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Porcos-espinhos na pandemia ou Aangustia do contagio' ‘Maria Claudia Coelho Universidade do Estado do Ro de Janeiro, io de Janeiro, R, Brasil 1m seu ensaio Diante da dor dos outros, Susan Sontag (2003) sugerit que o excesso de noticias sobre sofrimento poderia produzir, em vez de solidatiedade, indiferenca. Parto aqui de uma sugestio andloga: o excesso de informagdes, em part especializada, pode gerar uma paralisia intelectual, algo como um “sequestro do pensamento”. Era essa a sensagio de que estava acometida quando, no inicio de abril, os organizadores desta seco excepcional de Dilemas me procuraram, propondo escrever sobre a pandemia. Comeco, assim, agradecendo 0 convite, que tomei como incitagdo para sair do torpor intelectual, tanto mais angustiante porque associado a um sentimento de divida moral. Por di refiro angtistia provocada pela convicgo de que as pistas intelectuals que vinham neste ‘momento, meio que aos borbotdes, de maneira quase intuitiva, precisavam ganhar uma forma que lhes permitisse um alcance mais amplo do que a conversa com o circulo restrito de amigos, familiares e colegas sobre o sofrimento imposto pelas medidas de isolamento/distanciamento (por ‘mais relevante que essa atuago minimalista possa ser também). Escolhi para foco destas reflexdes 0 tema das praticas de desinfecgao, que vem consumindo boa parte de nosso tempo, e isso sob trés pontos de vista: o pritico — as incontaveis vezes em que lavamos ou desinfetamos nossos corpos, roupas, objetos, casas, alimentos e mesmo os proprios instrumentos de desinfeccio; 0 cognitive — as inimeras diividas sobre a necessidade de lavar/desinfetar algo e sobre as maneiras mais eficazes de fazé-lo; e 0 emocional — a angistia suscitada por essas diividas, pelos esquecimentos, pelos contatos involuntarios e mesmo inevitaveis. lar de natureza ida moral me ‘A angiistia — muitos ja o disseram — € 0 medo sem nomeagao. Medos particulares, por terem fontes ¢ contornos precisos, podem ser mais bem enfrentados; talvez nado pragmaticamente (como diante de um ledo faminto), mas cognitiva e emocionalmente. Mas o medo provocado pelo coronavirus parece refratario & nomeagio porque, apesar de ter nome, sta origem é especulativa, suia duragio temporal é desconhecida, sua forma de transmissio é etérea (com 0 perdi do trocadilho), suas fontes de contigio podem ser todas ou quaisquer matérias (animadas ou inanimadas). Isso faz com que a busca de informagao se transforme em uma panaceia universal, «que nos invade em nosso confinamento sob a forma de uma avalanche de noticias de jornal, explicativos, graficos epidemiologicos, indicadores estatisticos ou memes, todos eles trazendo alertas, mais ou menos confiveis, mais ou menos apocalipticos. fdeos 08 CE ones: ei detest conto corte oc ode neo —etextesra Pandata 220.110 Fomos, assim, transformados em poucos dias em epidemiologistas amadores, discutindo quais as medidas mais eficientes para “achatar a curva", As informagoes cientificamente embasadas dos especialistas nos chegam em. versoes diluidas para leigos, no mais das vezes expostas para persuadir a todos a acatar medidas de ordem técnica: espirrem no brago, lavem as ‘maos, passem élcool em tudo, cubram a boca eo nariz ao sair, mantenham distincia de um metro (ou dois, ou dois e meio) na rua. Se sabemos — como muitos também jf o disseram — que nomear e compreender pode ter ‘um efeito terapeutico, poderiamos esperar que 0 consumo desenfreado de informagdes bem embasadas pela ciéncia poderia aplacar a anglstia, Entretanto, nao é isso o que percebo ao meu redor. E € uma sugestio para compreender a dindmica desse incremento da angustia pelo consumo voraz de informagdes cientificamente bem fundamentadas que gostaria de esbogar aqui. Para comegar: 0 argumento que se segue parte do principio de que o conhecimento méiico até agora disponivel sobre a pandemia do coronavirus é bem embasado. A angistia de que quero tratar aqui diz respeito tinica e exclusivamente ao consumo desse conhecimento pelo pilblico leigo. E por que o alerta? Para me precaver contra a possibilidade de que as consideragdes a seguir sejam lidas, de forma apressada e equivocada, como uma desqualificacao leviana e irresponsivel sobre o saber médico a nosso dispor. Repito: trata-se de discutir a angustia provocada pelo consumo desse saber, sob a forma de notictario, pelo piiblicoleigo. Em 1904, Marcel Mauss e Henri Hubert publicaram 0 conhecido ensaio “Esbogo de ‘uma teoria geral da magia”, no qual discutem os elementos e a logica dos sistemas magico De maneira especialmente provocativa para nossos propésitos aqui, os autores partem da afirmagio de que a magia seria “a forma primeira do pensamento humano”, algo como “uma ciéncia antes da ciéncia”, Sustentam essa afirmagdo na constatagao de que os sistemas miagicos seriam regidos por leis — “pois quem diz lei, diz ciéncia”, E ainda: “[4) magia faz a funcao de ciéncia e ocupa o lugar das ciéncias por nascet” (p. 98). ‘A magia teria trés elementos: os agentes (os magicos), 05 atos (0s ritos) e as representagies (ideias e crengas correspondentes aos ritos), Os ritos magicos se disting comuns (niio magicas) porque, nestas, 0 entendimento é que a producio do efeito pretendido tem. causa mecinica. Assim, quando “uma técnica ¢a0 mesmo tempo magica e técnica, a parte miigica 6a que escapa.a essa definigd0” (p. 55). Voltaremos a essa passagem mais adiante. 3s ritos magicos seriam também uma linguagem, ou seja, “traduziriam uma ideia”, Esse seria o “ménimo de representagio” presente em todo ato magico: a representagtio de seu efeito, o qual seria, sempre, uma mudanca de estado: “Diremos de bom grado que todo ato magico € representado como tendo por efeito seja colocar seres vivos ou coisas num estado tal que certos gestos, acidentes ou fendmenos devam suceder-se infalivelmente, seja fazé-los sair de um estado prejudicial” (p. 95). iam das técnicas DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes na Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coelho Para Mausse Hubert as leis da magia fazem parte das representagdese seriam trés: contiguidade, similaridade e contrariedade. De acordo com essas leis, “as coisas em contato estio ou permanecem unidas, © semelhante produz. 0 semelhante, 0 contrétio age sobre o contrario” (p. 98). Essas leis regeriam as associagoes de ideias, “com a tnica diferenga de que aquia associagio subjetiva das ideas conclui pela associagio objetiva dos fatos; em outras palavras, as ligagdes fortuitas dos pensamentos equivalem as ligagdes causais das coisas” (p. 98). Este ponto — a relacdo entre associacio subjetiva de ideias e associagdo objetiva dos fatos — também sera retomado mais adiante. ‘A lei que nos interessa aqui € a contiguidade. Seu principio fundamental é que a parte vale pelo todo: “Os dentes, a saliva, 0 suor, as unhas, os cabelos representam integralmente a pessoas de tal mocio que, por meio deles, pode-se agir diretamente sobre ela, seja para seduzi-la, seja para enieiticd-la. A separacdo nao interrompe a continuidade, pode-se mesmo reconstituir ou suscitar ‘um todo com o auxitio de uma de suas partes” (p. 98). (Os autores prosseguem: Essa lel de contiguidade comporta, ais, outros desdobramentos. Tudo 0 que est em contato imedlato com 2a pessoa, asroupas, a marca dos passos, a do corpo sobre a reiva ou no leit, 0 leto,oassento, os objetos que usa habitualmente,brinquedos e outros, sdo assimilados &s partes destacadas do corpo. Nao ha necessidade cde que. contato sejahabitual.ou frequente. ou efetivamente realizado, como no caso das oupas.edos abjetos usuals: encanta-se o caminho, os objetos tocados acidentalmente, a qua do banho, 0 fruto mordido etc. A da Idela de que ha continuidads, magia que se exerce universalmente sobre restos de refeigdes pro identidade absoluta entre as scbras, 0s alimentos ingetidos © quem come, este sendo substancialmente idéntico aquilo que comeu, Lima relagao de continuidade totalmente semelhante existe entre um homem © sua famfla;age-se com certeza sabre ele ao ag sobre seus parentes;¢ itll nomed-los nas formulas au escrever ‘nome deles nos objetos mgicos destinados a prejudicé-o, Mesma relagdo entre umn homes © seus animals domesticos, sua casa, telhado de sua casa, seu campo etc (0.99), E ainda: “Em suma, os individuos e as coisas estao ligados a um ntimero, que parece teoricamente ilimitado, de associados simpaticos. A corrente deles € tao cerrada, ¢ tal sua continuidade que, para produzir um efeito buscado, é indiferente agir sobre um ou sobre outro dos elos” (p. 99). Creio que o leitor, a esta altura, ja deve ter percebido aonde quero chegar. Mas Mauss ¢ Hubert, eles proprios, nos conduzem até la: ‘Adela da continuldade magica, quer esta se realize por relac3o prévia do todo com a parte ou por contato acidental, implica a ideia de contagio. As qualidade, as doencas, a vida, a sorte, toda especie de influxo magico, s30 concebidos como transmissvels a0 longo dessas correntes simpéticas.(.) Mas © Ccontaigio magico no é apenas ideal e limitado ao mundo do invisivel; ee & concreto, material, € em todos 05 pontos semelhante ao contagio fsico (p. 100) DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes da Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coslho Mas, para que a magia seja eficaz, é preciso que 0 magico seja capaz de identificar as propriedades das coisas. Entretanto, as ideias magicas sio “essencialmente obscuras” Em magia, como em raliaizo, oindividuo no racocina, ou seus racocinios s30 inconsclantes. Assim com ele N30 ‘tem necessidade de refer sobre 3 estrutura de seu ito para pratcso,d npreende sua prece ou seu sacrifcio, {assim como no tem nevessidade de que seu ito sea agico assim também ele no se nquieta com o porqué das propredades que utiliza e no se preocuna em justia raconalmente a escalha e o emprego das substancas Podemos is wezesreconstiir, para nds mesmnos.o.camninho encoberto que suas ideas sequram,maseegerarmente 1 € capaz disso, Nao a em seu pensamento senso av fomece meiosinteramente prontos, dante da dei, exraordinarlamente precisa, do objeto a tinal.) Mas no se econstiuiacadela das assacagbes de celas pels quas os fundadores dos tos chegaram a essasoc0es (0.109), 2 ideia de uma agio possiel, para a qual atradigao Ihe ‘Mas e se o individuo tenta reconstituir essas associages? E se ele precisa reconstitui-las para ser capaz de operar, com alguma autonomia, de modo eficiente para seus propésitos? E se ele precisa reconstituir essas associagoes que embasam as técnicas para poder tomar microdecisdes em seu cotidiano, decisdes essas que Ihe parecem ser de vida ou morte? Por exemplo, e se ele precisa saber qual ¢ 0 principio que diz que sabao com gua mata coronavirus para, quando nao dispoe de sabao, saber se detergente desempenha a mesma fung0? E se ele precisa saber se 0 coronavirus vive em superficies de papel para saber se é preciso lavar as ‘maos apés tocar em uma embalagem de pizza? Ou saber se o virus se transmite de papel para pedra para saber se é preciso desinfetar a bancada da cozinha apés apoiar a embalagem? Ou se é melhor apoiar a embalagem no chao? Ou se o virus passa do papel para o piso? E do piso para a sola das havaianas? E da sola das havaianas para o tapete do banheiro antes de entrar no banho para brecar a contaminagio pela embalagem? E de suas mos, que tocaram a embalagem, para 0 frasco de shampoo que (des) contaminara seus cabelos? Ou, entdo, se optou por comprar alimentos congelados, o que fazer com as embalagens? Como fica a higienizacio das embalagens? Ou nao precisa higieniz-las? Colocé-las direto no freezer e deixar que 0 frio mate “os bichinhos”? Mas e se congelar no matar? Limpar as embalagens (mas com 0 qué?) ou as colocar em um saco previamente limpo dentro do freezer, para depois matar “os bichinhos” com o calor do micro-ondas em ver de com o frio do freezer? Dividas desse tipo vém atormentando o cotidiano de todos aqueles que levam a sério a ameaga da Covid-19, produzindo uma angistia que, dada a natureza da pandemia, éliteralmente de vida ou morte. A sugestdo que quero apresentar aqui é: 0 piiblico leigo, bombardeado pelo conhecimento cientifico, mas sem domind-lo minimamente para orientar suas incontiveis pequenas decisdes cotidianas de higienizago ~ de si, dos outros, dos objetos, do mundo -, estaria vivenciando as orientagdes cientificamente embasadas como uma forma de magia. Assim, a contiguidade entre pessoas-objetos-pessoas produziria uma profunda angistia do contdgio, tanto mais acentuada pela impossibilidade de quebrar os elos da corrente, tendo em vista quea plena higienizacio suporia um sujeito sem qualquer tipo de contato com qualquer coisa que DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes na Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coelho Ihe seja externa — incluidos af o ar que se respira e 0 chaio em que se pisa, Entretanto, os ditames so para que esses contatos sejam incessantemente “quebrados” pela intermediagio dos elementos dotados das propriedades corretas — alcool, sabonete, detergente (para “matar” o virus) ou panos, co, filtros (para “barra” o virus). Nao cedamos, contudo, as tentagdes e perigos da simples analogia. E retomo aqui o alerta inicial: trata-se de discutir © modo como as tentativas de operacionalizagao do conhecimento cientifico, tentativas feitas por leigos para seu uso cotidiano, esbarram em seu desconhecimento dos principios. Isso faria com que fossem vivenciadas como algo de ordem mégica, como cadeias inquebrantaveis de contiguidade que somos, apesar de tudo, instados a tentar incessantemente romper, exigindo assim que fagamos um rompimento primordial, antes de mais nada, cont sua propria ldgica. Pois, na magia, como dizem Mauss e Hubert, “o mundo ¢ concebido (..) como um animal ‘nico cujas partes, nao importa a distincia, esto ligadas entre si de uma maneira necessaria, Nele, tudo se assemelha e tudo se toca” (p. 107). (Os proprios elementos para romper a contiguidade, contudo, podem trazer novos perigos. 0 alcool em gel, apontado no inicio da pandemia como principal elemento para desinfecga0, ‘raria em si uma ameaga Jo invisivel quanto o virus: segundo um video amplamente circulado por WhatsApp, pega fogo sem que isso seja visivel, a nao ser quando as chamas se propagam para ‘outros materiais, produzindo acidentes com queimaduras. Outro video narra um experimento cientifico que, utilizando uma cimera de alta sensibilidade e equipamentos de raio laser, “mostra” goticulas de um micrometro produzidas por espirros ou conversas. Os cientistas levantam a hipotese de que essas microgoticulas disseminam © coronavirus (uma goticula microscépica pode conter muitos virus, ou seja, ha algo invisivel a oho nu capaz de conter muitos outros invisiveis ainda menores, estes sim mortais). A experiencia avanca, simulando o movimento das goticulas em uma sala fechada com dez pessoas. Uma pessoa tosse uma vez e espalha 100 mil goticulas, mostradas no video como uma nuvem tricolor. As goticulas malores caem ao chao, nos diz o narrador, em um minuto, Mas as goticulas menores continuam a flutuar no ar. No video, elas aparecem como um halo vermelho ao redor das pessoas, A altura de suas cabecas, eo narrador nos informa que, 20min apés a tosse, ainda nao cairam no chio. A propria ordem de grandeza da simulagio — uma tinica tossida produzindo cem mil goticulas que perduram no ar por 20min como um halo vermelho em torno das cabegas de todos, cada goticula contendo muitos virus, dos quais basta um para contrair a doenga — acirra evidentemente a angistia, apesar de sua intengao preventiva. Relembrando Mauss e Hubert: “[O]s individuos e as coisas esto ligados a um numero, que parece teoricamente ilimitado, de associados simpaiticos. A corrente deles é to cerrada, é tal sua continuidade que, para produzir um efeito buscado, é indiferente agir sobre um ou sobre outro dos elos”. E essa percepgio magica da relago pessoa-objeto-pessoa, essa continuidade cerrada e ilimitada, aquilo que, em um contexto pandémico, evoca a imagem de um contagio infinito, impossivel de ser rompido, mas que, entretanto, o sujeito confinado tenta seguidamente romper, por uma questio que se the afigura como de vida ou morte. DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes da Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coslho E nesse sentido que o ato de desinfetar é, a0 mesmo tempo, uma técnica e um rito — Mauss e Hubert novamente: “[U]ma técnica é ao mesmo tempo magica e técnica, a parte magica é a que escapa a essa definigo”. Aquilo que o leigo nao compreende ¢ entao vivenciado como magico e, portanto, como causa daquela angiistia produzida pelo que nao é nomeado porque nao éentendido. Ha mais. Esses principios ndo entendidos sio da mesma ordem dos sistemas de classificagdo, que ordenam o mundo ao dividir tudo que existe em categorias, que se opdem, se articulam, se hierarquizam. “Classificar” é, para a antropologia estruturalista, a operagio fundamental do pensamento humano, aquela que cria a cultura por meio da introdugdo de uma ordenagio no mundo. Classifica-se tudo — perigoso/vulnerivel, doméstico/selvagem, limpo/sujo, comestivel/nao- comestivel, saudivel/doente. A antropologia estruturalista, francesa, inglesa e americana, tributaria dos estudos dos sistemas de classificacio realizados pela escola sociolégica francesa de Emile Durkheim, foi prodiga em andlises de uma infinidade de operagdes classificatorias, tanto em_ sociedades tribais quanto nas sociedades contemporaneas, abrangendo sistemas de parentesco, vestuério, alimentagdo, xingamentos, entre outras. Em um desses estudos, Marshall Sahlins examinou a légica do consumo de carne nos EUA, mostrando como esse sistema tinha como “principio classificatorio” fundamental a associagio entre domesticidade/comestibilidade, criando uma hierarquia que iria do mais comestivel porque menos doméstico — 0 boi — até o menos comestivel porque mais doméstico — 0 cio —, passando pelo porco e pelo cavalo. AAs origens da pandemia vem sendo tragadas até um “mercado vivo” em Wuhan (epicentro original da epidemia), na China. Matérias jornalisticas ¢ videos circulam em mensagens de WhatsApp mostrando, de formas muitas vezes acentuadamente criticas, as condigdes de manutengio, abate e venda dos animais ai comercializados. Dois pontos merecem destaque & uz dessa argumentacio que venho desenvolvendo? O primeiro a convivéncia entre animais “domésticos” e animais “selvagens”, todos reunidos, empirica e abstratamente, em uma mesma categoria: “comestiveis”. O segundo & a descrigdo dessa convivéncia: em gaiolas empilhadas, sem que as espécies sejam separadas, com os liquidos eas secrecdes de cada uma (urina, fezes, pus, sangue) respingando de umas em outras. A descrigdo desses mercados se assemelha a um pesadelo estruturalista, A barreira entre selvagem € domesticado € rompida, com tudo podendo ser comido, encharcado de secregdes que se misturam, José Carlos Rodrigues (1975), em trabalho de orientagio estruturalista, examinou o “principio classificatério” do nojo, mostrando como sua situagdo-sintese era a inversio do percurso das secrecdes: de fora para dentro do corpo, a0 invés do caminho “natural”, de dentro para fora do corpo. Na descrigdo dos mercados vivos chineses (e enfatizo aqui que o que estou analisando € sua descrigao tal como veiculada na midia e nas redes sociais no Ocidente), esses espagos strgem como ignorando os trés principios classificatorios mencionados: o domeéstico eo selvagem se misturam; © homem consome a ambos indiscriminadamente; as secregoes (ao menos no imaginério suscitado por essa descrigdo) viram alimento. DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes na Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coelho Retracar 0 contato do homem com o coronavirus ao mercado vivo de Withan se parece muito, assim, com um “mito de origem” da pandemia. Pois mitos e ritos, como se sabe, compartilham uma dimensio de crenga, de representagio. Pausa para novo alerta: a Covid-19 é descrita, pelos especialistas, como uma zoonase, uma doenga infecciosa capaz de ser transmitida entre animais e seres humanos, entre outros agentes possiveis, por virus. Uma hipétese muito discutida por esses especialistas & que 0 novo coronavirus teria “migeado” dos morcegos para o ser humano, e que o encontro teria se dado no citado mercado vivo de Wuhan, apontado como foco da contaminacio original em razao de um alto percentual das primeiras pessoas infectadas ter estado pouco tempo antes nesse mercado. Quando, apesar dessas evidéncias, sugiro que contar dessa forma a historia do “paciente zero” pode ser entendido como um “mito de origem”, estou me referindo ao impacto desta narrativa sobre 0 imaginério ocidental, capaz de provocar angistia em razio da ruptura de principios classificatorios que organizam uma percepgao e uma experiéncia do mundo — como, de resto, faz tudo aquilo que atravessa o lugar que the é atribuido em um sistema de classificagio. Dizer, assim, que essa narrativa € um mito ndo quer dizer colocar em xeque sua veracidade, mas sim apontar para seus efeitos do ponto de vista do registro simbélico. A magia € descrita por Mauss e Hubert como uma “confusio de imagens” (p. 97). Nela, a “associagao subjetiva das idetas conclui pela associagio objetiva dos fatos” (p. 98). Mas as ideias estio associadas também a sentimentos: * “Mas essa transferéncia de ideias complica-se com uma transferéncia de sentimentos. Pois, de uma ponta a outra de uma ceriménia magica, verifica-se ‘um mesmo sentimento, que dé o sentido ou o tom da ceriménia, que na verdade dirige e comanda todas as associagoes de ideias” (p. 100). Duas ideias aparecem associadas, nessa malha discursiva sobre a pandemia que combina discurso cientifico, discurso jornalistico e senso comum: contdgio e contato, Essa associaglo & apontada pelos proprios Mauss e Hubert, ao afirmarem que a continuidade magica (a contiguidade) implica a ideia de contaigio. Mas, nessa profusdo de textos sobre a pandemia, quero destacar uma versio desta associagio que me parece muito peculiar. A primeira vez em que isto me chamou a atengto foi em uma matéria jornalistica veiculada ‘nos primeiros dias da pandemia, na qual eram dadas diversas instrugdes sobre como desinfetar “objetos. Nela, havia um alerta especial para os cusidados necessirios com o celular, descrito como ‘um objeto muito “sujo”, porque era carregado para todos os lugares e pousado sobre intimeras superficies, Chamou-me a atengio a ambivaléncia discursiva sobre o celular, uma vez que em outros discursos, longe de ser um viléo da contaminagao, o celular € 0 mocinho da historia, por sua capacidade de minorar a solidio do confinamento por permitir a localizaglo de pessoas infectadas ou como dispositivo para manter os servicos necessirios 4 vida cotidiana. DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes da Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coslho Pouco depois, me foi recomendado assistir a um episodio da série Explaining, intitulado “The Next Pandemics”. Nele, ao lado de especialistas da érea médica, Bill Gates € entrevistado (e no usta lembrar o furor das redes sociais em torno da palestra em que ele “previu” a pandemia). Em que pese a lucider impar de suas anslises sobre a interconexo global e suas possiveis implicagdes, sua propria presenca entre os entrevistados me causou estranheza semelhante Aquela provocada pelos alertas para a “sujeira” e 0 “perigo” do celular: por que um expert em novas tecnologias era chamado a falar sobre pandemias ao lado de epidemiologistas e infectologistas? (© quadro se completa, de forma quase caricatural, com uma noticia (WARREN, 04/04/2020) a respeito de incéndios, possivelmente intencionais, de torres de tecnologia SG, ocorridos na Inglaterra, motivados por teorias conspiratérias que vinculam essa tecnologia 4 pandemia de Covid- 19. A titulo de exemplo, uma teoria citada na matéria sugere que a epidemia se originou em Wuhan porque a cidade comecara recentementea utilizar a tecnologia de transmissio de dados sem fio em rede, Técnicos e engenheiros responsiveis pela instalagao e manutengao das torres foram agredlidos, € 0 governo britanico considerou solicitar a Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube e outras redes sociais que impedissem sua divulgagio (THE GUARDIAN, 05/04/2020). [Na magia, associagdes subjetivas de ideias produzem associagdes objetivas de fatos. Se minha hipotese procede — o pablico leigo vivencia o conhecimento cientifico como magico —, entio essas is estranhezas deixam de ser estranhas e passam a fazer muito sentido: o expert em novas tecnologias que entende de pandemias; o celular “sujo” que, ao conectar, contagias ea tecnologia que promete conexdes mais velozes como culpada pela disseminagao do virus. E porque a magia 6 “representagao sintética, na qual se confundem as causas eos efeitos” (p. 97) E como se a “mio” da metifora se invertesse: do virus como metifora da conexio (as ‘mensagens que “viralizam’) para a conexdo como metafora da infeccio, Se metiforas sio, como recuperou Susan Sontag da definicio aristotélica (e, ndo por acaso, falando sobre doengas) a substituigdo de uma coisa por outra em razdo da existéncia de uma relagio subjacente entre ambas, essas trés historias podem ser entio entendidas como expresso da intercambialidade entre contigio e contato. Mas as metaforas s6 sto necessirias se a conexao € inconsciente. E 0 ndo saber, como argumento aqui, produz angiistia. Uma angiistia tanto maior quanto nos remete ao amago da questio humana fundamental: a relagéo com 0 outro. Contato ou contigio? Na conhecida imagem de Arthur Schopenhauer utilizada por Sigmund Freud para discutir a ambivaléncia da relagdo com o outro na constituigdo da civiizagdo, um grupo de porcos-espinhos sente frio, Buscam 0 contato com as corpos uns dos outros, mas logo se retraem, feridos pelos espinhos. Retraidos, sentem frio, ese aproximam novamente para se machucarem outra vez O outro me aquece, 0 outro me fere. © outro me consola, o outro me contagia. Porcos-espinhos na pandemia, DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes na Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coelho Notas " Agradeco a leltua critica eos comentrlos de Cesar brahim, Helena Bomeny, Jane Russo e Ronaldo Olivera de Castro. 2 Em texto publicado nesta série Reflexses na Pandemia, Perrota (2020) analisou esses mercados a partir da perspectiva de Maty Douglas e sua dscussio sobre a dimensio moral da sujera, A autora combina a perspectiva estruturalista, com, sa atenao para os sistemas clssficatotos allmentares, com a anise das crfticas a essa forma de producio/consumo de animals come ligada a projtoscivliztorios ocidentals, chamando a atencio para aimplicagao dessastensoes para a ‘busca de solucoes para problemas de saade publica de ordem global. DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes da Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Maria Claudia Coslho Referéncias DELUMEAU, Jean. Historia do medo no Ocidente. 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E doutora em sociologia pelo Instituto Universitario de Pesquisas do Rio d= Janeiro (luped, Rio de Janeiro, Bras), mestre pelo Programa de Pés-Gracua¢aoem Antropologis Social (PPGAS) da UFR e (gfaduada em historia pela Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro (PUC Rio, Ro de Janeiro, Brasi, DILEMAS — Rio de Janelro—Reflexdes na Pandemia 2020 - pp. 1-10 ‘Marsa Claudia Coelho

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