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© FAROIs DE ETERNIDADE Rosane Pavam Robert Crumb 6 historiador confiavel da Amé- rica, Seu eterno romancista, O pintor das estas. ‘Um homem contra os enganos materiais.O casoraro de um pensador que nao vé obstéculos no tempo, ¢ ‘que caminha por ele livremente, com prazer. também o grande retratista contemporfineo, ‘como se de sua observacio dependéssemos nos to- dos para um reconhecimento intimo, para a afirma~ ‘e40 de nosso humanismo. Quando a confrontamos, ‘a imagem de demolidor cai em Crumb como uma ccontradigao. ( desenhista viu 0 sonho de liberdade nascer ¢ ‘escapar. Assistiu a deeretada morte de tudo — da reli- ‘io, do cinema, da mésica, da danca -, mas ndo a desejou. Libertar é diferente de matar, ¢ o trator de ‘Crumb passou sobre as senzalas suave-mente, bem raciocinado, Mr. Natural, o personagem-sintese des- ‘sas preocupagSes do artista, pode ser um homem de negécios sem preconceitos, certeiro, inteigente, en- ‘gracado, préximo, que estranhamentenos cativa. Mas no nos enganemos: embora ele esteja dentro denés, ‘ser Natural significa morrer. ara Crumb, foi preciso entio recomecar do pon- toem queas coisas nasceram, jé que elas néo haviam. podido crescer e decreté-las extintas teria sido uma imperdodvel contradic. Por que acabar com um. ‘sonho de liberdade, tenha ele comecado nas décadas ‘de 1960 ou 1920? Nest lvro tio rico de historias fis ao nascimento da nagio musical amerieana,o artista deseobre o inconsciente de um pafs. Ou um pats in- ‘consciente, necessitado da miisica como de um des- pertador-martelo dos Looney Tunes. ‘Em um dos mais incrivels trabalhos aqui conti- dos, Crumb desenha uma breve historia da América. ‘Nove quadros so compostos a partir de um mesmo ponto no espago, com uma variagio de tempo. No inicio, hé uma pradaria ¢ revoada de aves; no fim, 0 ‘rego substitu o campo ¢ 0s fios de eletricidade, os passarinhos. A paisagem, em esséncia, éamesma no decorrer da seqiéneia de quadros, porque oolho que avé nfo mudou. O olhosilencioso do homem. Crumb conta que fazia exercicios parecidos des- de o eolégio, quando as aulas atingiam a coeréncia do desinteresse: desenhava uma paisagem e a ima- sinava sob 0 mesmo ponto de vista através dos anos. Jamais chegava aos cenérios futuros. Assim, ao fim de “Uma Breve Hist6ria da América”, ele fax.a per- sgunta: “E depois?”, O depois deste artista ndo esta ‘nofim, esté em qualquer ponto distante. Talvez atrés. ‘Talvez antes. ‘Sabemos como trabalham os historiadores, cheios ddas provas do passado, para entdo estabelecer as ‘nexplicdveis razdes do presente. Mas a experiéncia é ‘um farol virado para tris, diz-nos o escrtor brasileiro PexiroNNava. Crumb ola paraopassado reiteradamente, ‘coma diferenca de que ov indistinto do que vive hoje. ‘Chamaram-no de revolucionério, mas talvez estives- sem errados. Para citar um outro escritor deste nosso pais, Guimaraes Rosa: “Sou um reacionérioda lingua, no um revolucionério!”. O passado ¢ uma ilusio ~ € ‘como ilusio precisa ser restabelecido, ou ser um ho- ‘mem nfo far senso. Por essa razio, Crumb nfo é apenas um historia~ dor, mas um artista da restauracdo, Isso éfécil de en- tender se compreendermas a obsessdo de que é feito este belo volume. Mais do que descrever ou desejar a ‘misiea de um tempo, Crumb quer recuperar a sensa- ‘gio desse tempo. Para ele, readquiridas certas mane! ras de dangar, de cheirar, de se relacionar com as co sas da vida (0s méveis, os amantes, os brinquedios, as vitrolas), a morte nao nos pegaré. Crumb quer a vida real, quela que faza o compositor Johann Sebastian Bach viajar dez quilémetros sobre um burro para as- sistir a um concerto, e nao a existéncia virtualmente colorida de hoje, que resume pela internet o concerto ¢, pasmem, o bem-estar nascido dele. “Odeio Frank Sinatra!”, disse o artista uma vez a0 inerédulo critico Gary Groth em Your Figor:for Life Appals Me, um volume de suas correspondén- cias. “E repulsivo osentimento dos anos 1950 ¢ 1960 que exalta esse estilo gingster-sofisticado de vida.” Para Crumb, célebre colecionador de discos de folk e blues de 78 rotagées, o tempo vem primeiro, a mt- sica, depois. ‘A gente ri muito quando ele distingue as letras legantes da Broadway, das meninas casadoiras do rhythm and bluese dos psicodélicos daquelas de um velho folkdos anos 1920, na maravilhosa historia “AS Velhas Cangdes Sto as Melhores”. Uma cangao caipi- ra antiga, para ele, tem o sabor da carne dura, dos socos, do fortuito, dos enganos, da vida resumida, ‘Uma eangdo atual (¢ a atualidade, para ele, eomega nna década de 40 do século XX), ainda que respei- tavelmente negra, nega-nos a verdade sobre o que somos e vivemos. Representa a morte, se a danga- ‘mos, porque os fatos da vida esto estilhacados, per- didos dentro dela. E.como toca alto! H algo de po- dre no reino dos megashows. Crumb nao se fixa no bites por pertencer a uma determinada cor de desvalidos. Seu olho repousa so- ‘bre aqueles descendentes de africanos porque obvia- ‘mente, com eles, a verdade musical americana come- ‘cou (um estrondo de libertagio no chiqueiro da casa ‘grande). Mas teria continuado ali? O que importa é a pperspectiva. O cenario 6 seu autor. ‘Menino de classe média, branco, culto de auto- formagio, Crumb detectou o saber eléssico que houve nos fot6grafos contratados pela Farm Security Admi- nistration, a secretaria de questdes agrérias do presi- dente Franklin D, Roosevelt época do New Deal, nos ‘anos 1930. Walker Evans, Dorothea Lange e Russell ‘Lee foram os mais importantes imagistas dos Estados Unidos da América, ainda que trabalhassem a convite de um ideario da presidéncia. Retrataram o trabalho (ouaansénciadele) no campo, as familias pobresaten- didas pelo governo, as borracharias dos negrosna bei- ra da estrada. Essas angulagies e pontos de fuga de sua autoria compuseram a imagem cléssica da vida americana, mais as grossas maos operdrias, as bacias de égua do wwestern,o preto-e-branco cheio de pintu- 1a. Crumb niio negou ~ até expos ~ aexisténcia dessa tradigio artista em seu trabalho, uma tradigao que inclui ainda a narrativa dos grandes desenhistas-es- critores Walt Kelly, Carl Barks ¢ Harvey Kurtzman, 08 prediletos de sua inspiracao. Artista que é, Crumb nio se furtou ao grancle as- stunto, no caso, a fundago musical americana. Tam- ppouco teve aoriginalidade como ponto de partida para retrati-la em narrativa eimagens.Sem receio, ecoma ‘grandeza necessari, reproduzi esse espirito de 6po- ca em que cabiam os pontos de vista cultos de Lange e Barks. Por exemplo,o desenho de Crumb persegui 0 cima das fotos de publicidade dos discos antigos. O artista ilustrou, com esse intuito, as eapas de coleta- neas de clssicos da Yazoo, de “Cheap Thrills”, com ‘Janis Joplin, eda banda do proprio desenhista, Cheap Suit Serenaders, na qual ele 60 alegre tocador canho- to do banjo. da qual faz parte Terry Zwigoff, autor do documentério Crud. Estdo todos os inventores da alma americana neste Blues de Robert Crumb, especialmente os fo- tografos: Walker Evans nos eendrios rurais e musi- «ais dos eruzamentos, Dorothea Lange no rosto das mulheres silenciosas, Russell Lee no interior precé rio das casas. Sinatra no teria mesmo ugar por aqui Entre elee Charles Patton, o compositor, hé uma dife- renca comparivel Aquela entre os Iuses e os padei- ros, sendo que os padeiros sio na verdade luises e 0s Juises se lambuzam de farinha. ‘Charles Patton éesse padeiroinsano, de vida mis- teriosa e curta, assemelhada & do lendério Aluesman Robert Johnson, mencionado elogiosamente numa passagem. Para Crumb, Patton é 0 retrato do funda- dor: errado, volento, breve, intenso, fracassaco,atis- ‘asem figurino, Ainda que historia escrta por Crumb tenha se baseado num livro de fatos posteriormente contestados, Deep Blues (de Robert Palmet), nao ha por que negé-la. Naquelas especulagbes sobre a sina demonfaca do misico, esté & busca de um sabor de criaglo, nfo de uma exatido biogréfica. Quando fala Bano Clea BolS SAROFONGS E SSIATA quASE COETP [Mas roUco TEMPO PEPOrm, NE VEIO AGUELE VELNOSENTIMENTO De iRRUIAGAO, € HOFIM EU ACARI INDIGNADO E ENOIADO. 7OR [QUE TEM QUE SER TRO ALTO, PORRA?? SE ELES ESTIVESSEM |TOCANC NSTROMENTOS acyotiCos, A MUSICA SOAR THO MELWOR! |eSsA MERDA ELETRICA TOOA E EXAGERADA DeMals-“e NOFIM One |CONTAS,I’50 REPRESENTA Uma BOA ARTE DO PROBLENA PosrAcio po AUTOR Eu adoro miisica, No entanto, ndo sou um gran-

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