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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO

AMAURY VERAS NETO

COM A DELICADEZA NECESSÁRIA: O DISCURSO DE GÊNERO E


SEXUALIDADE EM LIVROS DE LITERATURA INFANTIL

Recife
2015
AMAURY VERAS NETO

COM A DELICADEZA NECESSÁRIA: O DISCURSO DE GÊNERO E


SEXUALIDADE EM LIVROS DE LITERATURA INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Educação.
Linha de pesquisa: Formação de
professores e prática pedagógica.

Orientadora: Profa. Dra. Rosângela


Tenório de Carvalho.

Recife
2015
AMAURY VERAS NETO

COM A DELICADEZA NECESSÁRIA: O DISCURSO DE GÊNERO E


SEXUALIDADE EM LIVROS DE LITERATURA INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Educação.

Aprovada em: 29/10/2015.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco

___________________________________________________________
Profa. Dra. Zélia Granja Porto (Examinadora Externa)
Universidade Federal de Pernambuco

__________________________________________________________
Profa. Dra. Lívia Suassuna (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Pernambuco
As nossas lutas diárias. A todo momento embates
surgem para a conquista do poder. Ora somos
perpassados dum poder e nos colocamos numa situação
que nos favorece, ora somos colocados em situações
desfavoráveis, às vezes pelo mesmo poder que nos fez
maiores outrora. Forças atuam o tempo inteiro num ir e
vir incessantes, que muitas vezes nos deixam
nauseados, mas não temos nunca, se o nosso objetivo
for a mudança do status quo, a opção de ficar de fora
dessa dança infindável. Não se pode fugir. Se a
queremos bela, depende do quanto sabemos dançá-la,
do quanto podemos impressionar com nossos passos e
piruetas, sabendo os momentos certos de conduzir e nos
deixar conduzir. Pois é só inscrito num contexto, e
sabendo suas regras - ora comungando-as, ora
subvertendo-as -, que podemos modificá-lo.
É nessa dança interminável que esta dissertação
se inscreve: não só com o objetivo de empoderar aqueles
que fazem parte dele, mas também, com o objetivo de
tentar mostrar alguns jogos de poder, de denunciar
quando esses jogos apontam para as desigualdades e
tentar criticá-los. Apenas isso. Tarefa pequena, modesta
e fina. Assim como são os discursos e os poderes aqui
estudados.
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer aos meus pais e irmãs, pelo apoio incondicional. Aos
meus amigos, pois nem quando eu me aguento, eles me aguentam.
À professora Rosângela Tenório de Carvalho, por ser a melhor orientadora do
mundo.
Às professoras que leram o meu projeto de qualificação: professora Lívia
Suassuna, a professora Zélia Granja Porto e ao professor Durval Muniz. Grato pelas
críticas e sugestões.
Aos professores das disciplinas, que deram os alicerces para a minha
formação como mestre.
Aos meus colegas de turma pelo convívio e aprendizado conjunto.
Ao programa de pós-graduação, todos os funcionários, professores e
técnicos, pois eles de forma direta ou indireta auxiliaram em minha formação. À
banca de qualificação, pois as contribuições ajudaram a fazer um texto final melhor.
À Capes, pois sem o incentivo (a bolsa) eu provavelmente não terminaria a
dissertação.
E, finalmente, aos meus amores, pois sem eles minha vida seria sem graça.
Lo ideal no es fabricar herramientas sino construir bombas porque, una vez que se
han utilizado las bombas construidas, ya nadie las puede usar. Y debo añadir que mi
sueño personal no es construir bombas, pues no me gusta matar gente. Sin
embargo, me gustaría escribir libros-bomba, es decir, libros que sean útiles
precisamente en el momento en que uno los escribe o los lee. Acto seguido,
desaparecerían. Serían unos libros tales que desaparecerían poco tiempo después
de que se hubieran leído o utilizado. Deberían ser una especie de bombas y nada
más. Tras la explosión, se podría recordar a la gente que estos libros produjeron un
bello fuego de artificio. Más tarde, los historiadores y otros especialistas podrían
decir que tal o cual libro fue tan útil como una bomba y tan bello como un fuego de
artifício.
(Foucault, numa entrevista a estudantes americanos. Diálogos sobre o poder.)
RESUMO

Esta dissertação, realizada no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPE,


no núcleo de Formação de Professores e Prática Pedagógica, tem como objeto de
estudo o discurso de gênero e sexualidade na literatura infantil. O objetivo do estudo
é, ao analisar o discurso de gênero e sexualidade presentes nos livros de literatura
infantil sugeridos pela coleção “explorando o ensino” – no contexto das mudanças
curriculares, nos anos 1990, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e a inclusão de temas transversais como
Orientação sexual entre outros –,problematizar as representações de gênero e
sexualidade nesse discurso tendo como foco as posições de sujeito. A reflexão
teórica e metodológica que orienta a análise tem como referência elementos dos
estudos desenvolvidos por Michel Foucault sobre as relações de poder, discurso e
sexualidade e governo dos corpos; uma conceitualização e problematização advinda
dos estudos feministas de Judith Butler, Guacira Louro e também a conceitualização
de Stuart Hall e Tomaz Tadeu da Silva, autores que problematizam a relação entre
pedagogia escolar e pedagogia cultural e representação. Trabalhamos também com
estudos sobre literatura infantil, artefato cultural implicado nos discursos de
produção de identidades e subjetividades multidimensionais o que nos ajudou a
analisar esse artefato cultural como um lugar de enunciação sobre as identidades de
gênero e de sexualidade. O estudo teve como corpora seis livros de literatura infantil
selecionados na Coleção Explorando o Ensino: Literatura. Esta coleção
foiorganizada para apoiar a formação de professores/as no contexto do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) e do Programa Nacional Biblioteca da Escola
(PNBE). A análise indica como o discurso de gênero e sexualidade na literatura
infantil tem a função enunciativa de transmissão de valores a respeito da família, da
maternidade, das posições de sujeito masculino e feminino. Há uma evidência da
representação da mulher no contexto de uma sociedade patriarcarlista, delicadeza,
maternidade, cuidado com o outro, responsável pela alimentação, pela higiene e
saúde da família. A posição de sujeito masculino está associada ao provedor da
subsistência e da segurança da família. Há ainda que ressaltar a força da família
nuclear da tradição da modernidade.

Palavras-chave: Literatura infantil. Gênero e sexualidade. Identidade. Modos de


subjetivação.
ABSTRACT

This work, conducted in the Postgraduate Certificate in Education UFPE program,


the core of Teacher Training and Teaching Practice, has as its object of study the
discourse of gender and sexuality in children's literature. The objective of the study
is, to analyze the discourse of gender and sexuality present in children's literature
collection of books suggested by "exploring teaching" in the context of curriculum
changes question- in the context of curricular changes in the 1990s with the National
Curricular Parameters (NCPs) and the National Curricular Guidelines (NCDs) and the
inclusion of cross-cutting themes such as sexual orientation among others -,
problematizing the representations of gender and sexuality that speech focusing on
the subject positions. The theoretical and methodological reflection that guides the
analysis is referenced elements of the studies developed by Michel Foucault on
power relations, speech and sexuality and government bodies; a conceptualization
and questioning arising of feminist studies of Judith Butler, Guacira Laurel and also
the conceptualization of Stuart Hall and Tomaz Tadeu da Silva authors that question
the relationship between school pedagogy and cultural pedagogy and representation.
We also work with studies of children's literature, cultural artifact implicated in identity
production of discourses and subjectivities multidimensional which helped us analyze
this cultural artifact as a place of enunciation on gender identity and sexuality. The
study was corpora six children's literature books selected in the Collection Exploring
Education: Literature. This collection was organized to support the training of
teachers / in the context of the National Textbook Program (PNLD) and the National
Program of School Library (PNBE). The analysis shows how the discourse of gender
and sexuality in children's literature has the function expository transmission of
values regarding the family, motherhood, the subject of male and female positions.
There is evidence of women's representation in the context of a society
patriarcarlista, delicacy, maternity, care of each other, responsible for nutrition,
hygiene and the health of the family. The male subject position is linked to
subsistence and family security provider. There is also that highlight the strength of
the nuclear family tradition and modernity.

Keywords: Children's Literature. Gender and sexuality. Identity. Modes of subjectivity.


LISTA DE SIGLAS

ANPED Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação


BENFAM Bem Estar da Família no Brasil
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
DST Doença Sexualmente Transmissível
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
SIDA Síndrome de Imonodeficiência Adquirida
UNICEF United Nations Children's Fund
FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PNBE Programa Nacional Biblioteca da Escola
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PNE Plano Nacional de Educação
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Trabalhos com a temática de Gênero e sexualidade afins ao projeto de


pesquisa (2000 a 2013) ..........................................................................27
Quadro 2 - Modêlo analítico ......................................................................................49
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Marcha das vadias ....................................................................................69


Figura 2 - Parada Gay São Paulo 2015.....................................................................70
Figura 3 - Tem Gente ................................................................................................72
Figura 4 - A família ....................................................................................................73
Figura 5 - O casal ......................................................................................................76
Figura 6 - Na gravidez a comilona.............................................................................77
Figura 7 - As roupas ..................................................................................................80
Figura 8 - A nova edição ...........................................................................................82
Figura 9 - Amor de Ganso .........................................................................................83
Figura 10 - O protagonista.........................................................................................85
Figura 11 - O herói que ajuda com a comida ............................................................86
Figura 12 - Para que serve uma barriga tão grande? ................................................88
Figura 13 - A mãe ......................................................................................................91
Figura 14 - Representações da mãe .........................................................................93
Figura 15 - Representações da mãe 2 ......................................................................94
Figura 16 - Representações da mãe 3 ......................................................................95
Figura 17 - Capa do livro “O menino Nito” .................................................................96
Figura 18 - Páginas 14 e 15 do livro “O menino Nito”................................................98
Figura 19 - Página 4 do livro “O menino Nito” ...........................................................99
Figura 20 - Página 7 do livro “O menino Nito” ......................................................... 101
Figura 21 - Página 16 do livro “O menino Nito” ....................................................... 102
Figura 22 - Página 8 do livro “O menino Nito” ......................................................... 103
Figura 23 - Detalhe da página 5 do livro “O menino Nito” ....................................... 104
Figura 24 - Página 5 do livro “O menino Nito” ......................................................... 105
Figura 25 - Capas do livro “Emmanuela”, primeira e segunda edição,
respectivamente ..................................................................................... 106
Figura 26 - representação da família do livro “Emmanuela” ....................................110
Figura 27 - representação da família no livro “Emmanuela” ....................................111
Figura 28 - Representação do cotidiano familiar na edição mais nova de
“Emmanuela” .......................................................................................... 113
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................13
2 LITERATURA INFANTIL COMO LUGAR DE ENUNCIAÇÃO DO DISCURSO DE
GÊNERO E SEXUALIDADE .....................................................................................20
2.1 Enunciados sobre literatura infantil e o seu papel formativo ....................20
2.2 Estudos recentes sobre literatura infantil associados ao discurso de
gênero e sexualidade...........................................................................................26
3 MODELO ANALÍTICO – ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS ...........33
3.1 Gênero e sexualidade: o debate Teórico .....................................................34
3.1.1 Os discursos feministas de gênero ............................................................34
3.1.2 Sexualidade e poder ..................................................................................37
3.1.3 Representação ..........................................................................................41
3.2 Análise do discurso .......................................................................................44
3.2.1 Discurso e interdiscurso ............................................................................44
3.2.2 Análise cultural ..........................................................................................48
3.2.3Os corpora de análise.................................................................................50
4 O CENÁRIO DO DISCURSO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA LITERATURA
INFANTIL ..................................................................................................................52
4.1 Os temas transversais no currículo da educação básica e a questão da
saúde do corpo ....................................................................................................52
4.1.1 O Melhor método anticoncepcional para adolescente é a escola..............57
4.2 Os movimentos sociais e o debate de gênero e sexualidade ....................65
5 COM A DELICADEZA NECESSÁRIA – OS DISCURSOS DE GÊNERO E
SEXUALIDADE NA LITERATURA INFANTIL .........................................................71
5.1 Tem Gente ......................................................................................................71
5.2 Amor de Ganso ..............................................................................................83
5.3 Pra que serve uma barriga tão grande .........................................................88
5.4 O Menino Nito .................................................................................................96
5.5 Emmanuela ...................................................................................................106
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: COM A DELICADEZA NECESSÁRIA E AS
DESNECESSÁRIAS INDELICADEZAS .................................................................116
REFERÊNCIAS............................................................................................................................121
13

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho dissertativo está inscrito na temática do gênero e da


sexualidade; mais especificamente, no discurso de gênero e sexualidade em livros
de literatura infantil no contexto da “educação sexual”. Essa prática educativa,
nomeada de Orientação Sexual (como hoje é empregada), ou Educação Sexual,
como fora outrora, aqui é entendida como um mecanismo do Estado para o controle,
pela educação, da sexualidade 1 dos indivíduos, através dos livros de literatura
infantil e juvenil.
Interessa neste trabalho não a prática substantiva dessa educação, mas essa
prática como um discurso que não apenas diz sobre gênero e sexualidade, mas
produz um discurso sobre modos de ser e de estar no mundo do ponto de vista do
gênero e da sexualidade (FOUCAULT, 2013).
Gênero e sexualidade são conceitulizações que têm sido associadas no
campo educacional, embora cada uma tenha a sua singularidade. Neste trabalho,
gênero é tomado como um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos e como uma forma primeira de significar as
relações de poder, tal como defende Scott (1995), e sexualidade, como um
dispositivo histórico produzido no contexto discursivo e de relações de poder
(FOUCAULT, 2012a).
Esses dois conceitos, tratados como discurso no contexto da literatura infantil,
permitem uma análise que nos aproxima de uma visão de desnaturalização da
identidade de gênero e sexual. Nesse sentido, as identidades são entendidas como
construções advindas de efeitos de discursos.
Para especificarmos o nosso objeto – o discurso de gênero e sexualidade nos
livros de literatura infantil –, precisamos realizar um breve apanhado histórico dos
discursos que impulsionaram as mudanças curriculares que institucionalizaram a
educação sexual (com o nome, atualmente, de “Orientação Sexual”) no currículo
escolar brasileiro, mostrando como surgem o nosso objeto e os discursos que o
perpassam.
Primeiramente, é importante falarmos das mudanças curriculares da década
de 1990. Em seu artigo “Proposta curriculares alternativas: limites e avanços”,

1
Tecnologia do sexo; um dispositivo histórico que fabrica corpos e subjetividades. Vide capítulo
“Sexualidade e Poder”.
14

Moreira diz que essas mudanças ocorridas naquela década foram influenciadas, do
ponto de vista dos estudos no campo curricular, pelos estudos culturais, pelo pós-
modernismo e pelo pós-estruturalismo. Segundo o autor,

Os textos preservaram a preocupação com o conhecimento escolar,


abordando ainda temas como: o nexo poder-saber no currículo, a
transversalidade no currículo, novas organizações curriculares, as
interações no currículo em ação, o conhecimento e o cotidiano
escolar como redes, o currículo como espaço de construção de
identidades, o currículo como prática de significação, a expressão
das dinâmicas sociais de gênero, sexualidade e etnia no currículo, o
multiculturalismo (MOREIRA, 2000, p. 118).

Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, lançados


no final dos anos 1990, define-se a necessidade de mudanças na escola relativas às
especificidades identitárias dos sujeitos da educação. Problematiza-se o desenho da
organização da escola pelo fato de esta não ter conseguidoresponder às
singularidades dos sujeitos que a compõem (MOREIRA, 2000).
Contudo, Moreira (2000) nos mostra que o currículo formulado no final dos
anos 1990 não vai superar o distanciamento entre a “prática em sala de aula” e a
“teoria” e, por apresentar um caráter complexo e abstrato com poucas sugestões
aos profissionais da educação, não chega a nortear novas práticas e reformas. Dito
de outra forma, há um distanciamento entre os enunciados dos documentos
curriculares e os enunciados da prática curricular efetivada nas escolas.
No contexto dos documentos curriculares oficiais do período a exemplo das
Diretrizes Curriculares Nacionais e dos Parâmetros Curriculares Nacionais, observa-
se a inclusão, na política de educação nacional, de um ensino que contemple as
questões de gênero e de sexualidade. Nessas diretrizes define-se a necessidade de
mudanças na escola relativas às especificidades identitárias dos sujeitos da
educação.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (BRASIL, 2010a)
problematiza o desenho da organização da escola por não conseguir “responder às
singularidades dos sujeitos que a compõem”. Ressaltam-se nessa diretriz as
[…] questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas
por categorias que se entrelaçam na vida social – pobre, mulheres,
afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, as
populações do campo, os de diferentes orientações sexuais, os
sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em privação de
liberdade (BRASIL, 2010a, p, 16).
15

Há também, em relação a essas questões de gênero e sexualidade nas


Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica, particularmente quando
referem-se ao ensino fundamental de nove anos, a sugestão do modo como tratar
do ponto de vista pedagógico tais questões: articulando aos conhecimentos básicos
os temas transversais, ou seja,

[…] abordagem de temas abrangentes e contemporâneos, que


afetam a vida humana em escala global, regional e local, bem como
na esfera individual. Temas como saúde, sexualidade e gênero, vida
familiar e social, assim como os direitos das crianças e adolescentes,
de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/90) […] (BRASIL, 2010a, p. 115).

Toda essa preocupação da política educacional no sentido de reinserir as


questões de gênero e sexualidade nos currículos não é por acaso. Essa produção
no campo curricular, seja na legislação seja na proposição curricular, responde não
só os problemas apresentados na sociedade relativos a questão AIDS – e a
preocupação em governar2 os corpos –, mas também às lutas culturais realizadas
pelos movimentos sociais de gênero e o feminismo e sexualidade, que, como aponta
Moreira, associados à produção do conhecimento na área influenciaram o debate
nacional sobre a temática e consequentemente a produção dos textos curriculares
no contexto da política educacional.
Vale ressaltar que durante a década de 1980, após a disseminação da AIDS
em todo o mundo, surgem, no Brasil, programas para a prevenção das Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs): o governo retoma uma preocupação com a
educação sexual nas escolas tal como nos mostra Altmann (2001) em seu Artigo
“Orientação Sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais”. O autor argumenta que
a inserção da educação sexual deu-se a partir da década de 1920-1930 com um
deslocamento no campo discursivo sobre a sexualidade e os problemas dos ditos
“desvios sexuais”; entendida agora como doenças e não mais como crimes,
devendo a escola tomar medidas preventivas da medicina higiênica; produzir
comportamentos normais.

2
Governar os corpos no sentido dado por Foucault como um tipo de poder que levou ao
desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes
(FOUCAULT, 1979).
16

Durante a década de 1960 e 1970, a “educação sexual” gera grandes


debates: ora é inserida, ora retirada dos currículos escolares; algumas escolas
desenvolvem experiências de educação sexual durante a década de 1960, mas,
depois, há pronunciamento em 1970 da Comissão Nacional de Moral e Civismo, que
divulga um parecer contrário a um projeto de lei de 1968 que institui a
obrigatoriedade da educação sexual nos currículos. Em 1976 afirma-se que a família
é a responsável pela educação sexual, podendo a escola inserir, ou não esse tema
a programas de saúde. Durante a década de 1980 a polêmica continua, até a sua
inserção, durante a década de 1990, como tema transversal – aquele que pode e
deve perpassar todas as disciplinas; impregnar toda a área educativa e ser tratado
por diversas áreas do conhecimento.
Como aponta Altmann (2001),tanto na década de 1930, quanto na década de
1990, as discussões foram instigadas ora pelo surto de sífilis que fazia vítimas
numerosas, ora pela proliferação do número de casos de AIDS/DST e o aumento da
gravidez entre os adolescentes.
À escola, nesse contexto, é atribuída a função de desenvolver uma ação
crítica, reflexiva e educativa que promova a saúde das crianças e dos adolescentes.
Com efeito, há o interesse do estado na sexualidade de seu povo: quer-se produzir
corpos e sexualidade rentáveis, quer-se normalizar as condutas sexuais, pois estas
são decisivas na manutenção dum estado liberal (LOURO, 2012; FOUCAULT,
2012a).
E nas práticas de normalização das condutas sexuais dos indivíduos, o
currículo na escola também parece possuir importância: como bem aponta Silva
(2010), o currículo é um forte produtor de sujeitos e identidades, não mero
normatização dos conhecimentos, pois ele “(...) está centralmente envolvido naquilo
que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo
produz, o currículo nos produz” (p. 27).
Pode-se inferir que mudanças curriculares podem influenciar a constituição de
sujeitos e duma sexualidade específica. No âmbito das políticas curriculares, criam-
se, também, diversos programas do governo para a compra de livros infantis com
temáticas que abordam os temas transversais, as editoras começam a financiar
livros infantis com o objetivo de vender milhares de exemplares a serem distribuídos
pelas escolas públicas do país,questões bem trabalhadas por Silva quando analisa a
política curricular:
17

[…] As políticas curriculares têm também outros efeitos. Elas


autorizam certos grupos de especialistas, ao mesmo tempo em que
desautoriza outros. Elas fabricam os objetos “epistemológicos” de que
falam, por meio de um léxico próprio, de um jargão, que não deve ser
visto apenas como uma moda, mas como um mecanismo altamente
eficiente de instituição e de constituição do “real” que supostamente
lhe serve de referente. As políticas curriculares interpelam indivíduos
nos diferentes níveis institucionais aos quais se dirigem, atribuindo-
lhes ações e papéis específicos: burocratas, delegados, supervisores,
diretores, professores. Elas geram uma série de outros e variados
textos: diretrizes, guias curriculares, normas, grades, livros didáticos,
produzindo efeitos que amplificam os dos textos-mestres. As políticas
curriculares movimentam, enfim, toda uma indústria cultural montada
em torno da escola e da educação: livros didáticos, material
paradidático, material audiovisual (agora chamado de multimídia)
(2010, p. 11).

Nessa perspectiva, podemos dizer que a reinserção da educação sexual nos


currículos escolares – desde os anos 1990 com o nome de “Orientação Sexual” –
cria uma institucionalidade que legitima algumas instituições e papéis específicos da
nossa sociedade, movimentando a indústria cultural para a criação de materiais
didáticos, livros infantis etc. Inaugura-se um novo e promissor nicho editorial para a
literatura, particularmente a infanto-juvenil, com temáticas voltadas para a
sexualidade e outros temas transversais do ponto de vista dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, com a função educativa no contexto da escolarização.
Alguns autores começam a produzir uma literatura de forma a veicular, através de
narrativas e poemas, ensinamentos sobre gênero e sexualidade.
São também produzidos, pelo Ministério da Educação, instrumentos
pedagógicos de apoio aos materiais adotados. Dentro desse escopo foi feita, por
exemplo, a Coleção Explorando o Ensino: Literatura, com o objetivo de apoiar os
professores, fornecendo, segundo os princípios da coleção, um material científico-
pedagógico, que contribua para uma reflexão sobre processos pedagógicos,
relacionando o conhecimento específico à proposta pedagógica, num diálogo com o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE). Nesse material são feitas algumas propostas de utilização do livro
de literatura infantil para tratar das questões de gênero e sexualidade. Serão desta
coleção os livros que compõem o nosso corpora de pesquisa.
Esses livros de literatura infantil, produzidos depois da década de 1990, pós-
mudanças curriculares, possuem uma característica ímpar: eles operam no sentido
18

de responder aos anseios de várias esferas da nossa sociedade; tanto o governo –


que espera solucionar os problemas de saúde com essas propostas –, tanto os
movimentos sociais que pressionaram o estado a colocar as questões de gênero e
sexualidade no currículo como uma forma de assegurar um currículo democrático,
um espaço público, como também ao campo acadêmico fazendo corresponder a
pesquisa educacional no contexto da política publica. Tudo isso sem desagradar as
esferas e os discursos tradicionais da nossa sociedade.
Vale dizer que aqui o objetivo do estudo é duplo: 1- tentar investigar onde
historicamente se inserem as questões de gênero e sexualidade na literatura infantil
e juvenil, observando seus regimes de veridição, ou seja, querendo ver o que se é
colocado, como são colocados os verdadeiros e falsos, relacionando aos contextos
sociais, pedagógicos, teóricos e culturais que exploramos em outros capítulos. 2-
analisar os livros como artefatos culturais moldadores de subjetividades: interessa
investigar como estão colocadas as questões de gênero e sexualidade dentro no
contexto desses materiais culturais e suas possíveis implicações para a construção
das subjetividades dos sujeitos que consomem esse tipo de material. Esses dois
objetivos podem parecer o mesmo para uns ou desnecessariamente articulados
para outros.
O objetivo do nosso trabalho, de forma mais específica, é tentar realizar uma
investigação de por que se inserem as questões de gênero e sexualidade na
literatura infantil e por que se coloca como sendo um lugar privilegiado para se
ensinar tais questões em sala de aula; tentando atentar para alguns acontecimentos
discursivos que colocam tais livros como um lugar privilegiado para tal e legitimam
um regime de verdade que impulsiona todo um mercado de livros a fazer tais
materiais que tratam dessa temática.
O nosso estudo, em sua especificidade, objetiva analisar o discurso de
gênero e sexualidade presente em livros de literatura infantil sugeridos pela Coleção
Explorando o Ensino: Literatura. Esta coleção tem a função de orientação sobre o
uso dos textos do PNLD, tal como já foi indicado nesta introdução. A análise está
apoiada nos estudos de Foucault (2012a)sobre relações de poder, discurso e
sexualidade associada aos estudos feministas de Louro (2012) e Butler (2013) e dos
estudos sobre representação de Hall (2000) e Silva (2000). De forma mais
específica trabalhamos o cenário discursivo no qual emerge esse discurso na
literatura infantil no contexto das mudanças curriculares no final dos anos 1990; o
19

interdiscurso, ou seja, a rede discursiva a qual esse discurso está associado; as


representações sobre gênero e sexualidade; as posições de sujeito. Vale ressaltar
que as imagens neste texto dissertativo foram analisadas como discurso, tal como
se faz na análise cultural.
A análise desenvolvida está organizada neste texto dissertativo em quatro
capítulos. No primeiro sob o título Literatura infantil como lugar de enunciação do
discurso de gênero e sexualidade trabalhamos os enunciados clássicos sobre
literatura infantil e o seu papel formativo e em seguida apresentamos os estudos
recentes sobre literatura infantil associados ao discurso de gênero e sexualidade.
No segundo capítulo apresentamos o modelo analítico, ou seja, o caminho
teórico emetodológico que orientou a análise. Iniciamos com o debate sobre gênero,
sexualidade e poder nos estudos foucaultianos e nos estudos feministas e os
estudos sobre representação de Hall e Silva. Em seguida, trataremos da análise do
discurso a partir de elementos da análise arqueológica de Michel Foucault; da
análise cultural uma referência para a análise das imagens e as posições de sujeito.
Por fim, neste capítulo apresentamos o corpora selecionado para análise.
Os últimos capítulos constituem a análise desenvolvida. No terceiro
apresentamos o cenário do discurso com foco nas mudanças curriculares dos anos
1990 e as influências dos movimentos sociais feministas e de sexualidade e a
política curricular com as novas diretrizes curriculares nacionais e os parâmetros
curriculares nacionais. Os últimos acontecimentos no contexto do Plano Nacional de
Educação com a retirada das temáticas de gênero e sexualidade também são
problematizados neste capítulo. O capítulo quarto traz a análise dos textos literários
selecionados.
Por fim, as considerações finais onde apresentamos os objetivos alcançados
com o trabalho e as contribuições do trabalho no campo da educação, para os
estudos de gênero, sexualidade e literatura e para a formação de professores.
20

2 LITERATURA INFANTIL COMO LUGAR DE ENUNCIAÇÃO DO DISCURSO DE


GÊNERO E SEXUALIDADE

A vontade da verdade, que nos poderá


levar ainda a muitas e estranhas
aventuras, essa famosa veracidade de
que todos os filósofos até agora falaram
com veneração, quantos problemas essa
vontade da verdade nos levantou!

(Nietzsche, Além do bem e do mal)

Este capítulo não tem a pretensão de fechar um conceito sólido,


homogeneizado do que seria literatura; pelo contrário, queremos evidenciar as
discussões os questionamentos sobre os seus limites, o seu campo conceitual, os
aspectos sociais e culturais. Assim, não iremos nos preocupar com a conceituação
fechada, única, universal; o que nos interessa não é dizer o que é literatura. Não
queremos instituir que características certas obras devem ter para se enquadrarem
nessa "categoria". Não diremos se uma obra merece ou não chamar-se "literatura".
Não vamos mostrar seu caráter "subversivo", "transcendental" ou "contestador",
"naturais" à literatura. Não. Faremos algo diverso.
Queremos, apenas, pôr em debate até que ponto a literatura transcende,
contesta e subverte a nossa sociedade. Quando ela pode funcionar do mesmo modo
que instituições com a função social de formar, educar para melhoria do humano.
Queremos mostrar que a literatura é material: que ela não foge dos discursos e das
relações de poder. Queremos mostrar quando a literatura é tudo o que todas as
outras instituições são: a literatura será para nós um discurso; uma categoria da
nossa sociedade. E será tratada como tal.

2.1 Enunciados sobre literatura infantil e o seu papel formativo

Nesta seção vamos mostrar o debate sobre a literatura. Iremos nos posicionar
sobre essa formação discursiva apresentando algumas considerações nossas e
doutros, observando alguns discursos que a perpassam. Seguiremos com o modo
como vem sendo tratada a literatura: ora um contra-discurso, ora como um discurso
de reprodução da cultura, ora um discurso neutro.
21

A Literatura possui um locus singular. Barthes (2013) nos mostra que nela se
é permitido dizer o que noutros lugares da nossa sociedade não se permite:
podemos dizer de modo diferente, “livre” das forças sociais e duma língua que nos
impulsiona a falar, que nos “obriga a dizer” fascista. Ali falamos de modo diverso,
nos libertamos da “autoridade da asserção” e do “gregarismo da repetição”, para
“trapacearmos” a língua com a língua e dizemos mais e diferente, ouvindo-a fora do
poder; esplendorosa, a literatura revoluciona, permanente, a linguagem, sem, claro,
se desvencilhar do lugar fechado que é esta.
Segue Barthes nomeando a literatura como combate. Combate contra a
própria língua, contra as forças coercivas da nossa sociedade. E essa luta só será
ganha se lutarmos no interior da própria língua; trabalhando não a mensagem - o
que se quer dizer tem menor importância -, mas sim os jogos de palavras, a forma
da língua: o “como se diz”.
Utopia. Outro aspecto trabalhado por Barthes. Através de sua representação
do real (Mimesis), a literatura tem uma “função utópica”; apesar de seu objeto ser a
realidade, ela é “obstinadamente” irrealista; ela procura e deseja o impossível: o
utópico. A literatura muda o mundo. Muda não de qualquer forma, não de qualquer
jeito - muda com a palavra. E essa palavra é utilizada dum modo específico:
carregada e múltipla. Barthes recorre a Ezra Pound para nos dizer que literatura é
linguagem carregada de significado e que a Grande Literatura é, simplesmente,
aquela que utiliza a linguagem carregada do máximo significado possível. Vemos a
importância do símbolo e do como ele significa, do como ele preciosamente diz; dum
modo jamais dito e, dessa forma, nos faz sair, transcender a realidade e questionar
o mundo com outros olhos - olhos humanizados pela literatura, olhos que saíram do
mundo-agora e estão noutros lugares livres das forças que nos impulsionam a ser o
mesmo. “Deslocando-se”; transportando-se – às vezes precisando nos abjurar do
que já dissemos – para lugares diferentes do poder “gregário” e “opressor”.
De tão singular, Barthes ainda vai nos dizer que, se tivesse que escolher uma
única disciplina para estar presente no currículo escolar, seria a disciplina literária,
ela “não fetichiza” os saberes, lhes dá um caráter indireto e precioso, trabalhando
nos “interstícios da ciência”, pois, segundo ele, “a ciência é grosseira, a vida é sutil,
e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa” (2013, p. 19) e fala
ainda mais: “todas as ciências estão presentes no monumento literário”, fazendo,
nesse sentindo, que a literatura seja detentora dum efeito de verdade mais precioso
22

que o da própria ciência. Barthes observa como Pablo Picasso vai chegar a dizer –
em sua célebre frase – que “A arte é uma mentira que nos revela a verdade”, a
ciência torna-se menor para as Artes – e dessa forma também para a Literatura –,
as Artes passam a possuir o locus da verdade. Verdade mais verdadeira que a da
própria ciência, pois esta já errou várias vezes, já mentiu diversas vezes; a literatura
não. Ela é atemporal; é universal.
A voz de Barthes, de Picasso é a voz de muitos outros: quando nos referimos
à literatura é lugar comum inserir dentro dela certas características que a colocam
num lugar de prestígio com relação a outras instituições ou categorias de nossa
sociedade. Ela é intrinsicamente – e universalmente – contestadora. Ela é
humanizadora, detentora duma verdade mais preciosa que a da própria ciência. Um
contra-discurso.
Até que ponto pode-se falar da literatura como contra-discurso? Para tratar
desse ponto recorremos aos debates que Foucault levantou, quando em algumas
poucas vezes, discutiu sobre a literatura. É importante destacarmos que Foucault,
num primeiro momento de suas produções intelectuais, colocava a literatura num
lugar de destaque.Como afirma Machado (2000), só depois da “Arqueologia do
saber”, Foucault começa a demonstrar em suas produções, em entrevistas etc. uma
mudança do modo como ele vê, não só a literatura, mas o próprio ato da escrita,
chegando a afirmar que “a militância política é mais importante do que dar aulas e
escrever livros, que jamais gostou da escrita literária, que não pensa que a escrita
tenha uma grande eficácia (...)” (2000, p. 124). O deslumbramento pela literatura tão
comum deixa de permear as ideias do filósofo – e também as nossas – depois de
suas investigações – e de nossas leituras – arqueológicas e genealógicas.
É este Foucault, descrente da instituição literária, que cochicha - e cochichará
- em nossos ouvidos quando escrevemos linhas profanadoras da literatura que
“humaniza”, “salva” e “contesta”. Quando a tratamos como uma instituição. Não
podemos negar o que é da instituição literária. De fato, ela parece estar num lugar
diferente doutras instituições da nossa sociedade. Parece que nela há possibilidades
diferentes de se dizer. Como afirma Barthes, a literatura é de fato um lugar onde a
linguagem age de forma diversa – diversa do modo que costumamos utilizá-la na
maioria doutros contextos –, onde a linguagem fala de modo singular.
Parece, também, que na literatura se pode dizer algo diferente. Nela há a
possibilidade de se falar coisas que não são faladas normalmente: existe uma
23

chance de se dizer o que não se é permitido em contextos normais. Mas até que
ponto tudo o que é dito da literatura realmente a coloca num lugar privilegiado? Até
onde a literatura é intrinsecamente contestadora? Humanizadora? Há, na atualidade,
uma movimentação intelectual em torno de questões relacionadas à produção do
sujeito humano tendo como objeto de discussão discursos sobre o esgotamento do
humanismo nacional-burguês com sua arte de narrativas, tais como aquelas
disseminadas nos textos literários, para construção do sujeito, ou seja, a educação
como autoformação da espécie (SLOTERDIJK, 2000). Contudo, esse debate ainda
não retirou da literatura, em sua institucionalidade, o poder como discurso implicado
na formação humana.
Primeiro ponto a considerar: as instituições têm um conjunto de
características que a fazem única. Elas são singulares, assim como os discursos
que a perpassam. A literatura não é diferente, ela possui características que a fazem
diversa doutras instituições; que delimitam o seu lugar - que apontam os limites
fronteiriços entre essa instituição e outras: é preciso, para sua manutenção, a
demarcação de características que a fazem “diferente”, legitimando-se, assim,
perante a sociedade, perante outras instituições.
Mas não é porque ela possui essas características únicas – claro que dentro
duma regularidade discursiva – que podemos dizer que a literatura está fora, que ela
é transcendental e que salvará as pessoas duma sociedade opressora. A medicina,
por exemplo – que, literalmente, salva vidas – para Foucault, possui várias
características que a assemelham a outra instituição da nossa sociedade que tem a
função de enclausuramento: as prisões.
O que está em jogo, para nós, não são as características intrínsecas dos
discursos e das instituições, mas sim sua materialidade: como se comporta um dado
discurso num determinado momento histórico? Nenhuma regularidade discursiva,
mesmo aquelas aparentemente tão inocentes e com bons propósitos
humanizadores, podem ser mesmo inocentes e humanas em todos os contextos que
elas se inserem. Muitas vezes, mesmo querendo salvar vidas, a medicina já se
apresentou como um discurso poderoso, sob determinados sujeitos, marcando-os
por suas doenças, por sua raça etc. Toda instituição e discursos aparentemente
“libertadores” podem, em determinados momentos, ser extremamente “perversos”,
enquanto outras “claramente perversas” podem ser “libertadoras”.
24

Longe de querer estabelecer dicotomias – e julgá-las – entre discursos


“libertadores” e “opressores”, queremos fazer exatamente o contrário: mostrar que
não há discurso, instituição ou qualquer outra coisa da nossa sociedade impune de
sua condição de estar localizada numa ... Sociedade. Noutras palavras, acreditamos
que se algo for produzido dentro da sociedade em que vivemos este algo será
extremamente marcado pelas condições as quais possibilitaram sua existência.
Materialidade.
E a literatura não escapa disso, muitas vezes foi utilizada para legitimar certos
discursos em detrimento doutros, reafirmando jogos de poder. Machado vai mostrar
que Foucault quando se refere à literatura em seu clássico texto Vigiar e Punir, vai
lhe interessar

[...] a posição assumida por ela a respeito do crime, mostrando que


desde o início do século XIX uma “literatura popular”, uma literatura
policial que faz o elogio da estética do crime, do assassinato como
uma das belas artes, reduplica esteticamente o ilegalismo criado pela
prisão e tem como função bloquear a memória popular, o saber
operário, por exemplo. Literatura policial, instrumento, como o jornal,
o cinema e a televisão, de produzir o medo pelos grandes criminosos
e tornar natural a presença da polícia no meio da população (2000,
p. 126).

Essa literatura refletida por Foucault assume um caráter bastante distinto da


literatura de Barthes e doutros: ela funciona dentro dos mecanismos de poder.Nela
perpassam discursos que legitimam certas práticas sociais; ela é material.
Acreditamos que a literatura não possui uma essência libertadora, contestadora ou
“humanizadora”; ela não é, nada mais, que a produção duma determinada época
que irá refletir todas as virtudes e mazelas daquele contexto. A literatura é uma
instituição da nossa sociedade; ela não é intrinsecamente boa nem má; ela não,
necessariamente, humaniza, nem nos torna tiranos. Ela não possui a verdade de
que tanto se buscou para a salvação das nossas vidas, para a libertação de nossas
almas.
Mas há ainda outro ponto a considerar sobre essa instituição tão bem quista:
a própria concepção que existe sobre o que é a literatura. Quando se coloca essa
questão, muitos não responderão como alguém, do hoje, voltando-se a um passado
estranho e exterior, mas sim, como se a pergunta - o que é literatura - tivesse uma
origem anterior à própria; uma origem secreta e única. Para Foucault,
25

A “literatura” e a “política” são categorias recentes que só podem ser


aplicadas à cultura medieval, ou mesmo à cultura clássica, por uma
hipótese retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de
semelhanças semânticas; mas nem a literatura, nem a política, nem
tampouco a filosofia e as ciências articulavam o campo do discurso
nos séculos XVII ou XVIII como o articularam no século XIX. De
qualquer maneira, esses recortes – quer se trate dos que admitimos
ou dos que são contemporâneos dos discursos estudados – são
sempre, eles próprios, categorias reflexivas, princípios de
classificação, regras normativas, tipos institucionalizados: são, por
sua vez, fatos de discursos que merecem ser analisados ao lado dos
outros mas que não constituem seus caracteres intrínsecos
autóctones e universalmente reconhecíveis (2013, p. 27).

Sob essa perspectiva de Foucault, não podemos achar um fio condutor que
ligue todas as produções ditas, hoje, literatura, sem que, ao fazermos isso,
estejamos voltando nossos olhos-do-hoje ao passado, tentando, através do que
Foucault chamou de hipóteses retrospectivas, dizer, com nossas ideias, ideologias,
teorias, o que fazem certas obras serem literatura ou não. Parece impossível ligar
todas as obras e discussões.
Também nos parece que a literatura é uma categoria recente, um termo valor
que garante legitimidade pela sua condição de sê-la. Como vimos anteriormente,
existe um discurso muito forte de que sendo literatura, o texto possui um efeito de
verdade mais valioso que o da própria ciência (BARTHES, 2013, p. 19).
Assim, a pergunta do que é literatura para nós é irrelevante, já que não
buscamos classificar e categorizar quais obras podem ser nomeadas de literatura.
Associamo-nos a Foucault quando em seus escritos Linguagem e Literatura, vai
criticar quando colocam a questão - o que é literatura-, dizendo que os que fazem
essa pergunta, não se colocam numa posição a posteriori, por alguém que se
interroga dum passado exterior e estranho, mas sim como se a questão tivesse uma
origem secreta na própria literatura. E complementa:

[...] não estou convencido de que a literatura seja tão antiga assim.
Há milênios, algo que retrospectivamente, costumamos chamar de
literatura, existe com certeza. Mas é precisamente isso que penso
ser necessário questionar. Não é tão evidente que Dante, Cervantes
ou Eurípedes sejam literatura. Certamente, hoje fazem parte da
literatura, pertencem a ela, mas graças a uma relação que só a nós
diz respeito: fazem parte de nossa literatura, não da deles, pela
excelente razão que a literatura grega ou latina não existe. Em outras
palavras, se a relação da obra de Eurípedes com a nossa linguagem
é efetivamente literatura, sua relação com a linguagem grega
certamente não era (FOUCAULT, 2000, p. 139).
26

Com isso queremos enfatizar o modo particular como iremos lidar com os
livros de literatura estudados: serão tratados como categorias da nossa sociedade,
serão vistos de modo profano e material. Queremos analisar os discursos que
perpassam pelos livros de literatura sem nenhuma pena de estar infringindo uma
obra literária. Vamos olhar para a literatura como uma instituição; com os mesmos
olhares que Foucault olhou para as prisões, para o hospício, para a escola:
observando os jogos de poder, observando os discursos, observando quando essas
legitimam alguns discursos em detrimentos doutros.
A literatura é, para nós, um lugar de enunciação de discursos com a
singularidade do discurso estético, do belo. Nesse sentido, tem potência para que os
seus discursos penetrem forte e profundamente, que disputem com outros discursos
na constituição dos indivíduos sem ao menos percebermos o que realmente ela quer
dizer, com o que realmente ela joga, fazendo com que nossos sentidos sejam
treinados numa estética, que não estetiza sem sair do mundo que estamos, e
constrói nossos gostos e sentimentos, marcados por discursos que, revestidos duma
bela roupagem literária, nos contamina e nos produz.

2.2 Estudos recentes sobre literatura infantil associados ao discurso de


gênero e sexualidade

Ao nos propormos à realização dum trabalho/estudo científico/acadêmico,


precisamos nos situar no que já se foi escrito sobre o nosso objeto de investigação.
Interessa conhecer o debate mais recente sobre a temática em estudo, as formas de
abordagens e quais as lacunas. Esse caminho ajuda a nos localizarmos no contínuo
da rede discursiva sobre nosso objeto investigativo.
Nesse sentido, procuramos identificar dissertações, teses e artigos na área de
gênero e sexualidade enfocando nas temáticas de educação sexual, literatura e
literatura infantil. Objetivamos mapear os trabalhos acadêmicos na área a qual a
presente pesquisa se inscreve, observando as abordagens teóricas e metodológicas
utilizadas, o debate levantado, as contribuições e as lacunas apresentadas. Com
esse trabalho de levantamento da literatura na área é possível justificar o nosso
estudo do ponto de vista acadêmico e ao mesmo tempo observarmos os estudos
que estão em associação com este que desenvolvemos e apresentamos neste texto
dissertativo.
27

O nosso levantamento dos estudos recentes tem como referência trabalhos


produzidos a partir de 2000, década quando ocorrem mudanças curriculares que
institucionalizam a orientação sexual como parte integrante do currículo do Ensino
Fundamental de forma clara e objetiva. Para tal, utilizamos os seguintes descritores:
Gênero e Sexualidade; Literatura; Educação Sexual; Livro infantil; Literatura Infantil;
Livro Infanto-juvenil; Literatura Infanto-Juvenil.
Os acervos de referência para levantamento de trabalhos acadêmicos foram:
Banco de Teses e Dissertações da Capes; Portal de Periódicos da Scientific
Electronic Library Online (Scielo); Portal de Periódicos, Teses e Dissertações do
Instituto de Estudos de Gênero; Portal da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (Anped) – Revista Brasileira de Educação; Portal de
periódicos da Capes.
Estabelecemos como critério para fazer parte do corpora desse levantamento:
textos associados à área de gênero e sexualidade e às subáreas “Educação Sexual”
e/ou “Literatura” e/ou “Livro Infantil” e/ou “Literatura Infantil” e/ou “Livro Infanto-
Juvenil” e/ou “Literatura Infanto-juvenil”; ser uma Tese, Dissertação ou Artigo
publicado em alguma revista brasileira; ter sido produzida depois da década de 1990
(o portal da Capes, quando a presente pesquisa foi realizada, apenas disponibilizava
teses e dissertações a partir do ano de 2005, por conta duma manutenção do
sistema) e ter afinidade com os objetivos da presente pesquisa.
Com esses critérios, foram encontrados os seguintes trabalhos que
integraram o corpora dessa pequena pesquisa:

Quadro 1 - Trabalhos com a temática de gênero e sexualidade afins ao projeto


de pesquisa (2000 a 2013)

Fonte Nível/Área Ano Instituição Título Autor


Capes Mestrado 2008 Universidade A construção do RAMOS,
Banco de Acadêmico Federal Do gênero e da Josiane
teses e em Paraná sexualidade na Becker de
Dissertações Educação literatura infantil. Oliveira
Capes Mestrado 2010 Centro De De Perrault aos novos HORTA,
Banco de Acadêmico Ensino contos de fada: Luciana
teses e em Letras Superior De reflexões sobre as Santos
Dissertações Juiz de Fora relações de gênero e
sexualidade.
Capes Mestrado 2009 Universidade Gênero e sexualidade TAVARES,
Banco de Acadêmico Federal Do na literatura infantil: Evelize
teses e em Paraná mapeando Cristina Cit
Dissertações Educação resistências.
28

Capes Mestrado 2008 Universidade Príncipes, princesas, VIDAL,


Banco de Acadêmico Federal Do sapos, bruxas e Fernanda
teses e em Rio Grande fadas: os novos Fornari
Dissertações Educação Do Sul contos de fadas
ensinando sobre
infâncias e relações
de gênero e
sexualidade na
contemporaneidade.
Capes Doutorado 2005 Universidade O bicho vai pegar! um FURLANI,
Banco de em Federal Do olhar pós- Jimena
teses e Educação Rio Grande estruturalista à
Dissertações Do Sul Educação Sexual a
partir de livros
paradidáticos infantis.
Capes Mestrado 2004 Universidade A EducaçãoSexual e COUTO,
Banco de Acadêmico Gama Filho a Literatura Maria Lucia
teses e em Paradidática para Medeiros
Dissertações Sexologia Alunos do Ensino do
Médio de Escolas
Particulares da
Cidade do Rio de
Janeiro.
Capes Doutorado 2008 Universidade Era uma vez um casal FACCO,
Banco de em Letras Do Estado diferente: a temática Lucia
teses e Do Rio De homossexual na
Dissertações Janeiro educação literária
infanto-juvenil.
Scielo Doutorado 2007 Professora Sexos, sexualidades FURLANI,
em da e gêneros: Jimena
Educação Universidade monstruosidades no
do Estado de currículo da Educação
Santa Sexual.
Catarina
Scielo Pro- 2012 Professora Gênero, sexualidade VIANNA,
Posições da Faculdade e políticas públicas de Cláudia
vol.23 no.2 de Educação educação: um diálogo
Campinas da com a produção
Universidade acadêmica.
de São Paulo
Instituto de Dissertação/ Não Não O sujeito poético do OLIVEIRA,
Estudos de área não infor informado desejo erótico: a Ana Paula
Gênero informada ma- poesia de Gilka Costa de
do Machado sob a ótica
de uma leitura
estética e política
feminista.
Instituto de Artigo 2002 Revista A mulher na literatura SCHOLZE,
Estudos de Científico Gênero V. 3, Gênero e Lia
Gênero N.1, p. 27-33 representação.

Instituto de Artigo 2010 Revista A Educação feminina CUNHA,


Estudos de Científico Gênero V. do século XIX: entre a Washington
Gênero 11, N.1. escola e a literatura. Dener dos
29

Santos;
Silva,
Rosemaria
J. Vieira
Portal de Artigo 2011 Revista Era uma vez uma XAVIER
periódicos Científico Estudos princesa e um Filha,
da Capes Feministas príncipe...: Constantina
V.19(2), p. representações de
591(13). gênero nas narrativas
de crianças.

Com relação à Anped pesquisamos apenas em sua revista disponibilizada em


seu site, buscando pelo grande tema “gênero” e “sexualidade”, apenas “sexualidade”
e, apenas “sexual”. Encontramos sete artigos no total; nenhum deles tocava no
assunto do presente trabalho. É interessante analisarmos que, apesar de haver uma
grande produção de teses e dissertações com a temática de gênero e sexualidade –
constatadas no site da CAPES –, existem, apenas, sete artigos publicados na revista
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.
No portal da Scielo, foi encontrado um total de 236 trabalhos com os
descritores “Gênero e Sexualidade” presentes nos resumos e/ou títulos dos artigos
científicos 3 . Quando adicionamos os descritores “literatura infantil”, “livro infantil”,
“livro infanto-juvenil” e “literatura infanto-juvenil” não foi encontrado nenhum artigo.
Com a adição do descritor “literatura” foram encontrados 7 artigos, mas nenhum
deles era afim com a temática do presente trabalho.
Quando adicionado o descritor “Educação Sexual”, achamos um total de 17
artigos, apenas um era afim com a temática deste trabalho: “Gênero, sexualidade e
políticas públicas de educação: um diálogo com a produção acadêmica”, que possui
por objetivo trazer um levantamento das produções acadêmicas sobre a introdução
do gênero nas políticas públicas de educação no Brasil entre 1990 e 2009.
No portal do Instituto dos Estudos de Gênero foi encontrado um total de 62
teses e dissertações cadastradas. Destes estudos apenas dois trabalhos possuíam
uma temática tangencial ao tema do nosso trabalho: O sujeito poético do desejo
erótico: a poesia de Gilka Machado sob a ótica de uma leitura estética e política
feminista e Verdades e pedagogias na educação sexual em uma escola. O primeiro

3
Vale ressaltar que não foi nosso objetivo realizar uma investigação minuciosa sobre os trabalhos
com a temática geral “gênero e sexualidade”. Dessa forma, não lemos os resumos dos 236
trabalhos e, sim, daqueles que trazem a temática da literatura associada às questões de gênero e
sexualidade.
30

faz uma análise dos textos de Gilka Machado observando os valores estéticos
feministas. Já o segundo trabalho realiza uma pesquisa etnográfica numa escola do
Rio de Janeiro onde investiga como são os tratamentos dados pela escola com
relação à educação sexual.
Não conseguimos ter acesso ao quantitativo de artigos cadastrados no portal
do Instituto dos Estudos de Gênero. Mas as revistas que fazem parte desse acervo
são: Revista Estudos Feministas; Cadernos Pagu; Caderno Espaço Feminino;
Revista Gênero; Labrys; Revista Ártemis; Revista Latino-Americana de Geografia e
Gênero; Revista Mátira; Sinergias; e algumas edições de revistas que publicam
números especiais voltados para a área de gênero e sexualidade. Quando
colocados os descritores “Literatura Infantil” ou “Literatura Infanto-juvenil” ou “Livro
infantil” ou “Livro Infanto-juvenil”, não foi encontrado nenhum artigo. Quando
colocado o descritor “Educação Sexual”, foi encontrado apenas um único artigo de
Helena Altmann: “Educação sexual e primeira relação sexual: entre expectativas e
prescrições”, que teve por objetivo realizar uma pesquisa etnográfica com algumas
meninas duma escola do Rio de Janeiro, questionando como as meninas idealizam
sua primeira relação sexual e como a escola lida e intervém sobre esse assunto.
Quando colocado o descritor “Literatura”, foram encontrados 30 artigos dos
quais os listados no quadro acima foram utilizados para compor o corpora desse
mapeamento. O artigo de Lia Scholze vai trabalhar dentro da perspectiva da Análise
Crítica do Discurso, tomando por base os pressupostos dos Estudos Culturais, e tem
por objetivo examinar as representações sobre a mulher em romances produzidos
por escritoras gaúchas contemporâneas. O texto de Cunha e Silva, “A Educação
feminina do século XIX: entre a escola e a literatura”, vai utilizar como fonte os textos
clássicos da literatura nacional e analisar seu papel na formação da mulher,
considerada ideal, no século XIX. Esses foram os artigos encontrados de maior
relevância para a nossa pesquisa.
No portal de periódicos da Capes foram encontrados 259 trabalhos com o
grande tema gênero e sexualidade. Com a adição dos descritores “livro infantil”,
“literatura infantil”, “livro infanto-juvenil”, “literatura infanto-juvenil” foi encontrado
apenas um artigo de interesse da pesquisa: “Era uma vez uma princesa e um
príncipe...: representações de gênero nas narrativas de crianças” que possui dois
eixos teórico-metodológicos: uma pesquisa bibliográfica, com coleta, seleção e
análise de livros infantis com temáticas da sexualidade, gênero e diversidade. E uma
31

pesquisa-ação com adolescentes buscando entender como as crianças constroem


representações de gênero a partir da descrição física e comportamental de
princesas e príncipes dos contos de fadas clássicos.
Os trabalhos mais relevantes no contexto de nossa investigação foram as
teses e dissertações da Capes,destacando a tese de Jimena Furlani, “O bicho vai
pegar! um olhar pós-estruturalista à Educação Sexual a partir de livros paradidáticos
infantis” que mais se aproxima do nosso objeto de estudo. Com o objetivo de voltar a
educação sexual dirigida às crianças, buscando problematizar as produções das
diferenças sexuais e de gênero, com um eixo teórico-metodológico apoiado nos
estudos culturais e nos estudos feministas, a autora seleciona duas coleções de
livros paradidáticos de educação sexual, para analisar o modo como problematiza as
representações sexuais e de gênero.
A dissertação de Josiane Becker de Oliveira Ramos, “A construção do gênero
e da sexualidade na literatura infantil”, também possui bastante afinidade com nosso
estudo, pretende analisar a literatura infantil selecionada pelo MEC para a escola
pública no ano de 2005, buscando entender como os/as docentes têm utilizado
inúmeros instrumentos para construir valores normativos sobre a sexualidade e os
gêneros, sendo a literatura uma das ferramentas utilizadas. Para isso ela tenta
analisar como a literatura infantil – para ela um instrumento de veiculador da cultura
– objetiva o sujeito infantil, normalizando e refletindo comportamentos da nossa
sociedade.
Outro importante trabalho para compor nosso estado do conhecimento é a
dissertação de Evelize Cristina Cit Tavares, “Gênero e sexualidade na literatura
infantil: mapeando resistências”, com bases teórico-metodológicas nos estudos
culturais e feministas, a autora se apropria do conceito de resistência de Foucault e
analisa os livros infantis que rompem com representações hegemônicas e
dicotômicas do masculino e do feminino.
O último importante trabalho que integra o nosso estudo é o de Fernanda
Fornari Vidal, “Príncipes, princesas, sapos, bruxas e fadas: os novos contos de
fadas ensinando sobre infâncias e relações de gênero e sexualidade na
contemporaneidade” que se propõe a analisar como os novos contos de fadas
constroem as representações de infâncias e de relações de gênero e sexualidade,
presentes nestes artefatos da nossa cultura. A metodologia utilizada é a da
interpretação textual.
32

De um modo geral percebemos que a maioria dos trabalhos sobre o discurso


de gênero e sexualidade em materiais lúdicos (podendo englobar tanto a literatura
infantil, como o livro paradidático ou “contos de fadas”) possui um eixo teórico-
metodológico baseado nos Estudos Culturais, nos estudosfeministas, nos estudos
pós-estruturalistas, nos estudos de Foucault. Vários deles se utilizam da análise do
discurso como método.
No contexto dessa produção o nosso estudo ao eleger o discurso de gênero e
sexualidade na literatura infantil é uma forma de entrarmos na rede discursiva para
disputar modos de dizer e de problematizar os dispositivos pedagógicos ou
pedagogizados que tratam das temáticas de gênero e sexualidade a exemplo da
literatura infantil e assim contribuir para o debate sobre as questões de gênero,
sexualidade no campo da educação. Entendemos que se trata de um terreno cheio
de possibilidades de discussões interessantes que podem ser benéficas à formação
de professores e ao debate acadêmico. Por outro lado, é também importante pelo
debate social que a temática da sexualidade humana tem instigado no século atual,
haja vista as lutas culturais pelos movimentos sociais de afirmação sexual.
Assim, esse trabalho se inscreve nessa ideia: queremos pôr em debate os
discursos de gênero e sexualidade na educação vendo a literatura e procurando
entender como a sexualidade atua como um locus privilegiado para a “formação
humana”; queremos discutir como se constitui esse discurso de gênero e
sexualidade após as mudanças curriculares, perpassado pela instituição literária que
tem como pretensão de, através dela, ensinar da melhor forma possível as questões
de gênero e sexualidade.
33

3 MODELO ANALÍTICO – ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

O nosso objetivo de pesquisa, o discurso de gênero e sexualidade na


literatura infantil no contexto da produção da Coleção Explorando o Ensino, do modo
como apresentamos neste texto dissertativo foi formulado por uma experiência
empírica e principalmente tendo como suporte um escopo teórico específico, que
possui características próprias, que olha para o mundo com olhos singulares –
fazendo o mundo ser diverso –, que pergunta de modo a considerar possibilidades
outras.
Para perguntarmos o que perguntamos, precisamos duma concepção de
relações de poder, de discurso, de gênero, de sexualidade e de literatura
singularesfazendo com que o caminho investigativo seja tão característico quanto à
própria pergunta e teoria,ambos, nesse trabalho, próximos da perspectiva de análise
do discurso de Foucault.
Próximos porque não será uma análise arqueológica ou genealógica, a priori
– assim como não seguiremos, com todas as letras-teóricas, o que Foucault instituiu
de verdades apesar de sua não vontade da verdade.Voltaremos-nos, apenas, para
algumas categorias mais pertinentes à nossa problemática de pesquisa.
Utilizaremos Foucault como ele mesmo nos disse para usá-lo: “como uma bomba”,
fugaz, efêmera devendo ser tratada com muito cuidado. Torceremos Foucault à
nossa vontade – assim como ele torceu Nietzsche – e nos apropriaremos dele
quando for necessário, legitimando nossas análises, apenas quando precisarmos.
Distanciaremo-nos eventualmente dele, talvez por uma incapacidade, talvez por uma
teoria-própria, mas, provavelmente, ele estará sempre murmurando em nossos
ouvidos suas verdades não verdadeiras volateisíssimas.
Com esse caminho escolhemos não diferenciar o capítulo de métodos do
teórico. Escolhemos deixar tudo junto, por acreditarmos ser impossível uma divisão
exata; por acreditarmos que um é consequência doutro. Partes indissociáveis.
Nesse sentido, tratamos na primeira seção o debate teórico no que se refere aos
discursos de gênero e sexualidade, apontando como ele foi se constituindo ao longo
do tempo e da história do movimento feminista ocidental e o debate teórico sobre
representação tendo como referente elementos do modo de pensar sobre esse
conceito nos enunciados de Silva (2000), Hall (2000) .
34

A segunda seção trata do modelo de análise e nela apresentamos algumas


categorias utilizadas por Foucault em seus estudos, como as regras de formação
discursiva, as regras de formação do enunciado e de formação do interdiscurso,
discurso, enunciado e da análise do discurso, para podermos situar o leitor em quais
concepções nos agarramos para a realização do nosso método.

3.1 Gênero e sexualidade: debate teórico

3.1.1 Os discursos feministas de gênero

Como vamos analisar o discurso de gênero e sexualidade, é imprescindível


uma revisão histórica desses discursos, tanto para o entendimento de como é
formado, como para realizarmos aproximações analíticas dos diversos discursos
existentes – e de sua constituição – sobre essa temática ao nosso objeto de
pesquisa.
A palavra gênero carrega em sua semântica significados que estão
intrinsicamente ligados ao movimento feminista e à sua história. Para entender o que
tal palavra quer propor – sim, essa é (talvez como todas) mais uma palavra-política
que, só de ser menciona, posiciona aquele que a profere – precisamos resgatar
quando o movimento feminista dá seus primeiros passos no ocidente.
Admite-se hoje, por aquelas que se dizem feministas e voltam seu olhar ao
passado, que o “sufragismo” foi a “primeira onda” do movimento e pretendia
estender o direito de voto às mulheres. Tal movimento era ainda ligado aos
interesses duma classe média branca que incluía, às vezes, reivindicações relativas
à organização familiar, oportunidades de estudo etc.
Na referida “segunda onda” do movimento feminista, começam a surgir
teorias propriamente ditas sobre a mulher: além das preocupações sociais e
políticas, passa-se a teorizar e a construir uma “verdade” feminina. As militantes
feministas passam a integrar a academia e a produzir um estudo da mulher com a
intenção de visibilizar as mulheres que outrora foram apagadas e não reconhecidas
como sujeitos da história, da sociedade, da ciência - sujeitos da verdade. Dessa
forma, esses estudos queriam construir verdades femininas, distinguindo uma
história, uma literatura, uma psicologia da mulher. Para isso investigavam,
realizando denúncias apaixonadas, aspectos cotidianos da vida de mulheres, os
35

trabalhos atribuídos a elas, suas referências em literatura etc. Foram estudos


decididamente não neutros que, com muito calor, estudavam os sentimentos, a
sexualidade, o cotidiano: tinham um caráter extremamente político e questionador
(talvez característica até hoje permanente dos estudos feministas), dando
solavancos em conceitos – como a objetividade e a neutralidade – tão
convencionalmente atribuídos à ciência e à academia.
São consideradas diferentes ferramentas analíticas para a realização dos
diversos trabalhos feministas dessa época: desde aqueles que buscam as
teorizações de Marx,àqueles que se baseiam nos pressupostos da psicanálise.
Outras tentam buscar uma teoria própria – feminina - e há ainda outras que tentam
explicar as diferenças entre homens e mulheres pelas suas características
biológicas. Essas últimas, revestidas duma linguagem científica, criam argumentos
que justificam as desigualdades sociais através das ditas distinções biológicas e
sexuais que os homens e as mulheres possuem entre si.
Assim cria-se uma nova palavra – como são interessantes as palavras! – para
imbuir, ao debate das desigualdades entre homens e mulheres, o seu caráter
primordialmente social.Gênero em contraposição a Sexo. Weeks (2000, p. 38) nos
mostra que
(...) embora o corpo biológico seja o local da sexualidade,
estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a
sexualidade é mais do que simplesmente o corpo. De fato,
juntamente com Carole Vance (1984), estou sugerindo que o órgão
mais importante nos humanos é aquele que está entre as orelhas. A
sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias e
imaginações quanto com nosso corpo físico.

Valoriza-se o que é dito sobre as diferenças e não as diferenças em si – se é


que elas existem: observa-se o que foi socialmente construído sobre os sexos,
localizando-os histórico-socialmente. Recoloca-se o debate da diferença no campo
social, fazendo com que aqueles que falem sobre, localizem-se num momento
histórico, numa determinada sociedade, num determinado grupo étnico, religioso,
racial, de classe etc. Tira-se, assim, o caráter essencialista sobre os gêneros e os
coloca numa categoria de processo, de construção, de pluralidade.
Sabe-se que é nos estudos pós-estruturalistas, pós-modernos e pós-coloniais
que o feminismo vai encontrar grandes aliados teóricos, científicos e políticos para
articular o gênero como uma categoria analítica. Sob esses referentes vão ser
36

colocadas outras questões: que o gênero faz parte do sujeito; constitui as


instituições e práticas sociais ao mesmo tempo que elas constituem os gêneros e
“fabricam” os sujeitos. Para Louro (2012),

Busca-se compreender que a justiça, a igreja, as práticas educativas


ou de governo, a política etc. são atravessadas pelos gêneros: essas
instâncias, práticas ou espaços sociais são “generificados” –
produzem-se, ou “engendram-se”, a partir das relações de gênero
(mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também, das
relações de classe, étnicas etc.)

Assim vão sendo constituídas as identidades de gênero, sempre plurais,


múltiplas continuamente se construindo e transformando-se.
Outro conceito-chave a se considerar sobre os movimentos feministas da
atualidade é a superação das dicotomias e oposições binárias: dum lado a mulher
oprimida por um poder patriarcal, doutro o homem, perverso detentor do poder. Scott
(1995) em seu célebre artigo “Gênero: uma categoria útil para análise histórica” vai
nos mostrar que é preciso rejeitar as dicotomias e os binarismos, sugerindo uma
historicização e uma desconstrução autêntica dos termos da diferença sexual,
propondo, através duma teorização das práticas duma tentativa de reverter ou
deslocar funcionamentos, que o gênero seja tratado como uma categoria de análise.
Scott, em seu artigo, vai, ainda, propor uma definição de gênero em duas
partes interligadas, baseadas em duas proposições: gênero como um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos
e como uma forma primeira de significar as relações de poder.
É importante trazer também as reflexões de Rago (2012) sobre a
epistemologia feminista e qual o debate sobre essa temática no campo dos estudos
feministas. Diz a autora que para além de ter produzido uma forte crítica ao modo
dominante de produção do conhecimento científico propôs um modo alterativo de
produção de conhecimento. Observa que

[…]se consideramos que as mulheres trazem uma experiência


histórica e cultural diferenciada da masculina, ao menos até o
presente, uma experiência que várias já classificaram como das
margens, da construção miúda, da gestão do detalhe, que se
expressa na busca de uma nova linguagem, ou na produção de um
contradiscurso, é inegável que uma profunda mutação vem-se
processando também na produção do conhecimento científico.[…]
(RAGO, 2012, p. 23).
37

O que está posto pela autora é que nesse caminho sãoconstruídas várias
epistemologias feministas que fazem parte de uma ampla rede discursiva, no campo
do conhecimento, identificada como crítica cultural, teórica e epistemológica, das
quais fazem parte Psicanalise, Teoria Crítica Marxista, Hermenêutica,
Desconstrutivismo e Pós-Modernismo. Nessas perspectivas, o foco dominante, em
suas singularidades, é uma crítica a racionalidades que não dão conta de pensar a
diferença. Acrescenta que esse é um caminho potencialmente emancipador (RAGO,
2013, p. 24).
É dessa rede discursiva que se produzem estudos da mulher sob um enfoque
que considera a mulher como uma identidade “construída social e culturalmente no
jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos
discursos/saberes instituintes” (RAGO, 2012, p. 29).Segundo Rago (2012), foi nessa
rede discursiva e de forma mais concreta na visão de identidade que a categoria
gênero encontrou um terreno favorável para ser abrigada. Essa categoria não só
desnaturaliza as identidades sexuais como postula a dimensão relacional do
movimento constitutivo das diferenças sexuais. Nessa direção as questões da
sexualidade devem ser tratadas como um efeito de discursos.

3.1.2 Sexualidade e poder

Tentaremos agora trazer um breve apanhado dalgumas palavras-chave das


ideias e obras de Foucault que interessam ao nosso trabalho: sexualidade e poder.
Para Foucault, muito mais que uma mera “conduta”, a sexualidade – termo
que surge no século XIX – parece algo muito mais complexo: envolve toda uma rede
de saberes e conhecimentos apoiados por normas, sejam religiosas, jurídicas,
médicas ou pedagógicas, que normalizam as condutas sexuais, os desejos, os
prazeres e os sentimentos dos indivíduos. Diz ele, sobre a sexualidade:

Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que


o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que
o saber o tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome
que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade
subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da
superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos
prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o
reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos
outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder
(FOUCAULT, 2012a, p. 116-117)
38

Seguimos Foucault ao dizer da sexualidade como dispositivo


4
histórico constituída dum conjunto de práticas – discursivas ou não – e de relações
de poder marcados por uma dada época, numa determinada cultura.
Foucault em seus estudos vai mostrar que a partir do século XVII constrói-se
uma produção de discursos sobre o sexo - possibilitada pela técnica da confissão -
que o constitui como um objeto de verdade; passam-se a produzir discursos
verdadeiros sobre ele e, a partir dessa produção, surge algo como a sexualidade:
um tipo de verdade do sexo, dos seus prazeres. E nesse jogo de produção de
verdades, constrói-se um saber específico e este, por sua vez, constrói sujeitos.
Por volta do século XVIII, o sexo ganha uma dimensão política, econômica e
técnica, sob uma forma de análise, contabilidade, classificação e especificação,
através de pesquisas quantitativas e casuais (FOUCAULT, 2012a, p. 30). O sexo
passa a assumir uma dimensão não apenas moral, mas, também, racional. Vê-se a
necessidade de se falar do sexo, sem simplesmente condená-lo ou tolerá-lo, mas
gerindo-o, regulando-o, administrando-o a um padrão ótimo. O sexo vira uma
questão do poder público, deve ser regulado, através da razão, para o bem comum.
Observamos que Foucault aponta para uma racionalização, em detrimento de
apenas uma moralização: ele observa um acontecimento discursivo; uma
descontinuidade que surge num período determinado: anteriormente o sexo, na
Europa Ocidental, era lidado sobretudo pela moral; por um discurso
predominantemente religioso em que se ditavam as regras de conduta e dos bons
costumes, mas, após toda uma série de acontecimentos discursivos alavancados
após o fim da Idade Média e com o surgimento das ciências humanas na
modernidade, Foucault observa que o sexo é falado de forma diferente e identifica
toda uma série de discursos e subjetividades, a partir desse período, que apontam
para um modo racional e único de lidar com ele.
Razão e Moral elementos constituintes do dispositivo da sexualidade na
análise de Foucault. Parece haver um duplo, não-dicotômico, em que se ancora uma
diversa produção discursiva sobre o sexo após a modernidade; toda uma rede de
discursos – sejam eles do campo econômico, pedagógico, médico, psicanalítico –
aparentam caminhar numa direção racional e moral; na modernidade pretende-se

4
Para Foucault, entendido como um conjunto heterogêneo; uma rede em que os discursos, as
instituições, as decisões regulamentares, leis, enunciados científicos, proposições filosóficas etc se
relacionam.
39

dar um efeito de impessoalidade ao se falar de sexo; ele vira objeto da Ciência:


através duma assimilação de dispositivos da confissão religiosa, cria-se todo um
aparato de captação de verdade, moldando diversos saberes e institucionalizando
diversas verdades. Agora ele não é mais do campo, apenas, da sensação e do
prazer; da lei ou da interdição; mas também da verdade e falsidade: o sexo agora é
objeto da verdade; da discursividade científica; Sexualidade: uma espécie de
verdadeiro do sexo e de seus prazeres.
Com efeito, no século XIX, uma nova tecnologia – não mais apoiada pela
instituição eclesiástica – se desenvolve apoiada por três eixos: o da pedagogia, da
medicina e da demografia. O sexo passa a ser negócio de estado; os corpos
precisam estar saudáveis para a manutenção dum estado rentável; precisam ser
administrados, fazê-los disciplinados, possibilita-se, assim, o exercício do
micropoder. E regulando a população, a sexualidade é a chave que dá acesso à vida
da espécie e do corpo, permitindo o exercício do biopoder.
Analisando essa singular forma de produção de verdade que é a sexualidade,
Foucault trabalha o conceito de relações de poder que ele acredita ser o melhor
modo de se entender a formação dos discursos verdadeiros. Esse poder não é
firmado por leis, direitos e castigos, é um poder fino, exercido por uma técnica, por
uma normalização, por um controle. Todas as relações para Foucault se
estabelecem através duma relação de poder e este assume uma característica
extremamente singular:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a


multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de
lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os
apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e
contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se
originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei nas hegemonias sociais
(2012a, p. 102-103).

Indo de encontro a uma concepção marxista de poder, onde existe um


binarismo opositivo de lugares, instituições e sujeitos detentores de poderes e outros
não, Foucault vai apresentar uma concepção que considera não existir um ponto
central, onde se irradia todo o poder da sociedade, ele é disforme, móvel e instável.
O poder será Onipresente para Foucault, não por ter uma invencível unidade, mas
40

por ele estar em todos os lugares, irradiando de todos os pontos, produzindo-se a


cada instante. Não é uma instituição, nem uma estrutura, é uma estratégia duma
dada sociedade.
E assim, para Foucault, o poder é múltiplo, por se encontrar em diversos
lugares irradiando de diversos pontos, é disforme porque não se exerce duma única
forma, mas de modos variados; sempre se modificando e adaptando-se aos diversos
contextos; de forma desigual. O poder também vem de baixo, pois não há
binarismos, nem um princípio que rege as relações de poder; ou uma dualidade que
que repercuta do alto para o baixo as estratégias de poder. E onde há poder há
resistência, e esta não está numa situação exterior ao poder, pois para a existência
dele é necessário que haja forças múltiplas de combate, numa rede de poderes: com
múltiplos nós, todos eles ligados e interconectados.
Foucault evidencia em seus estudos sobre a sexualidade que os discursos
sobre sexo, ao contrário da hipótese dominante, não sofreram uma repressão no
sentido de uma censura. Para ele, os discursos sobre sexo foram multiplicados
absurdamente, ou seja, a ideia de que houve apenas uma censura e repressão ao
se falar do sexo na modernidade é equivocada: nela criaram-se diversos
mecanismos, verdades e saberes.
Talvez tenha existido um filtro vocabular que especificava o como se falar;
toda uma retórica, cheia de cuidados e metáforas; regras de decência, uma polícia
de enunciados: um quando e como se podia dizer sobre; não era de qualquer modo
que se podia falar, nem ouvir: existiam, talvez, lugares e sujeitos que podiam dizer
em determinados contextos discursivos. Tudo isso talvez fosse um modo; um
dispositivo secundário de torná-lo moralmente aceito e tecnicamente útil.
Assim, não era o tempo inteiro silenciado. Nos espaços permitidos o sexo
nunca foi tão falado: nunca antes se escutou e se disse tanto sobre o sexo. Houve
uma verdadeira explosão discursiva, em que se buscavam as verdades
condicionantes e condicionadas pelas práticas sexuais dos indivíduos. Não houve
uma condenação que fazia o sexo permanecer num lugar obscuro; muito pelo
contrário, colocaram-no em evidência e o condenaram, na realidade, a ser falado
sempre – incessantemente –, mas valorizando-o, apesar de tudo, como um segredo.
É importante o reconhecimento de que tais estudos potencializaram e
potenciam diversos estudos sobre sexo, sobre gênero e sexualidade. O próprio
acervo de Foucault sobre a temática indicou a necessidade de desenvolvimento de
41

outros estudos que têm fundamental importância para o debate atual. Temas como
Socialização das condutas de procriação e a Psiquiatrização do prazer perverso,
realizadas em lugares e tempos diferentes, levaram a resultados diversos.

3.1.3 Representação

A representação teria a ver, fundamentalmente, com a relação entre, dum


lado, o “real” e a “realidade” e, doutro, com as formas pelas quais estas se tornam
presentes para nós – re-presentados. Conhecer e representar seriam então
processos de difícil divisão, já que a representação seria uma espécie de matéria
palpável do conhecer (SILVA, 2010).
O representar e conhecer está imbricado, por sua vez, numa complexa rede
de relações de poder, já que existem certas pessoas que são autorizadas a
representar o mundo e outras a conhecer.
Existiria, nessa perspectiva, um tipo de regime das representações
dominantes; sistemas de representações: construções sociais e discursivas de
grupos sociais que estão autorizados a conduzir o processo de representar; um tipo
de relação social que manipula; direciona o olhar para apelos específicos de
espaços e corpos em benefício dum ponto de vista.
A representação seria também um sistema de significação: longe dum modelo
estruturalista que estabelece uma não-relação entre significante e significado -
arbitrária -, que o significante nada teria a ver com seu significado.Num pensamento
pós-estruturalista, haveria a necessidade de estabelecer uma cadeia de
diferenciação; teríamos que pensar numa rede em que um significado que só teria
uma “definição” através duma relação com outros significados; num processo infinito
de diferenciação que não deixa, nunca, o domínio do significante. Seria sempre
precária a tentativa de estabelecer uma relação entre esses dois elementos da
significação,sendo inteiramente dependentes um doutro. Finalmente, a
representação adquiriria apenas sentido dentro duma inserção numa cadeia
diferencial de significantes.
A análise cultural, assim como Foucault, não tem uma preocupação
fenomenológica (que seria uma espécie de busca pela essência de certa categoria),
ou apenas estrutural (buscando as causas estruturais de outras categorias), mas sim
em buscar as formas pelas quais os objetos ou as categorias são construídos por
42

meio de sistemas de significação: seria um tipo de história das “verisdicções”.Em


sua aula sobre a bio-política, Foucault fala que

A meu ver, o que tem importância política atual é determinar que


regime de veridição foi instaurado num determinado momento, que
precisamente aquele a partir do qual podemos agora reconhecer, por
exemplo, que os médicos do século XIX disseram tantas tolices sobre
o sexo (...) Só tem importância a determinação do regime de veridição
que lhes permitiu dizer como verdadeiras e afirmar como verdadeiras
algumas coisas que, aliás, hoje sabemos talvez não o fossem assim
(FOUCAULT, 2008, p. 50).

Ele ainda complementa dizendo que não se trata duma história da verdade ou
do falso, mas sim a história da veridição; um tipo de história que tenta buscar como
os discursos se articulam, para proclamar que certas coisas são verdadeiras e
outras não.

Identidade, Diferença e Representação

A identidade,à primeira vista, poderia ser considerada simplesmente como


aquilo que se é: “Sou brasileiro”, “Sou negro”, “Sou branco”, “Sou homossexual” etc.
sendo assim interpretada como uma característica autônoma, autossuficiente.
Nessa mesma lógica, poderíamos dizer que a diferença seria como outra
entidade independente. Seria aquilo que o outro seria, algo que remeteria a algo por
si própria, tal como a identidade, simplesmente existiria.
Porém para que exista tanto uma categoria como a outra, é necessário que
façamos uma extensa cadeia de “negações” de expressões negativas de identidade,
de diferenças. Por trás da afirmação de “sou brasileiro”, teriam outras várias que
diriam “não sou chileno” ou “não sou russo” etc. Do mesmo modo seria construída a
diferença: através duma cadeia de afirmações sobre a identidade: “ela é chilena”
quer dizer que “ela não é brasileira”, ou seja, “ela não é o que eu sou”.
Queremos, com isso, estabelecer uma lógica diferente de que a identidade e
a diferença seriam categorias autônomas; seriam, em nossa perspectiva, categorias
inseparáveis; que só é possível dizer que se “é” através dum processo de dizer o
que não somos: a diferença.
43

Seriam mutualmente determinadas; numa visão mais radical poderíamos


dizer que, contrária à primeira perspectiva, a diferença seria construída em primeiro
lugar, construída num processo de diferenciação.
Pensando nessa visão de mundo, os diferentes grupos sociais precisariam
representar as dadas condições sociais que os fazem se reconhecer com uma tal
identidade: precisariam produzir tais condições sociais de alguma forma de
representação. Aquilo que um grupo tem em comum seria o resultado de símbolos,
imagens, memórias, narrativas e mitos que dão égides à unidade do grupo.
Na intersecção entre representação e identidade não há um caráter passivo
de nenhuma delas: a representação não é mero registro ou expressão de
significados existentes, nem o efeito de estruturas exteriores, os diferentes grupos
sociais utilizam a representação para fundar a sua identidade e a dos outros grupos.
É uma luta incessante onde se impõem e criam-se significados através de relações
de poder. Este define a forma como se processa a representação, enquanto ela tem
efeitos de produzir identidades culturais e sociais que, como num círculo, reforçam
as relações de poder.
Entendemos, nessa perspectiva, que a representação, a identidade e a
relação de poder estão imbricadas: o poder diz quem pode representar, e essas
construções de significado formam identidades e diferenças.

Representação e Estereótipo

Tal como a representação, o estereótipo seria, em geral, uma forma de


conhecimento; uma fórmula simplificada pelas quais certos grupos sociais seriam
descritos. Um tipo de dispositivo de economia semiótica que reduz os signos a um
mínimo necessário para lidar com o outro sem as nuances e sutilezas; uma tentativa
de represar o excesso de significação,uma espécie de representação que se
condensa através de simplificação, generalizações e homogeneização (SILVA,
2010).
Porém ele não pode ser descrito como uma mera disjunção entre o real e a
imagem; que projeta de forma imprecisa ou distorcida; ele está envolto num
investimento de sofisticada semiótica de transformação e deslocamentos que lida
com um núcleo que podemos reconhecer o “real”, dando, assim, um efeito de
realidade.
44

3.2 Análise do discurso

3.2.1 Discurso e interdiscurso

“O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém.”5

O esquema tradicional da linguagem não consegue dar conta do que é o


discurso: se a pensarmos num esquema simples de emissor e receptor de
mensagens, não conseguiremos abarcar a dimensão discursiva. Numa concepção
não tradicional, a linguagem é considerada muito além da mera transmissão de
informações. Nela serão constituídos sujeitos e observadas suas marcas de
condições históricas e materiais, nela se produzem – e serão propagadas –
ideologias, observadas subjetivações e construções de realidades.
O discurso não será, apenas, um conjunto de signos; um significante que
remete a um significado, elementos da língua que sugerem conteúdos ou
representações. Para Foucault, ele será uma prática. Práticas. Que falam, formam e
produzem o objeto de que falam. É importante mencionarmos que não se exclui o
signo: o discurso é feito deles, porém vai além: é mais do que se utilizar dos signos
para designar coisas. O ser da linguagem estará, para os analistas do discurso, no
enunciado e não, apenas, no jogo de significante-significado.
Numa bela metáfora – talvez a melhor forma de explicar algo tão difícil de se
explicar –, Foucault tenta sugerir o que é o discurso:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade


nascendo diante dos nossos próprios olhos; e, quando tudo pode ser
dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo
manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à
exterioridade silenciosa da consciência de si (2012b, p. 46).

Mas essa concepção vai além.Diversos autores terão olhares diferentes


voltados ao que é o discurso e ao que perguntam a ele. Uns procuram as
continuidades, buscam esclarecer as profundezas escuras do discurso, outros não.
Foucault busca algo diverso. Procura a dispersão, o acontecimento, a raridade dum

5
Provérbio retomado por Shakespeare em seu livro O Mercador de Veneza, ato I, cena III
45

enunciado, o que faz um determinado acontecimento discursivo ser singular a


outros.
Machado vai nos mostrar que o discurso em Foucault assume um caráter
diferenciado:

[...] O discurso, considerado como materialidade ou como prática, é


um conjunto de enunciados, isto é, uma pura dispersão – no sentido
em que não tem princípio de unidade, dado por um objeto, um estilo,
uma arquitetura conceitual, um tema -, mas a respeito da qual a
arqueologia estabelece uma regularidade, ou um sistema de
relações, que funciona como sua lei de dispersão (MACHADO, 2000,
p. 118).

Assim, o discurso assume um caráter único. Único porém regular: podemos


ver regularidades nas formações discursivas; nos enunciados,mas devendo tratá-los
como algo raro e singular: um acontecimento.
O trabalho da análise do discurso para Foucault, dessa forma, não será uma
investigação da origem secreta dos discursos, pois nunca saberemos qual é o ponto
em que todos eles confluem: onde está a verdade. Não há um “já-dito” ao qual todos
eles repousam, mas sim um “jamais-dito”. Para Foucault (2013, p. 30), o discurso é
“uma escrita que não é senão o vazio do próprio rastro” em que não existe um
corpo, mas sim; uma brisa; “um sopro”, um murmúrio que passa por nossa nuca e
ouvidos, fazendo-nos soprar doutro modo completamente diferente. Singular.
Criando correntes d’ar que o tempo inteiro se misturam e murmuram, (e) murmuram
num ciclo que nem ao menos sabemos se realmente existe.
Não há uma infinita continuidade e muito menos uma presença-ausente nos
discursos, mas sim uma instância; uma irrupção. O discurso é descontínuo, cheio de
rupturas e limites; transformação incessante. O que importa são suas regras. Regras
da descontinuidade, regras de transformação; regras que não tiram do discurso seu
caráter singular e único.
Já falamos do discurso e da análise do discurso, falta – para cumprimos a
promessa da seção – dissertarmos sobre o enunciado. Diferente-além dos atos de
fala, da frase e da proposição, o enunciado parece algo menos “pesado”, menos
cheio de delimitações e restrições, parece possuir uma característica própria difícil
de ser descrito exatamente. Foucault vai nos dizer que
46

[...] encontramos enunciados sem estrutura proposicional legítima;


encontramos enunciados onde não se pode reconhecer nenhuma
frase; encontramos mais enunciados do que os speech acts que
podemos isolar, como se o enunciado fosse mais tênue, menos
carregado de determinações, menos fortemente estruturado, mais
onipresente, também, que todas essas figuras; como se seus
caracteres fossem em número menor e menos difíceis de serem
reunidos; mas como se, por isso mesmo, ele recusasse toda
possibilidade de descrição (FOUCAULT, 2013, p. 101).

O enunciado aparenta ser sempre um acontecimento. Nem a língua, nem o


sentido podem esgotá-lo inteiramente e apesar de estar apoiado num conjunto de
signos, o que importa é a função que exerce sob quatro elementos básicos: o
referente, o sujeito, o campo associado e a existência material.
O referente remete às condições de aparecimento dum dado enunciado: sua
diferenciação e desaparecimento; a referência a algo que indicamos. O sujeito,
diferente do autor – Foucault tem uma definição particular do que é o autor,
atribuindo-lhe o termo “função autor” –, é uma “função vazia”, a qual diferentes
sujeitos podem vir tomar posição. Com o campo enunciativo pressupõe-se que
nenhum enunciado é livre, neutro ou independente; que os enunciados
desempenham influências mutuas, ora apoiando-se, ora distinguindo-se. Por último,
a existência material dá ao enunciado o caráter de circunstância; a sua forma
concreta de existência: quais são o tempo e o espaço que dão à possibilidade desse
enunciado ser exatamente o que ele é.
Foucault em sua Arqueologia do saber vai nos mostrar que os enunciados
são formados não necessariamente por frases, proposições ou atos de fala: não
existe uma estrutura fechada na língua que contém os enunciados; eles podem ser
gráficos, uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades, imagens etc.
O discurso em Foucault está relacionado também a uma rede discursiva, é o
interdiscurso. Foucault ao tratar do livro como um objeto analisável observa que não
se pode ver as margens de um livro como nítidas nem rigorosamente determinadas,
pois, em sua composição, título, primeiras linhas, ponto final, sua configuração
interna e a forma que lhe dá autonomia, “ele está preso em um sistema de
remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede”
(FOUCAULT, 2013, p. 26). Segue Foucault sobre essa questão:

[…] E esse jogo de remissões não é homólogo, conforme se refira a


um tratado de matemática, a um comentário de textos, a uma
47

narração histórica, a um episódio em um ciclo romanesco; em


qualquer um dos casos, a unidade do livro, mesmo entendida como
feixe de relações, não pode ser considerada como idêntica. Por mais
que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão; por
mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra:
sua unidade é variável e relativa. Assim que a questionamos, ela
perde sua evidência; não se indica a si mesma, só se constrói a
partir de um campo complexo de discursos (2013, p. 23).

Foi com inspiração nesse modo de problematizar o discurso que organizamos


a análise que apresentamos neste texto de dissertação. Os textos e as imagens dos
textos de literatura analisados são tratados como enunciados problematizados no
contexto dos discursos de gênero e de sexualidade.
Da gramática utilizada por Foucault elegemos alguns conceitos que nos
ajudaram a operar na análise. Dois blocos de análise foram organizados: o Cenário
Discursivo; a Rede discursiva.
Para o primeiro bloco, utilizamos as noções de acontecimento discursivo a
função autor (perguntando quem exerce qual função no discurso? quais são os
lugares institucionais dos sujeitos que enunciam? quais são as posições estratégicas
de poder que tomam para si e qual o lugar na sociedade que falam?). De forma mais
objetiva consideramos: Status de quem fala: quem pode, por regramento, tradição,
definição jurídica ou aceitação espontânea pronunciar determinados enunciados;
Lugar institucional: os âmbitos institucionais eu circundam os falantes. De onde eles
obtém o discurso, onde está sua origem legitima; Posição do sujeito: situação que
lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos.
Posições que pode ocupar na rede de informações (oral ou escrita) exercida.
No segundo bloco trabalhamos na análise da rede discursiva vista como o
campo associado. Nesse aspecto, damos visibilidade a como os enunciados
interagem uns com outros, já que nenhum deles se forma isoladamente, sem a
influência doutros: analisamos quais são os enunciados e os papéis que
desempenham na propagação do discurso de gênero e sexualidade presente nos
corporaanalisado. Ainda nesse bloco enfatizamos na análise a representação de
gênero e sexualidade com foco na posição dos sujeitos de gênero e sexualidade.
Para dar conta desse aspecto as reflexões no contexto da análise cultural foram
fundamentais.
É importante também mencionarmos que as noções escolhidas não
(de)limitam o nosso trabalho. Não seremos rigorosos em “seguir” o nosso próprio
48

método. Foucault em seu livro “História da sexualidade: a vontade de saber”, na


parte seu método, descreve algumas regras que ele prefere chamar, não dum
“imperativo metodológico”, mas sim dalgumas “prescrições de prudência”. E é nessa
prudente imprudência que nos colocaremos: seguiremos um método maleável, não
estaremos sujeitos a um método, mas sim a uma pergunta que nos inquieta.

3.2.2 Análise cultural

Segundo Silva (2010, p. 60), da perspectiva da análise cultural, a visão e a


representação, em conexão com o poder, se combinam para produzir a alteridade e
a identidade. Para ele a representação seria diretamente ligada a um regime
escópico.
A visão estaria no entremeio da representação e do representável: o olhar
esquadrinha o campo das coisas visíveis e o que retorna é a representação; o olhar
seria um mediador; que não necessariamente estabelece que a representação é
constituída apenas pela presença das coisas visíveis; ele não tira o caráter
indeterminado do representar.
O que retornaria, após perscrutado o olhar, não seriam as coisas visíveis.
Pois a observação nunca se dá a olho nu: entre ela e as outras coisas se interpõe a
linguagem: no meio do caminho, quando se joga o olhar e quando a imagem volta
para ser representada, a linguagem se atravessa para dar um caráter diferenciado
ao que se vê e se representa.
Do mesmo modo que há uma ligação entre o representar e o poder, existe,
também, uma ligação entre a visão e o poder: para Silva (2010), é na visão que se
operam muitas das realizações do poder: ele direciona o olhar.
Nessa perspectiva, seria, então, na representação que o poder do olhar (e o
olhar do poder) se materializa; e o visível se torna dizível. É na representação que a
visibilidade entra no domínio da significação.
Silva (2010) recorre aDerrida para dizer que, o significado só se dá através
duma relação de dependência com os significantes: só iremos conseguir distinguir
os significados através duma análise dos vários significantes que estão numa
cadeia. Com isso, Derrida dá alguma base para a representação social utilizada nas
análises culturais: são instáveis, indeterminadas e jamais fixas; características da
própria significação e representação. Não existe independência do significado do
49

significante, e o significado não é determinado por apenas um único significante,


mas por toda uma cadeia infinita que não deixa nunca este domínio. Silva vai
exemplificar mostrando que as representações que se faz do negro (como grupo
“racial”) são inteiramente dependentes, para fazerem “sentido”, duma posição que
ocupa numa cadeia entre significantes diferentes, que inclui, entre vários outros, o
significante “branco” (ou seja, a representação do “branco”) (SILVA, 2010, p. 41).
Dessa forma vemos que a representação possui um caráter indeterminado, dada
sua dependência de uma cadeia de diferença.
Quadro 2 - Modelo analítico

ANÁLISE DO DISCURSO

CENÁRIO DISCURSIVO REDE INTERDISCURSIVA

ACONTECIMENTO DISCURSIVO
INTERDISCURSO

CAMPO ASSOCIADO DO DISCURSO

FUNÇÃO AUTOR

POSIÇÃO DO SUJEITO DE GÊNERO E SEXUALIDADE

ANÁLISE CULTURAL
50

3.2.3Os corpora de análise

Dado os nossos objetos, objetivos e teorização precisamos voltar nosso olhar


a um corpora (in) específico. Dessa forma, há alguns pontos a considerar. Primeiro
que não tratamos de um corpora documental. A análise trata os documentos como
monumentos no sentido de que são discursos. Não achamos que os materiais são
detentores da verdade; que neles se diz o que de fato é a realidade: que eles falam
por si. Entendemos que é necessário um desmembramento do documento,
transformá-lo em monumento, ou seja, num material que está perpassado o tempo
inteiro de discursos e poderes e que, segundo Le Goff (1994), mente. Com isso
queremos destacar o modo particular como trataremos os materiais analisados e,
não só isso, como, também, o próprio modo de seleção dos mesmos.
Dois conjuntos de textos são eleitos: documentos da política educacional
associados a textos da mídia (escritos e imagens) e livros de literatura infantil.
Reafirmamos que o nosso objeto teórico é o discurso. Nesse sentido, os textos são
analisados como discursos. Não um texto de política educacional, mas um discurso
educacional. Não um livro infantil, ou um livro da teoria feminista, mas sim, um lugar
de enunciação de um discurso. Implicando, assim, que não há um único material, ou
uma única imagem a ser analisada. Diversos componentes da nossa sociedade
estão implicados com os enunciados advindos dos corpora da nossa pesquisa.
Podemos encontrar os enunciados dum determinado discurso em diferentes
instâncias e aspectos da nossa sociedade. Logo, não restringiremos totalmente o
nosso corpora, pois se se pretende estudar o discurso e os enunciados devemos
voltar nosso olhar para os diversos lugares donde eles podem surgir.
Para análise do primeiro bloco - cenário discursivo - foram os seguintes
documentos de política educacional: Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL,
2010a); Parâmetros Curriculares Nacionais volume 3 E 4 (1998);Coleção Explorando
o Ensino: Literatura (BRASIL, 2010), enunciados de sites de movimentos sociais, e o
Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014).
Para análise do segundo bloco - Rede interdiscursiva e posição do sujeito de
gênero e sexualidade - o corpus eleito foi o conjunto de livros de literatura infantil
dentre aqueles indicados pela Coleção Explorando o Ensino: Literatura.
51

Tem gente - Livro publicado em 2005, pela editora Scipione, na coleção


“Biblioteca marcha criança” conta a história de um menino que percebe que a
barriga da mãe está crescendo. No começo ele acha que é porque ela come
muito, depois descobre que não é só isso: ele irá ganhar um irmãozinho.

Para que serve uma barriga tão grande?- Publicado em 2003 pela editora
FTD, pela série “Arca de Noé”, conta a história dum bezerrinho e suas ânsias
pela chegada dum novo bebê na casa.

O Menino Nito- Livro publicado pela primeira vez em 2002, a edição


analisada será a de 2011 pela editora Pallas. Conta a história dum menino
que chorava muito e começa a conter todos os choros porque seu pai diz que
ele já é um rapazinho e que homens não choram.

Emmanuela - Livro publicado pela primeira vez em 2003, será analisada a


sexta edição, editado pela Saraiva, na coleção “Jabuti”. Conta a história duma
menina chamada “Emmanuela” que acaba de nascer, mas tem um problema
sério no coração, que precisa ser logo submetido a uma cirurgia.

Amor de ganso - Livro publicado em 1995, livro inserido na coleção “imagens


mágicas”; que conta, através de imagens (sem texto escrito), a história dum
ganso que se apaixona por uma galinha “mãe solteira” de três pintinhos.
52

4 O CENÁRIO DO DISCURSO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA LITERATURA


INFANTIL

Embora Foucault realize seus estudos num dado momento histórico, num
lugar específico: Europa, pelos séculos XVIII e XIX, XX partindo de acontecimentos
discursivos específicos observando descontinuidades que o discurso sobre o sexo
teve ao longo da modernidade nesse local específico, é fonte de inspiração para
nossa pesquisa no Brasil, com acontecimentos discursivos ocorridos a partir da
década de 1990,sobretudo relacionados ao campo da educação.
Escolhemos essa época e esse campo do saber não por acaso: parece haver
algum tipo de deslocamento – próximo e depois das mudanças ocorridas no
currículo da educação brasileira nos anos de 1990 com o novo Projeto curricular
Nacional – com relação aos modos de enunciação do discurso de gênero e
sexualidade que Foucault defendeu em sua tese.

4.1 Os temas transversais no currículo da educação básica e a questão da


saúde do corpo

O projeto curricular nacional sustentado pelas Diretrizes Curriculares


Nacionais e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais trataram especificamente da
educação nacional e da necessidade de inclusão de uma educação que contemple
as questões de gênero e de sexualidade. Nessas diretrizes define-se a necessidade
de mudanças na escola relativas às especificidades identitárias dos sujeitos da
educação. Problematiza-se o desenho da organização da escola por não ter
conseguido “responder às singularidades dos sujeitos que a compõem”. Ressaltam-
se nessa diretriz

[…] questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por


categorias que se entrelaçam na vida social – pobres, mulheres,
afrodescentendes, indígenas, pessoas com deficiência, as populações do
campo, os de diferentes orientações sexuais, os sujeitos albergados,
aqueles em situação de rua, em privação de liberdade (BRASIL, 2010a, p,
16).

No contexto da Coleção dos Parâmetros, um dos volumes trata dos Temas


Transversais criados para responder a “questões importantes, urgentes e presentes
sob várias formas, na vida cotidiana” (BRASIL, 1998, p. 15). Esses temas inclusos
53

no documento têm como justificativa o discurso da educação para cidadania, ou


seja, que para se dar conta de uma educação voltada para a construção da
cidadania precisa-se de um currículo perpassado por certos temas que traduzam as
“preocupações da sociedade brasileira hoje” (BRASIL, 1997). Temas que
possibilitem a compreensão da realidade social e dos direitos e responsabilidades
em relação à vida pessoal. Nesse discurso, as áreas convencionais, classicamente
ministradas pela escola (Matemática, Língua Portuguesa, História, Geografia etc.),
não são suficientes para existência duma educação com um eixo central voltado à
cidadania. Dessa forma, não se pretendem criar novas áreas, mas sim, incorporar às
já existentes tais temas que devem perpassar não só as disciplinas clássicas, mas
todo o ambiente e a prática pedagógica.
Os temas eleitos naquele período como temas transversais são cinco: Ética,
Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde e Orientação Sexual. É através do tema
Orientação Sexual que se pretende inserir as questões de gênero e sexualidade na
escola,considerando a sexualidade como

Algo inerente à vida e à saúde, que se expressa desde cedo no ser


humano. Engloba o papel social do homem e da mulher, o respeito
por si e pelo outro, as discriminações e os estereótipos atribuídos e
vivenciados em seus relacionamento, o avanço da AIDS e da
Gravidez indesejada na adolescência, entre outros, que são
problemas atuais e preocupantes (BRASIL, 1997, p. 107).

O documento visa promover reflexões e discussões em toda comunidade


escolar com o objetivo de “sistematizar a ação pedagógica no desenvolvimento do
aluno” (BRASIL, 1997, p. 107). Para tanto, traz conteúdos, critérios de avaliação,
orientações didáticas gerais, discorre sobre a postura do educador e da escola,
tentando trazer as referências necessárias para o melhor tratamento possível do
tema, que, segundo o documento, deve ser diferente de como é abordado no
ambiente familiar.
Várias são as justificativas trazidas pelo documento para a inserção desse
tema nos PCN6: primeiro que haveria uma demanda dos educadores por trabalhos
na escola relativos à sexualidade visto que, segundo o documento, houve um
aumento do índice de gravidez indesejada e dos riscos dos jovens se contaminarem

6
Parâmetros Curriculares Nacionais.
54

com doenças sexualmente transmissíveis, principalmente a AIDS 7 ; o documento


ressalva, através duma pesquisa realizada pelo IBGE, que 86% das pessoas
ouvidas seriam favoráveis à inclusão da Orientação Sexual nos currículos escolares.
O documento também coloca que a sexualidade está em todos os lugares –
TV, nas paredes da escola, nos professores, filmes novelas etc. – e cabe à escola
desenvolver um trabalho crítico, reflexivo e educativo. Fala-se da curiosidade
imanente das crianças com relação à sexualidade e que uma abordagem com
conteúdos formais – aquela que apenas discute a reprodução humana, fisiologia,
anatomia etc. – não seria suficiente para saciar tais curiosidades.
Ressalva-se então que a Orientação Sexual é um tema que é ligado à vida, à
saúde, ao prazer e ao bem-estar, integrando as diversas dimensões do ser humano;
dessa forma, um trabalho sistemático e sistematizado desse tema poderia promover
todas essas características da sexualidade, sendo a escola um lugar privilegiado –
devido ao tempo de permanência dos jovens, o convívio social, relacionamentos
amorosos etc. – para se trabalhar questões como prevenção da gravidez indesejada
e da AIDS. Finalmente afirma-se que a Orientação Sexual poderia contribuir para o
bem-estar das crianças e jovens na vivência de sua sexualidade atual e futura.
É importante perceber que deixa-se bem acertado o que são os temas
transversais e se define, em linhas gerais, quais são os objetivos, conteúdos etc.
Porém, não se deixa muito claro como seria o tratamento desses temas nas várias
áreas do conhecimento que compõem o currículo escolar: como seria na prática a
inserção desses temas nas disciplinas de, por exemplo, português, literatura,
matemática etc. É apenas mencionado de forma bem geral o como poderia ser
integrado aos conteúdos das diversas áreas.
A existência dos temas transversais, então, vai impulsionar a produção de
diversos materiais com o objetivo de auxiliar os educadores, direcionando suas
práticas para o bom tratamento desses temas. Também, direcionam certas escolhas
com relação à seleção de livros e materiais didáticos a serem utilizados na escola
pública do Brasil: Programas como o PNLD8 e PNBE9 vão voltar os seus olhares
para essa problemática e utilizar, também, como critério de escolha de livros a

7
AIDS ou SIDA é a sigla correspondente à Síndrome da Imuno-Deficiência Adquirida.
8
Programa Nacional do Livro Didático.
9
Programa Nacional Biblioteca da Escola.
55

presença ou não dos temas transversais nas obras; passa-se a adotar livros que
tragam as questões de gênero e sexualidade, não só aqueles propriamente
didáticos, como livros de literatura infantil10.
É nesse contexto que é produzida a “Coleção Explorando o Ensino” e que
particularmente merece uma atenção quanto ao modo de enunciação do discurso
sobre o sexo. Planejada em 2004 e divulgada a partir 2006 pela Secretaria de
Educação Básica do Ministério da Educação; tem por objetivo “auxiliar professores e
educadores da educação básica, oferecendo-lhes um material científico-pedagógico
com novas formas de abordar os diversos conhecimentos”, contribuindo também,
segundo o documento, “com a formação continuada dos professores” (BRASIL,
2010).
Como lugar de enunciação material oficial (planejado pela Secretaria de
Educação Básica do Ministério da Educação), esta coleção comporta vários textos
de professores e/ou pesquisadores da referida área (já que esse material possui
diversos volumes como de matemática, literatura, ciências etc.); tem por objetivo
divulgar seus volumes nas escolas públicas do Brasil para dar um “suporte” às
práticas pedagógicas dos professores. É um material que possui um efeito de
verdade, já que quem o institucionaliza é o Estado e ainda é escrito por
professores(as) de Universidades Federais do Brasil.
São vários os volumes das diversas áreas: química, matemática, biologia etc.
e, cada um, possui vários artigos sobre algum tema específico dessas áreas do
conhecimento focados para alguma problemática da educação, em particular
voltados para a prática pedagógica ou como lidar com essa área na escola. É
importante mencionarmos que os artigos dialogam com propostas curriculares,
materiais didáticos, livros desenvolvidos ou adotados pelo estado e, também, com
os temas transversais.
Refletimos sobre os enunciados de um volume específico: Literatura em um
artigo intitulado O professor como mediador das leituras literárias.Com a função
autor de orientar o modo de ver e pensar o tema da sexualidade na escola afirma-se
que

10
Basta observarmos, por exemplo, o PNBE temático que seleciona obras para temas específicos e
urgentes da nossa sociedade.
56

Outros temas que merecem atenção na prática pedagógica são os


das relações familiares e a sexualidade. A escola tem receio na
abordagem destes temas, por uma questão, ainda, de tabu. Mas por
meio da literatura infantil é possível tratar desses assuntos com a
delicadeza necessária (BRASIL, 2010, p. 49-51).

Alguns pontos merecem atenção sobre o enunciado: primeiro que


aparentemente existe um discurso afirmando a necessidade da prática pedagógica
manter uma atenção com relação aos temas da sexualidade; é delegado à escola e
à prática pedagógica o controle ou tratamento dessa temática; melhor ainda: dá-se a
impressão que é necessário abordar esses temas com jovens; que é preciso que se
seja “falado” e colocado na escola.
Segundo: “A escola tem receio de abordar esses temas e não os aborda por
questões de tabu”. Juntando essa afirmação com a outra, podemos deduzir que
aparentemente surge mais um tipo de discurso ancorado sob a hipótese repressiva:
não se fala e/ou lida com o sexo; então é preciso se fazer algo para que seja dito. E
a escola, e a prática pedagógica, parece ser um lugar privilegiado para isso, apesar
de não aproveitar muito e não lidar com essa temática, por questões sociais,
políticas, religiosas etc., o “tabu”.
Por último, podemos destacar um enunciado que pode dar um tom
completamente diferente a todo o resto: “Mas por meio da literatura infantil é
possível tratar desses assuntos com a delicadeza necessária”.
Diversos foram os meios criados para se chegar à sexualidade dos
indivíduos: a regressão do psicanalista, a confissão do religioso, o depoimento do
jurista etc. Aqui se utiliza um meio diferente: a literatura. Um meio um tanto
impreciso e disforme: não só pela dificuldade que se tem de se classificar
exatamente o que é literatura e o que são ou não as obras literárias, mas também
pela própria natureza do texto literário: um texto polissêmico, cheio de metáforas; um
texto predominantemente Estético. “Com a delicadeza necessária”: parece ser
reclamado ao sexo e aos sujeitos que escutam e falam sobre, não mais a
imparcialidade, mas sim a delicadeza, a sutileza: a estética;contudo, um texto tal
como qualquer outro implicado com os discursos da Razão e da Moral.
O discurso da sexualidade desenvolvido no contexto do discurso literário é um
acontecimento discursivo no qual podemos enxergar um deslocamento quanto aos
modos de enunciação do discurso de gênero e sexualidade. Podemos dizer que
existe já há algum tempo um nicho editorial de confecção de livros infantis: aqueles
57

com a temática de gênero e sexualidade. Um levantamento realizado pela


professora Constantina Xavier Filha consta mais de 1.000 livros de literatura infantil
publicados no Brasil, desde a década de 1960 até os dias atuais, com essa temática.
Ao longo dos anos vários foram adotados por programas nacionais de compra de
livros.
Essas questões estão relacionadas com outros enunciados postos em
circulação por espaços enunciativos a exemplo da mídia impressa. A mídia, na
atualidade, é um dos lugares estratégicos para a veiculação de discursos que
institucionalizam a sexualidade na educação: espaço privilegiado – de enunciação
das práticas sociais e culturais. Esses enunciados ajudam em nosso trabalho a
identificar como a literatura infantil opera como um dos meios de se trabalhar a
sexualidade dos indivíduos no Brasil; o que é que se produziu discursivamente para
se criar o verdadeiro da sexualidade a ser trabalhado na escola. O regime de
veridição que legitima a sexualidade na educação, os sujeitos que falam em um
determinado cenário discursivo.

4.1.1 O Melhor método anticoncepcional para adolescente é a escola

Em 1999, dois anos após a implantação dos Parâmetros Curriculares


Nacionais - PCN e, incluso neles os temas transversais, a Folha de São Paulo
divulgou uma reportagem, na seção Saúde, intitulada Estudo relaciona falta de
escolaridade com gravidez. Nessa reportagem afirma-se que quanto maior a
escolaridade, menor é a fecundidade e maior a proteção contra doenças
sexualmente transmissíveis; completa dizendo que “melhor método anticoncepcional
para adolescente é a escola” (DIMENSTEIN, 1999, p. 4).
Para realizar tal afirmação, o jornalista cita uma pesquisa feita pela Sociedade
Civil Bem-Estar do Brasil - BENFAM, com o apoio do Fundo das Nações Unidas
para a Infância –UNICEF e do Ministério da Saúde, que entrevistou milhares de
mulheres entre 15 e 24 anos de várias regiões do país. Nesse estudo, aponta-se
que 34% das mulheres entrevistadas entre 15 e 19 anos, que estão grávidas do
primeiro filho, têm até o terceiro ano de escolaridade. Com quatro anos de
escolaridade, a fecundidade baixa para 25%, de cinco a oito anos, para 18% e
quando estuda onze anos, a fecundidade cai ainda mais: 6%.
58

A pesquisa indica que a diminuição do índice de fecundidade se dá pelo fato


que quando a adolescente estuda ela passa a ter mais expectativas da vida,
apostando numa profissão e, assim, retardando a gravidez. A baixa escolaridade
também significaria desinformação sobre as formas de evitar a gravidez e falta de
capacidade de argumentar com o parceiro quanto à utilização de métodos
anticoncepcionais. Segundo o jornalista, as jovens com menores índices de
escolaridade têm uma tendência a iniciar mais cedo a sua vida sexual e antes do
casamento, usando menos, também, os métodos contraceptivos antes de se casar.
O autor do texto ainda coloca que a educação fornece um treinamento de diálogo
dos jovens com os pais, capaz de servir como orientação que, segundo a pesquisa
citada, tende a diminuir os índices de gravidez. Outro dado importante trazido pelo
jornalista é que as mulheres ricas e pobres têm um projeto familiar de ter, em média,
dois filhos, “mas por acesso a informação e métodos contraceptivos, as mais ricas e
educadas conseguem uma família menor” (DIMENSTEIN, 1999, p. 4). Entre as
mulheres de mais baixa renda impera, também, como método contraceptivo mais
comum a utilização da esterilização que, segundo o autor, é a principal causa da
redução populacional no Brasil.
Essa receita, utilizando o termo do próprio autor, tão importante quanto a
distribuição de anticoncepcionais e campanhas educativas, pode ser, segundo a
pesquisa, o segredo para reduzir a gravidez e as doenças sexualmente
transmissíveis: a Escola.
Curioso é que, apesar de a escola ser a grande solução para um “problema”
social (que é a gravidez na adolescência), a reportagem está inserida na seção de
Saúde do jornal (poderia estar em “Cultura” ou “Educação”, mas não: aparentemente
a sexualidade é muito mais um problema de saúde que qualquer outro; mesmo
tendo aspectos sociais, educacionais e culturais em jogo). O sujeito que fala –
repórter dum jornal de grande circulação do Brasil –, para afirmar os verdadeiros
sobre o sexo e a sexualidade suscitados por ele, se utiliza de diversas porcentagens
e estatísticas de pesquisas realizadas ou incentivas/financiadas por órgãos do
estado; o texto possui um forte efeito de verdade: se firma em números-imparciais
para dar firmeza a suas afirmações.
Não por acaso o autor se utiliza desses elementos e insere a reportagem
numa determinada sessão: parece que ao se falar da sexualidade é importante, para
se ter credibilidade e ser ouvido, citar e se posicionar discursivamente com a
59

máxima impessoalidade possível: Saúde é a parte do jornal que é direcionada para


uma área do conhecimento específica e que é, em nossa sociedade, profundamente
marcada pela “seriedade” e “imparcialidade”: a medicina. Os dados estatísticos
expostos são doutras áreas (economia, saúde pública etc.); e tanta a área de
medicina, quanto estes outros, possuem um denominador em comum: a ciência ou o
fazer científico.
Observamos, com esse acontecimento discursivo, um dos possíveis modos
que é colocado na ordem do discurso da sexualidade na educação: um instrumento,
um método anticoncepcional, que protege de doenças e diminui a fecundidade. É
curioso, inclusive, o vocabulário utilizado pelo repórter, não por acaso empregado:
“Fecundidade” e “Proteção” contra doenças. Termos que normalmente são atrelados
a questões naturais, biológicas; concretas: uma represa pode proteger uma cidade
da inundação; um solo é fecundo, ou não; um homem ou mulher são férteis ou não:
diversos podem ser os motivos – normalmente biológicos – que interferem na
fertilidade dos seres: desde problemas congênitos a doenças adquiridas; nesse
discurso, no caso do ser humano, a escolaridade é um motivo que age diretamente
na fertilidade das pessoas e também protege; cria um tipo de barreira - de
conhecimento - contra doenças sexualmente transmissíveis.
Algumas premissas merecem destaque: primeiro que há um discurso que,
aparentemente, elege um momento ideal para que aconteça a gravidez das
mulheres; devendo-se “retardar” ao máximo até que chegue a esse período –
planejado: a gravidez deve ser planejada; deve se ter o controle de quantos filhos
vai haver e se há condições para a família receber novos membros. Apesar de não
especificar exatamente quando seria este momento ideal-planejado que as mulheres
deveriam ter seus filhos, deixa a entender que o casamento é um bom período: se é
colocado um marco estatístico – as mulheres que têm filhos antes ou depois do
casamento, ou que usam métodos contraceptivos antes ou depois do casamento – e
se faz algo mais; cruzam-se os dados do casamento com o nível de escolaridade e
com a classe social que as mulheres pertencem: as mulheres de classes sociais
mais favorecidas e com nível de instrução maior – aquelas que tendem a ter um
comportamento sexual “ideal” segundo a pesquisa – têm filhos depois do
casamento; têm uma família com poucos membros, com planejamento e após o
casamento.
60

Parece se estabelecer um tipo “ideal” de sexualidade das mulheres – vale


ressaltar que, apesar de estar em jogo, aparentemente, uma mecânica populacional
(que por hipótese deveria estar incluídos homens e mulheres, até porque as
mulheres não fazem seus filhos e filhas sozinhas), o alvo de todas as pesquisas são,
em sua grande maioria, as mulheres e não os homens –, que coincidentemente, ou
não, é praticada em sua maioria por mulheres com um alto nível de instrução e de
classes sociais mais favorecidas da nossa sociedade. Dessa forma, é possível
formular uma pergunta: será que a sexualidade ideal – aquela que é comumente
praticada por aquelas mulheres instruídas e de classe mais favorecidas – é na
verdade um tipo característico duma sexualidade urbana, duma classe específica?
Será que essas pesquisas servem para constatar um fato sobre a sexualidade das
mulheres, ou para incentivar um tipo de sexualidade? É o objeto que faz a pesquisa
ou a pesquisa quer fazer o objeto?
Numa outra reportagem da Folha de São Paulo de 2001, se coloca que
“Gravidez precoce diminui qualidade de vida”, e assinala que “Pesquisa mostra que
índices de desemprego e instrução são piores entre as mulheres que engravidaram
na adolescência” (PETRY, 2001). Se produz aqui uma verdade que incita o
cumprimento duma sexualidade desejável às mulheres – aquela que anteriormente
questionamos se seria um tipo de sexualidade característica urbana, de classes
mais favorecidas etc. – e, se não se seguir esta verdade, poderá haver algum tipo de
exclusão/marginalização social: aquelas mulheres que não tiverem uma sexualidade
tal têm mais possibilidades de estarem desempregadas, de não conseguir concluir
os estudos, e possuírem uma moradia pior (PETRY, 2001). Para afirmar tais
pressupostos, a autora do texto cita uma pesquisa realizada pela Fiocruz11 em 1999
por Silvana Granado. Esta afirma que a gravidez nas classes mais baixas é
complicada pela falta de estrutura e situação “socioeconômica” frágil; acontecendo
essa gestação na adolescência, as coisas tornam-se ainda mais complicadas: a
situação de pobreza é adicionada à falta de estrutura emocional das jovens que
muitas vezes não possuem o apoio dos pais. Se é frisado, mais uma vez, que a
gravidez indesejada é mais comum nas áreas pobres da cidade; e que a falta de
instrução é um fator importante; já que muitas vezes várias meninas que não estão
na escola podem possuir falta de perspectiva com relação a um plano de vida futura.

11
Fundação Oswaldo Cruz.
61

Logo em seguida, a autora da reportagem traz vários dados estatísticos do


estudo de Granado: taxa de desemprego altíssimo para aquelas mulheres que
tiveram filhos antes dos vinte anos; local de residência (dados que apontam que
certa porcentagem das mulheres que engravidaram na adolescência está morando
em favelas); dados que mostram que muitos “namorados” não assumem o filho ou
abandonam as crianças antes delas completarem um ano. Finalmente, a reportagem
é fechada com a seguinte citação da autora da pesquisa:

[...] Isso acaba virando uma situação sem volta. A maioria larga os
estudos. Grande parte delas não os retoma posteriormente,
principalmente porque têm mais filhos. Daí em diante, tudo fica mais
difícil, arrumar um bom emprego e cuidar dos filhos sozinhos. É o
ciclo da pobreza (GRANADO apud PETRY, 2001).

É quase apocalíptico o fim que se é dado àquelas mulheres que não seguem
uma sexualidade tal – planejada, depois do casamento, com no máximo dois filhos,
depois de terminar os estudos e estando empregada etc. Se é delegada toda uma
situação de calamidade: elas moram em lugares de desprestígio social, estão
desempregadas, não terminam os estudos; e ainda mais: contribuem para uma
espécie de “Ciclo da pobreza”. Há de se perceber que não está em jogo, apenas, o
bem-estar pessoal; mas sim toda uma mecânica populacional que é posta em risco
aos menores descuidados dos membros desta comunidade: se os cuidados não
forem tomados e não se seguir toda uma sexualidade ideal e saudável; a própria
sociedade parece estar fadada a uma pobreza sem fim: a um ciclo de pobreza.
E vemos que o discurso de sexo é também um discurso de classe: se é
comumente associada à sexualidade o nível de escolaridade; são constantes as
menções às classes sociais dos indivíduos: além de se associar que o nível de
escolaridade interfere diretamente na fecundidade das mulheres; se afirma, também,
que a depender da classe social, o modo pelo qual as mulheres têm seus filhos vai
ser diverso; diverso e errado; delegando àquelas que pertencem às classes sociais
mais favorecidas o status de, em sua maioria, praticarem uma sexualidade mais
adequada; “A gravidez nas classes mais baixas é complicada pela falta de estrutura
e pela situação socioeconômica dessas pessoas” (GRANADO apud PETRY, 2001),
a gravidez pode ser (apesar de ser usado o verbo “é” na citação, sem a relativização
que estamos utilizando agora; “pode ser”) “complicada” quando as mulheres têm
certa idade, gravidez de risco: motivos biológicos. Para esse discurso, gravidez
62

“complicada” é aquela tida por mulheres de classes mais baixas – o social moldando
os corpos?: o discurso do sexo é também um discurso de classe, que por sua vez, é
também o discurso da educação: existe uma malha que relaciona tanto a classe dos
indivíduos com seu grau de instrução e com uma sexualidade ideal.
O discurso de sexo é também um discurso de raça. Não pela sua presença,
mas pela sua ausência-presente. Não se cita, em nenhuma dessas pesquisas sobre
a sexualidade, a raça dos indivíduos entrevistados: para tais pesquisas não importa
a raça/cor das mulheres; mas sim sua classe, seu nível de instrução, sua moradia.
Há um silêncio sobre como são as práticas sexuais das mulheres brancas, negras,
pardas, indígenas, amarelas etc.
Até então, a nossa tentativa está próxima do ensaio dalgumas perguntas;
estamos tentando esboçar algum tipo de rede discursiva – através da seleção
dalgumas reportagens específicas, visto que não seria possível citar todas aquelas
que possuem o tema estudado, pois, pela natureza do trabalho proposto, seria
inviável – sobre o discurso da sexualidade na educação: tentando investigar o como
se processa o discurso da sexualidade na educação; por que se afirma que a
sexualidade deve ser trabalhada na escola? Tal tentativa se deve ao fato que o
nosso objeto de pesquisa – saber por que (e como) se diz (e se coloca) que os livros
de literatura infantil seriam um meio de se trabalhar a sexualidade na escola –
demanda. Ora, para saber “porque se diz que os livros infantis são um bom modo de
se trabalhar o tema da sexualidade na escola”, precisamos saber, primeiro, porque
se diz que se deve trabalhar a sexualidade na escola. Questão de ordem. Assim
sendo, estamos buscando os discursos que colocam a sexualidade e a educação
lado a lado, vendo o como se coloca, onde se fala. Estamos buscando o
interdiscurso: analisando os discursos próximos e que complementam e formam
uma rede discursiva: vendo os sujeitos que falam e são falados; o modo como se
fala, do que não se fala, como se relacionam suas falas.
Interessa agora tratar de alguns outros de documentos, textos e discursos,
com o objetivo de tentar investigar um pouco mais a malha discursiva que se forma
à nossa frente. Logo em seguida, começaremos a relacionar as nossas conclusões
primárias aos documentos oficiais que instituem a sexualidade na educação –
finalmente aquilo que nos propusemos na introdução deste trabalho.
Os textos citados anteriormente, várias outras reportagens, pesquisas
(científicas ou não) e estudos foram realizados para afirmar verdades sobre o sexo e
63

a escola. Uma reportagem de 2009 no jornal O Globo – também na seção de Saúde


– aponta que a Educação Sexual nas escolas ajuda a diminuir a incidência de
doenças e gravidez precoce. Curioso que existe uma outra reportagem, esta
publicada em 2011, que possui quase o mesmo título e parece um pouco com uma
“atualização” da primeira reportagem; ambas publicadas pelo mesmo jornal “O
Globo”: dessa vez com o título “Educação pode ajudar a diminuir índice de gravidez
na adolescência”.
A primeira reportagem, publicada em 2009 – na seção “saúde” e subseção
“sexo” –, traz alguns acontecimentos discursivos interessantes: o texto inteiro parece
uma espécie de licença e explicação sobre o tratamento da sexualidade na escola:
justifica; mostra a necessidade de se trabalhar esse tema no ambiente escolar. Para
isso cita uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia que, com as
palavras dos jornalistas, diz:

[...] ensinar crianças e adolescentes sobre sexo não estimula a


sexualidade precoce. Pelo contrário: ajuda a saciar a curiosidade
natural da idade e contribui para que eles tenham informações
adequadas para tomar decisões com mais
responsabilidade(VIANNA,GOMES, 2009)

Logo após, fala-se do projeto “Saúde e Prevenção na Escola”12. Em outra


reportagem de 2012, dessa vez do Brasil Econômico, se constata que a taxa de
fecundidade das mulheres brasileiras cai e que “Quanto maior o nível de instrução,
menor a fecundidade”, mostra que ao longo dos anos no Brasil a taxa de natalidade
vem caindo de forma acelerada e constante; que as jovens são o principal grupo que
apresentou as quedas mais significativas; e que a renda também é um fator decisivo
com relação à taxa de natalidade das mulheres.
Parece haver, fazendo uma categorização primária e não necessariamente
dicotômica, dois tipos de reportagens: umas que acreditam ser importante a queda
dos níveis de fecundidade e da gravidez precoce; veem com bons olhos as quedas
da taxa de natalidade; acham importante que se quebre o “ciclo da pobreza”
daquelas mulheres que têm muitos filhos ou cedo demais. Nessas reportagens
parece que houve um progresso no Brasil quando se veem reduzidos os índices de
fecundidade e gravidez na adolescência.

12
SPE (sigla).
64

E outras que parecem preocupar-se a longo prazo com o futuro do Brasil com
essa queda brusca. Numa parece se ver com bons olhos as baixas taxas de
natalidade; noutra nem tanto. Observamos nessas reportagens que se estabelece
uma íntima relação entre a escola, o nível de instrução, a sexualidade dos indivíduos
e classe dos indivíduos. Quase sempre esses quatro elementos são citados nas
reportagens.
As mulheres são sempre os indivíduos centrais de quase todas as pesquisas
que envolvem a sexualidade, a escola e a gravidez: são elas que devem negociar
com seus parceiros para a utilização dos métodos contraceptivos; são elas que
devem realizar o planejamento familiar e decidir o melhor momento de terem os
filhos; a figura paterna se faz muito ausente nas questões que envolvem a escola e
a sexualidade.
Uma rede discursiva – um tanto disforme – está começando a se formar à
nossa frente sobre como são colocadas as questões da sexualidade na escola:
primeiro, para se legitimar, parece haver um tipo de tendência a se utilizar de
discursos científicos, de dados estatísticos, de todo tipo de dado que tente dar à
sexualidade um tom imparcial: como que se for para falar de sexo, seja necessário
um certo distanciamento; uma certa impessoalidade. Tais características podemos
associar ao fazer científico ou à ciência. E a sexualidade, dum jeito ou doutro,
parece estar sempre permeada dalgum modo pela ciência.
Vamos insistir em um aspecto: no tipo de linguagem utilizada para se falar da
sexualidade parece haver uma certa constante na utilização dalguns termos que,
predominantemente, são inseridos em contextos das ciências naturais e biológicas:
soa estranho falar de “fecundidade” e “Gravidez Complicada”, quando o que está em
jogo não é uma certa situação biológica das pessoas, mas sim sua classe social,
seu nível de instrução. Aparentemente existe essa insistência por, acreditamos, uma
necessidade de dar credibilidade aos textos: parece que quanto mais os textos se
aproximam duma linguagem científica, melhor. Quanto mais se citam textos
científicos – e não qualquer texto científico13–, mais facilmente haverá uma validação
social: mais serão atestadas as verdades suscitadas por aquele falante. Por tais
motivos, acreditamos que a utilização desse vocabulário nesses textos não seja por

13
Não qualquer: os mais comumente citados não são aqueles advindos das ciências humanas, mas
sim das ciências naturais, biológicas e até exatas: parece haver um prestígio maior nessas ciências
e não nas outras.
65

acaso: é a tentativa de transformar a sexualidade e as questões sociais num fazer


científico; tentar dar um tom de cientificidade às questões levantadas.
No tentar construir uma espécie de contexto discursivo do como se produz
algumas verdades sobre o sexo no Brasil e no contexto educacional vamos agora
abordar duas temáticas: os enunciados dos movimentos sociais e o debate de
gênero e sexualidade e o debate atual sobre gênero e sexualidade no contexto do
Plano Nacional de Educação.
No capítulo 4 em que apresentamos a análise do discurso no texto literário
tentaremos buscar algumas irrupções discursivas que colocam a literatura como um
modo, às vezes até privilegiado, de se abordar, na educação, a sexualidade e as
questões de gênero. Por que a literatura infantil seria um meio de se trabalhar a
sexualidade das crianças? Quais são os sujeitos e discursos que legitimam esse uso
da literatura infantil? Analisaremos também quais são os discursos que relacionam a
literatura à educação: como e por que se diz que a literatura deve ser utilizada na
escola?

4.2 Os movimentos sociais e o debate de gênero e sexualidade

Os Movimentos Sociais são tratados como aqueles movimentos de


empoderamento de setores sociais e culturais. Souza (1999, p. 38) diz, por exemplo,
que os Movimentos Populares na América Latina são correntes de opinião e forças
sociais:
Enquanto correntes de opinião aproximam-se por ideias e
sentimentos semelhantes. São grupos de pessoas, com
posicionamento político e cognitivo similar, que se sentem parte de
um conjunto, além de se perceberem como força social capaz de
firmar interesses frente a posicionamentos contrários de outros
grupos(SOUZA, 1999, p. 38).

Carvalho (2004) amplia essa conceitualização ao tratar dos Movimentos


Sociais Populares no Brasil. Para a autora, esses movimentos são forças sociais em
sua produtividade nas diferentes formas de organização social e cultural nas últimas
décadas do século XX, considerando:

os objectos sociais e culturais que problematizam, tais como o


sindicalismo, as questões da terra (propriedade e uso), o racismo, a
ecologia, a ética, a estética, o feminismo, a educação, de entre
outros; a instituição de organizações sociais e culturais, a exemplo
66

da Central Única dos Trabalhadores (CUT), dos Movimentos Sociais


de Educação, do Movimento das Escolas Comunitárias, do
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, dos Movimentos
dos Homossexuais: Gays e lésbicas, do Movimento Ecológico, do
Movimento Ética na Política, do Movimento Acção Cidadania Contra
a Fome, a Miséria e pela Vida; do Movimento dos Índios; a produção
e emergência de novos sujeitos sociais e culturais, a exemplo dos
“intelectuais em actuação específica junto aos movimentos sociais”,
dos “Sem Terra”, dos “Caras pintadas”, dos “Sem Teto”, “Os Povos
das Florestas”, “os Meninos e as Meninas de Rua”, o Educador e a
“Educadora Popular”, “o Professor e a Professora Indígena”, enfim
aqueles que foram nomeados por Sader (1988) como os “novos
actores sociais” (CARVALHO, 2004, p. 214 )

Os novos movimentos sociais (NMSs), segundo Santos (1998), surge num


contexto de duas décadas de experimentação e contradição. Primeiramente se
observar que o capital começa a dar respostas aos desafios dos anos 1960;
começa-se a buscar soluções que o autor agrupa em dois grandes conjuntos: a
difusão social da produção e o isolamento político das classes trabalhadoras. No
primeiro conjunto, se observa que há uma descentralização através das
transnacionalizações da produção, a fragmentação geográfica e social do processo
de trabalho com a transferência para a periferia do sistema mundial das fases
produtivas mais trabalho-intensivas, resultando em certa desindustrialização dos
países centrais e numa industrialização ou re-industrialização dos países periféricos.
No segundo conjunto, observa-se uma outra face da difusão social de produção: o
isolamento político das classes trabalhadoras, que consistiria na transformação do
operariado em mera força de trabalho. Observa-se nesse domínio diferentes
estratégias de flexibilização ou de precarização da relação salarial que passa-se a
ser adotada: declínio dos contratos de trabalho por tempo indeterminado; agora
contratos de curto prazo e trabalho temporário; o trabalho falsamente autônomo e
subcontratação. Todas essas formas de relação salarial visam sujeitar os ritmos da
reprodução social aos ritmos da produção, gerando uma síndrome de insegurança e
concorrência entre as famílias trabalhadoras que vem se mostrando um poderoso
instrumento de neutralização política do movimento operário (SANTOS, 1998, p.
251-254).
Tais mecanismos que o capital utiliza para se manter e superar as crises de
1960 estão, por outro lado, acontecendo em concomitância com as grandes
experimentações sociais de formulações de alternativas mais ou menos radicais ao
67

modelo de desenvolvimento econômico e social do capitalismo e de afirmação


política de novos sujeitos sociais.
Por fim, a última década testemunhou o colapso das sociedades comunistas
do Leste Europeu. Este processo significaria, pelos menos aparentemente, a
afirmação do modelo capitalista de desenvolvimento econômico e social, sendo o
“único” modelo viável da modernidade.
Dentro desse contexto, surgem os novos movimentos sociais,um contexto
cheio de contradições, em que são tão naturalizados a hegemonia do mercado e
seus atributos que embora seja necessário viver o seu cotidiano, não se deve
nenhuma lealdade a essa cultura específica, sendo socialmente possível viver sem
duplicidade e com intensidade, a hegemonia do mercado e a luta contra ela. Pode-
se afirmar, diante desse quadro, que a difusão social da produção e o isolamento
político do movimento operário serviram, apesar dos contras, para desocultar novas
formas de opressão e facilitar a emergência de novos sujeitos sociais e de novas
práticas de mobilização social (SANTOS, 1998).
A maior novidade dos NMSs seria que eles constituem tanto uma crítica da
regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista
marxista: são identificadas novas formas de opressão que estão além das relações
de produção: a poluição, o machismo, o racismo, a homofobia, o produtivismo etc.
Advogando um novo paradigma social mais apoiado pela cultura e qualidade de vida
do que pela riqueza e bem-estar material, os NMSs denunciam os excessos de
regulação da modernidade. Excessos que estão inscritos não apenas no modo como
se trabalha e produz, mas no modo como se descansa e vive; existiria uma
alienação e um desequilíbrio no interior dos indivíduos que seriam evidenciados por
esses movimentos que mostram que essas formas de opressão não atingem
especificamente uma classe social, mas sim grupos sociais e transclassistas ou
mesmo a sociedade como um todo. E a emancipação visa transformar o cotidiano
das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro longínquo; a grande maioria
dos movimentos não se mobiliza por responsabilidades intergeracionais.
Santos (1998) vai apresentar algumas teorias sobre os NMSs; uma delas
seria que os NMSs lutam pela afirmação da subjetividade perante a cidadania: a
emancipação seria sobretudo pessoal, social e cultural que predominantemente
política. Os protagonistas, diferente dos movimentos sociais mais antigos, não são
as classes sociais, mas sim grupos sociais, mais ou menos definidos em vista de
68

interesses coletivos por vezes muito localizados, mas potencialmente


universalizáveis. Lutam por uma reconversão global dos processos de socialização e
de inculcação cultural, exigindo transformações concretas, imediatas e locais.
Para Santos, é difícil definir os NMSs em termos absolutos: duvida-se muito
da possibilidade de construir uma teoria absoluta que explicasse os NMSs; eles são
nutridos por diversas energias; ora se distanciam dos movimentos sociais mais
antigos, ora se aproximam e muitas vezes recebem, dentro deles, movimentos
sociais com cunho classista que seriam uma das principais características dos
movimentos anteriores.
Dessa forma, Santos vai apontar que a verdadeira novidade dos NMSs é a
impureza: seriam movimentos que transitam por um e outro objetivo, mas com novos
contornos e buscas diversificadas.
Para Carvalho (2004), no Brasil, tais movimentos produziram novos sujeitos
sociais e culturais, a exemplo dos “intelectuais em actuação específica junto aos
movimentos sociais”, dos “Sem Terra”, dos “Caras pintadas”, dos “Sem Teto”, “Os
Povos das Florestas”, “os Meninos e as Meninas de Rua”, o “Educador e a
Educadora Popular”, “o Professor e a Professora Indígena”, “feministas”, “gays”. A
autora afirma a emergência de cidadanias multiculturais, a exemplo do movimento
de mulheres negras; ou a associar gênero e desenvolvimento local, através de
projetos que visam promover o desenvolvimento local com equidade de gênero e
“empowerment” das mulheres.
Os movimentos sociais de gênero e sexualidade têm sua origem mais
expressiva no final dos anos 1960, como nos diz Rago (2012). A autora cita a
influência do discurso anarquista nesses movimentos:

o anarquismo nos movimentos de libertação da mulher que se


desenvolveram a partir dos anos sessenta, de uma amplitude muito
superior à que se dera até o momento. É a partir de aqui que se
procura uma ótica própria da mulher em todos os aspectos e que se
procura incorporar o estudo do sujeito mulher a qualquer disciplina
científica (2012, p. 14).

As lutas recentes em relação a gênero e sexualidade têm sido marcadas pela


Marcha das Vadias e pela Parada Gay em vários países de diferentes continentes.
A Marcha das Vadias emerge em 2011 como uma forma de incorporar o
conceito de “vadia” em contraponto ao estereótipo em relação ao modo de vestir-se
69

das mulheres considerado pela visão machista como um modo de disponibilizar o


seu corpo. Essa marcha é considerada uma forma singular de protesto, diferente do
que ocorria nas primeiras manifestações feministas.

Figura 1 - Marcha das vadias

Fonte: https://www.google.com.br/search?q=marcha+das+vadias. 2015

Segundo Rago (2013), esse tipo de marcha traduz por um lado uma
regularidade com as práticas de passeatas na história do feminismo e ao mesmo
tempo inova pela forma como se apresenta:

A “Marcha das vadias”, por exemplo, traz algumas novidades no


modo de expressão da rebeldia e da contestação, caracterizando-se
pela irreverência, pelo deboche e pela ironia. Se a caricatura da
antiga feminista construía uma figura séria, sisuda e nada erotizada,
essas jovens entram com outras cores, outros sons e outros
artefatos, teatralizando e carnavalizando o mundo público.
Autodenominando-se “vadias”, ironizam a cultura dominante,
conservadora e asséptica e, nesse sentido, arejam os feminismos,
trazendo leveza na maneira de lidar com certos problemas, mas
estabelecendo continuidades com as experiências passadas, mesmo
2199 que não explicitem esses vínculos nem reflitam sobre eles
(RAGO, 2013, p. 314).

Carvalho (2004) mostra a importância da Parada Gay como um lugar de


enunciação das lutas culturais e problematiza como essa parada tem inclusive
movimentado o mercado que acolhe a luta para dela tirar proveito econômico.
Ressalta a autora que a Parada do Orgulho Gay, Lésbico, Bissexual e Transgênero
70

é exemplo da força dos movimentos gaye lésbicos mas é também exemplo de como
as temáticas de sexualidades alternativas àheterossexualidade vêm sendo
absorvidas pela indústria cultural e pela indústria do turismo.
A última Parada Gay teve forte questionamento dos sectores religiosos
representados no Congresso Nacional. A imagem que segue foi aquela que mais
trouxe ao debate da sociedade brasileira a questão gay e o conservadorismo.

Figura 2 - Parada Gay São Paulo 2015

Fonte: https://www.google.com.br, setembro de 2015.

Essas questões que estão nas mídias com amplo acesso a crianças, jovens e
adultos não permitem que deixemos de considerar que não há mais como fugir ao
debate. Vale ressaltar que nesse debate tem havido retrocesso em relação ao
Estatuto de Família e ao Plano Nacional de Educação. Nesses dois importantes
documentos de orientação do discurso sobre gênero e sexualidade há de fato o
retorno ao preconceito a outras formas de família e de modos de viver as
sexualidades.
71

5 COM A DELICADEZA NECESSÁRIA – OS DISCURSOS DE GÊNERO E


SEXUALIDADE NA LITERATURA INFANTIL

Neste capítulo apresentamos a análise desenvolvidas dos textos literários, ou


seja, uma análise de como se colocam os discursos de gênero e sexualidade nestes
livros infantis. Como os sujeitos estão representados, quais são as questões e temas
levantados nos livros; o quê, como e por que são trazidos os questionamentos.
Como os sujeitos em suas posições dizem da sexualidade, já não nos espaços do
confessionário ou mesmo no divã do psicanalista, mas nos livros de literatura infantil,
o que nos leva a outras reflexões: de que modo isso transforma o próprio discurso
sobre sexualidade, o próprio dispositivo da sexualidade na nossa época.
Dentro do universo de milhares de livros de literatura infantil com a temática
de gênero e sexualidade lançados no Brasil ao longo dos anos,dos livros adotados
com essa temática por programas nacionais de compra de livros seja para a
biblioteca da escola, seja destinado a outros setores da escola pública, decidimos
restringir o nosso corpora de análise àqueles livros que são indicados pela coleção
“Explorando o ensino: Literatura” como sendo livros modelos para se trabalhar tais
questões em sala de aula.
Vale salientar que a indicação é feita por professores de Universidades
Federais do país e institucionalizada pelo Governo Federal: existe um forte teor de
confiabilidade e verdade nos textos e nas indicações realizadas por esses
documentos.

5.1 Tem Gente

O primeiro livro analisado Tem Gente está inserido na coleção Em família. O


logotipo – ou símbolo – que representa esta coleção é uma casa formada por três
figuras retangulares; embaixo está escrito “Coleção em Família” e no centro
encontram-se as figuras de quatro pessoas,dispostas e desenhadas não de
qualquer modo: no meio está uma figura mais alta, de cabelos curtos e bigode.
Percebe-se que esta difere das outras em seu semblante: possui uma aparência
sisuda, severa. Não é esboçado qualquer sinal de sorriso (ou tristeza) por debaixo
do seu grosso bigode: parece uma figura imparcial: o juiz; o Homem da casa.
72

Figura 3 - Tem Gente

Fonte: Livro “Tem Gente”(ANDRADE, 1993 – Capa).

Já à sua direita, na quarta-capa podemos perceber outra figura masculina


(figura 2), dados os seus cabelos curtos14. Porém esta figura é bem menor e não
possui barba ou bigode, seus cabelos são arrumados a parecer um topete –
diferente da primeira figura que possui um cabelo curto, sem corte: adulto – e seu
semblante é de criança: um sorriso largo. Essa figura representa o filho, o
Primogênito. Sua disposição não é dada ao acaso: está à direta da figura maior,
central e imparcial. À direita está Cristo, de Deus; e o primogênito, de seu pai:
aquele que irá substituir e tomar para si, mesmo sendo uma criança, as tarefas
futuras do Homem da casa; será ele que irá responder e tomar as rédeas da família.

14
Levando em consideração a comparação entre essa e as outras figuras esboçadas na imagem: em
nossa sociedade possuir cabelos longos ou curtos é uma marca comumente atrelada a
características do gênero feminino ou masculino.
73

Figura 4 - A família

Fonte: Livro “Tem Gente (ANDRADE, 1993 - Detalhe da capa).

No menor plano, ao centro, encontra-se a figura duma outra criança, dado seu
sorriso largo e sua baixa estatura em comparação com as demais.Essa figura tem
os cabelos na nuca: uma menina; a caçula e, não por acaso, está no menor plano da
representação da família. Está à direita da última figura que faltamos descrever: a
mulher, a mãe da casa.
Representada como a figura menos volumosa (talvez por seu recato; por sua
impossibilidade de espalhar-se), com os cabelos longos e retos, sua altura é bem
menor que a do homem e um pouco maior que a do primogênito. Seu lugar é à
esquerda do pai e seu semblante é o mais curioso de todas as outras
representações: o homem é claramente neutro; não podemos nem ver sua boca,
apenas seu bigode: reto; imparcial. As duas crianças possuem linhas claras dum
sorriso largo; pueril. Mas a mulher possui uma linha obscuramente desenhada;
imprecisa. Talvez um sorriso de canto de boca ou um sorriso contido; talvez uma
expressão de quem está passando mal ou confuso; talvez esteja segurando uma
expressão de raiva sob um sorriso falso. Não dá para saber ao certo o que está
sendo representado em seu semblante; e fica a dúvida: por que à mulher é
reservado um semblante sem uma delineação exata? Por que em todas as outras
74

figuras há uma expressão clara de sorriso ou imparcialidade e a mulher possui uma


obscura linha imprecisa que não sabemos ao certo o que significa?
Na quarta capa do livro encontramos a descrição do que seria a coleção em
família representada por esse símbolo que analisamos:

Na história da nossa vida, os pais, os avós, os primos estão sempre


presentes. Os momentos que passamos juntos a eles, portanto,
merecem ser registrados. Por isso pensamos na Coleção Em
Família, destinada aos leitores a partir dos seis anos 15 . Ela vai
resgatar esse momentos de forma lírica, realista e inesquecível. E
você vai encontrar nos livros dessa coleção um pouco da sua própria
história (ANDRADE, 1993, quarta capa).

Aparentemente esse livro parece ser destinado não apenas às crianças, mas
a todos os membros da família. E não uma família qualquer: aquela constituída
duma maneira específica: com pais, avós, primos etc., pois, tal como a quarta-capa
diz, estes estão “sempre presentes” (?). É um livro para ser lido tanto por crianças,
quanto por adultos. “A partir de seis anos”. Um livro de família. Para família. Se
voltarmos para o seu logo, também poderíamos supor como seria a família a qual
este livro se refere: aquela que tem no seu núcleo o Homem central, o primogênito à
sua direita, a sua filha em menor plano e a mulher e seu impreciso semblante.
E o livro tem um objetivo poético: resgatar os momentos registráveis que se
passa junto com os familiares. Não de qualquer modo – talvez como um diário, ou
um registro qualquer –, mas sim de forma lírica, realista e inesquecível. O lirismo é
relativo à literatura, ao belo: a uma preocupação estética. Já o realista é relativo à
verdade, ou seja, não serão abordadas nenhuma mentira ou ficção: serão as coisas
tal como são (por conseguinte, podemos inferir que aquela família que descrevemos
seria o real, a verdade). Mas com beleza que só um texto literário poderia produzir,
fazendo com que esses momentos sejam registrados de modo inesquecível. A
verdade e o belo: a literatura como a expressão da própria realidade, transformando-
a em algo memorável.
O nascimento dum novo membro da família: esse é o momento inesquecível.
Narrado em primeira pessoa, o livro traz o filho dum casal contando suas
impressões sobre o nascimento do seu irmão mais novo. Através duma narrativa
que ora parece rimar, ora não, o livro mostra o estranhamento inicial duma criança
15
Logo após esse texto, possui um pequeno texto dizendo que a indicação da faixa etária é apenas
uma sugestão e que a escolha deve respeitar o interesse, o gosto e a maturidade de cada criança.
75

ao lidar com a gravidez de sua mãe. Primeiro se perguntando o porquê de certas


mudanças (como o aumento do apetite, o crescimento da barriga, a sonolência etc.)
e, após revelar um estranhamento por tais mudanças, a descoberta do menino sobre
o motivo de tudo. Inicialmente ele tem raiva e ciúme. Depois fica com pena da
incapacidade do bebê, ainda na barriga, de comer certos alimentos. Após o
nascimento o menino leva para seu irmão os alimentos que ele não poderia ter
comido porque estava na barriga. Após a mãe rir de sua tentativa, ele percebe que o
bebê não tem dentes e, assim não poderia comer tais alimentos. Finalmente ele
conclui que o irmão poderá ser sapeca, comilão e brincalhão tal como ele mesmo.
Durante a narrativa alguns desenhos são colocados entre as palavras para
ilustrá-las e sempre entre uma página e outra, tem uma nova imagem do livro. Ao
todo o livro tem vinte e quatro páginas. No corpo do texto, ao todo existem onze. É
um livro leve. Um livro de um tom ameno, duma narrativa simples, duma rima
simples, com questionamentos simples e duma concepção de família simples.
Alguns enunciados são visivelmente principais nesse livro: família, gravidez,
relações familiares. Um ponto que merece destaque nesse livro é que, como já
mencionamos anteriormente, é um texto em que predominam os enunciados sobre a
família e as relações familiares. O livro está inserido na coleção “Em Família”,
representada com o homem sendo a figura central. Porém, durante todo o livro, o
homem é representado apenas uma única vez,apenas na primeira imagem. Porém,
dentro do texto inteiro não é mencionada, em nenhum momento, a existência do pai.
Como o texto e as imagens são de autorias diferentes, podemos perceber a grande
ausência do pai nas questões familiares e, ao mesmo tempo, ele, num paradoxo, é
representado, no logo da coleção, como a figura central da família.
Na primeira imagem na qual é representada a família, merecem ser
destacados alguns pontos: a forma como é representado o pai: de calça e camisa
azul (cor normalmente atribuída ao masculino) e sapato: não aparecem roupas que
normalmente a pessoa utilizaria em casa; mas sim roupas de trabalho, roupas de
quem ou acabou de chegar do trabalho ou irá ao trabalho. Com cabelos curtos e
aparentemente falando algo engraçado e íntimo (pois a mãe ri e olha para o outro
lado, como se estivesse encabulada) sobre a gravidez da mãe (pois toca a sua
barriga). A mulher é o estereótipo de mãe: feliz que vai gerar um novo membro, com
calças rosa (cor normalmente atribuída ao feminino), com blusa branca e pufes em
seus pés: roupas confortáveis e compostas, duma mãe, duma dona de casa
76

respeitável. Ela segura um pano e agulhas de tricô. Mães tricotam. Diferente do


marido que usa roupas formais de quem estava (ou irá para) fora de casa
(provavelmente num trabalho formal), a mulher usa roupas despojadas com um pufe
e segura seu tricô, provavelmente trabalha em casa e é sustentada pelo homem da
família. Ela possui um corte de cabelo reto e longo. E ri dalguma coisa que o homem
fala. Não olha em seus olhos... Recato? (ver figura 5).

Figura 5 - O casal

Fonte: Livro “Tem Gente”(ANDRADE, 1993, p. 5).

Nessa imagem podemos ainda perceber que existem vários livros empilhados
no canto da imagem. E um livro se destaca dos demais: um livro que tem como capa
a imagem dum bebê. Provavelmente um manual de pueril cultura: para representar o
preparo necessário dos pais para receber novos membros na família. Provavelmente
a última leitura da Mãe: é o livro que está no topo, entreaberto. Todos os livros se
77

encontram do lado da mãe, como se ela tivesse acabado de colocar do lado para
receber o pai: a mulher tricota e lê sobre bebês. É importante também percebermos
a importância que é dada a tais livros: se institucionaliza aqui a normalização de
consultar esses manuais para que se tenha uma gravidez saudável e que se crie
bem as crianças.
Ainda nessa imagem podemos perceber outro aspecto bem interessante: a
criança não participa da cena. Ela está fora do quadrinho. Apenas observa curiosa e
não muito feliz o que acontece. Está sentada, assistindo a tudo com seus braços
rodeando suas pernas dobradas. Olha de fora, como uma criança que não pode
ouvir ou participar da conversa de adultos. Está em menor plano, no canto da
imagem, acuada e fora de cena. Curioso que a criança é o personagem principal da
história: quem conta e narra a história sob seu olhar. Mas, nessa imagem – vale
ressaltar que é a única que não tem qualquer relação com o texto –, ela não entra.
Essa é a única imagem do pai durante todo o livro. E nessa sua única aparição, o
filho não participa da cena. Apenas olha desconfiado e acanhado para seus pais.
Por que? Talvez porque não seja para crianças assuntos como gravidez. Apesar de
tratar desse tema, o livro nunca menciona uma explicação sólida sobre. Em dois
momentos parece se ensaiar algum questionamento sobre a gravidez da mãe.
Figura 6 - Na gravidez a comilona

Fonte: Livro “Tem Gente” (ANDRADE, 1993, p. 4).


78

A explicação dada aqui para o estranho modo como a mãe está aparentando
e vem se comportando é que virou criança de novo e com fome de marmelada.
Dizem, segundo o narrador, que gente grande após nascer, crescer e virar adulto,
vira criança mimada. Criança mimada é aquela que precisa de bastante cuidados e
vigilância: uma mulher grávida. Parece não ser por acaso a comparação da mãe a
uma criança comilona e mimada: a mulher ao estar grávida, para esse discurso,
precisa ter cuidados mais e diferenciados, precisa ser tomado cuidado com o seu
corpo indefeso, tal como a criança.
Em muitas pesquisas que se faz sobre a sexualidade da população, se coloca
dentro dum mesmo grupo a saúde da mulher e da criança; se faz, no mesmo
trabalho, uma pesquisa tanto da sexualidade dum quanto doutro: são sexualidades
que parecem merecer maior atenção. Foucault, em sua “A vontade de saber”, fala
que a mulher tem uma sexualidade saturada, com um corpo detento duma patologia
intrínseca. Este corpo orgânico seria posto em comunicação com o corpo social
(cuja fecundidade deve ser regulada), com o espaço familiar (devendo ser o
elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que a produz e deve
garantir, através duma responsabilidade biológico-moral) (FOUCAULT, 1988, p. 115)
Vemos que esses aspectos do corpo da mulher parecem ser representados
dalgum modo: o Livro de Puericultura na primeira imagem, garantindo a sua
fecundidade regulada e bem direcionada. O espaço familiar garantido pela sua
presença: o homem em nenhum momento parece participar da gravidez da mulher e
nem do como o filho lida com ela: ao homem parece ser delegada a função de
prover o lar (em sua única representação no livro, ele aparece de roupas de
trabalho, enquanto a mulher com roupas de casa), e a mulher deve ser responsável
tanto pela funcionalidade da família, como pela vida da criança: é ela que instrui a
criança sobre sua situação atual e sobre a chegada dum novo membro.
A sexualidade da criança, por sua vez, é uma sexualidade limítrofe, ao
mesmo tempo natural e contra a natureza, uma sexualidade perigosa e preciosa a
qual deve ser dada grande atenção: todos (pais, professores, psicólogos, médicos
etc.) devem dar atenção a esta sexualidade.
Essas duas sexualidades merecem atenção; nelas se é guardado o futuro da
nação, como vimos em capítulos anteriores; práticas sexuais não adequadas podem
promover um “ciclo de pobreza”, podem mexer numa mecânica populacional e
colocar em risco o futuro da sociedade. Em outro momento também se é colocada a
79

questão da gravidez da mãe. É o momento que o menino-narrador descobre que a


mãe está grávida:

Foi quando pegou minha mão e passou na sua barriga...


Colei meu ouvido em cima e ouvi a batida.
Nossa!... No corpo dela deu briga!
Eu nunca ouvi coração batendo bem no meio da barriga!
...
Perguntou se eu queria ouvir direito.
Respondi que mais parecia o eco do coração...
- Será que eu posso espiar, pelo umbigo, de onde vem o barulhão?
Vai ver virou criança dentro do seu coração!
...
Explicou que nosso umbigo é janela bem fechada, mas que,
passando a mão na barriga escutando em silencia, eu ia ouvir, muito
além, o meu, o dela e o coração do neném! (ANDRADE, 1993, p. 10,
14 e 16).

O menino, colocando o seu ouvido contra a barriga da mãe, percebe uma


outra batida do coração e, após tentar olhar pelo umbigo para ver se descobre o que
está acontecendo (e mais uma vez se compara a mãe a uma criança), a mãe explica
que o umbigo é uma janela bem fechada, mas que passando a barriga se iria
escutar o coração do neném.
Anteriormente a explicação para a gravidez da mãe foi tirada pelo próprio
narrador-infante (a mãe virou criança mimada, com fome de marmelada), agora é a
mãe que é questionada sobre o que está acontecendo e sua resposta é um tanto
não objetiva e muito menos esclarecedora. Durante todo o livro, em nenhum
momento se toca na questão de “como foi que a mãe ficou grávida?”, ou “como o
neném sairá da barriga?” etc.,perguntas que seriam comuns entre as crianças que
não são respondidas, nem se quer levantadas, como se a normalidade fosse a não-
curiosidade da criança com relação a essas perguntas.
Livros como “Mamão como eu nasci?” geraram muita polêmica por serem
diretos e explicativos sobre as questões da gravidez e sexualidade. Houve grandes
comoções sociais: alguns defendendo, outros atacando. Porém este livro passa
desapercebido. Não tiveram grandes críticas nem a favor nem contra.
Parece que ao se falar de gravidez e sexualidade é importante a não menção
a certos aspectos dessas.
Todas as roupas que a mãe veste são de grande compostura: são sempre
calças ou vestidos que cobrem boa parte de seu corpo. A criança veste bermudas,
80

mas a mãe apenas calças e vestidos curtos. Em apenas uma representação a mãe
aparece com os braços descobertos.

Figura 7 - As roupas

Fonte: Livro “Tem Gente”(ANDRADE, 1993, p. 5, p. 15, p. 19, p. 21).

Entendendo esse livro como um artefato cultural e, como tal, é potência,


subjetividades e representações de sujeitos da nossa sociedade, podemos realizar
uma análise na direção de tentar observar que tipos de subjetividades são
representadas por este livro e como estas podem influenciar na constituição dos
sujeitos sociais que consomem esses tipos de livros.
Com suas representações de família tradicional, com sua representação de
mãe, de pai e filhos, podemos observar que esse texto reflete muito uma cultura
patriarcal, na medida em que se faz presentes muitas desigualdades de gênero em
suas imagens e texto. A mulher é sempre representada como uma boa mãe de
família, aquela mulher que não possui trabalho formal, tricota, cuida dos filhos, veste
roupas compostas, com sua aparência de mulher respeitável, de cabelos longos e
81

retos. Já o homem seria o provedor do lar, aquele que não é responsável pela
criação direta dos filhos, ausente, mas, ao mesmo tempo, o centro da família, aquele
que paga as contas e trabalha formalmente.
Assim, se constrói uma identidade cultural do que seria ser mãe: aquela que
lê livros de pueril cultura, que tricota, usa roupas compostas e confortáveis, trabalha
apenas em casa, cuida dos filhos, não de qualquer modo, de acordo com as
condutas morais e sociais: e esta conduta moral direciona a forma como são
passados os conhecimentos: jamais se é contado de forma direta como e porque a
mãe está grávida. Aparentemente as crianças só podem saber das coisas através
de metáforas e da linguagem indireta. A barriga da mãe é “uma janela bem fechada”.
E aqui vemos como também se é construída a identidade cultural da criança: aquela
de sexualidade ambígua e que deve ser tratada com cuidado.
Ao nos propormos a realização duma análise histórica relacional, precisamos
observar outras edições dos livros analisados. Contudo em alguns livros não foi
possível conseguir várias edições, mas “Tem Gente”, conseguimos a primeira edição
e a mais recente.
Antes de falarmos da segunda e mais recente edição do livro, precisamos
contextualizar a primeira edição. Ela é de 1993. Ou seja, antes das reformas
curriculares que de fato institucionalizaram os temas transversais e a sexualidade,
com o nome de “Orientação Sexual”, no currículo das escolas públicas do Brasil.
Porém esse livro vem dentro dum contexto em que já se debatiam as questões de
gênero e sexualidade para jovens e crianças. O livro é originalmente colocado na
coleção “Em Família” e tem por objetivo, como vimos anteriormente, resgatar
momentos familiares com lirismo, realismo e torná-los, assim, inesquecíveis. Ora,
para legitimar o tratamento de certas questões de gênero e sexualidade – colocadas
em discurso como sendo questões tabu na sociedade –, a editora insere este
material, na rede discursiva, como um livro “de família”, um livro respeitável e
realista. Um livro que, apesar de tratar de questões tão polêmicas, pode ser lido por
toda a família, pois não é direto, é lírico e assim realista. É interessante que o livro
apesar de tratar da gravidez como algo quase sublime – descrevendo a barriga da
mãe como uma janela fechada, e sua mudança de comportamento devido a ela ter
se tornado criança mimada –, ele se diz realista. Talvez o termo não seja empregado
para dizer as coisas tal como são – que os pais precisam transar para ter seus filhos
e que o menino sai pela vagina –, mas sim como a realidade social gostaria que
82

fossem ditas as coisas aos seus filhos: o real não é relativo ao natural, mas sim ao
que se legitima como verdade dentro dum grupo social.
A segunda edição, por sua vez, é feita em outro contexto discursivo. E cria
um marco, um acontecimento discursivo. O ano de publicação da segunda edição é
2005, anos após as mudanças curriculares. O conteúdo do livro é exatamente o
mesmo da sua primeira edição: a narrativa é a mesma, os desenhos são os
mesmos, dispostos exatamente do mesmo modo como foi a primeira edição. Além
dalgumas diferenças de diagramação e de fonte, não há qualquer mudança
significativa nessas duas edições. A não ser por um pequeno detalhe:a segunda
edição é colocada, dessa vez, em outra coleção, agora na “Biblioteca Marcha
Criança”.
Biblioteca é relativo a livros, conhecimento escolar, estudo. Mas não é
qualquer biblioteca, é a biblioteca “Marcha Criança”, ou seja, aquela que direciona o
jovem para algo, aquela que condiciona o corpo a um ritmo e a um movimento.

Figura 8 - A nova edição

Fonte: Livro Tem Gente(ANDRADE, 2005, Capa).

A quarta-capa do livro também é diferente; dessa vez não possui mais aquele
texto lírico e entusiasta da família: possui um pequeno resumo do livro – sem
83

nenhum tipo de classificação etária –, e a seguinte descrição do que seria essa


“Biblioteca Marcha Criança”:

A Biblioteca Marcha Criança foi criada para complementar o trabalho


do professor em sala de aula, estimulando o hábito da leitura. A
coleção reúne obras que despertam o interesse e o senso crítico da
criança, com o objetivo de formar bons leitores (ANDRADE, 2005,
Quarta-capa).

Agora esse livro,antes com a função de resgatar alguma memória de forma


lírica, agrega uma nova função ao lirismo aparentemente deslocado para segundo
plano – ou seja, deixou de ser importante – e deu lugar a um material de
complemento de trabalho do professor em sala de aula. Antes o livro era direcionado
para as crianças de a partir de 6 anos e até para adultos da família, agora, é
direcionado ao professor e ao seu trabalho em sala de aula.
Podemos destacar com isso um marco discursivo, se são retirados do meio
familiar os livros infantis para se colocar no meio escolar, poderíamos dizer ainda
mais: parece que agora é muito mais legítimo se justificar através duma necessidade
educacional do que por algo que serve à família. A família parece perder força e
apesar de estar presente no livro, ela já não é mais as égides que dão bases aos
livros: mas sim a Educação.

5.2 Amor de Ganso


Figura 9 - Amor de Ganso

Fonte: Livro Amor de Ganso(RENNÓ, 1995. Capa).


84

Amor de Ganso. Não de gansa: de ganso. Masculino. O primeiro livro que


analisamos – Tem Gente – trazia vários elementos que colocavam o masculino, o
homem e o pai como sendo o centro da família – dentro do logo ele era a figura
central, era quem trabalhava e provavelmente sustentava a casa: contudo não era o
foco da narração, já que esta contava uma história em que os personagens
principais seriam apenas o filho e a mãe: dentro do discurso que legitima o
patriarcalismo, a mãe seria a responsável pela criação das crianças, tanto
biologicamente como moralmente. Dessa forma, por o livro “Tem Gente”, contar a
história das relações internas da família e da criação dos filhos, o homem não
participa, pois a ele parecem ser delegadas outras coisas: o sustento, a proteção da
família etc.
O livro que analisaremos agora já conta outra história de natureza diferente.
Está inserido na coleção “Imagens mágicas”, esta tem o objetivo – descrito na
quarta-capa do livro:

A coleção Imagens Mágicas vem como um merecido tributo à arte da


ilustração e sua maravilhosa capacidade de dizer tanto sem
palavras.
Podemos, então, calar. As imagens falam por si, eloquente e
calorosas e cada leitor em sua imaginação, dará voz ao contador da
história e às personagens, compondo seu próprio texto (RENNÓ,
1995, p. 24).

Essas são umas das poucas palavras que existem no livro: de fato a obra é
composta basicamente de ilustrações que realmente dizem tanto sem palavras;
falam por si: eloquentes e calorosas. Imagens que contam, basicamente, a história
de amor entre um ganso e uma galinha mãe de três pintinhos. Os personagens são
animais humanizados, com características humanas. Aparentemente trata-se de
mais uma história do amor impossível; do amor proibido. Como tantas outras:
Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Fernando e Isaura. Porém essa chama-se “Amor
de Ganso”. Não “Ganso e Galinha”, ou, pelo menos, “Amor de Ganso e de Galinha”.
É “Amor de Ganso”, apenas o ganso. Apesar do verbo amar ser transitivo direto:
aquele que precisa dum complemento para fazer sentido; ou seja, que precisa dum
ser ou coisa amado, o ganso aparece só na capa do livro dentro dum coração: é o
amor apenas dele; intransitivo: amar sem objetivo; sem reciprocidade, sem um outro
alguém: amor de ganso. Claro que, no caso do título deste livro, amor é substantivo,
seguido da locução adjetiva “de ganso”; não é qualquer amor: nessa obra existem
85

diversos personagens: a galinha, os pintinhos e os outros gansos. Mas apenas um


amor importa: o de ganso. É o amor do protagonista.
E quem é esse protagonista?

Figura 10 - O protagonista

Fonte: Livro Amor de Ganso(RENNÓ, 1995. p. 4 e p. 5).

Em sua primeira aparição, não podemos diferenciá-lo dos demais gansos;


está numa marcha, todos eles seguindo em fila para algum lugar; talvez voltando do
trabalho, ou indo ao trabalho. O fato é que não há como se distinguir um ganso do
outro, apenas sabemos quem é o protagonista quando ele olha para trás e vê a
galinha e seus pintinhos.
A galinha foi ignorada por todos aqueles outros gansos brancos e belos: ela é
uma galinha negra e com três pintinhos. Está com um semblante de tristeza.
Aparentemente todos os gansos passaram por ela e nada fizeram, a não ser o herói
da história. Este se volta: dentro de todos aqueles gansos, ele é o único que resolve
dar alguma atenção à galinha, e vai além, pega parte das comidas dos outros
gansos e leva para ela e seus pintinhos.
86

Figura 11 - O herói que ajuda com a comida

Fonte: Livro Amor de Ganso(RENNÓ, 1995, p.06 e p.07).

O ganso corre com a comida, os pintinhos olham ansiosos esperando seu


retorno, enquanto a galinha ainda sustenta seu semblante de tristeza. Graças ao
ganso eles estão comendo.
Poderíamos pensar que essa história seguiria um roteiro parecido daquelas
tantas outras que mencionamos anteriormente (Romeu e Julieta, Tristan e Isolda,
Fernando e Isaura), mas há uma diferença crucial: em todas essas histórias, a
mulher possui um lugar social: ela vem duma família ou sociedade rival, mas não é
marginal. Aqui a galinha assume uma posição de desprestígio social: simplesmente
por ela ser galinha, negra e ter pintinhos, ela não é merecedora de participar de
nenhum círculo social, pois, em sua primeira aparição, ela se encontra solitária, com
fome e triste: é o ganso, com seu amor, que a salva, dá comida e a protege, sem ele
a fortuna da galinha parecia não ser tão boa.
Há aí alguma relação com as questões raciais. A galinha é representada com
a cor negra – e os gansos são todos brancos –, se trata não de uma gansa de outra
cor, mas de animais de raças diferentes – mas também de cor e, não sabemos se
por acaso, animais de pelagem branca e negra (galinhas podiam ser de muitas
cores, mas se escolheu a cor negra) –, como todos esses animais são
representações de humanos, percebe-se que as questões raciais estão presentes
dalgum modo e a galinha, por algum motivo é excluída do círculo dos gansos e não
é ao menos digna de serem direcionados os olhares a ela: é ignorada; ser galinha,
87

aparentemente nessa fábula construída com imagens, é ser excluída, é algum tipo
de marginal da sociedade dos gansos. E podemos ver que esses gansos são algum
tipo de centro da sociedade: eles têm acesso à comida, têm acesso a abrigo e ao
entretenimento – o lago. E os gansos se incomodam com aquela presença dentro
dos seus espaços de socialização, questionam ao protagonista ganso e lhes pedem
para escolher entre a galinha negra e seus filhos e a comodidade da sociedade
ganso.
Claro que o herói, homem, de classe média e branco, escolhe o amor – o
título do livro: “Amor de Ganso” – e resolve partir e continuar a proteger sua galinha
e seus filhos. O protagonismo masculino em ação: o homem, o herói que resolve os
problemas.
Essa história parece uma tentativa de renegociar a relação entre o novo
patriarcado (isto é, o homem sensível) e a moderna “mulher sozinha” com os valores
tradicionais da família, contudo, mantém o protagonismo masculino como aquele
que age, socorre, protege, e o feminino passivo, que sofre a ação mesmo de
solidariedade.
Observa-se que em todos os livros analisados há um esforço de tentar
organizar as questões de gênero e sexualidade em torno dos valores da família;
talvez uma tentativa de reafirmar o modelo de família da modernidade.
88

5.3 Pra que serve uma Barriga tão grande

Figura 12 - Para que serve uma barriga tão grande?

Fonte: Strauzs(2003 – Capa).

Mais um livro com uma temática voltada para as relações internas familiares:
a criação dos filhos, gravidez, relações familiares entre mãe e filho, a chegada de
novos membros na família. Os temas e enunciados presentes nesse livro se
assemelham bastante com os enunciados presentes nos outros livros: “Tem Gente”
e “Emanuela”.
Este livro tem inspiração numa fábula clássica da cultura ocidental:
Chapeuzinho Vermelho – logo em sua primeira página já observamos uma das
referências: quando a mãe-vaca segura um livro da fábula. Dentre as várias versões
que existem no mundo 16, poderíamos dizer que se trata duma história que conta
quando uma menina que usa um capuz vermelho vai levar alguma espécie de
alimento para a avó doente. Desobedecendo sua mãe e seguindo outro caminho, ela
conversa com um estranho: o lobo mau. Este, após ter uma conversa com a menina,
descobre para onde ela vai e a induz a seguir um caminho mais longo, dando tempo,
16
A versão dos irmãos Grimm, a versão de Charles Perrault; entre outras.
89

assim, dele chegar primeiro à casa da avó, para devorá-la e tomar seu lugar na
cama. Chapeuzinho Vermelho após chegar à casa, estranha a voz e aquela figura
que deveria ser sua avó e faz as famigeradas perguntas: “Por que seus olhos estão
tão grandes?”, “Por que seus dentes estão tão grandes?”, entre outras, respondidas
pelo lobo de modo reticente –querendo talvez ganhar tempo, ou adquirir a confiança
e a calma da personagem – “para lhe ver melhor, minha netinha” etc. Até realizar a
última e derradeira pergunta “por que seus dentes estão tão grandes”, que ele
responde: “Para te comer”, a devorando em seguida. Há versões em que o lobo
oferece a carne e o sangue da avó para a menina e, após ela ter se alimentado,
pede para que ela retire sua roupa e jogue na fogueira antes de devorá-la. Em
outras mais amenas, como as dos Irmãos Grimm, a chapeuzinho é salva por um
quinto personagem17: o caçador ou o lenhador, um homem que luta contra o lobo
mal e retira da barriga dele a avó e a chapeuzinho: transformando a história
naquelas de finais felizes.
A história da Chapeuzinho Vermelho – que com os irmãos Grimm
posteriormente poderíamos dizer que vira um “Conto de fada”18 – pertence a um
gênero textual característico pelo seu caráter fabuloso e mítico: a fábula; nela,
animais falam; são explicadas questões naturais através dum imaginário popular. É
um gênero que normalmente apresenta um teor moral; que pretende ensinar um
valor duma determinada cultura ou repassar algum conhecimento importante duma
determinada sociedade. Na fábula de chapeuzinho não é diferente: se quer ensinar
muitas coisas duma cultura específica: que crianças não devem falar com estranhos,
que devem obedecer às ordens de seus pais e as consequências desses pequenos
delitos podem ser bastante desastrosas, caso sejam desobedecidas.
Além da moral, as fábulas passam também aspectos culturais duma
determinada sociedade que a produz sem que necessariamente se tenha uma
intenção explícita de se passar este ensinamento – como, na verdade, qualquer
texto produzido no âmbito cultural; assim, a fábula da chapeuzinho também passa
que as meninas devem tomar cuidados com os lobos maus que elas irão ter que
lidar durante suas vidas: sobre como podem ser assediadas numa cultura
17
Os personagens da história seriam basicamente a Chapeuzinho Vermelho, a mãe, a avó e o Lobo
Mau.
18
Os contos de fadas seriam uma espécie de variação da fábula, pois partilham de muitos elementos
coincidentes desse gênero: são narrativas curtas que transmitem certos conhecimentos e valores
culturais, possuem um caráter fabuloso, onde animais falam, criaturas fantásticas aparecem etc.
90

patriarcalista e machista; sobre o estupro que normalmente pode acontecer com


meninas se essas não tomarem as devidas precauções. Isso não está claramente
dito nessa fábula, está nas entrelinhas, o lobo mal é uma representação de todos os
riscos que uma menina pode estar sujeita quando está sozinha com um homem
estranho: o risco de ser estuprada, violentada e morta.
Todos esses ensinamentos não fazem parte da moral explícita que o conto
quer passar, mas reproduzem um dado aspecto cultural da nossa sociedade
ocidental: que se é legitimada a violência contra a mulher; que as mulheres para não
sofrerem essa violência precisam tomar certos cuidados, como por exemplo não
falar com estranhos, andar por caminhos seguros e obedecer os pais. Apesar de
não ser dito claramente tudo isso, todas essas coisas estão presentes: a fábula da
Chapeuzinho só tem motivo para existir por que há esse tipo de violência contra a
mulher em nossa sociedade, sendo ela uma espécie de tentativa de ensinar as
meninas a prevenirem essa violência.
Tal como essa fábula, o livro analisado também não foge da condição de
qualquer texto em sua condição de artefato cultural. Além de tentar jogar com as
perguntas típicas de certa idade duma criança fazendo um tipo de intertextualidade
com aquelas perguntas feitas pela personagem Chapeuzinho Vermelho, é, também,
uma espécie de fábula moderna; uma espécie de texto moralizante que além de
transmitir um certo ensinamento, também diz tanto nos entremeios de suas palavras
e imagens.
91

Figura 13 - A mãe

Fonte:Strauzs(2003, p. 4 e p. 5).

O livro conta, basicamente, a história dum bezerrinho que começa a estranhar


mudanças recentes no corpo da mãe. Ela está ficando cada vez maior, a barriga
está crescendo, os olhos ficando maiores, os braços, os peitos e a boca também
estão maiores; a todo momento o bezerro faz uma pergunta sobre cada uma dessas
modificações no corpo da mãe – como a Chapeuzinho Vermelho o faria: “Mamãe,
por que a sua barriga está tão grande?”; faz também as clássicas perguntas tais
como “Mamãe, pra que servem esses olhos tão grandes?”, ou “mamãe, pra que
servem esses braços tão grandes?”, a mãe responde pacientemente e sempre de
forma a tranquilizá-lo – assim como o lobo mau o faria – e mostrando que ela pode
amar e dar atenção de forma igual a todos os seus filhotes. Tal como a fábula citada
anteriormente, o bezerrinho estranha aquela figura que antes era sua mãe; aquela
que ele descreveu da seguinte forma: “Minha mãe é uma vaca. Grande macia, toda
feita de colo e de leite”. Agora ela está desproporcional ao que era: tem membros
maiores e comportamentos diferente. E mesmo com as respostas tranquilizadoras
da mãe, ele fica extremamente aflito, acreditando que talvez não seja dada a ele a
atenção que era empregada anteriormente ou que ele fosse deixado de lado com a
chegada do novo membro na família. A situação se intensifica até a última pergunta
– que também seria a última pergunta da chapeuzinho vermelho – que ele indaga:
“E essa boca, por que ela está tão grande?” e a mãe, diferente do lobo que
92

responde – e que logo em seguida come a chapeuzinho –, responde que é para


cobrir o bezerrinho de beijos e lhe dá muitos beijos.

Então, mamãe abriu aqueles braços que não paravam de crescer,


me botou no seu colo imenso, me olhou com seus olhos enormes e
me deu uma porção de beijos.
Muitos beijos.
Tantos, tantos, tantos que tive certeza de que eles nunca mais iam
acabar (STRAUSZ, 2003, p. 28)

O livro tem um ensinamento explícito, assim como as fábulas, para ser


repassado às crianças: que a mãe ama todos os seus filhos, não importa a
quantidade. Esse livro tem um objetivo de tentar mostrar às crianças um modo de
lidar com a chegada de novos membros numa família. Mostrar que a mãe, mesmo
mudando, mesmo precisando dar atenção aos outros membros da família, ainda
assim o ama e dará a atenção necessária a cada um deles: a mãe tem um colo
macio, tem braços longos que podem abraçar todos os seus filhos, tem olhos
grandes que podem ver bem a todos, peitos grandes que podem amamentar cada
bezerrinho e uma boca enorme que pode beijar cobrir suas crias de beijos.
Porém, tal como as fábulas – e como qualquer artefato cultural da nossa
sociedade –, o livro possui um ensinamento não-tão-explícito; aquilo que está
presente nas entrelinhas, no discurso,aqueles pressupostos aos quais qualquer
artefato cultural se fundamenta para que possa fazer sentindo na rede discursiva da
nossa sociedade.
A começar, poderíamos analisar o animal ao qual se resolveu utilizar para
representar a mãe: uma vaca. Não qualquer vaca, uma vaca específica, descrita nas
primeiras linhas da história como: “Minha mãe é uma vaca. Grande, macia, toda feita
de colo e de leite” (STRAUSZ, 2003, p. 4). É o primeiro personagem apresentado
pelo narrador-personagem (que é o bezerro) na história; sua mãe é uma vaca. Uma
vaca, porém, com costumes não de vaca, mas de gente mesmo. Ela cozinha, tricota,
lê livros. Não se trata aqui duma história que conta como a “mãe” duma espécie
diferente de animal lida com seus filhotes. É uma história que quer contar o como
seres humanos lidam com uma determinada situação. E escolheram um animal que
representasse bem uma determinada figura humana (a mãe) na situação a qual a
história ocorre (a chegada de novos membros da família). O animal escolhido é uma
vaca. A mãe é uma vaca. Na parte do livro reservada para os autores do texto e dos
93

desenhos se apresentarem o ilustrador diz que curtiu muito ilustrar o livro e


“confesso que o que mais me impressiona em uma vaca é que ela parece estar
sempre calma e mascando chiclete” (STRAUSZ, 2003, p. 31). Parece não ser por
acaso a representação da mãe ser uma vaca: não se escolheu aleatoriamente um
animal qualquer que pudesse representar a figura da mãe nesse livro. Dentre todos
os animais: Tigresa, Leoa, Formiga, Macaca, entre tantos outros, se escolheu um
específico: a vaca, por um motivo específico. E a ela foram atribuídos outros
elementos que geram outros enunciados: o colo, o leite, a maciez e a calma. Além
de se atribuir a figura materna o animal vaca – que em nossa sociedade não é
dotada de grande prestígio –, se atribui outras palavras. O colo: a mãe parece ser
sinônimo de acolhimento. O leite: alimentação. A maciez: a mãe é delicada e
sensível. A calma: a paciência da mãe. Todos esses elementos juntos formam um
enunciado do como é construída a figura materna: uma vaca cheia de colo, leite,
macia e calma.

Figura 14 - Representações da mãe

Fonte:Strauzs(2003, p. 21, p. 10 e p. 11).

A mãe é representada, mais uma vez nesses livros, como uma figura calma,
sorridente e passiva – uma vaca – aquela que faz suas tarefas do lar calma e
resiliente. Ela cozinha, cuida dos filhos; observa enquanto eles tomam banho, lê
histórias para dormir e serve a comida na mesa, para todos comerem. A figura da
mãe é associada à figura duma dona de casa: uma boa mãe – aquela que o filho
94

deseja que não desapareça é aquela figura que sempre está à sua disposição para
cuidar e encher de mimos; fazer-lhes a comida etc.

Figura 15 - Representações da mãe 2

Fonte:Strauzs(2003. p. 12 e p. 13).

Uma vaca sorridente: é curioso que em todas as representações a mãe-vaca


está sempre carregando um semblante de felicidade: sempre está estampado em
seu rosto um sorriso, seja quando ela cozinha, seja quando ela olha os filhos se
banhando, seja servindo a comida; ela está sorrindo. Não só nesse livro isso
acontece: em “Tem gente” a mãe também está sempre sorrindo (até depois do
parto, ela está sorrindo). Parece, nesses dois livros, seguir um tipo de constante: a
mulher quando exercer seu papel de materno está em sua completude; parece que
esse momento é um dos momentos que a mulher pode estar feliz. O estereótipo da
mãe é a mulher feliz que cuida de seus filhos; que faz os trabalhos domésticos e
tudo isso feito como uma vaca: cheia de paciência, calma, colo e leite. É importante
percebemos que também não se trata dum sorriso largo; um sorriso grande, mas
sim um sorriso modesto: um sorriso de vaca: calmo e modesto.
Uma representação nos chama atenção; quando a mãe faz tricô. Em nenhum
momento ela está realizando um trabalho formal: ela está sempre trabalhando em
casa, fazendo tarefas típicas da mulher dentro duma sociedade patriarcal. Enquanto
o homem é responsável pelo sustento do lar; trabalha para prover alimento,
segurança e o lar aos membros da família, a mulher trabalhar dentro do seio familiar:
95

ela cozinha, costura, faz tricô, serve a comida, cuida das crianças. Nesse livro, está
representado todas essas atribuições típicas duma mulher dentro do pensamento
patriarcal.
Figura 16 - Representações da mãe 3

Fonte:Strauzs(2003, p. 6 e p.7).

Se no livro “Tem gente”, houve a preocupação de em pelo menos uma


imagem, ainda que quase completamente descontextualizado do texto, representar
o pai na história, nesse livro não houve: a figura do pai é completamente ausente;
não há a mínima menção ao pai ou ao homem nessa história. Apesar de não haver,
essa figura fica subtendida: já que não se trata duma mãe solteira: a mãe-vaca
nunca está trabalhando, ou há qualquer questionamento do filho-bezerro sobre as
saídas da mãe ao trabalho para sustentar a casa: isso com certeza seria um
questionamento dum filho: sobre a ausência da mãe para trabalhar ou como seria ter
mais um filho com ela precisando sair tantas horas do dia para sustentar a casa.
O homem é ausente. Quando se trata de questões de criação de filhos: a
figura paterna é quase completamente ausente. Parece que a figura que cuida das
crianças é sempre a mãe; a mulher. É ela que deve lidar com os filhos sobre quando
novos membros irão chegar. É ela que deve servir a comida, olhar os filhos tomando
banho. O homem nunca aparece quando essas questões estão sendo
apresentadas.
Todas as representações da mãe-vaca seguem nesse sentido: em nenhum
momento do texto se é questionada a colocação da mãe e da mulher dentro da
esfera familiar: a mulher é sempre a figura central, mas ao mesmo tempo adjacente:
96

é ela quem cuida dos filhos, porém não é ela que provê o lar, não é ela que sai para
trabalhar fora de casa. Ela é a figura calma que alimenta e educa os filhos, porém
não é a figura que sustenta a família.

5.4 O Menino Nito

Figura 17 - Capa do livro “O menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 1).

Este livro segue, também, num sentido parecido com relação aos outros livros
analisados; os enunciados presentes têm muito em comum: as relações familiares,
convívio familiar, relações internas familiares, criação dos filhos, relação entre os
membros da família, cuidado com o lar. Neste livro, porém, percebemos que houve
um deslocamento dos demais: enquanto que nos outros livros, que tratavam das
questões internas familiares19, o pai da família nunca estava presente: sempre era a
mãe a responsável por criar os filhos, por educá-los, por cuidar do lar; parecendo
que não é do homem a responsabilidade por tais tarefas,nesse livro o homem
19
O livro “Tem Gente” e o livro “Para quê uma barriga tão grande?”, ambos trazem enunciados sobre
as questões familiares.
97

aparece. E não só aparece como também participa da história: tem falas, e ajuda a
educar a criança. E isso gera um enunciado diferente dos outros livros que possuem
as relações familiares como principal tema. Aqui irá se trabalhar, também, a
construção da masculinidade. Essa história é também a história dum menino
aprendendo a ser homem.
O livro conta a história dum menino chamado Nito. Nito porque ele de tão
lindo todos o chamavam “Bonito”, de tanto chamá-lo assim, o apelidaram de Nito.
Nito tinha um “probleminha” (com as palavras da autora): chorava por
qualquer coisa. Todos brigavam com ele por chorar tanto. Não adiantava: ele
continuava a chorar por qualquer motivo. Até um dia em que o pai chamou o menino
Nito e lhe falou muito sério que ele estava virando um rapazinho e que por isso já
não podia chorar à toa. Continua dizendo que homem que é homem não chora; e
que o menino seria macho, logo aquele chororô deveria parar de agora por diante. O
menino, calado e assustado, apenas pensou no que o pai disse e resolveu engolir
todos os choros que tivessem pela frente. E ficou em sua mente as lições do pai
“Homem que é homem não chora”, que ele “era macho” e “acabou o chororô”.
Assim, ele engoliu vários e vários choros. “Uma média de vinte por dia”. Todos
estranharam pois o menino, antes altivo, parou de correr, pular e brincar. Não
sabendo o que estava acontecendo, os pais chamaram o médico para examinar a
criança. Doutor Aymoré20 (o único personagem com nome da história) pergunta ao
menino o que está acontecendo que ele está tão triste. O menino explica que após a
conversa do pai, ele passou a engolir todos os choros. Então o médico manda o
menino “desachorar” todo o choro engolido e pede para a mãe trazer duas bacias
grandes. O menino estranha perguntando se realmente poderia chorar, já que ele
era homem. O Doutor explica que é exatamente por ele ser homem que não deve
engolir os choros: todo homem possui lágrimas e elas são feitas para rolar no rosto.
Qualquer rosto: de homem, mulher, criança e gente de idade. Logo após explicar, o
médico manda ele chorar. O menino chora mais do que as duas bacias. Vendo-o
chorar, a mãe chora, o pai chora e até o médico chorou. Depois o menino ficou
curado e o pai, no mesmo dia, conversa com o filho emocionado, dizendo-lhe que
ele deve chorar sempre que quiser, mas não chorar sem razão. E continua dizendo
que chorar é bom. Às vezes deixa a gente mais homem. Após se abraçarem o

20
Aymoré foi uma nação indígena não-tupi que habitava a costa do Brasil.
98

menino Nito aprende a lição e, entre um choro e outro – com razão – cresce um
menino muito feliz.
Como já havíamos falado logo no começo, esse texto representa certo
avanço com relação aos outros livros analisados até o momento: aqui se estabelece
uma relação entre pai e filho. Nos outros livros a figura do pai era quase
completamente ausente da criação dos filhos: no livro “Tem gente” no único
momento em que o pai aparece a criança fica de fora da cena. No livro “para que
serve uma barriga tão grande” em nenhum momento se é citado ou aparece
representado em alguma ilustração.
Aqui, além de aparecer, o pai interage com o filho; participa da educação do
filho. E ambos ainda protagonizam um dos momentos mais bonitos desse livro:
quando se abraçam por um longo período e sentem as batidas do coração um do
outro.

Figura 18 - Páginas 14 e 15 do livro “O menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 14-15).

O pai fala com a criança, toca e abraça. Um abraço forte. Daqueles de sentir
mesmo o outro. Ele ainda fala, relativiza o que é “ser homem”: diz que homens
podem chorar sim e que às vezes isso pode até os fazer mais homens. E após dizer
isso, ele abraça o filho.
99

De fato, nesse livro se quebra, dalguma forma, com algum preceito de


gênero: o de que os homens são tão insensíveis que ao menos devem ou podem
chorar; ainda mais: ele mostra um homem que participa dalguma forma da criação
das crianças; um homem sensível; um pai que briga, porém é capaz de voltar atrás e
se retratar por erros. Um pai que acolhe seu filho, que toca, que abraça.
Porém a quebra é limitada.
Homens podem sim chorar, porém homens vestem roupas sóbrias: camisas,
camisetas, bermudas longas, calça comprida, sapato, tênis. Homens têm cabelos
curtos. Chorar, choram, mas os homens trabalham e os meninos brincam de
barquinho e aviãozinho. Apesar de quebrar com um tipo de enunciado que
representa o homem de forma insensível, ainda são várias as representações
estereotipadas do que é ser homem nesse livro.

Figura 19 - Página 4 do livro “O menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 4).

O menino chora, mas chora por coisas de “menino”: chorou porque o avião
quebrou, chora porque se cortou, porque fez o curativo, porque levou injeção,coisas
100

que fazem “meninos” chorar. Ele é chorão, mas ele não é chorão porque se
emocionou com um fim de filme, ou porque se emocionou com uma música, ou
porque sua boneca quebrou; aos homens são dados outros motivos para se chorar e
mesmo que ele chore, deve chorar - segundo palavras do próprio pai – com motivo;
com razão: o homem pode ser sensível, porém ele precisa ter um motivo, uma razão
prática para sê-lo.
Na parte do livro que o menino Nito finalmente chora depois de tanto tempo
guardando choro, todos choram. Porém não de qualquer modo:

A mãe chorou junto.


O pai chorou, sentido.
O médico chorou de emoção (ROSA, 2011, p. 13).

Devemos observar que a mãe é a única que chora apenas “junto”, que chora
sem motivo. O pai chora, mas chora porque ficou sentido. Ele tem uma razão para
chorar. O médico chora, mas ele chora de emoção. Também possui uma razão de
chorar. Até o menino Nito tem vários motivos para ter chorado tanto. Porém a mãe, a
única que é mulher nessa história, é também a única a chorar sem motivo. Ela
apenas chorou junto com o menino. Sem qualquer razão, sem que precisasse
colocar um porquê. Chorou junto e pronto. Parece que às mulheres é delegado o
direito de chorar sem motivos. Se é ressaltado isso, inclusive, pela própria narração
da história no fim do livro: “A partir daí, entre uma e outra choradinha, com razão, o
menino Nito cresceu um menino muito, muito, mas muito feliz” (ROSA, 2011. p. 16).
Os homens choram. Mas choram com razão; com motivo.
É curiosa a metáfora que a autora faz, no livro, de quando o menino começa a
engolir choros: ele cria uma espécie de represa que impede que as águas (que
seriam as lágrimas e os choros) de correrem o seu curso normal num rio bem largo.
101

Figura 20 - Página 7 do livro “O menino Nito”

Figure 1

Fonte: Rosa(2011, p. 7).

Observando a figura 19 vemos que o menino constrói uma barreira, uma


barreira que depois – em outra ilustração – é quebrada quando o médico o manda
chorar. Porém, agora, aparentemente se constroem comportas: não se bloqueia
todo o choro – que isso faz mal (segundo o pai e o médico do livro)–, mas deve-se
chorar com moderação; deve-se abrir as comportas às vezes, por um bom motivo. E
o menino que era dado a choro: que enchia fácil com lágrimas o curso dum rio largo
e profundo – como visto na imagem anterior, em que o menino cabe inteiro, e com
folga, no que seria o rio de suas lágrimas –, passa a chorar um tiquinho e a formar
nem mais um rio, mas um pequeno riacho (como mostra na figura 5).
Os homens podem até chorar com razão, porém eles brincam de brincadeiras
de “homens” mesmo. O menino sempre é representado brincando com aviãozinho
ou brincando com um barquinho de papel. Ele não brinca de boneca, ele não brinca
de casinha, ou quaisquer outras brincadeiras que normalmente são atribuídas às
meninas: ele brinca de barquinho e aviãozinho. Homens choram, mas brincam de
coisas que homens devem brincar.
102

Figura 21 - Página 16 do livro “O Menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 16).

Observamos tanto na figura 18 como na figura 20 representações das


brincadeiras do menino. São brincadeiras arquétipo do masculino. O avião; o barco.
Brincadeiras que constroem uma masculinidade: que apontam para uma
representação específica do masculino.
Outro ponto importante são as roupas.
Os homens do livro vestem sempre camisas e calças. Os meninos vestem
sempre camiseta e bermuda. A tonalidade das roupas segue em tons terrosos. Na
primeira ilustração todos vestem roupas em tons de verde. Nito, talvez para se
destacar como o personagem principal, ou para se destacar como o diferente, veste
uma camiseta laranja com listras azuis, uma bermuda verde e um sapato azul. O
pai, por sua vez, veste sempre uma calça (mesmo estando em casa) e blusas de
tons verde terrosos. Menos numa imagem, que ele usa roupas de trabalho e veste
uma camisa de botão branca com uma gravata em tom de verde. O médico, o último
personagem que faltava descrever, usa uma camisa e as cores habituais de
103

médicos: o branco. Todos os homens possuem seus cabelos bem curtos e a barba
rente.

Figura 22 - Página 8 do livro “O menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 8).

Já a mulher do livro – a mãe –, por sua vez, usa sempre vestidos e cabelo
cortado na nuca. É interessante perceber que a única mulher da história puxa a
paleta de cores das roupas para outra direção: ela veste roxo. Roxo terroso. Um
roxo que não destoa das demais cores, mas a diferencia. E não é qualquer cor. É
roxo. Uma cor que muitas vezes é ligada ao feminino; a mulher. Ela é a única
personagem que pode vestir essa cor. O menino Nito, mesmo diferente, é diferente
dentro do universo de cores que normalmente se é atribuído ao masculino: amarelo,
azul, verde. O pai sempre sóbrio apenas veste verde terroso e branco para o
trabalho.
Homens choram, mas vestem roupas de homens, com cores que homens
podem usar, com cabelos que homens usam.
104

Como já havíamos falado anteriormente, esse livro é também a história dum


menino aprendendo a ser homem; e nele estão vários enunciados que constroem
uma masculinidade específica. Se é questionado se homens choram ou não; se
podem expressar seus sentimentos, se podem ser sensíveis. Porém não se é
questionado porque homens vestem bermudas; calças e não vestidos. Porque
homens vestem certas cores e as mulheres outras. Porque homens têm que usar
cabelos curtos e mulheres cabelos longos. Porque o homem precisa ter motivos
para chorar. Todos esses enunciados estão presentes e constroem uma
representação de homem; dão as diretrizes aos meninos do que eles podem ou não
fazer/ser para serem considerados homens em nossa sociedade.
Sobre os enunciados das relações familiares, podemos começar observando
como é a construção da figura do pai nesse livro. É aquele que briga com o menino
quando ele chora; que ensina o que se deve fazer para ser homem. Apesar do livro
querer relativizar a representação do homem em nossa sociedade – austero,
insensível, rígido: aqueles que não choram –, ele ainda mantém certos estereótipos
da masculinidade, da figura do pai e do homem: ele trabalha e sustenta a família, ele
é retratado no centro; como a figura mais importante da família.

Figura 23 - Detalhe da página 5 do livro “O Menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 5).

No retrato da família, vemos que os membros não são dispostos de qualquer


modo. No plano mais elevado está o pai que olha para a esposa num plano mais
105

baixo à esquerda e esta, por sua vez, olha para o filho que está no plano mais baixo
e no centro. Este olha para frente e abraça os pais.
Se compararmos essa representação da família com a representação feita no
logo da coleção “em família” do livro “Tem gente”, vamos distinguir certas diferenças
e semelhanças. Em ambos o homem e pai da família sempre aparece no plano mais
elevado; a mulher à esquerda e os filhos em menor plano. Essa parece ser uma
constante na representação da família: aparentemente existe uma hierarquia em que
o pai assume o topo seguido da mãe e filhos. Porém, nessa representação, vemos
algumas diferenças: primeiro que o pai olha para a mãe e abraça ela e o filho.
Parece haver mais cumplicidade; o pai sorri, a mãe e o filho também. A família aqui
parece ser diferente daquela de “Tem gente”: parece ser uma família mais unida, em
que todos os membros participam da criação dos filhos, que se ajudam – eles se
olham, se tocam – e possuem alguma cumplicidade.
Porém, esse livro ainda possui um ranço da família tradicional. Se faz
questão de representar o pai com roupas de trabalho, enquanto que a mãe não:
mais uma vez o homem aparece como provedor do lar, aquele que trabalha para
sustentar a família e a mulher cuida da casa e dos filhos.

Figura 24 - Página 5 do livro “O Menino Nito”

Fonte: Rosa(2011, p. 5).

Na figura 23, observamos o pai da família com uma roupa diferente de todas
as outras que ele apareceu durante a história: ele possui uma gravata ao redor do
106

pescoço, uma camisa de botão branca de manga comprida, uma caneta no bolso:
roupas de quem acabou de chegar do trabalho.
Se constrói a figura da mãe e da mulher da seguinte forma: é aquela que usa
vestido, que pode usar roxo, cabelo longo, que não trabalha, que pode chorar sem
motivos e está num plano inferior ao homem,enquanto o homem é aquele que até
pode chorar, mas com uma boa razão, aquele que trabalha, que usa roupas de
cores sóbrias, que tem o cabelo curto, aquele que está plano mais elevado.
Apesar de quebrar com alguns preceitos de gênero, todos esses enunciados
citados anteriormente estão presentes na rede discursiva que compõe esse livro e
constrói sujeitos através de suas representações do masculino, do feminino e da
família.

5.5 Emmanuela

Figura 25 - Capas do livro “Emmanuela”, primeira e segunda edição,


respectivamente

Fonte: Oliveira (1997, 2003).


107

Quando o fazer artístico é mais importante que a mensagem a ser passada, o


texto ganha um aspecto diferente. E é até difícil para quem analisa fazer críticas; é
mais difícil transformar uma obra de arte num objeto discursivo, em enunciados.
O livro Emmanuela é um caso desses; um livro de extrema sensibilidade: que
possui um comprometimento com a arte e o fazer artístico; um livro que toca aquelas
pessoas que leem; duma beleza simples e singela: um livro de Literatura Infantil,
mas que adultos mesmo sentem o peso do belo condensado em texto e ilustração
“para criança”. “Para criança” apenas formalmente, já que algumas obras
transcendem as linhas tênues que existem entre uma coisa e outra.
Fazendo o trabalho de transformar esta obra num artefato cultural e
analisando-a discursivamente, poderemos dizer que se trata dum livro infantil que
traz enunciados característicos, alguns comuns aos outros livros que analisamos até
agora: relações familiares; criação dos filhos; chegada de novos membros na
família; cuidado com o lar. Enunciados religiosos também estão presente nesse
texto: parece ser um tipo de constante quando se fala da família atrelar a ela o
divino; o religioso (quase sempre cristão); algo que dá à família um caráter sagrado.
Em adicional esse livro tem um enunciado bem distinto dos outros: a morte de
membros da família. Esse enunciado vai dar ao livro um perfil completamente
diferenciado dos demais.
O livro conta a história duma família que vai receber uma nova criança:
Emmanuela. Narrado pelo ponto de vista de Rafael, um dos filhos dum casal que
possui, ainda, um outro filho chamado João – mais novo que o primeiro –. o livro vai
começar apresentando a situação da mãe grávida e da expectativa da chegada da
menina Emmanuela. Segundo Rafael, os pais, que antes brigavam muito, passam a
brigar bem menos, o pai que é artista, desempregado e cuida dos filhos quando a
mãe vai ao hospital trabalhar como enfermeira, passa a reclamar menos por não
conseguir emprego.
Antes da menina nascer, Rafael conta alguns causos, sempre atrelados à
mãe e a seu irmão, da gravidez. Ele conta quando João pergunta sobre como
Emmanuela foi parar na barriga da mãe; que João ficava muito em cima da mãe
enciumado e duma certa vez que João viu Emmanuela no banheiro antes mesmo
dela nascer.
Após nove meses, Rafael conta como foi, na sua visão, o trabalho de parto da
mãe, relata a chegada doutros membros da família (a avó, o avô etc.) e como foi a
108

experiência dele no hospital com a mãe prestes a ter a criança. Depois de três dias a
mãe retorna para casa com a menina. Ele diz que a casa ficou muito alegre e que só
às vezes brigava com João porque ele corria na frente para fazer as coisas que a
mãe pedia afim de ficar mais perto da neném. Ele conta duma canção de ninar
criada pela mãe e recitada por eles e do seu espanto do quanto a menina crescia
rápido. Tão rápido que ele suspeitava que ela crescia à noite enquanto todos
estavam dormindo, então ele, numa certa noite, fica acordado até tarde para checar
se isso é verdade. No meio do caminho para o quarto de Emmanuela, ele percebe
que a mãe ainda está acordada na cozinha e a vê chorar com um papel na mão. Ele
se esconde e, após a mãe ir embora, pega o papel; nele continha as palavras com
letra de máquina “Comunicação entre os átrios e defeito nas válvulas
atrioventriculares.” Ele não entende o que significa isso, mas percebe que é algo
sério, já que sua mãe não é dada a choro.
No outro dia ele indaga a mãe porque ela estava chorando e ela responde
que Emmanuela está muito doente. Ele diz que sentiu algo esquisito por dentro e
seus olhos encheram de lágrimas. Ela fala que é um problema sério no coração e
que se os médicos não conseguirem curá-la, ela vai “ter que voltar pra casa do
Papai-do-céu”.
Depois de um tempo a mãe procura Rafael e explica que os médicos não
estão conseguindo curar Emmanuela. O tempo foi passando até o momento decisivo
que seria a operação da menina. Eles ficaram com a avó quando a mãe e o pai
levaram-na para o hospital; depois dum longo período a notícia: a criança havia
morrido.
Rafael pergunta à mãe o que vai acontecer; a mãe responde que será igual a
uma sementinha de feijão: eles irão plantá-la na terra e ela vai nascer de novo no
jardim de Papai-do-céu. Ele pergunta o que vai acontecer quando ele sentir
saudade; ela responde que é fácil: é só olhar para o céu e ver o sol. Quando o raio
de sol bater em seu corpo, é Emmanuela brilhando. João, o filho mais novo, corre
para fora de casa e grita que sua irmã está lá; quando a mãe e Rafael chegam está
ele de braços abertos dançando nos raios do sol e chama Rafa para brincar também
com a irmã. Rafa o abraça forte.
Ele conta ainda que certa vez João estava triste porque não havia sol no dia e
a mãe, para consolá-lo, diz que Emmanuela era também uma flor. Após cinco anos
que a “moça bela se mudou”, Rafael conta que certa vez um colega de João estava
109

contando que alguém tinha morrido. A sua reação foi rir. O menino estranha e diz
que ele não deveria rir; que a morte é coisa séria e tentou ser duro. E pergunta da
irmã dele, o indagando se ela também não havia morrido.
João para, olha para ele, para o céu, torna a sorrir e responde com calma:
“Não, minha Emmanuela virou luz”
Um texto comovente, singelo e belo. Percebemos que há uma preocupação
com o fazer artístico que em nenhum outro texto parece ter existido. O texto tem um
enredo mais amarrado, tem personagens cativantes e de certa complexidade; tem
comprometimento social.
Enquanto que em todos os outros livros se trabalha com arquétipos, tipos
sociais: a mãe, o filho etc.,nesse livro não: os personagens parecem ter uma história
por trás; são personagens que possuem um psicológico; são únicos, têm nomes,
profissões, atitudes, têm personalidade e respondem de forma específicas aos
acontecimentos.
A mãe não é o tipo sensível que chora por qualquer motivo; não é aquela
figura apenas maternal “toda feita de colo e de leite” – como no livro “Pra que serve
essa barriga tão grande” –, ela é também mãe, mas é também enfermeira, é uma
mulher que não chora por qualquer bobagem, é uma mulher que briga com o marido
por ele não trabalhar, é uma mulher que, por ser mãe e por ser mulher, parece não
perder uma identidade própria em benefício de promover suas outras identidades de
mãe e mulher; não é porque ela possui essas duas identidades que ele deixa de ser
um personagem com densidade.
O mesmo serve para os outros personagens. A figura do pai, por exemplo, é a
única representação, dentro de todos os livros que analisamos, que o homem não
faz o arquétipo de provedor do lar: no livro “Amor de Ganso”, o homem é quem
alimenta a mulher e os filhos; no livro “Pra que serve essa barriga tão grande”, o pai
nem aparece; mas a mãe não trabalha fora de casa, ficando subtendido que ela é
sustentada por alguém, situação parecida ocorre no livro “Tem gente”. Já no livro
“Menino Nito”, o pai é o único que aparece representado com roupas formais; como
de alguém que acaba de voltar do trabalho. Em todos esses livros há uma
naturalização tão grande que o homem é que deve trabalhar e sustentar o lar que
nunca se é questionado, nas relações entre mãe e filho, uma possível ausência da
mãe nos momentos que ela vai ao trabalho.
110

A própria família possui arranjos diferenciados: a mãe e o pai não vivem na


“harmonia” tradicional duma família tradicional: eles brigam, eles têm diferenças e, o
mais importante, estão em pé de igualdade. Se observamos a figura 26, veremos
como se é representada a família no livro.

Figura 26 - representação da família do livro “Emmanuela”

Fonte: Oliveira(1997, p. 4).

Enquanto que em todos os outros livros analisados o homem sempre aparece


como uma figura central, maior, mais imponente, sempre com um semblante sério e
imparcial, nessa representação pai e mãe estão no mesmo plano, eles mantém o
mesmo semblante, uma posição parecida: ambos parecem se dar de forma igual a
uma árvore que representa os filhos; é como se ambos tivessem a mesma
responsabilidade, que tivessem cultivado aquela árvore dividindo igualmente suas
111

tarefas. Ninguém parece ser maior que outro, ninguém parece ter funções mais
importantes ou diferentes do outro; eles, nessa imagem parecem ser iguais.
Claro que ainda se constrói identidade de gênero para a mulher e o homem: o
homem veste azul e macacão, enquanto a mulher veste amarelo e rosa. Porém,
apesar dessa determinação de gênero, eles são iguais. Outra figura importante é a
27:

Figura 27 - representação da família no livro “Emmanuela”

Fonte: Oliveira(1997, p. 4).

Mais uma vez observamos outra representação que destoa das demais
analisadas nos outros livros: aqui a mulher se encontra no centro, ao redor dela
estão os filhos e o marido. Vale perceber que ao centro estão as duas mulheres da
casa: o marido abraça a mulher com um braço e com o outro ele ajuda a carregar a
menina “Emmanuela”; o homem é representado pela primeira vez, dentro dos livros
que analisamos, com uma aparente preocupação de auxiliar a mulher, em dar
112

suporte. O homem nunca aparece nessa posição: aquele que dá suporte; nos livros
que analisamos ele é sempre o centro; e todos os outros membros parecem
depender dele para (sub)existir.
Enquanto os outros livros seguiam uma constante de sempre representar o
pai em maior plano, com a mulher em menor plano à sua esquerda e o primogênito
à direita do pai quase no mesmo plano da mãe e, quando existia uma menina, ela
está sempre em menor plano e nem ao lado do pai, aqui não se aplica essa regra: a
mulher está ao centro com a filha: todos se voltam para elas para ajudar e cuidar; o
primogênito (Rafael) é o que está mais afastado; todos parecem ter uma
cumplicidade na criação da menina e parecem ajudar a segurá-la e criá-la.
Um ponto importante na história é que a mãe é quem sai para trabalhar e
sustentar a casa e o pai é quem fica em casa cuidando dos filhos. Em todos os
outros livros esse tipo de arranjo familiar não era apresentado: sempre a mãe parece
ser responsável pela criação dos filhos enquanto o pai, quando retratado, parece ser
o responsável pelo sustento. Esse tipo de representação construída por Emmanuela
contribui para a construção de identidades de gêneros mais subversivas, identidades
que quebram com um discurso patriarcalista e machista.
Porém é importante observarmos como é colocada a questão do pai ficar em
casa para trabalhar:

Sabia que as coisas estavam ainda difíceis. Tinha oito anos, mas via a mãe
sair pra trabalhar no hospital e o pai ficar triste em casa pintando quadros e
cuidando de tudo. Difícil para artista arranjar emprego no país (OLIVEIRA,
2003, p. 8-9).

Apesar do pai ficar em casa cuidando dos filhos, parece que ele fracassa
como homem ao fazer isso: ele fica triste e tem diversas brigas com a mulher.
Enquanto que nas outras histórias não há tristeza quando a mulher escolhe ficar em
casa para cuidar dos filhos e não trabalhar ou não conseguir emprego. E em
nenhum momento parece gerar conflitos familiares; no livro Emmanuela aparece,
ainda, como um tipo de anormalidade e como um motivo para o homem ficar triste e
gerar brigas com a mulher: parece não ser normal, nem ideal o homem ficar em
casa para trabalhar. Ele ainda justifica que a sua falta de emprego é dado a
dificuldade de se conseguir empregos para artistas. A mulher não precisa, nos
outros textos, justificar em momento algum a sua falta com o trabalho, ao menos se
é mencionado que elas poderiam trabalhar; parece completamente naturalizada a
113

escolha da mulher em ficar em casa para cuidar dos filhos. O homem quando faz
isso é motivo para brigas, é motivo para tristeza e desequilíbrio na família.

Figura 28 - Representação do cotidiano familiar na edição mais nova de


“Emmanuela”

Fonte: Oliveira(2003, p. 6).

Na edição mais nova, as imagens foram completamente mudadas e na figura


28 vemos uma imagem que destoa completamente das apresentadas na edição
mais antiga.
Vale lembrar que na história o homem não trabalha; ele é artista e não
consegue boas oportunidades de emprego; a mulher é que sustenta a casa; ela é
enfermeira. Assim, fica subtendido no texto que é o homem que cuida dos afazeres
doméstico, já que ele teria mais tempo livre que a mulher: ela passa o dia
trabalhando. Até aí muito interessante: houve uma inversão dos papéis que
normalmente são atribuídos à figura feminina e masculina em nossa sociedade: a
114

mulher sai para trabalhar e o homem fica em casa cuidando dos filhos e dos
afazeres domésticos.
Porém na figura 4 vemos algo curioso: a mulher, mesmo grávida (e muito
grávida: ela precisa apoiar a panela em sua barriga que está demasiada crescida),
serve a comida enquanto o homem pinta. Apesar da mulher estar grávida, apesar de
ter que passar o dia trabalhando, é ela que serve a comida, deixando, ainda
subtendido que é ela também que cozinhou a comida. E o homem? Pinta. É curioso
que no texto não fica claro que a mulher faz os afazeres domésticos; na primeira
edição não há qualquer imagem que suscite que a mulher faça as coisas na casa:
fica subtendido que quem faz é o homem: ele conversa com os filhos, leva eles para
o hospital: parece participar efetivamente da criação e dos cuidados com o lar; é
mencionado no texto que é o pai que fica em casa e cuida de tudo enquanto a mãe
vai para o hospital trabalhar como enfermeira.
Outro ponto que nos chama a atenção é quando o filho mais novo, João,
pergunta à mãe como Emmanuela foi parar dentro da barriga da mãe; ela responde
que “Emmanuela tinha saído da casa de Papai-do-céu para morar na barriga dela e
que lá morava um monte de crianças que vinham nascer na barriga das mães”
(OLIVEIRA, 2003, p. 9). Rafael reprime mentalmente João por fazer essa pergunta,
diz que João é fogo e que dá sorte da mãe ser carinhosa com as perguntas dos
dois. Ele ainda diz que teve vontade de contar a história da “semente que o pai
coloca na mãe pra fazer a gente nascer” (OLIVEIRA, 2003, p. 9), mas resolveu não
falar nada. Vemos aqui, primeiramente, um enunciado construído através do
discurso religioso para justificar o ato da criação. Em muitos dos outros livros parece
que sempre há uma ligação religiosa (católico-cristã) com as questões familiares: a
família parece sempre uma dádiva; algo divino. Nesse livro não é diferente: para se
resolver várias questões se recorre a Deus e à religião. Segundo ponto: não se
explica nem de longe como é a concepção das crianças; criam-se metáforas que
são dadas de acordo com a faixa etária da pessoa que vai receber a informação:
Rafael por ser mais velho já havia escutado a história da “sementinha”;o irmão por
ser mais novo escuta uma história ainda mais inverossímil. Porém, em todos os
outros livros que analisamos, que têm por temática a chegada de novos membros na
família (“Tem gente” e “Pra que serve essa barriga tão grande”), simplesmente é
desconsiderada essa questão, como se uma criança não tivesse essa curiosidade.
Nesse livro se coloca essa questão e ainda usa a metáfora da sementinha, que,
115

apesar de inverossímil, explica melhor como é a concepção do que simplesmente se


omitir e fingir que as crianças não possuem essa curiosidade.
E mesmo que se utilizem metáforas para responder a tais questões, devemos
levar em consideração que é uma prática interessante o como é colocada a questão
da concepção: mesmo não dizendo como de fato acontece, se dá margem para que
a criança que lê e tenha escutado essas histórias, possa perguntar e sentir
curiosidade sobre o assunto; já que o narrador parece descredibilizar as informações
que são dados sobre a concepção.
O livro Emmanuela seria, dentro de todos que analisamos, o livro que mais
quebra com os discursos tradicionais de gênero e sexualidade; é o livro mais
subversivo, que traz arranjos familiares com mais flexibilidade, que traz
representações da mulher e do homem, da mãe e do pai menos encaixotadas
naquelas clássicas representações em que a mãe cuida dos filhos e o pai trabalha,
em que a mãe é boa e chorosa e o pai forte e imparcial. É um livro belo e com certo
comprometimento nas questões sociais. Um livro de belas imagens (nos referindo à
primeira edição) e com belas metáforas.
116

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: COM A DELICADEZA NECESSÁRIA E AS


DESNECESSÁRIAS INDELICADEZAS

Foucault, em sua história da sexualidade, apesar de fazer apenas uma rápida


explanação dos temas que poderiam ser pesquisados a partir das suas afirmações
sobre a sexualidade, é cirúrgico ao falar do como a sexualidade infantil é tratada na
modernidade: ao mesmo tempo como algo natural e contra-natureza. É uma
sexualidade que contém riscos físicos e morais; cheia de dubiedade.
Vimos, durante o texto, a construção dum discurso que evidencia o trabalho
da sexualidade em sala de aula, como algo complicado; um “tabu”. Existe um
discurso que, ancorado naquele que Foucault evidenciou, reage às propostas de
inserção de gênero e sexualidade na escola e, mesmo quando acha que este deve
estar presente, dá-lhe o título de algo complicado, algo que ainda não é bem
resolvido em nossa sociedade.
É tanto que essa temática, durante a história do Brasil – como vimos –, ora é
inserida, ora retirada do currículo, e hoje mais uma vez, após várias lutas dos
movimentos sociais e intelectuais que defendem a inserção desse tema na escola,
ela é, num movimento reacionário que o Brasil vem enfrentando nos últimos tempos,
retirado do Plano Nacional de Ensino, com várias alegações: desde que as pessoas
do Brasil ainda não estão preparadas para que esse tema seja algo a se discutir no
ambiente escolar, a não haver necessidade para tal tema ser abordado.
Esse movimento, longe de responder às necessidades correntes das
sociedade, apenas evidencia o como esse tema ainda é tratado como uma questão
“delicada”; como esse tema, ainda que tão natural, adquire contornos contra-
natureza, contornos que evidenciam a necessidade de se discutir muito mais tal
temática.
No contexto anterior, quando ainda poderiam ser discutidas as questões de
gênero e sexualidade em sala de aula, diversas soluções, empecilhos e in-soluções
foram encontradas para o trabalho efetivo na escola.
Todo tipo de solução foi proposta, ora aceita, ou recusada – nessa temática
parece nunca haver consenso –, e aquelas soluções que aparentavam ter mais
sucesso nas mais diversas esferas sociais, eram aquelas que davam à sexualidade
a sua “delicadeza necessária”.
117

Numa reportagem realizada pela Folha de São Paulo em 200121, sobre uma
cartilha realizada pela Prefeitura de Curitiba de educação sexual, “Eu, Adolescente
de bem com a vida”, se fala duma polêmica causada: especialistas da área
aprovaram, enquanto sofre críticas da Igreja Católica. No corpo da reportagem,
numa seção específica intitulada “Linguagem” é realizada uma entrevista com o
Bispo auxiliar de Curitiba que rebate “uma cartilha com uma linguagem dessas não é
muito pedagógica”.
Primeiro é importante atentarmos para a importância que é dada ao discurso
religioso. Como ele ainda está presente e legitima as posições tradicionais e
conservadoras da nossa sociedade: o repórter querendo buscar embasamento para
fundamentar a “polêmica”, vai entrevistar dum lado o Bispo, doutro, técnicos da
Secretaria de Saúde. E fundamenta as críticas negativas ao material com a posição
de entidades religiosas que não concordam com esse tipo de material.
Segundo e mais importante: a linguagem. O quanto a linguagem é importante
para nossa sociedade. É criada uma seção específica na reportagem que é o lugar
da crítica do Bispo. E ele faz sua maior crítica justamente ao tipo de linguagem
empregada na cartilha.
É nesse movimento que a coleção “Explorando o Ensino: Literatura” parece
seguir quando fala que “Por meio da literatura infantil é possível tratar desses
assuntos com a delicadeza necessária” (BRASIL, 2010, p. 49-50): parece haver uma
necessidade de não se aplicar à sexualidade uma linguagem direta quando esta é
destinada ao público infantil no meio escolar. E mais: a literatura infantil aparece
como uma possível solução para isso; pois é literatura e esta, em teoria, possui uma
linguagem indireta, metafórica.
Parece que esse movimento de valorizar a literatura infantil para se trabalhar
a sexualidade nas escolas entende que a literatura, assim como a sexualidade da
criança, é ambígua, indefinida - metafórica.
E esse movimento evidencia, basicamente, que a linguagem mais adequada,
para se falar de sexualidade, parece deixar de ser a acadêmica, formal e imparcial; a
linguagem da ciência: os lugares legitimados na modernidade para se falar da
sexualidade humana deixam de ser a Igreja para se tornarem o divã do psicanalista,

21
SOARES, Reginaldo. Texto escolar "moderno" causa polêmica. acessado em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0504200131.htm, 20/10/2015 às 15h.
118

a mesa do médico: a ciência (FOUCAULT, 2012a). A sexualidade passa a ser


impregnada de termos técnicos e linguagem acadêmica.
Parece que, numa pós modernidade e no contexto do ensino de gênero e
sexualidade, há um deslocamento com relação à melhor linguagem a ser
empregada: agora seria a linguagem literária; a linguagem metafórica.
Pensando a partir dessa hipótese, poderíamos afirmar que, hoje, se aponta
para uma mudança em que se valoriza uma estetização do sexo à sua
racionalização – pelo menos no contexto escolar. Não poderíamos afirmar que se
trata realmente dum “novo” modo de se lidar com a sexualidade, porque esse parece
ser ancorado, também, em discursos religiosos que não querem que a sexualidade
seja tratada “às abertas”.
Mas isso, de qualquer forma, sinaliza para uma certa concordância em ambas
as partes: o discurso religioso cede dum lado já que se trata das questões de forma
delicada e os discursos que querem essa temática em sala de aula se sentem
satisfeitos com a presença de livros que abordam a temática a ser trabalhada na
escola.
Meio termo justo que parece abrir uma margem de subversão.
Diante desse contexto discursivo, resolvemos analisar as obras propostas
pela “Coleção Explorando o Ensino: Literatura”, com o objetivo de ver qual era o
potencial dessas obras em tratar das questões de gênero e sexualidade; ver como
são os discursos de gênero e sexualidade, se de fato cumprem com o prometido de
tratar dos assuntos com a delicadeza necessária.
Como vimos, nos livros “Tem gente”, “Amor de Ganso” e “Para que serve uma
barriga tão grande”, há uma representação da mulher extremamente característica
duma sociedade patriarcalista: em todas as suas representações, as mulheres
aparecem sorridentes quando estão acompanhadas da figura de um homem ou dum
homem-criança. Se constrói uma imagem da mulher que apenas se sente feliz
quando exerce ou sua função de mãe ou quando serve o marido. No livro “Tem
Gente”, a mãe aparece sorrindo em todas as imagens; até depois do parto ela está
sorrindo, enquanto que o menino esboça diversos semblantes, desde preocupação,
raiva e felicidade. No livro “Pra que serve essa barriga tão grande”, a mãe também
sorri em quase todas as imagens: ela está sempre cuidando de seus bezerros,
fazendo comida etc.; o único momento em que ela parece não sorrir é quando está
sozinha fazendo tricô. No livro “Amor de ganso”, a felicidade da galinha é totalmente
119

condicionada à presença ou não do ganso: quando no começo eles ainda não se


conheciam, ela estava imbuída dum semblante triste, quando eles se conhecem e
ele passa a proteger, ela passa a ficar feliz; quando os outros gansos levam seu
amado: ela fica desesperada.
Visto isso, parece haver que a mulher apenas se completa “mulher” quando
ou está exercendo a função de mãe, ou quando está acompanhada por um homem.
A mulher para ser mulher numa sociedade patriarcal, ela precisa ser mãe e
estar casada com um homem. Em todos os livros, o foco narrativo é no homem: seja
na figura duma criança do sexo masculino, ou na figura do homem adulto. No livro
“Tem gente”, o protagonista é um menino e é explorada a sua relação com sua mãe.
No livro “Amor de Ganso”, o foco narrativo mais uma vez é colocado sob o homem:
o ganso e seu amor. O livro “Pra que serve uma barriga tão grande” conta a história
dum bezerrinho lidando com a mãe grávida. O Homem, sempre o homem em
relação com a mulher.
Nesses livros, a mulher nunca é provedora, nunca parece caminhar sob suas
próprias pernas. A família é sempre nuclear, com o pai (ou o homem), responsável
pelos proventos, sendo uma figura central, ainda que quase completamente ausente
das questões que envolvem a criação de membros da família. Ele só se faz presente
quando é retratada a necessidade de segurança, alimentação e proteção.
O livro “Menino nito” quebra com alguns estereótipos de masculinidade:
“Homens podem chorar”, porém sob circunstâncias específicas e justas para que
homens possam chorar. A mulher é tratada em segundo plano nesse livro, as
representações de família continuam tradicionais como nos outros e o homem o
único que provê o lar.
O livro “Emmanuela” é uma espécie de exceção aos demais: nele é retratado
um arranjo familiar, uma mulher e um homem diferente: a família é sustentada pela
mãe, o pai fica em casa para cuidar da casa e dos filhos, a mulher não segue aquele
arquétipo de sexo frágil, que chora por qualquer motivo. A família parece haver
muito mais cumplicidade; todos contribuem para o fomento do lar.
O discurso religioso está quase sempre presente nesses livros: seja no título
da coleção, seja no esquema familiar retratado, seja em menções diretas. Parece
ser um tipo de constante, para ser bem aceito socialmente, que se tenha nos livros
essa presença do religioso católico-cristão.
120

Observamos, depois de realizadas as análises, que apesar de parecer um


lugar privilegiado de enunciação, a literatura não é, necessariamente, uma solução.
Nela pode haver discursos que legitimam relações desiguais de gênero e
sexualidade; pode-se naturalizar certos arranjos sociais que estão fundamentados
em preceitos machistas, patriarcalistas etc. São excluídos diversos arranjos
familiares, diversas identidades de mulher e de homem.
É importante ainda mencionarmos o que não está presente: há livros de
literatura infantil que já repensam as questões de gênero e sexualidade com mais
profundidade dos que analisamos; que pensam famílias diferentes; com arranjos
mais flexíveis. Livros como “Olívia tem dois pais”, “O livro de Pedro”, “Tango tem
dois pais”, “Eu tenho duas mães”, entre outros.
Livros delicados: literatura. Porém se faz necessário um comprometimento
maior com as questões sociais, pois nada parece fugir à materialidade discursiva,
para que não se cometam as indelicadezas delicadas de naturalização de certos
estereótipos de mulher e de homem, para que não se cometa a indelicadeza de não
incluir certos arranjos familiares de tantas famílias brasileiras que não foram
contempladas nesses livros.
121

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