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ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. A Construcao de uma Identidade Pantaneira Eudes Fernando Leite - UFMS/Dourados Neste texto, parto de algumas observag6es feitas por Michael Pollak’ a respeito da memoria @ suas articulagSes com a identidade, em especial, a identidade social, procurando demonstrar a imbricagdo entre meméria e identidade, discutindo a probiematica da identidade pantaneira. Pollak, intelectual austriaco (Viena, 1948-1992) dedicou parte significativa de suas reflexes a tematica da identidade social. No Brasil, sua presenga parece ter sido marcante, especialmente frutifera quando esteve no CPDOC e no Museu Nacional, no final dos anos 1980. Dois textos publicados na Revista Estudos Historicos, em 1989 e 1992, parecem-me de importancia singular para reflexdo da problematica entre memoria, identidade social e historia de vida, pois fazem um balango dessas quest6es, articulando-as e demonstrando sua importancia naquele momento e, penso, no presente, © autor em tela € enfatico ao tomar um aspecto importante da historia oral, metodologia que possibiita a produgo de um tipo de fonte plurissignificativa para as pesquisas em alguns campos de investigagdo nas humanidades, que é a recolha de um tipo de meméria, individual ou coletiva, impondo a partir de entio determinados problemas na forma de tratamento desse material. A preocupacao com a construgao do fendmeno mneménico ja fora tratado por Halbwachs*, nos anos 1920-30 e tem recebido novas e revigoradoras contribuiges, na mesma trilha, que indicam a presenga da experiéncia coletiva no forjar da memoria e, em seguida, proporcionando mutagdes constantes na sua forma de permanéncia. De acordo com Pollak, a meméria necesita de, pelo menos, trés fatores contributivos para seu aparecimento e existéncia, a saber: a) os acontecimentos; b) as personagens e, c) os lugares. A partir desses trés fatores, é possivel compreender melhor, partindo de algumas ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. entrevistas feitas com pantaneiros, circunsténcias e caracteristicas que indicam o formato e as caracteristicas de uma identidade coletiva que se assenta muito fortemente no pressuposto da diferenciacdo e, consequentemente, articulacéo como a nocao de pertencimento & nacdo brasileira. Nesse sentido, langar o olhar para a existéncia de uma nogo identitaria, cujo circuito espacial pode ser denominado de regional, no a exciui, a0 cabo, da relagao e/ou subordinagao da identidade coletiva brasileira. Sob tal perspectiva, € possivel compreender alguns pontos da identidade pantaneira, tomando por base entrevistas realizadas com moradores ~ trabalhadores de fazenda de gado ~ da sub-regiao conhecida como Nhecolandia Para aclarar essas ponderacées, passo a tratar de aspectos que corporificam 0 fenémeno do qual trato nesse paper. No dia 21 de dezembro de 1996, nos dirigimos até uma modesta residéncia, instalada na periferia de Corumba, cidade localizada no pantanal sul-mato-grossense. A nossa espera, encontramos o senhor Valdomiro Lemos de Aquino, na ocasiéo com 60 anos de idade. O senhor Valdomiro encontrava-se bastante timido, sem deixar de ser acolhedor, revelava certo grau de preocupagao com nossa presenga, mesmo porque ha tempos insistiamos com ele, por meio de uma sua filha, na importancia de sua entrevista e, por decorréncia, de sua narrativa Classifico a entrevista do senhor Valdomiro Lemos de Aquino como um “didiogo agradavel", mas cujo resultado ou contetido, em principio, pouco acrescentara as nossas pesquisas sobre a experiéncia de vida do homem pantaneiro. Contudo, se essa entrevista no apresentou “avancos” informativos face as outras ja realizadas, seu conteido e, especialmente, a leitura e a representagao exposta pelo entrevistado confirmaram muitas informagées ja conhecidas, revelando assim sua concatenagao com a historia local e, Portanto, sua singularidade no contexto da consolidagdo de uma meméria coletiva e da identidade pantaneira ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. cere da entrevista constitui-se da experiéncia vital do senhor Valdomiro, 0 que a circunscreve no Ambito das histérias de vida. Mas essa experiéncia vital, ao ser narrada, apresenta 0 ato memorativo que caracteriza 0 encontro em que ocorreu a gravacéo. Nesse centro e em sua substéncia se manifesta o ato operacional de organizacaio discursiva, cujo objetivo era responder as indagag6es feitas pelos entrevistadores. O contetido, portanto, dessa entrevista traz componentes de ambito coletivo, herdados e ou vivenciados em comum, mediados pelo instante da rememoraco (Pollak, 1992). Nessa linha, adiro @ compreensdo e alerta de Ecléa Bosi a respeito da fonte oral que ‘I. sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios obrigando a um interpretagao sutil e rigorosa’® As respostas apresentadas aos estimulos que as questées proporcionavam ao entrevistado apresentavam muitos componentes que caracterizam a compreenséo do senhor Vaidomiro no campo identitario regional: 0 pantaneiro. O fio condutor de sua nogao de pertencimento decorre da auto-inser¢ao no “universo” regional, provocando suas capacidades de resistir e enfrentar eventos rotineiros com algum sucesso. De uma ‘maneira geral, as jinhas que prendem o entrevistado ao Pantanal esto essencialmente concatenadas as estratégias de vida bastante arraigadas na re: singularidade de sua vida, que ele procura relatar enquanto conjunto de eventos inseridos numa temporalidade pessoal A historia de vida do senhor Valdomiro encerra sua compreensao e rememoracao a respeito de fendmenos individuais e coletivos, mas que conferem um significado particular a sua existéncia, porque dizem respeito a vivéncia Unica e insubstituivel do narrador. Uma tal constatagao é importante por conta de sua obviedade mesma, ou seja, © sentido e formato do auto-entendimento do entrevistado é revelador no instante em que espelha componentes universais e regionais mesciados pela experiéncia do individuo que compartilna de impressdes e sensagées perceptiveis em outras personagens. ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. Encontrar os componentes que conformam um tipo regional, a partir da entrevista do senhor Valdomiro, pressupde como importante as caracteristicas regionais na narrativa recolhida. O esbo¢o identitario, por sua vez, traz & tona o significado recente do espaco regional no face-to-face do sentimento de nacionalidade, ou bra lidade. O Pantanal brasileiro, desde os anos 1960, foi progressivamente transformado em um ambiente paradisiaco. Uma tal imagem representativa foi sendo associada a outra que remete aos debates a respeito da identidade regional, ganhando evidéncia na midia a figura do pantaneiro. De fato, o fortalecimento da identidade regional esta articulado @ propagagao de nogdes identitarias brasileiras, funcionando como um contraponto @ ampliagao do conhecimento das caracteristicas culturais - e econdmicas — no pais e fora dele. De acordo com essa compreensao, a identidade em questo articula-se as demandas locais — @ mesmo midiaticas — na diregdo de valorizar caracteristicas regionais como artefatos que corroborem a factibilibidade de uma sociedade e uma regido singulares. Focalizar esses — e outros — aspectos na fala do senhor Vaidomiro reclama a presenga do verbal entrevistado. O fragmento abaixo apresenta um dos componentes de auto-valoracao do pantaneiro em questo, remetendo, na seqUéncia, as leituras exdticas sobre 0 ser pantaneiro, relembrada no curso da entrevista. Para 0 senhor Valdomi , sua personalidade no prescinde de alteragSes diante de nés ou de outras pessoas: - © que eu s6 longe do patrao eu s6 perto dele; ndo nego ndo a minha responsabilidade! A manutengao de uma imagem e postura diante dos outros é mencionada em um contexto de matizagao da personalidade e de suas caracteristicas positivas ou negativas. Ha uma remissao, sublunar, ao mundo do trabalho quando se refere as responsabilidades, j4 que 0 entrevistado ¢ um capataz de fazenda. A figura do patréo empresta a auto-afirmagao um potencial simbdlico expressivo: nas relacdes sociais do Pantanal — iguaimente, em outras regiées rurais brasileiras — 0 proprietario-patrao ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. caracteriza 0 poder econdmico e encarna um tipo de autoridade, reforgando lagos de hierarquia e diferenciagao social. Nessa diregao, a permanéncia dos procedimentos e das caracteristicas pessoais ocupam uma posigao de destaque - e de desafio - porque mesmo perante 0 poder, ela ndo se altera, denunciando 0 convencimento do entrevistado a respeito de sua pessoa e seus valores. De forma complementar, € possive! encontrar na descrigao do tipo local, 0 ‘complemento que articula a aparéncia — relatada a partir de um outro lugar - e a esséncia compartiihada pelo entrevistado. Perguntado sobre a caracterizagéo do pantaneiro, capturamos um paradoxo interessante de valoragao do que nao € perceptivel ao estranho. No ponto de vista do senhor Valdomiro, hé uma imagem captada por estranhos que se difere do homem-rea! [.] © pantanero [..] tem pessoas que acham que o pessoal pantanero s4o pessoas assim muito bravo, pessoa servage, né? Mas num é! O pantanero s40 pessoas boa! O pessoar que Sabe arrecebé tudo mundo, sabe conversa... Entdo € deferente do que 0 pessoar que tem aqui. Como agora, esses dias, la em casa, chegé um pessoar que vei aqui daqui, esqueco 0 nome do lugar, ent&o eu tava cunversando com eles. Entéo eles tavam me falando que |é pra eles contam que aqui no Pantanar a onga pega 0 pantanero assim. Diz que 0 pantanero vai |a no pedo pantanero e a onga pega o cara. O pessoar ja tem esse custume, ninguém vorta, né? Ai eles tiveram em casa. Tiveram uns dois meses em casa... que 0 Pessoar s40 muito bravo que pantanero sao muito bravo, ficam parado assim, numa sombra, cada um com um monte de revorve na cintura. Entéo tem pessoa que ja olha pro camarada que t parado, 0 camarada pergunta o que ta olhando, se a pessoa responde, ele ja atira [...] NAo é assim nao. Quer dizer, acontece de mata certos pedo, né? As vezes o pedo mata 0 otro pedo, mas é muito dificil, né? Acho que 0 pirigo € na cidade, né? A cidade é muito forte mas o Pantanar é...* No fragmento acima, destaca-se a imagem enviesada a respeito do pantaneiro. Essa imagem relatada ao entrevistado por um visitante permite 0 “alinhamento’ de uma compreensao que no corresponde ao ser regional. Para 0 senhor Valdomiro, a violencia corre no ambiente pantaneiro, mas ela esta circunscrita a uma situacéo peculiar, diferindo-se do mesmo fenémeno no espago urbano. O componente que valoriza e destaca o pantaneiro é sua receptividade e generosidade, embora essa faceta nao seja imediatamente perceptivel ao visitante. A configuragao de um discurso, em cujo interior ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. encontram-se sinais — mais ou menos intensos - de aspectos que singularizam o habitante pantaneiro, pode ser encontrada em varias entrevistas realizadas com moradores do Pantanal. Quanto a imagem da violéncia urbana, é interessante notar que o entrevistado vive no Pantanal e seu deslocamento até a cidade de Corumbd ocorre nos finais de ano, somente quando 0 ramo urbano de sua familia ndo viaja até a fazenda na qual trabaiha. Na sua historia de vida € evidente sua aversao ao mundo urbano e suas particularidades, Nao ¢ fortuita a presenga da situago mencionada na meméria do entrevistado. Ela diz respeito a imagem do habitante local, exposta por alguém alheio ao meio que, transposta na fala do senhor Valdomiro, nao preenche um perfil identitério desejével. Ao evidenciar a negagao da violéncia extremada — e sem motivos — no seu meio, 0 entrevistado estabelece um didlogo com uma representagao que absolutiza uma imagem, transferindo seu significado para todo um coletivo. Ha af uma negacao de um perfil e a tentativa de tragar outro que seja mais coerente com o sentimento de incluso no tempo e no espago pantaneiros. A figura desejada para compor o perfil identitario do entrevistado faz parte de uma meméria que apresenta componentes mais expressivos e que possivelmente valorizam algumas caracteristicas € procedimentos em relago a outros. Essa memoria procura sinalizar para um paradigma desejavel, produzido no contexto da situagao do rememorar. Para Bosi ‘A meméria opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaco e no tempo, néo arbitrariamente mas porque se relacionam através de indices comuns. Sao configuragdes mais intensas quando sobre elas incide 0 brilho de um significado coletivo. No mbito do Pantanal, caracterizado como um espago particular no territério brasileiro, a idéia de pertencer ao “mundo local" significa compartihar saberes e, ainda, possuir ligag5es mais intensas com o modus vivendi e 0 modus faciendi regional. Uma tal forma de identidade localiza a possibilidade de pertencimento pressupondo as ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA — Londrina, 2005. experiéncias de vida possiveis naquele espago, mesmo que o Pantanal apresente diversidades internas bastante expressivas. © dominio de algumas praticas de trabalho, de caracteristicas do cotidiano, de interacdo e disputa com o meio aparecem plenamente ‘como componentes da identidade pantaneira® ‘A Percepcao de algumas caracteristicas regionais, marcadas nas entrevistas de historia oral, demonstra que a identidade pantaneira € compreensivel no contexto da valorizag&o do espaco e das formas de vida regionais. insistir que 0 pantaneiro s6 existe face ao significado do Pantanal nao é tautologia ou determinismo geografico, mas constatar que 0 habitante local toma para si varios procedimentos que sd podem ser compreendidos juntamente com a percepeéo do meio e do entorno; da ligacdo ‘compiementar, interativa que também atualiza o viver no Pantanal. A identidade pantaneira, identificada na entrevista com 0 senhor Vaidomiro Lemos de Aquino, estabelece um didlogo “em voz" baixa com outros entrevistados, apontando para a identidade construida sobre pilares que misturam valores, crengas, procedimentos € autodefinigao frente ao ambiente em que vivem. Por ultimo, embora ndo encerre a problematica, acrescento que em outras entrevistas, encontram-se afirmagées cujo contetido nao concordam com a compreenséo do senhor Vaidomiro: inversamente, indicam um distanciamento @ nogdo pertencimento a regido e identificacdio com a cultura local e sua configuragao. Os qualificativos que o senhor Vaidomiro destaca para valorizar sua identidade so enunciados, nessas outras entrevistas, para negar o pertencimento ao ambiente e, especialmente, a cultura local, cujas caracteristicas mais lembradas, nessa leitura que nao encerra concep¢ao de pertencimento, so 0 atraso € 0 desconhecimento de técnicas de trabalho mais sofisticadas. Os componentes empregados para justificar e consolidar 0 tipico pantaneiro € ampio o suficiente para proporcionar outras leituras, produzindo outra forma de sentimento de (ndo)pertencimento aquela regiéo de grande amplitude e muitas formas de auto-identificagao. ANPUH ~ XXIII SIMPOSIO NACIONAL DE HISTORIA ~ Londrina, 2005. * POLAK, Michael. Meméria e identidade Social. In. Estudos Histéricos. Rio de JaneiroFGV. Vol. 8, n? 10, 1982. p. 200.212. “ HALEWACHS, Maurice. A meméria Coletiva. Trad. Laurent L. Schaffter. Sao Paulo: Véstice, 1990 ® BOSI, Eciea. 0 tempo vivo da meméria; ensaios de psicologia social. S20 Paulo: Atelié Editorial, 2003. p20. “ ENTREVISTA Vadomiro Lemos de Aquino (flme-video). Produgo: Eudes Femando Leite & Frederico ‘Augusto G. Femandes. Corumbé: CeuclUFMS, 1996. 60 min (aprox). color, son., VHSc. © BOSI, Eciéa. Op. cit. p. 31 © Um exempio dessa situago pode ser encontrado no estudo que reaiizei a respeito das comitvas de boiadas f suas relagdes com as modificagdes ocomridas na regido. Ver: LEITE, Eudes Fernando. Marchas na historia, comitvas € pedes-boiadeiros no Pantanal, Campo Grande/Braslia: EDUFMSIMinistério da Integragio Nacional. 2003.

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