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CENA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO:

desaϐios para a formação e a pesquisa em


artes do espetáculo
José Tonezzi
Guilherme Schulze
Professores do Departamento de
Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba – UFPB

Resumo: O artigo aborda questões referentes à utilização das tecnologias digitais em cena, especialmente
no que tange à dança e ao teatro. A partir do apontamento de características historicamente inerentes a
cada uma dessas manifestações, delineia a evolução e alguns dos desa ios propostos à formação do artista e
à re lexão crítica da intersecção entre cena e tecnologia.
Palavras-chave: cena contemporânea; formação; tecnologia

Abstract: The article discusses issues concerning the use of digital technologies on scene, especially
concerning dance and theatre. Pointing out features historically inherent to each of these manifestations, it
outlines the evolution and some of the challenges proposed to the formation of an artist and to the critical
thought of the intersection between scene and technology.
Keywords: contemporary scene; performing arts degree; technology.

A
ssunto da maior importância em investigação e, por meio de novos paradigmas
relação à formação de artistas da de simulação, põe em xeque o próprio conceito
cena e à própria re lexão sobre a de presença e representação. Tal ocorrência
arte contemporânea, o uso e a apropriação incide, inevitavelmente, no trabalho do artista
que se faz dos recursos tecnológicos tem cênico, a quem não resta muito mais do que
ganhado merecidamente um espaço cada adequar-se ao novo contexto, dividindo o
vez maior. A partir do avanço perpetuado protagonismo com as imagens, formas e
nesta área e da instituição do duplo virtual signos que passam a compor o espetáculo, ou
caracterizado pelas redes telemáticas (WEB- sendo capaz de apropriar-se deles e submetê-
internet), novos espaços de interação se los a im de continuar no controle da cena,
constituíram, dando margem ao surgimento tornando-os um complemento ou base para o
do que, para muitos, se convencionou chamar desenvolvimento de seu trabalho.
novas arenas de representação. Ao se valer, de Numa alusão concordante com a
maneira cada vez mais frequente, de recursos máxima futurista de que “o im é o meio”,
inter-midiáticos como a telepresença (on recursos e procedimentos que, em primeira
line) e outros procedimentos que atuam na instância, tinham por função difundir as obras
emissão/recepção, a cena contemporânea e, mais tarde, também registrar o seu processo
amplia os parâmetros de performatividade e de criação, passam a compor e/ou tornam-

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se o próprio espetáculo, interferindo na sua im de que este pro issional, ao deixar o espaço
estética e formulação. É o que propicia a formal da universidade, escola ou instância
atores, dançarinos, coreógrafos e encenadores formativa em que se insere, não esteja alheio a
contemporâneos criar e constituir propostas esse tema e veja nisso um efetivo instrumento
inovadoras, quase impensáveis até tempos para ins de criação e de produção.
recentes. Embora tenha ocorrido de maneira A esse respeito, o que se observa
simultânea em diversas áreas, é nas artes comumente quando se depara com o uso de
visuais que a insatisfação com relação à ixação recursos tecnológicos (projeção, operação
e unidade impostas pelo padrão convencional, em rede ou uso de softwares) na concepção
tanto ao processo criativo quanto ao produto de espetáculos, é um certo distanciamento do
artístico, incidiu com maior força, levando artista, ocasionado pela falta de conhecimento
diversos criadores à busca de novas formas de – ou, quiçá, de reconhecimento – , ou ainda um
expressão e de recursos. Daí o surgimento do certo encanto. Como consequência, ele acaba
happening, do environment e da performance, por mostrar-se alheio ou deslumbrado diante
formas híbridas de manifestação que tomavam das fantásticas operações e efeitos alcançados
emprestados os implementos comuns ao por tais recursos. Ao invés de chamá-los
teatro, à fotogra ia e à dança, primando pelo ao diálogo, apropriando-se efetivamente
inacabamento, pela efemeridade e pelo vasto deles e imputando-lhes, com sua presença,
uso de recursos videográ icos e sonoros. equilíbrio e jogo de signi icação, o artista
Essa con luência de linguagens e o despreparado continua a valer-se de antigos
seu processamento conjunto na aquisição de meios de atuação que, ou não dão conta ou
resultados levam a uma prática autêntica, por não se coadunam às inovações propostas. É
vezes tida como um novo tipo de manifestação com relação a uma nova atitude, necessária ao
artística, híbrida e sem fronteiras na sua artista da cena tecnológica, que os programas
acepção. Apesar disso, não se pode negar de formação nas instâncias acadêmicas podem
a constituição de valores que permanecem contribuir, oferecendo disciplinas e espaços
intrínsecos a cada uma dessas expressões, de experimentação, onde o indivíduo possa
assim como ao trabalho daqueles que as preparar-se para o diálogo e apropriação
praticam – muitos deles, ainda bastante desses implementos, sem uma recusa gratuita,
alheios às novas implementações tecnológicas mas também sem uma postura puramente
e mesmo à destituição de fronteiras entre subserviente em relação a eles.
essas linguagens. Daí a opção em re letir aqui, Desde ins do século XX, a relação
separadamente, sobre a importância de tais entre arte e implementos tecnológicos vem
incidências no campo da dança e do teatro, e sendo analisada com propriedade e interesse
da importância crescente que isso ganha na cada vez maior, em que conceitos como
formação e na preparação do artista cênico, a interatividade e comunicação planetária

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são apresentados como características e dados. Cunningham vinha trabalhando
comuns a manifestações desprovidas de um desde os anos 1950s em estruturas de dança
berço único, onde a mistura de linguagens e usando esse sistema e seu primeiro trabalho
principalmente a expressão em rede é que dão utilizando apenas procedimentos randômicos
a tônica. Do ponto de vista ilosó ico, pensam- foi Suite by Chance, em 1953 (LESSCHAEVE,
se as consequências de uma ampli icação da 1991).
inteligência e da aceleração cada vez maior A dança pode ser caracterizada pela
da própria aceleração tecnológica. Como forma como o movimento, os bailarinos, a
resultado da intensi icação e aprofundamento con iguração visual e os elementos sonoros
da relação homem-computador, vislumbra- são combinados, como sugerido por Adshead
se a superação mesmo da natureza humana, (1988) e Preston-Dunlop (1998), con igurando
a dar-se na convergência de três revoluções assim uma arte que opera múltiplas mídias.
tecnológicas que já hoje se apresentam: a Hoje, os sistemas computacionais apóiam a
biotecnologia, a nanotecnologia e a robótica. criação, a apreciação e a análise em dança, em
grande parte exatamente por sua capacidade
Computadores e a criação em dança inerente de operar interativamente e
simultaneamente com diversas mídias. As
Processos colaborativos – onde tecnologias inovadoras e complexas que vêm
dança e sistemas computacionais digitais sendo implantadas no cotidiano artístico
interagem para a produção artística – se progressivamente impõem novos desa ios
iniciaram tão logo computadores começaram àqueles envolvidos no processo criativo de
a ser instalados nas universidades norte- uma dança. Bailarinos e coreógrafos que
americanas, durante a década de 1960. Os costumavam relacionar-se diretamente, de
pioneiros dessas primeiras colaborações forma analógica, passaram a ter um sistema
exploravam o uso do computador não orgânico e computacional como parte
essencialmente como um engenho numérico integrante desse processo. Assim como
e não-grá ico com atuação limitada às fases coreógrafos podem contar com um novo
iniciais do processo criativo. O coreógrafo leque de possibilidades criativas utilizando
Merce Cunningham era a in luência o computador não somente como um
predominante então, por suas idéias sobre a engenho capaz de processar tudo que pode
chance dance ou dança randômica em tradução ser transformado em dados, os bailarinos
livre (LE VASSEUR, 1965). Nesse sistema, foram chamados a participar criativamente
diferentes aspectos do processo coreográ ico da elaboração de roteiros, imagens, ou
e da performance poderiam ser escolhidos interações mediadas pelo computador. No
através de procedimentos que utilizavam entanto, a construção, manutenção e aplicação
recursos manuais como cartas de baralho de ambientes tecnológicos para a dança,

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adicionam complexidade digital a um processo Nos espaços ísicos presenciais como o de


analógico, já por si só complexo, que envolve um teatro, a mediação possui características
componentes humanos e não-humanos. próprias como a arquitetura e os detalhes
Percebe-se que as ferramentas decorativos de acordo com a estrutura do
computacionais disponíveis para a dança local onde o espectador se encontra imerso
podem atuar essencialmente em duas áreas para assistir ao espetáculo. De uma forma
do processo artístico em dança: a performance geral, qualidades como instantaneidade
propriamente dita e a criação coreográ ica. visual, auditiva, olfativa características da
Espetáculos de dança com projeções de presença ísica costumam ser pontos em
imagens já não constituem novidade mesmo comum. Sob o olhar da câmera ou outro
em regiões mais afastadas dos grandes dispositivo de captura, a interação com outros
centros econômicos e culturais do Brasil. bailarinos e com a platéia pode se dar através
Talvez o aspecto mais interessante, e que das trocas na forma de imagens típicas das
abre um amplo leque de possibilidades, seja redes telemáticas. Uma característica tida
a interatividade que as tecnologias atuais como natural desse tipo de comunicação é o
permitem, tanto ao mediar os elementos chamado tempo real. Na verdade, existe um
humanos envolvidos no espetáculo (platéia, atraso ou delay entre as traças de imagens
bailarinos, outros participantes) como ao que faz com que ações e reações não sejam
processar dados a serem utilizados em cena. instantâneas. Cada projeto telemático
O coreógrafo francês Phillippe Decou lé, tem características próprias e exigências
por exemplo, frequentemente utiliza vídeos perceptivas que deverão ser resolvidas no
projetados, que tanto podem trazer imagens momento.
que acontecem em um espaço distinto daquele Menos percebidas pelo público em
onde a platéia se encontra (que é uma forma geral, as ferramentas para auxiliar a criação
de mediação), como imagens processadas em em dança também representam uma abertura
tempo real ou previamente gravadas. de possibilidades inédita para a formação
O estudante de dança hoje não se limita artística. Equipamentos simples e programas
mais ao treinamento para espaços ísicos com propósitos diversos podem propiciar
presenciais compartilhados com uma platéia insights, pré-visualização de movimentação
que interage e pode reconhecer a qualidade cênica, documentação e praticamente
artística ao inal de um espetáculo através de qualquer elemento na forma de dados que se
aplausos. Esse estudante treina também para considere necessário para o processo criativo.
lidar com o olhar limitador e virtualizador de O software Credo Interactive LifeForms, criado
uma câmera que pode fragmentar o espaço no inal dos anos 1980s para ser utilizado
reorganizando cada uma das partículas especi icamente para dança, tem sido aplicado
capturadas na busca por um sentido novo. em todos os níveis de ensino como referência

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para a introdução de estudantes no universo sampling, composição e iltragem de imagens.
da animação em três dimensões. No entanto, Um palco virtual é criado usando projetores de
muitos outros programas, mesmo àqueles vídeo e simulações de ambientes 3D2.
que não tenham sido criados especi icamente
para dança1, tem sido objeto de pesquisa Teatro e tecnologia
acadêmica e utilizados com sucesso na criação
de espetáculos. É possível a irmar que, no teatro, o
A invenção da World Wide Web (www), uso de recursos tecnológicos incide – não
no início dos anos 1990, possibilitou a criação necessariamente nesta ordem – na estrutura
de danças que não dependiam mais dos dramatúrgica (idealização e escritura do
suportes analógicos típicos das apresentações espetáculo), nos fundamentos que regem
em espaços cênicos convencionais como os a encenação (concepção e organização do
teatros tradicionais. O suporte digital, além objeto espetacular) e, por im, nos parâmetros
de contar com interfaces para esses espaços de representação, jogo e atuação (trabalho
analógicos, principalmente com a utilização de ator). Entretanto, grande parte das
dos projetores de dados em cena, é capaz re lexões sobre o assunto ainda limita-se a
de sustentar-se por si só. As conhecidas tratar do aparato tecnológico como mero
webdanças e as performances telemáticas suporte inserido nas ações de cenogra ia,
são exemplos disso. As câmeras digitais que iluminação ou mera equipagem do espaço
continuamente contam com maior poder cênico. Não ganhou as proporções devidas,
associado à diminuição de tamanho e preço, até o momento – sobretudo no Brasil –, uma
emulam o olhar do espectador recortando discussão a respeito das consequências
e formatando o espaço com contornos que pode ter a incidência da tecnologia no
inesperados. A interatividade é a tônica terreno de expressões cênicas particulares
dos espetáculos que se utilizam das redes que, no caso do teatro, tem gerado conceitos
telemáticas mudando a perspectiva espaço- e perspectivas inovadoras, que eclodem num
temporal de todos aqueles envolvidos no inédito espaço cênico e dramatúrgico, em
processo artístico da dança. Usando imagens detrimento da linearidade e/ou concretude
pré-gravadas e em tempo real, bailarinos dos procedimentos tradicionais.
interagem com outras pessoas em diferentes Há também as transformações que o
locais através de processos digitais de uso tecnológico parece requerer ao preparo e
formação do artista cênico, em geral calcados
1 Ver tese de doutorado de Guilherme Schulze em: numa estrutura extremamente convencional
<http://ufpb.academia.edu/GuilhermeSchulze/
Books/11042/Distributed_choreography_a_
de aprendizagem, em que a máquina e os
framework_to_support_the_design_of_computer-
based_artefacts_for_choreographers_with_
special_reference_to_Brazil>. 2 Ver: <http://isa.hc.asu.edu/adapt/>.

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recursos por ela gerados servem apenas intensidade e formato da luz, a eletricidade
como enaltecedores de uma estrutura fabular propiciou o surgimento de inúmeros
clássica e/ou da igura presencial e concreta equipamentos que, aos poucos, enriqueceram
do ator. Pode – e deve – se aprofundar uma a arte do espetáculo por meio de sonoridades,
prática que permita ao artista em formação o projeções e efeitos variados. Foram também
entendimento, a percepção e a apropriação as possibilidades apontadas pela luz elétrica
do alcance e dos novos paradigmas gerados que permitiram a determinados encenadores
por tais implementos. Neste sentido, a redimensionar as funções do ator, como foi
teorização sobre a intersecção ator-tecnologia o caso do suíço Adolphe Appia (1862-1928),
e, por extensão, sobre as suas implicações no ou reduzi-lo a uma dispensável presença no
âmbito da relação homem-máquina, mostra- futuro, como chegou a pleitear o inglês Gordon
se ainda bastante fértil, valendo lembrar Craig (1872-1966).
que a importância do domínio técnico por Com relação às novas mídias e
parte do ator na relação com os efeitos tecnologias, ganharam força nesta última
produzidos pela tecnologia já fora pleiteada virada de século os estudos sobre o papel da
por Vsevolov Meyerhold (1874-1940), para cibercultura na produção, re lexão e difusão
quem a transformação teatral, a partir disso, das artes. Entretanto, na comparação com as
era irrevogável. Não se trata, portanto, de artes visuais e com a dança, expressões que
postular um “novo teatro”, colocado acima tangenciam e dialogam constantemente com
ou signi icando a superação das formas o teatro, este se mostra ainda renitente na
tradicionais de expressão cênica, mas apropriação e na discussão do tema. Apesar
sim, de um debruçar-se sobre um meio de disso, necessário e inevitável, o diálogo entre
manifestação que encontrou no espaço cênico a cena e as novas tecnologias ganha relevância
um fértil terreno para sua evolução e que, de cada vez maior na contemporaneidade,
maneira intensa e crescente, está a abrir novas quando o teatro passa a conviver com o
frentes de discussão sobre o papel e o alcance numérico em suas diversas instâncias. Os
das formas dramáticas estabelecidas. efeitos da conexão em rede sobre a arte e a
Sabe-se que, no teatro, é bastante cultura apresentam consequências diversas,
antiga a relação e uso de recursos técnico- dentre as quais econômicas, sociais e políticas,
tecnológicos como procedimento para a o que, para alguns, evidencia a necessidade
obtenção de efeitos, sendo o aparecimento da de uma nova forma de se pensar o teatro, que
luz elétrica, no século XIX, uma das maiores deve deixar de ser concebido como reduto
revoluções ocorridas neste sentido. Além sacralizado, “sob pena de se tornar um museu
de trazer para a cena o que nenhum outro da representação e de ver seu impacto ruir”,
tipo de recurso havia permitido antes, como como a irma Bauchard (2004, p. 81). Para
o direcionamento e a variação de tom, cor, ele, o teatro tem, dentre os seus poderes, o de

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desa iar o virtual, sendo chamado a tornar- se convencionou chamar espaço e presença
se lugar de convergência por dois fenômenos cênica, não se tratando mais de uma simples
que se cruzam. O primeiro deles seria a busca de efeitos miméticos ou da pura
multiplicação e a diversi icação das linguagens simulação/representação de ambientes,
cênicas, como mostram determinadas práticas iguras ou seres do cotidiano, mas sim da
teatrais, coreográ icas e circenses que, através criação de sentidos e de locus próprios,
das novas tecnologias, fazem interagir o real permitidos pela comunicação em rede, em
com o virtual. O segundo fenômeno seria o que tais instâncias ganham autonomia e
desejo de artistas multimídia em confrontar interferem na percepção, na relação, no
essas duas instâncias. É quando, então, a cena entendimento e, consequentemente, no
apareceria como lugar de revelação, ou “uma papel do espectador. Uma nova realidade
modalidade privilegiada de espetacularização se constitui capaz de incidir e dialogar
da tecnologia” (2004, p. 82). efetivamente com as formas convencionais do
Neste sentido, a inovação trazida à teatro, permitindo uma renovada concepção
cena pelo uso de recursos tecnológicos, nas e alcance das manifestações cênicas. Trata-se,
últimas décadas do século XX, talvez encontre assim, não apenas de um redimensionamento,
paralelo somente no impacto causado pelo mas também de uma reconstituição do
advento da eletricidade, ainda no século XIX. espaço cênico por meio de seu deslocamento
Na cena contemporânea, os implementos e desmaterialização, já que, valendo-se de
tecnológicos tanto podem ser um mero meios como a simultaneidade e a velocidade
complemento – como o uso de projetores e vertiginosa, o lugar cênico passa a instituir-
microfones para simples ampliação da voz se não como um locus ísico, em si, mas como
e da imagem ou a instalação de prompters instância de manifestação e entrecruzar de
eletrônicos para a transmissão de legendas múltiplas formas e linguagens, circuito e luxo
– quanto um elemento de intervenção e constante de ondas e sinais sonoros, visuais
de signi icação estética propriamente dita. e digitais. Tal instância ultrapassa, pois, o
Neste sentido, as efetivas contribuições de entendimento do arquitetural, em seu sentido
Robert Wilson e Jacques Polieri, por exemplo, bi ou mesmo tridimensional para estabelecer-
apontaram para a necessidade e importância se como planetário, digital e virtual, alterando
da fragmentação e do desordenamento as noções de corpo, presença, tempo, espaço
narrativo, com vistas a criar uma nova e textualidade. Trata-se, assim, do real virtual,
disposição cênica, capaz de absorver tais engendrado primeiramente por suportes
novidades. telemáticos e, posteriormente, aprofundado
O uso das novas tecnologias vai por recursos de redes, lofts e espaços
impondo, aos poucos, inéditos parâmetros conectados que simulam outras relações de
de conceituação e signi icância daquilo que presença, imagem e auto-imagem.

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Essa nova instância desloca a relação Entretanto, embora ganhando espaço


axiomática da cena e inaugura o que Cohen e se impondo de forma intensa e quase
(1998) denominou campo do pós-teatro, capaz inexorável em nossos dias, os implementos
de desconstruir o paradigma da linguagem tecnológicos acabam por estimular certos
teatral como fenômeno presencial, em que excessos que, por vezes, perpassam os limites
atuante, texto e público são partes de uma do ponderável. A ode à tecnologia não pode
manifestação comum, num dado tempo e lugar. estar acima do entendimento de que as
Nesta nova cena, tornada locus expandido cuja vertentes não se excluem, necessariamente,
tônica é a multiplicidade, a simultaneidade umas às outras. A arte convencional – e
e a velocidade, altera-se a percepção e o ainda reinante –, de características pré-
entendimento do que se convencionou tempo, industriais, material e permanente, pode de
corpo e espaço. O presente instaura-se agora alguma maneira sobreviver e, sobretudo,
na conexão de espaços e seres distintos, dialogar com a arte da era tecnológica,
por vezes distantes e “cronologicamente” interativa, mutável, conectiva. Neste sentido,
diversos: entes e acontecimentos que, embora ganha importância capital a função do ator
em conjunção, distam centenas ou milhares – artí ice maior da expressão teatral – em
de quilômetros uns dos outros, com fusos sua interface com o espectador, também este
horários sobrepostos, onde a audiência, tornado um ser mutante e desterritorializado,
por sua vez, ganha uma dimensão múltipla cada vez mais trazido ao centro da arena e
e globalizante, e o texto – num conceito já chamado a co-participar na construção de
contemporâneo de enunciação cênica – alça- sentidos e na elaboração cênica. Assim, as
se à categoria de hipertexto. Já o corpo, recentes tecnologias perfazem parâmetros
redimensionado o entendimento de presença, inovadores na relação entre os realizadores
vê-se lançado à problematização de seus da cena, levados a constituir uma prática
limites e fronteiras, tanto pela intrusão em que, não apenas o outro, mas também a
tecnológica em seu âmbito interno, quanto sua própria imagem, simulação e presença
pelos processos de sua rami icação no espaço mediada se colocam como interlocutores. Se,
externo, tornada possível pela multiplicação num primeiro momento, é o mundo exterior
de suas “capacidades de expressão, afecção que penetra o palco por meio de imagens e
e conexão, para além da pele e dos limites projeções, mais tarde será o próprio corpo
territoriais naturais e etológicos” (BRUNO, do ator que se verá duplicado, multifacetado
1999, p. 99). Cabe observar que, no campo e explorado de forma até invasora por
do teatro, além de incidir sobre a noção equipamentos audiovisuais. Ele passa a ter sua
de matéria e fruição, tais deslocamentos imagem corporal manipulada, fragmentada
possibilitam redimensionar, num único golpe, e redimensionada. Se, antes, elaborava para
a própria noção de autor, obra e espectador. si, mentalmente, as imagens que pudessem

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estimulá-lo à exteriorização de ações e aplicativos facilmente acessíveis. Nas últimas
sensações, agora tais imagens compõem-se décadas, inúmeros eventos e projetos de
no espaço percebido – quando não o perfazem investigação vêm sendo realizados em todo o
propriamente –, simultaneamente expostas mundo abordando a convergência entre cena
e compartilhadas com o espectador. Sua e tecnologia. Embora se concretizando como
incidência e signi icação ganham autonomia tendência artística, percebe-se que o contato
e competem com os dizeres do próprio corpo com essas inovações presentes no cotidiano
presente e ísico do ator, exigindo dele uma mostram-se ainda bastante promissoras.
singular destreza no tratamento e relação com No Estado da Paraíba, este cenário
tais implementos. vem mudando através das investigações em
Além da novidade espantosa que andamento no âmbito de Grupos de Pesquisa
representa, essa evolução se dá de forma do CNPq, vinculados ao Departamento
absolutamente veloz, o que di iculta de Artes Cênicas da UFPB, como é o caso
uma absorção e apropriação a contento, do Núcleo Cena e Contágio, pertencente
em consonância com as inovações e ao Grupo de Pesquisa Teatro: tradição e
transformações que ela gera. E aí se dá a contemporaneidade e do Núcleo de Estudos e
importância de uma efetiva re lexão sobre as Pesquisas sobre o Corpo Cênico (NEPCênico).
vantagens e necessidades surgidas no diálogo Desde 2006, ambos os grupos têm produzido
da cena e do artista com tais novidades, projetos na área de intersecção entre cena
podendo-se dizer, inclusive, que isto se e tecnologia, o que tem repercutido em
constitui já como um dos grandes desa ios mudanças no cenário artístico de João Pessoa.
impostos à comunidade acadêmico-artística, Algumas informações sobre tais iniciativas:
num momento em que se vive já a segunda Teatro: tradição e contemporaneidade:
década do século XXI. grupo de pesquisa que tem como intuito
abordar questões relativas à encenação
Conclusão e atuação no teatro. Uma de suas
linhas, intitulada Cena e Contágio, visa
A criação e a popularização dos especi icamente o estudo das artes cênicas,
computadores digitais, assim como a visuais e performáticas em sua interação
disponibilização de softwares especí icos, com o universo do grotesco, da hibridização
possibilitaram um aumento no número e e das disfunções do corpo, da mente e do
qualidade das ferramentas utilizadas em comportamento, investigando também a
cena. Hoje, artistas comuns podem lidar com virtualização e a multimodalidade do corpo
dispositivos tecnológicos extremamente cênico.
so isticados, mesmo nos países em NEPCênico:grupo voltado para
desenvolvimento como o Brasil, através de investigações nas mais variadas áreas das

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artes cênicas tais como dança, teatro, música Artigo recebido em 12 de novembro de 2010.
e vídeo. Os trabalhos desenvolvidos por
Aprovado em 28 de novembro de 2010.
seus membros em suas linhas de pesquisa
abrangem diferentes processos: criativos,
históricos, de ensino, de encenação, e Referências bibliográϐicas
relacionamento com mídias digitais.
Participam do NEPCênico professores e alunos ADSHEAD, J. Dance analysis: theory and
do Departamento de Artes Cênicas, além de practice. London: Dance Books, 1988.
pesquisadores não ligados à UFPB.
Os caminhos que vem sendo traçados BAUCHARD, Franck. Esthétiques de la

nessas pesquisas encontraram um canal de mutation au théâtre. In: CORVIN Michel;

discussão comum com a realização recente do ANCEL, Franck. Autour de Jacques Polieri –

Conexão XXI – Festival Cênico e do Simpósio scenographie e technologie. Paris: Bibliothèque

Cena e Tecnologia, que contaram com a National de France, 2004.

participação de artistas e pesquisadores BRUNO, Fernanda. Membranas e Interfaces.


de várias regiões do Brasil, vinculados a In: VILLAÇA, Nízia; GÓES, Fred; KOSOVSKY,
instituições como Universidade Federal Ester. (Orgs.). Que corpo é esse? Rio de Janeiro:
do estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mauad, 1999, p. 98-111.
Universidade de Brasília (UnB), Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e Universidade LE VASSEUR, P. Computer dance: the role of

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). the computer. Impulse: dance and education

Além disso, compuseram a programação now, 1965, pp 25-27.

artistas e coletivos que incorporam o uso de LESSCHAEVE, J. The dancer and the dance-
recursos tecnológicos em suas criações, como Merce Cunningham in conversation with
é o caso do Teatro Para Alguém e do Grupo Jaccqueline Lesschaeve. New York/London:
de Artes Global Phila7, de São Paulo, e do Marion Boyars, 1991.
dançarino Helder Vasconcelos, de Recife. O
PRESTON-DUNLOP, V. Looking at Dances: a
evento teve o mérito de envolver não apenas
choreological perspective on choreography.
artistas e acadêmicos interessados no assunto,
London: Verve, 1998.
mas também diversos segmentos sociais e
culturais da cidade. Outrossim, a iminência do
surgimento de um Curso de Pós-Graduação
em Artes do Espetáculo na UFPB, previsto
para breve, gera boas expectativas e faz crer
na possibilidade de novos ares para a cena de
característica tecnológica em nossa região.

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