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O diva de Procusto Eu penso que o futuro analista corre um perigo (..) quando Ihe parece que exista uma coincidéncia exata entre as particularidades do caso ¢ a teoria. Ho que eu gostaria de qualificar de fuga na mais va termi- ~~ nologia, a mais afastada da realidade. THEODOR REIK* Todos conhecem Procusto. Segundo uma lenda grega, era um bandido que oferecia sua hospitalidade aos viajantes perdidos. Ele deitava-os sobre uma cama de ferro, e, se fossem rhais longos do que a cama, ele cortava 0 que sobrava. Se fossem mais curtos, esticava-os a forga. Era, por assim dizer, um(gormalzador) Fagamos dele 0 patrono daqueles que aplicam testes, OU que contam com algum tipo de reeducagao. O objetivo da psicandlise € bem diferente, € fazer com que os analisandos tornem-Se, nao conforme a norma, mas eles mesmos. __ O meio do qual dispoe a andlise, € 0 que se chama a interpretagéo, ou a intervengSo do analista, termos que se empregam bastante indiferentemen- 0 Paicblogo surpreso, Denoél, 1976. © Divi de Procusto / 11 e (como veremos) nao tenham, no fundo, 0 mesmo sentido. recep : de intervengdo) € particularmente obs- ‘A nogao de interpretagao (ou mesmo de inte 0 Saee de ser provavelmente das mais importantes. Para esta obscurida- de, existem boas raz6es. i : Para compreender os efeitos que pode, ou deve, ou deveria ter a inter- pretacao, € preciso tom4-la em seu grau zero € considerar ‘0 caso onde uma andlise pode ser bem sucedida, sem que 0 analista interprete nada. Pois pode- ria-se, evidentemente, nada dizer dos efeitos da interpretagao, se OS Tesulta- dos fossem os mesmos do que quando nao houvesse interpretagdo. E seria suficiente calar-se para levar ao cabo as neuroses. Nos sabemos, através de Kardiner, que Freud fazia, as vezes, andlises mudas. Era sempre com analisandos que 0 entediavam. Kardiner, j4 analisa- do na América, fora a Viena completar esta andlise. Dois outros pacientes de Freud na €poca, dois ingleses, Strachey e Rikman, convidaram um dia Kardiner para tomar ch4, para fazer-lhe uma pergunta: “Freud fala com vo-_ cé?” Ora, com Kardiner, Freud era antes loquaz, enquanto que ele calava- se completamente com os dois ingleses. Strachey desconfiava até que ele dor- mia durante as sessOes. Kardiner explica, desta maneira, 0 fato de que, durante alguns anos Tei- nou, na Inglaterra, a moda do siléncio absoluto do analista. Mas nés nao che- gamos ao ponto de ter uma teoria da andlise muda. Freud hesitou durante muito tempo diante deste género de questao, mas a propésito de um outro problema, No Inconsciente, de 1915 (p. 194 da Standart Edition, tomo XIV), ele escreve: “E notavel que 0 inconsciente de um ser humano possa reagir sobre 0 do outro, sem passar pela conscién- cia. “Somente, ele faz em seguida uma reserva: “Isto resta ser provado”, diz ele. Ele est4 confuso, mas ele assegura que, em termos descritivos, € inegé- vel. “Todavia, diz ele, se 0 fato é inegAvel, ele nao é, apesar de tudo, aceit4- vel teoricamente. Mas est4 talvez af a definigdo da iluséo! E inegavel que o bastéo mergulhado na 4gua se mostre quebrado. Entretanto, € contrario & verdade. A verdade € a lei da refragdo, que explica a ilusdo. A telepatia con- tinua sendo, portando, uma ilusdo, mas sabemos explicé-la? E ademais, nés temos boas raz6es para pensar que Freud deveria ter sabido um pouco mais Sobre a andlise muda: a sua! _Efetivamente, Freud, nesta €poca, j4 havia feito indmeras sessdes “de andlise” (muda) diante da est4tua de Moisés de Michelangelo... Ele deveria, Portanto, saber mais sobre as andlises mudas, pois Moisés, certamente, s6 po- meu cing meine ie a eee 0 de Sigmund. Nenhuma telepatia foseel nae See . Este exemplo néo € evident aia s coloca sobre um-camtinho, Ei ‘emente uma prova absoluta, mas ele nos ds omese 4s ei acans ee uma situac4o de an4lise muda, o psicanalisan- tpretacdes, ou qualquer coisa que se pareca ao 12 / McDougal, Mannoni, Vasse ¢ Dethiville que chamamos - talvez sem raz4o - interpretagbes. (Retornarei a este proble- ma da Deutung oposta & intervengao. E uma questo muito importante, was n6s a reecontraremos.) , Nao € uma questéo nova. Desde os primeiros anos do século XVI, por exemplo, Cervantes nos mostrou como Sancho fazia, a seu modo, 0 papel do analista, para fazer D. Quixote voltar & raz4o. Sancho dizia simplesmente: Mire vuestra Merced lo que dice, Sefior. (Olhe Vossa Meret o que diz, Se- nhor.) Pode-se, efetivamente, perguntar-se quem € portanto o interpretador e quem € 0 interpretado. “Assim, n6s tivemos uma visio um pouco mais clara do que € a interpre- tagdo ou a intervenco. O que nao € privilégio mais do analista do que do analisando. Entretanto, Freud nos mostrou outros aspectos, muito diferentes, da maneira como ele concebia a fungdo do analista, Se ele se calava absoluta- mente com Strachey e Rikman, com outros ele parecia capaz de fazer mui- to mais de “forcing”.* Assim, no post-scriptum de Inibigdo, Sintoma ¢ Angts- tia, ele nos surpreende, quando escreve: “Se a resisténcia € inconsciente... nés a tornamos consciente. Se ela € consciente, ou aps ter-se tornado, nés prometemos a0 Ego vantagens ou recompensas, s¢ ele abandona suas resis- tencias”. Parece-me que Freud s6 podia barganhar assim nas entrevistas pre- liminares - mas mesmo assim... No decorrer de uma anilise, tal “forcing” se- ria improprio e ineficaz. Ainda que Lacan, por seu lado, tenha avangado uma formula bastante arriscada, a0 oferecer ao analista a diregio da cura, mas, afinal de contas, € concebfvel que 0 monteiro-mor dirija a corrida, ainda que seja 0 cervo que a conduza onde ele queira. Apesar de tudo, ndo se deve comparar uma andlise a uma tourada! Ao colocar-nos primeiramente 0 pro- blema da abstengdo e do siléncio (com Strachey) e em seguida o da obstina- do terapéutica, Freud nos legou quest6es que ndo foram, para seus sucesso- res, completamente esclarecidas. E as rotinas, por vezes fecundas, que se €s- tabelecem com 0 tempo, nos opdem também, algumas vezes, dificuldades ine- vitveis - do ponto de vista da doutrina. Momentos em que a andlise desempenha um papel de engodo, de cha- mariz (de. decoy duck, ou de ‘Trigbild), podem ocorrer em toda anilise e, certamente, se passam numa andlise muitas outras coisas além das trocas de palavras. Entretanto, a interpretagao deve af funcionar, quer venha do analis- ta, ou que 0 analisando deva encontré-la sozinho. Mas, se € assim, isto pode- ria deixar-nos perplexos, diante da propria natureza da interpretacdo, ©, 20 mesmo tempo, diante do género de relagéo que ela deve ter com a metapsi- canilise, isto €, com 0 que se chama - bastante erréneamente, em minha opi- nifo - a teoria. (Freud ndo utiliza jamais a palavra teoria, vocés 0 sabem, a nao ser para as “teorias” das criangas. Por exemplo, suas “teorias” da sexuali- dade.) (Mas seus sucessores empregam muito este termo “teoria”...) * “Forcing”, em inglés, acelerar o término de um processo, segundo meios no convencionais. N: do Revisor Técnico. © Div de Procusto / 13 0 nfo deve contradizer a teoria - 3 menos, bem enten- 2 igi letar uma exi- ic e tenhamos alguma razio de fazé-la corrigit ou comp! i. aorta te6rica que nos parega desde entio dever remeter 0 saber em questo, : ue € afinal de contas, telativamente raro. Bla 86 € eficaz se, enunciada not ito bem condenar al- omento, em virtude da regra que pode-se mult s oa i ab ‘nas ndo se pode, entdo, executar o julga- in absentia (por contumacia), sto. Se se atts encontrar a interveng4o adequada, esta intervengao ndo deve ter a aparéncia de uma observaga0 te6rica, uma observagdo teéri- ca se parece com uma recus: > lisando procurava dizer. Ou nao exist a daquilo que o anal entdo ela O relega a um Jugar onde ste mais a palavra. Ele torna-se arecido com um acusado a quem lemos um artigo do cédigo € que compre- ‘ende somente que este artigo o condena. Em uma palavra, talvez seja mes- mo o analista que tenha o saber, mas ele nao detém seu monop6lio. Sem o ue ndo existiria andlise muda possfvel, por exemplo. _ ‘ Tudo o que se diz numa andlise remete, de maneira mais ou menos cla- a gramética ou ao vocabu- ra, 4 teoria (da mesma maneira, ali4s, que remete : 7 Iori, sem que n6s tenhamos necessidade de dar-nos conta), € a teoria analfti- ca, na sua relagdo com a realidade da andlise, pare cpio de Arquimedes, para alguém que nada ou aprel 2 pio est4 presente, néo haveria natag4o sem ele, mas os homens sabiam na- dar antes de Arquimedes, € mencion4-lo para encorajar um aprendiz de nata- géo, pareceria simplesmente, pedantismo. E ndo teria nenhuma utilidade. (O grau zero da interpretagdo €, portanto, a palavra de Sancho a Don Quixote: escutai bem 0 que ‘vos dizeis, Uma analisanda, falando de sua mde, fez esta observacao: quando ela vivia, era diferente. Ela queria dizer “quan- do eu vivia com ela”, pois sua mae nao tinha morrido. Seu analista (no caso, eu) lhe disse simplesmente: “Bscute bem 0 que voce diz”, assim como San- cho a Don Quixote. £ isto o que poderfamos chamar 0 grau Zero da interpre- tagdo. Primeiramente embaragada, a analisanda foi tomada por uma emogao bastante grande, Ndo havia mais nenhum comentirio a fazer. Efetivamente, a intervengdo (escute bem o que voce diz) era teoricamente justificada pela teoria do voto de morte inconsciente; a intervengdo e a teoria S40 ligadas de maneira evidente, mas isto ndo tem interesse para a paciente. E suficiente que 0 analista pense nisto. Nao € necessdrio mencion4-lo. B isto ¢ nfo outra coisa, que ele pode chamar de sua autoridade. , portanto, porque ele pen- sa a ae ele encontra a intervengdo necesséria. curidac if i peo Apelvma alems ne ao ee ee vem da historia da anélise. gada primeiramente na an tbe em rances por interpretacdo, foi empre- onde, evidentemente, nfo hi aereaas Gustamente na Traumdeutung), ‘A Deutung pode funcionar também 1c40 possfvel, somente interpretagbes. sonho de um analisando, Mas, fora ae andlise, pois af se pode analisar o palavra Deutung nfo seria pertin, anAlise dos sonhos ou dos lapsos, a ente. Ali4s, s6 n4o fazia sentido no tempo Uma intervenga 14 / McDougall, Mannoni, Vases ¢ em que Freud no havia ainda afastado a simb6lica junpui, ta andlse do Homem dos Rates, desempenhs ainde me tenet wien permitindo traduzir, por exemplo interpretar “rato” por “sflis”, genero de simb6lica que Freud abandonou bem rapidamente. Mas bem poderia ser 0 caso de no termos nunca mais que traduzir assim com o auxilio de um cédi- go. E isto quer dizer que n6s abandonamos, nas sess6es, a Deutung, nascida da andlise dos sonhos, €, no fundo, que nés nao fazemos quase interpreta- g&es - a ndo ser quando se trate de analisar um sonho - mas n6s fazemos so- mente intervengdes. Certamente, as palavras nao tém tanta importancia ¢ bem podemos falar de “interpretagdes” quando néo se trate de Deutungen propriamente ditas mas simplesmente de intervengdes. No meu exemplo, h4 certamente uma interpretagdo, pois eu nao poderia ter Ihe dito: “Escute 0 que vocé disse”, se eu no tivesse primeiro “interpreta- do” para mim mesmo. Winnicott, em O brincar e a realidade (p. 81 da tradugdo francesa), ob- serva: A criatividade do paciente pode ser roubada pelo terapeuta que sabe demais. O que importa no € tanto o saber do terapeuta, mas 0 fato de que ele possa escondé-lo e evitar de proclamar o que sabe. Winnicott escreve ain- da: Fico desolado quando penso nas modificagdes profundas que impedi (...) pela minha excessiva necessidade de interpretar ... O principio € 0 seguinte: € 0 paciente € s6 0 paciente quem detém as respostas. B preciso evidente- mente acrescentar (e aqui ndo € mais Winnicott quem fala) que o analista ajuda o paciente a encontrar a resposta - mas ndo, evidentemente, sugerin- do-a, Isto € mais facil com os pacientes que, néo tendo uma idéia a priori da anilise, ndo esperam receber explicagbes do tipo das Deutungen - isto €, como aquelas que d4 a Ciéncia dos Sonhos. & preciso observar, ligeiramente, que Winnicott e Ferenczi, que muito pouco se parecem, reagiram de maneira andloga, mas apesar de tudo diferen- te, da atitude que tomava Melanie Klein para um, ¢ Freud para 0 outro. Pois Freud e Melainie Klein interpretavam, ambos, de uma maneira que po- derfamos chamar, por falta de adjetivo melhor, “autoritéria””. Melanie Klein “interpretava” os mfnimos detalhes do brinquedo das criangas e Freud impu- nha a Ferenczi as interpretagdes que ele tirava da teoria que havia formula do, Isto fez Winnicott descobrir que 0 brinquedo € terapéutico por si mes- mo e que interpretar nao acrescenta nada. Enquanto que Ferenczi guarda- va algum rancor a Freud, por haver-lhe imposto suas interpretagdes em no- me da teoria que ele havia fundado. Isto no impede que, sem Freud e sem Melanie Klein, nAo teria existido Winnicott nem Ferenczi. Ferenczi aprovei- tou menos a ico que Winnicott, € facil dizer por que: porque ele se revolta- © Div de Procusto / 15 va contra a autoridade de Freud, enquanto que Winnicott 86 criticava a tg, nica de Melanie ee quais caminhos associativos esta obsery; Eu no sei mulo wpveno que fiz. Faz muito tempo, eu era isla me leva a lembrar-me * snalisando que me dirigia exatamente as mes um inant, dise @ Or vai, que “eu ndo era seu pai”. Minha desculpa pa, queiras que ding’ © tseiho que Freud dé, de analisar a transferéncia quan, raesta impericia ie nso, com a experiéncia, que nao € um conselho mui. do ela 6 negath a ra fato, imediatamente, me respondeu: “Meu pai nao to bom. 0 we ue me queixo.” Eu me perguntava onde estava meu ame importa, ¢ oe jo, que uma vez, meu analista (Lacan) me havia di. e, me lembrava entéo, q' s Biss erro, me Monsloga que ele “ndo era minha tia”, € me lembrava bem do Oe eerie havia causado esta intervencSo. Eu no sabia en- efeito desagradével que me . é facil E ‘ue tais intervencOes séo inadequadas. No entanto, € | que o naa tem que opor 0 real ao fantasma. E sair da andlise. E também ite como seria recusar ouvir o relato de um sonho sob O pretexto de que os sonhos ndo tem realidade. Em tais casos, oanalista que sai da anAlise... Todavia, as interpretag6es podem ser vAlidas, mesmo em uma certa re- lagdo coma realidade, mas no em qualquer tipo de relacao. Vou dar um exemplo. Se dou exemplos tirados da minha pratica, ndo € que me orgulhe deles. £ que nos resumos de caso, na maioria das vezes, os analistas fornecem qua- se nada do teor exato de suas interveng6es; € a razdo pela qual estou reduzi- do a falar das minhas. Elas nada tém de genial, e falo delas somente na me- dida em que elas me ensinaram algo, pois a intervencdo julga o analista tan- to quanto esclarece seu paciente. E, além disto, eu ndo posso, quando lasti- mo que os analistas, em suas publicages, dao tio raramente, em geral, 0 te- or exato de suas intervencOes, a0 mesmo tempo imit4-los. Tenho a impress4o que nossas proprias interpretagbes, ou intervengOes (nao insisto, ainda que Seja importante, sobre a diferenca de sentido destas duas palavras, porque & & clara), sfo igualmente instrutivas, quer tenham resultados felizes quer eee cama ey €rros, em geral, nos ensinam mais do que Th ee eat a de Teconhecé-los como erros.) (© Dr. M,) que me ae a va i saber a um psiquiatra de hospital Pudesse me enviar alguém jst ch ¢ bom grado de um caso gratuito, se ele ficivel para uma andlise. (Eu tinha, neste mo- 1e enviou ra nem um um homem jovem, d : a doente nem um membro hye equi . fungoes mal definidas, nao “lotum, que prestava diversos tipo paramédica, era antes uma 0s de pequenos servicos. 61M Man Van Dei Na primeira sessdo, este paciente tirou do seu bolso um mago de pa- péis diversos, dizendo-me: “Nao € preciso que eu Ihe explique. Tudo eau dentro.” Eram receitas, folhas de temperatura, resultados de exames, etc. E claro que devolvi-lhe imediatamente seus papéis ¢ pedi que falasse-me co- mo quisesse... Ora, da sua linguagem também eu nao conseguia fazer nada. Eu até me perguntava se ndo se tratava de um débil mental. E isto durou trés sema- nas ou um més. Mas aprendi que nao se deve perder as esperancas to cedo. Um dia, no final de uma sessdo especialmente vazia, no momento de partir - ele tinha a mao sobre a maganeta da porta - ele parou para dizer- me: “Eu ndo quero mais vir.” Sua atitude nfo me surpreendia. Mas disse-lhe em seguida: Finalmente! & a primeira vez que voce fala em seu nome. Vi, por sua imobilidade, que estas palavras tinham um certo impacto. Mas ele ndo se voltou, hesitou um segundo, depois abriu a porta e partiu. Ele estava l4, na sesso seguinte, e se p6s a falar de maneira diversa - em seu nome. Me dei conta de que nao era nada debildide. A continuagéo da andlise mudou sua vida. Telefonavam-me do hospital para perguntar-me a receita deste “milagre”... Era 0 resultado de uma intervengdo extremamente simples ¢ eu ndo ti- nha a impressdo de ter feito um “milagre”. Eu refletia sobre a natureza da intervencdo... Nao era uma Deutung - a Deutung teria consistido em desco- brir que as palavras: “Eu no quero mais vir”, tinham um outro sentido além do seu sentido aparente. Eu havia falado, apoiado por uma concepgdo te6ri- ca bem diferente: a saber, o papel da negacdo na constituicéo do sujeito. Eu havia tirado isto, um bom tempo antes, de uma reflexdo sobre a relacdo do amuo infantil, com as “crises de orgulho” do adulto: vocé gostaria que eu desejasse alguma coisa para ter um meio de agir sobre mim. E assim que se revela 0 sujeito: vocé no tera meios de agir sobre mim, diz o amuado, porque eu nao quero nada. E sem divida por causa destas antigas reflexoes que logo encontrei a maneira de utilizar o “eu nado quero mais vir”. Na verda- de, ndo estou certo, minha resposta veio muito rapido... Sozinha, Em todo caso, nao € a teoria analftica propriamente dita que podia me guiar - € 0 pa- ciente no me deixava quase nada de tempo para refletir... Mas este exemplo mostra que € com nosso “saber” - sem a ele referir-nos - que encontramos as interveng6es a fazer. Agora, se me pedissem um exemplo onde a interpretacao analitica tives- se a forma de uma Deutung, eu ndo creio que pudesse dar um, pelo menos que tivesse um efeito tio visivel sobre 0 curso da andlise. A Deutung, por exemplo, isto 6: voc€ sonhava que ndo podia colocar a vela no castical - € que vocé tem medo de ser impotente. Este género de interpretagdo nao tem um grande efeito, evidentemente. E isto no esperou a descoberta da anali- Se, isto existe desde a antiguidade. © Div de Procusto / 17 ite, ciente (sua criativida- innit e citei, que € 0 paciel b opservagio de Winnicott $0 es do analista correm 0 risco A palho, € que as ee . merpretagdo Deut c tral de) quem faz © Ome fazer alusio, sobretudo, ? Sree ae : j-lo, parece ie. Poi, sabe-se qu 1 6 os . aac traduzia em linguagem teéri- as interp! : ‘a oa sent ie ae ee brinca com um trem - brinque- ca analitica 2° pans cate Melanie interpreta como se fosse um so- oO ue entra dentro da tua mamie. Se eu houvesse utilizado al Pe Deatung, eu deveria ter dito a meu paciente: quando voce fe ery weer mais vir, isto quer dizer outra coisa. Esta andlise gratuita, at ae rimeiramente tio aborrecida, eu a achei, apesar de tudo, en- He Sia O enti da Deutung analitica (€ isto parece-me muito impor- esti insistir...), sim, que a Deutung, cujo modelo é a Traumdeu- ava sobre um certo e curto periodo da historia da psicandlise, ° penbdo Saran 0 qual reinou o simbolismo que pode-se chamar freudo-jun- guiano, que permitia estabelecer uma espécie de cédigo dos simbolos ede traduzir, quase automaticamente, primeiro os sonhos, e, em seguida, as asso- ciagdes. Este método - supondo que seja um método - foi bem rapidamente abandonado, E interessante notar a origem da ruptura: ela est4 no resumo do caso do Homem dos Ratos, onde, ali4s, a Deutung ndo € ainda completa- mente eliminada. A historia da interpretagdo de Freud por Lacan est4 ainda por ser fei- ta, Lacan tendo falado muito pouco. Mas tal reflexdo sobre somente a inter- pretagdo nos obrigaria a passar em revista toda a psicandlise e sua historia... E n6s devemos, de qualquer maneira, ter em conta a Pposi¢ao onde estamos em relacdo a Freud. Freud tirava sua teoria das interpretagdes que Ihe aflora- vam: pelo menos no perfodo mais fecundo de seu trabalho. Nés temos, de Preferéncia, a tendéncia a tirar nossas interpretag6es de sua teoria. E inteira- mente logico, mas devemos levar em conta esta inversdo, E Freud tinha a Sorte de nao ter a quem imitar. Um analista, hoje, se encontra nesta situagao paradoxak: se ele se identifica com Freud, ele torna-se alguém que nao tem ninguém a imitar. Nem mesmo Freud. Isto tem, sem divida, uma aparéncia contradit6ria, Mas, de fato, 6 desta maneira que funciona. Cabe a nés nos desembaracarmos. N6s s6 podemos imitar Freud tendo confianca em ndés mesmos. Bem entendido, foi Freud quem nos tornou capazes - e ainda assim, Capazes de no imit4-lo, quando for o caso. Uma vez assisti a uma cena muito banal, onde Pude ver como se pode apresentar € resolver um problema simples de interpretagao, Isto ocorreu nu- ma reunido amig4vel, onde figuravam Pais e filhos. Um menininho, entre dois € tres anos, se mostrava inquieto e agitado. Sua mae lhe disse: “tu tens vontade de fazer Pipi” Mas o que particularmente me interessou foi a res- Posta da crianga: Como € que t sabes? E uma resposta quase incrivel, mas Muito inteligente, que pode ter dois sentidos: 18 / McDougal, Mannoni, Vasse © Dethiville dito? Ov 9 uando eu mesmo no sabia? CO eee aa a questéo da telepatia € 2 questo da interpre- certo momento, esta questo se colocou a . a anélise um bri juedo € néo um traba- innicott ter-se formado com brinquedo das criangas- ta .. B vimos que, nur fo. nitude de Wi jcott, € ver 2 na andlise - s6 falamos entre analistas. B ainda assim... face a um problema como aque- Parece, a0 menos 3 primeira vista, que, ‘ ny Tes que coloca a ‘andlise, 0 analista busca 2 explicaga0 metapsicologica, mas ele nao a explica nos termos em que ela se apresenta, & que, de algum mo- do, € questéo de coloc4-la ao alcance do analisando. E € justamente tirando seu aspecto “tedrico”. ‘ gogico deste genero. A andlise nao Talvez nao seja um problema pedat inamento, e talvez ndo 0 seja jamais. B, de preferen- ncia que modificaré o sujeito que passa Por ela. Quanto a0 papel do pensamento teOrico - ou do saber metapsicol6gico -, nao € facil pre- cisi-lo. Disto néo € questio na andlise, mas, o que nO impede que 0 anali- sando empreste a0 analista um saber deste genero e que ele espere (em vao, bem entendido) da boca do analista a palavra de sua verdade (aquela do pa- ciente, € claro). Ora, esta palavra ndo tem provavelmente existéncia alguma. i (“tu tens yontade de fazer Quando se interpreta a gesticulagéo da criang® pipi”), n6s o livramos em seguida de uma situagao insustentavel. Nao é assim reciso levantarmos a hip6tese de que a solu- téo simples com um adulto, € p! do néo seja da ordem do saber. Ainda aqui 0 vocabulario € inadequado pa- ra bem explicarmos. E, também, a palavra saber € muito equivoca. E posst- vel imaginar um paciente que aprendeu tudo o que poderia aprender - € nem por isto est mais avangado - e alguém que tenha sido muito modificado por ua andlise, sem que possa dizer 0 que af aprendev. (O analista, € Obvio, po- deria dizé-lo. Mas o analisando est4 mal situado para sabé-lo. E o objetivo da anilise nfo € que ele a aprenda, mas que com isto seja “modificado”.) O que continua obscuro ou ‘mal conhecido, na andlise, no séo seus mé- todos e suas praticas, s40 seus resultados. O que fica obscuro, nO analista, no 6 seu conhecimento em matéria de psicologia analftica, € a maneira CO- a ort este saber, ele consegue entender-se com um outro que, talvez so- : nte pelo fato de ser “compreendido”, compreenda-se a si mesmo. Estas cael ees adquirir muitas formas diversas - haver4, por exemplo, aque- jo esqueceu de sua infancia, como aquele que no consegue nada © Dwi de Procusto / 19 a didos tanto um como 0 Outro. Uma lista deste género de posg;. esquecer - pera a : pilidades poderia ser Lick goes que d4 ou as intervengOes que faz 0 analista, Quanto me oe steoc - mesmo que seja rara - de andlises bem suce. & preciso Sarpieil ces surpreendentes; tudo isto s6 pode tornar-nos mais didas sem ae gredo da andlise est4 longe de ser exaurido pelo que sabemos: a : ia 6 ainda insuficiente, e, para dizermos em poucas pala. asa areas paareao aaiegs aa de Freud e Moisés; nem que Laan a gente pode fazer sobre uma est4tua, ainda que ela seja obra ae ape © analista interpreta forgosamente com © seu saber ou seus saberes - mas destes saberes, ele nao diz nada. Sdo seu mapa e sua bassola. Eles Ihe permitem localizar-se e reagir analiticamente aos obst4culos aos quais se confronta 0 analisando. O analista € talvez um guia - mas éo analisando sozinho quem deve terminar sabendo onde ele quer ir. Seria sufi- ciente, no final das contas, ser a est4tua de Moisés para guiar Freud onde ele (ele, Freud) quisera ir. Mas este é um caso extremo. Por outro lado, a Deu- tung € a revelacdo do sentido, escondido sob um sentido enganador. A Deu- tung, por exemplo, permite interpretar um sonho. Mas, fora dos sonhos, é menos simples. O “eu nao quero mais vir” de meu paciente n4o esconde ab- solutamente um sentido que deveria ser descoberto. Ele marca a Ppassagem do blablabié que fala & palavra que diz. E o paciente ndo se deu conta sozi- nho disto, ou, se ele se deu, ele ndo sabia fazer outra coisa além de parar a andlise. E, num certo sentido, com razAo, pois a experiéncia que ele tinha fei- to até 4 nfo levava a parte alguma. Tenho consciéncia - em todo caso tenho o escrépulo - de haver frustra- do alguns de meus ouvintes. Aqueles que speravam, por exemplo, receber heaven Pee os Como interpreta, e, sem dtvida tam- » jue pensam que pode-se justif i de arguinentos teorcos risoosce, um moe nee ae eae " ; mas de Moliére (Em © Burgués Fidalgo) que pensava que, gracas & sua teoria de esgrima, poderia-se matar um homem através da razo demonstrati Ni fe to demonstrativa em angle, Mas, entéo, no ha veaken ne NEO de do analista, Ou, ao MENOs, 0 que ele pode ter Teal ‘ente autorida- que fornece seu rendimento no trabatho ratte Como autoridade nao é 0 de do patrao pode desempenhar um grande papel nur €nquanto que a autorida- Que o psicanalista tenha podido patel hum trabalho de aprendizagem. i anaes Paeca autoridade, 36 € expli- olhos de Freud, um: - contra a Sua vontade, ¢ » a eee encontrava portanto, mesmo ae ee Guts Precksamente, Ferencal nao’ eS Huma situacdo de profesers pica. gica. Ele no estava na POSIGgO do medi de Mol Sua posicio era » que censura 0 pulso 20 1 MeDoopl, Manon, Vane © Dette do doente por permitir-se irregularidades diante de um médico como ele, € que vale de seus titulos para obrigar a doenca a obedecer. E talvez, em andli- se, devido aos efeitos da transfer€ncia, algo concebfvel que a autoridade do analista tenha alguma efic4cia - mas € somente um efeito da transferéncia - e nao 0 efeito das interpretag6es, isto €, trata-se da autoridade que o pacien- te Ihe presta ¢ no aquela que o analista se atribui; e, pessoalmente, sempre estimei que, quando o analista invoca sua autoridade, ele parece alguém que, numa discuss4o, tira um revélver na falta de bons argumentos. Mas a questo puramente analftica que poderia intitular-se autoridade e transferéncia - ape- sar da grande importancia que ela possa ter - ndo deve ser mesclada com a da intervencdo. & Winnicott quem vé bem claro, segundo a minha opiniso: quando ele diz que € o paciente quem tem razdo e quem faz todo o trabalho, trata-se somente de ajudd-lo a fazé-lo - e ndo de fazé-lo em seu lugar. Patrick Casement escreveu um livro (bastante interessante), On Lear- ning from the patient. Mas ele faz a hip6tese de que o analista encontra a sua inspiragéo porque ele contém dentro de si um supervisor - € a prepara- ao de uma série sem fim, pois quem supervisionar4 0 supervisor? Etc. Nao creio que a hip6tese de Casement sirva para alguma coisa. No conjunto, seu livro € muito interessante. Somente, tente imaginar como funcionaria o analis- ta como supervisor dentro de sua cabega - € mesmo como o supervisor ima- ginario funciona, e se ndo € necess4rio um outro supervisor... Estas constru- Oes e hipoteses bizarras nos lembram as dificuldades e as armadilhas da ques- tao. E ascendendo de supervisor em supervisor, € o proprio Freud que deve- ria-se ter na cabega - mas, neste caso, 0 que diria Ferenczi... Estas hip6teses nado sdo muito sérias... O Div& de Procusto / 21 : f > eo Ro i VS x JOYCE McDOUGALL, OCTAVE MANNONI, DENIS VASSE e LAURA DETHIVILLE NG we we om O DIVA DE PROCUSTO O peso das palavras, 0 mal-entendido do sexo. ‘Apresentagdo: MAUD MANNONI Tradugio: DEBORA REGINA UNIKOWSKI Psicdloga e psicoterapeuta formada pela Universidade de Paris V — René Descartes — Sorbonne PORTO ALEGRE / 1991

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