You are on page 1of 15
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Reabilitacado fonoaudiolégica em grupo de pacientes afdsicos Rosiney Poliseli Cernescu'; Caroline Alves Galvao Leite? & Wanessa Malaghini Lessa? Resumo O presente trabalho objetiva demonstrar a importancia do mediador na reabilitagio do paciente afiisico, proporcionando reflexes sobre o trabalho em grupo, verificando a viabilidade do prognéstico ser favordvel ou no no que se refere & reabilitagao da linguagem em pacientes afdsicos inseridos em terapias de grupo. A visio contextualizada do affsico, neste trabalho, nao se restringe A linguagem, mas as proprias dimensoes que o grupo social confere & sua perda e & conseqiiente possibilidade de reabilitago, além da recuperago do individuos. Desta forma, devemos pensar na proposta de um modelo de reabilitagio, além da recuperagdo da linguagem. Em outras palavras, na busca de melhoria de qualidade de vida desses individuos. Nos resultados obtidos, foi comprovada a eficiéncia da intervengio terapéutica fonoaudiol6gica em grupo, a qual ndo deve substituir e sim complementar a terapia individual, pois na terapia em grupo os pacientes possuem oportunidades de aplicago de novas habilidades de comunicagao a contextos de conversacao, sendo esta mediada pela terapeuta que auxilia a participagdo destes na conversago. Palavras-chave: mediador; reabilitagdo; reflexdes; grupo; fonoaudiologia. CERNESCU, R. P; LEITE, C. A. G.; LESSA, W. M. Reabilitago fonoaudiolégica em grupo de pacientes afésicos. UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Savide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000. Introdugao “De todos os tragos de diferenciagao do homem em relago aos outros animais, nenhum é mais importante, precioso e evolufdo do que a linguagem” (Jakubovicz, 1996). A histéria, a cultura, as artes e tudo mais que compée 0 universo humano s6 péde ser construido, conquistado e imaginado a partir do momento em que o homem adquiriu linguagem, pois sem ela o homem seria apenas mais um primata na linha da evolugao. Entretanto, o homem comum, o leigo, raramente valoriza sua capacidade lingiifstica, ignorando o valor que a linguagem proporciona na integragAo social e na organizagao dos seus pensamentos. A linguagem parece um atributo simples e natural, a que todos tém direito, pois nela hd situagdes que podem se transformar em momentos draméticos em que o homem, de qualquer raga ou de qualquer nivel social, percebe que no pode mais falar, escrever ou ler (Jakubovicz, 1998). Dessa maneira, fica explicita a importancia do estudo nao sé da afasia, mas do individuo afasico, considerando as modificag6es da vida pessoal e inter-pessoal, devidas a sua lesio cerebral, aos déficits que ela provoca e as conseqiiéncias destes, buscando sempre a possibilidade de redescobrir 0 individuo que estd por trds da afasia. Ainda segundo Jakubovicz (1996), “o individuo, ao ficar afasico, percebe que nao mais tem comando sobre sua forma de interiorizagdo verbal, parecendo ser uma pessoa diferente daquela que era antes. O afsico vive 0 peso da soliddo mais profunda. Sente-se incompreendido. Para a familia, Docente do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Norte do Parand (UNOPAR). Endereco para correspondéncia: Av. Paris, 675. Jardim Piza. 86041-140 Londrina, Paran4, Brasil. 2 Discentes do curso de Fonoaudiologia da UNOPAR. CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 7 sua presenga torna-se muitas vezes um fardo e ele se sente aprisionado dentro de si, sem conseguir, embora o deseje, ter uma ligaco com o mundo exterior. Tudo isso porque ndo consegue mais dizer 0 que pensa, ou nao compreende mais 0 que os outros dizem”. A partir daf objetivou-se demonstrar a importancia do mediador, proporcionando reflexao sobre o trabalho em grupo, e verificar a viabilidade do prognéstico ser favordvel ou nao no que se refere & reabilitacao da linguagem em pacientes affsicos inseridos em terapias de grupo. A visio contextualizada do afasico, neste trabalho, nao se restringe a linguagem, mas as prdprias dimensdes que o grupo social confere a sua perda e & conseqiiente possibilidade de readaptagao do individuo. Desta forma, devemos pensar na proposta de um modelo de reabilitagao, além da recuperagao da linguagem. Em outras palavras, na busca de melhoria de qualidade de vida desses individuos. Consideragoes da Literatura Linguagem é um sistema de comunicac&o natural ou artificial, humano ou ndo-humano, podendo se referir 4 linguagem corporal (humana), as expressGes faciais, as reagGes do nosso organismo (tanto aos estimulos do meio, como de nosso pensamento), a linguagem dos outros animais, aos sinais de trAnsito, 4 musica, a maneira de nos vestirmos, a pintura, enfim, todos os meios de comunicagao, sejam cognitivos (internos), sécio-culturais (relativos ao meio) ou da natureza como um todo. A linguagem pode ser considerada como uma capacidade do ser humano de se inter-relacionar de forma inteligente e compreensfvel, a qual nos permite compreender os comandos que nos sao transmitidos através de impulsos visuais ou auditivos e elaborar respostas por auto-iniciativa ou reacionais a algum estimulo externo, quando também transmitimos o nosso sentimento. A linguagem é constitufda pela troca de significados em contextos interpessoais, que se constituem emestruturas semiéticas preenchidas de valores, o que permite aos participantes fazer prever aspectos essenciais, e assim, compreender um ao outro. A fala é um aspecto puramente mecanico, constituindo um dos veiculos da expressao ideativa, ou seja, € a produgao e articulagao dos sons com um significado, e a linguagem € a compreensao € 0 uso de simbolos; ela é estruturada pela incorporagao de conceitos que representam simbolos de nogdes abstratas e concretas. Os aspectos funcionais da linguagem podem ser classificados em Comunicagio Inter-Individual ou Linguagem Exterior, que é um sistema de respostas através do qual os individuos se comunicam, e Comunicago Intra-Individual ou Linguagem Interior, que é um sistema de agdo que capacita o pensamento e atuagao do individuo. A linguagem constitui-se de signos e simbolos, onde o signo € arbitrario, podendo ser construfdo no interior da linguagem especffica e naio uma teoria geral das linguagens. O signo € composto por duas facetas insepardveis que sao o significante, uma seqiéncia linear dos sons, ¢ 0 significado, um conceito que se constréi com a materia fonica do significante. O simbolo é motivado e nao pode ser permutado por outro sinal qualquer. No processo de aprendizagem da linguagem, as palavras so vinculadas aos objetos dentro de um determinado conceito; sendo assim, desde que a crianga tenha assimilado um determinado conceito através de um simbolo, toda vez que este vier 4 tona, a consciéncia arrastar4 consigo uma série de evocagées € associacdes baseadas no aprendizado que lhe deu o conceito. Quando a crianga chega ao nivel da consciéncia, da palavra “l4pis”, por exemplo, sao evocados os conceitos relativos a0 objeto (Iépis): forma, cor, utilidade. Apés isso, os mecanismos de percepgao e de evocagao so os que permitem a identificagao dos conceitos j4 formados. Assim, o individuo compreende o mundo exterior ‘através das palavras que ouve ou 1é (mecanismo de percep¢io), enquanto ao falar e/ou escrever ‘estard traduzindo em simbolos convencionais, dentro de uma comunidade, os conceitos adquiridos pelo aprendizado. 8 CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient,, Ciénc. Biol. Saide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 ‘Sao as seguintes as fungdes da linguagem: + Fungdo Comunicativa: é a mais importante, pois garante a socializagao do individuo no processo de aprendizagem. * Suporte do Pensamento Légico: alinguagem é canalizada através da dupla articula¢do, ou seja, € a capacidade do ser humano em compor duas espécies de unidades hierarquicamente estruturadas, significando compor o morfema, que € a unidade significativa do sistema lin; €0 fonema, unidade nfo significativa, mas que atua como elemento distintivo. + Expressao dos Estados Emocionais: € 0 individuo expressando os seus sentimentos através da * Afirmagao do Eu: tem implicagdes importantes na psicologia do ser humano, através das oposigGes eu/tu, proporcionadas pelos mecanismos da linguagem. + Fungdo Estética: pode-se introduzir muita expressividade e flexibilidade em nossas manifestagdes vocais mediante acentuagao, velocidade, altura do som e modo de articular as palavras. Quanto a diferenga entre lingua e linguagem, verifica-se que lingua pode ser definida como sendo um instrumento da linguagem, enquanto que a linguagem se expressa através da lingua. Como componentes da linguagem, temos: + Emissor: sujeito ativo da relag4o comunicativa (falante ou escritor). + Receptor: descodificador da mensagem comunicativa (ouvinte ou leitor). * Cédigo: cédigo de significagdes comum entre os sujeitos da relag4o comunicativa (lingua). * Canal: canal fisico que une emissor e receptor e um cont4gio psfquico entre eles (aparelho fonador e/ou ouvido). * Contexto: um mesmo contexto para emissor e receptor (ambiente lingiifstico e social). + Mensagem: corporificagao da informag4o transmitida (0 discurso). Postulados basicos da linguagem Os postulados bdsicos da linguagem dividem-se em fonemas, morfema, sintagma, sintaxe e seméntica. Os fonemas sao as menores unidades distintivas de uma lingua oral-articulada. Eles so os sons elementares que o aparelho do homem pode produzir, ou seja, € todo som capaz de estabelecer distingdo significativa entre duas palavras de uma lingua; na escrita chama-se grafema, a letra ou conjunto de letras a que corresponde. Omorfemaé um sinal minimo de uma lingua e constitui o menor segmento lingiifstico significante, representando uma vertente significada, um sentido; eles sfio constituidos por um ntimero varidvel de fonemas e podem ou nio representar uma palavra. O sintagma é a relaco de elementos significativos, isto é, representa o conjunto de morfemas seriados necessérios 4 formago do sentido e/ou da frase, e serve para designar a seqiiéncia das unidades em que se funda a cadeia verbal. A sintaxe € 0 conjunto de regras que permite a ordenag&o correta das palavras na frase, dita as regras para conex4o e ordenaco dos morfemas, no sentido de produzirem unidades maiores, frases € sentencas. Asemintica trata do estudo dos significados das palavras, isto 6, das relag6es entre signos e destes com seus referentes, e também procura definir as relagdes das palavras com os objetos que elas designam. Halliday (1978) afirma que a linguagem é um produto do processo de socializacao, pois a crianga primeiro cria sua propria linguagem e depois a lingua materna, na interag4o com seu grupo social significativo. Assim, quando a crianga aprende a linguagem, ela est4 construindo sua nogao da realidade externa e interna e, ao mesmo tempo, aprendendo coisas através da linguagem, tornando assim 0 CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient,, Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 79. desenvolvimento da linguagem um processo que torna a construgdo da realidade insepardvel da construgao do sistema semAntico ao qual esté vinculada. A desintegragao da linguagem Segundo Mansui (1995), a afasia, perda ou alteracdo da linguagem, decorrente de lesdo cerebral, revela o papel destacado que a linguagem ocupa no equilfbrio individual e social. Ao perder a linguagem, 0 individuo limita-se 4 capacidade de se posicionar no mundo. Por outro lado, seu ambiente social é mais especificamente familiar, tampouco reconhecem nele a pessoa com a qual interagiam e nao véem saidas para a nova condigdo. A afasia é acompanhada de alguma dificuldade fisica que, exteriormente, podemos observar, como a hemiparesia dos miisculos, geralmente do lado direito, e a paralisia facial, também quase sempre do lado direito. Geralmente, o que mais mutila 0 afasico é 0 transtorno da linguagem espontanea, por incapacidade de articulagdo ou de organizar o pensamento em palavras e dificuldade para entender o que os outros falam. A prontincia geralmente est4 alterada, com distorgo e trocas que fazem lembrar uma regressao a certos niveis infantis de evolugao da linguagem. Ele perde oritmo, apresenta bloqueios na fala e também prosédia alterada (Amorim, 1982). A afasia é chamada de desintegra¢ao da linguagem, e quase sempre essa desintegragao se verifica em todos os aspectos, variando em graus, pois alguns setores estao mais prejudicados que os outros. No afésico nao est4 somente a dificuldade da linguagem, mas outros fatores, sendo assim necess4ria aassisténcia de uma equipe multidisciplinar. Para Amorim (1982), “ha sempre, apés a ocorréncia da afasia, um perfodo de recuperagao espontanea de seis a doze meses. Mesmo assim, 0 doente deve passar por um treinamento de fala, para evitar os vicios de linguagem. Pacientes nfo-treinados freqiientemente adquirem uma linguagem que nao serve efetivamente 4 comunicagao, pois s6 os familiares entendem”. Para a compreensao das dificuldades de comunicagdo e das préprias reages do afasico diante do seu problema, resolvemos inserir depoimentos: “Eu percebi que, ao tentar falar, nao encontrava as palavras de que precisava. O pensamento estava pronto, mas os sons que deviam transmiti-lo ndo estavam mais a minha disposigdo. Eu disse para mim mesma: Entdo, é verdade que eu ndo posso mais falar”. (J:L.) “Eu nao sou capaz de ler, ndo sou capaz de escrever, ndo sou capaz de falar e, também, nao compreendo... entdo, nesses momentos, eu me sinto bem miserdvel”. (C .C.) “4 aS pessoas jd nao falam tanto comigo”. (J. B.) Relato de uma Fonoaudidloga Afasica Acho que seria interessante o relato de uma profissional que lida com esses casos, falando sobre a sua propria vivéncia como afdsica. Acho que, atualmente, consigo alcangar o significado e a sensagao de algumas frases como: Ah... na frente da gente (familia), ele faz de qualquer jeito, mas, quando esté com a fono ou a fisioterapeuta, ele faz direito (sic/filho de um paciente afdsico). Acho que ainda nao estd muito bom, né? (irmdo de uma paciente afdsica). Muito, mas muito obrigado... (paciente conseguiu escrever o seu nome e comegou.a chorar). Cadé eu? (relato de um paciente). Agora tenho que depender deles... (o paciente comegou a chorar). Bem, minha historia comegou em janeiro de 1991, quando estava atendendo uma paciente no consultério. EntGo, de repente, uma perna adormeceu, mas achei que era uma caibra, por eu estar sentada no chao hd muito tempo. Logo apés alguns minutos, tentei levantar o brago direito endo consegui. Imediatamente, percebi que estava com uma hemiparesia no lado direito e que algo estava acontecendo com meu cérebro. 80 CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 Comecei a suar frio, tentei me levantar e comecei a respirar fundo, at entéo minha paciente de 5 anos perguntou: — Que foi? — ...(tentei responder, mas jd estava dispraxia) — Por que vocé estd falando engragado, tia A.? — «4. (tentava movimentar o brago e articular os sons, mas meu corpo nado me obedecia, pensei entao: “E agora, meu Deus, estou afdsica, mas isso nao pode ser, nao comigo”). A mae da minha paciente havia saido e a secretéria ndo estava. Pensei comigo mesma, tenho que me acalmar, pois estou com uma crianga e se eu ficar nervosa meu estado vai piorar. Peguei um livro e comecei a folhear junto com a paciente, respirava bem fundo e rezava para que tudo fosse um sonho (ou melhor, pesadelo) e logo passaria. Quando a mde chegou, consegui abrir a porta e dizer que eu ndo estava bem, ela perguntou se eu precisava de alguma coisa, mas eu neguei com a cabega. Naquele momento sé queria negar para mim mesma que aquilo estava acontecendo. Fui para minha sala e deitei no chao, esperando que tudo voltasse ao normal, mas as coisas s6 pioraram, fui ficando tonta e com a vista turva, tentava emitir as palavras e nada acontecia. Fiquei entdo pensando a quem pedir ajuda, ninguém me entenderia; nesses momentos acho que buscamos contato com pessoas que “realmente nos conhegam além das palavras”, ou seja, que comunicagGo temos que resgatar além da verbal, para que o outro consiga captar esta nova situagado?! Lembrei-me entdo de minha analista e de uma grande amiga, a C. Fui ao telefone, e aquele niimero que eu estava cansada de discar hd varios anos ficou confuso, nao havia meio de eu acertar; ndo sei como consegui e a secretdria eletrénica atendeu. Algumas horas depois o marido da minha amiga disse ao escutar o recado: —C....tem uma crianga falando na secretéria. Ao escutar o recado, ela conseguiu me entender além das palavras e me ligou desesperada no consult6rio; neste momento, j4 conseguia articular as palavras, mas trocava as fungées. Fomos direto para o Hospital Beneficéncia Portuguesa, dei entrada com diagnéstico de AVC (acidente vascular cerebral), mas depois de uma série de exames e uma semana na Grea de choque fui diagnosticada como uma meningoencefalite necrosante. Gragas a Deus, sé me recordo de estar entrando no hospital e acordar uma semana depois. O que me marcou mais, creio que foi a recordagdo de estar afasica, é muito interessante e estranha esta sensagGo, pois hé uma mistura de incredulidade, de negagdo e a plena sensagdo de que hé uma outra pessoa além daquela que estd emitindo aquelas palavras desconexas, é como se nos perguntdssemos: “mas quem é que esté ai falando por mim estas coisas desconexas?”, ndo sei se é um mecanismo de defesa, mas nos sentimos olhando parandés mesmos e ndo podendo falar, sé pensar. Depois de passada a fase da nega¢ao, e 4 medida que nos damos conta de que aquela coisa toda desarticulada somos nds mesmos, vai dando um desespero, pois nos deparamos com uma sensagdo de impoténcia muito grande, parece que tudo o que conseguimos construir ao longo da vida vai escorrendo, desmoronando e a gente ndo consegue fazer nada. Hoje, acredito realmente que este é um dos momentos em que nos aproximamos da sensagdo de fragilidade mais verdadeira que o ser humano consegue agiientar e, se ndo agiienta, entra em depressdo e vem a morte. Todo este processo (e acredito cada vez mais nisso, pois vejo isto por meio dos meus pacientes afdsicos) é muito longo e dificil de digerir, tao dificil que somente hoje consigo escrever a respeito dessa minha experiéncia, esperando que ela possa ser util na compreensdo do individuo afdsico. CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Sade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 81 Interacionismo e Fonoaudiologia O interacionismo nasce da descoberta empirica de que a fala da crianga vem da fala do outro. 0 que a crianga diz é pedago, é incorporago da fala do outro. Dessa nogio de incorporagao nasce 0 processo de especularidade. Este importa na medida em que ele fala. O conceito de interagiio nao deve ser entendido como agao, mas como dialogia, isto é, linguagem sobre linguagem. Trata-se de Dentro do projeto sécio-interacionista na construgao de objetos lingiifsticos, a questo cultural na teoria da aquisigao da linguagem e na afasiologia estd nos processos envolvidos na construgao e reconstrugdo das miiltiplas faces do objeto lingiifstico. De outra forma, tanto os que lidam com a aquisi¢do da linguagem do ponto de vista s6cio-interacionista, quanto os que estudam a reconstrugao da linguagem do sujeito afasico, tem em comum situar-se em relagdo a linguagem do sujeito adulto que domina (interpreta) sua lingua. Nao se pode esquecer que 0 afasico é um sujeito adulto, que jé exerceu plenamente sua linguagem e sabe disso. Apesar das dificuldades de linguagem que o afésico apresenta, ele mostra o dom{nio de relagdes extremamente complexas, tfpicas de um individuo adulto que tem estruturadas suas experiéncias. Sendo assim, a base de uma teoria sécio-interacionista da construgao de objetos lin; areconstituigdo do sujeito affsico e de sua linguagem, envolvendo os seguintes fatores: 0 jogo dialégico; aconstruc&o conjunta da significago; o recurso do ponto de vista do interlocutor; a utilizagao dos interlocutores como base para os parametros da interlocugao e da aceitabilidade social de suas expressGes; e a partilha e negociacdo das pressuposigdes que lhe permitam assumir, na interlocugao, seus papéis reversiveis. Segundo Camaioni, De Castro e De Lemos (1985), “a aquisi¢ao da linguagem é um processo constitutivo, em vez de depender de regras que operem sobre categorias e relagdes previamente dadas. Os recursos expressivos e os esquemas semAnticos so constitufdos no discurso e no discurso sdo constitufdas a referéncia e as relages fatuais”. Para De Lemos (1981), “a interagdo dialdgica é constitutiva da prépria linguagem no infante, pois os dados empiricos da aquisi¢ao da linguagem se constituem em evidéncia de que a incorporago pelo falante do turno do interlocutor atua como um ponto de vista estruturante do préprio enunciado e da situagdo”. Aconstrugio e a reconstrugo dos objetos lingiifsticos também devem inserir-se na perspectiva do discurso, sendo, mais especificamente, na perspectiva das situagdes dialégicas em que adulto e crianga ou afasico e ndo-afésico entretém conversagoes. De Lemos (1982) distingue alguns processos dialégicos peculiares que governam essa atividade de construgdo conjunta. Um dos processos seria “especuliaridade imediata”, ou seja, a contribuigao lingiifstica da crianga, consistindo em respostas que resultam da incorporago de segmentos diversos da fala materna, da nogdo de limitago. Um outro processo seria o da especulariedade diferida que “é oso que a crianga faz da parte do enunciado da mae, no mesmo contexto de esquema interacional, € instanciado em um turno anterior nao imediato”. Ea partir desses processos iniciais, e mais especificamente da especulariedade diferida, que se cria uma estrutura dialégica. O processo que vem apés isso € a “reciprocidade”, que seria uma reversibilidade de papéis no didlogo entre crianga e adulto, desde o momento que se refere a um gradual assumir-se por parte da crianga em papéis precedentemente recobertos pelo adulto, isto é, 0 inicio da interagao, constituigo do outro como interlocutor ou como aquele que deve assumir o tumno seguinte, atribuicdo de intengdes, conhecimento e crengas, imposigao através do enunciado de uma experiéncia que deve ser entendida como princfpio organizador e/ou estruturador do enunciado do outro. Odiscurso caracteriza-se, inicialmente, por uma maior ou menor participagAo das relagdes entre um eu e um fu, por uma maior ou menor presenga de indicadores de situag4o, e também pode se 82 CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 caracterizar como sendo significativo, na medida em que sé pode se conceber sua existéncia quando ligada a um processo pelo qual ew e tu se aproximam pelo significado. O discurso tem a sua semanticidade garantida situacionalmente, ou seja, no processo de relag&o que se estabelece entre suas pessoas (eu/ tu) e as pessoas da situagdo, entre seus indicadores de tempo, lugar etc. Nas relagGes entre os participantes de um dado discurso é preciso ressaltar que, embora cada um. incorpore nelas uma parte da hist6ria de sua convivéncia, elas nao sao dadas previamente. Sendo assim, nos casos extremos (como se dé no inicio de uma relagiio investigador-sujeito afasico), pode nao haver qualquer trago comum nessa histéria. A negociagao é um processo pelo qual os interlocutores procuram: fazer coincidir as imagens que cada um faz do outro, comparam entre si os compromissos com a verdade e crengas que possuem sobre os eventos envolvidos na conversagio, testam a eficdcia dos recursos expressivos de que servem eescolhem o estilo de sua fala. O Que é Afasia? Segundo Jakubovicz (1996), € um disturbio de linguagem adquirida em conseqiiéncia de uma lesfio nas 4reas cerebrais respons4veis pelo comando motor da fala ou pela compreensio das palavras faladas. Na pessoa normal, pensa-se que o hemisfério esquerdo é dominante e responsdvel por atos que requerem absoluta ordenacao e seqiienciamento, como os da linguagem. Na linguagem, h4 um cédigo exato (simbolos verbais) a ser seguido tanto pelo emissor como pelo receptor. Quanto mais preciso 0 cédigo (sentido das palavras) e quanto mais exata a ordenagao das palavras (sintaxe), mais provavel que a fungio seja dirigida pelo hemisfério direito, empregando fungdes comunicativas, mas nao-codificadas, como énfase e inflexao de voz. Holland, Swindell e Reinmuth (1990), dividem o desempenho dos pacientes af4sicos em dois tipos: o fluente e o nao-fluente. Os pacientes afasicos fluentes retém fluéncia verbal, o que significa que 08 padrdes pros6dicos de vocalizagao normal so mantidos, mesmo que o paciente possa ter dificuldade de entender o que os outros dizem e de expressar-se verbalmente. Os pacientes afésicos nao fluentes esforgam-se para falar, carecendo de padrées prosddicos normais. Eles demonstram sérios problemas de fonologiae, as vezes, so incapazes de dizer a mais simples das palavras. Muitos deles demonstram apraxia verbal oral, uma incapacidade de pronunciar uma palavra ou até mesmo um som da fala, mas nenhuma dificuldade em dizer o mesmo som ou palavra de forma involuntéria. Em Boone & Plante (1993), encontramos que “Colocada de forma simplificada, a afasia é uma perda da linguagem (entender o que é dito, lido, falado ou escrito) apés dano cerebral, em geral ocorrido no hemisfério cerebral esquerdo”. Para Coudry (1988), a afasia se caracteriza por alteragées de processos lingiiisticos de significacdo de origem articulat6riae discursiva (nesta, incluidos aspectos gramaticais), produzidas por lesao focal adquirida no sistema nervoso central, em zonas responsdveis pela linguagem, podendo ou no se associar a alteragdes de outros processos cognitivos. O Que Compromete na Afasia? Nas afasias hd um distirbio em uma ou mais modalidades da produgao e/ou compreensao da linguagem em grau maior do que outros distirbios de cogni¢&o. O hemisfério direito (H.D.) € 0 responsdvel por processos que, direta ou indiretamente, afetam a comunicagdo; diretamente — reconhecimento da fala com intengdo emocional, produciio de fala com intengdo emocional, cadéncia, gestos afetivos, processamento automéatico de palavras substantivas concretas, imagin4veis e freqiientes; e indiretamente —reconhecimento de mimica facial, processamento musical geral, cépia de figuras e meméria nao-verbal. CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient,, Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 83 Nestas condigGes, o H.D. é responsAvel pelo processamento paralelo de informagées, pelas fungdes espaciais, pela compreensao e expresso facial de emogGes prosédia. Como comprometimentos, temos déficits no raciocinio verbal; dificuldades em lidar com ambigitidade lingiifstica; dificuldades em descrigdes verbais; dificuldades na reprodugio de estéria, de fatos; dificuldade na nomeagao com significado; contetido da linguagem afetado antes de sua forma; conhecimento semfntico e pragmatico afetado antes do fonoldgico e sintdtico; definicdo afetada antes da nomeagiio; e repeti¢fio de frases de baixa probabilidade afetada antes das de alta probabilidade. Plasticidade do Sistema Nervoso ‘Segundo Annunciato (1996), os profissionais da classe fonoaudiolégica e também de outras classes deparam-se, nas suas diversas especialidades, com varios graus de recuperago clinica de seus pacientes. Essas recuperagdes nem sempre significam a cura total do paciente, mas sim, em uma parte dos casos, uma importante e inegdvel melhora de suas fungGes sensitivo-motoras e/ou cognitivas, onde essas podem, muitas vezes, contrariar fortemente alguns prognésticos terapéuticos, ou mesmo expectativas de familiares e/ou do proprio paciente. Dessa maneira, fica explicita a necessidade de se abordar 0 interessante vinculo existente entre essas melhoras € os processos plasticos do sistema nervoso (SN). Como € de se esperar, essas melhoras devem estar também vinculadas as “‘melhoras de comunicagdes” entre os elementos responsdveis (células nervosas) pelos comportamentos sensitivo- motores, cognitivos e afetivos elaborados. Todos os seres humanos possuem um programa genético e apresentam também fatores epigenéticos, que esto acima do programa genético. Esses fatores epigenéticos podem modificar, nao o programa genético, mas sim a expresso deles. Vale salientar que a palavra “regenerar” € utilizada por neuro-cientistas, no sentido de descrever a neoformagio de dendritos, ax6nios e circuitos neuronais; nao devendo, porém, ser interpretada como uma neoformacao completa de células nervosas, mais especificamente, com a multiplicagdo de corpos celulares e seus nticleos. Annunciato (1996) define que a plasticidade é a tendéncia intrinseca do sistema nervoso em formar conexdes novas; ou tentar recuperar conexGes perdidas; ou lutar contra alteragdes quimicas e/ou estruturais; ou células nervosas mudam a sua atividade em um micro ambiente que tenha se modificado ouno caso de armazenamento de informagées (memoria cognitivae meméria neuromuscular). Para Jakubovicz (1996), a plasticidade cerebral é a possibilidade de compensagao de um lobo num hemisfério para o mesmo lobo no outro hemisfério, ou de 4reas sadias proximas ao mesmo hemisfério. Océrebro representa, aproximadamente, 2% do peso do corpo, sendo 1 400 a 1 600 go cérebro masculino e de 1 200 a 1 400 g o feminino. Apesar da diferenga, ambos tém aproximadamente 0 mesmo ntimero de neur6nios. No lado da fala, 0 lado esquerdo do cérebro, as mulheres tém maior ntimero de neur6nios, apresentando também os neur6nios da fala do lado direito, diferente dos homens que s6 apresentam neurénios da fala do lado esquerdo. Assim, se ocorrer um acidente, o homem pode ficar sem falar (afasia) se for afetado o lado neurolégico da fala, j4 a mulher pode desenvolver ainda a fala, pois apresenta neur6nios dos dois lados cerebrais. As conexées feitas pelos neur6nios dependem da quantidade de ligagdes e da qualidade destas. Os fatores epigenéticos alteram tanto o tamanho do neur6nio (fenda sinéptica espidulae corpo do neurénio), quanto o seu comprimento (dendritos ¢ ax6nios). 84 CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 Mecanismos Basicos da Plasticidade Para Annunciato (1996), a plasticidade era considerada em fungao da idade, estando extremamente diminufda no SN do adulto. Felizmente, torna-se cada vez mais compreensfvel e claro que o SN adulto também é capaz de modificagées e adaptagdes. Essas modificagdes desempenham um importante papel na aprendizagem (incorporagio de um novo conhecimento), mem6ria (estocagem desse novo conhecimento), adaptagdes as mudangas das condigdes ambientais, melhora de disfungGes e na recuperagao de fungGes apés lesGes. Segundo Kupfermann (apud Annunciato, 1996), os quadros neurolégicos que se instalam apés uma lesdo neurolégica sao, em realidade, a expresso do resto do SN em tentar reverter e/ou compensar os danos causados por aquela it ia. Em outras palavras, o SN se vale de determinados mecanismos para poder continuar interpretando as muiltiplas e facetadas conexées entre as células nervosas, permitindo, ao sistema sensitivo, a continuidade de detectar, analisar e avaliar o grau de importancia dos estimulos sensoriais, bem como ao sistema motor o planejamento, ordenagdo e execucao de movimentos. Algumas dessas possibilidades morfo-funcionais de rearranjo neuronal sao: recuperago da eficiéncia sinaptica; potencializacao sin4ptica; aumento da sensibilidade sindptica; brotamento regenerativo; recrutamento das sinapses silentes; e brotamento colateral. Recuperacio da Eficiéncia Sinéptica Apés um acidente vascular, traumatismo cranio-encefélico ou cirurgia do SN, muitas sinapses se tornam inativas, simplesmente por estarem muito préximas as areas de lesio sendo, dessa maneira, comprimidas pelo edema. Dentro de uma ou duas semanas, quando 0 edema diminui sensivelmente, h4 uma considerdvel recuperagdo das fungdes sensitivo-motoras e/ou cognitivas. Potencializaco Sindptica Quando um ramo de um ax6nio é seccionado, as substancias neuroativas (neuromoduladores neurotransmissores), produzidas no corpo celular desse neur6nio, so transportadas para o terminal intacto, aumentando, com isso, 0 estoque delas; ou seja, ao lesar um terminal, os vizinhos que ainda recebem a inervag4o aumentam a quantidade de substancias quimicas. + Aumento da sensibilidade sindptica: na leséo em que desaparecem alguns receptores, outros se formarao onde ainda hé ligacdo, aumentando assim a quantidade de receptores e a * Brotamento regenerativo: caso a lesAo atinja um ax6nio, o ax6nio de origem pode formar brotose regenerar 0 axdnio lesado, Sabe-se que lesdes de dendritos e axnios podem regenerar, mas se a les&o for no nticleo (corpo) celular nao haver4 regenerag4o dentro do hipocampo (4rea da meméria). + Recrutamento das sinapses silentes: células inatrias podem funcionar (estoque), podendo ter plasticidade funcional e morfol6gica. + Brotamento colateral: caso as células de origem sejam lesadas, as células vizinhas irdo se ligar. O prognéstico da plasticidade deve conter informages referentes aos seguintes itens abaixo relacionados: * Dimensio da lesao; * Idade (aos 40 anos, aproximadamente, hd morte de neur6nios e o sistema nervoso reage diferentemente a lesdo em diferentes estagios de desenvolvimento); CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient,, Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 85 * Diagnéstico correto; * Terapia (medicamentos; tratamentos psicoldgico, odontoldégico e fonoaudioldégico; terapia ocupacional; fisioterapia); * Inicio da terapia; * Freqiiéncia da terapia; * Duragio da terapia (infcio-fim); * Motivago (paciente, terapeuta e familia); + Dieta (estado nutricional geral); + Biografia (tudo que aconteceu desde a fecundago); * Local da lesao; * Sexo (horménios); Ambiente (hospital/casa); * Tempo da lesio (lesdo que se instala instantaneamente lesa e rompe as ligagdes dos neurdnios; j&as de desenvolvimento lento nao rompem, pois os neur6nios abrem espaco para ela). Rita Levi Montalcini descobriu o N.G.F. (Nerve Growth Factor), protefna que é transportada da periferia para dentro da célula, sendo incorporada pelo terminal até o corpo celular. Este ajuda o ntcleo a aumentar a produgao das organelas citoplasmaticas. As células que produzem 0 N.G.F. sao varias; entre elas, as dos musculos, pele e retina. Gragas a essa descoberta descobriu-se que, caso um paciente apresente lesdo na cervical, pode- se aplicar, no mesmo instante da lesdo, oFG.N. (alimento) e 0 fator inibidor do crescimento, conseguindo assim, conexées entre os neur6nios, ou seja, a plasticidade neurolégica, desta vez, induzida. Reabilitacgio em Fonoaudiologia Eo fonoaudiélogo quem tem grande participago na recuperagao da comunicagio de um afésico (embora a familia € quem mais esté com o paciente). O fonoaudidlogo € quem esté mais ligado a sua maior necessidade e, por isso, a terapia fonoaudiolégica das afasias deve ser cientifica, humana, sistematica e plastica, para que possa verdadeiramente servir ao homem, e nao somente ao afésico. Qualquer um de nés, por mais cultura e ilustragao que tenha, pode se transformar num afésico em apenas alguns segundos, pois toda a cultura e a especializag4o, cuidadosamente armazenadas até ent&o, podem estar irrecuperavelmente perdidas pela impossibilidade de sua codificago lingiiistica. Neste proceso, a conscientizacao dos familiares do paciente afésico seré feita pelos diversos Profissionais que estio envolvidos no seu tratamento. O infcio pode ser no hospital, quando o paciente € atendido pela equipe médica, em virtude do dano cerebral sofrido. Em relagdo a conscientizag4o dos problemas lingiiisticos, cabe ao fonoaudidlogo, por sua vivéncia, desenvolver seu trabalho junto a familia. Geralmente a primeira entrevista deve ser feita com o c6njuge ou pessoas que esto mais ligadas ao paciente. Essas pessoas possuem dtividas de como serd 0 tratamento, e de quanto tempo este ird durar. Nesse momento, a familia pode ajudar, estimular e incentivar 0 affsico, nao isold-lo do seu convivio, pois nao deve colocé-lo em situagdes estressantes, como uma grande reunido com muitas pessoas falando. Inicialmente é vdlido explicar que o trabalho com o nivel discursivo, ou seja, narrativo, tem importancia muito grande na compreensio do dia-a-dia, por oferecer uma seqiiéncia de acontecimentos ao ouvinte e apresentar uma super-estrutura convencional (aco, resolugdo, entre outros). 86 CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient,, Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, p. 77-91, out. 2000 Reabilitagao em Equipe Multidisciplinar Terapia ocupacional A terapia ocupacional é indicada a individuos cujas habilidades para lidar com as atividades da vida estejam ameagadas ou impedidas por disturbios de ordem fisica, psiquica e/ou social. O terapeuta ocupacional estard trabalhando no ato da troca de domin4ncia quando for necessdrio, estar4 aprimorando habitos de adequagiio pessoal nas AVS(s) e AVP(s), ou seja, promoveré o treino da independéncia funcional como capacidade para alimentar-se, vestir-se, e também proporcionaré a indicagaio e confecgao de érteses estaticas e/ou dinamicas para um melhor posicionamento do membro lesado deste individuo. Fisioterapia A fisioterapia é de cardter fundamental em individuos acometidos por acidente vascular cerebral (AVC), atuando de maneira a reabilitar a parte motora destes pacientes, promovendo, desta maneira, maior qualidade de vida. ‘Apis avaliagdio direcionada a constatar as debilidades motoras pés-AVC, 0 fisioterapeuta iré agir de forma que englobe o paciente como um todo, assim buscando minimizar as seqiielas que ele vem apresentando, Para tanto, estes profissionais apresentam, em sua formacao académica, qualificagao especifica para desenvolverem exercfcios fisioterdpicos. O fisioterapeuta tentaré facilitar os padrées normais de movimento. Segundo Downie (1988) a reeducagiio do equilfbrio pode ser ensinada em seqiiéncia, iniciando- se com o controle da cabega e progredindo aos poucos. O fisioterapeuta atuard na reeduca¢ao das reagGes de endireitamento, que permitem a posig&o normal da cabega no espago e em relagaio ao corpo, € o alinhamento dentro do eixo do corpo, na reeducacio das reages de equilfbrio que mantém e recuperam 0 balango, podendo ser movimentos visfveis ou mudangas invisfveis do tono contraa gravidade; ele atuard no treino de marcha, na postura, no ténus corporal e na respiracdo. O fisioterapeuta tem o papel de trabalhar as habilidades motoras e musculares, com 0 objetivo de proporcionar uma melhor reabilitago ao individuo. Psicologia No trabalho com pessoas afsicas, existe uma tendéncia a enfatizar a recuperagao das fungées fisicas e areeducacao da linguagem. Os terapeutas experientes afirmam que o sucesso da reeducagiio de um afisico depende muito de seu estado ps{quico, daf surgindo a importancia de compreender bem a vivéncia emotiva e as reacGes psicoldégicas das pessoas afasicas sob os cuidados de um psicélogo. As reagdes psicol6gicas do affisico sdo determinadas, basicamente, pela gravidade e duragdo dos problemas ligados A.afasiae As outras limitagées fisicas que freqiientemente a acompanham. A personalidade anterior também tem um papel determinante, pois a pessoa afsica tem tendéncia a lidar com sua nova realidade ou adaptar-se a ela utilizando as mesmas modalidades de comportamento anteriores (Amorim, 1995). As reagGes psicolégicas mais freqiientes que o psicdlogo deverd intervir so: ansiedade, negaco, regressdo, egocentrismo e infantilismo, danos a auto-estima, solidao e isolamento, agressividade, vergonhae culpa, dependéncia, depressio ¢ labilidade das emogées. Consideragoes sobre a Terapia de Grupo em Clinica Fonoaudiolégica Os primeiros atendimentos de grupos de pacientes em fonoterapia, em Sao Paulo, ocorreram no inicio da década de 80, em instituigdes como a Prefeitura de Sao Paulo, ambulatérios de satide mental do Estado de So Paulo, Prefeitura Municipal de Osasco, entre outros. CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Sade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 87 Aescolha dessa pratica clinica, em contraposi¢ao ao atendimento individual, era justificada pela grande quantidade de pessoas que necessitavam de terapia fonoaudiolégica. Portanto, o que determinou esse tipo de atendimento foi a demanda dos fonoaudidlogos, que tentaram, com isso, diminuir as filas de espera dessas instituigdes. Dos relatos orais, colhidos em entrevistas com profissionais que participaram dessas experiéncias, pode ser depreendido que atendimento de grupo é aquele em que se incluem duas ou mais pessoas, no mesmo horério ¢ local, assistidas pelo mesmo fonoaudidlogo. O Que é Grupo? Em “El grupo y el inconsciente”, Didien Anzieu trata da origem da palavra grupo. Segundoele, grupo é um termo recente das linguas civilizadas (sic), que apareceu no final do século XVI na Franca ena Itdlia, Foi usado nas artes para designar um conjunto de sujeitos pintados ou esculpidos. Somente no século XVII a palavra grupo passou a significar toda e qualquer reuniao de pessoas vivas. A partir do século XIX, 0 vocdbulo aparece adjetivado como em grupo escolar, grupo familiar, grupo de trabalho, ou expresso por sindnimos, como sindicato e equipe. A primeira experiéncia com grupo terapéutico parece ter sido ade W. R. Bion, psiquiatra militar inglés encarregado, durante a Segunda Guerra Mundial, de cuidar de um hospital com quatrocentos homens. Passou, entdo, a considerar a viabilidade de uma situagAo psicanalitica em que o paciente fosse visto como uma comunidade. Desse trabalho, nota-se que, assim como na Fonoaudiologia, o infcio das atividades com grupos foi determinado pela quantidade de sujeitos que necessitavam de atendimento e nao havia possibilidade de fazé-lo individualmente; porém, grupo passa a diferenciar-se de agrupamento, Apés a Segunda Guerra Mundial, Bion ocupou-se da psicoterapia de grupo e elaborou dois enunciados fundamentais, quais sejam: O primeiro enunciado considera que o comportamento de um grupo se efetua nos niveis do da tarefa comum eo da emogo comum. O primeiro nivel é racional e consciente. Todo grupo tem uma tarefa. Esta é uma condigdo necesséria, porém nao suficiente, diz ele. O segundo nivel € caracterizado pela predominancia dos processos especificos primérios, ou seja, a cooperagaio consciente dos membros do grupo requer uma circulacdo emocional inconsciente entre os membros do grupo. O segundo enunciado assevera que os individuos reunidos em um grupo se confinam de forma instantanea e involuntéria (inconsciente) para atuar segundo estados afetivos que Bion denomina “pressupostos basicos” ou “hipdteses de base”. Ele descreve trés pressupostos bdsicos aos quais o grupo se submete alternadamente, porque eles nao ocorrem simultaneamente (um predomina ou oculta os demais). Sado eles: + Dependéncia em relagdo ao lider: dependéncia, segundo ele, é regressao a uma situagao da infancia; o bebé estd a cargo de seus pais e a aco sobre a realidade é assunto dos pais e no do sujeito. A dependéncia responde por um sujeito sempre presente nos grupos. « Ataque e fuga: corresponde, por parte do lider, a uma suposta dependéncia. Estes movimentos constituem um perigo para o grupo, perigo da nao-sobrevivéncia. Diante dele, os participantes se retinem, seja para disputar, seja para compactuar. Nesse sentido é que ataque e fuga garantem asolidariedade do grupo, porque o perigo comum de dissolugao aproxima seus integrantes. * Pareamento: a atitude de ataque e fuga pode, contudo, levar 4 formagao de subgrupos ou pares. Esses pares representam um perigo para o grupo. Eles tendem a formar subgrupos independentes. Alias, observa Bion, um conjunto de pessoas nao chega a comportar-se como grupo se os pressupostos de base no se manifestarem. O interesse por trabalhos com grupos aumentou e propagou- se em varios pafses a partir da proposta de Bion. Suas definigGes foram sustentadas e/ou combatidas mas as divergéncias nao eliminaram a terapia grupal. 88 CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 Para Pichon-Riviére, quando se trata de um grupo terapéutico, a tarefa é resolver o denominador comum da ansiedade do grupo, que adquire caracteristicas particulares em cada participante. Cura é, para ele, cura da enfermidade do grupo. A finalidade da intervengao € desarticular a estrutura estereotipada em que os papéis sao fixos. Os participantes do grupo sao levados a “transitar” pelos diferentes papéis. Pichon-Riviére cita quatro figuras, quais sejam: Iider, bode expiatério, sabotador € porta-voz. Lider é o depositdrio de aspectos positivos do grupo e o bode expiatério de aspectos negativos, ambos interligados num acordo tacito para preservar a lideranga. O sabotador representa resisténcia 4 mudanga e o porta-voz denuncia a totalidade do grupo, nao falando somente de si, mas de todo o grupo. Os participantes do grupo estariam sempre “representando” um desses papéis. ‘Vé-se que o grande interesse por esse assunto nfio conduziu A problematizagiio da definigfio de grupo.Dentro de uma mesma drea de conhecimento, diferentes concepg6es de grupo convivem e cada uma delas promover4 um olhar (e uma pratica) diferente para os fendmenos observados. Essas discussdes podem trazer enorme contribuigdo para a Fonoaudiologia, nao no sentido da adogao cega de concepgées propostas por estes ou outros autores, mas no sentido de instigar uma reflexdo mais aprofundada. Terapia em grupo As sessGes de terapia em grupo oferecem aos pacientes oportunidades de aplicagao de novas habilidades de comunicag&o a contextos de conversagdo. A terapeuta mede estas interagGes e auxilia cada paciente na procura de metas individualizadas para a participagdo na conversa¢ao. Terapia individual As sessOes de terapia individual focalizam a reabilitagAo do falar, do ouvir, da leitura e da escrita, bem como em associagdo com problemas de outras dreas como o dos déficits de meméria. As metas nestas 4reas so individualizadas e podem ser alcangadas com a recuperaco de fungdes especfficas ou o desenvolvimento de estratégias alternativas compensatérias. Grupo de pacientes affsicos da clinica dos distirbios da comunicaco humana da UNOPAR, Otrabalho fonoaudiolégico em grupo de pacientes afasicos foi desenvolvido em meados de 1997, contendo apenas 2 pacientes, comegando com E.A.Z. e L.A.F, Posteriormente, adicionaram-se ao grupo mais 2 pacientes, sendo O.B. eo G.F. Formou-se um grupo constitufdo por 6 pacientes, porém oE.A.Z. desistiu. Assim, atualmente, o grupo € composto por 5 pacientes, sendo eles: O.B., G.F., MS.,A., PR. Paraa insergdo do paciente no grupo de terapia com pacientes afdsicos é pré-requisito que eles apresentem nivel de linguagem compatfvel aos demais integrantes do grupo, além da afasia. Programa de terapia nas afasias desenvolvidas na clinica dos distirbios da comunicagéo humana da UNOPAR Os servicos em afasia oferecem diferentes opgdes ao redor de tipos selecionados de terapiae de acordo coma extensio ou alcance da inscrig&o ou comego da intervengao. Todos sao intensivos por natureza, refletindo o compromisso da clfnica para os beneficios de um tratamento. Os programas podem ser individualizados e/ou em grupo, com base na selegio de algumas das seguintes opgGes: + Avaliagao ao estimar as habilidades comuns e recomendagGes de um programa de terapia. + Extensao ou alcance na terapia individual planejada para melhorar o discurso, linguagem, leitura eescrita e habilidades de memorizacio. CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 89 Extensfo ou alcance na terapia em grupo planejada para desenvolver habilidades de conversagao. * Selecdo de dias/horas semanais no cronograma ou horério do tratamento. Reflexdes Sociabilizagdo e interagao: trabalhando aplicagao de oportunidades para novas habilidades. Assim, a reabilitagdo em grupo é recomendada por Schuell, j4 que possibilita a interagdo do afésico com outros pacientes. Obriga-o a adaptar-se valorizando seus problemas e animando-se como avango dos outros e com o seu proprio. O trabalho deverd ser realizado em plano geral. Devem ser evitados 0s sentimentos de fracasso comparando a execugao de um paciente com a dos outros. Discussdo sobre o impacto da afasia na sua vida: perspectiva positiva por parte do paciente em relagdo a melhora do quadro geral pela observacao da melhora de seu companheiro. Participagdo efetiva: uma procura em se destacar oralmente perante seus companheiros. Tomada de consciéncia: impress&o do paciente em relagdo ao seu quadro geral favorecendo tomada de consciéncia da sua problematica, trazendo nova perspectiva para beneficio e evolugaio do quadro geral. Estreitamento de relacionamento interpessoal: 0 convivio permite progressos individuais facilitando assim a interagao. Naturalidade na comunicagdo expressiva pela afasia ser, de certa forma, uma doenga social: pois 0 trabalho se d4 de maneira contextualizada o que melhora a compreensio e facilita a expressao. Papel do terapeuta: na organizagAo da sessao, pois, do contrério, implicaré em confusao na forma de comunicagdo por parte dos pacientes, podendo causar inibigao. Organizagao terapéutica nas trocas de turno: interrup¢’o constante da conversa e apés retomada. Auto-exigéncia: por parte do paciente podendo levar a distancia. Conclusées Baseado na andlise feita dos dados teéricos e prdticos obtidos durante o desenvolvimento deste trabalho, comprova-se a eficiéncia da intervengaio terapéutica fonoaudiolégica em grupo, a qual nado deve substituir e, sim, complementar a terapia individual, mostrando-se imprescindfvel para a recuperagao rpida e positiva das faculdades verbais. Dessa maneira, fica explfcita a importancia do exame nas mudangas provocadas na vida de uma pessoa quando ocorre a afasiae, eventualmente, alguns problemas a ela associados, além da linguagem, reabilitando todo 0 conjunto, pensando nfo sé na afasia, mas no indivfduo afasico como um todo, buscando sempre a melhoria da qualidade de vida. Tomando como princfpio que a linguagem do sujeito é constitufda na interagdo (entendida como interpretagdo) com outro (entendido como linguagem), para observar o fenémeno da linguagem, é preciso situar ambos os sujeitos (fonoaudiologia e paciente) como co-autores de um tinico discurso (Passos, 1996). Referéncias Bibliograficas AMORIM, A. Fonoaudiologia geral. 3. ed. Rio de Janeiro : Enelivros, 1982. BOONE, D. R.; PLANTE, E. Comunicagdo humana e seus distirbios. 2. ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1994. CASANOVA, J. P. et al. Manual de Fonoaudiologia. Porto Alegre : Artes Médicas, 1992. 90 CERNESCU, R. P. ef al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, y, 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 COUDRY, M. I. H. Didrio de Narciso — discurso e afasia. Sao Paulo : M. Fontes, 1998. DOWNIE, P. A. Neurologia para fisioterapeutas. 4. ed. Sio Paulo : Medicina Panamericana Ed., 1981. FINGER, J. A. O. Terapia ocupacional. Sao Paulo : Sarvier, 1986. GOLDFELD, M. Fundamentos em Fonoaudiologia - Linguagem. Rio de Janeiro : Guanabara Koogan, 1998, JAKUBOVICZ, R.; CUPELLO, R. Introdugdo a afasia — elementos para o diagnéstico e terapia. 6. ed. ampl. ¢ rev, Rio de Janeiro : Revinter, 1996. JAKUBOVICZ, R. Teste de reabilitagdo das afasias. Rio de Janeiro : Revinter, 1996. http: /Awww.geocities.com/HotSpring/Villa/4842/Fono/TPFL 123.html PASSOS, M. C. (Org.). Fonoaudiologia: recriando seus sentidos — série interfaces. Sdo Paulo : Plexus Ed., 1996. PONZIO, J.; LAFOND, D.; DEGIOVANI, R.; JOANETTE, Y.; TUBERO, A. L.; HORI, C.N.O afdsico convivendo com a lesdo cerebral. Sao Paulo : Santos : Maltese, 1995. LIER DE VITTO, M. F. Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. Sao Paulo : Cortez, 1994. Phonoaudiological rehabilitation of aphasic patients in groups Abstract ‘The present work aims to demonstrate the importance of the mediator in aphasic patient, providing reflections on the group work, verifying the viability of the prognostic to be favorable or not concerning language rehabilitation in aphasic patients insered in group therapies. The contextualized vision of the aphasics in this work, is not limited to language, but to the own dimensions that the social group confer to its loss and to the consequent possibility of the individual’s rehabilitation. On this way, we have to think in a model of rehabilitation beyond the recovery of the language. In other words, in the search of the improvement of life quality of these individuals. In the results, it was proved the efficiency of intervention of the phonoaudiological therapy in groups; which should not substitute but complement the individual therapy, because in group therapy, the patients have opportunities to use new communication abilities in speaking contexts, being this mediated by the therapist that aids the participation of the individuals in the conversation. Key words: mediator; rehabilitation; reflections; group; phonoaudiology. CERNESCU, R. P.; LEITE, C. A. G; LESSA, W. M. Phonoaudiological rehabilitation of aphasic patients in groups. UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Satide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000. CERNESCU, R. P. et al. / UNOPAR Cient., Ciénc. Biol. Saiide, Londrina, v. 2, n. 1, p. 77-91, out. 2000 o1

You might also like