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A PSICOLOGIA ANALÍTICA NO TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA
O que sabemos da psique de um dependente, que o leva a viver uma vida sem vida, uma existência
de pouco sentido e “invisível”?  O dependente tem dificuldade de se adaptar à realidade, evitando
dores e desconfortos existenciais, e o efeito das drogas altera o que sente, tornando-o insensível à
realidade, permitindo-lhe conviver com esta de forma tolerável. Egos desestruturados estão no
epicentro desse comportamento, resultante de vivências inadequadas dos arquétipos materno e
paterno, cujo dinamismo está diretamente relacionado com a estruturação egóica, nas fases iniciais
da vida. O dinamismo matriarcal é regido pelo Arquétipo da Grande Mãe, que se exerce através do
desempenho de uma atitude de carinho, cuidado e proteção. O dinamismo patriarcal é regido pelo
Arquétipo do pai, tendo como atributos básicos a organização e a orientação. Volta-se para o
estabelecimento de regras, normas e leis no seu sentido abstrato. Os arquétipos têm estrutura
bipolar, havendo uma permanente relação dialética entre seus polos. Polaridades não vivenciadas
de forma estruturante, levam o indivíduo a ficar preso a estes padrões arquetípicos, não
conseguindo estruturar outros níveis de consciência.  Fracassos e frustrações durante o
desenvolvimento da criança são essenciais para propiciar o amadurecimento estruturante, caso
contrário tenderá a procurar algo que o proteja do sofrimento resultante. Este algo pode ser a
droga, e seu caminho pode ser o da adicção (SILVEIRA FILHO, 2002). 
 Para o dependente, seus sentimentos são moldados pela presença ou não de drogas em seu
organismo, que se tornam o centro de sua vida, ocupando sua consciência, escravizando seu ego,
já fragilizado, forçando-o a abandonar valores pessoais e sociais, rompendo vínculos que o
ligavam ao mundo e levando-o, frequentemente, a um gradual autoisolamento social e à
marginalização. A dependência química não é uma doença simples, ao contrário, é complexa e seu
tratamento também deve ser, o que me leva a reiterar a defesa de uma abordagem em que as
diversas linhas terapêuticas “conversem entre si”, integradas por um pensamento organizador, em
um contexto transdisciplinar, no qual a psicologia analítica deve ser utilizada efetivamente, pois
possibilita ao dependente, inicialmente, reestruturar seu ego, que se encontra fragilizado, para
então retomar a individuação, o que não é fácil mas necessário para o processo de transformação
que deve acompanhar o dependente ao longo de sua vida (BENZECRY, 2014).  Nesse processo,
Eros, o amor aglutinador, deve estar sempre presente, evitando-se posturas acusatórias e sombrias,
que nada contribuem para o processo da recuperação.
Por isso, a ajuda ao doente exige atitudes compreensivas, confortantes, acolhedoras e, simultânea e
paradoxalmente, energicamente assertivas, limitantes e restritivas, abandonando qualquer tentativa
de encontrar a culpa do doente ou os culpados que contribuíram para a doença (MAGALDI, 2021,
pág.2)
Deve-se enfatizar que terapias de base junguiana já vêm sendo utilizadas no campo da
dependência química. Já mencionamos as contribuições do Prof. Dartiu Xavier, e citaremos outras
duas de analistas contemporâneos, a do italiano Luigi Zoja, que lecionou no instituto C. G. Jung,
de Zurique, e a do americano John E. Burns, criador de uma rede de clínicas brasileiras voltadas
ao tratamento das dependências. 
Segundo Zoja, as drogas produzem uma ação hipertrófica no ego, alterando sua relação com o
inconsciente, ou seja, o ego fica inflado, é tomado por um complexo, e perde sua conexão com o
Self. Nesse estado o indivíduo tem uma capacidade limitada de refletir e de controle, pois é levado
por conteúdos inconscientes, e é tomado por uma sensação de transcendência e poder, que o tira
momentaneamente de sua vida comum, mas que é perdida após cessar seu efeito. Permanece,
entretanto, a sensação de uma experiência numinosa, que continua então a ser perseguida, levando
o indivíduo a buscá-la novamente, através do uso continuado. Zoja entende que a entrada do
indivíduo no universo das drogas é o resultado de uma busca espiritual, como também afirmado
por Jung, para transcender a condição usual de sua vida, ativada pelo arquétipo da iniciação,
caracterizado pela morte e renascimento. Há um desejo de sair da “mesmice” da condição humana
em que se vive, sem ter que passar pelas dores, perdas e sofrimentos, inerentes à própria vida, pois
o dependente é inábil para se adaptar a ela, pois seu ego não está apto para essa tarefa. Zoja
enfatiza que o uso preocupante de drogas pode ser em grande parte atribuído à necessidade
inconsciente e coletiva por ritos de iniciação; uma herança ancestral de nossos antepassados
primitivos, que os usavam de forma proeminente e não profana, pois os ritos eram necessários
para o crescimento psíquico e espiritual de seus membros, durante os quais o indivíduo “morria”
em sua atual condição psíquica para “renascer” em uma nova. Essa busca do sagrado pelos povos
primitivos, que permeava os ritos de iniciação, persiste de forma subjacente em nossa cultura, mas
agora é orientada ao consumo excessivo e hedonista. Apesar de não serem mais praticados em sua
forma tradicional, os adictos ainda reagem aos ritos, de forma inconsciente, procurando satisfação
por uma necessidade interior de “participation mystique” no que Zoja entende como a religião
dominante de nossos tempos, o consumismo. Ele critica os processos de tratamento
fundamentados na desintoxicação e afirma que o trabalho analítico deve ser considerado no
tratamento, pois é ao mesmo tempo, um processo de esclarecimento e um processo afetivo. O
processo analítico, se bem conduzido, pode se revelar como um rito de iniciação e passagem, uma
espécie de renascimento, integrando adequadamente conteúdos inconscientes, incentivando o
dependente à autodisciplina, e levando-o a sentir e praticar Eros, o amor que integra o “Self”.
Nesse sentido, a análise pode contribuir para um renascimento psíquico do dependente, no qual a
reestruturação de seu ego fragilizado é uma etapa imprescindível (ZOJA, 2000). 
John Burns, ex-capelão da marinha inglesa, alcoolista em recuperação, e simpatizante das ideias
de Carl G. Jung e James Hillman, se dedicou ao tratamento da dependência química utilizando o
método de tratamento americano “Minnesota”, um tratamento multidisciplinar que integra várias
técnicas psicológicas com os 12 passos do A.A. (Alcoólicos Anônimos). Trata-se de um processo
de tratamento centrado no conceito de que a dependência química é um fenômeno bio/ psico/ só-
cio/ espiritual, e que deve ser conduzido através de reuniões em grupo, onde os dependentes
compartilham suas histórias de vida, dificuldades e aprendem a reconhecer que não estão sozinhos
em suas jornadas. Posteriormente, Burns percebeu que trabalhos rotineiros e intensivos produziam
uma rejeição crescente entre os residentes das clínicas, o que o levou a buscar novas perspectivas
para o tratamento. Entendeu que, apesar do fato de que as histórias contadas produziam resultados
razoáveis na busca da recuperação, faltava-lhes uma base filosófica de sustentação. Assim, chegou
à psicologia arquetípica de James Hillman, cujos conceitos levou ao processo terapêutico.
Hillman, discípulo de Jung, se rebelou contra a forma como os conceitos junguianos vinham sendo
utilizados, e propôs a psicologia arquetípica como uma abordagem integral da herança junguiana e
não como uma nova escola, tendo como base a compreensão de que a psique se manifesta nas
imagens, através de processos imagéticos, e é construída através de uma multiplicidade de
arquétipos. Defendia que a fonte do conhecimento humano não é o eu, que exerce um controle
ilusório sobre nossa vida, mas sim o mundo cheio de imagens que esse eu habita (BURNS,
1999).  
Burns, que via os dependentes químicos não como doentes mentais, mas como pessoas tenazes e
criativas, buscando um sentido existencial no mundo, compreendeu que a psicologia de Hillman se
coadunava com suas percepções e provocou uma mudança de linha terapêutica, passando a
considerar o tratamento da dependência sob o aspecto poético, intuitivo, estético, holístico, em
contraposição a um aspecto literal, analítico, científico ou acadêmico. Adotou a Regra de Ouro
proposta por Hillman para a terapia: “aderir à imagem”, que consiste, não em tentar mudar ou
interpretar a imagem, mas em aprofundar-se nela para alcançar outras perspectivas a partir de uma
apreciação metafórica, em que se combinam significados e percepções. Considerou, também,
aplicável uma observação de Hillman sobre os processos terapêuticos, em cujo contexto, as
adaptações sociais e construção de uma individualidade que são buscadas, deveriam integrar um
trabalho a serviço da restauração da realidade imaginal do paciente o que, no caso dos
dependentes, passa pela recuperação de uma personalidade saudável, pelo autoconhecimento da
situação ambígua e dramaticamente mascarada em que vive, lhe possibilita uma nova percepção
da vida e o convida a aceitar a necessidade de retomar a individuação. Nada disso é alcançável, se
o ego continuar fragilizado, condição decorrente de uma personalidade não saudável desenvolvida
através de vivências inadequadas dos arquétipos materno e paterno, sendo sua reestruturação, uma
das tarefas principais do analista, o que se constitui um grande e complexo desafio. Jung dizia que
o processo analítico se equipara a juntar pedras para construí um edifício, partindo do inconsciente
e terminando com a reconstrução da personalidade total.  
O terapeuta deve, primeiramente, tomar o lugar da própria droga e estabelecer com o toxicômano
uma relação verdadeiramente simbiótica, da mesma intensidade daquela anteriormente
estabelecida com o produto. Na simbiose, o terapeuta “empresta” seu ego ao paciente por meio de
uma relação fusional. E, provendo o paciente desse “gesso egóico”, vai poder trabalhar os
elementos essenciais de sua personalidade. (SILVEIRA FILHO, 2002, p.62).
Com estas reflexões procurei enfatizar que a dependência química, que representa um drama
global cuja abrangência e consequências ainda não são amplamente conhecidas, aborda,
atualmente, diversas linhas de tratamento, mas que não apresentam a eficiência que se precisa, o
que nos encoraja a buscar novos olhares terapêuticos, lembrando que se trata de um problema
complexo. Nesse sentido, uma abordagem transdisciplinar pode representar um novo caminho
para o tratamento da adicção, e este não deve prescindir da psicologia analítica, que ainda não
ocupou o lugar devido. Espero com essas reflexões, ter contribuído não somente para ressaltar a
importância da inclusão da psicologia analítica no tratamento da dependência, como enfatizar a
relevância de se desenvolver, cada vez mais, uma visão transdisciplinar para a vida, para a
humanidade, e para o mundo. 

Homero Jorge Mazzola – Membro Analista em formação do IJEP.


hjmazzola@uol.com.br
Santina Rodrigues – Membro didata do IJEP.
outubro 20, 2021 Updated:setembro 14, 2022

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