicação da obra Prelíminaries
to speech analysis: The distinctive features and their correlates, de Roman Jakobson,
Gunnar Fant e Morris Halle (1952), se tem, ainda sob a perspectiva da linha
teórica Estruturalista, um trabalho que propôs, de forma mais detalhada, des-
crever os traços distintivos dos fonemas, lançando mão, para isso, tanto de
aspectos articulatórios como acústicos. Mas é a abra The sound pattern of English
(mais conhecida pela sigla SPE), publicada em 1968, de Noam Chomsky e
Morris Halle, que marcou, depois do Estruturalismo, uma nova era para os
estudos fonológicos. Fase essa conhecida principalmente como Fonologia
Gerativa e que veio a influenciar muitas outras teorias posteriores, contando
ainda com forte prestígio pela comunidade científica.
Vale ressaltar que todas as teorias, até então, tinham a proposta linear
ou segmental de análise fonológica, ou seja, modelos teóricos (cf. Bisol, 2010,
p. 13) que “analisam a fala como uma combinação linear de segmentos ou
conjuntos de traços distintivos, com limites fonológicos e sintáticos”. Esses
modelos lineares são rompidos com novos estudos, conhecidos como modelos
teóricos pós SPE, principalmente, aqueles desenvolvidos a partir da década de
70. Essas novas teorias, que surgem principalmente, mas não exclusivamente,
por conta do modelo do SPE vão oferecer “virtualmente qualquer formalismo

Do original: In recentes times the British heve heve employed the term “phonemics” in
2

teh sense in which ww use the term “phonology”. Since in English the term “phonology”
has already received another meaning, the term “phonemics” will be retaned for English
speakers. It woud, perhaps, be useful to introduce this ter minto Swedish as well. But in
Other languages in which the term “phonology” does not heve another meaning, it shall be
used in the sense proposed by us. In any case, the term “psychophonetics (which Baudouin
de Courtenay wanted to designate “physiophonetics”) is Much more concerned with psychic
phenomena than is phonology, the latter dealing with supra-individual social values.

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para a representação e manipulação de propriedades prosódicas tais como
altura e duração (cf. Wetzels, 1995)”, ficaram conhecidas, principalmente,
como fonologias não-lineares, em outros termos, conforme afirma Bisol (2010,
p. 13), modelos que:

veem na Fonologia de uma língua como uma organização em que os traços,


dispostos hierarquicamente em diferentes tiers (camadas), podem estender-
-se aquém ou além do segmento, ligar-se a mais de uma unidade, como
também funcionar isoladamente ou em conjuntos solidários.

Nessas vertentes teóricas, destacam-se, principalmente, a fonolo-


gia autossegmental, que teve seu início reconhecido em Goldsmith (1976).
Modelo esse que foi muito difundido em Clements (1985) e Clements e
Hume (1995). Além dessas teorias, somam-se outras linhas teóricas e autores,
como, por exemplo: Fonologia Métrica (Liberman e Prince, 1977), Fonologia
Lexical (Kiparsky, 1982) e Teoria da Sílaba (Kahn, 1976). Posteriormente,
surgiram outros quadros teóricos, como a Teoria da Otimalidade, identificada
principalmente pelo trabalho de Prince e Smolensky (1993) e a Fonologia
de Uso e da Teoria dos Exemplares (ver Haupt, 2011, Haupt; Seara, 2012,
Cristófaro-Silva; Gomes, 2017).
Obviamente, não pretendemos e nem é possível alcançar todas as teorias
e seus autores nesse quadro histórico, mesmo sabendo da importância deles
para nossa discussão, por isso, incentivamos o leitor a se aprofundar nos estu-
dos sobre os diferentes quadros teóricos que mobilizam os estudos de Fonética
e Fonologia.
Cabe ainda informar, como postulamos no título deste livro, que
durante toda a trajetória e evolução dos estudos fonéticos e fonológicos, há, de
forma intimamente relacionadas, uma interface sistemática entre a Fonética
e Fonologia e as outras áreas da linguística, ainda considerando os aspec-
tos extralinguísticos e o compromisso com o ensino de línguas. Assim, esse
breve panorama histórico da evolução dos estudos fonéticos e fonológicos nos
mostra a importância dessas áreas para o desenvolvimento dos estudos

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linguístico da linguagem humana, que podem ser verificados desde as primei-
ras tentativas de se entender e de se registrar os sistemas sonoros das línguas
até os modelos teóricos mais modernos.
Contudo, podemos destacar que a linguística, em geral, e a Fonética
e a Fonologia em particular, ainda são objetos de estudo de grupos restritos
de pesquisadores e professores, havendo pouco conhecimento ou interesse
por grande parte da sociedade acadêmica em geral, seja de linguistas ou não,
inclusive por professores alfabetizadores, que deveriam compreender a língua
também como um fenômeno fonético e fonológico para lidar de forma mais
técnica e eficiente na sua tarefa de ensinar a ler e a escrever (cf. Cagliari, 2008,
Ilari, 1985).
É sob esse prisma, reconhecendo a importância da Fonética e da
Fonologia para os estudos da natureza da linguagem humana e percebendo
o pouco interesse ou informação que se tem por essas áreas, que surge a ideia
de publicar esse volume, como forma de divulgação dessas áreas, e também
para mostrar que elas estão estreitamente interrelacionadas com outras áreas
da linguística e do ensino. Consideramos que o fato de as áreas de Fonética
e, especialmente, de Fonologia estarem despertando pouco interesse dos pes-
quisadores – sendo, muitas vezes, negligenciadas nos cursos de formação de
professores (principalmente, na formação dos docentes que atuam nas séries
iniciais da Educação Básica) –, deve ser visto como motivo de preocupação.
Afinal, sem uma boa formação nessas áreas fica difícil executar a tarefa de se
ensinar a ler e escrever uma língua, lembrando que no país existem muitas
outras línguas além da língua portuguesa, portanto, é importante também que
sejam realizados estudos sobre os aspectos Fonéticos e Fonológicos de outras
línguas faladas em território nacional.
Vale ressaltar que nos estudos fonéticos e fonológicos, ocorre uma rela-
ção de via de mão dupla, pois a evolução dessas teorias ocorre, em muitos casos,
na tentativa explicar fenômenos linguísticos próprios de línguas particulares,
que promovem a necessidade de ajustes teóricos para dar conta de descrevê-los
e explica-los. Para isso, basta verificar a grande contribuição que as línguas
indígenas, por exemplo, dão e ainda podem dar à Fonética e à Fonologia, já

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que são línguas com grande diversidade e particularidades em seus sistemas
linguísticos (cf. Rodrigues, 2002).
Sob esse aspecto, o Brasil desempenha papel de protagonista, pois, dife-
rentemente do senso comum, o Brasil é um país multilíngue. Além da língua
portuguesa e línguas advindas principalmente de imigrantes europeus, há cerca
de 180 línguas indígenas (cf. Rodrigues, 2002), sendo estimado que existiam
por volta de 1175 línguas no período anterior à colonização (cf. Rodrigues,
1993). Grande parte dessas línguas indígenas ou não foram estudadas ou não
tiveram descrições completas e detalhadas, o que evidencia um cenário de
carência de investigação, por um lado, mas, por outro, fomenta uma ampla
gama de possibilidades para o fonólogo e/ou foneticista, já que muitos fenô-
menos fonéticos e fonológicos e de outras partes inerentes à investigação lin-
guística são próprios dessas línguas, e muitas vezes só verificados nelas.
Portanto, a Fonética e a Fonologia são ferramentas fundamentais para
a análise e descrição das línguas originárias, mas que encontram poucos lin-
guistas dispostos ou preparados para analisá-las fonética e fonologicamente.
Soma-se a isso, a questão do ensino de línguas indígenas, que ocorre normal-
mente em contexto bilíngue, que carece, assim como ocorre no cenário da edu-
cação escolar não indígena (cf. Cagliari, 2008, Ilari, 1985), muito de formação
fonética e fonológica dos professores indígenas para lidar com o ensino dessas
línguas nas escolas das suas comunidades tradicionais.
Nesse sentido, e visando atingir nossos objetivos, reunimos neste livro
estudos diversos que procuram relacionar a Fonologia, em diferentes vertentes
e espectros, com outras áreas da linguística e do conhecimento. Assim, visando
a diversidade e a qualidade, este livro é resultado de trabalho coletivo, com a
fundamental colaboração de professores especialistas com grande experiência
em pesquisas e ensino na área Fonologia em interface com outras áreas, como
a Fonética, a educação, a formação de professores etc.
Para composição deste livro, além deste capítulo introdutório, contamos
com outros dez capítulos que retratam diversas abordagens teóricas e meto-
dológicas, com propostas e objetivos distintos. Esperamos, assim, proporcionar
ao leitor uma diversidade de estudos, de ideias, e de reflexão sobre às áreas e

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correntes teóricas, um leque de informações e conhecimentos acerca das pos-
sibilidades que o estudo dos aspectos fonológicos das línguas permitem. Desse
modo, esse livro promove uma contribuição para os estudos fonológicos em
interface com outras tantas áreas da linguística e do ensino.
Como forma de organizar os estudos descritos neste livro para facilitar
a leitura e a progressão temática dos trabalhos, apresentamos como primeiro
capítulo o texto intitulado Ensinando Ortografia na Alfabetização, de autoria de
Valdene Moura Lopes, Valdeci Scaliante de Santana e Luiz Carlos Cagliari.
Nesse capítulo são apresentados resultados de uma pesquisa que tematiza a
alfabetização e aborda os principais conhecimentos teóricos sobre o sistema
alfabético-ortográfico, tratando ainda da noção de consciência fonológica dis-
cutida na visão tradicional e em abordagem linguística. Esse trabalho promove
também uma reflexão acerca do modo como o sistema se organiza para juntar
sons e símbolos gráficos, sendo que esse processo complexo pode ser melhor
compreendido, na visão dos pesquisadores, a partir da perspectiva da linguís-
tica sobre a ortografia dentro do contexto da variação linguística e dos princí-
pios que regem o sistema de escrita.
No segundo capítulo, intitulado Variação Fonológica e Ensino: Descrição
e Análise de Desvios Ortográficos de Alunos do Ensino Fundamental II, de autoria
de Marcus Garcia de Sene, a proposta foi investigar a recorrência de desvios
de escrita em produções textuais de alunos do 6º ano do Ensino Fundamental
II. Para isso, o autor faz uma reflexão das dificuldades em relação à ortografia,
mostrando esses desvios são decorrentes, principalmente, dos hábitos da fala
que são transpostos para escrita. Sendo que muitos desses hábitos podem ser
explicados a partir de diferentes processos fonológicos, bem como representam
processos linguísticos variáveis. Para comprovar sua hipótese, o autor se encora
em teorias fonologias e da sociolinguística, promovendo também uma refle-
xão acerca da a importância de conhecimentos fonológicos e de variação lin-
guística para a adesão a uma pedagogia culturalmente sensível. O pesquisador
também aponta para a relevância de uma taxonomia de desvios ortográficos
que permita ao educador a identificação de quais hipóteses os alunos se valem
na tentativa de representar o padrão ortográfico.

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No terceiro capítulo, com o título Fonética, Fonologia e Formação Docente:
uma Reflexão Sobre o Apagamento do /S/ a Partir da Perspectiva do Professor, de
autoria de Joana D’Arc de Camillo Corrêa e Natália Cristine Prado, as discus-
sões realizadas são voltadas para investigação dos conhecimentos de Fonética
e Fonologia que fazem parte do repertório de professores que trabalham com
ensino de língua portuguesa. Dessa forma, as autoras objetivaram verificar se
os profissionais atuantes na disciplina de língua portuguesa da rede de ensino
de Porto Velho (RO) possuem informações a respeito de fenômenos linguísti-
cos variáveis que se manifestam nos aspectos sonoros do português, em espe-
cial, as pesquisadoras verificaram como professor observa o apagamento do /S/
em coda silábica em produções textuais de alunos.
Já no quarto capítulo, intitulado Mexeu com uma, Mexeu com Todas”:
Sobre o Papel de Intervenções Pedagógicas em Sistemas Fonético-Fonológicos
Multilíngues, de autoria de Ubiratã Kickhöfel Alves e Felipe Guedes Moreira
Vieira, a proposta de análise e descrição se dá a partir da premissa de que os
estudos em Fonologia de Laboratório, ao associar aspectos experimentais à
discussão referente aos sistemas de sons das línguas e seus princípios de fun-
cionamento, mostram-se capazes de estabelecer uma estreita interface entre
as áreas da Psicolinguística e da Teoria e Análise Linguística. Sob esta ótica,
a discussão se desenvolve seguindo uma concepção Dinâmica e Complexa de
língua, entendendo, para isso, que os subsistemas linguísticos de um indivíduo
multilíngue se mostram fortemente interconectados. Para comprovar sua pre-
missa, o autor, propõe que as alterações na L2 podem ter efeitos nos demais
subsistemas de L3 de L1 do aprendiz. Para essa verificação, o autor analisa,
longitudinalmente, o papel do treinamento perceptual em Inglês, mapeando
a presença de alterações (picos) significativos ascendentes ou descendentes ao
longo do tempo, nos três subsistemas linguísticos do aprendiz. Espera-se que
os resultados obtidos na pesquisa possam contribuir para uma nova concepção
de Aprendiz de Língua Adicional, bem como para um maior entendimento de
suas etapas desenvolvimentais.
No quinto capítulo deste livro, temos o trabalho Intitulado Fonética e
Fonologia: Formação Docente, Escrita e Ensino Bilíngue no Contexto da Educação

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Indígena, de autoria de Fábio Pereira Couto. Esse capítulo promove uma dis-
cussão acerca da formação fonética e fonológica dos professores indígenas para
atuarem na educação escolar das comunidades tradicionais. Para essa discussão,
o autor traz um quadro histórico sobre a trajetória do processo de ensino das
comunidades indígenas, com foco principal sobre os problemas nos sistemas
ortográficos de duas línguas indígenas brasileiras e suas variantes, contando,
para essa análise e discussão, com a fundamental participação dos professores
indígenas, falantes dessas línguas. Assim, nesse capítulo, objetivou ainda evi-
denciar a importância e a direta relação da área da Fonética e, principalmente,
da Fonologia com a escolha adequada da escrita ortográfica dessas línguas.
Nesse capitulo pode-se também identificar e discutir acerca de problemas no
sistema de escrita e dificuldades no ensino dessas línguas em contexto bilín-
gue, o que, segundo o autor do capítulo, gera o fracasso escolar, que está inti-
mamente ligado à falta de conhecimento e de formação dos professores em
Fonética e Fonologia para lidar com as questões inerentes às línguas.
O sexto capítulo, cujo título é Desafios na Normatização da Escrita de
Línguas Indígenas Brasileiras: o Caso Paitér (Suruí), escrito por Ana Suelly
Arruda Câmara Cabral e Edineia Aparecida Isidoro, a proposta principal é
de fazer uma discussão sobre alguns problemas da normatização de escritas de
línguas indígenas do estado de Rondônia. Essa discussão, segundo as autoras,
tem se tornado cada vez mais um tema de interesse dos professores indígenas,
que estão preocupados em unificar a escrita de suas respectivas línguas, de
forma a consolidar o seu uso pela comunidade, proporcionado, assim, que a
aprendizagem da escrita e da leitura de sua língua nativa ocorra da forma mais
ampla e facilitada possível. As pesquisadoras argumentam que, para que isso
ocorra, é importante que o sistema de escrita e o processo de ensino e apren-
dizagem tenham fundamentos na Fonética e na Fonologia. Assim, o capítulo
é uma forma de gerar uma contribuição aos professores indígenas atendendo
ao interesse deles em entender como a escrita de suas respectivas línguas foi
estabelecida por linguistas. O capítulo mostra que a escolha de ortografias
não é definida apenas por critérios meramente linguísticos, mas também por
critérios não linguísticos de ordem pedagógica, atitudinal e psicolinguística,

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em consonância com o contexto social e com o que as comunidades indígenas
acreditam ser mais importante para a representação de sua língua na forma
escrita.
No sétimo capítulo, com o título Os Estudos Fonológicos da Língua
Kaiowá, de autoria de Andérbio Márcio Silva Martins, a proposta foi a de
apresentar uma contextualização histórica e uma análise dos estudos fonoló-
gicos do Kaiowá, língua do sub-ramo I da família Tupí-Guaraní, tendo como
objetivo central demonstrar os procedimentos teórico-metodológicos adota-
dos pelos estudiosos. Os resultados alcançados a partir da compreensão e da
interpretação de aspectos da Fonologia dessa língua e a própria contribuição
dos trabalhos para o entendimento do funcionamento do sistema fonológico
kaiowá. Para isso, o autor faz uma análise dos três principais estudos existen-
tes produzidos por Bridgeman (1961), Harryson e Taylor (1971) e Cardoso
(2009). Para o autor, esse trabalho é importante, pois é uma forma de reco-
nhecer os avanços acerca do conhecimento fonológico do Kaiowá, bem como
identificar as questões que permanecem em aberto e que merecem ainda aten-
ção, considerando tanto o inventário fonológico quanto o próprio fenômeno
da nasalização. Com isso, ele espera, principalmente, que esse estudo possa
contribuir com a formação linguística de professores Kaiowá do cone sul de
Mato Grosso do Sul, atualmente, os maiores interessados nos estudos linguís-
ticos já desenvolvidos sobre sua própria língua.
O oitavo capítulo, cujo título é Consoantes Laterais Duplas em Posição
Intervocálica: Análise da Possibilidade de Geminação no Português dos Trovadores,
escrito por Débora Aparecida dos Reis Justo Barreto e Gladis Massini-
Cagliari, apresenta resultados de estudo e análise fonológica sobre os grafemas
de língua portuguesa, historicamente constituídos, <ll> ou <lh>, que são repre-
sentantes gráficos da consoante /ʎ/, no recorte histórico da idade média. Para
isso, a autoras propõem uma análise fonológica para refutar ou não a existência
de geminação em posição intervocálica, ou seja, elas investigaram se, do ponto
de vista da teoria fonológica, a lateral ll/lh pode ser interpretada como um
segmento geminado. Os dados retirados de 250 cantigas medievais galego-

18
-portuguesas demonstraram que, quando entre vogais, a lateral dupla preenche
duas posições temporais na organização interna da sílaba.
No nono capítulo, intitulado Fricativas do Português Brasileiro: da
Produção à Percepção, de autoria de Audinéia Ferreira-Silva, o objetivo foi recu-
perar alguns dos principais resultados já obtidos sobre a produção e percepção
das fricativas do português falado no Brasil. Para isso, a autora recorre a várias
obras de teoria fonológica e da fonética acústica para análise do corpus sonoros
das fricativas do português brasileiro. Assim, o capítulo descreve, por exemplo,
que, do ponto de vista da produção, as fricativas apresentam características
acústicas, como a duração e a frequência, que são resultado do seu modo de
produção, em acordo com o que prevê a Teoria Fonte-Filtro da Produção da
Fala. Além disso, no capítulo, se pode verificar a descrição, quanto à percepção,
dos parâmetros acústicos analisados, mostrando ainda que esses parâmetros
têm papel importante para o processo de identificação perceptual dos sons
com características fricativas do português brasileiro.
Já o décimo e último capítulo, com título As Interrogativas de uma
Amostra do Português Brasileiro em Diferentes Atitudes: uma Descrição Gestual e
Acústica, de autoria de Karina Dias, Vera Pacheco e Marian Oliveira, apresenta
análise fonológica da entoação dos gestos faciais e corporais que acompanham
o discurso e que podem ser recursos importantes para distinguir atitudes
expressas em sentenças ambíguas, assim como ocorre, de forma correspon-
dente, com a variação de F0, quando se trata da percepção da fala. Esses gestos
corporais, segundo as autoras, não devem ser vistos apenas como ilustradores
da fala, uma vez que eles carregam consigo informações prosódicas necessá-
rias para uma situação comunicativa, funcionando, assim, como uma forma de
prosódia visual. Para sustentar seus argumentos, à luz de teorias fonológicas e
da fonética acústica, as autoras descrevem e analisam, por exemplo, amostras
de falas de sentenças nas várias modalidades, assim como de imagens de per-
sonagens da televisão.
Ao fim deste capítulo que abre a coletânea, gostaríamos de registrar
um agradecimento ao Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico
em Letras, à FAPERO e à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da

19
Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) por apoiarem e incen-
tivarem esta publicação. Ademais, não podemos deixar de agradecer todos os
autores que confiaram neste projeto e escreveram os capítulos que compõem
esta obra. Esperamos que esse livro possa ajudar na divulgação de trabalhos
da área de Fonologia em interface com outras áreas do conhecimento, como
forma de inspiração para que novos estudos e pesquisas surjam, principal-
mente no Norte do país – que apresenta imensa diversidade linguística, com
rica contribuição das línguas indígenas sobre as quais conhecemos ainda tão
pouco, principalmente em seus aspectos fonéticos e fonológicos.

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21
ENSINANDO ORTOGRAFIA NA ALFABETIZAÇÃO

Valdene Moura Lopes


Valdeci Scaliante de Santana
Luiz Carlos Cagliari

Introdução: uma abordagem na Linguística Moderna1

Para que um professor alfabetizador consiga que seus alunos aprendam


a usar a ortografia, a primeira coisa que ele precisa saber é o que é a ortografia
e como o sistema de escrita funciona. Escrever corretamente é o fim de um
processo de escrita. Antes de chegar lá, o aluno precisa de muitas informações
teóricas e práticas. Inicialmente, este trabalho começa expondo conhecimentos
teóricos gerais sobre os sistemas de escrita, passando, em seguida, a tratar das
questões mais específicas do sistema alfabético-ortográfico (Massini-Cagliari,
1999, p. 30-31), algumas características de seu funcionamento, exigências
gráficas e funcionais das letras e das estruturas das palavras escritas ortogra­
ficamente.
De todos os conhecimentos de que uma pessoa precisa dominar sobre
a linguagem oral e a escrita, os mais importantes e mesmo fundamentais
(sine que non) são os conhecimentos linguísticos. De modo particular, esses
conhecimentos precisam estar sempre ligados à natureza e ao uso da escrita e
da leitura.

Em pleno século XXI, não dizemos Física Moderna, Química Moderna, etc., por-
1

que se assume que hoje essas áreas trazem o que há de mais inovador em suas áreas
científicas. Porém, porque os estudos da linguagem ficaram atrelados a concepções e
teorias antigas e inadequadas, os linguistas tiveram que acrescentar a palavra “Mo-
derna” na referência ao trabalho que fazem, para se diferenciarem de outros “linguis-
tas” que não seguem a Linguística Moderna.

23
Durante muito tempo, os estudos sobre os sistemas de escrita vieram
das penas dos arqueólogos. Os estudos sobre a leitura vieram da literatura e os
estudos sobre a fala vieram dos filólogos. A partir do século XX, esses objetos
de estudo passaram a ter um caráter científico único com o surgimento da
Linguística Moderna. E muitas coisas ficaram para trás, sendo substituídas
por novas teorias. Como aconteceu com várias áreas, como a física, a química, a
biologia, etc., os estudos linguísticos revolucionaram o saber científico da área
das letras, contribuindo com conhecimentos novos e revendo velhas teorias.
Nas áreas científicas, velhas ideias, consideradas inadequadas ou erradas, foram
rapidamente substituídas pelas novas conquistas do saber científico. Porém, a
área de letras não reagiu do mesmo modo. Isso resultou que muitas ideias ina-
dequadas ou erradas a respeito da linguagem permanecessem nas escolas e nos
livros escolares, desconsiderando os avanços da Linguística Moderna. Os estu-
dos da linguagem não dependem de máquinas em laboratórios, mas da convic-
ção que um estudioso tem do valor científico do objeto que estuda. Apesar do
imenso acervo atual de trabalhos feitos na perspectiva da Linguística Moderna,
por razões de como a linguagem é ensinada na escola, infelizmente, ainda cir-
culam ideias erradas sobre a linguagem nos livros escolares, nos jornais, nas
revistas e na televisão. Neste trabalho, a fala, a escrita e leitura têm como foco
orientador uma abordagem baseada na Linguística Moderna. Para mais infor-
mações, veja os trabalhos que constam do site www.alfabetizandoonline.com.

1. Considerações teóricas sobre a ortografia

Há dois tipos de sistemas de escrita: o sistema ideográfico e o sistema


fonográfico. O sistema ideográfico parte da representação gráfica do signifi-
cado de uma palavra. A leitura é feita depois que o símbolo gráfico é deci-
frado, levando o leitor a dizer a palavra que se refere ao significado escrito. Por
exemplo, 8 tem o significado de “oito” e o falante de português diz “oito”. Um
falante de inglês diria eight. O desenho de um homem em uma porta é deci-
frado como “banheiro masculino” e o leitor que sabe disso pode decifrar aquela
escrita dizendo “banheiro masculino”. A escrita chinesa é desse tipo. A ideia de

24
mulher é escrita em chinês como e se diz nǔ. A escrita do tipo ideográfico
é abundantemente usada hoje nas redes sociais, aparecendo em ícones, emojis,
escrita reduzida como hj (hoje), etc.
O sistema fonográfico parte da marcação através de letras de cada som
da fala, compondo todos os sons de uma palavra. Essa marcação pode contem-
plar apenas sons do tipo consoante e vogal, como o nosso sistema, ou sílabas,
como ocorre na escrita japonesa. Escrevemos “casa” e lemos como [kaza], por-
que sabemos escrever e decifrar a palavra “casa”, usando letras que representam
consoantes e vogais. A palavra “mulher” em japonês se diz josei e se escreve com
letras silábicas 女性. O egípcio antigo usava um sistema que representava ape-
nas as consoantes, deixando as vogais de lado, como faz, ainda hoje, o hebraico
e o árabe clássicos. Em hebraico, o nome “David” se escreve ‫ דוד‬com uma semi-
vogal [i] entre duas letras “d” e a vogal “a” não aparece na escrita.
Todos os sistemas de escrita admitem variações, seja por causa de como
os símbolos são escritos, seja pelo valor funcional ambíguo que podem ter no
sistema. Podemos escrever a “letra A”, escrevendo A, a, a, etc. A palavra “casa”
não é lida “çaça”, mas a letra C pode representar do som de “ç”, como na pala-
vra “cebola” e a letra S pode representar o som de “ç” como na palavra “sapo”.
Antigamente, se escrevia “sapato” com Ç: “çapato”.
Para resolver as variações indesejáveis, todos os sistemas de escrita criam
uma ortografia, ou seja, uma escolha entre outras de uso dos símbolos, para que
uma palavra não seja escrita de modo indesejável, dificultando e confundindo a
decifração. A ortografia tem, portanto, um uso social nos sistemas de escrita. A
variação dialetal, ou seja, o fato de algumas palavras serem faladas com alguns
sons diferentes por parte da população traz complicações para a ortografia em
qualquer sistema de escrita e, de modo particular, nos sistemas fonográficos.
Na leitura, a ortografia vem pronta. O problema é a escolha da variedade
que o leitor vai usar para dizer o que decifrou. Nas leituras silenciosas, os leito-
res usam o dialeto com o qual estão familiarizados no dia a dia. Fatores sociais
e educacionais podem pedir uma fala em uma variedade padrão de acordo
com as conveniências situacionais. Na alfabetização, o professor precisa ouvir o
aluno em seu dialeto, mas falar no dialeto padrão próprio da escola, o que varia

25
de acordo com o dialeto de prestígio local. Nos anos escolares posteriores, a
escola precisa insistir no uso escolar de uma variedade de fala de prestígio, sem
estigmatizar a variedade dos alunos.
Na escrita, a pessoa precisa saber de cor como se escrevem as palavras,
independentemente de como ela fala. A simples atribuição de letras aos sons
não garante a ortografia. O princípio alfabético idealizou um conjunto de sons
por tradição e atribuiu a cada um deles uma letra e um nome. O resultado foi
um sistema de transcrição fonética do tipo a letra A tem o som de [a], a letra
B tem o som de [b], e assim por diante para todo o alfabeto. Esse sistema não
garante a ortografia; pelo contrário, confunde e atrapalha muito a aprendiza-
gem da escrita.
O sistema alfabético-ortográfico parte do princípio alfabético, como
primeira descoberta da relação entre sons e letras nas palavras faladas e, em
seguida, aplica uma série de regras, que são justamente as regras que levam ao
resultado final com a palavra escrita de forma ortográfica. Partindo da pró-
pria fala e usando o princípio alfabético, muita coisa pode dar errado, por-
que no nosso sistema, uma letra pode ser usada para escrever vários sons. O
caminho de volta, partindo da fala para a escrita, mostra as ambiguidades do
sistema alfabético de escrita. Por isso escrever ortograficamente é uma tarefa
duplamente complicada, primeiro com o uso do princípio alfabético e, logo em
seguida, com a aplicação das regras da ortografia.
Os problemas oriundos das variações da escrita das palavras são de dois
tipos: um tem a ver com a escolha da letra certa; outro problema tem a ver
com as variações de fala que uma palavra pode ter. Com relação a esta segunda
questão, a dificuldade é muito grande, quando a pessoa fala uma variedade
muito diferente da fala da norma culta estabelecida pelo sistema da língua,
porque a ortografia é sempre reformada para se aproximar foneticamente da
fala da norma culta.
Para alguns falantes, a cada momento aparece um problema. Por exem-
plo, a pessoa precisa saber que ela fala “tauba”, mas a norma culta diz que se
diz “tábua”. A forma ortográfica é “tábua”, mas a fala “tauba” confunde e não
ajuda. Essa pessoa precisa memorizar que ela fala “tauba”, mas que precisa

26
escrever “tábua”. Para alguns falantes, essa diferença entre fala e escrita pode
ser muito grande, o que dificulta enormemente o aprendizado da escrita orto-
gráfica. Outras pessoas, cujas falas se aproximam mais da escrita ortográfica
pelo princípio alfabético, têm menos problemas para resolver e escrever orto-
graficamente as palavras. Por outro lado, pronúncias diferentes, porém, não
estigmatizadas (como “tauba”), criam menos problemas. É o caso da pessoa
que fala “tchia” e que precisa escrever “tia”.
O que se apresentou acima mostra que a ortografia não escreve a fala
de ninguém, mesmo quando há coincidência entre uma escrita seguindo o
princípio alfabético e resultando automaticamente numa escrita ortográfica
(cf. a palavra “batata”, etc.). Além disso, mostra que todas as palavras da língua
têm uma grafia fixa, determinada para todos os usuários, sem exceção; e isso
não permite escolhas pessoais. É por isso que se diz que a ortografia neutra-
liza a variação de pronúncia na escrita das palavras. Isso é, na verdade, uma
ação democrática socialmente estabelecida. Aceitar a ortografia não significa
que ela destrói o valor da fala das pessoas. São coisas diferentes. Portanto, não
aceitar a variação dialetal na fala, mesmo quando estão em jogo formas estig-
matizadas, é uma ação linguisticamente antidemocrática, um preconceito lin-
guístico. A fala é mais importante do que a escrita. A escrita é tão somente uma
forma de fixação da fala num material permanente. O sistema linguístico está
na fala das pessoas e não na escrita. Afinal, todas as variedades linguísticas são
criadas de modo igual, desde a aquisição da linguagem. Os usos sociais é que
atribuem valores diferentes a diferentes variedades linguística. Do ponto de
vista das estruturas linguísticas, nenhuma variedade está errada; simplesmente
é diferente. Entender isso ajuda a entender por que existe a ortografia.
Alguns erros de ortografia são também erros gramaticais, do ponto
de vista padrão da gramática da língua. É o caso, por exemplo, dos erros de
concordância. Esse tipo de erro pode ser estudado do ponto de vista da con-
cordância ou do ponto de vista da ortografia. Por exemplo, alguém diz “as
batata sumiu”, mas precisa escrever “as batatas sumiram”. De modo diferente,
as variedades dialetais podem criar dificuldades não imaginadas pelo princípio
alfabético. Essas diferenças de fala são, em geral, fortemente estigmatizadas.

27
Por exemplo, o que se escreve com a letra A (na forma ortográfica) pode ser
lido com uma variedade de vogais, dependendo de como o falante diz certas
palavras, como se mostra a seguir:

Quadro 1 – A letra A e suas realizações fonéticas

Formas ortográficas Pronúncias Sons da letra A


acharam [axarãu],[achaxaru͂], [axaru] a, ã, u͂, u
achamos [axemu] e
automóvel [otomóvéu] o
lâmpada [lãpada], [lãpida] ã, a, i
rapaz [xapas] [xapais] a, ai
tábua [tábua], [tauba] ordem das letras / sons
self-service ceuservis identificação fonética errada
Fonte: Elaborado por Cagliari (2022).

2. Alguns fatos notáveis da ortografia

Ajuda muito compreender o que é a ortografia, quando se revê algumas


ideias e fatos importantes. A ortografia estabelece um sistema de uso muito
complexo na escrita, associando letras e sons. A ortografia neutraliza a varia-
ção de pronúncias dialetais atuais, assim como esconde a pronúncia de falan-
tes antigos, através de material escrito. Assim, um falante consegue, hoje, ler
um texto muito antigo como se fosse atual (qual seria a pronúncia no origi-
nal?). A ortografia não representa a pronúncia de ninguém, mas reflete um uso
socialmente bem aceito na sociedade. Assim, usando o sistema ortográfico, o
falante esconde sua origem econômica, social e até educacional. Todo sistema
de escrita de uso social precisa de uma ortografia. Dessa forma, os sistemas
ideográficos como o chinês, e o sistema numérico, etc., também têm um sis-
tema ortográfico. A ortografia não é exclusiva da escrita alfabética. No nosso
sistema alfabético-ortográfico, acontecem cruzamentos de valores entre letras
e sons, quando se estuda como as palavras são escritas ortograficamente. Uma
letra pode estar associada a mais de um som, no vocabulário da língua, e um

28
som pode ser escrito com letras diferentes. Esse tipo de variação confunde
um pouco na hora de escrever. Isso acontece porque o princípio ortográfico
não depende do alfabeto, mas de como as palavras são grafadas com as letras
determinadas pelo princípio ortográfico. Depois de certo tempo, a escrita cria
uma história de usos que se reflete no modo como as palavras acabam sendo
escritas. Analisando todas as falas de todas as palavras de todos os falantes de
português no Brasil de hoje, e comparando com a ortografia de cada palavra,
tem-se um esquema geral das relações entre letras e sons no sistema de escrita
da Língua Portuguesa hoje, no Brasil. Parte desse esquema foi apresentado
acima para a letra A. Será que os alfabetizadores sabem disso?

3. Como os alunos pensam e escrevem no começo

A variação dialetal de cada falante é uma marca de identidade e, como


tal, deve ser respeitada e praticada livremente. Nesse contexto, a ortografia de
uma língua desempenha um papel fundamental na preservação desse direito
de representação identitária através da língua falada, pois garante a neutrali-
dade necessária à escrita. No entanto, uma compreensão equivocada do que
seja a escrita ortográfica a classifica como opressora e reforçadora de precon-
ceitos linguísticos. O que definitivamente não é verdade.
A ortografia da língua escrita traz imparcialidade basilar às represen-
tações linguísticas. É democrática, pois permite que uma palavra com deter-
minada representação ortográfica, como ‘mar’ seja pronunciada, por exemplo,
como [‘maɻ] (pronúncia caipira), [‘mah] (pronúncia mineira), [‘max] (pronún-
cia carioca). Uma escrita e diversas representações orais que são facilmente
entendidas por todos os falantes nativos. Se a escrita representasse a fala de
cada falante, quantas reproduções escritas existiriam?
Algumas pessoas poderiam argumentar contra a arbitrariedade da
imposição ortográfica, quando determina, por exemplo, que uma palavra como
“casa” seja escrita com S e não com Z, acreditando eles que facilitaria o processo
de aprendizagem da escrita, se o sistema aceitasse todas as possíveis variantes.
Isso não é verdade. Pelo contrário, complicaria a escrita e a leitura, porque

29
uma palavra ficaria com mais de uma forma de escrita. A opção de escrever
“casa” com S ou com Z vem dos usos dessas letras no sistema ortográfico e a
opção por Z vem do sistema alfabético. A ortografia tem uma longa história
de escrita e, com o tempo, passou a atribuir a uma letra do alfabeto mais de
um som, fazendo, por exemplo, com que a letra S tivesse também o som de Z.
Há, ainda, representações que o alfabeto não contempla, como as variações da
escrita do R nas variedades dialetais caipira, mineira e carioca, como mostrado
anteriormente. Exatamente pela sua arbitrariedade, a escrita ortográfica é coe-
rente com a sua função de neutralização da pronúncia, facilitando a escrita e
a leitura.
Outras pessoas poderiam argumentar que a pronúncia mais próxima
da norma padrão é a única pronúncia que deveria ser aceita pela sociedade.
Os falantes que se distanciam desse tipo de pronúncia deveriam ser margina-
lizados e estigmatizados. Esse comportamento ofende os falantes de outras
variedades, porque são falantes nativos como qualquer um e não aberrações
linguísticas. Por razões preconceituosas, as sociedades separam os indivíduos
e atribuem a cada grupo um valor socioeconômico e cultural. A variedade lin-
guística é discriminada a partir desse ponto de vista. Do ponto de vista lin-
guístico, todas as variedades podem se tornar a norma culta, como aconteceu
com o latim vulgar que gerou as línguas românicas, nas variedades de prestígio.
A história das línguas mostra como a ortografia permite um uso neutro das
variações dialetais.
Na escola, desde o começo, deve-se orientar os estudantes no sentido de
que a escrita ortográfica e a pronúncia da norma culta regional têm uma fina-
lidade específica, que não é apagar as variações dialetais; antes, é a de garantir
a sua preservação, sem valorizar nenhuma representação oral ou tipo de escrita
em particular. Apesar dessa visão educacional, constata-se que há muito pre-
conceito linguístico na vida social das pessoas e até em suas produções cultu-
rais. A ortografia é um bom argumento para desmistificar todo tipo de pre-
conceito, fazendo com que se atribua à normatividade linguística a dimensão
exata que ela tem. A escola não nega as vantagens sociais da norma culta,
nem da ortografia, simplesmente, precisa deixar essas noções nas suas devidas

30
verdades. Além disso, cabe à escola ensinar a norma culta e a ortografia e expli-
car a variação dialetal e os erros de ortografia. No começo, não há como pedir
para um aluno escrever algo, se ele nunca escreveu nada. Porém, a aprendiza-
gem da escrita precisa deixar os aprendizes escrever livremente, para que os
erros sejam corrigidos em função da ortografia e não das ideias alfabéticas. Assim,
cabe ao professor ensinar, avaliar, corrigir e explicar e não apenas constatar e classi-
ficar os erros de escrita dos iniciantes. Cagliari (2010, p. 33) afirma que:

O próprio uso que os alunos fazem (da escrita espontânea) pode servir de
pretexto para o professor ensinar a distinção entre fala e escrita, prestigiar a
fala e a escrita convencionada, mostrar as variações dialetais e por que se usa
a forma ortográfica convencionada.

Ao invés de dizer a famosa frase: “É assim que se fala” e corrigir a pro-


núncia do aluno, o professor pode dizer: “Olha que legal, quantas formas exis-
tem de dizer a mesma palavra! Por isso precisamos de uma única forma de
escrever!” E, a partir daí, começar a ensinar como a fala funciona, explicar o que
são as variações dialetais, o que é a ortografia e o que são os erros ortográficos.
Não é fácil explicar um erro de grafia para uma pessoa que está come-
çando a aprender a escrever, nem tão pouco é fácil para o aprendiz entender o
que o erro significa. Por causa disso, alguns estudiosos rejeitam a expressão “erro
ortográfico”, preferindo utilizar palavras como “desvios”, “equívocos”, “irregu-
laridades”, “formas divergentes” ou “hipóteses de escrita”. Definições interes-
santes sobre o que é “errado”, “erro” e “errar” podem ser encontradas no livro
Meu primeiro dicionário Houaiss, um dicionário ilustrado, voltado ao público
infantil, organizado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e distri-
buído para as escolas públicas pelo Ministério da Educação (2005): “O erro é o
resultado de alguma coisa que a gente não fez certo”; “(...) se erra quando se faz
uma coisa que não deve ser feita”; “uma coisa errada é uma coisa que não está
certa” (Houaiss, 2005, p. 107). Utilizando as definições desse dicionário, que
traz um conceito simples, mas objetivo, pode-se desmistificar para os pequenos
aprendizes as questões de erros e acertos em sua escrita ortográfica.

31
Ao se furtar de utilizar a palavra “erro”, alguns teóricos causam alguns
problemas para a prática escolar. É que, geralmente, os professores sabem
muito bem o que fazer com um “erro” ortográfico ou gramatical. Mas, há
alguns conflitos metodológicos quanto ao que fazer com uma “hipótese de
escrita”. Na visão construtivista, esse conceito foi associado teórica e pratica-
mente a um processo evolutivo de aprendizagem da escrita através de níveis de
progresso na aprendizagem, levando alguns docentes à ideia incorreta de que
se trata de um processo natural, ao final do qual a criança irá adquirir natu-
ralmente a escrita ortográfica. Assim, o erro, baseado em hipóteses, torna-se
necessário para a evolução do aprendizado, através da aplicação de atividades
nas quais se deve deixar apenas a criança praticar a escrita espontânea. A teo-
ria admite também que o contato com diversos textos, ao longo da vida esco-
lar, complementará a aprendizagem. Na verdade, apesar de essa teoria parecer
interessante, não corresponde exatamente às hipóteses previstas na teoria na
prática escolar e, além disso, não é a única teoria e, talvez nem a melhor, que se
possa usar para ensinar alguém a ler e a escrever. A abordagem psicogenética
do construtivismo confunde mais do que explica e deixa muitos alunos com
sérias dificuldades de progresso na aprendizagem. Além disso, dificulta muito
a ação do professor.
Por isso, neste trabalho, utiliza-se a expressão “erros” ortográficos de
maneira objetiva (daqui por diante sem aspas de destaque e com a acepção
definida acima no Meu primeiro Dicionário Houaiss). Isso cumpre duas funções
distintas: chamar atenção dos professores para um problema recorrente entre
os estudantes e provocar reflexão sobre o assunto. Afinal, o que é erro? O que
pode ser classificado como erro ortográfico? Qual a relação entre erro e hipó-
tese de escrita? São nomenclaturas diferentes para tratar de uma mesma ques-
tão. Afinal, tudo o que se diz de modo certo ou errado é baseado em hipóteses
e em regras linguísticas.
Como se viu anteriormente, com simples definições de um dicionário
infantil, pode-se esclarecer às crianças o que acontece quando escrevem uma
palavra que não está de acordo com a ortografia. Ela fez alguma coisa que
não deveria ser feita. Em nenhum momento deve ser desconsiderado que os

32
estudantes possam elaborar hipóteses para determinar a forma escrita das
palavras. Veja o exemplo da Figura 1:

Figura 1 – Escrita de criança com 7 anos

Fonte: Acervo pessoal de Valdene.

O texto da Figura 1 é a programação de um roteiro elaborado por um


garotinho, que deveria ser seguido pela família no dia do seu aniversário de 7
anos2. O bilhete diz: “Programação 7: café da manhã/ almoço 13:15/ comprar
presente/ e de noite pedir pizza”. O texto mostra um uso social da escrita, ela-
bora e concatena corretamente as ideias do autor. Porém, ele tem grande difi-
culdade no desenho das letras, mistura letras cursivas com letras bastão, letras
maiúsculas com letras minúsculas e traz algumas dificuldades ortográficas.
Alguns professores poderiam argumentar que a criança conseguiu esta-
belecer a comunicação, o que é a finalidade maior de um texto escrito e que,
aos poucos, com a prática e a exposição à textos diversos em diversos suportes,
irá aprendendo e melhorando a sua escrita. Isso não é um modo correto de
interpretar o que acontece, quando um aluno faz um texto como o apresentado
acima, na Figura 1. Quem pensa assim confunde atividades de letramento com
atividades de aquisição básica do sistema de escrita. Infelizmente, essa confu-
são está muito difundida através do construtivismo psicogenético (Mendonça;
Mendonça, 2011, p. 47).

Por razões de preservação da identidade da criança, o bilhete foi cortado na parte


2

onde consta o nome do autor.

33
Essa questão de aprender vendo o objeto de conhecimento a ser adqui-
rido é uma forma mascarada de interpretar o que, antigamente, correspondia à
cópia para aprender. Agora, em vez de copiar, o aluno apenas vê, o que dificulta
ainda mais a compreensão do que deve aprender. A Figura 1 mostra, ainda,
um complicador no modo como o aluno está sendo ensinado e como está
aprendendo. O uso da escrita cursiva deve aparecer somente quando o aluno
já dominou a categorização gráfica (Massini-Cagliari, 1999, p. 33-40). Se o
aluno não distingue corretamente a forma gráfica das letras que aparecem na
escrita cursiva, como ele vai aprender quais letras estão escritas quando ele vai
ler, e como ele vai usar para escrever o que não entendeu? Erros de ortografia
precisam ser explicados, comparando com o certo e esclarecendo que as pala-
vras têm um conjunto exato de letras e não qualquer letrar. O texto mostra,
ainda, a dificuldade de uso da escrita cursiva antes que o aluno aprenda a ler e
a escrever com letras de forma, de preferência, maiúsculas.
Na alfabetização e, em parte, por causa do seu professor, a criança pensa
que a escrita é uma notação fonética da fala. Assim, como ela percebe o que
fala, acredita que é assim que deveria escrever para que alguém pudesse decifrar
o que foi escrito por ela. Geralmente, alguns professores costumam escrever no
quadro o que dizem, quando o aluno vai precisar escrever alguma palavra ou
frase, sem explicar para as crianças, em cada caso, o que eles assumem que elas
já sabem e o que não sabem. Cópias sem explicações não ensinam o sistema de
escrita, somente o desenho da escrita. As prováveis dúvidas dos alunos ficam
sem explicações. Os próprios professores continuam sem conhecer as dúvidas
dos alunos.
Nos momentos de atividades de escrita com os alunos, é de grande
importância discutir a ortografia das palavras com eles. Em vez disso, é comum
o professor produzir uma representação oral artificializada, distante da varia-
ção dialetal com a qual ele e os alunos se expressam no dia a dia, usando uma
pronúncia, cuja finalidade é aproximar a fala de uma representação alfabética
da ortografia. Outras vezes, o professor usa de uma fala silabando as palavras
em um ditado, corroborando com a ideia de que a criança terá que representar
fielmente na escrita a maneira como se fala cada sílaba. Essa prática destrói o

34
conhecimento científico do que é a ortografia, para que ela serve e de como
deve ser usada. Na verdade, nada impede que um professor escreva uma pala-
vra na lousa, indique com quais letras a palavra está escrita, discuta as regras
da ortografia com relação a uma fala padrão ou às variações dialetais, podendo,
inversamente, pedir para um aluno dizer uma palavra, escrevê-la na lousa e
discutir como a ortografia a representa. Certamente, isso compete ao professor
fazer e não ao aluno descobrir por si só todas essas regras e procedimentos de
escrita.
Outra prática comum na alfabetização é nomear os móveis e objetos
com plaquinhas, nas quais a criança terá que identificar quais as letras que for-
mam a palavra, pronunciando o nome das letras uma a uma e falando a palavra
escrita. Certa vez, uma professora nordestina, região na qual em boa parte das
escolas os nomes das consoantes são pronunciados como “rê”, “nê”, “mê” etc,
(e não “erre”, “ene” “eme”...)3, admitiu ter repensado essa prática, quando uma
aluna identificou a plaquinha na porta da sala onde estava escrita a palavra
“PORTA”: após soletrar “p-o-rê-t-a”, leu “porreta”. Fatos desse tipo mostram
que as palavras são unidades próprias e que as letras que as escrevem devem
levar à leitura da palavra e não simplesmente à associação dos nomes das letras
para se obter a pronúncia da palavra.
Admitir que se trata de um erro, explicar para a criança que ela fez
algo de um modo como não deveria ter feito, não anula a ideia de “hipótese
de escrita”. O exemplo acima mostra bem o que o aluno pensou, o que deci-
diu fazer e o que resultou. Os níveis de aquisição da língua escrita, ou seja, os
níveis das hipóteses que os alunos apresentam, propostos pelo construtivismo,
trabalha a todo instante com o erro e não com o acerto. Não parece ser uma
boa estratégia educacional. Parece um ensino pela repressão e não pela alegria
de aprender. Ainda nesse sentido, os erros nem sempre se classificam com os
níveis estabelecidos. Como dizem Cagliari e Abaurre (1985), os erros podem
ser mais ou menos graves. Escrever BTT já lembra uma representação orto-
gráfica da palavra “batata”. Mas escrever “batata” com as letras MTAOPSRS

Vide música ABC do sertão, Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 1953.


3

35
mostra que o aluno escreve qualquer letra para qualquer palavra, o que é um
erro muito grave. O professor precisa de uma ação muito diferente para expli-
car por que o aluno usou o Ba Be Bi Bo Bu e o Ta Te Ti To Tu, escrevendo a
partir da própria fala e do conhecimento de uma formação silábica das letras
do alfabeto e para explicar por que não se usa qualquer letra para escrever qual-
quer palavra. Estruturas silábicas que sejam do tipo consoante + vogal, como
em “batata”, trazem grande angústias para os alunos submetidos ao processo
psicogenético, como escrever “príncipe”, “braço”, etc. Se o professor explicar
ao aluno que existem várias formas de falar e apenas uma de escrever, regida
pela ortografia da língua (é claro que, adaptando a sua abordagem ao nível de
escolaridade e à idade da criança), evitará que esse estudante enfrente muitos
transtornos de aprendizagem. Quanto mais tempo ele ficar pensando que pode
escrever livremente, que o que importa é estabelecer uma comunicação ao seu
modo, que a escrita representa diretamente a oralidade, mais problemas ele
enfrentará no futuro, quer sociais, quer profissionais.
Os erros ortográficos (Cagliari, 2010) que têm base na observação da
fala são os mais comuns entre os aprendizes e podem ser classificados como:
1) erro de transcrição fonética, como escrever “nóis” em vez de “nós; 2) erro de
juntura intervocabular, como escrever “ali, olha!”, como “alió” (cf. Figura 2 mais
adiante; 3) segmentação indevida, como escrever “de mais” em vez de “demais”
(veja Figura 3 mais adiante); 4) forma morfológica diferente, como escrever
“veliz” em vez de “feliz” (veja Figura 4 adiante); 5) modificação estrutural da
palavras, como escrever “malmitex” em vez de “marmitex” (cf. Figura 2 abaixo).
Alguns erros continuam na produção escolar de alguns alunos. Em uma pes-
quisa realizada por Moura Lopes (2022), através da aplicação de um teste com
alunos do 6º ano (escolas públicas e privadas), que consistiu em o aluno ouvir
uma gravação de palavras isoladas e soletrar, por mais de uma vez ocorreu a
soletração da palavra “vocês” como “vocêis”.
Os erros podem ser classificados de vários modos, por exemplo, como:
1) Transcrição fonética, 2) Juntura intervocabular, 3) Segmentação vocabu-
lar indevida, 4) Forma morfológica diferente, 5) Modificação da estrutura
segmental da palavra (Cagliari, 2010).

36
A transcrição fonética consiste na transcrição da observação direta da
pronúncia do falante: Se o aluno fala “nóis” ele transcreve em seu texto exa-
tamente os sons que acredita ter ouvido, então, escreve “nóis”. Por razões de
como são ensinados, alguns alunos levam para a vida a ideia de escrever como
se fala, bastando as letras do alfabeto e ignorando a ortografia.
Na figura 2, numa placa posicionada em frente a um restaurante, ocorre
um exemplo claro de como as pessoas levam os ensinamentos da escola para
a vida. Há de se considerar também o que se chama memória ortográfica. A
segmentação das palavras é um problema muito comum no início da alfabeti-
zação. Na fala, pronunciamos todas as palavras concatenadas. Semanticamente,
podemos separar as frases em palavra, mas, foneticamente, podemos separar as
palavras em sílabas. Sem referência ortográfica, muitas vezes, fica difícil saber
como separar as palavras das frases, indo além ou aquém do devido, como em
“de mais” (demais) ou “obolo” (o bolo).

Figura 2 – Forma morfológica diferente

Fonte: Imagem de internet (2022).

A entoação e a estrutura do léxico da língua colaboram para que possa


aparecer esse tipo de erro na escrita ortográfica, como aconteceu com a palavra
“demais”, escrita “de mais”, conforme mostra a Figura 3, a seguir:

37
Figura 3 – Segmentação vocabular indevida

Fonte: Acervo pessoal de Valdene.

A Modificação da estrutura segmental da palavra é a classificação dada


por Cagliari (2010) ao erro ortográfico cometido quando há troca, supressão,
acréscimo, e/ou inversão de letras, conforme pode ser verificado na Figura 4,
com a palavra “feliz” escrita “veliz”. A troca de letras que representam sons
sonoros por surdo (e vice-versa, às vezes) é muito comum, porque os alunos
costumam sussurrar as palavras ao escreves e não falar de modo normal. Sons
sussurrados são do tipo surdo e não sonoro (Cagliari, 2007).

Figura 4 – Modificação da estrutura segmental da palavra

Fonte: Dados da pesquisa de Moura Lopes (2022).

Um tipo de erro ortográfico capaz de deixar muitos professores apreen-


sivos, sobretudo porque se trata de uma estudante do 6º ano é uma escrita
como “veliz” em vez de “feliz”. O que para um aluno do 2º ano seria um erro
simples, comum, para um aluno do 6º ano, é um erro grave. Geralmente, diante
de uma atividade assim, uma parte dos docentes aceita a escrita da aprendiz,
interpretando que ela em breve saberá escrever sem esse tipo de erro, apenas
pelo contato com muitos textos escritos corretamente. A verdade é que a aluna
chegou ao 6º ano ainda presentando esse tipo de problema. E isso é grave.

4. As regras e a correção dos erros ortográficos

No ensino tradicional, as vogais eram ensinadas como sendo ape-


nas cinco A, E, I, O, U (faladas á, ê, i, ô, u) mais as variantes faladas é, ó,

38
dependendo de dizer os nomes das letras no alfabeto ou enumerando as vogais.
O problema com as vogais começa com a leitura. Ao tentar ler uma palavra
como “meia”, o alfabetizando, geralmente, encontrava dificuldade. Nem toda
letra E tem o som de é, nem toda letra O tem o som de ó, ocorrendo os sons
ê e ô. Exemplos: “dele” (ê), “belo” (é), “bolo” (ô), “bola” (ó). As escolhas ficam
mais complicadas dependendo do dialeto. Uns falam ê, ô e outros falam é, ó.
Questionando a eficácia do ensino tradicional, alguns métodos de
ensino, como o método fônico, prometem desenvolver nas crianças a consciên-
cia fonológica para sanar o problema das relações entre letras e sons. Por outro
lado, a consciência alfabética, adotada pelo ensino tradicional, desenvolve na
criança a ideia de que uma letra vai estar sempre relacionada a um único som
como, por exemplo, a letra A sempre terá o som de “a”.
Estudando o sistema fonológico vocálico pela linguística, os fonemas e
seus alofones, as explicações das relações entre letras e sons ficam esclarecidas
(Simões, 2006, pág. 25). Na Linguística Moderna, a palavra “fonema” tem um
significado próprio, diferente de “som” (Cagliari, 2002). Ao analisar as relações
entre letras e sons, a consciência não é fonológica no sentido científico dessa
palavra (Cagliari, 2002). Assim, essa expressão confunde mais do que explica.
Não são os fonemas, os alofones e suas variantes que estão em jogo, porque a
fonologia não tem nada a ver com a escrita, seja ela do tipo que for, mas ape-
nas com o sistema falado da língua. Infelizmente, como tantas outras noções
fora da linguística, se generalizou o uso da expressão “consciência fonológica”
(Zorzi, 2000). O que os usuários do sistema de escrita usam é o que podería-
mos chamar de consciência ortográfica ou mesmo como memória ortográfica.
Na prática nada mais é o conhecimento de quais letras devam ser usadas para
que uma palavra seja escrita ortograficamente.
A ideia de consciência fonológica surgiu por causa das regras de ambi-
guidade. Ao pretender desenvolver a consciência fonológica nas crianças,
alguns pseudométodos fonológicos, como o do programa “Tempo de Aprender”
(2020), do governo federal, destinado aos professores de alfabetização, não
levam em conta a associação fonética de um som com mais de uma letra. A
prática alfabetizadora demonstrada no programa “Tempo de Aprender”, não

39
passa de uma releitura, não muito bem elaborada, do princípio alfabético. Sem
as explicações linguísticas adequadas, o ensino pode levar a criança a interna-
lizar equivocadamente a ideia de correspondência biunívoca na relação letra e
som na escrita, o que já se disse anteriormente, é um erro.
Aplicando as regras de ambiguidade, que mostram quais letras devem
ser usadas para quais sons em quais palavras, os professores podem desenvolver
nos estudantes a consciência linguística da percepção letra-som, ou seja, a letra
C representa o som “ç” (fonema /s/), o qual também pode ser representado na
escrita pelas letras SS, SC, etc. A letra C pode, ainda, representar o som “k”
(fonema /k/), que pode ser escrito com a letra também com as letras QU e K.
Para tudo, há regras. A letra C com som de “k” acontece se estiver diante das
letras A, O, U, (ou de uma consoante) e terá o som de “ç” diante das letras E
e I. O ambiente fonético é determinante na associação letra-som (Cagliari,
1999). Falta essa correlação básica a muitos métodos de ensino praticados no
Brasil atualmente.
Na Figura 5, uma aluna de 8 anos, cursando o 2º ano do Ensino
Fundamental I (EFI) em uma escola da rede privada de ensino, foi incentivada
a escrever um texto. A referida aluna já estava finalizando o ciclo de alfabetiza-
ção, que de acordo com a BNCC (2017), são o 1º e o 2º anos do EFI.

Figura 5 – Texto de uma aluna do 2º ano (EFI)

Fonte: Acervo pessoal de Valdene.

40
A aluna escreveu:

Papai Noel eu quero ganha varias coisas que eu não sei me decidi eu vou
escrever e você vai escolher qua é o presente que você vai me dar, lirou
mamy primeiro-s passos, Barbie patinadora, iati da polly, livro de eclipse de
lua nova. feliz Natal!!!”

Um texto como esse, escrito por uma criança no processo de alfabe-


tização sempre causa encantamento aos que leem: é interessante observar o
traçado das letras, a exposição de ideias e até mesmo os erros ortográficos que
geralmente aparecem. Para um professor alfabetizador, um texto como o da
Figura 5 deve despertar considerações para além do encantamento e da sim-
ples aceitação. Um texto como o da referida aluna informa ao professor que
aquela criança ainda não alcançou a fase da alfabetização consolidada (Gentry,
2004). O texto apresenta muitos erros de vários tipos que já não deveriam
aparecer naquele momento escolar. O texto revela que a aluna aprendeu muita
coisa, mas lhe faltam algumas regras ortográficas e até de formatação do texto.
Alguns professores consideram o ensino da acentuação gráfica de pala-
vras uma aprendizagem que pode ser deixada para um segundo plano, sobre-
tudo no segundo ano do EFI. Para a maioria dos falantes nativos, a pronúncia
já está internalizada por causa da fala, não dependendo do acento gráfico para
a identificação da sílaba tônica. Uma aluna como essa é considerada alfabeti-
zada, pois já sabe ler, escrever e produzir textos. Isso é muito importante, sem
dúvida. Entretanto, o professor não pode simplesmente esperar que a estudante
aprenda regras de acentuação apenas observando outras palavras escritas, nem
esperar que a aprendiz nunca se depare com uma palavra desconhecida, cuja
sílaba tônica só se pode saber através das regras de acentuação gráfica.
Ainda sobre a Figura 5, no caso da palavra Little Mommy, levando-se
em conta a estratégia de “ver para aprender”, a aluna deveria saber escrever de
memória, apesar de ser uma palavra de origem estrangeira, pois, esse é o nome
de uma boneca, fruto do desejo das crianças, e que ela, provavelmente, já deve
ter visto escrito várias vezes em diversos suportes, como propagandas televisivas

41
e nas caixas da boneca em lojas de brinquedos. A questão da memória orto-
gráfica nunca é trabalhada na tradição escolar nem por professores nem por
autores de livros didáticos, nem aparece nos documentos oficiais do governo.
Textos precisam ser corrigidos. Mas, nem sempre a pessoa terá um
professor ao lado para corrigir. Permitir que essa criança continue a pensar
que escrever é apenas representar graficamente uma mensagem, sem utilizar
as regras da gramática e da ortografia a levará a continuar escrevendo com
erros. Se ela permanecer escrevendo errado na fase adulta, o seu texto não mais
causará encantamento em ninguém. Ao contrário, despertará inúmeras críti-
cas ao professor, à escola, ao sistema educacional e, principalmente, à própria
estudante.
Cabe ao professor ensinar o aluno e ajudá-lo a desenvolver todas as
habilidades necessárias para a aquisição do processo de leitura e de escrita.
Para isso, o professor necessita de uma formação, de recursos de vários tipos e
até de quantidade adequada de alunos em sala de aula. Esperar que o professor
realize um bom trabalho em uma sala de aula superlotada é fantasioso. Ensinar
requer tempo, sistematização e planejamento de ensino com base em uma teo-
ria apoiada na ciência. No caso de aprender a ler e a escrever é imprescindível o
apoio da ciência linguística. Além de ensinar, o professor precisa acompanhar
o desenvolvimento de cada aluno, o que pode ser feito de preferência através da
produção de escrita espontânea (Cagliari, 2007). Informar o estudante de que
errar é utilizar a forma que não deve ser utilizada, dá para ele um parâmetro
objetivo do que pode e do que deve ser feito em seu texto, para que ele avance
para as etapas seguintes de aprendizagem com conhecimento e segurança.

5. O saber-fazer didático e o fazer-acontecer pedagógico

Ao lecionar nos anos iniciais, um professor pode descobrir que a tarefa


de ensinar, mesmo sendo prazerosa, pode tornar-se um tanto cansativa. Isso
porque a busca por estratégias metodológicas, situações didáticas, constan-
tes estudos de formação e de aperfeiçoamento acadêmico para colaborar no
processo do “saber-fazer didático” e do “fazer-acontecer pedagógico” escolar,

42
precisa ser constante e acaba sendo exaustivo para alguns, e causando desistên-
cias no percurso formativo.
O “saber-fazer didático”, relacionado com a prática de ensino utilizada
pelo professor em sala de aula, tem relevância no processo de ensino-apren-
dizagem de muitos conteúdos, vistos como básicos para os primeiros anos da
educação. Entre esses conteúdos, está a questão ortográfica, que nos últimos
anos tem tomado diferentes rumos de discussão por parte de alguns acadê-
micos. Alguns consideram o erro na escrita como algo natural e, por isso, não
precisa de intervenções, considerando que esses equívocos na escrita de uma
palavra serão sanados com o percurso escolar do estudante.
Por outro lado, algumas escolas tratam a ortografia como sendo con-
teúdo primordial na etapa da alfabetização, visto que muitos materiais didá-
ticos propõem reflexões sobre algumas regras de utilização do S ou SS, X ou
CH, S ou Z, M ou N, Ç, entre outras regras. Para ensinar essas regras, além da
competência técnica, o professor precisará do “saber-fazer didático”.
Dessa forma, o professor que utiliza a didática de ensino com coerência,
associando seu saber com os diferentes níveis de aprendizagem dos estudantes,
tem grandes chances de minimizar as defasagens observadas nas atividades de
alguns alunos ao longo do período letivo. A boa didática deve estar atrelada ao
conhecimento técnico de qualquer profissional. E esse conhecimento, nos anos
iniciais da alfabetização, está associado à compreensão dos saberes linguísticos
sobre a fala e a escrita. Faz falta os conhecimentos linguísticos de fonética e
de fonologia na formação de muitos professores. A linguística, mais do que a
psicologia, a pedagogia e a didática, é mais importante quando se trata de fala
e de escrita.
O “fazer-acontecer pedagógico”, adequa-se ao conhecimento técnico
sobre os conteúdos propostos e apresentados aos estudantes, mesmo seguindo
o que propõe a BNCC (Brasil, 2017). Todavia, propor aos alunos um determi-
nado conteúdo sem que ele, o mediador dessa aprendizagem, tenha os saberes
necessários para intervir nas dúvidas, poderá resultar em um ensino mecani-
zado, sem refletir sobre as questões linguísticas que explicam como a fala e a
escrita funcionam, como a ortografia é estabelecida, como funciona e os usos

43
que têm. A própria BNCC reconhece a necessidade de o professor ter uma
boa formação linguística, embora isso nunca seja detalhado como esperado.
Os itens destacados mostram a pobreza da proposta governamental (Brasil,
2017, p. 131):

Utilizar, ao produzir o texto, conhecimentos linguísticos e gramaticais:


regras sintáticas de concordância nominal e verbal, convenções de escrita
de citações, pontuação (ponto final, dois-pontos, vírgulas em enumerações)
e regras ortográficas.

O foco nos primeiros anos do ensino fundamental enfatiza as questões


de acerto e de erro, tanto na linguagem oral, quanto na linguagem escrita.
Embora haja uma preferência pela escrita, também surgem problemas de fala.
Na maioria dos casos, o próprio professor resolve e não precisa encaminhar o
aluno para um fonoaudiólogo.
Não se pode culpar apenas a escola e o professor pela dificuldade de
os alunos progredirem nos níveis de aprendizagem da escrita propostos pelo
construtivismo usado nas escolas. Em alguns estados, a determinação de ana-
lisar a produção escrita apenas pelo viés da psicogênese, foi instituída em um
período de avaliação de promoção através dos ciclos de ensino (1º ao 5º anos,
EFI), estabelecidos pelos seus governos, e promovidas pelas ações das escolas
de formação da época, que acreditaram que o problema de falta de formação
dos professores e os baixos níveis de aprendizagem da população, seriam mais
bem resolvidos, instituindo uma teoria que mostrasse aos professores os níveis
de evolução da escrita do estudante, para que ele se organizasse e ajudasse os
alunos. Apesar da boa vontade de tanta gente, a incompetência científica con-
tinuou atrapalhando a prática de ensino e de aprendizagem, porque os resulta-
dos que de lá vieram mostraram um retardamento na aquisição do que deve-
ria ser adquirido com mais clareza e facilidade pelos alunos e corrigido com
facilidade quando fosse o caso.

44
6. Avaliação dos erros ortográficos na escola

Faltou e ainda falta sensibilidade de algumas escolas de formação de


professores para entender as necessidades formativas da escola brasileira. Os
professores têm um enorme leque de instituições universitárias, presencial ou
on-line, que oferecem diversos cursos para o aperfeiçoamento dos professo-
res já alfabetizando nas escolas. No entanto, muitas delas não se adequaram
para oferecer conhecimentos linguísticos específicos sobre a produção de tex-
tos, a comunicação verbal nas relações humanas e sobre a variação linguística
(Parissoto; Massini-Cagliari, 2007). Também deixaram de lado as preocupa-
ções de avaliação que os alfabetizadores têm. Os documentos norteadores que
estabelecem as competências para análise e correção da escrita ortográfica, dis-
ponibilizados pelo governo também esclarecem pouco, apresentando apenas
um roteiro simplificado de avaliação. Na prática, há modelos instituídos pelas
Secretarias da Educação dos Estados, ou encontrados em livros didáticos, que
propõem critérios para a análise dos erros ortográficos e dos problemas tex-
tuais. Geralmente, pede-se que o professor observe, na produção textual dos
estudantes, questões como tema, gênero, coesão, coerência e a ortografia, com
destaque para a última.
Uma questão levantada é que os professores alfabetizadores, salvo algu-
mas exceções, não têm formação específica em Letras, para poder refletir sobre
o que orienta os documentos orientadores oficiais. Então, diante da falta de
conhecimentos específicos, muitas produções são analisadas incorretamente,
afetando, mesmo que indiretamente, o ensino da produção escrita. Entende-se
que o saber técnico para correção também está associado ao saber técnico de
ensinar os procedimentos adequados para uma escrita ortográfica, coesão e
coerência de um texto. Os professores estão levando a prática pedagógica,
como diz Cagliari (2015; 2021), para o lado peculiar do texto e deixando o
foco principal de lado, que é a própria alfabetização. Estudar o texto em si é
importante, mas não no começo da alfabetização.
O estudo do sistema de escrita e, em particular, da ortografia é impor-
tante desde a primeira aula. Na prática de ensino, o que se observa é que o

45
professor começa com o alfabeto e suas letras, seus nomes e a formação de
um princípio acrofônico, usando os nomes dos alunos, ditado de palavras e
frases, sem realizar uma reflexão sobre os reais objetivos do que se deve fazer
(Massini-Cagliari, 1999). A criança faz a leitura das letras do alfabeto, dizendo
seus nomes, mas não sabe a função delas, visto que, em sua visão, para se comu-
nicar com alguém, basta utilizar a fala. Muitas vezes, o ensino vai para o lúdico,
para o metafórico, complicando o conhecimento científico que deveria ter.
Falta Linguística Moderna na prática escolar, como já se disse várias vezes
acima, neste trabalho.
Como afirmam Parisotto e Massini-Cagliari (2007), conhecer o que se
planeja ensinar é imprescindível. Compreender quais as regras para se escrever
uma palavra ortograficamente não é nada simples e os professores não têm à
disposição material acadêmico de fácil acesso, nem encontram o de que preci-
sam em livros didáticos e em projetos governamentais.
A escola pública tem uma gama de responsabilidades que muitas vezes
não é visível aos olhos da sociedade. A burocracia emperra e interfere muito
no ensino-aprendizagem de conteúdos como o da ortografia. Isso aparece no
preenchimento de diários de classe, registros sistemáticos do conteúdo tra-
balhado em sala de aula, cuja finalidade é, de fato, atender a uma predeter-
minação rígida de tempo-conteúdo. Além da burocracia, o professor precisa
atender a outros tantos afazeres que se distanciam dos afazeres pedagógicos
propostos para a sua atividade como alfabetizador. Como acontece com os
alunos, o professor também não tem muito tempo para pensar e refletir sobre
o que acontece, no momento em acontece, porque está preocupado em como
preencher exigências burocráticas. Pensar e refletir são fundamentais no ensino
e na aprendizagem. Reproduzir modelos não é boa pedagogia. Na verdade,
corrigir um texto não é nada simples como parece ser. Mesmo com tempo de
magistério, alguns professores se veem confusos em como analisar e em que se
basear para corrigir a ortografia e a estrutura do texto escrito pelos estudantes.
Embora a ortografia seja um foco muito importante, é preciso que o
professor leve em consideração questões gramaticais e de estrutura do texto,
para que o aluno, desde cedo, se preocupe com essas questões. Os erros

46
ortográficos saltam à vista e parecem mais graves, mas a questão não é bem
assim. Há outros tipos de erros mais graves do que muitos erros ortográficos,
como alguns erros gramaticais. Os teóricos que fizeram uma hierarquia de
erros na aprendizagem da língua escrita ainda não fizeram algo semelhante
para outros tipos de erros.

7. Novas formas de escrita na vida e na escola

Há uma tendência da geração atual em usar uma escrita do tipo ideo-


gráfica, utilizando das funcionalidades das mídias sociais para comunicações
rápidas. Os emojis são um exemplo desse uso. Ao mesmo tempo em que as pes-
soas usam de recursos de escrita ideográfica, usam também de algumas letras
para facilitar a leitura de palavras ou frases. Pode-se observar isso no exemplo
do diálogo entre dois adolescentes, que se segue:

Escrita aceita nas redes sociais:


Adolescente 1: Vc tá fmz Caio?
Adolescente 2: ag s!
Adolescente 1: KKKKK blz. t+ Caio.
Adolescente 2: Vlw, miga!

Escrita escolar:
— Você está firmeza, Caio?
— Agora sim!
— Beleza! Até mais, Caio.

— Valeu, Amiga!Essa forma de escrita tem sido propagada por inter-


médio, principalmente, dos estudantes do Ensino Médio, mas já se pode cons-
tatar o uso dessa escrita por algumas crianças, até mesmo na produção de tex-
tos escolares, confundindo o uso social com o escolar. Se algumas das escritas
do diálogo acima fossem apresentadas em alguma produção escrita escolar, por
crianças dos anos iniciais (1º ao 3º), provavelmente, alguns professores-corre-
tores diagnosticariam que o aluno está em algum estágio proposto pela teoria

47
da psicogênese da língua escrita (Ferreiro; Teberosky, 1985). Mas, certamente,
o problema é mais complicado do que essa interpretação.
Resumindo o que foi visto anteriormente, a criança representa seus pri-
meiros contatos com a escrita por rabiscos, símbolos. A partir daí, diante do
conhecimento gráfico das primeiras letras, começa a evoluir na escrita até che-
gar à escrita ortográfica. Seguindo nessa direção, ela compreende que as letras
representam sons. Assim, começa a escrever suas primeiras letras com signifi-
cância. É nesse sentido que se destaca a importância de ensinar gradualmente
as letras com seus diversos usos, começando pela identificação dos sons em
diferentes palavras, seus timbres abertos e fechados, mostrando o uso da nasa-
lidade, da intensidade acentual e a pontuação. A visão segundo a qual uma letra
representa apenas um som não deve se ensinado.
Esclarecendo um pouco mais o que uma criança enfrenta, por exemplo,
quando se depara com a letra A, que faz parte da sílaba ÃO, como em “irmão”,
ela acaba confusa seja na hora de ler, seja na hora de escrever. Ela ouviu o pro-
fessor pronunciar a letra A somente como som aberto não nasal. A letra à não
consta do alfabeto. A propriedade da nasalização aparece com a escrita Ã, mas
aparece também sem o til, como na palavra ANTA e até com acento circun-
flexo, como na palavra ÂNCORA. Ficando apenas com a explicação de A com
som de A, dizendo os nomes das letras no alfabeto, o professor se esquece dos
outros usos sonoros da letra A. Sem a devida explicação, a criança fica confusa
e acha estranho que a palavra ANTA e ABACAXI, quando falados, devam ser
escritos com a letra A. Os sons iniciais daquelas palavras têm um som igual
ao da palavra “irmão”, mas uma escrita igual ao da palavra “batata”. No iní-
cio, é muito comum que os alunos encontrem contradições nas explicações do
professor, ao generalizar explicações de usos das letras para fatos de diferentes
realizações.
Voltando aos fatos das escritas do tipo “mojis” e semelhantes, encon-
tramos frequentemente as escritas “vc” (você), “hj” (hoje), entre outras. Alguns
professores aceitam essa escrita porque é de uso social. Por outro lado, não
entendem as propostas da psicogênese da língua escrita, porque não acham
que seja por razões sociais que uma criança escreva usando apenas consoantes

48
(“bblt” – borboleta) ou apenas vogais (“oa” – bola). Dizer que é fruto do pro-
cesso de aquisição da escrita diz pouco e não explica nada, até porque as crian-
ças misturam vários tipos de escrita com consoantes e vogais (“hora” – agora;
“macc” – macaco). Se fosse produto natural da mente, elas não confundiriam
aos níveis psicogenéticos. Esse tipo de escrita aparece quando um professor
decide ensinar a ler pelo antigo esquema das cartilhas (Ba, Be, Bi Bo, Bu),
deixando o estudo do alfabeto para uma fase adiantada do ensino (Cagliari,
1998). Nesse esquema de ensino, é comum os erros apresentados pelo constru-
tivismo porque aquela teoria começou analisando alunos alfabetizados através
do método das cartilhas (Ferreiro; Teberosky, 1985).
Os professores não recebem informações de natureza linguística
(Cagliari, 1989, 1998, Massini-Cagliari; Cagliari, 1999 – entre outros auto-
res), mas recebem informações baseadas na teoria da psicogênese da língua
escrita (Ferreiro; Teberosky, 1985) em documentos norteadores para análise e
correção de textos oferecidos pelas secretarias e diretorias de ensino no país.
Para poderem corrigir de acordo com a teoria apresentada, os alunos precisam
produzir material que seja do tipo esperado pela teoria, o que confunde ainda
mais a vida dos professores e dos alunos.

8. Como o aprendiz pensa ao aprender a escrita

Na alfabetização, as crianças usam a própria fala como referência para


aprender a ler e a escrever e também a fala do professor. Nessa atividade entram
vários problemas de variação e de invariação: as crianças não falam do mesmo
jeito, nem o professor fala exatamente como elas. E como ouvintes da língua,
escutam modos diferentes de dizer certas palavras. Diante dessa realidade, o
que elas precisam fazer é escolher uma forma única, invariante para a escrita e,
às vezes, até mesmo para a leitura, seguindo o modelo escolar.
A criança tem sua iniciação com a escrita logo quando começa ter a
capacidade para segurar os primeiros objetos. Ao observar um adulto escre-
vendo, digitando no computador, ela utiliza do procedimento de tentati-
vas de realização de cópias. A criança, nesta etapa, não tem a noção de que

49
aquilo que está vendo em livros, jornais, revistas e outros suportes, são letras
e que são elas que fazem parte de um modelo de comunicação humana. A
criança tem uma visão mais global do que seja a escrita, razão pela qual um
rabisco pode ser a escrita de um nome ou até mesmo de uma frase. No entanto,
em algum momento desse processo de interação com o mundo da escrita, a
criança vai começar a perceber que aquele gesto de movimentar a caneta sobre
o papel, digitar sobre as teclas do computador ou celular, faz sentido na vida
das pessoas e que ela também precisará realizar. E vai deixando de lado ideias
iniciais erradas.
Quando faz seus primeiros rabiscos, a criança acredita que aquilo que
está representado é, de fato, algo que faz sentido não somente para ela, mas
para os adultos e para outras crianças. Portanto, a criança começa seus primei-
ros contatos com a escrita antes mesmo de saber que existem regras compostas
pela combinação de letras e sons. A escola não pode se esquecer de que cada
criança trouxe da sua realidade social um tipo de noção a respeito da impor-
tância da leitura e da escrita. Algumas são expostas constantemente ao mundo
das letras, enquanto outras são mais expostas apenas a imagens. Isso interfere
no processo de desenvolvimento da aquisição da escrita na escola. A escola tem
um papel fundamental de intervenção com o processo de ensino, para que o
mundo da escrita da criança na escola seja compreendido como uma realiza-
ção instituída por convenções de uso social, que determinam as regras gráficas,
funcionais, de uso e os padrões ortográficos.
A criança passa por diversas etapas até ser considerada alfabetizada.
Entre essas etapas, a aprendizagem das letras do alfabeto e de suas regras nem
sempre são ensinadas de modo adequado e corretamente, o que faz com que as
crianças criem ideias erradas do que devem fazer para ler e escrever. Os erros
de aprendizagem não vêm só da mente das crianças, mas também de como
elas são ensinadas, da didática do professor. O professor precisa, portanto, ficar
atento não só à teoria, como também à metodologia que deve usar para con-
duzir o processo de aprendizagem de modo correto. Simplificar demais, nem
sempre significa tornar a compreensão mais fácil, pode torná-la mais confusa
para o aprendiz.

50
Todo professor sabe que palavras que devem ser escritas com RR, SS, S
com som [z], palavras com CH, X, LH, entre outras, são mais complicadas para
serem ensinadas e aprendidas nos primeiros anos do Ensino Fundamental. É
melhor começar com palavras que tenham sílabas do tipo consoante + vogal,
como “batata, macaco, sapo”, etc. Na prática de sala de aula, todo professor
sabe que há palavras que são mais fáceis de serem ensinadas do que outras.
Por isso, a metodologia da alfabetização precisa fazer um caminho que vai do
mais fácil para o mais difícil. Todavia, por experiência própria, todo professor
sabe que nem tudo que parece fácil ou difícil é exatamente assim. Quando
aparecem variantes dialetais, esse caminho do fácil para o difícil não pode ser o
mesmo para todos os alunos. As variações dialetais modificam muitas palavras.
Por exemplo, é comum encontrar na fala paulista, pessoas que dizem “assim”
falada “ãnssim” para a palavra “assim”, “drobrar” para dobrar”. Na fala de outras
variedades linguísticas, encontram-se peculiaridades da região. Ou seja, em
todo lugar do país, os professores vão ter que enfrentar o problema da variação
linguística. Infelizmente, tal realidade é pouco explorada nos livros didáticos e
nos materiais de ensino e de avaliação enviados pelo governo.
Atividades coletivas, como a produção de textos ajudam o professor a
ter uma ideia de como a classe está progredindo. Ajudam também a ver a
produção de cada aluno e seus problemas. A avalição do progresso dos alunos
deve ser feita com frequência. Não se pode deixar alguns alunos abandonados
porque erram demais. O ensino que é feito sempre de modo coletivo, sem a
participação individual num diálogo com o professor, o deixa sem saber o que
cada aluno está aprendendo, qual é a dificuldade de cada um, de um grupo de
alunos, para melhorar o que ensina. Nesse primeiro contato da criança com a
escrita, haverá menos acertos nas tentativas de escrita espontânea, visto que
ela conhece muito pouco sobre o processo de escrita e, na vida, ela escuta e se
comunica através da fala ou de gestos.
O diálogo do professor com os alunos precisa ser inteligente e desafia-
dor. É comum o professor ser instruído para aplicar as ideias de “escuta atenta”,
“fala” e “escrita” como comandos metodológicos. Esse tipo de comunicação é
diferente da experiência de vida das crianças e algumas se sentem confusas

51
sobre o que fazer. Na vida real, ninguém faz essas perguntas ou diz essas ins-
truções. Os alunos também precisam aprender esse tipo de comportamento na
escola. O aluno precisará ouvir atentamente os comandos do professor, falar,
questionar sobre seus saberes e dúvidas. Para isso, precisará incorporar em seu
diálogo os conhecimentos sobre a leitura e a escrita, conhecer o alfabeto, o
desenho gráfico das letras em suas modalidades maiúscula, minúscula e cur-
siva, os nomes das letras e dos sons que elas representam e, de como as letras
aparecem nas palavras com a forma ortográfica. A aquisição da língua escrita
é um processo realmente muito complexo e complicado. A mente da criança
recebe muitas informações de uma só vez. Mesmo assim, é incrível como as
crianças aprendem a ler e a escrever em tão pouco tempo.
Caminhando pelo processo de aprendizagem da escrita, há muitas difi-
culdades ocultas para a criança. Ele começa vendo o que é mais óbvio, como
escrever as primeiras palavras copiando e, depois, pelos sons dos nomes das
letras. Até chegar à ortografia, há um longo e complicado caminho. Há um
período intermediário em que o aluno precisa aprender muitas regras. O fato
de interpretar a fala com hipóteses de escrita mostra o esforço da criança em
criar regras. O professor deve aproveitar essa ação mental das crianças para
corrigir erros, ensinar regras de uso e objetivos a serem alcançados, como a
representação ortográfica das palavras.
Os professores não costumam imaginar as dificuldades que passam pelas
mentes dos aprendizes. É muito comum os professores verem o resultado final,
esquecendo-se do processo de aprendizagem.
A teoria que falta na formação inicial dos professores deixa-os exaustos
e sem entusiasmo para encarar novas etapas num processo continuado de for-
mação. Cursos de aperfeiçoamento e de especialização ajudam a suprir muitos
conhecimentos fundamentais que os professores não receberam no curso de
formação regular que fizeram. O ideal seria ter a chance de fazer um curso de
pós-graduação, porque, assim, seria mais fácil adquirir a especialização cientí-
fica necessária. Porém, em geral, essa oportunidade não é dada a muitos pro-
fessores por razões de trabalho, pela falta de bolsa de estudo e até pelas dificul-
dades de ingresso e até por problemas familiares e pessoais. Essa situação deixa

52
os professores alfabetizadores com sérias falhas de formação, não os torna os
profissionais desejáveis, serve, ainda, para marginalizá-los perante a sociedade
como trabalhador de uma atividade menor que, por isso mesmo, merece pouca
consideração trabalhista, inclusive com relação ao salário. Apesar desse qua-
dro, os alfabetizadores cumprem uma das tarefas mais importantes na socie-
dade, que é preparar as gerações futuras para poderem através da leitura, da
escrita e da fala desenvolverem todas as profissões altamente relevantes e bem
remuneradas da sociedade. Sem uma mudança no modo como o país encara
a Educação, os professores em geral ficarão sempre a muitos passos atrás em
relação às demais profissões no país.

9. Como tratar o erro ortográfico na alfabetização

Para suprir a falta de formação adequada dos professores do Ensino


Fundamental, os órgãos governamentais começaram a criar projetos como se
fossem livros didáticos, com orientações que os professores são obrigados a
seguir. Isso vai desde o ensino da leitura e da escrita até as formas de correção
e de promoção. As escolas e os professores sofrem consequências ruins se não
fizerem o que manda esses projetos. Por isso, os professores alfabetizadores
acabam aceitando as orientações oficiais para a análise e a correção da escrita
através de manuais orientadores que ajudam pouco no sentido de ensinar a
não cometer erros semelhantes. Substituir o errado pelo certo não é uma boa
estratégia de ensino e diz pouco para quem aprende. Muitos alunos erram, o
professor corrige, e eles continuam errando, porque não sabem por que erra-
ram. Falar do erro é fácil, difícil é falar quais as razões e os motivos que causam
o erro. Encontrar os erros em uma palavra é fácil para o professor. O difícil é
ter explicações científicas sobre as causas e os motivos dos erros. Há muitas
teorias, mas nem todas podem ser consideradas corretas. Em geral, a falta de
conhecimentos da Linguística Moderna é a causa principal desses problemas
teóricos e metodológicos.
É interessante que a criança construa a noção do certo e do errado na
escrita de uma palavra. O professor precisa levar em conta que, quando uma

53
criança comete um erro na escrita é por desconhecimento de uma regra de
como compor as sílabas e as letras das palavras. É preciso seguir um padrão de
análise e de correção da escrita inicial e sempre que necessário na vida esco-
lar, que garanta uma reflexão sobre o erro produzido para que o aluno possa,
de fato, compreender a regra de escrita da palavra. Apontar o erro e soletrar a
forma correta da palavra não ajudará no processo de aprendizagem do estu-
dante. Pelo contrário, fará com que o erro fique sem as devidas explicações,
fazendo com que o aluno continue errando.
Portanto, é preciso levar as crianças a refletirem sobre o erro ortográfico
e, partindo das análises realizadas pelos próprios alunos, o professor poderá
fazer as suas intervenções e dar as explicações sobre as principais regras da
escrita ortográfica. Às vezes, o erro é apenas um uso indevido de uma letra,
como escrever “dissi” em vez de “disse” ou um caso de variação dialetal, escre-
vendo “ocê” em vez de “você”. Se o professor deixar escrever como o aluno
imagina, os erros são de outro tipo, como escrever só com consoantes ou só
com vogais, ou usando qualquer letra para qualquer palavra. Se, por outro lado,
os alunos forem aprendendo a partir do certo (e não de suas hipóteses pecu-
liares), fica muito mais fácil não errar. Depois que adquiriram uma certa con-
fiança no processo de escrever certo, podem começar a escrever o que quiserem.
Isso vai oportunizar que os alunos produzam uma frase, um parágrafo ou o
texto desenvolvido. Na atividade de produção de escrita, é sempre importante
não parar na fase inicial de escrita. É preciso pedir para os alunos corrigirem
e melhorarem o que fizeram. Revendo o que escreveram, eles podem checar
mais uma vez a ortografia, observar a ordem das letras nas palavras, as pon-
tuações, e as demais características do texto produzido (gênero, tema, coesão
e coerência), verificando se está tudo certo. Nesse último caso, pode acontecer
de um aluno julgar que todas as palavras estão corretas, visto que já escreve-
ram pensando que o que fizeram está tudo certo. De fato, alguns alunos com
mais conhecimento das regras ortográficas, e que cometem poucos erros de
ortografia, já conseguem observar os erros básicos quando eles os veem. Esse
é um caso mais raro no início da alfabetização. Em um terceiro momento, o
professor dará a oportunidade de troca de textos entre os estudantes, para que

54
cada um possa ter uma visão mais técnica sobre o texto do colega. As correções
discutidas entre os alunos é um procedimento de desafio de aprendizagem
muito importante. Obviamente, a presença do professor ajudando os alunos
é fundamental. Quantas coisas podem ser discutidas quando alguém escreve,
por exemplo, “Fada Madia pareseu” (fada madrinha apareceu)? É um trabalho
rico em ensinamentos não só para os alunos, como também para quem precisa
acompanhar a aprendizagem dos alunos. É neste momento que a função do
professor como educador se torna muito importante. Continuando as estraté-
gias de correção, a quarta etapa é a do professor, que deverá realizar a revisão
do texto na sua totalidade, e realizar os devidos apontamentos na escrita da
criança. Como de costume, o professor pode escrever na própria folha de pro-
dução do aluno os pontos que ele precisará rever, e grifar os erros ortográficos
que ainda persistem após às três primeiras etapas. É boa estratégia assinalar
alguns erros para que o próprio aluno diga por que está errado.
Com todas as etapas anteriores realizadas, surge o momento das devo-
lutivas do professor. Os estudantes irão refletir sobre os apontamentos, grifos
e sugestões do professor para melhorar o texto escrito. Nesse momento, para
avaliar se há erros e como corrigi-los, os alunos podem consultar dicionários
adequados, pesquisar em dicionários digitais, em livros, entre outras materiais
onde aprecem escritas. Essa estratégia de pesquisa, de análise e de correção é
apenas uma sugestão, entre outras tantas maneiras que garantiriam um melhor
ensino e uma melhor aprendizagem.
Para finalizar, a atividade precisa ser refeita sem os erros, para mostrar ao
aluno que não basta corrigir, é preciso chegar à versão final do trabalho. A boa
pedagogia exige avaliação constante e criteriosa do começo ao fim do trabalho.
Tudo isso demanda muito tempo. A simples avaliação, com correção ou não,
para a promoção é rápida, mas é péssima pedagogia.
O sistema educacional precisa oportunizar que os professores sejam
agentes do/no seu trabalho, e não meros reprodutores de roteiros impostos,
de desempenhos burocráticos para as estatísticas do governo, para que os pro-
fessores possam, com mais tranquilidade, trabalhar como um alfabetizador
competente, como educador e como professor de alunos felizes.

55
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58
VARIAÇÃO FONOLÓGICA E ENSINO: DESCRIÇÃO
E ANÁLISE DE DESVIOS ORTOGRÁFICOS DE ALUNOS
DO ENSINO FUNDAMENTAL II

Marcus Garcia de Sene

Introdução

A escrita tem uma história rica, multifacetada, não linear e cheia de con-
tradições (Graff, 1995). Na sociedade hodierna, ela se tornou mais do que uma
mera tecnologia, é sinônimo de poder e desenvolvimento, o que acaba fazendo
desta tecnologia um bem indispensável para a humanidade. No entanto, o
aspecto desfavorável é que a escrita acabou assumindo uma falsa supremacia
diante da oralidade, como se houvesse um mérito imanente da escrita sob à fala,
de modo que as pessoas começaram a ser excluídas e marginalizadas por não a
dominarem apropriadamente. Escrever nunca foi e nunca será a mesma coisa
que falar (Gnerre, 1985), mas a fala apresenta um papel importante quando o
aluno está aprendendo a modalidade escrita, uma vez que alguns hábitos da
fala podem emergir no texto escrito em especial em produções escolares em
que a aquisição do código se dá de maneira gradual (Bortoni-Ricardo, 2004).
O fato da fala “interferir” na escrita não significa dizer que os alunos se
programam para escrever como falam. O que ocorre, na verdade, é que, embora
a escrita ortográfica não tenha univocamente uma relação direta com a fala (por
possuir também características morfossintáticas e semânticas (Tenani, 2017)),
está ainda traz em sua materialidade gráfica características que são fonológicas.
Por essa razão, Tenani (2017, p. 585) escreve que a “base semiótica da escrita não
é exclusivamente constituída de uma materialidade gráfica (de natureza visual),
pois as letras (e também os sinais de pontuação) representam características
fonético-fonológicas de uma dada língua”. Com base nessa interferência da fala

59
na escrita, surgem, portanto, alguns desvios ortográficos que podem ser expli-
cados à luz de processos fonológicos (Cagliari, 2002, Bortoni-Ricardo,2005,
Seara; Nunes; Lazzarotto-Volcão, 2011, Mikaela-Roberto, 2016), bem como
representam usos linguísticos variáveis. Sendo assim, os desvios ortográficos
que emergem nas produções escolares representam um hábito da fala trans-
posto para a escrita (Bortoni-Ricardo, 2005), ou seja, uma hipótese sobre como
representar de forma apropriada um código linguístico convencionado que
ainda está em aquisição.
Uma das problemáticas concernentes ao ensino de ortografia é, em
especial, a falta de sistematicidade desta questão nos anos finais do Ensino
Fundamental II. De modo geral, espera-se que, no processo de alfabetização
e nas séries iniciais, até o 5º ano, o aluno já tenha “se resolvido” com suas difi-
culdades ortográficas. Com isso, ainda que alguns estudos já tenham mostrado
que o trabalho com a modalidade escrita perpassa toda a trajetória escolar do
aluno (Bortoni-Ricardo, 2005, Bortoni-Ricardo, Oliveira, 2013; Sene, 2018,
2019, 2020), os desvios ortográficos ainda não são apropriadamente “tratados”,
além de não existir um “programa” de estudos com previsão de refletir sobre
o trabalho com a ortografia. A própria Base Nacional Curricular Comum
(BNCC) contempla a questão “fono-ortográfica e a construção do conheci-
mento do sistema alfabético no português” (Santos, 2020, p. 41) como uma
competência e habilidade a ser trabalhada até o 5º ano. Após isso, do 6º ao 9º
ano, a dimensão ortográfica e a relação da ortografia tanto com a fonologia,
quanto com outros aspectos de convecção social da escrita, não são devida-
mente atendidas em termos de competência e habilidade, apenas menciona-se
que esta dimensão deve ser avaliada conjuntamente a produção textual, sem
uma reflexão apropriada dessa relação entre a fala e a escrita. Com isso, os
alunos seguem até o final de sua escolarização carregando, em maior ou menor
grau, alguns desvios ortográficos.
Em outras palavras, é notável o desconhecimento por parte de alguns
profissionais de que muitos aspectos da ortografia são frutos de acordo social,
dado que foram definidos de forma arbitraria (Morais, 2003), inclusive no que
tange às regras mais básicas. A partir disso, é natural que o discente busque

60
subsídios na modalidade que ele melhor domine (a fala) de modo que, a partir
dela, ele possa construir hipóteses correta no momento da escrita. Esse pro-
cesso de construir hipóteses sobre o padrão escrito acaba refletindo, então, que
os alunos só vão se tornando mais eficientes com a escrita à medida que eles
testam suas hipóteses baseadas na influência da fala sobre a escrita.
Dado o exposto, o objetivo deste trabalho é descrever a analisar os des-
vios ortográficos diagnosticados na produção textual dos alunos do 6ª ano do
Ensino Fundamental II com base no que orienta Bortoni-Ricardo (2005)
adaptado por Sene (2018). Muitos dos desvios diagnosticados nas redações
escolares refletem diferentes processos fonológicos (Cagliari, 2002, Bortoni-
Ricardo,2005, Seara, Nunes, Lazzarotto-Volcão, 2011, Mikaela-Roberto,
2016), bem como representam processos linguísticos variáveis. A partir dessa
descrição e análise, reflete-se sobre a importância do conhecimento fonológico
e da variação linguística para a adesão a uma pedagogia culturalmente sensível,
além da relevância de uma taxonomia de desvios ortográficos que permite ao
educador a identificação de quais hipóteses os alunos se valem na tentativa de
representar o padrão ortográfico.

1. Fonologia, variação e ensino: interfaces

Embora a escrita não seja uma transcrição da fala, é inegável que nas
produções escritas dos alunos materializam-se alguns hábitos da fala que são
transpostos para escrita. Tal aspecto indica, então, a importância de se reco-
nhecer e discutir sobre as contribuições da fonética e da fonologia ao ensino-
-aprendizagem de língua materna. De acordo com Silva (2015, p. 118), “um
dos objetivos da [fonologia] é fornecer aos seus usuários o instrumental para
a conversão da linguagem oral em código escrito”. Isso porque “à medida que
os alunos vão aprendendo a escrever mais e mais palavras ortograficamente,
vão percebendo que as relações entre letras e sons podem deixá-los na dúvida.”
(Cagliari, 1999, p. 73).
A escrita pode ser um dos maiores desafios e causa de inúmeras frustra-
ções ao longo da trajetória escolar dos alunos, uma vez que, por desconhecer

61
as reflexões fonológicas do sistema da língua, os alunos acabam se apoiando
na fala para chegar às formas ortográficas. Com isso, os alunos acabam produ-
zindo muitos desvios ortográficos que refletem a capacidade que eles possuem
de realizarem análises sonoras dos fonemas que tentam representar por meio
da escrita. Esses desvios ortográficos precisam ser devidamente identificados
e analisados, pois representam estágios diferentes de aprendizagem ou mesmo
estratégias e hipóteses das quais os estudantes fazem uso para se orientarem
quando estão aprendendo a modalidade escrita.
Em relação à identificação apropriada dos desvios ortográficos, vale des-
tacar que as produções escolares dos alunos que contêm palavras que estão gra-
fadas fora do padrão ortográfico são negativamente avaliadas e, sobretudo, fun-
cionam como uma fonte de censura e de discriminação, tanto na escola como
fora dela (Morais, 2003). A esse respeito, Morais (2003, p. 18) esclarece que:

No interior da escola, a questão se torna extremamente grave, porque a


competência textual do aluno é confundida com seu rendimento ortográ-
fico: deixando-se impressionar pelos erros que o aprendiz comete, muitos
professores ignoram os avanços que ele apresenta em sua capacidade de
compor textos.

Esse papel poderia se inverter na medida em que os docentes da dis-


ciplina passassem a identificar e discutir qual a natureza dos desvios ortográ-
ficos presentes nas redações escolares dos alunos, especialmente aqueles que
são reflexos da fala para a escrita. Por exemplo, o que os professores potencial-
mente indicariam como um erro: “trêis” ao invés de “três”, este pode ser expli-
cado, apropriadamente, à luz de processos fonológicos. Cagliari (2002), sobre
este aspecto, atesta que os processos fonológicos são alterações sonoras que
ocorrem nas formas básicas dos morfemas, ao se realizarem foneticamente, e
podem ser explicadas por meio de regras as quais caracterizam esses processos.
Em geral, esses processos se organizam, de acordo com o Roberto (2016), em
quatro grandes categorias:

62
Figura 1 – Processos fonológicos

Fonte: adaptado de Roberto (2016)

Os processos que ocorrem por acréscimo de segmentos podem se mate-


rializar de diferentes formas. Quando a adição é dada no início de uma pala-
vra, tem-se a prótese como em: “alembra” > “lembra”. Outro processo é a epên-
tese que se caracteriza pelo acréscimo de vogais no interior da palavra “pineu”
> “pneu”, esses casos ocorrem quando a estrutura silábica da palavra foge ao
padrão canônico da sílaba (CV). Por fim, outro processo fonológico por acrés-
cimo é a paragoge, que se dá quando se adiciona um fonema no final da palavra
como em “internete” > “internet” – este um processo comum no aportuguesa-
mento de palavras estrangeiras.
Os processos fonológicos por apagamento ou supressão são considera-
dos processos de estruturação silábica e envolvem, portanto, o apagamento de
um segmento. Esses processos se classificam a partir do tipo de elemento apa-
gado, classificando-se a partir da posição que esse segmento apagado se encon-
tra na palavra. Por exemplo, quando o apagamento do fonema ocorre no início
da palavra, tem-se um caso de aférese, a saber “tá” > “está”. Em contrapartida,
quando a supressão se dá no interior da palavra, como em “mandano” ao invés
de “mandando”, ocorre o que se convencionou a chamar de síncope. Por fim, a
apócope se dá quando o fonema apagado se encontra no final da palavra como
é o caso do apagamento dos róticos em posição de coda silábica: “namora”
> “namorar”.

63
Também temos processos fonológicos que ocorrem por transposição, ou
seja, quando um fonema, por exemplo, troca de posição dentro de uma mesma
palavra, o que poderia vir ocorrer dentro de uma única sílaba ou envolver duas
sílabas distintas, a saber: “perder” > “peder” – a este dá-se o nome de metátese.
Ainda é possível que a transposição não ocorra no segmento em si, mas do acento,
que é um elemento suprassegmental – como em “rúbrica” > “rubrica”, conhecida
como hiperbibasmo. Vale destacar, nesse sentido, que os processos fonológicos por
transformação são mais variados como a assimilação, dissimilação, sonorização,
dessonorização, nasalização, desnasalização, palatalização, assibilação, metafonia,
sândi, etc. De todas as possibilidades em questão, no corpus analisado, dos proces-
sos mencionados, o único que se fez produtivo foi o alçamento. Este é um fenô-
meno sistemático e presente em praticamente todas as variedades do português
brasileiro (Silva, 2015) e ocorre na assimilação de um traço em que uma vogal é
substituída por outra. Por exemplo, no caso das vogais átonas finais /e/ e /o/ que
se realizam como /i/ e /u/ como em “bonitu” ao invés de “bonito”.
Com isso, ao considerar que alguns dos desvios ortográficos dos alunos
podem ser explicados a partir do conhecimento fonológico e mais diretamente
dos processos fonológicos, pode-se reiterar que do mesmo modo que não se
espera que o aluno “descubra sozinho as leis de trânsito, não há por que esperar
que nossos alunos descubram sozinhos a escrita correta das palavras” (Morais,
2003, p. 23). Ao incorporar o conhecimento fonológico na formação docente,
o professor poderá refletir melhor com seus alunos sobre de onde vem os des-
vios que são tão recorrentes no repertório linguístico deles. Além disso, quando
o docente iniciar essa reflexão, em sala de aula, o educando poderá participar
de uma aprendizagem mais significativa da ortografia, uma vez que construirá
hipóteses eficientes sobre a escrita, já que reconhecerão que, ainda que a escrita
não seja uma tentativa de representa a fala, é na modalidade oral que ele vai
buscar o subsídio para representar um conhecimento que está em aquisição.
Além do conhecimento fonológico, é necessário que a discussão sobre
variação linguística também esteja sempre presente. Isso porque além de repre-
sentar um processo fonológico, os desvios ortográficos dos alunos também repre-
sentam processos variáveis, ou seja, representam formas alternativas de dizer

64
“a mesma coisa”. Por exemplo, no caso de quando há um apagamento de fonemas
no final do vocábulo, conhecido como apócope, tem-se, igualmente, um processo
que pode variar, dado que ora os alunos escrevem “tomá” ora “tomar”. Neste caso,
do ponto de vista sociolinguística, o aluno acaba de representar a variável apa-
gamento do /r/ final em verbos no infinitivo. Por essa razão, cabe ao docente o
conhecimento tanto de aspectos fonológico como da variação linguística.
Bortoni-Ricardo (2005) propõe, então, uma taxonomia que identifica
os desvios ortográficos em dois tipos: o tipo I, que representa aqueles des-
vios que refletem um conhecimento impreciso das convenções que regem a
escrita e os do tipo II, foco deste estudo, que são reflexos dos hábitos da fala
para escrita. Esses desvios, particularmente, são bons exemplos para mostrar o
como o aluno testa hipóteses que estão dentro do sistema linguístico. Um dos
desvios mais recorrentes desta natureza é o da monotongação de /ow/ como
em ‘cenora’ ao invés de ‘cenoura’ – que do ponto de vista fonológico representa
um processo fonológico por supressão (Roberto, 2016), já que ocorre o apa-
gamento de uma semivogal (ou glide). Quando o aluno faz o apagamento do
glide /w/, preservando a vogal /o/, ele faz a retirada exatamente daquele único
elemento que não prejudicaria a inteligibilidade da palavra. Isso porque a pala-
vra ‘cenora’ não causa nenhum ruído de comunicação, diferente se o desvio
ortográfico fosse ‘noura’ ou ‘cenra’. Qualquer que seja o outro elemento apa-
gado na palavra, atrapalharia, em demasia, a comunicação escrita do educando,
uma vez que ele não estaria se utilizando de algo possível dentro do sistema
linguístico. Em contrapartida, ‘cenora’ é algo plausível de ocorrer no sistema,
pois por ser este um desvio motivado pela fala, nela é recorrente o apareci-
mento de formas monotongadas, como é o caso em ‘oro’ (ouro), ‘coro’ (couro),
‘caxa’ (caixa), ‘pexe’ (peixe).
Considerando que os desvios em questão apresentam uma interface
entre fonologia e variação, advoga-se que estes conhecimentos deveriam ser
ensinados para além de um simples tópico dentro do trabalho com as práticas
de linguagem. Um olhar sociolinguístico é também crucial para o reconheci-
mento dos desvios do Tipo II, visto que são eles que fornecem pistas sobre a
competência comunicativa do aluno e permite que o professor parta do que o

65
aluno já domina (a sua fala e variedade) e chegue ao conhecimento do padrão
esperado pela escola – que neste caso é o reconhecimento adequado da con-
venção ortográfica (Sene, Barbosa, 2019).
Esse conhecimento é extremamente relevante para o que professor não
promulgue uma visão de língua homogênea, fechada e sem variação. O traba-
lho com a variação linguística, na superação dos deslizes de ortografia, é uma
forma de construir uma pedagogia culturalmente sensível (Erickson, 1987) e
afastar o preconceito linguístico. Como se pode observar, os desvios, quando
encarados como hipóteses criativas, são rupturas da norma idealmente conven-
cionada e esperada pelo ambiente escolar, mas não é uma ruptura do sistema
linguístico em si, todos os deslizes dos alunos estão previstos, de certa forma,
nas regras subjacentes deste sistema, isso porque ele “é um código aberto,
dotado de produtividade” (Lopes, 2007, p. 70). Sobre este aspecto, Bagno
(1999, p. 72) completa que:

[...] tudo aquilo que é classificado tradicionalmente de “erro” tem uma expli-
cação científica perfeitamente demonstrável. A noção de erro em língua é
inaceitável dentro de uma abordagem científica dos fenômenos da língua. Afinal,
nenhuma ciência pode considerar a existência de erros em seu objeto de estudo.

Reitera-se, então, que se estes deslizes não são aleatórios, mas sim podem
ser explicados cientificamente e interpretados levando-se em conta a natureza
do nosso sistema de escrita, as convenções que regem a norma ortográfica com
suas regularidades e irregulares – para o caso dos desvios do Tipo I (Carraher,
1990) e os hábitos da fala para escrita que materializam os processos fonológi-
cos variáveis da língua (Bortoni-Ricardo, 2005).

2. Decisões metodológicas

Os dados analisados foram retirados da pesquisa de Sene (2018). O


corpus foi composto por 56 redações de três diferentes escolas da cidade de
Araraquara (São Paulo), totalizando 168 textos. Os informantes eram alunos

66
do 6º ano do Ensino Fundamental II e o critério de definição das escolas
que participaram da pesquisa foi o Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB). Sendo assim, a primeira escola em que os dados foram coleta-
dos (Escola A) era a com o maior índice, enquanto a Escola B e C eram a de
médio e menor índice, respectivamente. Também se coletou o perfil social dos
alunos que produziram as redações: sexo, idade, além de outras informações
sobre a frequência de leitura e se gostam ou não de Língua Portuguesa.
Todos os dados foram organizados no Excel e analisados com auxílio da
linguagem de programação R (Core Team, 2020). Para a execução da pesquisa,
o projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) e
recebeu a aprovação cujo CAAE é 57486916.0.0000.5400. Todos os partici-
pantes foram anonimizados com códigos compostos por letras e números. Os
desvios ortográficos identificados nas redações dos alunos foram separados em
dois grupos conforme proposta de Bortoni-Ricardo (2005) acima mencionada
e adaptada por Sene (2018). A proposição inicial de Bortoni-Ricardo (2005)
consistia em diagnosticar os desvios da seguinte maneira:

Figura 2 – Modelo de diagnose dos desvios ortográficos

Fonte: Bortoni-Ricardo (2005, p. 54).

O modelo de diagnose de Sene (2018) adapta a proposta da autora em


duas direções: (i) a alteração da nomenclatura utilizada de erros para desvios
e (ii) amalgama os desvios cujas regras fonológicas são categóricas ao dialeto
estudado com aqueles em que as regras fonológicas são variáveis graduais. Isso
porque a definição central de traços graduais envolve, em resumo, fenômenos
variáveis que se espalham em todo o contínuo de urbanização, independente

67
se esses têm origens rurais ou urbanas (Bortoni-Ricardo, 2004). Logo, se uma
regra fonológica é categórica diante de um dialeto em questão, isso implica
dizer que ele estará presente, também, em todo o contínuo de urbanização, tal
como os fenômenos graduais. Um exemplo de desvios que se explica devido
à regra fonológica categórica é, de acordo com Bortoni-Ricardo (2005, p. 55),
“vocábulos fonológicos constituídos de duas ou mais formas livres ou depen-
dentes (Camara Jr., 1975, p. 59-60) grafados como um único vocábulo formal”,
a saber: ‘uque’ (o que), ‘levalo’ (levá-lo) e ‘janotei’ (já anotei).
Tendo isso em vista, o modelo de diagnose de Sene (2018) é proposto
em apenas dois grandes grupos, o primeiro decorrente da própria natureza
arbitrária do sistema de convenções escrita cujo nome dado é desvios do Tipo
I, enquanto aqueles que são decorrentes de hábitos da fala para a escrita são os
do Tipo II.

Figura 3 – Modelo de diagnose dos desvios ortográficos


de Sene (2018) adaptado de Bortoni-Ricardo (2005)

Fonte: Sene (2018, p. 87).

Considerando a proposição inicial, inclui-se, então, nos desvios do


Tipo II aqueles em que os desvios ortográficos representem processos fonoló-
gicos variáveis. A Figura 4 representa os desvios encontrados nas 168 redações
e sua respectiva porcentagem.

68
Figura 4 – Desvios ortográficos do Tipo II

Fonte: Elaborado pelo autor.

Os referidos desvios são rotulados a partir da classificação de proces-


sos fonéticos-fonológicos com base nos seguintes autores Cagliari (2002),
Bortoni-Ricardo (2005), Seara, Nunes e Lazzarotto-Volcão (2011) e Mikaela-
Roberto (2016). Tais processos são, portanto, explicados por regras fonológicas
específicas e, também, como representantes de fenômenos variáveis graduais
do Português Brasileiro.

3. Análise dos dados

Antes de apresentar reflexões separadamente sobre cada um dos desvios


encontrados, elaborou-se um gráfico para ilustrar a proporção dos desvios do
Tipo II (Bortoni-Ricado, 2005, SENE, 2018) encontrados por Escola. É pos-
sível checar que os cinco fenômenos mais recorrentes no corpus se distribuem
de forma proporcional ao longo das três escolas: o apagamento do /R/ em
final de verbos do infinitivo na Escola A perfaz o total de 23%, enquanto na
Escola B 21% e, na escola de menor índice do IDEB 27%. O mesmo acontece
com a neutralização, a ditongação, a monotongação e a aférese. Essa propor-
ção semelhante entre as escolas dos fenômenos em questão pode ser explicada
considerando o fato de que, além de ter sido identificado processos fonológicos

69
que são frequentes no português brasileiro, estes representam o que se definiu
acima como traços sociolinguísticos graduais, que são fenômenos variáveis que
se espalham em todo o contínuo de urbanização, independente se esses têm
origens rurais ou urbanas (Bortoni-Ricardo, 2004).

Figura 5 – Proporção dos desvios do Tipo II por Escola1

Fonte: elaborado pelo autor.

O primeiro desvio ortográfico a ser analisado representa o fenômeno


fonológico cujo nome é apócope, que é o apagamento de um fonema no final
da palavra. No corpus, como mostra o gráfico, o apagamento reservou-se ao
/r/ em final de verbos no infinitivo – sendo o fenômeno fonológico variável
mais recorrente nas três escolas. A língua portuguesa, como outra qualquer, é
uma língua que sofre variações e mudanças que podem ser ora condicionadas
por fatores linguísticos, ora por fatores não linguísticos, além de ser possível
ocorrência da influência concomitantemente dos dois fatores. De acordo com

A hipo e hipersegmentação foram desvios ortográficos pouco frequentes e que


1

representam a segmentação das palavras e não são necessariamente um processo


fonológico, por isso estes não serão analisados neste capítulo.

70
a literatura sobre o fenômeno em questão, tanto para fala quanto para a escrita,
sabemos que esse é um processo que começou há muito tempo, o que justifica,
então, a sua alta frequência no corpus.

Quadro 1 – Exemplos de desvios decorrente do apagamento do /r/

Fonte: Sene (2018, p. 109).

Callou, Moraes e Leite (1998), por exemplo, asseguram que o presente


processo já tinha sido registrado nas peças de Gil Vicente no século XVI. A
falta da utilização da consoante nos textos escritos estava representando a fala
das pessoas comuns, aquelas que eram socialmente desprestigiadas, enquanto
os portugueses, prestigiados e cultos, eram sinalizados com a marcação do /R/
em seu registro. Sobre o fenômeno em questão, Oliveira (1999, p. 9) esclarece
que “[...] o apagamento do (r) final de vocábulo altera a estrutura silábica, seja
por meio de sua reestruturação ou por meio de sua simplificação. É condicio-
nado por fatores linguísticos e sociais”.
Outro fenômeno igualmente recorrente é a monotongação. Este é um
fenômeno linguístico por meio do qual os ditongos sofrem um apagamento da
semivogal, isso é, tornam-se simples vogais. Bortoni-Ricardo (2004) esclarece
que este é um processo muito antigo na língua, que igualmente ao anterior,
vem desde a evolução do latim para o português.

71
Quadro 2 – Exemplos de desvios decorrente do apagamento da semivogal (monotongação)

Fonte: Sene (2018, p. 113).

A respeito da monotongação, Camara Jr. (1986, p. 170) escreve que se


trata de uma:

Mudança fonética que consiste na passagem de um ditongo a uma vogal


simples [...]. Para pôr em relevo o fenômeno da monotongação chama-se,
muitas vezes, MONOTONGO à vogal simples resultante, principalmente
quando a grafia continua a indicar o ditongo e ele ainda se realiza numa 11
-> sílaba / A -> ataque / R -> Rima / N -> núcleo / Cd -> coda 114 lingua-
gem mais cuidadosa. Entre nós há, nesse sentido o monotongo ou /ô/, em
qualquer caso, e ai /a/, ei /ê/ diante de uma consoante chiante.

No português do Brasil, a monotongação tem sido foco de discussão por


inúmeros estudiosos, como, por exemplo, Bisol (1989, 1994), Paiva (1996), Silva
(1997), Mollica (1998), tanto na modalidade oral quanto na escrita. Mollica
(1998), buscando contribuir para uma melhor compreensão da influência da
fala na escrita, em sua pesquisa realizada com alunos de educação básica, divi-
diu-os em dois grupos: aqueles que receberam instruções sobre as regras de
monotongação na fala e os que não as receberam. Analisando os resultados, a
pesquisadora observou que o primeiro grupo, ou seja, aqueles que receberam
as instruções sobre a possível interferência da fala na escrita, apresentou um
índice menor de usos de monotongação na escrita, “[...] o que leva a supor
que a consciência explícita por parte do falante acerca da relação fala/escrita
concorre para melhorar o desempenho no processo de alfabetização” (Mollica,
1998, p. 79); enquanto que o segundo grupo, isto é, as turmas de alfabetização e

72
de 1 série ainda não são sensíveis a uma orientação explícita sobre a influência
da fala na escrita, uma vez que “[...] o alfabetizando está assimilando ainda a
relação fonema/ grafema, processo suficientemente complexo para introduzir-
-se mais informação sobre fala/escrita.” (Mollica, 1998, p. 79).
Para Bortoni-Ricardo e Rocha (2014), o monotongo representa um
traço de estratificação gradual, isto é, alguns ditongos em certos ambientes lin-
guísticos são quase que categoricamente reduzidos, mesmo em estilos formais
da língua padrão urbana. Em relação ao aspecto gradual e categórico de certos
monotongos, Paiva (1996) e Mollica (2000) esclarecem que a monotongação
de [ow] é muito ampla, isso é, não há contextos que influenciam ou não a
sua realização, sendo, desse modo, uma mudança praticamente implementada
na fala do Português Brasileiro. Isso reforça, portanto, a relevância de conhe-
cer adequadamente os desvios que os alunos apresentam em suas produções
escrita, afinal os desvios em questão não são apenas transgressões de códigos,
eles representam hipóteses do desenvolvimento da escrita.
O outro fenômeno igualmente é a neutralização ou assimilação.  A neu-
tralização do segmento vocálico final é um processo linguístico que, de igual
modo ao anterior, constitui um traço gradual por não sofrer forte estigmati-
zação e estar presente, portanto, na maior parte das comunidades brasileiras.

Quadro 3 – Exemplos de desvios decorrente da neutralização

Fonte: Sene (2018, p. 117).

Esse fenômeno ocorre devido à configuração do sistema vocálico do


Português Brasileiro que apresenta altos índices de variação, em especial nos
contextos pretônicos e postônicos. A respeito disso, Camara Jr. (1995) nos apre-
senta a variedade de timbres das vogais átonas de sete fonemas /i,u,e,ɔ,ɛ,o,a/

73
que sofrendo neutralização vai para cinco, quatro e três, dividindo-se em pre-
tônica, postônica não final e postônica final. Na posição pretônica, há perda da
distinção entre vogais médias de primeiro grau /ɛ/ e /ɔ/ e as vogais médias de
segundo grau /e/ e /o/. No contexto brasileiro, tratando-se da vogal átona final,
Camara Jr. (1977) assegura que a ocorrência do processo de neutralização reduz
o sistema vocálico para três vogais /i, u, a/ como nos exemplos fom[I] e ral[u].
Esse fenômeno está recorrentemente associado ao uso irrestrito da
internet ou a influência do internetês sobre a modalidade escrita dos alunos.
No entanto, é inegável que a internet possa ser a responsável pela manutenção,
mas o processo em questão já foi registrado em português brasileiro muito
antes da internet. É importante considerar que, mesmo em ambiente virtual,
os hábitos da falam influenciam o modo como se escreve e cria hipótese para
representar o padrão, o que reforça a importância de fazer a diagnose e a inter-
pretação adequada deste fenômeno. Essa interpretação adequada vai esbarrar,
então, no fato de que a fonte primária de motivação do referido desvio é a fala
e o internetês é só mais um meio em que se pode observar esses hábitos. Este
aspecto é bem diferente se estivéssemos analisando usos como ‘vc’, ‘pq’, ‘fds’.
Essas abreviações são reflexos diretos da internet. 
Reconhecer as nuances entre o que é o internetês e o que é hábitos da
fala para escrita se torna primordial para que o professor possa balizar os recur-
sos necessários para facilitar o aprendizado do aluno. É válido considerar, desse
modo, que este é um fenômeno que aparentemente, devido a sua recorrência,
não passa pelo nível de consciência social dos usuários, é pouco saliente. Isso
porque ele é o segundo desvio mais frequente nas produções dos alunos e, na
modalidade oral, é bastante sutil, dificultando que os falantes tenham cons-
ciência de que se trata de uma forma alternativa ao padrão.
No que se refere à ditongação, este é um processo de inserção do glide
[y] após a vogal, formando um ditongo. 

74
Quadro 4 – Exemplos de desvios decorrente da ditongação

Fonte: Sene (2018, p. 120).

O processo de ditongação ocorre em palavras que, em sua forma orto-


gráfica, já seguem o padrão do silábico do português CVC, mas que devido à
fala, por influência dos traços coronais alveolar e dos palatais, há um favore-
cimento do ditongo (Aquino, 2004). Isso endossa a influência da fala sobre a
escrita, dado que o aluno usa dinamicamente a língua na construção de hipó-
teses do que seria a modalidade escrita e, para isso, vai buscar na modalidade
oral respaldo para a representação do padrão esperado. 
É relevante destacar que este é um fenômeno sociolinguístico variá-
vel que também está presente no repertório linguístico de grande parte dos
brasileiros e suas respectivas variedades (Bortoni-Ricardo, 2005). No entanto,
aqui há uma ressalva importante sobre a avaliação social negativa e a estigma-
tização das formas linguísticas. No caso da ditongação, existe um caso espe-
cífico ‘mas’ x ‘mais’ que recebe uma forte estigmatização na rede social, o que
pode ser observado por meio language mock, que são memes e vídeos que inde-
xam a ideologia linguística e as reações subjetivas de um determinado grupo a
algumas formas linguísticas.

75
Figura 6 – Exemplo de language mock

Fonte: Google Imagens.

O exemplo em questão ilustra reações subjetivas negativas a troca do


‘mas’ pelo ‘mais’ – desvio recorrente na diagnose da ditongação nas redações
analisadas. Essa prática de discriminação e intolerância é, infelizmente, bem
frequente no ambiente virtual. No entanto, embora exista esse ato claro de
discriminação a esse fenômeno, Brandão, Sene e Biazolli (2020) defendem
que as avaliações subjetivas intolerantes não estão relacionadas ao processo em
si de ditongar, pelo contrário é o uso destas formas específicas que, devido ao
aumento do número de memes e vídeos satirizando o uso, faz com que este
traço em específico se torna saliente. Logo, isso não impossibilita de que o
fenômeno como um todo, a ditongação, seja avaliado como um traço gradual. 
Por fim, o último desvio recorrente identificado nas produções é conhe-
cido como Aférese. Este é um processo fonológico de subtração de um seg-
mento inicial que se manifesta desde o latim. Para Camara Jr. (2009, p. 49), “na
língua Portuguesa, há tendência à aférese da vogal inicial que constitui sílaba
simples, por causa da força expiratória que se dá à consoante que começa a
sílaba seguinte.” A maioria dos desvios encontrados são aqueles com o verbo
“estar”, conforme quadro 4.

76
Quadro 5 – Exemplos de desvios decorrente da aférese

Fonte: Sene (2018, p. 124).

Este é um fenômeno que também é frequente não só no ambiente vir-


tual, mas também comum na produção oral dos falantes de língua materna.
Silva-Neto (1956), em exemplo de língua portuguesa retirados da obra de
Padre Lucena, dentre outros do português quinhentista, já havia constatado
esse processo em palavras como: aqui > qui, imaginar > maginar, estava > tava.
A esse respeito, Bortoni-Ricardo (2004, p. 56) destaca:

classificamos tive como um traço gradual porque a perda – ou aférese – da


sílaba inicial es- no verbo estar é um traço generalizado no português bra-
sileiro, especialmente nos estilos não-monitorados. Igualmente a perda do
/r/ final nos infinitivos verbais e nas formas do futuro do subjuntivo é um
traço gradual.

Por ser um traço generalizado no português, conforme coloca a autora,


acaba reforçando a importância de um trabalho sistemático entre a influência
da oralidade na escrita, bem como o papel da variação linguística no processo
de aprimoramento da modalidade escrita da língua. Todos os fenômenos aqui
apresentados são potenciais exemplos da língua em uso, dado que em geral
toda a alteração na forma padrão ortográfica é prevista dentro do sistema lin-
guístico. Não há o apagamento ou a adição de segmentos que altere o carácter
distintivo da palavra afetando a construção de sentido. No caso da aférese, por
exemplo, os discentes fazem o apagamento do segmento inicial ‘es’, para tomar
como exemplo a palavra ‘está’, e mantém o ‘tá’. O segmento apagado é o único
que não compromete o plano semântico, o que indica que esta é uma hipótese

77
interessante que os alunos assumem, baseado em seus repertórios linguísticos,
para escreverem a forma padrão esperada. 
Como foi possível observar, para uma diagnose apropriada dos desvios
ortográficos, é importante um conhecimento que é ao mesmo tempo fonéti-
co-fonológico, bem como da dimensão sociolinguística. Para além disso, uma
taxonomia dos desvios ortográficos também é uma ferramenta importante para
o professor e também para o aluno em fase de aprendizagem, especialmente
quando essa taxonomia é bem articulada a conhecimento teóricos e práticos
modernos da área. Afinal, a taxonomia em questão auxilia os professores a reco-
nhecer que existem duas formas: a padrão ortográfica (forma A) e o desvio refe-
rente a este padrão (forma B), e elas não são excludentes, A e B existem e coo-
correm tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita. Cabe então ao
professor garantir os alunos um trânsito amplo e autônomo pelas duas formas e
não se concentrar em uma como se a língua fosse um objeto homogêneo.
A respeito da escrita, Leal e Roazzi (2005, p. 119) trazem sugestões rele-
vantes para incentivar os alunos em suas reflexões acerca da modalidade escrita:

Recomenda-se atividades em que [o aluno] pense acerca das motivações


ortográficas e tente entender os usos dos princípios e regras que regem a
escrita, explorando, dessa forma, a capacidade do aprendiz de refletir, de
gerar hipóteses, de generalizar e restringir, apreendendo os contextos de uso
das diferentes motivações que regem nosso sistema ortográfico.

Ao aderir essa prática, o professor não só se vale de uma pedagogia


culturalmente sensível (Erickson, 1987), como ajuda a desmistificar a ideia
de que os educandos desconhecem a própria língua, afinal ao refletirem sobre
as hipóteses geradas e com o conhecimento apropriado da natureza dos des-
vios ortográficos que emergem nas produções escolares, eles serão capazes de
refinar o próprio conhecimento de forma gradual na medida que avançam no
processo de escolarização. Por fim, reitera-se que, como já foi mostrado, os
alunos apresentam uma consciência linguística interna sobre o funcionamento
da língua, mas eles não sabem explicitamente disso, o que acaba resultando na

78
insegurança que eles manifestam ao praticarem a modalidade escrita da língua.
Dado o exposto, o tratamento adequado dos desvios ortográficos seguidos de
uma pedagogia culturalmente sensível pode inverter esse cenário.

Considerações finais

Neste capítulo foi proposto a identificação dos desvios ortográficos encon-


trados nas redações escolares do Ensino Fundamental II, especialmente aqueles
que se explicam à luz de processos fonológicos variáveis. O percurso deste estudo
apresentou, então, a importância da identificação adequada dos desvios ortográ-
ficos presentes nas produções dos alunos, além de se debruçar numa reflexão
sobre qual a importância do conhecimento fonológico e sociolinguístico para
se alinhar a uma pedagogia culturalmente sensível. Em relação à taxonomia dos
desvios, é preciso reforçar que ao diagnosticar e classificar os desvios cometidos
pelos alunos, o professor poderá criar estratégias pedagógicas para intervir não
apenas nos desvios que são recorrentes, mas em outros que possam vir a surgir e
que seja, igualmente, motivado por hábitos da fala para escrita.
Dessa forma, o docente responsável pelo trabalho com a língua materna
precisa estar atento às produções escritas dos seus alunos e buscar não apenas
corrigir os “erros” como se esses fossem binários: certo e errado, mas sim, ao
promover a correção dos desvios, mostrar caminhos produtivos de aprendiza-
gem, ou seja, propiciar uma reflexão que desperte a consciência de que preci-
sam também estar atentos no momento da escrita para que, ao se depararem
com as dúvidas, possam recorrer aos saberes anteriormente construídos ou
ainda buscar novas formas para solucionar os seus problemas.
Os resultados encontrados também mostrar que os desvios ortográficos
que são frutos de processos fonológicos variáveis, ou melhor, que refletem hábi-
tos da fala para escrita não são restritos da fase de alfabetização. O problema
é igualmente notório ainda em textos de estudantes do 6º ano, o que indica a
importância da BNCC de repensar a dimensão ortográfica e a relação da orto-
grafia com a fonologia e a variação linguística. Esses conhecimentos são funda-
mentais e não podem ser ignorados ou reservados a um único período escolar.

79
Referências
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82
FONÉTICA, FONOLOGIA E FORMAÇÃO DOCENTE:
UMA REFLEXÃO SOBRE O APAGAMENTO DO /S/
A PARTIR DA PERSPECTIVA DO PROFESSOR

Joana D’Arc de Camillo Corrêa


Natália Cristine Prado

Introdução

Muito se discute sobre a formação do docente de língua portuguesa,


principalmente quanto à necessidade de que esse profissional tenha acesso a
conhecimentos teóricos diversificados, que se mostram essenciais para a exe-
cução de um bom trabalho em sala de aula e para atuar no processo de ensino
e aprendizagem de maneira eficiente.
Nesse sentido, a Fonética e a Fonologia são áreas da linguística muito
importantes no processo formativo do docente, afinal, são disciplinas que pos-
sibilitam agregar e consolidar os saberes sobre a aquisição das modalidades
escrita e falada das línguas. Diante dessa perspectiva, quando o docente conta
com um repertório de tais conhecimentos em sua formação, ele passa não só a
dominar as diferenças e semelhanças entre Fonética e Fonologia como conse-
gue refletir acerca da importância desses conhecimentos para a sua atuação em
sala de aula (Cagliari, 2009).
A partir dessas considerações, buscou-se, com este estudo, investigar os
conhecimentos de Fonética e Fonologia que fazem parte do repertório de pro-
fessores que trabalham com ensino de língua portuguesa. Dessa forma, foi
possível verificar se os profissionais formados possuem informações a respeito
de fenômenos linguísticos, especialmente, neste texto, observaremos a perspec-
tiva do professor diante do apagamento do /S/ em coda silábica em produções
textuais de alunos.

83
Assim como o trabalho de Rodrigues e Nascimento (2016), essa pes-
quisa encontra motivação na dificuldade de produzir textos que se observa em
alunos de ensino fundamental e médio. As autoras (Rodrigues; Nascimento,
2016, p. 480) afirmam que:

segundo resultados do INAF (2001/2011), apenas 35% dos brasileiros que


possuem o Ensino Médio podem ser classificados como plenamente alfa-
betizados. Tais dados revelam que faltam aos alunos conhecimentos relacio-
nados ao processo de aquisição da escrita e eles acabam por produzir textos
apoiados na oralidade.

O desenvolvimento da pesquisa1 partiu inicialmente de uma revisão


da literatura sobre a importância dos conhecimentos de Fonética e Fonologia
para a formação docente. Em seguida, tecemos breves considerações sobre
variação linguística e o fenômeno variável de apagamento do /S/ em coda. Na
sequência, apresentamos os resultados da aplicação de um questionário que foi
respondido por professores da rede de ensino de Porto Velho (RO). Nossas
análises consideraram as respostas dos docentes para tecer reflexões sobre seus
conhecimentos de Fonética, Fonologia em sua relação com a variação linguís-
tica e sua atuação em sala de aula.
Justifica-se ainda a relevância deste estudo, uma vez que investigar os
conhecimentos de docentes sobre a relação entre Fonética e Fonologia em
produções textuais de alunos mostra-se essencial para compreender como eles
têm sido preparados ao longo de sua formação e, para além disso, como essas
relações têm refletido em suas performances em sala e no processo de construção
de conhecimento linguístico dos seus alunos.

Esta pesquisa faz parte de um estudo mais amplo que foi aprovada pelo Comitê de
1

Ética em Pesquisa com Seres Humanos (parecer 2.689.238).

84
1. Fonética, Fonologia e formação docente

Em que pese a educação brasileira ter alcançado um avanço nas suas


práticas teórico-metodológicas na contemporaneidade, o processo de ensino e
aprendizagem da leitura e da escrita (considerando também suas relações com
a oralidade) ainda se mostra uma problemática a ser solucionada para se garan-
tir uma efetiva inserção dos alunos no mundo letrado (Inep, 2020).
Uma das formas de se compreender o que pode levar a essa situação é
buscar identificar, no processo formativo dos docentes, o que tem sido feito
(ou deixado de fazer), pois, conforme ensina Tardif (2002, p. 19), “[...] o saber
profissional se dá na confluência de vários saberes oriundos da sociedade, da
instituição escolar, dos outros atores educacionais, das universidades, etc.”
Isso implica afirmar que os saberes docentes se constituem em resposta
às reflexões sobre a atuação do professor, sendo essencial, portanto, tratar de
questões dos conhecimentos a que o docente tem acesso no decorrer da sua
formação e profissionalização. Para Tardif (2002), necessário se faz que a for-
mação desses profissionais busque construir um repertório de saberes, que,
aliados a competências bem definidas, irá contribuir para uma prática educa-
cional de maior qualidade e eficácia.
Assim, segundo o autor, o professor “[...] deve conhecer sua matéria,
sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos
às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático baseado
em sua experiência cotidiana com os alunos” (Tardif, 2002, p 39). Isso porque
“[...] o saber dos professores é plural e temporal, uma vez que é adquirido no
contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional” (Maia, 2011,
p. 833).
Portanto, o professor de língua portuguesa deve conhecer seu objeto de
trabalho em profundidade e trabalhar com os alunos todos os seus aspectos.
Todavia, algumas áreas encontram mais destaque nas aulas e em documentos e
diretrizes oficiais. Cagliari (2009) chama a atenção para o fato de que as áreas
de Fonética e Fonologia, tradicionalmente, se fazem pouco representadas no
currículo escolar brasileiro.

85
No Brasil, conforme destacado por Clare (2006), os Parâmetros
Curriculares Nacionais, a partir do final da década de 1990, e a Base Nacional
Comum Curricular e na atualidade, décadas de 2010 e 2020, passaram a apre-
sentar uma concepção de língua como possuidora de inúmeros usos e como
ferramenta de enunciação, discurso e intercomunicação.
Neste sentido, concordamos com Rodrigues e Sá (2018, p. 587), pois
ainda que não seja o objetivo deste trabalho discutir acerca das potencialidades
e problemas relativos ao caráter essencialmente discursivo das diferentes edi-
ções dos Parâmetros Curriculares Nacionais, fica, subjacente ao cenário sucin-
tamente apresentado, a pergunta acerca do que deve ser, afinal, o objeto de
ensino da disciplina Língua Portuguesa nas escolas. Não resta dúvida de que o
foco majoritariamente dado, nas escolas, ao trabalho com os gêneros textuais,
verificado especialmente nos anos que sucederam a publicação da primeira
edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997, não resolveu o problema
do mau desemprenho em leitura e escrita dos nossos alunos.
Em relação à BNCC, as autoras supracitadas observaram que, apesar de
a Fonética e a Fonologia se fazerem representadas neste documento em relação
aos Ensino Fundamental Anos Iniciais, estão dissociadas da variação linguís-
tica “aspecto que, sendo constitutivo das línguas, precisa transversalizar todos
os níveis de análise linguística” (Rodrigues; Sá, 2018, p. 602). As pesquisadoras
também apontaram para o fato de que os conteúdos de Fonética e Fonologia
não são previstos pela BNCC para nenhum ano do Ensino Fundamental Anos
Finais.
Tanto os currículos escolares quanto educadores em geral reconhecem
a importância da alfabetização e do letramento – práticas com as quais as
áreas de Fonética e Fonologia têm muito a contribuir. De acordo com Morais
e Albuquerque (2007, p. 47), é preciso distinguir alfabetização e letramento.
Nesse sentido, os autores sinalizam que

alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas inseparáveis do contrário: o


ideal seria alfabetizar letrando, ou seja, ensinar a ler e escrever no contexto

86
das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tor-
nasse ao mesmo tempo alfabetizado e letrado.

Sobre letramento, Soares (2006, p. 18) afirma que é “o resultado da ação


de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire
um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado
da escrita”. Interessante observar que uma pessoa em processo de letramento
também pode experienciar práticas culturais que envolvam leitura e escrita em
outros contextos, além da educação formal, no convívio com pessoas que leem
e escrevem (Soares, 2006). Nesse sentido, importante se faz reconhecer que um
novo olhar sobre a concepção de letramento deve privilegiar as relações esta-
belecidas entre oralidade e escrita, originárias das mais variadas práticas sociais
(Cagliari, 1993, 2009).
Tal entendimento ancora-se ainda em Côrrea (2004), para quem os
saberes não escolarizados, legitimados em decorrência da sua prática cotidiana,
devem ser respeitados e introduzidos em sala de aula, pois permitem com-
preender as relações estabelecidas entre a fala e a escrita, na promoção de uma
educação mais significativa e próxima da realidade do aluno. E para realizar tal
trabalho, é fundamental que os alunos conheçam a Fonética e a Fonologia do
português em sua relação com a ortografia, afinal, como afirmam Rodrigues e
Sá (2018, p. 586)

não conhecendo devidamente o princípio da escrita alfabética, tampouco


a Fonética e a Fonologia do português, tendem a confundir os princípios
da fala e da escrita e a produzir a chamada escrita oralizada. Esse desco-
nhecimento é, por sua vez, consequência da má formação do professor, que
também não construiu, em sua formação inicial, saberes imprescindíveis a
sua práxis. Nesse interim, a escola mostra a sua ineficácia, o seu fracasso no
cumprimento de sua missão mais básica.

87
Frago (1993, p. 27) destaca a necessidade de

[...] unir de novo oralidade e escrita. A linguagem escrita não é uma imita-
ção ou arremedo do oral. Tem seu caráter e virtualidades próprias. Mas deve
assentar-se e crescer numa cultura oral não desvalorizada, mas enriquecida,
assim como nas experiências e relações com o oral e o escrito anteriores ou
coetâneas, mas sempre exteriores à escola. Isto é, na história e vida do anal-
fabeto, a fim de facilitar sua reescritura, uma diferente narração – reflexão
– dessas histórias e vida.

Diante desse cenário, a atuação docente pautada nesses conhecimentos


encontra em Hora (2009, p. 15) o entendimento de que

o conhecimento dos diferentes falares atrelado ao conhecimento da


Fonologia da língua poderá ser utilizado para a compreensão dos processos
variáveis da língua. Esse conhecimento poderá ser utilizado para amenizar
atitudes preconceituosas em relação a diferentes formas de dizer a mesma
coisa. Exemplos dessa natureza são muito comuns no Brasil. Há quem
acredite, por exemplo, que existe uma região que fale [e escreva] melhor
Português que outra.

Portanto, é importante que o profissional que vai ensinar língua por-


tuguesa conheça os princípios da variação linguística em sua relação com os
níveis da análise linguística, como o fonológico, só assim poderá fazer um tra-
balho realmente reflexivo em sala de aula e disseminar preconceitos linguísti-
cos do ambiente escolar.
Por fim, concordamos com Seara, Nunes e Lazzarotto-Volcão (2015, p.
164) que afirmam que

[...] é preciso que certas áreas, como a Fonética e a Fonologia, que ocupam as
grades curriculares de vários cursos de graduação, tenham, além de seu valor
científico para a pesquisa na área da Linguística, uma função no mundo
concreto daqueles que estarão em ambientes escolares. Primeiramente, é

88
preciso que o futuro professor encontre um sentido para aprender tais con-
ceitos e que, em um segundo momento, seja capaz de tirar o insumo dessas
disciplinas a ponto de que seu conhecimento ampliado possa ser útil na sua
profissão.

Nesse sentido, a formação docente deve ser contemplar práticas que


permitam alcançar o entendimento sobre a formação de padrões silábicos,
acentuais, segmentos consonantais e vocálicos etc. e, com isso, enriquecer o
processo de ensino e aprendizagem no ambiente escolar.

2. A variação linguística e sua relação com as práticas de oralidade e letra-


mento

As variações nos usos das línguas podem ser observadas em diversos


grupos sociais, que podem ser constituídos por critérios variados, tais como:
classe social, grau de instrução, idade, sexo, etnia, profissão e outros. Dessa
forma, os estudos existentes sobre a variação linguística buscam descontruir
(pré)conceitos ou, ainda, derrubar o mito da “deficiência linguística” dos alunos
advindos das classes populares, substituindo essa percepção pela compreensão
da existência de “diferenças linguísticas” entre as formas de linguagem existen-
tes dentro de uma mesma comunidade linguística (Pretti, 1994).
Nesse sentido, de acordo com Bortoni-Ricardo (2004, p. 74-76), dentre
os papéis da escola e do professor está o de:

[...] facilitar a ampliação da competência comunicativa dos alunos, permi-


tindo-lhes apropriarem-se dos recursos comunicativos necessários para se
desempenharem bem, e com segurança, nas mais distintas tarefas linguís-
ticas. [...] Ao chegar à escola, a criança, o jovem ou o adulto já são usuá-
rios competentes de sua língua materna, mas têm de ampliar a gama de
seus recursos comunicativos para poder atender às convenções sociais, que
definem o uso linguístico adequado a cada gênero textual, a cada tarefa
comunicativa, a cada tipo de interação.

89
Assim, no caso da docência, cabe ao profissional conhecer as caracterís-
ticas do grupo que compõem o seu alunado, pois, diante do reconhecimento
da realidade daqueles que integram a comunidade escolar na qual irá atuar, ele
poderá preparar a sua aula de modo a trabalhar questões pertinentes às varia-
ções linguísticas de maior incidência naquele contexto, buscando promover um
ensino significativo e contextualizado ao aluno (Faraco, 2008).
Sobre a temática, Abaurre (1984, p. 13) já sinalizava que o aluno, “por
mais marginalizado que seja, possui, ao iniciar o processo de alfabetização, um
repertório linguístico perfeitamente adequado e suficiente para a expressão de
seu universo de experiências”. No entanto, esse repertório é, por vezes, des-
valorizado pela escola e pelos docentes, que não tiveram, em sua formação, o
preparo para lidar com tais situações.
Diante disso, somente a partir da percepção sobre como ocorre efetiva-
mente o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, reconhe-
cendo que as variações que se apresentam em sala de aula, na fala e na escrita
desses alunos, poderão ser contextualizadas e trabalhadas pelo professor, res-
peitando a diversidade de cada um (Nobile; Barrera, 2009). Essa compreensão
encontra sustentação na fala de Marcuschi (2008, p. 18), quando afirma que:

a fala (enquanto manifestação da prática oral) é adquirida naturalmente


em contextos informais do dia-a-dia e nas relações sociais e dialógicas que
instauram desde o momento em que a mãe dá seu primeiro sorriso ao bebê.
Mais do que a decorrência de uma disposição biogenética, o aprendizado e
o uso de uma língua natural é uma forma de inserção cultural e de socializa-
ção. Por outro lado, a escrita (enquanto manifestação formal do letramento),
em sua faceta institucional, é adquirida em contextos formais: na escola.

Segundo Corrêa (2004, p. 12), a escrita é um meio que contém a fala já


em sua gênese – em sua materialidade gráfica. Para o autor, a escrita alfabética
representa as letras com as características fonético-fonológicas de uma língua
específica – e possui, ainda, a visibilidade invariante, o que lhe acrescenta a pro-
priedade de permanecer no tempo. O pesquisador (Corrêa, 2004, p. 2) sustenta a

90
hipótese de que os fatos linguísticos do falado/escrito são práticas sociais e estão
ligados, portanto, às práticas orais/letradas, o que faz questionar a delimitação do
campo da escrita apenas pela constatação do material gráfico. A partir disso, o
sujeito atua ativamente por meio da manipulação dos materiais significantes de
que dispõe: “conceituo o modo heterogêneo de constituição da escrita como o
encontro entre práticas sociais do oral/falado e do letrado/escrito considerada a
dialogia com o já falado/escrito e ouvido/lido.” (Corrêa, 2004, p. 10).
Essa constituição heterogênea da escrita, portanto, reconhece o tra-
balho do sujeito, ao considerar a sua relação com a linguagem no interior das
práticas sociais em que atua. A escrita, pois, não se trata de uma falsificação
do real, mas pelo contrário: é por meio dela que as realizações reais entre os
agentes sociais e a escrita se materializam, linguisticamente, considerando as
práticas sociais de que, direta ou indiretamente, a escrita faz parte.
Dessa perspectiva, mais do que encararmos as interferências da fala na
escrita como esperadas, entendemos também que elas são produtos das com-
plexas relações entre os enunciados falados e escritos que são construídos a
partir de práticas sociais orais e letradas. Além disso, vemos que a variação
linguística por grau de formalidade pode ocorrer tanto na modalidade falada
quanto na modalidade escrita, já que podemos ter diferentes graus de monito-
ramento por parte do falante ou escrevente.
Neste sentido, o estudo da Fonética e da Fonologia é essencial para o
entendimento dos fenômenos linguísticos variáveis que se apresentam nas prá-
ticas sociais de oralidade e de letramento (Callou; Leite, 2001). Isso porque,
só assim, o docente terá acesso aos saberes a respeito das descrições físicas e
fisiológicas dos sons da língua, do seu contexto de produção e sobre as relações
estabelecidas entre os sons de uma língua em suas modalidades escrita e falada.

3. O apagamento do /S/ em coda silábica

As pesquisas sobre a manutenção e o apagamento do /S/ em coda silá-


bica são antigas e abrangem muitas línguas. No período do latim (arcaico,
clássico e vulgar), de acordo com Gryner e Macedo (2000), a variação no /S/

91
se dava de forma significativa no contexto pós-vocálico. As autoras destacam
ainda que, com a romanização da língua, o /S/ caiu na România Oriental e se
manteve nas línguas românicas ocidentais, mas, ainda assim, de acordo com
elas, a palatalização e a queda do /S/ também foram verificadas, ainda que de
forma esporádica, em algumas línguas do ocidente, tais como: o português, o
francês e o espanhol (Gryner; Macedo, 2000).
Teyssier (2007, p. 66), considera pronúncias de -s e -z implosivos (ou
seja, em posição final de sílaba, na terminologia do autor) como sendo um dos
aspectos conservadores da fonética brasileira. Para ele

na maior parte do Brasil, os -s e os -z implosivos são sibilantes, realizados


como [s] em final absoluto (atrás, uma vez) ou diante de consoante surda
(vista, faz frio), e como [z] diante de consoante sonora (mesmo, atrás dele).
Mas no Rio de Janeiro e em toda a zona dita carioca, assim como em diver-
sos pontos do litoral, encontram-se [š] e [ž] chiados, nas mesmas condições
que em Portugal. O chiar carioca é, talvez, um efeito da “relusitanização” do
Rio de Janeiro, quando D. João VI aí instalou a sua capital em 1808. Há,
pois, atualmente, duas pronúncias de -s e -z implosivos no Brasil: a pronún-
cia sibilante, largamente majoritária, e a pronúncia chiante, característica
principalmente do Rio de Janeiro, e que goza do prestígio sociocultural da
antiga capital federal.

Ressaltamos que não é nosso objetivo, neste texto, fazer um levanta-


mento bibliográfico exaustivo sobre essa questão, apenas ilustrar o fenômeno
variável em destaque, já que o foco é analisar como os professores observam
esse tipo de apagamento no texto de seu aluno e se mobilizam conhecimentos
de Fonética e Fonologia em suas observações. Como se sabe, o apagamento do
/S/ é uma constante observada na oralidade – pois, mesmo em fala monito-
rada, ele pode ocorrer de forma irrefletida, como, por exemplo, em “os boneco”
em que se observa o apagamento do /S/ que materializa o morfema de plural
– e pode aparecer na escrita, sobretudo quando o aluno ainda está em processo
de aquisição desta modalidade.

92
Isso nos possibilita refletir sobre o fato de que a língua se constitui de
aspectos orais e escritos, sendo que na modalidade escrita canônica (valori-
zada pela escola), o indivíduo deve buscar fazer uso das normas preestabeleci-
das pela Gramática Normativa (GN) e pelas convenções ortográficas oficiais,
embora isso nem sempre ocorra conforme idealiza o professor.
Segundo Camara Jr. (2019, p. 81-82), não é uma tarefa simples defi-
nir sílaba, mas dentre diferentes pontos de vista, “resulta como denominador
comum um movimento de ascensão, ou crescente, culminando num ápice (o
centro silábico) e seguido de um movimento decrescente, quer se trate do
efeito auditivo, da força expiratória ou da tensão muscular, focalizados nessas
diversas teorias”. O autor afirma que a vogal costuma funcionar em todas as
línguas como centro de sílaba, embora algumas consoantes (que o autor classi-
fica como sonantes) não estejam necessariamente excluídas dessa posição. Para
o estudioso, a estrutura da sílaba depende desse centro, ou ápice, e do possível
aparecimento da fase crescente, ou da fase decrescente, ou de uma e outra em
volta dele, nas margens.
Com relação aos tipos silábicos, o autor argumenta (Camara Jr., 2019, p.
82) que o português apresenta:

V (sílaba simples)
CV (sílaba complexa crescente)
CVC (sílaba complexa crescente-decrescente)
Conforme a ausência ou a presença do elemento marginal à direita (isto é, V
e CV, de um lado, e, de outro VC e CVC), temos a sílaba aberta, ou melhor,
livre, e a sílaba fechada, ou melhor, travada.

Na perspectiva deste autor, em português, a vibrante /r/, a lateral /l/ (em


regra um alofone posicional posterior), o arquifonema fricativo labial /S /e o

93
arquifonema nasal /N/ (nas chamadas vogais nasais2) é que funcionam na parte
decrescente da sílaba.
A sílaba, segundo os modelos fonológicos não lineares – que têm por
objetivo integrar diversos níveis da descrição no componente fonológico, abor-
dando os segmentos em vários níveis e camadas – é uma unidade que agrega
segmentos consonantais e vocálicos, possuindo sua estrutura básica composta
por: onset, também chamado “ataque”, é o elemento que precede o núcleo de
uma sílaba e geralmente formado por uma ou duas consoantes; e rima, cons-
tituinte silábico formado por uma posição nuclear e uma posição pós-vocálica
de coda, esta última podendo ou não existir.

Figura 1 – Representação da estrutura da sílaba segundo as diretrizes da fonologia não linear

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Diversos estudiosos argumentam que o apagamento de consoantes


em coda silábica ocorre, em grande parte, devido à tentativa do falante em
manter a estrutura silábica CV (consoante–vogal). De acordo com Ribeiro e
Hora (2004, p. 2384), ancorados em afirmações de Clements e Keyser (apud
FERREIRA NETTO, 2001) apontam que “[...] todas as línguas possuem
padrão silábico CV, sendo que em algumas o sistema permite suprimir a
consoante à esquerda do ápice silábico (V) e, em outras, à direita do núcleo
silábico (CVC), ou seja, em posição de coda” contexto em que se observa o
apagamento do /S/.

Alguns estudiosos discordam de Camara Jr.quanto a existência do arquifonema /N/, pois


2

argumentam que o sistema fonológico do PB comporta sete vogais orais e cinco nasais.

94
Para os autores, “[...] o centro silábico deverá ser preenchido obrigato-
riamente, ou seja, a posição da vogal (V), enquanto o preenchimento das posi-
ções consonantais (C) é opcional.” (Ribeiro; Hora, 2004, p. 2.384).
Para ilustrar as consoantes em coda silábica do Português Brasileiro
(PB), apresentamos quadro abaixo:

Quadro 1 – Consoantes em posição de coda no PB

Meio de palavra Fim de palavra


/L/ relva / relva/|
mel / m l/
|

/N/ santa / saNta/


|
lã / laN/
|

/R/ carpete / kaR p te/


| |
par / paR/
|

/S/ mestre / m Stre/


|
mês / meS/
|

Fonte: Assis (2007, p. 99).

Ribeiro e Hora (2004, p. 2.386), dentre as classificações realizadas no


estudo para verificar sobre a incidência do apagamento da sibilante /S/ em
posição de coda final em lexemas, no que se refere à variável de estudo “classe
de palavra”, sinalizam que:

os resultados apontam como maior favorecedor do apagamento da sibilante


as conjunções, com peso relativo de .73, sendo importante salientar que
todas as ocorrências são com a conjunção “mas”, num processo que envolve
a ditongação e o posterior apagamento da sibilante: mas > ma[y]s > ma[y].

Esses resultados podem ser melhor compreendidos a partir da tabela


apresentada pelos autores, sendo P.R. o peso relativo, conforme tabela 1, a
seguir, que, para além da conjunção “mas” referenciada, também destacaram
os verbos com P.R. de .57; os substantivos com .50, considerado pelos autores
como um ponto neutro de aparições, e os advérbios, próximos ao ponto neutro
com .41. Já em relação aos adjetivos e aos numerais, no que se refere à inibição
para o apagamento da sibilante, seus P.R.s foram .25 e .21, respectivamente,

95
o que levou os autores a não o considerarem como categóricos para fins de
análise (Ribeiro; Hora, 2004).

Tabela 1 – Ocorrência de apagamento do /S/ por classe de palavras

Fonte: Ribeiro e Hora (2004, p. 2.386).

Outra categoria analisada pelos autores refere-se ao “número de sílabas”,


de forma que “a extensão do vocábulo também influencia a variável depen-
dente em análise.” (Ribeiro; Hora, 2004, p. 2.388), tendo sido encontradas por
eles ocorrências em palavras monossílabas, dissílabas e trissílabas, representa-
das na tabela inserida na Figura 3 que se segue:

Tabela 2 – Ocorrência de apagamento do /S/ por número de sílabas da palavra

Fonte: Ribeiro e Hora (2004, p. 2.388).

Os autores concluíram, a partir desses resultados, que apenas as pala-


vras dissílabas podem ser consideradas como favorecedoras “[...] à aplicação
da regra de apagamento, enquanto os monossílabos e os trissílabos apresenta-
ram pesos relativos muito aproximados à neutralidade.” (Ribeiro; Hora, 2004,
p. 2.388).
Importa destacar também que, dentre as pesquisas anteriores, sobre
o fenômeno de apagamento do /S/, Scherre e Macedo (1991) e Callou e
Moraes (1996) verificaram uma variação significativa sobre o /S/ pós-vocálico,

96
destacando quatro possibilidades de o fonema /S/ se realizar: alveolar surda e
sonora [s, z], pós-alveolar surda e sonora [ʃ, ʒ], glotal [h, ɦ] e zero fonético [Ø].
As variantes referidas se mostram condicionadas a partir do contexto
fonético-fonológico e, por conseguinte, do apagamento, no caso do /S/, em
maior aparição em coda final, ainda que ocorra em posição medial em alguns
casos, a exemplo da variação “mesmo” e “me[Ø]mo”. Essa constatação pode
ser ratificada pelos estudos de Callou, Leite e Moraes (2002), que concluíram
uma maior incidência de preservação do /S/ pós-vocálico em coda medial. Em
estudo sobre a lenição de sibilantes (suavização do fonema), Cristófaro-Silva
(2016, p. 222) sinaliza que esse fenômeno, “[...] em final de sílabas não parece
ser uma tendência geral no PB, exceto pela palavra mesmo em que a sibilante
tende a se realizar como uma fricativa posterior [‘meɦmu] ou sem qualquer
consoante [‘memu].”
Outra característica relevante para a compreensão do apagamento em
estudo refere-se ao sentido dos sintagmas nominais que são formados a partir
da combinação de duas formas mínimas, em que um elo determinante possui
outro elemento vinculado a si: o determinado. Nas palavras de Lemle (1984,
p. 139), os sintagmas são “[...] sequências significativas formadas por agrupa-
mentos de unidades lexicais.” E, de acordo com Ferreira (2013, p. 103), “Há
uma regra gramatical que exige a marcação de plural em todos os constituintes
de um Sintagma Nominal (SN). A essa regra damos o nome de concordância
nominal”.
Em adição a esse pensamento, temos, em Camacho (2011, p. 56), a indi-
cação de que as variações “representam duas ou mais formas alternativas de
dizer a mesma coisa no mesmo contexto” e, diante disso, na língua portu-
guesa, a marcação de número é considerada uma variante. Scherre (1994, apud
Lemos, p. 44) afirma que “[...] esse fenômeno não é uma regra categórica,
mas sim variável que se apresenta conforme certos determinantes linguísticos
e sociais”. Para Camacho (2011, p. 59). Uma variante, como presença de marca
de plural no sintagma nominal, é conhecida como detentora de prestígio social
entre membros da comunidade, sendo por isso chamado variante padrão ou de

97
prestígio. Já sua alternativa, a ausência de marca de plural, é conhecida como
variante não-padrão ou estigmatizada.
Conforme apontado por Bortoni-Ricardo (2009, p. 88):

[...] convém fazer a distinção entre o /s/ pós-vocálico que é morfema de


plural (ou seja, é o elemento que contém a marca de plural) e o /s/ que não é
morfema de plural. Vejamos exemplos do /s/ como marca de plural: aluno +
s, lâmpada + s, coelho + s. Vejamos agora palavras monomorfêmicas, forma-
das por um único morfema em que o /s/ é parte do morfema lexical: lápis,
pires, Paris, atrás etc.

Podemos afirmar, em linhas gerais, que existem casos de apagamento de


/S/ em coda quando este é integrante da raiz de palavras (como em “mesmo/
memo”) bem como quando corresponde ao morfema flexional de número e
envolve o fenômeno da concordância nominal em formas não verbais (como
“os biscoitos/os biscoito”). Também pode ocorrer apagamento do /S/ pre-
sente na desinência de formas verbais, como, por exemplo, em -mos, que traz
informações de pessoa (a primeira) e de número (plural), como se observa em
“vamos/vamo”.
Naro e Scherre (2003) observaram, a partir de seus estudos sobre as
mudanças linguísticas no que se refere à concordância de número, que as sibi-
lantes tendem a preservar sílabas fechadas, ainda que, em alguns casos, elas
sejam canceladas ao terem sua marca morfofonológica de plural /S/ suprimida.
O exemplo dado pelos autores foi “os meninos/os menino”, similar ao caso
observado nesta pesquisa e já mencionado: “os biscoitos/os biscoito”. Sobre
essa situação, Cristófaro-Silva (2016, p. 222) aponta que:

a perda da marca morfofonológica de plural em os menino leva à emergên-


cia de sílaba aberta final na palavra menino, mas preserva a sílaba fechada
no artigo os. Para compreendermos a situação paradoxal das sibilantes
devemos analisar a língua como um sistema adaptativo complexo em que
trajetórias diversas motivam a auto-organização da tipologia silábica do PB.

98
Diante da complexidade própria das línguas naturais, esses conheci-
mentos são essenciais e devem alcançar o processo formativo do professor de
língua portuguesa, pois, ao se deparar com fenômenos como o do apagamento
do /S/ na fala e escrita de seus alunos, os docentes poderão ter uma melhor
atuação em sala de aula, de modo a não tratar tais ocorrências como meros
“erros” linguísticos.

4. Resultados e discussão

Diante dessa perspectiva, passamos a discutir as respostas dos profes-


sores ao questionário aplicado e que relaciona conhecimentos de Fonética,
Fonologia e, como exemplo de fenômeno variável, o apagamento do /S/.
Assim como o estudo de Rodrigues e Nascimento (2016), realizamos uma
análise interpretativa, voltada a descrever e analisar as respostas dos docentes.
Participaram desta pesquisa 30 docentes que ministram aulas de língua portu-
guesa nas escolas de Porto Velho (RO). Conforme se verá adiante, as respostas
encontradas nos apontam para a necessidade de se refletir sobre como esses
professores foram formados para lidar com a escrita dos alunos na sala de aula.
O questionário foi aplicado por meio do Google Forms e compreendeu
22 questões. Neste trabalho, que apresenta um recorte de um estudo maior
ainda em andamento, parte das questões não será analisada. Buscou-se não
só definir o perfil dos sujeitos da pesquisa como identificar os elementos per-
tinentes à formação docente, os conhecimentos adquiridos sobre Fonética e
Fonologia, as situações experienciadas em sala de aula e as práticas voltadas a
essas situações.
Dentro desse cenário, com base no conhecimento linguístico apresenta-
dos pelos sujeitos da pesquisa, foi possível identificar as maiores incidências e
as possíveis causas de ausência ou presença de determinados recursos linguís-
ticos e sua classificação. Isso fez com que fosse possível detectar que os pro-
fessores investigados precisam ampliar seus conhecimentos sobre fenômenos
linguísticos presentes em textos de seus estudantes e que podem ter relação
com a oralidade.

99
Passaremos agora a analisar as respostas dos 30 profissionais da educa-
ção de Porto Velho (RO) que atuam na disciplina de língua portuguesa e res-
ponderam nosso questionário. Primeiramente, procurou-se identificar aqueles
que desenvolviam a atividades de educação no município e, no tocante ao per-
fil, detectar a formação, o tempo, o segmento e o local de atuação desses docen-
tes, cujas respostas seguem representadas pelos gráficos de 1 a 4.

Gráfico 1 – Perfil de formação

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

No que se refere à formação, observa-se, no Gráfico 1, que o maior


grupo de respondentes possui formação em Letras/Português (63,3%), seguido
de Pedagogia (23,3%). Notamos, assim, que parte dos docentes que traba-
lham com língua portuguesa nas escolas de Porto Velho não tem formação em
Letras.

100
Gráfico 2 – Tempo de atuação como docente

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

Sobre o tempo de atuação, verifica-se que muitos respondentes têm


mais de 10 anos de serviço como professores de língua portuguesa, sendo que
36,7% ministram essa disciplina a mais de 20 anos e 23,3% trabalham como
docentes a no mínimo 16 anos. Vejamos, a seguir, os principais segmentos de
atuação dos profissionais investigados.

Gráfico 3 – Segmentos educacionais de atuação dos entrevistados

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

101
Podemos observar que os docentes têm atuação variada em relação aos
segmentos educacionais. Mais de 80% dos docentes atua em Ensino Médio e
Cursinho pré-vestibular, mas uma boa porcentagem do público respondente
também atua no Ensino Fundamental II. Apenas um docente formado em
Letras atua no Ensino Fundamental I, os outros sete professores que minis-
tram língua portuguesa para esse segmento são formados em Pedagogia.

Gráfico 4 – Redes de ensino de atuação dos participantes da pesquisa

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

Quanto à necessidade de verificar sobre as incidências e os comporta-


mentos junto à rede básica de educação, as respostas também sinalizaram que
o público que respondeu ao questionário atende à expectativa da pesquisa, uma
vez que 20% dos respondentes atuam na rede pública municipal e 76,7% na
estadual. Uma porcentagem de 26,7% atua na rede particular de ensino. Sete
docentes trabalham na rede pública e particular concomitantemente.
Já as questões seguintes do formulário aplicado (de 5 a 7) tiveram o
objetivo de verificar o conhecimento dos professores sobre os conteúdos per-
tinentes à Fonética e à Fonologia e, com isso, abordar as questões relacionadas
ao processo formativo desses profissionais. As respostas alcançadas seguem
sinalizadas pelos gráficos seguintes.

102
Gráfico 5 – Grade curricular e as disciplinas de Fonética e Fonologia

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

No gráfico 5, está evidenciado que as grades formativas de parte dos


professores respondentes contemplavam disciplinas que possuíam conteúdo
das áreas de Fonética e Fonologia em sua estrutura curricular. Nesse sentido, o
indicativo teórico proposto por Cagliari (2009) sobre a necessidade de levar ao
docente conhecimentos variados de linguística mostra-se parcialmente cum-
prido, considerando que o ideal seria que todos os docentes tivessem acesso
aos conhecimentos de Fonética e Fonologia em seus cursos de graduação.
Destaca-se o fato de que, dentre os sete docentes formados em Pedagogia,
apenas dois afirmaram ter estudado conteúdos de Fonética e Fonologia em sua
graduação.

103
Gráfico 6 – Síntese sobre o reconhecimento de conteúdo pelos participantes

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

Corroborando o indicativo visto no gráfico 6, os dados apresentados rati-


ficam que os professores formados em Letras e dois formados em Pedagogia
tiveram acesso ao conteúdo e abordaram temáticas relevantes de Fonética e
Fonologia, como conhecimentos sobre vogais e consoantes, sílaba, aparelho
fonador, relação entre grafema e fonema, entre outros. Assim, vemos que esses
profissionais tiveram acesso a um repertório mínimo de saberes que podem ser
aplicados em sala de aula para trabalhar a linguística em sua relação com os
aspectos sonoros da língua.
Além de investigar os conhecimentos de Fonética e Fonologia aos quais
os professores que trabalham com ensino de língua portuguesa tiveram acesso,
verificamos também a existência de saberes e estratégias que possibilitem tra-
balhar os desvios que se apresentam nos textos e nas marcas da oralidade na
escrita dos alunos em sala de aula. Acreditamos que, para que o professor possa
mediar esses saberes, ele precisa contar com conhecimentos linguísticos mais
aprofundados, ratificando o entendimento de Tardif (2002) quanto à necessi-
dade de uma formação continuada e contextualizada.
Esse entendimento também encontra sustentação em Seara, Nunes
e Lazzarotto-Volcão (2015), que sinalizam que, ainda que o professor esteja

104
tendo acesso aos conteúdos sobre as temáticas investigadas em seu processo
de formação, conforme dados dos gráficos 5 e 6, é necessário que o professor
consiga utilizar o que aprendeu em sua formação em suas aulas.
Quando questionados: “Você já participou de outro curso (minicur-
sos/cursos livres) que tenha abordado conteúdos relacionados à Fonética e
Fonologia do português fora da sua graduação?” (questão 7 do questionário
aplicado), em que se buscou compreender o processo de formação continuada
desses participantes, as respostas oscilaram entre “Não lembro” (3%), “Não”
(47%) e “Sim” (50%), conforme registrado no gráfico a seguir:

Gráfico 7 – Participação em cursos fora do contexto


da graduação com conteúdo voltado para Fonética e Fonologia

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

No entanto, ainda que as evidências encontradas nas respostas às ques-


tões 5 e 6 demonstrem a existência de um acesso dos professores aos conteúdos
em seu processo formativo, os resultados explicitados no gráfico 7 levantam
uma preocupação sobre a falta de uma formação continuada em relação aos
conteúdos de Fonética e Fonologia. Uma formação continuada que abordem
tópicos de Fonética e Fonologia poderia propiciar uma oportunidade para o
profissional docente atualizar seus conhecimentos e incrementar suas práticas
pedagógicas e, com isso, alcançar melhores resultados em sala de aula.
Concordamos com Faraco (2008, p. 193) sobre o fato de que as gra-
duações de licenciaturas e os cursos de formação continuada devem deixar de
lado o “excesso de teorizações encapsuladas num discurso um tanto quanto

105
hermético que [...] pouco diz para a maioria dos professores da educação
básica”. Assim, o ideal é que áreas como Fonética e Fonologia também possam
fazer parte de cursos de formação continuada e estar mais presentes no dia-a-
-dia de sala de aula dos professores de língua portuguesa.
Seguindo essa linha de pensamento, no próximo segmento de questões,
foi verificada a percepção dos professores quanto à identificação de determina-
dos desvios junto aos seus alunos, conforme se verifica, na sequência, na figura 2:

Figura 2 – Questão 8 com amostra de texto produzido em ambiente escolar

Fonte: Questionário aplicado pelas autoras (2020).

Nesta imagem, observa-se o trecho “A chapeuzinho abriu a porta é


falou: / - Tom, você aqui! Entre vamo toma um chá”, em que se nota a palavra
“vamo” destacada em amarelo e escrita em caixa alta, já que ela será o foco da
discussão3. Retomando os estudos de Callou, Leite e Moraes (2002), verifica-
-se que a posição em coda do /S/ da última sílaba da palavra em destaque torna

Esse trecho faz parte de uma produção textual real do acervo de textos do Núcleo de
3

Estudos em Fonologia – NEFONO que conta atualmente com aproximadamente


240 redações coletadas com auxílio de bolsistas e voluntários PIBIC. Durante a co-
leta de textos, todos os informantes e seus responsáveis legais preencheram o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, redigido de acordo com as recomendações
da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde – CNS. A coleta de textos
em escolas precisou ser interrompida em virtude da pandemia de covid-19, mas
deverá ser retomada em pesquisas futuras.

106
tal sibilante mais frágil, o que favorece o seu apagamento na oralidade, com
possibilidade de ocorrência nas práticas letradas, como essa produção textual.
Dentre os 30 respondentes, vinte e seis professores responderam que
já haviam visto desvios semelhantes a esse em textos de alunos, três professo-
res disseram já ter visto o desvio e o relacionaram ao que chamaram de “erro
de concordância”, “ausência de concordância” e “leitura e escrita; concordân-
cia verbal e nominal”. Apenas um docente afirmou nunca ter visto um desvio
semelhante a esse.
Interessante observar que a palavra em destaque “vamo” representa
apenas uma variante da palavra “vamos”, forma verbal do verbo “ir” conju-
gada no presente do indicativo ou do subjuntivo na primeira pessoa do plural.
Considerando que a concordância verbal se faz entre verbo o conjugado e o
sujeito, esse apagamento não representa o que tradicionalmente os professores
de português poderiam classificar como “erro de concordância verbal” (menos
ainda se trata de equívoco de concordância nominal). Assim, é possível dizer
“nós vamos” (conforme as variedades de prestígio da língua portuguesa) ou
“nós vamo” (em tese, conforme as variedades menos prestigiadas e/ou menos
monitoradas do português).
Embora seja possível notar a variação linguística materializada pelo
apagamento do /S/, não se observa “erro” ou “ausência” de concordância em
relação ao sujeito “nós”. Haveria o tradicional “erro” de concordância se a forma
escolhida fosse “vai”, como em “nós vai”, em que há concordância da primeira
pessoa do plural com a forma verbal da terceira pessoa do singular. Nesse caso,
a variação linguística se materializa na morfossintaxe da língua portuguesa.
Portanto, podemos observar a necessidade de se trabalhar a variação linguís-
tica em sua relação com os níveis de análise linguística (Fonologia, Morfologia,
Sintaxe, Semântica etc.) tanto na escola quanto na formação docente, só assim,
é possível compreender os fenômenos variáveis em toda sua complexidade.
Destaca-se ainda que os maiores registros de incidência de fenômenos
semelhantes ao exemplificado, segundo a observação dos docentes, ocorreram
no 6º ano do Ensino Fundamental II e no 1º ano do Ensino Médio (gráfico 8).

107
Gráfico 8 – Desvios detectados por segmentos de ensino

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

Na questão 10, perguntamos “você conhece algum termo técnico ou


algum tipo de classificação que tenha estudado, na sua graduação ou em outro
curso, e usado para nomear o que foi considerado desvio no texto da questão
8? Se sim, qual?”. Quatro docentes deixaram a pergunta sem resposta, nove
responderam simplesmente “não” e um alega que, durante a graduação, não viu
esse conteúdo. Essas respostas reafirmam o entendimento de Cagliari (2009)
de que, mesmo que o profissional reconheça que está diante de um tipo de
desvio, vai encontrar dificuldade de tecer hipóteses sobre a escrita do aluno
e de vinculá-lo ao conteúdo específico da área de Fonética e Fonologia. Os
demais docentes arriscaram nomear o fenômeno, conforme podemos observar
por meio das respostas abaixo, retiradas do formulário:

• Sim. Processo de aquisição da escrita o nível de escrita da criança é


classificado como alfabético
• Sim. Foi a concordância verbal. O falante escreve como fala, desvio
à norma padrão.
• Sim. Fenômeno de apagamento da sibilante /S/ em posição de coda
final.

108
• Não lembro os nomes técnicos, acredito que sejam trocas fonéticas.
• Supressão do s por economia, algo assim.
• Sim, apagamento do fonema s em coda.
• Sim. Transcrição fonética.
• Variação linguística
• Desvio ortográfico
• Apagamento do s
• Sim. Barbarismo
• Concordância

Interessante notar que alguns docentes procuraram relacionar conheci-


mentos de Fonética e Fonologia em suas respostas, usando termos como trocas
fonéticas, transcrição fonética, supressão por economia, embora não tenham
conseguido classificar fenômeno em toda sua complexidade e de modo mais
específico. Isso aponta para o fato de que os docentes têm dificuldades de
mobilizar seus conhecimentos de linguística ao analisar textos de seus alunos.
Um docente respondeu que se tratava de “apagamento da sibilante /S/
em posição de coda final”, um classificou como “apagamento do s” e outro
docente disse “apagamento do fonema s em coda”, o que demonstra, ainda
que de maneira tímida, a presença de conhecimentos de Fonética e Fonologia
no repertório de parte dos docentes investigados, mesmo que não tenham a
exata precisão terminológica. Interessante que, quando observamos o perfil
dos respondentes que nomearam o fenômeno mobilizando conhecimentos de
Fonética e Fonologia, vamos que são docentes com formação mais recente –
alguns cursaram ou estão cursando o Mestrado em Letras, inclusive.
Chama a atenção que um equívoco de escrita ainda seja classificado
como “barbarismo” por um docente, uma forma simplista e estigmatizada de se
observar fatos linguísticos. Segundo o Dicionário Houaiss (2009), barbarismo,
em relação à gramática diz respeito ao

uso de formas vocabulares contrárias à norma culta da língua, seja do ponto


de vista ortoépico (p.ex., peneu no lugar de pneu; rúbrica no de rubrica),

109
ortográfico (p.ex., excessão por exceção), gramatical (p.ex., a construção
quando eu ver por quando eu vir; ela está meia triste por ... meio triste; menas
palavras por... menos palavras), ou semântico (p.ex., o uso da loc. ir de encon-
tro a [‘chocar-se com’] no lugar de ir ao encontro de [‘estar conforme’])

Quando olhamos o perfil do respondente que classificou o fenômeno


como barbarismo, vemos que tem formação na área de Letras/Português, com
experiência de mais de 20 anos em sala de aula. Isso indica que, embora expe-
riente em seu labor, o docente concluiu o curso de Letras há muitos anos e ainda
deve vincular seu trabalho a um ensino de língua portuguesa excessivamente nor-
mativo e descontextualizado das reflexões propostas pela Linguística moderna.
Mais uma vez, vemos a necessidade de que conhecimentos da Linguística alcan-
cem profissionais com esse perfil para que possam atuar promovendo um ensino
de português mais reflexivo e pautado no avanço da ciência.
Conforme sinalizado por Tardif (2002, p. 230), é importante buscar
compreender como pensa e se expressa o professor e quais são os seus saberes,
de forma que, ao “[...] registrar o ponto de vista dos professores, ou seja, sua
subjetividade de atores em ação, assim como os conhecimentos e o saber-fazer
por eles mobilizados na ação cotidiana”, será possível buscar meios adequados
para aprimorar sua atuação em sala de aula.
Assim, as questões de 11 a 13 buscaram igualmente verificar novamente
a incidência do apagamento do /S/ relacionada ao fenômeno de concordância
nominal de número.

Figura 3 – Texto utilizado para as questões 11 a 13

Fonte: Utilizado pelas autoras no questionário aplicado (2020).

110
Na figura 3 vemos o texto “- Minha mãe acabou de tirar os biscoito do
forno, vou prepara uma cesta pra você leva”, em que a palavra “biscoito” apa-
rece em caixa alta e com destaque em amarelo, já que ela é o principal objeto
das perguntas. Quando perguntamos aos professores se “durante sua atuação
como professor de língua portuguesa, você já verificou desvios semelhantes aos
destacados nos textos abaixo?”, vinte e quatro professores afirmaram reconhe-
cer desvios parecidos em textos de seus alunos, dois professores disseram não
reconhecer o desvio e quatro professores não responderam ao perguntado.
Quando perguntados sobre as séries em que se observa desvios seme-
lhantes ao exemplificado, novamente, os professores destacaram o 6º ano do
Ensino Fundamental e o 1º ano do Ensino Médio, conforme se nota a partir
do gráfico 9:

Gráfico 9 – Ocorrências de desvios por segmento de ensino

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

Quando perguntados na questão 13 “você conhece algum termo técnico


ou algum tipo de classificação, que tenha estudado na sua graduação ou em
outro curso, usado para nomear o que foi considerado desvio no texto da ques-
tão 11? Se sim, qual?”, parte dos professores disse que não saberia responder
(9 respondentes) ou não se lembrava do termo (5 respondentes). Dentre os
respondentes que arriscaram nomear o fenômeno, temos as respostas abaixo:

111
• Sim. A não flexão de plural em todos os substantivos presentes no
enunciado.
• Desvio de linguagem.
• Uso da oralidade na escrita. Economia linguística, ou algo do tipo.
• Não, com toda certeza. Estilos não monitorados.
• Sim, cacoepia.
• Erro de concordância
• Sim. Apagamento da sibilante /S/ em coda final na marcação do
plural.
• Desvio de Concordância nominal. O aluno marcou o plural somente
com o artigo e manteve o substantivo no singular.
• Concordância nominal.
• Variação linguística
• Não, discutimos sobre isso em introdução a linguística, é comum
marcar o plural no artigo os carro, os bicho, no conteúdo de sociolin-
guística.
• Apagamento do s

Como se pode observar, os docentes percebem a variação linguística


relacionada à concordância nominal de número, mas apenas dois docentes
relacionam essas questões ao apagamento da sibilante em coda. Ou seja, parte
da complexidade do fenômeno observado não é abordada nas respostas dos
respondentes.
Um fato curioso é que o mesmo docente que classificou o fenômeno
como “barbarismo” na pergunta 10, classifica esta ocorrência como “cacoepia”,
também chamada de “cacoépia” pelas gramáticas tradicionais. Novamente, tra-
ta-se de uma maneira simplista e estigmatizada de se observar a questão. De
acordo com o Dicionário Houaiss (2009), “cacoépia” é uma rubrica da gramá-
tica que indica “pronúncia irregular, diferente da prevista ou postulada pela
prosódia (‘estudo’); cacoepia”. Essa classificação reforça a noção de erro em
relação à variação linguística que é um fenômeno presente em todas as lín-
guas naturais. Por isso seria tão importante que conhecimentos de Fonética

112
e Fonologia, e de Linguística em geral, chegassem a docentes com esse perfil
(formados há mais de 20 anos).
No gráfico 10, abaixo, é possível observar as respostas para a pergunta
“no seu curso de graduação, você teve algum conteúdo que explicasse o fenô-
meno linguístico apagamento do /S/ em coda silábica?”.

Gráfico 10 – Sobre os conhecimentos específicos no curso de formação – apagamento do /S/

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados coletados (2021).

As respostas sinalizam que, mesmo havendo a disciplina e a aplicação


de conteúdo voltado para as áreas de Fonética e Fonologia nas graduações de
grande parte dos respondentes, não se percebe um aprofundamento sobre os
fenômenos linguísticos mais aparentes na língua portuguesa, já que 63,3% do
total de participantes afirma que não tiveram discussões sobre o fenômeno do
apagamento do/S/ em coda silábica na graduação. Esse dado reforça a impor-
tância de o professor universitário dos cursos de graduação relacionar, em suas
aulas, os conteúdos de Fonética e Fonologia aos fenômenos variáveis do por-
tuguês, sempre que possível tecendo reflexões sobre esses conhecimentos e o
ensino de língua portuguesa no Ensino Fundamental e Médio, auxiliando os
graduandos no processo de transposição didática fundamental na profissão
que escolheram.

113
Considerações finais

As reflexões apresentadas neste capítulo apontam a necessidade de se


rever como se dá o processo formativo do professor de língua portuguesa, bus-
cando a implementação de novas práticas para o saber-fazer docente. É essencial
que as aulas de Linguística na universidade conversem com a prática docente
que será efetivada nas aulas de língua portuguesa dos Ensinos Fundamental e
Médio. Assim será possível que o professor se sinta seguro para trabalhar os
fenômenos linguísticos variáveis (que aparecem em textos de alunos em processo
de aquisição e desenvolvimento da escrita) em toda a sua complexidade.
Para isso, além de contar com cursos de graduação que tenham espaço
para a abordagem de conteúdos como os de Fonética e Fonologia em sua grade
curricular, é importante a efetiva implementação de um processo de formação
continuada com cursos que também abordem conhecimentos dessas áreas – e
fazer com que esses cursos cheguem, principalmente, aos docentes com forma-
ção mais antiga. Isso visa contribuir para a promoção de uma prática de ensino
de português atenta à variação linguística em sua relação com a Fonética e a
Fonologia, e como essa variação pode se manifestar em formas escritas não
convencionais. Os resultados obtidos nesta pesquisa também indicaram difi-
culdade, por parte dos docentes, de reconhecer e trabalhar com a diversidade
linguística que, fatalmente, se manifesta na fala da comunidade escolar e na
escrita não convencional de alunos em todos os níveis de ensino.
A partir da perspectiva dos professores atuantes na cidade de Porto
Velho (RO) sobre o apagamento do /S/ em textos reais de alunos, notamos
que os docentes precisariam estar mais preparados para identificar fenôme-
nos linguísticos como esse e ser capazes de tecer reflexões sobre as diferentes
variedades do português falado e escrito por seus discentes. É importante que
esses docentes consigam nomear as formas desviantes encontradas em textos
de alunos, entendendo os motivos subjacentes ao fenômeno observado. Isso
é fundamental não apenas para dizer que o aluno escreveu “errado”, mas para
explicitar os fenômenos linguísticos para seus discentes, levando-os a refletir
sobre as convenções da escrita, típicas das práticas letradas mais monitoradas, e
sobre os diferentes usos do idioma em suas modalidades falada e escrita.

114
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117
“MEXEU COM UMA, MEXEU COM TODAS”:
SOBRE O PAPEL DE INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS
EM SISTEMAS FONÉTICO-FONOLÓGICOS MULTILÍNGUES

Ubiratã Kickhöfel Alves


Felipe Guedes Moreira Vieira

Introdução

Este trabalho parte de uma premissa fundamental: os estudos em


Fonologia de Laboratório1, ao associar aspectos experimentais à discussão
referente aos sistemas de sons das línguas e seus princípios de funcionamento,
mostram-se capazes de estabelecer um elo bastante claro entre os campos da
Psicolinguística e da Teoria e Análise Linguística. A partir desse elo, estrei-
tam-se, também, as relações com o âmbito aplicado da Linguística, dado que
os resultados dos estudos experimentais fornecem evidências para que se pos-
sam repensar as práticas pedagógicas.
A premissa supracitada tem motivado, no contexto nacional, uma
série de estudos sobre desenvolvimento multilíngue a partir da perspectiva
da Fonologia de Laboratório (Kluge, 2021, Kupske, 2016; Pereyron, 2017,
Schereschewsky, 2021, dentre outros). Com o crescimento das pesquisas em
Língua Adicional (LA)2 à luz da Fonologia de Laboratório, cada vez mais
faz-se menção a modelos teóricos de percepção e produção, com o intuito de

1
Para um maior aprofundamento sobre as premissas da Fonologia de Laboratório,
sugerimos a leitura de Albano (2017), em língua portuguesa, bem como o estudo
dos capítulos da obra The Oxford Handbook of Laboratory Phonology (Cohn; Fouge-
ron; Huffman, 2012).
2
Neste trabalho, denominaremos de Língua Adicional (LA) qualquer um dos siste-
mas linguísticos do aprendiz que não corresponda à sua língua materna (L1). Os
termos ‘segunda língua’ (L2) e ‘terceira língua’ (L3) serão usados quando for neces-

119
explicar os processos fonético-fonológicos vigentes no sistema em desenvol-
vimento do aprendiz. Nesse contexto, um dos modelos mais frequentes é o
Speech Learning Model - SLM (Flege, 1995), recentemente revisado e denomi-
nado Revised Speech Learning Model – SLM-r (Flege; Bohn, 2021).
Uma das premissas fundamentais do SLM(-r) é a de que as diversas
línguas do indivíduo compartilham um espaço fonético-fonológico comum.
Tal premissa tem efeitos tanto para a percepção quanto para a produção dos
sons, uma vez que permite conceber não somente a hipótese de que a L1 afeta
os demais subsistemas3 linguísticos (tais como a L2 e a L3), mas, também, que
tais línguas adicionais podem se afetar mutuamente, de modo a influenciarem,
inclusive, o próprio sistema de L1 do aprendiz.
Com base no jogo dinâmico de assimilações e dissimilações entre as
categorias da L1 e os demais subsistemas linguísticos, e também em função do
seu posicionamento a favor da pertinência de um acompanhamento longitudi-
nal do processo de desenvolvimento de LA, defendemos que o SLM-r pode ser
associado a uma concepção dinâmica e complexa de desenvolvimento, anco-
rando-se na Teoria dos Sistemas Dinâmicos Complexos (TSDC - Beckner
et al., 2009, De Bot, 2017, De Bot; Lowie; Verspoor, 2007, Hiver; Al-Hoorie,
2020, Larsen-Freeman; Cameron, 2008, Lowie, 2017, Lowie; Verspoor, 2019,
Verspoor; De Bot; Lowie, 2011). Buscamos, assim, atribuir uma concepção de

sário descrever o ordenamento cronológico referente ao primeiro contato do aprendiz


com tais línguas adicionais.
3
Neste trabalho, empregaremos o termo ‘subsistema’ para nos referirmos às diversas
línguas do aprendiz, em conformidade com uma série de trabalhos (De Bot, 2011;
De Bot; Lowie; Verspoor, 2007; Lowie, 2017; Lowie; Verspoor, 2015; Opitz, 2017;
Verspoor, 2015, dentre outros) que seguem a visão dinâmica e complexa de língua.
Conforme explicam Lowie e Verspoor (2015), os diferentes domínios linguísticos
(fonologia, morfologia, sintaxe, dentre outros) constituem subsistemas de um siste-
ma maior que é a língua (L1, L2, ou L3), e cada uma dessas línguas caracteriza, por
sua vez, um subsistema de um sistema maior multilíngue; esse, por sua vez, também
é um subsistema de um sistema cognitivo maior. Os autores ressaltam a integração
entre todos esses subsistemas, que, pelo fato de serem abertos, estão sempre sujeitos
a alterações (e, dessa forma, também apresentam potencialidade para alterar uns aos
outros).

120
base que garanta uma sustentação epistemológica ainda maior ao modelo de
Flege (1995) e Flege e Bohn (2021), de modo a propormos uma associação
teórica pertinente de discussão no âmbito acadêmico.
A noção de Complexidade que caracteriza a TSDC parte da pre-
missa fundamental de que “o todo não é a soma das partes” (Larsen-Freeman;
Cameron, 2008). Dessa forma, os subsistemas de um sistema multilíngue não
são um aglomerado de línguas isoladas; são, por sua vez, elementos que se
influenciam uns aos outros. Com base nessa premissa dinâmica, no contexto
nacional de investigações, Kupske (2016, 2021, dentre outros) investiga o fenô-
meno de ‘Atrito Linguístico’ da L1, definido pelo autor como “a força resul-
tante do contato de dois corpos, no caso, duas línguas, que se tocam, mas não se
estabilizam, havendo uma constante tendência ao movimento” (Kuspke, 2016,
p. 40). Amparados em uma visão dinâmica e complexa, concebemos, portanto,
que o referido fenômeno se mostra como decorrência natural e inevitável do
processo de desenvolvimento linguístico, em qualquer sistema bi/multilingue.
Considerar as modificações no subsistema de L1 (e nos demais subsiste-
mas de língua adicional, uma vez que todos os subsistemas se influenciam uns
aos outros) implica contemplar a natureza ‘dinâmica’ dos TSDCs. Tal natureza
dinâmica implica que os sistemas estão sempre em transformação, afetando-se
mutuamente. A Teoria prevê, na variabilidade dos dados, um dos pontos-chave
para tais modificações dinâmicas. Verspoor, Lowie e De Bot (2021) se referem
à ‘variabilidade’ como a variação apresentada por um indivíduo, sendo essa vista,
por outros paradigmas linguísticos, como variação não-sistemática ou livre.
À luz da TSDC, a variabilidade passa a assumir papel fundamental a
partir da observação de dados longitudinais, sendo apontada pelos autores
como “funcional e necessária para o desenvolvimento” (op. cit., p. 1). Isso se dá
porque, a partir de um acompanhamento longitudinal do indivíduo, etapas que
apresentam um aumento de variabilidade sinalizam que o aprendiz está expe-
rimentando novas construções linguísticas. Em conformidade com Verspoor e
van Dijk (2013), ao denotar mudança, a variabilidade é um indício de aprendi-
zado, convidando-nos a pensar em uma relação recíproca: a variabilidade pode
ser o primeiro indício empírico do desenvolvimento de LA, ao passo que é o

121
próprio desenvolvimento em sua manifestação. Em outras palavras, à luz da
visão dinâmica e complexa, o interesse não é mapear, em uma relação linear de
causa-efeito, os fatores que dão conta da variabilidade, mas sim entendê-la ao
longo do processo, reconhecendo ser ela um possível sinal de mudança.
Ainda à luz do modelo, índices mais baixos de variabilidade no desen-
volvimento linguístico do aprendiz podem sugerir a existência de um sistema
mais estabilizado, seja por um maior domínio das estruturas (de modo que o
aprendiz não tenha que experimentar novas formas), seja por uma espécie de
pouco progresso ou estabilização (o que paradigmas anteriores chamariam de
“fossilização”) do sistema. Cabe mencionar, seguindo De Bot (2015), que o
grau de variabilidade de uma trajetória dinâmica depende da escala de tempo
tomada para a análise longitudinal: em uma dada escala de tempo, o sistema
estará sempre evoluindo (ainda que minimamente), de modo que a “estabili-
dade” pode ser um convite à verificação do mesmo fenômeno em escalas de
tempo ainda menores ou maiores.
Cumpre ainda mencionar que, ao considerarmos as premissas dinâmicas
de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que concebemos que desenvolvi-
mento é mudança (que pode, muitas vezes, passar por estágios imprevisíveis),
devemos, também, reconhecer um certo grau de previsibilidade, a partir dos
estados atratores que caracterizam os sistemas dinâmicos. Nesse sentido, con-
sideramos haver, efetivamente, um sistema de base que rege as movimentações
dinâmicas no desenvolvimento de LA, e que permite estabelecer inferências
acerca das previsões de mudança de padrões em direção ao estabelecimento
de uma nova língua, ainda que, em função das diferentes condições iniciais
de cada aprendiz, cada indivíduo possa passar por essas fases em diferentes
momentos de suas etapas desenvolvimentais (cf. Verspoor, 2015).
Conforme já defendido em uma série de trabalhos (De Bot; Lowie;
Verspoor, 2011; Lowie, 2017, MacIntyre et al., 2017), os avanços da Teoria dos
Sistemas Dinâmicos Complexos já permitem que pensemos em metodologias
longitudinais que caminhem lado a lado com os pressupostos teóricos e prin-
cípios defendidos pelo modelo. Exemplos de obras e manuais voltados especi-
ficamente à discussão de métodos dinâmicos de análise de dados são Verspoor,

122
De Bot e Lowie (2011) e Hiver e Al-Hoorie (2020). Além disso, conforme
explica De Bot (2011), uma vez que o modelo não visa a determinar uma rela-
ção de causa/efeito linear, a explicação dos fatos da língua se dá através da pró-
pria descrição dos dados. Por esse motivo, metodologias dinâmicas permitem
leituras dos dados que alimentam o pensar teórico, ao mesmo tempo em que
os próprios construtos teóricos impõem desafios e incitam novas metodologias
que permitirão olhares adicionais aos dados desenvolvimentais.
Partindo das premissas supracitadas, no presente trabalho, investigamos,
em caráter longitudinal (24 sessões de coleta ao longo de um ano), o desen-
volvimento de um aprendiz argentino (L1: Espanhol Rioplatense), residente
no Brasil (em Porto Alegre-RS) há três anos e meio na ocasião do início das
coletas de dados. O aprendiz é falante de Inglês como L2 (nível A2 de profi-
ciência) e de Português Brasileiro como L3 (nível avançado de proficiência).
Para propiciarmos a discussão acerca da multidirecionalidade da
influência dos subsistemas linguísticos do referido aprendiz, propomos, com
o presente trabalho, um estudo empírico de treinamento perceptual de alta
variabilidade (HVPT – High Variability Perceptual Training)4, de modo a ace-
lerarmos o seu processo de desenvolvimento em inglês (L2). Ao consideramos
a premissa dinâmica e complexa de interconexão entre os sistemas, esperamos,
com as alterações nos índices de produção na L2, verificar modificações ao
longo do tempo, também, nos sistemas de L3 e de L1 do referido aprendiz.
O fenômeno linguístico das sessões de treinamento corresponde a um
aspecto fonético-fonológico já bastante discutido em nosso grupo de pesquisa,
referente ao aprendizado dos padrões de Voice Onset Time das plosivas iniciais
do Inglês (L2)5. No Inglês, o Voice Onset Time (VOT) é o principal correlato

4
O treinamento perceptual de alta variabilidade pode ser caracterizado como uma
atividade laboratorial em que o aprendiz é exposto a estímulos da LA (sejam eles
naturais ou manipulados), oriundos de diversos falantes/locutores, e é convidado ou
a identificar, ou a discriminar, os estímulos auditivos a que foi exposto. Para uma dis-
cussão acerca do HVPT, vejam-se Barriuso e Hayes-Harb (2018), Thomson (2018)
e Milan e Kluge (2021).
5
O Voice Onset Time corresponde ao intervalo de tempo entre o momento da soltura
da consoante plosiva e o início da vibração das pregas vocais (Lisker; Abramson,

123
acústico responsável pela distinção entre as categorias fonológicas de ‘surdo’ e
‘sonoro’ dos segmentos plosivos iniciais. Ao passo que, nessa língua, as plosi-
vas sonoras iniciais são geralmente produzidas sem vibração de pregas vocais
durante a etapa de fechamento dos articuladores, com um padrão de VOT Zero
(Lisker; Abramson, 1964; Cho; Ladefoged, 1999), os segmentos surdos em
início de palavra se instanciam por meio da aspiração (VOT Positivo ou voi-
cing lag). Tais padrões, entretanto, não são os mesmos encontrados em línguas
como o Francês, o Espanhol ou o Português Brasileiro. Conforme apontado
na literatura (Lisker; Abramson, 1964, Abramson; Whalen, 2017), o Espanhol
apresenta pré-vozeamento (também conhecido como VOT Negativo, ou seja,
vibração das pregas vogais antes mesmo da explosão) em suas plosivas sonoras
iniciais, e um padrão de VOT Zero nas consoantes surdas em início de pala-
vra. Temos, portanto, uma sobreposição entre o Espanhol e o Inglês no que
diz respeito ao padrão VOT Zero: enquanto um curto intervalo de tempo de
VOT caracteriza a plosiva sonora no Inglês6, este mesmo padrão é encontrado
nas plosivas surdas nos demais subsistemas do aprendiz, o Espanhol (L1) e
o Português (L3). Esperávamos, então, que o treinamento perceptual possi-
bilitasse um aumento nos índices de VOT das plosivas iniciais na L2; por
conseguinte, tal aumento nos índices de VOT seriam refletidos, também, nos
demais subsistemas linguísticos do aprendiz (ainda que, nos subsistemas em
questão, as plosivas iniciais não sejam produzidas com aspiração).

1964), vibração essa que, no caso das plosivas surdas do Inglês investigadas neste
estudo, diz respeito à produção da vogal seguinte. Para uma caracterização a respeito
dos padrões de Voice Onset Time encontrados no Português Brasileiro e no Inglês,
vejam-se Lisker e Abramson (1964), Cho e Ladefoged (1999), Ladefoged e John-
son (2015), Alves e Zimmer (2015), Abramson e Whalen (2017) e Alves e Luchini
(2017, 2020).
6
Cabe mencionar que as plosivas sonoras do Inglês podem ser produzidas, variavel-
mente, tanto com o padrão VOT Negativo quanto com o Padrão VOT Zero (Cho;
Ladefoged, 1999). Dessa forma, é justamente a produção da aspiração (padrão VOT
Positivo) que corresponde ao padrão fundamental para a distinção entre plosivas
surdas e sonoras iniciais por parte de falantes nativos do Inglês.

124
Para a verificação de tais possíveis alterações ao longo do tempo, reali-
zaremos, com base no manual de verificações dinâmicas de Verspoor, De Bot e
Lowie (2011), análises de pico com Simulações de Monte Carlo (cf. Van Dijk;
Verspoor; Lowie, 2011). É importante mencionar, ainda, o caráter inovador,
no contexto brasileiro de pesquisas, referente ao método de aferição dinâmica
(análises de pico com Simulações de Monte Carlo) empregado no presente
estudo. Tal verificação vai ao encontro da necessidade de estabelecimento de
metodologias que se mostrem consonantes com a visão Dinâmica e Complexa
da Língua (Beckner et al., 2009; De Bot, 2017, De Bot; Lowie; Verspoor,
2007, Hiver; Al-Hoorie, 2020; Larsen-Freeman; Cameron, 2008, Lowie,
2017, Lowie; Verspoor, 2019, Verspoor; De Bot; Lowie, 2011), ao refletirem
os pressupostos de alteração e variabilidade ao longo do tempo como elemen-
tos caracterizadores de uma mudança de fases no sistema (Baba; Nitta, 2014;
Fogal, 2020, Han; Hiver, 2018, Henry; Thorsen; MacIntyre, 2021, Hepford,
2020, Lowie; Verspoor, 2015, Nitta; Baba, 2015, Ruhland; Van Geert, 1998,
Spoelman; Verspoor, 2010, Van Dijk; Verspoor; Lowie, 2011). No plano empí-
rico, consideramos que o presente trabalho se mostra inovador, uma vez que
desconhecemos, tanto no cenário nacional quanto no internacional, estudos
de processo (cf. Hiver; Al-Hoorie, 2020, Lowie, 2017, Lowie; Verspoor, 2019)
que discutam possíveis alterações dinâmicas em sistemas multilíngues a partir
da prática laboratorial de treinamento perceptual dos sons da L2.
Através do presente trabalho, pretendemos, portanto, verificar a inter-
-relação entre todos os subsistemas de um aprendiz multilíngue, bem como
demonstrar como alterações em um desses subsistemas, ocasionadas por uma
intervenção pedagógica (tal como o treinamento perceptual), podem exercer
impacto sobre os demais subsistemas linguísticos. A partir da associação dos
pressupostos da TSDC ao modelo de percepção e produção do Speech Learning
Model(-r) (Flege, 1995, Flege; Bohn, 2021), bem como da associação dessas
teorias de base a práticas pedagógicas, pretendemos discutir de que modo o
presente estudo experimental, amparado nos pressupostos da Fonologia de
Laboratório, cumpre seu papel em associar os âmbitos da Psicolinguística, da
Linguística Aplicada e da Teoria e Análise Linguística.

125
1. Metodologia

1.1 Participante
Nascido na província argentina de Buenos Aires, o participante do
estudo possui como L1 a variedade Rioplatense de Espanhol. Já como L2
e L3, o participante apresenta, respectivamente, o Inglês, com um nível pré-
-intermediário de proficiência (nível A2, de acordo com o Quadro Comum
Europeu de Referências para Línguas, verificado à época do início das coletas
de dados por um teste de nivelamento da escola de Inglês em que ele se encon-
trava matriculado), e o Português Brasileiro (PB) (nível avançado superior, de
acordo com o exame de proficiência Celpe-Bras, realizado pelo candidato em
2015). Quando as coletas de dados iniciaram, em outubro de 2018, o partici-
pante tinha 37 anos, e estava residindo na cidade de Porto Alegre-RS há três
anos e sete meses (desde março de 2015). Uma vez que o participante atua
como docente de uma Universidade Federal na cidade de Porto Alegre, o PB
é constantemente utilizado no seu âmbito profissional.

1.2 Sessões de Coleta


As sessões de coleta de produções orais nas três línguas (Espanhol,
Inglês e Português Brasileiro) ocorreram quinzenalmente, em turnos distin-
tos para cada língua, entre outubro de 2018 e setembro de 2019, totalizando
24 sessões. Seguindo-se a metodologia de coletas ABA de Hiver e Al-Horrie
(2020), foram realizadas coletas anteriormente (Coletas 1 a 9), durante
(Coletas 10 a 15) e posteriormente (Coletas 16 a 24) ao treinamento percep-
tual. As coletas foram realizadas pelo primeiro autor deste trabalho na residên-
cia do participante, com o uso de um laptop com o software Audacity7 - version
2.3.0 (Audacity Team, 2018). A taxa de amostragem da captura do som foi de
44100Hz.

Software livre, que pode ser obtido a partir do site https://www.audacityteam.org/


7

download/.

126
1.3 Treinamento perceptual
Entre fevereiro e abril de 2019, em caráter semanal, o aprendiz partici-
pou de 13 sessões de treinamento perceptual, realizadas no site English Accent
Coach (Thomson, 2019)8, referente às plosivas surdas iniciais do Inglês /p, t,
k/. As sessões envolveram todos os níveis de treino da plataforma (realizados
gradativamente de acordo com o progresso do aprendiz, desde o nível inicial
ao mais avançado). Cumpre mencionar que o aspecto que diferencia cada nível
diz respeito aos tipos e ao número de vogais que seguem a consoante, ou seja,
enquanto no primeiro nível o aprendiz ouve apenas estímulos do tipo [pʰʊ],
[tʰʊ] e [kʰʊ], no décimo nível o participante ouve estímulos de todas as vogais
do Inglês, tais como [pʰε], [tʰu] e [kʰi].
As sessões de treinamento consistiam em levar o aprendiz a ouvir um
estímulo sonoro e escolher a alternativa à qual o estímulo correspondia, tratan-
do-se, portanto, de uma tarefa de identificação. Quando o aprendiz escolhia a
opção correta, o sistema fornecia o feedback positivo instantâneo e passava para
o próximo estímulo, como pode ser observado na Figura 1. No entanto, caso
o aprendiz errasse, o sistema acusava o erro e só prosseguia para o próximo
estímulo quando o aprendiz selecionasse a alternativa correta, destacada em
vermelho, como pode ser observado na Figura 2. Esse processo continuava até
o participante ouvir 100 estímulos, sendo que o tempo de duração de cada ses-
são de treinamento era de aproximadamente sete minutos. É importante res-
saltar que o site conta com um treino de alta variabilidade fonética (Barriuso;
Hayes-Harb, 2018), pois os estímulos que o aprendiz escuta são de vozes de 30
falantes (15 homens e 15 mulheres) canadenses9. Isso pode contribuir para que
os participantes tenham mais facilidade em generalizar os estímulos treinados
para diferentes qualidades de voz.

https://www.englishaccentcoach.com/ .
8

Informação fornecida pelo criador da plataforma, Dr. Ron Thomson, em informação


9

pessoal (e-mail) ao primeiro autor deste trabalho (08 de dezembro de 2018).

127
Figura 1 – Feedback fornecido quando o participante acerta o estímulo

Fonte: Captura de imagem realizada pelos autores em https://www.englishaccentcoach.com/.

Figura 2 – Feedback fornecido quando o participante erra o estímulo.

Fonte: Captura de imagem realizada pelos autores em https://www.englishaccentcoach.com/.

1.4 Instrumento de coleta de dados orais


O instrumento de leitura em voz alta de palavras foi o mesmo empre-
gado em trabalhos anteriores (Alves; Zimmer, 2015; Alves; Luchini, 2017,
2020), de modo a propiciar comparações futuras com os resultados desses
experimentos prévios. Em tal instrumento, buscou-se propiciar um contexto
fonético-fonológico que facilitasse a produção de intervalos de VOT mais lon-
gos (Yavas; Wildermurth, 2006). Desse modo, a coleta dos dados orais con-
sistiu na leitura de palavras (monossilábicas para o Inglês e dissilábicas para o
Espanhol e Português) iniciadas em /p, t, k/ seguidas por uma vogal alta, /i/ ou
/I/, nas três línguas10.

Com exceção na leitura de palavras em Português Brasileiro, na qual não foram cole-
10

tadas palavras iniciadas em /t/ inicial, tendo em vista que, no dialeto de Porto Alegre,
falado pelo aprendiz, palavras iniciadas em /ti/ passam pelo processo de palatalização,
fazendo com que a consoante inicial passe a ser pronunciada como africada [tʃ]).

128
Durante a leitura, as palavras-alvos (9 para o Inglês e Espanhol e 6
para o PB, com a não inclusão das iniciadas em /t/) foram misturadas junto
a palavras distratoras (19 para os instrumentos em Inglês e Espanhol e 14
para o instrumento em Português). Portanto, totalizaram-se 28 types para os
instrumentos em Inglês e Espanhol e 20 types para o PB, os quais eram lidos
novamente após finalizada a leitura de toda a sequência de itens lexicais (tota-
lizando 56 tokens para os instrumentos em Inglês e Espanhol e 40 tokens para o
PB). Garantíamos, assim, que não houvesse prejuízos em função de uma even-
tual exclusão de tokens no caso de possíveis problemas na captação do áudio
por ruídos ou qualquer outro tipo de interferência.

1.5 Procedimentos de análise acústica


Com o auxílio do software Praat – versão 6.1.41 (Boersma; Weenink,
2021), após o término das coletas de dados, foram realizadas análises acústicas
da duração do VOT positivo das palavras-alvo nas três línguas. Toda a etapa de
análise foi realizada manualmente, considerando como ponto inicial do VOT
o momento imediatamente após a explosão da plosiva surda, e, como ponto
final, o início sistemático do vozeamento da vogal seguinte. Posteriormente,
para a realização dos procedimentos estatísticos, calculamos os valores das
médias e dos desvios-padrão de cada coleta, bem como registramos os valores
mínimos e valores máximos da duração do VOT das plosivas surdas iniciais
nas três línguas, referentes a cada uma das 24 sessões de coleta de dados.

1.6 Procedimentos estatísticos


Para a realização dos procedimentos estatísticos, seguimos o manual
elaborado por Verspoor, De Bot e Lowie (2011). Os métodos utilizados envol-
veram análises de picos, juntamente a análises de gráficos de valores móveis de
mínimos e máximos (com uma janela de 05 coletas), objetivando identificar a
ocorrência de alterações bruscas nos padrões de produção do VOT do aprendiz
em seus sistemas linguísticos, influenciadas pelo treinamento perceptual. Além
disso, com o intuito de verificar a significância dessas alterações, de modo a
verificarmos se o pico era de fato um indicativo de mudança desenvolvimental

129
e não apenas uma alteração aleatória, aplicamos o procedimento de análise de
Monte Carlo nas análises de pico realizadas, adotando os mesmos passos de
Van Dijk, Verspoor e Lowie (2011)11.
Conforme já expresso ao longo deste capítulo, sob uma visão Dinâmica
e Complexa de língua, a variabilidade implica uma maior desestabilização do
sistema (e, possivelmente, a emergência de uma nova etapa desenvolvimental),
ao passo que uma baixa variabilidade pode indicar a estabilização de um novo
padrão, ou o estabelecimento de um certo estado de fases que se assenta em
um possível estado atrator (cf. Larsen-Freeman; Cameron, 2008) na trajetó-
ria desenvolvimental. Com base em tal premissa, dando-se início ao procedi-
mento de análise de picos, foi adicionado ao Microsoft Excel o suplemento
PopTools, a partir do qual é possível realizar a análise de Monte Carlo junto à
função de reamostragem (resampling), que “embaralha” os valores a cada roda-
gem estatística. Para tais verificações, realizadas a partir dos dados das médias,
do desvios-padrão, bem como dos valores máximos e mínimos de cada coleta,
foram realizadas médias móveis entre duas coletas consecutivas. Com base em
Van Dijk, Verspoor e Lowie (2011), foram comparadas as diferenças de médias
móveis com até seis pontos de distância entre si (por exemplo, média móvel
1 e média móvel 7, média móvel 2 e média móvel 8, e assim por diante), com
o intuito de encontrar as maiores e menores diferenças nesses intervalos. Tais
diferenças corresponderiam, respectivamente, a picos ascendentes (aumentos
bruscos entre um ponto e outro) ou descendentes (diminuições bruscas) den-
tro da referida janela de seis pontos.
A partir dessa verificação, foram realizadas as simulações de Monte Carlo,
que contaram com 10.000 reamostragens de dados. Os picos significativos eram
encontrados quando o resultado referente ao valor de significância “p” era menor
do que 0,0512, sendo tal valor de “p” calculado a partir da divisão do número de

11
Para estudos brasileiros que já aplicaram essa metodologia de verificação inferencial,
vejam-se Albuquerque (2019), Alves e Santana (2020), Schereschewsky (2021) e
Schereschewsky e Alves (2022).
12
Neste trabalho, também serão apresentados picos marginalmente significativos, os
quais possuem o valor de significância “p” entre 0,10 e 0,05, levando-se em consi-

130
vezes em que, na reamostragem de dados, eram encontrados valores maiores
ou iguais (no caso de picos ascendentes), ou menores ou iguais (para picos des-
cendentes), ao maior/menor pico encontrado nos dados, dividido pelo número
de simulações realizadas (10.000). Nesses casos em que a verificação inferencial
encontrava um pico menos frequente frente ao número de simulações, assumia-
-se, de acordo com os preceitos dinâmicos de análise (Van Dijk; Verspoor; Lowie,
2011), que tal alteração brusca apresentava caráter pouco recorrente e não era
fruto do acaso ou “ruído estatístico”, sendo tal alteração significativa interpretada
como uma instabilidade que poderia ser indicadora de uma mudança desenvol-
vimental nos padrões de produção do VOT do aprendiz.
Também é importante ressaltar que alguns dados, anteriormente à rea-
lização das simulações, precisaram passar por um processo de destendencia-
mento (detrending), antes de serem rodadas as simulações de Monte Carlo.
Esse processo, conforme explicitado por Van Dijk, Verspoor e Lowie (2011),
é responsável por retirar qualquer linearidade (curva linear ascendente ou des-
cendente) na sequência temporal de dados, uma vez que tal tendência pode
“camuflar” as ocorrências de picos bruscos ao longo do tempo. Desse modo,
após aplicarmos o processo de destendenciamento, obtivemos acesso a um
conjunto de dados resultante que não apresentava qualquer curva de tendência
linear in/decremental entre as coletas. Tal fato permitiu uma verificação mais
fidedigna de picos significativos.

1.7 Resultados e discussão


Partindo do princípio de que o treinamento perceptual levaria o aprendiz
a produzir o VOT das plosivas iniciais do Inglês (L2) e dos demais subsistemas
com maior duração, antes de apresentarmos os valores das simulações de Monte
Carlo, julgamos pertinente considerar quais são os valores médios de produção
de VOT de falantes nativos do Espanhol Rioplatense, do Inglês e do Português
Brasileiro, para fins comparativos com os dados desenvolvimentais do participante

deração que esses picos, apesar de menor significância, contribuem para o enten­
dimento do sistema multilingue.

131
deste estudo. Para a variedade de Espanhol falada na província de Buenos Aires,
o padrão de duração do VOT para as plosivas surdas iniciais é de 16,39 ms para
/p/, 26,91 ms para /t/ e 46,61 ms para /k/ (Alves; Luchini; Schereschewsky,
2019). No Inglês, de acordo com a média obtida por Schereschewsky (2021) a
partir da revisão de literatura realizada pela autora, a duração média de VOT é
de 63 ms para /p/, 76 ms para /t/ e 85 ms para /k/. Para o Português Brasileiro
(variedade de Porto Alegre-RS), os valores médios são de 13,19 ms para /p/ e de
54,46 ms para /k/ (cf. Schereschewsky; Alves; Kupske, 2017).
Desse modo, um aprendiz argentino, que nunca tenha tido contato com
o Inglês, possivelmente iniciará a produzir as plosivas surdas dessa língua com
valores próximos aos apontados pela literatura para o Espanhol. Contudo, o
participante deste estudo já exibia um nível pré-intermediário de Inglês no
início da pesquisa, de modo a apresentar médias de duração do VOT de 52 ms
para /p/, 72 ms para /t/ e 87 ms para /k/ na primeira coleta de dados, conforme
pode ser visto na tabela de valores de VOT apresentada no Anexo B. Portanto,
o aprendiz já apresentava padrões altos de duração de VOT (inclusive, consi-
derando-se o seu nível de proficiência pré-intermediário) antes mesmo de par-
ticipar das sessões de treinamento perceptual. Além disso, ao considerarmos os
valores de VOT do aprendiz na primeira coleta em Português Brasileiro (L3),
conforme pode ser visto no Anexo C, verificamos valores médios de 12,97 ms
para /p/ e 62,48 ms para /k/ na primeira coleta, de modo a apresentar uma
média mais alta de VOT em /k/ do que a apontada pela literatura, conforme
já expresso. Por sua vez, no que diz respeito aos valores de VOT do Espanhol
(Anexo A) referentes à primeira coleta, verificamos uma média de 8,36 ms para
/p/, 16,46 ms para /t/ e 44,27 ms para /k/, valores esses inferiores aos expressos
na literatura acerca das produções de falantes argentinos monolíngues.
Todas as tabelas com os dados descritivos em cada uma das línguas e em
cada uma das 24 coletas realizadas, considerando-se os valores de média, des-
vios-padrão, bem como valores e mínimos e máximos para cada coleta, podem
ser encontrados nos Anexos A (para o Espanhol), B (para o Inglês), e C (para o
Português), ao final deste capítulo. A partir da observação desses dados, pode-
mos verificar diversas oscilações, em termos descritivos, dos valores de VOT

132
em cada uma das línguas. A análise inferencial, cujos resultados serão apresen-
tados no que segue, deverá demonstrar quais desses picos mostram-se efeti-
vamente significativos, de modo a sugerir possíveis alterações nos subsistemas
linguísticos do aprendiz.
Na Tabela 1, a seguir, são apresentados os picos significativos encontrados
em todas as línguas em que o estudo foi realizado, resultantes da análise de picos
com simulações de Monte Carlo (Van Dijk; Verspoor; Lowie, 2011). Conforme
já discutido na Metodologia, os procedimentos analíticos envolveram as verifica-
ções dos valores de média, desvio-padrão, e valores máximos e mínimos encon-
trados em cada coleta, a partir da verificação de picos ascendentes e descendentes
referentes às consoantes /p, t, k/ em Inglês e em Espanhol, e às consoantes /p, k/
no Português Brasileiro. A partir de tais análises, foram verificadas ocorrências
de alterações significativas no Inglês e no Espanhol, com dados que corroboram
a influência multilinguística entre os subsistemas linguísticos do aprendiz. Para
o PB, não foram encontrados picos significativos. No que segue, discutiremos
possíveis explicações para os padrões encontrados.

Tabela 113 – Picos significativos encontrados em todas as línguas

Fonte: Elaborada pelos autores.

Na Tabela 1 em questão, setas em preto significam picos ascendentes (aumentos bruscos


13

nos valores de VOT), ao passo que setas azuis indicam picos descendentes. Valores de
“p” não acompanhados de asteriscos indicam picos marginalmente significativos.

133
Para a consoante /p/ em Inglês, foi encontrado um pico marginalmente
significativo ascendente, referente ao valor de desvio padrão, ao final do treina-
mento (entre as médias móveis das coletas 15;16 e 17;18). A partir da obser-
vação dos resultados descritivos apresentados no Anexo B, concebemos que o
referido pico indica que, durante o treinamento, o aprendiz teve um aumento
de variabilidade de produção do VOT, ou seja, antes de realizar o treinamento
perceptual, o aprendiz aspirava com um menor índice de variabilidade no que
diz respeito à duração de VOT. No decorrer do treinamento, o índice de varia-
bilidade aumentou. Em outras palavras, o aprendiz parece ter percebido um
determinado padrão que precisava ser seguido no momento de pronunciar a
consoante /p/, o que resultou em maior variabilidade, sugerindo que o treina-
mento perceptual foi capaz de influenciar o sistema do aprendiz.
No que diz respeito à verificação da consoante /p/ no Espanhol, iden-
tificamos um pico significativo descendente, no que diz respeito aos valores
médios de VOT, entre as médias móveis dos pontos 4;5 e 7;8; logo, o pico
ocorreu na L1 do participante antes mesmo de o treinamento iniciar. É inte-
ressante mencionar que, em função de sua natureza descendente, tal pico reve-
la-se como uma “dissimilação” dos padrões de VOT da L2: em outras palavras,
a média de VOT do Espanhol se mostra ainda mais baixa, como se fosse uma
tentativa de “afastar” ou “separar” o sistema de L1 do de L214. O fato de encon-
trarmos um pico marginalmente significativo na L1 (e não na L3, por exem-
plo) possivelmente se dá em função do contexto em que o aprendiz reside: uma
vez que tal aprendiz se encontra vivendo no Brasil há mais de 3 anos, de modo
a falar o Português Brasileiro (L3) diariamente, é possível interpretar que sua
L3 passou a ser o subsistema mais consolidado dentre os três, em função da
exposição massiva à língua e de seu uso diário em diversos contextos. Por con-
seguinte, sua L1, que não estava mais sendo constantemente utilizada, poderia

14
Esse padrão será verificado, também, nos dados referentes à consoante /k/. Dessa
forma, uma discussão mais extensiva de tal padrão será realizada quando abordar-
mos a consoante em questão.

134
apresentar algum tipo de instabilidade, independentemente do treinamento
perceptual, como foi verificado por meio das coletas longitudinais.
Passando para a análise da consoante /t/ do Inglês, encontramos dois
picos significativos referentes aos valores de desvio padrão, a partir das simu-
lações de Monte Carlo. O primeiro pico (descendente, localizado entre as
médias móveis dos pontos de coleta 3;4 e 6;7) indica que, apesar de o par-
ticipante já possuir uma duração elevada de VOT antes do treinamento, ele
apresentava um alto grau de variabilidade entre suas produções (muito pro-
vavelmente, pelas poucas oportunidades de uso do idioma, as quais se res-
tringiam aos encontros semanais no curso de idiomas), o qual diminuiu antes
mesmo do treinamento. Essa diminuição foi seguida por uma subida brusca
no segundo pico (também referente aos índices de desvio padrão), localizado
entre as médias móveis dos pontos de coleta 6;7 e 9;10, ocorrido logo antes de
as sessões de treinamento iniciarem.
No que diz respeito aos valores mínimos por coleta referentes à con-
soante /t/ do Inglês, os quais passaram pelo processo de destendenciamento,
como pode ser observado na Figura 3, encontramos um pico significativo des-
cendente localizado entre as médias móveis dos pontos de coleta 7;8 e 9;10.
Esse pico evidencia a drástica diminuição nos índices mínimos de VOT após
a primeira sessão de treinamento perceptual. Esse padrão pode ser, também,
considerado surpreendente, uma vez que se esperaria que os índices de VOT
aumentassem com o treinamento. Cabe dizer, por sua vez, que os índices de
VOT em Inglês já se mostravam altos desde a primeira coleta, e que tal sistema
se mostrava bastante instável, apresentando aumentos e diminuições entre as
coletas15. A instabilidade do sistema caracteriza, justamente, um momento de
“caos” na L2, em que o aprendiz “experimenta” diferentes padrões ao longo
de sua trajetória desenvolvimental. Essa instabilidade é justificada, ademais,
se considerarmos o pouco contato do aprendiz com a Língua Inglesa (para

15
Evidência dessa instabilidade diz respeito ao fato de que, conforme as coletas 9;10 e
14;15, os valores mínimos de /t/ em inglês apresentarão um acréscimo (pico) signi-
ficativo ascendente, de modo a “retomar” os valores mínimos mais altos verificados
antes do pico descendente.

135
além das próprias sessões de treinamento e das aulas semanais), conforme já
discutimos.

Figura 316 – Gráfico de médias móveis do inglês: mínimo de /t/

Fonte: Elaborado pelos autores.

No Espanhol, também foi registrado um pico descendente (marginal-


mente significativo) para a consoante /t/ referente aos valores mínimos de
VOT, como pode ser visualizado na Figura 4. A diferença entre tal alteração
e o pico do Inglês observado anteriormente na Figura 3 diz respeito ao fato
de que, no Espanhol, o pico ocorreu entre as médias móveis das coletas 8;9
e 10;11, uma coleta após a alteração ocorrida no Inglês. Verificamos, dessa
forma, uma forte evidência de influência multilinguística ocorrendo nos sis-
temas do aprendiz, tendo em vista que o mesmo padrão percebido na L2 do
participante se reproduziu na coleta seguinte em sua L1. Padrão semelhante
havia sido verificado no estudo de Schereschewsky (2021), no qual os padrões
de VOT alterados na L2 dos participantes, em função da intervenção pedagó-
gica de instrução explícita, se reproduziram na coleta seguinte da L3 (Francês),
idioma utilizado com menor frequência por aqueles participantes que exibiram
tal resultado.

16
Os índices negativos no gráfico em questão dizem respeito ao fato de tais dados
terem passado pelo processo de destendenciamento (detrending).

136
Figura 4 – Gráfico de médias móveis do espanhol: mínimo de /t/

Fonte: Elaborada pelos autores.

No que diz respeito à consoante /k/, nos picos descritos a seguir, tam-
bém foram verificadas evidências da influência multilinguística. Na Figura 5,
verificamos o pico marginalmente significativo ascendente referente à média
de /k/ do Inglês. O pico ocorreu entre as médias móveis das coletas 15;16 e
17;18, logo ao final do treinamento, indicando que tal intervenção pedagógica
contribuiu para o aprendiz elevar as médias de aspiração da plosiva inicial.

Figura 5 – Gráfico de médias móveis do inglês: médias de /k/

Fonte: Elaborada pelos autores.

137
Na coleta seguinte (17;18 e 19;20), foi identificado um pico significativo
ascendente no subsistema de Espanhol do aprendiz, referente aos índices de
desvio padrão, como pode ser observado na Figura 6. A partir dessa verifica-
ção, podemos sugerir, mais uma vez, a presença da influência multilinguística,
dado que o aumento das médias no Inglês possivelmente contribuiu para que
o índice de desvio padrão do Espanhol aumentasse na coleta seguinte; logo,
a produção do VOT na L1 passou a exibir maior variabilidade ao final do
treinamento perceptual na L2.

Figura 6 – Gráfico de médias móveis do espanhol: desvio padrão de /k/

Fonte: Elaborada pelos autores.

O pico apresentado a seguir, na Figura 7, também dialoga com os dois


últimos. Trata-se de um pico marginalmente significativo descendente, que
passou pelo processo de destendenciamento, referente aos índices mínimos de
VOT de /k/ em Espanhol, localizado entre as médias móveis das coletas 17;18
e 19;20. Desse modo, com o aumento da média (verificado na coleta anterior)
no Inglês do participante, a sua L1 também evidenciou alterações nas coletas
seguintes, com o aumento do desvio-padrão e consequentemente com a dimi-
nuição dos valores mínimos, de modo a sugerir que a variabilidade de produ-
ção também aumentou em sua L1. Cabe mencionar, ainda, que a diminuição
dos valores mínimos de /k/ no Espanhol sugere uma espécie de dissimilação
nessa língua: em outras palavras, ao passo que a média de VOT de /k/ em

138
Inglês aumenta, em Espanhol o valor de DP aumenta pelo fato de os valores
mínimos de VOT se tornarem ainda mais baixos. Em outras palavras, é pos-
sível que o aumento nos padrões de VOT em Inglês tenha contribuído para
a emergência de um padrão contrário no Espanhol, de modo que a influência
exercida pela L2 sobre a L1 consistisse em “diferenciar” os dois subsistemas (ao
contrário do previamente esperado, referente à possibilidade de os índices de
VOT aumentarem na L1 do aprendiz). Padrões de influências interlinguísticas
que resultam em “dissimilações” (ou seja, separações ainda mais claras entre os
subsistemas) foram previamente encontrados nos estudos longitudinais de De
los Santos (2017) e Schereschewsky (2021), os quais sugerem que as modifica-
ções na L1 podem seguir uma direção diferente daquela verificada no sistema
que causou tal mudança. Podemos observar, portanto, o caráter dinâmico dos
subsistemas do aprendiz, em que mudanças na sua L2 afetaram a sua língua
materna (ainda que não através de uma “cópia” do padrão da língua treinada).

Figura 7 – Gráfico de médias móveis do espanhol: mínimos de /k/

Fonte: Elaborada pelos autores.

Finalmente, consideramos pertinente discutir a ausência de picos sig-


nificativos na L3 (PB) do participante. Esse resultado, a princípio, iria de
encontro aos previamente verificados em Schereschewsky (2021), cujos dados
sugeriam que, quando um aprendiz recebia instrução explícita na sua L2, os
efeitos da instrução eram sentidos primeiramente em tal subsistema (Inglês),
alvo da instrução, posteriormente em sua L3 (Francês) e, por fim, na sua L1

139
(Português Brasileiro), tendo em vista que a língua materna se mostrava como
o subsistema mais estável dos participantes investigados pela autora (visto que
se tratava de aprendizes de LA residentes no Brasil).
A partir dos resultados de Schereschewsky (2021), considerando-se
o treinamento perceptual na L2 ao qual foi exposto o aprendiz do presente
estudo, era de se esperar a ocorrência de picos significativos no Inglês (L2),
posteriormente no PB (L3) e, por fim, possivelmente na sua língua materna, o
Espanhol. No entanto, os dados da pesquisa indicaram que a influência mul-
tilinguística tomou outro caminho nos subsistemas do aprendiz. Uma possível
explicação para esse fato está no contexto de uso das línguas do participante.
Uma vez que tal aprendiz se encontra vivendo no Brasil há mais de três anos
até o momento do estudo, o PB, muito provavelmente, passou a ser a sua lín-
gua de maior contexto de uso, dado que o participante a utiliza diariamente há
mais de 3 anos. Logo, em função de seu contexto de uso massivo, o PB pode
ter se tornado a língua mais estabelecida no sistema multilíngue do aprendiz,
passando, assim, a ser menos suscetível a influências por parte dos outros sub-
sistemas. Já sua L1, não utilizada frequentemente por mais de três anos (uma
vez que o referido aprendiz apenas utilizava o Espanhol em ligações telefôni-
cas a membros familiares, conforme o seu próprio relato), passou a se mostrar
mais suscetível à influência interlinguística do que a sua L3, como podemos
ver nos picos significativos e marginalmente significativos encontrados em sua
língua materna17.

17
Cabe ainda recordar que, na primeira coleta realizada, a média de VOT de /k/ no
PB, de 62,48 ms, se mostrava superior ao valor de 54,46 ms, referente ao valor mé-
dio de indivíduos monolíngues de Porto Alegre (conforme apontado em Scheres-
chewsky, Alves e Kupske, 2017). Dessa forma, não podemos ignorar a possibilidade
de que, antes mesmo do início da coleta de dados, o aprendiz, que já apresentava
valores altos de VOT no Inglês, já tenha sofrido alterações em seu subsistema de L3
em função da L2. Os valores de VOT em PB se mostraram estáveis ao longo das 24
coletas realizadas, talvez, em grande parte, pelo fato de a L3 ser o subsistema mais
estabilizado entre os três, dada a grande quantidade de uso da referida língua em
casa e em seu ambiente de trabalho.

140
Considerações finais

Seguindo uma concepção Dinâmica e Complexa de língua, entendemos


que os subsistemas linguísticos de um indivíduo multilíngue se mostram for-
temente interconectados. A partir de tal premissa, neste trabalho, discutimos
de que forma alterações na L2 podem ter efeitos nos demais subsistemas (de
L3 e, inclusive, de L1) do aprendiz. Para essa verificação, analisamos, longi-
tudinalmente, o papel do treinamento perceptual em Inglês. Concebendo-se
que a variabilidade dos dados é uma evidência de mudança desenvolvimental
(Verspoor; Lowie; De Bot, 2021), realizamos um estudo inferencial a partir do
qual pudemos mapear a presença de alterações (picos) significativos ascenden-
tes ou descendentes (cf. Van Dijk; Verspoor; Lowie, 2011) ao longo do tempo,
nos três subsistemas linguísticos do aprendiz.
Os dados confirmaram alterações significativas no subsistema de L2 do
aprendiz. Além disso, alterações na sua L1 foram, também, verificadas (ainda
que, para /p/ e /k/, em uma tendência contrária ao padrão de L2, de modo a
caracterizar um movimento de “dissimilação”, conforme estipulado no Speech
Learning Model-r). Entretanto, pelo menos ao longo do período de 12 meses
de acompanhamento longitudinal, não foram detectadas alterações significati-
vas na sua L3. A partir da discussão da trajetória desenvolvimental do apren-
diz e dos seus contextos de uso das três línguas, concluímos que a sua L1, o
Espanhol, se encontrava mais susceptível a alterações em função de seu baixo
contexto de uso diário. Por sua vez, dado que o participante atuava profissio-
nalmente em sua L3 há mais de cinco anos, essa pareceu se mostrar menos
susceptível a variabilidade e a alterações, o que pode explicar o fato de não
havermos encontrado picos significativos no Português em função das altera-
ções na L2.
Consideramos que os resultados obtidos neste trabalho possibilitam
uma série de discussões pertinentes, tanto no âmbito teórico quanto no apli-
cado. No que diz respeito ao âmbito teórico, em primeiro lugar, os dados apre-
sentados servem como evidência para a premissa estabelecida por Flege (1995)
e Flege e Bohn (2021), discutida tanto no texto original quanto na versão

141
revista do Speech Learning Model, de que as línguas do aprendiz ocupam um
mesmo espaço acústico comum18. Tal afirmação tem uma série de implica-
ções psicolinguísticas pertinentes, dado que a tradicional noção de “transfe-
rência unidirecional dos padrões da L1 para a L2”, ou até mesmo “da L2 para
a L3”, acaba caindo por terra: de fato, a influência entre os diversos subsis-
temas multilíngues do aprendiz é multidirecional (Pereyron, 2017; Pereyron;
Alves, 2020), de modo que todos os subsistemas se influenciem mutuamente.
Trata-se, pois, de subsistemas de natureza híbrida, cujos aspectos formais sem-
pre apresentam potencial de modificação, podendo ser alterados em função da
trajetória individual do aprendiz (Verspoor, 2015) e dos próprios contextos de
uso de cada uma das suas línguas. Isso parece-nos ficar claro no caso do apren-
diz em questão, cuja L1 se mostrava mais susceptível a alterações do que a sua
própria L3, à época do período de coleta de dados19. Uma vez que os contextos
de uso e vivências de um indivíduo se modificam ao longo do tempo, é possí-
vel que o potencial de maior ou menor alteração de cada um dos subsistemas
também se mostre passível de mudanças. Confirma-se, também nesse sentido,
o caráter não-linear da trajetória desenvolvimental de um indivíduo (Larsen-
Freeman; Cameron, 2008, Lowie; Verspoor, 2019).
Ainda no que diz respeito às implicações no âmbito teórico, para além
da contribuição às reflexões do campo da Psicolinguística, as considerações
aqui feitas exercem impacto, também, para uma questão metodológica impor-
tante para o âmbito da Teoria e Análise Linguística (mais especificamente,
para os estudos de descrição e mapeamento dos sistemas linguísticos). Ao con-
siderarmos que o subsistema de L1 de um indivíduo é “influenciável” pelas
demais línguas do indivíduo, o status de mono/multilíngue pode implicar uma
importante variável sociolinguística, sobretudo frente à tarefa de mapeamento

18
Para uma discussão, em língua portuguesa, acerca da natureza dos modelos percep-
tuais da L2, veja-se Alves (2021a).
19
Retomamos que o valor médio de VOT de /k/ observado na primeira coleta, em
comparação com o valor trazido na literatura, pode constituir indícios de que esse
subsistema sofreu, também, influência da L2, em algum momento anterior ao início
da coleta de dados.

142
da fala de uma dada comunidade. Isso dito, julgamos ser um cuidado impor-
tante, para os estudos descritivos de qualquer língua, considerar a trajetória do
indivíduo e sua experiência com línguas adicionais, o que poderá contribuir
para a formação de novas estratificações referentes ao conjunto de participan-
tes nos estudos em Sociolinguística.
Por fim, no que diz respeito às implicações de caráter aplicado advin-
das dos dados relatados, consideramos que os resultados obtidos contribuem
para uma nova concepção de “Aprendiz de Língua Adicional”, bem como para
um maior entendimento de suas etapas desenvolvimentais. Verificamos que
intervenções pedagógicas em sistemas multilíngues, tais como as práticas de
treinamento perceptual (aqui investigada) e instrução explícita (investigada em
Schereschewsky, 2021), ao promoverem mudanças na língua em que ocorreu a
intervenção, possibilitam que tal alteração influencie os demais subsistemas do
aprendiz (sobretudo os que se mostram mais instáveis e, provavelmente, com
menores índices de uso), o que pode incluir, até mesmo, a sua Língua Materna.
Ao longo da história dos estudos em Aquisição de Linguagem e das
Metodologias de Ensino de LA, muitas vezes a influência multilinguística
foi relegada a um segundo plano, ou, inclusive, considerada como um aspecto
indesejável (também dita “interferência”, no caso de uma perspectiva de cunho
behaviorista e de uma pedagogia Audiolingual), o qual precisaria ser erradi-
cado20. A partir de evidências empíricas como as demonstradas no presente
trabalho, possibilitadas pela adoção de uma concepção de desenvolvimento
linguístico que considere a variação como parte integrante do desenvolvi-
mento linguístico (Verspoor; Lowie; De Bot, 2021), concluímos, portanto, que
as influências multilinguísticas constituem um aspecto inevitável no apren-
dizado de novas línguas, que pode e deve ser levado em consideração pelo
professor em seu fazer pedagógico.

20
Para uma descrição das diferentes perspectivas contemporâneas de aquisição de
Línguas Adicionais, veja-se VanPatten, Keating e Wulff (2020). Para uma discussão
das diferentes escolas metodológicas de pedagogia de Línguas Adicionais, vejam-se
Larsen-Freeman e Anderson (2011) e Richards e Rodgers (2016).

143
A partir de tais resultados, propomos que episódios de reflexão multi-
linguística (que levem o aprendiz a atentar às semelhanças e diferenças entre
aspectos estruturais entre a língua materna e a(s) língua(s) adicional(is)), mui-
tas vezes erradicados pelas pedagogias de ensino de LA, podem vir a desem-
penhar um papel importante para a reflexão metalinguística, desde que em
meio a um contexto voltado às necessidades comunicativas do aluno. Uma vez
que a L1 e os demais subsistemas não correspondem a “entidades” isoladas,
consideramos que o uso da L1 pode deixar de ser tratado como uma prática a
ser erradicada na sala de aula, uma vez que passa a ser um recurso pedagógico
adicional, um objeto de reflexão que pode ser evocado para a reflexão linguís-
tica quando o docente julgar necessário. Também a partir de nossos resultados,
a variabilidade nas produções e o “sotaque” estrangeiro adquirem outro status,
pois também deixam de ser algo a ser “evitado” e passam a ser considerados
como processos naturais do desenvolvimento multilíngue21.
Consideramos que este trabalho poderá motivar a proposição uma série
de estudos futuros, que deverão superar as limitações do experimento aqui
relatado. Em primeiro lugar, julgamos pertinente a realização de um estudo
com um número de coletas ainda maior, de modo a contar com uma janela
de tempo ainda maior. O fato de as coletas haverem sido iniciadas apenas
após três anos da chegada do aprendiz constitui, também, um fator limita-
dor22 do presente estudo. Além disso, estudos envolvendo falas espontâneas
nas três línguas mostram-se, também, pertinentes, uma vez que possibilitarão
verificar possíveis efeitos da influência multilinguística em diferentes contex-
tos de produção linguística. Tais resultados poderão, em longo prazo, fornecer
informações pertinentes para os Estudos Sociolinguísticos, sobretudo no que

21
Para discussões, em língua portuguesa, acerca dos objetivos do ensino de pronúncia,
vejam-se Alves (2015), Kupske e Alves (2017), Lima Jr. e Alves (2019), Alves e
Lima Jr. (2021) e Alves (2021b).
22
Tal fato é especialmente importante ao verificarmos que, mesmo na primeira coleta,
a média de VPT de /k/ em PB já se mostrava superior àquela encontrada na litera-
tura. Além disso, os próprios índices de VOT em Inglês (L2) já se mostravam muito
próximos aos encontrados entre falantes monolíngues.

144
concerne à questão da estratificação de participantes referente ao status mono/
multilíngue.
Esperamos, como o presente trabalho, haver demonstrado o modo
como a Fonologia de Laboratório pode conectar os âmbitos da Linguística
Formal, da Psicolinguística e da Linguística Aplicada, três campos de estudos
que, a uma primeira vista (a qual julgamos equivocada), poderiam ser consi-
derados como desvinculados entre si. As descobertas acerca do processo do
desenvolvimento multilíngue (que, conforme vemos, é suscetível a alterações e
se caracteriza por alta variabilidade, de modo a demonstrar uma natureza dinâ-
mica e complexa) exercem implicações teórico-metodológicas sobre esses três
campos, ao contribuir tanto com o entendimento de como são processados os
sistemas multilíngues, além de prover insumos pertinentes para a descrição dos
sistemas linguísticos e para a pedagogia de ensino de línguas.

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151
ANEXO A

152
ANEXO B

153
ANEXO C

154
FONÉTICA E FONOLOGIA: FORMAÇÃO DOCENTE,
ESCRITA E ENSINO BILÍNGUE NO CONTEXTO
DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

Fábio Pereira Couto

Introdução

A língua é assim, antes de tudo, no seu esquema, uma representação do uni-


verso cultural em que o homem se acha, e, como representa esse universo, as
suas manifestações criam a comunicação entre os homens que vivem num
mesmo ambiente cultural. Mas a representação do universo cultural, na lín-
gua, se faz por meio de uma configuração formal. A língua é, antes de tudo,
forma. É a configuração formal da língua que integra os elementos culturais
em grupos associativos e multiplica a aplicação de cada elemento. (Camara
Jr., 1965, p. 16).

Compreender que muitos dos problemas e dificuldades dos alunos indí-


genas no processo de aprendizagem da escrita e da leitura está, não neles, mas
sim na falta de formação linguística dos professores, assim como no próprio
sistema de escrita de suas línguas. É sobre este prisma, que, no presente capí-
tulo, proponho reflexões sobre problemas nos sistemas de escrita de algumas
línguas indígenas brasileiras e sobre a carência de formação dos professores
indígenas em fonética e fonológica para lidarem com o ensino de línguas em
contexto bilíngue e intercultural em escolas das comunidades originárias.
Sobre esses problemas no ensino, há diversos estudos que apontam
que a formação linguística, em geral, e fonética e fonológica, em particular,
está muito aquém do que se deveria ser (Cagliari, 2008, Ilari, 1985), princi­
palmente no que se refere à formação de professores indígenas alfabetizadores

155
(D’Angelis, 2012, 2013). Isso ocorre mesmo com o avanço da educação escolar
indígena no Brasil e de estudos sobre línguas indígenas, pois ainda há muitos
desafios a serem enfrentados.
Sabe-se que o estado que pretende investir numa educação de qualidade,
inevitavelmente, tem que proporcionar formação de qualidade aos professores.
Mas essa formação de qualidade ainda está longe do ideal, já que se pode veri-
ficar que a educação escolar em geral, e a indígena em particular, ainda carece
de investimentos estruturais, seja em aspectos físicos de suas instalações seja
em aspectos de formação dos profissionais da área, pois uma educação de qua-
lidade é um dos elementos mais importantes para combater a desigualdade e
favorecer a inserção social.
A minha experiência de mais de doze anos com estudos que envolvem
línguas e educação indígena me proporcionou não só elaborar vários trabalhos
de descrição e análise de línguas, como também desenvolver e participar de
atividades voltadas à formação de professores indígenas, inclusive na alfabeti-
zação e na produção de materiais didáticos para o ensino de língua e cultura
indígena.
Nesse contexto, o presente trabalho é fruto de estudos e reflexões que
venho fazendo durante muitos anos de experiência envolvendo as línguas e
os povos indígenas. Nesses anos percebi que a formação linguística dos pro-
fessores indígenas - que trabalham com ensino de línguas, principalmente na
alfabetização, nas comunidades indígenas - é muito aquém do necessário para
desenvolvimento de práticas didático-pedagógicas especializadas, principal-
mente no que se referem às questões ligadas à fonética e à fonologia. Carência
essa que impacta na descrição das línguas indígenas, nos problemas de escrita e
leitura, na consolidação de uma ortografia pautada na técnica e na teoria fono-
lógica entre outras de cunho linguístico.
É situado nesse cenário que procurei desenvolver, neste trabalho, dis-
cussões sobre o fundamental papel da fonética e fonológica para a formação
dos professores indígenas, especialmente para aqueles que atuam no processo
de alfabetização na língua materna em contexto bilíngue, assim como para
a desenvolvimento de ações que possam viabilizar a implementação de um

156
sistema de escrita que melhor represente as características fonológicas dessas
diferentes línguas indígenas. Para essa discussão, parto de questões concretos
desde a formação de professores até a análise crítica-reflexiva sobre os proble-
mas fonológicos dos sistemas de escrita de duas línguas indígenas brasileiras e
suas variantes. Isto é, procuro descrever e discutir os principais aspectos que, na
minha concepção, impactam no fracasso escolar dessas comunidades e numa
consolidação de escrita ortográfica.

1. Educação escolar indígena: breve histórico

Havia, na época, entre os países europeus conquistadores do Novo Mundo,


uma política de língua que atribuía a cada Estado europeu a sua própria lín-
gua, ou seja, a cada Estado deveria corresponder a uma só língua. A língua
era vista como parte da identidade de um povo – um Estado: uma língua.
Essa política foi levada às colônias onde o português e o espanhol foram
impostos como língua de comunicação obrigatória, levando, portanto, à
perda de muitas línguas. Os indígenas habitantes das costas do Brasil foram
assim atingidos frontalmente, pois tiveram cassado o direito linguístico fun-
damental de falar as próprias línguas. Como pudemos observar as regiões
Sul, Sudeste e Nordeste são as que, consequentemente, apresentam uma
densidade bastante baixa de línguas quando comparadas com as regiões
Norte e Centro-Oeste, mais afastadas da costa (Braggio, 2002, p. 134).

A educação escolar indígena no Brasil teve diversos períodos diferentes.


O primeiro momento da educação escolar indígena se deu a partir da coloni-
zação com a vinda dos padres jesuítas, que implantaram a chamada “Escola de
Catequese”. Nesse período colonial, o objeto principal era que os povos indíge-
nas fossem integralmente doutrinados e dominados conforme a conveniência
do povo dominante e colonizador. Esse período durou cerca de três séculos,
até que surgisse, em 1757, sob a iniciativa de Sebastião José de Carvalho e
Melo, ou como ficou mais conhecido, Marquês de Pombal, uma política que
traçava mudanças significativas sobre questões religiosas, econômicas, cultu-
rais e ensino. Essa política ficou conhecida como Diretório Pombalino, e que

157
proibiu, à época, o uso de qualquer língua materna indígena e também da cha-
mada Língua Geral1.
O Diretório Pombalino determinou ainda que deveria ter escolas ofi-
ciais nas aldeias e que elas deveriam separar escolas para meninos e para meni-
nas como também deveria ensinar apenas a língua oficial, ou, em seus termos,
“a língua civilizada”. Essa política, que proibia até o uso de nomes indígenas
tradicionais, durou quase três décadas, e tirou da igreja (dos padres jesuítas) o
monopólio do ensino nas comunidades indígenas, que vigorava até então.
Na metade do século XIX, o governo imperialista, à época, instituiu o
Decreto 426, de 1845, que instituiu a criação de Escolas de Primeiras Letras, que
deveriam ser implantadas nas chamadas “aldeias oficiais”, em que regulamentava
a existência de um missionário nessas localidades para, entre outras atividades,
ensinar os indígenas a ler e a escrever (cf. D’Angelis, 2012, Braggio, 2002).
No início do século XX, mais especificamente em 1910, já sob o governo
republicano, advindo após a proclamação da República, foi criado o órgão ofi-
cial denominado Serviço de Proteção Indígena (SPI), cujo nome já eviden-
ciava a natureza de sua criação, isto é, a SPI era um órgão governamental
específico para dar assistência aos povos indígenas, o que não tinha existido
até então. Entre as várias atribuições da SPI, estava a de gerir as escolas indí-
genas, que, sob sua ótica, não diferenciava essas escolas das outras das áreas
rurais não-indígenas. Ou seja, o modelo educacional era pautado no ensino da
língua portuguesa, o que contribui fortemente para desvalorização do ensino
das línguas indígenas. Soma-se a isso a incapacidade do estado de suprir as
necessidades das comunidades indígenas, o que viabilizou e forçou a volta de
missões religiosas, agora de matrizes cristãs distintas, não mais só a católica,
que submeteram os povos indígenas a visão cristã de cultura e de ensino.

Segundo Rodrigues (2002, p. 99-100), “a expressão ‘Língua Geral’ inicialmente foi


1

utilizada, pelos portugueses e pelos espanhóis, para qualificar línguas indígenas de


grande difusão numa área. [...] Mas o nome cujo o uso se firmou, sobretudo ao
longo do século XVII, foi o de ‘Língua Brasílica’.” As línguas ditas gerais mais co-
nhecidas no Brasil foram o Tupinambá, principalmente falada no litoral paulista e o
Nheegatú, falada no ambiente amazônico.

158
Essa proposta de ensino se estabeleceu até meados dos anos setenta, já
que em 1967, a SPI foi reformulada, dando origem à Fundação Nacional do
Índio (Funai), que vigora até hoje. Com a criação da Funai, deu-se, no início
de suas práticas, continuidade ao que a SPI realizava na educação escolar indí-
gena, inclusive foi nesse período inicial que a Funai, em um acordo, liberou a
entrada dos pesquisadores do SIL (Summer Institute of Linguistics) - uma enti-
dade religiosa com sede norte americana - para realizar atividades de pesquisa
e de ensino nas comunidades indígenas. Muitas dessas missões influenciam até
hoje a educação e a cultura indígena pelo território brasileiro.
Somente a partir da década de noventa, que a educação escolar indígena
começou a contar com uma estrutura escolar de maior qualidade, desenvolvida
tanto pelo poder público como por algumas entidades não governamentais,
e que valorizasse a forma de educação, a língua e o conhecimento dos povos
indígenas, reconhecendo, assim, que um sistema de educação indígena deve,
inegavelmente, levar em consideração o modo próprio de concepções sobre
o mundo, sobre o homem, sobre os fenômenos naturais, sobre a educação e
sobre a língua. É nesse cenário e com esse olhar que se deveria estar estrutu-
rada e pensada a educação escolar indígena, como afirma o professor indígena
Baniwa (Brasil, 1998, p. 25):

Todo projeto escolar só será escola indígena se for pensado, planejado, cons-
truído e mantido pela vontade livre e consciente da comunidade. O papel
do Estado e outras instituições de apoio deve ser de reconhecimento, incen-
tivo e reforço para este projeto comunitário. Não se trata apenas de elabo-
rar currículos, mas de permitir e oferecer condições necessárias para que a
comunidade gere sua escola. Complemento do processo educativo próprio
de cada comunidade, a escola deve se constituir a partir dos seus interesses
e possibilitar sua participação em todos os momentos da definição da pro-
posta curricular, do seu funcionamento, da escolha dos professores que vão
lecionar, do projeto pedagógico que vai ser desenvolvido, enfim, da política
educacional que será adotada.

159
Para isso foi e está sendo necessário a implementação de políticas lin-
guísticas, entre elas a formação profissional, para que se possa, juntando esfor-
ços, pensar e implementar a educação escolar indígena sempre tendo como
ponto principal a valorização das línguas, tradições e culturas dos povos tradi-
cionais indígenas. Algo que foi desconsiderado por muito tempo na constitui-
ção da sociedade brasileira.

2. Fonética e fonologia na formação dos professores indígenas em contexto


de ensino bilíngue

A capacitação em língua materna, em língua portuguesa e no ensino de lín-


guas supõe instrumentos próprios da linguística que devem ser incorpora-
dos na formação do professor (noções fundamentais de fonética e fonologia,
morfologia, sintaxe, semântica, linguística textual e sociolinguística). Essa
é uma proposta há muito tempo defendida e justificada pela Linguística
para a formação do professor de língua materna em nosso país. (D’Angelis,
2012, p. 144).

No ano de 1998, com a publicação do Referencial Curricular Nacional


para Escolas Indígenas (doravante RCNEI), já se contemplava a necessidade
de se ter a formação linguística especializada para capacitar o professor indí-
gena no processo de ensino de escrita e leitura nas escolas das comunidades.
Mas percorrido quase vinte e cinco anos desse importante documento, houve
poucos avanços na educação escolar indígena, principalmente na formação
linguística qualificada, o que gera, em grande parte, fracasso no processo de
ensino de línguas, como afirma Cagliari (2008, p. 9):

Uma das causas desse fracasso, a meu ver, é a incompetência técnica.


Ocorre que quem orienta a Educação (escolas de formação, secretarias de
Educação, autores de livros didáticos, professores...) não sabe ensinar devi-
damente, porque desconhece muitos aspectos básicos da fala, da escrita e
da leitura. Evidentemente, não basta a formação técnica linguística para se
ter automaticamente um procedimento didático. Mas é certo que, sem o

160
conhecimento competente da realidade linguística compreendida no pro-
cesso de alfabetização, é impossível qualquer didática, metodologia ou solu-
ção de outra ordem.

O processo de formação do professor indígena deve, entre outros aspec-


tos linguísticos, ser pautado no conhecimento da fonética e da fonologia para
favorecer, assim, a sua percepção sobre os sons da fala e como se constituem no
plano articulatório, assim como o entendimento de como esses sons são orga-
nizados na mente humana, provocando no docente a sua consciência fonoló-
gica sobre a língua que ele fala e ensina. Essa formação fonológica especia-
lizada provê também, por consequência, possibilidades de uso de estratégias
didático-pedagógicas especializadas, das quais devem lançar mão, principal-
mente por se tratar, na maioria dos casos, de escolas de ensino bilíngue.
A formação docente em fonética e fonologia visa ampliar o conheci-
mento técnico do docente, de maneira que permita a ele promover, na prática
em sala de aula, o uso desses conhecimentos no seu dia a dia no ensino da
escrita e da leitura. Esse conhecimento pode permitir ao professor indígena o
preenchimento de certas lacunas existentes na sua formação pedagógica, inter-
relacionando essas áreas de estudo com o propósito, entre outros, de tratar das
questões funcionais e estruturais relacionadas à comunicação humana. Diante
disso, chama a atenção certa falta de conhecimento básico de professores acerca
dos elementos fônicos, o que reflete, necessariamente, no trabalho em sala de
aula, isto é, no sucesso do processo de ensino e aprendizagem de línguas.
Assim como D’Angelis (2012, 2013), Ilari (1985) e Cagliari (2008)
destacam, o fracasso no processo de alfabetização se dá muito pela falta de
competência linguística dos professores, que, na sua grande maioria, não tive-
ram formação adequada para lidar com questões fonéticas e fonológicas no
processo de ensino-aprendizagem. Para D’Angelis (2013, p. 326):

A formação do professor de línguas deve incluir necessariamente, uma


compreensão da distinção entre registro fonológico e registro fonético,
um entendimento das características específicas do sistema ortográfico da

161
língua portuguesa (em boa parte, fonologicamente motivado, mas também,
em parte, morfológica, etimológica e – ainda – foneticamente motivado), e
uma compreensão do panorama sociolinguístico brasileiro, considerando as
múltiplas variantes dialetais com que convivemos.

Além dessa questão colocada por D’Angelis, e que tenho vivenciado nas
comunidades indígenas, há ainda a percepção errada de que basta ser falante
nativo de língua indígena para ter autonomia inata para ensinar a ler e escrever
sua língua. Ora, se a prática pedagógica fosse algo inato e reducionista assim,
não haveria a necessidade de formação superior ou técnica para se ensinar
uma determinada língua. Na verdade, a premissa verdadeira é que uma boa
formação, que promova técnica e leve o professor a ter ciência da importância
das questões fonológicas e gramaticais, é questão essencial para o sucesso do
processo de ensino de línguas, principalmente na alfabetização.
Para Ilari (1985), muitos dos problemas identificados no ensino da lín-
gua e em erros recorrentes dos alunos, foram solucionados e/ou minimizados,
a partir de evidencias linguísticas, que só foram possíveis a partir de uma boa
formação docente na área da fonética e fonologia. Mas, obviamente, se deve
reconhecer que o professor que fala a língua, teoricamente, terá maior proba-
bilidade de lidar com as questões inerentes de uma língua em particular. Além
disso, o processo de ensino da escrita e da leitura de uma língua envolve um
processo que possui diversos fatores, tais, como: consciência da necessidade de
estudo contínuo do professor, reconhecimento da realidade linguística dos alu-
nos, a compreensão da natureza de interação social, entre outros.
O que eu quero deixar evidente neste trabalho é que a formação linguís-
tica, em geral, e fonológica, em particular, dos professores indígenas é extrema-
mente importante para o sucesso escolar, principalmente quando diz respeito
ao contexto de ensino bilíngue das comunidades indígenas, pois o processo
de ensino de língua indígena não é simplesmente um processo automático de
transferência do que se faz ao ensinar a língua portuguesa, já que as línguas têm
estruturas fonológicas diferentes, o que exigirá do professor uma capacidade
de lidar com essas diferenças e saber reconhecer as dificuldades particulares

162
existentes no processo de ensino dessas línguas. Nesse processo, tem-se que
compreender e levar em consideração que o contexto sociocultural e sociolin-
guístico, que evolve esses estudantes, é distinto nas comunidades indígenas, o
que poderá demandar ações distintas e específicas a cada realidade vivenciada.
A preocupação sobre esse processo de formação do professor em foné-
tica e fonologia, assim como nas demais áreas da linguística, é pela grande
relevância da compreensão desses conceitos para a atividade docente na refle-
xão sobre a língua. Contudo não basta se preocupar apenas com a formação
inicial, há ainda a necessidade de os professores licenciados continuarem os
estudos e pesquisas sobre fonética e de fonologia para dar conta de garantir um
entendimento necessário para lidar com o ensino da escrita e da leitura de suas
línguas, assim como de contribuir na elaboração dos componentes curriculares
e matérias didáticos adequados, principalmente para se trabalhar com línguas
indígenas em contextos de ensino bilíngue.
O que se pode depreender até aqui é que, apesar de ser possível alfabeti-
zar sem um conhecimento específico e efetivo de Fonética e Fonologia, o pro-
cesso se torna muito difícil e ineficiente sem esse conhecimento, o que reforça
o entendimento necessário de que a formação técnica adequada é essencial
para o sucesso escolar.

3. O ensino de línguas indígenas em contexto bilíngue: aspectos linguísti-


cos e culturais

Bilinguismo, e até mesmo multilinguismo, é uma das características prin-


cipais da realidade vivenciada no contexto das comunidades indígenas, sendo
esse um fenômeno que deve ser verificado a partir do indivíduo, da família e
da sociedade local, em que envolve, por sua vez, múltiplos fatores: as ideolo-
gias, as relações de poder e as políticas linguísticas. Nessa condição, a proposta
de ensino bilíngue para as escolas indígenas deveria privilegiar o desejo da
comunidade em primeiro lugar e linguístico e pedagógico em segundo, pois de
nada adianta, numa relação assimétrica, impor um ensino monolíngue na lín-
gua majoritária oficial, ou um bilinguismo de transição/substituição, em que a

163
língua portuguesa é prioritária. Assim, ao se implementar uma política lin-
guística e educacional para as escolas indígenas, essas questões devem ser leva-
das em consideração na proposta pedagógica e na constituição do currículo,
porque, caso contrário, o fracasso linguístico, político e educacional terá uma
chance muito grande de ocorrer.
Para além disso, deve-se verificar ainda, sob esse olhar, o grau de bilin-
guismo social das comunidades indígenas para se estabelecer o melhor pla-
nejamento e as melhores diretrizes para o processo de escolarização, pois o
equilíbrio é uma questão muito importante, já que uma pessoa bilíngue pode
ter uma competência mínima em uma ou nas duas línguas ou ainda pode ter
uma competência desequilibrada em uma delas, principalmente quando elas
são utilizadas, como afirma Fishman (1971), com propósitos distintos. Nesse
mesmo sentido, a situação de diglossia, ou seja, de quando uma das línguas
aparece de forma superior a outra, pode se constatar, nesta situação, que cada
língua mantém funções linguísticas e pragmáticas específicas, que há o dese-
quilíbrio, provocando, assim, assimetria e/ou o conflito, o que gera comumente
o enfraquecimento da língua minoritária, no caso do Brasil, obviamente, as
línguas indígenas em detrimento a língua portuguesa.
Fishman (1971) sustenta que uma determinada comunidade, que conse-
gue manter sua língua nativa fortalecida e aprender outra, está intrinsecamente
ligado às questões sociais e de escolhas da comunidade, que podem contribuir
tanto para a manutenção como para a desistência de uso de uma língua. Assim,
qualquer política linguística deve, inevitavelmente, levar em consideração os
aspectos linguísticos, sociais e culturais dos povos minoritários envolvidos.
No Brasil há muitos povos indígenas que são bilíngues, ou vivem em
comunidades bilíngues, principalmente naquela que se fala uma língua indí-
gena juntamente com a língua portuguesa, e, a depender da comunidade,
pode se ter a língua indígena com língua materna e a língua portuguesa como
segunda língua e há situações, mais raras, que essa lógica é inversa. Mas é bom
reforçar que não é muito simples descrever o contexto em que estão envolvi-
dos os povos indígenas, pois há realidades que ainda há pouco conhecimento
das situações de bilinguismo em que se encontram alguns povos indígenas.

164
Nesse sentido, a própria língua portuguesa também pode variar o seu uso a
depender de cada povo. Ainda existem casos mais complexos em que há não
só bilinguismo, mas também o multilinguismo, havendo, assim, duas ou mais
línguas indígenas faladas pelas mesmas pessoas e também ensinadas, além do
português. Assim, não é prudente e nem possível fazer generalizações como se
o contexto fosse um só para todos os povos.
Esse cenário impõe ao professor indígena maior dificuldade na sua
tarefa de ensinar a língua indígena, já que ele deveria também estar preparado
para lidar com aspectos fonéticos e fonológicos das demais línguas, a depender
do contexto em que ele está inserido.
Quando verificamos historicamente as diversas fazes da educação indí-
gena, pode-se dizer que, após a criação da Funai em 1967, que permitiu a
entrada dos pesquisadores missionários do SIL, foi implantado uma espécie
de ensino bilíngue, principalmente para o ensino da bíblia, reconhecido como
bilinguismo de substituição e/ou de transição (D’Angelis, 2012), em outros
termos, um ensino que, aos poucos, promove a substituição da língua nativa
indígena pela língua portuguesa. Logicamente, o ensino bilíngue que se espera
que exista não é pautado nesse modelo de substituição, mas sim em um ensino
técnico e cientificamente respaldado e que promova a valorização da língua
indígena, ou no mínimo que se valorize as duas e não que haja um superstrato
da língua portuguesa em relação à indígena.
Apesar de esse modelo de bilinguismo de transição ser linguístico e
metodologicamente questionável, ele persiste ainda hoje, principalmente, mas
não exclusivamente, porque há casos em que a própria comunidade indigna dá
prioridade ao ensino da língua portuguesa em detrimento à língua indígena.
Isso em virtude de considerarem que o uso de sua própria língua materna os
impedirá de ter acesso socioeconômico e sociocultural fora da comunidade
indígena e, se eles não adotarem essa política, pensam que serão desprestigia-
dos em relação aos não-indígenas.
O ensino bilíngue que permite a valorização das línguas indígenas se
dá principalmente a partir da Constituição Brasileira de 1988, advindo com
a força da lei máxima brasileira, que reconheceu às populações indígenas a

165
forma de construção social e linguística próprias, e que acabou por promover
que surgissem, posteriormente, outras diretrizes legais que normatizaram, em
seus textos, políticas linguísticas bilíngues de valorização das línguas indígenas
e seus mecanismos próprios de ensino, como se pode verificar na própria Lei
de Diretrizes e Bases de 1996 (Brasil, 1996, Art. 78):

Art. 78º. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências


federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá pro-
gramas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar
bilingue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I
- proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas
memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valoriza-
ção de suas línguas e ciências; II - garantir aos índios, suas comunidades
e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da
sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.

Ainda sob o ensino bilíngue em contexto indígena, e tendo como base


a LDB, foi produzido, algum tempo depois, o Referencial Curricular Nacional
para Escolas indígenas (RCNEI) (Brasil, 1998), que é um guia curricular e de
orientação didático-pedagógico próprio para os professores e escolas de edu-
cação indígena do Ensino Fundamental. Nesse documento apregoa-se que os
povos indígenas devem ter autonomia na elaboração de currículo e na forma de
ensinar, com já previsto na CF (1988) e na LDB (1996), considerando essen-
cial, para isso, a educação bilíngue, como se pode verificar no trecho (Brasil,
1998, p. 25):

Porque as tradições culturais, os conhecimentos acumulados, a educação


das gerações mais novas, as crenças, o pensamento e a prática religiosos,
as representações simbólicas, a organização política, os projetos de futuro,
enfim, a reprodução sociocultural das sociedades indígenas são, na maioria
dos casos, manifestados através do uso de mais de uma língua. Mesmo os
povos indígenas que são hoje monolíngues em língua portuguesa conti-
nuam a usar a língua de seus ancestrais como um símbolo poderoso para

166
onde confluem muitos de seus traços identificatórios, constituindo, assim,
um quadro de bilinguismo simbólico importante.

Dezessete anos mais tarde, foi publicado, em 2015, o documento que


instituiu as Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores Indígenas.
Este documento foi elaborado, considerando as propriedades e características
próprias dos povos e da educação escolar indígena, como já tinha sido esta-
belecido na CF de 1988, em que assegurou o direito das sociedades indíge-
nas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue, o
que vem sendo regulamentado e evidenciado por meio de vários outros textos
legalmente constituídos.
Obviamente, esse novo contexto contribuiu para acelerar a implemen-
tação de um sistema educacional mais próximo do que necessitavam os povos
indígenas. Em outras palavras, um sistema que realmente pudesse levar em
consideração as diversidades linguísticas e solicitações específicas desses povos.
Para isso foram implantados, por exemplo, cursos de magistério indígena e
principalmente cursos superiores interculturais indígenas em várias universida-
des públicas pelo Brasil, voltados especificamente para a licenciatura indígena.
Nesses cursos, visivelmente, o ensino de língua indígena e educação bilíngue
são questões essenciais, valorizando, dessa forma, as línguas e culturas indíge-
nas. Aspectos esses que são essenciais e obrigatórios na elaboração das matri-
zes curriculares de formação de professores indígenas em educação bilíngue.

4. Diversidade linguística brasileira: as línguas indígenas

Quando eu falo em ensino bilíngue neste trabalho, estou me referindo


ao contexto escolar indígena, ou seja, ensino de língua indígena em comuni-
dade tradicional que, considerando os diferentes graus de bilinguismo, usam,
na sua grande maioria, a língua indígena e a língua portuguesa. Para isso, se faz
necessário, neste trabalho, demostrar, mesmo que de forma não aprofundada,
a diversidade de línguas e povos indígenas, o que evidencia complexidades

167
linguísticas existente no Brasil, como já afirmava Rodrigues (2002, p. 17) ao
dizer que:

Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e
diferentes entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilida-
des tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e
filosofia peculiares, resultantes de experiências de vida acumuladas e desen-
volvidas em milhares de anos. E distinguem-se também de nós e entre si
por falarem diferentes línguas. Como todas as demais, as línguas dos povos
indígenas do Brasil são inteiramente adequadas à plena expressão indivi-
dual e social no meio físico e social em que tradicionalmente têm vivido
esses povos.

Sendo assim, e para o conhecimento dessa diversidade, exponho em


seguida um quadro geral dessas línguas, mas ressaltando que não se trata de
descrição exaustiva, pelo contrário, trata-se de breve panorama sobre as línguas
indígenas existentes no território brasileiro.
Como já mencionei anteriormente, o sistema linguístico do português
brasileiro (PB) não deve servir automaticamente como o único ou o principal
parâmetro para ensino de línguas indígenas, já que as línguas indígenas brasi-
leiras têm estruturas gramaticais e obviamente fonológicas muito diversifica-
das e diferentes do português. Por esse prisma, e baseado na descrição histórica
e geneticamente motivadas, as línguas indígenas brasileira foram classificadas
e agrupadas conforme as semelhanças linguísticas existentes entre elas com
base em comparações, principalmente, fonética, fonológica e morfológica, à
luz de estudo que a literatura linguística denomina de histórico-comparativo.
Para Rodrigues (2002), há no Brasil cerca de 180 línguas, distribuídas em
dois troncos, 10 famílias e algumas línguas isoladas. Para entender melhor esta
classificação de Rodrigues (2002), que se dedicou aos estudos das línguas indí-
genas brasileiras desde a metade do século XX, descrevo em seguida um resumo
dessa classificação. Segundo a proposta de Rodrigues, a classificação se dá da
seguinte forma: (i) dois troncos linguísticos: Tupí e Macro-Jê; (ii) dez grandes

168
famílias linguísticas: Família Aruák; Família Karíb; Família Páno, Família
Tukáno, Família Arawá, Família Katukína, Família Makú, Família Nambikwára,
Família Txapakúra (Chapakura), Família Yanomámi; (iii) cinco famílias meno-
res: Família Bóra, Família Chiquíto, Família Guaikurú, Família Múra, Família
Samúko e (iv) sete Línguas Isoladas: Arikapú, Awakê, Irántxe (Iránxe; Mynky;
Münkü), Jabuti, Kanoê, Koaiá (Arara), Máku, Trumái, Tukúna (Tikúna).
Como se pode observar, diferentemente do senso comum, que pensa
haver uma homogeneidade linguística no Brasil, existe, na verdade, uma grande
diversidade linguística no país, e a grade contribuição para esse quadro vem das
línguas indígenas, que trazem consigo particularidades linguísticas, culturais e
sociais próprias, como afirma Rodrigues (2002, p. 23):

As línguas indígenas diferem entre si e se distinguem das línguas europeias


e demais línguas do mundo no conjunto de sons de que se servem (foné-
tica) e nas regras pelas quais combinam esses sons (fonologia), nas regras
de formação e variação das palavras (morfologia) e de associação destas na
constituição das frases (sintaxe), assim como na maneira como refletem em
seu vocabulário e em suas categorias gramaticais um recorte do mundo real
e imaginário (semântica).

Como se pode observar, a diversidade de línguas indígenas no Brasil é


muito grande, sendo uma das maiores do mundo, consequentemente as carac-
terísticas fonéticas e fonológicas também são diversas. Características essas
que devem ser observadas ao se propor um ensino de língua, principalmente se
considerar os contextos bilíngues e as particularidades linguísticas de cada uma
delas e o contexto social que os povos que as falam estão inseridos.

5. Realidades fonológicas no ensino da escrita e da leitura em escolas indí-


genas: problemas e possíveis soluções

A relação entre as letras e os sons da fala é sempre muito complicada pelo


fato de a escrita não ser o espelho da fala, como o caso de a escrita não

169
ser o espelho da fala e porque é possível ler o que está escrito de diversas
maneiras.
Usamos às vezes recursos especiais da escrita para representar alguns sons
da fala, como o caso da utilização de duas leras para descrever um som
(dígrafo) (Cagliari, 2008, p. 117).

As atividades de escrita e de leitura de uma língua, principalmente na


alfabetização, deve envolver, necessariamente, processos fonológicos em suas
realizações. Isto é, a aprendizagem da escrita e da leitura deve ser amparada
pelo conhecimento fonético e fonológico de uma língua ou das línguas a serem
ensinadas e aprendidas. Em outros termos, o estudo sistemático dos sons e a
compreensão consciente da fonologia são fatores sine qua non para o sucesso do
processo de ensino-aprendizagem de uma língua.
Não obstante, ao se propor uma formação e uma proposta pedagógica,
que envolva o ensino de escrita e de leitura de uma língua indígena, deve sem-
pre levar em consideração as realidades linguísticas e extralinguísticas que
estão incluídos esses povos.
A atividade de escrita, por exemplo, de qualquer língua indígena, evolve
aspectos fonéticos e fonológicos com particularidades que não se pode aplicá-
-las tendo uma noção paralela inequívoca do que se faz no processo de alfabe-
tização, por exemplo, do português. Mas não se trata aqui de fazer comparações
de estruturas da língua portuguesa com uma língua indígena específica, apesar
de que isso é feito com frequência por diversos fatores, tais como a falta de
descrição fonética e fonológica detalhadas de línguas indígenas, com também
uma descrição ampla gramatical; a carência de materiais didáticos específicos
para o ensino das línguas indígenas; a pressão das secretarias de educação para
que se ensine o português; além da falta de formação dos professores indígenas
em lidar com questões linguísticas de suas próprias línguas. Cagliari (2008, p.
9), sobre o fracasso no processo de ensinar a escrever e a ler, diz:

Uma das causas desse fracasso, a meu ver, é a incompetência técnica. Ocorre
que quem orienta a Educação (escolas de formação, secretarias de Educação,

170
autores de livros didáticos, professores...) não sabe ensinar devidamente,
porque desconhece muitos aspectos básicos da fala, da escrita e da leitura.
Evidentemente, não basta a formação técnica linguística para se ter auto-
maticamente um procedimento didático. Mas é certo que, sem o conheci-
mento competente da realidade linguística compreendida no processo de
alfabetização, é impossível qualquer didática, metodologia ou solução de
outra ordem.

Para o autor, deve se ter muita atenção aos primeiros anos de aprendiza-
gem da criança no Ensino Fundamental, principalmente por esses serem, em
sua grande maioria, o primeiro contato da criança com a escrita e leitura da
língua materna dele, e, em muitos casos, será também o primeiro contato com
a escrita e leitura de sua segunda língua (normalmente o português, em relação
aos povos indígenas brasileiros), no caso de contexto em que haja a educa-
ção bilíngue. Em outros termos, o processo de letramento formal em escolas
indígenas, nessas séries iniciais, contará com realidades fonéticas e fonológi-
cas diferentes, que contam com particularidades próprias de cada situação, a
depender de cada comunidade indígena.
É importante também ressaltar que há, sem dúvida, uma superiori-
dade, pela grande tradição oral dos povos indígenas, da língua falada em rela-
ção à língua escrita, e essa característica torna o processo de ensino da lín-
gua escrita indígena um fator muito importante a ser considerado no processo
de ensino de qualquer língua indígena, obviamente, entendendo os contextos
diversos que envolvem essas línguas e povos. Nesse sentido, é importante que
a escrita da língua indígena seja aperfeiçoada e incentivada, como apontado no
RCNEI (Brasil, 1998, p. 119-120):

[...] a língua indígena deverá tornar-se a língua de instrução escrita predo-


minante naquelas situações que digam respeito aos conhecimentos étni-
cos e científicos tradicionais ou à síntese desses com os novos conheci-
mentos escolares de fora. Da mesma forma que acontece com a oralidade,
os alunos aumentarão sua competência escrita em língua indígena mais
ainda, esse tipo de procedimento poderá contribuir para a criação e para o

171
desenvolvimento de funções sociais da escrita nessas línguas. Como isso
poderá ocorrer se houver uso intenso e extenso da língua escrita, em todos
espaços e situações possíveis, a escola é, sem dúvida, o local ideal para se
desencadear e reforçar tal processo.

A esse respeito, o que eu pude observar, durante as minhas experiências


na formação e no apoio linguístico às comunidades indígenas, é que, mesmo
com a forte pressão da comunidade não indígena pelo uso da língua portu-
guesa, os professores indígenas querem sistematizar e usar a escrita de suas
línguas indígenas de forma mais efetiva e funcional. Mas muitas vezes esbar-
ram na carência de estudos e descrições de suas línguas e na implementação
de uma ortografia que tenha respaldo científico. Nesse sentido, uma estrutura
educacional que seja construída tendo os fundamentos fonológicos como base
na formação de professores indígenas é fundamental, mas em muitos casos isso
não ocorre.
Como aponta Cagliari (2008) a formação linguística do professor é
essencial, pois, durante o processo de aquisição da escrita, a consciência fono-
lógica dos professores é de suma importância para que ele possa ter sucesso no
ensino de uma língua. Outrossim, o estudante tem de ser motivado e prepa-
rado para saber estabelecer a relação entre sons e representações escritas desses
sons, uma vez que o aluno tem na fala a base para estabelecer o uso dos códigos
ortográficos. Mas para que isso possa ocorrer, o professor tem que ter formação
mínima para lidar linguística e pedagogicamente com essas questões no pro-
cesso de escrita e de leitura da língua.
Nesse contexto, o envolvido no ensino de línguas indígenas têm que
dar maior atenção à fonética e à fonologia, sendo de suma importância para o
sucesso do processo de ensino. Contudo, dentro desse processo, na vontade de
se implementar um sistema de escrita para subsidiar a alfabetização indígena,
muitas vezes, se tem o afastamento dos fundamentos fonológicos na proposta
de modelo ortográfico para as línguas das comunidades indígenas.
Como já mencionei neste trabalho, outro ponto importante, que difi-
culta a escolha de um sistema ortográfico técnico e pedagógico, é a falta de

172
descrição detalhada das línguas, ou de boas descrições. Soma-se a isso os casos
em que não há nenhuma descrição, como já apontava Rodrigues (1993). Não
obstante, uma descrição detalhada da língua (gramática da língua), juntamente
com implementação de um sistema ortográfico técnico e coerente fonologi-
camente são as primeiras fazes que se dever ter para subsidiar as outras duas
fazes: a produção de materiais didático-pedagógicos e formação linguística do
professor. Contudo, é muito difícil encontrar, no contexto da educação esco-
lar indígena, todas essas questões bem consolidadas, ou por outra, são raras
as escolas que contam com línguas bem descritas, com uma fonologia bem
estabelecida e com sistema ortográfico condizente com os fonemas da língua.
Destarte, trato, nas seções subsequentes, de alguns problemas na escrita
de duas línguas indígenas e suas variantes dialetais, que tive a oportunidade de
estudar e de discutir suas ortografias. Realidade essa que me permitiu verificar
alguns problemas de âmbito fonético, fonológico e pedagógico nas suas escritas
e usos, pois há aspectos que não correspondem adequadamente à realidade foné-
tica e fonológica de suas línguas, o que provoca problemas para o processo de
ensino da escrita e leitura da língua materna, o que pode influenciar, no futuro,
em mudanças linguísticas forçadas na fala e na escrita das novas gerações.

6. Questões fonológicas sobre a escrita dos Wari (Txapakúra)

O povo Txapakura, de forma geral na literatura linguística, são conheci-


dos como Wari (‘nós’, ‘gente’) que é a autodenominação que dá nome ao grupo
que é composta por oito subgrupos (‘dialetos’), que somam atualmente cerca
de 2.429 pessoas (IBGE, 20102). A ortografia em uso varia bastante fonolo-
gicamente conforme o dialeto, já que dentro do ramo linguístico dos Wari, há
outros sete dialetos, a saber: Oro Nao, Oro Eo, Oro At, Oro Mon, Oro Waram,
Oro Waram Xijein e Oro Yowin (Couto, Xijein, 2020). O morfema {oro-},

Informações conforme site do IBGE, disponível em: http://www.funai.gov.br/ar-


2

quivos/conteudo/ascom/2013/img/12-Dez/pdf-brasil-ind.pdf. Acesso em: 05 de


maio de 2022.

173
presente em todos os nomes desse subgrupo, é uma partícula que expressa a
ideia de coletivo, que é traduzido como ‘povo’, ‘grupo’.
Os Wari, exceto alguns anciões, são bilíngues, podendo, a depender do
povo e localidade, ter a língua indígena como primeira língua (L1), que é a
maioria dos casos, ou a língua portuguesa como primeira língua (L1), sendo
esta última uma realidade dos mais jovens.
A alfabetização e letramento em língua materna de povos indígenas são
de extrema necessidade como meio de sobrevivência e resistência em relação
à língua portuguesa e a sociedade não indígena, de forma que evite o afasta-
mento ainda maior dessas línguas de suas funções históricas constituída há
milênios. Os professores Wari (Txapakúra), segundo relatado por eles, come-
çaram a se preocupar com a escrita de sua língua já no início do Magistério
Indígena (Projeto Açaí I e II)3, quando tiveram a oportunidade de tratar da
alfabetização em língua materna com os professores do curso. Essa preocupa-
ção e interesse aumentou quando os professores indígenas começaram a cursar
a Licenciatura Intercultural Indígena na Universidade Federal de Rondônia
(Unir) no Campus de Ji-Paraná.
Boa parte dos problemas existentes na descrição fonológica e, conse-
quentemente na ortografia desses dialetos, advém da origem dessas descrições
e escolha ortográfica que foram feitas, boa parte, por missionários das Novas
Tribos do Brasil4, que criaram o sistema de escrita da língua. Desse modo, a
influência que esses missionários exercem sobre as gerações mais velhas, desde
a década de 1960; a falta de descrição linguística detalhada e de conhecimento

3
Curso de Formação, em nível Médio, de Professores para o Magistério Indígena e
que foi iniciado em 1998 para atender as séries iniciais do Ensino Fundamental em
escolas indígenas. Sua criação foi resultado de uma das ações da Secretaria de Edu-
cação do Estado de Rondônia (SEDUC-RO), por meio do Projeto de Educação
Escolar Indígena (PEEI) do governo do estado.
4
Entidade religiosa que iniciou suas atividades missionárias em 1955, sediada inicial-
mente no estado de Goiás, no município de Vianópolis. As Novas Tribos do Brasil
concentraram suas missões evangélicas no território nacional, principalmente em
dois setores, denominando-os Leste e Oeste.

174
fonológico são alguns dos obstáculos que os professores indígenas Warí enfren-
tam para propor uma ortografia adequada de sua língua.
Conseguinte, dentro do programa Saberes Indígenas na Escola, que tive
o prazer de coordenar em 2018, 2020 e 2021, propusemos, naquelas ocasiões,
discussões voltadas para estudo fonológico das variantes linguísticas da famí-
lia Wari (Txapakúra), de forma a sistematizar e propor uma escrita unificada
que atendesse as demandas que os professores indígenas levantaram, principal-
mente para a produção de materiais didáticos que pudessem ser utilizados por
todos os povos dessa família linguística. Esse estudo foi feito em várias ofici-
nas, com o auxílio de outros professores linguistas da Unir de Ji-Paraná e vinte
professores indígenas, representantes desta família linguística.
Logicamente que a ideia nessas oficinas não era tonar os professores
indígenas um fonólogo ou foneticista, mas levá-los ao aperfeiçoamento crí-
tico sobre suas línguas. Contudo, enfatizei também que eles deveriam, como
falantes nativos, valorizar suas línguas e que o debate coletivo e consciente
poderiam levá-los a definir melhor um sistema oficial de escrita de sua lín-
gua, pois vários dos professores, que participaram desses encontros, têm muita
experiência como alfabetizadores, o que os tornam, de certa forma, observado-
res privilegiados deste processo e poderiam contribui muito para a conciliação
de um sistema mais adequado de escrita, pois eles estão no dia a dia de sala de
aula, onde podem vivenciar os problemas reais no processo de alfabetização
dos jovens alunos.
Também pedi a cada grupo de professores indígenas, que tinha repre-
sentantes nas oficinas, que eles expusessem a ortografia que utilizam em suas
comunidades, e em seguida os grupos discutiam e mostravam as diferenças de
cada sistema. Após isso, eu pedi que eles falassem dos principais problemas
que eles vivenciam em sala de aula, tanto para a escrita como para a leitura.
Depois eu expliquei, de forma simplificada, com base nas descrições fonológi-
cas existentes de algumas variantes e nas ortografias descritas por eles, algumas
questões problemáticas das escritas deles e fiz algumas sugestões para que
eles pudessem pensar e aprimorar a escrita, tendo, agora, o respaldo de aná-
lise fonológica, com base no conhecimento prático dos professores indígenas,

175
propondo, em seguida, um só sistema que, na medida do possível, desse conta
das variantes, apesar da ressalva de que há algumas particularidades dialetais
que precisariam de melhores análises e discussões.
Afora, eles se reunirão em grupos para discutirem a proposta. Nessas
reflexões houve quem concordou, mas também houve grupos que, de alguma
forma, resistiram a mudanças, principalmente por acharem que sua ortografia
já era muito utilizada e que não queria, por exemplo, aderir a escrita de outro
povo em detrimento ao seu.
O que percebi, ao verificar a estrutura fonética e fonológica dos Wari,
é que algumas mudanças, com base na fonética e na fonologia, seriam neces-
sárias para que efetivamente os professores de ensino da língua nativa, em
contexto bilíngue, pudessem ter um respaldo linguístico de escolha das repre-
sentações gráficas para a língua de forma mais próxima da realidade fonológica
dos falantes, principalmente das crianças em processo de alfabetização. Como
afirma D’Angelis (2013, p. 336): “Da dificuldade de lidar com os conceitos
abstratos da Fonologia, ao lado de um certo apego à ‘realidade’ e à ‘transparên-
cia’ fonética, resultam outros tantos problemas para a percepção dos indígenas
com respeito à escrita de suas línguas.”
Assim sendo, sigo adiante com discussões de alguns aspectos sobre os
problemas relacionados à escrita que verifiquei nessas variantes. Assim, destaco
em seguida, as questões mais relevantes que pude identificar e discutir.

(i) No contexto da família Wari, os segmentos, foneticamente, pré-


-nasalizados [mb], [nd] ou oralizados [b] e [d], respectivamente
alofones de /m/ e /n/, são resultados de processos fonológicos,
que para ocorrer, o segmento vocálico da primeira sílaba é enfra-
quecido ou deletado, formando, com a sílaba seguinte, uma nova
sílaba com onset complexo [mbɾ] e [ndɾ] , sempre com o tep /ɾ/
como C2, ou ainda o /m/ e /n/ podem se manifestar, fonetica-
mente, sem pré-nasalização, resultando nas consoantes obstruin-
tes [b] e [d], quando as consoantes nasais também são total-
mente deletadas na realização fonética, como se ver nas palavras
[ˈmbɾẽm] ~ [ˈbɾẽm] ~ [ˈmbeɾẽm] /meɾem/ “gritar” e [ˈndɾa] ~

176
[ˈndaɾa] ~ [ˈdɾa] /naɾa/ “amolar”, em que é grafado pela maio-
ria das variantes investigadas, respectivamente, como: <mrem> e
<nra>. Observa-se que escrever a sílaba sem a vogal fonológica,
que foi apagada ou enfraquecida na manifestação fonética, utili-
zando os grafemas <nr> e <mr>, como um dígrafo, desconside-
rando fonologicamente a vogal, é, na minha visão, um erro e não
dá conta de explicar tamanha distinção entre o plano sonoro e o
plano mental, o que torna o processo de leitura e escrita, se não
for bem trabalhado, extremamente difícil de ser entendido pelas
crianças. Dessa forma, o ideal, fonologicamente, seria registrar as
consoantes nasais formando sílaba com a vogal, pois a vogal faz
parte do sistema fonológico da língua, como exemplificado ainda
nas palavras [ndɾaˈwo] ~ [dɾaˈwo] ~ [ndaɾaˈwo] /naɾawo/ “for-
miga de fogo”, grafada como <nrawo> e [ˈmbɾi] ~ [ˈbɾi] ~ [ˈbiɾi] /
miɾi/ “moquear”, grafada como <mri>, quando o ideal seria grafar
<narawo> e <miri>, pois do contrário, no mínimo, gera dificulda-
des para a alfabetização das crianças, já que, nesse caso, adotou-se
na escrita representações de variações fonéticas.

Sobre essa questão, na prática pedagógica os professores indígenas


dizem que os alunos escrevem ora com <m> e <n>, ora com <mr>, <nr>, sendo
esta última a orientação dos professores, ora, menos comum, com <mbr>,
<ndr>. Nesse sentido, o professor tem que pensar que um sistema de escrita
deve evitar a sobrecarga de grafemas para representar variações fonéticas, pois
a sobrecarga gera problemas para criança no processo de aquisição da escrita
e da leitura.

A dificuldade dos professores de lidar com problemas como esse tem


muito a ver, primeiramente, com a inconsistência no sistema ortográfico
adotado e, em grande parte, com o pouco conhecimento dos professores em
fonética e em fonologia de suas línguas.

(ii) Outra questão relatada pelos professores indígenas é sobre as


crianças terem dificuldades em discernir na escrita, assim como

177
ocorre no português, as vogais <o> e <u>, pois elas confundem
muito o uso desses dois sons, já que o fone [u] é alofone de /o/ em
todas as variantes Wari além de terem variação livre e boa parte
do léxico da língua portuguesa.

Para além disso, o que aumenta o problema na alfabetização


das crianças Wari é o uso do grafema <u>, para representar um
outro fone, ou seja, o fonema /y/, no dialeto Oro Waram Xijen,
Oro Não, Oro Waram e Oro Mon, como, sequencialmente, nas
palavras <kuk> - <cuc> [ˈkyk˺] /kyk/ “puxar” e <mu> [ˈmy] /
my/ “minha mão”, mas não no Oro Win, pois eles usam o gra-
fema <y>, <kyk>, <my>, mesmo símbolo do International Phonetic
Alphabet (IPA). Para diminuir esse problema, penso que a última
escolha me parece fonológica e pedagogicamente mais acertada,
pois representa um fonema específico da língua e evita confusão
na representação na escrita, seja na língua indígena seja na língua
portuguesa.

Essas diferentes escolhas adotadas para as ortografias dos Wari aparen-


tam, em alguns aspetos, serem e aleatórias e não baseadas em aspectos fonoló-
gicos, o que traz maior dificuldade tanto para professores como para os alunos.
Talvez a melhor solução para esse problema, como propus aos professo-
res indígenas, seria usar <y> ou até outro símbolo que não conste na ortografia
do português para não confundir os estudantes, uma vez que ter o mesmo
grafema <u> para fonemas distintos pode confundir os alunos, assim como se
deve evitar a utilização de grafemas para representar variações fonéticas.

(iii) Assim como ocorre em português, os “erros” de escrita do fonema


/e/ em sílaba final, ao se escrever como <i>, como aponta Cagliari
(2008, p. 139), em palavras como <kotene> - <cotene> [kotẽˈne]
~ [kotẽˈni] /kotene/ “grande/largo”, também ocorre na escrita
dos alunos indígenas Wari, inclusive em todas as variantes estu-
dadas nas oficinas. Porém, nesse caso, o problema não é a esco-
lha ortográfica feita, mas em não se adotar estratégias didático-

178
-pedagógicas pautadas em parâmetros fonológicos, mas em intui-
ção. O mesmo se aplica à questão do fonema /o/, como demostrei
anteriormente.

(iv) Outrossim, questões relacionadas aos processos fonológicos,


no que se refere à fonologia em contrapartida à ortografia dos
Wari, cabe destacar o caso particular e complexo do fonema
, em ocorrências de palavras, na escrita dos Oro Win,
como <tbom tbom> ‘libélula’,
“azedo” e <tbim> “ama-
relo” (cf. Couto; Xijein, 2020). Para esse fonema, há escolhas dife-
rentes entre os povos para tratar com na escrita. Desta forma, por
exemplo: os Oro Waram Xijein5, Oro Waram, Oro Waram e Oro
Mon ainda não adotaram uma ortografia para representar esse
fonema. Isso porque, segundo os professores indígenas, até hoje
não conseguiram entrar em consenso de como grafar este fonema,
o que acarreta problema para os alunos e professores trabalharem
com a escrita e leitura de palavras que têm este fonema. Nesse
caso, a solução pedagógica adotada por eles é a de não trabalhar
com palavras que têm esse fonema, pois não há ortografia para
representá-lo ainda. Já os Oro Win usam <tb> para representar
este fonema, o que é um símbolo muito próximo do que os lin-
guistas descreverem para a língua (Couto; Xijein, 2020). O que
eu sugeri, para esse caso específico, é que se adote um grafema,
no caso das variantes que não têm ainda, e ao adotar um grafema,
que ele seja também adotado pelos Oro Win, que já adotou um
grafema, ou que os outros dialetos adotem a escrita dos Oro Win
para representar o fonema . Obviamente, essa escolha não é

5
Como justificado por Rodrigues (2002, p. 10), linguística e metodologicamente não
se adota a concordância quando se refere aos povos e línguas indígenas, assim, se diz
“os Bororo” e não “os Bororos”, assim como se diz “a língua Bororo” e não “a língua
Borora”.

179
tão simples assim e não se trata aqui de orientar que se tenha um
sistema ortográfico idêntico ao sistema fonético dos Wari ou a do
IPA, mas que as bases para as escolhas sejam feitas levando em
consideração os aspectos fonológicos e didáticos, para facilitar o
processo de ensino da escrita e da leitura dos jovens alunos. O
que não se pode fazer e não representar o fonema na escrita, como
se ele não existisse no sistema e como não se tivesse palavras com
este fonema.

(v) Em palavras como <terere> [teɾeˈɾe] /teɾeɾe/ “borboleta” e


<homa> [hõˈma] /homa/ “gordo”, os fonemas /ɾ/ e /h/ são repre-
sentados graficamente de formas distintas nos dialetos. Por
exemplo, Os Oro Mon, os Oro Waram e os Oro Waram Xijein
adotaram dois grafemas, <h> e <r> como correlatos respectiva-
mente de /h/ e /ɾ/. Já os Oro Win, Oro At, Oro Eu, por exemplo,
adotaram apenas o grafema <r> para representar os dois fonemas,
assim como ocorre na ortografia do português. Nesse caso, o que
sugeri é que, no processo da possível unificação de uma ortografia,
o melhor é evitar, se possível, sobrecarregar o sistema ortográfico,
e utilizar apenas um grafema, inclusive por se tratar de escolas de
ensino bilíngue, o que penso que facilitaria a consciência fonoló-
gica dos estudantes e dos professores na escrita e leitura das duas
línguas (língua indígena e língua portuguesa). Mas, se a escolha
for adotar grafemas distintos, desconsiderando a utilização feita
no português, não vejo como um grande problema, contudo se
deve adotar para todas as variantes.

(vi) Há também, para o fonema /k/, escolhas distintas para represen-


tá-lo na escrita. Assim, em palavras como [kaˈtat˺] /katat/ “seio”,
Os Oro Waram Xijein, Oro Waram e os Oro Win usam o grafema
<k>, <katat>, e os Oro Mon, Oro Eu e Oro At usam o <c>, <catat>.
Nesse caso, o que verifiquei, juntamente com professores indíge-
nas, é que o uso do <k> provoca confusão para os alunos no ensino

180
do português, já que eles, frequentemente, substituem o <c>, pelo
<k> no português e vice-versa. Nesse caso, talvez, a melhor escolha,
já que se trata do mesmo fonema para as duas línguas (indígena
e portuguesa), seria adotar o <c>, para representar o fonema /k/.
Isso diminuiria a sobrecarga para memorização e também da cons-
ciência fonológica dos jovens alunos com respeito a esse fonema.
Mas, não vejo problema, se a escolha for usar o <k>, como alguns
professores indígenas preferem, para representar o fonema. Se for
esse o caso, sugeri que façam isso para todas as variantes, já que a
discussão sobre as ortografias se dá exatamente para tentar unificar
o sistema de escrita de todas elas, visando, principalmente, compar-
tilhamento de materiais didáticos.

(vii) Outro fenômeno problemático, do ponto de vista da prática de


ensino da escrita e da leitura, ou seja, aspectos fonológicos e peda-
gógicos, é o caso do uso do sinal gráfico <’> para representar o
fonema /ʔ/, em palavras como <wata’> [waˈtaʔ] /waˈtaʔ/ “eu”. O
primeiro problema é de cunho pedagógico e prático, pois, como
relatado por parte dos professores indígenas, os alunos não cos-
tumam escrever esse sinal gráfico. O segundo “problema”, que
reflete no primeiro, é de cunho de consciência fonológica, já que
grande parte dos jovens alunos, possivelmente por influência do
português, estão deixando de usar este fonema na oralidade tam-
bém. Então, penso que a questão aqui não é de escolha de escrita,
mas de formação adequada fonética-fonológica e didática para
lidar com problemas como esse, além da própria evolução da lín-
gua, já que alguns falantes mais novos estão deixando de usar
este fonema. Assim sendo, entendo que esse fenômeno merece
maior profundidade nos estudos para entendê-lo melhor, prin-
cipalmente para saber o grau de variação e de que maneira isso
ocorre e afeta o sistema fonológico de todas as variantes Wari,
já que, pelo que verifiquei nas análises, a ocorrência e uso desse
fonema varia bastante entre os dialetos, pois há casos em que na

181
mesma palavra /ʔ/ é descrito com fonema um dialeto e é descrito
como variação fonética [ʔ] em outro.

(viii) Ainda na esteira do que foi discutido na questão anterior, há um


fenômeno semelhante, mas agora com que a fonologia descreve
como glotalização /ʔ/, tendo em vista que há variantes do Wari,
como o Oro Mon, que marcam, em palavras como <tonononʔ>
[tonõˈnonʔ] /tonononʔ/ “corujinha”, <ʔara-takawʔ> [ʔaɾa tˈkawʔ] /
ʔaɾa tkawʔ/ “acará-açu”, distinção de significado entre consoantes
pré ou pós-glotalizadas /ʔc/, /cʔ/ como descrito, por exemplo, para
o Oro Mon, em Sousa (2009), e há variantes que não conside-
ram essa distinção, como descrito para o Oro Waram Xijein, em
Couto e Xijein (2020). Para esta última variante, eles consideram
essas ocorrências como variações fonéticas e não como fonemas.
Mas de qualquer forma, como já mencionei anteriormente acerca
da oclusiva glotal, o que se verifica na prática de ensino da escrita
é que boa parte dos alunos habitualmente não marcam esse fenô-
meno na escrita, talvez aí seja uma pista fonológica para pensar
em variações e não fonemas, contudo fiz aos professores a mesma
sugestão sobre a glotal, tendo em vista que há a necessidade de
aprofundamento na análise fonológica das variantes para ter
argumentos mais consistentes e seguros sobre essa questão. Por
enquanto, com base nas discussões e nos materiais disponíveis
analisados, o que se tem são hipóteses, que podem ou não serem
confirmadas com estudos mais aprofundados.

(ix) Foi verificado, ainda, somente para a variante Oro Mon, que
eles descrevem como fonemas os encontros de /k/ e /h/ com o
fonema /w/ ou com alofone [u], do fonema /o/, o que gera, como
descrito para o Oro Mon e Oro Não, um único fonema (com-
plexo) que é grafado por eles com o subscrito <w>, respectiva-
mente, <kw> e <hw>, como consoantes labializadas com articula-
ção complexa, em palavras como <kwep> [ˈkwep] /kwep/ “agarrar”

182
e <hwam> [ˈhwam] /hoam/ “peixe” no Oro Mon e Oro Nao. Já as
outras variantes estudadas não se verificam esses fonemas, sendo
que eles escrevem <koep> e <hoam> ou ainda, no caso do Oro
Waram Xijein, <kop> e <ham>. Essa escolha, ao meu ver, apesar
que mereça maior aprofundamento de minha parte sobre a fono-
logia desta variante, é fonologicamente e pedagogicamente pro-
blemática, já que nas outras variantes isso é tratado como variação
fonética e por esse motivo eles não as representam na ortografia
desta forma. Além disso, essa escolha confunde o aluno, princi-
palmente quando se tem uma palavra em que o fonema /o/ é,
assim como ocorre na língua portuguesa, manifestado fonetica-
mente como [u].
Sobre essa questão, o que me parece, até o momento, é que os Oro Mon
estão usando grafemas para grafar fonemas que não existem na língua, o que só
atrapalha o processo de ensino da escrita e da leitura da língua indígena, já que,
como tenho enfatizado neste trabalho, não faz sentido sobrecarregar o sistema
de escrita, representando variações fonéticas.

(x) Outro ponto, que se deve ter atenção sobre a escrita dos Wari, é
o fonema /ʃ/, em palavras como <xina> [ʃĩˈna] /ʃina/ “sol”. Neste
caso, penso que o problema não é de ortografia adotada regular-
mente para essas variantes indígenas, mas sim do contexto bilín-
gue, pois, como descritos pelos professores indígenas, os alunos
ora escrevem, com <x> as palavras do português que são grafa-
das com <ch>, como já ocorre com alunos não indígenas, ora eles
escrevem com <ch> as palavras da língua indígena que deveriam
ser grafadas com <x>. Isso ocorre principalmente porque o por-
tuguês atribui a esse fonema dois correlatos ortográficos para um
mesmo fonema, o que já é um problema do sistema do português
que influencia na escrita dos alunos indígenas Wari.

(xi) Uma questão bem complexa, e que merece melhor aprofunda-


mento na investigação fonológica, é sobre o sistema vocálico, pois

183
há variantes, como o Oro Waram Xijein (Couto; Xijein, 2020),
que preveem cinco vogais para o sistema fonológico /a, i, e, y, o/,
enquanto há variantes, como o Oro Waram (Apontes, 2015) e
o Oro Mon (Sousa, 2009), que preveem seis vogais fonológicas
para a língua /a, i, e, y, ø, o/.

Essa questão, de haver ou não a vogal anterior média-alta arredondada


/ø/ em todas variantes, ainda merece estudo mais detalhado, pois essa dife-
rença fonológica entre as variantes ainda não está teoricamente bem conso-
lida, havendo muitas divergências entre as descrições linguísticas e até entre
os professores indígenas. Nesse caso a sugestão que dei é de fazer um estudo
fonológico mais aprofundado entre todas as variantes Wari, para verificar se há
realmente essa distinção ou se é um processo de mudança em curso em uma
ou mais variantes.
Diante dessas análises, penso que uma ortografia com inconsistência;
a falta de uma boa formação fonológica dos professores indígenas; resistência
à mudança, por parte de alguns professores indígenas, e problemas de ordem
políticas contribuem para aumentar as dificuldades sobre a consolidação de
uma ortografia unificada. Soma-se a isso o contexto de dispersão desses povos
pelo território rondoniense, que provoca realidades linguísticas e sociolinguís-
ticas distintas, que provocam, entre outros fenômenos, as variações existentes
entre as etnias dos Wari, pois esses povos, na sua grande maioria, estão mis-
turados com outras etnias na mesma T.I. e em sala de aula, além de sofrerem
forte pressão do uso da língua portuguesa no sistema linguístico e na ortográ-
fico de suas línguas. Soma-se a isso, cada povo quer manter a sua própria forma
de registrar sua escrita, o que dificulta em estabelecer um único sistema orto-
gráfico adequado pedagógica e fonologicamente, que possa facilitar o ensino
das variantes Wari e o compartilhamento de materiais didáticos específicos
para o ensino da língua de seus povos.

184
7. Questões fonológicas sobre a escrita dos Manxineru (Aruák)

A língua Manxineru, falada no Brasil, pertence à família Aruák


(Rodrigues, 2002, Couto, 2012, 2016), sendo que ela tem uma variante que é
conhecida como Yine ou Piro, que é falada no Peru. A variedade Manxineru
conta com 1106 indígenas (IBGE, 20106), que vivem em 12 aldeias na Terra
Indígena Mamoadate, localizada no sudoeste do estado do Acre. A grande
maioria dos Manxineru e dos Piro são bilíngues (respectivamente Manxineru-
Português e Piro-Espanhol), sendo que apenas alguns indígenas mais velhos
não são bilíngues, sendo monolíngues na língua indígena.
O meu conhecimento, diferentemente do que se deu com os Wari,
sobre o povo e a língua Manxineru, vem principalmente nas ações de pesquisas
para a tese de doutorado entre os anos de 2013 a 2016. Nessa ocasião pude,
juntamente com alguns professores Manxineru, discutir o sistema ortográfico
das duas variedades (Manxineru-Piro).
A ortografia da língua Manxineru está consolidada a bastante tempo,
contudo, assim como ocorre com a língua portuguesa, isso não impede que
a língua tenha problemas na representação escrita. Muito dos problemas nas
inadequadas gráficas do Manxineru e Piro se dá com relação ao fato da análise
fonológica não ter sido aprofundada ou observada na implementação do sis-
tema de escrita. Uma escrita, que não corresponde adequadamente à realidade
fonética e principalmente fonológica da língua, provoca problemas para o pro-
cesso de ensino da língua materna por não apresentar uma correspondência
adequada da estrutura fonológica e prosódica da língua, podendo inclusive
influenciar, no futuro, em mudanças linguísticas forçadas na fala das gerações
dos mais jovens.
Como já mencionado, a análise do sistema de escrita do Manxineru e
Piro se deu em estudos com alguns professores Manxineru, sendo um deles, um

Informações conforme site do IBGE, disponível em: http://www.funai.gov.br/ar-


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maio de 2022.

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colaborador que me ajudou em todo o processo de estudo sobre a língua para a
elaboração da minha dissertação e tese, além de alguns artigos científicos. Nessas
nossas reuniões, explique para eles o sistema fonológico da língua, com base nas
descrições linguísticas existentes e também nas análises que estávamos fazendo
sobre a língua, principalmente durante a pesquisa para o meu doutorado.
Nessas discussões e análises, eu pedi que eles me falassem quais os prin-
cipais problemas que eles enfrentavam no processo de ensino da escrita e lei-
tura, e depois partimos para as análises fonológicas e sugestões de melhoria
para o sistema de escrita, já que a proposta deles era de se adotar uma única
ortografia para as duas variantes. Nesse sentido, destaco em seguida as prin-
cipais questões que pude identificar, quando analisei o sistema ortográfico e
fonológico das variantes (Manxineru-Piro).

(i) Um dos problemas que verifiquei, apesar de menos complexo por


não envolver tantos povos e variantes como ocorre com os Wari, é
o fato de haver duas ortografias concorrentes para a mesma língua:
uma desenvolvida tendo como base a ortografia da língua oficial
do Peru (espanhol) e a outra de inspiração na ortografia da língua
oficial brasileira, isso porque o povo Yine (Manxineru-Piro) têm
população, apesar de próximas, em dois países que fazem fron-
teira no noroeste do estado brasileiro do Acre. Nesse contexto,
apesar de serem povos de mesma origem e terem a mesma língua
(Couto, 2012, 2016) adotaram sistemas de escrita com algumas
diferenças, as quais descrevo em seguida.

(ii) Nessa dupla ortografia, destaquei inicialmente as distintas formas


de se grafar o mesmo fonema, respectivamente Piro-Manxineru:
<g> - <h> para o fonema /h/; <ç> - <j> para o fonema /ç/;
<ch> - <x> para o fonema /ʧ/ e <ts> - <tsh> para o fonema /
ts/. Obviamente esse é um problema, já que os professores que-
riam propor uma única ortografia, contudo eles também encon-
tram resistência dos dois lados da fronteira, pois cada uma des-
sas comunidades quer que o seu sistema de escrita prevaleça em

186
relação ao outro, como contaram alguns professores Manxineru
que participaram das discussões sobre a língua e do sistema orto-
gráfico. Para essa questão, propus a eles que fizessem encontros
entre as duas comunidades e com apoio e consultoria de linguista
para que pudessem analisar os pontos questionáveis da ortografia
da língua e verificar as possíveis mudanças em prol de um único
sistema.

(iii) Sobre questão dos Piro escreverem <g> e dos Manxineru escreve-
rem <h> para o fonema /h/, como, respectivamente, em <gitana>
- <hitana> [ˈhĩtɘnɐ] /hitana/ “minha roça”, penso que a escolha
dos Piro é fonologicamente mais acertada, já que na língua tem
o fonema que usa o mesmo símbolo, o que deixa o sistema de
escrita mais coerente e menos sobrecarregado. Assim a minha
sugestão foi a de se adotar esta grafia para as duas variantes, prin-
cipalmente por se tratar de ensino bilíngue, e usar <g>, que repre-
senta outro fonema no português, pode trazer dificuldades para
os alunos. A mesma análise e sugestão fiz para o caso do uso dos
grafemas <ç> - <j> para o fonema /ç/, em palavra como <nopaçi>
- <nopaji> [noˈpaːçi] /nopaçi/ “minha casa”. Isto é, sugeri que se
adotasse apenas o <ç>, que faz parte do sistema de escrita dos Piro
e que tem, mas não por isso, mesmo símbolo no IPA, ou utilizas-
sem outro símbolo, já que usar o grafema <j> pode trazer maior
confusão para os alunos, já que ele é amplamente utilizado com
outro valor fonológico na língua portuguesa.

(iv) No caso do <ch>, usado pelos Piro e <x>, usado pelos Manxineru
para representar o fonema /ʧ/, como em <pichana> - <pixana>
[piˈʧ ɘna]
̃ /piʧana/ “canoa de vocês”, a minha análise e sugestão
foi de adotar outro símbolo em comum para as duas variantes,
já que se trata de ensino bilíngue, e o <ch> e <x> já traz muitos
“erros” de escrita na língua portuguesa, ou que se adotassem o <x>,
caso eles queiram utilizar um dos grafemas já conhecidos pelas

187
crianças, mesmo tendo esse grafema no português para represen-
tar outro fonema.

(v) O uso do <ts>, pelos Piro e do <tsh>, pelos Manxineru, para


representar o fonema /ts/, em palavra como <mɨtsero> - <mɨt-
shero> [mɨˈtseɾʊ] /mɨtseɾo/ “grande”, a proposta que fiz foi de se
adotar o grafema utilizado pelos Piro <ts>, que tem mesma repre-
sentação no IPA. Penso que essa escolha evita, por exemplo, ter
um grafema complexo com três letras para representar um único
fonema, que na minha análise, deve ser evitado para facilitar a
memorização e aprendizagem dos alunos.

(vi) Outro fenômeno interessante é o comportamento alonfônico do


fonema /l/, das variantes Piro-Manxineru, que se grafam com
mesmo símbolo <l> para as duas variantes. O problema aqui é a
ocorrência de alonfones, pois há os fones [d] e [nd], em um pro-
cesso que Couto (2016) denomina de dessoantização7 (pré-na-
salização), em palavras como <pɨlatanalu> [ˌpɨlaˈtɐ̃ndɨ] ~ [ˌpɨlaˈ-
tɐ̃dɨ] /pɨlatanalɨ/ “cozinhar”, que são mais raras, como também há
o rotacismo do /l/, como em <tololo> [toˈɾoɾo] /tololo/ “sapo”.

No caso do processo de pré-nasalização, esse fenômeno, no Manxineru


e no Piro, é motivado principalmente, conforme descrito por Couto (2012,
2016), pela reorganização rítmica da língua, que enfraquece ou apaga segmen-
tos para manter o acento principal sempre na penúltima sílaba, provocando,
assim, o cluster da consoante nasal /n/ com o alofone [d], resultando em uma
consoante pré-nasalizada com articulação complexa [nd]. No caso da dessoan-
tização (cf. Couto, 2012, 2016) não só a vogal é deletada, mas também a nasal
velar /n/, o que gera, na superfície, a consoante obstruinte [d], mas o traço nasal
permanece, espraiando-se para a vogal da sílaba anterior.

Couto (2016), quando se refere ao processo fonológico de dessoantização, quer di-


7

zer que uma consoante da classe natural [+soante], se realiza como [-soante]. Ou
seja, /l/ → [d] / C̃__ .

188
Sobre essas alofonias, a preocupação dos professores indígenas é que os
alunos, frequentemente, escrevem como falam, ou seja, grafam com <d>, <r>,
sendo a troca do <l> por <r>, como ocorre na escrita do português, muito mais
comum entre os alunos. Entretanto, essas ocorrências, na minha concepção,
não é um problema de simples escolha de símbolo ortográfico, pois o grafema
utilizado, nas duas variantes, é fonologicamente adequado, mas sim de aprimo-
ramento/conhecimento técnico-fonológico e pedagógico dos professores para
conseguirem ajudar os alunos no processo de alfabetização, já que as variações
fonéticas trazem confusão para eles, como ocorre, por exemplo na escrita do
português brasileiro (Cagliari, 2008).

(vii) Um outro problema, que foi relatado pelos professores indígenas


Manxineru, é sobre as crianças terem dificuldades, assim como
ocorre com a escrita do português e também com os Wari, na
escrita das vogais <o> e <u>, pois elas confundem o uso desses
dois sons principalmente em sílaba final, já que o fone [u] é alo-
fone de /o/ nas duas variantes (Piro-Manxineru), em palavras
como <kaionalo> [kajoˈnalu] ~ [kajoˈnalo] /kajonalo/ “pintado,
espécie de peixe” e <raxo> [ˈhɐ̃ʃo] ~ [ˈhɐ̃ʃu] /haʃo/ “morcego”.
O fator que aumenta ainda mais a dificuldade das crianças no
processo de aquisição da leitura e escrita do grafema <o> é que
os dois dialetos usam também o grafema <u> para representar
o fonema /ɨ/, como nas palavras <makalu> [maˈkalɨ] /makalɨ/
“ensinar” e <kirileru> [kĩhiˈleɾɨ] /kihileɾɨ/ “bom, bonito”. Sobre
primeiro caso, penso que a escolha, de se usar o grafema <o> para
o fonema /o/, é acertada e não é o problema, mas sim a falta de
entendimento fonológico e pedagógico de lidar com as dificulta-
das normais das crianças com as variações fonéticas. Já no último
caso, o uso do grafema <u>, para representar o fonema /ɨ/, é um
problema, tendo em vista que se trata de ensino bilíngue e o gra-
fema <u> é usado tanto no português como no espanhol como
correlato do fonema /u/.

189
Nesse caso, penso que eles poderiam usar um outro grafema para
representar fonema /ɨ/ específico da língua, evitando, dessa forma,
confusão na representação gráfica, seja na língua indígena seja na
língua portuguesa ou espanhola, caso eles queiram diferenciar a
escrita desse fonema. Mas entendo que a escolha desse grafema
não é um grande problema, mas sim a carência dos professores em
conhecimento fonológico e pedagógico para ajudar as crianças
na aquisição da escrita a leitura.

Neste cenário, em que estão inseridos os Manxineru e os Piro, para se ter


uma proposta de elaboração de um sistema de escrita único e fonologicamente
adequado às duas variantes (Manxineru-Piro), há a necessidade de superar
algumas barreiras linguísticas e políticas, tais como: o apego às escritas distin-
tas adotadas a muito tempo para as duas variantes; a falta de formação fonoló-
gica dos professores para entenderem e lidarem com os fenômenos fonológicos
e com as sugestões de mudanças; a resistência que alguns professores indíge-
nas têm em adotar a escrita um do outro e as realidades bilingues diferentes
(Manxineru-Português, Piro-Espanhol) existentes entre eles. Obviamente,
propor mudanças e/ou adaptações não é tarefa fácil de se implantar e de se
aceitar, tendo em vista que qualquer mudança que se faça vai afetar, em níveis
diferentes, os dois povos.
Ressalto que todas as línguas e suas variantes analisadas neste trabalho
fazem o uso de um sistema de escrita alfabético, digo, há uma ou mais letras
para representar, simbolicamente, cada som, nesse sentido, as letras/grafemas
têm um uso alfabético e os problemas na escrita de crianças indígenas em
fase de alfabetização, quase sempre, indicam, como afirma Cagliari (2008, p.
117), “defeitos” da própria ortografia e, mais ainda, levam a uma necessidade de
revisão da fonologia. Esses defeitos (inconsistências), quase sempre, são con-
sequências de má descrição e análise do sistema fonológico da língua e falta
de formação do docente na área. Esse problema é amplificado também, em
parte, pelo entendimento equivocado de que a ortografia deve espelhar a fala
(D’Angelis, 2013).

190
Cabe salientar, como elemento muito relevante, que partiu dos professo-
res indígenas a necessidade de se discutir os problemas nas ortografias de seus
povos e que eles têm muita consciência das inconsistências de suas ortografias,
contudo, ainda há resistência políticas entre eles em aceitar algumas mudan-
ças e principalmente em adotar a escrita do outro, pois, linguisticamente, eu
demostrei a eles que não há impeditivo para as mudanças no sistema de escrita
e que essas mudanças poderiam ajudar a diminuir os problemas no processo
de ensino da escrita e da leitura dos alunos e também no compartilhamento de
materiais didáticos entre os povos, o que vai ao encontro dos objetivos centrais
que eles almejam.
Por fim, é importante frisar que todas as orientações que fiz aos pro-
fessores em prol de mudanças nas suas ortografias foram baseadas não só nas
minhas concepções fonológicas e experiências pedagógicas, mas, principal-
mente, considerando as ponderações dos professores indígenas e também por
se tratar de ensino bilíngue, pois se o cenário fosse, por exemplo, de ensino
apenas monolíngue na língua indígena, as minhas sugestões poderiam ser dife-
rentes. Obviamente, não se trata aqui de unanimidade nas análises e sugestões
e nem de espelhar a ortografia indígena com a portuguesa ou com a escrita
fonética, já que um outro linguística poderia sugerir mudanças diferentes das
que fiz, ou ter uma outra visão sobre os sistemas, com base nas suas percepções
e experiências, mas o que é relevante é que quaisquer escolhas feitas devam ser
baseadas sempre considerando os aspectos fonéticos e fonológicos da língua,
considerando ainda as questões pedagógicas e, obviamente, as aspirações do
povo envolvido, de forma sempre pensando em facilitar o processo de alfabe-
tização dos jovens alunos.

Considerações finais

As dificuldades dos professores em lidar com análises abstratas da


Fonologia e certa estima à unidade concreta da fonética são fatores que difi-
cultam a percepção dos professores indígenas sobre a língua e de ensiná-la
adequadamente. Desse modo, o professor deve entender que o aluno utiliza

191
a sua fala como parâmetro e por isso a presença de processos fonológicos nas
escrita e na leitura é algo natural, assim, se faz necessário que o professor tenha
conhecimento sobre as unidades sonoras utilizadas para formar e distinguir
palavras e os seus correlatos gráficos utilizados para constituir as palavras das
línguas que eles ensinam.
De igual modo, se faz necessário que se tenha descrição linguística bem
feita da língua indígena e que a escolha da representação escrita seja feita com
bases fonológicas pertinentes, já que muitos problemas e dificuldades na aqui-
sição da escrita e da leitura se dá por essa inadequação.
Por fim, não se pode deixar de enfatizar que é papel fundamental do
professor, no processo de ensino de escrita e de leitura de uma língua, desper-
tar a consciência fonológica em seus alunos, mas para isso acontecer o profes-
sor tem que estar capacitado, pois o conhecimento dos sons da língua, de seu
sistema distintivo e de suas respectivas representações gráficas, pressupõe o
desenvolvimento das habilidades de identificar e utilizar os sons de maneira
fonológica e gramaticalmente adequadas. Pois no instante em que se inicia sua
prática docente, surgirá, com ela, a responsabilidade do professor na educação
desses jovens alunos, sendo necessário que ele esteja capacitado linguística e
didaticamente para saber trabalhar com os fenômenos fonéticos e fonológicos
da língua que ele ensina, principalmente por se tratar de ensino bilíngue.

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194
DESAFIOS NA NORMATIZAÇÃO DA ESCRITA DE LÍNGUAS
INDÍGENAS BRASILEIRAS: O CASO PAITÉR (SURUÍ)

Ana Suelly Arruda Câmara Cabral


Edineia Aparecida Isidoro

Persiste a ideia de que uma boa ortografia é simplesmente a que representa todos
os contrastes fonológicos. No entanto, o desenvolvimento de uma ortografia é, de
fato, uma questão altamente complexa, que envolve não apenas aspectos fonoló-
gicos, prosódicos, gramaticais e semânticos da língua a ser escrita, mas também
uma grande variedade de questões não linguísticas, entre elas aspectos pedagógi-
cos e psicolinguísticos da leitura e da escrita e a situação sociolinguística. (Seifart,
2006, p. 275).

Introdução

O presente artigo discute algumas questões relativas à normatização de


escritas de línguas indígenas de Rondônia, e que têm se tornado cada vez mais
tema de interesse de acadêmicos indígenas preocupados em unificar a escrita
de suas respectivas línguas, consolidando seu uso pelo coletivo, e com a quali-
dade e eficiência da aprendizagem da escrita e da leitura de sua língua nativa
por seus alunos.
A discussão aqui desenvolvida foi pensada como contribuição a esses
professores pelo seu interesse em entender como a escrita de suas respectivas
línguas foi estabelecida por linguistas, e que a escolha de ortografias não é
definida apenas por critérios meramente linguísticos, mas também por crité-
rios não linguísticos de ordem pedagógica, atitudinal e psicolinguística, em
consonância com o contexto social e com o que as comunidades indígenas

195
acreditam ser mais importante para a representação de sua língua na forma
escrita (Seifart, 2006; Pike, 1947).
Em alguns casos, o interesse de acadêmicos indígenas pela escrita de sua
língua tem sido aguçado, quando os próprios indígenas decidem mudar algo na
escrita pré-estabelecida, e suas iniciativas são fortemente criticadas por agen-
tes externos, os quais desfazem, desconsideram e desvalorizam o protagonismo
indígena, além de acirrar entre eles discórdias que prejudicam toda uma comu-
nidade, cindindo-a e bloqueando toda e qualquer iniciativa de documentação
linguística pelos indígenas de sua própria língua nativa.
Um desses casos é o da escrita da língua Paitér (Suruí), membro da
família Mondé do Tronco Tupí, homônima do nome do povo que vive na Terra
Indígena Sete de Setembro, no estado de Rondônia.1 Parte do povo Paitér
apresentou uma proposta de mudança na representação de três sons da escrita
de sua língua, passando a receber fortes críticas de linguistas, deixando vários
professores fortemente inseguros quanto às mudanças propostas, impedindo-
-os mesmo de continuarem a documentação linguística que haviam iniciado
no ano de 2007.
Trazemos neste artigo, em observância ao que experienciam, considera-
ções sobre o embasamento teórico da escrita Paitér proposta pelos linguistas
missionários, e as possibilidades que os falantes nativos da língua têm em fazer
mudanças nessa escrita. O nosso intuito é ressaltar também a não obrigato-
riedade de se seguir rigorosamente princípios norteadores do modelo teórico
usado pelos missionários linguistas e a liberdade que têm os indígenas de esco-
lhas que julguem mais adequadas para a escrita de sua língua nativa. Nessa
perspectiva destacamos observações feitas por Pike (1947) e Seifart (2006)

Rondônia, um dos estados brasileiros a concentrar um dos maiores números de


1

famílias linguísticas geneticamente distintas, inclusive três unidades genéticas isola-


das, tem sido cobiçada por grupos de linguistas que querem exclusividade nos estu-
dos linguísticos dessas línguas, não hesitando em usar quaisquer meios para serem
absolutos nesse campo de pesquisa e conhecimento, impedindo o protagonismo de
outros linguistas e mesmo dos próprios indígenas no estudo e documentação das
línguas da região. Os Paitér ey são um dos alvos dessa cobiça e vítimas de críticas
por terem proposto mudanças na escrita vigente de sua língua.

196
sobre outros fatores a serem observados na escolha de escritas para línguas
ágrafas.
O artigo está organizado em quatro seções. A seção 1 reúne algumas
considerações sobre a história da escrita da língua Paitér protagonizada por
linguistas missionários do SIL, e os fundamentos linguísticos por eles usados;
a seção 2 trata das reflexões dos acadêmicos das novas gerações de Suruí com
respeito à escrita e documentação de sua língua e cultura; e a seção 3 discute a
primeira iniciativa de indígenas Paitér de reflexão e proposição de mudanças
na escrita vigente de sua língua e os problemas decorrentes dessa iniciativa. O
artigo põe em evidência conflitos em torno da rigidez de análises linguísticas
que embasam propostas de escritas de línguas ágrafas e propostas alternativas
feitas pelos falantes das línguas reduzidas à escrita motivadas por outros fato-
res, como a crença dos mais velhos sobre o que a escrita de sua língua deve de
fato refletir, o que é ressaltado nas conclusões finais do artigo.

1. A escrita da língua Paitér por linguistas missionários do SIL

A história da escrita da língua Paitér até a década de 2000 reflete aná-


lises fonológicas realizadas por missionário do SIL entre 1960 e 1980, funda-
mentadas no modelo teórico e analítico criado por Kennet L. Pike (1947) para
a sistematização da estrutura dos sistemas fonológicos das línguas, possibili-
tando a sua redução à escrita.
Nessa perspectiva teórica e metodológica que busca entre outras coisas
identificar os sons pertinentes (distintivos) de uma língua, os fonemas e suas
respectivas pronúncias, foram realizadas as primeiras análises fonológicas da
língua Paitér, de autoria de Willem Bontkes e Carolyn Bontkes, em 1973, revi-
sada em 1978. Foi essa versão revisada que fundamentou o primeiro sistema de
escrita proposto para essa língua, apresentada no Dicionário Preliminar Suruí-
Português Português-Surui, de autoria de Willem Bontkes (1978).
Bontkes e Bontkes (1978) analisaram o sistema fonológico do Suruí
como contendo 18 consoantes e cinco vogais, como mostram os quadros
seguintes reproduzidos dessa obra:

197
Quadro 1 – Consoantes fonológicas do Suruí (Bontkes e Bontkes, 1978)

Consonants Labial Apical Laminal Dorsal


Stops vl. p t Č K
vd. b d j̆ G
Nasals m n ñ Ŋ
Semi-vowels and flap w ř y
Fricatives θ š
Lateral l
Fonte: Bontkes e Bontkes (1978)

Quadro 2 – Vogais fonológicas do Suruí (Bontkes e Bontkes, 1978)

Vowels Front Central Back


High i ɨ
Low e a o
Fonte: Bontkes e Bontkes (1978)

Os autores identificaram dois tons distintivos em Suruí, um alto e um


baixo, tendo o tom alto uma das realizações extra alta no pico da frase, uma
realização alta quando ocorre em uma sílaba fora do pico que é tônica ou segue
outra sílaba com tom alto ou extra alto, e uma realização de tom médio (nos
demais ambientes). Os autores postulam que o tom médio é realização tanto
do tom alto quanto do tom baixo (neste caso em sílabas acentuadas), em certos
contextos fonológicos. Não analisam para o Suruí vogais longas como fone-
mas, mas como sequências de duas vogais, e a glotal, segundo eles tem valor
meramente fonético.
Tine H. van der Meer, a segunda linguista do SIL a propor uma análise
fonológica para o Suruí (1982, 1983), embora desenvolva uma análise de natu-
reza gerativa, ressalta: “Não seguimos nenhuma variante particular do modelo
gerativo; ao contrário, nos valemos das ideias de vários autores, aproveitando-
-nos daquelas que melhor explicam os fenômenos observados na língua Suruí”
(p.4)

198
Tine van der Meer deixa claro que seu estudo foi beneficiado pelas aná-
lises fonológicas anteriores da língua Paitér. Ela distingue 29 fonemas, em
contraposição aos 28 fonemas propostos por Bontkes e Bontkes (1978). Mas o
que diferencia primordialmente a análise fonológica de Tine van der Meer da
de Bontkes e Bontkes é o fato de que van der Meer identificou dois fonemas
laterais, um surdo com dois alofones, e outro sonoro, ao invés de uma fricativa
interdental como fizeram Bontkes e Bontkes.
Tine  H. van der Meer também atribuiu um estatuto fonológico à
oclusiva glotal, considerada como não fonológica por Bontkes e Bontkes
, e observou que o /r/ varia entre um flepe “[...] com contato muito leve e um
aproximante retroflexa, sendo mais frequentemente realizado como um ‘flap’
sem contato.” (p. 7). Tine H. van der Meer, assim como Bontkes e Bontkes não
consideraram vogais longas como fonemas.
Outro ponto comum das duas análises fonológicas da língua Suruí é o
tratamento dado às consoantes surdas não explodidas finais. Tanto Bontkes e
Bontkes como Tine van der Meer as consideraram alofones dos respectivos
fonemas oclusivos sonoros, de forma que, na escrita, optaram por represen-
tá-los pelos grafemas b, d, g. Essa escolha é o ponto crucial que foi objeto de
mudanças propostas na escrita da língua Paitér promovida por representantes
do povo, e que tem desencadeado desentendimentos entre vários segmentos
Paitér, mas induzidos por pessoas externas à comunidade, tanto missionários,
quanto linguistas interessados no domínio da documentação linguística das
línguas de Rondônia, assunto ao qual voltaremos a tratar adiante.
Um dos sons do Suruí que tem recebido diferentes interpretações, é a
consoante fricativa interdental surda, incomum no contexto das demais línguas
indígenas do Brasil (Cabral; Pereira; Silva, 2022). Entretanto, este fonema tem
sofrido debucalização estando as suas pronúncias variando entre uma fricativa
glotal [h] e uma fricativa interdental surda lateralizada, [ɸɬ] e uma fricativa
interdental surda [ɸ].
A primeira escrita proposta para a língua Paitér foi fundamentada na
análise de Bontkes (1978), versão sistematizada de Bontkes e Bontkes (1978),
como já ressaltamos no início desta seção. Em seguida, reproduzimos os

199
grafemas utilizados por Bontkes (1978, p.1) correspondentes aos fonemas
consonantais e vocálicos e os traços prosódicos (nasalização e tom) do Paitér.

Imagem 1 - Representação na escrita dos sons vocálicos (Bontkes, 1978, p. 1)

Fonte: Bontkes (1978, p. 1)

Imagem 2 – A representação na escrita dos sons consonantais (Bontkes, 1978, p. 2)

Fonte: Bontkes (1978, p. 2).

200
A ortografia adotada por Bontkes foi posteriormente modificada
quanto: (a) às vogais longas, as quais passaram a ser representadas por uma
vogal seguida de h (vh); (b) ao grafema s, antes usado para representar o fonema
/ʃ/, que passou a representar o fonema /ɸ/, enquanto (c) o fonema /ʃ/ passou a
ser representado pelo grafema x; (d) ao fonema /tʃ/, antes representado por x
mas que passou a ser representado por tx.
A primeira cartilha para alfabetização em língua Suruí, elaborada por
Carolyn Bontkes em 1980, em coautoria com Ğaamir Suruí e Meresor Suruí
foi revista em 1985 e 1995, e teve cinco reedições (1985, 1986, 1993, 2000,
2001) e uma reimpressão (2002). Essa cartilha foi o primeiro volume de uma
série de quatro cartilhas organizadas por Carolyn Bontkes, com a participação
de pessoas Suruí e de outros linguistas missionários do SIL.
Nas primeiras páginas da primeira cartilha (2002, p. 3), Carolyn
Bontkes introduz parte dos grafemas e diacríticos que os Paitér ey passariam a
usar na escrita, os quais reproduzimos abaixo.

Imagem 3 – Cartilha dos grafemas e diacríticos (Bontkes, 2002, p. 3)

Fonte: Bontkes (2002, p. 3).

Nas cartilhas seguintes são introduzidas as demais letras do alfabeto e


na Cartilha 4 já podemos constatar a consolidação da escrita dos missioná-
rios que seria usada na tradução de textos bíblicos traduzidos do Inglês para

201
a língua Paitér, utilizados como instrumentos da evangelização do povo, a
exemplo do livro Gênesis na língua suruí, de autoria do casal Bontkes (1996).
Reproduzimos, em seguida, um texto da Cartilha 4, narrado por Naramatinga
Suruí, o qual exemplifica o uso da escrita da língua a partir da década de 1980.

Imagem 4 – Narrativa de Naramatinga na língua Suruí (Bontkes, 1996)

Fonte: Bontkes (1996).

O professor Naraykopega Surui faz, em seu Trabalho de Conclusão de


Curso (2015), uma síntese esclarecedora do que foi a educação formal Suruí, na
visão de Mehopy Surui, na década de 1980 (Naraykopega Surui, 2015, p. 24):

De acordo com Mehpoy Suruí, a educação formal foi iniciada junto ao povo
Paitér em 1982 treze (13) anos depois de contato com não-índio a partir
da alfabetização dos seguintes alunos: Mauíra Surui, Ñaramatxiga Surui,
Meresór Surui, Agamenon Surui, Ñaami Anine Surui, Ibjaragá Surui
e ele, Mehpoy Surui. Os professores eram os missionários da Sociedade
Internacional de Linguística – (SIL) Tine, Bill e sua esposa Caroline que
já sabiam falar um pouco da língua Paitér alfabetizavam na língua materna
através transcrição da língua oral de Paitér e trabalhavam um pouco de
matemática.25 Depois de um ano em 1983, a FUNAI implantou oficial-
mente a educação escolar indígena na T. I. Sete de Setembro, contratando
a professora Neli para ensinar os Paitér a ler e escrever na língua portu-
guesa, mas os missionários do SIL permaneceram com o trabalho na língua
materna.

202
Provavelmente a professora Neli trabalhava com a alfabetização em
português e os missionários com a alfabetização em língua materna, já que o
interesse dos missionários linguistas do SIL era a alfabetização na língua, de
modo que os indígenas ao mesmo tempo ajudassem na tradução da Bíblia e
no uso da mesma quando passassem a ser os protagonistas da evangelização.

2. Os acadêmicos das novas gerações de Suruí: Sede de conhecimentos lin-


guísticos e de protagonismo na escrita e documentação de sua língua e cultura

Os tempos mudaram desde a normatização da escrita da língua dos


Paitér ey proposta pelos missionários do SIL. Já no início da década de 1990,
o Instituto IAMÁ, ciente da necessidade dos indígenas de Rondônia terem
acesso à escrita, promoveu várias oficinas para esse fim, como a que contou
com a assessoria da linguista Lucy Seki, em 1991, justamente em uma oficina
destinada à escrita da língua Suruí pelos indígenas.
No final da mesma década é instituído o Magistério Indígena, promo-
vido pela Secretaria de Educação do Estado de Rondônia, que recebeu o nome
de “Projeto Açaí”. Esse projeto foi um acontecimento muito importante para
os indígenas do Estado. Contou com a participação de antropólogos, linguis-
tas, etnomatemáticos, historiadores, todos com larga experiência com os povos
indígenas e, alguns deles com os povos também de Rondônia, como foi o caso
da antropóloga Betty Mindlin, uma das mentoras do IAMÁ. No Açaí, for-
maram-se jovens que se tornaram importantes lideranças da atualidade, todos
educadores comprometidos com o fortalecimento de sua língua e cultura, em
suas comunidades. Pode-se dizer que o Magistério Indígena da época do Açaí
foi um dos mais profícuos no Brasil.
Betty Mindlin descreve o envolvimento dos novos professores com a
escrita, na época do Açaí, em um dos seus relatórios (Mindlin, apud, Pucci,
2009, p. 56):

A leitura em voz alta, na língua, dos textos escritos pelos Suruí foi um ins-
tante em que seria fácil chorar de emoção. Os professores Suruí liam as

203
páginas escritas, seguiam uma ortografia consensual entre todos, mas fala-
vam com a entonação, os gestos e as onomatopeias semelhantes às do nar-
rador original, gravado 20 anos antes, em 1982 – um narrador anterior ao
contato, que não conhecia as letras nem falava português.
Era como, logo depois de Gutenberg, no começo da imprensa, quando as
pessoas só liam em voz alta, e liam o que já conheciam e sabiam que estava
ali. A alegria ao ouvir foi ainda maior porque pude acompanhar o pro-
cesso de construção da escrita indígena nesses dez anos. Antes, só havia
um rudimentar letramento com os missionários, com um conteúdo muito
pobre. Agora, apresenta-se a escrita elaborada, consumada, conservando e
valorizando a oralidade antiga, bebendo nela, inspirando-se nas narrativas e
ensinamentos orais anteriores.
O espetáculo superou quaisquer expectativas possíveis. A escrita de hoje
pode ser posta em uso para a criação e pode forjar uma nova tradição.
Falta apenas, talvez, insistir na mistura de música e fala que caracterizava o
mundo dos antigos.

Foi nesse contexto de riqueza de ideias e diálogos que tem se pautado


a experiência do que podemos chamar de “florescimento das escritas entre os
professores indígenas”, no projeto Açaí iniciou uma forte retomada identitá-
ria e cultural que resultou em uma busca constante do conhecimento entre os
professores indígenas de suas próprias culturas, que por sua vez repercutiu em
suas comunidades. O fato de os professores buscarem conhecer sobre a histó-
ria do seu povo, voltar o seu olhar para suas formas de vida, culinária, religião,
valorizando-as, estimulou os conhecimentos nas comunidades reverberando
em registros escritos sobre vários assuntos, como a história, a matemática e
a literatura como vimos no relato de Betty Mindlin. Naquele momento, os
professores eram aprendizes e ao mesmo tempo professores de suas línguas.
Na medida em que às exigências do ensino das línguas indígenas na escola
crescia, crescia também a necessidade de aprenderem e compreenderem o pro-
cesso de escrita em suas línguas e de produzirem materiais para serem utiliza-
dos nas escolas indígenas, pois havia apenas alguns poucos materiais produ-
zidos pelos missionários em comunidades que eles atuavam. Esses materiais

204
seguiam uma metodologia análoga as antigas cartilhas utilizadas nas escolas
não-indígenas. No decorrer do Projeto Açaí foram produzidos muitos mate-
riais pelos professores indígenas, mas poucos chegaram as escolas para usos
pedagógicos. Não obstante as falhas desse projeto de formação, podemos dizer
que foi sem dúvida importante para se estruturar a Educação Escolar Indígena
em Rondônia.
Parte dos educadores da SEDUC-RO contribuíram para a construção
e execução do Projeto Açaí tiveram também papel fundamental na criação
do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade
Federal de Rondônia - UNIR, campus de Jí-Paraná, que acolheu a maioria
dos alunos egressos do Açaí. É admirável o número de professores indígenas
que se interessam pelo fortalecimento de sua língua e cultura. Uma das preo-
cupações dos acadêmicos indígenas e, sobremaneira dos Suruí, é o entendi-
mento de como a escrita de sua língua foi estabelecida e quais os conhecimen-
tos subjacentes à sua fundamentação. Há um número crescente de trabalhos
de conclusão de curso sobre alfabetização em línguas indígenas explorando
vários aspectos do processo, inclusive problemas encontrados na escrita des-
sas línguas conforme podemos observar nos Trabalhos de Conclusão de curso
de Naraykopega Suruí (2015) “Pamin Paje Timi Ter Pajeor Sodîg Om Saba
Pamuga Akobah Ewetig, Ahkarbame Paiter Ekobabe Sade Sodig Emi Ewesame
Xagud Emãhme Tig” e Alberto Junior Ihv Kuhj Gavião (2021) “Pamakóbáe:
Pesquisa e prática pedagógica sobre Alfabetização Intercultural na perspectiva
Ikólóéhj Gavião”.2
Com o Intercultural formam-se os primeiros graduados, licencia-
dos nas áreas de Educação Intercultural e Gestão, Ciências da Linguagem
Intercultural, Ciências da Natureza e Matemática Intercultural, Ciências da
Sociedade Intercultural. Muito importante tem sido a consciência expressa
por esses acadêmicos de que agora é a época do protagonismo deles, do dar um

Esses trabalhos estão associados a um projeto maior inserido na linha de pesquisa


2

Alfabetização & Cultura escrita, do grupo de pesquisa em Educação na Amazônia


-GPEA, orientado pela professora Josélia Gomes Neves, sobre o assunto ler Neves
(2009)..

205
basta ao papel que tiveram como “informantes”, sendo esse agora o da “nossa
vez de protagonizar”. O interesse pelo letramento em língua materna cresce
com a vontade de entender como os não indígenas estabeleceram a escrita de
sua língua, problematizando-a e abrindo espaços para a reflexão coletiva de
um bem que precisam consolidar, eles mesmos, enquanto professores alfabe-
tizadores e professores de linguagem. Naraykopega Suruí (2015) reflete em
seu Trabalho de Conclusão de Curso essas preocupações (Naraykopega Surui,
2015, p. 36):

Ainda escrevemos pouco na língua materna, há poucos materiais escritos na


língua Paitér disponíveis na aldeia, mas temos mais registros do que antes.
Estou colocando isso porque o fortalecimento da língua escrita tem a ver
com o uso social desta prática que discutiremos de forma mais aprofundada
no próximo tópico. Além desta questão, temos ainda muitos desafios dire-
tamente relacionados ao trabalho pedagógico na alfabetização como uma
nova definição da escrita da língua materna. Os Suruí tem enfrentado uma
polêmica entre as diferentes formas de representar a língua Paitér. Na ver-
dade a escrita fonética antiga que foi produzida logo depois do contato com
não indígena não atende mais nossa necessidade, isso tem provocado con-
flitos no uso da escrita Paitér.

3. O Protagonismo dos Professores Suruí na proposta de normatização da


escrita de sua língua

O forte interesse dos professores Suruí pelos fundamentos linguísticos


para uma proposta de escrita para a sua língua possivelmente não teria ainda
eclodido se as oficinas promovidas entre 2007 e 2009 pela Associação G̃apg̃ir
e pelo Fórum Paitér Suruí não tivessem ocorrido. Essas oficinas, planejadas
tendo em vista a necessidade de tornar a escola Suruí um dos espaços para o
fortalecimento da língua e cultura nativas, seguindo “[...] diretrizes traçadas
pelas gerações mais velhas, em diálogo com os jovens e professores indígenas,
com foco especial na oralidade e na escrita da língua” (Ferreira, 2007, p.1),

206
foram enriquecidas com a disponibilização do acervo Suruí da antropóloga
Betty Mindlin ao povo Paitér.
A equipe multidisciplinar que assessorou as oficinas foi formada por
uma coordenadora técnica, uma indigenista, uma pedagoga, uma antropó-
loga, uma linguista e uma musicóloga e 26 consultores indígenas pertencentes
às quatro linhagens clânicas do povo Paitér Suruí – Kaban, Gãpg̃ir, Gameb e
Makor. Estes consultores vivem nas aldeias onde a primeira língua é a materna
e dominam muito pouco o português. A contribuição desses sábios indígenas
foi de alta relevância, trazendo subsídios aos professores indígenas para siste-
matização dos etnoconhecimentos do seu povo.
O acervo oral composto por Betty Mindlin é descrito por Magda Pucci
(2009) como um vasto acervo composto por narrativas, músicas, relatos, expli-
cações de costumes, relações de parentesco e usos da linguagem cotidiana, foi
construído ao longo de três décadas, tendo iniciado na década de 80. Magda
Pucci, organizou e catalogou durante os anos em que ocorreram as oficinas
(2007-2009) mais de 400 gravações para serem trabalhadas nas escolas Suruí,
contribuindo, sem dúvida, com uma prática escolar moldada na cultura em que
a língua, a musicalidade, a história, as práticas culturais que emanam do acervo
de Mindlin, passaria a perfilar.
Betty Mindlin em seu relatório sobre a oficina de 2007 exemplifica a
rica dinâmica estabelecida pelos próprios indígenas:

Falas sobre a importância do conhecimento tradicional na escola


1 Joaquim Gasarab em Paitér fala do professor e do mestre. Pawá traduz: ele
está explicando o que é cultura, já vem com nossos antepassados, a chicha, o
Mapimaí, a festa de casamento, o metare. Cumprimenta a fala de Gasarab,
que falou em fazer palestra dentro da escola, feito um teatro. Os professores
têm que gostar de ensinar, assim os meninos vão querer saber. Hoje contam
lendas dos brancos na escola, claro que vão gostar das nossas histórias, nos-
sos mitos. Dentro da escola vai surgir a história dos idosos na escrita. Na
fala já existe. Tem que fazer valer através da escrita.
Iabadai – tem que aprender na prática, não é só contar história. O certo
é fazer pela escrita e ensinar pela prática. Pawá: a escola não indígena faz

207
teatro sobre a Independência do Brasil, por que nós não podemos fazer o
mesmo? Iabibi falou, Joaquim também.
[...] Os velhos sabem nossa gramática, podemos aprender com eles a sauda-
ção, os cumprimentos na fala. Capacitar os professores sobre nossa gramá-
tica é das coisas mais importantes, gramática e letra da língua materna. É
importante ter linguista aqui dentro. Na segunda oficina vai ter, mas agora
já podemos pegar os cumprimentos com os velhos. Convocar os Korubei,
fazer do começo ao fim. [...] Joaquim, Gataga falaram o que traduzi. Pawá:
já podemos começar, mas não sabemos os fonemas. Escrevemos de várias
maneiras. Gataga: Não dá para ensinar sem a norma da língua. O cumpri-
mento. O jovem fala gíria. É preciso fazer livro com os mais velhos.
Ibebear, Xibohar – querem gramática da língua materna, estudo da língua
[...]
Almir Naraiamoga: Na minha visão muitos não índios veem que os pajés
se formam, mas o que você vê é que ele não é formado, ele é escolhido pelo
dom.
Escolhidos pelos espíritos dos animais, da água, do vento, da pedra. Ter esse
conhecimento é um poder. Para administrar o conhecimento tem que ser
sábio. Se você não souber usar pode fazer mal contigo. É como o conheci-
mento científico. Muitos brancos não conhecem, acham que nós temos que
formar os pajés. Quem vai ajudar é o próprio nosso professor. Não conheço
a história dos pajés, na minha geração não aprendemos.

Esse excerto do relatório de Betty Mindlin mostra com clareza, a


importância das oficinas nas quais, pela primeira vez, os Paitér representan-
tes das diferentes linhas e dos diferentes clãs se reuniram para ouvir, corrigir
e complementar o conhecimento trazido pelos relatos gravados por Mindlin
desde a década de 80. Deixa também claro a preocupação dos Paitér, inclusive
dos mais velhos, com a necessidade de os professores conhecerem as normas
da língua, a gramática, “a letra”. Pawá ressalta o fato de que não há uma escrita
consensual quando diz “... escrevemos de várias maneiras”.
As oficinas foram um acontecimento histórico, tendo como instrumento
norteador o impressionante acervo Suruí de Mindlin, provocador das muitas
reflexões sobre a cultura, enlarguescendo e aprofundando os conhecimentos

208
sobre diferentes aspectos fundamentais da cultura dos Paitér ey, sobre a criação
do mundo, o resguardo, o parto, as regras de chefia, os diferentes modos de
falar, a depender com quem se fala, plantio, colheita, enfim, o mundo Suruí se
estampa em múltiplas cores, formas e sons no Fórum Suruí.
Mindlin em seu relatório de 2008 conclui sobre as três oficinas (2007,
2008) (Mindlin, 2009, p. 6-7):

Embora o presente relatório talvez não transmita a grandeza do que ocor-


reu em sala de aula, deu-se algo que, para uma pesquisadora que acompanha
a história e as transformações da vida suruí desde 1979, é absolutamente
surpreendente.
Houve uma tomada em mãos do processo educacional pelos mais velhos, o
que nunca ocorrera antes, por mais que os projetos educacionais estimulas-
sem a sua presença e a sua participação em sala de aula.
Os mais velhos descreveram a vida tradicional suruí em todo detalhe, sem-
pre em língua indígena. Era como se toda a pesquisa de anos de uma antro-
póloga fosse de repente resumida em alguns dias, por um grande número
de pessoas, corroborando e ampliando resultados obtidos ao longo de anos
de convivência com o povo.
Ao dizer o que queriam que fosse ensinado na escola, e ao externar sua
preocupação com a mudança de hábitos em virtude da vida urbana, da reli-
gião cristã, ao afirmar que os jovens não aprendem como antigamente a
sua tradição e levam uma vida completamente diferente, os Korubey mais
velhos expuseram todos os aspectos da vida social Suruí.

Na segunda oficina a questão da escrita veio à tona, motivada principal-


mente pelas dificuldades sentidas por alguns jovens professores em escrever em
Suruí e, por outro lado, por haver divergência quanto ao uso de grafemas para
representar sons da língua. Esses fatos desencadearam uma profícua discussão
sobre qual a forma correta de grafar alguns sons. Foi então que propusemos
que inventariássemos os sons da língua buscando palavras que os ilustrassem.
Iniciamos com as vogais, mantendo os grafemas da escrita proposta pelos mis-
sionários para representá-las. Todos foram de acordo que não havia outros

209
problemas com a escrita das vogais, residindo o problema em saber quais
vogais eram longas e quais eram curtas. Foi assim constatado certa dificuldade
em se distinguir vogais longas de vogais curtas, o que só a prática da escrita,
com o apoio de um bom dicionário de língua poderão ajudar na escrita correta
das vogais.
Ao passarmos para as consoantes, verificou-se uma destacada variação
na pronúncia da fricativa interdental surda /ɸ/ que, além dos alofones [ɸ] e
[ɸɫ], apresentava a realização [h] , pronunciada assim principalmente pelos
mais jovens, como já mencionado anteriormente neste artigo. Os sábios Suruí
colocaram a sua preocupação com as mudanças na língua presentes na fala
dos mais jovens e a pertinência do grafema “s” para representar as pronúncias
mais conservadoras do fonema fricativo interdental surdo /ɸ/. Mas a questão
que provocou maior discussão foi a representação dos sons oclusivos surdos
antes de silêncio, ou seja, as consoantes não explodidas [p˺], [t˺] e [k˺]. Foram
longas discussões com intervenções dos sábios Paitér, que opinavam com vee-
mência que na língua Paitér essas consoantes eram surdas. Constatou-se tam-
bém que vários jovens estavam pronunciando ao invés de consoantes surdas
as correspondentes sonoras, ou seja [b], [d] e [g], nesse ambiente antes de
silêncio. Todos tinham consciência de que, em fronteira de morfema, diante
de vogal, essas consoantes finais se realizavam como [b] ou como [w], como
[d] e como [g] respectivamente. Entretanto, os mais velhos decidiram que
seria melhor registrar as consoantes oclusivas antes de silêncio com os gra-
femas p, t, q, optando dessa forma por uma escrita fonética (de acordo com
a pronúncia correta, conservadora) e não por meio de b, d, g respectivamente,
para que os mais jovens, influenciados pelo português, em que b, d, e g, são os
grafemas que representam consoantes sonoras, não continuassem mudando a
pronúncia correta das oclusivas antes de silencio, as quais devem ser pronun-
ciadas sem a vibração das cordas vocais. Note-se que tanto William Bontkes
quantoTine van der Meer, analisaram as consoantes surdas não explodidas que
ocorrem antes de silêncio, como alofones condicionados dos fonemas /b/, /d/,
/g/, daí a representação dos alofones surdos na escrita pelos grafemas b, d, g,

210
respectivamente. Essa análise vale-se sobretudo das premissas do modelo teó-
rico adotado na análise fonológica da língua, segundo o qual:

Submembers of a phoneme should rarely receive distinct symbolization


since the native tends to be unaware of differences. Mutually exclusive vari-
eties of a phoneme should not have separate symbols to represent them.
The representation of submembers of phonemes by different symbols, when
these submembers occur in distinct environments, however, is not as serious
an error as the sounds which are not so limited by environment. The native
even though he may not bear the difference, can nevertheless build up a
mechanical rule l which tells him b tells when to use one symbol or the
other. It does not demand the memorization of an arbitrary çist of words.
The only case, in which a conditioned variety of a sound receives a separate
symbol is one in which certain variants of a vernacular phoneme constitute
separate phonemes in the trade language. In such a case, the pressures from
the social situation may be very strong and may at times force the investiga-
tor to depart from phonemic practice in order to get popular support for his
orthography, or may modify the phonemic analysis in such a way through
the inclusion of loan words in the vernacular. (PIKE, 1947, p. 209)3

“Os submembros de um fonema devem raramente receber simbolização distinta,


3

pois o nativo tende a desconhecer diferenças. Variedades mutuamente exclusivas


de um fonema não devem ser representados por símbolos distintos. A representa-
ção de submembros de fonemas por diferentes símbolos, quando esses submembros
ocorrem em ambientes distintos, no entanto, não é um erro tão grave como os sons
que não são tão limitados pelo ambiente O nativo, embora não possa entrever a
diferença, pode, no entanto, construir uma regra mecânica1que lhe diz quando usar
um símbolo ou outro. Não exige a memorização de uma lista arbitrária de palavras.
O único caso, em que uma variedade condicionada deve receber um símbolo sepa-
rado é um em que certas variantes de um fonema vernacular constituem fonemas
separados na língua do contato. Em tal caso, as pressões da situação social podem
ser muito fortes, e às vezes pode forçar também o investigador a se desviar da prática
fonêmica visando obter suporte do povo para sua ortografia, ou pode modificar a
análise fonêmica de tal forma por meio da inclusão de empréstimos no vernáculo.
(Pike, 1947, p. 209)(Tradução nossa).

211
Entretanto, Pike, assim como vários outros linguistas que se dedicam ao
estudo das escritas das línguas, acentua que a escolha de alfabetos pode decor-
rer de aspectos culturais, sociais e/ou psicolinguísticos. Seifart (2006) observa
justamente sobre o ensurdecimento final de sons, o seguinte:

E.g., word-final devoicing could be represented in an orthography or not.


These options are then evaluated with respect to factors that are inde-
pendent of the linguistic structure, e.g. the learnability of certain types of
orthographies for beginners. These non-linguistic factors will be decisive in
choosing one option over the other. However, these factors are often con-
flicting. For instance, an orthography that represents word-final devoicing
may be easier to learn for beginners, since the written form corresponds
more closely to the pronunciation. However, an advanced reader may ben-
efit from an orthography that maintains a constant written form of a mor-
pheme, regardless of whether or not its final consonant is devoiced in some
context. Thus, an essential task in developing orthographies is balancing the
advantages and disadvantages of the different options and making com-
promises. It should be noted that these basic principles apply not only in
situations where new orthographies are developed from scratch, but also in
the reform of existing orthographies. (Seifart, 2006, p. 276).4

Por exemplo, a desoneração final da palavra pode ser representada em uma ortogra-
4

fia ou não. Essas opções são então avaliadas em relação a fatores que são indepen-
dentes da estrutura linguística, por exemplo, a capacidade de aprendizado de certos
tipos de ortografias para iniciantes. Esses fatores não linguísticos serão decisivos na
escolha de uma opção em detrimento da outra. No entanto, esses fatores são muitas
vezes conflitantes. Por exemplo, uma ortografia que representa o ensurdecimento
da palavra final pode ser mais fácil de aprender para iniciantes, uma vez que a for-
ma escrita corresponde mais de perto à pronúncia. No entanto, um leitor avançado
pode se beneficiar de uma ortografia que mantenha uma forma escrita constante
de um morfema, independentemente de sua consoante final ser ou não desvozeada
em algum contexto. Assim, uma tarefa essencial no desenvolvimento de ortografias
é equilibrar as vantagens e desvantagens das diferentes opções e fazer concessões.
Deve-se notar que esses princípios básicos se aplicam não apenas em situações em
que novas ortografias são desenvolvidas a partir do zero, mas também na reforma de
ortografias existentes.

212
Ora, as mudanças propostas na escrita Paitér durante as oficinas em
2008, decorreram da decisão do mais velhos em representar os sons oclusivos
surdos antes de silêncio pelos grafemas p, t, k tendo em vista a influência que
a escrita do português estava exercendo nas gerações mais jovens quando da
pronúncia desses sons, que se manifestavam como sonoros [b], [d] e [g]. Para
os mais velhos, uma das estratégias para manter a pronúncia conservadora [p˺],
[t˺] e [k˺] era representar esses sons por p, t, k, respectivamente. Essa decisão
embora contrariasse princípios da análise linguística fonêmica, estaria justifi-
cada pela preocupação dos mais velhos no fortalecimento da pronúncia con-
servadora dos sons da língua. A decisão dos mais velhos, adotada pelos profes-
sores presentes na oficina caracterizou-se como uma atitude que reflete o zelo
dos mais velhos pelo que eles acreditam ser a pronúncia correta das palavras.
Entretanto como a necessária discussão da proposta de mudança na
escrita pelo coletivo Paitér foi impossibilitada pelo esvaziando das oficinas, que
passaram a contar a participação principalmente dos clãs G̃apg̃ir e Kaban, con-
trariando a proposta inicial das oficinas que era a de reunir representantes de
todos os clãs, a proposta de mudança foi seguida apenas pelos que participaram
ativamente de todas as oficinas. Faltou, sem dúvida, uma discussão mais ampla
com todos os interessados sobre as mudanças propostas. E com a publicação do
primeiro livro de autoria Paitér adotando as mudanças, livro este que foi distri-
buído para todas as escolas Paitér, iniciou-se um processo de rejeição, por parte
dos demais indígenas, a essas mudanças. Lamentavelmente, esse processo foi
largamente influenciado por agentes externos, missionários e linguistas.
Atualmente os professores Paitér ampliam o interesse e a discussão
sobre a escrita de sua língua no contexto maior da alfabetização e letramento
das novas gerações. É um momento oportuno para socialização das discussões
sobre como os Paitér, como um todo, desejam a escrita de sua língua.

Considerações finais

Tratamos neste artigo, das mudanças propostas na escrita da língua


Paitér, as quais não se configuraram como uma decisão de assessores das

213
atividades, mas do coletivo Paitér presente nas duas últimas edições da série
de oficinas. Ressaltamos que o esvaziamento das oficinas finais, em que houve
drástica redução do número de participantes, enfraqueceu a representatividade
de pessoas de diferentes aldeias e clãs, o que se tornou um grande obstáculo
para que os demais Paitér entendessem como e porque as mudanças foram
propostas e opinassem sobre elas.
O livro G̃apg̃ĩ r ey Xagah: Amõ ey Iway Amõ Anar Segah ayap mi Materet
ey mame Ikõr Nih/ Histórias do Clã G̃apg̃ĩ r ey e o Mito do Gavião Real, resul-
tado da última oficina, editado com muito esmero, e fruto de intenso trabalho
de Joaton Surui, Uraan Surui e Luiz Suruí com os mais velhos foi pioneiro,
enquanto fruto do protagonismo de professores e sábios Paitér. A publicação
desse livro poderia ter deslanchado discussões amplas do coletivo Paitér sobre
a importância do protagonismo indígena e sobre os fundamentos das alte-
rações na forma de escrever certos sons Paitér. Entretanto, esse movimento
importante que se construiu com as oficinas foi dificultado pelas fortes críticas
que surgiram quando do lançamento do livro, promovidas por missionários e
por linguistas. Este fato evidencia que o protagonismo dos professores indíge-
nas incomoda certos atores que atuam há muito tempo com eles, é um tema
a ser refletido e compreendido em sua profundidade, não há mais espaço para
subalternidade, os indígenas querem e buscam o seu protagonismo.
Mostramos, ao longo do artigo, em que as mudanças propostas por pro-
fessores Paitér na escrita de sua língua não se constituem em erro por não
seguirem critérios rigorosamente linguísticos, mas são decisões factíveis, fun-
dadas em atitudes das gerações mais velhas com respeito ao fortalecimento
de sua língua, que tende a sofrer erosões sob influência da língua dominante,
quanto mais as fronteiras entre Terra Indígena se fundem com os meios urba-
nos do entorno.
Os professores Joaton, Uaaan e Luiz, associados à pedagoga Laide
Ruix Ferreira, editaram mais dois livros frutos de outras duas oficinas reali-
zadas posteriormente, um vocabulário ilustrado do corpo humano e um livro
para estudo da língua Paitér com textos e exercícios. Não houve mais discus-
sões coletivas sobre a escrita Paitér. As discórdias fomentadas por terceiros

214
provocaram cisões e inseguranças no uso das duas escritas, a escrita dos mis-
sionários e a escrita alterada nas oficinas Paitér. É necessário que os professores
Paitér dos diferentes clãs se reúnam e discutam as duas escritas, mas sem inter-
venção de terceiros que almejam o monopólio dos estudos linguísticos e docu-
mentação da língua. É preciso estimular a consciência linguística dos indígenas
sobre sua própria língua e sobre os conhecimentos dos métodos de redução das
línguas à escrita, assim como sobre os direitos que têm de fazer suas próprias
escolhas, independentemente da rigidez de procedimentos metodológicos dos
modelos teóricos existentes.

Referências

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216
OS ESTUDOS FONOLÓGICOS DA LÍNGUA KAIOWÁ

Andérbio Márcio Silva Martins

Introdução

A formação de professores indígenas em cursos específicos e diferen-


ciados tem viabilizado a aproximação de representantes de povos autóctones
com os conhecimentos linguísticos desenvolvidos acerca de suas próprias lín-
guas, especialmente, nas licenciaturas interculturais em que é ofertada a habi-
litação em Linguagens, bem como em magistérios indígenas de nível médio.
Desse contato prévio verifica-se a curiosidade despertada nos indígenas sobre
os fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos que permitem ao
não indígena conhecer aspectos da estrutura e do funcionamento das línguas
em estudo. A curiosidade reside também no fato de quererem compreender os
motivos pelos quais o não indígena faz esse tipo de trabalho. À medida que os
professores indígenas em formação vão entendendo a contribuição de pesqui-
sadores não indígenas, cresce também o interesse por produzirem pesquisas
linguísticas em suas próprias comunidades, com fins normalmente aplicados
ao ensino da língua no contexto da Educação Escolar Indígena.
Nota-se que, embora existam diferentes objetivos para o desenvol-
vimento de estudos descritivos de línguas indígenas brasileiras ao longo do
tempo, vivemos hoje, dentro da realidade indígena, o momento de apropria-
ção do conhecimento desenvolvido e acumulado para ressignificação de uso
e função em prol do processo de valorização e fortalecimento das línguas em
ambiente de escolarização indígena. Dentro dessa perspectiva, alfabetização e
letramento em língua materna, com reflexões linguísticas no ensino da língua,
parecem estar ocupando um importante destaque na construção curricular de
escolas indígenas que têm vencido o preconceito linguístico ainda em voga

217
em muitas localidades. Sobre esse aspecto, considera-se um avanço o acesso
de indígenas ao conhecimento já produzido, não com fins meramente repro-
dutivos, mas reflexivos e aplicados ao ensino, de modo a permitir que a con-
tinuidade das pesquisas sobre as línguas indígenas seja também dada por eles
mesmos. Disso resulta uma autonomia acadêmica que pode ser adquirida com
um letramento científico voltado à sua realidade. Para isso, obviamente, é pre-
ciso também haver continuidade na formação, dando ao indígena a chance de
mergulhar no universo da pesquisa por meio do acesso a programas de mes-
trado e de doutorado.
Neste capítulo, apresento um pequeno recorte da realidade da formação
vivenciada no Brasil nos últimos anos. Para isso, considero a experiência de
formação dos Guarani e Kaiowá localizados no cone sul do estado de Mato
Grosso do Sul. Desde 2006, na Universidade Federal da Grande Dourados –
UFGD, existe um curso específico para formar indígenas dessas duas etnias,
com o objetivo de habilitá-los para o ensino em diversas áreas do conheci-
mento, a depender da grande área de habilitação escolhida, a saber: Ciências
da Natureza, Matemática, Ciências Humanas e Linguagens. Com essa for-
mação, os professores são licenciados a ministrar disciplinas correspondentes
à área de habilitação escolhida em escolas (prioritariamente localizadas em
áreas indígenas) que ofertam o Ensino Fundamental II (sexto ao nono ano) e
Ensino Médio. Cabe ressaltar que, devido à necessidade de professores indí-
genas para atuar nos anos iniciais do Ensino Fundamental I, muitos também
assumem turmas do primeiro ao quinto ano, recaindo sobre eles a responsa-
bilidade de alfabetizar em língua materna, o que tem demonstrado a necessi-
dade da criação de um curso de Pedagogia Intercultural, uma vez que o curso
de Magistério Indígena específico para os Guarani e Kaiowá, mantido pela
Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul, criado em 1999, tem
dado conta apenas parcialmente da demanda.
Para atender aos propósitos deste capítulo, o recorte será feito conside-
rando a formação dos Guarani e Kaiowá na área de Linguagens da Licenciatura
Intercultural Indígena – Teko Arandu. Atualmente, são cerca de 80 indígenas
habilitados nessa área, o que lhes licencia para o ensino de língua materna,

218
língua portuguesa como segunda língua, artes e educação física. Entre os
conteúdos linguísticos previstos na formação, o estudo dos fones, dos fone-
mas e dos grafemas tem ocorrido em uma disciplina específica, denominada
Laboratório de Análise Linguística I, cujo objetivo principal é compreender
aspectos fonéticos e fonológicos da língua indígena a partir do domínio lin-
guístico que os estudantes em formação apresentam. O ambiente de formação
possibilita uma análise sincrônica do uso da língua falada em diversas áreas
indígenas, a depender de quais localidades provêm os indígenas1. Além disso,
contribui com a reflexão sobre o sistema de escrita prático adotado nas escolas
guarani e kaiowá. Para isso, é feito um percurso histórico dos estudos fonéticos
e fonológicos já realizados, para os quais exploram as motivações de suas rea-
lizações, bem como a contribuição para a ampliação do conhecimento linguís-
tico. Em seguida, busca-se refazer com os professores em formação, falantes
nativos, o processo teórico-metodológico que leva a compreensão de aspectos
fonéticos e fonológicos que podem ser observados na fala e na representação
escrita da língua adotada pelos indígenas, em suas variáveis escolhas de regis-
tro. Por fim, na disciplina busca-se por em evidência a necessidade de conti-
nuar explorando os estudos linguísticos, de modo a compreender as variações
observadas e seus efeitos na concepção própria de língua.
Em síntese, dentro do contexto de formação de professores indígenas
Guarani e Kaiowá, neste capítulo busca-se apresentar uma breve contextuali-
zação histórica dos estudos fonológicos da língua Kaiowá. Destaca-se que os
estudos linguísticos acerca da língua Kaiowá foram iniciados no final da década
de 1950, com a chegada de missionários linguistas à região de Dourados-MS.
O trabalho por eles realizados se estenderam até a primeira década do século

Atualmente, os Guarani Ñandéva e os Kaiowá do cone sul de Mato Grosso do


1

Sul estão distribuídos em 8 reservas indígenas criadas pelo antigo SPI (Serviço de
Proteção aos Índios), 22 áreas reconhecidas após a Constituição Federal de 1988 e
em dezenas de acampamentos, que são terras reivindicadas por eles, consideradas
partes de seu território originário.

219
XXI, se for tomado como base os estudos mencionados no site do SIL2
(Associação Internacional de Linguística). No total, são 76 produções acerca
da língua e de aspectos culturais do povo Kaiowá, entre os anos de 1958 a
2010, com destaque para as áreas de Linguística, Antropologia e Educação.
Desse total, apenas 8 estão efetivamente acessíveis para leitura e download. Os
demais, o acesso pode ser viabilizado a pedido à instituição.
No que se refere aos estudos fonológicos da língua Kaiowá, qua-
tro são os trabalhos realizados por membros do SIL que, na época, chama-
va-se Summer Institute of Linguistics, são eles: (1) “Kaiowa Phonemes and
Syllables Structure”, produzidos por Lorena Bridgeman e Lynn Borman, em
1958; (2) “Notes on Stress and Rhythm in Kaiwá-Guaraní”, em 1959; (3)
“Kaiwa (Guarani) phonology”, em 1961, ambos escritos por Bridgeman; e (4)
“Nazalization in Kaiwa”, desenvolvido por Carl H. Harrison e John M. Taylor,
em 1971. Desses estudos, apenas o último está acessível e disponível para lei-
tura e download diretamente no site do SIL.
O estudo descritivo da fonologia da língua Kaiowá mais significativo
desse período é de Bridgeman, de 1961. Isso porque o resultado dos anteriores,
de alguma forma, são contemplados nele, e o de Harrison e Taylor (1971) foca
apenas no fenômeno da nasalização. É possível inferir que tais estudos propi-
ciaram a escolha das letras para representar os sons da língua em uma proposta
de escrita para a língua Kaiowá, ainda hoje utilizada entre muitos falantes alfa-
betizados em sua própria língua.
Somente após quase cinquenta anos do trabalho de Bridgeman (1961)
e do estudo promovido por Harrison e Taylor (1971), tivemos uma revisão
da fonologia da língua Kaiowá, tendo sido realizado pela professora Valéria
Cardoso, no ano de 2009.
Para melhor compreender as condições de produção desses estudos e os
resultados por eles alcançados, bem como a sua contribuição para a formação

Disponível em: https://www.silbrasil.org.br/resources/search/language/kgk. Acesso


2

em: 10 de setembro de 2022.

220
de professores indígena Guarani e Kaiowá3 de Mato Grosso do Sul, este capí-
tulo está organizada da seguinte forma: na próxima seção, focamos a proposta
de sistematização da fonologia da língua Kaiowá por Bridgeman (1961) e a
compreensão de Harrison e Taylor (1971) sobre a nasalização em Kaiowá;
na seção seguinte, destacamos a importante contribuição de Cardoso (2009),
demonstrando o avanço na compreensão do sistema fonológico do Kaiowá e
as questões ainda em aberto e que merecem maiores discussões.

1. Contribuições de Bridgeman (1961) e Harrison e Taylor (1971)

Antes de focarmos nas análises e resultados apresentados por Bridgeman


(1961) e Harrison e Taylor (1971), é importante ressaltar a realidade em que se
encontravam os Kaiowá e Guarani quando o trabalho de campo dos linguistas
ligados ao SIL foi iniciado. De forma geral, costumam dividir a sua história em
três grandes momentos: (1) ymagware, que é o período da “antiguidade”, carac-
terizado pela liberdade e autonomia de seu território; (2) sarambi, que se trata
do período do espalhamento compulsório de seus territórios tradicionais, o que
resultou no início da influência da sociedade brasileira e do próprio Estado bra-
sileiro nas regiões em que se encontravam, além de se criar uma dependência
do Estado e de instituições não governamentais; e (3) ko’ánga, o tempo atual, de
“agora”, marcado pelas lutas e pelo direito, sob o amparo legal da Constituição
Federal de 1988 e das convenções internacionais, conforme Pereira (2004a).
Os linguistas do SIL chegam no segundo período, sarambi, a partir de
um acordo de cooperação com o departamento de Antropologia do Museu
Nacional do Rio de Janeiro e com a permissão de contato estendido com os
Kaiowá por parte do antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios). Bridgeman
(1961) relata que seus primeiros trabalhos de campo ocorreram entre maio
e outubro de 1957, depois entre outubro de 1958 e abril de 1959 e entre
outubro de 1959 e abril de 1960. Embora tenha estado com falantes Kaiowá

Os Guarani Ñandéva se autodenominam simplesmente Guarani, e os Kaiowá se


3

autodenominam ora Kaiowá ou Guarani Kaiowá.

221
também em outras áreas, como na Reserva Indígena Te’yíkue, município de
Caarapó-MS, e também em José Bonifácio, no município de Ponta Porã e na
própria Reserva Indígena de Dourados-MS, em seu estudo de 1961, os dados
utilizados para análise são de Panambi, atualmente pertence ao município de
Douradina-MS, cerca de 40 km de distância do município de Dourados-MS.
Destaca-se que, entre o período de 1915 a 1928, o SPI criou oito reservas
indígenas no sul de Mato Grosso do Sul para “acomodar” os Kaiowá e Guarani
da região. Dessa forma, liberavam terras para o desenvolvimento agropastoril
e submetiam os indígenas ao controle do Estado, numa perspectiva assimila-
cionista. As oito reservas estão distribuídas em diferentes municípios e são as
seguintes: Reservas Indígenas de Amambai e de Limão Verde, no município de
Amambai; Reserva Indígena de Dourados, município de Dourados; Reserva
Indígena Te’ýikue, município de Caarapó; Reserva Indígena de Porto Lindo,
município de Japorã; Reserva Indígena de Taquaperi, município de Coronel
Sapucaia; Reserva Indígena Sassoró, município de Tacuru; Reserva Indígena
de Pirajuí, município de Paranhos (Cavalcante, 2016).
A Reserva Indígena de Dourados, por exemplo, também conhecida na
época como Posto Indígena Francisco Horta, foi criada em 1917. Por volta
de 1928 instalou-se próxima à Reserva, uma organização não governamen-
tal conhecida como Missão Caiuá. Trata-se de uma instituição fundada pelas
igrejas Metodistas, Presibiteriana do Brasil e Presibiteriana Independente,
integrantes da Associação Evangélica de Catequese dos Índios do Brasil, jun-
tamente com a East Brazil Mission (Missão Leste do Brasil), sociedade mis-
sionária norte-americana. Por falta de recursos, os trabalhos do Posto Indígena
Francisco Horta não eram constantes nas áreas de educação escolar e na área
de saúde. Assim, os funcionários do Posto aceitavam o suporte assistencialista
da Missão Caiuá (Lourenço, 2008).
Platero (2013) destaca que o trabalho proselitista da Missão Evangélica
e o seu propósito de ensinar o evangelho fizeram com que os missionários da
Missão tivessem interesse em conhecer as línguas indígenas e realizassem um
tipo de ensino bilíngue. Foi assim que pesquisas linguísticas entre os Kaiowá
iniciaram no final da década de 1950 e início de 1960. Linguistas missio­nários

222
como John Taylor, Audrey Taylor, Loraine Bridgeman e Margaret Sheffer pas-
saram a estudar a língua a fim de que viabilizassem o início da tradução da
Bíblia para o Kaiowá4. Nesse sentido, compreende-se que a Missão Caiuá, do
ponto de vista linguístico, era uma extensão do SIL entre os Kaiowá e Guarani
dessa região. Com um propósito triplamente qualificado (religioso, linguístico
e educacional), linguistas missionários passam a desenvolver estudos acerca
da língua Kaiowá. Obviamente, tudo se inicia pela identificação dos fonemas.
Os Kaiowá e os Guarani, de forma geral, adquirem a língua indígena
como língua materna e aprendem o português à medida que a interação com
falantes de língua portuguesa se faz necessária, sobretudo em ambiente escolar. A
língua inglesa, embora seja ensinada também em escolas indígenas da região, seu
conhecimento não é suficiente para que acessem os estudos linguísticos escri-
tos nessa língua. Diante disso, a contribuição de linguistas missionários ligados
à Missão Caiuá é transmitida, em português, durante o curso de formação de
professores indígenas Kaiowá e Guarani na área de Linguagens da Licenciatura
Intercultural Indígena – Teko Arandu (UFGD). Eis aqui uma ótima oportunidade
para deixar registrada uma versão dessa contribuição linguístico-missionária.
Bridgeman (1961) apresenta de forma muito objetiva os resultados
de sua pesquisa para obtenção do grau de Mestre em Artes na Universidade
de Indiana. Não esclarece como os dados foram coletados, tão pouco deta-
lha a identificação dos fones. Os dados presentes no estudo, que serviram
para a análise, estão transcritos fonologicamente, o que dificulta, em algumas
situações, saber qual é a efetiva realização do fonema na língua.

A língua falada pelos Kaiowá, desde o início de seus estudos, tem sido considerada
4

um dialeto do Guarani, o que tem gerado hoje preconceitos linguísticos nas áreas
indígenas compartilhadas por Kaiowá e Guarani. O “dialeto” Kaiowá é visto como
antigo e ultrapassado. Essa compreensão se dá por não considerar a possibilidade
de termos dois sistemas linguísticos muito semelhantes entre si por serem oriundas
de uma mesma língua, em um passado relativamente recente, mas com diferenças
suficientes para serem consideradas línguas autônomas. Neste capítulo, assumo a
existência de duas línguas: Kaiowá e Guarani. Como o enfoque é dado nos estudos
linguísticos do Kaiowá e não se tem o objetivo de realizar comparações entre essas
duas línguas, não problematizo a discussão entre língua e dialeto neste texto.

223
Subentende-se, contudo, que houve uma coleta de dados, identificação
dos fones da língua, considerando os ambientes em que ocorrem. Em seguida,
por meio da oposição de fones articulatoriamente semelhantes, em ambientes
idênticos e/ou análogos, verificou-se a ocorrência de sons distintivos, determi-
nados pelo ambiente e os que se encontravam em distribuição complementar,
a fim de que fossem verificados os que poderiam ser considerados fonemas e
seus respectivos alofones. Diante disso, Bridgeman (1961) considerou que a
língua Kaiowá possui 20 fonemas, sendo 14 consoantes: /p, t, k, b, d, g, q, Ɂ, v,
r, s, , j, h/; e 6 vogais: /a, e, o, i, ɨ, u/.

Quadro 1 – Fonemas consonantais da língua Kaiowá segundo Bridgeman (1961)

Palato-
Bilabial Labiodental Alveoar Palatal Velar Uvular Glotal
-alveolar

Oclusivas p b t d k g q Ɂ

Flap r

Fricativas v s j h

Fonte: Bridgeman (1961).

Conforme pode ser visualizado no quadro 1, os fonemas consonantais


postulados para o Kaiowá foram sistematizados por Bridgeman (1961) con-
siderando os modos e os pontos de articulação. Nota-se que, para alcançar
uma maior simetria na configuração formal do sistema fonológico, orientada,
sobretudo, pelo princípio da economia, as principais oposições se dão conside-
rando o tipo de embaraço causado na saída do ar para a produção do segmento:
total e momentânea, para o caso das oclusivas; intermitente, para o caso do
flap; parcial e contínua, para o caso das fricativas. Entre as oclusivas, verifica-se
também um esforço de alcance de simetria a partir da oposição com base no
grau de vozeamento, estabelecendo pares de fonemas desvozeados e vozeados:
/p/ e /b/, /t/ e /d/ e /k/ e /g/.
Após apresentar a oposição de fonemas consonantais em ambientes
idênticos e análogos, com dados fonemizados, no intuito de atestar a exis­tência

224
das unidades mínimas distintivas, Bridgeman (1961) discute a realização
alofônica de alguns fonemas. Para ela:

(i) /b/ ocorre como [mb] e [m];


(ii) /d/ ocorre como [nd] e [n];
(iii) /g/ ocorre como [ng] e [g];
(iv) /q/ ocorre como [gw]
(v) /v/ ocorre como [v] e [w]
(vi) /j/ ocorre como [dj], [d] e []

Os alofones contínuos nasais [m], [n], [], de acordo com Bridgeman


(1961), ocorrem com o fonema prosódico de nasalização (algo que é abor-
dado mais adiante) e precedendo as oclusivas nasais pré-nasalizadas, sobre as
quais não há explicações que motivam a sua realização, mas subentende-se que
ocorre diante de vogal oral.
Entre os fonemas contínuos propostos, a pesquisadora identificou a
ocorrência de variação livre, é o caso de [dj], [d], para o fonema /j/. Quanto
aos alofones de /v/, Bridgeman (1961) informa que [v] ocorre precedendo
vogais anteriores, exceto em co-ocorrência com o fonema prosódico de nasa-
lização, e [w] ocorre precedendo vogais centrais e posteriores, inclusive com o
fonema prosódico de nasalização.
Para os segmentos vocálicos, como já havíamos afirmado, Bridgeman
(1961) postulou a existência de seis vogais orais.

Quadro 2 – Fonemas vocálicos da língua Kaiowá, segundo Bridgeman (1961)

Anterior Central Posterior


Alta i ɨ u
Média e o
Baixa a

Fonte: Bridgeman (1961).

225
Pelo quadro 2, verifica-se que a oposição entre os fonemas vocálicos
postulados se dá mediante a altura (alta, média e baixa) e o recuo (anterior,
central e posterior) da língua. Nota-se que não foram postuladas vogais nasais.
A identificação dos fonemas vocálicos se deu considerando a oposição em
ambiente idêntico. Os dados no artigo já são apresentados fonemizados, mas,
para esse caso, não parece gerar interpretações equivocadas ao leitor. Seguem
alguns exemplos:

/haɁɨ/ ‘mother’
/haɁe/ ‘I say’
/haɁa/ ‘I fall’
/haɁu/ ‘I eat’

/hoɁo/ ‘his meat’


/hoɁu/ ‘he eats’
/hoɁa/ ‘he falls’

/huɁi/ ‘ground meal’


/huɁɨ/ ‘arrow’
/huɁu/ ‘his cough’

Bridgeman (1961) aponta que o fonema /i/ possui dois alofones orais [i]
e [I̭]. O primeiro é silábico e o segundo não assilábico, ocorrendo em final de
sílaba. Alguns exemplos dados por ela são os seguintes:

/oipɨkúi/ ‘she stirs meal’


/haɁi/ ‘mother’

O fonema /u/ também possui dois alofones: um silábico, [u], e outro


assilábico, [ ]. A diferença entre [ ] e [ ] é que este último poderia ocorrer
também precedendo uma vogal, como em:

/aikuaa/ ‘I know’

226
Além de ocorrer em final de sílaba:

/parakáu/ ‘parrot’

O fonema /e/ possui também dois alofones: [e] e [ɛ], mas não fica claro
se ocorrem de forma livre ou se encontram em distribuição complementar.
Exemplos com [e] foram os seguintes:

/dahaɁe-i/ ‘it isn’t so’


/ejotɨ/ ‘you plant’
/jade jára/ ‘God of the white man’
Exemplos com [ɛ]:
/haɁe/ ‘I say’ / ‘eu disse’; ‘third person pronoum’
/eqapɨ/ ‘you sit’

Para a realização de segmentos vogais nasais, Bridgeman (1961) pos-


tula a existência de um fonema de nasalização, marcado pelo til sobre a vogal
final da palavra. Para ela, trata-se de uma qualidade prosódica de nasalização.
Uma espécie de acento nasal, com ambiente previsível de ocorrência. Em sua
análise, verifica-se que a nasalização é mais proeminente em sílaba tônica e
flutua livremente com a ausência de nasalização em vogais de sílabas átonas.
Embora mencione a possibilidade de provisoriamente considerar a existência
de 6 vogais nasais, o seu contraste ocorre somente em sílaba tônica. Nesse
sentido, com base no princípio da economia, considera mais apropriado para
o sistema fonológico a existência de 6 vogais orais. Os exemplos dados por ela
são os seguintes:

/ipot / ‘it is pure, clean’


/ipoti/ ‘it is excreta’
/op / ‘it breaks’
/oke/ ‘he sleeps’
/pet / ‘tabaco’
/ikuã/ ‘its hole’, ‘it is a hole’
/obokõ/ ‘he swallows’
/oboko/ ‘his own purse’

227
/j / ‘grass, field’
/ju/ ‘needle’

Considerando aspectos do sistema fonológico do Kaiowá, Bridgeman


(1961) apresenta as seguintes conclusões:

I. as sílabas são de dois tipos: V e CV;


II. as consoantes ocorrem basicamente em início de sílaba, entretanto,
/Ɂ/ e /g/ não ocorrem em posição inicial de palavra;
III. /j/ não ocorre precedendo /i/;
IV. não há encontros consonantais;
V. vogais ocorrem em posição inicial, medial e final de sílaba, contí-
gua a qualquer consoante;
VI. consoantes nasais e vogais nasais são frutos da ocorrência de um
fonema prosódico de nasalização; e
VII. o acento lexical ocorre normalmente em final de sílaba de raiz de
formas isoladas.

Do estudo realizado por Bridgeman (1961), para a formação de pro-


fessores indígenas Guarani e Kaiowá, é interessante observar as condições de
desenvolvimento da pesquisa: a coleta de dados, o registro, a análise e a des-
crição. Nota-se, contudo, que a pouca familiaridade da pesquisadora com lín-
guas Tupí-Guaraní, até aquele momento, seja por meio de leituras de traba-
lhos já realizados, seja também por contato com outras línguas aparentadas do
Kaiowá, faz com que ela chegue a um sistema fonológico orientada basica-
mente pelo princípio da economia, a fim de propor uma configuração formal,
a mais simétrica possível. Isso se verifica na formulação de fonemas oclusivos
vozeados /b/ /d/ e /g/, mesmo sem ter exemplos de sua realização como [b],
[d], e [g], mas parece harmonizar bem com os fonemas oclusivos desvozeados
/p/, /t/ e /k/.
Tendo ainda verificado a ocorrência de [mb] e [m], [nd] e [n], [ng] e [g],
pensando de forma econômica, parecia fazer mais sentido considerá-los como
manifestações de /b/, /d/ e /g/, respectivamente, uma vez que se encontram no
mesmo ponto de articulação. Tal redução proposital, conduz a um sistema que

228
pouco representa a intuição fonológica dos falantes e estabelece um sistema de
caráter altamente artificial.
Cabe observar ainda o fonema oclusivo uvular postulado e simbolizado
no estudo como /q/, cuja realização fonética, de acordo com Bridgeman, é
[gw]. Somente em favor da busca de uma simetria ao sistema que se justi-
fica tal proposta. Em seu trabalho de 1981, intitulado “O parágrafo na língua
Kaiowá”, a autora passa a considerar a existência de um décimo quinto fonema
consonantal, /kw/, o que reduz o ambiente para o alofone de /u/, este passa a
ocorrer como [ ] apenas em final de sílaba.
A contribuição de Bridgeman (1961) se situa no pioneirismo dos estu-
dos linguísticos da língua Kaiowá. A análise fonológica empreendida propi-
ciou a identificação de fonemas cujo status não se coloca em dúvida, como é
o caso da série de oclusivas desvozeadas /p/, /t/, /k/ e /Ɂ/. De igual modo, a
identificação do fonema /ɾ/ e da série de fricativas /s/ / / e /h/. Permanecendo
questionável o status dos fonemas oclusivos vozeados /b/, /d,/ e /g/ e dos fone-
mas /v/ e /j/.
É possível afirmar também que não há dúvidas sobre o status fonológico
das vogais orais: /a/, /e/, /i/, /ɨ/, /o/ e /u/, mas permaneceu questionável a sua
proposta de um fonema de nasalização para explicar a ocorrência das vogais
nasais em Kaiowá. De todo modo, os resultados questionáveis de sua análise
só são objetos de análise cerca de 48 anos depois, com o estudo realizado por
Cardoso, publicado em 2009.
No que diz respeito ao fenômeno da nasalização em Kaiowá, houve a
publicação de um estudo dez anos após o trabalho de Bridgeman. Trata-se de
um trabalho produzido por Harrison e Taylor (1971), em que buscam postu-
lar regras ou princípios que regem a propagação da nasalidade nessa língua.
Segundo Bendor-Samuel, organizador da obra na qual se encontra o texto de
Harrison e Taylor, o estudo é basicamente a reescrita do que havia sido apre-
sentado à Associação Brasileira de Antropologia, em julho de 1963. Conforme
Bendor-Samuel, a análise proposta não está ligada intimamente a nenhum
padrão de descrição, nem conceitual nem do ponto de vista terminológico,
mas talvez sua afinidade mais próxima seja com a Escola de Londres. O fato é

229
que já se compreendia que a nasalidade era um fenômeno bastante difundido
em línguas Tupí-Guaraní e tal análise poderia trazer alguma elucidação sobre
o fenômeno.
Harrison e Taylor (1971) afirmam que estudos anteriores que opõem
vogais orais e vogais nasais, resultando em sílabas orais e sílabas nasais não são
suficientes para explicar toda a complexidade observada. Além disso, embora,
à primeira vista, parecia plausível considerar simplesmente os pares m/mb, n/
nd, ñ/dj, /g e w/gw como alofones, em que o primeiro membro de cada par
ocorreria em sílabas nasais e o segundo membro em sílabas orais, pesquisas
subsequentes revelavam relações mais interessantes: indicavam que, em muitos
casos, os alofones nasais também ocorriam, ocasionalmente, com vogais orais
e vice-versa. Para exemplificar tal situação, consideraram as seguintes palavras:

[tupãwasu] ‘important gods’


[k Ɂ wasu] ‘large peppers’

De acordo com Harrison e Taylor (1971), esperava-se que a vogal após


 fosse nasal, já que a vogal oral, teoricamente, ocorreria apenas com gw.
w

Não se nota, nesse momento, que a produção de [w] decorre da vogal nasal
precedente.
Outra situação apresentada pelos autores era a dúvida sobre que vogal
era, de fato, mais nasalizada: [õmãnõmba-mã] ‘they all died’. Além disso, exem-
plos causavam dúvidas acerca de que forma é definitivamente oral ou nasal,
partindo do princípio que uma das sílabas é nasal:

[tupã] ~ [t pa] ~ [t pã] ‘gods, spirits’


[ok ] ~ [õke] ~ [õk ] ‘opening’
[õrõ kõteve] ~ [õrõ kõt v ] – [oroikõt v ] ‘we (exclusive) are in need’

Dessa forma, concluem que a nasalização necessita ser descrita em ter-


mos de algo para além da sílaba. A hipótese formulada foi atribuir nasalidade
intrínseca a certos morfemas, além de adicionar outras qualificações para dar
conta de explicar a nasalização em Kaiowá. Nesse sentido, o artigo destaca a

230
existência de morfemas intrinsecamente nasais, o que indica que a nasalização
estaria, portanto, no nível do morfema e não da sílaba.
A partir da análise dos dados, Harrison e Taylor (1971) propõem quatro
regras:

Regra 1: dentro dos núcleos5, se um morfema intrinsecamente nasal ocorre, ele


potencialmente será responsável pela nasalização de morfemas que o precede
dentro dos limites da fronteira do grupo acentual6. Exemplos:

[ ap jgwa-rupi] ‘in my nostril’


my nose cavity in

[õ-ñ no-ta] ‘he intends to lies down’


he reflexive lay desiderative

[õ-mano] ‘he died’


he die

No primeiro exemplo, o e > em e devido à ocorrência de um morfema


intrinsecamente nasal que, no caso, seria ap j ‘nariz’. Do mesmo modo, no
segundo exemplo, o > õ e je > ñ por causa do morfema intrinsecamente nasal
no ‘lay’. O mesmo ocorre no terceiro exemplo.
Para a Regra 1, há duas observações importantes consideradas pelos
autores. A primeira é que a ocorrência de uma oclusiva glotal tende a inibir o
efeito da nasalização de morfemas intrinsecamente nasais em sílabas sucessivas

5
Para os autores, núcleo se refere à sílaba com acento primário e toda sílaba que a
precede em um grupo acentual. Postulam a ideia de núcleo em oposição à margem,
esta, por sua vez, consiste de uma sílaba que pode seguir a sílaba que tem acento
primário. No ponto de vista de Harrison e Taylor (1971), a oposição entre núcleo
e margem facilita a descrição de certas diferenças de efeito da nasalidade de um
morfema em relação a outro.
6
Para os autores, grupo acentual é um grupo de sílabas que pode ocorrer imediata-
mente antes e depois de uma sílaba que tem acento primário. Acento primário, por
sua vez, seria a intensidade primária de uma sílaba.

231
precedendo o núcleo, mas isso só é observado em falas mais lentas, quando o
falante fala devagar. Em uma fala normal a nasalização vai ocorrer:

Forma base: /djuɁi we/ ‘frog’


Fala devagar: [djuɁ we]
Fala normal: [ñ we]

A segunda observação é que se o último morfema de um núcleo for


intrinsecamente nasal, e se ele não é seguido por uma margem, a última sílaba
(ou sílabas) do morfema geralmente será oral. Se for seguido por uma margem
será nasal.
Forma base: /oro ikoteve/7
Com margem: [õro kõt v -vaɁe] ‘we are the ones who are in need’
Sem margem: [õrõ kõt ve] ‘we are in need’

Regra 2: as nasais pós-oclusivas mb, nd, g (que ocorrem somente em núcleo)


vão nasalizar todas as sílabas que as precedem em um núcleo, em uma fala nor-
mal e, geralmente, em uma fala devagar também.

[te͂mbiɁu] ‘food’
[õmõñ mboasɨ] ‘he makes him sorry for himself ’

De acordo com os autores, a única observação acerca dessa regra é que,


em uma fala controlada, a nasalização será inibida antes de uma oclusiva glotal.
Entretanto, qualquer morfema nasal ou uma nasal pós-oclusiva que precede
a oclusiva glotal reiniciará a nasalização de sílabas precedentes, conforme as
regras 1 e 2.
Forma base: / e rembiɁu ra/8 ‘my food in the making’
Fala devagar: [ r mbiɁ ra]
Fala normal: [ r m Ɂ ra]

7
Nesse caso, a fonte de nasalização seria a última vogal da palavra, mas como os
autores seguem a transcrição fonológica de Bridgeman, a vogal ocorre sem o til.
8
Nesse caso, a fonte de nasalização é a vogal do morfema ra.

232
Regra 3: uma margem nasal não afeta um núcleo oral, além de uma possível
leve nasalização da vogal final do núcleo. Exemplo:

[õmanombã-ma] ‘they all died’

Regra 4: certas margens manifestam alomorfes nasais se o último morfema de


um núcleo for nasal. Exemplos:

[o ke-pɨ] ‘in his sleep’


his sleep in

[oke9-mɨ͂ ] ‘in the doorway’


door in

Verifica-se que a análise e tentativa de sistematização do fenômeno de


nasalização em Kaiowá proposta por Harrison e Taylor (1971) não contraria a
análise feita por Bridgenam. Eles continuam considerando, por exemplo, que,
do ponto de vista fonológico, não há vogal nasal. Nesse sentido, infere-se a
defesa de um fonema de nasalização. O que pode ser considerado como con-
tribuição é a tentativa de descrever e postular regras que regem a nasalização
como um processo fonológico. Ou seja, o espalhamento da nasalidade ao longo
de uma palavra e/ou sintagma.
Se ignorarmos a decisão de transcrição fonológica que não contribui
muito para a compreensão do fenômeno que está sendo explicado pelos auto-
res, e se desconsiderarmos a hipótese de que a nasalização se encontra no nível
do morfema, uma vez que não houve uma preocupação, por parte dos autores,
de por em evidência segmentações morfológicas que subsidiasse a análise, mas
se, por outro lado, considerarmos as quatro regras como apontamentos do que
foi observado na língua naquele momento, é possível tecermos algumas colo-
cações que podem ser objeto de reflexão entre os professores indígenas Kaiowá
e Guarani em formação:

I. a língua Kaiowá parece possuir mais de uma fonte de nasalização;

Nesse caso, a vogal e é a fonte de nasalização.


9

233
II. a nasalização tende a alcançar, com maior frequência, segmentos
que se encontram à esquerda da fonte de nasalização;
III. a nasalização tende a alcançar, com menor frequência, segmentos
que se encontram à direita da fonte de nasalização;
IV. a nasalização parece alcançar uma palavra fonológica; e
V. a oclusiva glotal parece ser um segmento opaco à nasalização.

Talvez seja esta a maior contribuição de Harrison e Taylor (1971) para


a formação de professores indígenas Guarani e Kaiowá: refletir sobre a nasa-
lização enquanto processo fonológico e tentar buscar explicações para a sua
ocorrência, tendo em vista que se trata de um fenômeno bastante comum e
ainda muito presente na língua.

2. Contribuições de Cardoso (2009)

Após os estudos fonológicos do Kaiowá realizados por Bridgeman


(1958, 1959, 1960 e 1961) e Harrison e Taylor (1971), Cardoso (2009) apre-
senta sua proposta de sistematização da fonologia Kaiowá. Os dados utilizados
para a análise foram coletados na Reserva Indígena de Dourados (RID), nas
aldeias Jaguapiru e Bororó. Destaca-se que essa área indígena é multilíngue
desde sua criação pelo SPI, em 1917. Nela se encontram representantes de
três etnias: Kaiowá, Guarani Ñandéva e Terena. Na aldeia Jaguapiru tem-se,
predominantemente, famílias Terena e famílias Guarani. Na aldeia Bororó
tem-se, predominantemente, famílias Kaiowá. Entretanto, há também na RID
casamentos entre indígenas de etnias diferentes: Kaiowá e Guarani, Kaiowá e
Terena, Guarani e Terena e também, em menor expressão, casamentos entre
indígenas e não indígenas. Com isso as línguas indígenas presentes na área
sofrem influências entre si e sofrem influências também da língua portuguesa,
uma vez que se trata de uma área muito próxima à cidade de Dourados, na qual
muitos indígenas transitam, trabalham e estudam.
Teoricamente, a análise empreendida por Cardoso (2009) está fun-
damentada em Storto (1999), para a qual os processos de nasalidade e

234
oralidade estão associados ao traço binário [+ nasal], característicos dos seg-
mentos vocálicos [- consonantal]. Destaca-se que Storto (1999), ao adotar a
abordagem teórica da fonologia cíclica proposta por Halle e Vergnaud (1987),
estava interessada em explicar o fenômeno da oralização de consoantes nasais
em Karitiana, demonstrando que a fonte de oralidade provém de vogais orais
contíguas às consoantes nasais, que se tornavam pré e/ou pós-oralizada diante
de vogais com traço [- nasal].
É interessante compreendermos o percurso feito por Cardoso (2009),
suas escolhas, interpretações e decisões, uma vez que seu estudo representa o
que de mais atual temos acerca da fonologia Kaiowá. Destaca-se que os resul-
tados alcançados revelam uma tentativa de sistematização que, segundo a pró-
pria autora, necessita ser melhor trabalhada em estudos posteriores, mas, segu-
ramente, é um avanço em relação ao conhecimento alcançado por Bridgeman
(1961) e Harrison e Taylor (1971).
Para Cardoso (2009), a sistematização fonológica do Kaiowá deve pas-
sar pela compreensão do fenômeno da nasalização. Dentro dessa perspectiva,
sua abordagem se distancia da de Bridgeman (1961), que basicamente pro-
pôs um inventário fonológico com segmentos consonantais [- nasal] e vocáli-
cos [- nasal], tendo em vista que a nasalização foi considerada um fenômeno
meramente prosódico. Em suma, para Bridgeman (1961), não há consoantes
[+ nasal] nem vogais [+ nasal] em Kaiowá, fonologicamente. Para Cardoso
(2009), sim. A pesquisadora considera a existência de 12 vogais, sendo 6 orais
e 6 nasais:

Quadro 3: Fonemas vocálicos do Kaiowá (Cardoso, 2009)

Anterior Central Posterior

Fechada i, ɨ, ɨ͂ u,

Aberta e, a, ã o, õ

Fonte: Cardoso (2009).

235
Postular a existência de vogais nasais em Kaiowá é fundamental para
Cardoso (2009) explicar o processo de nasalização presente na língua. Sua
interpretação é que as vogais carregam os traços [+ nasal] e estes se espalham
na palavra, ou seja, os segmentos [- consonantais] são fontes de nasalidade e
responsáveis pelo espalhamento do traço [+ nasal] à esquerda e do espalha-
mento do traço [- nasal] à direita e/ou em ambas as direções10. Além disso,
Cardoso (2009) destaca que, se ocorrem ambos os processos na mesma palavra,
serão interpretados conforme o critério de ordenação de regras, isto é, não se
dão de forma aleatória nem há anulação de um espalhamento em detrimento
de outro.
Pelo quadro 3, nota-se que a principal oposição existente no sistema
em relação às vogais é oral vs. nasal, conforme Cardoso (2009) evidenciou.
Enquanto Bridgeman (1961) não previa a existência de vogal nasal, ape-
nas um fonema de nasalização que ocorreria em posição final de palavra,
Cardoso (2009) sugere que vogais nasais não estão restritas ao final de palavra.
Fonologicamente representa algumas palavras que nos permite chegar a essa
conclusão:

/k n m / ‘menino’
/ iɾ nõ/ ‘beija-f lor’
/k ã/ ‘mulher, fêmea’
/hiɁãw / ‘perto dele’
/m / ‘pequeno, menor’
/nãmi/ ‘orelha’
/ãnu/ ‘aranha’
/owãh / ‘chega’
/om Ɂ / ‘dá’
/t usu/ ‘pulga’

10
Em algumas passagens do artigo, Cardoso (2009) afirma que o espalhamento
do traço [-nasal] se dá à direita, em outros momentos sugere que o espalhamento do
traço [-nasal] se dá em ambos os lados.

236
A dúvida que se instala aqui é se essas vogais são, de fato, nasais. Como
ocorrem em ambiente nasal, podem ter sido nasalizadas.
Com relação aos segmentos consonantais, Cardoso (2009) chega a
uma distribuição bastante simétrica e com um alto nível de generalização.
Diferentemente de Bridgeman (1961), que organiza o sistema considerando a
articulação dos sons (modos e pontos de articulação), Cardoso adota o sistema
de oposição com base na combinação de dois principais traços distintivos:
[+ contínuo] e [+ nasal].

Quadro 4 – Fonemas consonantais do Kaiowá (Cardoso, 2009)

Palato- Lábio-
Bilabial Alveolar Palatal Velar Glotal
-Alveolar -velar
Obstruintes
[- contínuo] p t k kw Ɂ
[- nasal]
Sonorantes
[- contínuo] m n   w
[+ nasal]
Contínuos
[+ contínuo] w s ɾ h
[- nasal]
Fonte: Cardoso (2009)

A série de obstruintes é semelhante ao que Bridgeman (1961) havia


postulado, com a exclusão da consoante uvular /q/ e com a inserção da lábio-
-velar /kw/, que já havia sido reconhecida por Bridgeman (1981), em sua tese
de doutorado que versa sobre o parágrafo na língua Kaiowá.
Para a série de contínuas, a novidade se encontra na escolha do fonema
/w/ em vez de /v/, como havia sido proposto por Bridgeman (1961). Cardoso
(2009), considera que o fonema /w/ possui dois alofones que ocorrem em ata-
que silábico e que se encontram em variação livre: [v] e [w], mas que somente
[w] ocorre em posição de coda. Bridgeman (1961), por outro lado, havia indi-
cado a ocorrência de [v] e [w] em distribuição complementar: [v] ocorreria
com vogais anteriores e [w] vogais centrais e posteriores.

237
Mas a principal diferença de análise se encontra mesmo na série de
sonorantes. Enquanto Bridgeman (1961) havia postulado uma série de oclusi-
vas sonoras: /b/ /d/ /g/, com seus respectivos alofones [m] e [mb], [n] e [nd],
[g] e [ng], Cardoso (2009) propõe uma série de consoantes nasais com seus
respectivos alofones. Para a autora:

(i) /m/ ocorre como [m], [mb] e [b]


(ii) /n/ ocorre como [n], [nd] e [d]
(iii) // ocorre como [], [d], [j] e [j͂]
(iv) // ocorre como [], [g] e [g]
(v) /w/ ocorre como [w], [w͂], [gw] e [g]

Para a ocorrência alofônica das sonorantes, Cardoso (2009) assume


que as vogais, dotadas do traço [+ nasal], acentuadas ou não, são as respon-
sáveis pelo espalhamento da nasalidade à esquerda e pelo espalhamento da
oralidade à direita ou em ambos os lados. Portanto, para a pesquisadora, é a
aplicação de traço vocálico binário que produz os alofones das consoantes sono-
rantes. Como forma de demonstração, a autora apresenta a ocorrência das
sono­rantes em oito ambientes distintos. Os dados são registrados fonologi­
camente e foneticamente. Os oito ambientes são os seguintes:

I) V____ V

Nesse ambiente, as sonorantes ocorreriam como [b], [d], [d], [g] e [gw]:

/suɾumi/ [suɾubi] ‘surubim’


/seɾanupe/ [seɾadupe] ‘no cerrado’
/aaka/ [adaka] ‘cesto’
/oa/ [oga] ‘casa’
/hawe/ [hagwe] ‘pelo’

Sobre esses exemplos, cabem algumas observações. A primeira é a pro-


dução de [b] e [d]. Cardoso (2009) destaca que esses sons ocorrem, eventual-
mente, na fala dos mais jovens no local em que a coleta de dados foi realizada,
provavelmente por influência do português. Do ponto de vista fonológico,

238
causa um certo estranhamento a proposta de um fonema // com alofone [d]
em ambiente oral. O // se realiza como [] apenas em ambiente nasal, o que
sugere que ele seja já o resultado de uma nasalização. Isso coloca em dúvida o
status da palatal nasal como fonema. Na verdade, considerar // como fonema
e suas realizações alofônicas serem [], [d], [j] e [ ] é uma generalização que
a própria autora põe em dúvida, sugerindo a produção de novos estudos. Por
fim, a ideia de considerar um fonema /w/ sem que foneticamente ocorra como
[w] nos dados apresentados, em nenhum dos ambientes, também necessita ser
reavaliada.

II) #____V
Nesse ambiente, as sonorantes ocorreriam como [b] ou [mb], [d] ou [nd],
[d], [g] e [gw]:

/mopiɾi/ [bopiɾi] ~ [mbopiɾi] ‘morcego’


/ne/ [de] ~ [nde] ‘você, 2ª sing.’
/etɨ/ [detɨ] ‘batata’
/aɁu/ [gaɁu] ‘desejo’
/waɁa/ [gwaɾa] ‘arara’

III) ___
IV) #___
V) V___

Nesses ambientes, as sonorantes ocorreriam como [m], [n], [] e [ ]/


[w], não havendo ocorrência de um alofone nasal para //, e // não ocorre
após silêncio:

/k n m / [kun m ] ‘menino’
/m / [m ] ‘pequeno, menor’
/om Ɂ / [õm Ɂ ] ~ [om Ɂ ] ‘dá’

/ iɾ nõ/ [ ɾ nõ] ‘beija-flor’


/nãmi/ [nãmbi] ‘orelha’

239
/inãmu/ [inãmbu] ~ [inãmbu] ‘nambu’

/k ã/ [k ã] ‘mulher, fêmea’


/ãnu/ [ãndu] ‘aranha’

/hiɁãwi~/ [hi~Ɂã ] ‘perto, ali’


/ ãh / [ ãhe] ‘chegar’
w

/owãh / [owãhe] ‘chega’

VI) ___V
Nesse ambiente as sonorantes ocorreriam como [mb], [nd], [g] e [w],
não havendo ocorrência do fonema //.

/tuk mo/ [tuk mbo] ‘corda’


/mãniu/ [mãndɨdu] ‘algodão’
/t usu/ [t gusu] ‘pulga’
/itɨ͂ waɾa/ [itɨ͂ gwaɾa] ‘narina11’

VII) V___#
Nesse ambiente, Cardoso (2009) postulou a existência do fonema //,
ocorrendo em posição de coda como [j], além de /w/, ocorrendo como [w]:

/mo/ [boj] ~ [mboj] ‘cobra’


/paɾakaw/ [paɾakaw] ‘papagaio’

VIII) ___#
Nesse ambiente, Cardoso verificou que apenas // ocorre, sendo reali-
zado por /j͂/:

/mokõ/ [mõkõ ] ‘dois’


11
Provavelmente significa “narina dele”.

240
Destaca-se que, para além da revisão do estudo de Bridgeman (1961)
e da adoção de um modelo de abordagem fonológica bem fundamentada,
Cardoso (2009) realizou um profundo levantamento bibliográfico sobre a
fonologia de línguas aparentadas, como Guarani Ñandéva (cf. Costa, 2003b)
e Mbyá (cf. Guedes, 1991, Martins, 2003), a fim de verificar como estudiosos
dessas línguas trataram do fenômeno da nasalização e o quanto isso reflete nos
inventários fonológicos propostos. Além disso, demonstrou como a nasalização
em Guarani produziu diferentes interpretações a partir de abordagens teóricas
distintas, mencionando as contribuições de Goldsmith (1976), Barrat (1980),
Piggott (1992 e 1996) e Kiparsky (1985). Nota-se, portanto, que as escolhas
realizadas por Cardoso (2009) para propor uma sistematização da fonologia da
língua Kaiowá não carece de procedimento teórico-metodológico. Diante dos
fatos, podemos concluir essa seção afirmando que as contribuições de Cardoso
(2009) para a formação de professores indígenas Guarani e Kaiowá, no que diz
respeito à fonologia, são as seguintes:

I. o Kaiowá possui não apenas vogais orais, mas também vogais


nasais;
II. as vogais são fontes de espalhamento de nasalidade e oralidade;
III. existe uma oposição entre consoantes nasais e consoantes orais;
IV. as consoantes orais estão distribuídas em duas classes, conside-
rando os traços distintivos que compartilham: obstruintes [- con-
tínua] e [- nasal] e contínuas [+ contínua] e [- nasal].

Entretanto, algumas questões parecem permanecer em aberto:

i) realmente existem vogais nasais em outros ambientes em kaiowá


ou elas estão restritas à posição final de palavra?
ii) somente as vogais podem ser consideradas fontes de nasalização
em Kaiowá?
iii) a nasalização proveniente de vogais se espalha somente à esquerda
em Kaiowá?
iv) quais são os fonemas consonantais realmente transparentes à
nasali­zação e quais são os opacos em Kaiowá?

241
v) nenhuma das consoantes obstruintes em Kaiowá sofre efeito do
espalhamento do traço [+nasal]?

Por fim, uma questão de fundo mais teórico: em favor de alcançar uma
maior simetria na configuração formal do sistema, considerando alofone o que,
eventualmente, poderia também ser considerado fonema, não constrói um sis-
tema fonológico muito abstrato, de forma a distorcer a realidade observável?
Quais são as vantagens e desvantagens desse tipo de escolha?

Considerações finais

Neste capítulo buscou-se realizar uma contextualização histórica dos


estudos fonológicos concernentes à língua Kaiowá. Para isso, prosseguiu-se
com a leitura e análise crítica dos principais estudos existentes. Os resultados
apontam para uma efetiva contribuição dos estudos já realizados, no que diz
respeito ao conhecimento do sistema fonológico do Kaiowá, mas, ao mesmo
tempo, demonstra a necessidade de dar prosseguimento à pesquisa para melhor
compreensão e confirmação de alguns fenômenos, bem como a refutação de
algumas postulações propostas.
Dessa forma, ainda parece ser necessário reunir mais argumentos que
justifiquem o status fonológico das vogais nasais, a sua ocorrência em ambien-
tes para além da posição final de raízes. Sobre as consoantes, é necessário
ainda verificar o status fonológicos de alguns segmentos, tais como // e /w/,
e a possibilidade de se considerar como fonema o /j/. De todo modo, parece
muito coerente a ideia de se ter um inventário com uma série de obstruintes,
de sonorantes e de contínuas, como propôs Cardoso (2009). Por fim, sobre o
fenômeno da nasalização, ainda é necessário verificar se apenas as vogais são
fontes de espalhamento e buscar uma sistematização de regras que contem-
plem todas as situações. É importante considerar ainda que a língua Kaiowá
não é falada apenas em uma localidade na região sul de Mato Grosso do
Sul. Nesse sentido, parece ser interessante obter dados de todas as áreas, pois

242
alguns fenômenos podem ocorrer em uma localidade com maior frequência e
outros não.
Sobre os estudos de Bridgeman (1961), Harrison e Taylor (1971) e
Cardoso (2009), cabe observar que nenhum dos pesquisadores apresentou um
quadro fonético dos segmentos vocálicos e consonantais, resultante da análise
de um corpus em que se apresenta a transcrição fonética das possibilidades de
pronúncia nos mais diversos ambientes. O contraste em ambiente idêntico e
em ambiente análogo também não foi apresentado, considerando a transcrição
fonética dos segmentos, a fim de que fosse possível visualizar as oposições, os
possíveis alofones de cada segmento, ocorrendo em variação livre e em distri-
buição complementar. O que temos é uma leitura a partir dos dados já fone-
mizados, ou seja, a partir de uma interpretação prévia, o que permite apenas
inferir o passo a passo realizado. Talvez seja interessante termos um estudo
fonológico da língua Kaiowá em que sejam demonstrados os aspectos fonéti-
cos que subsidiam a interpretação fonológica.
Além disso, um suporte importante e fundamental a ser adotado hoje
é a análise acústica, o que permite dar maior segurança à transcrição fonética
e à interpretação dos processos fonológicos observáveis. Enfim, talvez uma
análise fonética mais acurada, considerando ainda um número maior de dados,
e, sobretudo, considerando ainda o conhecimento histórico que já possuímos
acerca do Proto-Tupí-Guaraní e o conhecimento linguístico de línguas mais
próximas do Kaiowá, conseguiríamos chegar a uma interpretação fonológica
ainda mais consistente.

Referências bibliográficas

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American Linguistics, 27, 1961, p. 329-334.

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CARDOSO, V. F. Sistematização da fonologia Kaiowá: nasalização e/ou ora-


lização. Sínteses, v. 14, 2009, p. 31-70.

243
CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Colonialismo, Território e Terri­
torialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul.
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Dourados/MS (1940-1970): reflexões sobre a noção de pessoa dos Kaiowá
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RODRIGUES, A. D. Relações internas na família linguística Tupi-Guarani.


In: Revista de Antropologia, separata dos volumes XXXVII/XXVIII. São Paulo,
1984/1985.

244
CONSOANTES LATERAIS DUPLAS EM POSIÇÃO
INTERVOCÁLICA: ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE
GEMINAÇÃO NO PORTUGUÊS DOS TROVADORES

Débora Aparecida dos Reis Justo Barreto


Gladis Massini-Cagliari

Introdução e objetivos

Este estudo objetiva promover uma análise fonológica do grafema <ll>


ou <lh> na época medieval da língua portuguesa, representantes gráficos da
consoante /ʎ/ na época, a fim de confirmar ou não a existência de geminação
em posição intervocálica. Sendo assim, pretende-se averiguar se, do ponto de
vista fonológico, a lateral ll/lh pode ser interpretada como um segmento gemi-
nado quando se localiza no meio da palavra entre vogais. Para tanto, optou-se
por um corpus composto por 250 cantigas galego-portuguesas: 100 Cantigas de
Santa Maria (CSM), da vertente religiosa, e 150 poemas profanos (50 de amor,
50 de amigo e 50 de escárnio e maldizer).1
Neste capítulo, entendemos que uma apropriada compreensão de ocor-
rências do passado contribui para o esclarecimento do momento atual, sendo
o inverso também verdadeiro, ou seja, o presente do nosso idioma é capaz
de esclarecer processos de mudanças já concluídas (Paiva; Duarte, 2012). Os
documentos do medievo chegaram até nós por meio de copistas e com os
acréscimos que os editores modernos julgaram necessários. Assim, uma boa

Os critérios adotados para a seleção do recorte profano foram três e se baseiam


1

em Massini-Cagliari (2015, p. 31): representatividade, elegendo autores de todas


as épocas; localidade, pois poetas galegos, portugueses e castelhanos conviviam
no mesmo meio; e status social, visto que existiam trovadores pertencentes à alta
sociedade (reis, nobres e clérigos) e à baixa (jograis).

245
forma de lidar com tais questões é controlar o gênero textual selecionado e
estabelecer comparações com o momento atual, o que garante uma maior cre-
dibilidade sobre as descrições propostas para as fases anteriores do idioma.
No presente capítulo, assumimos tal perspectiva crítica e selecionamos uma
coletânea de cantigas que possibilita uma descrição fonológica das laterais do
português arcaico (PA). Nesse período da história, o idioma apresentava muita
flutuação na representação gráfica, fato que nos auxilia na validação (ou não)
de hipóteses a respeito do sistema linguístico da língua da Idade Média.

1. Corpus poético

As CSM e a lírica profana constituem um recorte extremamente rico


das obras realizadas e difundidas pela Península Ibérica. As CSM se caracte-
rizam por manifestar a religiosidade que marcava aquele período; já as poe-
sias profanas se revelam singulares por abrangerem diferentes períodos, locais,
categorias sociais e nacionalidades. O corpus do estudo, ao englobar ambas as
vertentes das poesias arcaicas, foi pensado visando representar o vasto leque de
particularidades da documentação planejada e escrita pelos trovadores.
Massini-Cagliari (2007) nota que a coletânea profana galego-portu-
guesa é composta por mais de 1.700 obras, cuja autoria é atribuída a cerca de
160 autores. Convém destacar que muito pouco dessa produção sobreviveu
até os dias atuais, restando apenas três cancioneiros, nos quais há compilações
gerais, e cinco folhas avulsas com uma ou mais poesias. As CSM, por seu turno,
são constituídas por 427 obras e se considera que sua elaboração foi obra do
monarca D. Afonso X, rei de Leão e Castela, e de seus colaboradores.
As cantigas de amor, conforme Massini-Cagliari (2007), são aquelas em
que o trovador, apaixonado, dirige-se diretamente à dama. Expressam uma
submissão cega ou absoluta à amada e, para Bueno (1968), nesse gênero há o
predomínio de um meio social cortês. Já os poemas de amigo são mais com-
prometidos com dança e música. Embora apareçam sob uma voz de mulher,
foram escritos por homens. A temática desse gênero abarca uma voz feminina
que expressa seu sofrimento amoroso pelo amigo, sua saudade e aflição devido

246
à sua ausência, sua reclamação e lamento pelos obstáculos impostos pela sua
mãe de ver o amado e mesmo seu agradecimento a ela pela ajuda e compreen-
são. Por fim, as obras de escárnio e maldizer abrangem sátiras morais, literárias e
políticas, maledicências pessoais, tensões, prantos e paródias. Mongelli (2009)
conta que esses cantares, além de referenciarem personagens, locais e situa-
ções concretas, fornecendo um rico panorama do cotidiano feudal, ganharam
prestígio por conterem comicidade.
No que se refere aos cantares religiosos, Leão (2007) e Massini-Cagliari
(2015) pontuam que a coletânea foi elaborada na segunda metade do século
XIII e que, se seu autor não fosse o rei, ela nunca chegaria a existir, porque a
sua condição régia forneceu os meios necessários para executar tão luxuoso
feito. Leão (2007) conta que o próprio rei compôs e traduziu muitos textos,
contudo, delegou a maioria da produção a seus colaboradores.2 Cabe expor que
a língua materna de D. Afonso X era o castelhano, embora as CSM tenham
sido elaboradas em galego-português, língua apreciada na época arcaica como
sendo mais apropriada à produção artística.

2. Metodologia

O método escolhido se embasa na observação da possibilidade de varia-


ção da escrita na representação dos segmentos laterais. A verificação de todos
os contextos em que ocorre <ll/lh> duplo dentro da palavra, bem como os dis-
tintos tipos de variação identificados nos cancioneiros, foi empreendida com
sucesso, o que revela que o método usado se mostrou satisfatório.
O ponto inicial deste trabalho foi a coleta de todos os vocábulos escritos
com consoantes laterais no corpus. Os termos localizados foram agrupados por
poesia e gênero, e sistematizados em quadros classificatórios, nos quais se ana-

Parkinson (1998) expõe que os colaboradores do rei só poderiam ter sido os tro-
2

vadores conhecidos daquela época. Apesar dos esforços dos pesquisadores, ainda
restam muitas dúvidas sobre quais deles, dentre tantos, fizeram parte da equipe do
monarca.

247
lisou a ocorrência dos segmentos laterais de acordo com sua posição na sílaba
e na palavra. É importante entender que a posição ocupada na unidade silábica
é determinante para o tipo de realização da consoante. Assim sendo, os dados
de laterais duplas na grafia foram confrontados em distintos ambientes, como
ataque e coda.
No nível fonológico, o ambiente relevante para classificar um segmento
duplicado como simples ou geminado é sua ocorrência em começo de sílaba
e meio de palavra. No termo moller, por exemplo, a lateral <ll> [=/ʎ/] inicia a
segunda sílaba e preenche o centro da palavra, ambiente que se configura como
ideal para que possamos descobrir se esse segmento da língua trovadoresca
ocupa, de maneira simultânea, a coda da primeira sílaba (moʎ), travando-a, e
o ataque da sílaba subsequente (ʎer), em que se realiza foneticamente. O con-
texto de travamento silábico é um dos pontos principais desta análise, visto
que o comportamento dos elementos laterais nessa posição pode mostrar se
ll/lh apresentava uma duração maior do que l simples no período medieval da
língua portuguesa.
Após o mapeamento das 250 cantigas que formam o corpus, os dados
foram examinados de forma qualitativa, tendo como embasamento teórico os
modelos fonológicos não-lineares. O trabalho aqui desenvolvido consiste em
uma análise histórica, embora não vise a elaboração de uma pesquisa diacrô-
nica. Assim, volta-se à construção de uma caracterização sincrônica de uma
fase do passado (Mattos; Silva, 1989). Dentro da perspectiva aqui adotada,
nenhum dado pode ser desconsiderado, na medida em que até mesmo um
dado isolado de variação pode trazer pistas importantes acerca dos limites
das possibilidades e impossibilidades do léxico, que nunca se findam, pois o
sistema linguístico de toda língua é dinâmico.

3. Um olhar para a teoria: breves considerações sobre sílaba e geminação

Como já dito, o estudo empreendido é norteado pelos modelos fonoló-


gicos não-lineares, em especial pelas teorias métrica e autossegmental. Agora,
refletiremos, brevemente, acerca da sílaba e da geminação. Convém ressaltar

248
que a nossa intenção não é concluir qualquer discussão sobre essas temáticas,
mas sim oferecer um panorama geral das questões pertinentes ao trabalho que
ora apresentamos.
Quando as fonologias não-lineares surgiram, a noção de sílaba foi apro-
fundada, fato que conduziu a uma nova representação. Segundo Collischonn
(2005), a Fonologia Autossegmental (FA) prevê que a organização interna das
sílabas é constituída por camadas independentes, uma das quais representa as
sílabas, que estão unidas de forma direta aos elementos. Assim, a relação que
se estabelece entre os segmentos é igual. Alves (2017) pontua que, na FA, a
unidade silábica se define pela ausência de uma hierarquia interna entre os
elementos que a constituem.
Na Fonologia Métrica (FM), pelo contrário, os segmentos que com-
põem as sílabas estão estruturados hierarquicamente. Assim sendo, a sílaba
conta com um ataque (A) ou onset (O), e com uma rima (R), que integra
um núcleo (Nu) e uma coda (Co3). Qualquer uma dessas posições, exceto o
núcleo4, pode ser vazia. Essa proposta segue Selkirk (1982) e retrata um rela-
cionamento mais estreito entre a vogal do núcleo e a consoante da coda do
que entre essa vogal e a consoante do onset. Isto posto, a representação da
autora garante uma maior inter-relação entre as unidades do núcleo e da coda.
A organização pensada por Selkirk (1982) faz com que seja possível aplicar
regras fonológicas em constituintes específicos da sílaba, sem que seja preciso
abranger a sílaba inteira.
Alves (2017, p.126) comenta que a posição assumida pelas vogais e con-
soantes na sílaba determina o seu caráter distintivo ou alofônico. À vista disso,
a discussão do estatuto fonológico do segmento não pode estar desvinculada
de considerações sobre a estrutura da sílaba do idioma focalizado. Afinal, con-
forme explica Massini-Cagliari (1992), a sílaba consiste em uma unidade

Freitas e Santos (2001) representam a posição de coda como “Cd”.


3

Em relação ao português europeu, Freitas e Santos (2001) consideram que a posição


4

de núcleo da sílaba pode ser vazia, no caso das chamadas “consoantes mudas”.

249
fundamental da Fonologia dos idiomas, sendo um domínio no qual se dá a
aplicação de diversos fenômenos fonológicos.
Vários idiomas apresentam a distinção entre sílabas leves e pesadas,
sendo a composição da sílaba um fator decisivo para o peso (ou quantidade)
da sílaba. As sílabas pesadas são aquelas em que mais de um elemento ocupa
a rima. Logo, as sílabas compostas somente por vogais são leves. Collischonn
(2005), com base em Hogg e McCully (1987) e Hayes (1995), pontua que a
posição de ataque é irrelevante para o peso da sílaba, isto é, ataques ramificados
não fazem com que a sílaba seja pesada.
Hyman (1975) expressa que as sílabas consistem em unidades de peso,
tradicionalmente conhecidas como moras (μ). Tal proposta defende que uma
sílaba pesada contém duas moras e uma leve, uma mora. O estudo da abor-
dagem moraica se revela essencial, visto que oferece um tratamento para os
segmentos geminados. Na teoria moraica, um elemento longo é representado
como duplamente associado e um simples, com uma única linha de associação.
A consoante do tipo geminada detém uma mora na subjacência e ocupa, ao
mesmo tempo, a coda e o ataque. A quantidade silábica é considerada como
uma oposição binária, sendo 2 (μμ) o máximo de moras que uma sílaba pode
comportar. Mesmo se alguma consoante estiver atrelada a sílabas CVC ou
CVV, ela é integrada à última mora e não fornece mais peso à sílaba.
Com relação à geminação, Goldsmith (1990) esclarece que, se duas con-
soantes idênticas aparecem em ambiente intervocálico, elas pertencem a duas
sílabas diferentes, isto é, o primeiro segmento compõe a coda da sílaba da
esquerda e o segundo, o ataque da sílaba da direita. Acerca do peso das gemi-
nadas, têm-se que elas carregam apenas uma mora, uma vez que uma parte da
consoante se situa na coda da sílaba precedente e a outra no ataque da sílaba
seguinte; e o ataque não porta mora, não contribuindo, portanto, para o peso
da sílaba (Perlmutter, 1995). Em 1, elucidamos o exposto:

250
(1)

Perlmutter (1995) pontua que não é possível introduzir um ou mais


elementos no interior das geminadas que se situam em contexto intervocálico,
pois compreendem um único segmento consonantal que vale por dois. Dentro
das teorias não-lineares, o jeito mais correto de reproduzir consoantes desse
tipo e vogais longas é por meio da múltipla associação.

4. Levantamento dos dados

Como mencionado, este estudo visa trazer novas informações sobre o


PA, especialmente em relação ao comportamento fonológico das consoantes
laterais duplas. Para tanto, coletou-se uma amostragem de 1.893 ocorrências
de <ll/lh> no corpus examinado. Cabe reforçar que todos os casos foram orga-
nizados segundo o contexto ocupado na sílaba e na palavra e que o montante
recolhido nas 250 cantigas foi tido como satisfatório para efeito de análise dos
segmentos.

Tabela 1 – Mapeamento do grafema <ll/lh> quanto à posição em que se encontra na sílaba

Posição na sílaba <ll/lh>

Começo 1.893

Meio -

Final -

Fonte: Elaboração própria.

251
Tabela 2 – Mapeamento do grafema <ll/lh> quanto à posição em que se encontra na palavra.

Posição na palavra <ll/lh>

Começo 823

Meio 1.070

Final -

Fonte: Elaboração própria.

A totalidade de ocorrências de <ll/lh> apareceu em começo de sílaba,


o que pode retratar que o segmento representado por esse grafema especí-
fico poderia ser uma geminada, que ocupa, ao mesmo tempo, a coda da sílaba
anterior e o ataque da seguinte. Na tabela 2, constatamos que 1.070 (de 1.893)
consoantes figuram no contexto intervocálico, posição tida como ideal para se
ter uma geminação. O mapeamento dos fólios arcaicos mostrou uma ampla
variedade de formas gráficas, que divergem não somente de um cancioneiro
para outro, mas, também, no interior de cada compilação. Dentro de algumas
poesias, uma palavra pode manifestar mais de uma escrita, vestígios de um
momento no qual ainda não existia uma norma ortográfica estabelecida por
lei. No corpus, com relação à consoante aqui focalizada, encontramos 3 tipos
de variação. Em decorrência da extensão dos dados localizados, retratamos, no
quadro 1, três exemplos de cada tipo de variação mapeada. Portanto, o quadro
1 expõe somente uma pequena parcela das variações apuradas.

252
Quadro 1 – Tipos de variações encontradas

Tipo de variação Palavra Variação


- fala - falla
L-LH-LL - alhur5 - alur
- tolhestes6 - tolestes
- melhor - mellor
LH-LL - molher - moller
- conselho - consello
- talhar7 - tali or
L-LH-LL-LI - Basilio8 - Basillo
- Basilio - Basilo
Fonte: Elaboração própria.

5. Análise dos dados

A posição intervocálica é a única que viabiliza a geminação de uma


consoante duplicada do ponto de vista fonológico da língua, pois elemen-
tos dessa natureza preenchem dois contextos temporais na estrutura interna
da sílaba. A referida posição propicia a geminação em virtude de apresentar
uma sílaba aberta antes do segmento duplo, ou seja, uma sílaba leve V ou CV.
Assim, como a rima da sílaba precedente dispõe somente do núcleo ocupado,
a consoante dobrada pode se dividir e ocupar a coda da sílaba anterior, que
estava anteriormente vazia, e o ataque da sílaba subsequente, em que se realiza
foneticamente. Na sequência, mostramos o exposto por meio de uma Planilha
Silábica apresentada em 2.

5
Segundo (Mettmann, 1972, p.15), alhur significa em outra parte (adjetivo).
6
Tolhestes é a flexão do verbo tolher, que significa prender, tomar, largar, tirar
(Mettmann, 1972, p. 303).
7
Talhar quer dizer cortar (Mettmann, 1972, p. 295).
8
São Basilio, bispo de Cesarea (Mettmann, 1972, p. 40).

253
(2)

Assim como nas demais posições nas quais a lateral dupla pode aparecer
dentro da sílaba e da palavra, o ambiente em questão (no qual <ll/lh> se situa
no começo da sílaba e no meio da palavra) permite a consideração de duas
possibilidades antagônicas de compreensão: a primeira consiste na ponderação
da não geminação da lateral <ll/lh> entre vogais; já a segunda reconhece que
essa consoante poderia, sim, ser considerada como geminada, porque expressa
uma duração maior do que sua correspondente simples. Neste estudo, assumi-
mos que a segunda interpretação se configura como a mais adequada. A partir
de agora, este estudo se voltará à comprovação da geminação da lateral dupla
intervocálica da época arcaica.
Wetzels (2000, p. 6) expõe que, além da rótica rr, a nasal nh e a lateral
lh palatais também seriam geminadas fonológicas na posição intervocálica no
sistema do português brasileiro. Para defender a sua hipótese, o autor apresenta
os seguintes apontamentos:

As soantes palatais /ñ, ʎ/ do Português Brasileiro (PB) se comportam, sob


muitos aspectos, diferentemente das soantes não palatais. Em se tratando
da nasalização da vogal precedente, a nasal-palatal se comporta como se
fosse uma consoante na coda, embora ela ocorra exclusivamente em posição
intervocálica. Acrescentado a isso, as sílabas que precedem uma soante pala-
tal são sempre leves, como pode ser observado não só na completa ausência
de rimas pesadas precedendo uma soante palatal intervocálica, como tam-
bém no algoritmo de silabificação, que cria hiato no caso de seqüências de
Vogal + Vogal Alta que precedem /ñ, ʎ/ (moinho, faúlha), enquanto antes
de /m, n, r, l/, os ditongos decrescentes surgem obrigatoriamente (queima,

254
baila). Além disso, se uma soante palatal ocorre como onset de uma sílaba
em final de palavra, como em alcunha, o acento da palavra nunca cai na
antepenúltima sílaba, embora o acento proparoxítono seja um padrão pos-
sível no PB.

É preciso frisar que o estudioso teceu tais argumentos sobre o português


contemporâneo. Na língua portuguesa da fase medieval, o elemento ll/lh não
ocorre exclusivamente no ambiente intervocálico, podendo figurar depois de
sílabas fechadas por segmento consonantal (como, por exemplo, em nenllur9 e
senlleira10) e no início da palavra (às vezes, logo após termos terminados com
ditongos decrescentes ou consoantes).
De acordo com Wetzels (2000), nh e lh nunca aparecem no ambiente
inicial do vocábulo em termos do PB, exceto em empréstimos vindos de outras
línguas. Sendo assim, vocábulos do português que têm origem estrangeira,
como nhoque (do italiano gnocchi) e lhama (do espanhol llama), podem ser pro-
nunciados pelos falantes brasileiros com a inclusão de uma vogal [i] antes de ɲ
e ʎ ([iɲͻki] e [iʎama]), fato que faz com que essas consoantes passem a figu-
rar em ambiente intervocálico. Todavia, em português arcaico, a lateral dupla
ocorre em posição de ataque inicial de palavra em pronomes pessoais oblíquos.
Em relação ao contexto intervocálico, entendemos que os argumentos
de Wetzels (2000) para o PB podem ser comprovados também para o PA. No
corpus, não foram encontrados dados em que um ditongo integrava a sílaba
anterior à líquida <ll/lh>, fato que favorece a consideração da geminação dessa
consoante, porque a coda da sílaba precedente precisa estar livre para poder
abrigar parte do segmento. Assim como em Massini-Cagliari (2015) e Barreto
(2019), adotamos a representação de Zucarelli (2002) acerca da configuração
dos ditongos daquela época.
Zucarelli (2002) defende que a semivogal do ditongo se situa na coda da
sílaba e não no núcleo e exerce a mesma função de uma consoante que fecha a

Nenllur é um adjetivo que significa em nenhum lugar (Mettmann, 1972, p. 205).


9

Senlleira é um adjetivo que quer dizer só, sozinho, único (Mettmann, 1972, p. 283).
10

255
sílaba. O núcleo do PA apresenta uma única posição de ancoragem para a vogal,
não podendo ser ramificado. Na presença de um ditongo, portanto, a rima da
sílaba passa a abrigar dois elementos vocálicos, um no núcleo e um na coda, fato
que impede a existência de uma consoante geminada depois de sílabas constituí-
das por ditongos. Abaixo, apresentamos a estrutura das sílabas com ditongos no
português medieval postulada no trabalho de Zucarelli (2002).
(3)

Outro forte argumento é o fato de que não foram encontradas no mate-


rial proparoxítonas com consoantes laterais e vibrantes duplas, fato favorá-
vel para a consideração da geminação de tais consoantes. Segundo Massini-
Cagliari (2015, p.123), a língua medieval era sensível ao peso das sílabas para a
localização do acento tônico. O que isso significa é que qualquer sílaba pesada
(isto é, com duas ou mais moras) localizada na última ou na penúltima posição
silábica do termo atrai para si o acento principal.
Como dito acima, não foram observadas proparoxítonas com con-
soantes líquidas duplas no material analisado. Tal fato reforça a interpretação
desses segmentos como sendo geminados no nível fonológico, uma vez que a
existência de uma consoante geminada no interior da palavra impede que o
acento retroceda para a antepenúltima sílaba. Para exemplificar, usaremos o
termo parella, que é paroxítono no PA. Ao considerarmos que a lateral dupla
presente na última sílaba dessa palavra compreende uma geminada, temos a
seguinte representação:

256
(4)

Como ilustrado, a existência de uma consoante geminada na última


sílaba de parella fez com que a penúltima sílaba ficasse pesada, com duas moras
na rima. Deste modo, quando há ɲ ou ʎ na penúltima sílaba, essa sílaba fica
pesada e, por causa disso, não pode ser pulada, isto é, o acento não pode figurar
na antepenúltima sílaba da palavra. Logo, a consideração de rr e ll/lh como
geminados no contexto intervocálico explica a inexistência, nas cantigas inves-
tigadas, de proparoxítonas com líquidas laterais e róticas duplas no início da
penúltima sílaba.
Além da ausência de ditongos antes de ll/lh e de proparoxítonas com ll/
lh (e rr) no início da penúltima sílaba, a divisão silábica de algumas palavras
nos códices se configura como outro argumento interessante a favor da con-
sideração da geminação intervocálica de <ll/lh> naquele período. Na docu-
mentação poética analisada foram encontradas ocorrências nas quais o próprio
responsável pela cópia do material registrou a lateral ll separadamente, repre-
sentando uma parte do elemento na coda da sílaba anterior e uma parte no
ataque da sílaba seguinte.
Esse tipo de representação gráfica da líquida lateral dupla foi locali-
zado nos manuscritos de duas maneiras distintas: dentro da palavra em posição
intervocálica e na união de dois termos em contexto intervocálico. O segundo

257
caso ocorreu apenas uma vez e se configura como o único dado de separação silá-
bica de <ll> em composições profanas. Todas as outras ocorrências foram encon-
tradas em CSM, mais especificamente nos cancioneiros T e E. Nenhuma ocor-
rência dessa natureza foi observada no códice To. A seguir, mostramos os dados
de segmentação silábica de <ll> obtidos nas edições fac-similadas das cantigas.

Figura 1 – Palavra apparellados escrita como apparel-lados.


Trecho retirado do E (Escorial Músicos)11

Fonte: Edição fac-similada do códice Escorial


Músicos, editada por Anglés (1964, p. 43r).

Figura 2 – Palavra maravilla escrita como maravil-la.


Trecho retirado do E (Escorial Músicos)

Fonte: Edição fac-similada do códice Escorial


Músicos, editada por Anglés (1964, p.51v).

Segundo Mettmann (1972, p.22), aparellado é um adjetivo que significa prepa­rado,


11

disposto.

258
Figura 3 – Palavra moller escrita como mol-ler.
Trecho retirado do T (Escorial Rico)

Fonte: Microfilme do códice Escorial Rico,


cedido pela Biblioteca do Mosteiro de El Escorial.

Figura 4 – Palavra collia escrita como col-lia.


Trecho retirado do T (Escorial Rico)12

Fonte: Microfilme do códice Escorial Rico, cedido


pela Biblioteca do Mosteiro de El Escorial.

Figura 5 – Palavra maravilla escrita como maravil-la.


Trecho retirado do T (Escorial Rico)

Fonte: Microfilme do códice Escorial Rico, cedido


pela Biblioteca do Mosteiro de El Escorial.

De acordo com Mettmann (1972, 65), collia é o pretérito imperfeito do indicativo


12

do verbo transitivo coller, que quer dizer tomar.

259
Figura 6 – Palavras consell’achar escritas como consel lachar.
Trecho retirado do CA (Cancioneiro da Ajuda)

Fonte: Edição fac-similada do códice


existente na Biblioteca da Ajuda (1994, p.16).

Por meio da análise das imagens apresentadas acima, é possível notar


que todos os dados destacados se situam na parte inicial dos poemas, local
destinado às notações musicais. Convém ressaltar que tal fato também pode
ser constatado em relação à figura 6, retirada do CA, na qual se observa que o
espaço dedicado à transcrição musical da cantiga foi reservado; entretanto, ela
nunca chegou a ser acrescentada. Para não restar dúvidas do exposto, retrata-
mos a figura 7, que traz a estrofe completa que contém o dado e um excerto da
próxima estrofe. Como demonstrado, apenas a primeira estrofe da composição
conta com um espaçamento maior entre as linhas, uma vez que essa área seria
ocupada futuramente pela notação musical referente a esse texto. Não é possí-
vel precisar o porquê da falta da inscrição musical na cantiga, contudo, o espaço
em branco entre os versos revela que existia a intenção de inseri-la.13

13
Cabe pontuar que o Cancioneiro da Ajuda (CA) não apresenta a notação musical de
qualquer cantiga.

260
Figura 7 – Trecho da cantiga de amor, de João Soares Somesso,
Muitas vezes em meu cuidar. Trecho retirado do CA (Cancioneiro da Ajuda)

Fonte: Edição fac-similada do códice existente


na Biblioteca da Ajuda (1994, p.16).

Os casos retratados acima se configuram como um forte indício a favor


da existência da geminação, do ponto de vista fonológico, da consoante lateral
dupla do português arcaico, posto que podem revelar que os próprios escri-
bas do PA, possivelmente, entendiam ll como composto por duas unidades de
tempo, capaz, portanto, de integrar duas posições na estrutura das palavras do
português da época trovadoresca.
É necessário notar que, embora o fato de fragmentar graficamente as
consoantes líquidas laterais duplas mostre que os escribas daquele momento da

261
história do português possuíam uma excelente intuição no tocante à silabação
dos vocábulos existentes na língua, essa ação pode ser resultado simplesmente
de práticas de escrita empregadas pelos copistas nos scriptoria da Idade Média,
locais em que compartilhavam seus conhecimentos sobre o idioma de então e
interagiam com outros profissionais pertencentes à corte.
Ainda sobre os dados apurados de fragmentação gráfica das líquidas
duplas, cabe refletir que, na escrita atual do PB, os únicos casos que podem ser
separados em final de linha são ss e rr; os demais casos de dígrafos (ch, nh, lh, gu,
qu, etc.) não podem ser separados. Desta maneira, o fato de só ss e rr poderem
ser divididos em fim de linha no português moderno pode nos levar a pensar
que a separação de ss pode ter se dado em analogia à rr, pelo fato de a escrita
considerar uma consoante dobrada, mas, ao contrário da de ss, a de rr acontece
dessa maneira em razão de seu caráter geminado, desde a origem.14
Em contrapartida, foram apuradas ocorrências nas quais a divisão da
lateral dupla se deu de forma diferente da mostrada acima. Em tais casos, a
consoante ll foi mantida unida, ora antes da quebra da palavra, ora depois.
Foram localizadas três ocorrências nas CSM, 2 em poemas de amor e 1 em uma
poesia de escárnio e maldizer. É importante salientar que o fato de a consoante
em questão ocorrer registrada nos cancioneiros também de maneira unida não
descredibiliza os dados em que ll apareceu integrando coda e ataque ao mesmo
tempo. Como naquele período da língua portuguesa ainda não existia uma
norma ortográfica estipulada por lei, variações gráficas dessa natureza eram
recorrentes, o que não quer dizer que elas ocorriam de modo aleatório, sem
qualquer reflexão por parte dos trovadores e dos escribas responsáveis pelas
produções literárias e artísticas daquele momento da história.
Em seguida, destacamos os fac-símiles em que a líquida lateral ll apareceu
em uma única sílaba nas palavras que sofreram segmentação silábica.

14
Para mais informações acerca da geminação de rr no PA, consultar Barreto (2019).

262
Figura 8 – Palavra traballava escrita como traballa-va.
Trecho retirado do T (Escorial Rico)

Fonte: Microfilme do códice Escorial Rico, cedido


pela Biblioteca do Mosteiro de El Escorial.

Figura 9 – Palavra maravilla escrita como maravi-lla.


Trecho retirado do E (Escorial Músicos)

Fonte: Edição fac-similada do códice Escorial


Músicos, editada por Anglés (1964, p.94v).

Figura 10 – Palavra traballa escrita como traba-lla.


Trecho retirado do E (Escorial Músicos)

Fonte: Edição fac-similada do códice Escorial


Músicos, editada por Anglés (1964, p.107r).

263
Figura 11 – Palavra mellor escrita como me-llor.
Trecho retirado do CA (Cancioneiro da Ajuda)

Fonte: Edição fac-similada do códice


existente na Biblioteca da Ajuda (1994, p.157).

Figura 12 – Palavra mellor escrita como me-llor.


Trecho retirado do CA (Cancioneiro da Ajuda)

Fonte: Edição fac-similada do códice


existente na Biblioteca da Ajuda (1994, p.186).

Figura 13 – Palavra melhor escrita como me-lhor.


Trecho retirado do CV (Cancioneiro da Vaticana)

Fonte: Edição fac-similada do Cancioneiro


Português da Biblioteca Vaticana (1973, p.1029).

Como mostram as ocorrências expostas acima, a figura 13, retirada do


CV, é a única em que a separação silábica ocorreu somente na estrofe final do
poema.15 Logo, melhor não aparece no trecho inicial, local dedicado à notação
musical. Ademais, é o único caso em que a consoante é lh e não ll, grafia mais
contemporânea da líquida lateral duplicada.

15
Cantiga de escárnio e maldizer, de João Servando.

264
Cabe esclarecer que os dados apresentados aparecem em outros códi-
ces medievais, sem, contudo, figurarem no final do verso, ambiente favorável
à segmentação da palavra quando não há espaço suficiente para completá-la.
Para exemplificar o exposto, exibimos os demais códices em que o vocábulo
apparellados aparece. Como ilustramos por meio da figura 1, esse caso está
representado no E como apparel-lados. Já nos fólios dos códices T (figura 14)
e To (figura 15), o termo não foi separado, haja vista que o verso16 em questão
comportava a palavra inteira, não sendo preciso fragmentá-la em duas partes.

Figura 14 – Palavra apparellados escrita como


aparellados. Trecho retirado do T (Escorial Rico)

Fonte: Microfilme do códice Escorial Rico,


cedido pela Biblioteca do Mosteiro de El Escorial.

Figura 15 – Palavra apparellados escrita como


aparellados. Trecho retirado do To (Códice Toledo)

Fonte: Edição fac-similada


do códice Toledo (2003, p.43r).

Diante do exposto, o que as ocorrências coletadas nos cancioneiros reli-


giosos e profanos evidenciam é que o fato de o copista ter representado, den-
tro de alguns cantares, a líquida lateral dupla separadamente, deixando uma
parte do elemento na coda da sílaba precedente e uma parte no ataque da
sílaba seguinte, pode mostrar que ele, provavelmente, reconhecia que tal seg-
mento apresentava uma duração maior do que o correspondente simples l.
Sendo assim, ao admitir que ll contava com duas posições dentro da palavra,

16
Transcrição do verso 11 da CSM 15: porend’ estan sempr’ apparellados (Mettmann,
1986, p. 93).

265
representou na escrita tal consoante segmentada a fim de expressar sua duração
em duas unidades de tempo.
As palavras consell’achar registradas como consel lachar retratam o que foi
comentado, dado que, mesmo se tratando de uma posição intervocálica criada
por meio da junção entre dois vocábulos diferentes, manifestam um reconhe-
cimento, por parte de quem escreveu o poema, do contexto intervocálico como
favorável à geminação. Além disso, consel lachar está redigido de modo bastante
separado no CA, o que pode indicar que o escriba desejava destacar na escrita
o fato de o elemento duplicado ll figurar em duas sílabas simultaneamente.
O caso em questão se particulariza por ser o único em que a lateral dupla foi
representada de forma apartada sem estar em um contexto em que a separação
silábica era necessária em decorrência de uma ausência de espaço no verso para
abrigar a palavra na íntegra.
Como falamos no começo desta análise, o contexto intervocálico,
assim como os outros ambientes em que a líquida lateral dupla pode figurar no
interior da sílaba e da palavra, viabiliza duas possibilidades de interpretação:
considerar ou não a existência da geminação naquela etapa do português. Em
vista disso, cada uma dessas interpretações possui uma configuração diferente
na Planilha Silábica. Abaixo, retratamos a palavra moller, ocorrência muito
frequente no corpus aqui analisado, de duas formas: a primeira assumindo a
geminação de ll entre vogais e a segunda admitindo a não geminação dessa
consoante no mesmo contexto.

(5)

266
(6)

Com base nas evidências apresentadas, defendemos que a Planilha


Silábica representada em 5 é a que mais bem ilustra a complexidade do seg-
mento lateral duplo ll na fase arcaica, haja vista que expressa a mesma repre-
sentação encontrada nos fac-símiles medievais, que são a fonte original dos
dados mapeados. Como já refletimos, o fato de os trovadores e copistas do
medievo terem registrado ll de forma separada dentro da palavra não pode ser
visto como mero acaso ou aleatoriedade, pois esses indivíduos possuíam cons-
ciência linguística e pensavam sobre a língua que empregavam todos os dias
para desempenhar seu ofício.
Ademais, como demonstramos, a divisão silábica de elementos duplos
era realizada com outros segmentos além de ll e era feita, inclusive, quando
ainda havia espaço em branco ao final da linha, ou seja, quando não existia a
necessidade de repartir a última palavra do verso em duas partes devido ao tér-
mino do espaço em branco. A quantidade de casos de segmentação da lateral
dobrada ao final do verso foi significativa para reconhecermos que não se tra-
tava de uma atitude de um único trovador ou copista, já que dados desse tipo
foram localizados em dois cancioneiros religiosos e em um códice profano.
Desta forma, as ocorrências em questão foram redigidas por mais de uma pes-
soa e em datas possivelmente diferentes.
Ao identificarmos a geminação da líquida lateral dupla na posição
intervocálica como a interpretação que mais bem define a natureza desse

267
segmento durante a Idade Média, admitimos a existência de sílabas bimorai-
cas antecedendo a referida consoante, tendo em vista que, sendo geminada,
carrega uma unidade de peso. Portanto, como geminada, ll preencheria coda e
ataque conjuntamente, fazendo com que a primeira sílaba a receber parte do
elemento seja pesada, com rima ramificada. A segunda sílaba que abriga parte
da consoante, por sua vez, sendo apenas CV (por exemplo), seria leve, com uma
única mora, uma vez que o contexto de ataque não apresenta uma mora inde-
pendente, isto é, não contribui para o peso da sílaba.
Portanto, depreendemos que a lateral dupla ll/lh, quando está em
ambiente intervocálico, pode ser interpretada como uma geminada fonoló-
gica no falar arcaico. Deste modo, concluímos que, no referido contexto da
sílaba e do vocábulo, a lateral dupla ll/lh tem uma duração temporal maior se
comparada à correspondente simples l. Diante da investigação realizada neste
capítulo, no nível fonológico, ll/lh pode ser entendida como geminada na época
medieval. Isto posto, nos filiamos ao estudo feito por Wetzels (2000) ao assu-
mirmos a existência de outras geminadas no sistema linguístico da língua por-
tuguesa de outrora.

Considerações finais

A análise dos dados de variação evidenciou que os resultados obtidos


foram importantes para a compreensão do comportamento fonológico dos ele-
mentos laterais duplos no decurso da Idade Média. A metodologia de estudo
assumida se embasou na verificação da possibilidade de variação na represen-
tação da grafia das laterais, a fim de estabelecer as relações existentes entre
letras e sons, e na análise da consoante dupla ll/lh em todas as posições silábicas
possíveis. Pela apuração das ocorrências, foi possível depreender que, no con-
texto intervocálico, a lateral dupla pode ser considerada como geminada, no
nível fonológico, pois ocupa dois ambientes temporais na organização interna
da sílaba e, portanto, tem uma duração maior do que sua correspondente sim-
ples. Não encontramos no material investigado nenhum caso de ditongo antes

268
de ll/lh, o que contribui para a nossa interpretação, visto que a coda da sílaba
anterior deve ser livre para poder receber parte do segmento.
É importante frisar que este tipo de análise apenas pôde ser feito devido
à adoção de um corpus poético, capaz de fornecer vestígios e pistas seguras sobre
a prosódia “inaudível” do PA (Mattos, Silva, 2008, Massini-Cagliari, 2021). As
poesias da fase arcaica, segundo pontua Massini-Cagliari (2015), viabilizam
estudos como este, pois possuem informações sobre os elementos segmentais
do texto, como o lugar dos acentos nos versos e a quantidade de sílabas poéti-
cas, dados através dos quais é possível apurar quais são os padrões acentuais e
rítmicos da língua em que certa obra foi escrita. Logo, este capítulo também
busca mostrar a pertinência de se adotar obras poéticas a fim de investigar
aspectos segmentais e suprassegmentais de períodos passados de uma língua
que não possuem nenhum tipo de registro que não seja escrito. Portanto, este
trabalho visa divulgar as relevantes descobertas linguísticas encontradas nos
textos arcaicos e o potencial desses documentos como base para a realização de
pesquisas sobre a fonologia da língua no período trovadoresco.
Por fim, é cabe salientar que essas reflexões somente foram possíveis a
partir do advento dos modelos fonológicos não-lineares, que determinaram
que o peso das unidades silábicas e a estrutura fonológica de consoantes (como
elementos considerados como simples ou geminados) depende da distribuição
dos segmentos no constituinte silábico.

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271
FRICATIVAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO:
DA PRODUÇÃO À PERCEPÇÃO

Audinéia Ferreira-Silva

Introdução: produção das fricativas - características gerais

As consoantes produzidas pela turbulência gerada com o estreitamento


da passagem de ar entre dois articuladores são denominadas de fricativas. No
Português, os sons fricativos que ocupam posição de onset silábico são: labio-
dentais [f, v], alveolares [s, z], palatoalveolares [ʃ, ʒ], velares [x, ɣ], uvulares [χ, ʁ]
e glotais [h, ɦ] (Cagliari, 2007, Silva, 2011). Podemos observar a ocorrência
desses sons nos exemplos abaixo, listados por Cagliari (2007).

Quadro 1– Sons fricativos do Português

Ponto de articulação Símbolo fonético Exemplo


Labiodental [f, v] faca [faka]; vaca [vaka].
Alveolar [s, z] caça [kasa]; casa [kaza].
Palatoalveolar [ʃ, ʒ] chá [ʃa]; já [ʒa].
Velar [x, ɣ] rato [xato]; barriga [baɣiga].
Uvular [χ, ʁ] roda [χɔdɑ]; curral [kuʁɑɯ].
Glotal [h, ɦ] roda [hɔdɑ]; roda [ɦɔdɑ].
Fonte: Adaptado de Cagliari (2007).

Já na posição de coda silábica temos o que Camara Jr. (1970) chamou


de neutralização entre as fricativas alveolares e palatoalveolares (Camâra Jr.,
1970, p. 52).

Podemos então falar numa neutralização entre as 4 consoantes em proveito


de um único traço distintivo permanente: a fricção produzida pela língua.

273
O resultado de uma neutralização é o que Trubetzkoy e seus companheiros
do Círculo Linguístico de Praga popularizaram com o nome de ‘arquifo-
nema’[...] A sua representação convencional em transcrição fonêmica é pela
letra do fonema não-marcado em maiúscula; no nosso caso /S/.

No Português Brasileiro, doravante PB, a realização de fricativas em


posição de coda silábica pode variar em ponto de articulação, a depender do
dialeto, e em sonoridade, a depender da consoante seguinte. Assim, nessa posi-
ção, em alguns dialetos, encontramos as fricativas alveolares, como ocorre em
São Paulo, Minas Gerais; e em outros dialetos, as fricativas palatoalveolares,
como no Rio de Janeiro e em algumas cidades da Bahia. Ademais, quanto
à sonoridade, as fricativas em posição de coda assumem a sonoridade da
consoante seguinte.

1. Modelo de produção das fricativas

Uma das principais teorias de produção da fala, a Teoria Fonte-Filtro de


Produção da Fala, foi proposta por Gunnar Fant em 1960 e tem como um dos
princípios fundamentais a possibilidade de separação entre a Fonte de energia
sonora e o Filtro, ou ressoador, que, na produção da fala, é o trato vocal. Nesse
sentido, a teoria propõe a simplificação do trato vocal na forma de um tubo
acústico, que para as vogais é uniforme e para as consoantes apresenta uma
obstrução, seja ela uma fricção, como nas fricativas, seja ela uma obstrução
completa por dado momento.
No que tange às fricativas, a Teoria Fonte-Filtro apresenta o modelo de
tubo acústico com duas cavidades, posterior e anterior à constrição, onde a tur-
bulência do ruído, característica desses sons, é produzida, como exemplificado
na figura abaixo.

274
Figura 1 – Modelo de tubo acústico para a produção de fricativas

Fonte: Kent e Read (1992, p. 32).

De maneira simplificada, podemos dizer que para a produção das fri-


cativas é necessário que se cumpram dois passos: 1º- produção de uma forte
constrição em algum ponto do trato vocal; e, 2º- passagem do ar em alta velo-
cidade através dessa constrição. De acordo com Kent e Read (1992), quando
as condições físicas são satisfeitas, a passagem de ar gera a turbulência na vizi-
nhança da constrição. Esta pode ocorrer em qualquer ponto do trato oral,
desde a glote até os lábios, e corresponde ao ponto de articulação das fricativas.
Seguindo os pressupostos da Teoria Fonte-Filtro, na produção das fri-
cativas, a Fonte sonora fornece a energia necessária para a passagem de ar em
alta velocidade e o trato vocal, com as diferentes modulações das constrições,
age como Filtro que produzirá os sons fricativos, com características acústicas
diferentes em função desse modo de produção.
Parâmetros como local da constrição, comprimento da cavidade ante-
rior e posterior, presença ou não de obstáculo são fundamentais para a caracte-
rização das fricativas (Shadle, 1985, Kent & Read, 1992). Quando a cavidade
anterior é muito curta, como nos casos das fricativas labiodentais [f, v], sua
frequência de ressonância mais baixa é alta demais para oferecer um formato
considerável da energia do ruído. Por isso, a frequência do ruído desses sons
tende a ser mais baixa, quando comparada com outras fricativas.

275
1.2 Caracterização acústica das fricativas do PB

1.2.1 Duração segmental das fricativas


A literatura acerca da caracterização acústica das fricativas evidencia
que a duração das fricativas é um parâmetro robusto para diferenciar fricati-
vas surdas de fricativas sonoras. Trabalhos como os de Hogan and Rozsypal
(1980), Crystal and House (1988), Stevens et al. (1992), Docherty (1992),
Pirello et al. (1997), Jesus (2001) atestam que as fricativas surdas possuem a
duração do ruído maior do que as fricativas sonoras.
No PB, o trabalho de Samczuk e Gama-Rossi (2004) evidencia que os
resultados encontrados no seu trabalho para a duração das fricativas se asseme-
lham aos encontrados em outras línguas, como nos trabalhos acima menciona-
dos. As autoras afirmam que, no PB, as fricativas surdas são mais longas que as
sonoras. De acordo com elas, a fricativa alveolar surda mostrou-se 64ms mais
longa do que a sua contraparte sonora; a fricativa alveolar surda se mostrou
63ms mais longa do que a alveolar sonora; e a fricativa palatoalveolar surda se
difere em 50ms da fricativa palatoalveolar sonora.
Em seu trabalho sobre as fricativas alveolares e palatoalveolares, Haupt
(2007) evidencia que, para o PB, as fricativas surdas são mais longas que as
sonoras. Os dados da autora mostram que, em posição de onset silábico, a fri-
cativa alveolar surda apresentou duração média de 117ms e 141ms em síla-
bas CV e CVC, respectivamente. A contraparte sonora apresenta, na mesma
posição, duração média de 72ms e 69ms em sílabas com estrutura CV e CVC,
respectivamente.
Silva (2012) também atesta que as fricativas surdas são mais longas do
que as sonoras. A autora utilizou a duração relativa, obtida a partir de uma
normalização da duração absoluta das fricativas, para caracterizar a duração
segmental desses sons. Segundo a autora, a duração relativa é um parâmetro
relevante para diferenciar as fricativas quanto à sonoridade, como relatado por
outros pesquisadores. Além disso, a duração relativa das fricativas se mostrou
relevante para diferenciar as fricativas quanto à posição silábica, pois as fricati-
vas tendem a apresentar duração relativa maior em posição de onset do que em
coda, como exemplificado no gráfico 1 abaixo.

276
Gráfico 1– Comparação das médias da duração
relativa das fricativas em contexto de vogal /a/

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Como podemos observar no gráfico acima, para o contexto de vogal /a/,


em posição de onset inicial, as fricativas palatoalveolares são as que apresentam
maior duração relativa, seguidas das alveolares e depois das labiodentais. Nessa
posição, podemos observar que as fricativas palatoalveolar e alveolar sonora
apresentam quase que a mesma porcentagem de duração relativa.
Já em posição de onset medial, podemos observar que as fricativas
alveolares são as que apresentam duração relativa maior, seguidas das labioden-
tais e palatoalveolares. Podemos notar que, as fricativas labiodental e palatoal-
veolar surdas apresentam quase que a mesma porcentagem de duração relativa.
Entre as sonoras, podemos observar que as fricativas palatoalveolar e alveolar
apresentam quase que a mesma porcentagem de duração relativa, sendo que, a
palatoalveolar apresenta uma porcentagem um pouco maior. Abaixo segue os
resultados de Silva (2012) para as fricativas em contexto de vogal /i/.

277
Gráfico 2 – Comparação das médias da duração
relativa das fricativas em contexto de vogal /i/

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Em contexto de vogal /i/, como podemos observar no gráfico 2 acima,


a fricativa palatoalveolar é a mais longa, ou seja, é a que apresenta maior por-
centagem de duração relativa entre as fricativas surdas, seguida da alveolar e
labiodental, em ambas as posições silábicas. Entre as sonoras, a fricativa alveo-
lar é a que apresenta maior duração relativa, seguida da palatoalveolar e depois
da labiodental, tanto em onset inicial quanto em onset medial.

Gráfico 3 – Comparação das médias da duração


relativa das fricativas em contexto de vogal /u/

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

278
No gráfico 3, podemos observar que, em contexto de vogal /u/, a frica-
tiva palatoalveolar surda é a que apresenta maior duração relativa, em posi-
ção de onset inicial, seguida da labiodental e depois da alveolar. Ainda nessa
posição, a fricativa alveolar é a que apresenta maior porcentagem de duração
relativa, entre as sonoras. Em posição de onset medial, as fricativas alveolares
são as que apresentam maior duração relativa, seguidas das palatoalveolares e
labiodentais.
Como ficou evidenciado nos resultados acima, as fricativas surdas (labio-
dentais, alveolares e palatoalveolares) apresentam, categoricamente a porcenta-
gem de duração relativa maior que sua contraparte sonora, fato também ates-
tado em outras línguas por pesquisadores como Jesus (2001) para o Português
Europeu, por exemplo.
A explicação para esse fato se deve, em grande parte, ao mecanismo de
produção da fala, como explicitado antes com base na Teoria Fonte-Filtro.
Durante a produção dos sons, o fluxo de ar que vem dos pulmões possui uma
frequência de energia, que é gerada pelo movimento e choque das moléculas
de ar. Quanto maior o número de moléculas, maior a quantidade de ener-
gia gerada. A produção dos segmentos surdos, incluindo as fricativas surdas,
conta apenas com a energia gerada por essas moléculas que vem dos pulmões.
No caso dos segmentos sonoros, uma parte das moléculas de ar fica retida na
laringe quando as pregas vocais se fecham para vibrar, ou seja, para vozear.
Assim, a quantidade de moléculas de ar que chega até a obstrução é menor,
logo, apresenta uma quantidade menor de energia e menor duração (Kent,
Read, 1992).
Com relação à duração das fricativas na posição de coda silábica, os
resultados de Silva (2012) evidenciam que a sonoridade da fricativa alveolar
(realização predominante no dialeto estudado) foi condicionada pelo contexto
seguinte, pois, como se sabe, a sonoridade dos segmentos pode ser determinada
pelo contexto seguinte. As fricativas que ocupavam a posição de coda medial
foram realizadas como alveolares surdas e as fricativas em posição de coda final
foram realizadas como alveolares sonoras, devido ao contexto seguinte. No pri-
meiro caso, havia a oclusiva /p/ no onset da sílaba seguinte e, no segundo caso,

279
a oclusiva /b/ no início da palavra “baixinho”. Seus resultados são exemplifica-
dos no gráfico 4.

Gráfico 4 – Porcentagem de Duração Relativa


das fricativas alveolares em posição de coda

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Como ficou evidenciado no gráfico 4 acima, as fricativas alveolares são


sempre mais longas em posição de coda medial do que em coda final. Cabe lem-
brar que, a fricativa alveolar em coda medial foi realizada sempre como surda e
em coda final sempre como sonora. Desta forma, podemos levantar a hipótese
de que uma maior duração relativa da fricativa alveolar em coda medial se deve
ao fato dela ser realizada como surda, enquanto que, em posição de coda final
temos a fricativa alveolar sonora.

1.2.2 Frequência do ruído fricativo


Durante muitos anos, a análise do espectro de frequência das fricativas
se deparou com dificuldade advindas dos métodos utilizados. Isso porque, dada
a característica aperiódica do ruído fricativo, os métodos utilizados nem sem-
pre eram precisos e completos quanto às análises empreendidas. Nesse sen-
tido, o trabalho de Forrest et al. (1988) foi de importância fundamental para
a caracterização das fricativas, não apenas pela descrição feita, mas pela intro-
dução no campo da fonética acústica de um novo método de análise das fri-
cativas. Neste trabalho, os autores propuseram uma nova métrica quantitativa

280
para a caracterização das obstruintes surdas do inglês, feita por meio da análise
estatística das características espectrais das obstruintes. Essa nova métrica é
denominada também de análise dos momentos espectrais.
O trabalho de Jongman et al. (2000) foi um dos primeiros a utilizar
essa nova métrica para a caracterização de sons fricativos do inglês. Os autores
apresentaram uma caracterização das fricativas do inglês com base em parâme-
tros estáticos (pico espectral, momentos espectrais, duração do ruído, ampli-
tude do ruído e transição formântica entre a fricativa e a vogal) e parâmetros
dinâmicos (amplitude relativa e equação de lócus). Os resultados dos autores
evidenciam que, com exceção da equação de lócus, todos os parâmetros são
consistentes para diferenciar as fricativas sibilantes das não-sibilantes. Com
relação aos momentos espectrais, os resultados de Jongman et al. (2000) indi-
cam que o primeiro momento, o centroide, distinguiu todas as fricativas com
relação ao ponto de articulação. A variância, por sua vez, distinguiu as fricativas
sibilantes das não-sibilantes. As fricativas sibilantes apresentaram valores de
variância mais baixos do que as fricativas não-sibilantes. O terceiro momento,
assimetria, distinguiu todas as fricativas com relação ao ponto de articulação.
Já o quarto momento espectral, curtose, apenas não distinguiu as fricativas
alveolares das fricativas labiodentais. Os autores concluem que os parâmetros
acústicos estáticos e dinâmicos fornecem informações robustas sobre os dife-
rentes pontos de articulação das fricativas estudadas por eles.
Quanto às fricativas do português, Jesus (2001) descreveu as fricativas
do Português Europeu utilizando, como parâmetros, a inclinação espectral, a
frequência de amplitude máxima e amplitude dinâmica e a análise dos qua-
tro momentos espectrais. Os resultados do autor evidenciam que, entre os
momentos espectrais, o centroide é o mais eficaz para distinguir as fricativas
quanto ao ponto de articulação. Além disso, o autor afirma que os parâmetros
inclinação espectral, frequência de amplitude máxima e amplitude dinâmica tam-
bém se mostraram relevantes para a caracterização do espectro de frequência
das fricativas. Segundo Jesus (2001), o espectro de frequência das fricativas é
fortemente influenciado pelo contexto vocálico. As frequências das fricativas

281
tendem a ser mais altas em ambiente de vogal /i/ e mais baixas em ambiente
de /u/.
No PB, o trabalho de Berti (2006), sobre a aquisição incompleta do
contraste entre as fricativas alveolar e palatoalveolar surdas em crianças com
e sem queixas fonoaudiológicas, que utilizou, entre outros métodos, a análise
espectral, evidencia que o primeiro momento espectral, centroide, distinguiu
as fricativas com relação ao ponto de articulação em contexto das vogais /a/
e /i/, para as crianças com e sem queixas fonoaudiológicas. Em contexto de
vogal /u/ não houve distinção entre os pontos de articulação das fricativas. O
segundo momento espectral, variância, distinguiu as fricativas alveolar e pala-
toalveolar em todos os contextos vocálicos, em ambos os grupos de crianças. A
assimetria, terceiro momento, distinguiu o ponto de articulação das fricativas
apenas em contexto das vogais /a/ e /i/, para ambos os grupos de crianças. Já
a curtose, quarto momento espectral, não distinguiu as fricativas alveolar e
palatoalveolar.
Rinaldi (2010) desenvolveu uma descrição das vogais e obstruintes
(oclusivas e fricativas) da fala infantil para o PB. A autora utilizou a métrica
quantitativa, proposta por Forrest et al. (1988), para descrever os parâmetros
acústicos relativos ao espectro das fricativas. De acordo com Rinaldi (2010),
as análises dos parâmetros estáticos das consoantes fricativas indicam que o
primeiro momento espectral (centroide) e o segundo momento (variância)
foram eficazes para diferenciar os três locais de constrição, o vozeamento e a
interação entre local e vozeamento. A assimetria, terceiro momento espectral,
somente diferenciou local de constrição. Segundo a autora, o quarto momento
espectral (curtose) não distinguiu as fricativas em nenhum parâmetro.
Até então, essa nova metodologia de análise do espectro de frequência
das fricativas era utilizada para descrever a fala de crianças com e sem quei-
xas fonoaudiológicas. O trabalho de Silva (2012) é o primeiro a utilizar essa
metodologia para descrever a fala de adultos típicos, ou seja, sem nenhuma
patologia de fala.

282
Abaixo, na Tabela 1, apresentamos os resultados de Silva (2012) quanto
ao primeiro momento espectral, centroide, corresponde, de maneira resumida,
à média da intensidade das frequências do espectro.

Tabela 1 – Medidas do Centroide das fricativas em onset inicial e medial

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Os resultados, da tabela 1, evidenciam que, no contexto da vogal /a/, as


fricativas alveolares são as que apresentam os valores mais altos do centroide.
Esses resultados estão de acordo com o “esperado”, uma vez, que, como se sabe,
as fricativas alveolares são as que apresentam os maiores picos de energia do
ruído. Observa-se também que as fricativas labiodentais apresentam valores
mais altos que as palatoalveolares. Com relação aos valores de centroide em
ambiente de vogal /i/, as fricativas alveolares também são as que apresentam
valores mais elevados, seguidas das fricativas labiodentais e depois das pala-
toalveolares. Já em ambiente de voga /u/, observar-se que os resultados são
semelhantes ao encontrados em ambiente de vogal /a/ e /i/.
Os resultados, na tabela 1 acima, evidenciam que, de maneira geral,
as fricativas labiodentais, alveolares e palatoalveolares apresentam valores de

283
centroide mais elevados quando estão em contexto de vogal /i/, depois em
contexto de vogal /a/ e os valores mais baixos em ambiente de vogal /u/. Neste
sentido, dos resultados de Silva (2012) corroboram os resultados de Soli (1981)
e Yeni-Komshian e Soli (1981) para as fricativas do inglês, de Manrique e
Massone (1981) para o espanhol de Buenos Aires e Jesus (2001) para o por-
tuguês europeu. Esses autores afirmam que os valores de frequência das frica-
tivas eram mais elevados em contexto de vogal /i/ e mais baixos em contexto
de vogal /u/.
Com relação à sonoridade, os resultados evidenciam que as fricativas
surdas tendem a apresentar valores de centroide mais elevados que sua con-
traparte sonora. Essa “tendência” apenas não foi observada entre as fricativas
palatoalveolares, em ambiente de /u/ e em ambiente de vogal /i/ quando em
posição de onset medial. Em ambiente de vogal /i/ e em posição de posição de
onset inicial, a fricativa alveolar sonora também apresentou valor de centroide
mais elevado que a sua contraparte surda.
Como vimos, o primeiro momento espectral, centroide, foi eficaz para
diferenciar as fricativas com relação ao ponto de articulação, ao vozeamento,
ao contexto vocálico e à posição silábica. Esses resultados estão, em parte, de
acordo com os resultados encontrados por Jongman et al. (2000) para o inglês
e Rinaldi (2010) para o PB. Segundo os autores o centroide foi eficaz para
distinguir as fricativas com relação ao ponto de articulação e ao vozeamento.
O segundo momento espectral, Variância, refere-se à dispersão da fre-
quência em relação à média (centroide) e corresponde ao quadrado do desvio
padrão. Na tabela 2, abaixo, apresentamos a síntese dos resultados de Silva
(2012).

284
Tabela 2 – Medidas da Variância das fricativas em onset inicial e medial

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Podemos observar na tabela 2 acima que os valores de variância para


as fricativas labiodentais são mais elevados que os valores para as fricativas
alveolares e palatoalveolares. Ou seja, as fricativas consideradas não-sibilantes,
labiodentais, apresentam valores de variância mais elevados que as fricativas
consideradas sibilantes, alveolares e palatoalveolares. Esses resultados corrobo-
ram os resultados de Jongman et al. (2000) para as fricativas do inglês. Segundo
os autores, a variância foi eficaz para diferenciar as fricativas sibilantes das não-
-sibilantes, sendo que, estas apresentam valores mais elevados.
Os resultados na tabela 2, evidenciam que o ambiente de vogal /a/, as
fricativas labiodentais apresentam valores mais elevados em posição de onset
inicial, enquanto que, as alveolares e palatoalveolares apresentam, de maneira
geral, valores mais elevados em posição de onset medial. Em ambiente de vogal
/i/, as fricativas labiodentais apresentam valores mais elevados em posição de
onset medial, enquanto que, as alveolares e palatoalveolares apresentam valores
mais elevados em posição de onset inicial. Já em ambiente de vogal /u/, todas
as fricativas tendem a apresentam valores mais elevados em posição de onset

285
inicial, com exceção da fricativa labiodental surda, que apresenta valores mais
elevados em onset medial.
Com relação à sonoridade, podemos observar que o segundo momento
espectral, variância, não diferenciou as fricativas surdas das sonoras. Nesse
ponto, os resultados de Silva (2012) não se assemelham aos de Rinaldi (2010)
para as fricativas do PB. Pois, segundo a autora, a variância diferenciou as fri-
cativas quanto ao vozeamento.
O terceiro momento espectral, Assimetria, corresponde à distribuição
da frequência do espectro em torno da média, ou seja, indica se a distribuição
das frequências apresenta uma inclinação maior à esquerda (concentração de
energia em frequências baixas) ou à direita (concentração de energia em altas
frequências), ou se é simétrica. Abaixo, na tabela 3, apresentamos os principais
resultados de silva (2012).

Tabela 3 – Medidas da Assimetria das fricativas em onset inicial e medial

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Na tabela acima, podemos observar que os valores do terceiro momento


espectral, assimetria, diferenciam as fricativas surdas das sonoras. Observa-se,
de maneira geral, que os valores de assimetria para as fricativas sonoras são

286
mais elevados que os valores para suas contrapartes surdas. A única exceção
observada diz respeito à fricativa alveolar surda que apresenta valor de assi-
metria mais elevado que sua contraparte sonora, em ambiente de vogal /i/, na
posição de onset inicial.
Com relação ao ponto de articulação, nota-se que as fricativas palatoal-
veolares são as que apresentam os valores mais elevadas, seguidas das labioden-
tais e depois das alveolares. Apenas em contexto de vogal /u/ e em posição de
onset inicial, a fricativa labiodental sonora apresenta valores de assimetria mais
elevados que as palatoalveolares. Nesse sentido, os resultados de Silva (2012)
corroboram, em parte, os resultados de Jongman et al. (2000) para o inglês e
Rinaldi (2010) para o PB. Segundo esses autores, a assimetria foi eficaz para
diferenciar as fricativas quanto ao ponto de articulação e quanto à sonoridade.
Quanto à posição silábica, não se pode afirmar, com base nos resultados,
que a assimetria diferenciou as fricativas quanto à posição silábica. Apenas em
ambiente de vogal /u/ podemos observar uma maior sistematicidade cm rela-
ção a esse parâmetro. Nesse contexto, as fricativas tendem a apresentar valores
de assimetria mais elevados em onset inicial.
O quarto momento, curtose, refere-se, grosso modo, à presença de
picos de frequência no espectro. Abaixo apresentamos a síntese dos resultados
obtidos por Silva (2012).

287
Tabela 4 – Medidas da Curtose das fricativas em onset inicial e medial

Fonte: Adaptado de Silva (2012).

Na Tabela 4, os resultados referentes ao quarto momento espectral,


curtose, indicam que as fricativas alveolares são as que apresentam, de maneira
geral, os valores mais elevados de curtose. Nota-se que a fricativa alveolar surda,
em ambiente de vogal/i/, é a que apresenta o valor de curtose mais elevado
entre todas as fricativas. Podemos observar também que em ambiente de vogal
/u/ essa fricativa e sua contraparte sonora apresentam valores de curtose mais
baixos. De maneira geral, as fricativas labiodentais são as que apresentam os
valores de curtose mais baixos e as palatoalveolares os valores intermediários.
De acordo com Forrest et al. (1988), a curtose é um indicador da distribuição
das frequências no espectro. Como já foi dito anteriormente, valores altos de
curtose indicam que há muitos picos em alta frequência no espectro. Desta
forma, podemos afirmar que os resultados para a curtose das fricativas estão
de acordo com o esperado. Pois, com também já foi mencionado, as fricativas
alveolares são as apresentam as frequências mais altas no espectro, enquanto
as labiodentais apresentam frequências mais baixas e as palatoalveolares
frequências intermediárias (Strevens, 1960; Shadle, 1985; Kent; Read, 1992).

288
Os resultados, na Tabela 4, para o quarto momento espectral indicam
que as fricativas apresentam seus valores de curtose mais elevados em ambiente
das vogais /i/ e /a/ e mais baixos em ambiente de vogal /u/. Se valores de cur-
tose mais elevados indicam presença de mais picos no espectro e valores de
curtose mais baixos indicam picos mais achatados, podemos afirmar que os
resultados relativos ao contexto vocálico estão de acordo com o esperado, uma
vez que, como afirma autores como Soli (1981), Yeni-Komshian e Soli (1981)
e Manrique e Massone (1981), as fricativas tendem a apresentar frequências
mais elevadas em ambiente de /i/ e mais baixas em ambiente de /u/.
Com base nos nossos resultados de Silva (2012), podemos afirmar que a
curtose não diferenciou as fricativas com relação à posição silábica e à sonori-
dade das fricativas. Os resultados, expressos na Tabela 4 acima, evidenciam que
não há uma sistematicidade nos valores com relação a esses dois parâmetros.
Silva (2012) também analisou as fricativas alveolares em posição de coda
utilizando os quatro momentos espectrais. Os valores dos quatro momentos
espectrais para as fricativas alveolares em posição de coda medial e final são
apresentados na tabela abaixo.

Tabela 5 – Valores Médios para os quatro momentos


espectrais das fricativas alveolares em posição de coda

Na Tabela 5, podemos observar que o primeiro momento espectral,


centroide, apresenta valores mais elevados para as fricativas alveolares em
ambiente das vogais /a/ e /i/ e mais baixos em contexto de vogal /u/. Podemos

289
observar também que naqueles dois contextos vocálicos os valores de centroide
são próximos.
Com relação ao segundo momento espectral, variância, podemos obser-
var que os valores são sempre mais altos em ambiente de vogal /u/. E em
ambiente de vogal /a/ e /i/ apresentam valores próximos. Além disso, podemos
observar que, com relação à posição silábica, as fricativas alveolares apresentam
valores de variância mais elevados em posição de coda final do que em posição
de coda medial.
Podemos observar, na Tabela 5, que os valores do terceiro momento
espectral, assimetria, para as fricativas alveolares em coda são mais elevados
em contexto de vogal /u/. Em ambiente de vogal /a/ e /i/, em coda medial, os
valores são próximos, mas, em posição de coda final, os valores de assimetria
em ambiente de vogal /i/ são mais altos que em ambiente de vogal /a/. Com
relação à posição silábica, nota-se que os valores para a assimetria em coda final
são sempre mais elevados que em coda medial.
Com relação ao quarto momento espectral, curtose, podemos obser-
var que os valores para as fricativas alveolares em posição de coda não distin-
guiu as fricativas quanto à posição silábica, como aconteceu com os outros três
momentos. Observa-se que, em coda medial as fricativas alveolares apresentam
valores de curtose mais elevados quando estão em ambiente de vogal /a/. Já em
coda final, as fricativas apresentam valores mais elevados quando em contexto
de /i/. Em ambas as posições, as fricativas em ambiente de vogal /u/ apresen-
tam os valores de curtose mais baixos.
A partir dos resultados de Silva (2012) sobre a caracterização das frica-
tivas do PB, em função da duração e frequência, fica claro que esses parâme-
tros são fortemente influenciados pela produção desses sons, tal como prevê a
Teoria Fonte-Filtro. Assim, cabe analisar de que maneira essas características
da produção podem refletir na percepção desses sons.

290
2. Percepção das fricativas do PB

A duração segmental e frequência do espectro são dois parâmetros acús-


tico importantes para a caracterização das fricativas. De acordo com pesqui-
sadores como Jongman (1989), Jesus (2001), Silva (2012) e Ferreira-Silva et
al (2015), entre outros, esses parâmetros estão diretamente ligados, respec-
tivamente, à sonoridade e ao ponto de articulação das fricativas. Nesse sen-
tido, nesta seção analisaremos como e qual desses parâmetros mais interfere
na identificação perceptual das fricativas quando estão em situação de mani-
pulação do sinal.
Para isso, partiremos do trabalho de Ferreira-Silva (2016), no qual
a autora analisa a relação entre a percepção das fricativas do PB, diante de
manipulação do sinal, com informação auditiva e visual. Ferreira-Silva (2016)
manipulou o sinal das fricativas em termos de redução da duração segmental
(25%, 50% e 75%) e em termos de redução e ampliação da frequência do ruído
fricativo. Para a redução do ruído fricativo, foi mensurada a duração absoluta
do ruído fricativo extraído da palavra e sobre esse valor foram aplicadas três
taxas de redução: 25%, 50% e 75%. Esse procedimento foi realizado, por meio
da ferramenta Manipulate > To manipulation no software Praat. Já os valores de
frequência do ruído fricativo foram manipulados com base em duas referências
principais, Strevens (1960) e Silva (2012). O primeiro autor definiu os valores
de frequência mínimo e máximo para cada uma das fricativas de acordo com
o ponto de articulação. Já Silva (2012) definiu os valores médios de frequência
para as fricativas do PB com base na análise do primeiro momento espec-
tral, centroide. Observados os valores do espectro de frequência das fricativas,
foram aplicadas três taxas de manipulação da frequência: valor mínimo, médio
e máximo para cada fricativa, tendo como referência os valores definidos pelos
autores acima citados. Para esse procedimento foi utilizada a ferramenta modi-
fy>In-line filters>Filters with one formant (in-line) do Praat. Essa ferramenta
possibilita a manipulação da frequência e da largura de banda dos formantes.
Após as manipulações, as fricativas com sinal manipulado foram devolvidas às
palavras e apresentadas aos juízes nos testes de percepção.

291
Na Tabela 6, abaixo, comparamos a média de recuperação das frica-
tivas, com sinal manipulado, em cada taxa de manipulação da duração e da
frequência. Com a menor taxa de duração, 25%, e com a taxa mínima de fre-
quência das fricativas, observamos que, nesse caso, a manipulação da duração
foi mais prejudicial para a identificação das fricativas do que a manipulação
da frequência, para todos os pontos de articulação. A comparação entre essas
médias evidenciou que para as fricativas labiodental e alveolar essas diferenças
são estatisticamente diferentes, como nota-se na tabela abaixo, a manipulação
da duração foi a que mais interferiu na identificação perceptual das fricativas
labiodental e alveolar.

Tabela 6 – Média de recuperação das fricativas em função do tipo de manipulação

Fonte: Adaptado de Ferreira-Silva (2016).

A comparação entre as médias de recuperação das fricativas com taxa


média de duração, 50%, e taxa média de frequência evidencia que entre as fri-
cativas labiodentais e alveolares essas médias apresentam valores próximos, não
sendo estatisticamente diferentes. Já a fricativa palatoalveolar, com essas taxas
de manipulação, apresentou diferenças estatísticas entre manipulação da dura-
ção e manipulação da frequência. Como observa-se, nesse caso, a manipulação
da frequência foi a que mais interferiu na correta identificação dessas fricativas.
Com a maior porcentagem de duração, 75%, e maior taxa de frequên-
cia, observamos que as fricativas labiodentais e palatoalveolares tiveram sua

292
identificação perceptual mais prejudicada com a manipulação da frequência o
que com a manipulação da duração. Como pode ser observado na Tabela 6, a
diferença entre as médias da fricativa palatoalveolar são estatisticamente dife-
rentes, ou seja, significativas. Já a fricativa alveolar apresenta média de recu-
peração um pouco maior em função da manipulação da frequência do que da
manipulação da duração, mas, como nota-se na tabela acima, essas diferenças
não são significativas.
Os resultados encontrados por Ferreira-Silva (2016) indicaram que as
fricativas têm sua percepção comprometida com a manipulação do sinal acús-
tico. Vimos que esse comprometimento perceptual, acarretado pela manipula-
ção do sinal, varia de acordo com a taxa de manipulação do sinal e o ponto de
articulação da fricativa. Além disso, vimos também que o tipo manipulação, se
manipulação da duração ou manipulação da frequência, do sinal pode afetar
mais a percepção de uma fricativa do que de outra.
Os resultados para a percepção em função da taxa de manipulação do
sinal fricativo indicam que a identificação perceptual foi mais afetada quando
as fricativas apresentavam a menor taxa de duração do ruído fricativo, 25%.
Esse resultado indica que para a correta identificação das fricativas é necessá-
ria uma taxa maior de duração. Já para a manipulação da frequência espectral,
vimos que não foi possível determinar qual a taxa de frequência mais afetou a
identificação perceptual. Os resultados indicaram que a taxa de frequência está
diretamente relacionada ao ponto de articulação. Assim, por exemplo, as frica-
tivas alveolares, que são as que apresentam maior frequência espectral (Silva,
2012), não tiveram sua identificação perceptual comprometida quando apre-
sentaram taxa máxima de frequência. Já para as fricativas labiodentais a taxa
máxima de frequência comprometeu sua identificação perceptual.
A taxa de manipulação também foi considerada relevante para a discri-
minação das fricativas. Como vimos, a menor taxa de duração, 25%, favoreceu
a discriminação das fricativas com manipulação do sinal. Esse resultado está
de acordo com pesquisas que evidenciam que os ouvintes só podem discrimi-
nar dois ou mais estímulos na medida em que os identificam como diferentes
entre si.

293
Considerações finais

Neste capítulo, nosso objetivo foi recuperar alguns dos principais resul-
tados já obtidos sobre a produção e percepção das fricativas do PB. Para isso,
nos valemos, entre outros, dos trabalhos de Silva (2012) sobre a caracterização
acústica das fricativas do PB e de Ferreira-Silva (2016) sobre a relação entre
parâmetros acústicos e percepção das fricativas.
Vimos que, do ponto de vista da produção, as fricativas apresentam
características acústicas, como a duração e a frequência, que são resultado do
seu modo de produção, em acordo com o que prevê a Teoria Fonte-Filtro
da Produção da Fala (Fant, 1960). Ademais, quanto à percepção, foi possível
observar que os parâmetros acústicos aqui analisados tem papel importante
para o processo de identificação perceptual dos sons fricativos do PB.
Esses resultados reiteram a importância das pesquisas em descrição das
línguas naturais e a necessidade de ampliação dos estudos que correlacionam
os diferentes níveis dessa análise.

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296
AS INTERROGATIVAS DE UMA AMOSTRA DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO EM DIFERENTES ATITUDES: UMA DESCRIÇÃO
GESTUAL E ACÚSTICA

Karina Dias
Vera Pacheco
Marian Oliveira

Introdução

Uma interrogativa pode ser caracterizada por apresentar determinadas


intenções do falante. Assim, uma pergunta pode ser irônica, retórica ou crítica,
por exemplo, a depender do que o falante intenciona. Para captar exatamente,
ou aproximadamente, essa intenção, um ouvinte se valam da entoação. Esta,
entendida como a variação da F0, da intensidade, da duração é utilizada pelo
falante para distinguir a modalidade da sentença (exclamativa, interrogativa
ou afirmativa), bem como para expressar determinadas intenções. A entoa-
ção pode, por exemplo, desfazer a ambiguidade de sentenças com intenções
diferentes, mesmo que idênticas em sintaxe, como é o caso da pergunta e do
pedido (Moraes; Colamarco, 2007).
No entanto, a entoação não é a única ferramenta da qual falante e
ouvinte fazem uso na construção de sentidos. Os gestos faciais e corporais que
acompanham o discurso podem ser um recurso importante para distinguir ati-
tudes expressas em sentenças ambíguas. Estudos recentes têm mostrado que os
gestos faciais e/ou corporais não devem ser vistos apenas como “ilustradores”
da fala, uma vez que eles carregam consigo informações prosódicas necessá-
rias para uma situação comunicativa, funcionando, assim, como uma prosó-
dia visual (Munhal et. al., 2004, Krahmer; Swerts, 2007, Moraes, 2010, 2012;
Sendra et. al., 2013, Pacheco, 2011, Pacheco, Oliveira 2016).

297
Tomando os gestos como um recurso prosódico, as questões norteado-
ras desta pesquisa são: quais expressões faciais e quais gestos manuais estão
envolvidos na produção de perguntas com diferentes atitudes do falante? Há
um padrão nas características gestuais e acústicas para esses diferentes tipos
de pergunta? A nossa hipótese é a de que, além de serem significativos para
a produção de interrogativas e de funcionarem como um recurso prosódico
que desfaz ambiguidades, os movimentos manuais e faciais complementam e
estão diretamente relacionados às diferentes intenções, de quem fala, presentes
numa interrogação. Além disso, a hipótese levantada é a de que a curva meló-
dica e os gestos faciais e/ou manuais são característicos de determinados tipos
de pergunta.
Na busca pelas respostas e pela comprovação da nossa hipótese, o nosso
objetivo é verificar a interação entre o sinal acústico e os gestos faciais e manuais
na produção de sentenças interrogativas do Português Brasileiro (PB) marca-
das por diferentes atitudes. Esta pesquisa objetiva, então, investigar se deter-
minados movimentos faciais e corporais são específicos de determinados tipos
de pergunta e se sua realização implica diferença na configuração melódica.

1. Interrogativas do PB: função, características e atitude do falante

A interrogativa é uma modalidade de sentença caracterizada pela entoa-


ção. A variação da altura de F0 é a responsável por seu reconhecimento den-
tre as outras modalidades, ou seja, é por meio da entoação que conseguimos
diferenciar um enunciado interrogativo de um afirmativo (“Ela vai à escola/
Ela vai à escola?”)1. Sendo assim, quando falamos de “variação melódica” neste
trabalho, falamos de interrogativas.
No PB, um falante realiza uma interrogativa a fim de se obter uma res-
posta e exprimir dúvida, pedido, surpresa etc. Além do contexto, a entoação
é um recurso do qual o ouvinte lança mão para captar a mensagem expressa

Exemplo nosso.
1

298
pelo falante. De acordo com Moraes (1998), as questões são caracterizadas, a
depender da sua curva melódica, a partir de dois tipos: a questão total, que se
refere às perguntas sem pronome interrogativo que exigem uma resposta “sim”
ou “não” (Ex.: Hoje você vai ao supermercado?)2; e a questão parcial, referente
às perguntas iniciadas com um pronome interrogativo (Ex.: Que horas você
vai ao supermercado?)3.
Esses dois tipos de pergunta diferenciam-se entre si por sua estrutura
sintática e essa diferença implica diferentes configurações da curva melódica.
A interrogativa total sim/não se caracteriza, conforme Moraes (1998), pela
elevação da curva de F0 da última sílaba acentuada. Já na interrogativa parcial,
o aumento da F0 é exibido logo na primeira sílaba acentuada. Para melhor
entender essa diferença, vejamos as figuras 1A e 1B:

Figura 1 – Curva melódica de uma questão total sim/ não (A)


e de uma questão parcial com pronome interrogativo no início (B)

Fonte: Moraes (2008, p. 4-5).

Oliveira (2014) encontra semelhança aos dados de Moraes (1998) ao


investigar as interrogativas da cidade de Vitória da Conquista – BA. A autora
constatou que as interrogativas totais do falar conquistense apresentavam, nas
duas primeiras sílabas tônicas, uma curva de F0 descendente, ao passo que a
curva da última sílaba acentuada do enunciado apresenta elevação, uma carac-
terística encontrada de forma semelhante nas interrogativas parciais iniciadas
com o pronome por que. Já as interrogativas parciais iniciadas pelo pronome

Exemplo nosso.
2

Exemplo nosso.
3

299
qual se caracterizam por uma elevação não significativa da curva melódica da
primeira sílaba saliente da sentença e uma queda na segunda, terceira e quarta
sílabas.
Além da diferença na estrutura sintática, existe a diferença de inten-
ção nas interrogativas com sintaxe idêntica. Quando sentenças interrogativas
possuem a mesma estrutura sintática, mas expressam intenções diferentes, a
entoação é um recurso fundamental para desfazer ambiguidades. Moraes e
Colamarco (2007) mostraram que a curva ascendente ou descendente permite
não apenas diferenciar questões totais de questões parciais, mas também evi-
denciam diferença de intenções. Isso é evidenciado, por exemplo, em interro-
gativas que apresentam a mesma estrutura sintática, mas que, a depender da
entoação, podem exprimir pedido ou uma pergunta de fato. Essas diferenças
são expostas nas figuras 3A e 3B.

Figura 2 – Contorno melódico da sentença “Lava minha mala”

Fonte: Moraes e Colamarco (2007, p. 115).

Na figura 3A, essa sentença é dita como uma questão total, ao passo que
na figura 3B a mesma sentença é dita como um pedido. Apesar de serem sinta-
ticamente idênticas, elas apresentam diferenças no padrão melódico, a depen-
der da intenção do falante. Quando questão total sim/ não, a curva melódica
da sentença se eleva na última sílaba tônica, porém, quando proferida como
pedido, a curva da sentença se eleva em dois pontos, tanto na primeira quanto
na última sílabas acentuadas.

300
No entanto, é válido ressaltar que esta configuração não é exclusiva de
interrogativas que exprimem pedido, uma vez que, conforme Moraes (2008),
esse padrão melódico também pode ser encontrado em questões do tipo total
sim/ não que assumem caráter retórico e, por isso, não requer uma resposta do
ouvinte. A figura 5 traz um exemplo dado pelo autor para apresentar a confi-
guração de perguntas desse tipo.

Figura 3 – Contorno melódico da sentença


interrogativa “Renata jogava” com caráter retórico

Fonte: Moraes (2008, p. 5).

Como observado, esse tipo de pergunta apresenta a mesma estrutura


melódica de uma sentença interrogativa realizada por um falante para exprimir
pedido: tanto na primeira, quanto na última sílaba acentuada a curva melódica
se eleva.
A entoação é fundamental na construção de sentidos numa determinada
situação comunicativa, mas não é o único recurso do qual falante e ouvinte se
valem. Na seção a seguir, veremos que os gestos manuais e faciais também podem
funcionar como um recurso prosódico importante para a comunicação efetiva.

2. Expressões faciais e gestos manuais funcionando como prosódia visual

Como vimos anteriormente, o ouvinte se vale da entoação para captar


exatamente ou aproximadamente as intenções do falante. No entanto, ela não
é o único recurso prosódico que ouvinte e o falante lançam mão numa deter-
minada situação comunicativa, uma vez que eles utilizam os gestos faciais e
manuais para expressar e captar determinadas intenções importantes para a

301
construção de sentidos numa conversa face a face. Nesse sentido, os movimen-
tos que fazemos com a face e com as mãos enquanto falamos não são aleatórios
ou meros “ilustradores” do discurso, mas podem funcionar como uma prosódia
visual, já que eles carregam consigo informações prosódicas necessárias para
uma comunicação efetiva.
Munhal et. al. (2004) sugerem que os movimentos da cabeça estão rela-
cionados aos elementos suprassegmentais da língua. Os autores buscaram ana-
lisar se a prosódia visual, por meio desses movimentos, desempenha o mesmo
papel que a prosódia auditiva no reconhecimento da fala. Seus resultados evi-
denciam a estreita ligação entre os movimentos da cabeça e as características
prosódicas da fala. Essas evidências mostram que a inteligibilidade da fala tem
mais sucesso quando há integração das pistas auditivas e visuais, sugerindo que
os movimentos da cabeça funcionam como um sinal temporizador que ajuda
na segmentação do contínuo sonoro.
Partindo do mesmo pressuposto de que gestos e fala estão ligados,
Krahmer e Swerts (2007) realizam um estudo com a investigação da produ-
ção dos gestos de “batida”4 na mudança na forma como a ênfase é realizada
e, se houver mudança, como é percebida. Desse modo, os autores realizaram
três experimentos: o primeiro foi de análise acústica; o segundo se concentrou
na influência das pistas visuais sobre as pistas acústicas, mas voltado para a
percepção acústica e não visual; e o terceiro foi baseado nas pistas auditivas e
visuais obtidas no primeiro experimento.
Os resultados dos dois primeiros experimentos evidenciaram que as
batidas visuais têm notáveis efeitos sobre a realização da palavra a elas asso-
ciada, trazendo à tona a estreita relação entre a fala e os gestos. O terceiro
experimento mostrou que os gestos aumentam a percepção da ênfase das pala-
vras-alvo. De modo geral, esse estudo trouxe fortes evidências de que as pistas
visuais não apenas aumentam a ênfase, quando gesto e fala são sincronizados,

Os gestos de batida (beats de acordo com McNeill, 1992) se referem aos gestos
4

que são realizados num ritmo musical, isto é, quando as mãos se movem no mesmo
ritmo da fala.

302
mas também reduz a ênfase de outra palavra, revelando a importância que os
gestos têm na produção/ percepção de elementos prosódicos da fala.
Outro trabalho que também tem adotado os gestos enquanto infor-
mação prosódica é o de Moraes et. al. (2010). Esses autores buscam descrever
quais expressões faciais permitem a discriminação das atitudes do falante divi-
didas em dois grupos: social e proposicional5. A partir da gravação, feita por
dois falantes, da sentença “Roberta dançava” nas diferentes atitudes prosódicas,
incluindo numa modalidade mais neutra, e de testes perceptuais, os autores
verificaram que as atitudes sociais e proposicionais possuem comportamentos
perceptuais diferenciados. Enquanto estas estão fortemente mais ligadas às
pistas auditivas, aquelas estão ligadas às pistas visuais, embora nos dois con-
juntos as pistas auditivas tiveram um papel relevante no momento de desfazer
as ambiguidades criadas pelas pistas visuais.
Posteriormente, Moraes et. al. (2012) realizam outro trabalho nessa
perspectiva, mas com uma investigação das manifestações prosódicas relacio-
nadas com as expressões baseadas no Sistema de Códigos Faciais de Ekman
(1976)6. Os seus resultados evidenciam fortemente que a combinação entre as
pistas visuais e as pistas auditivas aumenta as chances de sucesso de reconhe-
cimento geral das atitudes do falante, tendo as pistas visuais mais eficácia do
que as auditivas. Os autores constataram ainda que as atitudes proposicionais
foram melhor reconhecidas pelas pistas visuais e as atitudes sociais pelas pistas

5
Moraes (2010) divide as atitudes prosódicas em dois conjuntos: atitudes proposi-
cionais, referentes aos conteúdos proposicionais das sentenças (dúvida, obviedade,
ironia etc.), e atitudes sociais, que se referem às relações sociais que o falante quer
manter (sedução, polidez, cortesia etc.) (Moraes, 2010; 2017).
6
Ekman e Friesen (1976) desenvolveram um novo sistema de Código de Ação Facial
(Facial Action Code – FAC) que descrevesse os movimentos ou ações da face para
que, a partir delas, pudesse-se inferir as emoções de uma pessoa. O FAC descreve as
expressões faciais por meio de ações que fazem parte de cada músculo facial, e não
através de ações musculares, uma vez que, num único músculo, mais de um movi-
mento pode acontecer. Desse modo, Ekman e Friesen (1976) nomeiam essas ações
de Unidades de Ação (Action Unity – AU).

303
auditivas. Atitudes como desprezo, arrogância e autoridade foram pouco reco-
nhecidas pelo sinal auditivo e melhor reconhecidas pela visão.
Dentro do escopo de trabalhos que defendem os gestos como impor-
tante fonte de informação prosódica está o trabalho de Sendra et. al. (2013).
Buscando analisar essa relação gestos/ prosódia na identificação de interro-
gativas sim/ não dos idiomas holandês e catalão, os autores aplicaram testes
em três modalidades: i) apenas auditiva; ii) apenas visual; ii) audiovisual. Com
isso eles verificaram que os ouvintes do holandês processam, perceptualmente,
de forma diferente dos ouvintes do catalão no momento de distinguir os dois
tipos de pergunta.
Sendra et. al. (2013) também verificaram que o sinal visual desempenha
um papel mais forte em relação ao sinal auditivo, o que aumenta o reconheci-
mento dos dois tipos de pergunta. Ademais, os resultados do estudo de Sendra
et. al. (2013) mostraram que os ouvintes do catalão dão mais prioridade às
pistas visuais do que os ouvintes do holandês no momento de decidir sobre
qual tipo a interrogativa se trata. Em contrapartida, os ouvintes holandeses
priorizam tanto as pistas auditivas, quanto as pistas visuais para identificar o
tipo de pergunta.
Os trabalhos de Pacheco (2011) e Pacheco e Oliveira (2016) também
investigam a relação entre os elementos suprassegmentais e os movimentos
faciais e/ou corporais. No primeiro trabalho, Pacheco (2011) objetivou anali-
sar o papel dos gestos no reconhecimento da ênfase e da atenuação de modo
experimental. Para tanto, foram realizadas gravações de dramatizações de um
ator de teatro sob três condições: a) movimentos faciais e corporais em sincro-
nia com as variações entoacionais (C1); b) ausência de movimentos faciais e
corporais (C2); c) falta de sincronia entre os gestos faciais e corporais com as
respectivas variações entoacionais. Os resultados desse trabalho trazem for-
tes evidências de que a ausência dos gestos ou a sua falta de sincronia com o
sinal auditivo comprometem a percepção das variações entoacionais estuda-
das, enquanto que o aumento de sucesso em seu reconhecimento se dá pela
sincronia entre os gestos e as pistas auditivas.

304
Em 2016, juntamente com Oliveira, Pacheco (2016) dá seguimento ao
trabalho anterior ao avaliar quais os movimentos faciais e/ou corporais estão
atrelados na ocorrência de tons altos (ênfase) e baixos (atenuação). Testando
a hipótese de que gestos e entoação ocorrem simultaneamente, as autoras
constataram que tons altos são produzidos com gestos ascendentes, quando o
falante quer destacar momentos mais importantes de sua fala, marcando mais
a ênfase, e tons baixos com gestos descendentes, quando o falante considera
menos importante certos momentos de sua fala, marcando mais a atenuação.
Partindo desses trabalhos, que consideram os gestos menos como meros
“ilustradores do discurso” e mais como informações prosódicas, iremos investi-
gar a relação entre pistas visuais e auditivas na produção dos diferentes tipos de
pergunta. A seguir, apresentamos de forma detalhada os passos seguidos para
alcançar o objetivo deste trabalho.

3. Metodologia

O corpus desta pesquisa é composto por 6 vídeos de entrevistas retirados


do site do You Tube (youtube.com). Além de escolher entrevistas, gênero em
que as interrogativas fossem mais recorrentes, os critérios para a seleção desses
vídeos foram: que possuíssem fala espontânea; que tivessem a imagem de vídeo
grande para que os gestos manuais fossem visíveis na análise gestual; e que não
houvesse música de fundo e nem sobreposição de fala que pudessem interferir
na posterior análise acústica.
O primeiro e o segundo vídeos selecionados para esta pesquisa são duas
entrevistas dadas ao programa “De frente com Gabi” da emissora de televi-
são “SBT”: uma com o pastor Silas Malafaia, em 03 de fevereiro de 2013, e a
segunda com a high society Val Marchiori, em 11 de março de 2013. Ambos
têm com cerca de 46 minutos de duração. O terceiro e o quarto vídeos são de
entrevistas realizadas com a ex-presidente Dilma Rousseff, em 10 de junho de
2016, e a outra com o presidente em exercício Michel Temer, em 14 de novem-
bro de 2016, ao programa “Mariana Godoy entrevista” da emissora “RedeTV”.
Ambas as entrevistas têm cerca de 73 minutos de duração. O quinto e o sexto

305
vídeos são entrevistas dadas ao programa Conversa com o Bial da Rede Globo,
a primeira com a cantora Rita Lee, realizada no dia 03 de maio de 2017, e a
segunda com o médico Dráuzio Varela, em 12 de maio de 2017, ambos com
cerca de 42 minutos de duração. Os assuntos dos vídeos são os mais variados,
vão desde política à vida pessoal dos entrevistados.
Após essa seleção dos vídeos, as interrogativas encontradas foram seg-
mentadas e submetidas, a princípio, a uma análise gestual através do software
Elan 4.9.1 (Lausberg; Sloetjes, 2009) que nos permite criar trilhas de análise
correspondentes aos aspectos investigados. Essa análise gestual foi baseada nos
trabalhos de Bressem (2013),7 para os gestos manuais, e de Ekman e Friesen
(1976),8 para os gestos faciais.
Para a análise acústica, extraímos os áudios dos vídeos selecionados em
formato WAV. A análise acústica foi realizada através da ferramenta de voz, o
Praat 5.2.01 (Boersma; Weenink, 2010), com base na mensuração da F0, des-
crita a partir dos valores do início, do meio e do fim de sua curva. Os valores
obtidos foram, posteriormente, anotados em uma planilha do Excel e, para
maior robustez dos dados, normalizados a partir de uma fórmula matemática9
que indicasse a diferença, em porcentagem, entre os valores desses pontos.
Depois de todo esse processo, discriminamos as interrogativas encon-
tradas em diferentes tipos, com base em Fónagy (1993), Antunes (2007) e
Moraes (2010; 2017). Com os dados gestuais, as interrogativas tipificadas e

7
Bressem (2013) categoriza os gestos manuais do ponto de vista articulatório. Nesse
sentido, o gesto é caracterizado pelo formato das mãos, orientação das palmas, dire-
ção e posição dos movimentos. A nossa análise, então, baseia-se nesses aspectos de
análise gestual propostos pela autora.
8
A análise das expressões faciais será realizada com base no Sistema de Códigos
Faciais de Ekman e Friesen (1976), apresentado na seção anterior.
9
Nessa fórmula matemática, o N corresponde ao numerador e D corresponde ao de-
nominador, que varia a depender de qual diferença (posição) está sendo considerada.
Por exemplo, quando quisemos obter a diferença, em porcentagem, dos valores do
início para o meio, o numerador (N) é o valor do meio e o denominador (D) é o
valor do início da F0. Assim, quando a diferença observada foi a do meio para o fim,
o valor do meio, antes N, passa a ser o D, enquanto que o final é o numerador (N).
Isso também se sucede quando observamos a diferença do final para o início da F0.

306
com seus valores de F0 obtidos, correlacionamos os dados acústicos e gestuais
para verificar se determinados tipos de pergunta possuem característica acús-
tica e gestual específica, sendo ou não, portanto, fundamentais para diferenciar
um tipo do outro. Na seção a seguir, faremos a apresentação e a discussão dos
resultados obtidos em nossa pesquisa.

4. Resultados e Discussão

4.1 Gestos manuais/faciais e curva de F0 em alguns tipos de interrogativa


do PB
Como nosso objetivo geral foi investigar a ocorrência gestual na produ-
ção de atitude do falante em interrogativas do PB, estas foram submetidas às
análises acústica e gestual. Após segmentação, catalogação dos gestos e men-
suração da F0 das 306 interrogativas encontradas, tipificamos as interrogativas,
levando em conta se eram do tipo total ou parcial, com base nas seguintes
atitudes do falante: neutra, retórica, interesse, indução, suposição, crítica, polidez,
incredulidade, dúvida, sarcasmo e irritação. Ademais, encontramos interrogativas
que não possuíam o caráter de uma pergunta de fato, como é o caso da per-
gunta retórica, mas que também exprimiam outra intenção além dessa carac-
terística. Sendo assim, além desses 11 rótulos encontrados, verificamos a exis-
tência de mais outros 4: retórica com dúvida, retórica surpresa, retórica sarcástica
e retórica com irritação.
Após a discriminação dessas perguntas, correlacionamos os dados ges-
tuais com os dados acústicos. Tratando-se dos dados gestuais, os movimentos
faciais estiveram presentes em todas as interrogativas encontradas/ analisadas
e, dessas ocorrências, 51% (155 interrogativas) aconteceram com a presença
dos movimentos corporais e 49% (151 interrogativas) sem a presença de movi-
mentos corporais, os gestos manuais. Os falantes do PB nos vídeos analisados
podem ou não realizar gestos manuais, mas não deixam de realizar os gestos
faciais no momento em que produzem uma interrogativa. Esses dados endos-
sam a importância dos gestos, sobretudo os faciais, para a marcação de sentenças
interrogativas. Vejamos o gráfico 1:

307
Gráfico 1 – Ocorrência dos gestos manuais nas
interrogativas do Português Brasileiro (PB)

Fonte: Elaboração própria.

Observamos também a ocorrência dos gestos manuais e faciais, com-


binada com o tipo e a curva de F0 das interrogativas analisadas. Sendo assim,
no que tange à curva de F0, apresentamos o valor médio em porcentagem das
interrogativas total (perguntas sim/ não) e parcial (perguntas iniciadas com
pronome interrogativo), isto é, as configurações melódicas apresentadas são
resultantes da F0 normalizada, conforme explicado na seção anterior.
Com base em nossos dados, verificamos que, no tipo total, possuíram
uma curva melódica descendente as interrogativas neutras, retóricas sarcás-
ticas, supositivas, críticas, incrédulas e indutivas, e, no tipo parcial, as interro-
gativas neutras, retóricas, retóricas com irritação, com interesse, críticas, com
dúvida e com irritação. A configuração descendente da curva dessas interroga-
tivas vai de encontro com o que Moraes (1993; 2008) descreve para as inter-
rogativas do tipo total, mas vai de acordo com a descrição do autor para as do
tipo parcial. O gráfico 2 apresenta uma curva melódica descendente exempli-
ficado pela interrogativa com interesse do tipo total.

308
Gráfico 2 – Curva melódica de uma interrogativa incrédula do tipo total

Fonte: Elaboração própria.

Nas interrogativas mencionadas com a configuração melódica descen-


dente, os falantes realizavam gestos manuais10 com ambas as mãos, com a mão
direita ou com a mão esquerda, com formato aberto, um dedo apontando ou
combinação de dedos. A palma das mãos estava na vertical, na diagonal, para
cima (cf. 1, figura 4) ou para baixo. Esses gestos eram direcionados para dentro,
para fora ou para baixo e estavam numa distância pequena, média ou longa,
relativamente ao falante. Ao realizarem esse tipo de pergunta, os falantes ora
levantavam externamente as sobrancelhas, ora abaixavam e, quando as abai-
xavam, os olhos estavam semicerrados ou as pálpebras estavam abaixadas. Os
falantes também puxavam o canto do lábio ao mesmo tempo que levantavam
as bochechas. A posição da cabeça nesse tipo de pergunta era variada: ora
virada para a esquerda ou para a direita, inclinada para a esquerda ou para a
direita, levantada ou abaixada, ora para frente ou para trás (cf. 2, figura 4). As
posições de olhos virados para a esquerda, virados para a direita e abaixados
estavam presentes nas perguntas que apresentaram essa configuração da curva.

10
Exceto pelo tipo retórica sarcástica que não teve a realização de gestos manuais
pelos falantes.

309
Figura 4 – Exemplos de gestos realizados numa pergunta incrédula do tipo total

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bbVKk3uh3qE&t=244s.

Os resultados mostraram que apenas as interrogativas do tipo total com


interesse apresentaram uma curva melódica ascendente. A curva ascendente
dessas interrogativas vai de acordo com o que Moraes (1993; 2008) descreve
para as interrogativas do tipo total. O gráfico 3 apresenta uma curva melódica
com essa configuração da pergunta com interesse do tipo total.

Gráfico 3 – Curva melódica de uma interrogativa com interesse do tipo total

Fonte: Elaboração própria.

310
Nas perguntas que exprimiam interesse, caracterizadas pelo tipo total,
os falantes realizavam gestos com ambas as mãos e com a mão direita, no for-
mato aberto, um dedo apontando ou combinação de dedos, estando a palma
das mãos sempre na diagonal, para cima ou para baixo. Esses gestos eram dire-
cionados para fora, para dentro ou para baixo, numa distância média em rela-
ção ao corpo do falante. Nesse tipo de pergunta, os falantes levantavam exter-
namente as sobrancelhas e puxavam o canto dos lábios ao mesmo tempo que
levantavam as bochechas (cf. 1, figura 5). Além disso, os falantes fechavam ou
semicerravam os olhos e a cabeça se encontrava em várias posições: virada para
a esquerda ou para a direita (cf. 2, figura 5), levantada ou abaixada, inclinada
para a esquerda, para frente ou para trás. Os olhos estavam ora virados para a
direita, ora abaixados ou levantados.

Figura 5 – Exemplos de gestos realizados numa interrogativa total com interesse

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XwYkInrKvdQ&t=332s.

Constatamos que a configuração ascendente e descendente (curva cir-


cunflexa) foi encontrada nas interrogativas, do tipo total, retórica surpresa, sar-
cásticas, com irritação e, do tipo parciais, apenas nas retóricas com dúvida.
Exemplo dessa configuração melódica é apresentado no gráfico 4 através de
uma amostra de pergunta do tipo sarcástica.

311
Gráfico 4 – Curva melódica de uma interrogativa sarcástica do tipo total

Fonte: Elaboração própria.

Nas interrogativas com essa configuração melódica circunflexa, os falan-


tes realizavam gestos manuais11 com ambas as mãos, com a mão esquerda ou
com a mão direita, no formato aberta, um dedo apontando ou combinação de
dedos. A palma das mãos estava na vertical, para cima ou para baixo. Esses
gestos se direcionavam para fora, para dentro, para baixo, para cima, estando
numa distância média ou longa, em relação ao falante. Nessas perguntas, os
falantes ora levantavam as sobrancelhas, ora abaixavam (cf. 1, figura 6), muitas
vezes fechando e semicerrando os olhos, ou abaixando as pálpebras. O canto
do lábio puxado também apareceu nesse tipo de pergunta e veio acompanhado
do levantamento das bochechas. A cabeça se posicionou de várias formas:
virada para a esquerda ou para a direita, levantada ou abaixada, inclinada para
a esquerda ou para a direita (cf. 2, figura 6), para frente ou para trás. Apenas as
posições de olhos levantados ou abaixados se fizeram presentes em perguntas
com essa configuração melódica.

11
Exceto pelos tipos retórica surpresa (total) e sarcástica (total) que não tiveram a
realização de gestos manuais pelos falantes.

312
Figura 6 – Exemplos de gestos realizados numa pergunta sarcástica do tipo total

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ufaNRe0osjg.

Apenas as interrogativas do tipo total apresentaram uma curva melódica


descendente e ascendente (formato V). Entre elas estão: retóricas, retóricas
com dúvida, retóricas com irritação e interrogativas com polidez (total). O
gráfico 5 apresenta um exemplo dessa configuração melódica da curva por
meio da amostra de uma pergunta retórica.

Gráfico 5 – Curva melódica de uma interrogativa retórica do tipo total

Fonte: elaboração própria.

313
Nas interrogativas com essa configuração melódica descendente e ascen-
dente, os falantes realizavam gestos manuais12 com ambas as mãos, com a mão
esquerda ou com a mão direita, no formato aberta, fechada, um dedo apon-
tando ou combinação de dedos. A palma das mãos estava na vertical, diagonal,
para cima ou para baixo. Esses gestos se direcionavam para fora, para dentro,
para baixo, para cima, estando numa distância média ou longa, em relação
ao falante. Nessas perguntas, os falantes ora levantavam as sobrancelhas, ora
abaixavam (cf. 1, figura 7), muitas vezes fechando, semicerrando os olhos (cf. 2,
figura 7), ou abaixando as pálpebras. O canto do lábio puxado também apare-
ceu nesse tipo de pergunta e veio acompanhado do levantamento das boche-
chas. A cabeça se posicionou de várias formas: virada para a esquerda ou para a
direita, levantada ou abaixada, inclinada para a esquerda (cf. 3, figura 7) ou para
a direita, para frente ou para trás. Apenas as posições de olhos levantados ou
abaixados se fizeram presentes em perguntas com essa configuração melódica.

Figura 7 – Exemplos de gestos realizados numa pergunta retórica do tipo total

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XwYkInrKvdQ&t=332s.

As interrogativas com dúvida do tipo total apresentam uma configura-


ção melódica mais homogênea, conforme nos mostra o gráfico 6. Esse tipo de

12
Exceto pelas perguntas com polidez que não tiveram a realização de gestos manuais
pelos falantes.

314
pergunta apresentou uma curva com uma queda do início para o meio, do meio
para o fim e do fim para o início.

Gráfico 6 – Curva melódica de uma interrogativa com dúvida do tipo total

Fonte: elaboração própria.

Nas perguntas, do tipo total, que exprimiam dúvida, os falantes reali-


zavam gestos manuais ora com ambas as mãos simultaneamente, ora com a
mão direita ou a mão esquerda, com os formatos aberto, um dedo apontando
ou combinação de dedos. Nesses gestos, a palma das mãos estava ora na verti-
cal, ora na diagonal, para baixo ou para cima. Esses gestos eram direcionados
para fora, para baixo, para a direita ou para a esquerda, estando à distância
pequena, média ou longa em relação ao corpo do falante (conforme 2, figura 7).
Nesse tipo de pergunta, os falantes levantavam externamente as sobrancelhas
ou as abaixavam (conforme 1, figura 8). Quando este ocorria, muitas vezes os
olhos estavam semicerrados ou havia um aprofundamento nasolabial. Além
disso, o canto do lábio puxado ocorria ao mesmo tempo em que se levanta-
vam as bochechas. A posição da cabeça variou, nesse tipo de pergunta: estava
virada para a esquerda ou para a direita, levantada ou abaixada, inclinada para a
esquerda ou inclinada para a direita, ou para trás. Nas interrogativas totais com
dúvida, somente a posição de olhos abaixados estava presente.

315
Figura 8 – Exemplos de gestos realizados numa pergunta total com dúvida

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XwYkInrKvdQ&t=332s.

4.2 Tessitura
Além de ter correlacionado os dados acústicos com os dados gestuais, o
nosso trabalho se propôs, também, a analisar a tessitura, resultado da subtração
entre o maior e menor valor de f0 da sentença, dos diferentes tipos de interro-
gativas encontrados, apresentados na seção anterior.
Através dos resultados, verificamos que as perguntas retóricas surpre-
sas (total), sarcásticas (total) , retóricas com irritação (total), neutras (total e
parcial), indutivas (total), retóricas sarcásticas (total), perguntas com interesse
(total), incrédulas (total), pergunta com irritação (total), retóricas (total), per-
gunta supositiva (total) apresentaram uma tessitura menor em relação às per-
guntas retóricas (parcial), perguntas com dúvida (total e parcial), perguntas
com polidez (total), críticas (total e parcial), perguntas com irritação (parcial),
perguntas retóricas com dúvida (total e parcial) e perguntas retóricas com irri-
tação (parcial). Enquanto as primeiras tiveram o valor de delta entre 95,6 e
154,5 Hz, as com tessitura maior tiveram o valor de delta entre 155,1 e 219,1
Hz. Vejamos o quadro 1, para as totais, e o quadro 2, para as parciais:

316
Quadro 1 – Valores de Δ F0 (Hz) das interrogativas totais

Mais baixa (95,6 e 154,5 Hz) Mais alta (155,1 e 219,1 Hz)
Retórica surpresa (total) Dúvida (total)
Sarcásticas (total) Polidas (total)
Retóricas com irritação (total) Críticas (total)
Neutras (total) Retóricas com dúvida (total)
Indutivas (total)
Retóricas sarcásticas (total)
Interesse (total)
Incrédulas (total)
Irritação (total)
Retóricas (total)
Supositivas (total)

Fonte: Elaboração própria.

Quadro 2 – Valores de Δ f0 (Hz) das interrogativas parciais

Mais baixa (95,6 e 154,5 Hz) Mais alta (155,1 e 219,1 Hz)
Neutras (parcial) Retóricas (parcial)
Dúvida (parcial)
Críticas (parcial)
Irritação (parcial)
Retóricas com dúvida (parcial)
Retóricas com irritação (parcial)

Fonte: Elaboração própria.

De modo geral, verificou-se que, nos tipos de interrogativas que foram


caracterizados tanto pelo tipo total, quanto pelo tipo parcial, a tessitura média
das interrogativas parciais era maior que as totais de cada tipo.

Considerações finais

De forma geral, os resultados apresentados nesta pesquisa endossaram


tanto a importância da F0, quanto dos gestos faciais e manuais na produção e

317
marcação de interrogativas do PB. Buscando responder às questões norteado-
ras do nosso trabalho:

I - Quais expressões faciais e quais gestos manuais estão envolvidos


na produção de perguntas com diferentes atitudes do falante?

Gestos manuais ora com ambas as mãos, ora com a mão direita ou a
mão esquerda, com os formatos aberto, um dedo apontando ou combinação
de dedos. Palma das mãos ora na vertical, ora na diagonal, para baixo, para
cima, para a esquerda ou para a direita. A direção dos gestos para fora, para
dentro, para cima, para baixo, para a direita ou para a esquerda e distância
pequena, média ou longa em relação ao corpo do falante. Os falantes abai-
xavam ou levantavam externamente as sobrancelhas; muitas vezes os olhos
estavam fechados e/ou semicerrados ou havia um aprofundamento nasolabial.
Além disso, o canto do lábio puxado ou em depressão, bem como as bochechas
levantadas estiveram presentes nas interrogativas encontradas. A posição da
cabeça variou nessas perguntas: estava virada para a esquerda ou para a direita,
levantada ou abaixada, inclinada para a esquerda ou inclinada para a direita, ou
para trás. E a posição dos olhos estava ora virada para a esquerda, para a direita,
levantada ou abaixada.
Esses gestos reforçam trabalhos importantes que adotam os movimen-
tos faciais e/ ou corporais como uma prosódia visual. Trabalhos como o de
Munhal et. al. (2004), Krahmer e Swerts (2007), Pacheco (2011) e Pacheco e
Oliveira (2016) têm mostrado que os gestos faciais e/ ou manuais estão ligados
a elementos suprassegmentais, funcionando mesmo como uma prosódia visual.

II - Há um padrão nas características gestuais e acústicas para esses


diferentes tipos de pergunta?

A partir dos resultados obtidos, verificamos que não houve um padrão


acústico e/ou gestual específico de determinados tipos de pergunta, mas que,

318
por meio da entoação e dos movimentos manuais e /ou faciais, as interrogati-
vas do PB são mais marcadas.
Esses resultados corroboram nossa hipótese de que as pistas visuais
complementam as pistas auditivas na produção das interrogativas e seus dife-
rentes tipos, mas não estão diretamente relacionados às diferentes intenções,
por parte de quem fala, presentes numa interrogação. Sendo assim, a nossa
hipótese de que os gestos faciais e/ou manuais são característicos de determi-
nados tipos de pergunta não foi confirmada.
O que podemos depreender dos resultados obtidos é que, ainda que não
tenhamos encontrado padrões gestual e acústico, as atitudes do falante em inter-
rogativas podem ser mais marcadas através dos movimentos corporais e/ou
faciais e da entoação realizados pelo falante. Essas evidências corroboram forte-
mente os estudos que dão fundamental relevância à F0 para investigar variações
melódicas como a interrogação, bem como aos estudos que assumem os gestos
faciais e corporais como importantes fontes de informações prosódicas.

Referências

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322
SOBRE OS AUTORES

• Ana Suelly Arruda Câmara Cabral – Possui graduação em Letras pela Universidade
Regional do Nordeste (1974), graduação em Artes Plásticas pela Université de Paris
I (Panthéon-Sorbonne) (1978), mestrado em Letras pela Université de Paris III-
Sorbonne-Nouvelle, 1976), mestrado em Estética da Arte pela Université de Paris I,
Panthéon-Sorbonne (1979), doutorado em Linguística pela University of Pittsburgh,
PA (1995); realizou estágio pós-doutoral em Linguística Histórica na Universidade
de Brasília, sob a supervisão de Aryon Dall?Igna Rodrigues. Foi pesquisadora na
Fundação Nacional Pró-Memória (1983-1996), onde atuou como representante de
projetos de educação indígena no âmbito do Projeto Interação e contribuiu com a pes-
quisa de programas da série Brasil Corpo e Alma coordenada pela Fundação Roberto
Marinho e pela Fundação Pró-Memória. Foi Coordenadora do Núcleo de Estudos
sobre a Amazônia (NEAz) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares
(CEAM-UnB) e exerceu a função de vice-diretora do Instituto de Letras da mesma
Universidade. Foi primeira secretária da Abralin (2001-2003) e coordenadora do
Grupo de Trabalho de Línguas Indígenas da ANPOLL. Atualmente é professora
Titular do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas do Instituto
de Letras da Universidade de Brasília, onde atua na graduação e na pós-graduação.
No Instituto de Letras, atua também na qualidade de coordenadora do Laboratório
de Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI) e como editora da Revista Brasileira de
Linguística Antropológica (Qualis A1).

• Andérbio Márcio Silva Martins – Licenciado em Letras Português, Mestre e


Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Linguística
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e pesquisador vinculado ao
Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI/UnB). Desenvolve e orienta
pesquisas em Linguística Descritiva, Histórico-Comparativa e Ensino de Línguas
Indígenas no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD. Desde 2010 con-
tribui com a formação linguística de professores Guarani e Kaiowá na Licenciatura
Intercultural Indígena – Teko Arandu, curso lotado na Faculdade Intercultural
Indígena da UFGD.

323
• Audinéia Ferreira-Silva – Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2016). Atualmente, é pro-
fessora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Itapetinga. Tem
experiência na área de Linguística e Língua Portuguesa, atuando principalmente nos
seguintes temas: percepção, fricativas surdas e sonoras, duração segmental, português
brasileiro e fricativas.

• Débora Aparecida dos Reis Justo Barreto – Graduada em Letras (bacharelado e


licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade
de Ciências e Letras de Araraquara, UNESP (ano de conclusão: 2016). Mestre em
Linguística e Língua Portuguesa pela mesma instituição (ano de conclusão: 2019).
Atualmente, cursa Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa (no mesmo
Programa de Pós-graduação). É integrante do grupo de pesquisa Fonologia do
Português: Arcaico e Brasileiro desde 2014, sob coordenação da Profa. Dra. Gladis
Massini-Cagliari.

• Edineia Aparecida Isidoro – Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília


(2020), Mestrado em Sociolinguística pela Universidade Federal de Goiás (2006).
Graduação em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (1992). Graduação em
Ciências pela Faculdade de Ciências e Letras de Jandaia do Sul (1983), com habilitação
em matemática pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Mandaguari (1984).
Atualmente é professora titular da Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR), onde atua no curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural, no
Departamento de Educação Intercultural - DEINTER.

• Gladis Massini-Cagliari – Professora Titular no Departamento de Linguística,


da Faculdade de Ciências e Letras UNESP/Araraquara. Doutora em Linguística
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com Pós-Doutorado na
University of Oxford e Livre-Docência em Fonologia, pela Faculdade de Ciências
e Letras UNESP/Araraquara. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Fonologia do
Português: Arcaico & Brasileiro. Atuou como membro do Comitê Assessor da área
de Letras e Linguística (CA-LL) do CNPq (2016-2019). Atualmente, é Pró-Reitora
de Graduação da UNESP.

• Fábio Pereira Couto – Professor Adjunto da Fundação Universidade Federal de


Rondônia (UNIR). Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília. Coordenador
do Laboratório de Línguas e Culturas Indígenas do Curso de Educação Intercultural
- LALIC/Unir. Coordenador Institucional do Programa Saberes Indígenas na Escola.

324
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Fonologia - NEFONO (UNIR/Porto Velho).
Pesquisador do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas - LALLI/UnB.

• Felipe Guedes Moreira Vieira – Acadêmico de Letras - Português e Inglês - da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação
Científica (PIBIC CNPq - UFRGS) na área de Aquisição Fonético-Fonológica de
L2, no Laboratório de Bilinguismo e Cognição (LABICO).

• Joana D’Arc de Camillo Corrêa – É mestranda do Programa de Pós-Graduação


Mestrado Acadêmico em Letras da Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR). Possui graduação em Letras pela Faculdade de Educação de Cacoal (2002).
É professora de Língua Portuguesa, pelo Governo do Estado de Rondônia, desde
1997. Atualmente, trabalha na Escola João Bento da Costa, com a disciplina de
Redação no Projeto Terceirão. Monitora de Redação no cursinho Pré-vestibular
Medquim, desde 2019.

• Karina Damaceno Dias – Licenciada em Letras Vernáculas e Mestre em Linguística


pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2014). Na graduação, foi bolsista
de Iniciação Científica da FAPESB (2012-2014) e, no mestrado, bolsista CAPES
(2016-2017). 

• Luiz Carlos Cagliari – Pesquisador Sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento


Científico e Tecnológico (CNPq). Professor aposentado da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP) e professor Colaborador Voluntário do Departamento
de Linguística, Literatura e Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras
UNESP/Araraquara, atuando principalmente no Programa de Pós-Graduação de
Linguística e Língua Portuguesa dessa Instituição

• Marcus Garcia de Sene – Doutor e mestre em Linguística e Língua Portuguesa


pela Universidade Estadual Paulista - Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Araraquara).
Licenciado em Letras Português - Inglês pela Universidade Federal do Triângulo
Mineiro. Foi professor colaborador da UNESP/Araraquara durante o primeiro
semestre de 2019. É membro colaborador do GT de Sociolinguística da ANPOLL
e sócio da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN). Integra o Núcleo de
Pesquisa em Sociolinguística de Araraquara (SoLAr). 

• Marian Oliveira – Professora Adjunta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia


(UESB), docente do Programa de Pós-graduação em Linguística e do ProfLetras.

325
Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
área de concentração Fonética e Fonologia, com pesquisa que relaciona síndrome de
Down e produção vocálica. Coordena projetos de pesquisa sobre o sistema fonético-
-fonológico de pessoas com síndrome de Down. Atualmente, é líder do Grupo de
Pesquisas e Estudos em Síndrome de Down-Saber Down (CNPq-UESB).

• Natália Cristine Prado – Professora Adjunta do Departamento Acadêmico de Letras


Vernáculas da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e do Programa
de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em Letras. Doutora em Linguística e
Língua Portuguesa pela Faculdade de Ciências e Letras UNESP/Araraquara, com
período de Estágio de Pesquisa no Exterior na Universidade de Lisboa. A autora é
líder do Núcleo de Estudos em Fonologia - NEFONO (UNIR/Porto Velho).

• Ubiratã Kickhöfel Alves – Professor do Departamento de Línguas Modernas


da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Letras -
Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC - RS), com estágio na University of Massachusetts - Amherst, Estados Unidos.
Ademais, seu estágio de pós-doutorado ocorreu na Universidad Nacional de Mar del
Plata, Argentina.

• Valdeci Scaliante de Santana – Graduado em Pedagogia pela - Faculdades


Adamantinenses Integradas - FAI (2009) e Especialização em Alfabetização e
Letramento pela UNITOLEDO - Araçatuba (2011). Atualmente é professor
de Educação Básica na cidade de Rinópolis. Mestrando em Linguística e Língua
Portuguesa, na linha de pesquisa análise fonológica, morfossintática, semântica e
pragmática na Unesp de Araraquara. 

• Valdene Moura Lopes – Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pela


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Mestre em
Letras (ProfLetras) pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Possui gradua-
ção em Letras Vernáculas (2006) e Especialização em Língua Portuguesa (2007) pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Lecionou na Faculdade Jardins, polo
Jequié (2019). É professora da rede Municipal de Jequié, desde 1998, tendo atuado
em todos os ciclos do Ensino Fundamental.

• Vera Pacheco – Professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia


(UESB). Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e pós-doutorado pela Faculdade de Ciências e Letras UNESP/
Araraquara.

326
FONOLOGIA E SUAS INTERFACES:
contribuições para pesquisa,
descrição e ensino de línguas

para pesquisa, descrição e ensino de línguas


Fonologia e suas interfaces: contribuições
Organizadores
Natália Cristine Prado
Fábio Pereira Couto

Pós-Graduação da UNIR
Coleção
ISBN 978-85-77641-03-1

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