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A ESSÊNCIA DO

EVANGELHO
DE PAULO

Marcos Granconato

Copyright © 2013 Marcos Granconato


All rights reserved.
ISBN: 1494293145
ISBN-13: 978-1494293147

Dedico este livro aos pastores Thomas Tronco do Santos e Marcos


Samuel Pereira do Santos, homens que, na tarefa de pregação da
fé, têm mostrado ao povo de Deus o real sentido da liberdade cristã.
“Senhor Deus único, Deus Trindade, o que disse nestes livros, de
teu, reconheçam-no os teus; o que neles disse de meu, perdoa-me
Senhor, e perdoem-me os teus. Amém.”
(Agostinho de Hipona. De Trinitate)

PREFÁCIO

Quando comecei a estudar teologia, quatro décadas atrás, um livro


foi muito importante para mim. Tratava-se do comentário de Merrill
C. Tenney sobre a carta de Paulo aos Gálatas. Além de trazer uma
significativa contribuição à defesa da suficiência e exclusividade da
graça, Tenney ensinava seus leitores, mesmo os mais inexperientes
e desavisados, como eu, a ler a Bíblia com método e objetividade.
Quarenta anos depois, percebo que a Igreja não aproveitou o
suficiente daquela histórica publicação. Legalismos de diversos
matizes e matrizes ameaçam roubar à igreja brasileira a singeleza
de sua fé, oferecendo outros (e falsos) evangelhos, apelando à
mesma insensatez que atacou os gálatas de outrora.
Tenho, em tal situação, a alegria e a honra de apresentar à Igreja
brasileira um novo comentário sobre a carta aos Gálatas. O que me
influenciou, trazia a marca de alguém que fez da cátedra um púlpito;
o que apresento, A Essência do Evangelho de Paulo, traz a marca
de alguém que faz do púlpito uma cátedra — que, como eu, ainda
acredita que uma igreja forte tem um púlpito onde o ensino da
Palavra filtra e corrige as cosmovisões oferecidas à igreja pela mídia
secular e, infelizmente, por alguns que “mercadejam a Palavra de
Deus” por todos os meios que a (pós-) modernidade oferece.
Marcos Granconato refuta tais ideias de maneira persuasiva e
simples, sem deixar de lado a erudição. Professores e pastores
usarão com proveito esse livro, tanto em seu preparo para a aula
quanto para o sermão. Opiniões divergentes terão de lidar com os
argumentos apresentados nesse livro, sob pena de ignorarem
evidência relevante e parecerem, assim, preconceituosos.
A Essência do Evangelho de Paulo desafia o leitor a desfrutar da
aventura da graça — aventura que, embora não isenta de perigos,
oferece eterna segurança com base exclusiva e suficiente nos
méritos de Jesus Cristo, nosso grande Deus e Salvador, cuja vinda
é a bendita esperança da Igreja.

Carlos Osvaldo Cardoso Pinto


Professor, autor e teólogo

ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
AUTORIA, DATA E DESTINATÁRIOS

A epístola aos Gálatas foi escrita pelo apóstolo Paulo. Ainda que
um pequeno grupo de críticos tenha levantado objeções contra a
origem paulina, as evidências internas apontam claramente para
Paulo como o autor dessa carta (Cf. 1.1). Na verdade, o calor e a
autoridade com que a epístola trata do problema dos falsos mestres,
considerando-os uma terrível ameaça contra o evangelho e contra a
própria igreja, são características próprias de um missionário e líder
zeloso, que se vê no dever de cuidar daqueles que são fruto de seu
trabalho, o que reforça o argumento em prol de Paulo. Frise-se
ainda que uma porção proporcionalmente grande da carta é
autobiográfica (1.13 – 2. 13), o que logicamente esvazia de
propósito a autoria de outra pessoa qualquer.
Paulo escreveu aos Gálatas no ano 48 d.C., um pouco antes do
Concílio de Jerusalém, ocorrido no mesmo ano (At 15). A falta de
menção das decisões do concílio, decisões essas que seriam tão
úteis aos propósitos da epístola, é prova cabal em favor da data
mencionada, ainda que haja quem situe a composição em 57 ou 58
d.C, entendendo que em 2.1-10, Paulo faz alusão às conclusões
conciliares de Atos 15.[1]
A data mais antiga, se aceita, coloca a composição da carta, num
período após o fim da primeira viagem missionária de Paulo (At 13-
14), depois dele e Barnabé terem visitado pela segunda vez o sul da
Galácia (At 14.21-23).[2] O local em que Paulo escreveu é difícil,
senão impossível, de precisar.
Quanto aos destinatários, muita tinta tem sido gasta na defesa de
duas opiniões distintas. A primeira entende que Paulo escreveu aos
gálatas étnicos que viviam no norte da província. Porém, parece
certo que o apóstolo jamais visitou essa região. A segundo opinião,
aparentemente melhor fundamentada, entende que os destinatários
eram pessoas de várias raças que ocupavam a região sul da
Galácia, visitada por Paulo em sua primeira viagem missionária (At
13-14).[3]
Paulo, portanto, teria escrito sua carta aos crentes de Antioquia
da Pisídia (próxima à fronteira da Galácia), Listra, Icônio e Derbe. As
igrejas dessas cidades, conforme veremos, estavam sofrendo
influência de mestres judaizantes (6.12-13) que, para obterem
sucesso em seus objetivos, tentavam desacreditar o Apóstolo Paulo
(4.17). Conforme se depreende da epístola, os galateus se tornaram
vulneráveis a esses ataques (3.1), revelando forte atração por um
sistema religioso cuja essência não ultrapassava o dever de
cumprimento de meras exigências externas (4.10-11; 5.2).

OCASIÃO E PROPÓSITO

O que foi dito acima acerca dos destinatários fornece os


elementos do cenário que motivou Paulo a escrever sua epístola.
De fato, fica claro em toda a carta que os crentes da Galácia
estavam acolhendo os ensinos de mestres judaizantes que
afirmavam a necessidade dos cristãos se submeterem à lei judaica.
Mesmo sendo provavelmente em sua maioria gentios (Cf. At 13.46-
52), aqueles crentes viram certo atrativo na mensagem dos mestres
legalistas.
Quem eram, afinal, aqueles mestres? Tudo indica que eram
cristãos judeus com uma compreensão defeituosa do evangelho,
confundindo-o com um judaísmo alterado por certos acréscimos.
Pelo modo como Paulo se refere a eles, parece que não pertenciam
às igrejas destinatárias, sendo procedentes de fora (Veja 1.7, 9;
4.17; 5.10). Talvez viessem da Judéia, onde encontramos judeus
cristãos com uma compreensão do evangelho que parece idêntica à
dos falsos mestres sobre quem Paulo escreve (At 11.1-3; 15.5). Em
Atos 15.1 vemos que alguns desses cristãos judeus eram
propagadores ativos do evangelho legalista, visitando crentes
gentios de outras cidades a fim de convencê-los a se submeter à lei
mosaica (Veja tb. At 15.23-24). Parece certo, portanto, que Paulo se
refere a essas pessoas quando escreve aos Gálatas.
Os discursos dos mestres judaizantes, conforme se depreende da
epístola, abrangiam ataques contra a autoridade apostólica de
Paulo, levando-o a defender-se (1.1, 11-12; 2.6-9, 11). Esses
ataques também eram dirigidos contra a mensagem paulina,
acusando-a de incentivadora de uma vida desregrada. Aliás, é
possível que alguns crentes galateus tenham de fato visto a
mensagem do evangelho da graça como uma licença para a
libertinagem (5.13, 19-21; 6.8). Ademais, os mestres judaizantes
acusavam Paulo de apresentar uma mensagem vacilante que
pregava a circuncisão quando isso era conveniente (1.10; 5.11).
Também em seus discursos os mestres do evangelho legalista
insistiam na necessidade da circuncisão (5.2-6; 6.12-13), bem como
na guarda da lei mosaica (4.10, 21). Segundo eles, a justificação
não seria possível caso, além da fé em Cristo, os preceitos
mosaicos não fossem rigidamente observados (5.4). Para Paulo,
tudo isso descaracterizava o evangelho a tal ponto que seu produto
não podia, de modo algum, ser chamado de evangelho (1.6-7). Para
ele, segundo parece, os proponentes dessa soteriologia legalista,
sequer deveriam ser considerados crentes, posto que eram dignos
de ser amaldiçoados (1.8-9).
A partir da observação do contexto que subjaz e dá motivo à
composição da carta, fica fácil concluir que o propósito de Paulo
nessa epístola é protestar contra a distorção do evangelho em seu
ponto essencial, a saber, a justificação unicamente pela fé,
defendendo assim a mensagem e a liberdade cristãs diante dos
ataques do legalismo.
Não se pode, porém, dizer que esse propósito era a meta final e
única que o Apóstolo tinha em mente ao escrever sua primeira
epístola. Na verdade, a meta teológica supra mencionada era
também um instrumento para a consecução de um alvo vivencial.
De fato, Paulo afirma a liberdade do crente em relação à Lei não
somente para realçar a justificação unicamente pela fé, mas
também, e talvez principalmente, para ensinar que a maturidade
cristã autêntica não pode ser construída através da obediência
mecânica a um conjunto de regras (Gl 3.3). Antes, é alcançada por
meio da obra do Espírito Santo na vida de quem foi redimido pela fé.
Sob a esfera, influência e controle do Espírito, o homem justificado é
capacitado a viver aquela real santidade que o simples esforço
pessoal, ainda que sincero, jamais será capaz de produzir (Gl 5.16-
18, 22-26). Assim, um segundo propósito igualmente importante em
Gálatas é desmascarar a falso conceito que reduz a vida cristã à
mera obediência estéril de normas exteriores, demonstrando que o
aperfeiçoamento do caráter do crente só ocorre por obra do Espírito
Santo na vida daqueles que, salvos pela fé, se submetem ao seu
domínio.

CONTRIBUIÇÃO PARA A DOUTRINA CRISTÃ

Gálatas resume a essência do evangelho pregado por Paulo aos


gentios, mostrando que o homem, por seu esforço pessoal, não
pode jamais resolver o problema da culpa que lhe foi imposta e que
o separa de Deus, restando-lhe apenas a fé em Cristo como meio
de justificação (2.16).
Além disso, Gálatas mostra que essa fé que justifica, não apenas
leva o crente a desfrutar de um novo status diante de Deus, mas
também o livra da viver vazio e corrupto próprio dos homens deste
mundo (1.4) e o capacita a andar sob a influência e controle do
Senhor que agora nele habita (2.20).
Assim, a ética cristã também recebe forte contribuição da Carta
aos Gálatas. Nela aprendemos que a liberdade do crente não é
liberdade sem fronteiras, mas sim, uma liberdade limitada pelo amor
(5.13) e pela influência do Espírito Santo (5.16-26).
Finalmente, não se pode deixar passar em branco a contribuição
de 3.13 para a compreensão dos limites da morte substitutiva de
Cristo. Ele nos substituiu até o ponto de fazer-se “maldição em
nosso lugar”, o que aponta para o estado deplorável em que nos
encontrávamos antes de conhecer a salvação, além de mostrar a
profundidade do abismo a que Cristo desceu para nos buscar.

Capítulo 1

O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA SINGULARIDADE

Após se apresentar como apóstolo de Cristo, Paulo repudia


vigorosamente qualquer evangelho que não se harmonize com o
que tem pregado, realçando que o aprendera do próprio Cristo, sem
mediação de ninguém, nem mesmo dos apóstolos de Jerusalém.
SAUDAÇÕES INICIAIS
GÁLATAS 1.1-5

1. Paulo, apóstolo enviado, não da parte de homens nem por


meio de pessoa alguma, mas por Jesus Cristo e por Deus
Pai, que o ressuscitou dos mortos, 2. e todos os irmãos que
estão comigo, às igrejas da Galácia: 3. A vocês, graça e paz
da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo, 4. que
se entregou a si mesmo por nossos pecados a fim de nos
resgatar desta presente era perversa, segundo a vontade de
nosso Deus e Pai, 5. a quem seja a glória para todo o
sempre. Amém.

O autor da carta, Paulo, apresenta-se logo no início como


“apóstolo enviado, não da parte de homens nem por meio de
pessoa alguma, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai...” (1).
Conforme visto no estudo sobre os aspectos introdutórios, Paulo
vinha sofrendo ataques de falsos mestres que, atuando entre as
igrejas da Galácia, diziam que ele não tinha a mesma posição e
autoridade dos apóstolos de Jerusalém. Por isso, a fim de que sua
epístola não fosse recebida como uma carta qualquer, vazia de
credibilidade e poder e, assim, fosse de pronto desprezada, Paulo,
de antemão, enfatiza aos seus leitores que o que têm em mãos são
ensinos procedentes de um apóstolo verdadeiro; alguém que
recebeu essa função do Filho de Deus e do próprio Pai. Nisto, entre
outras coisas, ele se diferenciava daqueles que, já em seu tempo,
se autodenominavam apóstolos, movidos apenas pelo desejo de se
destacar entre os crentes comuns e, assim, enganá-los (2Co 11.13;
Ap 2.2).
No v. 1, Deus Pai é mencionado como aquele que ressuscitou
Jesus dentre os mortos. A menção da ressurreição de Cristo é
importante aqui porque foi o Cristo ressurreto quem diretamente
investiu Paulo no ofício apostólico (Rm 1.5). Ademais, a ênfase na
ressurreição era sempre conveniente numa época em que os
homens estavam tão familiarizados com o pensamento grego que,
em algumas de suas manifestações, considerava a matéria má, a
ponto de mais tarde, dentro de uma roupagem cristã, negar a
encarnação do Filho (1Jo 4.2; Hb 2.14) e a ressurreição física (1Co
15.12; 2Tm 2.18).
Ao escrever a Carta aos Gálatas, Paulo estava na companhia de
um grupo de irmãos. Não sabemos onde o Apóstolo estava quando
escreveu essa epístola e, portanto, nem de que cidade eram os
irmãos que tinha em sua companhia. Seja como for, Paulo faz
alusão a eles como se fossem participantes da composição da carta
(2), sem dúvida com o objetivo de sensibilizar os destinatários ao
mostrar-lhes que os apelos dali constantes não eram fruto das
preocupações de uma mente isolada, mas que essas mesmas
preocupações eram compartilhadas por irmãos na fé sinceros que
se uniam a Paulo em suas exortações, fazendo com ele um coro.
Eis aqui uma forma produtiva como a igreja deve demonstrar
unidade: aliando-se aos ministros em seus apelos e exortações,
dando assim maior força às suas mensagens e mostrando aos que
estão no erro a reprovação unânime do povo de Deus. De fato, nada
encoraja mais os rebeldes do que a consciência de que há crentes
que não concordam com as reprovações que lhes são dirigidas.
Como é seu costume, Paulo deseja que seus destinatários
desfrutem da graça e da paz que vem de Deus Pai e do Senhor
Jesus Cristo (3). A graça é o favor de Deus ministrado aos homens
quando estes nada fizeram para merecê-lo. A paz é a ausência de
intrigas nas relações entre as pessoas e também a serenidade
interior experimentada por quem desfruta de saúde e do suprimento
das necessidades em geral. A fonte de tudo isso, para Paulo, é
Deus.
Se, por um lado, o Pai foi descrito como quem ressuscitou Jesus
dentre os mortos (1), no v. 4, ao mencionar novamente as duas
Pessoas, Paulo focaliza Cristo, apontando-o como aquele que “se
entregou a si mesmo por nossos pecados”. A morte voluntária de
Cristo é afirmada aqui (Jo 10.17-18), bem como o seu sentido
teológico, ou seja, o fato de sua morte ser a satisfação pelos nossos
pecados (1Jo 2.2; 4.10). Para os galateus, fascinados com a idéia
de que a observância da lei mosaica poderia salvá-los, era crucial
que Paulo frisasse que somente a morte de Cristo pôde satisfazer
as exigências de Deus. Buscar satisfazer a justiça divina através de
obras humanas seria o mesmo que afirmar a insuficiência da cruz
(Gl 2.21).
Ao sofrer a morte que era a punição pelos nossos pecados, Cristo
não somente teve como alvo nos substituir no castigo a nós devido.
Ao tirar-nos dentre os condenados à morte, ele conseqüentemente
nos resgatou “desta presente era perversa” (4). O verbo traduzido
como “resgatar” é ἐ ξαιρέω e também significa livrar ou libertar do
poder de outra pessoa. Há aqui um breve lampejo do tema
“liberdade cristã”, presente em toda epístola. A “presente era” da
qual Cristo nos resgatou é o atual sistema cultural com seus valores,
crenças e apelos. Trata-se de um sistema que rejeita Deus e, por
isso é perverso e merecedor de justo castigo.
Cristo sofreu a nossa condenação e, assim, nos libertou deste
mundo condenado. Não somos mais participantes do seu destino e
também não devemos mais ser participantes de suas práticas e
modo de pensar. Fomos tirados de uma Sodoma que em breve
conhecerá o fogo do juízo e, não sendo mais seus cidadãos, não
devermos adotar seu estilo de vida (Rm 12.1-2).
Paulo conclui dizendo que todo esse livramento foi pela vontade
do Pai (Ef 1.5; Tg 1.18). A origem da salvação está sempre em
Deus. É ele quem parte em busca do homem (Gn 3.9; Os 11.1-2; Lc
19.10). O contrário nunca acontece (Jo 5.40; Rm 3.11). Por isso, é
natural que a seção termine com o Apóstolo atribuindo e ele “a
glória para todo o sempre. Amém.” (5).
A AMEAÇA DE UM OUTRO EVANGELHO
GÁLATAS 1.6-10

6. Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão


rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo,
para seguirem outro evangelho 7. que, na realidade, não é o
evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão
perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo.
8. Mas ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um
evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja
amaldiçoado!
9. Como já dissemos, agora repito: Se alguém lhes anuncia
um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja
amaldiçoado!
10. Acaso busco eu agora a aprovação dos homens ou a de
Deus? Ou estou tentando agradar a homens? Se eu ainda
estivesse procurando agradar a homens, não seria servo de
Cristo.

Depois das palavras iniciais de saudação, Paulo entra


diretamente no assunto principal que o motivou a escrever a
epístola: o desvio dos galateus para as sendas do “evangelho”
legalista, isto é, a crença de que para ser salvo e prosseguir na vida
como um cristão modelo, é necessário ser um bom prosélito do
Judaísmo, guardando a Lei Mosaica em todos os seus aspectos.
Paulo demonstra-se admirado com o desvio tão rápido dos
crentes da Galácia (6). De fato, como já vimos, a carta em análise
foi escrita entre o fim da Primeira Viagem Missionária, quando Paulo
visitou a Galácia (At 13-14) e o Concílio de Jerusalém (At 15).
Assim, os galateus começaram a abandonar o verdadeiro
Evangelho tão logo Paulo os deixou! Isso causava espanto no
Apóstolo. Lembremos que o problema na Galácia não dizia respeito
ao desvio relativamente comum de alguns novos convertidos que
com certa freqüência retornam para o mundo (Mt 13.1-23). Paulo
trata aqui da apostasia de, pelo menos, quatro igrejas, ocorrido
quando mal ele virara as costas.
No v. 6 o Apóstolo mostra que abandonar o Evangelho equivale a
abandonar o próprio Deus. Isso se torna ainda mais grave quando
lembramos que Deus é “aquele que os chamou pela graça de
Cristo”. Mais uma vez a origem da salvação é colocada em Deus
(Veja v. 4). Nota-se aqui que é ele quem chama (tb. v.15), sendo
essa uma convocação cujo atendimento implica ser resgatado (Rm
8.30; 1Ts 2.12; 2Ts 2.13-14; 1Pe 2.9). Esse chamamento é
viabilizado pela graça de Cristo (2Tm 1.9-10a). Deus chama o
pecador porque, pela graça de Cristo dada a nós desde os tempos
eternos e revelada em sua manifestação, é possível agora ter
acesso ao Pai (2Co 5.18-19; Ef 2.17-18; 3.11-12; Hb 10.19-20). Os
galateus, ao abandonarem o Evangelho, estavam dando as costas
para o Deus que havia realizado tudo isso em seu favor.
Esse abandono de Deus se expressava na disposição para seguir
“outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho” (vv.6-7). Na
busca de agradar a Deus por meio da Lei os crentes da Galácia
tinham, na verdade, abandonado a Deus, seguindo uma mensagem
que não era dele, um evangelho tão desfigurado que não podia, de
modo algum, ser chamado de evangelho. Daqui se depreende duas
preciosas lições. Primeira: quem quer aproximar-se de Deus à parte
do único Evangelho acaba por distanciar-se ainda mais dele.
Segunda: qualquer acréscimo à mensagem de salvação que
esvazia a obra de Cristo de suficiência, perverte o Evangelho
verdadeiro e deve ser de pronto rejeitado por nós como ímpio e
profano.
Paulo aponta para a causa daquele desvio tão rápido. Diz ele: “O
que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo
perverter o evangelho de Cristo.” (7). É evidente que Paulo está se
referindo aos mestres legalistas que, possivelmente vindos de
Jerusalém (Veja “Aspectos Introdutórios”), anunciavam que para ser
justificado diante de Deus era necessário que o cristão fosse
circuncidado (5.2-6; 6.12-13) e guardasse toda a Lei (2.16; 3.11;
4.10, 21). Tal era, de fato, o conteúdo dominante do “outro
evangelho” combatido por Paulo na Carta aos Gálatas.
Essa perversão do Evangelho trazia perturbação às igrejas.
“Perturbar” aqui significa agitar, promover distúrbios, tumultuar ou
criar confusão. Em Atos 15.24, onde o mesmo verbo tarásso
aparece, aprendemos que essa perturbação consistia
especificamente em transtornar ou confundir a mente dos crentes
com discursos heréticos. Esse efeito da mentira é útil aos falsos
mestres porque a mente confusa é vacilante e, aos poucos, pela
insistente proclamação do erro, termina por ceder aos apelos da
heresia. A mente dos novos crentes onde a Sã Doutrina, pelo pouco
decurso do tempo, ainda não foi digerida, assimilada e firmemente
incorporada, é alvo fácil dessa estratégia. Os falsos mestres sabiam
disso e usaram com maestria o repugnante artifício na Galácia,
onde as igrejas haviam acabado de nascer.
Por outro lado, que essa mesma mente vacilante seja encontrada
em crentes antigos é inadmissível, pois neles se espera que a
verdade esteja claramente delineada e solidamente fixada, ao ponto
de não poderem mais ficar confusos ou perturbados, cheios de
questões e dúvidas, quando doutrinas estranhas lhes são propostas
(Cl 4.12; 2Pe 1.12).
O pronunciamento de Paulo em face da atuação dos mestres
judaizantes se constitui num dos mais impetuosos de todo o Novo
Testamento. Ele afirma com rigor: “Mas ainda que nós ou um anjo
dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes
pregamos, que seja amaldiçoado!” (8). Com o pronome “nós”, o
Apóstolo se refere a si próprio. Dessa forma ele pretende levar a
hipótese ao absurdo a fim de mostrar com que grau de firmeza o
crente deve comprometer-se com o evangelho genuíno. Por outro
lado, ainda que a hipótese do próprio Paulo pregar um falso
evangelho fosse praticamente impossível, havia a real possibilidade
de alguém ensinar mentiras através de cartas e assiná-las
fraudulentamente com o nome do apóstolo. Parece que falsificações
desse tipo aconteceram nessa época no ministério de Paulo (2Ts
2.1-2). Tanto que para frustrá-las, ele assinava suas epístolas de
próprio punho (2Ts 3.17).[4] O que Paulo diz no v.8, portanto,
serviria, inclusive, para prevenir os crentes contra heresias
ensinadas em seu nome.
Ainda no v. 8, o leitor se vê diante de uma hipótese ainda mais
incrível. Desta vez é um anjo celeste que Paulo apresenta como
eventual proponente de um evangelho diferente daquele que fora
pregado aos galateus. A possibilidade de um ser angelical maligno
apresentar-se como um mensageiro de Deus e, assim, enganar os
homens é vislumbrada em 2Coríntios 11.14, onde Paulo diz que o
próprio Satanás se disfarça de anjo de luz.[5] Dificilmente, contudo,
Paulo estava receoso disso realmente acontecer com os crentes da
Galácia. Sua intenção era apenas expressar quão fortemente os
crentes devem se opor a qualquer pessoa que se aproxima deles
com uma mensagem que tira da cruz de Cristo a sua suficiência.
Diante das duas hipóteses levantadas por Paulo no v.8, a reação
do crente deve ser uma só: considerar o tal mensageiro, seja ele
quem for, maldito. Na prática isso não significa que o crente tenha
que pronunciar maldições contra o falso mestre. O que Paulo ensina
é que o cristão deve considerar quem anuncia um evangelho falso
como estando debaixo da ira de Deus (Cf. Rm 9.3 e 1Co 16.22,
onde esse é claramente o sentido em que a palavra “amaldiçoado”
deve ser entendida). Essa orientação tem que sempre estar
presente na mente dos crentes de todas as épocas, uma vez que
mensageiros mentirosos existem desde os primórdios da igreja (Rm
16.17-18; 2Co 11.3-4) e podem ser encontrados em qualquer lugar.
Se essa postura rígida fosse adotada pelos cristãos modernos, há
muito veríamos nossas igrejas livres do estranho evangelho que é
pregado em nossos dias.[6]
O v.9 repete o que foi dito no 8 com ligeiras modificações. Aqui
ele não fala de “nós ou um anjo vindo dos céus”. Antes usa a
palavra “alguém”, um termo amplo que lógica e propositalmente
inclui os falsos mestres que perturbavam os galateus. Além disso,
Paulo substitui a expressão “evangelho... que lhes pregamos” por
“evangelho... que já receberam”. Com a primeira fórmula Paulo
evoca a fonte da mensagem pregada inicialmente na Galácia, ou
seja, um apóstolo enviado pelo próprio Deus (1.11-12). Com a
segunda Paulo traz à lembrança dos seus leitores o compromisso
que assumiram com essa mesma mensagem. Nos dois casos ele
quer estimular as igrejas da Galácia a reafirmar sua fidelidade ao
evangelho puro.
A força do texto em análise, contudo, não está em suas pequenas
variações. É a repetição que naturalmente dá ênfase ao que é dito.
Através da repetição Paulo realça e assume plenamente o que
afirma, mostrando coragem, convicção e clareza, ao anular qualquer
possibilidade de que às suas palavras seja dada uma interpretação
mais branda. De fato, ele afirma e repete que o proponente de um
outro evangelho deve ser considerado maldito!
O v. 10 parece a princípio apresentar uma rápida digressão. Nele
Paulo rejeita terminantemente a idéia de ser um ministro que no
exercício de suas funções se preocupa em agradar a homens. O
que ocorre aqui, contudo, não é propriamente um desvio do
assunto. Na verdade, o que o Apóstolo diz nos vv. 8-9 são uma
prova clara de que não tem receio de desagradar quem quer que
seja. Ademais, é possível que na Galácia fermentassem
comentários maldosos (estimulados pelos mestres judaizantes) de
que ele pregava a necessidade da guarda da Lei quando isso lhe
era conveniente (Veja-se 5.11). A sensibilidade de Paulo aos
escrúpulos dos judeus incrédulos, demonstrada muitas vezes na
sua prática evangelística, pode ter servido de base para essas
falsas acusações (1Co 9.20-21). Paulo agora destaca a falsidade
delas. Segundo ele, seria impossível ser servo de Cristo e ao
mesmo tempo buscar o aplauso humano. Parece que para Paulo
uma coisa exclui a outra e esse fato deveria ser levado em conta por
todos quantos se dizem chamados para o ministério. A tentativa de
esvaziar o trabalho de Cristo dessa dimensão incômoda tem levado
muitos pastores a abandonar o ensino escriturístico para pregar e
fazer o que agrada as mentes carnais.
A ORIGEM DIVINA DO EVANGELHO
GÁLATAS 1.11-24

11. Irmãos, quero que saibam que o evangelho por mim


anunciado não é de origem humana.
12. Não o recebi de pessoa alguma nem me foi ele ensinado;
ao contrário, eu o recebi de Jesus Cristo por revelação.
13. Vocês ouviram qual foi o meu procedimento no judaísmo,
como perseguia com violência a igreja de Deus, procurando
destruí-la.
14. No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha
idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus
antepassados.
15. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me
chamou por sua graça. Quando lhe agradou 16. revelar o seu
Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não
consultei pessoa alguma.
17. Tampouco subi a Jerusalém para ver os que já eram
apóstolos antes de mim, mas de imediato parti para a Arábia,
e voltei outra vez a Damasco.
18. Depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer
Pedro pessoalmente, e estive com ele quinze dias.
19. Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago,
irmão do Senhor.
20. Quanto ao que lhes escrevo, afirmo diante de Deus que
não minto.
21. A seguir, fui para as regiões da Síria e da Cilícia.
22. Eu não era pessoalmente conhecido pelas igrejas da
Judéia que estão em Cristo.
23. Apenas ouviam dizer: “Aquele que antes nos perseguia,
agora está anunciando a fé que outrora procurava destruir”.
24. E glorificavam a Deus por minha causa.

O texto que se passa agora a analisar compõe uma grande seção


autobiográfica em que Paulo narra parte de sua trajetória tanto
dentro do judaísmo como do cristianismo. Seu propósito é
claramente oferecer elementos históricos que comprovem a sua
autoridade apostólica que, como se sabe, estava sendo atacada
pelos falsos mestres que atuavam dentro das igrejas da Galácia.
Paulo inicia esclarecendo que o evangelho que pregava não era
de origem humana (11). É evidente que sua intenção ao alertar os
galateus acerca disso era criar em suas mentes uma idéia de
contraste entre o que lhes anunciara no princípio e o que eles
estavam agora ouvindo dos mestres judaizantes. Há, portanto, aqui
a acusação implícita de que a mensagem dos legalistas não
passava de algo criado por eles mesmos.
Do que foi dito acima, facilmente se depreende uma característica
típica das falsas religiões: suas crenças, ensinos, rituais e práticas
são apenas produto da fértil imaginação de seus fundadores e
líderes. Em contrapartida, o seguinte fato sobre a verdadeira religião
deve enraizar-se fortemente em nosso coração: a religião genuína é
dada, não construída. É Deus quem a revela; não é o homem que a
inventa. Esse é o motivo pelo qual não podemos fazer alterações no
cristianismo. Não fomos nós que o criamos e, portanto, não temos o
direito de alterá-lo. Se quisermos recebê-lo, temos que aceitá-lo
como ele é.[7]
No v. 12, Paulo desenvolve ainda mais o ensino de que o
evangelho que pregava não se originou em homens. Primeiramente
afirma que não o recebeu de ninguém e que nenhuma pessoa o
ensinou. Nessas palavras pode-se vislumbrar um dos traços do
verdadeiro apostolado que Paulo reivindicava de modo tão
veemente: o apóstolo de Cristo não aprendia a mensagem que
pregava com outros homens. Essa mensagem lhe era dada
diretamente pelo Cristo ressurreto (1.1; 1Co 11.23ss). Esse é um
dos principais pontos de distinção entre os apóstolos de Cristo e os
crentes comuns, já que estes recebem ou aprendem o evangelho de
um outro cristão que se dispõe a pregar (1Co 15.1,3). Essa também
é uma das razões pelas quais podemos afirmar que não existem
mais apóstolos hoje, uma vez que ninguém mais pode alegar com
sã consciência que aprendeu o evangelho sem a mediação humana.
Paulo completa o v.12 com a declaração aberta de que recebeu o
evangelho do próprio Jesus Cristo “por revelação”. Enquanto os
galateus tinham recebido o evangelho pela pregação (3.1-2; 4.13),
Paulo o recebera através de uma manifestação especial de Deus,
uma revelação (Ef 3.2-4). Assim foi com os demais apóstolos e
profetas do período neotestamentário (Ef 3.5) e Paulo realçava essa
experiência a fim de defender a sua autoridade apostólica (1.15-16;
1Co 2.9-13).
O Apóstolo passa agora a narrar a mudança dramática que se
operou em sua vida após ter conhecido a Cristo. Ele quer
demonstrar com a exposição desses fatos o grande impacto que o
evangelho que pregava causou em sua própria história. É evidente
que uma transformação tão profunda não podia ser procedente de
uma mensagem que o próprio apóstolo houvesse dolosamente
inventado. Para Paulo, ele mesmo era a prova viva da origem
sobrenatural da mensagem que anunciava. De fato, só uma
mensagem oriunda de fontes celestes poderia transformar o mais
cruel dos inimigos da igreja no apóstolo dos gentios, talvez o maior
cristão que já pisou neste mundo.
No v. 13, Paulo afirma que os galateus ouviram acerca do seu
procedimento no judaísmo, “como perseguia com violência a igreja
de Deus, procurando destruí-la”. Algumas informações sobre a
ferocidade com que Saulo de Tarso investia contra os crentes
podem ser deduzidas de Atos 8.1-3; 9.1-2, 13-14; 22.4-5; 26.9-11;
1Coríntios 15.9; e 1Timóteo 1.13-16.
Esses textos, associados ao versículo em análise, mostram que o
alvo maior dos inimigos da fé, entre os quais Paulo um dia foi
contado, é nitidamente destruir a igreja. Essa verdade deve
preocupar os crentes. Não por nutrirem medo de que a igreja um dia
seja aniquilada. É sabido, e a própria história comprova, que isso é
impossível (Mt 16.18; 1Pe 5.8-11). Contudo, o anseio de destruir a
igreja, típico dos inimigos de Cristo, deve preocupar o crente no
sentido de evitar agir também nessa direção. Na verdade, todas as
ações dos cristãos devem ser avaliadas à luz do tipo de impacto que
elas porventura causarão sobre a igreja de Deus. Qualquer ação ou
omissão que a enfraqueça deve causar-nos pavor, uma vez que nos
torna cooperadores dos adversários da família de Deus.
Se de um lado Paulo era severo na perseguição do cristianismo,
de outro era também severo no cuidado pelo judaísmo (14). Na
verdade, Saulo de Tarso juntamente com as autoridades judaicas e
romanas, não via o cristianismo como uma religião autônoma.[8]
Para eles, o cristianismo era apenas o judaísmo “corrompido” pela
idéia de que Jesus era o Messias prometido nas páginas do AT. A
perseguição promovida por Saulo, portanto, tinha como alvo purgar
a religião de seus antepassados dos “desvios” anunciados pelos
cristãos. Assim, sua perseguição era fruto de zelo religioso
extremado (Fp 3.6). De fato, Saulo amava o judaísmo e queria livrá-
lo de supostas contaminações (1Tm 1.13).
A menção desse zelo anterior de Paulo pelo judaísmo é
extremamente útil para os seus propósitos na Carta aos Gálatas.
Isso porque, como se sabe, os falsos mestres que atuavam na
Galácia se apresentavam como grandes observadores da lei
mosaica[9], exigindo que os crentes se submetessem ao jugo
judaico e acusando Paulo de ter uma mente apegada ao
desregramento. A fim de expor a loucura que tudo isso
representava, o Apóstolo mostra que ele sim havia sido um real
observador da Lei, não do tipo que tentava ser amigo dos cristãos
(como os falsos mestres), mas como alguém indisposto a tolerar
qualquer sombra que nublasse o centro de suas convicções
religiosas. Paulo afirma que foi um observador da Lei sem igual
entre os judeus de sua idade, zelando extremamente pelas
tradições de seus antepassados.[10]
O apóstolo quer com isso, indiretamente dizer: “Eu já percorri com
todo o empenho o caminho no qual vocês e esses tais mestres
estão agora engatinhando e sei que é um caminho inútil, incapaz de
salvar. Toda a minha trajetória mostra o quanto fui zeloso dessas
coisas que hoje atraem tanto vocês. Fui autoridade nisso tudo e
agora, como Apóstolo, sou autoridade no caminho novo do
Evangelho de Cristo. Por isso, creiam-me: não há relação alguma
entre o Evangelho de Cristo e o legalismo judaico. Conheço muito
bem o primeiro e conheci muito bem o último. Sei que aquele é
poderoso para salvar e que o último só escraviza”.Uma linha
semelhante de pensamento pode ser vislumbrada em Filipenses
3.4-9.
No v. 15, Paulo contrasta a vida que tinha no judaísmo com uma
nova e gloriosa etapa; uma etapa de serviço a Cristo, serviço esse
marcado por prontidão em obedecê-lo (16) e independência dos
líderes de Jerusalém (17). Ao iniciar esse assunto, o Apóstolo cita
apenas de passagem a causa primária que o lançou nesse
ministério. Segundo ele, o próprio Deus o separou desde o ventre
materno e o chamou por sua graça.
A menção desses mistérios é muito propícia neste ponto.
Evidentemente a meta de Paulo ao mencioná-los é demonstrar a
origem sobrenatural de seu chamado e assim neutralizar os ataques
que os falsos mestres faziam contra a autenticidade de seu
apostolado. De fato, ao dizer que Deus o separou desde o ventre
materno, além de ensinar num breve lampejo a predeterminação
divina, também eleva seu ministério ao nível dos mais eminentes
servos de Deus do Antigo Testamento (Is 49.1; Jr 1.4-5), o que
deveria inspirar temor e honra nos galateus que estavam vacilantes
quanto à sua opinião acerca de seu pai espiritual (Ver tb. Rm 1.1).
Ademais, ao dizer que Deus o chamou por sua graça, golpeia o
ensino dos falsos mestres no próprio coração, pois está com isso
dizendo que seu zelo pela Lei e tradições judaicas, em nada influiu
na obtenção do favor com que foi aquinhoado pelo Senhor. Na
verdade, foi unicamente pela graça de Deus que alcançou o
privilégio de ser contado entre os ministros do Evangelho.
Resumindo, Deus chamou Paulo por sua graça, não em virtude de
seu zelo pregresso na prática do judaísmo.
Assim, com uma linha apenas, Paulo destrói as duas principais
mentiras que emanavam da boca dos judaizantes: a de que Paulo
era um falso apóstolo e a de que a prática da Lei era fundamental
para a obtenção do favor divino.
O v. 16 termina o pensamento que a má divisão dos versículos
deixou incompleto no verso anterior. Houve um momento que o
Deus que separou Paulo antes dele nascer e o chamou por sua
graça, também lhe revelou seu Filho.[11] Tal revelação, conforme se
depreende do texto, foi especialmente feita com o propósito de
habilitar Paulo como pregador aos gentios.
É pouco provável, portanto, que o apóstolo esteja se referindo
aqui à sua experiência no caminho de Damasco. Certamente alude
a outra ocasião em que o Senhor revelou-se a ele de forma visível e
gloriosa, provavelmente nas regiões da Arábia mencionada no v. 17,
desvendando-lhe os mistérios que deveria anunciar e escrever (Ver
vv. 11-12; 2Co 12.1,7; Ef 3.2-3) e incumbindo-o da pregação aos
povos de todo o mundo (Rm 1.5, 14).[12]
Aqui vemos, pois, um importante processo: O Deus que separa e
chama é também o Deus que capacita para a obra. Dele é o plano
ao escolher; dele é a voz ao chamar, e dele são os recursos ao
tornar seu servo pronto para o serviço. Aliás, essa verdade deve ser
gravada de forma indelével na mente de todo o que trabalha em prol
do Reino de Cristo, pois o resultado de sua assimilação será
gratidão por ser contado entre aqueles que o Senhor preparou,
prontidão por saber que é o próprio Deus quem chama, e coragem
advinda da certeza de que é o Chefe Onipotente quem nos capacita.
Tais foram as disposições presentes no Apóstolo. Tanto que, ao
ver-se encarregado dos grandes mistérios e deveres dados por
Deus, não consultou “pessoa alguma”!
Paulo prossegue afirmando, no v. 17, que ao tempo do seu
chamado não subiu a Jerusalém para ver os que já eram apóstolos
antes dele. Sua intenção aqui é reforçar ainda mais a alegação de
que não aprendeu a mensagem que pregava com homem algum (cf.
vv. 11-12). Nem mesmo os apóstolos de Jerusalém lhe haviam
transmitido essa mensagem. Nem tampouco acrescentaram algo a
ela ou tiveram que corrigi-la em algum ponto. Paulo insiste em sua
defesa contra os falsos mestres alegando que é um apóstolo
genuíno, ou seja, alguém que recebeu sua mensagem diretamente
do Cristo ressurreto, sem qualquer mediação humana.
Diz ainda o Apóstolo que, quando da sua vocação, em vez de
consultar os líderes de Jerusalém, partiu para a Arábia e depois
voltou outra vez para Damasco. A Arábia era o reino de Aretas (2Co
11.32) que abrangia as regiões a leste de Damasco, estendendo-se
em direção ao sul sobre a Transjordânia e abarcando toda a
Península do Sinai (4.25) até Suez. Paulo foi para algum lugar
dentro desses limites e depois voltou para Damasco. Certamente se
isolou naquelas regiões a fim de refletir sobre tudo o que lhe
acontecera e também para receber capacitação de Deus para a
pregação. Essa ida de Paulo para as regiões da Arábia não é
mencionada no livro de Atos, mas é provável que se situe entre os
versículos 19 e 20 de Atos 9, o que, se for aceito, coloca a ida à
Arábia antes do início de seu ministério como pregador.
No v.18 o apóstolo diz que foi a Jerusalém somente três anos
depois dos eventos narrados. Talvez ele tenha passado todo esse
tempo pregando em Damasco (Veja em At 9.23 a expressão
“decorridos muitos dias”). Então, como não pudesse mais
permanecer ali sem correr grave perigo, fugiu (At 9.23-25; 2Co
11.32-33) e aproveitou a oportunidade para seguir até a Palestina,
onde poderia finalmente conhecer Pedro.
Com a ajuda de Barnabé (At 9.26-27), Paulo chegou a Pedro e
permaneceu com ele apenas quinze dias, o que seria insuficiente se
tivesse ido ali para receber qualquer treinamento nas funções que
desempenhava. Ademais, acrescenta sob juramento (20) que não
viu nenhum dos outros apóstolos, exceto Tiago, irmão do Senhor.
[13] Assim, mais uma vez Paulo destaca que não era um apóstolo
de “segunda categoria” como diziam seus oponentes. Antes, como
ocorrera com os seus colegas de Jerusalém, havia recebido o
múnus apostólico diretamente de Jesus Cristo ressurreto (1Co 9.1-
2).
Depois de ter estado em Jerusalém, Paulo foi para a Síria e
Cilícia (21). A descrição desses fatos encaixa-se na narrativa de
Atos 9.29-30. Nesse texto aprendemos que em Jerusalém Paulo
corria perigo e, por isso, foi enviado para a Cilícia (sudeste da atual
Turquia), mais especificamente para Tarso, sua cidade natal (At
21.39; 22.3). Foi nessa cidade que, mais tarde, Barnabé, saindo à
sua procura, o encontrou. Ele então o levou até a recém formada
igreja de Antioquia que, finalmente, enviou ambos para a Primeira
Viagem Missionária (At 11.22-26; 13.1-2).
O que Paulo diz nos vv. 22-24 mostra que ele não visitou as
igrejas da Judéia. Seu objetivo é dar provas ainda mais fortes de
que seu contato com a área de influência dos apóstolos de
Jerusalém foi praticamente inexistente, sendo certo que sua
“formação” apostólica não dependeu de Pedro ou de qualquer outro
líder influente de Jerusalém.
Ao afirmar isso, refere-se às igrejas da Judéia como estando “em
Cristo”, o que significa estar sob a autoridade e sob a esfera de
influência do Senhor ressurreto. Aqui é importante destacar que não
são todas as igrejas da atualidade que podem ser qualificadas
desse modo. Qualquer grupo que se apresente como igreja de
Cristo, para que honre esse título deve curvar-se ao senhorio de
Jesus, ser sensível à sua mensagem proclamada na Escritura, e
buscar a sua presença atuante em seu meio. É somente com esses
traços que uma igreja pode dizer que está em Cristo.
Paulo destaca que, mesmo não tendo visitado aquelas igrejas,
sua fama corria entre elas, de modo que, perplexas, diziam: “Aquele
que antes nos perseguia, agora está anunciando a fé que outrora
procurava destruir” (23); e louvavam a Deus por causa dele. Assim,
o grande Apóstolo mostra como ele que inspirava terror passou a
inspirar louvor; como ele que arrancava gemidos de angústia
passou a estimular orações de gratidão. Com isso Paulo quer
mostrar que mesmo igrejas que não o conheciam pessoalmente, ao
menos reconheciam sua conversão e trabalho e com isso se
alegravam. Quanto mais não deveriam os galateus também honrá-
lo, já que o conheciam de perto e eram fruto do seu próprio
empenho!
Capítulo 2

O EVANGELHO VERDADEIRO E SUA INDEPENDÊNCIA

A mensagem pregada por Paulo, a qual não impunha a circuncisão


aos crentes gentios, não estava em conflito com a mensagem dos
demais apóstolos. Aliás, Paulo repreendera Pedro por haver tratado
os crentes gentios com desprezo em Antioquia a fim de agradar os
defensores da circuncisão vindos da igreja de Jerusalém.

A UNIDADE APOSTÓLICA
GÁLATAS 2.1-10

1. Catorze anos depois, subi novamente a Jerusalém, dessa


vez com Barnabé, levando também Tito comigo.
2. Fui para lá por causa de uma revelação e expus diante
deles o evangelho que prego entre os gentios, fazendo-o,
porém, em particular aos que pareciam mais influentes, para
não correr ou ter corrido inutilmente.
3. Mas nem mesmo Tito, que estava comigo, foi obrigado a
circuncidar-se, apesar de ser grego.
4. Essa questão foi levantada porque alguns falsos irmãos
infiltraram-se em nosso meio para espionar a liberdade que
temos em Cristo Jesus e nos reduzir à escravidão.
5. Não nos submetemos a eles nem por um instante, para
que a verdade do evangelho permanecesse com vocês.
6. Quanto aos que pareciam influentes o que eram então não
faz diferença para mim; Deus não julga pela aparência tais
homens influentes não me acrescentaram nada.
7. Ao contrário, reconheceram que a mim havia sido confiada
a pregação do evangelho aos incircuncisos, assim como a
Pedro, aos circuncisos.
8. Pois Deus, que operou por meio de Pedro como apóstolo
aos circuncisos, também operou por meu intermédio para
com os gentios.
9. Reconhecendo a graça que me fora concedida, Tiago,
Pedro e João, tidos como colunas, estenderam a mão direita
a mim e a Barnabé em sinal de comunhão. Eles concordaram
em que devíamos nos dirigir aos gentios, e eles, aos
circuncisos.
10. Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o
que me esforcei por fazer.

No capítulo 2, Paulo continua a narrativa, sempre com o propósito


de defender sua autoridade apostólica e a liberdade cristã. O
capítulo começa com a afirmação que, passados quatorze anos, ele
foi novamente a Jerusalém. É difícil detectar o ponto de partida para
a contagem desses quatorze anos. Pode-se contá-los tanto a partir
de sua primeira visita àquela cidade (1.18-20), como a partir de sua
conversão, sendo esta última hipótese a mais provável.
No v. 1 Paulo diz que foi a Jerusalém acompanhado de Barnabé.
Sabe-se que ambos por esse tempo eram líderes na igreja de
Antioquia (At 11.25-26; 13.1) e certamente partiram dali para
Jerusalém. Paulo diz que Tito, um gentio convertido também os
acompanhou. O apóstolo prossegue dizendo que a visita foi
motivada por uma revelação e que, graças a ela, teve a
oportunidade de expor o evangelho que pregava aos homens
influentes da principal igreja da Judéia (v.2).
Esses detalhes se encaixam perfeitamente na narrativa de Atos.
A revelação de que Paulo fala é descrita em Atos 11.27-30 e diz
respeito a uma profecia de Ágabo que predisse uma grande fome
que assolaria o mundo romano.[14] Em virtude dessa revelação,
Paulo foi enviado com Barnabé a Jerusalém a fim de entregar uma
oferta levantada em Antioquia para os crentes da Judéia (Veja tb. At
12.25). Conforme narrado em Gálatas, nessa ocasião Paulo não só
realizou a entrega da oferta, mas também aproveitou a oportunidade
para expor aos líderes da igreja em Jerusalém a mensagem que
pregava aos gentios.
A fim de manter em mente o lugar que esses episódios ocupam
na cronologia de Atos, é bom lembrar que tudo isso aconteceu antes
da Primeira Viagem Missionária a qual redundou na implantação
das igrejas da Galácia (At 13-14) e antes do Concílio de Jerusalém
(At 15.1-30), ocorrido em 48 d.C.
Paulo realça, ainda no v. 2, que fez a exposição de sua
mensagem “aos que pareciam mais influentes”. Ademais, deixa
claro que agiu assim para não correr inutilmente. Isso tudo significa
que Paulo se preocupava em manter clara a harmonia entre seus
ensinos e os dos demais apóstolos.[15] Isso faria com que seus
esforços não fossem inúteis, ou seja, evitaria as divisões e até
apostasias que as disputas entre mestres invariavelmente trazem
sobre a igreja do Senhor e que tornam o trabalho de alguns uma
corrida vã.
O v. 2 mostra, portanto, quão importante é que quem trabalha na
obra de Cristo nutra a unidade não só com os crentes comuns, mas
principalmente com aqueles que desempenham na igreja uma
função de alta responsabilidade. Ter a aprovação somente dos que
não ocupam lugar de destaque dado por Deus, com desprezo em
relação ao parecer dos líderes, dos mestres e dos que são
realmente influentes na igreja torna o trabalho uma corrida inútil,
destinada ao fracasso, uma vez que só produzirá divisões e
discórdias. Trabalha, pois, em vão o obreiro que arranca os
aplausos do povo, mas está em desacordo com os homens que
Deus constituiu como colunas na sua igreja. Paulo sabia disso e,
ainda que não estivesse sob a autoridade dos apóstolos de
Jerusalém, buscou cuidadosamente e para o bem da Causa estar
em harmonia com eles.
Nos vv. 3-5, Paulo mostra que os ataques que estava enfrentando
por parte dos falsos mestres da Galácia não lhe eram novidade. Ele
narra que em sua segunda visita a Jerusalém, Tito[16], apesar de
ser grego, não foi obrigado a circuncidar-se (3). Esse fato tinha
especial importância para o enfraquecimento das acusações dos
mestres judaizantes, pois dava provas de que os apóstolos de
Jerusalém, ao contrário do que aqueles falsos mestres diziam, não
exigiam a circuncisão de convertidos gentios[17]. Paulo, assim,
comprova ainda mais a harmonia entre seu evangelho e o dos
apóstolos da Judéia. Isso corrobora a tese de que é um verdadeiro
apóstolo e destrói a acusação de que pregava um cristianismo
modificado por seus caprichos.
A questão da necessidade da circuncisão de Tito, conforme Paulo
narra, foi levantada na ocasião por falsos irmãos (4). Aqui Paulo diz
abertamente que quem defende a justificação pela prática da Lei
não é crente. É claro que isso atingia diretamente os mestres
judaizantes que estavam ensinando nas igrejas da Galácia. O alvo
claro de Paulo em toda essa sessão é desmascarar esses homens.
O v. 4 mostra uma das estratégias de Satanás no uso de seus
ministros para destruir a obra de Cristo. Em primeiro lugar eles se
infiltram em nosso meio. Assim, cada crente deve estar alerta para o
fato de que nem todos os que estão na igreja são irmãos de
verdade. É comum incrédulos se fingirem de crentes para
cumprirem os desígnios de Satanás no meio do povo de Deus. Tais
pessoas são, portanto, muito perigosas (2Co 11.26; Fp 3.2-3) e o
crente precisa de discernimento para detectá-las.
Uma das formas pelas quais podemos detectar essas pessoas
encontra-se ainda no v. 4. Paulo deixa claro que os falsos irmãos se
introduziram na igreja para “espionar” a liberdade dos crentes.
Espionar é atividade própria de estrangeiros inimigos. O verbo
sugere a idéia de espiar um território. Assim o espião é sempre um
inimigo disfarçado que procura os pontos fracos do seu alvo a fim de
cooperar com sua destruição. Em Jerusalém, os “espiões”
procuravam encontrar dentro da igreja fraquezas na compreensão
da liberdade conquistada por Cristo para os crentes. Fazendo
pressões sobre esses pontos de maior fragilidade eles tinham como
alvo destruir a liberdade cristã e tornar os crentes escravos da Lei.
[18]
Toda essa estratégia usada pelos maus nos ajuda a detectar os
inimigos de Cristo infiltrados entre os irmãos. Sempre que alguém
no meio da igreja milita contra algo que Cristo conquistou para nós
na cruz, certamente tal pessoa é um servo de Satanás a serviço de
seu senhor no meio do povo de Deus. Exemplos do que Cristo
conquistou para nós no Calvário, além da liberdade, são a alegria
(Jo 7.38), a comunhão pacífica (Ef 2.14-16), o acesso a Deus (Hb
10.19-20) e o poder para uma vida de consagração (Rm 6.10-11;
2Co 5.15). Sempre que alguém, dentro da igreja, luta contra essas
coisas, tal pessoa deve ser olhada com suspeita como um falso
irmão infiltrado em nosso meio para destruir a obra do Mestre e,
assim, cumprir os planos de Satanás.
O v. 5 deixa implícito que os falsos irmãos, além de tentar destruir
o que Cristo conquistou para o seu povo também tentam se impor
sobre o rebanho. Paulo dá a entender que os legalistas de
Jerusalém queriam que ele e todos os crentes se sujeitassem às
suas idéias (o paralelo com os legalistas que estavam na Galácia é
óbvio, cf. 4.17; 6.12-13). É, de fato, traço típico dos falsos irmãos
tentar ocupar posições de influência, de onde seus ataques podem
ser feitos com maior eficácia (3Jo 9-10). O Apóstolo, porém, em
nenhum momento se sujeitou a eles. Com isso ele buscava
preservar a verdade do Evangelho. A verdade que o Apóstolo tem
em mente aqui é a consubstanciada em 3.11.
Demonstrar que sua mensagem não lhe fora entregue por homem
algum, mas sim pelo próprio Cristo, era fundamental para Paulo na
defesa de seu apostolado (1.11-12). Por isso insiste em dizer que
em sua segunda visita a Jerusalém, os apóstolos que ali estavam
nada lhe acrescentaram (6). Com a expressão “quanto aos que
pareciam influentes”, Paulo dá a entender que tem em mente outros
líderes, pouco conhecidos por ele, além dos apóstolos. Ao
mencionar tais homens e sua aparente autoridade, Paulo observa
que a grandeza deles naquela igreja não o impressionava, pois,
conforme lembra, “Deus não julga pela aparência”.
De fato, é comum na igreja vermos pessoas se destacando,
tornando-se conhecidas e influentes, obtendo um lugar de
proeminência no meio da irmandade, dando a todos a impressão de
que são “grandes” e cheios de autoridade entre os crentes. Alguém
assim pode impressionar os homens, mas não passar de uma figura
desprezível aos olhos de Deus, alguém que até mesmo muito o
aborrece com seus ares de orgulhoso, com sua preocupação em
passar uma falsa imagem de santidade e zelo (Mt 6.16; 2Tm 3.1-5),
e com sua incapacidade de aceitar qualquer autoridade sobre si.
Paulo sabia que muitas vezes as aparências não correspondem aos
fatos. Por isso, não se deixava levar pelo aspecto externo das
coisas, sabendo que o justo Juiz julga de acordo com critérios que
vão além das nossas possibilidades (1Sm 16.6-7; Is 11.1-4), o que
também deveria nos conduzir a um cuidado maior com o que
realmente somos e com o modo como tratamos as pessoas (Jo
7.24; Tg 2.1-10).
Paulo prossegue dizendo que a liderança da igreja em Jerusalém
reconheceu seu apostolado como estando no mesmo nível do
apostolado de Pedro, o apóstolo de maior destaque entre os Doze
(7). A diferença entre ambos era apenas no tocante ao alvo de cada
ministério. O principal alvo de Paulo era os gentios; o principal alvo
de Pedro era os judeus. Isso, evidentemente, não significava que
Paulo não deveria pregar aos judeus (At 9.15), ou que Pedro não
deveria evangelizar gentios. Na verdade, os judeus eram os
primeiros que Paulo tentava conduzir à fé nas cidades por onde
passava (At 13.45-48; 14.1; 18.5-6; 28.16-28), e Pedro foi
personagem fundamental no “processo de inclusão” dos gentios na
igreja (At 10; 15.7). Aqui, no entanto, é-nos ensinado acerca da
ênfase do trabalho de cada um (Rm 11.13; 1Tm 2.7).
A despeito de atuarem em esferas diferentes, a igualdade entre o
apostolado de Paulo e o de Pedro estava no fato de que Deus
operara da mesma forma por meio de ambos (8). Não havia, pois,
razão alguma para que Paulo fosse considerado um falso apóstolo
ou um apóstolo de categoria inferior como pretendiam os mestres
legalistas. Paulo ensina no v.8 que nem mesmo o próprio Deus fazia
essa distinção.
A operação de Deus por meio de Pedro e Paulo como apóstolos,
consistiu em manifestar seu Filho a eles depois de ressurreto (Jo
20.19-20; 1Co 9.1), incumbi-los pessoalmente da missão de
proclamar o Evangelho (Jo 20.21; At 26.15-18; 1Co 9.17), dar-lhes
singular intrepidez e sabedoria ao pregar (Mt 10.17-20; At 4.13; 2Co
10.3-5; 11.23-29), abrir o coração de incrédulos para a sua
mensagem (At 2.37-41; 16.14) revelar-lhes verdades doutrinárias
até então desconhecidas (2Co 12.1,7; Ef 3.2-6; 2Pe 3.1-2), e
realizar milagres jamais vistos como prova de que sua mensagem
vinha de Deus (2Co 12.12; Hb 2.3-4).
Paulo conclui o relato sobre sua segunda visita a Jerusalém
falando que os líderes da igreja ali reconheceram a legitimidade de
seu ministério e estenderam a mão a ele e a Barnabé, um sinal de
harmonia e amizade, estando em acordo quanto às diferentes
esferas de atuação missionária (9). É bom ressaltar que os líderes
aqui, Tiago, Pedro e João, são chamados de colunas, o que lembra
o dever dos que estão à frente de sustentar a igreja com força e
firmeza inabalável (2Tm 1.7).
O v. 10 revela que os líderes de Jerusalém somente pediram que
Paulo e Barnabé se lembrassem dos pobres. Isso fazia sentido,
considerando que a visita tinha sido motivada pela profecia de Atos
11.27-30. Tal pedido, porém, não refletia qualquer autoridade dos
apóstolos de Jerusalém sobre Paulo. Mesmo assim, ele se esforçou
para atendê-lo. De fato, o cuidado com os carentes foi uma marca
presente ao longo de todo o ministério de Paulo (Rm 15.25-26; 1Co
16.1-4).

A SIMULAÇÃO DE PEDRO
GÁLATAS 2.11-21

11. Quando, porém, Pedro veio a Antioquia, enfrentei-o face a


face, por sua atitude condenável.
12. Pois, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele
comia com os gentios. Quando, porém, eles chegaram,
afastou-se e separou-se dos gentios, temendo os que eram
da circuncisão.
13. Os demais judeus também se uniram a ele nessa
hipocrisia, de modo que até Barnabé se deixou levar.
14. Quando vi que não estavam andando de acordo com a
verdade do evangelho, declarei a Pedro, diante de todos:
“Você é judeu, mas vive como gentio e não como judeu.
Portanto, como pode obrigar gentios a viverem como
judeus?
15. “Nós, judeus de nascimento e não ‘gentios pecadores’,
16. sabemos que ninguém é justificado pela prática da Lei,
mas mediante a fé em Jesus Cristo. Assim, nós também
cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em
Cristo, e não pela prática da Lei, porque pela prática da Lei
ninguém será justificado.
17. “Se, porém, procurando ser justificados em Cristo
descobrimos que nós mesmos somos pecadores, será Cristo
então ministro do pecado? De modo algum!
18. Se reconstruo o que destruí, provo que sou transgressor.
19. Pois, por meio da Lei eu morri para a Lei, a fim de viver
para Deus.
20. Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no
corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se
entregou por mim.
21. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça vem pela
Lei, Cristo morreu inutilmente!”

A presente etapa da narrativa de Paulo refere-se a uma severa


repreensão que ele dirigiu a Pedro quando este visitou Antioquia.
Com a menção desse episódio, Paulo pretende alcançar o propósito
de mostrar que não era em nada inferior aos apóstolos de
Jerusalém (já que repreendeu o maior dentre eles), bem como
defender a salvação unicamente pela fé, ao reproduzir as palavras
que dirigiu a Pedro.
A seção se inicia com a menção de uma visita de Pedro a
Antioquia (11). O Livro de Atos não faz nenhuma referência a esse
fato. Presume-se, a partir dos eventos narrados em Atos12, que,
depois de ter sido milagrosamente libertado da prisão em que
Herodes o havia lançado, Pedro foi a Antioquia. Em Atos é dito
apenas que ele se ausentou indo “para outro lugar” (At 12.17).
Depois disso, Pedro só aparece novamente na narrativa em Atos
15, no Concílio de Jerusalém (At 15.7). É possível, portanto, situar a
visita de Pedro a Antioquia entre sua extraordinária libertação e o
Concílio de Jerusalém.
Paulo afirma que por aquele tempo teve de enfrentá-lo “face a
face, por sua atitude condenável”. Essa atitude é descrita no v.12.
Nele aprendemos que Pedro comia com os gentios até a chegada
de uma delegação de crentes judeus, vindos de Jerusalém,
enviados por Tiago. Porém, com a chegada dessa delegação a
Antioquia, ele ficou receoso de ser reprovado pelos legalistas e,
para passar-lhes uma boa impressão, afastou-se dos irmãos
gentios.
De fato, antes do concílio mencionado em Atos 15, a igreja de
Jerusalém, predominantemente judaica, tinha em aberto a questão
de como receber os gentios em sua comunhão. Não faltavam os
que viam o Cristianismo como um simples ramo do Judaísmo e
diziam que a fé não era suficiente para que um gentio fosse aceito
como irmão, sendo necessária também a circuncisão e a guarda da
lei mosaica (At 15.1, 5). Para esse grupo, era inadmissível que um
judeu comesse com um gentio (At 11.1-3).
Não estando esse problema ainda formalmente solucionado,
Pedro, diante dos irmãos judeus, ficou com medo de ser reprovado
em sua associação com crentes incircuncisos e, assim, rompeu a
comunhão com eles. Com isso ele demonstrou hipocrisia, covardia e
desobediência, uma vez que já havia aprendido do próprio Senhor a
não desprezar os crentes não judeus (At 10.27-28, 34-35; 11.1-17).
Ele também demonstrou desprezo pela sã doutrina, preocupando-se
mais com a aprovação dos homens do que com a de Deus.
Segundo o v. 13, essa conduta vacilante e reprovável influenciou
outros crentes judeus que a imitaram. Paulo admirou-se do fato de
que o próprio Barnabé, exemplo máximo de piedade (At 4.36-37;
11.22-24), também tivesse se deixado levar.
Evidentemente, tamanha falta não poderia passar em branco e
Paulo tomou em suas mãos a tarefa de admoestar Pedro, o principal
responsável por toda aquela farsa. Paulo entendeu que Pedro e os
demais judeus não estavam andando “de acordo com a verdade do
evangelho” (14). De fato, a verdade do evangelho, além de ensinar
que a salvação é pela fé somente (16; Rm 3.28), estabelece
também que em Cristo, não há distinção entre judeus e gentios (At
15.8-9; Gl 3.26-28); que em sua morte, o Filho de Deus rompeu a
barreira de separação que estava entre os dois e criou de ambos
um novo homem, fazendo a paz (Ef 2.11-19); e que os gentios são
co-participantes da graça de Deus dada em Cristo (Ef 3.5-6).
Quando Pedro e seus companheiros se afastaram dos irmãos
gentios era como se negassem todas essas verdades, passando a
andar em desarmonia com elas.
A repreensão de Paulo destacou inicialmente a incoerência do
procedimento de Pedro: “Você é judeu, mas vive como gentio e não
como judeu. Portanto, como pode obrigar gentios a viverem como
judeus?” (14). Com essas palavras, Paulo toca na ferida do
farisaísmo. Nelas vemos implícitos os dois erros principais
cometidos por todos os que querem viver sob a Lei. Primeiro, sua
conduta exterior é uma farsa. Os legalistas têm uma vida dupla:
diante dos homens apresentam-se como zelosos da Lei, mas longe
dos olhos alheios vivem conforme outros padrões (Mt 23.23-28). Em
segundo lugar, os fariseus legalistas têm o hábito de impor fardos
sobre os outros, mas eles próprios não se dispõem a carregar esses
mesmos fardos (Mt 23.4). É assustador que Pedro, que viu quão
severamente o Senhor, em seu ministério terreno, reprovou a
conduta farisaica (Mt 23.1-3), tenha incorrido em tão grave erro.
A reprodução da repreensão dirigida por Paulo a Pedro
prossegue nos vv. 15-16. Nesses versículos Paulo conta ter trazido
à lembrança de Pedro que mesmo eles, sendo judeus de
nascimento, portadores de privilégios e conhecimentos espirituais
que os colocavam em vantagem em relação a qualquer pagão
ignorante (Rm 9.1-5), já haviam descoberto “que ninguém é
justificado pela prática da Lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo”.
Esse princípio tão resistido pelos homens em todas as eras já havia
sido descoberto por judeus agora convertidos, os quais outrora
tinham tentado ser justificados pela prática da Lei e haviam falhado.
Como então Pedro, alguém que, como um desses judeus, já tinha
experimentado a impotência da Lei, era agora capaz de sutil e
dissimuladamente impor sua observância aos gentios? Se, com
todos os privilégios espirituais que tinham, os judeus haviam falhado
e recorrido à fé, reconhecendo ser esta a única saída, como
poderiam agora impor o fardo da Lei a povos que jamais tiveram
privilégio algum? É, pois, como se Paulo dissesse: “Nós judeus, com
todo o favor que recebemos, descobrimos ser impossível alguém
salvar-se pela Lei. Como podemos esperar agora que os pobres
gentios consigam essa façanha?”
Assim, Paulo conclui o v. 16 realçando que, mesmo eles, judeus
com vantagens sobre todos os povos, tiveram que crer em Cristo
para ser justificados, já que pela observância da Lei, a qual exige
uma obediência perfeita, ninguém, nem mesmo o povo da Aliança
com todo o seu conhecimento, direitos e prerrogativas, pode ser
considerado justo aos olhos de Deus.
No v. 17, Paulo sugere que se o homem justificado pela fé em
Cristo, porventura ainda buscar a justificação pela Lei, isso será o
mesmo que, estando em Cristo, considerar-se ainda preso ao
pecado. Seria como se dissesse: “Mesmo tendo encontrado a
justificação pela fé em Cristo, isso não me é suficiente, pois me
considero ainda um pecador não justificado”. Ora, isso significaria
que crer em Cristo nos manteria ainda sob o pecado. Nesse caso, o
ministério do Senhor, ou seja, seu ensino e obra, não nos livraria,
mas sim manteria nossas almas sob a culpa do pecado que não
pôde remover. Cristo seria assim, um ministro que ainda nos
deixaria no pecado. Para Paulo, essa hipótese é absurda. É, de fato,
repugnante blasfêmia atribuir ainda que só uma parte da justificação
à observância da Lei, já que isso implica afirmar que Cristo não é
suficiente para salvar e que a simples fé nele ainda nos mantém
enredados em culpa e condenação (veja o v.21).
O procedimento de Pedro em Antioquia trazia em si todas essas
horríveis implicações. Sendo já justificado em Cristo, ele se
apresentara diante dos judeus de Jerusalém como alguém que
buscava a justificação pela prática da Lei e, agindo assim,
blasfemava, já que com essa prática era como se dissesse que o
Senhor não o livrara da culpa, mas como ministro do pecado, ainda
o mantinha em triste escravidão. De fato, era como se dissesse que
ainda estava em busca da salvação, considerando Cristo como
alguém que o conservara preso aos seus pecados.
Dando seqüência à sua argumentação, Paulo, provavelmente
ainda reproduzindo sua censura a Pedro, faz uso de uma figura
tirada do contexto da construção civil (18). Ele afirma que “se
reconstruo o que destruí, provo que sou transgressor”. O significado
disso é simples: Paulo, Pedro e os demais crentes judeus, quando
creram em Cristo, haviam como que “destruído” sua antiga
confiança nas obras da Lei. Eles tinham chegado à conclusão de
que a Lei não era capaz de fornecer abrigo contra a culpa do
pecado e, por isso, tinham posto ao chão todas as paredes de
confiança que se alicerçavam sua observância. Então, passaram a
viver em outra casa, a casa da fé em Cristo, única edificação que
oferece real segurança. Agora, porém, Pedro e seus companheiros
estavam agindo como se voltassem a viver sob o teto da Lei. Era
como se estivessem edificando novamente as paredes de confiança
nas obras que eles próprios haviam destruído quando creram no
Senhor. Ora, isso era o mesmo que reconhecer que erraram quando
deixaram de confiar na Lei. Era o mesmo que afirmar que
cometeram grave transgressão quando depositaram somente em
Cristo a esperança de justificação.
No v. 19, ressaltando o absurdo da hipótese prevista no v. 18,
Paulo mostra quão impossível era para ele qualquer reconstrução
da confiança na Lei. Ele havia morrido para ela, ou seja, havia se
libertado totalmente do seu domínio (Rm 7.4-6). Isso acontecera por
meio da própria Lei que lhe mostrara, quando ainda o tinha sob seu
domínio, quão incapaz era de livrar do pecado, posto que tão
somente o realçava e, dada a nossa malícia, até o estimulava ainda
mais (Rm 7.7-14). Nesse sentido, foi a própria Lei que encorajou
Paulo a abandonar a confiança nela. Morto para os preceitos legais
e, dessa forma, livre de seus fardos, Paulo passou a “viver para
Deus”.
O apóstolo explica o significado da expressão “viver para Deus”
no v.20. Num dos versículos mais tocantes de todo o NT, Paulo diz
que morreu para a Lei ao unir-se a Cristo em sua crucificação. Essa
é uma forma viva de dizer que morreu para a Lei ao apropriar-se
dos benefícios da morte de Cristo. Assim, estar crucificado com
Cristo é prender-se à cruz pela fé e, assim, morrer para a velha vida
com seus padrões e crenças vãs (6.14). Lembremos que essas
palavras provavelmente ainda compõem a admoestação dirigida a
Pedro que, com seu procedimento, revelara um modelo diferente de
vida.
Paulo prossegue explicando, ainda no v. 20, o sentido da
expressão “viver para Deus” (v.19). Ele diz que, além de estar morto
para o antigo estilo de vida baseado na confiança na Lei, tem agora
seu “eu” totalmente dominado por Cristo. “Já não sou eu quem vive,
mas Cristo vive em mim”. Aqui reside o “segredo” de toda a piedade
cristã. Esta não consiste de obediência exterior a regras, como
ensinavam os mestres legalistas da Galácia, mas sim de um deixar-
se dominar totalmente por Cristo, de tal forma que o indivíduo
desapareça, inundado por uma onda de caráter transformado e
santo (5.24).
Essa vida que implica morte para padrões antigos e inúteis; essa
vida que implica a renúncia de si próprio; essa vida que consiste na
construção da viver de Cristo em nós só é possível “pela fé no Filho
de Deus”. Não há espaço nela para a confiança nas obras pessoais.
Aliás, admitir, como Pedro dera a entender, que a justiça vem pela
Lei, seria o mesmo que anular a graça de Deus e afirmar a
inutilidade do sacrifício de Cristo (21).
Capítulo 3

O EVANGELHO VERDADEIRO E SEU PODER

É mediante a fé que o homem é justificado e é por obra do Espírito


Santo que participa das bênçãos da vida cristã, sendo a Lei incapaz
de realizar qualquer uma dessas coisas, conforme se vê no relato
bíblico acerca de Abraão. De fato, a Lei não foi dada para salvar,
mas para dar limites ao mal e conduzir o pecador a Cristo, em quem
desaparecem as barreiras entre os homens.
A INUTILIDADE DO ZELO LEGALISTA
GÁLATAS 3.1-5

1. Ó gálatas insensatos! Quem os enfeitiçou? Não foi diante


dos seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como
crucificado?
2. Gostaria de saber apenas uma coisa: foi pela prática da Lei
que vocês receberam o Espírito, ou pela fé naquilo que
ouviram?
3. Será que vocês são tão insensatos que, tendo começado
pelo Espírito, querem agora se aperfeiçoar pelo esforço
próprio?
4. Será que foi inútil sofrerem tantas coisas? Se é que foi
inútil!
5. Aquele que lhes dá o seu Espírito e opera milagres entre
vocês realiza essas coisas pela prática da Lei ou pela fé com
a qual receberam a palavra?

No capítulo 3 de Gálatas, Paulo passa a tecer diversos


argumentos em defesa da fé como instrumento de justificação e
ação especial de Deus em detrimento da observância da Lei.
A seção se inicia com fortes palavras de censura que expõem a
triste condição dos galateus. Com elas, Paulo quer claramente
despertar seus leitores de forma que tornem à sensatez. “Ó gálatas
insensatos! Quem os enfeitiçou?” (1), escreve o Apóstolo. Daí se
depreende em primeiro lugar que abandonar a confiança exclusiva
em Cristo e se estribar numa justiça própria imaginária que busca a
salvação por meio da obediência externa a regras é a mais absurda
loucura. Também um conceito mais amplo de sabedoria advém
disso: o homem sábio é aquele que reconheceu a impotência dos
seus esforços pessoais e lançou-se pela fé, sem reservas, nos
braços do Salvador. Há, assim, sabedoria na fé. O homem sábio é,
basicamente, o homem que crê. Sua sabedoria se expressa na fé
em Cristo (2Tm 3.15).
A partir do v. 1 também se deduz que o legalismo exerce um
notável fascínio sobre a natureza humana. É como se enfeitiçasse o
homem, nublando sua mente e impedindo-o de andar à luz das
verdades mais elementares do evangelho. O homem fica fascinado
com a idéia de ser capaz de produzir sua própria justificação; sente-
se atraído pela aparência de piedade que acompanha o zelo pelas
tradições e pelas regras religiosas; busca cegamente a aprovação e
admiração dos homens que se mostram sempre impressionados
com a religiosidade exterior; enfim, fica encantado com o que tem
ares de grandeza e seriedade, mas não tem poder para fazer o
indivíduo andar um centímetro sequer no rumo da santidade (Cl
2.23). Aqui, portanto, Paulo toca num dos fatores que fazem do
legalismo uma das mais perigosas armadilhas: o fato dele fascinar
as pessoas e, após entorpecer suas mentes, conduzi-las à
apostasia, ao abandono da fé na suficiência de Cristo (5.4).
A insensatez dos crentes da Galácia ganhava contornos ainda
mais fortes quando se considerava que o evangelho fora exposto a
eles com clareza indescritível. Paulo lhes apresentara o sacrifício do
Senhor e o significado de sua obra com tamanha vivacidade que era
como se eles tivessem sido testemunhas oculares da crucificação
(1Co 1.23; 2.2).[19] A suficiência da obra de Cristo no Calvário fora
apresentada a eles de forma tão enfática que nenhum espaço
restara para a confiança nas obras da Lei. A despeito disso, aqueles
cristãos deixaram-se levar pelos encantos da doutrina da
justificação pelas obras, sendo seduzidos pelos contornos de um
sistema religioso centrado no esforço humano, com seu zelo
aparentemente piedoso e glórias transitórias. Isso reforça o fato de
que o problema dos galateus não fora ingenuidade ou ignorância,
mas verdadeira e surpreendente estupidez, o que mostra quão
poderosa pode se tornar a influência de falsos mestres no seio da
igreja.
A fim de despertar os crentes da Galácia do sono da insensatez,
Paulo passa, a partir do v.2, a dirigir-lhes perguntas cujas respostas
são fáceis e óbvias. Aliás, tão óbvias são as respostas que tais
perguntas requerem que, por meio delas, fica ainda mais patente a
insensatez dos galateus.
Paulo dirige aos seus leitores, no v.2, a seguinte pergunta: “foi
pela prática da Lei que vocês receberam o Espírito, ou pela fé
naquilo que ouviram?”. Daqui se depreende tanto que os galateus
haviam recebido o Espírito Santo como que tinham plena
consciência disso. Aqui é preciso deixar claro que essa consciência
não era decorrente de nenhuma evidência sobrenatural externa. De
fato, os relatos da conversão dos crentes da Galácia constantes do
Livro de Atos mostram que tais conversões não foram
acompanhadas de nenhuma manifestação externa de dons
espirituais (At 13.43, 48; 14.1, 20-21). Portanto, a consciência de
que tinham o Espírito estava presente nos galateus em virtude de
uma obra interna do próprio Espírito em seus corações, a qual
consistira a princípio de enchê-los com uma alegria especial num
ambiente que lhes era hostil (At 13.52) e agora se manifestava num
testemunho interior que lhes dava a certeza de que eram filhos de
Deus (Rm 8.15-16).
Ora, certos de que tinham o Espírito, aqueles crentes não eram
ignorantes ao ponto de crer que tal dádiva lhes fora concedida por
meio da observância da Lei mosaica. Ademais, o propósito da
própria pergunta do v.2 é realçar algo óbvio, ou seja, que o Espírito
de Deus passara a habitar neles a partir do momento que creram na
mensagem anunciada por Paulo e não pelo fato de terem cumprido
a Lei, já que, como se sabe, ninguém é capaz de cumpri-la de fato.
O ensino da habitação do Espírito Santo no crente é parte
integrante do Novo Testamento (Rm 5.5; 1Co 2.12; 3.16; 6.19; 2Co
1.21-22; 5.5), sendo certo que a ausência do Espírito em alguém, é
prova de que tal pessoa não é salva (Rm 8.9; 1Co 2.14; Jd 19). Que
essa dádiva nos advém pela fé em Cristo é fato que também
compõe o ensino bíblico (Jo 7.37-39; Ef 1.13). Paulo, assim, faz uso
dessa verdade para, mais uma vez, mostrar a superioridade da fé
em relação à prática do legalismo. Ele mostra dessa forma que
somente a fé os introduzira no rol dos homens habitados por Deus,
sendo a Lei incapaz de conceder-lhes tal privilégio.
A pergunta que Paulo faz no v. 2 reveste-se de uma importância
singular nos dias modernos. Isso porque na atualidade existem
igrejas evangélicas que incentivam seus membros a buscar o
batismo do Espírito Santo por meio de certas práticas cultuais ou de
zelo religioso. Chegam mesmo a dizer que só recebe o Espírito o
crente que durante um período indeterminado se dedica a jejuns e
orações, submetendo-se ainda a outras regras impostas pela igreja.
Ora, isso equivale a dizer que o Espírito é dado por meio das obras
e não pela fé. É justamente esse pensamento que o v. 2 rejeita.
Paulo, desde o início, havia ensinado aos galateus que a justificação
é pela fé e não pela prática da Lei (At 13.39). Agora, ele os faz
lembrar que também a habitação de Deus no homem advém
somente da fé em Cristo, nada restando à Lei que faça dela fonte de
benefícios espirituais.
Paulo prossegue demonstrando a insensatez dos crentes da
Galácia. Agora, no v. 3, ele mostra quão absurda tolice é terem
iniciado a carreira cristã pela atuação do Espírito Santo e, então,
depois de conhecerem a incomparável força transformadora dele, se
voltarem para si mesmos, crendo que em si encontrarão recursos
para serem aperfeiçoados. Aqui Paulo deixa claro primeiramente
que é pela atuação sobrenatural do Espírito de Cristo que nos
tornamos cristãos. É nele que encontramos o início de toda a nossa
carreira espiritual como filhos de Deus (Jo 16.8; Rm 2.29; 1Co 2.4-5;
6.11; Ef 1.13; 2Ts 2.13; 1Pe 1.2). O papel do Espírito, porém, na
transformação do homem não pára aí. Sua obra no crente continua
(Rm 5.5; 8.13; 2Co 3.18; Ef 3.16; Fp 1.6) e, sem ela, o cristão que
confia meramente em seus esforços pessoais, não progride um
centímetro sequer.
Na Galácia, porém, os crentes não assimilaram essas verdades
indo ainda muito além em seu erro. De fato, estavam confiando no
esforço pessoal legalista não somente para servir a Deus, mas
também para de alguma forma obter o que criam ser a justificação
completa. Eles acreditavam que pela atuação do Espírito neles, a
obra de justificação havia apenas se iniciado e que agora dependia
deles a conclusão dessa obra. Essa crença é herética porque, além
de reduzir a real amplitude da obra de Deus na salvação humana,
no fim das contas coloca sobre os ombros do homem a
responsabilidade por sua própria salvação, como se ele tivesse
poderes para obtê-la. Portanto, diminuir a obra de Deus e exaltar a
obra do homem é o resultado final desse desvio doutrinário. Paulo
rejeita tudo isso. Em seu ensino, a consagração a Deus depende da
obra do Espírito (Rm 7.6) e, além disso, nenhuma confiança pode
ser depositada no esforço humano para a obtenção da justiça de
Deus (Fp 3.3; Tt 3.5).
No v. 4, Paulo faz os crentes da Galácia recordarem um pouco de
sua história. Quando eles receberam o evangelho da salvação pela
fé, rompendo muitos deles com o antigo sistema judaico, essa
decisão lhes trouxe inúmeros dissabores. Aliás, foram precisamente
os judeus, homens que confiavam na justiça de Lei que, vendo suas
crenças serem ameaçadas, se insurgiram contra Paulo na Galácia
(At 13.49-51; 14.2,4-5,19-20). Evidentemente essa perseguição
atingiu também os que creram na pregação de Paulo (At 14.22).
Dessa forma, foi por terem abraçado uma mensagem que
desprezava o legalismo judaico que os crentes galateus haviam
sofrido tanto. Agora, porém, respondendo aos apelos dos falsos
mestres, eles estavam se voltando precisamente para o legalismo
judaico, cuja rejeição lhes havia custado preço tão alto. Paulo então
pergunta: Teria sido desnecessário todo aquele sofrimento? Que
terrível prejuízo ter sofrido por algo que, conforme pareciam agora
crer, não tinha valor algum! Antes tivessem permanecido na Lei.
Assim receberiam os aplausos daqueles que os perseguiram e não
teriam passado inutilmente por tantas provas. Ao encerrar o v. 4
com a frase “se é que foi inútil”, Paulo faz transparecer que duvida
da hipótese que levantou. É como se dissesse: “prefiro, contudo,
ainda acreditar que vocês não consideram inútil tudo pelo que
passaram”.
Com o v.5, Paulo termina o parágrafo reforçando o ensino já
exposto (v.2) de que a dádiva do Espírito vem pela fé e não pela
prática da Lei. A isso ele acrescenta, valendo-se ainda de perguntas
inquietantes, que a operação de milagres entre os galateus era
resultado da fé e não do zelo legalista. Não se sabe de que milagres
ele fala aqui. Talvez tenha em mente os que ele próprio realizou na
Galácia (At 14.3, 8-10), mas é possível que outras manifestações
especiais do Espírito fossem testemunhadas por aqueles cristãos,
considerando que tais operações eram muito comuns nos dias
apostólicos. Seja como for, Paulo quer aqui tão-somente frisar que a
graça operante de Deus é resultado da fé e não um pagamento
pelas obras. Se assim fosse, não poderia mais ser chamada de
graça.

A BÊNÇÃO QUE VEM DA FÉ


GÁLATAS 3.6-9

6. Considerem o exemplo de Abraão: “Ele creu em Deus, e


isso lhe foi creditado como justiça”.
7. Estejam certos, portanto, de que os que são da fé, estes é
que são filhos de Abraão.
8. Prevendo a Escritura que Deus justificaria os gentios pela
fé, anunciou primeiro as boas novas a Abraão: “Por meio de
você todas as nações serão abençoadas”.
9. Assim, os que são da fé são abençoados junto com
Abraão, homem de fé.

Neste novo parágrafo, Paulo deixa de argumentar a partir da


lógica exposta em perguntas retóricas e passa a fazer uso de
argumentos escriturísticos. Inúmeras citações do Antigo Testamento
são feitas a partir do v. 6. Com elas, Paulo repisa a tese de que a
justificação é pela fé, independentemente das obras da lei mosaica.
É bom destacar que o largo uso de citações bíblicas feito por
Paulo mostra como o Apóstolo tinha em alta conta a Sagrada
Escritura. De fato, quando deseja provar a veracidade de seu ensino
recorre a ela muito mais do que ao raciocínio lógico, mostrando que
a tinha como palavra final nas questões que estava discutindo. Essa
visão da Bíblia como fonte última de autoridade tem sido
abandonada pelos cristãos modernos,[20] o que redunda em tristes
prejuízos doutrinários e morais. Apelar para o que o texto sagrado
diz na hora de dirimir questões de fé e conduta é prática que deve
ser resgatada pelos crentes de hoje.
No v. 6, portanto, Paulo, citando Gênesis 15.6, introduz o exemplo
de Abraão como prova bíblica de que a justificação é pela fé.[21] De
fato, o texto de Gênesis ensina que foi a fé que Abraão teve e não a
sujeição a regras[22] que o levou a ser considerado justo diante de
Deus. Aliás, esse exemplo de Abraão foi citado por Paulo com o
mesmo objetivo cerca de nove anos mais tarde, na Epístola aos
Romanos. Ali, o Apóstolo expõe de modo ainda mais completo o
fato do grande patriarca da nação judaica ter sido justificado
somente por ter crido em Deus e ainda antes de ser circuncidado
(Rm 4.1-3, 9-10, 13). Esse fato tinha relevância especial no combate
aos ensinos dos falsos mestres da Galácia que impunham aos
crentes a necessidade da circuncisão caso quisessem ser salvos
(5.2-6; 6.12-13).
Entretanto, esse uso reiterado que Paulo faz de Gênesis 15.6
pode levantar objeções. Isso porque, aparentemente, o objeto da fé
de Abraão não foi idêntico ao objeto da fé cristã. Abraão, mesmo
sendo já velho e não tendo nenhum filho, creu na promessa de que
Deus faria uma grande nação a partir de um descendente seu (Gn
15.4-6). A fé cristã, por sua vez, tem um foco distinto. Por ela o
crente crê que Jesus Cristo é o Filho de Deus que morreu e
ressuscitou pelos nossos pecados, depositando nele sua confiança
para a vida eterna. Parecem, portanto, bem distintos os contornos
que caracterizam a fé de Abraão e a fé dos crentes em Cristo.
Como, então, Paulo pôde compará-las?
A resposta a essa questão pode ser obtida observando-se
Romanos 4.18-22. Nesse texto, especialmente nos vv. 20-21, Paulo
deixa claro de que modo a fé de Abraão se identifica com a dos
cristãos. À luz desse texto, o patriarca creu no que Deus prometeu
(Hb 11.11) e os cristãos fazem o mesmo ao crerem nas promessas
que Deus fez em seu Filho (2Tm 1.1; Hb 9.15; 10.23; 2Pe 3.13; 1Jo
2.25). Além disso, Abraão creu que Deus era poderoso para cumprir
sua promessa. Ora, também os cristãos, quando crêem na
promessa de que em Cristo receberão o dom da vida eterna não
duvidam que Deus é poderoso para cumprir sua palavra (Fp 3.21).
Nesse aspecto, a fé de Abraão e a dos cristãos se harmonizam
plenamente, sendo sob esse ângulo que Paulo traça um paralelo
entre elas.
O que não se pode perder de vista aqui é o ponto central que
Paulo quer realçar, ou seja, que a justiça só é creditada ao homem
que tem fé. A resposta à velha pergunta do coração de Jó (Jó 9.1-
2), foi dada pela Escritura na história da Abraão (Gn 15.6) e
expandida no Novo Testamento pela pena do Apóstolo Paulo.
No v. 7, Paulo leva o leitor à implicação do que foi dito no
versículo anterior: se Abraão foi justificado pela fé, os verdadeiros
filhos dele são aqueles que crêem. O ensino de que os crentes são
descendentes de Abraão aparece algumas vezes, direta ou
indiretamente, no Novo Testamento (Rm 2.28-29; 4.11-12; Gl 6.16;
Fp 3.3). Esse ensino realça, basicamente, que os crentes,
independentemente se sua origem racial, quando creram em Cristo
passaram a desfrutar das bênçãos espirituais prometidas a Israel
(Rm 15.27; Hb 8.8-12 cp. 9.15).
Aqui é necessário fazer uma ressalva. O fato de Abraão ter uma
descendência espiritual não implica a desconsideração de sua
descendência física. O Israel “segundo a carne” obviamente ainda
existe e ocupa um lugar no plano de Deus (Rm 3.1-2; 9.1-5; 11.1-2,
11, 25-29). A igreja não surgiu para substituí-lo, mas sim para entrar
na sua herança (Rm 11.17-18; Ef 2.12-13; 3.5-6). É, portanto, errado
dizer que a igreja agora é o novo Israel (1Co 10.32). É claro que
dentro da igreja, judeus e gentios são um só, não havendo diferença
entre ambos (1Co 12.13; Gl 3.26-28; Ef 2.11-16; Cl 3.11). Mas no
aspecto externo, a igreja não se confunde com Israel, sendo ambos
distintos, ocupando espaços diversos na visão e nos decretos de
Deus.
Um dos benefícios oriundos dessa visão se relaciona com o modo
como o crente entende as promessas de bênçãos materiais feitas a
Israel no Velho Testamento. O povo judeu recebeu de Deus
promessas de saúde e prosperidade caso fosse obediente. Também
recebeu promessas de castigo, caso fosse rebelde (Dt 28).
Entendendo erradamente que a igreja é o “novo Israel de Deus”,
muitos intérpretes da Bíblia tentam aplicar essas promessas aos
crentes de hoje. Nessa tentativa, alguns espiritualizam aquelas
promessas, dizendo que elas são simbólicas e não devem ser
entendidas literalmente.[23] Outro grupo, fugindo da alegorização,
cai na chamada Teologia da Prosperidade, ensinando que os
crentes, sendo o novo Israel, podem desfrutar daquelas promessas
de riqueza e saúde num sentido real e concreto, devendo também
temer maldições que afetem suas finanças e seu corpo. Essas duas
vertentes estão erradas e as conclusões falhas de ambas, ainda que
distintas, apóiam-se no mesmo falso pressuposto, a saber, que a
igreja é o Israel moderno.
Para que evitemos, portanto, esses erros, mantenhamos nítida
em nossa mente a seguinte verdade: como crentes procedentes dos
gentios somos considerados descendência de Abraão porque, em
Cristo, como herdeiros daquela patriarca, participamos das
promessas feitas a Israel. Isso, porém, não nos torna substitutos de
Israel, que continua ocupando um lugar de importância nos
propósitos do Senhor. Decididamente, o estranho que participa da
herança por meio de um testamento não anula com isso os direitos
dos herdeiros naturais. Também o cãozinho maroto que bebe o leite
da vaca, não vira bezerro, nem toma o seu lugar.
Conforme se vê, o ensino do v. 7 é que os que crêem em Cristo
adquirem o status de herdeiros de Abraão, mesmo não
descendendo fisicamente dele. Dessa forma, por meio da fé,
pessoas de todo o mundo e das mais diversas famílias, podem
participar das promessas feitas ao velho patriarca e serem
abençoadas com ele. Crendo em Cristo, elas participam da
promessa da herança, feita a Abraão. De fato, é claramente isso o
que o Apóstolo diz nos vv. 8 e 9. Neles as palavras de Gênesis 12.3,
a saber, “por meio de você todas as nações serão abençoadas”,
significam que quem crê como Abraão, independentemente de sua
origem racial, desfruta junto com Abraão da promessa que lhe foi
feita de ser herdeiro do mundo (Rm 4.13) A descendência espiritual
de Abrão, porém, não exclui do plano de Deus sua descendência
física. A igreja não substitui Israel. Ela desfruta das bênçãos
prometidas à nação judaica, mas não ocupa seu lugar nem se
confunde com ela (Rm 15.27; Ef 2.12-13; 3.5-6). Na verdade a igreja
se subroga em alguns direitos de Israel, mas não se torna Israel. A
distinção essencial entre os dois povos permanece e Deus trata a
ambos de forma distinta, reservando um lugar diferente em seu
plano para cada um deles.
A MALDIÇÃO DA LEI
GÁLATAS 3.10-14

10. Já os que se apóiam na prática da Lei estão debaixo de


maldição, pois está escrito: “Maldito todo aquele que não
persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da Lei”.
11. É evidente que diante de Deus ninguém é justificado pela
Lei, pois “o justo viverá pela fé”.
12. A Lei não é baseada na fé; ao contrário, “quem praticar
estas coisas, por elas viverá”.
13. Cristo nos redimiu da maldição da Lei quando se tornou
maldição em nosso lugar, pois está escrito: “Maldito todo
aquele que for pendurado num madeiro”.
14. Isso para que em Cristo Jesus a bênção de Abraão
chegasse também aos gentios, para que recebêssemos a
promessa do Espírito mediante a fé.

No v. 9, o apóstolo dos gentios ensinou que “os que são da fé são


abençoados junto com Abraão, homem de fé”. Agora, no v. 10,
Paulo aponta para o contraste existente entre a condição espiritual
dos que “são da fé” e a condição espiritual dos que “se apóiam na
prática da Lei”. Se por um lado, os que são da fé são abençoados
(v. 9), os que buscam sua justificação através da observância dos
preceitos da Lei Mosaica estão debaixo de maldição. Paulo se
refere a estes, literalmente, como “os que são das obras da Lei”.
Isso realça o contraste com “os que são da fé” e, considerando que
o Apóstolo trata aqui do meio pelo qual alguém é liberto da
condenação eterna, a expressão aponta para a atitude de quem põe
a confiança em sua própria justiça para a salvação da alma.
Para provar a existência de maldição sobre os mestres legalistas
e sobre todos os que buscavam ser justificados pela prática da Lei,
Paulo mais uma vez recorre à Sagrada Escritura, palavra final em
qualquer discussão de ordem doutrinária. Citando, a princípio,
Deuteronômio 27.26, demonstra que é maldito todo aquele que não
pratica a totalidade dos preceitos legais. Paulo tem em mente aqui
um pressuposto claro: ninguém jamais conseguiu guardar a Lei
(6.13; At 15.10). Logo, todos os que se colocam sob o seu jugo
fatalmente a transgridem e, assim, tornam-se objeto de sua terrível
maldição.
Cabe a esta altura levantar a seguinte questão: em que consiste,
exatamente, a maldição da Lei? À luz do texto citado por Paulo (Dt
27.26), a maldição consiste em estar sob a reprovação e ira de
Deus, bem como sujeito ao seu terrível e certo castigo (Dt 28.15ss).
No texto usado por Paulo, a maldição decorrente da transgressão
da Lei apresenta conseqüências marcantemente materiais. Paulo,
porém, não fixa o olhar nesse aspecto do castigo. Antes, conforme
se vê, estende o seu significado para abranger a punição de Deus
sobre os que não crêem, especialmente aqueles que, procurando
estabelecer uma justiça própria, põem sua confiança nas obras que
realizam. Tais pessoas estão sob a ira de Deus e sujeitas a um
castigo futuro que, como se sabe, ultrapassa os revezes da
presente vida (2Ts 1.9).
Em resumo, estar sob a maldição da Lei é estar em inimizade
com Deus, excluído da bênção da justificação pela fé e aguardando
o castigo iminente.[24] Sob essa maldição toda a humanidade sem
Deus se encontra, mas para os que são da Lei ela é pronunciada
por Paulo de forma especial e aberta, quando ele cita a própria Lei e
amplia o seu sentido.
Nos dias modernos, vários grupos evangélicos têm pregado a
existência dos mais diversos tipos de maldição que, segundo eles,
recaem indiscriminadamente sobre crentes e incrédulos. Tais grupos
realizam correntes de oração, cultos de libertação e outras práticas
supersticiosas para libertar os homens de supostas maldições
hereditárias ou coisas semelhantes. Nada disso, porém, tem amparo
bíblico. A única maldição que paira sobre a humanidade perdida é a
maldição da Lei, ou seja, a maldição de não ser justificado pela fé e,
assim, não ser herdeiro de Deus. Tal maldição só recai sobre os
incrédulos e somente pela fé em Cristo alguém pode ser colocado
fora do seu alcance (vv. 13-14).
O uso do testemunho da Escritura como prova cabal da
veracidade de seus argumentos continua a ser feito por Paulo no v.
11. Agora ele cita Habacuque 2.4. Esse texto traz a resposta de
Deus a uma questão levantada pelo profeta que via a Babilônia
levantar-se como instrumento do juízo de Deus para destruir Judá:
“Como um Deus santo e justo pode usar os ímpios como seu
instrumento de castigo sem agir para refreá-los?” (Hc 1.12-13, cf.
1.5-6). A resposta de Deus é que essa situação não perdurará para
sempre, que um dia o ímpio será castigado (Hc 2.16-17) e que,
enquanto isso não acontece, o justo será preservado por sua fé.
Paulo detectou o princípio presente nas palavras de Habacuque de
que somente a fé pode livrar o homem do castigo, sendo ela o traço
distintivo do justo. Esse princípio é o núcleo da doutrina da
justificação pela fé, tanto que o Apóstolo o repete em Romanos 1.17
quando novamente quer ensinar essas verdades.
Uma terceira citação do Velho Testamento é feita por Paulo no
v.12. Trata-se de Levítico 18.5. Aqui o contraste entre a fé e as
obras da Lei é notável. Se de um lado, conforme mostra o profeta
Habacuque, o justo viverá pela fé (v.11), sob a Lei o homem só
viverá se observá-la, sem que necessariamente tenha fé no
coração. Paulo mostra assim a superioridade do seu evangelho
comparado com a mensagem dos falsos mestres. Esta sequer
exigia uma nova disposição interior para com Deus, baseando-se
apenas em expressões externas e na mecânica observância de
regras. A falta de importância dada à fé no sistema legalista já seria,
por si só, um motivo para rejeitá-lo. Ademais, e aqui reside a
questão principal, se o justo viverá pela fé e a Lei a dispensa, não
se baseando nela, logo os que são da Lei não viverão!
O que Paulo disse nos vv.11-12 tem como alvo reforçar o ensino
de que os que se apóiam na prática da Lei estão sob maldição
(v.10). Resumindo, é como se dissesse: “A Lei traz maldição sobre
quem a desobedece (v.10). O único modo de se livrar do castigo é
pela fé (v.11). A Lei, porém, não se baseia na fé (v.12). Logo, a
maldição sobre os que são da Lei permanece”. Essa é a situação
dos que buscam ser justificados pela prática dos preceitos
mosaicos: a maldição da Lei é para eles um problema perene cuja
solução nem mesmo a própria Lei oferece.
É pela obra de Cristo na cruz que o homem é redimido da
maldição da Lei (v.13). Cristo nos substituiu, tomando o nosso lugar
como maldito criminoso e sofrendo as conseqüências daquela
maldição. Paulo enxerga esse sentido da morte de Cristo na forma
como ele foi executado. Olhando para Deuteronômio 21.23, o
Apóstolo se recorda da cruz do Calvário e vê ali o Senhor sendo
considerado transgressor em nosso lugar, colocando-se assim sob a
maldição da Lei.[25]
O v. 14 explica que essa obra substitutiva de Cristo foi realizada
para que, mediante a fé, homens de todas as famílias da terra se
livrassem da maldição da Lei e, em vez de sofrer seus castigos,
passassem a desfrutar da bênção prometida a Abraão (Gn 12.3; Rm
4.13-16). Assim, Cristo provou a maldição de Moisés para que os
crentes provassem a bênção de Abraão. E não somente isso. Por
meio dessa fé o homem recebe o Espírito Santo, tornando-se
habitação dele, uma bênção que a prática da Lei jamais poderia
obter (Gl 3.2).[26]

A HARMONIA ENTRE A PROMESSA E A LEI


GÁLATAS 3.15-29
15. Irmãos, humanamente falando, ninguém pode anular um
testamento depois de ratificado, nem acrescentar-lhe algo.
16. Assim também as promessas foram feitas a Abraão e ao
seu descendente. A Escritura não diz: “E aos seus
descendentes”, como se falando de muitos, mas: “Ao seu
descendente”, dando a entender que se trata de um só, isto
é, Cristo.
17. Quero dizer isto: A Lei, que veio quatrocentos e trinta
anos depois, não anula a aliança previamente estabelecida
por Deus, de modo que venha a invalidar a promessa.
18. Pois, se a herança depende da Lei, já não depende de
promessa. Deus, porém, concedeu-a gratuitamente a Abraão
mediante promessa.
19. Qual era então o propósito da Lei? Foi acrescentada por
causa das transgressões, até que viesse o Descendente a
quem se referia a promessa, e foi promulgada por meio de
anjos, pela mão de um mediador.
20. Contudo, o mediador representa mais de um; Deus,
porém, é um.
21. Então, a Lei opõe-se às promessas de Deus? De maneira
nenhuma! Pois, se tivesse sido dada uma lei que pudesse
conceder vida, certamente a justiça viria da lei.
22. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim
de que a promessa, que é pela fé em Jesus Cristo, fosse
dada aos que crêem.
23. Antes que viesse essa fé, estávamos sob a custódia da
Lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse
revelada.
24. Assim, a Lei foi o nosso tutor até Cristo, para que
fôssemos justificados pela fé.
25. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais
sob o controle do tutor.
26. Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo
Jesus, 27. pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo
se revestiram.
28. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem
mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.
29. E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e
herdeiros segundo a promessa.

No parágrafo anterior, Paulo ressaltou que, mediante a fé em


Cristo, pessoas de todos os grupos étnicos (e não somente os
judeus) podem desfrutar da bênção prometida a Abraão (14). Tendo
agora, portanto, introduzido o tema relativo à promessa feita a
Abraão, Paulo prossegue enfatizando sua natureza pactual,
mostrando que tal promessa não pode depender de exigências
(como as normas da Lei Mosaica) impostas posteriormente.
Assim, no v.15, o Apóstolo usa a ilustração da aliança para
explicar em que consistiram as promessas feitas a Abraão. Ele diz,
apontando para a figura de um instrumento jurídico comum também
em nossos dias, que um contrato[27], depois de ratificado, ou seja,
uma vez confirmado e concluído, não pode ser alterado, muito
menos podem ser acrescentadas a ele exigências inexistentes ao
tempo de sua celebração.
Ora, o que é verdade no tocante a acordos feitos formalmente
entre os homens, aplica-se às promessas feitas a Abraão e ao seu
descendente (16), ou seja, Deus não poderia se comprometer a
abençoar Abraão e o seu descendente de forma incondicional (cf.
Rm 4.13) e, depois de algum tempo, “mudar as regras do jogo”. É
fácil concluir aonde Paulo quer chegar: a Lei não se constitui numa
exigência necessária para que alguém se beneficie da promessa
feita a Abraão. Se assim fosse, Deus teria agido de modo injusto,
incluindo exigências novas num contrato já concluído.[28]
O v.16 apresenta uma breve nota hermenêutica esclarecedora de
um ponto que é essencial para o ensino de Paulo. O apóstolo se
detém sobre um detalhe presente no texto de Gênesis em que a
referência à descendência de Abraão é feita através de uma palavra
no singular, a palavra “semente” (Gn 12.7; 13.15; 24.7). A princípio,
a presença desse termo no texto hebraico significa apenas que a
promessa de Deus não se limitaria ao tempo de vida de Abraão,
mas se estenderia ao longo das eras, alcançando inúmeras
gerações procedentes do grande patriarca.
Paulo, contudo, vê algo mais aqui. Ele observa que o uso do
singular em Gênesis não é acidental e que o termo “semente”
também não deve ser entendido de modo coletivo. Para o apóstolo,
o uso do singular conduz ao entendimento de que a “semente” se
refere a um descendente só, ou seja, Cristo. A implicação disso é
que as promessas não seriam restritas aos que descendem
fisicamente de Abraão, mas a todos, tanto judeus como gentios que,
pela fé, se encontram “em Cristo”, ou seja, se revestiram dele e a
ele pertencem (vv.27-29). De fato, estando em Cristo, homens do
mundo inteiro tornam-se beneficiários das promessas feitas a esse
descendente de Abraão e, portanto, juntamente com ele, hão de
herdar o mundo, conforme estabelece o pacto de Deus com Abraão
(Rm 4.13).
Cabe ainda nesta altura ressaltar o modo como Paulo faz uso do
texto bíblico. É notável a atenção que o Apóstolo dá a detalhes,
fixando sua atenção em aspectos gramaticais e mostrando sua
relevância para a construção da Sã Doutrina. Essa busca de sentido
baseada não na imaginação ou na criatividade do intérprete, mas na
gramática e na análise objetiva deve servir como padrão para todos
os intérpretes da Bíblia na modernidade.[29]
A intenção de Paulo ao usar a ilustração do testamento ou do
contrato (15) é exposta claramente no v. 17. Vê-se ali que, sendo a
promessa feita mediante uma aliança já ratificada, não haveria como
a Lei, dada séculos depois, invalidá-la. De fato, Deus não poderia se
comprometer a dar gratuitamente uma herança e, depois de selado
o compromisso, impor requisitos para que o homem desfrutasse
dessa mesma herança. Isso faria com que a dádiva da herança
passasse a depender do preenchimento dos novos requisitos e não
mais da promessa gratuita de Deus (18). A verdade, porém, é que a
herança foi concedida a Abraão e ao seu descendente (Cristo e,
conseqüentemente, os que são dele, cf. vv. 26-29) mediante uma
promessa, independentemente de qualquer exigência prévia ou
posterior como a Lei Mosaica.
Do que Paulo disse até aqui surge naturalmente uma questão: se
a Lei não é um requisito para o desfrute da promessa, então qual é
a sua razão de ser? Para que ela foi dada? Com que objetivo foi
imposta? No v. 19 o apóstolo explica que as normas estabelecidas
no Sinai foram promulgadas “por causa das transgressões”. O
significado disso pode-se deduzir a partir de Romanos 3.20; 4.15;
5.20; e 7.5,7. Nesses textos aprendemos que a Lei de Moisés torna
o homem consciente do seu pecado[30], uma vez que ressalta a sua
desobediência. Ademais, por causa dela, todos são colocados sob a
condição de transgressores (vv. 22-23). Assim, a Lei foi dada para
realçar o fato de que somos maus, demonstrar essa verdade a nós
mesmos e encerrar o homem sob a desobediência. É isso o que
Paulo quer dizer quando afirma que a Lei foi dada “por causa das
transgressões”. Ela veio para realçar o pecado e demonstrar que
somos pecadores.[31]
O propósito da Lei conforme descrito acima vigorou “até que
viesse o Descendente a quem se referia a promessa” (19), o qual,
segundo o v. 16, é Cristo. Isso significa que ao longo de séculos a
Lei Mosaica demonstrou satisfatoriamente, especialmente na
História de Israel, a pecaminosidade humana (Rm 9.31). Tendo
cumprido seu objetivo, a Lei deixou de vigorar. Isso aconteceu tão
logo a solução para a transgressão do homem demonstrada na Lei,
ou seja, Cristo, se manifestou neste mundo. Ainda que o Senhor
tenha nascido sob a Lei (4.4), sua obra pôs fim ao império da Lei
(4.5; Ef 2.14-15). Esta, tendo atingido seu propósito de realçar a
desobediência, deu lugar à solução para essa mesma
desobediência, a saber, a Cruz (Jo 1.17; Rm 8.3-4; 2Co 3.7-10; Cl
2.16-17; Hb 7.12; 8.13; 9.10). Na verdade, conforme será visto
adiante, a Lei, expondo a deplorável condição do ser humano,
serviu para conduzi-lo a Cristo, em quem encontra a solução para
sua tão terrível situação (v. 24. Vd. tb. Rm 10.4).
Prosseguindo em sua apologia da gratuidade da promessa, Paulo
acrescenta que a Lei foi “promulgada por meio de anjos”. A
presença dos anjos na entrega da Lei é vista também em
Deuteronômio 33.2; Atos 7.38,53 e Hebreus 2.2. Paulo menciona
esse detalhe para afastar qualquer acusação de desprezo pela
santidade da Lei, pois ao ensinar que a mesma não tinha utilidade
para justificar o pecador, mui facilmente seus inimigos poderiam
apegar-se a isso, distorcendo suas palavras e acusando-o de tratar
a Lei de Deus com desprezo inaceitável. Paulo, porém, longe de
desprezar a Lei, tão-somente mostra o objetivo distinto dela que,
como vimos, não é justificar o homem, mas realçar seu pecado e,
por fim, conduzi-lo à busca de socorro em Cristo.[32]
O v. 19 termina dizendo que a Antiga Aliança veio por meio de um
mediador, ou seja, Moisés. A seguir, no verso 20, há um contraste
entre aquela aliança e a feita anteriormente com Abraão. O pacto da
Lei teve um mediador que representava o povo colocando-se sob as
disposições legais impostas por Deus. No Pacto Abraâmico nenhum
mediador havia, pois nele somente Deus se obrigou, nada impondo
ao homem. Na Aliança Mosaica havia duas partes entrando numa
relação em que ambas tinham deveres, sendo uma delas (a parte
humana) representada por Moisés, o mediador. Na Aliança
Abraâmica também havia duas partes, Deus e o homem, mas só
Deus se comprometeu, sem impor nada a Abraão que servisse
como condição para que ele cumprisse sua promessa de abençoá-
lo juntamente com seu Descendente. O v. 20, portanto, pode ser
entendido da seguinte maneira: no caso da Lei houve um mediador
que representava a obrigação de muitos; já no caso da promessa
somente Deus figurou como a parte comprometida. Paulo aponta
esse contraste para fortalecer sua tese acerca da gratuidade da
promessa e desmantelar o ensino dos falsos mestres que teimavam
em dizer que a herança de Deus poderia ser obtida pelo
cumprimento de preceitos legais.
Surge, então, uma importante questão: há contradição em Deus?
Como ele pode fazer uma promessa e depois estabelecer preceitos
que em nada cooperam com o cumprimento dela? Como ele pode
prometer uma herança e, em seguida, estabelecer regras que
afastam ainda mais o homem do gozo dessa herança? Como ele
pode prometer que o homem será bendito e justo e então criar um
sistema de normas que o tornam maldito e culpado? Acaso a Lei
não se opõe às promessas de Deus? (21).
A resposta de Paulo a essa pergunta é um enfático “não”. O
apóstolo ensina que se Moisés tivesse trazido aos judeus uma lei
que pudesse levar à vida eterna, então a justificação seria oriunda
da Lei e os judeus, ao observá-la, se constituiriam num povo livre da
culpa do pecado e pronto para receber a herança prometida. Dessa
forma, a promessa da herança e a promulgação da Lei estariam em
clara harmonia. Deus, porém, decidiu harmonizá-las de forma
diferente. Seu plano consistiu em fazer da Lei um meio de colocar
todos sob o pecado[33] a fim de conceder pela fé a herança
prometida (22). Dessa forma, a Lei não vai contra a promessa de
Deus. Antes, pondo o homem debaixo do pecado, deixa unicamente
a fé em Jesus Cristo como solução para a sua culpa e, assim, o
estimula a crer. Crendo, então, o homem torna-se participante da
promessa. Portanto, a Lei é útil para mostrar que a fé em Cristo é o
único caminho para as bênçãos da promessa. É assim que ela não
se opõe às promessas de Deus.
É importante que o certo grau de complexidade de raciocínio
presente no texto não venha nublar a principal e claríssima lição que
o Apóstolo quer incutir nos seus leitores, a saber, a de que a
promessa feita a Abraão é dada somente aos que crêem em Jesus
Cristo. Paulo estende os efeitos do Pacto Abraâmico até os nossos
dias, mostrando que a salvação é simplesmente a inserção do
homem nos benefícios desse pacto. E para que essa inserção
ocorra é preciso tão-somente que o homem creia em Cristo, o
Descendente de Abraão. O apóstolo quer deixar claro que abraçar a
Lei liga o homem a Moisés e faz dele mais um transgressor. Já
abraçar a fé em Cristo liga o homem a Abraão e faz dele mais um
herdeiro.
Antes que o evangelho fosse revelado, mostrando que é pela fé
em Cristo que alguém pode tornar-se herdeiro da promessa
abraâmica, o homem estava debaixo da Lei Mosaica (23). A
linguagem de Paulo traz a idéia de estar sob a tutela de um guarda
que tem a função de proteger. De fato, a Lei dada no Sinai se
constitui na perfeição da justiça e o esforço do homem em
conformar a sua vida aos seus preceitos, ainda que seja incapaz de
produzir a justificação, torna a conduta humana virtuosa e protege a
sociedade da degradação total. Por outro lado, estar sob
semelhante tutela implica também redução da liberdade, um preço
muito alto quando se considera que a obediência da Lei não nos faz
merecedores da herança prometida.
Dentro do claustro da Lei, portanto, o homem teve sua conduta
controlada e, como já visto (v. 19), aprendeu da sua
pecaminosidade e miséria. Dessa forma a Lei foi útil, especialmente
porque, em vez de se opor às promessas de Deus, mostrou que o
único caminho para recebê-las é a fé (vv. 21-22). O exercício dessas
funções atribuídas ao código mosaico, contudo, deveria perdurar
somente até o advento do evangelho de Cristo, já prometido nos
escritos proféticos (Rm 1.1-2). É a esse evangelho que Paulo se
refere com a expressão “a fé que haveria de vir” (23).
A conclusão lógica a que se chega disso tudo é que a Lei realizou
a tarefa de um tutor que nos levou até Cristo (24). A palavra
traduzida no português como “tutor” (NVI) ou “aio” (ARA) é, na
língua grega, o termo usado para designar a pessoa que cuidava de
uma criança (paidagogós. Lit. “pedagogo”), realizando, entre outras
coisas, a tarefa de escoltá-la na sua ida à escola. Assim, a Lei
tomou o homem pela mão e, enquanto exercia sobre ele alguma
influência moral, também mostrava que a perfeita obediência era
impossível e, dessa forma, o conduzia à fé em Cristo, o único meio
através do qual o homem pode ser justo diante de Deus.
Evidentemente, tendo realizado plenamente sua função, o tutor
torna-se agora uma figura desnecessária (25). Aproveitando a figura
usada por Paulo, pode-se dizer que a criança está agora com o
Mestre. Não é mais preciso a custódia do tutor.
Paulo realça que a fé à qual fomos conduzidos nos tornou filhos
de Deus (26). A idéia de filiação, obviamente, é essencial quando se
fala em direito de herança. No constante propósito de desmontar a
idéia de que é possível entrar na posse da herança prometida a
Abraão por meio da guarda da Lei, o Apóstolo demonstra que é a fé
em Cristo que nos torna filhos de Deus, de modo que só por meio
dela pode-se chegar à herança (Rm 8.17).
No v. 27 é-nos dito com mais detalhes no que consiste o processo
pelo qual alguém é inserido na esfera de filiação mencionada no
versículo anterior. Segundo o texto, o homem batizado em Cristo,
reveste-se do Filho de Deus. Ser batizado em Cristo significa
simplesmente unir-se a ele pela fé. Nos tempos neotestamentários
havia forte conexão entre crer e ser batizado já que essas duas
coisas aconteciam quase que ao mesmo tempo na prática da igreja
primitiva (At 2.41; 8.37-38; 16.33). Por isso, algumas vezes Paulo
refere-se à experiência de conversão usando a figura do batismo
(Rm 6.3-4; Cl 2.12. Pedro faz o mesmo em 1Pe 3.21). È também
fora de dúvida que muitas vezes Paulo usa a palavra “batismo” não
para se referir à ordenança observada com água, mas à realidade
espiritual da inserção do crente no corpo de Cristo e na sua esfera
de atuação e influência especiais (1Co 12.13). É o chamado batismo
do Espírito Santo. Aliás, é bem provável que esse seja o sentido
pretendido no texto em análise. Que Paulo não via o batismo com
água como necessário à salvação deduz-se facilmente de
1Coríntios 1.14-17.
Segundo os vv. 26-27, portanto, o homem passa a desfrutar do
status de filho de Deus quando se une ao Salvador pela fé (Jo 1.12).
Dessa forma ele se reveste de Cristo, ou seja, sua união com o
Senhor é tamanha que Deus, ao olhá-lo, vê antes Cristo nele do que
ele próprio. É como se Cristo fosse um manto que cobrisse e
envolvesse o crente de tal forma que ambos se tornam como um só.
Nessa união, o Filho de Deus como que “contagia” aquele que crê
com sua filiação. Isso prova ser correto dizer que o crente é filho de
Deus “em Cristo Jesus”.
Sob a vestimenta de Cristo todas as distinções entre as pessoas
tornam-se irrelevantes (28). A união com o Senhor faz de todos um
só corpo (1Co 10.17; 12.12-13; Cl 3.15), anulando as desigualdades
e desencorajando qualquer forma de inimizade e discriminação (Ef
2.14-16; Cl 3.11). Contudo, o efeito principal da fé é que, recebendo
a adoção decorrente da união com Jesus, o homem se torna um
descendente de Abraão tal como o seu Senhor e,
conseqüentemente, passa a ter direito à herança prometida ao
grande patriarca (29).
Capítulo 4

O EVANGELHO VERDADEIRO E A LIBERDADE

Os crentes da Galácia, tendo sido libertos de todo tipo de jugo


legalista, tornaram-se filhos e herdeiros de Deus, não devendo,
portanto, acolher os falsos mestres e seu ensino escravizante, mas
sim rejeitá-los, da mesma forma como Sara rejeitou a escrava Hagar
e o filho dela.

O FIM DA ESCRAVIDÃO
GÁLATAS 4.1-7

1. Digo, porém, que, enquanto o herdeiro é menor de idade,


em nada difere de um escravo, embora seja dono de tudo.
2. No entanto, ele está sujeito a guardiões e administradores
até o tempo determinado por seu pai.
3. Assim também nós, quando éramos menores, estávamos
escravizados aos princípios elementares do mundo.
4. Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou
seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da Lei, 5. a fim
de redimir os que estavam sob a Lei, para que recebêssemos
a adoção de filhos.
6. E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu
Filho ao coração de vocês, e ele clama: “Aba, Pai”.
7. Assim, você já não é mais escravo, mas filho; e, por ser
filho, Deus também o tornou herdeiro.

A menção da figura do herdeiro em 3.29 dá ensejo a que Paulo,


no início do capítulo 4, transporte essa figura para a experiência
humana comum, a fim de acrescentar outras verdades àquelas que
já enunciou ao longo da carta até este ponto. O Apóstolo, no texto
agora em análise, fala da condição prévia de todos os homens,
tanto judeus como gentios, que Deus haveria de salvar. Tais
pessoas são comparadas a filhos menores que aguardam, sob
tutela, a maioridade para que, então, desfrutem plenamente do
status de herdeiro. A figura pretende ilustrar o fato de que aqueles
que Deus haveria de salvar estiveram sujeitos a sistemas morais e
religiosos diversos até o tempo que Cristo se manifestou. Tendo
chegado esse tempo, não há mais porque submeter-se a tais
sistemas.
É já nos vv.1-2 que Paulo apresenta a figura do herdeiro menor.
No afã de realçar sua condição de sujeição, o Apóstolo diz que, ao
longo do período de menoridade, o herdeiro em nada difere do
escravo, estando sob o controle e as ordens de tutores e
curadores[34], estendendo-se essa situação até o tempo que ao pai
aprouver.[35]
Paulo quer mostrar com a figura constante dos vv.1-2 que o ser
humano teve, ao longo da sua história, o seu tempo de menoridade.
Foi o tempo que esteve sujeito de modo servil aos “rudimentos do
mundo” (3). Precisamente nesse ponto, Paulo deixa de falar
somente da Lei Mosaica como fator opressor. O jugo dessa Lei era
sentido apenas pelos judeus. Paulo tem agora a humanidade inteira
em mente (Veja-se v. 8). Segundo ele, não somente quem estava
sob o sistema judaico vivia curvado em sujeição, mas todos os
seres humanos, uma vez que se encontravam debaixo do jugo dos
“rudimentos do mundo”.
A expressão “rudimentos do mundo” (stoicheîa toû kósmou)
aponta aqui para as regras e crenças elementares que estão
presentes nas diversas expressões da religiosidade humana. Nos
vv. 9-10 vemos exemplos desses “rudimentos”, os quais, segundo o
Apóstolo, escravizavam tanto quanto a Lei de Moisés. Também na
Epístola aos Colossenses, onde Paulo combate especialmente o
proto-gnosticismo asceta, pode-se ter um vislumbre da natureza
dessas regras impostas aos homens, denominadas também ali
como “rudimentos do mundo” (Cl 2.8, 20-23).
O tempo de submissão a tais preceitos, contudo, perdeu sua
razão de ser com o advento de Cristo. Em sua soberania, Deus
determinou que chegasse ao fim a fase da história em que as
pessoas deveriam ser regidas em sua religiosidade por normas
oriundas da Lei Mosaica (no caso dos judeus) ou da consciência
humana (no caso dos gentios). Então ele enviou seu Filho (4), a fim
de livrar da escravidão os que estavam sob qualquer fardo legal[36]
e fazer deles membros de sua família (5).
Falando especificamente sobre o v. 4, deve-se notar que a
expressão “plenitude do tempo” corresponde ao “tempo determinado
pelo pai” mencionado na ilustração constante dos vv. 1-2. Plenitude
do tempo é, portanto, a fase da história que Deus em sua soberania
julgou por bem enviar seu Filho ao mundo, pondo fim ao tempo de
tutela das leis. Não nos é revelado na Sagrada Escritura as razões
pelas quais o Senhor não enviou Cristo antes, mantendo os homens
em trevas durante milênios.[37] Somente nos é dito que o evangelho
foi guardado como um mistério, havendo a possibilidade de certo
grau de conhecimento dele por meio das escrituras proféticas (Rm
16.25-27). Os motivos específicos, porém, pelos quais a Deus
aprouve revelá-lo ao tempo que o fez estão guardados em sua
mente, sendo impossível conhecê-los.[38]
O que vem a seguir no versículo 4 é de extremo valor para a
cristologia. A frase “Deus enviou seu Filho”, implica a divindade de
Cristo, pois sendo Filho de Deus ele é igual a Deus (Jo 5.17-18). A
frase também implica a pré-existência de Cristo. Deus antes o
enviou para que então nascesse de mulher. Sua geração no ventre
de Maria, portanto, não deu origem à sua existência. Ele já existia
antes da encarnação (Jo 1.1-3; 8.58; 12.41 [cf. Is 6.1]; 17.5; Cl 1.16-
17).
É notável ainda que Paulo se refira a Cristo como “nascido de
mulher”. Isso, acrescido da verdade de que ele é o Filho de Deus,
desemboca na doutrina das duas naturezas de Cristo. Ele é Deus-
homem. É o Filho de Deus e o Filho do Homem (Jo 5.26-27). Todo o
Novo Testamento afirma a realidade tanto da natureza humana
como da natureza divina em Cristo, ainda que não esclareça o modo
como elas se relacionam (Jo 1.14; At 20.28; Rm 9.5; Hb 2.14). A
união das duas naturezas na pessoa singular e única de Cristo é
chamada tecnicamente de União Hipostática.[39]
O v. 4 termina com a afirmação de que Cristo nasceu “sob a Lei”,
ou seja, Cristo colocou-se debaixo da Lei, sujeitando-se a ela. Sua
humilhação não se manifestou apenas no fato de fazer-se carne,
mas também no fato de fazer-se servo obediente (Fp 2.5-8). Assim
como assumiu nossa humanidade, porém sem pecado (1Jo 3.5),
também assumiu nossa escravidão, porém sem desobediência (Mt
5.17; Rm 5.19).
Qual foi a intenção do apóstolo ao mencionar esses aspectos
relativos ao advento de Cristo. Por que dizer que Cristo nasceu de
mulher e sob a Lei? O Apóstolo quer, sem dúvida, mostrar Cristo
como o substituto perfeito do homem. Paulo apresenta Jesus como
um homem verdadeiro debaixo de um jugo verdadeiro. Como tal
Cristo pôde participar do drama humano e substituir perfeitamente o
homem ao morrer sob a Lei, submetendo-se inclusive à maldição
que ela impõe aos que a desobedecem (3.13). Portanto, a plena
substituição é o que Paulo tem em mente aqui. Foi essa perfeita
substituição que tornou possível o resgate dos que estavam sob a
lei (5). A destruição da heresia gálata dependia da demonstração de
que o Filho de Deus, fazendo-se homem, colocou-se sob a Lei de
Moisés até o ponto de provar o castigo aplicável aos desobedientes.
Essa sua obra, tendo um caráter substitutivo (3.13), libertou o
homem do jugo legal, não havendo mais qualquer razão para que as
igrejas da Galácia novamente o tomassem sobre os ombros.
O Filho de Deus fez-se homem e nasceu sob a Lei a fim de
“resgatar os que estavam sob a lei” (5). Nessa condição estavam
todos os homens, tanto judeus, debaixo da Lei Mosaica, quanto os
gentios, debaixo dos rudimentos do mundo (vv. 3, 8-9). Paulo afirma
que a encarnação e auto-sujeição de Cristo tiveram por propósito
resgatar o ser humano dessa situação. Resgatar é livrar mediante o
pagamento de um determinado preço. Ora, é sabido que o preço
pago para o livramento do homem foi o sangue do próprio Filho de
Deus (At 20.28; 1Pe 1.18-19; Ap 5.9). Assim, nos vv. 4-5, o Apóstolo
faz alusão à encarnação de Cristo, ao seu ministério terreno e à sua
morte e explica que o alvo disso tudo foi libertar o homem da
escravidão. Que grande absurdo seria agora os próprios crentes em
Cristo se sujeitarem aos ditames de leis estéreis!
Segundo o v. 5, a obra de resgate não é o estágio final na
salvação do ser humano. Ao contrário, o resgate é o caminho para a
realização de um bem ainda maior: Deus livra o escravo para adotá-
lo como filho! Ele não somente o desobriga dos deveres da
escravidão, não somente tira-lhe dos ombros o jugo da servidão,
mas vai além e o recebe em sua casa, incluindo-o em sua própria
família. Tira-lhe as correntes, mas não o despede. Antes, abre-lhe
as portas, cobre-o com finas vestes, põe-lhe um anel no dedo e
sandálias nos pés (Lc 15.22).
Por serem filhos de Deus os crentes recebem o Espírito Santo
(6). Paulo mostra aqui que a adoção implica a habitação (Rm 8.9).
No v. 6 o Espírito Santo é chamado “Espírito do seu Filho” porque o
Apóstolo quer realçar a intensidade da filiação do crente. O cristão é
filho de Deus num sentido tão amplo que a ele é dado o Espírito do
verdadeiro Filho, o Espírito do único Filho que é consubstancial ao
Pai. O efeito disso é que o crente “se sente” filho. Ele não tem a
sensação de ser um estranho na casa do Pai; não se sente
inadequado e sem liberdade para se achegar a ele e desfrutar de
sua intimidade. Em vez disso, movido pelo Espírito do Filho que nele
habita, aproxima-se do Senhor e clama: “Aba[40], Pai!”, expressão
que denota relacionamento íntimo e afinidade com Deus.
Esse mesmo ensino é encontrado também em Romanos 8.14-16.
Nesse texto vemos que a habitação do Espírito, além de estimular a
intimidade com o Senhor, faz com que o crente viva sob a direção
da Terceira Pessoa da Trindade, livre do domínio da carne e do
medo. Ademais, por meio dessa habitação, o crente recebe o
testemunho interno do Espírito que lhe traz a certeza de ser alguém
que pertence à família de Deus.[41]
O v. 7 encerra o desfecho do pensamento de Paulo nesse
parágrafo: o crente não é mais escravo. Agora é filho! Para os
galateus essa afirmação tinha o propósito assumido de varrer de
suas mentes qualquer forma de doutrina que refletisse ainda que a
menor sombra de escravidão. Abraçar uma doutrina assim seria
andar em desconformidade com a própria posição a que, pela obra
do Filho de Deus, o crente foi alçado.
Tendo ficado para trás o tempo de escravidão, e desfrutando
agora aquele que crê da posição de filho de Deus, os benefícios de
que desfruta não se limitam à presente era. Sendo filho ele é
herdeiro (7). Pelo próprio Deus foi elevado a essa condição. Como
filho que é, desfruta agora da liberdade e amanhã se regozijará na
herança (Gl 3.29; Rm 8.17).

O PERIGO DE UMA NOVA ESCRAVIDÃO


GÁLATAS 4.8-11
8. Antes, quando vocês não conheciam a Deus, eram
escravos daqueles que, por natureza, não são deuses.
9. Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo por ele
conhecidos, como é que estão voltando àqueles mesmos
princípios elementares, fracos e sem poder? Querem ser
escravizados por eles outra vez?
10. Vocês estão observando dias especiais, meses, ocasiões
específicas e anos!
11. Temo que os meus esforços por vocês tenham sido
inúteis.

A menção do elevado status atual dos crentes da Galácia,


constante dos vv. 6-7, conduz o pensamento do Apóstolo ao
chocante contraste existente entre essa gloriosa situação e a
condição na qual os galateus viviam anteriormente. De acordo com
Paulo, antes eles “não conheciam a Deus” (8). O verbo usado aqui
(oîda) sugere mais do que o mero conhecimento de dados sobre
alguém. Na verdade, a palavra admite o sentido de estar ligado a
uma pessoa, relacionando-se com ela. Decorre disso a verdade de
que à parte do evangelho, é impossível que o homem tenha acesso
a Deus e ande com ele, não importa quão religioso seja.
O modo como o desconhecimento de Deus se manifestara na
vida dos crentes da Galácia, ao tempo da sua incredulidade, foi a
idolatria. De fato, os galateus haviam sido escravos de falsos
deuses.[42] No v. 8 há uma forte ênfase no fato de não serem
deuses aqueles que os pagãos serviam. Paulo desenvolve mais
esse ensino em 1Coríntios 8.4-6, onde diz que ainda que muitos
tomem para si o nome de “deuses”, só há um Deus, ou seja, o Pai, e
um só Senhor, a saber, seu Filho, Jesus Cristo. Por outro lado, ainda
que os ídolos não passem de objetos inanimados (1Co 8.4; 12.2),
Paulo adverte que o culto a eles prestado é dirigido a demônios
(1Co 10.19-20)[43], de modo que o crente deve fugir de qualquer
forma de idolatria (1Co 10.14; 1Jo 5.21).
A escravidão aos ídolos, à qual os galateus estiveram sujeitos,
havia acabado. Se o v. 8 descreve o que havia acontecido outrora, o
v. 9 fala do “agora”. Ao receber o evangelho, os destinatários de
Paulo tornaram-se conhecedores de Deus. Na verdade, a melhor
forma de descrever seu privilégio era afirmando que eles eram
conhecidos de Deus, ou seja, seu relacionamento com o Senhor
não foi o resultado de empenho ou iniciativa próprios, já que eram
escravos absolutamente incapazes de dar um passo sequer na
direção da verdade (Rm 3.11). Foi o próprio Deus quem se
antecipou na busca de um relacionamento com aqueles irmãos,
quando eles ainda se encontravam na mais mísera condição. Esse
fato tornava os galateus ainda mais culpados. Depois de terem sido
objeto de tão grande graça que os libertou, de quão grave erro não
seriam autores caso voltassem novamente a um viver curvado sob o
jugo da escravidão?
São esses os pensamentos que Paulo quer despertar em seus
leitores ao perguntar “como é que estão voltando àqueles mesmos
princípios elementares, fracos e sem poder? Querem ser
escravizados por eles outra vez?” (9). Já foi visto o que são os
“princípios elementares” (veja o comentário ao v. 3). Deve-se, no
entanto, realçar aqui a conexão dos tais “princípios” com a
escravidão da idolatria. De fato, depois de afirmar que os seus
leitores haviam se libertado da escravidão dos falsos deuses, Paulo
diz que eles agora estavam voltando novamente ao seu
procedimento anterior. Isso significa que a vida sob a escravidão
dos falsos deuses era caracterizada pela observância dos princípios
elementares, ou seja, aqueles conjuntos de regras
predominantemente religiosas carentes de qualquer força contra o
pecado (Cl 2.20-23).
As perguntas de Paulo no v. 9 evocam o absurdo de um retorno
do cristão à escravidão debaixo de qualquer sistema legalista. No
entanto, por mais incrível que pudesse parecer, era exatamente
esse retorno que os crentes da Galácia haviam empreendido.
Vêem-se assim, no v. 10, exemplos do modo de agir daqueles
cristãos que revelavam sua retomada do fardo típico de quem adora
deuses falsos. Voltando para o mesmo estilo de vida que
caracterizara seus tempos no paganismo, eles estavam observando
“dias especiais, meses, ocasiões específicas e anos”.
É claro que todas essas observâncias tinham conotações
judaicas, fruto do trabalho dos mestres da Lei Mosaica infiltrados
nas igrejas da Galácia. No entanto, seu efeito escravizador era o
mesmo produzido pelo paganismo em que antes haviam vivido.
Assim, em última análise, observar preceitos judaicos resultava no
mesmo cativeiro em que se encontravam os adoradores de falsos
deuses. O novo cuidado da Lei judaica conduzia os homens de volta
à velha prisão pagã.[44] Ora, sendo certo que Paulo, ao anunciar o
evangelho aos galateus, os conduzira pelo caminho da liberdade
que há em Cristo, era óbvio que, vendo-os novamente agrilhoados a
normas inúteis, suspeitasse que todo o seu trabalho entre eles
tivesse sido vão (11). De fato, inútil é o evangelho libertador para
aqueles que, deliberadamente, sobre si mesmos atam fardos
pesados, impossíveis de carregar, assim como também vã é a luz
para aqueles que teimam em ficar de olhos fechados.

APELOS, LEMBRANÇAS E ANSEIOS


GÁLATAS 4.12-20

12. Eu lhes suplico, irmãos, que se tornem como eu, pois eu


me tornei como vocês. Em nada vocês me ofenderam; 13.
como sabem, foi por causa de uma doença que lhes preguei
o evangelho pela primeira vez.
14. Embora a minha doença lhes tenha sido uma provação,
vocês não me trataram com desprezo ou desdém; ao
contrário, receberam-me como se eu fosse um anjo de Deus,
como o próprio Cristo Jesus.
15. Que aconteceu com a alegria de vocês? Tenho certeza
que, se fosse possível, vocês teriam arrancado os próprios
olhos para dá-los a mim.
16. Tornei-me inimigo de vocês por lhes dizer a verdade?
17. Os que fazem tanto esforço para agradá-los não agem
bem, mas querem isolá-los a fim de que vocês também
mostrem zelo por eles.
18. É bom sempre ser zeloso pelo bem, e não apenas quando
estou presente.
19. Meus filhos, novamente estou sofrendo dores de parto
por sua causa, até que Cristo seja formado em vocês.
20. Eu gostaria de estar com vocês agora e mudar o meu tom
de voz, pois estou perplexo quanto a vocês.

Depois de expressar seu inconformismo com as práticas


legalistas a que os galateus estavam novamente se submetendo, o
Apóstolo passa agora a dirigir-lhes um apelo emocionado,
lembrando-lhes alguns momentos de amizade e labor que haviam
partilhado juntos e que revelavam o profundo afeto que um dia os
unira. Sua intenção é claramente despertar novamente aqueles
afetos, uma vez que, à luz do texto, o trabalho dos falsos mestres
infiltrados nas igrejas estava logrando êxito em afastar de Paulo o
coração dos seus queridos filhos na fé (Ver vv. 15-17).
O apelo de Paulo se consubstancia inicialmente nas palavras
“sede qual eu sou; pois também eu sou como vós” (ARA). Essas
palavras significam o seguinte: os crentes da Galácia nunca haviam
ofendido Paulo (v. 12b) e ele se refere a isso quando diz “também
eu sou como vós”. Portanto, ele se assemelhava aos galateus em
seu modo de tratá-los, jamais os agredindo ou sendo grosseiro,
apesar da dificuldade do momento. Por outro lado, o Apóstolo sentia
que os seus filhos na fé (v. 19) estavam se distanciando dele mais e
mais (vv.16-17), enquanto ele próprio procurava desesperadamente
uma reaproximação. É nesse aspecto que Paulo suplica
humildemente que os crentes da Galácia sejam como ele. Assim
como o Apóstolo os imitava não os ofendendo, os galateus por sua
vez também deviam imitá-lo, empenhando-se em reconstruir os
laços de comunhão afrouxados pela influência dos inimigos
hipócritas (v.17).
Paulo lembra, a partir do v. 13, que essa comunhão ora abalada
tinha nascido num momento tão sublime e atingido tamanha
intensidade que era inaceitável que fosse agora destruída pelo
trabalho de pessoas mal intencionadas e por expoentes de erros
doutrinários tão grosseiros. Segundo ele, a primeira vez que pregou
o evangelho na Galácia foi por causa de uma doença de que foi
acometido. A narrativa de Atos sobre a visita missionária de Paulo à
Galácia (At 13.14-14.21) não faz menção dessa enfermidade[45] e
não há como saber qual foi exatamente o mal físico de que sofreu o
Apóstolo.[46]
Seja como for, não pairam dúvidas sobre os propósitos de Paulo
ao relembrar o tempo que, fragilizado em sua saúde, esteve entre
os irmãos a quem escreve. O Apóstolo quer trazer-lhes à memória
os tempos de união e, assim, despertar o desejo de revivê-los. De
fato, um grande estímulo à unidade dos crentes no presente é
procedente das recordações das batalhas que juntos travaram no
passado. Portanto, sempre que as armadilhas do mundo e do diabo
fizerem os crentes se distanciar dos seus irmãos, um bom impulso
ao retorno é a memória dos momentos mais sublimes que
marcaram a sua jornada em comum (Hb 10.32-34). Só os corações
terrivelmente endurecidos pelo pecado são capazes de se manter
insensíveis ao se lembrarem dos momentos mais tocantes de sua
própria história.
A enfermidade de Paulo, segundo seu parecer, se constituiu
numa prova para os galateus (14). Isso significa que receber o
missionário doente gerou-lhes um grau considerável de incômodo, o
que seria motivo para que o Apóstolo fosse tratado com
manifestações de impaciência e desprezo. Contudo, o que
aconteceu foi exatamente o contrário. Nem desprezo e nem aversão
os galateus revelaram naquelas circunstâncias.[47] Antes, Paulo foi
recebido como “um anjo de Deus” e até mesmo “como o próprio
Cristo Jesus”.
Ao descrever nesses termos (e com aprovação) a atitude que os
crentes da Galácia tiveram outrora para com ele, Paulo ensina
indiretamente que é como anjos e como o próprio Cristo que os
ministros do evangelho devem ser recebidos e tratados pelos
cristãos em geral. De fato, a escritura chama os mestres da verdade
de anjos, uma vez que são mensageiros de Deus (Ml 2.7; Ap 2.1,
8,12, 18; 3.1, 7, 14). Além disso, os proclamadores do evangelho
são embaixadores de Cristo, atuando em seu lugar como porta-
vozes, de forma que desprezá-los corresponde a rejeitar aquele que
eles representam (Mt 10.40; Lc 10.16; 2Co 5.20). Por outro lado, há
aqui também uma forte indicação da responsabilidade que paira
sobre os pastores. Estes têm o dever de zelar pela mensagem de
Deus como se fossem anjos celestes ou mesmo pequenos cristos a
pregar (Tt 1.7-9). A consciência disso faria com que os púlpitos de
nossas igrejas deixassem de ser palco de fanfarronadas e
passassem a se constituir na maior força transformadora do tempo
presente.
Após lembrar com saudades do amor demonstrado pelos
galateus, Paulo pergunta com tristeza: “Que aconteceu com a
alegria de vocês?” (15. NVI). Mesmo estando Paulo enfermo, os
galateus haviam manifestado intensa alegria em recebê-lo. Aliás, o
prazer deles com a presença de Paulo era tanto que o Apóstolo
tinha plena consciência de que outrora aqueles irmãos, se possível
fora, teriam “arrancado os próprios olhos” para auxiliá-lo. Essa
linguagem, evidentemente é figurada. É bom também frisar que não
há aqui nenhum sinal de que a doença de Paulo fosse nos olhos,
conforme sugerem alguns intérpretes (vide nota 2). A frase indica
tão somente que, em outros tempos, os galateus não mediriam
esforços para beneficiar aquele que tinha sido um hóspede tão
querido.
A pergunta constante do v. 15 mostra claramente que aquela
alegria que os crentes da Galácia haviam demonstrado por ter Paulo
junto de si havia acabado. Agora eles não sentiam satisfação
alguma, nem mesmo com a possibilidade de ter o Apóstolo por
perto. Que grande mudança em seus afetos! Era como se a pessoa
mais amada daquelas igrejas, num breve período de tempo e sem
nenhuma justificativa, passasse a ser considerada seu mais
detestável inimigo!
Ainda que perplexo (v. 20), Paulo sabia a causa de mudança tão
radical. Aqueles cristãos estavam aceitando a mentira dos falsos
mestres e, por isso, a verdade dita pelo Apóstolo lhes causava
aversão. Esse fato é apontado através da pergunta retórica do v. 16.
Nesse versículo, vê-se que ao anunciar o evangelho genuíno e
denunciar o desvio dos mestres enganadores, Paulo havia
despertado real antipatia nas jovens igrejas corrompidas
doutrinariamente. Esse fato que tomou lugar na experiência de
igrejas neotestamentárias deve despertar a atenção das igrejas
atuais. Que seja lembrado que abrir os braços para doutrinas novas
e estranhas faz com que igrejas inteiras desenvolvam rancores e até
construam barreiras contra os verdadeiros expoentes da Palavra de
Deus. Ministros fiéis também devem ter isso em mente. Muitas
vezes a inimizade é o preço pago pela proclamação da verdade,
mesmo quando isso é feito de modo brando e amoroso.
Com a pergunta do v. 16, Paulo revela seu desejo de trazer os
galateus de volta para junto de si. Ele quer incomodar suas
consciências fazendo-os ver de quão grande impiedade eram
culpados ao abandonar a mais terna comunhão não porque
tivessem sido ofendidos, mas porque tinham sido instruídos na
palavra da verdade. De fato, é difícil imaginar maior estupidez do
que se tornar inimigo de um irmão precisamente porque ele nos
beneficiou.
A estratégia usada pelos falsos mestres para difundir sua doutrina
perversa dentro das igrejas da Galácia transparece no v. 17. Tal
estratégia consistia em demonstrar cuidado, preocupação e
interesse pelos crentes. Os legalistas se apresentavam como
pastores “zelosos”. Paulo, no entanto alerta seus leitores dizendo
que aquele cuidado não era bom, ou seja, tratava-se de um zelo
indigno de aprovação, sem sinceridade, pois tinha como objetivo
isolar os crentes.[48] Segundo Paulo, os falsos mestres, com sua
demonstração hipócrita de estima, queriam distanciar dele os seus
leitores e reuni-los em torno de si para, então, obter daquelas igrejas
o mesmo cuidado e afeto que antes haviam dispensado ao Apóstolo
(vv. 14-15). Nota-se aqui que os ardis de outrora são usados ainda
hoje pelos falsos pastores. Estes sempre trabalham em três
direções: conquista da simpatia da igreja; afastamento dos irmãos
dos pregadores verdadeiros; e obtenção do serviço e cuidado dos
crentes em seu favor (2Pe 2.3; Jd 16).
No v. 18 Paulo se volta novamente para o cuidado que os
galateus haviam demonstrado por ele no passado. Aqui o Apóstolo
ensina que era lamentável que aquele interesse tão tocante só
existisse quando ele estava por perto. Para Paulo era preocupante
que aquelas igrejas se mantivessem fiéis a ele e,
conseqüentemente, aos seus ensinos tão-somente em sua
presença. Infelizmente, como se sabe, é comum também as igrejas
de hoje se desviarem da verdade quando os ministros de Deus,
movidos por diversas necessidades, são obrigados a se ausentar
delas. O quadro moderno, porém, é pior, uma vez que na Galácia
esse erro era cometido por igrejas recém formadas, enquanto hoje o
desvio se dá na vida de crentes que conhecem o evangelho há
dezenas de anos. Paulo expressa no v. 18, o singelo ideal da igreja
de Deus ser continuamente zelosa pelo bem, mesmo nos momentos
que se vê, por uma razão ou outra, longe da benéfica influência dos
proponentes da sã doutrina.
O coração de Paulo se enternece ao ver os crentes naquela
situação. Dirigindo-se aos seus leitores de forma carinhosa, com a
alma repleta de afeição, ele os chama de “filhos” (19) [49] e diz que,
por causa deles, novamente sentia as dores de parto até que Cristo
fosse formado em suas vidas. A metáfora pode ser simplificada da
seguinte maneira: Paulo se apresenta como uma mãe que sofre
dores de parto para dar à luz filhos que tivessem a aparência de
Cristo. O significado óbvio é que em seu ministério o Apóstolo
trabalhava por gerar pequenos cristos (Rm 8.29), isto é, pessoas
que tivessem em si os traços do caráter de Jesus, um caráter
marcado pelo zelo por aquilo que é bom, tanto na esfera doutrinária
quanto moral. Na busca desse ideal, Paulo sofria com freqüência e
intensidade. Ele é um pai espiritual e aqui aprendemos que na
esfera espiritual tanto pais como mães sofrem dores para dar à luz.
Aqui aprendemos também que o verdadeiro pai espiritual é aquele
que trabalha e sofre na busca incessante de criar em alguém o
caráter de Cristo. Que marcante diferença havia entre esse alvo de
Paulo e as intenções dos mestres legalistas (v.17)! E quão útil
ferramenta o crente tem nesse texto que mostra indiretamente como
identificar o verdadeiro pastor! Este será simplesmente o homem
que não mede esforços no sentido de fazer com que as pessoas
que o Senhor lhe confiou se tornem mais parecidas com Jesus (Ef
4.11-13).
Sabendo que sua ausência era, em parte, a causa do desvio dos
galateus, Paulo, no v. 20 manifesta o desejo que tinha de estar com
eles naquelas horas. O versículo dá a entender que essa
possibilidade não existia naquele momento. Mesmo assim, o
Apóstolo diz que gostaria de estar entre eles para poder falar com
“outro tom de voz”. De fato, a Epístola aos Gálatas tem trechos
severos (1.6-9; 3.1-5; 4.9-11, 15-16; 5.4, 7-9, 12, etc.). Paulo
acreditava que, estando presente, não precisaria usar daquela
severidade, pois confiava que diante dele os galateus se
submeteriam. A razão que o impulsionava a desejar um contato
mais direto não era apenas o impacto mais forte que uma visita
pessoal teria. Ele também queria vê-los porque cria que isso lhe
traria algum alívio, uma vez que estava “perplexo” quanto aos
crentes da Galácia. O termo usado por Paulo (aporéo) denota
desespero e dúvida. A idéia de estar desnorteado se encaixa bem
aqui. Paulo indica que aquela situação o deixara um tanto sem
rumo, refletindo sobre que medidas tomar para remediar o
problema. Ele acreditava que uma visita seria útil para clarear suas
idéias e mostrar como proceder de maneira eficaz.

O CONTRASTE ENTRE SARA E HAGAR


GÁLATAS 4.21-31

21. Digam-me vocês, os que querem estar debaixo da Lei:


Acaso vocês não ouvem a Lei?
22. Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da
escrava e outro da livre.
23. O filho da escrava nasceu de modo natural, mas o filho
da livre nasceu mediante promessa.
24. Isto é usado aqui como uma ilustração; estas mulheres
representam duas alianças. Uma aliança procede do monte
Sinai e gera filhos para a escravidão: esta é Hagar.
25. Hagar representa o monte Sinai, na Arábia, e corresponde
à atual cidade de Jerusalém, que está escravizada com os
seus filhos.
26. Mas a Jerusalém do alto é livre, e é a nossa mãe.
27. Pois está escrito: “Regozije-se, ó estéril, você que nunca
teve um filho; grite de alegria, você que nunca esteve em
trabalho de parto; porque mais são os filhos da mulher
abandonada do que os daquela que tem marido”.
28. Vocês, irmãos, são filhos da promessa, como Isaque.
29. Naquele tempo, o filho nascido de modo natural
perseguiu o filho nascido segundo o Espírito. O mesmo
acontece agora.
30. Mas o que diz a Escritura? “Mande embora a escrava e o
seu filho, porque o filho da escrava jamais será herdeiro com
o filho da livre”.
31. Portanto, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da
livre.
O método de interpretação da Bíblia usado pelos evangélicos
atuais que seguem na esteira dos reformadores do século XVI é
eventualmente denominado método histórico-gramatical. Uma das
marcas desse modelo hermenêutico é sua forte ênfase no sentido
literal do texto escriturístico. Para os defensores desse método de
interpretação, as palavras da Bíblia têm apenas um significado, ou
seja, aquele pretendido pelo autor sagrado. Até mesmo em face das
figuras de linguagem, quando logicamente as palavras adquirem
duplo sentido, os proponentes desse método entendem que a
intenção autoral deve ser preservada como um fator que impõe
limites ao intérprete, impedindo-o de atribuir ao texto significados
oriundos da sua imaginação ou que atendam aos seus interesses e
opiniões pessoais.
Esse método tão defendido nos séculos IV e V pelos teólogos da
Escola de Antioquia e distintivo dos protestantes ao longo da história
está em franca oposição ao chamado método alegórico,
popularizado já na igreja antiga especialmente por Orígenes de
Alexandria (185-253 d.C) e que consiste, grosso modo, na busca de
um significado oculto por trás da letra. O método alegórico,
praticado largamente pelo catolicismo romano, ainda que não
despreze o sentido literal do texto bíblico, entende que há nele um
sentido espiritual, mais profundo do que aquele que se obtém a
partir de uma leitura natural. A tarefa do exegeta é descobrir esse
sentido que transcende as palavras e até mesmo a intenção do
autor inspirado.[50] É por adotarem esse método hermenêutico que
muitos expositores católicos e também evangélicos sentem-se à
vontade para fazer as interpretações mais extravagantes e absurdas
da Bíblia.
A seção da Carta aos Gálatas colocada agora sob análise se
constitui num grande desafio para os defensores do método
histórico-gramatical. Isso porque o modo como Paulo interpreta a
história de Sara e Hagar (Gn 16.15; 21.1-10) parece ser
marcantemente alegórico, já que se afasta flagrantemente da
intenção autoral e dá ao texto de Gênesis um sentido a que é
impossível chegar pela via da leitura natural. Seria esse modo como
Paulo lê a narrativa um “sinal verde” para o método alegórico? Pode
o intérprete cristão moderno, seguindo o exemplo do Apóstolo,
mergulhar no texto bíblico à busca de sentidos ocultos, no afã de
descobrir verdades jamais sonhadas sequer pelos seus autores?
Os defensores do método histórico-gramatical têm explicado o
procedimento de Paulo no texto em questão de três diferentes
maneiras. A primeira é a afirmação de que ali o Apóstolo não estava
“alegorizando”, mas sim traçando um paralelo entre o que
aconteceu na história do povo de Israel e o que acontecia agora na
igreja de seus dias. É o caso, portanto, de tipologia e não de
alegoria.[51] Segundo esse entender, a palavra “alegoria”
(allegoroúmena) constante do v. 24, teria um sentido pouco preciso,
não podendo corroborar o método alegórico de interpretação. De
fato, o argumento de Paulo no texto em análise é marcantemente
comparativo. Diferente dos alegoristas, ele não trabalha com o texto
isolado e, unicamente a partir dele, cria um sentido que considera
adequado. Antes, apresenta duas realidades (o conflito entre Sara e
Hagar e o conflito entre a velha e a nova aliança) e realça o que
ambas têm em comum. Mais do que inventar sentidos, Paulo
compara fatos e, dessa forma, vê nas duas mulheres tipos ou
figuras das duas alianças agora em franca oposição. Ora, o uso de
tipos é comum nas Escrituras (e.g., o sacerdote Melquisedeque, o
cordeiro pascal, o Tabernáculo), sendo certo que só podem ser
reconhecidos quando a própria Bíblia os aponta. É esse o caso em
Gálatas 4.21-31.
A segunda maneira, também revestida de alto grau de
plausibilidade, pela qual se explica o método hermenêutico de Paulo
nesse texto em particular consiste na afirmação de que o Apóstolo
está fazendo uso momentâneo de um método muito familiar para
grande parte dos judeus que compunham o número de seus
leitores. Com isso ele quer apenas usar mais um recurso para
reforçar sua mensagem e não demonstrar como Gênesis deve ser
lido. Esse entendimento, mais recente que o primeiro, se constitui
realmente numa excelente hipótese. [52]
Finalmente, há o entendimento de que Paulo, ao associar Sara e
Hagar aos conflitos teológicos de seu tempo, agia com uma
capacitação especial dada pelo Espírito Santo. Como apóstolo,
Paulo foi um instrumento de Deus para revelação de seus mistérios
(1Co 2.1,7; Ef 3.3-9; Cl 1.26-27), sendo certo que, por meio do
processo de inspiração das Escrituras, ele os registrou em suas
cartas que hoje compõem o Novo Testamento. Foi no exercício
desse dom apostólico que Paulo pôde vislumbrar o liame existente
entre a história das duas mulheres e o conflito entre os “filhos” das
duas alianças. O fim do período apostólico, já no primeiro século da
Era Cristã, implica o fato de que ninguém mais tem autoridade para
interpretar textos bíblicos da mesma forma como Paulo o fez em
Gálatas 4.21-31.[53]
Das três linhas de argumentação acima expostas, todas são
aceitáveis para o estudante honesto da Bíblia. Este deve tão-
somente abster-se a todo custo do malfadado método alegórico, sob
o risco de, ao adotá-lo em suas leituras e estudos, atribuir sentidos
ao texto bíblico jamais pretendidos pelos escritores sagrados e,
dessa forma, passar a seguir e defender idéias que sejam meros
frutos de sua criatividade.
Assim, após lamentar o afeto que tinha perdido por parte dos
galateus e expressar seu desejo de estar perto deles a fim de
corrigi-los de maneira mais eficaz (vv.12-20), Paulo retoma a
estratégia de ataque contra os mestres legalistas. É a eles e aos
simpatizantes de seus ensinos que o Apóstolo se dirige diretamente
agora, referindo-se a essas pessoas como “os que querem estar
debaixo da Lei” (21[NVI]), ou seja, os que se submetiam à lei
mosaica crendo que, com isso, poderiam obter a justificação (5.4).
Num tom provocativo, Paulo lhes pergunta: “Acaso vocês não
ouvem a Lei?” Há aqui a sugestão de que era de se esperar que os
mestres legalistas, com sua suposta autoridade espiritual, tivessem
uma percepção mais clara da mensagem que a própria Lei, tão
defendida por eles, transmitia. A pergunta de Paulo deixa claro que
especialmente aqueles mestres, diferentemente dele, eram
incapazes de captar as verdades profundas da Palavra e não
estavam qualificados para apresentar mistérios antes
desconhecidos, como os apóstolos de Cristo tinham autoridade para
fazer (1Co 2.1,7; Ef 3.3-9; Cl 1.26-27).
A partir do v. 22 Paulo expõe o que tem em mente quando fala
sobre a capacidade de ouvir a Lei. Ele menciona porções da história
de Abraão, recordando que o grande patriarca teve dois filhos:
Ismael, que nasceu de Hagar, a escrava (Gn 16.1-16); e Isaque, que
nasceu de Sara, uma mulher livre (Gn 21.1-7).[54] O contraste na
condição das duas mulheres (uma escrava e outra livre) é
fundamental para o raciocínio que Paulo quer construir. Percebe-se,
desde o início, que o Apóstolo pretende ressaltar a superioridade
daquela que gera filhos livres sobre aquela que gera filhos escravos.
Prosseguindo, Paulo reforça o contraste entre as duas mulheres
no v. 23, ao chamar a atenção para o fato de que o filho da escrava
nasceu de modo natural (literalmente, “segundo a carne”), enquanto
o filho de Sara nasceu de forma extraordinária, em cumprimento à
promessa de Deus. Têm-se, então, afinal, duas realidades opostas,
impossíveis de se harmonizar. De um lado, o nascimento de um
escravo que passa a existir a partir de processos humanos comuns;
de outro, o nascimento de um homem livre, só possível graças à
intervenção poderosa de Deus que o traz ao mundo por causa de
uma promessa que fez.
Vê-se desde já onde Paulo pretende chegar. Desses versículos
se depreende de antemão que os mestres legalistas e seus
discípulos galateus eram escravos e existiam como tais não como
resultado da atuação milagrosa de Deus em suas vidas, mas sim
em virtude de esforços humanos carnais. Por outro lado, os que
buscavam a justificação pela fé em Cristo obtinham liberdade do
jugo da Lei, eram livres e existiam como resultado da obra poderosa
de Deus que fez a promessa de dar a bênção de Abraão, ou seja, a
justificação e a herança, a todos os que têm a fé de Abraão (Rm
4.11-16).
No v. 24 o Apóstolo esclarece finalmente que aqueles fatos
narrados em Gênesis têm um sentido figurado (Lit. “essas coisas
são uma alegoria”), sendo que Sara e Hagar representam duas
alianças. A escrava é uma figura da Aliança Mosaica, ou seja, a
aliança da lei, estabelecida no Monte Sinai (Ex 34.29-32; Lv 26.46;
Ne 9.13-14). Essa aliança, tão cara aos mestres legalistas e aos
cristãos da Galácia tinha como marca distintiva a exigência de
sujeição a regras e normas de diversas naturezas, impondo aos
homens um peso que jamais podiam carregar (At 15.10) e gerando,
dessa forma, escravos.
“Hagar é o monte Sinai, na Arábia”, diz Paulo (25), querendo com
isso demonstrar o paralelo entre a serva de Abraão e o pacto da lei,
firmado ao tempo do êxodo de Israel. Ademais, o Apóstolo
esclarece que Hagar também é uma figura da Jerusalém dos seus
dias, cujo povo permanecia debaixo do jugo da lei mosaica. Paulo
menciona especificamente a cidade de Jerusalém porque nela se
focalizava o culto israelita, sendo também ali o centro do judaísmo
com sua ênfase na guarda da lei em seus mínimos detalhes.
De fato, Jerusalém era a grande fortaleza em que a lei de Moisés
era protegida com um zelo que chegava às raias do fanatismo.[55]
Ademais, é bem provável que os mestres judaizantes que estavam
atuando de forma tão perniciosa junto aos cristãos da Galácia
fossem procedentes de Jerusalém (At 15.1, 23-24) e se gloriassem
no radicalismo daquela maravilhosa cidade. Talvez eles até se
aproveitassem do fato de terem vindo de Jerusalém para afirmar
sua autoridade, considerando o destaque que aquela cidade tinha
como reconhecido núcleo religioso. Sendo esse o caso, pode-se
entender porque Paulo mostra a real condição da metrópole de que
tanto se jactavam. Na verdade, seus filhos, ou seja, seus cidadãos e
todos os que adotavam seus princípios, homens tão meticulosos no
tocante às determinações da antiga aliança, estavam sob
escravidão, oprimidos sob o fardo de uma religiosidade exterior
incapaz de tornar o homem livre e justo diante de Deus (Rm 3.20).
Para Paulo, portanto, o sistema mosaico, em vez de criar novos
israelitas, criava novos ismaelitas!
Em contraste com a Jerusalém terrena que, sendo serva como
Hagar, é mãe de escravos, há a Jerusalém celestial que, como
Sara, é livre (26). Essa Jerusalém também é mãe. De fato é nossa
mãe, ou seja, mãe dos crentes, aqueles que são livres da Lei
mediante a fé em Cristo (v. 31; Rm 7.6). Paulo se refere à Nova
Aliança (1Co 11.25; 2Co 3.6; Hb 9.15) como “a Jerusalém lá de
cima” porque seus filhos são gerados pelo poder do alto e, ainda
que se encontrem por um tempo neste mundo, não têm aqui
nenhuma cidade sagrada em que se concentrem (Hb 13.14). Antes
são, na verdade, cidadãos celestes (Fp 3.20), homens livres cuja
liberdade lhes advém do Pacto da Cruz, no qual Deus se
compromete a dar a vida eterna aos que tão-somente crêem em seu
Filho (Jo 6.40). A pátria deles está, pois, nos céus (Hb 11.10, 16;
12.22; 1Pe 2.11; Ap 21.2), mas a liberdade que têm como cidadãos
do alto já é desfrutada aqui (5.1).
Mantendo viva a comparação entre os filhos da Nova Aliança e
Isaque, o filho de Sara, Paulo recorda mais uma vez que, além de
ambos serem gerados em liberdade, também ambos nasceram por
causa do milagre realizado por Deus. Citando Isaías 54.1, o
Apóstolo aponta para o fato de que o profeta se refere à Jerusalém
restaurada como uma mulher que tinha sido estéril, mas que, por
causa da promessa e do poder de Deus terá numerosos filhos (27).
A princípio, o texto se refere à restauração da Jerusalém exilada em
Babilônia.[56] Paulo, porém, movido pelo Espírito Santo, estende
seu sentido para ensinar que os filhos da Jerusalém celeste, ou
seja, do Novo Pacto, são obra sobrenatural do Senhor e também
realçar o grande número de cidadãos dessa pátria gloriosa. De fato,
a graça de Deus, ainda que a cada geração alcance um número
comparativamente reduzido de pessoas (Mt 7.14; 22.14), ao final se
mostrará como tendo sido eficaz na vida de uma multidão redimida
ao longo dos séculos (Ap 5. 9-10; 7. 9).
O v. 28 inicia o desfecho de toda a analogia de Paulo entre as
duas mulheres de Abraão e as duas alianças. Ele conclui que os
crentes são como Isaque por serem também filhos da promessa. De
fato, neles é cumprida a promessa de que Abraão teria uma grande
descendência (Rm 4.16-17; 9.8). É por isso que o Apóstolo os
descreve como “filhos da promessa, como Isaque”.
Ocorre, porém, que da mesma forma como o filho da escrava
perseguia o filho da livre, assim é também agora (29). A história de
Gênesis mostra que o filho de Hagar, nascido sem qualquer
intervenção especial de Deus, atormentava o menino nascido de
forma sobrenatural (Gn 21.8-9) e Paulo vê nisso um paralelo com o
que acontecia na Galácia. Ali, mestres que não haviam nascido de
Deus, filhos naturais da Aliança Mosaica e escravos da Lei,
perseguiam os crentes, filhos livres da Nova Aliança, nascidos
graças à atuação milagrosa de Deus.
É interessante notar que o assédio dos falsos mestres à igreja,
tentando impor sobre ela o fardo das exigências legais, é tido pelo
Apóstolo como verdadeira perseguição. Assim, não se deve
conceber o ataque contra os santos apenas sob a forma de
oposição sangrenta, com prisões, mortes, e torturas. A perseguição
contra o povo santo também acontece quando pregadores da
mentira tentam seduzi-lo, conduzindo-o pelos caminhos tortuosos de
um evangelho adulterado. Na Galácia os “perseguidores” eram
mestres judaizantes que, com sorrisos e agrados, colocavam sobre
os crentes a carga insuportável da guarda da Lei. Hoje, esse tipo de
perseguição ainda existe. Aliás, sempre que alguém se aproxima de
um crente e o exorta ou ensina a se submeter a regras, dizendo que
é assim que se vive o cristianismo autêntico, tal pessoa atua como
verdadeiro perseguidor, um escravo ismaelita perturbando os filhos
livres da Jerusalém celeste.[57]
Como terminará a história do embate entre os filhos da escrava e
os filhos da livre? Paulo recorre novamente à história de Gênesis e
sugere o modo como os crentes devem por um fim à oposição dos
legalistas que pervertem o evangelho genuíno. Ali, Sara diz a
Abraão: “Mande embora a escrava e o seu filho” (30). Parece clara
aqui a sugestão de Paulo de que os galateus deveriam rejeitar não
somente o ensino dos mestres judaizantes, mas também eles
próprios. A citação de Gênesis 21.10 parece indicar que os crentes
da Galácia deveriam mandar embora aqueles que lhes estavam
ensinando a justificação pela guarda da Lei. Como Sara, aqueles
crentes não podiam tolerar os ataques ousados e maldosos dos
escravos contra os filhos da promessa, devendo adotar uma postura
firme contra eles, eliminando qualquer grau de influência que
tivessem e até afastando-os do seu convívio.[58]
O versículo 30, por outro lado, tem um sentido que suplanta a
orientação dada aos crentes de rejeitar os legalistas. O sentido
dominante no texto aponta para a certeza de que num dia futuro os
que confiam na justiça própria mediante a guarda de leis serão
expulsos do convívio dos herdeiros de Deus. Aqui Paulo confere às
palavras da esposa de Abraão um sentido profético e é para realçar
a autoridade de tais palavras que o Apóstolo as atribui à Escritura e
não diretamente a Sara.
De Gênesis 21.10, Paulo aduz, portanto, o destino escatológico
dos filhos das diferentes alianças. Aqueles que insistem na
justificação pela guarda da Lei e oprimem os crentes impondo
fardos sobre eles serão um dia afastados para sempre e os salvos,
de posse da herança, se verão livres de sua presença e
perseguição. Do texto citado depreende-se também facilmente que
os legalistas não receberão a herança devida aos crentes que foram
gerados livres pelo evangelho da graça (Rm 4.14). De fato, o
Apóstolo ensina claramente aqui que os que confiam na guarda da
Lei estão perdidos, não têm parte na herança de Deus e serão
finalmente banidos da congregação dos santos. A força desse texto
esvazia de qualquer esperança aqueles que buscam ser salvos pela
observância dos mandamentos mosaicos.
O v. 31 tão somente reforça a identidade dos crentes como filhos
livres, conforme Paulo ressaltou em versículos anteriores (vv. 26,
28).
Capítulo 5

O EVANGELHO VERDADEIRO E AS VIRTUDES ESPIRITUAIS

A busca da justificação pelo cumprimento da Lei é condenável,


posto que implica afastamento de Cristo em quem a justiça é obtida
pela fé. Contudo, estar livre da Lei não deve conduzir à vida
desregrada, uma vez que a liberdade cristã é vivida dentro dos
limites do amor e sob a influência do Espírito que produz virtudes no
crente.
PREJUÍZOS DO LEGALISMO

GÁLATAS 5.1-6

1. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto,


permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a
um jugo de escravidão.
2. Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo: Caso se deixem
circuncidar, Cristo de nada lhes servirá.
3. De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar,
que está obrigado a cumprir toda a Lei.
4. Vocês, que procuram ser justificados pela Lei, separaram-
se de Cristo; caíram da graça.
5. Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a
justiça, que é a nossa esperança.
6. Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem
incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo
amor.

O capítulo 5 de Gálatas inicia-se com a afirmação de que Cristo


nos libertou para sermos, de fato, livres (1), ou seja, ao redimir-nos
Cristo almejou que realmente desfrutássemos da liberdade e não a
tivéssemos apenas como um conceito abstrato, sem qualquer
reflexo no modo como vivemos. Antes, sua obra libertadora deveria
ser desfrutada pelos crentes.
Assim, Paulo prossegue ainda no v. 1 advertindo os galateus a
permanecerem firmes. Firmeza aqui implica fixar-se na verdade
pregada por Paulo e usufruir, sem vacilar, da liberdade que Cristo
conquistou. De fato, ao demonstrar simpatia pelos ensinos
legalistas, os crentes da Galácia revelavam uma fé vacilante e um
modo de viver que, como uma estaca solta, pendia para o lado da
escravidão sob a força do vento de um evangelho falso (1.6-7). O
Apóstolo ordena, portanto que aqueles crentes se apeguem com
maior tenacidade ao evangelho verdadeiro e, conseqüentemente, ao
desfrute da liberdade obtida por Cristo.
Paulo prossegue deixando claro que deixar-se levar pela
mensagem dos judaizantes, como os galateus já estavam fazendo
(4.10-11), representava um retrocesso, ou seja, significava
submeter-se “de novo, a jugo de escravidão” (ARA). O Apóstolo usa
a expressão “de novo” (pálin), porque ainda que seus leitores, sendo
gentios, não tivessem vivido sob o jugo da Lei Mosaica, tinham sido
escravos de sistemas religiosos pagãos marcados por inúmeras e
severas exigências (4.8-11).
Desse modo, para Paulo, a resposta positiva ao apelo dos falsos
mestres implicava, basicamente, um retorno ao modo de vida que
os galateus tinham experimentado no paganismo. A partir daí é fácil
concluir que “judaizar” a igreja é, na verdade, uma forma de
paganizá-la. Em vista disso, os crentes modernos devem estar
atentos contra os ataques de alguns pregadores atuais que ensinam
a necessidade de retorno aos deveres da religião mosaica até
mesmo em seus aspectos cerimoniais. Na prática, quem hoje
promove a observância das normas do judaísmo, conduz os
homens ao estilo de vida próprio do paganismo.
No v. 2, Paulo deixa transparecer o aspecto da Lei que os
mestres judaizantes tinham em mais alta conta e, certamente,
aquele que mais insistiam que os galateus observassem: a
circuncisão. Para eles, se os gentios não recebessem essa marca
em sua carne, não poderiam ser salvos (At 15.1,5).[59] Assim, os
falsos mestres da Galácia apontavam um caminho para a
justificação no qual a fé em Cristo não era suficiente, fazendo-se
necessárias as obras da Lei. A circuncisão seria talvez a principal
dessas obras. Por isso, Paulo vê nessa prática uma declaração de
falta de confiança na suficiência da Cruz; uma afirmação de que ela
não tem nenhum valor à parte do rito legal judaico.
Ademais, a circuncisão era o sinal externo de adesão à Lei. Ora,
Cristo se manifestou especialmente para livrar o homem do jugo
insustentável da Lei Mosaica (Ef 2.14-15; Cl 2.14). Logo, aderir à Lei
por meio daquele sinal no corpo seria o mesmo que tornar sem
proveito a obra libertadora que Cristo completou no Calvário (2.21).
De fato, pela circuncisão os crentes da Galácia estariam assumindo
o compromisso de se colocarem sob a escravidão das normas
esculpidas na pedra, tornando sem valor a liberdade obtida pelo
Deus-Homem fixado no madeiro.
Que Paulo entendia a circuncisão como um sinal de adesão
completa à Lei depreende-se facilmente do v. 3. O Apóstolo mostra
aqui que, sendo aquele rito judaico uma evidência de submissão
plena às normas mosaicas, não seria coerente circuncidar-se e,
então, dedicar-se ao cumprimento de apenas algumas
determinações da Antiga Aliança, escolhidas ao bel prazer. A
circuncisão implicava um comprometimento integral do homem com
as normas do Sinai. Não poderia alguém submeter-se a meia
aliança, assim como não pode um homem colocar-se debaixo das
responsabilidades de meio casamento.
Eis o perigo a que se expunham os legalistas! Ao adotarem um
“cristianismo judaizado”, punham sobre os próprios ombros e dos
seus discípulos não só alguns pesos selecionados pela vontade
livre, mas um fardo completo que homem nenhum na história
humana jamais pôde suportar (Jo 7.19; At 15.10). Acrescente-se a
isso a verdade de que quem quer viver debaixo da Lei deve antes
entendê-la como um bloco monolítico que não pode ser partido num
ponto sem que tudo o mais se perca (Tg 2.10). A conclusão a que
se chega é que o ensino dos falsos mestres da Galácia implicava
não só a adoção completa da Lei, mas também o dever de uma
obediência perfeita, daquele tipo que só o Filho de Deus foi capaz
de praticar (Jo 8.46; Hb 4.15; 1Jo 3.5).
O comprometimento com a Lei a que os crentes da Galácia eram
impelidos por força da influência dos falsos mestres era, como se
sabe, nada mais que um arranjo doutrinário no qual predominava a
busca de justificação pelo esforço próprio. Eles queriam somar as
obras à fé e obter a justificação como produto dessa operação.
Paulo mostra, porém, que na busca da salvação é impossível andar
de mãos dadas ao mesmo tempo com a Lei e com Cristo. É assim
que, dirigindo-se especificamente aos falsos mestres e aos seus
mais leais seguidores, ele afirma que, ao buscarem a justificação
pela Lei, não poderiam manter-se unidos a Cristo (4). De fato, ao
agirem daquela forma, de Cristo eles haviam se “desligado”. O
verbo usado por Paulo é katargéo e significa ser liberto de, romper
com alguém.
O ensino de Paulo nessa passagem deixa claro que mesmo o
comprometimento com uma parte ínfima da Lei implica
necessariamente a nulidade do compromisso com o Senhor. Para o
Apóstolo, ou o homem fica absolutamente livre da Lei pela fé em
Cristo ou fica absolutamente livre de Cristo pela adesão à Lei. Não
há como manter liames com ambos. A mais tênue ligação com um
só, para fazer qualquer sentido, requer o abandono total do outro.
Os legalistas já tinham feito a sua opção! Aderindo à Lei na busca
da justificação, tinham se separado de Cristo e, assim, caído da
graça, ou seja, tinham abandonado a possibilidade de desfrutar do
favor gratuito de Deus oferecido em seu Filho.
É comum no meio evangélico o entendimento de que as
expressões “desligar-se de Cristo” e “cair da graça” apontam para a
possibilidade da perda da salvação. Esse entendimento, porém,
está equivocado, mesmo porque o ensino de que a salvação não se
perde é amplamente fundamentado nas páginas do Novo
Testamento (Jo 10.27-29; Rm 8.30-39; 1Ts 5.23-24; 1Pe 1.3-5, etc.).
Assim, considerando o ensino bíblico em geral e os fatores
distintivos que permeiam o texto em análise, conclui-se que
desligar-se de Cristo é buscar inutilmente a salvação nele e em algo
além dele, desprezando a sua suficiência. É manter uma união
parcial com Cristo, dividindo a confiança da salvação entre ele e
algo mais. Para Paulo, esse tipo de comprometimento com o
Salvador é nulo e implica, na verdade, total separação dele.
Da mesma forma, cair da graça (Lit. “cair para fora”) significa
colocar-se fora da esfera dos benefícios da graça.[60] É afastar-se
do domínio em que o perdão de Deus é dado independentemente
de méritos. É deixar para trás a possibilidade de ser salvo
gratuitamente. A busca da justificação pelo esforço próprio faz com
que o indivíduo deposite a confiança na força do seu braço e, dessa
forma, vire as costas para a salvação gratuita que Deus oferece em
seu Filho. Assim, tal pessoa não perde a graça que obteve, mas
perde a possibilidade de desfrutar a graça que é oferecida, uma vez
que viaja rumo ao território da lei e das obras, onde a referida graça
não habita. Como se vê, Paulo dirige as palavras do v. 4 a um grupo
de pessoas específico que havia nas igrejas da Galácia. Tratava-se
de legalistas que nunca tinham realmente se convertido. É notável
que, em 2.4, Paulo chama pessoas assim de “falsos irmãos”.
Os vv. 1-4 apresentam um deslocamento no público alvo a quem
Paulo dirige suas palavras. Observe-se que nos vv. 1-2, o Apóstolo
fala aos crentes que, mesmo vacilantes, ainda não tinham se
submetido aos rigores do legalismo que os falsos mestres estavam
propondo. Já nos vv. 3-4, Paulo se dirige “a todo homem que se
deixa circuncidar”, ou seja, àqueles que “procuram ser justificados
pela Lei”. Estes, conforme visto acima, não eram crentes. Eram
pessoas separadas de Cristo, vivendo em meio à fantasia de um
relacionamento com ele que, na verdade, era nulo, já que não o
consideravam um salvador suficiente. Ademais, tinham sido banidos
do “território da graça”, descambado para além das suas fronteiras,
uma vez que buscavam a salvação no reino do esforço próprio.
Após dirigir suas palavras a alvos alternados, Paulo passa agora
a falar de um terceiro grupo no qual ele se inclui. Esse grupo é o
que, firmemente e pela atuação do Espírito, aguarda a justiça pela
fé (5).[61] O Apóstolo inicia o v. 5 com uma conjunção (gár que
significa pois) que expressa aqui o intento de explicar o que foi dito
no v. 4. Assim, o v. 5 é útil para esclarecer que os que buscavam a
justificação mediante a Lei fracassaram porque seu intento não tinha
qualquer relação com a obra do Espírito Santo. A segura esperança
de ser justificado pela fé advém ao homem pela atuação do Espírito.
A ausência dessa esperança em alguém e a conseqüente tentativa
de ser justificado pelas obras revelam que esse alguém não foi
objeto do salutar ministério do Consolador. Isso porque, onde o
Espírito atua, não resta espaço para a confiança na carne. Esta só
persiste no coração ainda não tocado pela graça.
O contraste básico que transparece no v. 5 é que a confiança na
Lei é mera intuição da mente carnal, enquanto a esperança de
justificação pela fé é obra sobrenatural de Deus no coração do
homem. Acrescente-se a isso o ensino de Paulo em 2Coríntios 3.6-
9. Ali, realçando ainda mais fortemente o contraste entre o ministério
da Lei e o ministério do Espírito, o Apóstolo ensina que aquele mata
e traz condenação, enquanto este vivifica e traz justificação. Ora, os
legalistas estavam sob o ministério da letra. Sua conexão com o
Espírito, portanto, não existia. Logo, não havia como serem
justificados. É por isso que as palavras terríveis do v. 4 se ajustavam
tão perfeitamente a eles.
Resumindo: os homens que confiam no mérito pessoal para
serem salvos estão, na realidade, perdidos. Isso porque essa
confiança é mera inclinação da mente degenerada e não obra do
Espírito Santo, já que este, na verdade, leva o homem a desistir de
si mesmo e o conduz à justificação convencendo-o a confiar
unicamente em Cristo. Os legalistas da Galácia demonstravam,
portanto, que não tinham sido objeto dessa obra do Espírito que
opera a justificação pela fé somente. Faltava-lhes a ministração do
Consolador e, sem ela, viviam na ilusão de que, com sua suposta
obediência à Lei, poderiam forçar as portas do céu.
Nunca é demais ressaltar nos dias atuais tão marcados pela visão
otimista acerca do homem que, à luz do v. 5, é exclusivamente
mediante a atuação do Espírito Santo que alguém pode nutrir a
esperança de ser justificado somente pela fé. Não se pode esperar
que o homem, de si mesmo e por si mesmo, desenvolva essa
esperança. Ela é obra de Deus, realizada naqueles que, sem mérito
algum, são contemplados por sua graça (Rm 2.29; 1Co 12.3; 2Ts
2.13).
Concluindo o parágrafo, Paulo faz alusão ao fato de que o
homem que creu e foi justificado está em Cristo, ou seja, dentro de
sua esfera de influência e benefícios. Considerando que tal homem
desfruta das bênçãos dessa posição, sendo a justificação a principal
delas, não há para esse indivíduo utilidade alguma na circuncisão
(6). Para o crente, ser circuncidado ou não é algo absolutamente
sem importância. Submeter-se a esse rito não o fará ganhar nada e
deixar de submeter-se não o fará perder nada (1Co 7.18-19). O que
faz o homem ganhar ou perder no âmbito espiritual é a fé. Eis o fator
que faz toda a diferença! Note-se, porém, que a fé de que Paulo fala
aqui, ou seja, a genuína fé salvadora que é dádiva de Deus (Ef 2.8)
e que tem Cristo como autor (Hb 12.2), é uma fé que se evidencia
no mundo dos fatos.
Paulo ensina que a forma como a fé salvadora se movimenta
tornando-se perceptível é através de atos de amor (1Jo 3.10, 14;
4.7-8). A fé tem no amor o seu rosto. A face da fé é o amor. Não há,
portanto, espaço no cristianismo para uma fé meramente conceitual
e abstrata. A fé salvadora é viva e atuante, sendo nos atos de amor
que ela se corporifica e mostra que é real. Carente dessa dimensão
palpável a fé é morta (Tg 2.14-17), está longe de ser a que vem de
Deus e, por isso, não pode salvar ninguém.[62]
UMA CORRIDA INTERROMPIDA
GÁLATAS 5.7-12

7. Vocês corriam bem. Quem os impediu de continuar


obedecendo à verdade?
8. Tal persuasão não provém daquele que os chama.
9. “Um pouco de fermento leveda toda a massa.”
10. Estou convencido no Senhor de que vocês não pensarão
de nenhum outro modo. Aquele que os perturba, seja quem
for, sofrerá a condenação.
11. Irmãos, se ainda estou pregando a circuncisão, por que
continuo sendo perseguido? Nesse caso, o escândalo da
cruz foi removido.
12. Quanto a esses que os perturbam, quem dera que se
castrassem!

Nos primeiros dias de sua jornada como cristãos, os galateus


tinham demonstrado boa disposição e realizado notáveis avanços.
Paulo os compara no v. 7 a atletas que, durante uma corrida,
apresentam um bom desempenho.[63] Algo, porém, aconteceu.
Adversários os alcançaram e impediram que avançassem.[64] Fica
claro no texto o que Paulo tem em mente com essa comparação: os
crentes da Galácia, no início, haviam seguido a verdade do
evangelho com força e vontade. Eles permaneceram firmes nessa fé
até que os falsos mestres, com sua doutrina legalista, fizeram-nos
parar e dar ouvidos a uma mensagem que apresentava a
justificação mediante a guarda da Lei Mosaica.
Do v. 7 se depreende que correr bem a carreira cristã não é só
enfrentar as perseguições que geralmente advêm aos santos, mas
também sustentar a fé na verdade, sem deixar-se levar pelos
convites dos pregadores mentirosos que, especialmente nos dias
atuais, se alastram como uma epidemia. De acordo com a figura de
Paulo, todo crente que abandona a Sã Doutrina e dá ouvidos a tais
pregadores é como um atleta que parou de correr. Estendendo essa
figura, pode-se perguntar: Que utilidade têm tais atletas? Que
prêmio receberão?
A causa da interrupção da corrida na pista da verdade por parte
das igrejas da Galácia era uma “persuasão” (8). O termo usado pelo
Apóstolo (peismoné) sugere o uso de falácias sedutoras
empregadas com o objetivo de convencer os galateus a abandonar
o caminho que estavam seguindo. Que os judaizantes faziam uso
de atrativos para fascinar e induzir os crentes à desobediência da
verdade fica claro em 3.1 e 4.17. Paulo afirma que a origem dessa
persuasão não era o Senhor, querendo dizer com isso que o
trabalho e a mensagem dos falsos mestres infiltrados nas igrejas
não estavam em harmonia com a vontade e os planos de Deus para
o seu povo.
No v. 8, Paulo se refere a Deus como “aquele que os chama”
(NVI). Essa designação é cheia de significado. De fato, para Paulo o
crente é alguém que foi chamado à fé em Cristo por meio da
pregação do evangelho (Gl 1.6; 2Ts 2.13-14) e respondeu
positivamente a essa santa vocação. Note-se, porém, que o
particípio grego usado no texto está no tempo presente (kaloûntos),
apontando para uma ação atual de Deus. É provável, portanto, que
Paulo tenha em mente aqui um convite de Deus dirigido
continuamente aos que já atenderam ao chamado para a fé.[65] À
luz de outras passagens, esse chamado contínuo consiste num
apelo para que os crentes sejam santos (Rm 1.7) e vivam em paz
com Deus (2Co 5.20). Assim, ao falar de Deus como “aquele que os
chama”, o Apóstolo talvez pretenda despertar a consciência dos
seus leitores para o fato de que o Senhor, vendo seus filhos se
distanciar mais e mais de si em virtude da persuasão dos falsos
mestres (1.6), continuamente os convoca para que retornem a ele,
rejeitando definitivamente o falso evangelho. Se de um lado os
mestres da mentira convidavam os galateus para que seguissem
suas invenções, de outro o Senhor os chamava docemente para
que retornassem à sobriedade e à fé na verdade.
Por impedirem os galateus de obedecer a verdade, atendendo
assim ao chamado de Deus, os falsos mestres se constituíam numa
influência maligna que, aos poucos e num tempo breve, poderia
corromper completamente as igrejas da Galácia. Paulo alerta os
seus leitores para isso citando o conhecido brocardo: “Um pouco de
fermento leveda toda a massa” (9). O Apóstolo usaria o mesmo
adágio mais tarde, ao escrever aos coríntios (c. 55 d.C.), para
ensinar a necessidade de expulsar um homem imoral da igreja (1Co
5.6-8). Ali, assim como no texto em análise, o “fermento” é símbolo
da “maldade e da perversidade” (1Co 5.8). A diferença é que, em
Corinto, a maldade e a perversidade manifestaram-se, entre outras
coisas, através de um chocante desregramento sexual, enquanto na
Galácia revelaram-se por meio do rápido e aberto desvio doutrinário.
[66] Da consideração de ambos os casos pode-se concluir que tanto
a conduta errada quanto o ensino errado, quando admitidos na
igreja, são capazes de, lentamente e de várias maneiras, afetar
todos os seus membros.
Para que continue, portanto, a existir como igreja verdadeira, a
comunidade que se coloca sob esse título não pode tolerar o erro
nem de conduta nem de doutrina, impondo-se a necessidade de
corrigir e, se preciso for, até expulsar aqueles que se sujeitam a
quaisquer desses desvios (1Co 5.2,13). A figura do fermento mostra
que disso depende a pureza e a saúde de toda a igreja. Por isso,
ainda que medidas severas sejam muitas vezes necessárias para
extirpar a influência má e crescente, deve-se lembrar que dessas
medidas depende a sobrevivência do próprio grupo eclesiástico. De
fato, a experiência mostra que a tolerância adotada muitas vezes
em nome de uma noção errada de amor ou por causa do medo de
ser taxado de “radical” tem, no fim das contas, um preço alto. Basta
observar que igrejas que no passado deram pouca importância a
pequenos desvios práticos e teológicos, considerando-os
inofensivos, hoje se vêem marcadas por um quase irremediável
ambiente mundano e também por grosseiras heresias instaladas
nas mentes de seus membros. Eis o efeito do fermento! Sua ação
silenciosa e lenta faz com que os danos que produz se alastrem por
sobre tudo e sejam percebidos tarde demais. Daí a necessidade de
lançá-lo fora com urgência (1Co 5.7), por mais que isso gere
dissabores e desgaste emocional.
Paulo sabia que a doutrina dos falsos mestres judaizantes tinha o
potencial de corromper por completo as igrejas da Galácia. Isso,
porém, ainda não tinha acontecido (5.1-2), e o Apóstolo estava
confiante que seu ensino prevaleceria sobre as falácias dos
legalistas (10). Sabendo que escrevia a crentes genuínos, Paulo
acreditava no arrependimento dos galateus e no seu retorno à Sã
Doutrina. Essa sua confiança era fundamentada “no Senhor”. Isso
significa que Paulo cria que o arrependimento dos seus leitores
seria, em última análise, obra de Deus no coração deles. O Apóstolo
tinha plena certeza em seu íntimo que o Senhor não deixaria seus
filhos vagando pelas sendas da mentira.
Ainda no v. 10, Paulo afirma: ”Aquele que os perturba,[67] seja
quem for, sofrerá a condenação”. O uso do singular não significa
que havia somente um falso mestre atuando entre as igrejas. Em
1.7, 4.17, 5.12 e 6.12 Paulo deixa claro que havia um grupo
presente ali. Certamente, portanto, o singular foi usado para referir-
se ao líder desse grupo ou ao mais influente entre os legalistas.
Sem dúvida, esse indivíduo se apresentava como detentor de
grande autoridade doutrinária, um rabino acima da média que, com
seus ares de grande intelectual associados às suas técnicas de
bajulação, havia conquistado uma posição de alto prestígio entre os
irmãos. Paulo mostra, no entanto, que, independentemente da
posição que ocupava, aquele homem seria castigado. A expressão
“seja ele quem for” indica que sua suposta autoridade não teria valor
algum diante do Deus que o condenaria por desviar as igrejas da
verdade.
A palavra traduzida como “condenação” (kríma) tem aqui o
sentido de punição. No versículo sob análise o termo aparece
associado a um verbo cujo significado é “carregar” (bastázo,
também usado em 6.2,17). É possível, portanto, que Paulo esteja
dizendo que Deus lançaria um grande fardo sobre a vida daquele
homem, desconsiderando totalmente a sua posição de
preeminência. Isso porque, para Deus, o bom ministro não é
necessariamente o que se destaca, mas sim o que é fiel (1Co 4.1-2)
e não se pode deixar impune o homem que, aproveitando-se de sua
posição privilegiada, conduziu o povo santo para longe da verdade,
causando prejuízos incalculáveis para a causa do Reino (1Co 3.17).
Concluindo o parágrafo em análise, Paulo deixa transparecer uma
das acusações que os falsos mestres dirigiam contra ele, a saber, a
de que ele pregava a circuncisão quando isso era conveniente. Ao
que tudo indica, os judaizantes diziam que a mensagem de Paulo
era oscilante, pendendo para este ou aquele lado, dependendo das
circunstâncias e sempre com o intuito de evitar oposição e cair no
agrado de todos. Paulo já se defendera dessa acusação em 1.10.
Agora ele o faz novamente, desta vez demonstrando o quanto ela ia
contra as mais claras evidências. Assim, no v. 11 ele diz: Irmãos, se
ainda estou pregando a circuncisão, por que continuo sendo
perseguido?
É óbvio que Paulo tem em mente aqui, especificamente, a
perseguição dirigida contra ele pelos adeptos do judaísmo. Por que
estes o perseguiam se sua mensagem se ajustava às suas
convicções? Ora, a perseguição contra Paulo por parte dos judeus
era um fato inegável. Aliás, na própria região da Galácia, quando as
igrejas a quem escreve foram fundadas, ao tempo da Primeira
Viagem Missionária, o Apóstolo encontrou terríveis obstáculos entre
os seus compatriotas exatamente porque sua pregação contradizia
a expectativa reinante entre eles de que o homem pudesse ser
justificado pelas obras da Lei, e enfatizava unicamente a
necessidade da fé em Cristo (At 13.49-50; 14.1-2). Logo, os próprios
galateus tinham sido testemunhas da perseguição que Paulo sofrera
quando anunciou pela primeira vez o evangelho entre eles (At
14.19-20) e puderam perceber o quanto sua mensagem incomodava
os adeptos do judaísmo. Como agora podiam crer que ele era um
pregador que mudava o conteúdo do seu discurso a fim de evitar
problemas com os supostos seguidores de Moisés?
É verdade que Paulo tinha grande disposição em evitar ferir os
escrúpulos dos judeus e, assim, criar barreiras desnecessárias ao
anúncio do evangelho (At 16.1-3). Contudo, esse modo de agir
estava muito longe de ser uma forma de anunciar a necessidade da
circuncisão como os falsos mestres diziam que Paulo estava
fazendo. A perseguição que o apóstolo sofria era evidência de que
não era esse o caso, pois se sua mensagem incluísse a salvação
pela guarda da Lei, o “escândalo da cruz” cessaria.
“Escândalo” (skándalon) significa, literalmente, armadilha. É uma
palavra usada no NT para fazer referência ao incitamento ao pecado
(Mt 16.23; 18.7; Rm 16.17). A partir desse significado básico, o
sentido se estende a ponto de abranger qualquer coisa que cause
repulsa ou reprovação. Esse é o sentido adotado no v. 11.
“Escândalo da cruz” é, portanto, a indignação que a mensagem da
cruz gera. De fato, para o judeu, essa mensagem causava
repugnância como algo que induzia os outros ao erro, a tal ponto
que incitava sua oposição (1Co 1.23). Se Paulo pregasse a
circuncisão, essa repulsa deixaria de existir; o escândalo cessaria e
com ele a perseguição. Ora, a constante inimizade dos judeus
contra Paulo era a prova de que isso jamais tinha acontecido.
Naturalmente, acusações tão absurdas contra Paulo geravam em
seu íntimo a mais intensa indignação. Por isso, com mordaz ironia
ele termina o parágrafo insurgindo-se abertamente contra seus
covardes caluniadores (12). O Apóstolo se refere a eles como
pessoas que provocam tumulto e agitação. Em 1.7 e 5.10 os
mestres judaizantes já foram descritos como pessoas que
perturbam. Agora, outro verbo é usado (anastatóo), cujo sentido é
semelhante. De fato, Paulo sugere que os mestres legalistas eram
instigadores de tumulto. Sendo assim, ironicamente faz votos de
que aqueles homens que eram tão radicalmente afeiçoados à
circuncisão até o ponto de conduzir a igreja à rebeldia, também
fossem radicais na realização do ritual e se castrassem de uma vez
por todas![68] Diziam que ele pregava a circuncisão. Eis aí,
portanto, a circuncisão que Paulo prega! Que os mentirosos agora
façam uso dela.
A reação de Paulo diante da mentira que tentava corromper o
evangelho e também sua própria reputação pode parecer
demasiadamente severa. No entanto, aprendemos na Escritura que
na defesa da verdade, ainda que deva predominar a mansidão no
coração dos seus expoentes (2Tm 2.24-25; 1Pe 3.15-16), há
situações que exigem a tomada de atitudes mais rígidas. Nos
escritores do NT essa rigidez aflora sempre que a paz, a pureza e a
sã doutrina são fortemente ameaçadas, colocando a igreja em
constante e real risco de destruição (1Co 3.1-3; 5.13; Tt 1.10-13; Tg
4.4; 2Pe 2.1ss; 3Jo 9-10).

O AMOR É O CUMPRIMENTO DA LEI


GÁLATAS 5.13-15

13. Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não


usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao
contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor.
14. Toda a Lei se resume num só mandamento: “Ame o seu
próximo como a si mesmo”.
15. Mas se vocês se mordem e se devoram uns aos outros,
cuidado para não se destruírem mutuamente.

O convite para crer em Cristo é uma vocação para ser livre não
só do mundo, do pecado e da perdição, mas também do fardo que a
Lei Mosaica impõe aos que tentam viver sob suas determinações
(5.1). Essa é a lição que Paulo repisa em toda a Carta aos Gálatas.
Contudo, certamente em virtude das acusações que lhe estavam
sendo dirigidas de pregar uma mensagem que induzia os crentes ao
desregramento, o Apóstolo vê nesta altura, a necessidade de
apresentar um contrapeso. Assim, passa a ensinar que a liberdade
a que o crente foi chamado não implica uma vida em que são dadas
asas às inclinações naturais (1Pe 2.16). Antes, essa liberdade deve
conduzir a uma forma nova de escravidão: a escravidão do amor.
Paulo ensina, então, que em vez de usar a liberdade cristã para
servir suas próprias paixões, o crente deve usá-la para servir
amorosamente aos seus irmãos (13. Vd. tb. 1Co 8.9,13).
É preciso, portanto, compreender que a pureza e o amor são as
cercas da liberdade do crente. É somente dentro desses limites que
a liberdade se mantém saudável e verdadeira, sendo certo que ao
ultrapassar tais fronteiras, ela se desfigura, transformando-se em
escravidão ao pecado (Jo 8.34; 2Pe.2.17-19).
A ênfase sobre o amor aos irmãos é notável no parágrafo em
análise. Paulo deixa transparecer com isso o fato de que os crentes
da Galácia não tinham apenas problemas doutrinários. Eles também
tinham sérios problemas de relacionamento, havendo terríveis
atritos entre os crentes. Fica evidente no texto que na Galácia as
igrejas acolhiam falsos mestres e feriam verdadeiros irmãos! Por
isso, Paulo, além de mostrar que a liberdade que Cristo dá deve
conduzir ao amor que se dispõe ao serviço dos santos, também
mostra que o dever de amar consta da própria Lei como uma ordem
que resume todos os demais mandamentos (14).[69] É óbvio que a
menção da Lei aqui não é despropositada. Paulo está escrevendo a
pessoas que diziam ter os preceitos mosaicos em alta conta. Na
verdade, é como se dissesse: “Vocês realmente querem cumprir a
Lei? Muito bem. Então amem-se uns outros, pois toda a Lei se
resume nesse mandamento e, curiosamente, ele não tem recebido a
atenção devida por parte de vocês que se apresentam como
zelosos cumpridores das determinações de Moisés!”
No v. 15 percebe-se o grau de atrito que havia entre os crentes
galateus. Ao usar os verbos “morder” (dákno) e “devorar”
(katesthío), o Apóstolo sugere a figura de animais selvagens
brigando ferozmente entre si, cada qual tentando brutalmente
estraçalhar e destruir o outro, em meio à completa balbúrdia, gritos
e confusão. É claro que a figura sugerida por Paulo tem um toque
de exagero com o intuito de dar maior impacto à admoestação. No
entanto, considerando a lista das “obras da carne” constante de
5.19-21, bem como a exortação de 5.26, parece certo que nas
igrejas da Galácia existiam chocantes problemas de inimizade.
A partir disso tudo, é fácil concluir que o ministério dos mestres
legalistas, com sua ênfase sobre uma religião mecânica e
cerimonialista, conduzia os homens ao apego a meras formalidades
exteriores. Assim, os crentes não davam atenção às virtudes
espirituais e jamais as cultivavam. O resultado era a divisão e a
discórdia, pois os vícios da alma de uma pessoa fatalmente são
sentidos por aqueles que estão ao seu redor. Esse fato pode ser
verificado em qualquer grupo social. Aliás, é curioso perceber na
atualidade, que, tal como na Galácia, igrejas apegadas a um sem
número de regras são verdadeiros palcos de intrigas, provocações e
calúnias. A religiosidade puramente externa consome totalmente o
tempo e a atenção, não deixando espaço para o cuidado da
espiritualidade interna. Ora, quando se descuida do coração, ele
passa a produzir espinhos que cedo ferem os que se aproximam.
Paulo alerta que esse estado de coisas, com as brigas que gera,
fatalmente conduz à destruição de todos, ou seja, a feridas
incuráveis em indivíduos a ao fim da igreja como um núcleo cristão
de comunhão e testemunho (Jo 13.35).

A VIDA SOB O CONTROLE DO ESPÍRITO


GÁLATAS 5.16-26
16. Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum
satisfarão os desejos da carne.
17. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o
Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um
com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam.
18. Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão
debaixo da Lei.
19. Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade
sexual, impureza e libertinagem; 20. idolatria e feitiçaria;
ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções
21. e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu os
advirto, como antes já os adverti: Aqueles que praticam
essas coisas não herdarão o Reino de Deus.
22. Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência,
amabilidade, bondade, fidelidade, 23. mansidão e domínio
próprio. Contra essas coisas não há lei.
24. Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne,
com as suas paixões e os seus desejos.
25. Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito.
26. Não sejamos presunçosos, provocando uns aos outros e
tendo inveja uns dos outros.

O remédio para os graves conflitos interpessoais que agitavam as


igrejas da Galácia é apresentado por Paulo no v. 16. As palavras
“por isso digo” (légo dé indicam que o que está para ser dito é a
solução para o problema descrito no v. 15. Assim, segundo Paulo, a
única meio de superar aquela forte inimizade que havia entre os
crentes galateus era a submissão à influência do Espírito Santo.
O Apóstolo descreve essa forma de viver como “andar no
Espírito’ (pneúmati peripateîte). O significado básico dessa
expressão, conforme já sugerido, é um caminhar em que o indivíduo
permite que o Espírito de Deus controle suas reações e guie a sua
vontade (Veja tb. v.18).[70] O homem que se dispõe a isso diz “não”
para suas inclinações pessoais (Lc 9.23) e “sim” para as orientações
do Espírito de Deus (Rm 8.5).
Frise-se que só os cristãos podem dispor dessa maneira de viver,
uma vez que somente neles o Espírito Santo habita, apontando-lhes
o modo de proceder (Rm 8.9,14). Deve também ficar claro que
andar no Espírito não é uma experiência mística, em que o crente
tem sua personalidade anulada, vivendo como que num êxtase.
Antes, trata-se de um estilo de vida a que o cristão se submete
voluntária e conscientemente, sabendo que não existe outra
maneira pela qual seja possível viver o cristianismo de modo real e
satisfatório (Rm 8.8).
O que vem em decorrência do andar no Espírito é uma conduta
em que a carne, ou seja, a inclinação pecaminosa do individuo, não
é satisfeita, ou seja, tal tendência é como que mortificada (Rm 8.13).
É claro que o Apóstolo não está dizendo aqui que o submeter-se ao
controle de Deus levará o crente a uma vida sem pecado. A própria
experiência de Paulo mostra que esse ideal é impossível neste
mundo (Rm 7.15-25). Porém, é fora de discussão que o crente que
se sujeita às orientações e influência do Espírito Santo não vive sob
o domínio de suas inclinações naturais. Estas, é claro, não
desaparecem num crente assim, mas também não são capazes de
tomar as rédeas de sua vida e ditar-lhe a conduta. No cristão que
vive pelo Espírito, o pecado mostra-se presente, perturbando-o,
entristecendo-o e contrariando sua vontade, mas isso nunca até o
ponto de estabelecer-se no centro de sua vida, reinando soberano
(Rm 6.12-14).
Dando seguimento ao seu ensino, Paulo destaca que há no
íntimo do cristão uma verdadeira batalha entre sua natureza
pecaminosa e as orientações do Espírito Santo que nele habita.
Conforme o ensino do Apóstolo, de um lado há as inclinações
naturais tentando determinar a conduta do homem já regenerado,
enquanto de outro lado há a atuação do Espírito que insiste em
guiar a vida daqueles que pertencem a Deus (17). Paulo diz que
essa batalha travada no âmbito da vontade faz com que as decisões
morais dos crentes nunca sejam absolutamente livres. Antes,
sempre resultam ou dos impulsos carnais ou da obra do Espírito de
Deus.
Deve ficar claro que, com a frase “... de modo que vocês não
fazem o que desejam” (NVI), Paulo não está dizendo que o crente
não tem vontade própria. Antes, a frase aponta para o fato de que a
vontade moral do cristão sempre sofre influências determinantes.
Com isso o Apóstolo resvala num tema da teologia cristã que tem
sido objeto de calorosos debates: a vontade livre. Ainda que esse
assunto tenha inúmeras ramificações, à luz do texto em análise
parece certo dizer que, no que diz respeito ao cristão, a vontade
moral sempre reage aos impulsos de uma entre duas forças, isto é,
ou o crente toma decisões induzido por suas paixões carnais, ou o
faz sob a direção do Espírito. Em todo caso, sua vontade própria
sempre se expressa no campo da ética respondendo a fatores que a
contrariam, mas que fatalmente a conduzem nesta ou naquela
direção (Rm 7.19; Fp 2.13). Assim, parece que a liberdade plena da
vontade, nos termos como é geralmente entendida, não encontra
suporte para sustentação no ensino paulino.
O fato é que, no crente, a vontade é um misto de bem e mal. Por
isso, não importa o rumo que tome, seu querer sempre será
contrariado. Se optar pelo mal, sentir-se-á frustrado, pois o bem que
ele aprova e no qual tem prazer não será alcançado. Se, por outro
lado, optar pelo bem, terá de fazê-lo dizendo “não” para si mesmo,
ou seja, para aquilo que seu coração naturalmente deseja (Lc 9.23;
1Co 9.27). Assim, enquanto o pecado estiver em seus membros
(Rm 7.23), o cristão jamais poderá dizer que desfruta de plena
liberdade em suas decisões morais.
Paulo sabia que as discórdias existentes nas igrejas da Galácia
(vv. 13-15) eram o resultado indesejado daquela batalha entre os
impulsos da carne a que aqueles crentes estavam dando vazão, e
as orientações do Espírito. Sobre eles recaía, portanto, o dever de
administrar corretamente essas inclinações, refreando a natureza
pecaminosa e submetendo seus desejos aos ensinos do Espírito.
Isso tudo conduz o Apóstolo a uma implicação óbvia: se era ao
Espírito que os galateus deviam sujeição, isso significava também
que, conforme argumenta em toda a carta, seu senhor não poderia
ser a Lei (18). Nesse ponto, é como se o Apóstolo estivesse a dizer:
“Essas brigas que há entre vocês são reflexos do domínio da carne
em suas vidas e só poderão desaparecer se houver submissão às
orientações do Espírito Santo. Esse Espírito, de fato, atua em vocês,
opondo-se às suas inclinações carnais. Ora, se o Espírito de Deus
quer controlar sua vida, é óbvio que sua obediência deve ser a ele e
não às normas da Lei Mosaica, como os mestres judaicos têm lhes
ensinado”.
De tudo isso se depreende o seguinte: há três influências sob as
quais é possível que um crente se coloque. Essas três influências
são: a Lei, a carne e o Espírito.[71] Sob as duas primeiras, o cristão
jamais conseguirá agradar a Deus (Rm 7.9; 8.8) e, para desespero
de Paulo, era exatamente a essas duas que os galateus se
sujeitavam. Já a terceira influência, a do Espírito, esta permanece a
única sob a qual o crente pode realmente fazer a vontade do Senhor
(v.16). Debaixo dela, a força da carne é neutralizada e o cristão é
capacitado sobrenaturalmente a cumprir as justas exigências da Lei,
da forma como Deus requer (Rm 7.6; 8.4).
Nos vv. 19-21, o Apóstolo apresenta uma lista da qual constam
quinze “obras da carne” específicas. Paulo pretende mostrar
vividamente o modo como as inclinações na natureza pecaminosa
se manifestam no dia-a-dia das pessoas que se deixam dominar por
ela. Fica claro aqui, antes de tudo, que a carne induz à realização
de certas obras e que essas obras são facilmente identificáveis. O
termo traduzido na NVI como “manifestas” (fanerá) indica que tais
obras são praticadas sem qualquer discrição, sendo expostas diante
de todos numa chocante demonstração de ausência de escrúpulos.
A lista de obras da carne pode ser dividida em quatro grupos
distintos de pecados. O primeiro deles abrange os pecados de
natureza sexual. Estes são: imoralidade sexual, impureza e
libertinagem (19). O termo traduzido por “imoralidade sexual”
(porneía) abrange todos os tipos de relação sexual ilícita, desde a
fornicação até a prostituição. Já a “impureza” (akatharsía) sugere a
idéia de podridão no íntimo, ou seja, as más intenções na área
sexual ainda que também signifique imoralidade de um modo geral.
Quanto à “libertinagem” (asélgeia) a palavra poderia ser traduzida
como “lascívia” (cf. ARA) ou “sensualidade”. Porém, o termo pode
denotar um comportamento realmente ousado, próprio daquele que
se entrega à licenciosidade, assumindo um modo devasso, impudico
e dissoluto de viver.
O segundo grupo de obras da carne mencionado pelo Apóstolo
pode ser classificado como composto de pecados de natureza
religiosa. Paulo menciona, no v. 20, a idolatria (eidololatría) e a
feitiçaria (farmakeía). A primeira é a adoração de ídolos ou imagens
de falsos deuses.[72] Quanto à feitiçaria, a palavra sugere
inicialmente a prática da magia que faz uso de drogas e poções (a
partir do termo grego temos, em português, a palavra “farmácia”).
Porém, num sentido amplo, “feitiçaria” é qualquer arte de bruxaria,
magia ou encantamentos. A prática popular de “simpatias” insere-se
perfeitamente no conceito que Paulo repugna aqui. Assim também o
uso de drogas no preparo do indivíduo para exercícios mentais
próprios das religiões orientais.
É curioso notar que a natureza pecaminosa também inclina o
homem para a religião falsa e para a superstição. Assim, os atos
cultuais realizados pelos adeptos de qualquer seita idólatra e as
crendices populares não são meros frutos da ignorância, do
costume ou da tradição. Antes, refletem o caráter reprovado de
quem se envolve com elas; um caráter em que a natureza
pecaminosa reina governando a mente e as ações do indivíduo.
Essa é a “psicologia da religião” ensinada por Paulo!
Como é sabido, a sociedade pagã do primeiro século da Era
Cristã era caracterizada tanto por um baixo nível moral como pelo
desvio religioso e, sem dúvida, os leitores da epístola estavam
familiarizados com as formas de comportamento referidas pelo
Apóstolo. Portanto, não há dúvida que, nesse ponto, seu ensino
assume um caráter vívido, pois no contexto em que viviam os
galateus, não faltavam exemplos das coisas até aqui mencionadas.
Assim, ao definir toda essa conduta como carnal, Paulo incita seus
leitores a não adotarem o comportamento próprio da sociedade que
os cercava.
Depois de listar os pecados na área da religião, Paulo prossegue
enumerando os pecados de natureza relacional, isto é, aqueles que
normalmente se insinuam no âmbito do convívio social, destruindo
os relacionamentos interpessoais. Esse grupo concentra o maior
número de pecados (oito, ao todo), certamente porque era
exatamente na esfera da convivência que os galateus tinham mais
problemas (vv. 14-15, 26). São eles ódio, discórdia, ciúmes, ira,
egoísmo, dissensões, facções e inveja (20-21).
O ódio (Lit. “ódios”. Gr. échthrai) não é aqui um mero sentimento.
Trata-se da manutenção de inimizades. O homem carnal considera-
se inimigo de certas pessoas e age como tal, alimentando suas
hostilidades. Na igreja, é o crente que sempre está “de mal” com
alguém; constantemente construindo barreiras entre si e os outros.
Trata-se do homem que tem uma forte inclinação para arrumar
encrencas e geralmente é bem sucedido nesse propósito.
O vocábulo “discórdia” (éris) denota a rivalidade que aflora em
contendas. Discussões verbais (1Co 1.11; Tt 3.9) e provocações (Fp
1.15) são manifestações desse tipo de pecado. Quanto ao ciúme
(zêlos. Daí a palavra “zelo”, em português), seu significado aqui é o
sentimento de inveja, o incômodo que nasce no coração de alguém
quando vê o sucesso, o destaque ou o simples bem estar de outrem
(At 5.17). O invejoso não se conforma com as conquistas de outra
pessoa e, cedo ou tarde, esse seu inconformismo se expressa em
maledicência e oposição. É por isso que Tiago coloca a inveja na
raiz de todas as confusões e coisas ruins que surgem na igreja e em
qualquer outro grupo de pessoas (Tg 3.14-16).
A palavra que vem a seguir é “ira” (Lit. “iras”. Gr. thymoí).
Significa, basicamente, raiva e furor (Lc 4.28-29). Paulo tem em
mente aqui as explosões de cólera, sempre acompanhadas de
gritos, ameaças e ofensas. O homem carnal reage de modo
agressivo bem depressa e por muito pouco. Ele também se orgulha
por ser assim e até se gaba dos ataques que, cheio de ira,
empreendeu contra seus semelhantes nesta ou naquela ocasião.
O próximo item na lista de Paulo é “egoísmo”, que no texto
também aparece no plural (eritheîa). O vocábulo denota a ambição
egoísta, também mencionada em Tiago 3.14-16 como a causa de
tudo o que é ruim nas relações entre os homens. O indivíduo que
pratica esse pecado é aquele que faz as coisas visando à glória
pessoal, em detrimento dos interesses e bem estar dos outros,
chegando mesmo a desrespeitá-los (v. 26). Para ele o cuidado e a
promoção de si mesmo estão acima de tudo e de todos (Fp 2.3-4).
Quanto às dissensões (dichostasíai), estas são as divisões e
partidos que muitas vezes se insinuam até mesmo dentro das
igrejas (Rm 16.17). Já as facções (hairéseis), referem-se a conflitos
de opinião (1Co 11.19). Da palavra grega que aparece aqui surgiu o
termo “heresia”, usado para descrever conceitos doutrinários que
causam cisma dentro da igreja.
A última palavra pertencente à terceira classe de pecados
alistados por Paulo é traduzida como “inveja” (fthónoi). Seu
significado é, basicamente, o mesmo atribuído a zêlos (Veja acima).
O quarto e último grupo de obras da carne abrange os pecados
de desregramento que Paulo especifica mencionando a embriaguez
e as orgias (21).
A embriaguez (méthai) é o uso abusivo da bebida alcoólica. O
cristianismo não ensina a abstinência total do álcool (Jo 2.3-10; 1Tm
5.23)[73], mas reprova a bebedice (Pv 20.1; Is 5.11-12,22; 1Tm 3.2-
3,8; Tt 2.3). Diferentemente da concepção moderna, a Bíblia se
refere à embriaguez como um pecado que impõe a quem o pratica a
necessidade de arrependimento (Rm 13.13-14) e não como uma
doença pela qual o homem não pode ser responsabilizado. Assim,
Paulo alista a bebedice entre as obras da carne, mais
especificamente entre os pecados de desregramento, vendo-a como
um reflexo da busca egoísta e irresponsável pelo prazer que,
inegavelmente, a bebida traz tanto ao paladar quanto aos
sentimentos (Sl 104.14-15; Pv 31.6-7). O beberrão é reprovado por
Deus porque atende aos impulsos de sua natureza pecaminosa que,
na bebida, busca a todo custo o prazer do corpo e o alívio da mente.
Ademais, invariavelmente, o resultado dessa busca descontrolada é
a escravidão ao vício, a miséria (Pv 21.17) e a degradação do
indivíduo (Is 28.7; Ef 5.18).
A mesma busca desenfreada pelo prazer dos sentidos que move
o escravo da bebida também está presente naqueles que se
entregam às orgias. A palavra usada por Paulo aqui (kômoi) denota
um banquete festivo em que as pessoas se entregam à glutonaria e
a todos os tipos de prazer corporal. A orgia sexual compõe o quadro
que a palavra sugere. No ambiente pagão do século I, essas festas
devassas eram comuns (1Pe 4.3), fazendo parte, inclusive, dos
cultos devidos aos deuses.[74]
Com a expressão “coisas semelhantes”, Paulo indica que a lista
de obras da carne aqui apresentada não é exaustiva. Ele também
lembra que já havia falado sobre essas coisas com os galateus
numa outra ocasião, provavelmente ao tempo de sua visita àquela
região (At 14.1-23). Naquela oportunidade, assim como agora, o
Apóstolo advertira a todos que “aqueles que praticam essas coisas
não herdarão o Reino de Deus”. Isso significa que as pessoas que
vivem sob o domínio das obras da carne revelam sua verdadeira
condição espiritual de incrédulos perdidos. Ainda que muitos se
apresentem como cristãos, num discurso que revela conhecimento
das principais doutrinas bíblicas e até certo envolvimento com a
igreja de Deus, o fato é que uma vida onde o pecado reina jamais
experimentou realmente a redenção que Cristo dá. A verdade é que
quem vive no pecado, mostra que nunca foi liberto do pecado e, ao
final, receberá o galardão do pecado (Ap 22.14-15).
Em contraste com as obras da carne, Paulo apresenta o “fruto do
Espírito” (22). Há quem diga que a palavra fruto (karpós) aparece no
singular porque Paulo queria ensinar que as virtudes que vêm
alistadas a seguir surgem todas juntas, como uma coisa só, na vida
do homem espiritual. Isso, porém dificilmente estava na mente do
Apóstolo, mesmo porque seria muito improvável que uma lição tão
importante e surpreendente fosse transmitida por ele de forma
meramente implícita. Ademais, a própria experiência cristã mostra
que as virtudes espirituais nem sempre se desenvolvem
simultaneamente na vida do indivíduo.
Assim, Paulo não tinha nenhuma lição oculta no uso do singular.
Ele queria simplesmente afirmar que a obra do Espírito no crente
resulta num produto e que esse produto se manifesta em virtudes
variadas. A lição principal que Paulo dirige aos galateus com a
menção do fruto do Espírito é que o caráter cristão nasce como
resultado da obra sobrenatural de Deus e não em decorrência de
uma rígida disciplina moral e legalista (Rm 8.4).
A virtude que encabeça a lista de Paulo é o amor (agápe) termo
usado para descrever uma disposição favorável em relação ao
outro, que chega ao ponto do sacrifício, se preciso for, para
beneficiá-lo (2.20; 5.13).[75] O amor é a forma como a fé verdadeira
se expressa (5.6); e os galateus precisavam crescer nessa virtude,
já que o convívio entre eles era marcado por terríveis discórdias
(5.14-15, 26).
Paulo prossegue mencionando a alegria (chará) que é,
basicamente, a doce satisfação que existe em quem tem os anseios
realizados. Desse conceito se depreende que o invejoso é carente
de alegria, posto que se sente frustrado por não ter o que é do
outro. Esse era o caso dos galateus (5.26).
Na Epístola aos Filipenses, Paulo menciona a alegria mais do que
em qualquer outro lugar. Curiosamente, ele escreveu essa carta
quando estava em prisão domiciliar em Roma, o que demonstra que
a alegria que advém da obra do Espírito é uma satisfação
decorrente da consciência de que Deus está atuando e que,
qualquer que seja o rumo das coisas, sua bondade boa e santa
sempre estará por trás de tudo (Fp 2.17). A alegria cristã também
consiste em ter na pessoa e obra de Deus a principal fonte de
vibração e entusiasmo (Fp 4.4).
A terceira virtude alistada como fruto do Espírito é a paz (eiréne),
conceito que contrasta com oito obras da carne mencionadas por
Paulo nos vv. 20-21. Paz, considerada em seu aspecto interior, é
serenidade mental (Fp 4.7). Exteriormente se expressa em
harmonia entre as pessoas (Rm 12.18) e ausência de desordem
(1Co 14.33). Deus é um Deus de paz (Fp 4.9) que nos chamou para
vivermos em paz (1Co 7.15b).
Longanimidade (makrothymía) vem a seguir. Longânimo é aquele
que permanece firme, perseverando mesmo em face dos mais
severos ataques da vida e sendo paciente diante das provocações
dos homens (2Tm 4.2).
O quinto traço do homem que vive no Espírito é a benignidade
(chrestótes), termo usado a princípio para descrever a pessoa que
faz o bem, sendo generosa em seus atos de benevolência. O termo
que vem a seguir, bondade (agathosyne) é quase um sinônimo de
benignidade. Contudo, é bem provável que o apóstolo concebesse
alguma distinção entre as duas palavras. No afã de manter mais
nítida essa distinção, a NVI traduziu chrestótes como “amabilidade”,
ou seja, a postura de quem trata os outros com docilidade, livre de
qualquer aspereza. De fato, há o consenso de que a primeira
palavra se refere mais à atitude de alguém, enquanto a segunda
denota uma carga maior de ação. Essas distinções são relevantes,
pois pode-se encontrar alguém amável que não faz o bem; ou ainda
alguém que faz o bem, mas não é amável. Assim, as duas virtudes
juntas descreveriam o homem dócil que também é pródigo em seus
atos de bondade.
A lista de Paulo prossegue e fé (pístis) é a palavra que vem a
seguir. Considerando, porém, que a fé é um elemento básico nas
relações do homem com Deus, constituindo-se no fator que
possibilita o início da vida cristã (Rm 5.1-2; Gl 3.2), dificilmente
Paulo, no presente contexto, incluiria a fé em Deus na lista em
pauta. Fé em Deus é raiz, não fruto. Por isso, parece correto
entender o termo usado por Paulo como “fidelidade”, aliás, uma
tradução perfeitamente possível. De fato, a palavra πίστις é usada
para descrever a pessoa comprometida e leal (Rm 3.3; Tt 2.9-10).
Assim, certamente Paulo quer ensinar que o homem espiritual é
alguém confiável, incapaz de trair a verdade (especialmente a
doutrinária) e fiel nas suas relações com as pessoas. Os crentes da
Galácia não tinham essa virtude (1.6; 4.14-16).
O vocábulo mansidão (praytes) inicia o v. 23. Manso é o homem
brando, aquele que não é dominado pela ira. Não se trata de
alguém que nunca se irrita, mas da pessoa que não tem o rancor e
a agressividade como marcas distintivas. Cristo, o modelo maior, se
apresenta como manso (Mt 11.29), ainda que sejam notórias as
suas eventuais manifestações severas de reprovação (Mt 21.12-13;
23.33). Andando em mansidão, o crente desestimula a discórdia,
enfraquecendo o império das obras da carne dentro da igreja.
Pondo fim à sua bela lista, o Apóstolo menciona o domínio próprio
(egkráteia) que é o controle das inclinações naturais. Literalmente a
palavra aponta para o ato de agarrar ou segurar o eu, o que requer
do crente certo grau de empenho (2Pe 1.5-6). O domínio próprio se
constitui no avesso do modo de vida dos incrédulos. Ensinar essa
virtude produz grandes incômodos nos homens que vivem dando
plena expressão aos seus instintos naturais (At 24.25).
Evocando o zelo das igrejas da Galácia pela Lei, Paulo, numa
branda ironia, recorda que ninguém transgride os mandamentos ao
praticar as virtudes que ele alistou (23 in fine). Assim, se quisessem
viver sem quebrar a Lei, os galateus tinham que se colocar sob o
domínio e influência do Espírito Santo, crescendo no fruto que esse
mesmo Espírito produz. De fato, em outro lugar, Paulo ensina que o
crente que vive segundo o Espírito tem um procedimento no qual se
percebe o cumprimento substancial das justas exigências da Lei
(Rm 8.4).
O Apóstolo insiste que não é a prática legalista que santifica o
homem. Ele realça que para se livrar do domínio das inclinações do
pecado é preciso, antes de tudo, pertencer a Cristo (24).[76] Isso
não significa que no crente o pecado está morto, mas sim que,
quando passa a pertencer a Cristo, o homem experimenta a
neutralização do poder da carne que, como um homem crucificado,
se vê despojada de sua força.[77] É claro que aquele que pertence
a Cristo ainda comete pecados (1Jo 1.8-10). Contudo, ao crente são
dadas condições de viver de tal modo que a iniqüidade não ocupe
mais o trono de sua vida (Rm 6.12-14). Essas condições advêm da
habitação do Espírito Santo nele.
Resta ao crente agora ser zeloso e submeter-se ao controle do
Espírito que nele está (v. 16). Já vivemos no Espírito, ou seja,
quando passamos a pertencer a Cristo fomos inseridos na esfera de
atuação do Espírito de Deus.[78] Isso é fato consumado. Agora,
porém, é preciso andar no Espírito (24), o que não nos advém como
num passe de mágica, mas sim implica o dever de acolher suas
orientações com perseverança e responsabilidade.
Assim, o crente já está no Espírito, devendo agora andar como
ele determina. Numa palavra, o cristão tem o dever de ajustar sua
vida à nova realidade em que agora se encontra. Tal como o homem
que entrou para o casamento deve conformar sua vida à realidade
de alguém casado, assim também o homem que, pela conversão,
entrou para a vida no Espírito deve andar como alguém controlado
por esse mesmo Espírito.
Na Galácia, essa harmonização entre viver no Espírito e andar no
Espírito ocorreria quando os crentes deixassem de lado o orgulho,
as provocações mútuas e as invejas, o que reforça o ensino de que
para andar no Espírito é necessária consciente e perseverante
sujeição.
Capítulo 6

O EVANGELHO VERDADEIRO E OS DEVERES CRISTÃOS

A verdadeira prática da vida cristã se manifesta na dócil disposição


de restaurar o irmão que caiu, no cuidado em face da tentação, na
análise honesta de si mesmo, na submissão ao controle do Espírito
e na prática do bem. O legalismo, ao contrário, busca apenas a
aprovação do mundo, algo que o crente despreza por ter na cruz de
Cristo todo o seu prazer.

CUIDANDO DOS OUTROS E DE SI MESMO


GÁLATAS 6.1-5
1. Irmãos, se alguém for surpreendido em algum pecado,
vocês, que são espirituais, deverão restaurá-lo com
mansidão. Cuide-se, porém, cada um para que também não
seja tentado.
2. Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim,
cumpram a lei de Cristo.
3. Se alguém se considera alguma coisa, não sendo nada,
engana-se a si mesmo.
4. Cada um examine os próprios atos, e então poderá
orgulhar-se de si mesmo, sem se comparar com ninguém, 5.
pois cada um deverá levar a própria carga.

A partir da análise do Fruto do Espírito em contraste com as


obras da carne descobre-se que a vida cristã tem uma dimensão
marcantemente relacional. O homem espiritual apresenta marcas de
caráter que se manifestam especialmente no trato com as pessoas
ao seu redor. Assim, nas orientações constantes do início do
capítulo 6, Paulo ainda mantém o foco nesse aspecto da vida de
quem anda no Espírito, apontando agora a forma correta de lidar
com o irmão que cai no erro.
No versículo 1 Paulo se dirige aos “irmãos”, ou seja, àqueles que
partilhavam com ele da genuína fé cristã. Como se sabe, nem todos
nas igrejas da Galácia podiam ser classificados desse modo (5.4).
Por isso, o Apóstolo aponta com maior clareza a quem se dirigem as
orientações que está prestes a transmitir.
O parágrafo começa com uma hipótese: “se alguém for
surpreendido em algum pecado” (NVI). É provável que essas
palavras vislumbrem a possibilidade de, na dinâmica dos
relacionamentos entre os crentes, acontecer de um irmão flagrar
outro praticando uma das “obras da carne”. De fato, o verbo que
Paulo usa aqui (prolambáno) traduzido nas bíblias em português
como “surpreender”, aponta fortemente para o sentido de pegar de
surpresa. Há também, contudo, a possibilidade da hipótese referir-
se a alguém que foi pego de surpresa pelo próprio pecado, caindo
repentinamente.[79]
Seja qual for o caso que Paulo tinha em mente, o fato é que a
questão que levanta se refere a alguém que cometeu uma falta. A
palavra que Paulo usa aqui para se referir ao pecado (paráptoma)
significa “passo em falso”. Denota a situação de quem, numa
caminhada, desliza e cai para o lado. Desse modo, tudo indica que
Paulo não está tratando aqui do pecador contumaz ou do homem
obstinado na prática do mal. Antes, tem os olhos voltados para o
crente sincero que, ao longo da jornada, tropeça em virtude do
cansaço, da sua própria fraqueza ou do peso das circunstâncias.
Diante de um irmão nessas condições, os que são “espirituais”
(pneumatikoí), ou seja, os que vivem no Espírito e andam no
Espírito (5.25), mantendo-se debaixo de sua influência e
controle[80], têm o dever de corrigi-lo (katartízo), isto é, atuar como
restauradores de sua vida prejudicada por conta da má conduta. De
fato, corrigir aqui tem o sentido de reparar algo quebrado[81], o que
mostra que um dos deveres mais nobres do crente maduro é
recuperar um irmão que, ao dar um passo em falso, caiu e sofreu
graves danos. Evocando ainda as virtudes do Fruto do Espírito,
Paulo ensina que esse trabalho de recuperação deve ser feito com
espírito de brandura, ou seja, com a mansidão (praytes) que
mencionou em 5.23.
Os crentes “espirituais”, ou seja, os responsáveis pela
recuperação de um irmão que pecou, não são pessoas livres do
perigo da queda. Por isso, Paulo se dirige, anda no v.1, a esses
irmãos, orientando-os no sentido de evitar qualquer tentação que os
leve à prática do mal. Segundo Paulo, o crente deve vigiar (skopéo),
ficar atento, observar cuidadosamente as circunstâncias ao seu
redor e, dessa forma, detectar os momentos, os lugares e as áreas
em que a tentação pode surgir para, então, evitá-la. Aliás, muitas
vidas não teriam se arruinado se tivessem sido mais cautelosas,
detectando as fontes de tentação e fugindo delas. Assim, os
crentes, mesmo os mais maduros (aliás, lembremos que Paulo se
dirige exatamente a esses aqui), não devem se expor ao perigo. A
vigilância é o preço que se paga pela pureza.
No v. 2 Paulo ensina que na igreja as pessoas devem levar as
cargas umas das outras. Carga (báros) sugere um peso excessivo,
difícil de carregar e capaz de prostrar quem está sob ele. O contexto
aqui aponta para os fardos que um irmão carrega em decorrência de
sua fraqueza moral e do pecado em que caiu. Os galateus,
preocupados em observar aspectos exteriores da Lei Mosaica,
deixavam de lado o cuidado fraternal (5.15,26). Paulo, então,
oferece a eles que tanto valorizam a Lei, uma outra lei: a Lei de
Cristo. De fato, o Senhor enunciou aos seus discípulos um novo
mandamento. Ele disse: “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se
uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos
outros.” (Jo 13.34. Veja-se tb. Jo 15.12,17). Para Paulo o
cumprimento dessa ordem transcende o mero sentimento de
simpatia e afeto. Cumpri-la implica fazer algo. Por isso, o Apóstolo
mostra aqui que uma forma de obedecer ao novo mandamento de
Cristo é tomar sobre si uma parte do peso do irmão que sofre em
virtude da falta que cometeu.
Levar essas cargas, porém, requer a atitude humilde de um servo
(5.13) e, infelizmente, muitos crentes pensam de si mais do que
convém, de modo que, movidos por essa ilusão, negam-se a se
humilhar na prática de servir um irmão fraco. Antes, mostram-se
orgulhosos, sentem-se superiores e se tornam rígidos e cruéis no
trato com quem caiu. É a esse grupo de crentes que Paulo se refere
no v. 3, dizendo que o indivíduo que tem uma visão muito elevada
de si mesmo dentro da igreja, está se enganando, uma vez que não
é nada, ou seja, não está acima de ninguém, posto que todos
estamos sujeitos à queda..
Os falsos mestres tinham a atitude soberba descrita acima, tanto
que instigavam os galateus a se circuncidarem justamente para que
fossem aplaudidos pelo mundo e se gloriassem no seu sucesso em
conquistar prosélitos (6.12-13). Pessoas com essa postura, jamais
se colocam no mesmo nível do irmão que tropeçou, achando-se
maiores do que ele e pensando pertencer a uma elite espiritual
dentro da igreja. Tratam o que caiu com desprezo e se gloriam por
não terem sido fracos como ele. Ademais, de sua parte não fazem
nada para recuperá-lo, notando-o apenas com o propósito de se
gloriar por não ter agido de forma semelhante. Paulo diz a essas
pessoas no v. 4 que se alguém quiser gloriar-se deve fazê-lo ao dar
provas de seu próprio empenho na vida cristã, o que, aliás, abrange
socorrer os irmãos feridos.
O v. 5 parece entrar em choque com o v. 2. Porém, a contradição
é apenas aparente. No v. 2 Paulo fala sobre o dever de ajudar o
irmão que está curvado sob o peso de dificuldades excessivas, as
quais lhe sobrevieram por causa de um desvio moral. Já no v. 5 ele
lembra aqueles que se apresentam como superiores e nada fazem
que cada um tem seu fardo, ou seja, seu conjunto de fraquezas
pelas quais é pessoalmente responsável. Em vez de observar as
dos outros e se gloriar nelas, o crente deve cuidar das suas, posto
que é por estas e não por aquelas que há de responder um dia
diante de Deus. Basicamente, portanto, as cargas mencionadas no
v. 2 são os problemas de um irmão decorrentes do seu tropeço,
enquanto que o fardo mencionado no v. 5 são as fraquezas que
cada um tem em sua vida e com as quais tem o dever intransferível
de lutar.
A COLHEITA FUTURA
GÁLATAS 6.6-10

6. O que está sendo instruído na palavra partilhe todas as


coisas boas com aquele que o instrui.
7. Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que
o homem semear, isso também colherá.
8. Quem semeia para a sua carne, da carne colherá
destruição; mas quem semeia para o Espírito, do Espírito
colherá a vida eterna.
9. E não nos cansemos de fazer o bem, pois no tempo
próprio colheremos, se não desanimarmos.
10. Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem
a todos, especialmente aos da família da fé.

A benignidade dos crentes não deve ser direcionada unicamente


àqueles que são vítimas quebrantadas do seu próprio pecado. Paulo
sabia que a religiosidade mecânica e exterior do legalismo tinha
esfriado não só o afeto dos crentes nas suas relações entre si, mas
também o amor pelo próprio Apóstolo, seu verdadeiro instrutor
espiritual (4.12-16). Para piorar a situação, os falsos mestres
infiltrados naquelas igrejas trabalhavam intensamente para colocar
os galateus contra Paulo (4.17). Incitado por esses fatos tão
preocupantes, no v. 6 o Apóstolo exorta os crentes acerca do dever
da generosa benevolência em prol dos verdadeiros mestres da
Palavra.
O texto ensina que os que são ensinados na Palavra devem
compartilhar todas as coisas boas com aqueles que os instruem.
Aquilo que é bom a que Paulo se refere aqui tem um sentido tanto
moral como material. Ele quer, portanto, que os galateus aprendam
a oferecer aos mestres da Palavra sua amizade, hospitalidade e
simpatia, bem como recursos para o sustento físico que possibilitem
um envolvimento maior com o ensino da igreja (1Co 9.7-14; 1Tm
5.17-18).[82]
Toda a exortação de Paulo referente ao dever de praticar o bem
tanto em face dos irmãos comuns como dos ministros da Palavra
deve ser acolhida porque os atos dos homens se assemelham a
uma semeadura (7). A tendência das pessoas é acreditar que suas
ações são estéreis, que o que fazem não é capaz de gerar nada
mais tarde. Paulo sabia que o coração humano facilmente se
convence de que as coisas que o homem realiza não terão
implicações futuras. Por isso diz: “Não se deixem enganar!”
De fato, até mesmo a experiência humana mostra em certa
medida que nossos atos são como sementes boas ou más, sendo
tolice pensar que, ao lançá-los ao solo, nada poderão produzir. Cair
nesse engano é zombar de Deus. Isso porque foi o próprio Senhor
quem estabeleceu uma lei moral no universo, de acordo com a qual
a conduta ética é capaz de gerar resultados bons ou maus para o
próprio ser humano que a adota. Essa “lei” mostra o quanto Deus é
justo e o quanto se inclina a recompensar o bem e punir o erro.[83]
Assim, quando alguém despreza essa verdade, está com isso
dizendo que o modo como Deus diz que administra a história, na
realidade não funciona, ou que essa administração nem mesmo
existe, sendo perfeitamente possível praticar o mal e viver para
sempre desfrutando de paz e segurança. É essa atitude que Paulo
descreve como zombar de Deus, enfatizando em seguida que o
homem colherá sim o que, ao longo de sua vida, plantou.
Paulo prossegue apontando o perigo que existe para quem
“semeia para a sua carne” (8). Evidentemente, semear para a carne
consiste em cultivar na vida os pecados próprios da natureza
pecaminosa, os quais foram alistados em 5.19-21. Aqueles que, no
dia-a-dia, “plantam” os atos que suas próprias paixões estimulam,
são os que semeiam para a carne. O Apóstolo adverte no sentido de
que a corrupção será o fruto colhido por essas pessoas. A palavra
que usa aqui (fthorá) significa ruína e destruição e é usada no Novo
Testamento tanto para se referir à vida de decadência que caminha
para a morte em meio à desolação temporal (Rm 8.20-21; 2Pe
2.12), como para descrever a degradação moral (2Pe 1.4; 2.19).
Paulo está dizendo, portanto, que quem cultiva as obras da carne
arruinará sua vida e entrará em acelerado declínio moral.
Por outro lado, “quem semeia para o Espírito”, ou seja, quem
cultiva as virtudes mencionadas em 5.22-23, as quais são
reconhecidas como obras do Espírito Santo na vida dos salvos,
desse mesmo Espírito “colherá a vida eterna”. Uma interpretação
apressada diria que, à luz desse texto, a salvação é mediante o
cultivo do fruto do Espírito e não unicamente pela fé. Esse
entendimento, porém, iria de encontro ao ensino principal de Paulo
na própria Epístola aos Gálatas (3.22). Na verdade, é bem possível
que o Apóstolo esteja falando aqui sobre o desfrute presente das
alegrias da eternidade. Se for esse o caso, o texto diz que quem
plantar atos de retidão e bondade colherá, desde já, as bênçãos da
vida feliz que aguarda o crente no céu. Que a vida eterna pode ser
experimentada em certa medida mesmo agora, depreende-se
também de João 4.14; 5.24; 17.3; e 1Timóteo 6.12.
Uma outra possibilidade é considerar o texto em análise sob a luz
de Romanos 6.22, que diz: “Mas agora que vocês foram libertados
do pecado e se tornaram escravos de Deus, o fruto que colhem leva
à santidade, e o seu fim é a vida eterna.” De acordo com esse texto,
a vida santa chegará à eterna felicidade. Porém, a vida santa não é
a causa de se chegar lá. A causa é a libertação do pecado que,
como se sabe, é pela fé (Rm 5.1). Essa libertação do pecado pela
fé, produzirá santidade e o fim de tudo será o céu. Talvez Paulo
tivesse isso em mente ao escrever o v. 8. Seja como for, não resta
dúvida de que o homem que se preocupa em produzir em seu dia-a-
dia os traços do genuíno caráter cristão experimentará desde já um
vislumbre da alegria celeste e, sendo esses traços uma prova de
que é redimido pela fé, entrará afinal para o descanso eterno na
cidade de Deus.
A certeza de que nossos atos produzirão resultados bons ou
maus para nós mesmos deve estimular o crente a não se cansar de
fazer o bem (9). De fato, a prática da virtude pode produzir fadiga e
desânimo, especialmente quando há ingratidão, falta de
reconhecimento, oposição e poucos resultados. Paulo, contudo,
recorda seus leitores de que a colheita é inevitável, ainda que não
saibamos ao certo o seu tempo. Ele afirma ainda, com o propósito
de encorajar seus leitores, que ceifaremos se não desfalecermos.
É inegável que a ceifa a que Paulo se refere aqui tem uma
conotação escatológica. Os crentes fatalmente colherão os
resultados dos seus atos no dia futuro, quando estiverem diante de
Deus, e só receberão coisas boas se não desistirem. Isso mostra
que, ainda que a vida eterna seja dada pela fé, o desfrute dos
galardões de Deus depende daquilo que o crente faz por meio do
seu corpo (2Co 5.10). É por isso que há no v.10 uma nota de
urgência: “enquanto temos oportunidade”. Paulo sabia que o tempo
de plantar é hoje. Diante do tribunal divino não teremos mais como
semear. Lá somente ceifaremos, desde que, neste mundo,
perseveremos na prática do bem.
O v. 10 termina enfatizando que todos devem ser alvo dos gestos
de bondade dos crentes, mas de forma especial os irmãos na fé. De
fato, priorizar os irmãos no socorro dos necessitados e em outros
gestos de amor mostra ao mundo a nossa unidade e faz com que
sejamos conhecidos como discípulos de Jesus (Jo 13.35).
O QUE REALMENTE IMPORTA
GÁLATAS 6.11-18

11. Vejam com que letras grandes estou lhes escrevendo de


próprio punho!
12. Os que desejam causar boa impressão exteriormente,
tentando obrigá-los a se circuncidarem, agem desse modo
apenas para não serem perseguidos por causa da cruz de
Cristo.
13. Nem mesmo os que são circuncidados cumprem a Lei;
querem, no entanto, que vocês sejam circuncidados a fim de
se gloriarem no corpo de vocês.
14. Quanto a mim, que eu jamais me glorie, a não ser na cruz
de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo foi
crucificado para mim, e eu para o mundo.
15. De nada vale ser circuncidado ou não. O que importa é
ser uma nova criação.
16. Paz e misericórdia estejam sobre todos os que andam
conforme essa regra, e também sobre o Israel de Deus.
17. Sem mais, que ninguém me perturbe, pois trago em meu
corpo as marcas de Jesus.
18. Irmãos, que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja
com o espírito de vocês. Amém.

A importância de tudo o que Paulo diz às igrejas da Galácia se


reflete no tamanho das letras que escreve[84] e no fato de compor a
carta de próprio punho, isto é, sem o auxílio de um secretário que
poderia, conscientemente ou não, alterar em um grau ou outro o que
fosse ditado (11). Ele considera tão sério o problema dos galateus
que não quer correr o risco de transmitir com pouca precisão o que
tem em mente. Por isso, faz uso de uma caligrafia clara e evita
intermediários.
Não é, porém, somente na forma que Paulo compõe sua carta
que ele mostra quão preocupado está com os crentes da Galácia.
Ele também revela seu cuidado chamando a atenção de seus
leitores para o fato de que os falsos mestres eram pessoas
interesseiras, que procuravam obter a aprovação dos outros através
da ostentação de sinais exteriores, mais especificamente a
circuncisão.[85] A real intenção deles ao induzir os gentios da
Galácia a se circuncidarem era receber o aplauso dos judeus
evitando, assim, a perseguição (12).
Sabe-se que ao tempo do surgimento do Cristianismo, os judeus
foram seus primeiros perseguidores. Uma das razões disso era a
pregação liberal dos apóstolos que insistiam em afirmar que a
justificação não depende da observância dos preceitos mosaicos,
mas sim da fé no Cristo crucificado (At 13.38-39). Ora, os mestres
judaizantes que atuavam entre os gálatas não estavam dispostos a
sofrer a oposição dos seus compatriotas que se escandalizavam
com a pregação da cruz (1Co 1.23; Gl 5.11). Estavam, isto sim,
interessados em agradá-los. Segundo Paulo, esses eram os reais
motivos pelos quais defendiam tanto a circuncisão. Na verdade eles
não eram zelosos da Lei, mas sim da sua própria comodidade.
A maior prova disso era que eles próprios não guardavam a Lei
(13). Aliás, nenhum legalista, nem mesmo o mais sincero, jamais
conseguiu guardá-la (At 15.10). O discurso dos mestres da Galácia
era apenas uma tentativa de obter prosélitos entre os gentios,
circuncidando-os e recebendo depois o louvor dos israelitas, um
louvor decorrente do fato de terem induzido gentios a se
submeterem a práticas judaicas.
Paulo, por sua vez, tinha essas intenções mui longe de sua mente
(14). Ele não buscava satisfação e alegria na aprovação dos
homens (1.10). Era na cruz de Cristo que tinha a base da sua
exaltação e da sua exultação (Fp 3.3), pois na cruz há provisão para
que o homem seja justificado, já que nela Cristo se fez maldição em
nosso lugar (3.13). Ademais, graças aos benefícios oriundos da
obra de Cristo na cruz, um rompimento ocorreu. Paulo e o mundo
estavam crucificados um para o outro. De fato, a transformação que
advém da fé em Cristo incluíra mudanças no modo de Paulo
considerar a realidade ao seu redor e relacionar-se com ela (2.20-
21; 5.24). Agora o Apóstolo via o mundo como algo desprezível e
repugnante. O mundo, por sua vez, via Paulo da mesma forma.
Sendo alguém que pouco se importava com o aplauso do mundo
em geral e dos seus compatriotas em particular, Paulo não impunha
a necessidade da circuncisão aos convertidos do seu ministério.
Ademais, havia o fato de que a circuncisão não tem qualquer
relevância dentro da aliança do evangelho. Na mensagem dada pelo
Espírito, o que importa é fazer parte da nova criação de Deus (15).
As diferenças entre o Antigo e o Novo Pacto, bem como o fato da
nova criação em Cristo, são mais amplamente tratados por Paulo
em 2Coríntios 3 e 4, onde ele estabelece um forte contraste entre o
Evangelho, (também chamado de “nova aliança” [2Co 3.6],
“ministério do Espírito” [2Co 3.8] e “ministério da justiça” [2Co 3.9]) e
a Lei Mosaica (também chamada de “letra” [2Co 3.6], “ministério da
morte” [2Co 3.7], “ministério da condenação” [2Co 3.9] e “antiga
aliança” [2Co 3.14]). Segundo Paulo, o pacto mosaico, outrora
glorioso, “já não resplandece” diante da glória do Novo Pacto (2Co
3.10). Contudo, o brilho do evangelho não pode ser percebido por
todos porque um véu foi posto no coração dos judeus (2Co 3.14-16)
e Satanás cega os homens em geral (2Co 4.3-4). Para que essa
condição espiritual seja alterada é preciso um ato criador de Deus.
Assim, em 2Coríntios 4.6, Paulo ensina que da mesma forma como
Deus, por sua palavra, fez brilhar a luz ao tempo da criação do
universo, assim também, ao criar agora um novo homem, ele faz
com que sua luz brilhe nas trevas dos corações humanos,
capacitando as pessoas a ver a glória de Deus que está em Cristo.
De fato, tanto para criar como para salvar, Deus diz “haja luz!” É por
causa desse paralelo que o Apóstolo, em Gálatas 6.15, chama o
crente de nova criação (Veja-se tb. 2Co 5.17).
Dentro da Nova aliança, portanto, a circuncisão é absolutamente
irrelevante (Rm 2.28-29; 1Co 7.19; Gl 5.6). Só o livramento das
trevas, com o conseqüente surgimento de um novo homem é que
importa. Paulo, aliás, expressa o desejo de que a paz e a
misericórdia de Deus estejam sobre todos os que andarem
conforme essa “regra” (16). A palavra usada aqui (kanón) tem o
sentido de “padrão” ou de “limite”. Desse modo, o Apóstolo deseja
paz e misericórdia às pessoas que adotam como princípio ou
padrão de conduta a verdade de que tudo o que importa é ser nova
criação, gloriando-se nisso e não em rituais exteriores. Refere-se,
assim, àqueles que encontram motivo de exaltação e base para o
comportamento dentro dos limites da verdade de que são nova
criação, e não buscam glórias além dessa fronteira (Fp 3.3), como
faziam os falsos mestres da Galácia.
O desejo de Paulo de que Deus abençoe os homens com paz e
misericórdia não se estende apenas aos que conheceram a
realidade da nova criação. Ele pede as mesmas bênçãos para todo
o Israel de Deus (16 in fine). Se a igreja precisava de paz e de
misericórdia, considerando suas perturbações internas (5.10,15) e
os perigos externos (6.12), Israel também carecia dessas bênçãos.
Paulo via os judeus em geral como o povo de Deus (Rm 9.3-5;
11.28), um povo para o qual Deus tem reservado uma herança (Rm
11.25-27; Ef 3.6). Por isso, o fato de rejeitar a circuncisão como
requisito para a justificação não significava desprezo pela nação
israelita. De fato, o apóstolo estava longe de menosprezar seu
próprio povo. Antes, sofria em face da sua incredulidade (Rm 9.1-3)
e orava continuamente, desejando que ele conhecesse a paz e a
misericórdia de Deus que podem ser provadas pela fé em Cristo, o
Messias já vindo.
Concluindo, Paulo expressa o desejo de que deixem de perturbá-
lo (17). O Apóstolo estava sendo incomodado com questionamentos
referentes à sua autoridade apostólica (1.1; 2.8-10), com acusações
de mudar sua mensagem de acordo com as circunstâncias (1.10;
5.11) e com denúncias de anunciar um evangelho liberal que
encorajava a vida desregrada (5.13,16) e tirava dos adoradores de
Deus as suas obrigações ritualistas, em especial a circuncisão (5.2).
Uma vez que os mestres legalistas da Galácia tanto prezavam a
marca corporal da circuncisão e só deixavam em paz quem a
recebia, Paulo afirma ter marcas no corpo muito superiores, de
modo que deveriam parar de molestá-lo. Ele tinha as marcas de
Cristo: cicatrizes (stígma) adquiridas no trabalho missionário e que
os galateus conheciam muito bem (At 14.19; 2Tm 3.11). Paulo as
chamava de “marcas de Jesus” porque entendia que o sofrimento
dos servos do Senhor em prol do seu trabalho é uma espécie de
complemento das torturas do próprio Senhor, dada a união que há
entre Cristo e seu povo (Rm 8.17; 2Co 1.5; Fp 3.10; Cl 1.24).
Ele encerra a epístola suplicando que os galateus experimentem
a graça de Cristo em seu espírito (18). De fato, era nessa esfera que
a graça deveria atuar a fim de livrar os crentes da mentira, das
discórdias e das inclinações carnais que reinavam entre eles. O fato
de chamá-los de irmãos realça que se sente fraternalmente unido a
eles e que tem consciência de que escreve a pessoas que
pertencem à família da fé. Sem dúvida, com essas breves palavras
de docilidade e simpatia, espera criar nos galateus uma disposição
favorável ao acolhimento das verdades consubstanciadas nessa
magnífica carta.

APÊNDICE
O CURSO POSTERIOR DO LEGALISMO
JUDAICO-CRISTÃO

Se 48 A.D. for a data aceita para a composição da Carta aos


Gálatas, então, ao escrevê-la, a luta de Paulo contra o legalismo
estava apenas começando. De fato, o capítulo 15 de Atos narra
como, naquele mesmo ano, reuniu-se um concílio em Jerusalém
para tratar exatamente da relação dos crentes gentios com a Lei
Mosaica, mais especificamente com a circuncisão. A causa direta da
convocação do concílio foi a visita desautorizada de alguns judeus
convertidos de Jerusalém à igreja de Antioquia da Síria. Eles
passaram a ensinar ali que se os gentios que receberam o
evangelho não recebessem também a circuncisão, não poderiam
ser salvos (At 15.1). Paulo e Barnabé se opuseram a eles e, não
sendo possível resolver a questão, foram até Jerusalém para
discutir o assunto com os apóstolos e presbíteros (At 15.2).
Em meio às manifestações de um forte partido legalista presente
na própria igreja de Jerusalém, a liderança se reuniu para examinar
a questão (At 15.4-6). Ao longo dos debates foi decisiva a
participação de Pedro que narrou sua experiência como o apóstolo
que Deus usou para abrir a porta do evangelho aos gentios sem
obrigá-los a se submeter a nenhum fardo legal (At 15.7-11).
Os relatos das maravilhas que Deus tinha feito entre os gentios
ao longo da Primeira Viagem Missionária foram expostos por Paulo
e Barnabé à igreja atenta (At 15.12). Quando terminaram de falar,
Tiago, irmão do Senhor, destacado líder da igreja em Jerusalém,
manifestou seu parecer contrário à visão legalista. Ele sugeriu que
uma carta fosse escrita aos crentes gentios de Antioquia livrando-os
de qualquer obrigação com a Lei Mosaica e orientando-os a tão-
somente evitar certas práticas que, mesmo sendo de segunda
importância, poderiam ferir os escrúpulos dos judeus não crentes,
impedindo-os de receber a genuína fé (At 15.13-21).
O parecer de Tiago foi acolhido por todos (At 15.22). A carta foi
escrita e endereçada aos irmãos de Antioquia, Síria e Cilícia (At
15.23-29). Uma delegação foi nomeada para fazê-la chegar às
mãos dos crentes gentios que, com alegria a receberam (At 15.30-
31). O legalismo judaico-cristão recebera seu primeiro golpe.
As decisões do concílio, porém, não puseram fim definitivo ao
ensino de que a observância da Lei Mosaica é fator essencial à
salvação. Quando escreveu 2 Coríntios, em 57 AD, Paulo ainda
demonstrava sua preocupação em afirmar que os crentes estavam
livres da Antiga Aliança (2Co 3.6-11), apesar do legalismo não
figurar entre os terríveis problemas da igreja coríntia. Também em
sua Carta aos Romanos, datada de 58 AD e, dentre todas, a de
maior conteúdo teológico, o Apóstolo se viu obrigado a corrigir
distorções relativas a essa matéria que, à época, ainda eram
correntes e afirmar a desnecessidade da circuncisão e da guarda da
Lei para a justificação do homem perdido (Rm 4.9-15; 7.1-6).
Ao tempo que esteve em prisão domiciliar em Roma (At 28.16),
Paulo escreveu, em cerca de 61 AD, as famosas “Epístolas da
Prisão” (Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemom). Na carta à
igreja de Éfeso, o Apóstolo toca apenas superficialmente na questão
do livramento da Lei (Ef 2.14-15). Já na Epístola aos Filipenses,
Paulo dirige severos ataques contra o ainda atuante grupo dos
judaizantes, chamando seus partidários de “cães”, “maus obreiros” e
“falsa circuncisão” (Fp 3.2-3) e passando, em seguida, a dizer que
considerava toda a sua trajetória dentro do judaísmo como
repugnante refugo já que a justiça não procede da Lei (Fp 3.4-9).
Na Carta aos Colossenses, Paulo combate uma forma
embrionária de gnosticismo que reunia elementos da Lei Mosaica
(Cl 2.11,16; 3.11) e outros fatores oriundos da filosofia grega e do
paganismo asceta (Cl 2.8, 18, 20-23). A resposta do Apóstolo inclui
a afirmação de que Cristo cancelou as ordenanças que nos eram
prejudiciais ao morrer na cruz do Calvário (2.14).
O legalismo judaico-cristão ainda estava vivo na fase final do
ministério de Paulo. Ele o combate nas “Epistolas Pastorais”,
escritas entre 63 e 66 AD. Ensinos distorcidos acerca da Lei e
práticas legalistas que proibiam o casamento e certos tipos de
alimento preocupavam Paulo quando escreveu sua primeira carta a
Timóteo, cujo ministério então estava centralizado em Éfeso (1Tm
1.5-11; 4.1-5). Tito, por sua vez, ao longo de seu trabalho em Creta
foi relembrado por Paulo que a salvação independe do esforço
humano (Tt 3.5) e recebeu instruções no tocante ao modo como
deveria agir em face de debates inúteis sobre a Lei (Tt 3.9). É
possível que em sua última carta (2Timóteo), escrita em 66 AD,
pouco antes do seu martírio, Paulo se refira a questões acerca da
Lei em 2.14, 23.
Nos últimos anos da década de 60 foi escrita a Epístola aos
Hebreus, de autor desconhecido. Tendo que lidar com o perigo da
apostasia que cercava os crentes hebreus que se viam diante das
aparentes grandezas do judaísmo, o escritor realçou a
transitoriedade da Lei Mosaica (Hb 7.11-12,19,28; 8.6-7,13; 10.9,
etc.), o que indica que a ameaça da sujeição aos preceitos judaicos,
mesmo em suas expressões cerimoniais, ainda estava viva dentro
da igreja pouco antes da destruição do templo de Jerusalém, em 70
AD.
Parte da força do legalismo era decorrente da instintiva
supremacia da igreja de Jerusalém sobre as demais. Mestres
judaizantes procedentes da Judéia eram recebidos com respeito e
submissão pelos crentes gentios de todas as partes, uma vez que
pertenciam à singular igreja dos apóstolos. Isso facilitava a
disseminação de suas idéias, pois era natural que se
apresentassem e fossem vistos como detentores de autoridade,
dado o status notável da comunidade eclesiástica a que pertenciam.
Porém, com o martírio de Tiago, em 62 AD, a igreja de Jerusalém
começou a perder sua hegemonia. O grande líder que era irmão de
Jesus foi apedrejado, sendo seu cargo ocupado por Simeão, um
outro irmão do Senhor que logo também sofreu o martírio. Os
chefes da igreja decidiram então transportá-la para Pela, uma
cidade além dos Jordão, onde a segurança certamente seria maior.
Outra causa da fuga foi a nítida oposição dos romanos ao crescente
sentimento nacionalista judaico. De fato, os romanos perceberam os
sinais de uma revolta em Jerusalém e, evidentemente, o movimento
cristão, dirigido pelos parentes de um descendente de Davi que se
dizia rei preocupava muito as autoridades e fazia da igreja um alvo
especial de opressão. Por isso, quando a rebelião judaica estava
prestes a eclodir, os cristãos que, aliás, já tinham sido prevenidos
pelo Senhor acerca desses fatos (Mt 23.37-39; Lc 21.20-24), saíram
de Jerusalém. Pouco tempo depois, no ano 70 AD, tendo deflagrado
a revolta, o general Tito a sufocou, destruindo a cidade, ateando
fogo ao Templo e matando cerca de um milhão de judeus. Graças à
fuga para Pela, provavelmente nenhum cristão pereceu no
massacre.
Esses fatos redundaram num notável recrudescimento do
movimento judaizante cristão e do legalismo que o caracterizava. A
própria destruição do Templo anunciava que a Antiga Aliança
perdera a possibilidade de ser vivida, considerando que muitas
prescrições da Lei deviam ser realizadas dentro do santuário
erguido em Jerusalém. Com a queda do judaísmo, os escritos de
Paulo que ensinavam a independência do cristão em relação aos
preceitos mosaicos ganharam força e uma crescente “paulinização”
da igreja começou a ocorrer, enquanto as formas nitidamente
judaicas de cristianismo caiam no esquecimento. Ademais, a igreja
judaica refugiada em Pela jamais recuperou o prestígio dos tempos
de Pedro e de Tiago. Antes, entrou na obscuridade, isolou-se das
demais igrejas e, em contato com diferentes seitas também de
origem judaica, desenvolveu costumes e doutrinas que nunca foram
acolhidos pelo cristianismo oficial, desaparecendo, finalmente,
poucos séculos mais tarde.
Um dos grupos de judeus cristãos que perseverou na prática dos
costumes de seus ancestrais, mesmo depois da queda de
Jerusalém, ficou conhecido como “nazarenos”, talvez porque esse
fosse o nome dado pelos judeus a todos os seguidores de Jesus de
Nazaré. Esse grupo adotava a observância da Lei Mosaica mesmo
em seu aspecto ritual e também cria em Jesus como o Messias
divino. Eles usavam o Evangelho de Mateus escrito em hebraico,
não eram críticos do Apóstolo Paulo e não condenavam os crentes
gentios por não observarem a Lei. É um exagero dizer que fossem
hereges. Na verdade, era um grupo de cristãos separatistas de
pequena importância.
Bem diferente dos nazarenos eram os ebionitas. Estes eram
muito mais numerosos e foram os verdadeiros sucessores dos
falsos mestres combatidos por Paulo na Epístola aos Gálatas. Seu
nome vem da palavra hebraica ebion, que significa “pobre”, talvez
uma designação a princípio dada maldosamente a todos os cristãos
que, como se sabe, eram em sua maioria pessoas de baixa
condição social. Há indícios de que os ebionitas surgiram entre os
cristãos que fugiram para Pela ao tempo da invasão de Jerusalém.
Suas marcas características eram a redução do cristianismo ao
nível do judaísmo, a defesa da validade perpétua e universal da Lei
Mosaica, e a intensa antipatia nutrida contra o Apóstolo Paulo.
Ainda que o ebionismo apresentasse certas variações, seu ramo
principal cria que Jesus era o Messias prometido, mas rejeitava sua
divindade e nascimento virginal. Para eles a circuncisão e a
observância da totalidade da Lei eram indispensáveis para a
salvação de todos os homens. O personagem que mais odiavam era
Paulo que, segundo seu entender, tinha nascido no paganismo,
abraçara o judaísmo por razões escusas e depois se tornara
apóstata e herege, devendo todas as suas epístolas ser rejeitadas.
Os ebionitas se espalharam pela Palestina e arredores.
Chegaram a Chipre, Ásia Menor e Roma. Em sua maioria
obviamente eram judeus, mas era possível encontrar também
gentios entre eles. Essa seita perdurou até o século IV, não havendo
mais indícios dela no século seguinte.
O fim do ebionismo não fez com que o legalismo cristão deixasse
definitivamente de existir. Sob diferentes formas, a exaltação da Lei
Mosaica sempre se insinuou dentro do cristianismo ao longo da
história. Seja por meio de seitas como o Adventismo do Sétimo Dia
ou através de modelos teológicos protestantes que defendem a
absoluta irrevogabilidade da Lei, o espírito do legalismo combatido
por Paulo permanece vivo. O velho erro infelizmente permanece,
impondo sobre os homens fardos desnecessários, impossíveis de
serem carregados (At 15.10). Ele ainda grita suas ordens,
negligenciando o precioso ensino de que a salvação é pela graça
somente (Gl 2.16) e de que a Lei se cumpre não naqueles que
vivem sob o seu jugo, mas sim naqueles que, tendo recebido a
Cristo, vivem agora debaixo da influência santificadora do Espírito
Santo (Rm 7.6; 8.4; 2Co 3.3; Gl 5.16-18). Por isso, cabe à igreja
ainda hoje defender a mensagem cristã contra os ataques de dentro
e de fora que põem em risco a compreensão da genuína dinâmica
da salvação. Cabe a ela ensinar que essa salvação não somente
vem pela fé, mas também por meio dela se desenvolve, não como o
resultado da sujeição a preceitos legais, mas como fruto do Espírito
que habita em todo o que crê.

Soli Deo Gloria


BREVE BIBLIOGRAFIA SUGERIDA
Os títulos abaixo sugeridos auxiliarão o leitor a se aprofundar mais
nas questões introdutórias, históricas e hermenêuticas tratadas
neste livro.
AGOSTINHO DE HIPONA. A cidade de Deus. 2 Volumes.
Petrópolis: Vozes, 1990
CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos . São Paulo:
Vida Nova, 1984.

CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Parácletos, 1998.

CARSON. D. A., MOO, Douglas, MORRIS Leon. Introdução ao


Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.

FRANGEOTTI, Roque. Padres Apostólicos. Coleção Patrística. São


Paulo: Paulus, 1985.

GUTHRIE, Donald. Gálatas: introdução e comentário. São Paulo:


Vida Nova e Mundo Cristão, 1984.

KAISER Jr., Walter C. e SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica


bíblica: Como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa
época. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma
breve história da interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2001

TENNEY, Merril C. O Novo Testamento: Sua Origem e Análise. São


Paulo: Vida Nova, 1984.

THAYER, Joseph Henry. Greek-English Lexicon of the New


Testament. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984.

SOBRE O AUTOR
Marcos Granconato é pastor titular da Igreja Batista Redenção em
São Paulo. Formou-se em Teologia no Seminário Bíblico Palavra da
Vida. É graduado em Direito pela Universidade São Francisco de
Bragança Paulista e mestre em Teologia Histórica pelo Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

[1] Os que situam a produção da carta em 48 d.C. vêem 2.1-10 como uma
passagem que se refere à visita de Paulo a Jerusalém mencionada em Atos
11.27-30, e não ao Concílio de Jerusalém que, segundo essa corrente, estava
ainda prestes a acontecer quando a epístola foi escrita.
[2] Na epístola aos Gálatas, Paulo faz alusão ao seu trabalho naquelas
regiões em 4.13-14.
[3] Os destinatários, segundo parece, conheciam Barnabé, o companheiro de
Paulo em sua primeira viagem missionária (Cf. 2.1,9,13). Como já dito, essa
viagem abrangeu a região sul da Galácia.
[4] As duas cartas de Paulo aos tessalonicenses foram escritas por volta do
ano 50 AD, ou seja, bem pouco tempo depois que ele escreveu aos crentes
da Galácia (48 AD).
[5] 2Coríntios 11.14 e Gálatas 1.8 geralmente são textos usados contra o
mormonismo cujos adeptos afirmam que sua religião foi revelada a Joseph
Smith por um anjo chamado Moroni. Essas aplicações são cabíveis, ainda
que dificilmente Smith tenha realmente tido contato com algum espírito. Pelas
informações que temos acerca de sua vida e caráter, com certeza o próprio
Smith inventou aquela história e a levou adiante a fim de atingir propósitos
egoístas e escusos.
[6] Nos dias modernos alguns exemplos de falsos evangelhos são: a Teologia
da Prosperidade cuja salvação proposta consiste apenas no livramento de
doenças e de problemas financeiros; o Catolicismo Romano que ensina a
salvação pelas obras; e o Adventismo que, exatamente como os falsos
mestres da Galácia, crê que o homem é salvo pela prática da Lei (Gl 2.16;
4.10-11). Todos os mestres desses movimentos devem ser considerados
malditos pelos crentes genuínos.
[7] No Catolicismo Romano encontramos a mais rica fonte de invenções
humanas associadas ao termo “cristianismo”. Doutrinas como a da imaculada
conceição de Maria, da transubstanciação, da intercessão dos santos, da
infalibilidade papal, da adoração da virgem, da canonização de pessoas
mortas, entre inúmeras outras não têm nenhum amparo na Sagrada Escritura,
sendo antes mitos inventados por mentes corrompidas. Coisas do gênero
devem ser rejeitadas com todo o vigor pelos cristãos genuínos.
[8] Somente a partir da destruição de Jerusalém pelo General Tito, em 70DC,
o cristianismo passou a revelar sua autonomia como modelo religioso
independente.
[9] Essa imagem passada pelos mestres judaizantes era flagrantemente falsa,
cf. 6.12-13.
[10] Essas tradições eram comentários e aplicações da Lei de Moisés à vida
diária que, a partir do Exílio Babilônico (605 aC – 535 aC) eram transmitidos
oralmente pelos judeus às gerações que se sucediam. Jesus censurou
severamente a prática de colocá-las acima da Palavra de Deus (Mt 15.1-6).
[11] A expressão “em mim” transmite a idéia de que a revelação foi dada a
Paulo de modo pessoal e íntimo. Calvino sugere que a tradução “a mim” é
possível (CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Parácletos, 1998. p. 42).
[12] Deve ser admitido, porém, que a incumbência de pregar lhe fora dada já
no caminho de Damasco (At 26.15-18).
[13] Tiago, o meio irmão do Senhor, não era um dos Doze. Aparentemente
ele é incluído aqui entre os apóstolos em virtude de sua posição de
preeminência na igreja de Jerusalém (At 12.17; 15.13ss; 21.17-18; Gl 2.9,12),
bem como por sua relação singular de parentesco com o próprio Senhor, além
do fato de ter visto Cristo ressurreto (1Co 15.7). Ademais, é possível entender
o termo “apóstolo” num sentido não técnico quando aplicado a Tiago, ou seja,
apenas como um “mensageiro de Cristo” (Esse uso é aplicado a Barnabé em
At 14.14). Sabe-se que para ser apóstolo no sentido que Paulo aplicava o
termo a si próprio era preciso não só ver Cristo ressurreto (1Co 9.1-2), mas
também receber diretamente dele a função de mensageiro (Mt 28.16-20; Lc
6.13; Gl 1.1), as revelações dos mistérios divinos a serem anunciados (2Co
12.7; Gl 1.11-12; Ef 3.2-6) e o poder de realizar milagres (2Co 12.12).
[14] A fome mencionada em Atos aconteceu, provavelmente, entre 46 e 48
d.C., mas não abrangeu o Império inteiro, sendo a Judéia o seu cenário.
Contudo, aqueles dias foram marcados por fomes freqüentes que
sobrevieram a diferentes regiões de todo o Império.
[15] Isso era especialmente importante porque, como se sabe, os falsos
mestres da Galácia estavam dizendo que o ensino de Paulo era contrário à
doutrina dos apóstolos de Jerusalém.
[16] Tito foi, posteriormente, delegado de Paulo com a missão de administrar
a crise em Corinto (2Co 2.12-13; 7.5-7). Ele também coordenou as igrejas de
Creta (Tt 1.5).
[17] Como se sabe, os judaizantes entendiam que a circuncisão era
fundamental para que o homem fosse justificado. Veja 5.2-4, 6; 6.12-13, 15.
[18] A atividade e ensino dos judaizantes de Jerusalém num tempo posterior
mas muito próximo da composição da Epístola aos Gálatas podem ser vistos
em Atos 15.1-2,5.
[19] A figura implícita aqui sugere a apresentação do evangelho por meio de
algum recurso visual como uma pintura em um quadro (CALVINO, João.
Gálatas. São Paulo: Paracletos, 1998. p. 82) ou um cartaz de notícias
colocado num lugar público, o que era comum na antiguidade (GUTHRIE,
Donald. Gálatas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo
Cristão, 1984. p. 114). Paulo não havia usado esses recursos, mas suas
palavras tinham fluído de tal forma que era como se tivessem desenhado na
consciência dos galateus os pontos centrais da mensagem cristã. É de
pregadores assim que a igreja moderna precisa.
[20] Para o ensino acerca da autoridade da Sagrada Escritura, veja-se Jo
10.35; 17.17; 1Co 2.13; 2Tm 3.16-17; 2Pe 1.20-21.
[21] Tiago 2.20-24 usa o mesmo exemplo de Abraão para ensinar que a
justificação é pelas obras. Contudo, Tiago pensa na justificação como
comprovação visível da fé. Daí a importância que confere às obras. Paulo, por
sua vez, usa o termo no sentido de “livramento de culpa”, o qual decorre da fé
somente.
[22] Note-se que ao tempo de Abraão a Lei sequer havia sido dada (Rm 4.9-
10; Gl 3.17).
[23] Um dos problemas com esse método de interpretação é que ele não se
harmoniza com o modo como os profetas do VT entenderam as promessas de
bênção e maldição feitas a Israel. Mesmo uma leitura superficial de seus
escritos revelará que os profetas entendiam literalmente tais promessas (2Rs
18.10-12; Is 24.5-6; Jr 11.6-8; 32.24; Lm 2.17; Dn 9.11-13; Zc 1.6, etc.).
Obviamente, se foi assim que os homens movidos por Deus interpretaram as
palavras da Escritura, é também assim que devemos entendê-las.
[24] O v. 13, conforme se verá, também contribui para a formulação do
conceito de maldição que Paulo tem em mente. Daquele versículo se
depreende que ser maldito é também ser merecedor da pena de morte.
[25] A prática prevista em Deuteronômio envolvia a morte do transgressor e a
posterior colocação do seu corpo num madeiro. Era permitido que o cadáver
ficasse pendurado até o fim do dia como um sinal de que ali estava alguém
que havia morrido sob a maldição de Deus, por transgredir a Lei (Dt 21.22-
23).
[26] A habitação do Espírito no crente é uma bênção singular porque lhe
confere segurança de um dia ser plenamente resgatado (Ef 1.13-14), prova e
testifica que ele pertence a Deus (Rm 8.9, 15-16), capacita-o a viver em
santidade (Rm 8.13-14) e enche sua vida de satisfação (Jo 7.38-39).
[27] A palavra usada por Paulo pode significar “testamento”, isto é, a
declaração de última vontade. Também tem o sentido de contrato ou aliança.
No versículo em análise trata-se de uma declaração da vontade feita por Deus
na qual somente ele se obrigou, sem nada impor ao homem.
[28] Deve-se lembrar que, à luz do v.17, a Lei só veio 430 anos depois de
estabelecida a aliança com Abraão.
[29] Em Mateus 22.31-32, 41-45 vê-se que nosso Senhor também dava
especial atenção a aspectos gramaticais do texto bíblico.
[30] A consciência de pecado existe mesmo naqueles que jamais
conheceram a Lei de Moisés (Rm 2.14-15). Porém, ela é muito limitada. Por
exemplo: não se sabe através da mera “lei interior” que a cobiça é pecado
(Rm 7.7).
[31] O ensino de que a Lei Mosaica foi dada com o propósito de refrear as
transgressões parece encontrar obstáculos no que Paulo ensina em Romanos
7.7-14. Ali aprendemos que a Lei, apesar de santa, justa e boa, estimula o
pecado na humanidade carnal. É verdade que, idealmente, o mandamento
seria dado para produzir vida (Rm 7.10). Seu objetivo real e prático, contudo,
foi outro, a saber: dar maior força ao pecado (Rm 7.12-13; 1Co 15.56).
[32] Outros textos em que Paulo mostra apreço pela Lei são Romanos 3.31;
7.7,12,14; 8.4; 1Tm 1.8.
[33] A frase “a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado” significa que o
Velho Testamento declarou a transgressão de todos (Rm 3.9-19),
demonstrando que a Lei que foi dada a Moisés era incapaz de justificar e
conceder vida.
[34] O tutor, na lei romana, figurava como responsável pela criança até os 14
anos. O curador respondia pelo jovem até que completasse 25. Há ainda
quem entenda que o tutor cuidava da pessoa, enquanto o curador
administrava seus bens.
[35] A maioridade, na lei romana, era atingida aos 25 anos de idade. Não
estava, portanto, ao arbítrio do pai o tempo de sua duração. Assim, é possível
que Paulo tivesse em mente aqui um outro sistema jurídico desconhecido de
nós, mas familiar aos seus leitores originais. É também possível (e mais
provável) que o apóstolo queria apenas realçar o papel do pai como aquele
que está no controle da situação. Esse entendimento se harmoniza melhor
com as intenções do autor bíblico ao usar a presente ilustração.
[36] A ausência de artigo antes da palavra “lei” no v. 5, sugere que Paulo não
tinha em mente aqui somente e Lei Mosaica, mas qualquer conjunto de
normas imposto ao homem.
[37] Todos esses milênios compõem o período chamado de “tempos da
ignorância” (At 17.30).
[38] Earle E. Cairns, em O cristianismo através dos séculos (São Paulo: Vida
Nova, 1984. p. 29-36) afirma que a “plenitude dos tempos” em Gálatas 4.4 diz
respeito à preparação do cenário mundial de tal forma que contribuísse para
que a mensagem de Cristo tivesse o maior impacto possível. De acordo com
esse entendimento, Deus, ao longo dos séculos, foi preparando o ambiente
político, intelectual e religioso para que o advento do Messias ocorresse num
contexto que favorecesse a sua divulgação. O tempo em que tudo estava
pronto seria entendido como a “plenitude dos tempos”. No entanto, apesar de
não haver dúvidas de que Deus usou o ambiente instalado no século I para
favorecer a expansão da fé, é muito difícil que isso se relacione com o sentido
da expressão “plenitude dos tempos” pretendido por Paulo em Gálatas 4.4. O
entendimento mais natural e simples, à luz inclusive do v. 2, é que a
expressão diz respeito apenas ao tempo em que soberanamente Deus julgou
necessário livrar o homem do jugo da lei, determinando que o período de
“tutela” não devia mais se prolongar.
[39] Hipóstase, em grego, significa, essência ou natureza substancial. Na
discussão cristológica, contudo, esse termo é usado predominantemente com
o sentido de “pessoa”. Para conhecer melhor os contornos dessa matéria é
fundamental que sejam estudados os quatro concílios ecumênicos da igreja
antiga e, especialmente, a Definição de Calcedônia. Uma leitura
esclarecedora é OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida,
2001.
[40] Aba é o termo aramaico para Pai.
[41] Outras verdades sobre a habitação do Espírito Santo são as seguintes:
ela é dada aos que crêem (Jo 7.38-39; Gl 3.2); todos os crentes desfrutam
dela (1Co 12.13); ela se constitui numa das bases para a pureza sexual do
cristão (1Co 6.18-19); e ela é a garantia de que somos “propriedade” de Deus
(Ef 1.13-14).
[42] Em 1Tessalonicenses 4.5 Paulo ensina que quem não conhece a Deus
também é escravo de desejos lascivos.
[43] Na Igreja Antiga era pacífico o entendimento de que foram os demônios
que, em tempos remotos, haviam se manifestado aos homens apresentando-
se como deuses e dando origem às múltiplas formas de adoração pagã.
[44] O proto-gnosticismo, filosofia pagã que ameaçou o cristianismo
nascente, acolhia com prontidão diversos preceitos judaicos (Cl 2.8, 16).
Portanto, o retorno à Lei também poderia ser facilmente interpretado como a
adoção de sistemas filosóficos pagãos.
[45] É possível traduzir a palavra próteron (“a primeira vez”) como
“anteriormente”. Se aceitarmos essa tradução, pode-se entender que Paulo
está falando aqui do fim da primeira viagem missionária, quando voltou para
Listra, Icônio e Antioquia fortalecendo as igrejas (At 14.21). Se for este o caso,
talvez Paulo tenha empreendido o retorno de sua Primeira Viagem movido
pelas imposições de uma doença da qual se tem muito pouca informação.
[46] Alguns entendem, à luz de 4.15, que se tratava de uma doença nos
olhos. Esse entendimento também tenta explicar as “grandes letras” a que
Paulo alude em 6.11. Segundo esse ponto de vista, o suposto problema de
visão do apóstolo teve início em sua experiência de conversão, quando seus
olhos foram cobertos por algo semelhante a escamas (At 9.18). Essa opinião,
porém, não é conclusiva. Calvino, por exemplo, entende que a palavra
“enfermidade” significa aqui simplesmente “vilipêndio”, ou seja, ausência de
pompa ou grandeza. Essa interpretação, por sua vez, mui dificilmente se
ajusta com a restante da passagem que indica claramente que Paulo está a
falar de uma debilidade em sua saúde.
[47] Nesse ponto Paulo usa verbos enfáticos para descrever a atitude dos
seus destinatários. Literalmente, ele diz que os galateus não o trataram com
desdém, nem o “cuspiram fora”. Essa linguagem denota nojo, o que pode
sugerir que a doença de Paulo provocava certa repugnância.
[48] Veja o contraste entre esse zelo interesseiro e o zelo do Apóstolo
mencionado em 2Coríntios 11.2.
[49] Essa expressão tão comum nos escritos do carinhoso Apóstolo João
(1Jo 2.1, 12, 14, 18, 28, etc.) é usada somente aqui por Paulo.
[50] Para um maior aprofundamento nesse tema, veja-se LOPES, Augustus
Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação.
São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
[51] Esse é o argumento de Calvino constante de seu comentário a Gálatas
4.22.
[52] Essa alternativa encontra-se em KAISER Jr., Walter C. e SILVA, Moisés.
Introdução à hermenêutica bíblica: Como ouvir a Palavra de Deus apesar dos
ruídos de nossa época. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
[53] Veja esse argumento em LOPES. Op. Cit., p.120-121.
[54] Ao longo da história tem sido comum os teólogos apresentarem a Lei de
Moisés sob duas grandes divisões: a lei cerimonial (relativa especialmente
aos serviços no templo) e a lei moral (apresentada especialmente nos Dez
Mandamentos). Ainda que seja útil para fins didáticos, essa divisão às vezes
conduz a conclusões erradas como, por exemplo, a doutrina adventista de
que fomos libertos apenas da lei cerimonial, estando ainda sujeitos aos Dez
Mandamentos. Deve, porém, ficar claro que, para Paulo, a distinção entre lei
cerimonial e moral inexiste. O próprio texto em questão mostra que, em seu
conceito de Lei, o Apóstolo inclui até mesmo o livro de Gênesis e não apenas
disposições cerimoniais constantes do Pentateuco. Ademais, em outras
ocasiões, ao argumentar contra o legalismo, Paulo não cita leis cerimoniais,
mas alude às chamadas normas morais (Rm 7.6-7; Gl 3.10; Ef 2.15) e chega
até a ensinar com notável clareza que o crente está livre do “ministério
gravado com letras em pedras”, ou seja, o Decálogo, dizendo que a glória
desse ministério se desvaneceu (2Co 3.7-11. Veja tb. Cl 2.14). Daqui se
conclui que os cristãos só devem obedecer aos Dez Mandamentos na medida
em que eles são “reaproveitados” no ensino do Novo Testamento, o que não
acontece, por exemplo, com a norma referente à guarda do sábado ou de um
outro dia qualquer. Ademais, mesmo aquela obediência deve ser resultado de
uma vida sob o controle do Espírito e não do apego carnal a regras (Rm 8.3-
4).
[55] Veja-se o legalismo de Jerusalém em face do ministério de Jesus em
Mateus 23.1-4; Marcos 7.1-8; João 5.18; 9.16, etc. Para a presença do
legalismo na igreja nascente daquela cidade, veja-se Atos 11.1-3; 15.4-5.

[56] Isaías 54 também evoca as glórias de Jerusalém no Reino Milenar de


Cristo (Lc 1.32-33; Ap 20.4-6) [57] Essa perseguição branda e, às vezes, até
simpática contra os cristãos é empreendida hoje especialmente pelos
adventistas do sétimo dia que procuram intensamente fazer prosélitos entre
os crentes. Porém, pode-se vê-la também na atuação de indivíduos que,
dentro das igrejas, exigem que os crentes se submetam a regras oriundas de
costumes antigos. Seja qual for o caso, sempre que alguém tenta vergar os
ombros dos cristãos com o peso de normas, esse alguém se torna um
perseguidor da igreja e pode ser identificado como real inimigo dos santos
(Veja-se 2.4).

[58] Veja-se a mesma orientação dada de forma expressa em Romanos


16.17-18 e 2João 9-11.
[59] A forma condicional como Paulo constrói a frase dá a entender que os
galateus ainda não estavam praticando o antigo rito.
[60] O verbo traduzido aqui como “cair” (ekpípto) é usado nos escritos
clássicos para referir-se, inclusive, a pessoas que por razões políticas ou por
outros motivos, foram enviadas para o exílio, longe dos privilégios de seu
país.
[61] A esperança de que fala o v. 5 (elpís) não é mero desejo, mas sim uma
forte certeza. Note-se também que o versículo evoca uma expectativa futura,
ou seja, o dia em que, diante de Deus, o crente será recebido como justo.
[62] Vejam-se exemplos da fé falsa em Mateus 13.20-21; João 2.23-25;
12.42-43.
[63] Paulo usa a metáfora da corrida também em 2.2, aplicando-a a si
mesmo. Veja-se também Filipenses 2.16; 2Timóteo 2.5; 4.7.
[64] O verbo usado por Paulo, egkópto, significa impedir, obstruir ou deter.
Trata-se de um termo militar que descreve um exército que impede o avanço
do inimigo destruindo uma estrada e levantando obstáculos. Usada na figura
de uma corrida, como é o caso aqui, a palavra sugere a ação de um atleta
que tenta prejudicar o desempenho de outro, atrasando-o de alguma forma ou
até mesmo tirando-o da prova.
[65] É preciso, contudo, reconhecer que o uso do particípio conforme consta
do v. 8, implica muitas vezes num sentido indefinido, sendo também possível
que Paulo tenha em mente aqui o chamado de Deus ocorrido ao tempo da
conversão (1Co 1.26; 7.18). Se for esse o caso, é interessante notar que, em
Gálatas, os crentes são apresentados como pessoas que, ao ouvirem o
evangelho, foram chamadas à liberdade (5.13).
[66] Também no ensino de Jesus a figura do fermento é usada para se referir
a doutrinas e práticas reprováveis (Mt 16.6, 12; Mc 8.15; Lc 12.1). Há uma
exceção em Mateus 13.33
[67] Veja o comentário em 1.7 sobre o verbo tarásso (perturbar), também
usado aqui.
[68] No paganismo dos dias de Paulo existiam rituais grotescos cujo ápice era
atingido quando os adoradores se emasculavam. Se o Apóstolo tinha esses
rituais em mente, pode-se concluir que para ele a circuncisão não tinha mais
significado do que as repugnantes práticas religiosas dos gentios.
[69] O mesmo ensino encontra-se em Romanos 13.9-10. Observe-se que há
aqui um eco do ensino de Jesus que disse que toda a Lei e os Profetas se
sustentam em apenas dois preceitos: amar a Deus e amar ao próximo (Mt
22.35-40).
[70] Observe o mesmo ensino em Efésios 5.18, onde Paulo exorta os crentes
a que não se deixem dominar pelo vinho, mas sim pelo Espírito. Com essa
rica figura, o Apóstolo realça que, assim como o homem embriagado é
totalmente dominado pela bebida em sua forma de falar, andar e reagir, da
mesma forma o crente cheio do Espírito, como ébrio de Deus, anda, fala e
age da forma como o Senhor determina.
[71] Vejam-se essas três influências mencionadas explicitamente em
Romanos 7.4-6.
[72] Veja-se o relato de Atos 14.11-13 para uma noção do grau de idolatria
reinante na Galácia.
[73] Por outro lado, num país como o nosso, em que muitos irmãos na fé se
escandalizam quando vêem um crente bebendo qualquer bebida alcoólica, é
melhor que haja abstinência total, conforme ensina Paulo em Romanos 14.15-
21.
[74] Bebedices e orgias eram associadas ao culto de Dionísio, também
conhecido como Baco. Considerado o deus do vinho e da vida animal e
vegetal, seus adoradores se entregavam à bebida e comiam carne com
sangue para participar da vida do deus. Nesses banquetes os participantes,
em meio a danças sagradas, eram levados ao êxtase e à orgia sexual.
[75] Paulo descreve detalhadamente o amor genuíno em 1Coríntios 13.1-7.
[76] Note-se aqui a conversão descrita como “pertencer a Cristo”. O
convertido é realmente como um escravo adquirido por Cristo. Tendo agora
um novo senhor, não precisa mais viver sob o jugo da Lei.
[77] Paulo tinha experiência própria desse fato (2.20). Note-se ainda que em
sua vida não somente o próprio eu carnal havia sido crucificado, mas também
o mundo com seus atrativos e apelos (6.14).
[78] Veja-se em 3.2,5,14; 4.6; e 5.5 os fenômenos próprios dessa realidade.
[79] Assim entende CALVINO, op. cit., 175.
[80] O oposto dessa figura é o crente carnal (1Co 3.1-3).
[81] Esse verbo é usado para se referir à correção de ossos deslocados e ao
conserto de redes de pesca. Tem sempre o sentido de restabelecer algo
danificado ao seu estado anterior.
[82] Uma igreja que mais tarde se destacou nesse aspecto foi a de Filipos, na
Macedônia, para a qual Paulo escreveu uma carta cheia de gratidão, em 61
A.D. (Fl 4.10-19).
[83] O Livro de Provérbios ensina que o sábio é aquele que reconhece que
vivemos num universo regido não somente por leis físicas, mas também
morais, as quais, se violadas, nos trarão prejuízos. Logo, o sábio é aquele que
tem temor do Senhor (Pv 1.7), reconhecendo que ele próprio fixou na história
a norma irrevogável de que quem faz o mal, cedo ou tarde colhe o mal.
[84] A sugestão de que Paulo escreveu com letras grandes porque, desde a
sua experiência na estrada de Damasco, passou a ter problemas de visão, é
puramente especulativa. O entendimento mais natural é que Paulo escreveu
com letras grandes para dar ênfase ao que dizia.
[85] Em Romanos 2.29 há mais uma indicação de que a circuncisão promovia
o louvor decorrente dos homens, tão caro aos falsos mestres.

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