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r Po pope | { Directed Coleco: Artur Morto Didlogos Sobre a Religiao Natural Co i David HUME DEDALUS - Acervo - FFLCH-GE 21100025926 Didlogos Sobre sede et te a Religiao Natural © desta trust: Eigaes 70 da Intodusioe nous: Alvaro None e Edges 70 Cape de José Manuel Reis Denso Lezal n* 25036708 ISBN: 72442403 . Tradugio, introdugaio ¢ notas Paso, ng «stant: m B Alvaro Nunes EDIGOES 70, La. cm Seembo de 2005 SBD-FFLCH.USP EDIGOES 70, La, Ros Luciano Conde, 123 "1° Fag” 1069-157 Lisboa / Potusa A Toles: 213190240 ~ Fax; 213190289, AN ‘emmil ei 7amaselepaep at obra est prtelda pele. No pode ser repro, oto ou em parte, qualquer que sea 0 modo utlizado, Incuindo Totodpia€ ero, sem previa autorzacio do Faia. ‘Gualguertanspesso 8 le dos Diets de Astor ser passve de provedimento jut edicses 70 indice ivTRODUCAO. PANFILO A HERMIPO Parte 1 Parte HL Parte HL Parte 1V Parte V. Parte VI Parte VIL. Paste VII Parte 1X Parte X. Parte XI Parte XI BIBLIOGRAFIA INDICE REMISSIVO um Rr 17 149 Introdugaio Vida e obra de David Hume David Hume nasceu a7 de Maio de 1711, em Edimburgo, ‘numa familia de pequenos proprietiris rurais. Em A Minha Vida, @ pequena autobiografia que escrevew pouco antes de rmorrer, em Agosto de 1776, conta que devido ao seu tempe- ramento estudioso © a0 seu gosto pelas letras a familia ‘mandou-o estudar Direito para a Universidade de Edimbur- g0, No entanto, Hume sentiu pelo estudo do Direito uma ‘aaversio insuperiveb» e, em vez disso, decidiu dedicar-se cexclusivamente 4 filosofia, Mudou-se para Franga, para a cidade de La Fléche, em cujo colégio jesulta Descartes estudara, ai, entre os anos de 1734 e 1737, escreveu a sta primeira’ e ~ unanimemente considerada ~ mais importante ‘obra, 0 Tratado da Natwreza Humana, na qual apresenta ‘uma flosofia de cari2 empirista, naturalista © eéptico. Re~ ‘gressou a Inglaterra e em 1739 © 1740 publicou © Tratadlo, ue, segundo ele, foi um nado-morto e no despertou qual- quer interesse ou eriticas, como diz, dos fanticos. Apesar deste insucesso, publicou em 1741 e 1742 os Ensaios Morais @ Politicos, que tiveram melhor recepgo do piblico, Em 1% Driv sone & Reuciko NATURAL 1744, candidatou-se ao lugar de professor de Filosofia Moral « Peumitica em Edimburgo e, seis anos mais tarde, a0 de Logica, em Glasgow. Os seus opositores defenderam, com base no Trarado, que Hume era herético, eépticae ateu, © que foi mais do que suficiente para que em ambos 0s casos © lugar ndo the fosse atribuido. Depois disso, durante cerca de ‘um ano foi tutor do Marqués de Annandale, que descobriu ser louco, e, convidado para seu secretirio, participou com 0 general James St. Clair numa expedigio militar contra 0 Quebee francés, que acabou por se transformar num ataque infutifero a costa francesa. Hume voltou a acompanhar St Clair numa missio diplomiética a Viena e Tarim, em 1748. Convencido de que 0 desaire do Trarado se devia mais 20 estilo do que ds ideias nele apresentadas, reformulou o Livro 1 (Sobre o entendimento humano) © o Livro Ill (sobre a moral) € em 1748 € 1751 publicou-os com os tiulos de Ensaios Filosdficos sobre 0 Entendimento Humano (mais larde Investigacdo sobre o Entendimento Humano) € Investigagdo sobre 0s Principios da Moral, Em 1752 publicou os Diseursas Politicos e, entre 1754 e 1762, depois de ter sido nomeado bibliotecério da Biblioteca da Facul- dade dos Advogados de Edimburgo, publicow uma Historia de Inglaterra em seis volumes, que abrange o periodo desde 1 invastio de Jilio César & revolueao de 1688, e que, apesar ddos lamentos de Hume a propésito da sua recepexo inicial, Ihe trouxe reconhecimento piblico e independéncia finan- ceita, Em 1757, sairam as Quatro Dissertagdes (uma das quais era a Histéria Natural da Religiao, o texto. mais importante que Hume publicou em vida acerea da religito), Em 1763, aceitou o convite do embaixador em Franga, Lorde Herllord, para ser o seu secretirio particular. Esteve trés anos em Paris, onde foi também secretério de embaixada e encarregado de negécios. Durante este periodo, conheceu conviveu com alguns dos principals pensadores franceses do seu tempo, como Diderot, D'Alembert ¢ d'Holbach, x emmonucko [No regresso a Inglatera, em 1766, deu refiigioa Rousseau, aque era perseguido na Suiga, No entanto, Rousseau, devido ao seu eardeter parandico, rapidamente acusou Hume de mé- “fe de conspirar contra ele, ¢ a amizade acabou em desa- venga. Apés ter desempenhado, em Londres, nos anos de 1767 ¢ 1768, o cargo de sub-secretirio de estado do Depar- tamento do Norte, Hume retirou-se para a sua cidade natal, onde viveu confortavelmente os seus iltimos anos, revendo e preparando as suas obras para novas edigies Em 1775 adoecen, julga-se que com cancro intestinal. Supor- tou calma e pacificamente a doenga que rapidamente peree- bu ser incurdvel, tendo vindo a morrer a 25 de Agosto de 1776. Depois da morte de Hume foram publicados virios eseri- tos seus até af inéditos. O primeiro foi a sua autobiografia, A ‘Minha Vida, Bim 1779 foram publicados os Didlogos sobre a Religido Natural e, por fim, em 1782, 0s dois ensaios originalmente eseritos para as Dissertagdes de 1757 (“Do Suicidio” e “Da Imortalidade da Alma”) e que tinham sido retirados devido & polémica que provocaram. Apesar dos Iamentos constantes que percorrem a sua autobiografia acerea da forma como a sua obra foi recebida pelos seus contemporineos, a sua reputagio cresceu ao longo dda sua vida, a ponto de ser considerado uma das prineipais figuras das letras do seu tempo e 0 mais importante filésofo de lingua inglesa de todos os tempos. A importincia dos eseritos sobre religido na obra de Hume A importincia que Hume confere aos temas religiosos, algumas vezes negada no passado, esti fora de questto, Hume no esereveu tio profusamente acerea de qualquer XI Diéuoo0s some « Re1sciKo Naval ‘outro assunto, com excepgo da historia), O teor dos seus textos é, na maior parte das vezes,crtico, As seogdes X e XI ("Dos Milagres” e “De uma Providéneia particular e de wm estado futuro”) da Fhvestigagdo sobre o Entendimento Huma ‘no atacam, sucessivamente, a existéncia de milagres © a hipdtese do desfgnio, que consttuiam os principais suportes 4a religido revelada e da religifo natural no século XVIIL ‘Outros ensaios, dispersos por virias obras ow nunca publica. dos durante a sua vida, também versam sobre religio. aso do ensaio “Da Superstiglo e do Entusiasmo", incluido nos Ensaios Morais e Politicos e dirigido contra aquilo a que cchama as duas corrupgdes da verdadeira religido, a superst- ¢gi0, que associa com 0 catolicismo, ¢ © entusiasmo, que atribui a todas as religides que resultaram da Reforma; “Do Suicidio", onde defende que o suicidio nfo & imoral nem inreligioso; e “Da Imortalidade da Alma”, onde afirma haver boas razdes para julgar que a alma é mortal. As suas duas principsis obras sobre: a religito, « Histéria Natural da Religido © 0s Didlogos sobre a Religido Natural, expiiem as causas psicoldgicas © sociolégicas das crengas teligiosas e cexaminam os fundamentos racionais da crenga em Deus. ‘Também 0 Tratado sobre a Natureza Humana, embora nfo incida ditectamente sobre religito, tem consequéncias que ‘nfo podem ser menosprezadas, A anélise da relagio de causa € feito, na Parte 3 do Livro I, que a reduz a um mero mecanisino psicolbgico sem correspondéneia na natureza das coisas, levanta dificuldades ao argumento cosmolégico; © a anilise da ideia de existéncia, na secgaio VI da Parte 2 do Livro I, conduz a conclusdo de que a existéncia aiio € um predicado, uma ideia que Kant iri explorar para criticar directamente o argumento ontoldgico, Mesmo a Investigacao (9 CE James Noxon, Hie’ Philosophical Developmen p. 165 © A. Gaskin, ‘Hume on Religion’, in The Cambridge Companion to Hume, p-313'¢ Hume's Philosophy of Religion p. xi Inernopucko sobre os Principlos ca Moral, embora nfo seja uma obra sobte religito, tem implicagées de grande importancia para a religido, porque apresenta uma moral naturalsta © secular esta forma, Hume trata a maior parte das questoes cléssicas da filosofia da regio (a existéncia de Deus, os ‘milagees, o problema do mal, a origem do fendmeno religio- 80 ¢ as relagdes da religiio com a moral) e devido a0 seu pendor critica, no conjunto, a sua obra constitui um ataque de ‘grande extensio aos principais dogmas © argumentos da religio, Neste contexto, os Didlogos sobre a Religiao Natu- ral surgem como a principal e mais formidével pega de um ‘ataque, cuja dimensto s6 pode ser compreendida pela leiturs ‘conjunta dos inimeros livros, ensaios e eartas pelos quais, directa ou indirectamente, esse ataque se estende. Apesar disso, devido A relevancia dos temas discutidos, & profundi- dade ‘da argumentaglo, originalidade © importancia das conclusdes, os Didlogos, mesmo considerados isoladamente, so uma obra essencial para a compreensio do pensamento de Hume sobre religiio e para a discussie contemporiinea dos principais problemas de filosofia da religifo, 0 que thes confere um estatuto sem paralelo entre as obras desta area da Filosofia, 0s Dislogos 0s Didlogs fram esr nos primeios as a cada de 50 do secu XVI, nai ou menos nm nea altura da tra Narra da Rigo, ¢ Hur eos ets menos dhas vez, pr volta de 1760 pouto antes de moter Nos fos que se sega sin redo, mostotas vros mig, os qual endo em con as ues ge pera ora nto dos dfensores mais ono a eligi, 0 #00 Selim 8 noo publica Hue safest conslho Ghrante mis de vine anos, mas quando persion que 4 xa Dikuogos some A Reiciko NATURAL ddoenga que 0 afectava era incuravel e conduziria iremedia- ‘velmente ao seu fim, tomou medidas euidadosas e detalhadas para assegurar que seriam publicados apés a sua morte, No seu lestamento, deixou-0s primeiro a Adam Smith, de quem era amigo, e como este sempre mostrou relutincia em publies- los, deixou-os em seguida 20 seu editor, William Strahan, com a indicagao de que se no fossem publicados no espaco de trés anos ap6s a sua morte, passariam para a posse do seu sobrinho para que o fizesse. Os Didlogos acabaram por ser publicados pelo sobrinho de Hume em 1779, trés anos ap6s a sua morte), Sto cinco as personagens dos Didlogos. Duas delas, Pinfilo © Hérmipo, tém um papel diminuto. Panfilo € o narrador, Ea ele que cabe fazer algumas consideragdes sobre ‘0 método de exposi¢a0 adoptado, a natureza do tema tratado «, no final, um balango dos pontos de vista discutidos. O papel de Hérmipo ¢ ainda menor: & apenas o interlocutor {quem a narrativa de Pantilo se drige e, por esse motivo, no intervém na obta, As personagens mais importantes, as que participam acti- vvamente na discussio, so Cleantes, que defende 0 ponto de vista teista tradicional ©, em particular, argumento do Aesignio; Demea, © mistice que propde uma versio a priori do argumento cosmolégico; e Filon, 0 eéptico que advoga suspensio do juizo em matéria de religio. ‘Temse discutido abundantemente a origem dos seus nomes, ‘quem representam e, em particular, que petsonagem represent Hume.£ possivel que, como afirma Kemp Smith, Hume tenha sido influenciado pelo De Natura Deorum de Cicero() © que os (©) Par uma descrgtodetalhads deste aspect e, de un todo geval, ‘para td o que ode a produ ea publiago dos Didlogos, melhor Fonte € ainda a fonga intodagie de Norman Kenp Smith sun edigdo dos Didlogas (€) Marc Tilo Ceer, Da Nanneza das Dewses, Lisboa: Vega, 2004, xv | Ismovucko hnomes das suas personagens al tenham origem(*). Outra hipétese, sugerida por J. C. A. Gaskin, é a de que, apesar da relagio com Cicero, Hume tenha escolhide os nomes da maior parte das suas personagens ao acaso ou os tenba encontrado juntos num dos seus autores clissicos favori- tos(). Em todo 0 caso, como afirma Gaskin, nem as persona gens de Hume representam as escolas presentes no dilogo de Cicero, nem os argumentos das suas personagens so 0s utilizados no Da Natureza dos Deuses. Mais interessante e mais importante para a compreensio dos Ditilogas & @ questio de saber quem representam as personagens e, sobretudo, qual delas & porta-voz de Hume, De uma maneira geral, os especialistas pensam que Joseph Butler, 0 flésofo do seu tempo por quem Hume tinka mais admiragio, foi o modelo para Cleantes, e que Samuel Clarke("), {que apresentou nas conferéncias de Boyle de 1704 e 1705, ‘uma prova @ prior! da existéncia de Deus, constituiu 0 ‘modelo para Demea. O modelo para Filon foi, na opinido da generalidade dos comentadores, o proprio Hume, Esta ideia € de algum modo confirmada por Hume numa carta a Sir bert Elliot, na qual Ihe pede ajuda para a composigo dos argumentas dos Didlogos e lhe sugere que assuma a posig30 (0) Ost protagonists no didlogo de Clee so Cota, o Acadenico cu Cépico, Balbo, o Estee, que representa 9 ortodona, e Veleo, 2 Fpicwrista, Nos Didlogs de Hume, Fon coresponde a Cota ¢ Cleanies 1 Balbo. escola de Hume dos somes “Flin” e‘Cleants" oi provavel ‘mente determina pels eeunstincia de Fl se 0 nome do professor fe Cota ¢ Cleanies se" um dos mestes filosties de Balbo» (Kemp Smith (0%), Hume's Dialogs, p. 60) (0) «Nos Didlogos de Coren de Luciano, ts pesonagens ftcias infil, “um jovem’, Filo, “um srmadore Demea, “um general ~ so ‘mencionador na mesma pga. (1. C, A. Gaskia (or), Dialogues and [Natural History of Religion, Oxlord: Oxford University Pres, 1993, p- XX). (6) CE noted pina 94 xv udvocis sone & RELIGIAO NATURAL 4e Cleantes, ficando ele proprio com a personagem de Filon, que confessa poder assumir com naturalidade(’). Embora Filon represente Hume nfo &, no entanto, 0 seu nico repre~ sentante. Cleantes, nas passagens em que esti de acordo com Hume e, em particular, naquelas em que se opde a Demea — como € 0 caso quando na Parte X refuta, com argumentos claramente humeanos, 0 argumento a priori — também tepre- sents Hume, E 0 mesmo acontece, embora menos vezes, com Demea(’ 0s temas dos Didlogos © tema central dos Didlogos € a natureza de Deus, ou melhor, a questo de saber se, como os teistas afirmam, a causa do universo é um ser sumamente bom, poderoso sibio. A propésito deste tema, Hume aborda um conjunto de problemas de grande importincia para a filosofia da regio © argumento do designio, cuja discussie comega na Parte I ese prolonga até a Parte VIII, fem um lugar t90 central que € frequente os Diélogas serem tratados como uma obra exclusivamente sobre esse problema, Mas entre os grandes temas dos Didogos estio também aquilo a que Hume chara © argumento a priori (uma versio do argumento de Samuel Clarke, acima referido),tratado na Parte IX; 0 problema do mal, discutido nas Partes X e XI; e as relagsies entre areligifo 4 moral, que constituem o tema da Parte XI ¢ iltima dos Diélogos. Todos estes problemas t8m hoje um lugar de relevo na filosofia da religido e, em alguns casos, a discussio ainda hhoje se processa em moldes muito idénticos aos dos Didilo- (©) Kemp Smith (on), Hume’ Dialogues, p. 88 (€) CE David O'Connor, Routledge Philosophy Guidebook to Hume ‘on Religion, Posticio Et ito constitu uma inradugtoe uma discus So bastante detahada dos Dilogos xv Iernonuicko ‘gos, No entanto, mais do que a relevancia dessas questies para a filosofia da religito, o que cativao letor dos Didlogos a sua relapgo com problemas que interessam a0 homem desde tempos imemoriais: O que é 0 mundo? E a obra de um espirito ou do turbillio da matéria e das forgas cegas da natureza? E qual o nosso lugar nele? Haveré uma finalidade para a nossa existéncia ou somos apenas o resultado fortuito de leis eésmicas que causario o nosso fim com tanta indife- renga quanto aquela com que nos deram origem? Estas {questdes fascinaram os pensadores da Antiguidade e inspi- sam grande parte da investigagio actual em cosmologia. Os Didlogos entroncam firmemente nesta tradigo e apos sécu- Jos em que a religito determinou totalmente o tratamento deste tipo de assuntos 0 leitor moderno nao pode deixar de se atir encantado por ver surgit uma obra que retoma a discussio destas questies fundamentals com a liberdade intelectual e @ profundidade dos filésofos da Antiguidade, © argumento do designio Todas as religies so, de uma mancica geral, compostas por verdades religisas,afimagBes consideradss pelos fiis como indiscutivelmente verdaderas, por rita erimenias com que esses figis adoram a divindade. Por sua vez, a8 verdades religiosas podem, quanto forma como as conhece- mos, ser verdades reveladas, verdades de que 0 erente tem conhecimento por revelagao divins, ou verdades de razdo, isto 6, verdades que podem ser conhecidas meramente pela razAo, independentemente de serem ou nio também conheci- das por revelago. A Santissima Trindade & um bom exemplo do primeio tipo de verdades existéncia de Deus do iltimo tipo. As primeira so, por esse motivo, objeto da religio revelada, a0 passo que as iimas so’ objecto da religido natural teologia natural Xvit rdvocios some: « RELIGIAO NATURAL Embora as verdades reveladas sejam o elemento central da tradigio religiosa ocidental, 0s teélogos ¢ os filésolbs existios procuraram, desde muito cedo e tendo por ponto de partida 2 filosofia grega antiga, formula argumentos para provar a existéncia de Deus. Desses argumentos, 0s mais conhecidos sho 0 argumento ontol6gico de Santo Anselmo, o argumento ccosmolégico e o argumento do designio, De todos, o argumen- to do designio & histricae filosoficamente 0 mais importante, A ideia de designio, mesmo na sua forma mais solisticada, muito antiga, Tem as suas raizes nas especulagdes Hilos6fi- cas gregas acerca da natureza do universo. Ocorre primeiro em Platto, nos dislogos Fédon (97) © Timeu (46 de), ¢ depois em Aristiteles, que faz dela uma das suas quatro causas, a causa final). Aparece de seguida em Cicero("), que realga a complexidade dos seres vivos, chama a atengo para a su semelhanga com os artefactos humanos e conclui que ngo podem ter tido uma origem casual. No mundo medieval cristio, a ideia volta surgir na éltima das *Cinco Vis’ com que S. Tomas de Aquino pretende provar a existén- cia de Deus("). A cigncia moderna, que resultou da revolugio Cientifiea do séeulo XVI, tendeu a rejeitar as explicagdes finalistas, mas algumas cigneias entio emergentes, como a astronomia, a quimica ou a biologia, forneceram exemplos de sistemas de tal modo complexos que pareceu impossivel que pudessem ter resultado do acaso ou das meras leis da nature- za, Iso fomou o argumento do designio tio popular, mesmo cenire os cientisas, que era unanimemente considerado uma (©) Por explo, na Fisica, I, 194 b Da Nature dos Dense, 34-35 © 37. Bcamb, por exemplo, tes, em Hl, 15, «propio da ordem do univers, O Liveo I, no gu exposteo ponte de vist etdico acer da natura dos deuses, contéa, ‘um grande nimer derefeéncas mais o menos expla ao arguments do desieno, () Sima Teoligice, Parte 1, Questo 2, Aigo 3 xvil ermonucko prova incontstivel da existincia de Deus(") As eiéncias auras e a teologia natural tomaram-se assim duns faces da testa moeda, com as primeiras a forncer 9s exemplos em Que se apoiavam as pretenses da segunda, E neste contexto de optimism, mas também de dogmatismo religioso,em que tego reveled eeligido naturel, verdades de fee verdades de rato, se wnem para afirmar a existéncin de Deus c 08 seus ditames moras, que os Didlogos surgem em 179. Hume j tinba antes atacado a religito natural, Na Seogao XI da Investigagdo. sobre 0 Entendmento Humano, embora de forma breve, pde em causa o angumento do designe a sua suposta eapacidade de provar a existéncia de uma causa intelgente do universo. Os Didlogos slargam e rfinam esse atague & pretense racionalidade das erenas rligiosas®) (© argamento do. designio &, tal como o-argumento cosmoldgico, um argumento baserda no mundo fisieo, Mas, 40 contirio do argumento cosmolsgico, nto procura inert 2 existinia de Deus da existéncin do mundo © da suposta necessdade de este, como tudo 0 mais, ter uma causa Procura antes provar a existéncin de Deus a partir da ordem ¢ do designio que o mundo revel. Além disso, © argumento do design é um argumento a posteriori st &, um argue mento eujas premissassio estabelecidas com base na expe- riéncin, Por ext motivo, pode apenas aspirar a mastrar que a tnisiéncia de Deus tem um grau clevado de probabiliade # costume dstinguir das versdes do argumento do desig- ni, consoante 0 argumento ponh énfase na ordem do (©) Por exemple, por Newton, que vie a mecinin celeste como uma prov da eisténca de design eformulou tanto uma versio cosmotogicn ‘como uma vers bilbgica do argument do designio. CX Niall Shanks, God the Devi, ane] Darvin, pp. 3335. 5) melhor obra sabre a histria do conceito « do argumento do Aesignio € lve 0 lvro de Michael Rose, Darvin and Designs Does Evolution Have a Purpose? XIX Dudvocos sone & ReLGiso NATURAL mundo ov na adequagio dos objects aos fins, A primeira versio do argumento chama-se nomoldgica, da palavra grees rromos, que significa norma ou Ii; segunda chama-se feleoligiea, da palavra gregs felos, que significa fim ow propésito. Assim, o argumento do designio pode ser uma tentativa de provar a exsténcia de Des partir da ordem do mundo, caso em que estaremos perante a versfo nomoldgca do argimento, ot & partir da existénci de um propdsito ot fim, sja no mundo como ui todo, sea numa clase de sees «do mundo, como 08 organiamos vivos, caso em que se faz pelo a versio teleoldgiea do argument"). Hume oscil, por vezes, ere ma ¢ outa versio, mas, n msior parte dos ‘3305, no Fz qualquer distingo entre ambas e até fequen- teas duas versbes surgirem juntas ‘A apresentagio que Cleans fez do argumento na Parte I dos Didiogos 6, justament, famose hai © mundo em redor. Contemplai-o no todo e em cada uma das suas partes. Verificaeis que é apenas uma grande ‘iquina, subdividida num nimero infnito de miquinas meno res, que admitem noves subdivisdes num grau que ulteapassa o {que os sentidos as faculdades humanas podem investigar & explicar. Todas estas diversas miquinas, © mesmo as suas partes mais pequenas, esto austadas umas is outras com uma precisto que fascina todos aqueles que j as contemparam. Por toda a natureza, a extraordindria adaptagdo dos meios aos fins sssemelha-se exactamente, embora as exceda em muilo, 48 produpdes da invensio, designio, pensamento, sabedoria © inteigencia humanas, Por consequéncia, uma vez que 0s ef (*) Bsa ditingto aparece, por exemple, om J.C. A. Gaskin, Hume’ Philosophy of Religion p. 13. Uma distingso diterenie & & que Nill Shanks faz em God, the Devil, and Darwin (pp. 15 © 22) ente dois séaeros de argumeta do dsigio, comalico « biolSgco,consoente 4 estas de que 0 atgumento parte sejam de um tipo ot do out, [Nunca houvee continua tno haver uma versio padeio do argument xx 1 Inrmopucko tos sio_semelhantes, somos levados 4 inferr, por tous as regras da analogia, que as causas também sio semethantes & ‘que 0 Autor da natureza é um pouco similar & mente humana, ‘embora dotado de faculdades muito mais vastas, roporcionais A grandeza da obra que executou, Por este argumento a posteriori © apenas por este argument, provames ao mesmo tempo a existncia de uma Deidadee a sua semelhanga com uma mente © uma intligéncia humanas. (Didlogos, Il, 28)(°) Nesta passagem, a partir da semelhanga entre os artefac- tos, isto é, 0 objectos produzidos pelos seres humanos, ¢ 08 ‘bjectos naturais, Cleantes procura estabelecer a semelhanga dda causa do universo com os seres humanos. O argumento, livre da informagdo adicional que 0 rodeia, pode ser e ciado assim: Primeica premissa: © mundo revela ordem, otganizagio um completo ajusamento de todas as sis partes ‘Segunda premissa: © mundo, embora num gra muito supe= rior, assemelhase ds produgdes dos seres humane e, tal ono eas, fem um propésito ou designo, Conclusio: existe um autor do mundo, ¢ esse autor, embora com poderes muito maiores, proporcionais& bra que reaizou, 6 semelhante aos seres humans, Neste argumento, a segunda premissa é de importinci capital E isto por duas r2z6es: 1) ao estabelecer a semelha ‘8 entre objectos natura e attics fz. do argumento um arguimento por analogia; e, gragas a isso, 2) permite at (©) A exposigio mais famosa e ditcutida do angumento do designio que no essencildsemethante& de Hime ~€ de Wills Paley obra Natural Theology, or Evidence of the Existence and Attribute of the Deity collected from the Appearances of Nature, publicads en 1802, vimtee us anos depois dos Didlogs,aparentemente no sais completo esconhecimento da exis de Home, XXI DrAvocos sone a ReLsciko NATURAL que, tal como os artefactos, o mundo também tem designio, Nao € de estranhar, por isso, que boa parte das eritcas de Hume a0 argumento sejam dirigidas contra esta segunda premissa, Mas, antes de avangarmos para essas criticas, ‘vejamos um pouco melhor o que caracteriza os argumentos por analogia (Os argumentos por analogia so um dos tipos de argumen- tos indutivos e, por isso, ndo podem demonstrar que a conchisio ¢ verdadeira, mas apenas mostrar que é provivvel {que seja verdadeira, Outra caracteristica importante dos argu- mentos por analogia & que a sua forga depende da informagio disponivel e, sobretudo, da relevancia dessa informagio para 4 conclusio que procura estabelecer. Vejamos melhor o que isto signitica Um argumento por analogia tem, normalmente, uma for ‘ma como a seguint: ‘As entidades e tim as propriedades 4, B, C,¢ Z ‘A entidade n tem a propriedades 4, B e C. Logo, a entidade m tem a propriedade Z. A forga de um argumento por anslogia depende de varias condigdes: 1) 0 grau de semelhanga entre as proptiedades partilhadas pelas entidades comparadas (se a scmelhanga clevada, a probabilidade de a conclusio ser verdadeira clevada; se a semelhanga € baixa, a probabilidade de a conclusio ser verdadeira é também baixa); 2) a relevincia das semelhangas para a conclusto a que se pretende chegar (Ge as propriedades comparadas so semelhantes e so rele- vvantes para o que se pretende concluir, a analogia é forte e a probabilidade da conclusto ser verdadeira também; mas se a analogia nfo tem qualquer relagio com 0 que se pretende cconeluir, a probabilidade de a conclusio ser verdadeira & baixa); 3) © nimero das semelhangas relevantes (quanto taior o niimero de semelhangas relevantes para a conclusio xxi ernopucho ‘mais forte € a analogia); 4) a natureza e grau das diferenas (as diferengas podem enfraquecer ou fortalecer 0 argumento, consoante acentuem ou nfo a relevincia das propriedades para a conclusio). Destas condigdes, a semelhanga entre as entidades comparadas ¢ talvez. a mais importante, Nao é de admirar, portanto, que algumas das criticas ao argumento do desfgnio se centrem neste aspecto e procurem mostrar que a analogia & fraca, A critica de Hume ao argumento do designio A cetitica de Hume a0 argumento do designio & muito diversificada. Dada a impossibilidade de, no espago desta introdugo, apresentar ~e ainda menos diseutir ~ essa ertica em toda a Sua riqueza e detalhe, limitamo-nos a esborar os principais argumentos Fragueza da analogia Para Hume, a forga de um argumento por analogia & proporcional semelhanga entre os objectos comparados. ‘Quando existe uma exacta semelhanga entre os objectos, 0 rgumento tem a maxima forgae permite, a partir daquilo que sabemos acerca de uns, estabelecer com (oda a certeza alo acerca do outro ou dos outros. Mas, quando no hi uma semelhanga exacta, a forga do argumento diminui em propor- fo e tanto mais quanto menos semelhantes forem 0s objec~ fos, tomando, no limite, @ analogia extremamente fraca, Assim, «Se vemos uma casa, CLEANTES, coneluimos, com a maior das certezas, que (eve um arquitecto ou construtor, porque este & precisamente o género de efeito que vimos proceder daquele género de causa.» (Didiloges, Hl, 31). Nao & isto, no entanto, que acontece quando comparamos o univer- xxl Dukuocos soore « Rissciho Naru Iemonucio ‘so com uma casa, «Mas, certamente nfo ireis afirmar que 0 universo se parece de tal modo com uma casa que podemos com @ mesma certeza inferir uma causa similar ou que & analogia é agui completa e perfita. A dissimilitude & t80 impressionante que 0 méximo a que podeis aspirar neste ponto € a uma suposigo, uma eonjectura, uma presungdo a respeito duma causa similar» (Didlogos, I, 31). Em resumo, devido ao facto de ter por base uma analogia firaca, o argumento do designio, em vez de permitir provar, como pretende Cleantes, que a Divindade & semelhante a0 hhomem, permite apenas conjecturar, supor ou presumir que existe uma semelhanga entre ambos. Isto é um resultado bastante mais fraco do que aquele que Cleantes pretendia estabelecer, para quem as diferengas entre 0s objectos natu- rais e 0s artefactos constitulam uma garantia segura de que a causa do universo & uma mente com capacidades imensamen- te superiores as da mente humana, A insignificdncia césmica da mente e outras objecgdes Mesmo admitindo, « titulo de hipdtese, que analogia centre 0s artefactos ¢ 0 universo & forte, dai iio decorre que © argumento do designio seja bom. O designio, diz Hume, & ‘uma das causas existentes na natureza (juntamente com o calor, 0 frio, a atracgao © a repulsto, ete.) ¢, tanto quanto sabemos, apenas uma das formas como algumas partes da natureza agem sobre outras, Ora, em primeiro lugar, no é legitimo inferir algo acerea do todo a partir unicamente do que sabemos acerca de uma das suas partes, sobretudo se, como € aqui o eas, existe uma grande desproporgo entre essa parte e 0 todo. Em segundo lugar, mesmo admitindo, a titulo de hipdtese, que fosse legitimo passar da parte para 0 odo, nfo ha qualquer razio para escolher o pensamento © © esignio, que tudo indica ser um principio insignificante © xxiv twirio daquilo que a experigncia parece permitir, tivéssemos ‘a cerleza de que 0 pensamento e o designio so muito mais comuns no universo, isso nfo nos permitiria fazer cextrapolagdes relativas ao periodo da sua formacio e coneluir {que seriam esses mesmos prineipios os utilizados nessas circunstincias("), A singularidade do universo Uma oute rites de Hume tom por basa singular do universe, destcando assim ama diferenga fandamental ene 0 tmiverso ¢ outas espécies de objectos. O raciocinio de Hume é muito simples. E pela experincia que sabemos que uma espécie de abjectos, por exemplo, os artefacts, tm tm eriador, Com base nso, quando vemos outro objecto da ‘mesma espécie,outo artefact, temos boas res para pensar aque este também tem um erador. Mas, no caso do aniverso sta vantagem nfo existe. O smiverso € tinico ©, por esse ‘motivo, nfo temos experiéncia de outros universos nem da forma como tiveram origem, para que possamos, a pati da, infer asa cause. principio por detris deste argument € 0 de que as anaogias Se do nite espéces de objectose fo entre objects singulaes, O universo € um abjecto singular Logo, nenhuma analogia se pode fazer partir delet") A origem da ordem mental ¢ a regressao ad infinitum Outra objecgio de Hume respeita & capacidade da mente para explicar 8 ordem do mundo material, Com base no argu (09 CE Diogo, , 38-3 (©) CE. Didlogos, M38. av limitado. Em terceiro lugar, mesmo admitindo que, 20 con- = Drdvocas sone A RiLciho NATURAL, ‘mento do designio, os telstas explicam a ordem e 0 arranjo do ‘mundo material por iatermédio de uma mente divina que ‘outorga ordem a esse mundo, Mas, para Hume, esta solugdo & insatisfatria, Por um lado, a ordem do mundo mental earece de justficagao tanto quanto a ordem do mundo material; por ‘outro, se, para explicar a ordem do mundo material, remonta- mos ao mundo mental, por que razio paramos ai? B, se onde paramos é completamente arbitrario, por que razo vamos tio Tonge? Néo seria melhor ficarmo-nos pelo mundo material? ‘Afinal, esse mundo parece tio capaz de conter em sia origem dda ordem, quanto © mundo mental ou ideal, «Como podere- mos, entfo, satisfazermo-nos em relagio a causa daquele Ser {que supondes ser 0 Autor da natureza ou, segundo © voss0 sistema antropomérfico, 0 mundo ideal, a0 qual fazeis remon- tar o mundo material? Nao temos raze idénticas para fazer Femontar este mundo ideal a outro mundo ideal ou um novo principio inteligente? Mas se paramos ¢ no avangamos mais, por que razio ir tio longe? Por que niio parar no mundo ‘material? Como podemos dar-nos por satisfeitos sem prosse- guir in infinitum? E, no fim de contas, que satisfaedo existe ‘nessa progresslo infinita? Relembremos a historia do filo Twoiano e do seu clefante. A nada se aplica melhor do que a0 tema actual, Se o mundo material se apoia num mundo ideal similar, este mundo ideal deve apoiar-se nalgum outro, e assim por diant, infinitamente. Seria melhor, portanto, nunca olhar para além do mundo material actual, Ao supor que contém em si mesmo o principio da sua ordem, afirmamos que & de facto Deus e quanto mais cedo chegarmos a esse Ser divino tanto melhor» (Didlogos, IV, $3). A finitude dos atributos da Divindade © principio segundo © qual efeitos semelhantes provam ccausas semelhantes e o principio da proporcionalidade entre XXvi IrmonueXo ‘causas ¢ efeitos, ambos pressupostos pelo argumento do desig- nio, estabelecem virias imitagbes & natureza da Divindade: 1) uma vez que 0 universo nto € infinito, éimpossivel, a partir dele, airmar a infinidade dos atributos de Deus("); 2) como & impossivel determinar se o universo € perfeito, & impossivel atribuir a perfeigao Divindade("); 3) mesmo que o universo seja perfeit, & duvidoso que se possa, com bese nisso, atribuir 420 arlfice todas as perfeigdes da obra, uma vez que 0 mundo pode ser a obra de muitos deuses, todos mais finits e imper- feitos do que a sua propria obra(®); 4) se as divindades sto semelhantes aos homens, entio & possivel que se Ihes asseme- Them também em outras caracteristicas fisicas e tenham sexo, colhos, bocas, narizes, ete); 5) por fim, dada @ aparente imperfeigio do mundo, todas as hip6teses imaginaveis para 0 ‘explicar sto possiveis, desde uma divindade infantil a um deus senil, passando por uma divindade infetior e subalterna(®) A hipstese do mundo-animat e da Divindade como alma do mundo ‘Uma outta objecsio tem origem no principio segundo 0 {qual «quando se observa que varias circunstincias conheci- as sio semelhantes, as desconhecidas revelarsse-do também semelhantes» (Didlogas, VI, 67-68). Filon infere da que 0 tuniverso, como é mais semelhante @ um animal do que aos artefactos humanos, & um animal e que Deus, em vez de ser sua causa, & a sua alma(*), (0) CE. Didogo, V, 61 (09 CF. Didlogo, V, 61 (09 CF. Didlogos, , 62 (0) CF. Didlogn, V, 6465, (©) CF. Didlogos, V, 66, (0) CF. Didlogos, VI, 68 XXvI DDikuog0s soare a RensciNo NATURAL A hipétese da geracdo e vegetagio utra objeceio de Hume parte da maior semethanga que, pelo menos a0s seus olhos, 0 universo revela com os corpos dos animais ¢ das plantas do que com os artefactos. Devido isso, afirma Filon, é, pois, mais provivel que @ sua causa se assemelhe as causas dos primeiros do que as dos iiltimos, pelo que a sua origem deve ser atribuida a geragio ou & ‘egetagio e nfo a um agente inteligente semelhante aos seres shumanos(, A hipétese neo-epicurista ou materialista Para explicar a origem do universo, todas as hipéteses, ‘mesmo as mais absurdas, desde que consistentes com a experiéncia, parecem proviveis. F esse, por exemplo, 0 caso da hipotese epicurista, desde que sofa algumas alteragbes, Segundo esta hipétese, que Hume afirma ser considerada com razo a mais absurda alguma vez proposta, a matéria © © tempo sto infinitos e tudo o que existe tem origem em ‘causas estritamente mecdnicas. Mas, se em vez de se consi docar a matéria infinita, como fez Epicuto, se supuser que & finite — de modo a que numa duragio eterna a mesma ordem organizagio das particulas que a compiem possa ocorrer virias vezes — e dolada de movimento préprio, esta hipdtese lorna-se credivel, porque explica igualmente bem a ordem do mundo € 0 aparente ajustamento dos meios aos fins, mesmo nos seres vivos, sem fazer intervir qualquer forma de desig nio@. Nos Didlogos esta hipétese & usada por Filon apenas pars ‘mostrar a fraqueza do argumento do designio e para justificar (9 Cf. Didlogos, VI, 76 ©) CF Didlogos, VI, 83. xxvalt a yrmopucko 4 sua suspensto do juizo, uma vez que, como diz, & tio provivel quanto a hipétese tefsta, Mas, com Darwin, as coisas mudam de figura, Vejamos porque. A critica darwinista ao argumento do designio No tempo de Darwin, a teoria dominante para explicar os ‘organismos vivos era a teoria da criagio especial divina, Segundo esta teoria, Deus teria criado os seres vives, tal como existem actuslmente, por um acto voluntério, Em consequéncia disso, pensava-se que 0s seres vivos eram ¢ sempre tinham sido como Deus os eriou. © proprio Darwin, durante a sua juventude, pensava que esta teoria era verdadei- ra, Mas, em 1831, efectuou uma viagem de cireum-navega- go no navio FMS Beagle e nos cinco anos que a viagem durou teve a oportunidade de estudar espécies © habitats muito diferentes dos curopeus. Nas ihas Galépagos, os tentilhées chamaram a sua atengio por serem diferentes de itha para ilha ¢ estarem perfeitamente adaptados a0 habitat de cada ilha, por exemplo, com bicos diferentes consoante 0 alimento dominante fosse sementes,frutos ou insectos. Com- preendeu que a explicago mais plausivel para esta diversida- de era a de que os tentilhoes tinham evoluido a partir dos primeiros tentihdes que cheyaram as ilhas, de modo a adap- tarem-se as condigdes especifieas que encontraram. Isto le- vou-0 a abandonar a teoria da criaglo especial divina © a tomar-se evolucionista. Porém, Darwin no foi o primeiro evolucionista, Antes dele, outros investigadores defenderam iqualmente que 0s seres vivos evoluem. Mas foram incapazes de explicar © mecanismo dessa evoluglo. Darwin descobriu a explicag2o quando, jé de volta a Inglaterra, leu 0 Ensaio ‘sobre as Populagdes, de Thomas Malthus, Nesse livro, Malthus afiemava que a populagéo humana eresce numa proporgao geométrica enquanto os meios de subsisténcia xX edtocas some x ReLiGiKo NATURAL crescem nume proporgio aritmética, resultando dai uma pressiio sobre os recursos ambientais, que origina a pobreza, 1 fome e a guerra, Darwin aplicou esta ideia aos seres vivos e fez dela o principio que subjaz a selecelo natural: nascem mais seres vivos do que aqueles que meio ambiente pode sustentar, pelo que aqueles que sfo dotados de variagdes que favorecem a sobrevivencia, sobrevivem e os outros nao, Com 6 tempo, este processo selectivo faz as espécies evoluirem e i origem a novas espécies Por que razio constitu esta teoria uma objeceao a0 argu mento do designio? Porque a sclecgio natural explica a ccomplexidade dos organismos vivos sem invocar a ideia de ‘um propésito ou de um designio ¢, portanto, sem recorrer a ccausas sobrenaturais inteligentes. Em vez disso, recorre a processos estritamente naturis: as leis da fisica aplicadas aos ‘organisms vivos. Mas também porque, ao contritio da hips- tese de Filon — que & uma mera hipétese, formulada apenas ‘pata mostrar a possbilidade de explicagies alternativas igual- ‘mente plausiveis, e assim minar a credibilidade logica do argumeato do designia ~, a teoria de Darwin uma explicagio cefectiva de natureza epicurista e, por isso, di contetido a ‘objecgio de Hume tomando-a muito mais poderosa. 0 argumento do dlesignio na filosofia da religido & nas cléncias contempordneas O eeito conjugedo das criticas de Hume e do darwinismo levou muita gente a pensar que o argumento do designio tem de ser definitivamente abandonado, Mas nem todos pensam ‘dessa maneita, Alguns reconhecem que a versio do argumen- to que Hume diseute nos Didlogos © que William Paley presenta em Teologia Natural foi seriamente afectada por cess eritcas, mas ou julgam possivel reformuli-lo de modo a cvitar os seus efeitos ou julgam haver factos que 96 podem XxX fF mopucko set explicados recorrendo a ideia de um criador inteligente ‘A versio do argumento do designio de Richard Swinburne & tum exemplo do primeiro tipo e 0s argumentos antrépico- teleolégico © da complexidade irredutivel sto exemplos do segundo. Como o argumento do designio é de longe 0 principal t6pico dos Didlogos e continua a estar no centro do debate em filosofia da religido, itemos considerar brevemen- te algumas dessas respostas. A versao de Richard Swinburne Swinburne(*) pensa que ha dois tipos de ordem no univer- so: a ordem espacial, a que também chama regularidades de co-presenga, ¢ a orden temporal ou regularidades de suces- so, como as leis de Newton, A versio do argumento de Hume tem por base a complexidade dos objectos natura, sendo, por isso, um argumento que se baseia na ordem espacial, Darwin, a0 mostrar como a complexidade dos organisms fem origem nas forgas cegas da natuteza, embora nao tenha destruido completamente esta versio do argumen- to, tomou-a muito fiaca, HE, no entanto, possivel construir ‘uma versio muito mais forte ~ uma versio que no seja afectada nem pela eritica de Hume nem pelo darwinismo tendo por ponto de partida, ndo a ordem espacial, mas a ‘ordem temporal. Como a existéncia deste segundo tipo de ordem & extraordiniria, pois 0 universo poderia no obedecer 1 qualquer lei, € preciso explicar as leis da natureza, ou melhor, 0 facto de 0 universo se comportar de acordo com essas leis, Ora, a ciéncia ndo pode explicar estas regularida- des, porque 2 explicagao cientifiea faz-se sempre por inter- médio de outras leis da natureza e so precisamente essas leis, «que ¢ preciso explicar. Portanto, ou as aceitamos como um (©) CF. The Bistence of Gop. 153 XXX Drkvodos sons « Rewiciko NarutAL facto bruto e inexplicdvel ou femos de encontrar outro tipo de explicagio. Swinbume pensa que existe outro tipo de expli- cago, a que chama uma explicaglo de tipo pessoal: Deus. Como Deus & a explicagao mais simples ~ mais simples, por cexemplo, que 0 universo, que tem muitas caracteristicas que cexigem explicagdo ~, é, por isso, a explicagiio mais provavel, As versdes baseadas no ajuste perfelto (fine-tuning) e na ‘complexidade irredutivel No ltime século, © conhecimento cientifico progrediu bastante ¢ revelou a existéncia de caractersticas do mundo orgiinico ¢ inorginico que pareceram a alguns cientistas, sobretudo fisicos e biélogos, demasiado extraordindrias para podetem ser explicadas apenas com base nas leis da natureza, Isso esteve na origem de novas versdes do argumento do designio, que tém por base as nogdes de principio antrépico, ajuste perfeito © complexidade irredutivel 0 ajste perfelto e 0 argumento antrdpico-teleoligico A ideia por detris desta versio do argumento é simples. As descobertas em astrofisica, cosmotogia e biologia revelaram ‘existéncia de um nimero significative de constantes césmi- cas, aparentemente arbitririas (isto &, que nfo podem ser dterminadas a partir das teorias e tm, pelo menos por agora, de ser determinadas empiricamente), sem as quais © n0sso universo seria impossivel, Estas constantes revelam um ajus- te de tal forma perfeito, que alguns cientistas e fildsofos se recusam a aceitar que este seja uma mera coincidéncia e que, por conseguinte, 0 universo fenha origem num grande nime- +0 de acontecimentos acidentas. Isso levou-os a pensar que esas constantes t&m por causa um ser pessoal, © Unico tipo 2001 rmopucto de ser capaz de produzir esses resultados(”), Dé-se a este argumento o nome de argumento antrépico-teleoldgico, por se basear no principio antrépico, segundo o qual o universe tem de ser tal que permita a existéncia de seres conscientes, ‘Uma interpretagio fraca deste prinelpio limita-se a afiemar que se as condigdes iniciais do universo fossem outras nds ro existriamos e é, em si, relativamente trivial, Mas hd ulra interpretag2o, que realga o ajustamento destas condi ‘gbes para a existéncia de vida e chama a atengo para o Facto de uma ligeira variago nos seus valores dar origem a um Lniverso completamente diferente, sugerindo que é muito improvavel que a existéncia humana resulte de urna evolugio acidental. Esta interpretagao forte do prineipio afirma, de rmancira muito mais controversa, que nds, os observadores, estamos cf porque 0 universo foi feito intencionalmente de modo a permitir a existéncia de seres humanos, Compleridade irredutivel Enquanto 0s defensores do argumento antripico-teleoligico cchamam a atengao para certas caracteristicas extraordindrias do universo, os apoiantes da complexidade irredutivel proc ram mostrar que existem sistemas biolégicos a nivel molecular que s6 podem ser explicados se se postular a existéncia de Aesignio inteligente (©) Uma expliapto alerativa ¢ sugerida por Matin Rees em ‘Nosso Habitat Casmico,p. 164 (Lisboa: Gradiva, 2001), Em ver de cistirum univers ico exist auto 2 que Rees chama im mulivers, ‘sto, um grand aime de unversos. Segundo ea hipétese, wo cosmos pode fer algo em comm com ums foja de pronto-a-vesir se «le tver ‘muita roupa em amazém, no feos sepreenidos por encontrar im fato que os siva. Da mesma forma, seo nosso univers fesse elecco do num muliveso, os seus aspectos mais wafinados» com aparéncla be obedecer a um designio nada term de surpreendets> Ox Duduooos some a Reticiko NATURAL (© melhor & mais conhecido representante desta nova versio do argumento do designio & 0 bioquimico Michael Behe, No livro Darwin's Black Box, Behe define «complexi- dade irredutivel como um «sistema nico compost de vvirias partes bem ajustadas e em interaegdo, que contribuem para uma funeao basica, no qual a remogo de qualquer uma das partes faz que o sistema deixe de funcionan™), Como ‘um sistema biolégico dest tipo tem, por definigdo, de surgir de uma s6 vez.e nto pode sero resultado da seleogio natural, Behe afirma que a melhor explicagio para a sua existéncia & (© designio inteligente. Um exemplo de complexidade itredutivel artificial sfo as armadilhas para ratos que, segun- «do Behe, s6 funcionam com todos os componentes presente, Mas hd também sistemas biolégicos irredutivelmente com- plexos na natureza, B esse caso dos cilios e dos flagelos, dispositives que permitem a alguns tipos de células movi- imentarem-se, Se esses sistemas fossem ligeiramente altera- dos, jé no Funeionariam, pelo que ndo podem sero resultado da selecgo natural e tiveram de surgir de uma s6 vez. Slo por conseguinte, o resultado da actividade do designio inte- ligente), © debate em tomo do designio e do argumento do desig- tio, como se v8, nfo ¢ algo que tena interessado os filésofos € Ledlogos num momento particular da histéria © que depois disso tenba desaparecido para sempre. Este debate continua vivo ¢ ealoroso, eventualmente mais vivo e caloroso do que (© Darwin’ Black Bas, p. 38. (©) Para uma anise erica des ideins de Behe vase Kenneth Milles, "Answering The Blozhenical Argument From Desig, in Neil A, Manson, ind amd Design, Cap. 16 e Michast Rose, Darwin and Desi, p.313.¢ s8 Uma sndlise mais erica, que idenifin os defensores do ‘esignioinlignte com 4 citci eriacionsaeIhesaibui motivates ais de caicter politico do que cent ov foséfco, € ade Niall Shanks em God, the Devi, and Darin, pp. 3 XXXIV 7 | i i | ; | j j Inmooucao rho tempo de Hume. Hi naturalmente diferencas que resul- tam, em parte, do progresso cientifico que entretanto ovorreu fe, em parte, da evolugio das ideias religiosas. Mas hé um aspecto de grande importincia que deve ser realgado, Trata- -se do facto de as verses modernas do argumento do desig hio, como as que acabdmos de ver, jf nBo terem, pelo menos ‘explicitamente, por base os argumentos por analogia, Mesto {que seja possivel recuperar esse argumento, como pretendem (08 defensores destas novas verses, € com ele provar & cexisténcia de Deus, uma coisa & certa: esse argumento no procuraré provar a existéncia de uma Divindade semelhante ‘ao homem a partir da analogia entre os artefactos humanos e (06 objectos naturais.E isto & em parte resultado da critica de Hume, -argumento a priori Na Parte IX dos Didlogos, Hume interrompe a sua longa anilise do argumento do designio para se dedicar a0 argu- ‘mento a priori. A verso deste argumento que Hume expe © alaca é a que Samuel Clarke apresentou nas Conferéncias de Boyle de 1704, depois publicadas com o titulo Uma Demons- tracao da Existéncia e dos Atcibutos de Deus. O argumento, {al como Hume o poe na boca de Demea, corresponde mais ‘oumenos fiquele a que hoje se chama argumento cosmolbgico: Tudo 0 que existe tem de ter uma cause ot ro da sn cxistincia, uma vez que € absolutamente impossivel que uma coisa se prouza a si propria ou seja a causa da sua préptia existncia. Portante, a0 remontamios dos efeitos causes temos de percorree uma sucessdo infinta, sem absolutamente nenhuma causa iltima, ou temos de, por fim, reeorrer a ui causa dltima que exista necessariamente. Ota, pode-se provar ‘como se segue que a primeita suposigio & absurd: na cadet ‘ou sucesso infinita de causas e efeitos, eadaefeito singular & XXXV udtoos soar: 4 RiuGiAo NATURAL Jeterminado a existr pelo poder e pela eficcia da eausa que imediatamente 0 precedeus mas a cadeia ou sucessto eterna completa, tomada em conjunto, no & determinada ov causada por nada e, no entanto, & evidente que requer tanto uma causa fou razio quanto qualquer objecto particular que comece a ‘existir no tempo. [.] © que foi entfo que determinou que algo cexistisse em ver da nada e que confer 4 uma possibilid Particular # existncia, exeluindo a restantes? Pressupde-se ‘que no existem casas externas, O acaso & uma palavta sex significado. Foi o nada? Mas isso nunca pode produzir coisa ‘alguna, Temos, portanto, de recorer a um Ser necessariamente ‘enistente, que traga em si mesmo a RazXo da sua existéncia © “que nto se pode supor nlo existir sem uma contaigdo expli- cita, Exist eonsequentemente um tal Ser, isto &, existe uma Deidade, (Didtogos, 1X, 92) Embora a eritiea a este argumento ocupe substancialmente ‘menos piginas do que a ctitiea ao argumento do destgnio (apenas a Parte IX, jf de si pequena), ela permite a Hume ataear 0 outzo grande sustenticulo racional da religiso tradi- cional e, dessa forma, tornar mais forte a sua defesa da suspensio do julzo. A critica ao argumento & dirigida as nogdes de existencia necessiria ¢ de explicagdo suficiente dos efeitos de uma cadeia causal, De nolar que, enquanto 0 ‘alaque ao argumento do designio era feito por Filon, agora a anilise critica ests sobretudo a cargo de Cleantes. Critica da nogao de existéncia necessévia A critiea de Hume & nogio de existéncia necessiria & muito breve e consiste apenas em mostrar que fal no—o nao tem qualquer significado, porque em questdes de facto() ~ (09 CE Inexigopdo sobre o Entendmento Hamano, Secco 1, on ie eabeeceu diigo ene relayer de Kelas © quested fc XxxvI Iyrnopucko a existincia & uma questio de facto ~ 0 contririo nunca implica contradigdo e & por isso, sempre possivel, Assim, seja © que for que coneebamos como existente também podemos conceber como ndo-existente. Dagui resulta que nfo hi qualquer existéncia necessria (isto é, uma existéncia cajo contrrio nto seria possvel)e, por consequéncia, tam- bém nfo hé qualquer prova a priori da sua existéncia, ‘Além disso, admitindo, por hipstese, a possibilidade de seres necessariamente existenles, 0 préprio universo pode, fanto quanto Deus, sero ser necessariamente existent. fir: mast frequentemente que o universo ndo pode ser 0 ser necessatiamente existente devido a contingéacia da matéria ‘Mas um argumento exactamente idéntico a este pode ser api cado também a Deus. O que pode fazer a sua nfo-existncia parecer impossivel so certas qualidades que desconhecemos, [No entanto, afirma Hume por intermédio de Cleantes, nada impede que essas qualidades pertengam i materia. Como so desconhecidas, nio € possivel provar que s8o incompatveis coma matétia e, portato, no & possvel provar que a materia no pode ser necessariamente existent Critica da nogao de explicacio suficiente A segunda premissa do argumento a priori estabelece a recessidade de uma explicagio suficiente da totalidade da cndeia causal, para 16 da mera explicagio directa de cada clemento da cadeia por aquele que imediatamente o precede, Hume nega que essa explicagZo seja necesséria, Para ele, a reunio das diversas relagdes causais numa Uniea cadeia causal ¢ 0 resultado de um acto arbiteério da mente e, além disso, cada acontecimento de um conjunto de acontecimentos & suficientemente explicado pelas suas causas particulares, 09 OF, Dilogas, Ix, 93-94, XXXVI Diktogos some & REiGiAo NATURAL pelo que nif faz qualquer sentido exigir # causa do todo(”), Requerer uma explicagdo para o todo, depois de conhecer a explicagao particular de todos os objectos do conjunto, seria, para usar um exemplo conhecido, como se, depois de nos terem indicado qual a mae de cada um dos individuos de um conjunto de pessoas, quiséssemos que nos indicassem a mie de todo 0 conjunto. Problema do mal O ataque de Hume & concepeto testa da Divindade vira-se fem seguida para o que & geralmente conhecido como o problema do mal, Nos Didlogas, este problema desdobra-s ‘em dois problemas distinos, a que I. C. A. Gaskin() chama © problema da inferéncia ¢ 0 problema da consistencia. O problema da inferéncia consiste na continuagao da discussio, interrompida na Parte IX, sobre a possibilidade de inferir os atributos de Deus a partir da semelhanga entre a natureza e os artefactos humanos. A principal diferenga esti em que ante- Fiormente os atributos em questio eram intelectuais © agora ‘slo morais, O problema da consisténcia, por outro lado, € 0 de saber se e como é possivel compatibilizar o mal natural © ‘moral com o Deus tradicional do tefsmo. Em geral, as discus- ses modernas do problema do mal centram-se neste tiltimo problema, embora Hume, devido as suas implicagdes para a ‘moral, eslgja mais interessado no problema da inferéncia Depois de eaumerar uma longa lista de males morais € naturais e de enuneiar as famosas questoes de Epicuro(™), (©) CF. Didlogos, 1X, 9495, (©) sume’ Philosoply of Religion, p. 52. (6) af A Divindae] qe impede © mal, mas no & capa? Fatt & impotent, El € capa, mas foo que? Eni € malvol, Fla & nos ‘capac como quer? Donde rovérn eno 0 mal?» (Dialogs, X, 105-106). XXXxvIll Inermopucko Hume sugere a hip6tese estritamente materilista de propé: sito e a inteneZo existentes na natureza nao visarem 0 bem- “estar ou a felicidade dos seres humanos e dos animais, mas ‘8 «preservagto dos individuos e a propagagio das espécies» (Dislogos, X, 106). E mesmo que 0 mal posse ser compativel com Deus, iss0 no basta para provar os seus atributos moras. E necessério inferi-los dos fenémenos do mundo, 0 que & impossivel. Assim, ainda que o problema da consistén- cia possa ser resolvido a contento dos teistas, o problema da inferéncia nto pode. O resultado disto é evidente: a crenga de que Deus fem atributos morais e, em particular, atributos :morais como os que the sto atribuidos pelos teistas ¢ pelas religides populares, nto tem justficagio racional. Esta con- clusfo eéptica & de grande importineia para o que Hume tem ainda a dizer nos Diélogos Razdo e fé © que vimos até aqui parece nfo deixar dividas de que o ‘objective de Hume & destruir a base racional da crenga em Deus, 0 que faz apontando baterias ao angumento a priori e, sobretudo, ao argumento do designio, os quais eram, na sua Epoca, os principais sustentiilos do teismo e da religio tra icional. £, pois, com estranheza que vemos, no inicio da Parte XII, Filon renunciar (ou, pelo menos, assim parece) a tudo 0 {que linha anteriormente estabeleeido e confessar tanto 0 seu elo religioso como a evidéncia de designio: «(| ninguém tem um sentimento religioso mais intenso gravado na sua mente ou presta uma adoragio mais profunda ao Ser divino, tal como ele préprio se revela a razio na invengao © artificio inexpliciveis da natureza. O pensador mais negligente € esti pido descobre um propésito, uma intengo ou um designio em ‘qualquer lugar; e ninguém pode estar tio habituado a sistemas absurdos que rejeite isso sempre.» (Didlogos, XII, 127-128) XXXIX a uitocos sone a RiiGiNo NATURAL, Esta eviravolta inesperada de Filon, assim como algunas. afirmagdes que ocorrem em outras obras de Hume © que pareeem ser de sincera religiosidade(®), deram origem 20 ‘enigma de Hume», isto & ao problema de saber qual 0 sew ponto de vista em matéria de religio, Esta questio tem interessado comentadores estudiosos, ‘que para ela tém encontrado por vezes respostas muito dife- rentes. J.C. A. Gaskin, por exemplo, pense que Hume, apesar do ataque devastador a religifo, acredita num deus. Esta crenga & alimentada pelo sentimento de desfgnio e encontra tuma base racional, embora fraca, no reconlecimento de que 1 ordem da natureza pode ser explicada como a obra de um gente, Gaskin chama a este ponto de vista adeismo atenua~ ddov(), Anthony Flew, por outro lado, no hesita em conside- rar Hume um deserente e um agnéstico(®). E Jodo Paulo Monteiro também ndo tem dtividas em dizer que Hume & agnéstico("), Para quase todos, no entanto, a mudanga sibita de ideias de Filon, na Parte XII dos Didlogos, faz parte das cstratégias com que Hume procura dissimular 0s seus pontos de vista e evitar irae as perseguigdes dos seus contempori- rneos mais zelosos dos valores e dos interesses da religido, Embora isto seja verdade, hi, apesar disso, boas razes para pensar que 08 pontes de vista que Filon expde nessa parte dos Didlogos correspondem aos do proprio Hume(”) No entanto, embors esta questio biogrifica © histotica seja muito interessante, de um ponto de vista filos6tico ©) CE, por exemplo,o inicio de “Da Supersio ¢ do Entusiasme" (Bnsaios Marais, Poca «Literrio, p78) come d nthe ded Hixtvia Notra da Reig (C) Cl. Humes Pilophy of Religion, p. 224 ¢ The Cambridge Companion to Hume, p. 322 (Cy CI, tings om Religion, pp. vie 8 09 CL Home e a Epistemaogia, pp. 148, 147 © 18, 109 CI. David O°Connor, Routledge Philasophy Guidebook to Hume on Religion, Cap. 10 XL r pn eropucdo ‘muito mais importante saber que conclustes visa Hume tirar (ou que ideias visa defender) com os Didlogos. No essencial, cessas conclusdes parecem ser tr, ‘Em primeiro lugar, Hume pretende provar que o cepticis- mo € a tinica posiglo consistente com as evidéneias em religito(®). Varias das suas obras — em particular, 0 Tratado dda Natureza Humana e a Investigaedo sobre o Entendimento ‘Humano ~ t&m um pendor eéptico e, embora se discuta a hnatureza do seu cepticismo(*), ele & inquestionavel. E natu- ral, portanto, que os Didlogas tenam também um cariz, ceéptico. Esta 6, contudo, uma razao meramente circunstan- cial. Hi uma razio mais importante, que deriva da propria ‘obra, O primeiro aspecto em que ha desacordo entre Cleantes ce Filon, ainda na Parte I, antes mesmo de Cleantes apresentar ‘0 argumento do designio, pronde-se com a possibilidade de conhecer a natureza da Divindade. Filon defende ent, ‘contra Cleantes ~ que pensa ser possivel chegar a conheci- mentos positivos acerca de Deus -, a suspensio do juizo, e a ‘sua argumentagio no resto da obra tem por fim, pelo menos fem pate, estabelecer esta posig¥o("), Este aspecto & de ‘grande importincia, porque, por mais de uma vez, tanto ‘simpatizantes cono opositores de Hume julgaram, com satis- fag ou com migoa, ver nele um ateu e nos Didlogos a obra por intermédio da qual visava afirmar esse ponto de vista Mas, nem Hume é ateu(®) nem os Didlogos visam estabele- (4) Hume er um evideniaist, «© homem sbio diz ele ~ usta sun crenga d eviencia» Umesiga,p. 108). (8) Cra da pin 8 (©) Filon nota com frqutacia no desurso da obes que eepiisme aia forma deevtaras problemas que evant ¢ termina titi fala dos Didlogosaconselhando Pintle a ser cépico. (©) € sobsjimenteconbecida a hisria segundo a qual Hume, cera ‘ocatido, quand eotava en casa do Baio Hobich,aimou que mune Tinka encontrado um verdadero ateu, D'Holbach respondewtbe que ‘aquele momento ele se eacotrava a jantar com deze. xu sos es | Duitaos sone a Reticiho NaruRA cet 0 ateismo, O seu objectivo, como vimos atrés, € apenas ‘6 de mostrar que 0s principais dogmas da religiao no tém fundamento racional e, por isso, nunca avanga qualquer hipétese altemativa a ndo ser para tomar mais evidente as dificuldades do teismo. Esta forma de proceder de Hume é ‘obviamente, tipicamente eéptica) Em segundo Iugar, Hume visa estabelecer que a moral nfo deriva da religito. A ideia de que a moral deriva da religito tem origem numa concepe20 de Deus como legislador, que estabeleceu um conjunto de normas a que temos de obedecer © a que esto associadas castigos e recompensas depois da morte. © seu desenvolvimento deu origem & «teoria dos ‘mandamentos diviaos» que, no essencial, consiste na afirma- lo de que aquilo que esta moralmente certo e errado depen- de da vontade divina, As eriticas a esta teoria sao antigas("), mas, como silo filos6ficas e abstractas, a teoria sobreviveu na religiio e no imaginério popular, Hume nao foi o primeiro a perceber a relagio directa entre a religido e os contlites sociais ou a responsabilidade do elero nesses conflites ~ uma cconstatagio bvia para quem conhecesse um minimo da historia da Inglatera e da Europa nos séculos imediatamente anteriores -, nem a notar a dependéneia da moral trdicio- nal da crenga em Deus. Mas parece ter sido dos primeiros 4 perceber que a associaeo da moral com essa erenga, em vex de potenciar a felicidade humana ~ ainds que noutra Vida -, constituia um obsticulo a essa Felicidade, que era ‘mais bem promovida pelas inclinagdes naturais dos homens. (9) Isto aio significa que Hume assum sempre uma posgso de quiiticia em telagso a todos os pontos de vita posiveis em materia 4e reigto,E clara, por exemplo, a sun preferéncn ela iia de que 8 eausa do universo 280 tem qusisuer infereses moras. A evidencia ispoalvel no &, conto, sufciente para levar Hume s darthe 0 seu sentient fot (©) Platt, Bufo, 10a Xtll i Ieermopucko Isso levou-0 a opor-se fortemente a essa doutrina, tanto mais {que © exame critico das provas tradicionais da existéncia de Deus mostrou que no & possivel, com base na experiencia, provar que a causa do universo tem as propriedades intele fais € morais que os teistas Ihe atribuem nem, por conse ‘guinte, derivar do nosso conhecimento da Divindade (porque nfo ha qualquer conhecimento da Divindade) quaisquer no- es morais E dificil enfatizar suficientemente a importincia de tudo isto para Hume. O seu anticlericalismo encontra-se expresso, por vezes de forma muito veemente, em varios textos, Por ‘exemplo, em “Da Superstigfo e do Entusiasmo” e na Histivia de Inglaterra, onde descreve as consequéncias periciosas da religito popular para a conduta humana e para a sociedade; ‘ou em “Dos Caraeteres Nacionais"(*), em que ataca de forma extremamente mordaz.0 caricter profissional dos sacerdotes, dos clérigos ¢ dos pares. Na Parte XI dos Didilogas, Hume ‘enumera mais uma vez as consequéncias nefastas da religido, Tumultos, guerra eivis, perseguigdes, opressto, eseravatura, Fingimento, falsidade, hipocrisia e fanatismo sio apenas algumas das consequéncias para a vida politica © para a condita humana, que Hume apresenta para justiicar a neces sidade de separar a moral da religifo; ¢ € claro que ele enlende que esta pretensio é reforgada pelo facto de a erenga em Deus ni er justficagio racional. Em terceiro lugar, Hume tem por objective a defesa daquilo a que chama verdadeira religido. As referencias que Ihe faz, nos Didlogos ou em outras obras, sio sempre esparsas breves ¢, por isso, no € dbvio o que entende exactamente por ela. E contudo claro, pelo que diz em algumas dessas ‘casides, que @ opée A religitio falsa ou popular e & supersti- ‘90 e que a concede como uma investigugio racional da (©) cain Moras, Politicos e Liters, p. 185, nota 2 XLII DrAuooos somes A ReLscido NATURAL religifo, uma espécie de filosofia, do género da que os Diélogas exemplificam e a que chamarlamos hoje sem difi- culdade «filosofia da religiton. Esta filosofia da religito reduz-se, em iltima instincia, proposigfo virtualmente vvazia€ incompreensivel com que Filon (e, com ele, Hume) se ‘compromete no fim dos Diilogos, proposigo segundo a qual 8 causa, ou causas, do universo tem uma analogia remota e vaga com a inteligéncia humana, da qual afirma ndo ser possivelinferir quaisquer consequéncias para a vida humana, Desta forma, tanto 0 cepticismo de Hume como a separagao re a moral ea religifo se subsumem na sua concepeao da ‘eligifo, que aparece, assim, como o principal objectivo que Visa promover com os Didlogas: Conelusao Pode parecer a um leitor desprevenido que os Didlogos slo uma obra cujo interesse 6 meramente histérico, relevante 1 aqueles que desejem ou que precisem de compreender a historia das ideias do século XVI, em particular das ideias religiosas, mas de pouco ou nenhutm interesse para 0 debate filos6fico actual. Nas paginas anteriores procuret mostrar que isso no 6 verdade, O debate em filosofia da religito sobre 0 argumento do designio continua a ser hoje tho interessante e importante como o era no tempo de Hume © mites das objecrdes de Hume continuam tio actuais quanto 0 eram quando ele as enunciou no século XVIII. No entanto, o Diélogos sio importantes para oleitor moderno ainda por um ‘outro motivo: a avaliagao critica e imparcial das crengas, que Hume neles pratica com total mestria, cansttuiu o modelo de toda a boa filosofia, XLV Intmoovcao Nota sobre a tradugao | i | | | | | i Esta traduo foi realizada com base na edigao de Norman Kemp Smith dos Didlogos. Além desta edigio, foram tam- bbém consultadas as edigées de J. C. A. Gaskin (David Hume Dialogues and Natural History of Religion, Oxford: Oxford University Press, 1993) e de Antony Flew (Writings on Religion, Chicago and La Salle: Open Court, 1992), a tradu- ‘glo francesa de Maxime David (Dialogues sur la religion naturelle, Patis: Vrin, 1974), a tradugio para portugués do Brasil de José Oscar de Almeida Marques (Didlogos sobre a Religido Natural, Sio Paulo: Martins Fontes, 1992) ¢ as tradugdes castelhanas de Carlos Mellizo (Diilogos sobre religion natural, Madrid: Alianza Editorial, 1999) e de Car- ‘men Garcia-Trevijano (Didlogos sobre religién natural, Madrid: Teenos, 2004). De modo a distinguir na obra as notas de David Hume das sminhas proprias notas, as primeiras so identificadas pela rnumeragdo érabe enquanto as iltimas so indicadas pela humeragio romana Quero agradecer a Hilio Sameiro, Clotilde Fernandes, Carlos Alves, Desidério Murcho, Aires de Almeida, Terese Castanheira, Luis Rodrigues © Pedro Galvio, que leram a introdugZo, « tadueT0, ou ambas, e fizeram sugestdes que permitiram melhorar bastante este liveo. Por iltimo, quero agradecer de uma forma muito especial a José Ferreira Brando que, além de, enquanto the fbi possivel, ter acompa- nhado a traduedo e feito muitas sugestdes, traduziu ainda os textos em latin, Alvaro Nunes Tullo 2005 XLV PAnfilo a Hérmipo Houve jé quem notasse, meu caro Hérsaro, que, embora 65 filésofos antigos transmitissem a maior parte do seu ‘ensino sob a forma de didlogo, este método de composi¢ao foi pouco praticado nas épocas posteriores © raramente leve sucesso nas mfios daqueles que o tentaram. Na verdade, 4 discussio cuidadosa ¢ sistemitiea, como se espera hoje ds fildsofos, leva naturalmente & adopeao da forma metédi- cea € didéctica, pela qual se pode, imediatamente © sem preparagdo, explicar o objectivo em vista e, depois, proceder sem inferrupgio & dedugio das provas em que se funda [Nilo parece natural que se apresente um SisteMa na forma de conversagio e embora 0 eseritor de dislogos deseje, ao afastar-se do estilo directo de composigdo, dar um ar mais espontneo ao seu trabalho e evitar a aparéncia de autor ¢ leifor, arrisca-se a cair numa inconveniéncia pior © a transmitir a imagem de pedagogo © pupilo. Ou enti, se conduz a disputa num espitito natural de companheitismo, intwoduzindo uma variedade de assuntos ¢ mantendo um equilibrio adequado entre os intetlocutores, perde com frequéncia tanto tempo em preparagées e transigbes que dificiimente 0 leitor se sentiri compensado por todas as DiALoos sone & REUGIAO NARA szragas do didlogo, da ordem, concisio © preciso a elas sacrificadas, Hi, todavia, alguns assuntos a que a forma de dilogo & especialmente adequada e em que é ainda preferivel a0 étodo simples e directo de composigio, Qualquer ponto de doutrina to dbvio que dificilmente admita disputa e ao mesmo tempo to importante que nunca seja demais repeti-o parece exigir um método de tratamento fem que a novidade do estilo compense a banslidade do assunto, em que a vivacidade da conversagao reforce 0 preceito e em que 0s diversos pontos de vista, apresentados pelos virios personagens e caracteres, nfo pareyam nem fastidiosos nem redundantes Por outro lado, qualquer questo de filosofia, que seja de tal modo obscura e duviddosa que a razio humana nio consiga chegar a uma conclusio definitiva a seu respeito — se € que deve ser tratada ~, parece levar-nos naturalmente a0 estilo de didlogo e conversagio. E permitide a homens razoaveis diferirem naquilo em que ninguém pode razoavelmente ser positivo; opinides opostas, ainda que no conduzam a qual- quer decisio, proporcionam um entretenimento agradivel e, se 0 assunto for curioso e interessante, 0 ivro conduz-n0s, de certa forma, a0 companheirismo e une 08 dois maiores e mais puros prazeres da vida humana: 0 estudo e 0 convivio Felizmente, todas estas circunstincias se eneontram no | tema da RELIGIAO NaTURAL(). Que verdade € tio Sbvia, tio certa como a existéncia de Deus, reconhecida pelas épocas mais ignorantes © para a qual os génios mais refinados ambjciosamente se esforgaram por apresentar novas provas e argumentos? Que verdade & to importante como esta, que & (©) Este temo signifi © mesmo que «ologia natural ¢ designa ‘uma actvidade em que se procura determinar por mis esrtamente ‘ions e «ptr de factor e verdades em prinspioncessivels todos “isto €, sem recorzer@ revelao ~ a exstnca eos abuts de Deus. 2 | ; | | Phxsi.o a Hiavano ‘o sustenticulo de todas as nossas esperangas, 0 fundamento ‘mais seguro da moralidade, o suporte mais firme da socieda- | de e 0 tinico principio que nem por um momento deve estar ausente dos nossos pensamentos e meditagses? Mas, 20 tratar desta Sbvia e importante verdade, que obscuras questies ‘ocorrem acerea da natureza desse Ser divino, dos seus atribu- tos, ds seus decretos, do seu plano de providéncia(")! Estas, coisas tém sido desde sempre objecto das disputas dos ho- mens e a seu respeito a razio humana nfo chegou a nenhuma conclusdo cerla. No entanto, so to interessantes que nio cconseguimos refiear a nossa inquieta curiosidade a seu 1es- peito, apesar de, até agora, o resultado das nossas pesquisas ‘mais cuidadosas ter sido apenas a divida, a incerteza e a contradigao. Tive recentemente oportunidade de observa isto mesmo, enquanto passei, como habitualmente, parte do Verio com Cueantes assists suas conversas com FILON e Demi, das {quais vos fiz ha pouco tempo um relato imperfeito. Dissestes- ine entio que a vossa curiosidade foi to excitada, que me sinto na obrigagio de fazer uma exposig#o mais exacta dos seus raciocinios e de expor os virios sistemas que apresent- ram a respeito de um tema t20 delicado como o da religiéo natural. A medida que opiinheis a cuidadosa inclinagio filos6tiea de Cursxres ao cepticisme descuidado de Fiton, ou compariveis qualquer destas disposigdes com a rigida © inflexivel ortodoxia de Dewea, 0 extraordinério contraste das, suas personalidades ainda aumentou mais as vossas expecta- livas. A minha juventude fez de mim um mero ouvinte das (Esta passagem —,na verdad, a rotaldade dos Didlogas far eco uma passagem do Da Natwesa dt Denes de Cee, oa gul Balbo, #8 delensor do esocismo na obva, divide a questo dos douse em gusto Parts: 1) existécia dos deuses, 2) a matureza dos deuses; 3) 0 governo ‘do univers; e 4) a providenciadivina, CE Da Notrez dos Dense, 1, 3, e também I, 12, Drkuogos soa a ReLsciKo NATURAL suas disputas e a curiosidade, natural & mocidade, gravout toda a eadeia e conexio dos seus argumentos to profunda ‘mente na minha meméria que, assim 0 espero, no iret omitir nem confundir nenhuma parte importante 20 relat-los Parte I Depois de me ter juntado ao grupo, que encontrei reunido na biblioteca de Ciranres, Diowea fez alguns elogios a Ciranres pelo grande cuidade que ele colocou na minha ‘educagio © pela sua perseveranga e constincia incansiveis ‘em todas as amizades. O pai de PAnriLo, disse ele, foi vosso amigo intimo; ofilho é vosso pupiloe, a julgar pelos esforgos {que tendes feito para Ihe ensinar todos os ramos iteis da literatura e da cincia, pode, na verdade, ser visto como vosso filho adoptivo. Estou convencido de que a vossa prudéncia io menor do que a vossa determinago. Por isso, comuni- cco-vos uma mixima que observei em relago aos meus proprios filhos, a fim de saber até que ponto esti de acordo com a vossa pritica, © método que sigo na educagio deles baseia-se no dito de um antigo: «Os estudantes de filoso! devem primeiro aprender légica, depois ética, de seguida Fisica, por dltimo, a natureza dos Deuses»("). Segundo ele, () Chiysinps apud Plt. de rspug. Stoic, (Crisp (©, 280-206 1. C) foi oteceto chefe da escola estsica (depos do findaor Zeno © de Cleantes) © sistematizdor das doris do primero estos tno, Slothearbuidas cera de 750 obras, Organize desenvolveu 8 5 Dudtocios sone. « Reiciko Nasu 1 ciéneia da teologia natural("), sendo @ mais profunda e abstrusa de todas, requer dos estudantes um juizo amadure- cido e 86 pode ser confiada sem risco a uma mente enriquecida com todas as outras eincias Experais assim tanto, diz FiLoN, para ensinar aos vossos filhos os prineipios da religido? Nio hi o petigo de que negligenciem ou rejeitem completamente essas opinides de ue ouviram falar to pouco durante toda a sua educagio? & apenas como ciéncia, respondew Damen, sujeita aos racioct nios e as disputas hnumanas, que adio o estudo da teologia natural, A minha principal preocupagto & acostumar desde cedo as suas mentes a devogdo;e, por preceitos e ensinamentos continuos, ¢, espero, também por exemplos, gravo profunda- mente nas suas fenras mentes uma reveréncia habitual por todos os principios da religio. A medida que estudam as outras ciéncias, chamo ainda a atengio para a incerteza de ‘cada parte as eternas disputas dos homens, # obscuridade de toda a filasofia e as estranhas e ridiculas conclusies que alguns dos maiores génios derivaram dos prinefpios da mera razio humana, Tendo assim preparado as suas mentes para uma submissfo € modéstia apropriadas, jd nfo tenho davidas cem abrirlhes os grandes mistérios da religito, nem receio qualquer perigo dessa presumida arrogancia da filosofia, que possa leviclos a rejeitar as doutrinas © as opiniGes melhor estabelecidas, ‘A vossa precaugdo, diz Fitos, de acostumar desde cedo as mentes das vossas eriangas & devogdo é sem diivida sensata @¢ necessiria nesta época profana e irreligiosa, Mas, 0 que iégicnproposicionalenquano sistem forms, tendo sido © primeiro a tabelecer condigies de verdade para as condicionis A'citagdo & 4s desrigio que Plutareo fiz, om De Stoiconum Repugnantis [Acerca ‘des Contradigder dor Bxdicos), Cap. 9, 1038 a, 6, da sofia de Crisp, (©) CF, nota da pga 2, Pave 1 mais admiro no vosso plano de educagio & a forma como tiras partido dos proprios prineipios da filosofia e do saber, que, a0 inspirarem orgulho e auto-suficigneia, tém sido em todas as épocas geralmente to destrutivos para os prineipios da religido, F-verdade que © vulgo, podemos noti-lo, que no esti familiarizado com a cigncia e a investigagdo profunda, ao observar as infindéveis disputas dos sibios tem habitual- ‘mente um desprezo total pela filosofia e & por isso levado a agatrar-se tenazmente aos grandes topicos da teologia que lhe ensinaram. Aqueles que entram um pouco no estudo e na investigugo, ao encontrarem muitas aparéneias de provas ‘em doutrinas recentes e bizarras pensam que nada é dema- siado dificil para a razdo humana e, quebrando presungosa mente todas as barreiras, profanam os mais {ntimos santud- trios do templo. Mas espeto que Ceantes concorde comigo fem que, pondo de lado a ignordncia, que & 0 remédio mais seguro, existe ainda um meio de impedir esta profana liber- dade. Deixai que os principios de Diatca sejam aperfeigoados cultivados e que adquiramos plena consciéncia da fraqueza, cegueira e estreitos limites da razio humana; deixai que examinemos adequadamente a sua incerteza e contradigdes ddesnecessirias, mesmo nos assuntos da vida e da priica ‘comuns; deixai que se nos revelem os erros & enganos dos nnoss0s proprios sentidos; as diffculdades insuperiveis que acompanham os primeiros prinefpios de todos os sistemas; as contradigdes inerentes as proprias ideias de matéria, causa © feito, extenslo, espago, tempo, movimento e, numa palavra, a toda a espécie de quantidade, que € 0 objecto da nica cigncia que pode com justiga aspirar a alguma certeza ou evidéncia, Quando estes {épicos so plenamente exibidos, {como © so por alguns filésofos e por quase todos os tedlogos, quem podera confiar nesta débil faculdade da razto 80 ponto de respeitar as suas conclusdes em coisas tio sublimes, to obscuras e Go afastadas da vida e da experién- cia vulgares? Quando a unio das partes de uma pedea, ou 7 uduocos sone & Rauciko NATURAL mesmo a composiglo das partes que a tomam extensa, | quando estes objetos familiares, rept, so to inexpicveis | Ceontm elementos tio incompativeise conraditsries, com {ue seguranga podemos deidiracerca da rigem dos mundos Gh delinar a sua historia de eteridede para eteridade? Enquanto Fin diia estas palavas, pude observa um sorriag nos semblantes de Dena e de Curate. O de Dive parect indear uma total stisfagho com as doutinas apre- Eentadas, mas nas feiges de Cutawrs pude dsingir um ar de astica, como se tivesse peresbido alguna zombaria ou mala simulada nos raciocinios de FLON ‘0 que propondes entlo, Fixx, disse CLeawrs, 6 que se rij a féeligiosa no cepticismo flosfico"); © pensais que, (°) 0 wespticsm filoséicos antiga —aquele em que Hume es aqui 1 pensr-engloba dois movimentos difretes, embora frequentemente onfasids”o capi da Nova Academia eo pironismo, O cepts tno da Nova Acamiacoresponde » wma fe porque pass, durante sua longa exstacia, «Academia que Pato fundow em Atenas em 385 1.C. Os sons principals representantes slo Arcesilau (©. 316-242 a C) © Camnéues (6. 214129 8. C_), que deseavolveram um conjnto de Sreumentos com 0s quis, opondo-se aos esticos © aos epcurisas, retendiam mostrar que nada pode ser conhecid com ertezs, Apes de ‘egarem, assim, ve exsa um eto que permitadistinguro verdad {odo falc, por razbes de orden pitcn admin a ecessidade de um ‘erie too levouros a defender como pro de conhecimento 0 que rnaoivel on provivel, ‘0 pironismo recussvs todo. qualquer critdo. © seu objective confess cra oporse a todas flosofan dma, ito €, a todas as Filosofia que, de wn forma on de osry fieavam ter descberto ‘verdad, O principio basi do pitonismo era o de opor a cada proposi- fo ume proposigao iéntca, de modo a, perante'@iacapacidade de Clesiir ere cls, origina, primeio, a suspensio do jlzo (epoohd) «, tlepois, a impererbbilidade ou guetade (aarasia). Os peénicos mio ecusvam toda ¢ qualquer proposio, mas apenas as que no eram tvidentes. Aceitavam as Hmpressbessesieis que provocam asentimen- {o involutive, ma ecusaVam pronuncir-se sobre as eventuasrealda- des exteriorer que Ihes possum estar associndas, De modo idético, Paxre se acerteza ou a evidéncia forem expulsas de todos os outros ‘campos de investigaedo, se refugiaro nestas douttinas teol6- ‘gicas adquirindo aqui uma forga e uma autoridade superiores Mais logo, quando a nossa reuniao terminar, saberemos se 0 ‘yosso cepticismo & to absolute e sincera como pretendeis, Veremos entio se sais pela porta ou pela janela e se duvidais realmente de que 0 vosso corpo esti sujeito gravidade ou de que pode ferir-se na queda, como afirma a opinido popular,

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