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Castanho

ARTIGO MIS
especial

A Psicopedagogia em um
Diálogo Multidisciplinar*
Marisa Irene Siqueira Castanho

RESUMO - O objetivo principal é situar a Psicopedagogia como área de


conhecimento inter e multidisciplinar e o objetivo secundário é destacar o
brincar como atividade fundamental na integração dos aspectos cognitivos,
afetivos, relacionais e contextuais afinada com a aprendizagem humana.
Considera-se a aprendizagem como adaptação ao meio circundante, não
só do ponto de vista da natureza biológica do homem, mas principalmente
como decorrência de sua capacidade de organização simbólica da realidade.
O conhecimento hoje pauta-se na abordagem dos fenômenos considerados
como fugidios e cambiantes, rompendo com a ilusão de que a racionalidade
possa trazer soluções para os problemas do homem e a aprendizagem por
seu caráter complexo e multideterminado deve ser pensada por modelos
científicos pautados por um pensar relacional que delineia como forma
de conhecimento a aceitação do movimento como possível maneira de
con­vivência na atual realidade fluida e mutável. Ressaltam-se as ca­rac­
terísticas da Psicopedagogia como próprias do pensamento pós-mo­derno
na abordagem da aprendizagem e o brincar como atividade primordial na
sobrevivência simbólica do homem.

UNITERMOS: Psicologia Educacional. Conhecimento. Aprendizagem.


Es­tudos Interdisciplinares. Jogos e Brinquedos.

Marisa Irene Siqueira Castanho - Psicóloga, psico­pe­ Correspondência


dagoga, mestre e doutora em Psicologia Escolar e do Marisa Irene Siqueira Castanho
Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psi­cologia Av. Dr. Afonso Vergueiro, 2085/112 – Vila Augusta –
da Universidade de São Paulo (IPUSP). Membro da Sorocaba, SP, Brasil – CEP 18040-000
Diretoria Executiva da ABPp - gestão 2017-2019. Do­ E-mail: msiqueiracastanho@gmail.com
cente do Curso de Psicologia da Universidade Pau­lista,
UNIP - Campus Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil.

* Conferência de Abertura do IV ENCONTRO PSICOPEDAGÓGICO DA BAHIA “A psicopedagogia em um diálogo mul­


tidisciplinar”, promovida pela Associação Brasileira de Psicopedagogia – Seção Bahia. Universidade Católica de Salvador,
03 de novembro de 2017.

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Psicopedagogia em um Diálogo Multidisciplinar

INTRODUÇÃO No caso específico da educação das crianças


A busca de compreensão a respeito da apren- e jovens, é prudente perguntar que parâmetros
dizagem humana é acompanhada do interesse são considerados adequados face à atual reali-
em compreender como o homem constrói co- dade que se apresenta mutante e cujo conheci-
nhecimento. Ao longo de seu desenvolvimento, mento é fragmentado? É possível eleger conhe-
o homem não só criou instrumentos e artefatos cimentos duradouros? Que aprendizagens são
para lidar com a natureza, mas produziu ideias, esperadas? No caso das crianças e jovens que
conhecimentos, valores e crenças transmitidos apresentam dificuldades de aprendizagem, que
pelos processos de aprendizagem1. princípios normalizadores regem o tratamento
Os significados do estar e agir no mundo foram na Psicopedagogia?
objetos de interesse registrados pelos gregos O objetivo deste artigo é situar a Psicopeda­
que se ocupavam, desde os sofistas, da ideia gogia como área de conhecimento interdiscipli-
de uma educação, a qual visava o desenvolvi- nar, destacando suas propriedades na aborda-
mento do espírito humano, fazendo crescer as gem da aprendizagem humana em seu caráter
potencialidades do homem. Os sofistas, sendo complexo e multidimensional, a ser pensada por
espectadores do cenário de um Estado decaído, modelos científicos que rompem com a ideia de
não deixaram de se ocupar da grande tarefa de hipóteses substancializadoras sobre a prática
educar visando o conjunto de todas as exigências
da avaliação regida pela normatização dos pro-
ideais, físicas e espirituais, por meio de conhe-
cessos. Entende-se por hipóteses substanciali-
cimentos da Física, da Astronomia, da Mate-
zadoras aquelas que decorrem de concepções
mática, da Literatura, dos Esportes, sem perder
tradicionais de ciência como prática racional,
de vista a correção da postura e da conduta dos
regida por leis e princípios universais e hege-
indivíduos em sociedade.
mônicos sobre o homem.
Portanto, inaugurando uma relação entre sa­
O texto, de cunho teórico, se divide em quatro
ber, conhecimento, ética e política organizada
partes: 1) Consideração da realidade atual como
por um currículo que distinguia as várias áreas
em que o jovem deveria ser educado, os sofistas complexa e riscos da fragmentação do conheci-
almejavam uma educação para a cidadania com mento3-5; 2) Psicopedagogia no limiar da passa-
base na arete, ou seja, a transmissão de um co­ gem da modernidade para a pós-modernidade6,7;
nhecimento enciclopédico focado no saber e uma 3) O brincar como atividade fundamental na
formação espiritual no ensino das virtudes2. cons­trução de um conhecimento afinado com a
Este breve retorno ao pensamento grego tem subjetividade8,9; 4) Considerações finais.
a finalidade de marcar um momento inicial da
preocupação com a produção do conhecimento FRAGMENTAÇÃO DO CONHECIMENTO
e a tradição de uma aprendizagem no mundo E REALIDADE COMPLEXA
ocidental pautada pela prática de fragmentar Os teóricos da complexidade3-5 têm afirmado
o conhecimento para melhor compreender a que a sociedade atual desponta como uma so-
realidade e transmiti-la às futuras gerações. Se ciedade do conhecimento que traz novas emer-
partirmos da consideração que os processos de gências e desafios ao homem. Diante da antiga
produção de conhecimento e de aprendizagem necessidade de fragmentar o conhecimento e de
são marcados pelo contexto da realidade vivida, analisá-lo em partes por domínios de múltiplas
frente ao momento atual de sobrecarga de in­ áreas, restam ao homem atual dificuldades de in­
formações, ressalta-se a fragmentação do co- tegrar, de conhecer e de organizar o saber, que
nhecimento produzido por mudanças rápidas de assim resulta disperso.
valores e a proliferação de sentidos que exigem As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas
cada vez mais da capacidade de assimilação por movimentos de grupos de teóricos e pesqui­
psicológica do ser humano. sadores em busca da integração dessa forma

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de conhecimento fragmentado, bem como de PSICOPEDAGOGIA NO LIMIAR DA PAS­


elu­cidação de dúvidas e inquietações advindas SA­GEM DA MODERNIDADE PARA A PÓS-
da perplexidade do homem diante de seu estar -MODERNIDADE
no mundo10. No mundo de hoje, o homem é incitado a res­
A multidisciplinaridade surge como forma al- ponder à multiplicidade de solicitações que ad-
ternativa de pensar o conhecimento, por meio da vêm de vivências na diversidade de realidades,
justaposição de disciplinas diversas, que foram a objetiva, a subjetiva e a virtual11. O homem
ao longo do tempo fragmentadas em grandes encontra-se imerso em um mundo cujo desenvol-
áreas e subáreas, com o intuito de dar conta de vimento tecnológico e científico acelera processos
analisar a realidade de maneira mais abrangente de produção, de comunicação e de aplicação dos
e, num passo além, a interdisciplinaridade galga conhecimentos. Isso gera uma dispersão na me-
um nível em que as disciplinas se integram num dida em que os sentimentos, os afetos, a cognição
esforço de diálogo entre elas e não apenas de e a ação se multiplicam, em tempos recordes em
justaposição5. vários focos12.
Tais mudanças de perspectiva na forma de Os desafios que o mundo real e concreto traz,
tratar o conhecimento surgem a partir da conside-
hoje, à compreensão do homem, o coloca diante
ração da realidade como complexa e da constata-
de um meio mutável pela aceleração dos processos
ção que o conhecimento fragmentado, ao analisar
e pela transitoriedade das informações, que as­
cada parte da realidade separadamente (a eco-
so­mam como desafios à sua aprendizagem, uma
nomia, a geografia, a matemática, a filosofia, a
vez que esta não guarda mais as características
antropologia, e assim por diante), não favorece
das formas e dos conhecimentos estanques e du-
uma compreensão da multidimensionalidade de
radouros. Tem sentido, hoje, o envolvimento com
um fenômeno observado.
as aprendizagens geradas pela ligação entre os
A vida humana não cabe em gavetas que a
conhecimentos que levam ao desenvolvimento
pretendem analisar por meio de fragmentos. As
relações entre os homens geram fenômenos e das competências de ação, em um meio que se
situações altamente complexas, de cunho ético, mostra mutável e transitório.
político, social, cognitivo, econômico, que, para O que têm em comum todos esses fenômenos
a sua compreensão, se faz necessária a partici- é que eles se constituem quase como um caráter
pação, a interação e a colaboração das várias universal, globalizante da realidade, o que nos
áreas do conhecimento. leva a pensar sobre as inquietações do homem
Situam-se, nessa perspectiva, os processos de atual que, independente do grupo social ao
aprendizagem como um dos fenômenos de alta qual pertence, vê-se arrastado no turbilhão da
complexidade, cuja compreensão requer uma inquietude gerada pelas pressões de adaptação
integração e um diálogo entre várias áreas que e de produtividade, numa sociedade que não
a seu tempo e dentro de seus interesses vêm se mais oferece parâmetros seguros para a sua so­
preocupando com a aprendizagem humana: a brevivência.
pedagogia, a psicologia, a antropologia, as áreas São diversos os domínios da realidade e da
específicas da matemática, da geografia, da lin- exis­tência, todos igualmente válidos, se bem que
guística, e assim por diante. não igualmente desejáveis, o que implica em
O homem mobiliza estruturas diferentes para aceitar que a única constância e estabilidade diz
aprender: a cognição, a linguagem, a sociabili­ respeito às possibilidades de coerência própria
dade, a motricidade, os sentimentos e emoções, na constituição de cada forma de realização na
estruturas essas que acionadas e mobilizadas sintonia com um dado domínio de realidade. Ou
ou imobilizadas, a depender dos processos seja, é necessário aprender a conviver e coexistir
rela­cionais, sociais, culturais, levam a possíveis com diferentes domínios de realidade igualmen-
apren­­­dizagens. te legítimos.

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O modelo de ciência que dominou na moder­ de aprendizagem que se impõem hoje. Como
nidade e persistiu ao longo do século XIX e possíveis respostas, podem-se destacar as apren­
mea­dos do século XX preconizou a possibilidade dizagens que se sustentam em três planos inte-
de se confiar em hipóteses substancializadoras grados que constituem as efetivas mediações
e em um controle do fugidio e cambiante nos da existência humana: a ação pelo trabalho, a
fenômenos. Isto trouxe por um tempo a ilusão de so­ciabilidade e a subjetividade13.
que a racionalidade e o conhecimento poderiam O homem, como ser de relações, constrói as
trazer soluções para os problemas do homem. referências de si mesmo por meio de suas ações,
Entretanto, esse tempo está ultrapassado, surge operações e intervenções na natureza e na rea-
em seu lugar um pensar relacional e se delineia lidade circundante pelo seu trabalho. A prática
como forma de conhecimento a aceitação do mo- produtiva e a prática política dos seres humanos
vimento como possível maneira de convivência são atravessadas por uma terceira dimensão de
na atual realidade fluida e mutável6. seu agir, a prática subjetiva, construída numa
E a Psicopedagogia, o que tem a ver com tudo tessitura tanto individual como coletiva, pelos
isso? Nascida no limiar da passagem da moder- arranjos dos elementos objetivos e subjetivos
nidade para a pós-modernidade, a Psicopedago- pre­­sentes nessas relações13.
gia já nasce com um espírito condizente a essa As condições de vida no mundo atual trazem,
nova realidade fluida e transitória. A Psicopeda- entre outros desafios, uma superposição na vivên-
gogia é gestada pelo trabalho de profissionais, cia dos fenômenos reais, imaginários e virtuais,
de várias áreas do conhecimento (educadores, que impõem uma nova lógica das categorias de
médicos, psicologistas, sociólogos, linguistas), tempo e espaço, ameaçando as antigas susten-
que se debruçaram na busca de compreensão tações e equilíbrio na compreensão do mundo.
das dificuldades daqueles que resistiam e não Estamos diante do homem cujo risco é perder o
se adaptavam, daqueles que não aprendiam e contato direto consigo próprio, mergulhado nas
não correspondiam a uma ideia de normatização intensas solicitações que o mundo lhe impõe,
dos padrões de desempenho, daqueles que se fazendo com que se distancie de si mesmo e de
negavam em aceitar a imposição de um conhe- sua história.
cimento único e hegemônico, quando o mundo A inquietude do homem da atualidade se cons­
já apontava para a diversidade e a complexidade titui em desafio que requer das ciências humanas
dos fenômenos vivenciados. uma transitividade entre a rigidez e a fragmen-
A Psicopedagogia nasce, portanto, num mo- tação, mantendo o princípio da diversidade e da
mento de cisão histórica do modelo de ciência criatividade, nem saudosismo, nem fuga frente a
hegemônico, que requer novas formas de pensar uma realidade tão cambiante e desagregadora.
o conhecimento7. O conhecimento é uma cons- Esse é o desafio de realização das propostas multi-
trução que os homens fazem como decorrência disciplinares e interdisciplinares, a integração dos
de relações concretas de vida, acerca de si e do vários conhecimentos sobre o homem e a apro-
outro, assim, diante da complexidade do mundo ximação desses conhecimentos para revertê-los
vivido hoje, as ciências em geral e as ciências hu- em maior compreensão sobre as imensas poten-
manas e sociais das quais a Psicopedagogia faz cialidades de enfrentamento dos obstáculos ao
parte obrigam-se a organizar um conhecimento seu desenvolvimento como ser humano. Esse é
que dê conta de pensar o homem em sua vivência o desafio da Psicopedagogia como área inter e
da contradição que o coloca frente a inúmeros de- multidisciplinar.
safios que ameaçam sua própria possibilidade de Nestas reflexões sobre o mundo vivido hoje
compreensão e de autossustentação no mundo. se colocam como foco as crianças e os jovens que
Retorna-se, assim, às questões que se colo­ sofrem as consequências desses efeitos dire­
cam no início deste texto sobre quais as demandas tamente em seus processos de aprendizagem

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e do consequente desenvolvimento que deles O homem está imerso em um mundo mediado


decorrem. Vem à mente o quanto recai sobre a por recursos socioculturais, de objetos, instru-
criança e o jovem uma expectativa de corres- mentos, linguagem, que criam as múltiplas pos-
ponder aos anseios de uma sociedade que quer sibilidades de ser, estar e de criar significações
um bom comportamento, mas que não dispõe de seu estar no mundo. O brincar dentro desta
de parâmetros mínimos de referência para esses acepção se destaca como atividade fundamental
comportamentos, que não é capaz de declinar na construção da subjetividade humana. O brin-
princípios éticos de convivência e de sociabilidade. car, como atividade eminentemente carregada
Uma sociedade que tem no movimento in- de significações, é a primeira manifestação da
cessante, na rapidez dos acontecimentos e na emancipação da criança em relação às restrições
superposição das tarefas o seu estilo de viver. situacionais; é a possibilidade de criação de uma
Mas, que, no entanto, se mostra uma sociedade situação imaginária, espontânea e voluntária14.
pouco tolerante com a diferença, e desenvolveu O documentário intitulado Tarja Branca9 traz
como prática o encaminhamento para avaliação depoimentos de personalidades do mundo cul-
psicológica, médica e psicopedagógica as crian- tural, artístico e acadêmico que testemunham
ças que não respondem ao esperado e são taxadas sobre a importância da brincadeira em seu pró-
de disléxicas, hiperativas, pouco esforçadas, prio desenvolvimento pessoal. Por meio das lem-
alienadas. branças, os sujeitos entrevistados vão expondo
Uma sociedade que perdeu o contato com as as memórias acerca de suas vivências infantis:
suas raízes e mergulha no afã do aqui e agora, “Eu vim de uma cidade do Sertão da Bahia
nas inúmeras tarefas a realizar e não se detém e... naquele tempo se brincava muito, não
para incorporar valores e significados daquilo havia televisão. Eu era boa, hoje estou
que faz. O homem que abandonou a sua natureza destreinada, mas eu era boa nas cinco
ludens para impor o fardo de um trabalho árduo e pe­drinhas... eu sou capaz de me lembrar,
sem sentido; que leva as crianças e os jovens ao quando ela subia bem e que descia na
consumo exagerado no e do aqui e agora; e leva axial, e batia na outra pedrinha na minha
também aos consultórios aqueles que perdem e mão, o estalo que dava, eu sinto isso hoje,
necessitam resgatar o sentido de suas existências ainda ouço [estala os dedos e aproxima
e de suas aprendizagens.
o ouvido]” (Lydia Hortelio, professora de
Para incorporar a ideia de amarração das vá-
música, pesquisadora).
rias dimensões do homem que se integram em
seu processo de ser e estar no mundo, portanto, “Eu nasci no subúrbio de Washington,
de aprender, a Psicopedagogia coloca o foco na nos Estados Unidos... o consumismo era o
possibilidade de resgatar os fios condutores das que se tinha para fazer. Quando eu tinha
vivências dos sujeitos como forma de encontrar o oito anos de idade, eu podia entrar no
elo perdido em algum momento. E é no brincar parque com minha bicicleta e podia ficar
que a Psicopedagogia encontra a possibilidade livre com meus amigos” (David Reeks,
de resgatar esse elo. documentarista).
Apreende-se o quanto essas lembranças são
O BRINCAR COMO ATIVIDADE FUNDA­ carregadas de elementos cognitivos-afetivos que
MENTAL NA CONSTRUÇÃO DE UM CO- guardam as sensações corporais das experiên-
NHECIMENTO AFINADO COM A SUBJE- cias vividas. Os diferentes modos de brincar e as
TIVIDADE diferentes denominações dadas às brincadeiras
Do ponto de vista da abordagem histórico-cul­ fazem transparecer ao mesmo tempo a univer­
tural há uma profunda relação entre os aspectos salidade e a especificidade da brincadeira en-
cognitivos e afetivos integrados na ação humana. quanto prática cultural15.

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O jogo das cinco pedrinhas citado pela pro­ cinco pedrinhas, etc, repetidos e recriados em
fessora e pesquisadora pode ter outras deno­ am­­bientes socioculturais distintos15.
mi­n ações como cinco-marias, almofadinha, Pensando com Brougère16, podemos ressaltar
sa­quinhos, mas independentemente de quem e que a lógica da noção usual de jogo carrega um
onde se brinque, será sempre o mesmo jogo que sistema de analogias e que, em determinadas
de­safia a criança a lançar para o ar uma ou mais culturas e em distintos momentos, nem sempre
pe­­drinhas (saquinhos, almofadinhas) e voltar o jogo e a brincadeira foram considerados sé-
em busca das que restam no chão para serem rios; mesmo que ligado ao desenvolvimento e à
resgatadas e incorporadas à que retorna de sua educação da criança, geralmente era feita uma
queda vertical. Uma espécie de for/da** que, interpretação do jogo como oposição estrutu­
salvo outras interpretações, possibilita à criança rante ao trabalho, ao útil e ao sério17.
testar sua necessidade de domínio sobre uma Não é o caso do escopo deste texto entrar nessas
situação momentaneamente sem controle, pela discussões, pois de partida se considera o brin-
própria ousadia de distanciar de si o(s) objeto(s), car numa acepção mais ampla e cultural como
para ra­pidamente recuperá-lo(s). atividade primordial na sobrevivência simbólica
É nessa junção da vivência ao mesmo tempo do homem. A capacidade de uma criança de agir
individual e coletiva que os entrevistados vão frente à realidade, independente dos objetos e
desfiando suas concepções sobre o brincar: das situações concretas que se apresentam, in-
“Brincar é uma coisa do homem, do ser dica precocemente a capacidade do homem de
hu­mano, é uma forma de expressão... ela ultrapassar o campo da percepção e adentrar o
vem de diferentes formas nas diferentes da criação dos níveis simbólicos da realidade14.
etapas da vida, mas ela está presente... Em mais um trecho do documentário anali-
sempre” (Renata Meirelles, pesquisado­ra sado, apreende-se a importância de considerar
de brinquedos e brincadeiras, documen- os significados simbólicos que se atrelam à ati-
vidade do brincar:
tarista).
“ [...] Sopro no coração... enquanto meus
“O essencial do brincar é liberdade de
irmãos jogavam bola, eu ia ler. Era onde
tempo, liberdade de espaço e liberdade de
eu sofria, torcia por alguém, enfrentava
criação” (David Reeks, documentarista). monstros tenebrosos, moinhos de vento
“Então, o brincar é uma atividade do es­ com o Dom Quixote, corria com os Capi-
pontâneo e nesse sentido eu poderia di- tães da Areia... Li Manoel Bandeira aos
zer...hoje eu acredito nisso, é a linguagem nove anos de idade. Eu sou um brincante,
da alma, é instantânea, direta” (Maria um leitor brincante. A leitura me deu tudo
Amélia Pereira, pedagoga). isso” (Marcelino Freire, escritor).
As motivações e disposições humanas bási- “Eu acho que o brincar é o modo que a
cas, tais como o lançar-se nos desafios, o medo, gente tem de organizar o nosso mundo,
o ataque, a proteção, a competição, são algumas criando um mundo paralelo ao mundo que
das manifestações que se concretizam nas diver- a gente vive mergulhado cotidianamen-
sas formas de brincadeiras: pique, pega-pega, te. [...] É uma necessidade biológica, eu
amarelinha, cipozinho queimado, rato-na-toca, acho que é uma necessidade primária,
esconde-esconde, casinha, peteca, pipa, pião, primordial, que a gente já nasce natu­

*For/da: jogo de carretel descrito por Freud a partir da obser­vações do brincar de seu neto, numa oposição entre princípio
de prazer e de realidade, em que, a criança jogando elabora a partida da mãe.

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ralmente com ela. [...] e, mais do que isso, CONSIDERAÇÕES FINAIS


eu acho que a gente tem que trazer o Pretendeu-se neste estudo refletir sobre a Psi-
lúdico pra nossa vida, recuperar cada vez copedagogia como área de conhecimento que,
mais esse lúdico no cotidiano” (Antônio originariamente, nasceu no limiar da passagem
Nóbrega, multiartista). da modernidade para a pós-modernidade, num
“Eu encontrei um bando de crianças com momento de cisão histórica do modelo de ciência
uma pipa na mão e os outros atrás dizen­ hegemônico, que abriu espaço para novas formas
do: batiza, batiza, batiza! Eu falei: Hei, de pensar a realidade e compreendê-la.
o que que é isso, o que vocês estão bati- O conhecimento que resulta das relações
zando? Aí o menino disse: Aquela pipa, concretas de vida, diante da complexidade do
mundo vivido hoje, é um conhecimento não só
porque o menino usou o fio inteiro da
fragmentado, mas sujeito a intensas mudanças.
linha, a pipa é batizada e ninguém mais
As dimensões filosóficas, psicológicas e políticas
pode cortar ela. E aí eu associei, brincar
da experiência existencial do homem pós-mo-
para mim é usar o fio inteiro de cada
derno analisadas por teóricos da complexidade
linha. Você está usando seu fio inteiro de
possibilitaram ressaltar os aspectos fugidios e
vida, você está brincando” (Maria Amélia
cambiantes da realidade frente à sobrecarga de
Pereira, pedagoga).
informações, apelos motivacionais externos, pro-
Assim, os depoimentos oferecidos pelos en- liferação de sentidos e não sustentação de valores
trevistados possibilitam compreender a impor- como formas atuais de se viver.
tância do brincar no desenvolvimento humano, A aprendizagem, por seu caráter complexo e
não só da criança, mas ao longo da vida, como multideterminado, deve ser pensada por modelos
forma de sobrevivência simbólica que favorece a científicos pautados por um pensar relacional, que
integração dos aspectos biológicos, psicológicos delineia como forma de conhecimento a aceitação
e culturais na tessitura dos fios da vida e dos do movimento como possível maneira de convi-
sig­nificados de nossas existências. vência na atual realidade fluida e mutável.
O homem adoece quando perde a dimensão O destaque dado ao brincar como atividade
do sentido do seu estar no mundo. As ciências fundamental na integração dos aspectos cogniti-
que poderão ajudá-lo a resgatar ou entrar em vos, afetivos, relacionais e contextuais afina com
contato com os sentidos construídos e que confi­ a aprendizagem humana vista como adaptação ao
guram a sua existência não serão aquelas que meio circundante, não só do ponto de vista da
assumirem o lugar de conhecimentos únicos ou natureza biológica, mas principalmente como
hierarquicamente superiores, mas aquelas que decorrência da capacidade do homem de orga-
se conjugarem e se debruçarem na compreensão nização simbólica da realidade.
do homem na sua complexidade. Esses elementos foram considerados funda-
As crianças têm dificuldades de aprendizagem mentais no destaque da Psicopedagogia como
quando não conseguem apreender o valor e os área inter e multidisciplinar cujo discurso e prá-
significados de aprender em suas vidas. A Psico­ tica emergem em sintonia com as demandas da
pedagogia como área inter e multidisciplinar realidade atual na abordagem da aprendizagem,
pode ajudar a resgatar os fios e os elos perdidos tendo o brincar como atividade primordial, favore-
ao longo do processo de desenvolvimento e de cendo a sobrevivência psicológica daqueles en-
aprendizagem da criança. caminhados para seus espaços de atendimento.

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Psicopedagogia em um Diálogo Multidisciplinar

SUMMARY
Psychopedagogy in a Multidisciplinary Dialogue

The main goal is to situate the Psychopedagogy as inter and


multidisciplinary area of knowledge and the secondary objective
is to highlight the play as a fundamental activity in the integration
of cognitive, emotional, relational and contextual aspects in tune
with human learning. We considered learning how adaptation to
the environment, not only from the point of view of man’s biological
nature, but mainly as a result of man’s ability to symbolic organization
of reality. The knowledge today is guided in the approach of the
phenomena considered as elusive and changing, breaking with
the illusion that rationality can bring solutions to the problems and
learning for your complex and multidimensional character, must
be analyzed by scientific models ruled by a scientific thinking that
outlines how relational knowledge form that accepts the movement
as a possible way of coexistence in the current fluid and changeable
reality. Highlight the characteristics of Psychopedagogy as postmodern
thought in the approach of learning and playing as a primary activity
in symbolic of man’s survival.

KEYWORDS: Educational Psychology. Knowledge. Learning.


Inter­disciplinary Studies. Play.

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Conferência de Abertura do IV ENCONTRO PSICO­ Artigo recebido: 14/2/2018


PE­­DAGÓGICO DA BAHIA “A psicopedagogia em um Aprovado: 27/2/2018
diálogo multidisciplinar”, promovida pela Associação
Brasileira de Psicopedagogia – Seção Bahia. Uni­ver­
sidade Católica de Salvador, 3 de novembro de 2017.

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