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Histérias dentro da Historia Verena Albert Os historiadores ¢ a fonte A Historia oral permite o registro de testemunhos e o acesso a “histérias dentro da historia” e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretagao do pasado. Detinigdes ¢ historia A Historia oral é uma metodologia de pesquisa © de constituigao de fontes para o estudo da histéria contemporanea surgida em meados do século xx, aps a invengao do gravadora fita. Ela consiste na realizagio de entrevistas gravadas com individuos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. Tais entrevistas so produzidas no contexto de projetos de pesquisa, que determinam quantas € quais pessoas entrevistar, o que @ como perguntar, bem como que destino seré dado ao material produzido, Foes tino O trabalho com a Historia oral se beneficia de ferramentas tedricas de diferentes disciplinas das Ciéncias Humanas, comoa Antropologia, a Histéria, a Literatura, a Sociologia ¢ a Psicologia, por exemplo. Trata-se, pois, de metodologia interdisciplinar por exceléncia. Além dos campos mencionados, ela pode ser aplicada nas mais diversas éreas do conhecimento: na Educasao, na Economia, nas Engenharias, na Administrag3o, na Medicina, no Servigo Social, no Teatro, na Musica... Em todas essas areas ja foram desenvolvidas pesquisas que adotaram a metodologia da Histéria oral para ampliat o conhecimento sobre experiéncias e praticas desenvolvidas, registré-las e difundi-las entre os interessados. A estratégia de ouvir atores ou testemunhas de determinados acontecimentos ou conjunturas para mellior compreendé-los nao ¢ novidade. Herédoto, Tucidlices e Polibio, historiadores da Antiguidade, ja utilizaran esse procedimento para escrever sobre acontecimentos de sua época.? Entre 1918 e 1920, William Thomas ¢ Florian Znaniecki, pesquisadores poloneses radicados nos Estados Unidos, publicaram histérias de vida de imigrantes poloneses, na obra em cinco volumes The Polish Peasaut ix Europa in America? Estavam afinados com as novas tendéncias de pesquisa empirica do departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, a conhecida Eecola de Chicago, segundo a qual caberia ao pesquisador sair das bibliotecas e ir para 0 campo, no caso, a cidade, transformada em laboratério. Essas experiéncias em geral sio apontadas como “precursoras” da Historia oral “modema”, que delas se distingue principalmente por exigir a gravagio do relato, em éudio e/ou em video, e também por pressupor uma situagto de entrevista com objetivos bastante espectficos. ‘Costuma-se considerar 1948 9 marco do inicio da Histéria oral “moderna”. Nesse ano, quando foi inventado 6 gravador a fita, formou-se 0 Columbia University Oval History Research Office, programa de Historia ‘oral da Universidade de Columbia fandado por Allan Nevins ¢ Louis Starr em Nova York. Sua preocupacéo principal era coligir material para 0 uso de getagdes futuras com base em entrevisias realizadas, em sua maiorla, com ‘personalidades destacadas da histéria norte-americana, homens piiblicos que tiveram participagao reconhecida na vida politica, econémica ¢ cultural do pais. Aocontrario do que se fixara como regra geral em programas de Historia 156 ise denns ds Pn oral mais tarde, o Columbia History Office considerava a transcrigao, ¢ ndo a gravacdo, documento original Paralelamente surgitam na Europa algumas experiéncias também relacionadas ao que hoje chamamos de Histéria oral, como a coleta de relatos de chefes da Resisténcia Francesa no imediato pés-Guerra, ou a transcrigao de testemunhossobrea Segunda Guerra Mundial,na Alemanha, Nofinaldadécada de 1950, 0 Instituto Nacional de Antropologia do México comegou a registrar as recordagdes dos chefes da Revolugio Mexicana (1910-11), trabalho que fot intensificado por Alicia Olivera e Eugenia Meyer, nas décadas de 1960 ¢ 1970. Todasessas experiéncias fazem parte daquilo que ohistoriador francés Philippe Joutard, autor do hoje cldssico Ces voix qui nous vienient dt passe (Essas vozes que nos vém de passado), chamou de “primeira geragao” da Histéria oral Na década de 1960, paralelamente ao aperfeigoamento do gravacor portatil, tornaram-se freqiientes também as “entrevistas de historia de vida” ‘com membros de grupos sociais que, em geral, nao deixavam registros escritos cde suas experiéncias e formas de ver o mundo. Foi a fase conhecida como da Histéria oral “militante”, praticada por pesquisadores que identificavam na nova metodofogia uma solucto para "dar voz” as minorias e possibilitar a existéncia de uma Historia “vinda de baixo” Esses pesquisadores procuravam diferenciar-se da linha seguida pelo Columbia History Oifice, que privilegiava oestudo das elites, e, por isso mesmo, passou a ser visto como exemplo daquilo que nao se deve fazer. Nessa época, fizeram sucesso, nos Estados Unidos e na Europa, publicagdes que reproduziam entrevistas realizadas com camponeses e trabalhadores, sobre sua trajetdria e sua vida cotidiana.‘ Na Franga, chegou a ser publicada uma colego com o nome sugestivo de “Vivencias” com relatos desse tipo. Esse Loom da Historia oral na década de 1960 acabou marcando bastante a propria metodologia: suas préticas ea forma como passou a ser vista por historiadozes e outros cientistas sociais. Michel Trebitsch, pesquisador do Institut d’Histoire du Temps Présent, observa que, em raz4o dessa linha desenvolvida a partir do decénio de 1960, durante muito tempo a identidade da Historia oral se baseou em um sistema maniquetsta de antinomias. Opondo-se a Historia positivista do séeulo xy, a Histéria oral tornou-se a conira-Histéria, a Histéria do local e do comunitsrio (em oposigaoa chamada Historia da nacao). Por tras desse movimento, estava a crenga de que era possivel reconciliar o saber com povo e se voltar para a 187 Fees iden Histéria dos humildes, dos primitivos, das “sem Historia” (em aposigao’ Histéria da civilizagto e do progresso que, na verdade, acabava sendo a Histéria das elites © dos vencedores}$ Nao ha ctivida de que a possibilidade de registrar a vivencia de grupos ccujas historias dificilmente eram estudadas representou um avango para as disciplinas das Ciéncias Humanas. Mas seu reconhecimento s6 foi péssivel apés amplo movimento de transformacdo dessas ciéncias, que, com o tempo, deixaram de pensar em termos de uma tinica histéria ou identidade nacional, para reconhecer a existéncia de muiltiplas historias, memdrias e identidades em uma seciedade. Alguns anos se passaram até que as potencialidades do novo método fossem aceitas ¢ incorporadas as préticas académicas. Essa resistencia se deveu, em parte, A propria forma como eram realizadas as pesquisas que utilizavam a Histéria oral Com efeito, algumas das priticas e crengas da chamada Histéria oral “militante” levaram a equivocos que convém evitar. O primeizo deles consiste emconsiderarqueorelatoqueresulta da entrevista de Histéria oraljaéa propria “Historia”, levando & ilusdo de se chegar & “verdade do povo” gragas a0 Jevantamento do testemunho oral. Ou seja, a entrevista, em vez de fonte para oestuclo do passadoe do presente, torna-se a revelacdo co real. Essa confusto aparecealgumasvezesaindahojeem trabalhos ditos académicos; porexemplo, em dissertagies on teses que se limitam a apresentar o texto transcrito de uma ‘owmais entrevistas realizadas, comoseesse fosse um resultado legitimo.e final da pesquisa. E claro quea publicagao de uma ou mais entrevistasnao constitu problema em si. Oequivaco est em considerar que a entrevista publicada ja é “Historia”, e nao apenas uma fonte que, como todas as fontes, necessita de interpretagao e anilise. Em nome do préprio pluralismo, nao se pode querer que uma dinica entrevista ou um grupo de entrevistas déem conta de forma definitiva e completa do que acontecew no passado, ‘Outro equivoco decorrente da Hist6ria oral “militante” diz respeito aos usosdanogiode Histéria “ democratica’, ou Histéria “vistadebaixo”. Sera que ‘oo pesquisador que entrevista membros da elite —isto 6, que investiga visdes de mundo experiéncias de vida de personagens da Historia "de cima” —esereve necessariamente uma Historia “nio-democrética”? Certamente que nio.* Polarizagées do tipo Histéria “de baixo” versus Historia “de cima” contribuem para diluira propria especificidade e relevancia da Historia oral ~ 158 Huis dene de Mie on seja—,2 de permitir o registro. o estcto da experiéncia de um niimero cada vex maior de grupos, endo apenas dos que se situam em uma pasigdo ou outra na escala social. E certo que 05 que se situam “acima” costumam deixar mais registras pessoais — como carias, autobiografias, didrios etc. —de suas priticas. Nesse senticlo ~ mas s6 neste -, € possivel admitir que entrevistas de Historia oral comosquesesituam “abaixo” naescala social possam ser prioritérias, Fssa circunstancia leva, contudo, a uma curiosa conclusdo: & medida que a énfase sobrea Historia “de baixo” acaba vincullada anogao de “povos sem escrita”,a Historia oral torna-se uma “compensagio" para a incapacidade daqueles grupos de escreverem sobre si mesmos. Assim, um argumento que, inicialmente, reclamava maior importincia para os “de baixo”, correo risco de acabarreforgando, ainda que de modo indireto,opreconceitoem relagdoaeles: eles nao so capazes de deixar registros escritos sobre si mesmos. Deduz-se, pois, que a idéia de “dar voz" as minorias, tio cara 203 pesquisadores “militantes”, acaba reforgando as diferengas sociais: é pesquisador que concede aos “de baixo” a possibiliclade de se expressarem, pois eles so incapazes de fazé-lo por si sés! Esse nao é um problema novo nas Ciéncias Humanas, ¢ a Antropologia tem refletido bastante sobre ele. Até que ponto os estudos sobre grupos sociais marginalizadas respondem a uma demanda desses mesmos grupos? Quem Ié suas entrevistas? Como fazer que o resultado dla pesquisa retomeao grupo investigado? Em vez de imaginar que esté imbuido de uma “missio democratica”, © pesquisador deve reconhecer que a necessidade de ouvir os “de baixo” parte, antes de mais nada, dele mesmo, da instituigéo em que trabalha, do érgao que financia sua pesquisa; desde que esteja consciente disso e das implicacSes de sua decisfio, & claro que nada impede que se lance & pesquisa Na década de 1970, depois do sucesso da Hist. observam-se algumas tentativas de sistematizagio da metodologia. Grosso med, pode-se dizer que lentamente ela foi passando de “militante” a “académica”, Em 1973 surgem a Oral History Review, publicagéo da norte- americana Oral History Association, fundada em 1966, ea revista Oral History, da Oral History Society briténica. Nesse perfodo também s&0 publicados alguns manwais de Histéria oral, especialmente nos Estados Unidos, com 0 propésito de esiabelecer padtdes na coleta e no tratamento de entrevistas. Em algumas 4reas comecam a sungir pesquisas menos “populistas”, como as 159 Fonte hte de Franco Ferraroti, Alessandro Portelli e Luisa Passerini, na Itélia, ¢ as do projeto Lusir, na Alemanha, que trazem reflexes metodolégicas ao debate? Na Franga, uma pesquisa sobre a previdéncia social desenvolvida por Dominique Aron-Schnapper ¢ Daniéle Hanet deixa claro que é posstvel aliar atividade cientifica e prética arquivistica: o acervo de entrevistas 6 constituido coma preocupacao de preservar e permitit acesso aos depoimentos, ao mesma tempo que sua producao esta subordinada a um projeto de pesquisa Esse é também o momento em que pesquisadores da Europa e dos Estados Uniclos comegam a se reunir em encontros internacionais. Em 1978 ocorreu 0 primeito, em Essex, na Gra-Bretanha. Nomes que hoje fazem parte da “velha guacda” da Histéria oral no mundo, come Mercedes Vilanova (Espanha), Eugenia Meyer (México), Ronald Grele (Estados Unidos), Paul Thompson (Gri-Bretanha), Luisa Passerin ([télia), Daniel Bertaux (Franca) Lutz Niethammer (Alemanha), entre outros, esto presentes nessas primeiras trocas de experiéncias ¢ impressoes? Em meados da década de 1970, precisamente em 1975, a Histéria oral chegou a0 Brasil. De 7 de julho a 1° de agosto daquele ano, foi realizado 01 Curso Nacional de Histéria Oral, onganizado pelo Subgrupo de Histéria Oral do Grupo de Documentagio em Ciéncias Sociais (acs), formado em dezemisro do ano anterior por representantes de quatro instituigdes: a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, a Fundagio Getulio Vargas ¢ o Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentagao. Entre 0s cerca de quarenta alunos inscritos no curso, havia membros de diferentes instituigses do pais.” Os professores convidados eram George P. Browne, do Departamento de Historia da Seton Hall University, Nova Jersey; James ¢ Edna Wilkie, do Latin American Center da Universidade de California, e Eugenia Meyer. Como desdobramento do curso comecaram a ser realizadas, ainda em 1975, as primeiras entrevistas do Programa cle Histéria Oral do Centro de Pesquisa e Documentagao de Histéria Contemporanea do Brasil (crooc) da Fundacao Getulio Vargas. A proposta fundadora do programa era estudar a {rajetdria © © desempenho das elites brasileiras desde a década de 1930. A iddéia era examinar 0 processo de montagem do Estado brasileiro como forma, inclusive, de compreender como sé chegou ao regime militar (1964-85) entao vigente. Com as entrevistas, procurava-se conhecer os processos de formagao das elites, as influéncias politicas ¢ intelectuais, 05 conflitos e as formas de 160 Hissin dent a Pie conceber 0 mundo ¢ o pafs. Para alcancar esse objetivo, foi considerado mais apropriaco realizar entrevistas de historia de vida, que se esiendem por varias sessiies ¢ acompanham a vida do entrevistado desde a infancia, aprofundando- se em temas especificos relacionados aos objetivos da pesquisa. Esta linha de acervo continua em vigor até hoje ne Crpoc, ao lado de outras, e abarca politicos, intelectuais, tecnocratas, militares e diplomatas, desde os que ocuparam cargos formais no Estado até os que, fora do Estado, com ele cooperaram ou Ihe fizerarn oposicao.” Outra iniciativa que surgiu em 1975 como desdobramento do 1 Curso Nacional de Histéria Oral foi o Laboratorio de Histéria Oral do Programa de Pés-gtaduag3o.em Histéria da Universidade Federal de Santa Catarina, criado por Carlos Humberto Pederneiras Corréa, professor da universidade que assistiu ao curso e, trés anos depois, publicou um manual de Histéria oral. Podemos dizer que a década seguinte, de 1980, assistiu a um processo de consolidacao do que vinha acontecendo na anterior. Foram publicadas importantes coletaneas de artigos, reunindo os nomes mais expressivos da 6poca: Las historias de vida en ciencias sociales, organizado por Jorge Balin (1974), Biography and Society, organizado por Daniel Bertaux (1981), aimeros especiais das revistas Annales (1980), Cahiers Internationaux de Sociologie (1980), Dados (1984), Actes de ta Recherche en Sciences Sociales (1986) ¢ Cahiers de Uinstitut d'Histoire du Temps Présent (1987). Em 1988 0 Instituto Mora, na cidade do México, sediou 0 1 Encontro de Historiadores Orais de América Latina e Espanha, sob a coordenagao de Eugenia Meyer. O objetivo era constituir uma rede de intercémbio alternativa & que, no plano internacional, ocortia predominantemente no eixo Europa ~ Estados Unidos. © evento contou com a patticipagto de cerca de cingdenta pesquisadores, provenientes de Argentina, Brasil, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Espanha, Estados Unidos (Centro de Estudos Porto-riquentos), Peru, Porto Rico, Uruguai e Venezuela, além do proprio México. No Brasil, ao longo da década de 1980, formaram-se micleos de pesquisa ¢ programas de Histéria oral voltados paza diferentes objetos e tentas de estudo. Um levantamento realizado pelo Crnoc entre 1988 e 1989 ¢ publicado como apéndice na primeira edigéo do seu manual de Histéria oral, revelou a existéncia de pelo menos 21 instituigdes de pesquisa que se dedicavam a trabalhos com a Hist6ria oral em dez estados diferentes: Bahia, Distrito 1ét Fontes hai Federal, Cearé, Minas Gerais, Pars, Pemambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Sio Paulo. Esse creseimento continuow na década de 1980, resultando em intensa participagtio de pesquisadores ¢ instituigées nos encontros académicos ‘organizados a partir desse periodo. Durante 0 t Encontro Nacional de Histéria Oral, realizado no Rio de Janeiro em abril de 1994, foi criada a Associagao Brasileira de Historia Oral (4540). Nele inscreveram-se 250 pesquisadores de diferentes estacios do pais foram apresentaclos sessenta traballos.* \Virias instituigoes vém participando dos debates em toro da Histéria oral desde aquela ocasiao.” A satin, que em 2004 compietou dez anos, tem promovido regularmente encontros regionais ¢ nacionais, que favorecem sobremaneira a difusto e 0 intercdmbio em torno da Historia oral no pais.” Ao mesmo tempo, criaram-se possibilidades de discussie da metodologia em outros {Sruns, como a Associacio Nacional de Pés-graduagao ¢ Pesquisa ‘em Cigncias Sociais (Anpocs), em cujos encontros anuais ao longo da década ‘de 1990 se reuniu o grupo de trabalho “Hist6ria oral e meméria”. No plano internacional, o decénio de 1990 também representou um avango para a Histéria oral. A criagao da international Oral History Association (10H), em 1996, constituia um marco importante. Ela ocorreu durante 0 1x Congresso Internacional de Historia Oral, na Suécia, evento que teve forte participagdo de pesquisadores brasileiros, que integraram inclusive a primeira diretoria da entidade." Além da criagio da ona, o congresso da Suécia decidiu incentivar a realizagfo de eventos internacionais fora do eixo Europa - América do Norte. Com efeito, os trés congressos seguintes, de 1998, 2000 e 2002, ocorreram no Brasil, na Tuxquia e na Africa do Sul, respectivamente. Ao lado desse movimento em diregio a0 “Sul” do globo terrestre, os encontros intemnacionais foram incorporando experiéncias de Hist6ria oral desenvolvidas no Leste europeu, que se tornaram mais freqdientes apés a queda dos regimes socialites. Hbtoria oral e Histérla A consolidagdo-¢ a disseminacSo da Hist6ria oral no Brasil eno mundo so atualmenteinegaveis. O-piblico que freqiienta osencontros regionais, nacionais @ internacionais tem crescide bastante, Na academia, o debate das décadas de 1980 ¢ 1990, que buscou sistematizar as experiéncias e refletir seriamente sobre 162 | | | | 4 His dee os téas as bases ¢ implicagoes metodolégicas da Histéria oral, contribuiu para que 0 trabalho com enirevistas no seja visto comamesma desconfiangadeantes.Seaté as décadas de 1970 ¢ 1980, a Histéria oral ficou, por assim dizer, “fora” dos departamentos de Histéria, agora muitos deles ja a incerem em seu curriculo e admitem dissertacbese teses que discutem eanalisam as chamadas “fontes orais" ~ outro nome dado as entrevistas de Mistéria ora. No que diz respeito especificamente a Historia, esse novo quadto se deve a mudangas na propria diseiplina. Durante muito tempo, desde a perspectiva positivista predominante no século wx, a Histéria preconizou 0 escrito em detrimento do oral (este, identificado com o anedétice, com as sociedades sem escrita e, portanto, “sem Histéria”), e 0 pasado remoto em detrimento de temas contemporaneos, em relagio aos quais o historiador nao seria suficientemente imparcial. Mais tarde, a énfase sobre os processos de longa duragao e o estudo preferencial das fontes seriais (quantitativas), defendido pela Escola dos Annales (1929), dificilmente davam espaco ao papel do individuo na Histéria. Considerava-se que os relatos pessoais, as historias de vida ¢ as biografies néo contribuiriam para 6 conhecimento do passado, pois s4o subjetivos, muitas vezes distorcem os fatos e dificilmente seriam Tepresentativos de uma época ou de um grupo. Essas conviecdes sobre o que seria proprio da Historia softeram modificagdes a partir da década de 1980: temas contemporaneos foram incorporados & Histiria, chegando-se a estabelecer um novo campo, que recebeu onomne de Histéria do tempo presente; passou-se a valorizar também a anélise qualitativa, eo relato pessoal deixou ce ser visto como exclusive de seu autor, tomando-se capaz de transmitir uma experiéncia coletiva, uma visio de mundo tomada possivel enn determinada configuracao histérica e social. Hoje jé € generalizada a concepeio de que fontes eseritas também podem ser subjetivas ¢ de que a prépria subjetividade pode se constituir em objeto do pensamento cientifico. Surgiram novos objetos, ¢ 0s historiadores passaram ase interessar também pela vida cotidiana, pela familia, pelos gestos do trabalho, pelos rituais, pelas festas e pelas formas de soctabilidade - temas que, quando investigados no “tempo presente”, podem ser abordados por meio de entrevistas de Histéria oral Esse nove quadro resultou em mudangas importantes nas contetides dos arquivos e na concepséo do que é uma fonte, e nao por acaso coincidiu 163 Foner hes com as transformayes das sociedades modecnas. As mudancas tecnologicas ovorridas especialmente a partir do timo quartel do século xx modificaram os habitos de comunicacto e de registro, alterando também 0 conteido dos arquivos histéricos. Além das entrevistas de Histéria oral, outros registros sonoros (muisicas, jingles, gravagbes radiofonices), fotogratias, cazicaturas, desenhos, antincios, filmes, monumentos, abjetas de artesanato, obras de atte e de arquitetura s20 passiveis, hoje em dia, de se tomar fontes para o estudo da historia. O documento escrito deixou de ser 0 repositério exclusive dos restos do pasado, Por fim, observa-se atualmente, nao s6 a Histéria como em todos os campos do saber, a valorizagao da interdisciplinaridade. A Historia beneficia- se dodidlogo.com a Antropologia, a Literatura, a Sociologia, a Ciéncia Politica e outras éreas do conhecimento. O fato de uma pesquisa de Histéria oral ser interdisciplinar por exceléncia constitu, pois, mais um fator que favorece hoje sua aceitacio por parte de historiadores e cientistas sociais. Essa reconciliacdo da Histéria oral coma academia notadamente a partir dodecénio de 1990, se deve sobretudo ao fim da polarizagao maniqueistaentre “vencedores” ¢ “vencidos”, “nacional” e “local”, “escrito” e “oral”, “erudito” “popular” eassim pordiante. A Historia oral ¢hoje um caminko interessante para se conhecer e registrar miltiplas possibilidades que se manifestam e dao sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas a5 camadlasda saciedade. Nessesentida, ela esta afinada com as novastendéncias de pesquisa nas ciéncias humanas, que reconhecern as miiltiplas influéncias a que estao submetides os diferentes grupos no mundo globalizaco. Vale observar, contudo, que ha todo um espaco ocupado pela Historia oral fora da academia, como € o caso de algumes praticas pedagégicas € terapéuticas. Entre as primeiras esto experiéncias feitas com alunos do ensino fundamental e médio, estimulados a entrevistar membros de sua famitia e de sua comunidade, como forma de tornar 0 aprendizade da Histéria mais concreto ¢ proximo. No que diz respeito aos objetivos terapéuticos, pode-se citar como exemplo o uso da Histéria oral no campo da Medicina, como forma de possibilitar o registro ¢ a transmissto de experiéncias entre doentes e familiares, facilitando a adaptagao a doenga, Neste caso, como em alguns outros que adotam determinados pracedimentos desenvolvidos pela Historia oral, a entrevista nao é tomada como fonte a ser interpretada e analisada, 164 Hadas: deo da Here mas como instrumento que terd certo eleito sobre a comunidade-seja ampliar sua consciéncia histérica, seja aprender com os que j4 passaram por experiéncias semelhantes como se adaptar a uma sttuagio adversa. Na mesma diregao vao agdes que utilizam a Historia oral como forma de reforgar € legitimar a identidade de grupos comumente marginalizados. E 0 caso, por exemple, de entrevistas realizadas com mulheres em paises de maioria mugulmana, que muitas vezes funcionam como recurso terapéutico para favorecer 2 afirmacao de sua identidade, Essas e outras praticas que nao consideram a entrevista de Histéria oral necessariamente como fonte no serio consideradas neste capitulo, As possibilidades de pesquisa e a especificidade da fonte oral Uma pesquisa que emprega a metodologia da Historia oral é muito dispendiosa. Preparar uma entrevista, contatar o entrevistado, gravar 0 depoimento, transcrevé-lo, revisé-lo e analisé-lo leva tempo e requer recursos financeiros. Como em geral um projeto de pesquisa em Histéria oral pressupde a realizag3o de varias entrevistas, 0 tempo ¢ os recursos necessérios so bastante expressivos. Por essa razdo, é bom ter claro que a opcao peta Histéria oral responde apenas a determinadas questies ¢ nao é solugdo para todos os problemas. Quais sao as possibilidades de pesquisa abertas pela Hist6ria oral? Que problemas ela pode ajudar a solucionar? Uma das principais riquezas da Historia oral esté em permitir 0 estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiéncias, incluindo situagdes de aprendizado e decisdes estratégicas. Fesa nogio é particularmente desenvolvida em textos alemaes, em que recebe o nome de “Histéria de experiéncia” (Exfahrungsgeschichie) e aparece em combinagio com a idéia de mudanga de perspeetiva (Perspektivenwechsel), Em linhas gerais, essa combinagao significa co seguinte: entender como pessoas e grupos experimentaram o passado torna possivel questionar interpretagdes generalizantes de determinados acontecimentos conjunturas. Um estudo de Hist6ria oral sobre uma organizacao anarco-sindicalista durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1999), por exemplo, desmistificon a idéia antes predominante de autogestao operiria, revelando clivagens intemnas em um periodo em que se supunha 165 Font ins prevalecer a colaboragao.” Na Alemanha, uma entrevista com um trabalhador que ingressou no Partido Comunista Alemao na década de 1920 revelou que explicagbes generalizantes dadas a respeito da influéncia comunista sobre os trabalhadores da Republica de Weimar, como a situacio do proletariado ou a influéncia do aparelho partidério, podem nem sempre corresponder as situagbes especificas."* Essa “Historia de experiéncia” 6, para o historiador Lutz Niethammer, uma possibilidade de nos aproximarmos empiricamente de algo como o “significado da historia dentro da historia” ¢ permite questionar de modo critico a aplicagao de teorias macrossociol6gicas sobre 0 passado* A capacidade de a entrevista contradizer generalizagdes sobre 0 passado amplia, pois, a percepgao histérica ~ ¢ nesse sentido permite a “mudanca de perspectiva’” Esea riqueza da Historia oral estd evidentemente relacionada ao fato de ela permitir o conhecimento de experiéneias e modos de vida de diferentes grupos sociais. Nesse sentido, o pesquisador tem acesso a wma multiplicidade de “histérias dentro da historia”, que, dependendo de seu alcance e dimensio, permitem alterar a “hierarquia de significagdes historiogréficas”, no dizer da historiadora italiana Silvia Salvatici* Outros campos nos quais a Historia oral pode ser titil sto a Histéria do cotidiano (a entrevista de histéria de vida pode conter descrigdes bastante fidedignas das agbes cotidianas); a Histéria politica, entenclida nao mais como Historia dos “grandes homens” ¢ “grandes feitos”, e sim como estudo das diferentes formas de articulacdo de atores e grupos de interesse; 0 esitido de padres de socializacao e de trajetérias de individuos e grupos pertencentes a diferentes camadas sociais, geragdes, sexos, profissdes, religides ete.; Historias de comunidades, como as de baiero, as de imigrantes, as camponesas etc., podendo inclusive auxiliary na investigacio de genealogias; Histiria de instituigées, tanto puiblicas como privadas; registro de tradigbes culturais, af inclufdas as tradigdes orais, e Hist6ria da memoria Este siltimo campo é, sem dvivida, aquele ao qual a Histéria oral pode trazer contribuigdes mais interessantes. No infeio, grande parte das criticas que 0 método sofreu dizia respeito justamente as “distorgdes” da meméria, a0 fato de nio se poder confiar no relato do enixevisiado, carregado de subjetividade. Hoje considera-se que a andlise dessas “distorgdes” pode levar melhor compreensio dos valores coletivos e das proprias agbes de um grupo. 166 Hire deans ds Hinde E de acorde com o que se pensa que ocorreu no passado que se tomargo determinadas decisoes no presente (por exemplo, as escolhas feitas no momento de uma eleicio). Ao mesmo tempo, o trabalho com a Histéria oral pode mosirar como a constituigio da meméria ¢ cbjeto de continua negociagao. A meméria ¢ essencial a um grupo porque estd atrelada a construgao de sua identidade. Ela [ memsria] ¢ resultado de um trabalho de arganizagio e de selecao do que é importante para 0 sentimento de unidade, de continuidade e de coeréncia — isto é, de identidade” E porque a memoria é mutante, € possivel falar de uma histéria das memorias de pessoas ou grupos, passivel de ser estudada por meio de entrevistas de Histéria oral. As disputas em torno das memérias que prevalecero em um grupo, em uma comunidade, ou até em uma nage, sio importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a sociedade como um todo. Durante muito tempo, a memoria foi tratada, mais uma vez, de forma polarizada. Falava-se da oposicao entre “membria oficial” e “meméria subordinada” ou “dominada”. Hoje 4 hé um consenso de que é preciso ter em mente quehd uma multiplicidade dememériasem disputa, Osocidlogo Michael Pollak chamou atengdo para isso quando observou “a existéncia, numa sociedade, de memBrias coletivas to numerosas quanto as unidades que compdem a sociedade”.® Robert Frank, seu colega no Institut d'Histoire du ‘Temps Présent, propos uma classificaao em quatro tipos, que vai desde a meméria oficial da nagdo, passando pela meméria dos grupos (dos atores, dos partidos, dasassociagtes, dosmilitantesde uma cansaetc.}epela membriaerndite (dos historiadores), até a meméria piiblica ou difusa.® Alessandro Portelli, Finalmente, chama a atencao para 0 fato de, em sociedades complexas, os individuos fazerem parte de diversos grupos, dos quais extraem as diversas memérias, organizando-as de forma idiossincratica. Em sua anélise do Massacre de Civitella Val di Chiana, em que 215 civis italianos foram mortos em um tinico dia pelos alemses nazistas em jumho de 1944, Portelli fala de memsria dividida, nao no sentido de que ha um conflito entre a “meméria comunitdria pura e espontinea” e aquela “oficial” ¢ “ideolégica”. “Na verdade", diz ele, “estamos lidando com uma multiplicidade de memérias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideolégica e culturalmente mediadas.”® O reconhecimento da diversidade 167 Fenestra constitui, portanto, a melhor alternativa para evitarmos a polaridade simplificadora entre “meméria oficial” e”memsriadominada’ e realizarmos ‘uma anilise mais rica dos testemunhos obtidos em nossa pesquisa Observerse que estudlar a constituigao de memGrias nao é o mesmo que constrtir memérias. Muitos dos que trabalham com Histéria oral acham-se imbuidos da misao de promover a construgao de memsérias, Nesses casos, a entrevista de Histiria oral nao é tomada como fonte a ser analisada pelo pesquisador, mas como parte de um processo de “conscientizagio” e de construgio de identidade. Como explicado anteriormente, essas modalidades de acio nao serao consideradas neste capftulo. As possibilidades de pesquisa abertas pelo uso da Historia oral so, sem dtivida, bastante proficuas e atraentes, Mas entre gravar as entrevistas e delas tirar conclusées consistentes para os campos de investigagao escolhidos vai uma grande distancia, Nao ¢ facil trabalhar com a chamada fonte oral. Como fazer para “ouvir” o que ela tem a dizer? Antes de mais nada, é preciso considerar as condigdes de sua produsio,o quenos leva & sua especificidade. A entrevista de Historia oral é uma fonte intencionalmente produzida, colhida 2 posterior. Em um artigo intitulado “Reflexdes sobrea teoria das fomtes”, ohistoriador alemao Peter Hiittenberger sugere dividir os vestigios do passado em dois grupos: os residuos de acto e os relatos de ago." O tipico resfduo de agdo seria odissicodocumentodearquivo—pedacode umaacio passada-enquanto o relato de agao, posterior a ela, poderia ser exemplficado por uma carta que informa sobre uma agao passada, ou ainda por memérias ¢ autobiogratias. Mas Hiittenberger acrescenta a sua classificagao uma observacao importante: um relato de agao é também resfduo de uma acao. Por exemplo, a carta que informa sobre uma ago passada é também o resfduo da acto que seu antor quis desencadear ao escrevé-la ¢ envié-la. O mesmo ocorre com autobiografias Uma autobingrafia é ¢ quer ser principalmente um “relaio” de agoes passadas clo ponto de visia de uma pessoa. Mas ela tambéin pode ses parte de uma ago, por isso, “sesiduo”, Tanto assim que alguns atores guardam provisoriamente suas utobiografias, porque recelam conseutiénclas politicas ou de ‘outro tipo. Eles acreditam que seu texto contém um potencial de possibilidades de aco, podendo, com isso, desencadear novas ages. As autobiografias quarem instruir 0s leilores e mpingir-Ihes urna visio especial dos acontecimontos* 168 Hie dente de Hite Ora, do mesmo modo que uma autobiografia, podemos dizer que uma entrevista de Hist6ria oral é, a0 mesmo tempo, um relato de ages passadaseum, residuo de agdes desencadeadas na propria entrevista, Com uma diferenga, é dlaro: enquanto na autobiografia hé apenas um autor, na entrevista de Historia oral hino minimo dois autores —oentrevistado e oentrevistador. Mesmo que 0 entrevistadarfale pouco, para permitir ao entrevistadonarrar suas experiéncias, a entrevista que ele conduz é parte de seu priprio relato - cientifico,académico, politico etc, —sobre agbes passadas, e também de suas agoes. Eo que a entrevista documenta como resiiiuo de ago? Em primetro lugar, cla € residuo de uma agie interativa: a comunicagdo entre entrevistado e entrevistador. Tanto um como outro tém determinadas idéias sobre seu interlocutor e tentam desencadear determinadas agées: seja fazer que o outro fale sobre sua experiéncia (0 caso do entrevistador), seja fazer que o outro entenda o relato de tal forma que modifique snas préprias conviegdes na qualidade de pesquisador (0 caso do entrevistado). Em segundo lugar, a entrevista de Hist6ria oral é res{duo de uma ago especitica, qual seja, a de interpretar o pasado. Tomar a entrevista como residuo de ago, e no apenas como relato de ages passadas, é chamar a atengdo para a possibilidade de ela documentar as ages de constituicdo de memiérias ~ as agdes que tanto o entrevistado quanto o entrevistador pretendem desencadear ao construir o passado de uma forma e nao de outea. A entrevista de Histéria oral deve ser compreendida também como documento de cunho biografico, do mesmo género de memérias, autobiogratias, didrios e outros documentos pessoais. Trata-se, pois, de uma fonte ajustada a um importante paradigma das sociedades ocidentais contemporaneas:aidéia do individuo como valor. Oindividuo tnicoesingular, © ser psicoligico, da sentido a uma série de concepgées e priticas em nosso mundo, ¢ 6 pesquisador que opta por trabalhar com a Histéria oral deve ter consciéneia de que esté lidando com uma fonte que reforea esses valores, O socidlogo francés Pierre Bourdieu jé chamou a atengao para a “ilusio diografica’, isto é, para o fato de a unidade do eu ser, na verdade, uma formidavel abstracao. Bssa iusto compreende a idéia de uma identidade coerente; de um tode, com projetos e intencées; de uma trajetdria de acontecimentos sucessivos (é comum representar-se 4 vida como estrada, ‘caminho, carreira, corrida etc.). Além disso, a ordem cronalogica com que se 169 omer Hains “organizam biografias imprime a vida uma l6gica retrospectiva e prospectiva, preocupada em dar um sentido a existéncia, O nome proprio, a individualidade biolégica e a assinatura asseguram a constancia e alimentam a ilusdo de unidade, quando, na verdade, o eu é fracionado e muiltiplo.* Em geral o entrevistado, assim como os leitores ou os ouvintes de uma entrevista, partitham a crenga na vida como trajetdria progressiva que faz sentido. Cabe ao pesquisador estar alento ao fato de signiticados atribuidios a ages e escothas do passado serem determinados por uma visio retrospectiva, que confere sentido as experiénicias no momento em que sto narradas. Reconhecer os paradigmas que esto na base da Histéria oral nio implica renunciar a sua capacidade de ampliar o conhecimento sobre o passado. Ao contririo, saber em que lugar nos situamos ao trabalhar com determinada metodologia ajuda a melhor aproveitar seu potencial. Uma das principais vantagens da Histéria oral deriva justamente do fascinio da experigneia vivida pelo entrevistado, que torna o passado mais conereto e faz da enirevista um veiculo bastante atraente de divulgacao dle informagdes sobre 0 quie acontecet., Esse mérito reforga a responsabilidade eo rigor de quem colhe, interpreta ¢ divulga entrevistas, pois é preciso ter claro que a entrevista nao é um “retrato” do passado. “Mas em que medida a experiencia individual pode ser representativa? Até que ponto uma historia de vida fornece informagdes sobre a historia da sociedade? Alguns autores que defendem o uso da biografia no estudo da histéria consideram que as biogratias de individuos comuns concentram todas ascaracteristicas do grapo. Flas mostram o que éestrutural eestatisticamente proprio ao grupo e itustram formas tipicas de comportamento, Mesmo uma biografia exeepeional & eapaz de langar luz sobre contextos ¢ possibilidades latentes da cultura - como é 0 caso de Menocchio, 0 moleito personagem histirico do livro Q queija ees vermes, do historiador italiano Carlo Ginsburg, Como o préprio Ginsburg observou, a excepcionalidade de Menocchio permite deduzir, “em negativo”, o que seria mais freqiiente em sua época.” Biografias, historias de vida, entrevistas de Historia oral, documentos pessoais, enfim, mostram o que é potencialmente possivel em determinada sociedade ou grupo, sem esgotar, evidentemente, todas as possibitidades.® Outra especiticidade da entrevista de Histéria oral é 0 fato de um de seus principais alicerces set a narrative. Um acontecimento vivide pelo 170 isis dem do Hina enirevistado nao pode ser transmitido a outrem sem que seja narrado. 1830 significa que ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da entrevista, Ao contar suas experiéncias, o entrevistado transforma o que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando os acontecimentos deacordo com determinado sentido. Esse “trabalho da linguagem” vem sendo estudado por diversos autores do campo da Teoria da literatura, que tomam. como objeto de andlise narrativas literdrias e nao literérias, inclusive narrativas orais.* © emprego de ferramentas tebrieas da Teoria da literatura pode ser 1itil na andlise das entrevistas de Historia oral” © fato de ser uma narrativa oral, que resulta de uma inieracao entre entrevistado ¢ entrevistador ~ uma conversa, podemes dizer ~, toma essa Fonte especitica em relagdo a outros documentos pessoais, como as memérias € as autobiografias. O que o entrevistado fala também depende da circunstancia da entrevista e do modo pelo qual ele pereebe seu interlocutor, Quando é solicitado a falar sobre o passado diante de um gravador ou uma camera, cria-se uma situagao artificial, pois a narvativa oral, a0 contrério do texto escrito, nao costuma set feita para registro. E claro que 0 entrevistado acostumado a falar em puiblico ea conceder entrevistas para 0 rédio ou a televisdo terd um desempenho diferente daquele que nao tem essa experiéncia, Para alguns, o fato de estar concedendo uma entrevista pode ser motivo de orgulho, porque sua experiéncia foi considerada importante para ser registrada, Para outros, a sittiagdo pode ser inibidora. Além disso, como a linguagem oral é diferente da escrita, leitores desavisados podem estranhar © texto da entrevista ixanserita, geralmente menos formal do que um texto jé produzido na forma escrita. Todos esses fatores devem ser levados em conta quando da produgdo e da andlise da fonte oral. Como usar fontes orais na pesquisa historica A preparagao de entrevistas: projeto de pesquisa ¢ roteiros”” trabalho de producto de fontes orais pode ser dividido em trés ‘momentos: a preparacio das entrevistas, sua realizagio ¢ seu tratamento. A preparacSo das entrevistas inclu o projeto de pesquisa e a elaboragio dos Wt Foote hice roteiros das entrevistas. No projeto, deve ficar claro que a escolha da metodologia de Histéria oral & adequada a questo que © pesquisador se coloca. A narrativa dos entrevistados e sua visio sobre o tema estudade devem ser importantes para os propésites da pesquisa, Além disso, é preciso que 0 desenvolvimento da pesquisa soja factivel, isto 6, que haja entrevistados erm condig6es ce prestar seu depoimento. © projeto também deve discutir e tentar definir que tipo de pessoa sera entrevistada, quantos serdo entrevistados ¢ qual tipo de entrevista sera realizado, Essas escolhas serio conclicionadas pelos objetives da pesquisa: “ quem entrevistar?” Depencle de “o que quero saber?”, A decisio deve besear- se em critérios qualitativos, como a posigao dos entrevistados no grupo eo significado de sua experiencia, Isso significa que os entrevistadas si0 tomados como unidades qualitativas,¢ no como unidades estatisticas. Para selecioné- los € necessirio um conhecimento prévio do universo estudado; & preciso conhecer © papel dos que participaram ou participam do tema investigado, saber quais seriam os mais representatives e quais s8o reconhecicios pelo grupo, além de conhecer os que so consideracios “desviantes” No projeto de pesquisa, convém Iistar os nomes dos possiveis entrevistados com uma breve biografia que justifique sua escolha de acordo com os objetives do estudo, Nesse primeiro momento, trala-se apenas dos entrevistados em potencial, pois nao se sabe ainda ao certo se poderao participar do projeto. E preciso ter claro que a listagem inicial sera permanentemente revista, pois um dos possiveis entrevistados pode nao querer ou nao poder dar a entrevista, nomes antes nao considerados podem surgir, ou ainda determinada entrevista pode ficar aquém das expectativas, seado necessiria nova selegdo, Por isso, apenas ao final da pesquisa ter-se-t a lista definitiva de entrevistados daquele projeto. O trabalho com a Histéria oral tem um alto grau de imponderabilidade. Nem todas as entrevistas “rendem” o que se poderia esperar, do mesmo modo gue nem todos 08 documentos de um arquivo textual 30 suficientemente “prolixos” em relagdo a0 passado, Pode acontecer de s6 descobrirmos a riqueza de um depoimento apés algum tempo, como foi o caso da entrevista que a historiadora Janaina Amado gravou com um participante da Revolia de Formoso, movimento de disputa de terras ocorrido no estado de Goids durante a década de 1950, A maioria das informagées fornecidas pelo 172 teas dove de Hit entrevistadoa respeito da revolta nao se confirmou, mas sua entrevista servi para mostrar a grande difusio do romance D, Quixoie no estado de Goids, j& que o relato dos acontecimentos era feito em versos, como se fosse a aventura do personagem de Cervantes.” ‘Uma pesquisa de Historia oral produz entrevistas diferentes em qualidade ¢ densidade, e muitas vezes isso depende dos entrevistados. Ha pessoas que, por mais representativas que sejam para falar sobre determinado assunto, simplesmente nao se interessam por, ou nao podem, expiorar de modo extensive sua experiéncia de vida e discorrer sobre 0 passado, como talvez sua posigao estratégica o fizesse crer. Isso ndo quer dizer que a escolha tettha sido equivocada. Ao contrério: ela continua plenamente justificada pelos objetives do estudo e pode se tomar particulammente relevante quando tomamos a propria parciménia do discurso como objeto de reflexae, quando nos perguntamos por que 0 entrevistado, que tem todas as condigoes para prestar um depoimento aprofundado sobre o assunto, ndo se dispée a (no sabe, nao quer, nao pode) falar sobre ele com igual intensidade. Q ideal seria poder escalher entrevistados dispostos a revelar sua experiéncia em didlogo francoe aberto e, de sua posigio no grupo ou em relagdo ao tema pesquisado, fossem capazes de fornecer, além de informagées substantivas € versdes patticularizadas, uma visio de conjunto a respeito do universo estudado. ‘Como na definicdo do “bom entrevistado” de Aspasia Camargo: Aquele que, por sua percepedo agnda de sua propria ‘experiéneia, on pela importaneia das fungoas que exerceu, pode oferecer mais do que © simples relato de acontecimentos, estendendo se sobre impressies de époes, comportamento de pessoas ou grupos, funcionamento de instisuigSes e, num sentido mais abstrato, sobre dogmas, conflites, formas de cooperacao e solidariedade grupal, de transagia, sttuagoas de impacto ete. Tais relatos transcendem o ambito da experiencia individual, e expressam a cultura de um povo, pais ou Nagao, chegando, a partir de categorias cada vez mais abrangentes ~ por que nSo? — a0 denominada: comm § espécie humana” Quanto ao mimero de enirevistads, um projeto pode oplar por apenas um depoente, se seu relato estiver sende tomado como contraponto complemento de outras fontes e for suficientemente significative para figarar como investimento de Histéria oral isolado no conjunto da pesquisa. Essa circunstincia nao se aplica, entretanto, aquelas pesquisas que adotam a 173 Fens nis Histéria oral como metodologia principal de trabalho, tomando a producto de entrevistas e sua andlise como investimento privilegiado. Nesses casos, 0 que interessa 6 justamente a possibilidade de comparar as diferentes versées dos entrevistados sobre o passado, tendo como ponto de pattida econtraponto permanente o que as fontes jd existentes dizem sobre o assunto. Assim, & natural que, quanto mais entrevistas puderem ser realizadas, mais consistente serd o material sobre o qual se dlebrugara a andlise. No momento de elaboragdo de um projeto, € dificil definir exatamente _quantos entrevistados serio necessarios para garantir o valor dos resultados da pesquisa. £ somente durante o trabalho de produgio das entrevisias que ‘© ntimero de entrevistados necessérios comega a se descortinar com maior clareza, pois é conhecendlo e produzindo as fontes de sua investigagio que 05 pesquisadores adquirem experiéncia e capacidade para avaliar o grau de adequagao do material ja obtido aos objetivos do estudo. Esse provesso ocorre em qualquer pesquisa: ¢ 0 pesquisador, conhecendo de modo progressive seu objeto de estude, que pode avaliar quando o resultado de seu trabalho com as fontes jé fornece instrumental suficiente para que possa construir uma interpretagao bem fundamentada. Assim, a decisio sobre quando encerrar a realizagio de entrevistas 86 se configura 4 medida que a investigacio avanca. Como forma de operacionalizé-la, pode ser util recorrer ao conceito de “saturacao”, formulado por Daniel Bertaux."" De acordo com esse autor, ha um momento em que as entrevistas acabam por se repetir, seja em seu contetido, seja na forma pela qual se constréi a narrativa, Quando isso acontece, continuar o trabalho significa aumentar o investimento enquanto © retorno é reduzido, jé que se produz cada vez menos informacao. Esse 6 0 momento que 0 antor chama de “ponto de saturagao", a que 6 pesquisador chega quando tem a impressio de que nao haverd nada de novo a apreender sobre o objeto de estudo, se prosseguir as entrevistas. Chegando-se a esse Ponto, é necessério mesmo assim ultrapassé-lo, realizando ainda algumas entrevistas, para certificar se da validade daquela impresséo. © conceito de saturacdo, entretanto, so pode ser aplicado, segundo Bertaux, caso 0 pesquisador tenha procurado efetivamente diversificar ao maximo seus informantes no que diz respeito ao tema estudado, evitando que se esboce uma espécie de saturacae apenas em razio do conjunto de entrevistados ser 174 Hinson dere ds Hen de antemao muito homogéneo. Convém, pois, contar com entrevistados de diferentes origens que desempenhem diferentes papéis no universo estudado, a fim de que variadas fungdes, procedéncias e Areas dle atuagao sejam coberias pela pesquisa. Apesat de ser impossivel estabelecer, no projeto de pesquisa, o mimero exato de pessoas a entrevistar, é possivel e desejavel elaborar uma listagem extensa ¢ flexivel dos entrevistados em potencial, acompanhada do registro dos que nela sao prioritarios. E 0 recorte do objeto de estudo que informara, inicialmente, 9 nvimero de pessoas disponiveis ¢ em principio capazes de fornecer depoimentos significativos sobre 0 assunto. Sempre de acordo com os propssitos cla pesquisa, definidlos com relagao ao tema e & questio que se pretende investigar, € possivel escolher o tipo de entrevista a ser realizado: entrevistas temdticas ou de histdria de vida. As entrevistas tematicas sto as que versam prioritariamente sobre a participagao do entrevistado no tema escolhido, enquanto as de hist6ria de vida tém como centro de interesse 0 préprio individuo na histéria, incluindo sua trajetéria desde a infancia até o momento em que fala, passando pelos diversos acontecimentos ¢ conjunturas que presenciou, vivenciou ou de que se inteirou, Pode-se dizer que a entrevista de historia de vida contém, em seu interior, diversas entrevistas teméticas, j que, a0 longo da narrativa da trajetdria de vida, os temas relevantes para a pesquisa sio aprofundados. Apesar dessas diferencas, ambos os tipos de entrevista de Histétia oral pressupoem a relacdo com o método bingratico: seja concentrando-se sobre um tema, seja debrucando-se sobre um individuo os cortes tematicos efetuados em sua trajetsria, a entrevista terd como eixo a biografia do enirevistado, sua vivéncia e sua experiéncia. Decidir entre um ou outro tipo de entrevista a ser adotado ao longo da pesquisa dependle dos objetivas do trabatho. Em geral, a escolha de entrevistas tematicas € adequada para 0 caso de temas que tém estatuto relativamente definido na trajetdria de vida dos depoentes, como um perfodo determinado cronologicamente, uma fungao desempenhada ou o envolvimento e a experiéncia em acontecimentes ou conjunturas especifices, Nesses casos, 0 tema pode ser de alguina forma “extraido” la trajetéria de vida mais ampla @ tomar-se centro e objeto das entrevistas. Fscolhem-se pessoas que dele participaram ou que dele tiveram conhecimento para entrevisté-lasa respeito, 175 Ft hina Em uma entrevista de histéria de vida, diversamente, a preocupacdo maior nao 60 tema esim a trajetéria do entrevistado. Escolher esse tipo de entrevista pressupée que 4 narrativa da vida do depoente ao longo da histéria tenha relevancia para os abjetivos do trabalho. E possivel que em determinade projeto de pesquisa sejam escolhides ambos os tipos de entrevista como forma de trabalho. Nada impede que se facam alguinas entrevistas mais longes, de historia de vida, com pessoas consideradas em especial representativas ou cujo envolvimento com o tema seja avaliado como mais estratégico, ao lado de entrevistas teméticas com outros atores e/ou testemunhas, © projeto de pesquisa deve explicitar claramente o tema de pesquisa e qual questao est sendo perseguida. Iniciada a pesquisa, o primeiro passo 6 estudar exaustivamente o assunto, levantando dados e andlises a respeito. Conhecendo de forma ampla o tema, o pesquisador pode otimizar sex trabalho e obter um resultado altamente qualificado. Em seguida, elabora-se 0 roteiro geral de entrevistas, que servird de base para 0s roteiros individuais dos entrevistados. © zoteito geral tem dupla fungdo: sistematizar os dados levantados durante a pesquisa exaustiva sobte tema e petmitira articulagao desses dados com as questdes que impulsionam ‘© projeto, orientando, dessa forma, as atividades subseqtientes. Ble deve reunir uma cronologia minuciosa do tema tratado, andlises sobre o assunto ¢ daces sobre documentos considerados centrais, como leis, atas, manifestos etc. Ao longo da pesquisa, o roteiro geral sofrerd alterag6es, incorporando-se-lhe informagées ¢ interpretacdes obticas nas entrevistas ¢ em outras fontes. Elaborado o roteito geral, pode-se comecar a preparar as entrevistas individualmente. O primeiro passo é 0 contato com o entrevistado, a fim de consulté-lo sobre a possibilidade de conceder o depoimento. Esseé o momento, de explicar-Ihe os objetives da pesquisa e 0 método de realizacao de entrevistas. Convém certificar o entrevistado de que sua entrevista é muito importante para o estuda e, se for o caso, informar-Ihe que sera solicitado a assinar um documento permitindo a utilizacdo da entrevista pelo entrevistador ¢ outros pesquisadores, assim como a possibilidade da divulgagao de seu nome quando da publicacao da pesquisa. Caso 0 entrevistado disponha de curriculo e de outros documentos titeis para a elaboracio do roteixo individual, pode-se solicitar que os ceda pata auxiliar na preparacéo da entrevista. 176 Hite cs de Hite © estudo da biografia do entrevistado, quando possivel, é muito importante para a elaboragae do roteire individual. Além do curriculo, & preciso procurar outros dados a seu respeito e, se for 0 caso, tomar conhecimento de sua produgao intelectual e de outras produgdes. Fssas informagdes permitiréo elaborar a cronologia de sua vida, que sera incorporada ao roteiro individual © roteiro individual ¢ resultado do cruzamento entre o que ha de particular aquele entrevistado e 0 geral a todos os que foram listados, isto é, aquilo que se constituiu, a0 longo da pesquisa, no conhecimento sobre o tema. Quando possivel, convém construir o roteiro individual justapondo as cronologias do tema e da vida do entrevistado em duas colunas, cuja visualizagao simuttanea facilita o relacionamento entre o geral e o particular, dando Ingar a questdes interessantes, Aa lado das duas coluinas, pode ser titi] acrescentar uma terceira, onde serio registradas questées, dhividas anotagdes. As cronotogias podem apresentar lacunas, que evidenciam que determinado momento da historia do tema ou da biografia do entrevistado ainda nao € conhecido pelo pesquisador. O preenchimento das lacunas se dara ao longo da entrevista e pode trazer informagdes que serao acrescentadas ao roteiro geral. A fungio do roteiro é auxitiar 0 entrevistador, no momento da entrevista, a localizar, no tempo, ¢ a sitmar, com relacdo ao tema investigado, ‘0s assuntos tratacios pelo entrevistado, Por essa razio, ¢ bom organizar os dados de forma topica, para facilitar sua visualizagéo no momento da gravagio. O roteiro nao é um questiondrio, e sim uma orientagao aberta e flexivel. Quando a entrevista se estende por mais de uma sessdo, convém elaborar roteiros parciais com base nos roteiros individuais; eles permite aavaliagao da sessao anterior e o estabelecimento de estratégias ¢ diretrizes para a sessio seguinte. A preparagio de entrevistas de Histéria oral inelui, pois, uma pesquisa exaustiva sobre o tema e sobre a vida dos entrevistacos, a sistematizagdo dos dados levantados ¢ a definicao clara dos problemas que se esta buscando responder com a pesquisa. Essa preparacéo dé 2o entrevistador seguranga no momento de realizacao da entrevista, pois ele saberé bem o que e como perguntar, e poders reconhecer respostas insatisfatérias ¢ identificar “ganchos” relevantes para a formulagao de novas perguntas. 77 Feat ins A realizacéo de entrevistas A entrevista de Histéria oral 6, antes de mais nada, uma relagao entre pessoas diferentes, com experiéncias diferentes e muitas vezes de geragdes diferentes. Em geral, 0 entrevistado é colocado diante de uma situagao suf generis, na qual ésolicitado a falar sobre sua vida a uma pessoa quase estranha eainda por cima diante de um gravador ou cimera. Por isso, convém reservar um tempo relativamente longo para a realizagio da entrevista. Um depoimento de menos de uma hora de duracao dificilmente rende tudo 0 que poderia, Em geral considera-se que a duracao de uma sesso deve ser de aproximadamente duas horas, mas hé sess6es que se estendem por mais tempo. Muitas vezes ocorre de entrevistado e entrevistador encontrarem-se varias vezes, como no caso das entrevistas de histéria de vida Essa é uma das diferencas entre a entrevista de Historia oral ea entrevista jornalistica, cuja duragio em geral é limitada pelo espaco disponivel nos meios de comunicagao, Outea diferenga consiste no fato de 0 pesquisador se acequar a0 ritmo do entrevistado, que estabelece qual seré o percurso da lembranga e da construgdo do pensamento. E sempre bom esperar que o entrevistado conclua seu raciocinio antes de formula: nova pergunta. E se a resposta se afastar do que foi perguntaco, isso pode ter um significado particular. Por que determinado assunto 6 aprofundado em uma ocasio e nfo em outra? Como interpretar periados de silencio? O entrevistador deve treinar sua sensibilidade para reconhecer os fatores que influenciam 0 andamento da entrevista € levé-los em conta quando de saa andlise. Fm uma relacdo de entrevista, 0 que se diz depende sempre de a quent se diz. Qual a percepgao que o entrevistado tem de seu interlocutor e como isso determina sua fala? Fazer uma entrevista é avalid- Jae analisé-1a constantemente — enquanto é gravada ¢, mais tarde, quando 6 objeto de andlise. Paralelamente a reatizagto da entrevista, pode ser wtil manter um caderno de campo. Nele podem ser registradas as razdes da escolha do entrevistado, a descrigdo do contato inicial (como o entrevistado reagiu a solicitag4o?, houve mediadores?) ¢ as impresses sobre a entrevista em si (dificuldades, informagSes obtidas “em off", novidades de contetido ou de abordagem etc.). Por exemplo; “O que a entrevista traz de novo para a 178 Hatin dence da Hate pesquisa?” Ou, ao conirdrio: “Por que parece que essa entrevista ndo esté trazendo nada de novo?”. Esses registros podem auxiliar 0 pesquisador mais tarde, no momento da andlise do material colhido. Conduzir uma entrevista nao é tarefa facil. E preciso estar permanentemente atento a0 que diz o entrevistado, as indicages do roteiro, as oportunidades de formular perguntas € ao funcionamento do gravador ou da camera, Convém fazer anotagdes durante a entrevista; por exemplo, de nomes préprios mencionados, questées suscitadas, ou circunstancias que interferiram na gravagao. De preferéncia, devem ser usadas perguntas abertas, que levem 0 entrevistado a discorrer a respeito do tema e nao possam ser respondiclas simplesmente com “sin” on “nao”. Por exempla: "A que osenhor atribui..2”, Onde a senhora estava quando...?”. Ao formular as perguntas, 0 pesquisador deve procurar ser simples e direto. Extensas introducoes ponderagées podem confundir o entrevistado ¢ talver induzi-lo a dizer 0 que ele acha que © pesquisador quer ouvir, Fotografias, recortes de jornal, documentos e mengio a fatos especiticos podem ser titeis para reavivar a Jembranga sobre acontecimentos passados. E possivel reservar uma parte da entrevista para a discussio e a andlise de alguns temas, ja que a forma pela qual o entrevistado percebe o assunto investigada também é relevante em pesquisas de Historia oral, Oentrevistadior deve aprender a lidar com rectos e avangos no tempo, pois ostemas sio abordados conforme vao senciosuscitados pela conversa endo necessariamente em ordem cronolégica. S80 freqiientes também as repetigses, que podem trazer informacSes importantes para a andlise da entrevista. Por exemple, quando certos acontecimentos sto narrades sempre da mesma forma, isso pode indicar que esto cristalizadosna meméria do entrevistadoe cumprem um papel especifico no trabalho de significagao do pasado. Durante a gravacdo da entrevista, € preciso nao esquecer que se est produzindo uma fonte, que poderd ser consultada por outros pesquisadores. Alguns procedimentos séo recomendados, por isso. Ao iniclar a gravacio, convém gravar uma espécie de “cabecalho” da entrevista, informando o nome do entrevistado, do(s) entrevistador(es), a data, 0 local e o projeto no qual a entrevista se insere. Isso evitard que, mais tarde, ninguém mais saiba de que entrevista se trata, quando e por que foi gravada. Além disso, cabe 179 Fons hdc anotar palavras proferidas de modo pouco claro, para que se possa recuperé- Jas adiante, no momento da transcricao, e tomar nota de gestos que modifiquem a compreenséo do que foi gravado em dudio (por exemple, descrever 0 que o entrevistado quer dizer com “Desse tamanko...", “Um vermelho assim...”), Falas superpostas devem ser evitadas, pois prejudicam @ compreensao posterior. Cabe ao pesquisadot se calar sempre que o entrevistado estiver falando e assim que ele toma a palavra. Finalmente, sea entrevista for aberta 4 consulta de outros pesquisadores, & necessatio providenciar o documento de cessio de direitos sobre a entrevista, a ser assittado pelo entrevistado ao final do depoimento ¢ sobre o qual ele deve ser informado com antecedéncia © tratamento de entrevistas O teatamento das entrevistas gravadas em uma pesquisa de Hisiéria oral depende do que foi definido no projeto inicial com relacio ao destino do material produzido. Se as entrevistas forem disponibilizadas ao publico, & preciso decidir se sero consultadas diretamente em audio ou video, ou na forma escrita. Em qualquer dessas hipoteses, devem ser produzidos instrumentos de auxilio a consulta, como sumérios e indices teméticos. Sem esses instrumentos, corre-se o risco de manter um acervo “mnudo”, pois nao se conhece © contetido das entrevistas. Medida indispensével, seja qual for o destino dado aos depoimentos, & a duplicagio da gravagao imediatamente apds a realizacdo das entrevistas, com vistas & produgdo de c6pias de seguranca. Digamos, por exemple, que uma fita cassete se parta durante a escuta, ou seja extraviada. A existéncia de uma e6pia de seguranca impede a perda irremediavel do documento, pois haverd sempre a possihilidade de duplicé la para viabilizar sua consulta, Caso se opte pela passagem da entrevista para a forma escrita, convém estimar pelo menos cinco horas de trabalho na transcricéo de uma hora de fita gravada. Muitas vezes & necessdrio passar o texto transerito por um trabalho de conferéncia de fidelidade, que consiste em ouvir novamente toda a entrevista e conferir $¢ 0 que foi transcrito corresponde efetivamente a0 que foi gravado, corigindo erros, omissdes ¢ acréscimos indevidos feitos pelo transcritor, bem como efetuando algumasalteragoes que visam a adequar 180 indin dent Hine ‘© depoimento & sua forma escrita e viabilizar sua consulta. Em seguida, pode ser que a entrevista ainda necessite pasar por um copidesque, que objetiva ajusté-la a ir erros de portugués (concordancia, regéncia verbal, ottografia, acentuacio}, ajustar o texto as normas estabelecidas pelo projeto (maitisculas e mintisculas, numerais, sinais ‘como aspas, asteriscos etc.} e adequar a linguagem escrita ao discurso oral (esforgo no qual a pontuagao desempenha papel fundamental). As tarefas envolvidas nessa passagem da entrevista para a forma escrita sao penosas e requerem dedicacao, paciéncia e sensibilidade. E no momento de realizé-las que percebemos o quanto é importante cuidar da qualidade da gtavacdo de um depoimento, néo 56 no que diz respeito ao equipamento 8s condigdes que oferece o local de gravacdo (auséncia de ruidos extemos, por exemplo), como também na forma de conduzir a entrevista, evitando falas simultaneas e tomande nota, durante a gravagio, de palavras ou frases pronunciadas com pouca clareza. B nesse momento que percebemos, por exemplo, a importancia de artigos e preposigdes, os quais, se aplicados incorretamente, podem modificar o contetido da fala do entrevistado. Trata- se, portanto, de trabalho meticuloso, ao qual toda atengio deve ser dispensada, © que significa muitas horas de dedicagao. Se a entrevista for publicada, pode ser conveniente editar o texto que resulta dos trabalhos de transcricao, conferéncia de fidelidade e copidesque. Na edi¢ao podem ser usados recursos como cortes de passagens repetidas ou pouco claras e a ordenagio da entrevista em assuntos, modificando-se a ordem em que foram tratados, Entretanto, deve ser sempre mantida a correspondéncia entre 0 que é publicado eo que foi gravado, de modo que qque se 1é no livro esteja sem duivida na entrevista, Outro recurso importante so as notas, que esclarecem passagens obscures, fornecem informagies sobre fatos e pessoas citadas, podem corrigit equivocos feitos tanto pelo entrevistado quanto pelo entrevistador e explicam circunstancias da entrevista importantes para a compreensio do que foi dito. A tecnologia de gravacéo Para realizar uma pesquisa ou produzir um acervo de Historia oral é preciso, evidentemente, contar com um equipamenta de gravagio & 18) Femes Hite teprodugio de Audio e/ou video, cuja sofisticagio dependerd, como sempre, dos objetivos do trabalho. Tomemos como exemplos dois casos extremos: ptimeiro consiste na realizac4o de algumas entrevistas de Histérie oral como forma de complementar material levantado durante uma pesquisa, € 0 segundo, na formaggo de um acervo permanente de enirevistas de Historia oral, a ser consultado por pesquisadores de diversas areas. O material necessério para cada tim dos casos difere em virtude da variagao dos objetivos especificos. No primeiro caso, o pesquisador pode empreender seu trabalho contando apenas com um bom gravador portétil, algumas fitas virgens, talvez um microfone e um fone de ouvido, ¢ com mais um gravador para fazer cépia das fitas gravadas como medida de seguranga. No segundo caso, contudo, sio necessérios equipamentos de gravacio portateis e alguns de maior porte, aparelhos como amplificadores e mixers, fones de ouvido e microfones, espago fisico apropriado para arquivar os dudios e videos e computadores para produzir e guardar os arquivos em texto, em audio ¢ em video, se for 0 caso, ¢ eventualmente manter uma base de dados. Evidentemente, pode haver situagSes intermediérias: 2 escolha do equipamento sempre sera condicionada pelos propésites do trabalho. Uma entrevista pode ser gravada em fitas magnéticas analdgicas (as fitas cassete}, em fitas magnéticas digitais (fitas pat, digital audio tape), em discos igitais (minidises, co-, cliscos rigidos), em videos analgicos (vrs ou Betacam} ouem videos digitais, por exemplo. Hoje em dia ha muitas dtividas sobre as técnicas de conservacao e arquivamento: qual o melhor euporte pata se gravar as entrevistas e como evitar sua deterioragao e cbsolescéncia? Em geral, recomenda-se adotar tecnologias digitais, caso 0 objetivo seja a constituigao de um acervo, j que os equipamentos e as midias analdgicas tendem a desaparecer do mercado. Hi uma especificidade em relagao as fontes orais, comumente evocada na literatura sobre o assunto, que torna sua conservacao particularmente dificl, Ao contrério das fontes textuais ou mesmo iconogréticas sobre suporte de papel, as fontes orais ¢ audiovisuais nao podem ser consultadas sem a intermediagao de um equipamento. Assim, além de nos preocuparmos com a longevidade do suporte sobre 0 qual gravamos nossas entrevistas, temos de estar sempre atentos & disponibilidade de aparelhos que reproduzam 0 182 Hise dens ol Hatin som gravado naquele suporte. Pela propria natureza da questo, nao hé solugies definitivas e trangiiilizadoras. O que devemos fazer, em um primeira momento, é cuidar para queas informagdes gravadas continuem em condigdes de ser reproduzidas e, se for o caso, regravadas em formats mais novos, antes que os formatos originais se tornem obsoletos. (Os profissionais que trabatham com a producao ea preservacao de fontes orais precisam manter-se constantemente atualizados sobre as novas tecnotogias. Hé hoje no mundo alguns f6runs de discussdo desses assuntos, como a Associagio Internacional de Arquivos Sonoros e Audiovisuais (http:/ /www iasa-web.org/) e o programa da Unesco Memory of the World, que se destina a promover a preservacao de todo tipo de documentacao. Esses ¢ outros organismos devem ser permanentemente consultados. Interpretacée ¢ andlise de entrevistas Como toda fonie histériea, a entrevista de Histéria oral deve ser vista come um “documento-monumento", conforme definido pelo historiador francés Jacques Le Goff. Durante muito tempo pensou-se em “documento” como residuo imparcial € objetivo do passado, a0 qual muitas vezes se atribuia valor de prova. O “monnmento”, em contrapartida, teria como caracteristica a intencionalidade, uma vez que é construido para perpetuar 2 recordagio, como € 0 caso das obras comemorativas de arquitetura e das esculruras colocadas em praca publica, A idgia de “documento-monumento” traz. essa intencionalidade para o préprio documento, cuja produgao resulta das relagdes de forca que existiram e existem nas sociedades que 0 produziram. © documento, diz Le Goff, antes de mais dso resiltado de uma montage, consciente ou inconsciente, da hisiria, da epoca, da sociedade que 0 produziu, mas tarbem das ésocas sucessivas dutante as quis onfinuot a viver, talvez esquecide,ainla que pelo silince. O dlacumento € ums coisa que Fa, que dur, ¢o tsterauno, 0 ensinamento que ele tae deve ser em primeira agar analisado desnitficandosihe 0 seu significado aparente.O documento € snonuinento. Resta do esforgo das sociedaceshistnicas para impor ao futuro ~ voluntara ou involuntariamente — dleterminada imagem de si préprias. No Fite, nfo existe im docamento-verdade, Todo o documento # mentira. Cabe 20 183 Famer hincne historiador nfo fazer o papel de ingénuo. [..] um monumente €emprimeiro lugar uma roupagem, ume aparenca enganacor, uma montage. F preciso comesar por desmontar, demoli festa montagem, desestruturar esta construcio « anlisar 38 condligées de predugao dos dacumentes-montanentes © Se concordarmos com Le Goff que 6 “dever principal” do historiador é “a critica do documento — qualquer que ele seja — como monumento”® 0 pesquisador que trabalha com entrevistas de histéria oral como fontes deve set capaz de “desmonté-las”, analisar as condigdes de sua produgio, para utlilizé-las com pleno conhecimento de causa. Mas atengao: quando Le Goff afirma que todo documento é mentira, isso nao significa que uma entrevista de Historia oral, ou um relatério de gestdo, ow um decteto governamental sio ficgao. Faz parte do esforgo de compreender as condigSes de produsao- de documentos-monumentos reconhecer a distancia que os separa de textos de ficgo, cujos autores néo concedem foro de verdade ac que declaram e se colocam como tarefa fazer que o imagindrio se torne real. Uma entrevista de Histétia oral nao é produzida para ser mentira, ¢ isso € fundamental. Mas podemos dizer que a entrevista 6 produzida para ser monumento. Seu carter intencional de perpetuagao de uma meméria sobre o passado, fica patente jé na escotha do entrevistado como testemunha importante a ser ouvida, Esse caréter “monumental” é dado pelo proprio pesquisador e em getal recebe a aprovacao do entrevistado, que se sente honrado e satisfeito por estar sendo chamado a dar seu depoimento. Resta saber —e isso é muito importante na andlise de entrevistas de Hist6ria oral — se 0 entrevistador itd sobrepor suas intengées ao relato do entrevistado. Ou seja, ele esté mesmo aberto a conhecer ¢ a deixar que seja registrado, na gravacio, 0 ponto de vista do entrevisiado? Se a narrativa deste nao coincidir com sua hipétese, estard disposto a ouvi-lo? © historiador José Miguel Arias Neto, em artigo publicado na revista da Associacao Brasileira de Histéria Oral, analisa a entrevista realizada em 1968 pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro com marinheiro Jo&o Candido, lider da Revolta da Chibata (1910). Ele sugere alguns procedimentos que devem ser adotados quando da anlise de entrevistas de Historia oral. E preciso que se verifiquem as intengbes do pesquisador e da 184 Hina dee da Hates instituigio, a propria condugdo da entrevista, os conflitos e as superposigdes que ela registra, e os resultados abtidos com a sua realizagio. No caso da entrevista com Joao Candido, realizada quando o debate sobre a Histéria oral ainda nao havia chegado ao Brasil, José Miguel Arias Neto observa que o marinheiro nao ¢ entrevistado para se conhecer o significado que a revolta teve e tem para ele. Como muitas vezes seu relato se clesvia da interpretagao dos préprios entrevistadores, acaba ocorrendo um hiato na comunicagao.“ A anélise de um depoimento de Historia oral - realizada seja pelo proprio pesquisaclor, seja por terceiros ~ deve considerar a fonte copto um todo. E preciso saber “ouvir” o que a entrevista tem a dizer tanto no que diz respeito as condigées de sua produgio quanto no que diz.respeito a narrativa do entrevistado: 0 que nos revela sua visdo dos acontecimentos e de sua propria historia de vida acerca do tema, de sua geragio, de seu grupo, das formas possiveis de conceber o mundo etc. Tomar a entrevista como um todo significa ouviela ou lela do inicio ao fim, observando como as partes se relacionam com o todo e como essa relagdo vai constituindo significadas sobre © pasado e o presente ¢ sobre « propria entrevista. E atentar também para relatos, interpretagdes € pontos de vista “desviantes”, isto é que nio se encaixam nos significados produzides. Esse modo de interpretar pode ser adotado na andlise de qualquer tipo de fonteenaoseafasta muitoda légica do circulo hermenéutico:o taco fornece sentido as partes, ¢ vice-versa. Por exemplo, em uma frase compreende-se © sentido de uma palavra A medida que tomamos sua telacdo com toda a frase; inversamente,compreende-se o.entidada frase’ medida que compreendemos o sentido das palavras. Em uma entrevista, compreendemos os conceitos ulilizados pelo entrevistado, as formas come se refere a determinados acontecimentos ou situasdes, as lembrangas cristalizedas, os exemplos, 0s cacoeies de linguagem ete., & medida que tomamos sua relagéo com © depoimento como um todo, evice-versa, E nesse circulo que surge osentido.* F importante lembrar tambem que as palavras empregadas pelo entrevistado sao importantes para a interpretacao de sua narrativa. A escolha de determinadas palavras e formas de se expressat informa sobre a visio de mundo ¢ o campo de possibilidades aberto Aquele individuo, em razao de sua experiéncia de vida, sua formagao, seu meio etc. Se ele escolhe determinadas palavras,e ndo outras, € porque € daquela forma que ele percebe 185 Foes bce © sentido dos acontecimentos ou das situagdes sobre os quais esté falando. Por isso nao cabe acrescentar novas palavras, ou substitwir as que so usadas por sindnimos. Ao intexpretar uma entrevista, convém ser fiel a légica e as escothas do entrevistado. ‘Ha momentos nas entrevistas de Histéria oral ~ nao em todas ~ em que se pode perceber que a narrativa de determinados acontecimentos e situacoes cristaliza realidades que so condensadas e carregadas de sentido. Nesses momentos, 4 natrativa do entzevistado vai além do caso particular e oferece uma chave para a compreensao da realidade. Quando isso acontece, ela fornece passagens dé tal peso que sio “citéveis”. Quase toda entrevista contém historias, Para Lutz Niethammer, essas historias “sao 0 grande tesouro da historia oral, porque nelas sé funclem, esteticamente, declaracées objetivas & de sentido.” Boas historias, acrescenta, nao se deixam taduzir por uma “moral”, porque o significado do que é narrado se cristaliza no conjunto da natrativa. E porque, nessas histérias, 0 sentido é apteendido do conjunto, elas sao especialmente “citaveis’, tém forca estética. Apresentadas ao piiblico com propostas de interpretacao hist6rica, permitem que haja uma ampliagao do conhecimento, No processo de andlise da fonte oral, cabe, pois, atentar para a ocorréncia dessas narrativas especialmente pregnantes." Ocontetidode umaentrevistade Histéria oralsempreestarcondicionado aquele caso particular, A narrativa especialmente “citavel” de determinado acontecimento ou situagao teré de ser nutito bem coniexiualizada: quem ésen autor (qualificagao do entrevistado)? Em que momento da entrevista contou aquele fato daquela maneira? Que outras circunstancias sao importantes para se compreender o que foi dito? Etc. A contextualizagao & necesséria para se reconhecer a propria quatidade do trecho “citivel” Isso significa que nao se pode generalizar, em Historia oral? O que se aprende com uma entrevista pode ser aplicado ao grupo como um todo? Quando a pesquisa de Historia oral pressupie a realizacao de entrevistas com diversas pessoas do grupo investigado, € possivel chegar a alguns padres: experiéncias que se repetem, trajetdrias semelhantes, usos das mesmas palavras ou expressdes etc. O conceito de “ponto de saturagao” desenvolvido por Daniel Bertaux ajuda a visualizar essa possibilidade de generalizagio: ha um momento em que as entrevistas comecam a se repetire esse padrao € importante para se conhecer 0 grupo investigado. 186 | Hinde deta ds Hite Na andlise do material produzido, podem-se estabelecer tipologias. Por exemplar a geragao x desse grupo desenvolveu tais estratégias;a geraco vjése caractetiza por outros percursos. Ou ainda: entre os entrevistados, observa-se aqueles cuja formagao religiosa implicou tais opgdes, que, no entanto, nao foram seguicias pelos demais. Cabe ao pesqttisador indagar-se, contudo, até que ponto a tipologia estabelecida s6 se revela como tal no grupo restrito de pessoas entrevistadas.Se 0 grupo fosse outro, surgiriam outros “tipos”? Atéque pontoa ‘ipologia é util para ampliar a compreensio sobre o objeto estuclado? Jé no caso das passagens especialmente “citaveis", que podem ampliar © conhecimento sobre 0 assunto, acorre uma espécie de “generalizacéo” quando as tomamos como “exemplo", isto é, como algo que revela as possibilidades do grupo, ainda que tenha sido atualizado por uma pessoa em particular, Na anélise de entrevistas de Histéria oral deve-se ter em mente também ‘outras fontes — primérias e secundérias; orais, textuais, iconograficas etc. — sobre o assunto estucado, Muitas delas j4 so do conhecimento do pesquisador, que a elas recorreu quando da pesquisa exaustiva anterior & realizagao das entrevistas. Em que medida as entrevistas realizadas corroboram ou no as informaghes obtidas em outras fontes e estudos? O que clas acrescentam de novo ao estado geral da arte, digamos? Pode ser muito interessante comparar 0 que dizem as entrevistas com outros documentos de arquivo, pois as vezes ha um desiocamento temporal ‘ou de sentido que permite ao pesquisador verificar como a meméria sobre 0 passado vai se constituindo no grupo. Um exemplo jé classico desse tipa de deslocamento 6 dado por Alessandro Portelli, em sua anélise da historia da meméria do massacre de Civitella Val di Chiana, mencionado acima, Portelli mostra como 0 massacre foi interpretado de diferentes maneiras, conforme a situagdo politica na Itélia e na regifo da Toscana, onde ovorreu. Discutindo com ontro pesquisador italiano, para quem pouco importaria 0 que realmente acontecen no massacre, jf que a pripria comunidade jé teria construido sta representacio sobre o tragico episédio, Portelli chama a atencdo para a necessidade de se tomar os fatos (0 que realmente aconteceu) ¢ suas representages simultaneamente, Representagdvs e "fatos” ndo existom em esferas isoladas. As ropresentacies se utilizar das fatos e alegam que sko Fatos; 08, fatos siio reconhecides e organizades de acordo com as representacées; tanto falos quanto sepresentagoes convergem, 187 | i | 4 Fem bition na subjetividade dos seres humanos e so envoltos em sua linguagem. Talvez essa interacdo seja 0 campo especifico da historia oral, que & contabilizada como historia com fatos reconstruidos, mas tamibem aprendl, em sua pritica de tzabalio de campo dialégico e na confrontagie critica com a alteridade dos nartadores, a entender representagoes. Em aigumas pesquisas de Histéria oral desenvolvidas na Europa, chamou a atengao dos pesquiisadores 0 fato de a cronologia relativa ao periodo da Segunda Guerra Mundial aparecer diferenciada nas entrevistas. Na Alemanha, 9 ano de 1933 ~ ano da ascensao de Hitler ao poder, como chanceler — ndo foi mais importante, para muitos entrevistados, do que os anos de 1934, 1985 e 1996, nos quais se encerra o desemprego em massa em virtude do crescimento da indiistria bélica.” E na Franca, 08 de maio de 1945 — que marca o fim da Segunda Guerra ~ para muitos nao foi tao importante quanto a libertagao de Paris na segunda metade do ano anterior.” E importante atentar para esse deslocamento temparal. © fato de os entrevistadas alemaes nao se lembrarem com clareza do ano de 1933 nao significa, em absoluto, que ele deva ser negligenciado na andlise. E preciso que “fato” (1933) e “representagoes” (1934, 35, 36) sejam tomados fientos, para podermos tratar objetivamente a Histéria da meméria cesses anos. E impossivel saber o que o ano de 1935 significa sem considerar 0 ano de 1933, Na verdadé, « diferenga de cronologias ajuda a compreender a prépria ascens4o do nazismo—que fez muito mais sucesso quando passoua se reverter em estabilidade ¢ bem-estar social ¢ econdmico, do que quando fot predominantemente politica Outro exemplo interessante desse tipo de deslocamento foi abservado pela historiadora Hebe Mattos, na andlise de entrevistas com descendentes de escravos, membros da comunidade de Sao José da Serra, no municipio de ‘Valenga ()),reconhecida como “comunidade remanescente de quilombo” nos termos doartigo68 das Disposigdes Transitérias da Constituigao de 1988." Nas entrevistas, sao freqiientes as historias de fuga dos avés dos entrevistados, que teriam encontrado reftigio na fazenda, cujo proprietirio nao castigava as cativos, tratando-os muito bem. Os escravos podiam mesmo abandonar as terras para voltarem seguiida, aparentementesem sofrersaneses—circunstancia quechamouaatencaodahistoriadora, porserbastanteespectfica, Uma consulta avg documentos do cartério de Valenca revelou que, em 1870, proprietétio 188 die 1975, uma dotagio ds Fundagio Ford. 0 Curso de Historia Oral contou com financiamento dessa insitaigio e da Coordenagio de Aperfeigoamento de Pessoal de Nivel Superior (Capes) Para 3 realizagzo do 1 Curso, em Brasilia, 0 apoio da Fundagio Ford fot complementado com verba provenieate cia Oiganizagao dos Bstadcs Americanos foes). A documenta rfecente a coe curaa esta guardocs nos arquives de Conse da Fundayio Cetulio Vargas ja fo abordada por Marita de Moraes Perel (1356), ® Mais informacses sabe o wabalho do Progeama de Historia Cral da Croce podem ser abtidas em ‘wwwepdacfgy br Sobre chagada ds Histns orl no Brasil ea fancagéo do Programa de Histeri (Oral do Crooc, ver Aspasia Camargo, “Como a historia oral ehegou 20 Brasil: entrevista com Aspasia Camargo”, por Maria Celina Araujo, em Histéria Oral, Revista da Assodlagio Brasileira Ge Historia Ora}, Sao Paula, m2, jm. 1959 Carlos Humberto P. Corréa, Histosia ora: teria e ténica, Floiandpolis, usc, 1978. 2 Ainda que pubicadsm slemda 2, por isso, poucoacesstvel 3 comunidad académica internacional Yale cli tambem a coleinea ce textos onganizala por Lint Niethamer (198, com artigos de stores norte-amerieanos, ingles, anceves, allanos e alemies, entre eles Ronald Gre, Paul ‘Thompson, Danie Barta ¢ Luisa Fasscrin, quo foi ura marcoma instituieio do campo da Historia oral na Aleman, ‘Verena Albert, Historia oral a experiéncin do Croor, Rio de Feneiro,r3t, 1990, pp. 1917. (O.n Encontro Nacional de Hiskiria Oral foi, na vealidade, 9 priseica de dimensies eftivamenty nacionais, pois contot com ampla eivtlgacto, impolsionada pelo abjeiva de promover 0 cadastramento ¢ 9 intercambio de pesquisadores ¢ instituicies de todo o pais. Esse esforgo Aeliberado resultow de resolugio do encantro anterior, que recebeu oname de Encento Nacional de Historia Oral, realizado em So Paulo em 7953, a0 qual compazeceram 123 praquisadores © gual foram apzesentados25 trabalhos, Neste evento Formos a Comissto Nacional para a ra desuma Assoeiagao Brasteea ce Dacumentagio Ora, decide pela preparseio doa Encanto, {gue ecorreu no ano seguinte Sobre o processode formagio da ash, ver Matieta de Moraes Feces, OP. it, 1954 ("Treroducio”) @ Mavieta de Moraes Ferreira, “Entrevista”, por Verena Albert é Marco Aurélio Santana, Historia Oral, Revista da Associagio Brasileira de Historia Or3l, Sto Fauto, 4, jen 2001 © nites instituiges que tim patticipada da debate académien eas tomo da Histéra aral deste © inicio da décade de 1990 destacam-se os departamentos de Historia e Ciencias Socials das [Universdades Feserais Ga Bahia, de Penambeo, de Campina Grande, do Cears, do aus, do ‘Acre, de Randenta, do Para, de Gos, do Mato Grosce, ele Minas Gersis, de Uberlindiae de Ouro 193

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