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Ensaio sobre a melancolia:

suas origens, sua dialética, seus caminhos


tortuosos e seu destino inelutável

Sylvia Salles Godoy de Souza Soares

Revista Brasileira de Psicanálise sylvia salles godoy de souza


volume 49, n.2, p. 105-116 · 2015 soares  é mestre e doutora em
Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), psicanalista, membro
efetivo da Sociedade Brasileira de
Resumo Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
Inspirada pela leitura do filósofo Giorgio Agamben, a autora
faz uma reflexão sobre a genealogia da melancolia, a partir de
referências patrísticas da época medieval – que a designavam
“acídia” –, de associações com a cosmologia ocidental e de
distintas teorias no decorrer da história, até suas expressões
na atualidade. O cerne do trabalho respalda-se em Freud,
em “Luto e melancolia”, e na leitura peculiar de Agamben,
que, ao cotejar a interpretação psicanalítica do mecanismo
da melancolia com o complexo humoral saturnino, destaca
dois elementos descritos na acídia: o recesso do objeto e
o retirar-se em si mesmo da intenção contemplativa. A
autora aborda os conceitos de relações de objeto, fetichismo
e narcisismo para esclarecer a dialética das relações,
sua tortuosa intenção em busca do objeto e a natureza
melancólica que subjaz na sombra desses processos.
Palavras-chave
genealogia da melancolia; religião; fantasmagoria; dialética;
objeto do desejo.

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A busca do saber, desde sempre, nos


conduz a viagens inusitadas, e a leitura do
tem em si toda a seriedade e consciência,
mas não goza seu objeto porque não sabe
filósofo Giorgio Agamben, que me levou representar (Agamben, 2011, p. xiii).
a um passeio através dos tempos, da poe-
sia, das origens da palavra, dos fantasmas Na tradição do pensamento ocidental,
na cultura e de seus ecos nos dias atuais, não havia distinção entre a poesia e a dis-
me instigou a esboçar este ensaio sobre a ciplina crítico-filológica; ou seja: uma obra
melancolia. incluía, nela mesma, a própria negação.
A partir de uma sofisticada indagação “A crítica nasce […] e se situa na fenda da
do acervo cultural do Ocidente, o autor palavra ocidental e assinala de cá, ou de
aproxima-se da psicanálise para desvendar lá, em direção a um estatuto universal do
certos caminhos de Eros e suas incursões dizer” (Agamben, 2011, p. xiii).
no universo mental. Posto que, na perspectiva das ciências
Essa história se inicia com aquilo que os humanas, sujeito e objeto se identificam, a
poetas do século XIII denominavam stanza: ideia de uma ciência sem objeto é um para-
núcleo essencial de sua poesia, domicílio e doxo que fica atrelado ao pensamento. O
receptáculo, porque abrigava custódia e, ao caráter específico da crítica não consiste em
mesmo tempo, todos os elementos formais encontrar seu objeto, mas na própria condi-
da canção: joie d’amour, como único objeto ção de inacessibilidade desse objeto. Apro-
da poesia. Mas que coisa é esse objeto? A priação sem consciência e consciência sem
que encanto a poesia dispõe sua stanza – apropriação, a crítica opõe o gozo do que
no sentido poético acima descrito – como não pode ser possuído e a posse do que não
cerne de toda a arte (latu sensu)? Sobre pode ser gozado. Sua situação pode se expri-
que coisa se volta tão tenazmente o seu mir tal qual no momento em que a cisão
canto? A dificuldade de se responder a essas atinge seu ponto extremo. “Exteriormente,
questões reside no esquecimento de uma essa situação da crítica pode ser expressa na
cisão produzida em nossa cultura entre a fórmula segundo a qual ela não representa
poesia e a filosofia, entre a palavra poética nem conhece, mas conhece a representação
e a palavra pensante. A cisão da palavra […] essa inapropriabilidade é seu bem mais
é interpretada no sentido de que a poesia precioso” (Agamben, 2011, p. xiii).
tem seu objeto sem conhecê-lo e a filosofia A partir dessas proposições, minha refle-
o conhece sem possuí-lo. A poesia é sem- xão volta-se para a constituição da melan-
pre o revés da consciência, e o filosofar, o colia, para o caráter paradoxal  – marca
revés do prazer. indelével em sua genealogia – que percorre
seus meandros, desde suas ascendências na
A palavra ocidental é assim dividida entre religião, e atravessa o campo psicanalítico
a palavra inconcebível como caída do céu,
que goza do objeto do conhecimento repre-
sentado de forma bela, e uma palavra que

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nos conceitos de objeto, de narcisismo, de do convento, suspira e geme por seu espí-
perversão e de luto e melancolia. rito não ter produzido nada nem servido a
Ao nos questionarmos sobre como essa quem quer que seja, e que nem irá produzir
ambiguidade vai se tensionar no homem, enquanto estiver naquele lugar. Fica inerte
voltamos nosso olhar para a vida no claus- frente ao dever, se aflige de estar devoto;
tro: a aspiração de beatitude. imóvel, evoca lugares onde poderia ser
feliz e se perde em elogios aos monastérios
Em todo o período medieval, um flagelo distantes. Por fim, se convence de que só
pior que a peste infesta os castelos, vilas, poderá ser feliz se abandonar sua cela, mas
palácios das cidades, penetra nos claus- se o fizer encontrará a morte. Depois sente
tros dos monastérios. Ascidia, tedium vitae, uma raivosa fome de leão, como se chegasse
nome que os padres da Igreja dão a esse mal de uma longa viagem ou de um duro tra-
que conduz à morte da alma, se funde com balho e, ao fim, uma grande confusão se
a tristeza e, dentre os sete pecados capitais, instala na mente (Agamben, 2011, pp. 5-6).
é considerado o mais letal dos vícios para
o qual não há perdão. Esse demônio esco- No entanto, é nos “filhos” da acídia que
lhe suas vítimas entre os religiosos quando os padres fixaram a alucinada constelação
o sol culmina no horizonte. O olhar do aci- psicológica: malícia, ambíguo e irrefreável
dioso se debruça sobre a janela e na fan- ódio e amor pelo bem enquanto tal; ran-
tasia imagina que alguém vem visitá-lo; a cor, revolta da má consciência contra os
qualquer rumor na porta, se põe de pé; se que exortam ao bem; pusilanimidade, desâ-
ouve uma voz, corre para a janela. Se está nimo e escrúpulo que remete ao esgota-
lendo, interrompe-se inquieto e depois cai mento frente à dificuldade, ao empenho e
no sono; esfrega o rosto com as mãos, estira à existência espiritual; desespero, a obscura
os dedos, fixa os olhos na parede, de novo e presunçosa certeza de já estar condenado
volta ao livro, conta o número de páginas por antecipação que nem a graça divina
que já leu, o que falta ler, até que faz dele poderia salvá-lo; torpor, o obtuso e sono-
um travesseiro e cai num sono profundo lento estupor que paralisa qualquer gesto
para depois despertar com uma sensação que poderia curá-lo; dispersão da mente, a
de privação e fome que deve saciar. Esse fuga de ânimo diante de si e o irrequieto
demônio, além de se transformar em obses- escorrer da fantasia que se manifesta em
são, imprime um horror ao lugar em que a verborragia sobre si mesmo, na curiosidade
pessoa se encontra, um fastio à cela e repulsa insaciável, sede de ver por ver – que se dis-
aos irmãos que com ele convivem, que lhe persa na instabilidade de propósitos –, e
parecem negligentes e grosseiros. Começa na incapacidade de fixar uma ordem e um
a lamentar-se de não obter prazer na vida ritmo ao próprio pensamento.
Seguindo os passos de Agamben, quando
justapõe acídia e melancolia, sublinho
referências suas, para destacar meandros e

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desdobramentos da concepção do objeto acídia não é só uma fuga de, mas uma fuga
na configuração dos processos que estamos para se comunicar com seu objeto em sua
examinando. forma negativa e na carência.
O vertiginoso retrair-se e o recesso frente Enquanto sua tortuosa intenção abre
ao empenho do homem de estar diante de um espaço para a epifania do inalcançá-
Deus é, na leitura do autor, comparável à vel, o acidioso é testemunha da obscura
melancolia descrita por Freud: mal mortal, sabedoria segundo a qual, para quem não
consciência de haver um Eu no qual há tem mais esperança, é dada a esperança, e
qualquer coisa de eterno e um não querer somente para quem não pode alcançá-la
ser si mesmo. Essa fuga do homem diante é assegurado seu fim. Assim, dialética é a
da riqueza de suas possibilidades espiri- natureza do demônio meridiano.
tuais contém em si a ambiguidade funda- Essa descrição patrística do acidioso,
mental. O fato de o acidioso retrair-se do depois de tantos séculos de distância, coin-
seu fim divino não significa que consiga cide com a moderna ciência psiquiátrica,
esquecê-lo ou que deixe de desejá-lo, mas que classifica a melancolia entre as graves
sim que o objeto torna-se intangível. São doenças mentais e parece ter fornecido os
Tomás de Aquino capta a relação ambí- rudimentos da literatura moderna ao des-
gua do desespero com o próprio desejo: crevê-la como mal do século. Entre alguns
equívoca constelação erótica que goza o exemplos desse estado de ânimo, em Les
constante exaltar-se do desejo frente ao fleurs du mal, Baudelaire cria o dandy, o
objeto inatingível. Situação paradoxal, tipo perfeito do poeta que, em certo sen-
que se revela no aforismo de Kafka: existe tido, pode ser considerado como reencar-
um ponto de chegada, mas nenhuma via nação do acidioso. Sua essência consiste
de acesso; então, não há escapatória: não em uma religião do descuido, da negligên-
se pode fugir daquilo que não se pode ao cia, na tentativa de transformar qualquer
menos alcançar. coisa em nada.
Na literatura sobre a linhagem da melan- Segundo Agamben, a psicologia moderna,
colia, figura o sono do preguiçoso como de certa forma, esvaziou o termo “acídia”
espectro do torpor e escape frente ao saber de seu significado original, transformando-
e ao pecado. A essa paralisia de ânimo frente -o em pecado contra a ética capitalista do
à situação sem saída – a par da tristeza mor- trabalho, de produtividade e utilidade, o
tífera (diabólica) –, os padres opõem uma que dificulta distinguir a personificação do
tristeza salutar, útil a Deus para a salvação demônio meridiano e sua filiação – mistura
da alma; portanto, não deve ser considerada de preguiça e falta de vontade que seria asso-
como vício, mas como virtude. A ambígua ciada à imagem do acidioso. Mas, por toda
polaridade negativo/positivo se torna o fer- herança paradoxal, não é pura coincidência
mento dialético capaz de transformar a pri-
vação em posse. A partir do momento em
que o desejo se fixa em algo inatingível, a

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que o travestismo da acídia em preguiça sonhos eróticos. Entre os distúrbios que ela
venha a tornar-se o emblema que os artis- pode induzir figuram a histeria, a demên-
tas opõem à ética capitalista, como retrata cia, a epilepsia, a mania suicida. Por conse-
Moreau em La belle inertie. Essa minimi- guinte, seu temperamento é triste, invejoso,
zação do fenômeno, indício de uma proxi- temeroso, ávido, fraudulento.
midade daquilo que deve ser camuflado e Ao confirmar uma antiga tradição  –
reprimido, é reconhecida por poucos, como que associava esses humores ao exercício
sugere Heidegger em sua análise sobre a da poesia, da filosofia, da arte e da vida
banalidade cotidiana. pública –, Aristóteles afirma ser o ponto
Seguindo essa linha de raciocínio, a de partida de um processo dialético, no
ressurreição da sabedoria patrística pode qual a doutrina do gênio se liga indisso-
ser mais do que um exercício acadêmico, luvelmente ao melancólico na fascinação
porquanto a máscara do demônio meri- de um processo simbólico e cujo emblema
diano revela traços familiares à psicologia é ambiguamente fixado no anjo alado da
dos nossos tempos, tais como: dispersão Melancolia de Dürer.
mental, distração do exercer-se, no “papo
furado” que dissimula o que deveria ser des- A Melancolia I, de 1514, é geralmente vista
velado, na contínua curiosidade pelo que é pelos historiadores de arte como uma
novo, que impede a concentração no que figura de mulher representando a condição
se procura, e na constante disponibilidade humana […] [na sua] impossibilidade de atin-
de (di)vertimento. gir a perfeição do conhecimento e da vida,
Ao alargarmos nossa indagação para da sabedoria divina e dos segredos da natu-
o estudo da cosmologia ocidental, nos reza [depois da expulsão do Paraíso]. […] O
deparamos com o espectro das origens da Anjo de Dürer tem a marca da Melancolia,
melancolia  – bile negra, cuja desordem estado de alma atribuído a Saturno. (Cen-
pode produzir as consequências mais teno, 2007, on-line).
nefastas –, associada à terra, ao outono, ao
inverno, ao elemento seco, ao frio, à cor Esse estado de alma é marca, nos alqui-
preta, à velhice. Seu planeta é Saturno, e o mistas, da nigredo, anunciadora de uma
melancólico encontra lugar junto ao enfor- transformação espiritual (que pode ou não
cado, ao manco, ao jogador de azar, ao reli- vir a concretizar-se).
gioso. A síndrome fisiológica apresenta
um escurecimento da pele, do sangue, “Melancolia Imaginativa”, uma condição
da urina, distensão no ventre, flatulência, própria dos artistas, arquitetos e artesãos…
refluxo ácido, zumbido no ouvido, consti- Não há dúvida [de] que é nesta categoria
pação ou excesso de fezes, hemorroida e que se inclui a obra de Dürer e o seu sig-
nificado. Assim, para lá do Anjo, que não é
mulher, é figuração da Anima alada, ainda
que de rosto escurecido (melancolia em

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Melancolia I, Albrecht Dürer, gravura, 1514.

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grego é bílis negra), a caminho da espiritua- Last, but not least, o arco-íris e o sol no hori-
lização, há elementos simbólicos à sua volta zonte, símbolos da Aurora consurgens, tra-
que são importantes para decifrar o negro tado de enorme influência (estudado por
momento da espera (Centeno, 2007, on-line). Marie-Louise Von Franz). A luz dissipará
o dragão, variante da besta do Apocalipse
O Anjo de Dürer aguarda, de asas caídas, que define a melancolia.1 (Centeno, 2007,
que a transformação se verifique. […] on-line).
O compasso na mão, símbolo da ordem
que a medição impõe. Quando a bile é abundante e fria, as
A ampulheta, que mede o tempo, limite pessoas tornam-se mórbidas e estranhas;
último da nossa condição […] mas outros, em que a bile é abundante e
A esfera, representação máxima da comple- quente, tornam-se maníacos, alegres, amo-
tude, da perfeição.” (Centeno, 2007, on-line) rosos e facilmente apaixonáveis. E muito
A pedra cúbica, símbolo da pedra alquí- porque o calor da bile é vizinho à sede da
mica, aos pés da escada onde parece dor- inteligência, são tomados de furor e entu-
mir um “putto” (o puer eternus, mediador siasmo. No pensamento de Ficino, que se
da transformação). reconhecia como um melancólico e cujo
A escada, que podemos encontrar em mui- horóscopo mostrava Saturno em Aquário
tas gravuras alquímicas, símbolo do caminho ascendente, a melancolia, que andava
e da ascensão a que conduz [recorde-se o pari passu com a influência de Saturno,
fim do Mutus Liber] se insere na intuição dessa polaridade. A
A balança, símbolo do equilíbrio, da harmo- melancolia e os desvarios em busca do
nia que o humor melancólico precisa cultivar. objeto de amor.
O cão enrolado aos pés, animal que é Herdeira laica da tristeza do claustro, a
companheiro da obra [e do adepto em melancolia sofreu um processo de morali-
muitos tratados, como se vê em Michael zação, e, na retrospectiva da relação entre
Maier, ou até] no Fausto de Goethe, quando acídia e melancolia, pôde-se resgatar cer-
Mefisto escolhe a forma de cão para seguir tos meandros de Eros perverso do acidioso,
Fausto até sua casa [figura a natureza animal por se manter fixo na inacessibilidade do
a ser purificada]. (Centeno, 2007, on-line). próprio desejo.

Ainda conforme Yvette Centeno, da A mesma tradição que associa o tempera-


interpretação de iconografia da Melan- mento melancólico à poesia, à filosofia e à
colia I, por Agrippa von Nettersheim, em arte também atribui uma exagerada incli-
De occulta philosophia (Centeno, 2007, nação a Eros. Aristóteles, depois de haver
on-line): afirmado a vocação genial dos melancólicos,
coloca a luxúria entre seus caracteres essen-
ciais […] o temperamento da bile negra tem
a natureza do sopro […] de onde vem que

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os melancólicos são debochados. A prova é invade o cérebro e oprime dia e noite a alma
que o membro viril se infla porque se enche com tétricas e ameaçadoras visões.
de vento. (Agamben, 2011, p. 20). […]
A intenção erótica que desencadeia a desor-
O desregramento erótico figura entre dem se apresenta como aquela que quer pos-
os atributos tradicionais do humor negro. suir e tocar aquilo que deveria ser apenas
Essa associação entre melancolia, per- objeto de contemplação, e a trágica insani-
versão sexual e erotismo – descrita ainda dade do temperamento saturnino encontra
hoje entre os sintomas de melancolia e que assim sua raiz na íntima contradição de um
adiante será mais bem ilustrada – confi- gesto que quer abraçar o inalcançável [gri-
gura-se tal qual no acidioso, nos tratados fos nossos]. […] O melancólico não pode
medievais sobre seus vícios: se entorpece conceber o incorpóreo. […] Não se trata
nos desejos carnais, toma um aspecto de um limite estático da estrutura mental
sádico e ferino. “São excessivos na libido dos melancólicos, mas de um limite dialé-
e desmesurados com as mulheres como tico, que adquire seu sentido em relação ao
asnos, porque se represam, se tornam lobos. impulso erótico de transgressão que trans-
Seu amplexo é tortuoso, mortífero em rela- forma a intenção contemplativa em concu-
ção às mulheres e com ódio” (Agamben, piscência do amplexo. A incapacidade de
2011, p. 20). conceber o incorpóreo e o desejo de fazê-lo
A tradição médica que, segundo Agam- objeto de abraço são as duas faces do mesmo
ben, encontrou seus fundamentos na medi- processo, em que a vocação contemplativa
cina medieval considera amor e melancolia se revela exposta a um desvio de direção
como moléstias afins, se não idênticas. do desejo que a ameaça desde o interior.
Catalogadas como mal da mente, cinco Essa constelação erótica inscrita e fixada no
espécies de alienação, entre elas a melan- imaginário nos permite compreender que,
colia e a concupiscência irracional. O sob o signo de Eros, é possível revelar-se o
processo de enamoramento subverte o segredo cuja intenção alegórica subjaz intei-
equilíbrio humoral: enquanto acalenta ramente no espaço entre Eros e seus fantas-
obstinadamente o rancor, a inclinação mas (Agamben, 2011, pp. 21-23).
contemplativa o empurra fatalmente para
a paixão amorosa. Freud, na perspectiva de Agamben, con-
fronta a interpretação psicanalítica do meca-
A alma do amante é arrastada para a imagem nismo de melancolia com o antigo complexo
do amado inscrita na fantasia e no amado humoral saturnino, e não sem surpresa, diz
mesmo. Lá são atraídos também os espíritos e ele, “encontramos traduzidos na linguagem
em seu voo obsessivo se exaurem. […] Então, da libido dois elementos descritos na acídia,
o corpo se disseca, se exaure e os amantes se
tornam melancólicos. E o sangue que pro-
duz a melancolia leva à cabeça seus vapores,

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na fenomenologia do temperamento e na entre o princípio do prazer e o princípio


fixação do tempo: o recesso do objeto e o da realidade.
retirar-se em si mesmo da intenção contem- O conceito psicanalítico de melancolia,
plativa” (Agamben, 2011, p. 25). como nos apresenta Agamben, é um para-
Em “Luto e melancolia”, Freud aponta doxo de uma intenção de luto que precede
para a etiologia do fenômeno: e antecipa a perda do objeto, semelhante
à intuição dos padres da Idade Média, que
A melancolia, cuja definição varia inclusive concebiam a acídia como a retirada de um
na psiquiatria descritiva, assume várias for- bem que não foi perdido e interpretavam,
mas clínicas […] sendo que sugerem afec- como o mais terrível de seus “filhos”, o deses-
ções antes somáticas do que psicogênicas. pero, como antecipação do dever não cum-
Nosso material […] limita-se a um pequeno prido e da danação. O recesso do acidioso
número de casos de natureza psicogênica não nasce de um defeito, mas da exacerba-
indiscutível (1917[1915]/1974, p. 275). ção de um desejo, que torna inacessível o
próprio objeto na desesperada tentativa de
Ao pesquisar sobre as implicações das garantir sua perda e aderir a isso ao menos
catexias objetais nos processos de luto e em sua ausência. O retrair-se da libido
melancolia, Freud esboça semelhanças e melancólica não tem outro foco senão tor-
diferenças, e distingue que, no luto, a libido nar possível a apropriação do inapropriável.
reage à prova da realidade, que mostra que Concepção essa peculiar à Verleugnung
a pessoa amada deixou de existir, fixando-se fetichista, em que o conflito entre a per-
em uma memória ou objeto que tenham cepção da realidade, que a constrange a
relação com ele. Na melancolia, trata-se renunciar ao seu fantasma, e o seu desejo,
também de uma perda do objeto de amor, que a impele a negar a percepção, leva a
à qual, porém, não segue, como se poderia criança a fazer as duas coisas ao mesmo
esperar, uma transferência da libido sobre tempo, recusando, de um lado, a evidên-
um outro objeto, mas seu retrair-se sobre cia de sua percepção, e reconhecendo, por
o ego narcisicamente identificado com o outro, a realidade mediante o advento de
objeto perdido incorporado, que foge da um sintoma perverso.
consciência. No Esboço de psicanálise, Freud define:
Em outras palavras, Freud nos mostra
que, a cada incursão nos processos psíqui- o ego da criança, sob o domínio do mundo
cos, se abrem novas direções, que por sua real, livra-se das exigências instintivas inde-
vez demandam um enveredar-se sobre os sejáveis através do que é chamado de repres-
destinos e a incidência da pulsão, a natu- sões. O ego com frequência se encontra em
reza do objeto, e o confrontar-se contínuo posição de desviar alguma exigência do
mundo externo que acha aflitiva e isto é feito
por meio de uma negação das percepções
que trazem ao conhecimento essa exigência

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oriunda da realidade […] A negação é sem- fazer surgir como perdido um objeto que
pre suplementada por um reconhecimento: nunca foi possuído. Se o ego se comporta
duas atitudes contrárias e independentes como sofrendo uma perda que na realidade
sempre surgem e resultam de haver uma não aconteceu, é porque, ao encenar essa
divisão do ego. (1938/1975, p. 233). simulação, reafirma sua pretensão de se
apropriar de um suposto objeto perdido.
E como o fetiche é, ao mesmo tempo, o Torna-se assim compreensível a ambígua
signo de qualquer coisa e de sua ausência, ambição do melancólico. Recobrindo seu
deve-se a essa contradição o próprio esta- objeto com os paramentos fúnebres do luto,
tuto fantasmático; assim, o objeto da inten- a melancolia confere a fantasmagórica rea-
ção melancólica é, ao mesmo tempo, real lidade da perda; mas enquanto luto por um
e irreal, incorporado e perdido, afirmado objeto inapropriável, sua estratégia abre
e negado. Não é surpreendente que Freud espaço para a existência do irreal e deli-
fale de “um triunfo do objeto sobre o ego”. mita uma cena na qual o ego pode entrar
Curioso triunfo através da supressão: no em relação com isso e tentar uma apropria-
próprio gesto que suprime, o melancólico ção a que nenhuma posse pode se equipa-
manifesta sua extrema fidelidade ao objeto. rar e sobre a qual nenhuma perda pode
Tal como na fase oral, a ambiguidade da incidir. Então, se a melancolia consegue se
relação melancólica vem assim assimilada apropriar do próprio objeto na medida em
ao abocanhar canibalístico, que destrói e ao que afirma sua perda, compreende-se por
mesmo tempo incorpora o objeto da libido. que Freud deu tanto destaque à ambivalên-
Desse modo, a melancolia não consiste cia da intenção melancólica, até distingui-
de uma reação regressiva à perda do objeto -la como seu caráter essencial. Em suma,
de amor, mas da capacidade fantasmática de a acirrada batalha entre ódio e amor em
torno do objeto se constitui em um daque-
les compromissos que só são possíveis sob o
domínio das leis do inconsciente.
Outro caminho do processo melancó-
lico é o caráter fantasmático: o sujeito se

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afasta da realidade e se agarra ao objeto Assim, a melancolia aparece como um


perdido graças a uma psicose alucinató- processo erótico, empenhado em um ambí-
ria do desejo, como uma reação à perda guo comércio com os fantasmas. E a perda
do objeto que a realidade afirma e o ego imaginária que ocupa obsessivamente a
nega por não poder suportar. Ao romper intenção melancólica não tem um objeto
com a realidade, o ego a retira do sistema real; sua fúnebre estratégia é dirigida à cap-
consciente e o fantasma do desejo pode tura impossível do fantasma em sua dupla
penetrar na consciência e ser aceito como polaridade: apropriação do incorpóreo no
uma realidade melhor. Vale lembrar que, gozo do inatingível.
no mecanismo do sonho, os fantasmas do
desejo conseguem iludir o estatuto do ego
e se introduzir na consciência, sem, con-
tudo, romper com a realidade. Nota
Na teoria medieval, a síndrome do
1 “Em Saturno e a melancolia, de Klibansky, Panofsky
humor negro, que estava estreitamente e Saxl […] e Studies in iconology [de Panofsky] […]
ligada à hipertrofia da faculdade fantás- se encontra abundante e rigorosa informação sobre
a época, a divulgação de um novo pensamento, neo-
tica, pode ser uma referência ao conceito platônico, cabalístico, alquímico, através das tradu-
de Eros como um processo fantasmático ções devidas a Marsilio Ficino, Reuchlin, Pico della
com larga expansão na vida do espírito. Mirandola, os grandes expoentes do Humanismo e
Renascimento. […] Na criação artística de Dürer, a
A fantasia concebida como corpo sutil da melancolia tanto pode representar a pausa depres-
alma recebe a imagem do objeto e forma siva, depois de completada uma obra, como um com-
passo de espera em que alguma coisa se aguarda, seja
os fantasmas nos sonhos, e pode destacar-se a revelação, seja a mudança. No exercício artístico,
do corpo para estabelecer contatos e visões a espera pela inspiração pode traduzir-se num tédio
sobrenaturais. A mesma teoria permitia melancólico, que só um novo impulso virá modificar”
(Centeno, 2007, on-line).
explicar a gênese do amor: uma imagem
interior, portanto, um fantasma impresso
através do olhar, é origem e objeto do ena-
moramento; esse simulacro mental podia
gerar uma autêntica paixão amorosa.

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116 Ensaio sobre a melancolia:
suas origens, sua dialética, seus caminhos tortuosos e seu destino inelutável
Sylvia Salles Godoy de Souza Soares

Ensayo sobre la melancolía: sus orígenes, Essay on melancholy: its origins, dialectic, winding
su dialéctica, sus caminos tortuosos y su destino paths, and ineluctable destiny
ineluctable
Inspired by the work of the Italian philosopher
Inspirada por las obras del filósofo Giorgio Agamben, Giorgio Agamben, the author ponders over the
la autora hace una reflexión sobre la genealogía de genealogy of melancholy, starting from patristics
la melancolía, a partir de referencias patrísticas de la references in the Middle Ages – when it was termed
época medieval – que la denominaban “acedia” –, “acedia” –, passing through associations with
asociaciones con la cosmología occidental y distintas western cosmology and other theories throughout
teorías surgidas en el transcurso de la historia, hasta history, to its current expressions. The core of this
llegar a sus manifestaciones actuales. Este trabajo paper is based on Freud’s work “Mourning and
se respalda en Freud – “Luto y melancolía” – y en melancholy” and on the peculiar review made by
la particular lectura de Agamben, que, al cotejar Giorgio Agamben. By comparing psychoanalytic
la interpretación psicoanalítica del mecanismo de understanding of the mechanism of melancholy
la melancolía con el complejo humoral saturnino, with the saturnine humoral complex, Agamben
destaca dos elementos descritos en la acedia: el receso emphasizes two elements of acedia: recess of the
del objeto y el retirarse en sí mismo de la intención object and a self-alienation from the contemplative
contemplativa. La autora aborda los conceptos de las intention. The author also writes about concepts of
relaciones de objeto, del fetichismo y del narcisismo object relations, fetichism and narcissism, in order
para aclarar la dialéctica de las relaciones, su tortuosa to clarify the relational dialectic, its tortuous intent
intención en busca del objeto y la naturaleza to pursue the object, and the melancholic nature
melancólica que subyaz en la sombra de esos procesos. underlying these processes.
Palabras clave: genealogía de la melancolía; religión; Keywords: genealogy of melancholy; religion;
fantasmagoría; dialéctica; objeto del deseo. phantasmagoria; dialectic; object of desire.

Referências
Agamben, G. (2011). Stanze: la parola e il fantasma nella 275-291). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
cultura occidentale. Torino: Picola. publicado em 1917[1915])
Centeno, Yvette (2007). Melancolia de Dürer. Literatura e Freud, S. (1975). Esboço de psicanálise. In S. Freud, Edi-
Arte. 23 nov. 2007. Recuperado de http://literaturaearte. ção standard brasileira das obras psicológicas comple-
blogspot.com.br/2007/11/melancolia-de-durer.html. tas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp.
Freud, S. (1974). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição 169-237). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
standard brasileira das obras psicológicas completas publicado em 1938).
de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp.

[Recebido em 24.10.2013, aceito em 10.10.2014] Sylvia Salles Godoy de Souza Soares


Al. Casa Branca, 1.099/31
01408-001 São Paulo, SP
sylviagodoy@uol.com.br

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