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Explicara Ascensãodo Autoritarismo


e Fascismodo Períodoentre Guerras

Apresentação:a ascensãode Estados-naçãofortes

Para explicar o fascismo devemos pô-lo no seu contexto. Durante três déca-
das ele foi apenas uma variação de um ideal político mais vasto: o "estatismo
nacionalista autoritário". Por sua vez, este era apenas uma versão do ideal polí-
tico dominante da modernidade, o Estado-nação forte. Mas o fascismo só impe-
rou na Europa, onde se estabeleceu no interior de um só grande bloco geográ-
fico de regimes autoritários. Dado que noutras paragens a Europa continuava a
ser democrática e liberal, havia "duas Europas".
A força do Estado tem duas dimensões, a infra-estrutural e a despótica (ver
Mann 1988). O poder infra-estrutural indica a capacidade do Estado para fazer
valer leis e regras através de infra-estruturas eficazes que abrangem os seus
territórios e populações. Um Estado infra-estruturalmente forte pode ser demo-
crático ou autoritário. Os Estados Unidos, país democrático, têm mais poder
estatal infra-estrutural do que tinha a autoritária União Soviética. Este tipo de
poder é poder "através" das pessoas, e não "sobre" elas. Mas o poder despótico
refere-se à capacidade das elites do Estado para tomar as suas decisões "sobre"
os seus súbditos/cidadãos. Praticamente todos os Estados modernos passaram
a possuir mais poderes infra-estruturais do que os seus antecessores histó-
ricos, embora alguns também tenham exercido tremendos poderes despóticos.
A combinação de uma quantidade substancial de ambos os poderes caracteriza

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FASCISTAS E. PLICAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

os Estados autoritários do século xx, que aqui procuro explicar. Como e dos Unidos, enquanto na Alemanha a não-ingerência do Estado na economia era
formou a combinação? A resposta é: ao exagerar vulgares ideais políticos contestada pelas teorias proteccionistas de Friedrich List. No final do século,
modernos. alguma teoria económica tornara-se um pouco mais estatista, com o Estado a
No século XX a Europa já englobava "Estados-nação soberanos". Ou seja, começar a coordenar o investimento bancário e industrial. Nessa mesma altura
cada um desses Estados reclamava soberania política sobre certos territórios dá-se a organização estatal dos caminhos-de-ferro, do ensino generalizado, da
obtendo legitimidade do "povo" ou "nação" que os habitava (é claro que muitos saúdepública, e por fim os primeiros sinais dos programas de assistência social.
ainda eram multiétnicos). Todavia, os Estados-nação são jovens. A partir dos Tudo isto foram expansões de poder infra-estrutural. Porque todos estes bens
séculos XVI e XVII, os monarcas reivindicavam a soberania do Estado na política eramdesejáveis, a pagar através de impostos indesejáveis, cada vez mais popu-
externa, surgiam "nações de classe alta", e as guerras religiosas podiam produ- lação começou a interessar-se pelo governo representativo e pela cidadania -
zir "nações da alma". Mas só mais recentemente a massa da população setor- isto é, a redução dos poderes despóticos.
nou um verdadeiro "membro" da nação. Até ao século XVIII, os Estados pouco Essas actividades)do Estado também tiveram a consequência involuntária de
faziam. Conduziam a diplomacia e pequenas guerras no estrangeiro, e exerciam onsolidar redes de interacção social, "sociedades civis", substancialmente liga-
o maior grau de justiça e repressão. Regulavam formalmente o comércio externo das pelos territórios de cada Estado. Isso acalentou um sentido implícito de iden-
e possuíam monopólios económicos, normalmente subéontratados a outros. tidade nacional - menos uma ideologia do nacionalismo do que um reconheci-
Alguns controlavam o preço dos cereais, para impedir tumultos perto da capital. mento da efectiva existência numa sociedade única, no mesmo Estado, como
Só quando eram apoiados por Igrejas estabelecidas e cooperantes os Estados co-súbditos/cidadãos. Mas o nacionalismo explícito também se fortaleceu no
penetravam mais na vida social fora das suas capitais e "burgos de origem". mesmoperíodo. Nos países do Noroeste da Europa e nas colónias europeias que
Contudo, os Estados do século XVIII monopolizaram a função da violência mili- primeiro obtiveram "o governo pelo povo", esse "povo" fora limitado a homens
tar, e esta intensificou-se. Por volta de 1700, os Estados talvez absorvessem 5% de posses, reconhecidos detentores de "interesses": cavalheiros, negociantes,
do PIB em tempo de paz, e 10% durante uma guerra. Em 1760, a taxa de tribu- fabricantes, artesãos, etc. O corpo da cidadania estava estratificado internamente
tação em tempo de guerra subira para um escalão entre 15 a 25%. Em 1810, e existia acima das classes mais baixas, que dispunham de alguns direitos de
os Estados retiravam 25 a 30% e alistavam cerca de 5% da população. São cidadania, mas não todos. O povo ou nação era contraposto a antigos regimes
proporções (calculadas em Mann 1993: cap. 11) semelhantes às das guerras reaccionários, mas era internamente diverso, e em geral não era hostil a outras
mundiais do século xx, e às proporções mais altas no· mundo contemporâneo, nações.
as de Israel e da Coreia do Norte. Estas comparações permitem-nos avaliar a Contudo, durante o século XIX (Mommsen 1990) foi ganhando força um
escala de transformação no século XVIII. Os Estados passaram de uma razoá- nacionalismo mais agressivo. Até certo ponto, este cresceu porque o desejo de
vel insignificância ao agigantamento nas vidas dos seus súbditos, através de um governo representativo passou a ser dominado pela ideia de que todo o povo
cobradores de impostos e sargentos de recrutamento. Despertaram os súbditos deve governar, por partil~ar certas virtudes e qualidades necessárias à cidadania.
da sua indiferença política histórica, até eles exigirem direitos representativos. Cresceu em especial nas regiões mais orientais dominadas por impérios dinásti-
Assim, a filiação na nação, a "cidadania", começou a tornar-se o ideal político cos "multiétnicos" - o dos Habsburgos, o dos Romanov, e o Otomano. Aqui, os
moderno. conflitos entre os governadores imperiais e as populações locais transformaram-
No entanto, mesmo no século XIX poucos viam no Estado o caminho para -se, pelas exigências da democracia, em conflitos .entre supostas comunidades
alcançar objectivos sociais muito importantes. Considerava-se a liberdade étnicas/nacionais. Perante pressões a partir de baixo, as elites locais desprivile-
sobretudo como liberdade do Estado, não através do Estado. Só com os jacobi- giadas, que reclamavam para si direitos representativos, procuraram mobilizar o
nos, na Revolução Francesa, é que se exprimiu a ideia de que um Estado mais povo "todo" contra a etnia imperial e os seus clientes étnicos locais. Isso propi-
forte e um conceito mais activista de cidadania podiam ser social e moralmente ciou a aceitação da noção de Corradini de que "a nação proletária" podia levan-
desejáveis. O jacobinismo foi derrotado, mas a expansão do Estado tomou então tar-se contra os opressores. Croatas, Eslovenos e outros podiam ressentir o
uma via mais sub-reptícia, propulsionada pelo desenvolvimento do capitalismo domínio turco ou sérvio; os Romenos podiam ressentir os Húngaros; os Eslova-
industrial. Os Estados patrocinaram a construção de estradas e canais, e toma- cos podiam ressentir os Checos; e quase todos podiam ressentir os dominadores
ram a seu cargo a assistência aos pobres. A França continuou a favorecer mais a alemães, russos e turcos. Os Alemães, Russos e Turcos (e depois os Húngaros)
coordenação estatal da actividade económica do que a Grã-Bretanha ou os Esta- imperialistas respondiam então com os seus contranacionalismos. Os judeus

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sofreram porque eram cosmopolitas e, por isso, considerados antinacionais. Mas ruisse,e 3) no seu direito a excluir as minorias com caracteres diferentes, que só
o anti-semitismo também se misturava com outros conflitos nacionalistas: enfraqueceriama nação. ,"(
o anti-semitismo checo era impelido por um sentimento antigermânico, o eslo- Esta é a história conhecida da "ascensão sem queda" das nações e Estados
vaco pelo antimagiar, enquanto o anti-semitismo magiar e austríaco se alimen- rnodernos- para a qual eu próprio contribuí (Mann 1986, 1993: especialmente
tava de anseios de revisionismo imperial. Em todos estes casos os judeus eram capítulos10 e 11). Contudo, a expansão dessas redes de interacção nacional evo-
odiados em parte pela sua pretensa aliança com um qualquer outro inimigo luíaparalelamente a relações de poder "transnacionais" que também se expan-
nacional. O nacionalismo, de início uma aliança idealista dirigida internamente diam- o capitalismo industrial e ideologias relacionadas, como o liberalismo e
contra governadores "feudais", tomou-se agressivo contra outras "nações", no 0
socialismo, juntamente com as redes culturais mais vastas fornecidas pelas
país e no estrangeiro. noçõeseuropeia/cristã/"branca" de identidade colectiva. Por todo o lado, a pro-
Assim surgiu o ideal do Estado-nação orgânico, por oposição ao Estado- priedade era em grande parte "privada". Nenhum Estado intervinha muito na
-nação liberal e estratificado (ou do "nacionalismo étnico" por oposição ao economia,excepto para cobrar tarifas às importações, exercer protecção econó-
"nacionalismo cívico"). Consideremos a Áustria (analisada por Schmidt-Hartmann mica,coordenar redes de comunicações (em especial a ferrovia) e regular a acti-
1988, e com discussão aprofundada em The Dark Side of Democracy ). Em 1882, vidadebancária. Em tomo da semiperiferia europeia nasceram outras noções de
três jovens políticos austríacos apresentaram o "Programa de Linz", que preten- políticas de "desenvolvimento tardio" subsidiadas pelo Estado, mas antes de
dia fundar um novo Partido Popular Alemão. O programa combinava naciona- 1914não tiveram muita importância. Assim, muita da vida social permanecia
lismo alemão, sufrágio universal e legislação social progressista. Denunciava fora da esfera de competência do Estado-nação, mesmo durante o seu período
igualmente o liberalismo, o capitalismo sem regulação e o socialismo marxista. de maior expansão. Do Estado, poucos esperavam muito mais.
Os três políticos declararam que enquanto os liberais defendiam uma constitui- Tambémos políticos não esperavam. Antes de 1914, a maioria das pessoas de
ção que consagrava o conflito de interesses, eles apoiavam a "substância" da esquerdaempenhava-se em versões descentralizadas da democracia, e a sua rela-
democracia. A sua legitimidade, afirmavam, assentav~ na unidade do povo, no çãocom o Estado era ambivalente. Na extrema-esquerda, os restos do jacobinismo
"bem de todos", nos "interesses do povo". O partido planeado nunca se concre- eram suplantados por uma profunda desconfiança de todos os Estados existentes
tizou. Os três separaram-se e foram fundar os seus próprios partidos. Adler tor- e do nacionalismo que os apoiava. A ideologia socialista só reconhecia classes
nou-se um líder dos sociais-democratas, Lueger fundou os sociais-cristãos e transnacionais(embora muitas vezes as práticas fossem diferentes). O conhecido
Schõnerer criou o que veio a ser o Partido Pan-Germânico - foram estes os três ·ilênciode Marx quanto ao Estado pós-revolucionário, as suas declarações super-
partidos de massas da Áustria do período entre as guerras, que geraram movi- ficiaissobre como o Estado "desapareceria" pouco a pouco, e que a classe operá-
mentos sociais bastante totalizadores, dois dos quais deram origem a movimen- ria não tinha nação, eram exemplos da indiferença da esquerda para com o Estado-
tos fascistas (que encontraremos no capítulo 6). -nação emergente. Os marxistas esperavam erradicar os Estados depois de os
Estes jovens austríacos apoiavam uma concepção orgânica do povo. e do usaremtemporariamente para mudar as formas da propriedade. Os anarco-sindi-
Estado. O povo, diziam, era uno e indivisível, unido, integral. Logo, o seu calistasachavam que era mais seguro para a esquerda passar sem qualquer tipo de
Estado não precisa de se basear na institucionalização de conflitos entre interes- Estado. É verdade que a esquerda queria que o Estado mitigasse a pobreza e
ses rivais. Um movimento nacional podia representar todo o povo, transcen- expandisseo ensino gratuito. Apesar disso, a assistência social de antes da guerra
dendo por fim qualquer conflito de interesses entre os grupos sociais no seu inte- era em geral dirigida não pelos socialistas mas pelos liberais de esquerda "bur-
rior. A luta de classes e os interesses sectoriais não deviam ser harmonizados, gue es", que se sentiam mais à vontade num Estado que há muito lhes facultara
mas transcendidos. Parecia um bom ideal, inas tinha o seu lado negro. De facto, direitos.Por isso costumavam ser os "Socialistas de Cátedra" alemães, os "Novos
todos os Estados continham riiinorias com os seus traços culturais próprios. Liberais"britânicos, os Radicais Republicanos franceses e a intelligentsia da zem-
Algumas dessas minorias tinham laços culturais com outro Estado estrangeiro, stva liberal russa, mais do que os marxistas ou a esquerda sindicalista, quem bus-
que a sua etnia dominava, e que consideravam a sua "pátria". Os nacionalistas cava um Estado expandido para patrocinar o desenvolvimento económico, cultu-
orgânicos encaravam-nas com suspeita. Atribuíam-lhes uma lealdade dividida, e ral e moral. Mas todos eles achavam que isso ajudaria a conseguir mais
por isso achavam que deviam ser excluídas da plena pertença à nação. Assim, os democracia.O que pretendiam era uma redução dos poderes despóticos.
nacionalistas orgânicos passaram a acreditar num 1) carácter, alma ou espírito À direita as coisas eram um pouco diferentes desde o surgimento dos nacio-
distinguível do das outras nações, 2) no seu direito a um Estado que o expri- nalistas extremistas antes de 1914. Já então eles apelavam aos velhos regimes

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para que mobilizassem a nação a fim de derrotar as forças corrosivas do libera- nistração única, coordenada pelo Estado. Isso não se produziu tão eficazmente
lismo e do socialismo. Como sublinha Sternhell, muitas ideias fascistas já cir~ na Rússia, na Áustria-Hungria e na Itália, pelo que se culpou o poder dos seus
culavam antes de 1914. Mas ~mbora entusiasmassem alguns intelectuais, elas antigosregimes (e a posição "não-patriótica" dos seus socialistas). Até os Esta-
haviam sido aproveitadas para movimentos de massas, que os elementos de dos não-beligerantes do Norte da Europa foram obrigados, pelo bloqueio e pela
esquerda foram os primeiros a criar, e que uns quantos partidos nacionalistas guerra submarina, a intervir com grandes meios (especialmente para introduzir
copiaram. Uns e outros eram mantidos na ordem pelos velhos regimes e pelas 0 racionamento, uma extensão radical dos poderes estatais). Na Europa só a
igrejas, que ainda controlavam a maioria dos Estados e dos votos, e que viam Espanhaneutral e Portugal continuaram como dantes, com os seus velhos regi-
com maus olhos a mobilização de massas. A nação, as massas deviam ser repre- mes e Estados fracos a manterem ainda legitimidade. No entanto, a maioria dos
sentadas pelas elites, e não activadas. Como sublinha Eley (1980), os grupos de Estados substituíra-se efectivamente à actividade privada e de mercado, prosse-
pressão nacionalista de direita começavam a alarmar os conservadores alemãe guindo grandes fins colectivos em nome da nação. O estatismo moderno tinha
e a desestabilizar a política externa germânica, mas internamente o seu papel na chegado,juntamente com o nacionalismo moderno.
política era muito menor. A Áustria assistiu provavelmente aos movimentos de Embora os aparelhos de intervenção tivessem sido desmantelados a seguir à
massas mais desenvolvidos do nacionalismo (Schorske 1981: cap. 3). Embora as guerra, o Estado infra-estruturalmente poderoso viera para ficar. Os direitos
funções do Estado fossem aumentando, muitos conservadores viam nele pouco civis foram alargados e esperava-se dos governos que minorassem o desem-
mais do que a manutenção da ordem e a ampliação de território. Quanto à prego do pós-guerra e a falta de habitação. Acrescentou-se a cidadania social à
esquerda, o Estado não era geralmente visto como "portador de um projecto cidadaniapolítica. Entre os tecnocratas, inclusive os economistas, começaram a
moral" (para repetir a frase memorável de Perez-Diaz). Os nacionalistas come- circularplanos mais ambiciosos de reconstrução social e desenvolvimento eco-
çavam a oprimir as minorias, enquanto se considerava desejável um crescimento nómico.À esquerda os socialistas venciam agora os seus rivais anarco-sindica-
moderado do "poder infra-estrutural" do Estado. Mas as duas coisas tinham os Jistas(excepto na Espanha neutral) e começavam a considerar que tanto a revo-
seus limites, e não existia um verdadeiro esforço para aumentar o poder despó- lução como a reforma se cumpriam através de mais acção do Estado. As visões
tico do Estado. O despotismo e o autoritarismo eram normalmente considerados de antes da guerra, de uma democracia que_em grande parte passasse sem o
característicos de "antigos regimes" que acabariam por desaparecer perante a Estado,pareciam obsoletas. Na Rússia, a guerra e a guerra civil tomaram os bol-
modernidade. Em 1914 poucos poderiam ter imaginado um futuro fascista, ou cheviques em estatistas mais fervorosos. Noutros países o liberalismo transfor-
até mesmo moderadamente autoritário. mou-se em social-democracia e o estatismo moderado deu passos em frente.
Se a Europa tivesse permanecido em paz, o crescimento estatal teria sem Mas a parte maior do drama deu-se à direita. À custa sobretudo da bandeira
dúvida continuado gradualmente, e os Estados teriam adquirido mais poderes do estatismo crescente, ela alcançou o poder em metade da Europa do período
infra-estruturais. O capitalismo industrial continuaria a requerer ajuda do Estado. entre as duas guerras. A sua erupção foi uma surpresa, pois os acordos de paz de
O reconhecimento dos direitos dos trabalhadores e das mulheres teria encora- 1918haviam sido dominados pelos liberais. O presidente Woodrow Wilson pro-
jado o desenvolvimento do Estado-providência. Um "estatismo nacionalista clamara o advento da "revolução democrática mundial". Os delegados de Ver-
moderado" teria surgido de qualquer modo, melhorado na semiperiferia pela alhes substituíram a Áustria-Hungria e partes dos Impérios Russo e Otomano
teoria estatista do "desenvolvimento tardio". Mas aconteceu a Grande Guerra. por uma dúzia de democracias putativas. Embora estas tendessem a consagrar o
Ela militarizou o Estado-nação e forneceu um modelo económico de como a poder de uma única nação dominante, as suas constituições garantiam os direi-
intervenção e o planeamento estatais podiam conseguir progresso económico. tos das minorias. Alguns liberais e socialistas chegaram a esperar que o resto do
Proporcionou também um modelo "paramilitar" de acção social colectiva, enfra- mundo- colónias e Estados dependentes - depressa pudesse segui-las. Parecia
queceu o conservadorismo tradicional, destruiu os impérios multinacionais que ter-se inaugurado uma nova ordem mundial, .de Estados-nação moderados e
eram os principais adversários do Estado-nação, e fortaleceu o nacionalismo democráticos.
agressivo contra o inimigo. Com a chegada ao poder de Lloyd George, Clemen- Com efeito, após breve agitação no pós-guerra, a Europa parecia avançar
ceau e Ludendorff em 1916, veio o sinal de que a guerra deveria agora ser por essa via. No fim da década de 20, todos os seus 28 Estados, à excepção de
"total" - conduzida não por um velho regime cavalheiresco, mas por uma nação um, tinham constituições que consagravam eleições partidárias, partidos políti-
mobilizada para o serviço militar e económico. Empresários, dirigentes sindi- cos concorrentes e garantias para as minorias. A maioria dos sufrágios ainda
cais, funcionários públicos, generais e políticos serviam lado a lado numa adrrú- excluía as mulheres (e alguns excluíam muitos homens), alguns executivos

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Regimesautoritários(ditaduras)
rassem tensões étnicas. Mas para a maioria dos europeus a Jugoslávia parece
I.iffiJcom data do golpede Estado ,.i!. uma excepção distante. Embora a democracia se revele de difícil exportação
.,
l.i Democracia para outras partes do mundo, ela domina o Ocidente.
CJ Autoritário Mas entre 1920 e 1945 o Estado-nação democrático liberal recuou, atacado
lt::I} Zona
fronteiriça pelos autoritários. Em 1938, 15 dos 27 regimes parlamentares europeus eram
instável
ditaduras de direita, cuja maioria se reclamava a encarnação de uma só nação
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URSS
orgânica, e restringia os direitos das minorias. O mapa 2.1 especifica a data do
l principal golpe de Estado em cada um desses países. Noutros continentes, as

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quatro ex-colónias britânicas de maioria branca - os Estados Unidos, Canadá,
Austráliae Nova Zelândia - tinham democracias só para brancos (na altura só a
Nova Zelândia permitia livre representação para a maioria dos não-brancos; a
[ffii} África do Sul e a Rodésia também possuíam impecáveis instituições parlamen-
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tares só para brancos). Mas os dois principais Estados asiáticos, o Japão e a
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China, haviam sucumbido ao autoritarismo; enquanto na América Latina só o
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Uruguai,Colômbia e Costa Rica permaneceram consistentemente democráticos,
''--' e a maioria dos regimes sofria flutuações. Portanto, o período entre as duas guer-
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(ff2w ras presenciou dois blocos globais e europeus, mais ou menos equivalentes, um
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democráticoliberal, o outro orgânico-autoritário.Ambos propunham Estados com
·:
,,.-4 infra-estruturasmais fortes; só os segundos procuravam também mais poderes
...
•. J
despóticos.O período acabou por culminar numa guerra total entre os dois. Como
~
explicara ascensão do autoritarismo de entre as guerras em metade, mas não em
MAPA2.1 As duas Europas
do períodoentre as guerras toda, a parte relativamente mais avançada do mundo e da Europa? Responder a
esta questão é uma condição necessária para compreender a segunda: porque se
originouo fascismo? O mapa da Europa fornece as nossas primeiras pistas.

tinham poderes que rivalizavam com as legislaturas, e amiúde as práticas políti-


cas contrariavam as normas constitucionais. Mas a democracia liberal parecia o Geografia:as duas Europas
ideal vindouro, moderno. O único caso divergente, a União Soviética, procla-
mava ser mais genuinamente democrática. As perspectivas para o nacionalismo O mapa 2.1, o mapa político da Europa do período entre as duas guerras,
tolerante não eram tão boas. Pressionados pelos seus Estados, milhões de refu- revela dois subcontinentes, "duas Europas", uma liberal democrática, outra
giados pertencentes a minorias fugiam para as suas nações de origem. Mas, de autoritária. As duas Europas eram geograficamente distintas, ocupando uma
maneira geral, as Grandes Potências acreditavam que o Estado-nação democrá- o Noroeste do continente, e a outra o seu Centro, Leste e Sul. À excepção da
tico liberal era o século xx. Checoslováquia(que limitava ligeiramente os direitos das suas minorias alemã e
No final do século xx, na Europa como em todo o Ocidente, era mesmo. eslovaca),a democracia liberal englobava um só bloco de 11 países no Noroeste:
O Noroeste da Europa foi firmemente liberal ou social-democrata por muitas Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Islândia, Irlanda, Grã-Bretanha,
décadas, como o foram as instituições políticas (de início só para brancos) das Holanda, Bélgica, Suíça e França. Quase todas as outras democracias liberais do
suas principais ex-colónias. Os regimes autoritários do Sul da Europa tinham mundo eram antigas colónias britânicas. Assim, o bloco liberal democrático
desaparecido em 1975. Os regimes comunistas a leste ruíram repentinamente em compreendia três zonas sócio-culturais - "nórdica", "anglo-saxónica" e "países
1989-91. No fim do milénio todos os Estados da Europa estavam formalmente baixos" - ligadas por uma economia mercantil marítima e semelhanças políticas
empenhados na democracia multipartidária, ainda que alguns regimes de antigos e ideológicas. Tinham adoptado a governação constitucional muito antes de
países comunistas apresentassem credenciais duvidosas e em vários deles afio- 1900.O mundo anglo-saxónico falava inglês; os países nórdicos (à excepção da

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Finlândia) falavam dialectos mutuamente inteligíveis do mesmo grupo linguís- derável.Pelo contrário, a República de Weimar continha uma democracia avan-
tico; e em toda a região, menos na França, Bélgica e Checoslováquia, as elite ada que podia ter sobrevivido. E o desfecho da luta em França e na Alemanha
podiam geralmente conversar em inglês. çodia também explicar-se em termos de geografia, pois os seus "corações" polí-
À excepção da Irlanda, tinham também religiões bastante despolitizadas. ~cos situavam-se perto do "outro" bloco geográfico. Paris e a Ile-de-France cir-
Dez dos 16 países eram maioritariamente protestantes. A Bélgica, Checoslová- cundanteficam a norte enquanto a maioria das regiões económicas avançadas da
quia, França e Irlanda eram maioritariamente católicas, enquanto a Holanda e a França estava no noroeste. O país estava tão integrado na esfera do Noroeste
Suíça se dividiam entre as duas religiões. O grupo incluía todos os países euro- protestante/democrática/de comércio livre dos Países Baixos e britânico, como
peus de maioria protestante, menos a Alemanha, a Estónia e a Letónia. Mas no Sul católico mais autoritário. Ao contrário, o núcleo do Estado alemão encon-
incluía todos os países protestantes onde os laços entre o Estado e a Igreja trava-se em Berlim e na Prússia, no leste do país. Muitas vezes descreve-se a
haviam enfraquecido significativamente durante o século anterior. O catoli- históriaalemã como o sequestro, pela Prússia, do seu Sudoeste liberal e dos seus
cismo suíço e o holandês eram também independentes do Estado, enquanto a portos setentrionais de comércio livre.
Bélgica, a Checoslováquia e a França eram países católicos bastante seculare, A "zona de fronteira" também é representada neste livro pelo país que assis-
(e a Igreja checa estava em conflito com o Vaticano). O Noroeste partilhava tiu à mais prolongada luta entre a democracia e o autoritarismo, a Espanha.
muito mais do que o Estado-nação democrático liberal, e a sua coesão geográ- o capítulo 9 mostra quão longa e renhida foi essa luta. Há também três países
fica possibilitava o fluxo de mensagens ideológicas comuns. Como adiante vere- politicamente fronteiriços - pois antes de 1934 existiam democracias algo
mos, a sua solidariedade cultural iria ter considerável importância. imperfeitasna Finlândia, Checoslováquia e Áustria. Além do mais, os movimen-
A maioria da família orgânico-autoritária também formava um bloco geo- to autoritários do Noroeste prosperaram apenas em cenários divididos, dentro
gráfico único, embora se compusesse de duas zonas sócio-culturais histórica dessa zona de fronteira, ou adjacentes a ela. Na Checoslováquia etnicamente
bastante distintas: a "latino-mediterrânica" e a "eslava do Leste e Centro euro- dividida, o Partido Sudeta Alemão envolveu a minoria germânica até atingir
peus". As suas línguas eram mais diversas, e não eram um bloco comercial. Mas I % dos votos em 1935; na Eslováquia, mais 10% foram para o Partido Hlinka.
(aparte a maioria da Alemanha, Estónia e Letónia), tinham permanecido com as a Bélgica linguísticamente dividida, o Christus Rex obteve 11,5% em 1936
duas primeiras Igrejas cristãs: englobavam a maioria dos países católicos e todo ( obretudo entre os francófonos), enquanto o VNV flamengo conseguiu 7,1 %.
os países ortodoxos da Europa. E incluíam todos os países (excepto a Irlanda) Mas quando os líderes rexistas adaptaram o fascismo, a sua votação caiu para
que conservavam laços intensos entre a Igreja e o Estado. Uma vez mais, estas 4.4%, em 1939, e quando o VNV aceitou subsídios nazis o seu apoio esmore-
solidariedades culturais - e as linhas de falha culturais dentro dessa zona - reve- ceu. O Movimento Lapua/lKL finlandês pôde explorar a vitória da direita na
lar-se-iam importantes na criação do autoritarismo e do fascismo. guerracivil e o irredentismo anti-soviético para obter 8,3% em 1936, embora em
À volta dessa "divisão continental" entre as duas Europas podemos detectar 1939esse resultado caísse para 6,6%. Na Holanda religiosamente dividida, o
uma "zona de fronteira", indicada no mapa. A maior parte dela era abrangida por B conseguiu 7,9% em 1935, mas caiu na insignificância em 1939 quando se
dois grandes países, a França e a Alemanha. Eram os países instáveis que aproximoude Hitler. Esses movimentos autoritários não eram nem de longe tão
podiam ter seguido o caminho contrário. A França podia ter-se tomaqo autoritá- populares como os de Leste e Sul, mas tinham alguma importância.
ria, e a Alemanha podia ter-se mantido parlamentar, dado terem ambas sido Contudo, os autoritários localizados mais para o interior do bloco do Noroeste
palco de prolongada luta entre as forças democráticas e autoritárias, tal como já r cebiam poucos votos. Os fascistas e seus simpatizantes definharam, oscilando
acontecera no período anterior. Os principais teóricos protofascistas de antes da à olta dos 2% dos votos na Noruega, 1,5% na Suíça, e bastante abaixo de 1%
guerra (Maurras, Barres, Sorel) foram franceses, e entre as guerras a França teve na Grã-Bretanha, Irlanda, Islândia, Suécia, Dinamarca, Estados Unidos, Canadá,
os maiores partidos autoritários, de direita e esquerda, do Noroeste. À medida Austráliae Nova Zelândia (Lindstrom: 1985: 115; Linz 1976: 89-91; Payne 1980:
que na Alemanha crescia o poder do Partido Nazi, aumentava a percepção da 126-35;1995: 290-312). Embora alguns intelectuais e elites especulassem com
debilidade francesa, e os conservadores começaram a dividir-se quanto às solu- ideiasautoritárias e fascistas (citei algumas no capítulo 1), e embora se resmun-
ções possíveis. As vozes fascistas tomaram-se mais volumosas. Se a eleição pre- ga 'Se intermitentemente acerca da "fraqueza" e das divisões da democracia
vista para 1940 houvesse tido lugar (em tempo de paz), o quase-fascista PSF parlamentar,o factor decisivo foi os conservadores terem-se tomado populistas
podia ter ganho mais de 100 assentos parlamentares, sugere Soucy (1991). Mai mantendo-se porém democráticos, contentando-se com mobilizar as massas
tarde, o regime colaboracionista de Vichy contou com um apoio interno consi- num nacionalismo, religião e deferência moderados e no argumento de uma

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FASCISTAS EXPLICAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

maior competência para gerir a economia capitalista (Mann 1993). Os conserva- Uma segunda abordagem é também implicitamente nacionalista. Ela divide
dores resistiram aos elementos de direita autoritários, mas os sociais-democni- 0
continente em Estados-nação e trata cada um como caso único numa análise
tas também resistiram aos revolucionários. Assim, ambos foram capazes de tra- comparativa multivariada. Convoca estatísticas nacionais para testar hipóteses
tar e harmonizar os seus conflitos através de instituições democráticas, que por que sugerem, por exemplo, que o fascismo surgiu em países atrasados ou naque-
isso se consolidaram. les onde as universidades proliferavam rapidamente. Também utilizo essas esta-
Todavia, os autoritários prosperaram no Centro, no Leste e Sul do conti- tísticasmais à frente. Mas o método é limitado pela geografia tosca que já aper-
nente. Nas eleições livres austríacas, alemãs e espanholas conseguiram perto de cebemos.Estarão no mapa tão aglutinados todos os países mais atrasados ou os
40% dos votos. Nas eleições parcialmente livres da Europa de Leste, venceram que tinham universidades a expandir-se? É quase certo que não. É mais prová-
de forma convincente. Se os fascistas se tivessem podido organizar com maior vel que a geografia forneça diferentes redes de comunicação em contiguidade,
liberdade, teriam conquistado mais votos (como veremos nos capítulos 7 e 8, na possibilitando que ideologias distintas se difundam em graus diferentes através
Hungria e Roménia). Não podemos dizer que os regimes autoritários tivessem o de diferentes regiões europeias, independentemente do nível de desenvolvi-
apoio da maioria, já que manipulavam os poderes executivos, e alguns usaram mento e da estrutura universitária.
poderes coercivos durante as eleições. Mas tinham uma atracção muito mais A terceira abordagem é, por conseguinte, regional, e identifica culturas
forte do que no Noroeste. Havia de facto duas Europas, uma firmemente demo- macro-regionais- "o Mediterrâneo", "a Europa de Leste", "a Europa Central",
crática liberal e outra seduzida por visões orgânico-autoritárias do Estado-nação etc. - como se fossem causas decisivas. Por exemplo, esta abordagem observa,
- com uma zona fronteiriça politicamente dividida e oscilante entre elas. e bem, que o tipo de organicismo que se centrava no anti-semitismo racista se
A força desses blocos geográficos faz-me duvidar de três explicações confinavaem grande parte à Europa Central e de Leste, não conseguindo pene-
comuns para o autoritarismo e o fascismo. Uma trata os países como se fossem trar muito no Sul. Mas o autoritarismo como um todo espalhou-se muito mais
únicos, e apresenta o que é, na prática, uma explicação "nacionalista". O poder amplamente. Preencheu metade da Europa. Ele não reflectiu "o Caso Especial
dos Estados-nação dirigiu muitos estudiosos para dentro, no estudo de um só da Europa Central", como proclama Newman (1970: 29-34), nem "o Desenvol-
país, geralmente o seu. Eles privilegiam as explicações em termos de "peculia- vimento Tardio do Leste Europeu", como defendem Janos (1989) e Berend
ridades nacionais", como o Sonderweg, a "via especial" da Alemanha para o (1998: 201, 343-5), ou até o "desenvolvimento parcial ou atrasado" em geral,
nazismo. Os historiadores da Espanha destacam memórias do glorioso Siglo de comosugere Gregor (1969: xii-xiv) ( 1). Embora todas essas teorias macro-regio-
Oro, seguido pelo declínio imperial, que resultou numa Igreja corrompida, um nais contenham alguma verdade, o fascismo era mais geral, e contudo também
corpo de oficiais inflacionado, regionalismos singulares, um Sul violento, etc. mais irregular, do que elas. Os cinco principais movimentos fascistas (na Ale-
Se eu soubesse albanês, poderia sem dúvida conhecer predisposições albanesa<s manha, Áustria, Hungria, Roménia e Itália) estavam espalhados pela Europa e
únicas para o autoritarismo. É verdade que os factores locais explicam os por- pelos seus níveis de desenvolvimento. Precisamos de uma explicação mais geral
menores de cada desfecho nacional. O nazismo era distintamente alemão, e 0 para o autoritarismo e talvez uma explicação mais particular para o fascismo.
franquismo era caracteristicamente espanhol. Não consigo imaginá-los noutro Começopor examinar a variável dependente do tipo de regime.
país. Contudo, o mapa 2.1 mostra efeitos macro-regionais muito fortes que atra-
vessam precisamente as fronteiras nacionais. Eles significavam que a Espanha
podia tomar-se autoritária, que a Albânia provavelmente se tomaria, e a Irlanda Tiposde autoritarismo
não. A Irlanda tinha uma Igreja Católica poderosa e reaccionária e vivera uma
autêntica guerra civil na década de 20. Mas ficava a Noroeste, herdara algumas O nosso problema explanatório reside na direita. Ao longo de toda a
instituições democráticas britânicas e partilhava uma língua e fluxos de popula- Grande Europa", a União Soviética era o único regime autoritário de esquerda.
ção com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, países democráticos. Os Alba- Todosos outros regimes autoritários eram considerados de direita - se bem que,
neses não viviam numa civilização democrática; os Irlandeses sim. Por isso os
exércitos adversários da guerra civil irlandesa deram origem a dois partidos elei- ( 1)Gregor antecipa a réplica óbvia a isto - "então e a Alemanha?" (desenvolvida
torais rivais - e hoje ainda ambos dominam as eleições irlandesas. Precisamos mas fascista) - com a sugestão bizarra de que as "experiências traumáticas" da guerra e
de pormenores locais - e eles abundam nos meus capítulos de estudo - mas tam- do seu rescaldo significavam que a Alemanha "identificava-se com os países revolucio-
bém precisamos de uma macro-abordagem. náriosflorescentes".

72 73
ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
FASCISTAS E, p1.JCAR A

como veremos, o fascismo só ambiguamente o fosse. Logo, tinham determina. • N s para tratar as variações entre os países e ao longo do tempo. Eu distingo
u.oçoe ,, "b • h
das características comuns. Todos eles veneravam a ordem e protegiam a níveis ascendentes de autoritarismo na família. Como e o v10, por aver
quatr0 ,, . • - 1 bºt ,,
propriedade privada; todos adoptavam um estatismo autoritário, rejeitavam 0 urnacontinuidade, quaisquer separações_entre os vanos tipos sao a g~ ar i ra-
federalismo, a democracia e os seus supostos "vícios": conflito de classes turbu. . cada tipo inclui regimes bastante diversos. Lembremo-nos tambem de que
nas,e es e não movimentos Como observa Kalhs. (200O), os regimes • -
nao
lento, corrupção política e declínio moral (2 ). Acabaram também por adoptar 0 ão reg
.

un

nacionalismo orgânico. A nação tinha de ser "una e indivisível", purificada do rirnem simplesmente ideologias. Encarnam também processos a que ele
que subvertiam a unidade nacional. Por isso esses regimes reprimiam os socia. e ~a consolidação política, formação de política, e dimensão da mudança pro-
listas e liberais empenhados no internacionalismo, assim como as minorias étni. eh da Tudo isso envolve questões de exequibilidade política, tanto como de
cura •
cas, regionais e religiosas supostamente leais a outros países. A maioria do ideologia(cf. Paxton 1998) (4 ).
autoritários dependia dos poderes militares e policiais do antigo regime; os fa .
cistas preferiam os seus próprios paramilitares. Mas a partir do momento em qu
recusavam a harmonização pacífica das diferenças, todos escolhiam o caminho Regimes semiautoritários
da violência - militar ou paramilitar - para resolver os problemas políticos.
No entanto, os membros da família eram variados (para estudos gerais, ver Esses regimes eram os mais moderados e muito conservadores. Procuraram
Polonsky 1975; Payne 1980; Lee 1987 e Berend 1998). Alguns estudiosos divi- anter métodos de governo do fim do século XIX. Eram essencialmente "Esta-
dem-nos em dois grupos: "fascistas" e um conjunto muito mais numeroso rotu- ;os duais", em que uma legislatura eleita e um executivo não eleito dispunham
lado de "conservadores autoritários" ou apenas "autoritários" (por exemplo de poderes consideráveis - daí o rótulo de "semi-autoritários". A pres~ão das
Linz 1976; Blinkhom 1990). Não é suficiente. Em primeiro lugar, porque ainda basesera atenuada pela manipulação de eleições e parlamentos. O executivo fal-
que esta definição aceite que com o fascismo se dá uma mudança de direcção eava eleições, comprava deputados, nomeava governos e tinha poderes ~e
rumo a uma combinação distinta de direitismo e radicalismo, ela não reconhece emergênciapara reprimir os "extremistas". No entanto, os parlamentos, os tn-
que isso sucede como fase final de um problema mais vasto que os elementos de bunais e a imprensa mantinham algumas liberdades. Neste caso eram monar-
direita enfrentavam: a necessidade de lidar com a pressão política organizada quias que dominavam, auxiliadas pelos partidos clientelistas tradicionais,
das massas. O autoritarismo moderno afastava-se dos regimes despóticos do conservadores e liberais. O "estatismo" significava aqui lealdade ao "antigo
passado ao tentar absorver as pressões das massas, vindas de baixo, que carac- r gime" existente. O nacionalismo, mantido com rédea curta, dificilmente era
terizaram toda a política do século xx. Em segundo lugar, esta definição cria um orgânico.Depuravam-se os inimigos políticos mais pela intimidação e prisão do
grupo "autoritário" demasiado amplo e diverso. O regime de Franco, muitas que pelo assassinato, excepto durante o curto período de agitação revolucioná-
vezes rotulado lisonjeiramente como "conservador autoritário", matou prova- ria no pós-guerra. Logo que os regimes se sentiam basicamente seguros, não
velmente mais de 100 000 pessoas a sangue-frio. Na Grécia, o regime de Meta- dependiamde muitos assassinatos, e refreavam as tendências para pogroms con-
xas, designado de igual modo, terá matado uma centena (3). Em terceiro lugar, tra os judeus - os judeus eram demasiado úteis. Embora alguns manipulassem

os regimes foram ficando mais sórdidos nesse período. Precisamos de mais dis- os preconceitos populares contra as minorias, em geral eram apenas discrimina-
tórios, sem tentar expulsá-las. Embora tivessem exércitos poderosos, prosse-
guiamuma política externa cautelosa. As políticas sociais e fiscais eram também
(2) Alguns fascistas tinham ambições democráticas, desejando que o partido permi- conservadoras e pró-capitalistas. Resistiam tanto à modernidade como à demo-
tisse a representação das bases (Linz 1976: 21). O líder devia encarnar a "vontade geral"
cracia.
do movimento. Mas esses quase-democratas fracassaram em todos os movimentos fas-
cistas.
(3) A distinção foi nitidamente influenciada pela política externa norte-americana
da Guerra Fria, que distinguia entre governos "autoritários" amistosos (alguns dos quais
eram na verdade extremamente sórdidos) e governos inimigos, comunistas "totalitários" (4) A distinção de Payne (1980, 1995: 15) entre "direitista conservador", "direitista
(alguns dos quais eram mais moderados do que parte dos "autoritários"). Na realidade, radical" e "fascista" assemelha-se à minha, com a sua categoria média a aglomerar o
o critério decisivo não era o seu grau de autoritarismo, mas se o governo (e as grandes grosso dos meus dois tipos intermédios. Contudo, ele chama "conservadores" a alguns
empresas) do~EUA os definia como capitalistas ou comunistas, e por conseguinte como que eu coloco em categorias intermédias (por exemplo, Salazar, Smetona, o rei Carol da
amigos ou inimigos. Roménia).

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FASCISTAS E pL{CAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

São exemplos a maioria dos regimes do início do período entre as duas guer- 5
1934-9 e Pats na Estónia em 1934-9) ( ), o rei Zog na Albânia em 1928-39, o rei
ras: a Grécia até ao golpe de Metaxas, os regimes romenos da década de 20 e do Alexandree o regente Paulo na Jugoslávia durante a década de 30, o regime do
princípio dos anos 30, o regime espanhol de Alfonso XIII até 1923, os regimes rei Boris na Bulgária a partir de 1935, o domínio de Metaxas na Grécia em 1936-
do almirante Horthy e do conde Bethlen na Hungria na década de 20, o governo _38, 0 governo de Dolfuss na Áustria a partir de 1932 até ao início de 1934 (capí-
cristão-social austríaco do chanceler Seipel no fim dessa década (que subvertia tulo 6) e o governo militar português de 1928-32.
dissimuladamente as liberdades), os governos italianos pré-fascistas de Salandra
e Sonnino, os regimes pré-nazis de Brüning, von Schleicher e von Papen. A ideo-
logia fascista teve pouca influência neles, que eram na sua maior parte bastante Regimes corporativistas
moderados e pragmáticos - comparados com o que se seguiu. Contudo, nenhum
durou muito. Cerca de um terço dos regimes flutuou ainda mais. Procuraram aumentar o
e, tatismo, mobilizar o nacionalismo orgânico, e intensificar a culpabilização das
minoriase da esquerda. Mais importante, começaram a inspirar-se na organiza-
ção e na ideologia fascista, em geral por pressão dos próprios movimentos fas-
Regimes autoritários semi-reaccionários
cistas.As apropriações eram mais de estatismo "de cima" do que de paramilita-
rismo "de baixo". "Corporativismo" transmite a ideia de organização integrada
Aqui, o antigo regime (centrado na monarquia, nos militares e na Igreja) e hierárquica, embora não seja uma designação perfeita, pois ele tende a aplai-
lidava com a pressão popular intensificando a repressão. Subvertia ou debilitava nar as frequentes tensões entre os seus dois principais eleitorados, os autoritá-
a legislatura acabando com o dualismo atrás observado. A repressão alternava rios do antigo regime e os nacionalistas mais "radicais". Se bem que pró-capita-
com medidas discriminatórias destinadas a fazer bodes expiatórios dos elemen- listas, alguns regimes corporativistas desenvolveram políticas de assistência
tos de esquerda, minorias e judeus. Esses regimes ainda temiam as massas. Con- ocial patriarcais e intervieram na economia para apoiar o crescimento (embora
tudo, iam também tomando medidas modernistas limitadas - daí que fossem só outros preferissem a ordem e a estabilidade ao dinamismo capitalista). O Exér-
semi-reaccionários. Defendiam o nacionalismo orgânico, apesar de ainda esta- cito era o baluarte do regime, conservando em grande parte o seu monopólio de
rem receosos de mobilizar o povo com ele. A ideologia fascista tinha sobre eles poder militar, e entregando muito pouco ao paramilitarismo. A política externa
alguma influência. Alguns (Salazar, Pilsudski, Primo de Rivera) cultivavam o combinava uma retórica nacionalista belicosa e uma diplomacia na realidade
poder do partido único, essencialmente imitando Mussolini, mas o partido era bastanteprudente.
controlado de cima, e a sua função era domesticar, e não excitar as massas. São exemplos os regimes "fascistas entre aspas", em que as tendências fas-
Podiam-se organizar paramilitares, mas mais para o desfile do que para o com- cistas são diluídas por outra tendência: como o "monarco-fascismo" de Metaxas
bate, e assim o Exército mantinha o seu efectivo monopólio sobre os meios de na Grécia, após 1938, o "clérico-fascismo" ou "austro-fascismo" de Dolfüss a
violência militar. A política externa continuava prudente, a política económica partir de 1934 (ver capítulo 6), o "monarco-fascismo" do rei Carol na Roménia
mantinha-se pró-capitalista e determinadamente desenvolvimentista. Primo e a partir de 1938, secundado entre 1940 e 1944 pelo "fascismo militar" do gene-
Pilsudski chegaram a tentar a reforma social, embora os seus apoiantes conser- ral Antonescu (capítulo 8). Houve também o regime francês de Vichy, os gover-
vadores lhe tivessem resistido, induzindo a queda de Primo de Rivera (ver capí- nos "radicais de direita" húngaros na Segunda Guerra Mundial (capítulo 7), a
tulo 9) e a deriva de Pilsudski para a direita. combinação de Salazar de fascismo e deus, pátria e família, e a ditadura de
Era este o tipo mais generalizado de regime do período entre as guerras. São Franco até o início dos anos 60. A ditadura de Metaxas fÓi a mais moderada: um
exemplos os governos húngaros do almirante Horthy e de outros durante a maior movimento de juventude paramilitar e ornamentos corporativistas, prisões em
parte da década de 30 (ver capítulo 7), a "democracia dirigida" do rei Carol na
Roménia no final da mesma década (capítulo 8), o general Primo de Rivera em
Espanha entre 1923 e 1930 (embora ele também tenha introduzido muitos ele- (5) Os Estados bálticos não se encaixam perfeitamente nesta tipologia. Como eles
não possuíam Estados antes de 1918, nem monarcas depois, os seus autoritários não
mentos corporativistas; ver capítulo 9), o general Pilsudski na Polónia entre
eram estritamente "reaccionários". Apesar disso, os três vieram a partilhar outros atribu-
1926 e 1935, seguido por outros oficiais até 1939, os três regimes bálticos basea- tos dos regimes reaccionários. Pats deve ter sido o mais moderado. O seu regime terá
dos no Exército (Smetona na Lituânia em 1926-39, Ulmanis na Letónia em provavelmente hesitado no limite entre autoritarismo semi-reaccionário e reaccionário.

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FASCISTAS pUCAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

massa mas poucas mortes, e pouca pressão sobre as minorias. Ele purgou os Não temos muitos casos de regimes fascistas. Os nazis e os fascistas italia-
monárquicos mas não o próprio monarca, e a sua política externa vogou cuida. no foram os dois únicos regimes que tomaram o poder e o conservaram alguns
dosamente entre a Alemanha e a Grã-Bretanha (Kofas 1983). Noutras zonas, 0 anos. Embora a Áustria tivesse proporcionalmente mais fascistas do que cada
governo imperial japonês foi deste tipo após 1931 (embora também contivesse um deles, estavam divididos em dois movimentos rivais e só em 1938 consegui-
elementos fascistas); Chiang Kai-chek aspirava ao mesmo, mas faltava-lhe 0 ramcapturar o poder, levados às costas pelas tropas de Hitler. Os fascistas hún-
poder infra-estrutural sobre a China para implementá-lo. garos e romenos estavam igualmente bem apoiados, mas eram também forte-
É claro que estes são tipos ideais e as distinções reais entre os regimes eram mente perseguidos. Conseguiram infiltrar os regimes vigentes e chegaram ao
muitas vezes bastante vagas. Foram mantidas algumas formas parlamentare poder brevemente em 1944, no final da guerra. Vemos aqui (como também no
mesmo quando o balanço do poder pendera firmemente para o executivo _ 0 da Espanha) a importância das relações entre os fascistas e outros elemen-
como, por exemplo, na Hungria e Roménia no fim dos anos 30. Com efeito, a to de direita autoritários: os golpes fascistas dependiam do equilíbrio de poder
Hungria não conservou apenas um parlamento. Até 1944 este continha de facto entre eles. Mas a influência do fascismo também foi muito mais ampla. Os regi-
deputados socialistas, algo único entre os países do Eixo. A divisão entre regi- mes corporativistas roubavam ideias fascistas para ser capazes de reprimir os
mes corporativistas reaccionários e orgânicos esbatia-se também por vezes_ verdadeiros fascistas, e assim sobreviver. A meio das circunstâncias da guerra,
como entre os segundos e o fascismo. Primo de Rivera podia ser considerado outros nacionalistas orgânicos aproximaram-se do fascismo e juntaram-se às
corporativista, mais do que reaccionário. Nos regimes de Franco e, em menor potênciasdo Eixo - os Hlinkas eslovacos, os Ustashi croatas, e nacionalistas nos
grau, de Salazar, os fascistas costumavam fazer o trabalho sujo; enquanto Carol, E tados bálticos, da Bielorrússia e da Ucrânia. Mas os italianos e os nazis eram
Antonescu e Horthy vieram a descobrir que partes dos seus governos tinham de longe os mais importantes. Os seus êxitos influenciaram outros. A Marcha
sido capturadas pelos fascistas. Existia uma vigorosa rivalidade entre corporati- obre Roma de Mussolini em 1922 aconteceu tão cedo que todos os regimes auto-
vistas e fascistas. ritáriospassaram a ter modelos italianos para copiar e adaptar. O poder geopolí-
tico de Hitler projectou a influência nazi, mas não por muito tempo. Ele provo-
e u uma guerra mundial que os destruiu a todos. Dado que os regimes fascistas
Regimes fascistas nunca chegaram a institucionalizar-se com solidez, não sabemos realmente com
o que se viria a parecer o fascismo duradouro. Teria continuado a encarnar o fac-
O fascismo fornecia uma descontinuidade, invertendo o fluxo do poder ao cio ismo e a direcção tortuosa do regime de Mussolini, ou a radicalização persis-
acrescentar ao corporativismo um movimento de massas "a partir de baixo", tente, embora algo caótica de Hitler? Ou teriam surgido estruturas corporativis-
centrado no paramilitarismo e no eleitoralismo, à medida que aumentava o t /sindicalistas estáveis? E assim, ao discutir o fascismo, o mais extremista da
poderes de coerção a partir do topo. O paramilitarismo prosperou entre um evi- família autoritária, não falo tanto de regimes verdadeiros, mas dos futuros regi-
dente declínio na lealdade e coesão das forças armadas do Estado. O Exército mes imaginados pelos maiores movimentos fascistas. O problema fascista que
dividiu-se, com as simpatias fascistas e paramilitares de muitos soldados a minar procuro explicar, por conseguinte, é o modo como esses ideais futuros desponta-
a disciplina, e a ameaçar o monopólio estatal do poder militar. Isso criou igual- ram e ganharam poder, no contexto dos regimes autoritários atrás definidos.
mente uma tensão básica entre o paramilitarismo e o eleitoralismo "de baixo" e A minha tipologia gera três perguntas básicas: porque é que metade da
um estatismo "do topo" centrado no "princípio da liderança". Essa tensão impe- Europa continuou a enveredar por essa escala autoritária? Porque é que só pou-
diu que os regimes fascistas, chegados ao poder com a ajuda das elites dos anti- o movimentos foram tão longe como o fascismo pelos seus ideais? Porque é
gos regimes, se acomodassem simplesmente a ser de extrema-direita, e confe- que só dois deles conseguiram alcançar o poder sem auxílio? Poucos autores dis-
riu-lhes o seu cunho "radical". De facto, os chefes fascistas provinham de todas tinguem claramente estas três questões. A maior parte das explicações relaciona-
as partes do espectro político, tendo muitos deles sido socialistas (como Musso- -as com crises sociais graves que irromperam no começo do século xx: ideoló-
lini, Déat ou Mosley). O fascismo adoptou o paramilitarismo internamente e o gicas, económicas, militares e políticas. Elas correspondem às quatro origens do
militarismo no estrangeiro. Interveio também generalizadamente na economia. poder social que analisei nos dois tomos de The Sources of Social Power (1986,
com teorias fascistas definidas de desenvolvimento económico. No entanto, as 1993). Veremos mais adiante que as noções de crise geral explicam melhor a
relações dos fascistas com os conservadores e os capitalistas permaneceu ambí- aga de autoritarismo, menos bem a ascensão dos movimentos fascistas, e ainda
gua, e cada um parecia precisar do outro. pior os golpes fascistas.

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FASCISTAS E. pL{CAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

Podereconómico,crise económica 9; Stephens 1989; Gomez-Navarro 1991). Será este argumento também
198
válidopara os dois blocos geográficos de entre as guerras que já identificámos?
As relações de poder económico resultam da necessidade humana de extrair No quadro 2.1, utilizei quatro índices de desenvolvimento sócio-económico:
transformar, distribuir e consumir os recursos da natureza para subsistir. Isto cria PIBper capita, proporção da população economicamente act~va na agricultura,
instituições económicas e classes sociais, que nascem das relações de produção florestasou pesca, taxa de mortalidade infantil, utilização anual do correio per
e mercado, ao mesmo tempo cooperando e lutando entre si. Os que controlam capita.O PIB per capita mede o desenvolvimento económi~o~ e~quant~ o
os meios de produção e troca possuem um poder crucial que lhes concede urn ecnpregoagrícola mede a falta do mesmo. Nenhuma destas med1çoes e perfeita,
nível de poder social mais geral. Mas um conflito de classes duro pode desafiar pois a qualidade e a categorização da informação variam com os países. A mor-
esse poder. O tempo e lugar aqui debatidos foram dominados pelo modo capita- talidadeinfantil é uma medição simples do bem-estar, colectada pelos governos
lista de produção na sua fase iqdustrial. Por isso discuto o desenvolvimento e as de forma razoavelmente semelhante, embora seja bastante afectada pelos mais
crises do capitalismo industrial, os seus conflitos de classes, e o seu grau de re . pobres (que originam a maior parte da mortalidade)( 6). O que é enviado pelo
ponsabilidade na ascensão do autoritarismo e do fascismo.
Embora as relações de poder económico tenham sido sempre importante
nos assuntos humanos, a teoria social na nossa época materialista pareceu mui- ÜUADRO2.1 Estatísticas
de PaísesAutoritáriose Democráticos
tas vezes obcecada por elas. As explicações económicas do fascismo têm sido as
mais populares, e eu abordo-as em detalhe. Descobrem-se as causas a longo País Força PIB Taxa Envios Gravidade Taxade
prazo do autoritarismo e do fascismo no "atraso" capitalista ou no "desenvolvi- de trabalho per de mor- postais da crise de desem-
agrícola capitab talidade per (0/o)e prego
mento tardio", e as causas a curto prazo nas recessões económicas e intensifica-
(O/o)ª infantil e capitad máxima (0/o)f
ções da luta de classes. Acredita-se que todas ajudaram a desgastar a legitimi-
dade dos governos vigentes e ampliaram o conflito até ao ponto em que .
1. Democráticos
soluções autoritárias pareciam plausíveis - especialmente para aqueles com Austrália 25,4 567 53 161 13,4 19, 1
rápido acesso aos meios de coacção. Começo pelas causas a longo prazo. Bélgica 17,3 1098 94 179 7,9 19,0
(1) A teoria do desenvolvimento tardio sugere que os países economica- Canadá 36,8 1203 90 96 30,1 19,3

mente atrasados foram atraídos para a política autoritária por teorias estatistas Checos-
lováquia 36,9 586 146 76 18,2 17,4
do "desenvolvimento tardio". Uma variante deste argumento relaciona essa polí-
Dinamarca 35,3 945 81 78 2,9 31,7
tica com o nacionalismo. Os países atrasados sentem-se explorados pelos desen, 22,9
EUA 22,0 1658 67 227 29,5
volvidos, e por isso os nacionalistas incentivam os seus países a "aguentarmo- 590 84 29 6,5 (6,2)g
Finlândia 64,6
-nos sozinhos", com políticas económicas que traduzem a autarcia e a protecção França 35,6 982 97 153 11,0 15,4
- as quais também aumentaram o estatismo. Holanda 20,6 1008 52 137 9,1 11,9
Essas teorias exigem que os países autoritários sejam os economicamente Irlanda 52,1 662 68 67 16,7
Noruega 35,5 1033 49 55 8,3 11,3
atrasados, e isso é um facto. Os estudiosos convocaram imensas estatísticas
sócio-económicas para mostrar que quanto maior o PIB, a urbanização, a alfa- ova
Zelândia 33,4 36 215 (10,2)
betização, etc., mals democrático é o regime. As correlações entre os índices de
Reino
desenvolvimento e a democracia liberal costumam situar-se entre uma razão Unido 6,0 1038 69 146 8, 1 15,6
r =0,60 e r =0,85. Ao elevar ao quadrado esses valores descobrimos que o nível Suécia 36,0 897 59 88 9,2 23,3
de desenvolvimento explica entre um terço e dois terços da variação encontrada Suiça 21,3 1265 54 161 8,0 {4,7)
em níveis de democracia liberal - uma descoberta bastante robusta na macro- Média
Democrática31,9 967 73 125 12,8 18,8
-sociologia, em que a maior parte das comparações estatísticas nacionais cruza-
das contém uma margem de erro e "ruído" considerável (Rueschemeyer, Step-
hens, e Stephens 1992: 13-20; Maravall 1997). As comparações entre os paíse (6) Por esta altura não havia muitas diferenças urbano-rurais nas taxas de mortali-
europeus no período entre as duas guerras chegam à mesma conclusão (J anos dade (ao contrário do século xrx).

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FASCISTAS E pLICAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

TABELA2.1 Estatísticasde PaísesAutoritáriose Democráticos(Conti.J correio mede a alfabetização "discursiva" genuína, embora seja afectado pela
urbanização,pois os habitantes das cidades escrevem mais cartas. Todos estes
País Força PIB Taxa Envios Gravidade Taxade
indicadorestêm as suas particularidades. O que importa é a sua combinação.
de trabalho per de mor- postais da crise de desem-
agrícola capítab talidade per (0/o)e prego 0 países mais desenvolvidos têm um PIB per capita maior e mais correio, mas
(O/o)ª infantil e capítad máxima (OJo)f menosemprego na agricultura e menos mortalidade infantil. Eram também esses
países democráticos liberais?
2. Autoritários A resposta do quadro, em geral, é "sim": as democracias eram mais desen-
Alemanha 29,0 770 89 94 16,1 30,1 oJvidaspor um factor de dois ou três nestes indicadores (7). Nos quatro parâ-
Áustria 29,3 720 120 147 22,5 16,3 metros, a maioria dos países democráticos tem melhores resultados do que a
Bulgária 79,8 306 149 8,6
Espanha 56,1 445
maioriados países autoritários, porque o Noroeste do continente era muito mais
126 33 20,4
Estónia 59,0 (95) 51 desenvolvidodo que o Sudeste. Havia alguns desvios, porém. As quatro estatís-
Grécia 53,7 390 94 20 8,2 ticasrevelam que a Alemanha era um país desenvolvido, e três delas mostram o
Hungria 53,0 424 177 41 9,4 30,oh mesmopara a Áustria. A Checoslováquia, a Finlândia e a Irlanda eram casos
Itália 46,8 517 120 59 6,1 (15,5) conomicamente marginais entre as duas Europas, além de politicamente tam-
Japão 43,0 (208) 138 60 4,5 (6,8) bém o serem um tanto. Em geral, com as consideráveis excepções germânicas,
Jugoslávia 78,1 341 147 35 11,9
e ta é uma relação consequente. À parte as qualificações que mais tarde farei, a
Letónia 66,2 (115) 47
Lituânia 76,7 (69)
censão do autoritarismo foi principalmente um problema para os países menos
Polónia 65,9 350 145 32 22,3 16,7 de envolvidos da Europa entre as guerras.
Portúgal 55,0 320 142 23 No entanto, o quadro mostra que isso não pode dever-se ao fascismo. Na
Roménia 77,2 331 184 21 6,2 erdade,há quem argumente que o fascismo não é importante nos países muito
Média auto- tr ados, pois ele exige uma economia e uma sociedade civil suficientemente
ritária 57,9 352 159 48 12,4 a ançadas para possibilitar uma efectiva mobilização das massas. Defendem
que os países mais atrasados tinham de depender da organização do antigo
r ime, como a monarquia ou os militares, e que por isso no máximo podiam
eh gar ao corporativismo (Gomez-Navarro 1991). Riley (2002) argumenta que
ª Percentagemda força de trabalho na agricultura, e. 1930. O número checo é de 1930, mas
refere-se ao território de 1945; o número português está rectificado; a estimativa espanholaé de a mobilizaçãode massas fascista pressupunha uma "sociedade civil" mais densa
1920. - invertendo a teoria liberal comum da sociedade civil, que vê essa densidade
b PIB per capita, expressoem dólares norte-americanosem 1960. Fonte: Bairoch 1976: 297; comouma condição prévia para a democracia. Esses autores sugerem que o fas-
Mitchell 1993; para a Estónia,Letóniae Lituânia,a partir de Latvian Economist,1933, estimativasdo
1 mo se desenvolveu melhor nos países· mais avançados, que continham redes
rendimento nacional,corrigido por cima em 150/o(estesnúmerosainda parecembastante baixos).
e Taxa de mortalidade infantil de 1928, por 1000. Refira-seque a mortalidade nos EUAera de mais compactas de mercados e associações voluntárias. Contudo, o quadro 2.1
106 só para crianças negras.Fonte: Mitchell 1993, 1998. mo tra que os maiores movimentos fascistas estavam em todos os níveis de
d Número de artigos por habitante enviadospelo correio, e. 1930. Fonte: Mitchell 1993, 1998. de envolvimento, incluindo as avançadas Áustria e Alemanha, a mediana Itália,
e Quedamáxima da percentagemalta-baixa no PIBdurante o período 1922-35, a preçoscons~
tantes. Fonte: Mitchell 1993, 1995, 1998; Lethbridge 1985: 538, 571, 592. Número polaco: esti~
e atrasadas Roménia e Hungria. O fascismo parece não ter relação com o grau
mativa. de desenvolvimento económico.
f Taxa de desempregoanual mais elevada no período entre as duas guerras. Fonte: Maddison As escolas de teoria marxistas e da "modernização" afirmam que o desen-
1982: 206; Newell e Symons 1988: 70; Tomiolo e Piva 1988: 230; Garside 1990: 5; Mitchell 1993,
volvimento económico causa a democratização, tendo como seus agentes as
1995, 1998. Estesnúmerossão reconhecidamenteduvidosos.Ossistemasde contabilidade nacional
maisatrasadosproduzemtipicamente estatísticasde desempregobastanteatenuadas.Coloqueientre
parêntesesas que considerodemasiadobaixas.
g Os númerosentre parêntesessão provavelmenteduvidosose demasiadoreduzidos.Nãoforam <7) Não tentei medir graus de democratização ou autoritarismo. Medições baseadas
incluídos nos cálculos das médias. em eleições e constituições ajustam-se mal às instituições geralmente fraudulentas dos
h Somentea força de trabalho industrial. regimesdo período entre guerras, enquanto grande parte do Leste e do Sul não se man-
te e na mesma posição ao longo do continuum.

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FASCISTAS f.'PLICAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

classes sociais modernas. Recorrendo a uma tradição que remonta a Aristóteles ão que já conseguiam os trabalhadores agrícolas. Ele nota que as fortes tradi-
teóricos da modernização como Lipset (1960) e Huntington (1991: 66-8) defen. ções políticas liberais ajudaram a que as classes hesitantes mantivessem uma
dem que o desenvolvimento económico expande a classe média, o que favorece sição pró-democrática, enquanto a ausência dessas tradições as empurrou para
a democracia. Um especialista em Marx, Barrington Moore, concorda, .argumen. ~campo autoritário. E quando os trabalhadores agrícolas não estavam já orga-
tando que a burguesia (juntamente com o campesinato livre) reivindicara cons. nizados, as tentativas socialistas de os organizar, entre as duas guerras, aliena-
tituições liberais no princípio da Europa moderna. Recentemente, outros autore vamos pequenos proprietários rurais e encaminhavam-nos para a direita (como
marxistas, especialmente Rueschemeyer et ai. (1992), puseram isso em causa demonstrouHeberle, em 1964, no seu estudo clássico sobre o Schleswig-Hols-
Eles mostram que as classes médias tiveram mais tendência para seguir do que ten). Concordo com o seu primeiro argumento, e altero o segundo.
para liderar a democratização: às vezes foram a favor e outras vezes c_ontraa As classes são idealizações teóricas úteis que tomamos operacionais com
democracia. Referem que a classe trabalhadora foi a principal força da d~mocra. indicadores empíricos. Os nossos indicadores costumam ser fracos na investi-
eia, e os grandes proprietários agrícolas foram os principais antidemocratas. gação histórica. Do século XIX para o xx adquirimos informação sobre organi-
A industrialização capitalista favoreceu assim a democracia ao aumentar a zações como os sindicatos e os partidos, e ainda tendências gerais do voto. Até
classe trabalhadora e reduzir o poder dos proprietários de terras. Stephen poucodepois de 1945, praticamente não temos sondagens de opinião ou à boca
(1989) explica o autoritarismo do período entre as duas guerras sobretudo em d umas, nem qualquer dos autores já citados tentou estudos ecológicos do
termos da luta entre uma classe trabalhadora democrática e capitalistas, especi- voto.Apresentam somente padrões de votação gerais, e examinam organizações
almente os agrários, que acabam por recorrer à repressão autoritária. A explica- partindo do princípio de que elas representam classes: os partidos socialistas e
ção envolve um argumento banal: quanto maior o grupo capaz de mobilização, 0 sindicatos relatam-nos a classe trabalhadora, os partidos conservadores e as
mais provável é que favoreça a concessão do direito de voto ao maior número. organizações patronais fazem o mesmo com a burguesia e os proprietários de
Primeiro, a classe média exigiu o direito de voto, depois a classe trabalhadora t rras, etc. Mas é arriscado equiparar classes e organizações. Entre as duas guer-
fez o mesmo- o que levou alguns grupos da classe média, cujo peso ficou dimi- r mundiais, poucos movimentos sindicais conseguiram recrutar mais de um
nuído, a recuar na democracia, como aconteceu na Revolução de 1848. quarto dos trabalhadores manuais, enquanto muitas vezes os partidos conserva-
Vou acrescentar um aspecto. Os legados políticos de épocas anteriores podem dores bem-sucedidos devem ter obtido mais votos dos trabalhadores do que de
vir a modificar o comportamento das classes. Vejamos os proprietários de terra qualquer outra classe (já que os trabalhadores eram tão numerosos). Há muitas
Na Europa pré-moderna eles eram decisivos em termos políticos (como diz Bar- influênciassociais que podem atravessar as classes - como o sector económico,
rington Moore), pois dirigiam a sociedade. Mas só em regiões atrasadas como a a região, a religião, o sexo e a geração. Através da análise ecológica do voto nos
Hungria ou a Andaluzia é que conservaram forte poder económico no período meuscapítulos de estudo de casos, vemos que os principais "guetos proletários"
entre as duas guerras, depois dos prejuízos com a industrialização e a reforma - famílias trabalhadoras que habitavam densos bairros operários urbanos, com
agrária. Os proprietários de terras desempenhavam uma função económica redu- indústria manufactureira ou mineira - costumavam apoiar as visões esquerdis-
zida na Alemanha de Weimar, e ainda menor na Roménia. Não obstante, era tas da democracia. Mas entre as duas guerras a maioria dos trabalhadores vivia
frequente que mantivessem o controlo dos poderes executivos do Estado, espe- e trabalhava em outros tipos de comunidades e era atraída para visões liberais
cialmente o oficialato e os ministérios do Interior. Isso acontecia porque os terra- ou conservadoras da democracia e também para opiniões autoritárias não demo-
tenentes há muito haviam consolidado o seu domínio entre um "antigo regime" cráticas e especialmente fascistas. O pequeno campesinato também adoptava
mais amplo: monarquias com laços de parentesco, aristocracias senhoriais, as eli- correntes políticas diversas, algumas a favor da democracia, outras contra,
tes das burocracias, forças armadas e igrejas com implantação. Mayer sublinhou gundo circunstâncias económicas complexas (e não apenas medo dos seus
que os velhos regimes sobreviveram no período entre as duas guerras mantendo empregadores, como Luebbert sugere), e movido igualmente por sentimentos
um arraigado poder político, militar e ideológico, enquanto o seu domínio econó- regionais, étnicos, religiosos e de género. No período entre as duas guerras, as
mico desaparecia. Veremos adiante que a direita autoritária, e até o fascismo. organizações capitalistas (especialmente as agrárias) tenderam a ser antidemo-
estavam relacionados mais proximamente com as decisões tomadas pelos antigos cráticas, enquanto as organizações socialistas foram relativamente pró-democrá-
regimes do que com classes proprietárias rigorosamente definidas. ticas, mas isso diz respeito a minorias, e não maiorias.
Luebbert (1991) destaca duas outras heranças importantes do período ante- A teoria de classe também encontra dificuldades em relação ao fascismo. Ao
rior à guerra: o poder que os partidos políticos liberais já tinham, e a mobiliza- passo que as outras formas de regime autoritário estavam fornecidas de conser-

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vadores que tentavam mobilizar e controlar os movimentos de massas, o fas. obviamentesó em termos económicos gerais). No fim do século XIX, o avanço
cismo era um movimento populista e "radical", com um forte impulso "de ba e" haviasido em direcção à democracia, não ao autoritarismo. Contudo, a Itália e
As explicações tradicionais de classe funcionam melhor para as formas mai• a Espanhamarchavam agora em sentido contrário. Um nível idêntico de desen-
conservadoras de autoritarismo, e menos bem com o fascismo. Não que a classe olvimento económico secundou a democratização antes da Primeira Guerra
fosse irrelevante para o apoio fascista. Os fascistas recebiam apoio de§propor. Mundial,e uma vaga autoritária logo a seguir. O problema mantém-se hoje, pois
cionado dos sectores económicos que apreciavam a mensagem da transcendên~ a maioria dos países já alcançou o nível de progresso económico obtido na
eia de classe, gente de todas as classes que vivia e trabalhava fora dos principai décadade 1850 pela Grã-Bretanha ou nos anos 1890 pela Dinamarca, mas só
palcos da intensa luta de classes na sociedade moderna. poucossão genuinamente democráticos. Em cada decénio do século xx pareceu
No período entre as duas guerras também ocorreu a ascensão do esfâtismo. •·exigir-se"um grau de rendimento per capita cada yez maior aos países na tran-
A governação autoritária adquirira pretensões verosímeis de patrocinar o desen. içãopara a democracia (ver as estatísticas apresentadas por Huntington 1991 e
volvimento social - por exemplo, resolver o desemprego - a que o absolutismo Maravall 1997). Outros processos de desenvolvimento mundial e histórico
anterior não ambicionara. Isso podia tomá-la mais apelativa para os trabalhado. devemter bloqueado a democracia liberal no século xx. A sua economia não se
res. Assim, os rivais da democracia liberal e do autoritarismo variaram com 0 revelouparticularmente favorável à democracia - ao contrário das suas guerras,
tempo, talvez para grupos significativos em todas as classes, independentemente que as democracias costumavam ganhar.
do nível de desenvolvimento. Entre as duas guerras mundiais a Europa favore- A teoria do "desenvolvimento tardio" fornece uma explicação económica do
ceu o autoritarismo como não fizera antes nem voltaria a fazer. Isso significa que bloqueio do século xx, defendendo que os primeiros países a desenvolver-se
as diferenças gerais que revela o quadro 2.1 podem ter reflectido parcialmente a _ Grã-Bretanha, Bélgica, Holanda e Suíça, talvez a França e os Estados Uni-
associação passada do progresso capitalista com a democracia. A possibilidade dos - haviam experimentado condições económicas singularmente propícias
parece mais evidente em termos da natureza mutável da classe média, já refe- para a democracia liberal. As suas economias haviam crescido gradualmente,
rida. No período revolucionário francês, o capitalismo estava muito descentrali- commercados descentralizados e Estados fracos. Os primeiros países de "desen-
zado, tendo o seu desenvolvimento industrial sido obra sobretudo de pequeno volvimentotardio", especialmente a Alemanha, cultivaram modelos de desen-
investidores. Os seus mercados eram relativamente "livres" - ajudando a pro- olvimento mais proteccionistas e estatistas. À medida que o progresso econó-
mover uma política também livre. Em 1918, chegara o "capitalismo organizado' mico subsequente se. ia tomando mais rápido e desorganizado, gerava mais
(para usar o termo contemporâneo de Hilferding), e a maioria da classe média confrontos de classe entre os Estados mais intervencionistas. Os camponeses
estava empregada e subordinada no interior de organizações autoritárias. Talvez deslocados pelos mercados mundiais e os trabalhadores que convergiam para
a "política livre" a atraísse menos. fábricas e cidades muito maiores ficavam expostos aos novos vírus do socia-
É uma especulação. Mas as estatísticas mostram de facto que o nível abso- lismo e do anarco-sindicalismo. Eles enfrentavam uma classe capitalista mais
luto de progresso económico alcançado no período entre as duas guerras mun- centralizada, auxiliada por uma classe média mais dependente. O conflito de
diais não pode explicar a ascensão do autoritarismo. Veja-se os casos da Itália e c1 ses tomou-se mais desestabilizador. Defrontavam-se duas grandes "facções
Espanha. Os seus rendimentos per capita por volta de 1930 estavam próximo annadas", nas palavras de Carl Schmitt, autor da época (que mais adiante refe-
do nível mediano de países que então mergulhavam no autoritarismo. Seme- riremosamplamente). Agora os Estados também procuravam promover o cres-
lhante nível absoluto só muito recentemente fora obtido no mundo: pelos Esta- imento económico, assumindo-se como suportes de um ambicionado projecto
dos Unidos e Grã-Bretanha na década de 1850, Bélgica, Holanda e Suíça na de desenvolvimento (Janos 1982; Gomez-Navarro 1991). Pressionadas a partir
década seguinte, 1860, França e Noruega na década de 1880, a Dinamarca na d baixo pelos proletários, as classes burguesas podiam apoiar-se num Estado
década de 1890, e a Suécia na primeira década do século xx (Bairoch 1976: 286, mais forte. Havia também uma dimensão internacional, pois a economia global
297) (8). Eram os equivalentes económicos da Itália e Espanha em 1930 (embora tambémestava mais fortemente integrada. Os países retardatários proclamavam-
- e "nações proletárias" exploradas pelos países avançados, o que gerava nacio-

(8) Comparar as taxas de mortalidade infantil restringiria o âmbito da comparação


histórica. Os países do Noroeste mencionados só entre 1890 e 1920 atingiram as taxas intermédios (excepto que os dados comparáveis para o emprego agrícola na Grã-Breta-
de 1930 de Espanha e Itália. Obviamente, em 1930 as suas democracias partidárias esta• nha recuariam à década de 1820 - quando houve uma agitação de massas, bem-sucedida,
vam ainda mais arraigadas. Os meus outros dois indicadores dariam âmbitos histórico. pela extensão do direito ao voto).

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FASCISTAS ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
E ·pL[CAR A

nalismo entre as classes mais baixas e medianas. Devido a estas tendênci . da discutiremos neste capítulo. Em contraste com a sua experiência política
macro-económicas, o desenvolvimento económico tardio podia gerar um esta. a1n • de c1asse mmto
os países do Leste e do Sul tiveram conflitos • mais •
comum, . .
tismo nacionalista extremista como maneira de reprimir "inimigos de classe" no . sos pois estes dependiam muito mais da estrutura econórmca particular do
d1 er , . . , .
país e estrangeiro. , Além disso, as tensões étnicas também estavam amda a aumentar no 1mcio
Este argumento parece plausível para a periferia da Europa de Leste. No pais., ulo xx enquanto a luta entre as classes era mais antiga e estava institu-
do sec , . .
autoritarismo húngaro e romeno pontificam políticas de desenvolvimento tardio ionalizada(embora se desestabilizasse de modo efémero no fmal ~a Primerra
conforme especificam os capítulos 7 e 8. Mas nem a Alemanha nem arÁustri~ GuerraMundial). Apesar de tanto o conflito de class~s como_o n~c1onal terem
eram então países "tardiamente" desenvolvidos: a Alemanha tinha a economia ajudadoa gerar o autoritarismo, veremos que os c~nfhtos nac10~a1seram ~eral-
mais avançada da Europa, enquanto a Áustria, embora bastante transtornada mentemais relevantes para os projectos dos fascistas. Os fascistas alemaes e
pela perda do seu império, possuía uma economia bastante aberta. Assim como romenospartilhavam sentimentos mais internacionais do que de classe, como
a Espanha e Portugal antes de Franco e Salazar. E embora estes dois ditadore bém veremos. Logo, o desenvolvimento económico a longo prazo e os con-
quase corporativistas tenham implementado economias mais autárcicas, não 0 :s a ele associados foram de facto causas significativas das principais lutas
fizeram pelo desenvolvimento económico, mas pelo controlo político. Com líticas da altura, mas eram mediados pelo nacionalismo. Por isso, os fascistas,
efeito, as suas economias corporativistas estagnaram severamente. Pelo contrá. po • •
que combinavam um e outro, adoptavam entusiasticamente as estra t'egias
• de

rio, o desenvolvimento tardio sem grande intervenção do Estado caracterizou a de envolvimento, por mais hesitantes que fossem.
periferia nórdica democrática (Bairoch 1976). O crescimento nórdico e as taxas Assim, o atraso económico relativo pode ser mais útil para explicar o auto-
de industrialização, dimensões das fábricas e poder socialista eram então mai ritarismo,mas as estratégias de desenvolvimento tardio podem ajudar a explicar
elevados do que os de quase todos os países autoritários. No entanto, entre as m lhor o fascismo. Ainda não explicámos inteiramente porquê.
duas guerras os países nórdicos foram aprofundando as suas democracias. Pre,. (2) Quebra económica. O autoritarismo pode ser uma resposta a flutuações
sões que no Centro, Sul e Leste pareciam sufocar as suas frágeis democracias económicas de curto prazo, especialmente recessões. Parece uma explicação
no Noroeste consolidavam-nas. O desenvolvimento económico tardio, por si só, óbvia,mas os dados são equívocos. As duas últimas colunas do quadro 2.1 espe-
não pode explicar o autoritarismo, apesar de presente aqui e ali. ificam as quedas alta-baixa máximas no PIB entre períodos de dois anos de
Um problema é que esta tradição de análise tem estado centrada no esta- 1927a 1935 e a maior taxa de desemprego registada. Elas não revelam uma dife-
tismo, ignorando o nacionalismo. Mas os movimentos autoritários· - e os seu rença em geral entre os países democráticos liberais e os autoritários. Os mais
teóricos económicos - mobilizavam tanto o nacionalismo como o estatismo. gravementeafectados pela recessão foram o Canadá e Estados Unidos, demo-
Como defendeu Berend (1998), o proteccionismo, a substituição das importa- cráticos, seguidos pelas autoritárias Áustria, Polónia e Espanha, depois pela
ções, as desvalorizações encobertas, e expedientes semelhantes, que prevale- hecoslováquia e Irlanda, democráticas, a seguir pela Alemanha, autoritária, e a
ciam na Europa Central e de Leste no período entre as duas guerras mundiai ustrália, democrática. As taxas de desemprego fornecem informação menos
não eram apenas economia técnica. Eram também, de forma relevante, naciona- fiável. Infelizmente, não podemos calcular as taxas de desemprego reais da
listas, e pressupunham convicções nacionalistas. Ideologias e movimentos nacio- maioria dos países mais atrasados e autoritários. A Alemanha e a Áustria, dois
nalistas orgânicos bastante semelhantes iam ganhando importância em quase do: países fascistas, tinham as taxas mais elevadas, juntamente com a Dina-
todo o Leste e Sul do continente. Raramente sucedia o mesmo nos países mai marca democrática. Mas isso não chega a ser prova convincente de qualquer
antigos do Noroeste, mesmo nos países nórdicos tardiamente desenvolvidos. r lação clara. O problema é que todo o Ocidente sofreu uma quebra, mas só
O fenómeno era porém ubíquo nos antigos territórios dos Habsburgos, do metadese tomou autoritária.
Romanovs, e dos Otomanos. E é aqui que obviamente reside a principal dife- Terão os golpes de Estado autoritários sido imediatamente precedidos por
rença. Os Estados democráticos do Noroeste eram, na sua maioria, independen- quebras económicas? Após o início da Grande Depressão, ocorreram cinco
tes há muito mais tempo. Fosse qual fosse a noção de "exploração" que pudes- golpes entre 1932 e 1934: na Alemanha, Áustria, Estónia, Letónia e Bulgária.
sem ter tido, ela não podia assentar num domínio político estrangeiro por parte É muito provável que a Depressão os tenha precipitado. Examino com mais por-
de Estados do tipo dos Habsburgos ou Romanovs. É certo que nesse aspecto a menor os casos da Alemanha e da Áustria nos capítulos 4-6. Contudo, mesmo
Irlanda e a N omega eram diferentes. Mas essas diferenças e excepções chamam que confirmassem a hipótese, restavam ainda 10 ou 11 países cujos golpes não
a atenção para a importância das relações de poder político e geopolítico, que foramuma reacção à Grande Depressão, mais os 16 países do Noroeste que não

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sofreram quaisquer golpes, mas passaram pela Depressão. Noutras alturas t aumentavaas tarifas. É preciso algo mais para explicar a razão de só algumas
,. ' ain.
bem houve alguns golpes na sequência de uma recessão. A recessão italiana d economiaspolíticas terem adquirido um cariz autoritário. As dificuldades eco-
1918 só foi cont~ariada em 1922, ano do golpe fascista. A Espanha e, a Roméni: nómicasenfraqueceram os regimes em todos os países entre as duas guerras.
passaram por d01s grandes surtos de autoritarismo. A Espanha teve o golpe d os países do Noroeste governos e partidos desfaziam-se, formavam-se e refor-
Primo de Rivera em 1926 e o levantamento militar de 1936. Houve, contudoe mavam-segovernos de coligação. No Centro, Sul e Leste ocorreram golpes, sur-
uma modesta expansão económica entre 1922 e 1925, um declínio em ~1932~ to de autoritarismo e fascismo de massas. Porquê a diferença regional? Não pode-
-19~3, seguido de uma recuperação em 1934 e uma estabilização em 1935 -são mosexplicá-la apenas com o desempenho da economia do período entre as duas
realidades algo ambíguas. Na Roménia, o rei Carol assumiu plenos poderes e guerras mundiais. Apesar de as dificuldades económicas terem desencadeado
1938, após seis anos de crescimento económico moderado. O principal sur: ri es e golpes políticos, não parece que elas tenham sido determinantes para um
fascista na Hungria ocorreu no mesmo ano, quando a situação económica desfechoautoritário, ou - menos ainda - fascista, em vez de democrático.
melhorava um pouco. Polónia, Portugal e Lituânia tiveram os seus principai É claro que esta discussão pode parecer demasiado limitada. Porque é que
golpes de Estado em 1926, depois de vários anos de ligeiro crescimento econó- d veríamos esperar que o comércio ou os números do desemprego do ano pas-
mico. Por fim, a crise jugoslava de 1928-1929 e a crise grega de 1935-1936 tarn. ·adoproduzissem o golpe de Estado deste ano? Os movimentos políticos demo-
bém sucederam ao crescimento económico dos anos anteriores. São resultado ramalguns anos a ganhar vapor. Talvez a impressão geral de crise económica no
muito confusos, que não indicam qualquer direcção interpretativa única. peóodo seja o que mais importa para debilitar os regimes e dar aos autoritários,
Houve três diferentes surtos de autoritarismo que incluíram, cada um, pelo inclusiveaos fascistas, a possibilidade de divulgar as suas soluções e organizar-
menos um golpe de Estado fascista: em meados da década de 20, durante 1932- - e. Mas se a crise e as soluções económicas são o mais importante, as elites
-1934, e a partir de meados dos anos 30. Embora o segundo surto tenha aconte- políticase os eleitores deviam dizê-lo - outra questão para os meus capítulos de
cido no final da Grande Depressão e tenha incluído o mais importante golpe fas- e tudo de casos.
cista - na Alemanha - o primeiro e terceiro surtos ocorreram maioritariamente (3) Conflito de classes. Terão o autoritarismo e o fascismo resultado de um
durante um crescimento económico titubeante. Os três afectaram países grande agravamentodo conflito de classes? As duas teorias de classe que discuto afir-
e pequenos, e espalharam-se pelo Centro, Leste e Sul do continente. Logo, não mamque sim. Os "teóricos da classe média" defendem que a classe média foi a
houve em geral uma relação entre ciclos económicos e vagas autoritárias no maisprejudicada pela crise económica e procurou repor o equilíbrio por meios
período entre as duas guerras. violentos. Não surgiram muitas provas concretas em favor deste argumento,
No período entre as duas guerras não ocorreu crescimento económico muito embora os períodos de inflação costumem causar maior dano à classe média,
vibrante em parte alguma. As economias industriais sofreram bancarrotas e dependentede rendimentos e salários fixos. Em alguns países (como a Alema-
desemprego em massa, as economias agrárias sofreram excesso de produção. nhano fim da década de 20), esse parece ter sido um factor no declínio do libe-
baixa dos preços e endividamento. Economias deprimidas geravam crises polí- ralismo burguês. Todavia, não está claramente ligado à ascensão do fascismo.
ticas. Com semelhante crise económica, os regimes vacilavam. Mas a questão Tambémnão houve muitos golpes de Estado após períodos de aumento da infla-
política vital era a de como resolver a crise económica. A "solução" tradicional ção. Ninguém demonstrou empiricamente que a classe operária tenha passado
era não fazer grande coisa, porque os mercados livres recuperariam espontane- r )ativamentemelhor que a classe média durante os anos cruciais - embora isso
amente. Assim, poucos partidos conservadores, liberais ou trabalhistas possuíam ja verdade para os grandes empresários. Investigações futuras mais pormeno-
orientações macro-económicas genuínas. No entanto, as políticas "nacionalista rizadas talvez consigam fazê-lo, se bem que os meus estudos de caso sugerem
de Estado" agitavam-se. Estratégias keynesianas de gestão da procura propu- antes o contrário. E se o fascismo não fosse de classe média, então todo o argu-
nham soluções nacionalistas de Estado moderadas. Universalmente, impunham- mentocairia por terra.
-se tarifas sobre as importações, a par de desvalorizações monetárias para tomar Os "teóricos da classe capitalista" afirmam que a crise económica intensifi-
as exportações mais baratas. Isso era nacionalismo económico. Foi a partirdes- cou o conflito entre o capital e as classes trabalhadoras, induzindo o capital a
tas estratégias que os fascistas desenvolveram a sua própria economia autárcica. contar com a repressão. Isso é mais verosímil. Hoje suspeitamos, pelo conheci-
Não se tratava de mera economia técnica (como se esta alguma vez tivesse exis- mentode todo o século xx, que o destíno dos movimentos sindicais não era des-
tido!). A política económica escandinava tomou-se a mais keynesiana, mas man- truiro capitalismo mas reformá-lo. Mas isso não era tão claro nos anos 20 e 30.
teve-se democrática, enquanto a maioria dos países, democráticos e autoritários. Revolução Bolchevique tivera enorme repercussão, e muitos esperavam mais

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FASCISTAS E pUCAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

revoluções nos países avançados. Os grandes movimentos socialistas,J,;omuni. eaça de esquerda acontecera em 1924, com uma insurreição apoiada pelos
tas e anarco-sindicalistas proclamavam fidelidade à "revolução". Quanto mais ai:viéticos.O esmagamento desta sublevação, seguido da purga de Estaline aos
forte a esquerda, talvez mais forte a reacção autoritária. Será assim? Geralmente eus líderes em fuga, afastou qualquer perigo "bolchevique" interno na Estónia
mas nem sempre. Na década de 30, a França liberal democrática tinha o maio; (Parming 1975). Na verdade, as greves eram mais ameaçadoras nas democra-
partido comunista, e a Noruega liberal democrática tinha proporcionalmente 0 cias.A grande greve geral na Grã-Bretanha ocorreu em 1926; o auge francês foi
maior partido de esquerda socialista. Mas só os elementos de esquerda do Cen. alcançadodurante o governo da Frente Popular em 1936. O problema é que as
tro, Leste e Sul da Europa assassinavam por vezes os seus inimigos e planeavam greves são geralmente uma forma bastante institucionalizada de exprimir
autênticas conspirações revolucionárias. Se nos puséssemos na pele dos lati- agravo,usada para extrair co~cessões de dentro do sistema. Elas raramente têm
fundiários espanhóis, ameaçados pelos anarco-sindicalistas e socialistas corn a revoluçãocomo objectivo. E talvez pela mesma razão que os níveis de filiação
ocupações de terras, bombas e sublevações aparentemente "revolucionárias·· nos sindicatosnão têm relação com os golpes de direita. À excepção da Espanha,
talvez também puxássemos da pistola. ' a indicalização teve o seu auge entre 1918 e 1921, e depois decaiu. O mesmo
Mas se analisarmos mais de perto a violência de classe as reacções tomam. aconteceucom o voto socialista-comunista; sofreu um decréscimo bastante gene-
-se mais intrigantes. Houve muito mais violência entre 1917 e 1919 do que ralizadoa partir de meados da década de 20 (ainda que o voto socialista austríaco
depois, e a direita perpetrou mais violência do que a esquerda. Durante 1917 e aguentasse até ao fim e o voto de esquerda alemão pouco diminuísse, tendo
1918, houve várias insurreições contra governos que se desmoronavam sob 0 partedele transitado dos socialistas para os comunistas ~m 1932 e 1933). A sindi-
esforço da guerra. Algumas tiveram perspectivas de sucesso. Com excepção da alizaçãoe o voto de esquerda na Europa de Leste eram demasiado reduzidos para
guerra civil da Rússia, a maioria dos mortos foram elementos de esquerda. explicarmuito. No Leste, a esquerda não era grande ameaça. Por isso, a força da
A Hungri~ teve a única outra (efémera) revolução "bem-sucedida". Um golpe e querda pode parecer relevante apenas para os primeiros golpes - e em especial
comunista-socialista liderado por Bela Kun tomou o governo e conservou-o só parao golpe fascista em Itália. Em muitos lugares, os operários não eram ameaça
por um ano e pouco, matando entretanto 350 a 600 civis (três quartos deles cam- uficientepara provocar uma reacção da direita.
poneses, empenhados em resistir à requisição da sua produção pelo governo). Por fim, temos uma medição decisiva da força da esquerda e da direita - a
Nas represálias que se seguiram, um "Terror Branco" de direita matou entre ua capacidade de tomar o poder. Durante 1917-1920, a esquerda podia, com
1000 e 5000 elementos de esquerda e prendeu 60 000 (Rothschild 1974: 153- razão,preocupar os conservadores: os revolucionários russos e húngaros toma-
Janos 1982: 202; Mócsy 1983: 157; Vago 1987: 297). A violência de direita não rammesmo o poder, e noutros países houve várias revoltas. Mas depois de 1920
foi uma mera reacção à violência de esquerda; excedeu-a amplamente. a situação mudou: golpes de direita vitoriosos em dezasseis países e nem um
Um indicador mais rotineiro de conflito de classes e "ameaça" de esquerda únicode esquerda. O mais perto que a esquerda esteve do sucesso foi provavel-
pode ser a ocorrência de greves ou o voto socialista-comunista. A ocorrência de mente em 1934, quando em Espanha tomou parte das Astúrias, mas não a sua
greves disparou no fim da guerra mas decaiu antes da principal vaga autoritária. capital,tendo resistido somente duas semanas (ver capítulo 9). Se os comunis-
Na Itália foi diferente. As greves italianas recrudesceram em 1919-1920, aju- tas, socialistas e anarquistas constituíam uma ameaça tão séria, era de se espe-
dando claramente a alimentar o crescimento do fascismo. A seguir declinaram rar pelo menos uma vitória, de um mês ou assim. A maioria dos golpes de dire-
bastante, em boa parte devido à pressão fascista. A Itália fornece assim algum ita deu-se na década de 30, demasiado tarde para serem uma resposta realista à
apoio à teoria. As greves austríacas atingiram o auge em 1924 e depois foram ameaça da extrema-esquerda, que então esmorecia rapidamente ao longo de
diminuindo continuamente, muito antes do surto de direita. As greves alemãs quasetoda a Europa (como também observou Eley 1983: 79). É claro que alguns
tiveram o seu auge em 1920, com um aumento menor em 1924 e outro ainda sustos vermelhos podem ter sido estratagemas. Será que Hitler acreditava mais
mais reduzido em 1928, mas a tendência de redução gradual manteve-se - uma na "ameaça bolchevique" ou na sua utilidade eleitoral? Mussolini apenas fingia
vez mais, sem qualquer surto autoritário até 1932-1933. As greves portuguesas acreditar numa "ameaça comunista" (ver capítulo 3). Na Grécia, Metaxas usou
atingiram o auge em 1920, embora tenha havido uma intensificação menor a "ameaça comunista" como pretexto para o seu golpe. Mas o Partido Comu-
em 1924, dois anos antes do primeiro golpe militar. As greves polacas avoluma- nista grego era pequeno e estava dividido, e a embaixada britânica relatou a
ram-se durante 1922-1923, muito antes de qualquer golpe. As greves na Estónia Londres que a razão de Metaxas era uma cortina de fumo para um golpe que na
recrudesceram novamente em 1935 (voltando ao nível de 1921-1922) mas tive- realidade resultava de lutas entre facções da direita (Kofas 1983: 31-50, 129-
ram, ao que parece, pouco efeito no golpe do ano seguinte. Aqui, a principal -45). Mas devia haver quem tivesse medo do "Perigo Vermelho", ou Mussolini

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FASCISTAS A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
E 'PL.l CAR

e Metaxas não se teriam dado ao trabalho de os assustar. Em termos racionai eJTlter uma boa explicação para a ferocidade da luta de classes. O próprio Marx
não é clara a razão para esse medo. é eIIl parte culpado. Sendo em última análise um economista, mais do que
Pode defender-se, em alternativa, que os autoritários foram capazes de atacar . ciólogo, a sua obra-prima O Capital está repleta não de análises do conflito de
precisamente devido à fraqueza da esquerda. Mas se a esquerda era fraca, porque lasses,mas de cálculos económicos racionais de lucros e perdas, proporções do
se importaria a direita? Porque é que os interesses de classe deveriam ditar que 0 eravit destinadas ao capital e aos trabalhadores, etc. Marx parece ter parti-
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Centro, o Leste e o Sul continuassem a evoluir para regimes mais extremistas, em lh:do a ilusão comum de que o capitalismo é movido pela procura racional do
vez de se ficarem por regimes semi-autoritários ou reaccionários? Talvez não lucro,embora acreditasse que esta acaba por ser não racional para a humanidade
devamos subestimar o papel que o simples espírito de vingança pode desempenhar corooum todo.
no conflito humano. Se no passado a esquerda assustara bastante as classes altas, Há nisto dois problemas. Primeiro, muitos comportamentos discutidos neste
então estas podiam apreciar a oportunidade de a esmagar cruelmente mais tarde, li ro são difíceis de entender por esse critério de pura conveniê~cia. Considere-
quando o susto já tinha passado. Mas põe-se ainda uma questão. Porque é que as mo , por exemplo, os capitalistas espanhóis entre 1939 e o final dos anos 60,
classes alta e média haviam de intensificar a repressão, abolir parlamentos e liber- apoiantes leais do general Franco, dirigindo uma economia estagnada e inefi-
dades cívicas, e mobilizar partidos de massas - para mais recorrendo a fascistas iente,que dava pouco lucro. Por que razão ajudaram Franco a chegar ao poder,
perigosos - se existiam formas mais suaves, experimentadas e comprovadas, com e depois o apoiaram lealmente? Ter-se-iam dado muito melhor com a Segunda
menor custo e riscos? De facto, a melhor solução para a luta de classes era visível República (tal como agora estão melhor com a terceira). Parecem ter agido por
no Noroeste da Europa; Os seus sindicatos, partidos socialistas e greves eram, em um motivo capitalista mais básico - ou melhor, um motivo partilhado por todas
geral, maiores do que os seus equivalentes no Centro, no Leste e no Sul, mas esta- a classes proprietárias da história - o de conservar as suas propriedades e pri-
vam implicados num compromisso entre classes e pouco ameaçavam as relações vilégios.Que se lixe o lucro, se a propriedade parece ameaçada. O lucro é em si
de propriedade capitalistas. Todos os seus partidos socialistas começaram por che- mesmo quantitativo, divisível e passível de compromisso, e a cooperação entre
gar ao poder em governos minoritários ou em coligação com partidos do centro, a classes até costuma aumentar os lucros. Mas os direitos de propriedade
um cenário perfeito para aprender as artes do compromisso. O desdém do Centro, ·ão finitos e são tudo ou nada. Se der quaisquer direitos à minha propriedade,
Leste e Sul por toda essa experiência parece surpreendente. perco-os.A resistência à perda potencial de propriedade será muito mais intensa
Não obstante, muitas vezes a actividade dos trabalhadores era perversa- mocional do que a resistência à potencial perda de lucro. Podemos arranjar
mente descrita pelos conservadores como "insurrecta" ou "revolucionária". O uma solução de compromisso para dividir lucros, mas lutaremos quase até à
conservadores dramatizavam, temendo revoluções que não existiam, sacando mortepara proteger a nossa propriedade. Os marxistas dar-se-iam melhor se não
das armas antes do tempo, como sugere Mayer (1981). A maioria dos suposto tivessem levado tão a sério a economia burguesa. Neste livro, é menos o lucro
bolcheviques alemães denunciados por Hitler eram na realidade sociais-demo- do que a defesa da propriedade o que domina as motivações da classe capitalista.
cratas respeitáveis que há mais de uma década governavam com moderação a No entanto, nenhum desses dois motivos existe por si só, como cálculo
maior província, a Prússia. No Leste da Europa, a verdadeira força dos socialis- racional,liberto da ideologia. A procura do lucro individual é acompanhada pela
tas (e o interesse que Estaline mostrava em ajudá-los) era insignificante compa- teoria de uma economia eficiente e por uma moral de liberdade e racionalidade
rada à histeria antimarxista da direita. Alguns teóricos de classe reconhecem-no. individual.Essas teorias e morais não são estáticas, e mudaram durante o século
Comer (1975: 83) diz da burguesia italiana: "Convencidos de que a revolução passado. Mas no século XIX e no início do século xx costumavam fazer-se acom-
social vinha a caminho, ficaram incapazes de distinguir entre a situação real e a panhar por duas noções: a de que a organização colectiva infringia a liberdade,
imaginada". Se assim foi, precisamos de uma explicação que vá além do inte- a de que só o homem educado e refinado (o homem, não uma mulher) era
resse de classe "objectivo". Explicar esse exagero histérico de uma classe é um capaz de tal cálculo racional. Logo, os capitalistas detestavam os sindicatos
dos maiores enigmas do período. como uma infracção das suas liberdades fundamentais e como barreiras irracio-
Alguns concluem que o autoritarismo, em especial o fascismo, tinha uma nais a uma economia eficiente. Também acreditavam que os sindicatos reduzi-
inclinação irracional. Confrontados com a Solução Final nazi, é uma explicação riam os seus lucros, mas essa não era geralmente a força motriz da sua resistên-
tentadora. Mas prefiro não separar tão claramente o racional do irracional, poi cia, já que a convicção era incorrecta e provou-se como tal sempre que a
o cálculo humano "racional" mistura-se sempre com a ideologia. O problema legitimidade dos sindicatos foi reconhecida. Não era porém a principal origem
que a burguesia enfrentava também atormentou a teoria social. Continuamos do ódio e resistência capitalistas nos países aqui estudados. Não foi na Alema-

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nha que ela dominou, mas nos Estados Unidos, onde inspirou a persegui. Perante tudo isto, o género mais ambicioso de explicação económica só
ção mais feroz e maligna aos sindicatos em qualquer país da viragem do século pade ser uma explicação parcial, e não total, e tem de ser um compósito formado
(ver Mann 1993: 638-59). E ainda não morreu nos EUA, onde infunde um ódio or todas estas abordagens. O atraso económico pode favorecer regimes semi-
genuíno aos "vermelhos" que supostamente se acoitam em qualquer organiza. ~autoritários.O desenvolvimento tardio pode desestabilizar as relações entre as
ção à esquerda do centro. classese fornecer modelos mais estatistas. Medos conservadores da desestabili-
Mas foi o substracto ideológico do segundo motivo, a defesa dos direitos de zação,a par de ideais mais estatistas :eodem empurrá-los mais para a direita, e
propriedade, que mais importou na ascensão dos regimes autoritários. Porque na paraa repressão. Mas nem a Alemanha nem a Escandinávia caberiam aqui bem,
ideologia da época a propriedade estava associada a dois valores sociais desejá- e continuamos sem uma boa explicação para o fascismo. Embora as teorias
veis, fundamentais: ordem e segurança. A tríade da propriedade, ordem e segu. económicase de classe nos ajudem a avançar, temos de investigar também as
rança, divinamente ordenada, era a alma ideológica do antigo regime. O novo outrasorigens do poder social.
autoritarismo começou a vincar mais a parte da fórmula respeitante à ordem e
segurança, e o fascismo foi ainda mais longe. Havia agora dois perigos alterna-
tivos que a esquerda moderna e a Revolução Bolchevique haviam supostamente Podermilitar, crise militar
desencadeado. Uma era a ameaça tradicional à classe alta, de confisco da sua
propriedade e privilégios. A segunda era a ameaça para todas as classes, não de Poder militar é a organização social da violência física. É universal nas
uma revolução "bem-sucedida", mas da desordem, da luta de classes sem fim. ociedades humanas devido à necessidade de defesa organizada por parte dos
A primeira era uma ameaça fundamental à veia jugular da classe capitalista, mas grupos,e à utilidade ubíqua da agressão. Os que dominam os recursos militares
a segunda era uma ameaça à própria ordem civilizada, à segurança de todos. podem adquirir poder social mais geral. Pelo contrário, quando as instituições
A percepção de inimigos tão ameaçadores pode resultar em genuíno ódio e militaresdeclinam, isso abre novas oportunidades a outros, incluindo a outros
malignidade. gruposarmados, para tomar o poder. Contudo, ambas as eventualidades pressu-
Ainda não resolvi o problema da "dramatização histérica". Sugeri que põemque o "militarismo" desfrute de alguma valorização ideológica positiva na
alguns sentimentos humanos bastante básicos de medo, ódio e violência podiam ociedade, e especificamente que a organização militar pareça proporcionar
ser invocados ao nível das classes no período logo após a Primeira Guerra Mun- modeloslegítimos para a aquisição de poder e domínio. Em princípio, todos os
dial. Mas por que razão não acalmaram quando a ameaça objectiva se atenuou? orposmilitares bem organizados podem tomar o poder, mas só poucos de facto
Talvez devido a outros sentimentos humanos básicos, de não perdoar, antes cal- o fazem.
car o nosso inimigo quando está em baixo, especialmente quando nos assustou. O poder militar foi descurado pelas ciências sociais. Embora o início do
Mas também pode ter sido pelo papel que a ideologia desempenha na definição éculo xx tenha produzido uma torrente de teorias sociais das relações de poder
de "interesses" de forma mais ampla do que sugere a teoria da escolha racional. militar,elas tenderam a desaparecer após 1945 - ironicamente, com a derrota do
Se a propriedade for equiparada à ordem e segurança, então estas - talvez na fascismo.Desde então presenciámos o curioso espectáculo de uma era moderna
forma de militarismo ou paramilitarismo crescentes - podem tomar-se valores dominadapor guerras, conquistas e genocídios interpretada por teorias pacíficas
positivos para as classes que temem ameaças à propriedade. E se a desordem for e economicistas. Mesmo quando os teóricos se dispuseram a considerar as rela-
temida, então os possíveis antídotos - nacionalismo, estatismo e transcendência çõesde poder militar, em geral centraram-se exclusivamente na força muito ins-
de classes - podem também tomar-se valores positivos. De facto, é exactamente titucionalizadaque os Estados mobilizam para a repressão interna e as guerras
isso que descobriremos. Em metade da Europa, a direita também se deixou atrair entre Estados. Como veremos, uma atenção exclusiva à violência organizada
para o nacionalismo, estatismo e militarismo como valores em si mesmos, e pelosEstados não conseguiria explicar o progresso do fascismo.
estes em geral impediram que a direita proprietária calculasse cuidadosamente a Todavia, a sociologia histórica recente expôs um conjunto de causas milita-
sua proporção de lucro ou até as suas possibilidades de conservar as posses. res e geopolíticas a longo prazo para a divisão da Europa entre regimes consti-
Esses valores levaram-na a aderir ao autoritarismo e mesmo ao fascismo de tucionaise absolutistas, que coloca em paralelo com as causas económicas iden-
modo mais entusiástico do que o mero interesse de classe podia explicar. Mas tificadaspor Barrington Moore. Eu próprio (Mann 1986, 1993), Tilly (1990) e
para avaliar isso completamente iremos também considerar as crises militar, Downing(1992) defendemos que 1) as lutas pela representação política resulta-
política e ideológica da época. ramda necessidade de o Estado tributar mais para travar guerras mais caras no

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estrangeiro, 2) cada vez mais essas guerras foram sendo travadas por exércit dir ctos ao fascismo. Em primeiro lugar, a guerra tendia a deslegitimar os regi-
profissionais sob controlo do Estado, que podiam ser usados na repressão mes vencidos, que em geral só haviam sido semi-autoritários. Logo, muitos
interna para obter mais impostos, mas que 3) os Estados que podiam acedera d fenderama probabilidade de que a derrota na Primeir'a Guerra Mundial tivesse
fundos do comércio externo ou da tributação aos países conquistados não precj. criadomais desfechos autoritários e fascistas - ainda que o efeito imediato tenha
savam de pôr em funcionamento o aparelho repressivo para conseguir mais idona verdade o oposto, o de aumentar as pressões democráticas. O argumento
impostos, e 4) as potências navais não podiam recorrer à repressão tanto co010 Podeser aceitável nos casos da Alemanha, Áustria e Hungria, os principais per-
as potências terrestres, pois as marinhas não conseguem navegar em terra. Para dedores(além da Rússia), que sucumbiram a autoritário-reaccionários, depois a
explicar a divisão da Europa em regimes constitucionais e absolutistas entre corporativistase a fascistas. A guerra custou à Alemanha 10% dos seus territó-
séculos XVI e xvrn exigiria misturar causas económicas, militares e geopolíticas rio e enormes reparações financeiras; a Hungria perdeu mais de metade dos
- e talvez outras, também. É igualmente provável que as causas militares e geo. u territórios; e a Áustria perdeu todo o seu império. Os elementos de
políticas continuassem a ter um papel no aprofundamento das "duas Europas''. direitadesses países afi~avam que a derrota resultara de uma "facada nas cos-
Além disso, as explicações do fascismo reconhecem geralmente que as rela. t desferida pelos políticos civis, por elementos de esquerda e pelos sinistros
ções de poder militares tinham acabado de ser revolucionadas. A Primeira "judeu-bolcheviques".Encabeçados por refugiados que afluíam dos territórios
Guerra Mundial intensificara a passagem da vida militar dos cidadãos para a perdidos,exigiam a restauração desses mesmos territórios. A Bulgária era uma
"guerra total". A maioria dos autores aceita que o fascismo jamais teria triunfado derrotadaem menor escala. A Itália é por vezes acrescentada ao rol dos venci-
sem o surgimento de semelhante forma catastrófica de guerra. A capacidade de do . Embora na realidade estivesse do lado vitorioso, os seus exércitos foram
mobilizar milhões de homens para o combate e muitos mais milhões de homens de troçados e os seus ganhos territoriais ficaram aquém do que desejavam os
e mulheres para fornecer apoio económico e logístico às forças armadas acarre. nacionalistas.A "vitória mutilada" foi assacada aos governos liberais "decaden-
tou muitas mudanças sociais. A curto prazo, aumentou imenso os poderes infra- te • de esquerda e "antipatriotas" (De Grand 1978: 102-14). Uma vez que esses
-estruturais e - em menor medida - despóticos da maior parte dos Estad paí es englobavam os principais casos fascistas (à excepção da Roménia), asso-
É também um truísmo dizer que na guerra a vitória traz mais legitimidade ao iar a derrota militar, o revisionismo e o fascismo parece plausível.
regime, enquanto a derrota faz o inverso. A guerra total parece fortalecer e O tempo ainda é um problema. Só os fascistas italianos (1922) e os autori-
argumento - especialmente na derrota, que então se transforma numa catástrofi tário-reaccionáriosbúlgaros (1923) tomaram o poder pouco depois da guerra, e
social. Mas a guerra total moderna encetara igualmente uma série de tensões o eus países tinham sofrido as menores perdas. AAlemanha teve tempo para
entre o poder estatal e a cidadania militar de massas que em circunstâncias de recuperar.As reparações foram estabelecidas em 1930 e sabia-se que a ocupa-
derrota possível ou real podiam desestabilizar radicalmente os Estados. Os pri- ção aliada da Renânia seria temporária. O golpe de Hitler em 1933 ocorreu
meiros conflitos irromperam em 1917 e 1918, com uma série de motins de so~ de erto tarde de mais para ser atribuído à derrota na Primeira Guerra Mundial.
dados e marinheiros e insurreições na maioria dos exércitos beligerantes. Estas O políticos húngaros sabiam que o seu revisionismo era retórico, e não prático;
chegaram ao apogeu com as Revoluções de Fevereiro e Outubro na Rússia. Aqw o austríacos sabiam que não podiam restaurar o império. A derrota não podia
os soldados formaram muitos dos conselhos revolucionários (sovietes), e o seu e plicar facilmente o autoritarismo prolongado ou o surto fascista da década de
Exército Vermelho reunido à pressa conseguiu defender a Revolução numa 30.A derrota na guerra não produziu directamente o fascismo. Mas pode ter con-
guerra civil em grande escala. A Áustria, a Alemanha e a Hungria também ti e- tribuídopara o primeiro surto de direita do pós-guerra, enfraquecendo as pers-
ram sovietes de soldados insurrectos, embora estes fossem rapidamente reprimi- pe tivas imediatas da democracia, e talvez isso tenha fornecido militantes para
dos. Mas a repressão provinha menos das forças armadas oficiais do Estado que maistarde.
do doppelgiinger dos sovietes de soldados, os paramilitares fascistas. Por todoo O autoritarismo também triunfou em países com diferentes desfechos na
lado, esse militarismo de base "popular" haveria de fornecer o núcleo dos mo i- guerra.A Sérvia e a Roménia foram vencedoras. A Sérvia foi recompensada com
mentos fascistas. o domínio da Jugoslávia. A Roménia viu o seu território e população duplica-
O fascismo só se tomou um movimento de massas no fim da Primeir1 do pela guerra. Esses dois países vitoriosos tomaram-se autoritários, e a Romé-
Guerra Mundial. A maioria dos Estados europeus participou nela, mas mesmo niagerou fascismo de massas. Dois neutros - Portugal e Espanha - também se
os países neutros foram profundamente afectados. A guerra intensificou obvia- tomaram autoritários. Portugal não se envolveu em actos bélicos importantes
mente o nacionalismo e o estatismo. Mas havia ainda três vínculos militar ne e período. O Império Espanhol fora destruído pelos Estados Unidos em

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1898-1899, e um exército espanhol foi desbaratado pelos marroquinos em 192t. antigasinstituições políticas, até então "regionais", embora os Checos não pos-
Mas a culpa desses desastres acabou dividida igualmente entre políticos de uíssem instituições experientes para governar os Eslovacos e os Alemães dos
esquerda e direita, o monarca e o próprio Exército. Poucos espanhóis apoiavam udetas(mais tarde seria por aí que se desmoronaria o seu Estado). Mas em geral
o revisionismo imperial. Muitos gregos também não, depois de derrotados pela 0
Noroeste da Europa não teve de lidar com a derrota, incorporar novos territó-
Turquia em 1922. Só em 1936 é que o general Metaxas levou a cabo o seu golpe, rios ou conceber novas constituições. Assim, o Centro, Leste e Sudoeste, mas
no qual as questões de política externa foram secundárias. Por fim, os novos nãoO Noroeste, assistiram a uma desorganização das instituições políticas indu-
"Estados sucessores" deviam a própria existência à Primeira Guerra Mundial. zidapela guerra. Mas porque viria da direita a desestabilização, levando ao auto-
A Polónia, os Estados bálticos e a Albânia também se tomaram autoritários, m ritarismoe ao fascismo? Passo ao terceiro legado da guerra, o paramilitarismo.
muitos dos seus líderes do pós-guerra eram considerados heróis da libertação Antes da guerra, a teoria fascista fora influenciada pela compreensão de que
nacional. O autoritarismo e, em menor grau, o fascismo, estavam assim associa. 3
guerra podia agora mobilizar uma nação inteira. A Primeira Guerra Mundial
dos a diversas experiências de guerra, não apenas à derrota. transformouisso em realidade. "A nação em armas" revelou-se disciplinada mas
Contudo, a guerra teve uma segunda grande repercussão numa área mais comcamaradagem, elitista mas peculiarmente igualitária - pois agora oficiais e
vasta da Europa. Ao longo dos países do Centro, Leste é Sul, os Estados vence. oldadoscombatiam lado a lado, e os oficiais até sofriam mais baixas. A guerra
dores, vencidos e sucessores haviam tido graves deslocações de guerra. Os regi. "total"recrutava entre 25 a 80% dos homens jovens e no começo da meia-idade.
mes vencidos perderam legitimidade, territórios e recursos, e •alguns sofriam a Masdado que a guerra de cidadãos maciça resultou quase só em horror para os
pressão dos refugiados. A Grécia (neutral durante 1914-1918) passou pores a oldados, por volta de 1918 a maioria só queria abandoná-la o mais depressa
situação depois de 1922. A Itália sofreu só uma pequena deslocação, em Trie te po sível, e regressar aos empregos e às famílias. Uma minoria de esquerda levou
e no Sul do Tirol. Os dois vencedores inequívocos, a Roménia e a Sérvia, tive- a desilusão mais longe, ao exigir uma sociedade mais justa e mais pacífica. Após
ram de lidar com um problema diferente mas paralelo: incorporar novos territó- umaerupção de movimentos de "trabalhadores .e soldados", empenharam-se em
rios extensos que transformaram o país e o Estado. Os Sérvios tiveram de insú- movimentoscivis de esquerda. Embora alguns destes tenham criado formações
tucionalizar políticas que assegurassem o seu domínio mas que não deixassem unifonnizadas que marchavam e se manifestavam, convencionalmente chama-
demasiado descontentes as outras etnias da nova Jugoslávia. Os Romen d "paramilitares", elas eram muito menos violentas do que as fascistas, e
tinham agora um país alargado, esmagadoramente rural, e já não eram bem a geralmenteperdiam para estas as batalhas de rua. Os veteranos de esquerda não
"nação proletária" oprimida da região. De repente exigia-se que os velhos Esta- tinhamqualquer veneração pelo militarismo, e depressa perderam a sua identi-
dos na Alemanha, Áustria, Hungria, Bulgária, Roménia, Sérvia e Itália apro- dade distinta de veteranos. Com uma minoria de veteranos de direita era dife-
fundassem o parlamentarismo. Os novíssimos "Estados sucessores" tinham de rente. Eles idealizavam a camaradagem interclassista disciplinada da frente e
começar quase do nada - nenhum partilhava a oportunidade dos Finlandeses e ficaramdesiludidos com a democracia civil do pós-guerra, dilacerada pelo con-
Checos de criar a partir das administrações regionais e parlamentos anteriore . flito.Ao enaltecer as virtudes militares e ao continuar certas práticas militares
Tudo isto equivalia a uma considerável desorganização política induzida pela em tempo de paz, inventaram um movi1:11ento social distinto: o paramilitarismo
guerra, praticamente sobre todo o Centro, Leste e Sudeste. Só a Espanha e Por- do cidadãos.
tugal a evitaram. Os paramilitares de direita e as ligas de veteranos organizados assumiram
O Noroeste viveu a experiência contrária. À excepção de três países, todaa importânciaem vários países. Ganharam uma guerra civil na Finlândia, reprimi-
região fora vencedora ou neutral. As duas democracias liberais mais marginais, ram o governo de esquerda da Hungria em 1919-1920, subjugaram adversários
a Finlândia e a Checoslováquia, eram também os únicos Estados sucessor de esquerda e estrangeiros no começo do pós-guerra na Alemanha, Áustria e
A Bélgica era o único Estado quase vencido (fora ocupada pelo Exército ale· Polónia, derrubaram o governo civil na Bulgária em 1923, e quase fizeram o
mão), mas os Belgas, sensatamente, culparam a geografia e não os seus políti· mesmo ao governo estónio em 1934. Eles foram o núcleo da primeira vaga de
cos. O país também ganhou algum território e reparações nos Tratados de Paz. todos os movimentos fascistas. Todos os movimentos fascistas e alguns movi-
Entre os vencedores (França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá, Austrália mentoscorporativistas e autoritário-reaccionários mantiveram substanciais cor-
e Nova Zelândia) só a França ganhou territórios e a Alsácia-Lorena havia sido pos paramilitares nos quais os veteranos desempenharam as funções de líderes
francesa antes de 1871. As suas constituições também não foram alteradas. Eram principais.A maior parte das teorias do Estado moderno seguem Max Weber ao
na sua maioria velhos Estados. Mesmo os Checos e Finlandeses haviam tido defini-lo como se possuísse o monopólio dos meios de violência na sociedade.

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FASCISTAS E pL{CAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

Porém, isso de forma alguma tem sido sempre verdade. É por isso que mesmo omparadascom o fascismo veterano na Alemanha, Itália, Hungria ou Roménia,
no Estado moderno temos de separar analiticamente as relações de poder mili.
erarn escaramuças menores. Talvez a distância entre vitória e derrota forneça
tares das políticas. O poder militar não é só mobilizado pelos Estados. Embora arteda explicação para a diferença (embora não para a Roménia). Mas também
todos os regimes do período entre as duas guerras possuíssem {?fércitosbastante pareceque outras circunstâncias além da guerra e dos seus efeitos devem ter
imponentes, bem treinados e armados, com experiência de guerra, alguns desse ~ontribuídopara o domínio do autoritarismo e do fascismo nos anos entre as
exércitos estavam em graride medida paralisados por divisões ideológicas inter. duasguerras.
nas. As ideologias, especialmente as de direita, grassavam em todas(as patente
muitas vezes patrocinadas por respeitados veteranos militares - até o coman.
dante supremo alemão, o general Ludendorff. Os exércitos estavam a perder Poderpolítico, crise política
muita da sua autonomia profissional de casta. Alguns Estados tinham agora
exércitos de barro e corações divididos. o poder político resulta do controlo do Estado, e em última·análise da utili-
Uma perspectiva do elo entre os veteranos de guerra e o fascismo centra~ dadepara os grupos humanos da regulação territorial e centralizada das relações
no vínculo entre os militares e o poder económico, isto é, no ressentimento dos
50 iais. Como é evidente, quem controla o Estado pode exercer mais poder
veteranos com a privação material. Outra perspectiva atenta no vínculo entreo geral. O período entre as duas guerras teve muitas crises políticas e golpes,
poder militar e o ideológico, isto é, na ascensão dos valores paramilitare quandoas facções manobravam pelo controlo dos Estados. Esse é o assunto das
O argumento económico sugere que um grupo de veteranos, essencialmente de "teorias da elite" do poder político, que lidam com duas teorias redutoras do
classe média baixa (incluindo camponeses), foi empurrado para o extremismo E tado, a teoria de classe e o pluralismo. Mas independentemente do grau de
pelo desemprego e penúria económica do pós-guerra. O argumento dos valore poderautónomo de que são dotadas as elites estatais, as instituições e as crises
paramilitares dá a entender que aquilo que os empurrou foi a sua experiência do Estados podem ter uma influência também autónoma nos desfechos políti-
na frente de guerra, de camaradagem sem classes e subordinação hierárquica. co . O facto de o Estado francês ser altamente centralizado e o norte-americano
Os veteranos acreditavam que a organização paramilitar podia agora alcançar d centralizado é uma herança permanente da política contemporânea, um
grandes objectivos sociais e políticos, como os que a organização militar tivera e emplo do que chamei "teoria estatista institucional" (Mann 1993, cap. 3).
na guerra. Embora os veteranos de direita não fossem provavelmente mais O '·novo institucionalismo" também sublinhou o efeito duradouro das institui-
numerosos que os de esquerda, mantiveram uma presença visível no pós-gue õe existentes na estruturação da vida social. No período entre as duas guerras
que os encorajava à depuração violenta dos "inimigos" da nação e a "dar-Ih encontramosEstados semi-autoritários, há muito institucionalizados, mas que
uma lição" para curar o conflito social. Os meus capítulos de estudos de ca entãopareciam fazer uma transição para a democracia, a passar pelas suas pró-
avaliam estas duas explicações rivais. O argumento ideológico servirá melhor. priascrises, com consequências importantes para o fascismo.
As deslocações de guerra - e a derrota no conflito, em alguns dos principais O maior problema de explicar o autoritarismo apenas em termos dos efeitos
casos - causaram grande parte da crise política inicial para os novos regimes e da Primeira Guerra Mundial e das crises económicas do período entre as duas
pode ter sido vital na interrupção do princípio do surto democrático. A expo i- guerrasé que a política nas "duas Europas" já vinha sendo diferente há muito
ção de um grupo específico à organização e valores militares forneceu então um maistempo. A maioria do Noroeste transitara para o Estado-nação democrático
núcleo de militantes e uma solução paramilitar verosímil para a crise. Mas essa liberaldurante os séculos xvrn e XIX. Em contraste, todo o Centro, Leste e Sul
explicação não é suficiente. Mais uma vez, só em metade da Europa é que sur- da Europa só agora começavam, mais repentinamente, essa transição, a meio de
giu um paramilitarismo significativo, ao passo que as duas metades (e também umavaga de nacionalismo e estatismo. O atraso económico era importante para
outros países) haviam vivido a guerra. É verdade que houve alguma agitação de ju tificar essa diferença, assim como os contextos militar e geopolítico. Mas
paramilitarismo, e até de actividade protofascista, entre os veteranos de qua tambémhavia problemas especificamente políticos no Centro, no Leste e no
todos os países beligerantes. Essa agitação foi muito intensa na França democrá- ui. Eram Estados em transição, e tinham dificuldade em lidar com as crises
tica. Foi escassa na Grã-Bretanha, mas influenciou a União dos Fascistas Britâ- entreas duas guerras.
nicos, de Mosley. Nos Estados Unidos, Campbell (1998) mostrou que a recém· Distingo duas facetas principais da democracia liberal, o que Dahl (1977)
-formada Legião Americana foi usada por elementos de direita como uma de igna "participação" e "contestação". A "participação" significa o grau de
organização de ataque à greve - e aos "vermelhos" - na década de 20. Todavia. participaçãono governo, centrada em quem podia votar. A questão dominou a

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FASCISTAS E PLICAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

discussão sobre desenvolvimento democrático (Rokkan 1970: parte II; Therborn Esse critério parece distinguir praticamente na perfeição entre as duas Euro-
1977; Rueschemeyer et al. 1992: 83-98). Mas a "contestação" (ou competição) pa . É claro que isso teve muito a ver com grau de desenvolvimento, com a polí-
é igualmente necessária à democracia liberal. A contestação signüica que 0 ticade classes de uma época precedente, mas também com diferenças fiscais e
poder soberano é disputado entre partidos em eleições livres, e o poder exe. militares(Mann 1986; Downing 1992). Qualquer que fosse a mistura exacta de
cutivo não pode sobrepor-se às eleições. causasoriginais, a sua herança foram as diferenças consideráveis de natureza e
A "participação" não distingue claramente as "duas Europas" no período e'tabilidade nos regimes políticos no início do século xx, e estas afloravam
imediatamente anterior à guerra. Entre os primeiros casos de sufrágio masculino agorapara exercer o seu efeito causal próprio.
estiveram Portugal, em 1822, a Bulgária em 1879 e a Sérvia em 1889, e fora Assim, na Primeira Guerra Mundial institucionalizaram-se parlamentos
introduzido na França e Alemanha para fortalecer o domínio· do semi-autoritário oberanos em 'todo o Noroeste (9). Quando o direito de voto se alargou pela
Napoleão III e do Kaiser. Em geral, os homens do final do século XIX podiam lassee religião, até às mulheres, os partidos ajustaram práticas liberais arraiga-
votar, mas ainda eram habitualmente controlados pelos notáveis locais, os caç;. d (Luebbert 1991). No período entre as duas guerras, os descontentamentos
ques, cujos poderes como patrões, magistrados, beneméritos e cobradores de foramexprimidos através dessas instituições representativas (ver os artigos em
impostos não podiam ser desafiados de ânimo leve (ainda que o novo voto chmitt 1988). Só a Finlândia e a Checoslováquia tiveram de encontrar novas
secreto ajudasse). Embora em 1914 a maioria dos direitos políticos fosse mais ín tituições- e por isso passaram dificuldades. O Estado no Noroeste da Europa
ampla no Noroeste, as duas regiões continham desigualdades, e estas avoluma- eraunitário, dominado pela soberania parlamentar institucionalizada, experiente
ram-se após 1918. Nos anos 20, todas as mulheres adultas podiam votar na Ale- na gestão do conflito entre classes, comunidades religiosas e regiões. A Bélgica
manha e na Áustria, mas nenhuma em França, enquanto as solteiras britânicas e a Suíçatinham especial experiência em lidar com as diferenças étnicas. A ideo-
entre os 21 e os 30 anos só o puderam fazer em 1929. A extensão do direito de logia liberal não tinha tanta importância como as instituições cujas práticas
voto não podia fazer prever se a democracia liberal sobreviveria, embora as quotidianasencarnavam o liberalismo.
mudanças eleitorais súbitas em países como a Itália e a Espanha tenham alar- Veja-se os mineiros britânicos no fim do século XIX. É provável que poucos
mado os conservadores, levando alguns a aderir ao autoritarismo. Mais uma vez, acreditassemno "liberalismo". Eram tão radicais (e bem organizados) como os
a desorganização política parece importante. mineirosda maioria dos países. Mas havia suficientes mineiros com direito de
A "contestação" (ou competição) é mais promissora. Na década de 1880 oto, ao abrigo dos direitos de propriedade, e estavam suficientemente concen-
geralmente décadas antes, os países de todo o Noroeste da Europa (incluindo tradosem certos círculos eleitorais para constituírem um bloco de votantes que
suas derivações coloniais brancas) tinham sistemas partidários competitivo o partidos não podiam ignorar. O Partido Liberal reagia às suas queixas e repre-
eleições amplamente livres, e partidos que alternavam no governo sem grande entava-as no parlamento, e por isso os mineiros votavam nos liberais. Esses
interferência executiva. Nos países nórdicos, as assembleias estatais haviam acordos encerravam tensões, e os deputados dos mineiros adquiriram alguma
sobrevivido mesmo nos períodos de absolutismo. Nas "colónias" do Noroeste autonomiacomo um arranjo entre liberais e trabalhistas. No início do século xx
- a Irlanda e a Noruega- os locais enviavam representantes eleitos à assembleia aderiramao Partido Trabalhista. Muito mais do que pela ideologia, o seu trajecto
da potência colonial, em Londres e Copenhaga. Até aos dois casos marginais, a foi dominado pelas oportunidades que proporciona o pragmatismo essencial da
Finlândia e a Checoslováquia, foram permitidas assembleias provinciais pelo políticaquotidiana eleitoral e parlamentar. De modo comparável, as novas ten-
seus suseranos russo e austríaco. Os parlamentos do Noroeste também dispu- ões de classe, e outras, do período entre as guerras podiam ser filtradas através
nham de poderes diferentes dos do partido maioritário, para que um partido deEstados parlamentares institucionalizados, ajudando-os a aprofundar-se e for-
governante não se pudesse conservar facilmente no poder manipulando a distri- talecer.Essas tradições políticas democráticas estavam simplesmente demasiado
buição de cargos ou a repressão. Os casos paradigmáticos eram os Estados Uni- in titucionalizadas para permitir que o fascismo, o bolchevismo ou qualquer
dos (plebiscito partidário livre entre a maioria dos homens brancos desde o outraideologia progredisse muito. Nesses países talvez seja mesmo inadequado
anos 90 do século xvm) e a Grã-Bretanha (disputa partidária livre entre 15 a referir o liberalismo como uma ideologia. Era-o apenas no sentido residual de
20% dos homens desde 1832). A maioria do Noroeste juntou-se-lhes durante o uma"ideologia institucionalizada", isto é, incrustada nas práticas rituais munda-
século XIX. É verdade que a prerrogativa real na escolha dos ministros se man·
teve na Suécia e Dinamarca, embora raramente fosse exercida e tenha sido por ( 9) Utilizando esse termo de maneira geral, para incluir presidentes eleitos da
fim abandonada em 1917 e 1920. mesmaforma competitiva que os membros do parlamento.

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FASCISTAS R A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
E pLJCA

nas. Ela via os valores e normas segundo a conveniência, importantes para ven. a que os Estados do Eixo foram "construtores de nações tardios, liberaliza-
cer as eleições seguintes ou manter as facções do partido moderadamente sati . af1J'[11 - d " • por um curt o peno
" do
s tardios e só introduziram a governaçao emocratica
dore . ,, • · t
feitas. de se desmembrarem", mas isso tambem era mais genencamente correc o
ant s . ,, . .
Como observou Linz (1976: 4-8), os partidos fascistas chegaram tarde às in. a metade do continente. A Alemanha e a Austna passaram subitamente
naquel ,, .
tituições parlamentares. Se a competição partidária já dominava o Estado, havia ara a soberania parlamentar avançada e sufrag10 adulto total, tal como fez a
pouco espaço para eles. O que quer que a Primeira Guerra Mundial ou o capita. : panha em 1931. A Itália havia feito o seu primeiro grande alargamento do
lismo reservassem à Noruega, Suécia ou Dinamarca, por exemplo, os seus Parti- direito de voto logo antes da guerra, em 1912, e o segundo em 1918. Essas
dos democráticos resistiriam (Hagtvet 1980: 715, 735-8; Myklebust e Hagtvet las alterações na vertente parlamentar do Estado não eram acompanhadas de
amp ,, 1
1980: 639-44). Se as suas antenas eleitorais detectassem um aumento do naciona. udanças comparáveis no seio do executivo, que (como veremos nos cap1tu os
lismo, os partidos conservadores podiam oferecer mais um pouco dele. Se detec. : estudos de caso) continuou dominado por elementos do "antigo regime"
tassem sentimentos estatistas, os partidos de centro-esquerda far-lhes-iam a von- que controlavam a maioria dos aparelhos repressivos do Estado. De resto, em
tade. Por isso, mais tarde, quando alguns desses países foram ocupados pelos nazi quase toda a parte encontravam-se Estados duais, num aparente processo de
e tiveram os seus sistemas partidários destruídos, as coisas puderam mudar rapi- liberalização. Mas muitos países do Centro, Leste e Sul da Europa foram
damente. Assim que neutralizaram os parlamentos e as eleições, os nazis encon- confrontadoscom uma dificuldade mais de transição, pois também estavam a
traram colaboradores ideológicos prestáveis. Na Noruega receberam o apoio de fundarEstados-nação. Aqui os problemas eram novos e diferentes dos que o
55 000 colaboradores nacionais-socialistas locais em abundância. oroestevivera antes. A "cegueira étnica" ( 10) do Noroeste não servia aos habi-
No Centro, no Leste e no Sul da Europa as coisas não eram assim. Os parla- tantes dos antigos territórios ou da vizinhança dos impérios multinacionais
mentos mal haviam existido antes de 1914 (como nos impérios russo e otomano) ru so, austríaco ou otomano - agora a representação não era só de classe mas
ou partilhavam o poder político com um governo não eleito, um monarca, tambémda nacionalidade. Os movímentos políticos que tentavam mobilizar as
comandantes militares, ou um regime ministerial que regia um patrocínio sub . id ntidades e interesses nacionais surgiram lado a lado com movimentos que
tancial de cargos. O Estado era dual, desfrutando os seus "dois Estados" (o par- mobilizavamas classes. Havia velhas nações imperiais (russa, alemã, otomana),
lamento e o executivo) de soberania parcial (Newman 1970: 225-6). É o sentido imperialistasmais recentes (a magiar), nações "proletárias" (ucraniana, romena),
do termo "semi-autoritário". Uma herança do período absolutista anterior era as nações subimperiais mais novas (sérvia, checa) e minorias de todas elas na
forças armadas estarem mais especificamente submetidas ao controlo do exe- maioriados Estados das outras nações. Onde ~s nacionalidades também diver-
cutivo do que na outra metade da Europa. Nos impérios alemão e dos Habsbur- giamna religião, isso reforçava o sentimento de desconforto mútuo.
gos, Sérvia, Roménia, Grécia e Bulgária, o monarca podia manipular eleições e Os conflitos nacionais também estavam mais directamente ligados a confli-
parlamentos através da repressão selectiva e do nepotismo. Na Espanha da Res- tos internacionais do que os conflitos de classe. Os tratados de Versalhes e de
tauração e (em menor medida) na Itália "liberal" até 1919, o ministério do Inte- Trianon implicaram redesenhar fronteiras segundo dois princípios contraditó-
rior ou o primeiro-ministro ajudavam a falsear as eleições para criar governo rios. Um era castigar os vencidos e recompensar os vencedores. Outro era
oligárquicos complacentes (el turno em Espanha, trasformismo na Itália). Em instaurara "autodeterminação nacional", redesenhar fronteiras segundo padrões
1901, metade dos deputados italianos tinham cargos no governo, e não podiam de ocupação étnica, para que cada novo Estado fosse predominantemente
ser homens muito "independentes". Os "detentores de cargos" tinham sido eli- monoétnico.O resultado era deixar alguns Estados insatisfeitos, com exigências
minados na Grã-Bretanha em 1832. Mas na outra metade da Europa os poderes irredentistas" de restauração dos "territórios perdidos" vindas sobretudo dos
executivos debilitavam parcialmente as constituições democráticas. No essen- refugiadosque fugiam do traçado das fronteiras. Percebe-se como eram exigen-
cial, aqui os mineiros estavam fora das instituições políticas. Os notávei tes e complexas as reivindicações que passaram a ser feitas aos Estados-nação
podiam continuar a "representá-los" bastante indirectamente através do cliente- duaisdo Centro, Leste e Sul, e como eram inexperientes as práticas políticas para
lismo político. Mas se isso não resultasse, esses notáveis podiam recorrer a
poderes repressivos muito mais vastos que os dos seus homólogos no Noroeste.
(10) O que quero dizer com esse termo é que desde os direitos iniciais de proprie-
Tinham à disposição opções autoritárias e despóticas.
dade no Noroeste raramente distinguiram entre etnias. Os proprietários ingleses, galeses
Em 1918, o Centro, Leste e Sul foram assim confrontados com o que pode- e escoceses eram considerados cidadãos activos, e raramente se organizavam por crité-
mos chamar "desenvolvimento tardio político". Larsen (1998; cf. Griffin 2001: 49) rios étnicos.

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FASCISTAS A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
pl,I AR

lidar com elas. Os intervenientes enfrentavam incertezas e riscos consideráve· ·a eu, os uniam as práticas quotidianas de longa data de partidos e parlamen-
que quase não existiam no Noroeste. Perante uma crise, para quem controlavaa tan Podia-se confiar neles? Podiam· confiar uns nos outros? Schmitt duvidava.
parte executiva do Estado era talvez mais seguro reprimir. Lembremo-nos tam. to • Ernsegundo lugar, defendia ele, o domínio pelos partidos políticos (isto é, a
bém ~ue esse critério coloca os Estados anteriormente absolutistas da Alemanha contestação"plena) acabou com toda a possibilidade de que o Estado tradicio-
e da Austria na mesma posição dos Estados menos desenvolvidos a Leste e Sul, l pudessecontinuar a ser, como outrora, a garantia neutra e decisiva da ordem
Vejamos essa crise política de transição pelos olhos de um conservador que ~o compromisso. Embora geralmente consideremos parciais os executivos dos
foi, à época, o mais sofisticado teórico do Estado ( 11). Carl Schmitt foi um antigosregimes, que terão favorecido as classes abastadas, não era assim que os
famoso jurista alemão que acabou como apologista do nazismo após a subida ao rópriosconservadores os viam. O monarca e o Estado haviam estado "acima"
poder de Hitler. Mas na década de 20 ele fora apenas um conservador, não corn. ~ ociedade, defendia Schmitt, fornecendo a derradeira garantia constitucional
prometido inteiramente com qualquer tipo particular de regime, admirador de contra interesses privados abusivos. Um partido só podia representar uma
Mussolini mas não de Hitler, e que procurava desesperadamente alicerçar urna , parte" da nação. Não podia substituir o Estado como poder "universal".
teoria da ordem constitucional contemporânea em fundamentos jurídicos com chrnitt acreditava, com alguma razão, que as elites estatais alemãs estavam
princípios legais absolutos. Schmitt queria certezas, e não riscos. Para ele faltava paralisadas.No entanto, o pluralismo da concorrência partidária que as substi-
certeza à Europa continental porque o declínio do velho regime semi-autoritário tuíraestava apenas a um passo duma situação de guerra civil na qual não have-
enfraquecera atributos essenciais do direito constitucional. Em primeiro lugar riajuiz para determinar o direito de cada um. Havia o risco evidente de a com-
os velhos parlamentos do regime haviam expressado o princípio iluminista da petiçãose transformar em "guerra". Se nem a assembleia nem o executivo do
razão na forma de debate livre entre homens racionais, independentes e educa- antigoregime podiam proporcionar ordem, talvez um novo executivo estatal
dos. Que as melhores leis fossem o resultado da dissertação racional entre con eguisse fazê-lo. Assim, durante a década de 20 Schmitt começou a formu-
homens educados fora a essência do liberalismo continental do século x, . lar a ideia de que era necessário um novo género de elite governante, acima da
Agora, argumentava Schmitt, o direito de voto ("participação", no sentido de ociedade,para ocupar os centros "esvaziados" do poder estatal e evitar o risco
Dahl) das massas resultava na ascensão dos partidos de massas, e estes ameaça- da desordem. Isso levou-o do apoio ao semi-autoritarismo de Bruning e von
vam a independência daqueles homens. Os deputados transformavam-se em Papenaté Hitler e ao nazismo.
meros "representantes" de interesses enraizados na sociedade, instruídos pel Schmitt exprimia medos muito generalizados. O seu primeiro argumento era
suas organizações e ideologias em relação ao seu voto. O debate livre e racional e pecialmente sedutor para os liberais do antigo regime, e o segundo para os
aproximava-se do fim. Schmitt pintou um quadro ainda mais sombrio dos "exér- con ervadores. É claro que por trás desses medos havia muita consciência de
citos de massas" burocraticamente organizados e corporativistas (tendo em ela se. Para Schmitt, agigantava-se uma espécie de "exército de massas", tal
mente sobretudo os sindicatos organizados, mas também a concentração econó- ornopara outros conservadores e liberais - os sindicatos e os partidos socialis-
mica e as grandes empresas) a "invadir" e a subordinar o Estado a ideologias de t que lhes estavam associados. A sombra da Revolução Bolchevique pai-
ódio altamente moralistas que acabavam por não conseguir esconder o seu fun- ra a sobre os seus piores medos. Contudo, Schmitt não baseava a sua teoria no
damento em interesses de classe mesquinhos. Talvez o compromisso entre esse direitoà propriedade mas numa noção mais ampla de ordem e segurança. Ele
interesses ainda fosse possível, mas agora teria de ser feito através dessas me . exemplificaperfeitamente o que já comentei ao abordar o medo das classes pro-
mas organizações, e não pelo parlamento. Fora assim, como correctamente pri tárias: os receios quanto à propriedade são transpostos para uma preocupa-
observou Schmitt, que a República de Weimar se fundara - através de uma "tré- ção concreta com a ordem e a segurança. A sua insistência na ameaça que as
gua de classes" explícita, algo incerta, negociada entre os sindicatos socialistas grandesorganizações burocráticas e corporativas representavam para o discurso
e os grandes empresários. Os participantes não estavam unidos pela solidarie- racionallivre era e continua a ser muito apelativa. É, por exemplo, muito seme-
dade normativa do parlamento como assembleia de cavalheiros. Nem, acrescen- lhanteà recente teoria de Habermas sobre a comunicação distorcida, teoria com
umalinhagem inequivocamente de esquerda. Schmitt chegou a encarar favora-
11 velmenteos benefícios do Estado-providência, excepto se envolvessem a "usur-
( Devo os três parágrafos seguintes a Balakrishnan (2000). As principais obras de
)
Schmitt que parafraseio são A Crise da Democracia Parlamentar (1923) e O Conceito pação" do Estado pela sociedade. As suas preocupações primeiras diziam res-
do Político (1927). Agradeço também a ajuda de Dylan Riley em discussões sobre a cri e peito ao Estado e à ordem social, não aos interesses materiais e de classe. Nem
do liberalismo parlamentar. ele nem o seu círculo tinham muito a ver com o capitalismo. A sua família era

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FASCISTAS E pLICAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

de origem pobre, tendo o pai sido funcionário subalterno dos caminhos-de-feno ralismodentro do próprio Estado: uma revolta de meio Estado contra o outro,
Era uma fanu1ia muito católica, e o conservadorismo inicial de Schmitt adquiri~ comcada uma das partes a mobilizar os seus eleitorados primordiais. Devemos
formas católicas (até romper com a Igreja por causa do seu divórcio). Pas ou analisar as elites estatais e os partidos tão cuidadosamente como as classes
depois a vida nas universidades alemãs como professor, com um estatuto seguro ociais. O epicentro desta crise não foi o liberalismo, mas o conservadorismo.
de funcionário público. Dava-se com a sociedade dos cafés e dos salões, coube. FoiO sucesso dos conservadores na passagem de partidos representativos de eli-
cendo artistas, escritores, e outros académicos. Os seus textos tomaram-no te para partidos representativos de massas que garantiu no Noroeste da Europa
famoso junto dos juristas e funcionários públicos, a cujos escalões superiores a obrevivência dos Estados liberais. Fora dali, foi a incapacidade dos conserva-
pertenciam as elites do poder com quem tinha as suas principais ligações. Ele dorespara efectuarem essa transição que causou o autoritarismo e abriu a porta
era fundamental para a "burguesia humanista" e para o estatismo alemão, mas ao fascismo. Embora a crise política fosse em grande parte resultado de proces-
não para o capitalismo. Apesar de o seu nacionalismo não ser extremo, e de não 0
de desenvolvimento económicos e geopolíticos/militares a longo prazo, e em
ter sido um militarista, os seus textos geopolíticos denunciavam uma ordem erta medida se devesse a crises económicas e militares de curto prazo, tinha
internacional contemporânea que favorecia os interesses dos vencedores da Pri- tambémcausas políticas mais específicas. E, por sua vez, a crise política gerava
meira Guerra Mundial. Assim, ajudou a legitimar o revisionismo germânico. a necessidade de ideologias verdadeiras.
Como veremos, a atracção das classes altas pelo fascismo não se baseava ape-
nas em interesses de propriedade. As inquietações com a ordem e a segurança
induziram nelas um estatismo nacionalista transcendente. Poderideológico,criseideológica
E assim os medos de muitos conservadores e de alguns liberais foram parar
ao mesmo terreno ideológico dos fascistas. A crise de transição política numa O poder ideológico resulta da necessidade humana de encontrar um signifi-
sociedade de massas transtornara as anteriores reservas de ordem e segu- cado,de partilhar normas, valores e rituais que pareçam conferir sentido ao
rança constitucionais. As coisas iam ficando arriscadas e podiam degradar- mundoe que reforcem a cooperação social. Uma ideologia que mobilize nor-
mais - no meio de um nacionalismo, estatismo e militarismo crescentes. Era mas,valores e rituais plausíveis pode também conferir poder aos seus iniciado-
melhor jogar pelo seguro do que arrepender-se. Já que os conservadores tinham r . A existência humana não "cria o seu próprio sentido". Recorremos a siste-
acesso fácil à repressão no Estado dual podiam - para usar uma expressão fute- ma de sentido mais geral que não são directamente "examináveis" nem pela
bolística - "fazer do ataque a melhor defesa" (e ao mesmo tempo pedir "falta"). ciêncianem pela nossa experiência prática. Os sistemas de sentido "transcen-
Era esse o raciocínio por trás da aparente paranóia com o Perigo Vermelho. Não dema experiência" e assim ajudam a definir os interesses. Contudo, a socializa-
se aperceberam que o Perigo Negro do fascismo podia ser ainda mais amea- ção,juntamente com as rotinas institucionalizadas da educação, emprego, polí-
çador. tica etc., isolam-nos em geral da necessidade frequente de recorrer a ideologias
Logo, o autoritarismo resultou directamente de uma crise política, tomando gerais.As instituições em que estamos envolvidos geram hábitos quotidianos
mais difícil a alguns Estados lidar com as crises que emanavam do capitalismo que"funcionam" e parecem "normais", e que produzem "ideologias institucio-
e do militarismo. Os Estados duais do Sul, Leste e Centro da Europa (pois incluí nalizadas" mínimas nas quais os valores são rotineiramente desgastados pelo
neles os países germânicos) não davam certezas de saber tratar uma cris pragmatismo.Em tempos de crise, porém, os hábitos tradicionais e o pragma-
excepto com repressão. Mesmo com todas as crises que a guerra mundial e o ti mo parecem já não funcionar, e somos empurrados para ideias mais gerais a
capitalismo causaram no Noroeste da Europa, os seus Estados liberais sobrevi- fim de descobrir novas práticas viáveis. Os intelectuais podem então apresentar
veram. Diz Eugen Weber que "o fascismo do século xx é um resíduo da desin- novos sistemas de sentido e assim adquirir um poder social mais geral. Talvez
tegração da democracia liberal" (1964: 139). Mas isso não é totalmente correcto. o achemos convincentes e os adoptemos. Foi assim que interpretei a ascensão
Os Estados liberais institucionalizados ultrapassaram a crise com êxito. Deve- da· religiões de salvação do mundo no primeiro tomo de The Sources of Social
ríamos reformular a afirmação: o fascismo reflectiu uma crise do Estado dual, o Power (Mann 1986: cap. 10), e que também interpretei a influência do movi-
Estado "semi-autoritário, semiliberal", vigente em metade da Europa, confron· mentoiluminista na Revolução Francesa no segundo (Mann 1993: caps. 6 e 7).
tado com transições simultâneas para a democracia liberal e para o Estado-nação Terásido o fascismo semelhante? Uma investigação que levei a cabo foi sobre
exactamente quando esses países se debatiam com crises económicas e milita- redes de comunicação fascistas. Geograficamente, identifico três redes prin-
res. Isso causava incerteza, uma espiral descendente e uma reacção contra o libe· cipais:redes transnacionais, redes macro-regionais que podem ajudar a construir

110 111
ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
FASCISTAS B PLICAR A

ou reforçar "as duas Europas", e redes confinadas ao interior de Estados-naç


Socialmente, identifico eleitorados ideológicos primordiais do fascismo.
O fascismo era obviamente muito ideológico. Outros elementos de direi
autoritários não viviam muito no nível ideológico. Apoderavam-se pragmati ~
mente de quanta roupagem fascista fosse compatível com a permanência no
ao.
~- 0
refugiado (ou a desalojar refugiados), se se deparasse com uma grave
co[Il - crescente e um conflito de classes, e iniciasse uma frágil transição polí-
0
. então não só o "antigo regime" como também mmtos
uca, . . . .
• costumes e crenças
l' • -
eral pareciam desadequados. As ideologias sociais e po 1t1casnao requerem
. , . A s novas i•deo1ogrns
emg odem obter validação cientifica. • nao - requerem ver--
neroP " • 1 •d ,,
pod~r, ao mesmo tempo que tentavam diluir o impulso ascendente, radical, do dademas plausibilidade, a capacidade aparent~ de c~nfenr a gum senti _o aos
fascismo. Mas antes da guerra os criadores do fascismo haviam sido intelec. tecimentos actuais numa altura em que as ideologias consagradas estao com
a on . . dº • •
tuais, e os intelectuais continuaram sempre a ser importantes no fascismo. No dificuldadesóbvias. No período entre as duas guerras, as ideologias tra ic1ona1s
. podiam interpretar facilmente a realidade contemporânea, pelo menos em
período pré-guerra, eram muito mais os leitores de Maurras, Barres, Sorel e teó-
ricos da raça como Chamberlain e Gobineau, e de uma série de jornalistas
ºªº -
m tade da Europa. O conservadorismo desconfiava das massas que entao se des-
liberalismo parecia corrupto e insuficientemente estatista e naciona-
medianos, divulgadores e panfletáros - até à infame falsificação anti-semita d tacavam, O
Protocolos dos Sábios de Sião - do que os membros de organizações políticas li ta. o socialismo desconfiava da nação e provocava o conflito de classes, mas
fascistas ou racistas. Todos os movimentos fascistas continuaram a atrair de não a sua solução. As Igrejas cristãs vinham-se afastando da esfera secular e
proporcionalmente os instruídos - estudantes dos liceus e das universidades e e ravam divididas. Havia espaço para novos ideólogos e ideologias, capazes
daquilo a que Lucien Goldman chamou "a máxima consciência . . possível",
... os
estratos da classe média com mais habilitações académicas. Salvatorelli (192 )
descreveu esse eleitorado primordial como "burguesia humanista". Embora 0 primeirosa sentir as desadequações das ideologias convencionais e os pnmeuos
fascismo só atraísse intelectuais realmente importantes na Itália e na Roménia, a criar outras.
Autores como Hughes (1967), Stemhell (1976: 320-5) e Mosse (1999) iden-
em muitos países ele seduziu intelectuais menores, sobretudo gente dos jomai
tificaramuma crise ideológica mais geral e completamente transnacional que
rádio, cinema e artes gráficas. O fascismo foi um movimento da intelligentsi~
menor. atravessavaa Europa. Eles perceberam uma contradição entre a "Razão Ilumi-
E, assim, os programas fascistas formaram-se entre uma ideologia mai ni ta" e uma inquietação pós-romântica com as emoções, paixões, a vontade e o
ampla. Já citei a rejeição desdenhosa, por Codreanu, da "lista de compras" típica in onsciente - que às vezes se instalam em fenómenos "de massa" como multi-
dos programas fascistas. Os fascistas inseriam a economia ou a política baseada dões, greves, guerra e nacionalismo. Alguns tentaram encontrar uma ligação
através da "história das ideias" entre o fascismo e convulsões de "alto moder-
em interesses numa Weltanschauung (uma orientação geral para o mundo).
ni mo" que reflectiam e reforçavam uma crise geral do começo do século XX:
Reclamavam um propósito moral superior, que transcendia o conflito de classes,
revoluções perturbadoras" na psicanálise, pintura abstracta, música atonal, o
capaz de "ressacralizar" uma sociedade moderna tomada materialista e deca-
dente. Identificavam uma "crise civilizacional" que englobava o governo, a
declíniodo narrador omnisciente do romance realista, o fascínio pelo bizarro,
moral, a ciência, a ciência social, as artes e o "estilo". Denunciavam os seus ini- fantástico,decadente, irracional, toda uma subversão do programa iluminista de
razão tranquila e confiante. Mas se uma crise transnacional da alta cultura aju-
migos em termos moralistas e extremamente emotivos. Os socialistas provoca-
davaa provocar o autoritarismo, deveria tê-lo conseguido por toda a parte. Pode-
vam a "barbárie asiática", os liberais eram "decadentes" e "corruptos". A ciência
mos atenuar o argumento para um nível macro-regional? Nesse caso esperaría-
era "materialista". Uma cultura "degenerada" e "velha" precisava de reformula-
mos que a crise cultural fosse mais intensa no Leste e no Sul do continente.
ção e rejuvenescimento. Promoviam a sua própria arte, arquitectura, ciência
Emborafosse algo mais fraca nos países anglo-saxónicos e escandinavos, a van-
ciência social, os seus movimentos de juventude, e um culto do "homem novo' ,
guardaera dominada pela Paris democrática, enquanto a Viena de esquerda lide-
envolvendo tudo isso com um interesse fervoroso pelo estilo e ritual. É claro que
rava na música e na psicanálise. O Leste ou o Sudeste da Europa, mais atrasa-
Mussolini e Hitler também reconheciam o poder emocional das formas de arte
dos, não conheciam o alto modernismo. Na realidade, a alta cultura é criada por
- a música, o desfile, a retórica, a pintura, o desenho gráfico, a escultura, a arqui-
pequenos círculos de elites cosmopolitas, pouco ligadas à localização. Isso é
tectura. Encontraram um conjunto prestável de artistas que sentiam a sua criati-
particularmente verdadeiro no caso da música e da arte, em grande parte livres
vidade sintonizada com a ideologia fascista. Durante as décadas de 20 e 30, a
das barreiras linguísticas. Mas é difícil relacionar as "revoluções" introduzidas
concatenação de crises acima enumeradas provocou uma perda grave de sentido.
por Freud, Schonberg, Picasso, Joyce e por aí fora com revoluções políticas.
Se um país tivesse sofrido guerras de destruição e deslocados em massa, se
Dado que muitos artistas "radicais" rejeitavam formas de arte incorporadas na
tivesse perdido ou ganho grandes fatias de território, se tivesse visto o seu povo
113
112
FASCISTAS ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
pt,JCAR A

experiência humana de massas (melodias trauteáveis, belas paisagens, etc.) A mensagem do liberalismo também era transnacional., embora tivesse ~uas
pouca ligação tinham com essas massas. Schorske (1981) afirma que as elit~ . Grã-Bretanha e a França. O liberalismo corponzava o compromisso
P
átrias,a
cultas de Viena perceberam que o liberalismo não conseguira reformar o Im •. arJarnen tare O debate aberto entre cavalheiros independentes. .Na. era das mas-
rio Austro-Húngaro, e estavam horrorizadas com a violenta política de mass p começou a ter dificuldades. O alargamento gradual do drre1to de v~to na
que emergira. Por isso, refugiaram-se no romantismo estético e no oculto, e G~-Bretanha disfarçara esse facto, pois os partidos de mas~as foram-se mco~-
rejeitaram os valores da ordem social vigente, pressentindo os horrores políticos rogressivamente nos hábitos educados de Westmmster. A III Repu-
paran d° P ,· .
vindouros. . francesa também o disfarçou temporariamente, dado que os partidos repu-
bhca tavam unidos pela necessidade comum de defender a epu 1ca
R 'bl.
Mas os fascistas recusavam a maior parte desse alto modernismo, consid . ~~ S es .
rando-o "degenerado". Por isso alguns dizem que o fascismo era "antimodemo''. a d ireita Mas noutras paragens na opinião de conservadores Ilustres
contra • ' . .
Prefiro a noção de Gentile (1996), de modernidade ressacralizada, ou a de Hen omoCarl Schmitt), o despontar mais repentino das massas trouxe partidos ~1s-
(1984), de "modernismo reaccionário", formulada para descrever a mundividên. . Iinadosque aderiam a ideologias pré-definidas. A discussão parlamentar hvre
CIP l"b • d'
eia dos engenheiros nazis que o autor estudou. No nazismo havia nostalgia, eraassolada por exércitos ideológicos. Eminentes 1 era1s po iam agarrar-se . . ao
romantismo, medievalismo e até primitivismo. No entanto, como Allen (2002) podermanipulando os partidos de massas emergentes,_como n~ c~czquzsm~,e
também observa acerca dos tecnocratas da SS, os professantes nazis achavam-• trasformismo,mas tomavam-se corruptos ~ desenvol~1am tendencias, autonta-
moçlemistas. Em áreas tão diversas como a engenharia, a teoria da gestão, a bio- . A influência ideológica britânica no contmente declmou no fim do seculo XIX,
logia, a propaganda e as artes gráficas, os fascistas foram modernistas entusias- nu~do a Grã-Bretanha passou a dar mais atenção ao seu império. A influência
tas. Eram inovadores na comunicação de massas, disseminando a sua ideologia qliberalbritânica, e em menor grau a francesa, d'1IDmurram
• ' n~ Europa. . ,
através de cartazes, desfiles, exposições de arte, filmes e arquitectura. Na arqui- os debates continentais com o liberalismo eram mmtas vezes desaf10s a
tectura e na música eram bastante conservadores; nas artes gráficas, cinema e ortodoxia"anglo-saxónica" (e às vezes à anglo-francesa). Na filosofia, o utilita-
manifestações teatrais eram radicais. Mas não parece que a crise da alta cultura ri mo de Bentham, o positivismo de Comte, e o pragmatismo norte-americano
tenha desempenhado grande papel no poder da ideologia fascista. Os fascis _ que continham todos a ala vertente pragmática da tradição ilumini~ta .- eram
propunham soluções gerais plausíveis para as crises económica, militar e política contrariados pela intencionalidade neo-idealista, as emoções, vitalismo e
da época, que os seus poderes de comunicação tomavam mais ressonantes. Lel,ensphilosophie associadas especialmente a Schopenhauer, Brentano,
De facto, esta foi a época dos Estados-nação em ascensão, e a comunicação Bergsone Nietzsche. O inconsciente de Freud era comparado à psicologia da
ia-se tomando menos transnacional, mais limitada por Estados. A comunicação multidãode LeBon, à greve de massas de Sorel e à função primordial do mito.
letrada do século XVIII fora dominada por Igrejas multilingues e elites aristocrá- Tõnniese Durkheim contestavam o liberalismo de Spencer e Comte: a socie-
ticas. O Iluminismo havia sido transnacional, espalhando-se através dos euro- dade, afirmavam eles, não era apenas formada por contratos entre indivíduos,
peus letrados e não só. Continuou a ser assim com os seus herdeiros liberais e m exigia comunidade e consciência colectiva. Gumplowicz e Ratzenhofer
socialistas do século XIX, os "inimigos" do autoritarismo do século xx. O trans- desenvolveram uma sociologia do conflito étnico e da "superestratificação"
nacionalismo socialista foi ajudado pela difusão transnacional do capitalismo. militaristapara contestar o maior pacifismo das teorias marxistas e liberais do
pelo costume que os antigos regimes tinham de castigar os dissidentes com o e nflito de classe e grupos de interesse. Essas novas sociologias tiveram pouca
exílio, e pela viragem à esquerda dos jovens judeus, pressionados pelo novo divulgaçãona Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Embora em muitos países o
anti-semitismo político. As redes cosmopolitas de exilados e judeus foram o darwinismosocial tenha incentivado o eugenismo, o Noroeste da Europa achava
núcleo das Internacionais, facilitando a tradução rápida de textos socialistas. queo principal problema era a reprodução das classes baixas, e não a das "raças
Existiam subculturas macro-regionais do marxismo, sindicalismo e refor- inferiores".Na Alemanha e na Áustria, o darwinismo social racial impregnava
mismo, mas a maioria dos movimentos sindicais sentia todas essas influências. romancesde grande circulação, a sociologia popular e os novos partidos políti-
Com efeito, os autoritários e em especial os fascistas atacavam os socialistas cos.Ainda que poucos desses autores fossem de direita, a sua vulgarização "às
como cosmopolitas, estrangeiros, traidores. A ascensão da sociologia no fim do mãos de mil intelectuais menores" (como diz Sternhell) encorajou expressões
século XIX foi implicitamente nacionalista. Weber, Durkheim, Pareto e Mosca românticase populistas de nacionalismo e estatismo.
mal se referiam uns aos outros. Estavam isolados nas suas fronteiras nacionais, A França e a Alemanha continuaram a agir como intermediários ideológicos
a formular, independentemente, críticas ao socialismo transnacional. como Leste e o Sul do continente. Weber observou a dualidade da racionalidade

114 115
A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
FASCISTAS pUCAR

da conveniência e do valor. Ortega y Gasset afirmou que Bismarck e Kant I>er Primeira Grande Guerra reduziu a influência geopolítica de ambos os paí-
sonificavam na Alemanha todo o dilema político europeu: Bismarck propunha s reforçou o nacionalismo. O romeno Mircea Eliade denunciou "os trai-
rna . d f ,.. ,,
ordem, estabilidade, comunidade e autoridade, Kant propunha liberdade, Ilumi- s transilvanos ( ... ) que acreditam na democracia e apren eram rances
nismo, igualdade,.individualismo. Os liberais passaram de Westminster para dl::md 1990: 155). O nacionalismo volkisch germânico espalhou-se para ~este,
República francesa, mais endurecida e nacionalista. Os liberais espanhóis pr: cialmente no meio do ressentimento com o desfecho da guerra. O nac10na-
espe
. ·
também se insprrava · genencamen
mais · te na en
" f ase german1ca
" • da "von -
clamaram que embora a Inglaterra tivesse sido o berço das liberdades públic
rn0 e da "luta" de heróis ou elites contra a deca d"encta,
b de'' ~ e o b ana,1
• a corrupçao
fora a França que as universalizara (Marco 1988: 37-42). A Alemanha coman
dava o socialismo, de Marx a Bernstein, Kautsky e Rosa Luxemburgo, líde ta ularizadaspela distinção que faziam Nietzsche, Wagner, Spengler e Sombart

do maior partido socialista do mundo, o SPD. Por volta de 1900, enquanto0 ~:e os "heróis" germânicos e os "comerciantes" anglo-saxónicos. Nietzsche e
liberalismo esmorecia, os socialistas franceses e alemães e os conservador ngler eram autores populares em todo o lado; Maurras, Barres e outros eram
pe M . h •
lido esporadicamente no Noroeste da Europa. as tm am mmto menos resso-
autoritários dominavam o pensamento político europeu. A nova direita radical
propagava-se para leste e sul a partir dos dois protagonistas da "zona frontei- nâncianas práticas quotidianas das democracias liberais ou entre o protestan-
riça", os franceses e os alemães. ti mo ou catolicismo despolitizados.
As inquietações francesas e alemãs eram diferentes. Os elementos de Notava-se uma terceira influência alemã, através do domínio desde o sé-
direita franceses centravam-se no estatismo, e os alemães no nacionalismo. I to uloXIXdo sistema universitário germânico, com a sua •sistematizaçãomais geral
porque a França tinha territórios estabelecidos e poucas disputas étnicas (a AI á- do conhecimento (Collins 1998: cap. 13). As universidades alemãs domina-
cia-Lorena era disputada mas não tinha grandes tensões étnicas). Os Frances amespecialmente a filosofia. Mas a filologia, etnologia e arqueologia alemãs
discutiam antes o género de Estado que ocuparia esse território. Os seus intelec- influenciarambastante o nacionalismo. Os nacionalistas rejeitam formalmente
tuais protofascistas da viragem do século estavam acicatados com a derrota da influênciasestrangeiras, insistindo na sua "singularidade cósmica". As visões
direita monárquica, militar e ultramontana pela República, e promoviam nov nacionalistasda Hispanidad, do hungarismo, do Volk ariano, da "Terceira Civi-
formas de estatismo que englobavam a modernidade, o "nacionalismo integral" lizaçãoGrega" e da "Segunda Roma" proclamavam-se enraizadas numa histó-
e a mobilização de massas. A direita francesa tinha por isso mais atractivos em rianacional, solo e civilização únicas. Um fascista romeno proclamou: "O nosso
países com fronteiras claras, onde a nação não era problemática mas o Estado na ionalismo só aceitará o super-homem e a supernação eleitos pela graça de
sim. Maurras, Barres e a Action Française eram mais citados em Espanha, Por- Deus"(Ioanid 1990: 114). No entanto, o nacionalismo era uma doutrina compa-
tugal e Itália. A Itália era diferente, porque tanto liberais como conservador rativaem que a genealogia de cada nação se inseria numa história civilizacional
gravitavam em direcção a esse protofascismo. Mas esses eram os liberais que mais vasta, influenciada pelo conhecimento predominantemente alemão dos
não tinham conseguido institucionalizar práticas liberais nos seus países. indo-europeus,dos arianos, do orientalismo, do Antigo Testamento, dos bárba-
Pelo contrário, os Alemães não tinham um Estado único. Defendiam o ro e da primeira cristandade. A partir da popularização de textos eruditos, a
méritos de uma Klein (pequena) e Gross (grande) Deutschland (que incluísse a Roméniafoi proclamada "a única nação latina ortodoxa e a única nação orto-
Áustria e outras regiões onde vivia a etnia alemã), mas os principais Esta- doxalatina". Os nacionalistas húngaros identificaram três povos escolhidos no
dos germânicos, a Prússia/Alemanha e a Áustria partilhavam constituiçõe mundo:Alemães, Japoneses e Magiares. Só os Magiares, o único povo "turânio"
semelhantes. Por isso, os Alemães discutiam mais a etnia do que as constituiçõe d cultura ocidental, podiam mediar o Oriente e o Ocidente para fundar um "ter-
estatais. A direita criou o nacionalismo orgânico volkisch ("popular"), que eiro império, do meio". Os Turcos forneceram uma visão alternativa do Impé-
encontrou mais eco na maioria do Leste e nos Balcãs, zonas da Europa onde a rioTurânio Médio. Eram mitos da história mundial, influenciados pelo conheci-
relação da etnia com o Estado era contestada. O etno-nacionalismo começou por mentoeuropeu, especialmente alemão, do período antes da guerra.
ser encabeçado pelos alemães austríacos, já que só a Áustria possuía um impé· No período entre as duas guerras, o estatismo e o militarismo germânicos
rio europeu enredado em contendas entre nações "imperiais" e "proletárias". tradicionaismesclaram-se com o nacionalismo volkisch e o anti-semitismo para
Embora o darwinismo social se tivesse difundido por todo o continente, os ter- riar o nazismo. A sua influência espalhou-se mais a leste do que a sul, onde as
ritórios germânicos mais a leste adaptaram-no a diferenças étnicas intra-euro- fronteirasestatais eram mais frrmes e o racismo e anti-semitismo mais débeis.
peias - resultado do anti-semitismo e da dissociação aí encontrada entre nação O estatismo francês fundiu-se com o liberalismo e o sindicalismo italianos de
e Estado. inclinaçãoautoritária para gerar o fascismo italiano. Pareto e Mosca foram adap-

116 117
FASCISTAS ,pLJCAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

tados para sugerir q~e as elites em busca de valores morais absolutos, indepen a•udaramao aparecimento de movimentos de libertação nacional e de naciona-
dentemente dos me10s empregados, eram superiores ao parlamentarismo "cor i!.mo orgânico. A combinação de um estatismo moderado (decorrente do seu
rupto" da "Itália legal". O corporativismo de Spann inspirava-se em noções a • uietismopolítico e simpatia pela hierarquia) e nacionalismo mais pronunciado
,, d u
tnacas e organização por "propriedades", e o corporativismo romeno d ~riginouvários resultados políticos. Contudo, facções importantes de várias
M ·1escu maugurou
• a teoria da dependência periférica. Como Gentile na It·e
ria,an01
os seus projectos
a.
corporativistas de reorganização social misturavam a er.1
Igrejasortodoxas inclinaram-se para a direita radical e até para o fascismo - em
. ,_ . ,, . e pecialna Roménia (ver capítulo 8) .
c1encia econom1ca com a nação integral e o "homem novo". Os aprestos co A Igreja Católica é transnacional, salvo por a sua base ser em Itália. Em
ra f1v1stas
• d
e parti"do único do fascismo italiano foram imitados, da Polóniarpo.
algunspaíses as suas ordens de ensino e escolas suplantavam as escolas estatais.
países ~~ticos,, ~ Espanha e Portugal. Ajudada pelo estilo e retórica teatrais de Hámuito que as hierarquias católicas tinham chegado a acordo com os Estados
Mussolm1, a Itaha tornou-se o centro da nova direita durante a década de 20. Ao no quais constituíam a religião dominante. No século XIX providenciavam a
crescer, o fascismo absorvia mais influência católica. O compromisso de Mo. almados antigos regimes. Mas foram então cercadas por liberais e socialistas
solini com o Papa foi imitado, e a França, Espanha e Portugal católicos adapta. quetentavam secularizar o Estado. O Estado italiano foi desde o início secular.
ram o clero-fascismo austríaco. Em1900,a Igreja também estava a perder a batalha em França e nos Países Bai-
As Igrejas forneciam infra-estruturas essenciais de comunicação ideológic xo . Por isso, alguns católicos na hierarquia e nas ordens de ensino preocupa-
1 am s1.do a " a1ma" dos antigos regimes e continuavam a ser poderosas for-
Tnh a
vam-secom questões "sociais" e "corporativistas". Isto era comparável ao fas-
ças de massas, através de sistemas escolares responsáveis por cerca de metade ct ·mopor ser, ambiguamente, tanto de esquerda como de direita (Fogarty 1957;
dos europeus alfabetizados, e de sermões e cartas pastorais que chegavam a ayeur 1980). Incentivado pela encíclica papal Rerum novarum de 1891, o
todas as paróquias e eram reproduzidos em jornais e publicações periódicas. • atolicismo social" começou por penetrar em zonas economicamente avança-
As mensagens religiosas fluíam através de três macro-regiões distintas, a prote . como a Bélgica, a França, o Sul da Alemanha e a Áustria. Fundaram-se sin-
tante, a ortodoxa e a católica. Mas estavam também incorporadas em cada dicatose partidos de massas católicos. O movimento expandiu-se então para
Estado individual. L te, dando origem a partidos como o Zentrum alemão, os sociais-cristãos aus-
A maioria das grandes confissões protestantes eram Igrejas de Estado "con- tríacos,os popolari italianos e os maurristas espanhóis, por volta da Primeira
sagradas". No Noroeste, os seus sistemas de ensino tinham-se integrado no GuerraMundial. O fascismo integraria o espírito social e hierárquico do "cato-
Estado ou existiam numa articulação harmoniosa com o sistema estatal. A sua li ismo social". Mas em França e na Bélgica a facção social e a hierárquica cin-
tendência era reforçar o Estado no Noroeste, conservador, pró-capitalista e pró- diram-se. Os católicos .sociais deram origem a movimentos de esquerda,
-democracia, só moderadamente estatista e nacionalista. O respeito protestante enquantoalguns dos que punham a tónica na hierarquia passaram para pequenos
pelo indivíduo e comunidade local também gerou seitas dissidentes na Escandi- movimentos fascistas. O integralismo lusitano português absorveu textos da
návia e na Grã-Bretanha, que consolidaram a democracia liberal e a social- ActionFrançaise e transmitiu-os depois à Espanha no início da década de 20.
-democracia. As Igrejas protestantes do Noroeste da Europa raramente enco- O misticismo católico misturava-se com o nacionalismo orgânico. O apelo de
rajaram a direita radical. A Alemanha era diferente, com uma única Igreja Maurras a um nacionalismo populista baseado na ordem, na hierarquia e na
protestante consagrada que continuou a ser a alma de um regime semi-autoritá- comunidadecomo defesa contra o individualismo, a secularização, o liberalismo
ri~ até 1918_-Agora ela tinha receio dos partidos seculares e católicos da Repú- e o socialismo encontrou eco nos países católicos - e teve também alguma
blica de Weimar, e muitos eclesiásticos procuravam um Estado alternativo com influênciana Grécia ortodoxa e nos Balcãs (Augustinos 1977; Morodo 1985:
noção do sagrado. Encontraram o nazismo. 92-100, 107-14; Lyttleton 1987: 16-20; Close 1990: 205-11; Gallagher 1990:
As Igrejas ortodoxas do Leste europeu começaram por ter semelhanças com 157-8).
o protestantismo ao ser "consagradas" nos seus Estados locais. Mas a maioria Assim, os poderes ideológicos religiosos eram exercidos de maneira diversa.
estava então subordinada a governantes estrangeiros - austríacos, russos ou tur- religião fortaleceu a solidez macro-regional do bloco de países do Noroeste,
cos. Os monarcas de novos Estados ortodoxos do século XIX como a Bulgária, favorecendoum compromisso democrático liberal entre o centro-direita e o cen-
Roménia e Grécia também haviam sido extraídos de dinastias estrangeiras. tro-esquerda.Fora dali, a religião não teve um único efeito geral. As Igrejas ten-
Logo, as Igrejas ortodoxas não tendiam a representar a alma do Estado, mas a diama encarar a esquerda ímpia como o inimigo principal, mas quem apoiariam
alma do povo - amiúde a do campesinato. Os seminários e escolas ortodoxo contraela? O nacionalismo das Igrejas ortodoxas podia tornar-se conservador ou

118 119
- O DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
FASCISTAS R A AscENS A

universitários entre 1900-1930, países


radical. Mas onde os antigos regimes e a Igreja associada continuavam a ansão do número de estudantes
RO2.2. Exp . , .
força, as Igrejas podiam virar um tanto à direita, mas recear o fascismo ( democráticose autoritarios
exemplo, em Espanha). Porém, os velhos regimes mais fracos e vulneráv• Ratio 1920 = 1,00
Ratio 1900 = 1,00
tinham perdido alguma da aura sagrada a que Weber chamou "legitimidade til,.
dicional". Essa perda criou um pânico moral, no qual alguns eclesiásticos co --- 1920 1930 1930
1910

----
çaram a encarar com simpatia o corporativismo e até o fascismo - como na Ale-
manha, Áustria, Itália e Roménia. Entre antigos regimes debilitados, as 2,56 2,90 1,13
1,58
religiões podiam ser tentadas pela moral do fascismo e as suas pretens- Alemanha 0,97
1,63
transcendentes de não rejeitar o modernismo, mas de ressacralizá-lo. O fascis Austria 22,45 1, 16
4,90 19,31
surgiu em países onde as Igrejas tinham tido um papel importante, mas q Bulgária 1,52

estava em declínio, nas relações de poder político, e os fascistas exploraram isso Espanha 0,98
1,33
Hungria 1,78 0,87
ao conseguir transferir algum do sentido do sagrado de Deus para o Estado- 1,03 2,05
Itália 7,28 2,28
-nação. 1,92 3,20
Japão 1,31
Estamos agora mais perto de explicar desfechos distintamente fascistas, po· Jugoslávia 1,86
estes são quatro dos cinco movimentos fascistas principais. Como outros nota. Polónia
4,78 1,89
1,07 2,53
ram, os movimentos fascistas bem-sucedidos tentaram modernizar e nacionali. Portugal
zar o sentido do sagrado. O espírito religioso do fascismo romeno e (em men 1,98
Roménia 1,45
1,92 5,93 7,84
medida) do austro-fascismo eram óbvios. O fascismo italiano especializou- Médiaautoritária
nos seus próprios rituais sagrados não-cristãos. Gentile (1990, 1996) diz que re . 2,01 1,16
1,47 1,73
sacralizou um Estado italiano que fora dessacralizado anteriormente - e o Papa Bélgica 1,15
viu isso com simpatia. Os desfiles de Nuremberga e outros semelhantes também Checoslováquia 4,84
2,00 2,64 12,78
Dinamarca 1,94
foram concebidos para comunicar o sagrado, e muitos clérigos protestantes ale- 1,45 2,52 4,90
EUA 2,06
mães tomaram-se nazis. É ir demasiado longe descrever-se o fascismo como 1,19 1,25 2,57
Finlândia 1,58
uma religião (como fazem Burleigh 2000 e Griffin 2001), já que para o fa. 1,38 1,67 2,63
França 2,12
cismo, que não tinha conceito do divino, só o homem criava o progresso e o Holanda 1,32 1,81 3,85
1,18
renascimento. Mas, em geral, o fascismo foi auxiliado pelas religiões estabele- Irlanda
2,48 1,90
cidas e apropriou-se de muitas das suas técnicas, assim como de técnicas do 1,10 1,31
oruega 1,08
1,48 1,93 2,09
movimentos socialistas. ReinoUnido 1, 11
As instituições de ensino seculares foram também cruciais na transmissão Suécia 0,99
1,62 1,65 1,63
de valores. Entre 1900 e 1930, o número de estudantes universitários quadrupli- Suíça 1,76
1,45 1,83 3,88
cou no mundo mais desenvolvido, uma taxa de expansão mais elevada até do Médiademocrática
que a do final da década de 50 e da década de 60. Nos dois períodos, o surto
causou uma explosão na política estudantil. Na década de 60 esta deslocou-se Mitchell 1993,
FoNTE: 1995, 1998.

para a esquerda; após a Primeira Guerra Mundial dirigiu-se nitidamente para


a direita. O quadro 2.2 mostra que a expansão foi maior nos países autoritário .
Se retirarmos do cálculo os dois casos isolados da Bulgária e Dinamarca, o i!ffiificavammais jovens intelectuais "verdes" a viver a descontinuidade entre
0 • . D ter em mente que essa
aumento universitário foi 50 a 100% superior nos países autoritários do que nos a universidade e as suas origens fam11tares. evemos
. ,, . . "t" • alemão. Exportava-se uma pro-
liberais no período imediatamente anterior à subida ao poder dos autoritários expansão ocoma sob o dom1mo umvers1 ano .. ,, . .
nesses países. A diferença diminuiu no final da década de 20, pois os fascistas e blematik alemã numa altura de crise económica, m1htar e pohti~a ime~sa, o qu~
autoritários que chegaram ao poder em Itália e na Hungria reduziram delibera- nãoera receita com que se socializasse a juventude europeia _nohbe~ahsmo ~a~1-
damente o número de estudantes turbulentos. Bandos reforçados de estudantes fico.Havia igualmente um contributo geraciémal.As novas ideologias de drreita

120 121
FASCISTAS pLJCAR A ASCENSÃO DO AUTORITARISMO E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS

vinham também imbuídas da faceta moralizadora do idealismo da juven íais nos quais essa mensagem parecia mais aceitável. As suas vidas quoti-
As proezas de D' Annunzio, o primeiro a explorar a publicidade teatral e a ,_. dianasconferiam-lhe ressonância.
rif" • glU-
tcar a J_uventude,depressa se difundiram entre os estudantes. Mussolini · . Dado que a maioria dos fascistas eram homens jovens, houve quem suge-
tou~o rapidamente. Extremista~ do es~atismo nacionalista promulgaram O e: ri e que esta era "a geração de 1914", cuja primeira experiência adulta fora a
da _Juventude, sobretudo a fascista. Visto o fascismo ser jovem, era por co PrimeiraGuerra Mundial (por exemplo, Wohl 1979). Os meus estudos de caso
gmnte moderno, a s~ciedade do futuro - proclamavam os fascistas, persuasivoS. elam que não só as trincheiras, mas também as academias militares, univer-
a novos bandos de Jovens. Estes sempre lhes proporcionaram O seu prin · ~dadese liceus fizeram germinar valores de estatismo nacionalista e paramili-
bastião de apoio. • cipaJ.
tare extremistas - entre pelo menos duas, e às vezes três gerações de jovens.
C_omoveremos, na metade autoritária da Europa os profissionais com eu · [ to começou antes da Primeira Guerra Mundial. A maior parte do corpo de ofi-
supe~or ,,e estudantes liceais, universitários, seminaristas e da academia rrm:no ciai da Europa de Leste frequentara as academias prussianas ou dos Habsbur-
c~~tnbmram desproporcionadamente para o fascismo. Em contraste, a com go . Metaxas, Codreanu e Szalasi at~staram a import~cia des~as na forma~ão
s1çao dos movimentos fascistas do Noroeste era mais variada. Os estudant d suas ideias. O alargamento dos sistemas. de reservistas havia posto a ma10r
destacavam-se e~ França e na Finlândia, mas não na Escandinávia ou na Grã. partedos jovens em contacto com o nacionalismo militarista. A Primeira Guerra
-Bretanha. Os m1htares veteranos estiveram sempre sobrerepresentados no undialcimentou isso. Na sua esteira, deixou uma multidão de jovens armados,
ld • d' re
ca o tm~ tato da Grande. Guerra, mas as academias militares do Noroeste da uniformizados e empenhados no paramilitarismo como meio de efectuar a
Europa so em França contmuaram a produzir jovens com inclinações fascist mudançapolítica. As academias militares continuaram a difundir o naciona-
Na metade autoritária da Europa, a maior parte da educação era dirigida • li mo militar.
1
Estado,_e era em_gera~ um bastião' do estatismo conservador, enquanto o en:~ Procurei traçar redes ideológicas que comunicassem ideias autoritárias e
da IgreJa produzia ma10r variedade de licenciados. Em alguns países os profe _ fa cistas.Algumas eram transnacionais, a maioria tinha origem em França e nos
sores eram também nacionalistas ( 12). Na vanguarda fascista, os estudantes esta- E tados fronteiriços da Alemanha, mas propagavam-se sobretudo pelo Centro,
vam por todo o lado. Le·te e Sul da Europa, para serem reinterpretadas em cada tradição nacional.
,,Porque terá~ fascismo atraído em grande número a intelligentsia menor? O portadores primordiais - jovens com instrução, militares ou religiosos -
A~e ce~o-ponto, isso reflectia o domínio das universidades alemãs e das acade- de envolveram o fascismo como um sistema completo de sentido. As suas redes
mias mtl1tares alemãs e francesas nos sistemas de ensino continentais. Mas 0 de comunicação ideológica também parecem ter acrescentado a mistura fascista
poder e estatuto dos intelectuais que eram "eminentes" no antigo reg· di tintamentejuvenil de moralização e violência que geralmente se considera o
b" . ime
tam em podiam ser ameaçados pela ascensão dos movimentos de massa eu lado "irracional". Todavia, o Centro, Leste e Sul não formavam um bloco
~ explicação eco~ómica seri~ q~e profissionais e estudantes com ensino supe~ monolítico,e identifiquei algumas das infra-estruturas, em especial religiosas,
nor_t~maram-se nao-empregaveis, receptivos à política radical, e com mais pro- quecontribuíram com diferentes tipos de autoritarismo na região. É porém ape-
~~btl1~ades.de ser de d~reitajá que eram da classe média. Uma explicação mai n um começo na identificação das causas ideológicas. Espera-se que os estu-
ideal sena que aos mtelectuais é confiado poder ideológico na sociedade. do de casos revelem mais.
Explorar questões de sentido último é o seu trabalho. Se houver uma crise de
sen_tido(produzida pela concatenação de crises contemporâneas), eles vivê-la-ão
mais duramente e avançarão novas respostas convincentes para a crise. De facto. Conclusão
as ~essoas co~ ensi_n~superior que se tomavam fascistas não eram as que
sof~am as ma10res dificuldades económicas. Elas parecem ter-se virado para 0 O surto de nacionalismo e estatismo do período entre as duas guerras era
~ascismo porque as atraía a mensagem do estatismo nacionalista transcendente. provavelmenteimparável. Por toda a parte surgiam Estados-nação mais fortes e
E claro que a ideologia nunca é incorpórea. Estas pessoas habitavam meio maisisolados. Mas esse surto podia ter culminado em formas mais moderadas de
e tatismo nacionalista. A separação principal - conceptual e geograficamente -
1 eraentre a democracia liberal e formas de autoritarismo de direita. Quase todos
. ( ~) -~ Esp~a não_se ajustava a este modelo, pois as suas universidades estavam
ma~s divididas, mflue~ciadas por tradições liberais, e às vezes seculares, mais antiga:. o vencedores da Primeira Guerra Mundial favoreceram o segundo. No entanto,
assim como pelo estatismo conservador (ver capítulo 9). não foi fácil estabelecer Estados-nação democráticos e liberais por decreto,

122 123
O E FASCISMO DO PERÍODO ENTRE GUERRAS
ASCENSÃO DO AUTORITARISM
FASCISTAS 1,IC\R A

dos da separação temos uma quantidade de causas possíveis


como em 1918 se tentou com os vencidos. No Centro, no Leste e no Sut ambos os 1a
l)e . d
Europa, sem o reforço das tradições e da cultura de toda uma região, a dem n1uito • ter-relac10na as..
1.11
·
f · t tenham tido causas diferentes. Af'ma,1
,.. • 0 movimentos aseis as
eia parlamentar parecia frágil e arriscada. A aversão ao risco, juntamente Talvezos cmc . . larmente cedo a Alemanha era uma Grande
uma preocupação ideológica com a ordem e a segurança podia levar a ataq . ou-se fascista smgu ' . .
Itália torn . ; . país emurchecido com dois movimentos
,. . • iomsta, a Austna era um .
de repressão preventivos. Ceder poderes soberanos ao adversário em caso potenciarevis . lhi·da a Roménia inchada, ambas com elemen-
derrota eleitoral, uma rotina no Noroeste da Europa, era problemático nou . Hungna estava enco , . d.f
f c1stas,a fascistas Podem ser todos casos mmto i e-
. ; •os a roubar roupagens • .
partes, onde "nós" cada vez mais representava a moral, a civilização e a nação to autontan r ção dos regimes fascistas limitar-se-ia em grande parte a
orgânica, e "eles" representava os traidores "estrangeiros" ameaçadores. Mui rentes.Uma exp i~a 1· n~aoconsegue lidar com números tão peque-
vezes os partidos comprometiam-se mais com objectivos de valor pennane~
A análise compara 1va ,
doi casos. do método dos estudos de caso, regressando as
do que com as regras do jogo democrático (Linz 1978). Quando um movimento Passo antes ao pormenor
no·. ,.,esgerais no meu capítulo fmal.
acredita que os seus fins justificam os meios, mais prontamente recorrerá à vio. e phcaço
lência.
Inversamente, a soberania parlamentar era rotineira no Noroeste, e por i
resistente. Aqui os socialistas resistiam aos comunistas, e os conservadores
nacionalistas orgânicos, inscrevendo-se todos numa racionalidade pragmática
meios e não de fins - de eleitores inconstantes e equilíbrios - que derivava do
seu envolvimento histórico de longo curso nas instituições liberais do compro-
misso. O Noroeste suportou as crises até os exércitos de Hitler terem march
sobre ele. Apesar de fustigado pela Grande Depressão, por vagas de greves e
alianças partidárias instáveis, não correu perigo sério com a sua própria direita
autoritária. A ascensão do fascismo não foi ali encarada como o dealbar de uma
admirável nova era, mas como ameaça distante e desagradável à civilização.
O Noroeste reagia à crise deslocando-se hesitante para o centro, para alargaro
direito ao voto e aprofundar os Estados-providência. Essa parte da explicação
parece óbvia. As relações arraigadas de poder político mantiveram os autoritá-
rios à margem, mesmo num período de grave crise económica e alguma tensão
entre classes. Por isso, não há razão para multiplicar estudos sobre as democra-
cias liberais estabelecidas, pois variaram muito pouco.
Mas ainda não podemos explicar o autoritarismo, especialmente a sua
variante fascista. Temos um problema de "sobredeterminação". Os tempos favo-
reciam mais o estatismo nacionalista, mas as quatro origens de poder social e as
quatro crises da modernidade ajudaram a explicar a ascensão do autoritarismo e
do fascismo. O conflito de classes impulsionado pelo desenvolvimento tardio e
pelas crises do capitalismo alimentou o autoritarismo e o fascismo. Também a
crise militar, com as derrotas, perturbações e paramilitarismo e rearmamento
emergentes. E o Estado dual semi-autoritário, semiliberal do Centro, Leste e Sul
da Europa. E as redes de comunicação ideológica, modeladas pela divisão
regional, que transmitiam mensagens a jovens educados e armados, cada vez
mais propensos ao fascismo. Idealmente, determinaríamos os pesos relativo
dessas quatro amplas causas do autoritarismo e fascismo, através de análise
variadas. Mas só existe um número limitado de países-caso e só duas Europas.
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