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ARTIGO MIS
especial
A Psicopedagogia em um
Diálogo Multidisciplinar*
Marisa Irene Siqueira Castanho
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Psicopedagogia em um Diálogo Multidisciplinar
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O modelo de ciência que dominou na moder de aprendizagem que se impõem hoje. Como
nidade e persistiu ao longo do século XIX e possíveis respostas, podem-se destacar as apren
meados do século XX preconizou a possibilidade dizagens que se sustentam em três planos inte-
de se confiar em hipóteses substancializadoras grados que constituem as efetivas mediações
e em um controle do fugidio e cambiante nos da existência humana: a ação pelo trabalho, a
fenômenos. Isto trouxe por um tempo a ilusão de sociabilidade e a subjetividade13.
que a racionalidade e o conhecimento poderiam O homem, como ser de relações, constrói as
trazer soluções para os problemas do homem. referências de si mesmo por meio de suas ações,
Entretanto, esse tempo está ultrapassado, surge operações e intervenções na natureza e na rea-
em seu lugar um pensar relacional e se delineia lidade circundante pelo seu trabalho. A prática
como forma de conhecimento a aceitação do mo- produtiva e a prática política dos seres humanos
vimento como possível maneira de convivência são atravessadas por uma terceira dimensão de
na atual realidade fluida e mutável6. seu agir, a prática subjetiva, construída numa
E a Psicopedagogia, o que tem a ver com tudo tessitura tanto individual como coletiva, pelos
isso? Nascida no limiar da passagem da moder- arranjos dos elementos objetivos e subjetivos
nidade para a pós-modernidade, a Psicopedago- presentes nessas relações13.
gia já nasce com um espírito condizente a essa As condições de vida no mundo atual trazem,
nova realidade fluida e transitória. A Psicopeda- entre outros desafios, uma superposição na vivên-
gogia é gestada pelo trabalho de profissionais, cia dos fenômenos reais, imaginários e virtuais,
de várias áreas do conhecimento (educadores, que impõem uma nova lógica das categorias de
médicos, psicologistas, sociólogos, linguistas), tempo e espaço, ameaçando as antigas susten-
que se debruçaram na busca de compreensão tações e equilíbrio na compreensão do mundo.
das dificuldades daqueles que resistiam e não Estamos diante do homem cujo risco é perder o
se adaptavam, daqueles que não aprendiam e contato direto consigo próprio, mergulhado nas
não correspondiam a uma ideia de normatização intensas solicitações que o mundo lhe impõe,
dos padrões de desempenho, daqueles que se fazendo com que se distancie de si mesmo e de
negavam em aceitar a imposição de um conhe- sua história.
cimento único e hegemônico, quando o mundo A inquietude do homem da atualidade se cons
já apontava para a diversidade e a complexidade titui em desafio que requer das ciências humanas
dos fenômenos vivenciados. uma transitividade entre a rigidez e a fragmen-
A Psicopedagogia nasce, portanto, num mo- tação, mantendo o princípio da diversidade e da
mento de cisão histórica do modelo de ciência criatividade, nem saudosismo, nem fuga frente a
hegemônico, que requer novas formas de pensar uma realidade tão cambiante e desagregadora.
o conhecimento7. O conhecimento é uma cons- Esse é o desafio de realização das propostas multi-
trução que os homens fazem como decorrência disciplinares e interdisciplinares, a integração dos
de relações concretas de vida, acerca de si e do vários conhecimentos sobre o homem e a apro-
outro, assim, diante da complexidade do mundo ximação desses conhecimentos para revertê-los
vivido hoje, as ciências em geral e as ciências hu- em maior compreensão sobre as imensas poten-
manas e sociais das quais a Psicopedagogia faz cialidades de enfrentamento dos obstáculos ao
parte obrigam-se a organizar um conhecimento seu desenvolvimento como ser humano. Esse é
que dê conta de pensar o homem em sua vivência o desafio da Psicopedagogia como área inter e
da contradição que o coloca frente a inúmeros de- multidisciplinar.
safios que ameaçam sua própria possibilidade de Nestas reflexões sobre o mundo vivido hoje
compreensão e de autossustentação no mundo. se colocam como foco as crianças e os jovens que
Retorna-se, assim, às questões que se colo sofrem as consequências desses efeitos dire
cam no início deste texto sobre quais as demandas tamente em seus processos de aprendizagem
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O jogo das cinco pedrinhas citado pela pro cinco pedrinhas, etc, repetidos e recriados em
fessora e pesquisadora pode ter outras deno ambientes socioculturais distintos15.
min ações como cinco-marias, almofadinha, Pensando com Brougère16, podemos ressaltar
saquinhos, mas independentemente de quem e que a lógica da noção usual de jogo carrega um
onde se brinque, será sempre o mesmo jogo que sistema de analogias e que, em determinadas
desafia a criança a lançar para o ar uma ou mais culturas e em distintos momentos, nem sempre
pedrinhas (saquinhos, almofadinhas) e voltar o jogo e a brincadeira foram considerados sé-
em busca das que restam no chão para serem rios; mesmo que ligado ao desenvolvimento e à
resgatadas e incorporadas à que retorna de sua educação da criança, geralmente era feita uma
queda vertical. Uma espécie de for/da** que, interpretação do jogo como oposição estrutu
salvo outras interpretações, possibilita à criança rante ao trabalho, ao útil e ao sério17.
testar sua necessidade de domínio sobre uma Não é o caso do escopo deste texto entrar nessas
situação momentaneamente sem controle, pela discussões, pois de partida se considera o brin-
própria ousadia de distanciar de si o(s) objeto(s), car numa acepção mais ampla e cultural como
para rapidamente recuperá-lo(s). atividade primordial na sobrevivência simbólica
É nessa junção da vivência ao mesmo tempo do homem. A capacidade de uma criança de agir
individual e coletiva que os entrevistados vão frente à realidade, independente dos objetos e
desfiando suas concepções sobre o brincar: das situações concretas que se apresentam, in-
“Brincar é uma coisa do homem, do ser dica precocemente a capacidade do homem de
humano, é uma forma de expressão... ela ultrapassar o campo da percepção e adentrar o
vem de diferentes formas nas diferentes da criação dos níveis simbólicos da realidade14.
etapas da vida, mas ela está presente... Em mais um trecho do documentário anali-
sempre” (Renata Meirelles, pesquisadora sado, apreende-se a importância de considerar
de brinquedos e brincadeiras, documen- os significados simbólicos que se atrelam à ati-
vidade do brincar:
tarista).
“ [...] Sopro no coração... enquanto meus
“O essencial do brincar é liberdade de
irmãos jogavam bola, eu ia ler. Era onde
tempo, liberdade de espaço e liberdade de
eu sofria, torcia por alguém, enfrentava
criação” (David Reeks, documentarista). monstros tenebrosos, moinhos de vento
“Então, o brincar é uma atividade do es com o Dom Quixote, corria com os Capi-
pontâneo e nesse sentido eu poderia di- tães da Areia... Li Manoel Bandeira aos
zer...hoje eu acredito nisso, é a linguagem nove anos de idade. Eu sou um brincante,
da alma, é instantânea, direta” (Maria um leitor brincante. A leitura me deu tudo
Amélia Pereira, pedagoga). isso” (Marcelino Freire, escritor).
As motivações e disposições humanas bási- “Eu acho que o brincar é o modo que a
cas, tais como o lançar-se nos desafios, o medo, gente tem de organizar o nosso mundo,
o ataque, a proteção, a competição, são algumas criando um mundo paralelo ao mundo que
das manifestações que se concretizam nas diver- a gente vive mergulhado cotidianamen-
sas formas de brincadeiras: pique, pega-pega, te. [...] É uma necessidade biológica, eu
amarelinha, cipozinho queimado, rato-na-toca, acho que é uma necessidade primária,
esconde-esconde, casinha, peteca, pipa, pião, primordial, que a gente já nasce natu
*For/da: jogo de carretel descrito por Freud a partir da observações do brincar de seu neto, numa oposição entre princípio
de prazer e de realidade, em que, a criança jogando elabora a partida da mãe.
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SUMMARY
Psychopedagogy in a Multidisciplinary Dialogue
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do a cidadania. São Paulo: FTD; 1994. p. 52. Pontes FAR, Bechara ID. Brincadeira e cultu-
14. Vigotski LS. O papel do brinquedo no desen ra: viajando pelo Brasil que brinca. Vol I. São
volvimento. In: Vigotski LS. A formação social Paulo: Casa do Psicólogo; 2003, p. 15.
da mente. São Paulo: Martins Fontes; 1998. 16. Brougère G. Jogo e educação. Porto Alegre:
p. 121-37. ArtMed; 1998.
15. Carvalho AMA, Pontes, FAR. Brincadeira é 17. Brougère G. Jogo e educação. Porto Alegre:
cultura. In: Carvalho AMA, Magalhães CMC, ArtMed; 1998, p. 35.
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