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O surgimento da imprensa no Brasil: questoes atuais Marco Morel Universidade do Estado do Rio de Janeiro A imprensa periddica produzida no tertitétio brasileiro faré dois séculos em 2008, 0 que pode ser momento oportuno pata estimular teflexdes © pesquisas. Afinal, a escrita da hist6ria em cada época afitma, desconstrdi e reconstrdi suas verdades. Ainda mais no tocante a historia da imprensa, um campo nao plenamente constituido no Brasil, apesar de obras importantes. © objetivo deste artigo, pois, é tecer algumas reflexdes sobre o surgimento da primeira geracio da imprensa (situada aqui entre 1808 ¢ os anos 1830), momento ja visitado pela historiografia, mas que justamente por isso ficou marcado por algumas interpretagées cristalizadas, que podem impedir outras petcep¢des e enfoques diversos no raiar do Século XXI. O préprio termo “imprensa” é polissémico ¢, a rigor, serve para denominar de forma abrangente qualquer material impresso. Entretanto, o recorte aqui escolhido refere-se somente a imprtensa periddica. Tendéncias historiograficas Uma répida resenha historiogrifica sobte a relacio dos historiadores com a imprensa no Brasil aponta algumas destas questdes. Desde 0 Século XIX até inicio do XX, utilizava-se a imprensa como fonte documental fidedigna que petmitiria restabelecer empiricamente a verdade dos fatos ¢ dos enunciados. Os periddicos nao eram, em geral, tomados como objetos de estudo, nem como agentes histéricos, mas como registro que permitiria comprovar aquilo que realmente se disse ou se passou, dentro, portanto, da 6tica historicista. Resulta dai uma sindrome de inventatio, de fazer listas de jornais, procurando abarcar 0 levantamento de todas Maracanan - Ria de Janeiro, # 3, pp. 17-30, 2005/2007 18 — Dossié: Histéria e Imprensa estas fontes: cOnego Pinheiro, Mello Moraes, Moreira de Azevedo. Estes trés autores realizaram, na verdade, inventarios: mais rudimentar © primeiro, mais recheado de dados os demais, mas incompletos € com informagées imprecisas.’ E, além de esbocat listas, delinearam tracos interpretativos, buscando apontar algumas caracteristicas ¢ posicdes daqueles vefculos impressos. Cabe ainda destacar nesta época ¢ tendéncia o manuscrito “Relaco dos Jornais Brasileiros publicados de 1808 até 1889”, de Rafael Arcano Galvao, considerado “utilissimo” por Helio Vianna.? Sem esquecet 0 levantamento dos titulos da Impressa Régia até 1822, realizado por Vale Cabral.? Como cotolério desta sindrome de inventariar do Século XIX tivemos uma sétie de pesquisas, a maioria coordenada pot Alfredo de Carvalho que, em torno das comemoracdes do ptimeito centendrio da imprensa no Brasil, em 1908, tealizou exaustivos (mas ainda incompletos!) trabalhos enfocando alguns estados brasileiros.* Ainda hoje ha quem confunda “histétia da imprensa” com um inventitio de fontes. Nao deve passat despercebido, no taiar do Século XX, 0 livro de Barbosa Lima Sobrinho, de carater ensaistico, pioneiro pelo tom analitico e interpretativo e se demarcando do conservadorismo predominante neste campo: trata da independéncia e aborda questoes como a modetnizaciio dos meios de comunicacio impressos ao longo do Século XIX, suas linguagens, estilos e mudangas no perfil de redatores ¢ intelectuais, com énfase para a histéria da liberdade de imprensa ¢ suas restrig6es.° Tal perspectiva do uso da imprensa como detentora das “yerdadcitas informagées” tornou-se o principal argumento pata 0 relativo abandono que sucederia, no bojo de transformagées histotiograficas. Seria exaustivo citar as auséncias da imprensa nos estudos histéricos de tipo sécio-estrutural. Em outras palavras: com a renovacao dos estudos histéricos e a énfase numa abordagem que privilegiava 0 sécio-econémico, a imprensa entrelagou-se As discussdes sobre ideologia e “superestrutura”. Ou seja, a imprensa enfocada através da andlise de discurso. E ao mesmo tempo a imprensa, de certo modo, passou a ser relegada a uma condicao subaltetna em Maracanan sf 3 O surgimento da imprensa no Brasil: questdes atuais 19 determinadas dreas da historiografia, pois serviria para escamotear a verdade ou se constituiria, apenas, num “reflexo” superficial de idéias que, pot sua vez, eram subordinadas estritamente por uma infra- estrutura sécio-econdmica. Tal postura, que podia chegar a entender a imprensa (com certo desdém) como meto “veiculo” de idéias ja elaboradas em outtas instancias e de for¢as sociais, ou seja, como “falsificadota do real”, acabou, por sua vez, cedendo a subseqitente transformagao historiografica. A perspectiva do uso da imprensa como detentora das “verdadeiras informag6es” tornou-se o principal argumento pata o relativo abandono que sucederia, no bojo de transformacées historiograficas, Seria exaustivo citar as auséncias da imprensa nos estudos hist6ricos de tipo sécio-estrutural. Fica como exemplo José Honério Rodrigues que, mesmo privilegiando uma histéria da politica, fez rapido mas significativo comentério, no qual apontava questdes de (falta de) veracidade ¢ fidedignidade no uso da imprensa como documento hist6rico.’ Em outras palavras: com a renoyagio dos estudos histéricos e a énfase numa abordagem que privilegiava o sécio-econdmico, a imprensa entrelagou-se as discussdes sobre ideologia e “superestrutura”. Gerando estudos como o de Arnaldo Contier sobre 0 discurso ideolégico dos periddicos paulistas nos anos 1820-407 Ou seja, a imprensa enfocada através da anilise de discurso, Tal postura acabou, por sua vez, cedendo a subseqiiente transforma¢i’o historiogrifica. Entretanto, neste intermédio, isto é, num momento anterior 4 renovacio cultural e politica da historiografia mais sensivel a partir dos anos 1980, surgiram trabalhos expressivos sobre o tema aqui tratado. O livro de Helio Vianna compée-se de pesquisa minuciosa, rigorosa € exaustiva sobre a primeita geraco da imprensa no Brasil, centrada em estudos de caso entre 1812 ¢ 1869, com énfase para o perfodo regencial, e que levanta pistas ainda nao plenamente seguidas. Assinala-se, porém, ao lado da honestidade ctiteriosa da pesquisa, seu restrito carter interpretativo, em geral perpassado de juizos de valor conservadotes do autor. J a obra do jornalista e pesquisador Carlos Rizzini é consulta indispensavel, pela pesquisa erudita e valiosa, Janeiro 2005/ Margo 2007 20 — Dossié: Histéria ¢ Imprensa sobre os “comegos” da imprensa no Brasil, englobando petiddicos, livros ¢ tipografias.* Estudo de inegavel caréter pioneiro sobre histéria da imprensa no Brasil partiu de um historiador marxista e também jornalista, Nelson Werneck Sodré.’ Classico e referéncia obtigatéria, seu trabalho tornou- se o principal que pretendeu abarcar todo o tema. Contém informagées, pesquisas titeis e detalhadas, além de considetivel ¢ original esforco interpretativo. Ressente-se de lacunas, provenientes das limitagdes de um trabalho individual diante de assunto tio vasto. No tocante ao perfodo da independéncia, faz andlises sugestivas, desenvolvendo categorias como “imprensa artesanal” e “pasquim”, além de classificar com certo esquematismo a maior parte dos jornais do perfodo entre “esquerda” ¢ “diteita”, Note-se que, ao tratar dos anos 1820-1830, fica a impressio de que o autor nao consultou diretamente os jornais em questo, mas citou trechos ja selecionados por outros autores. O que nao desmerece o cardter inovador de sua obra, ainda hoje largamente citada e consultada. Tivemos na década de 1970 0 ensaio interpretative de José Marques de Melo: discorre sobre as condigées do surgimento da imprensa no Brasil, propondo, a partit de abordagem sociolégica, andlises que se demarcavam de outros autores." Sem esquecet os trabalhos de Marcelo e Cybelle Ipanema enfocando diferentes aspectos, com base em consideravel pesquisa empitica e sistematizacio, como 0s referentes a legislaco, tipografias e censuta." A renovacio historiografica das abordagens politicas e culturais redimensionow a importancia da imprensa, que passou a ser considerada como fonte documental (na medida em que enuncia discursos e expressées de protagonistas) e também como agente Forga ativa, nio mero registro de acontecimentos.”” Espaco privilegiado de claboragio de idéias, projetos e embates, em contato com outras historico que intervém nos processos e episddios, nio “teflexc’ instincias ¢ atotes coletivos. O que implica, portanto, em verificat como 0s meios de comunicacao impressos interagem na complexidade de um contexto. No tocante ao surgimento da primeira geragio da imprensa Maracanan n° 3 O surgimento da imprensa no Brasil: questioes atuais 21 brasileira, destacam-se pelo menos trés estudos mais recentes € que se otiginaram de trabalhos académicos de historiadoras. Cecilia Helena estudou os folhetos de 1820-22, interligando de modo criativo o debate politico com as tramas dos interesses sécio-econdmicos, através de pesquisa rigorosa ¢ perspectiva de anilise coerente. Isabel Lustosa, apés intensa leitura dos jornais dos anos 1821-23, trata dos embates entre jornais ¢ seus redatores no Rio de Janeiro. Lucia Bastos analisa 0 debate politico e os folhetos impressos que surgiram no Rio de Janeiro entre 1820 e 1822, pela tica da cultura politica dos idos de 1820-1822, aliando pesquisa documental com referéncias tedricas atualizadas ¢ andlises instigantes."? Alguns estudos sobre a América hispinica podem contribuir para enriquecer a historiografia brasileira. B importante assinalar as pesquisas, interpretagdes ¢ reflexdes do historiador Francois-Xavier Guerra em torno da imprensa, impressos € opinio publica, tratando das mutagdes do mundo ibero-americano dos primeiros anos do Século XIX. A contribuigio repleta de perspectivas deste autor foi a de situar © estudo da imprensa em sua dimensio de pedagogia politica ¢ junto as formas de sociabilidade, praticas politicas, 4 circulagio das palavras € vozes nas ruas, estabelecendo ao mesmo tempo telagio com o pensamento politico e com as transformacées culturais € politicas dos espacos publicos. Tal abordagem construiu-se a pattit do diélogo deste autor com as obras de T. Baker, R. Chartier, J. Habermas, M. Agulhon e P. Rosanvallon, entre outros, ¢ também pela leitura de petiddicos do periodo." Ainda no aspecto comparativo com a América espanhola, é interessante citar a historia da imprensa peruana escrita por J. Gargurevich, que trata de aspectos peculiares das sociedades americanas, como a proximidade entre o impresso ¢ o oral, e também C. Ossandé6n, que trabalha sobre a transi¢io dos sibios ilustrados para os tedatotes publicistas no Chile, com abordagens sobre os espagos publicos do Século XIX." Ao longo de cerca de um século ¢ meio de estudos sobre histéria da imprensa brasileira, as perspectivas foram variadas. Inventitios, fonte fidedigna, falsificadora da verdade, portadora de discursos, protagonista histérica, forma de sociabilidade e pratica e cultura Janeiro 2005/ Margo 2007 22 Dossié: Historia e Imprensa politicas. Deste modo, seja pelo viés historicista, pasando pela perspectiva sécio-econémica ¢ pela incorporagio de dimensdes culturais e politicas (além de trabalhos que nfo se enquadram rigorosamente nestas etapas historiograficas), pode-se dizer que existe uma razofvel e heterogénea massa de estudos histéricos que, desde o Século XIX, trata do tema da imprensa € independéncia do Brasil. No caso do sutgimento da imprensa produzida no territ6rio brasileiro, havia uma efetiva circulagio destes periddicos pelas capitanias e posteriormente provincias na primeira geragio de petiddicos, que realizava o fortalecimento destes vinculos politicos de tipo nacional para o Brasil Reino ¢, apés, da nacio que se consteufa. ‘A cortclagio entre a difusio da imprensa e a consolidagio de um jdedrio nacional aparece no conhecido estudo de Benedict Anderson, que trata a emergéncia da consciéncia nacional em suas dimensdes culturais e planetatias.'° Porém, tal trabalho apresenta algumas limitacdes empiricas e interpretativas que merecem ser assinaladas, ainda que de maneira simplificada. Tais limitagdes, neste caso que trato aqui, gitam basicamente em torno de dois cixos: primeiro, o autor aparenta um certo desconhecimento da propria historia da imprensa e suas mutag6es, € por isso parece tratar do mesmo modo e numa linha de continuidade ¢ semelhanga a imprensa recém-nascida do Século XVI ¢ a imprensa industrial do Século XX, como se ambas tivessem as mesmas caracteristicas materiais ¢ culturais e os mesmos tipos de recepgio e piiblicos; segundo, mais especificamente para as sociedades ibero-americanas, Anderson revela pouco dominio e mesmo uma certa desatualizacio historiogrifica sobre os processos de independéncia as identidades politicas que deles emergiram, conforme critica ou abordagens distintas ja desenvolvidas por outros historiadores especialistas no assunto.” Logo, seja para a questo da imprensa quanto para a das independéncias americanas, no tocante a relagio entre as redes de comunicagio impressa e a elaboracio de novas nacionalidades, tal livto de Anderson no nos parece set uma referéncia tedrica adequada para compreender 0 tema aqui tratado, em que pese sua repercussio € seus esforgos de generalizacao interptetativa. Maracanan if 3 O surgimento da imprensa no Brasil: questies atuais 23 As complexas origens da imprensa no Brasil AA partir destas rapidas consideragées historiograficas, aponto entio algumas perspectivas de trabalho e apresento pesquisas ¢ reflexdes que tenho efetivado, situando-me, evidentemente, dentro desta tiltima tendéncia historiografica, que é a atual. Para melhor dimensionar 0 estudo histérico da imprensa na primeira metade do Século XIX é instigante compreendé-la como um dos mecanismos de participacio politica, com sua propria especificidade e ritmos, mas interligada a outros destes mecanismos que transcendiam a palavra impressa, como: pettencimento as sociabilidades (institucionalizadas ou nfo), lutas eleitorais ¢ parlamentares, exercicio da coerc4o governamental, movimentagdes nas tuas, mobilizagio de expressivos contingentes da populacio, recursos 4 luta armada (através de motins, rebelides, etc) e, sobretudo, formas de transmissfo oral ¢ manuscrita tio marcantes nas sociedades daquela época. A compreensio da imptensa do inicio dos oitocentos sob essa dtica indica, portanto, um circuito no qual a palavra impressa estava inserida e nfo uma espécie de papel sagrado ou exclusivamente “elitista” ou “oficial”, j que seus contetidos podiam se telacionar de forma dinamica com a sociedade, apesat dos diferentes publicos a que cada petiédico podia pretender alcancar, 0 que se verifica pot certa variedade de linguagem, estilo e prego. A fronteira entre manifestacdes letradas ¢ orais pode, em alguns casos, ser relativizada. Além desta dimensio de pritica politica, isto é, de considerar a imprensa como um complexo agente histérico, cla pode também ser lida como fonte documental ou texto de época, em diferentes perspectivas, ganhando uma dimensfio que nio rato é atribuida apenas aos livros: portadora de contetidos que formulem, de maneira mais consistente, idéias, tendéncias ¢ ptojetos. Ou seja: niio s6 no caso mais conhecido dos folhetins em relagio a ficcio literaria, por exemplo, quando os romances apareceriam em folhas periédicas, mas também no campo do pensamento politico e, igualmente, para elaboracio de uma histéria nacional, os contetidos de jornais periddicos do Século XIX ainda estio por ser incorporados de maneira mais efetiva 20s recentes estudos histéricos no Brasil. Janeiro 2005 / Margo 2007 24 Dossié: Historia e Inprensa Uma confusao conceitual 4s vezes envolve os termos “panfleto” ¢ “pasquim”, muitas vezes a partir de uma leitura apressada da ja citada obra de Nelson Werneck Sodré. Cabe especificar que “panfleto” ou “pasquim”, no raiar do Século XIX, indicava folhas avulsas, impressas ou manuscritas (mais comumente manuscritas), quase sempre andnimas, de linguagem contundente, as vezes tosca, mas ndo a imprensa periddica. Pode-se até falar num estilo panfletério que predominava naquele perfodo em diversas publicagées, inclusive petiddicas, mesmo as conservadoras ou governistas, mas isto nao significa que os jornais na época fossem considerados “pasquins” ou “panfletos”, a nao ser de forma depreciativa por seus adversarios."* Outro ponto que nos patece merecer atengio é sobre o significado de 1808 como momento inaugural. Os primeiros jornais a circularem e serem lidos regularmente na América portuguesa sio bem anteriores a 1808, com destaque para os franceses, espanhdis, ingleses ¢ portugueses. Para ficar apenas nestes tltimos, como exemplo, sabemos que apesar dos siléncios, hiatos e coergdes, a imprensa portuguesa apresentou consideravel diversificagéo em meados do Século XVIII e inicio do XIX, Entre 1749 e 1807 foram contabilizados trinta petiddicos de carater literario, musical, cientifico, histérico, comercial e de agricultura, conforme classificagio do historiador José ‘Tengartinha. Além desses, existiram quinze jornais no perfodo pombalino, sem contar os chamados jornais enciclopédicos.” Tais publicagdes circulavam pela América portuguesa ¢ os estudos sobre suas tecepgdes ¢ circulagio ainda estio por se fazer. Afinal, eram impressas em portugués, logo, geradas no mesmo corpo politico nacional ao qual o Brasil pertencia e, ao que tudo indica, lidas regularmente dos dois lados do Atlintico, apesar da inexisténcia de ptelos na América portuguesa até 1808, Esta lacuna de estudos talvez se explique pelo viés nacionalista dos historiadores portugueses € brasileiros dos Séculos XIX e XX. Além disso, os ptimeiros redatores propriamente brasileiros de petiédicos, embora formados num quadro luso-brasileito, poderiam ter acesso aos jotnais de outros pafses, acompanhando o trajeto das viagens que realizavam. Veja-se 0 cxemplo de Hipdlito da Costa que, Maracanan rt 3 O surgimento da imprensa no Brasil: questies atuais 25 antes de redigit 0 Correio Braziliense, fora enviado em missio oficial da Coroa portuguesa aos Estados Unidos da América do Norte. Nesta ocasiZo, ele registrou no seu didtio pessoal a surpresa da descoberta ¢ © contato cotidiano com uma imprensa regular marcada por diferentes posic6es politicas, expressando uma cena publica com embates, vocabulirios ¢ linguagens até entao desconhecidos do jovem luso- brasileiro, que assim realizou um aprendizado informal e marcante poca Contemporanea e das transformagdes que ocorriam nos espacos ptblicos.” sobre as caracteristicas da imprensa da E, comum colocar-se, em estudos histéricos, a contraposiciio entre a Gaxeta do Rio de Janeiro (enquanto jornal oficial) ¢ o Correio Braziliense (que fazia criticas ao governo portugués). Porém, uma comparagio indica que, além desta evidente dicotomia oposigao/situacio, existem convergéncias entre estes dois periddicos. Em varios momentos, 0 redator do Correio Braziliense transcteve na integra passagens da Gazeta do Rio de Janeiro sem contesti-la, seja no contetido ou mesmo na autenticidade das informagées (Correia Braxiliense, 1X, 99). Tal foi o caso do falecimento de D. Pedro Carlos de Bourbon e Braganca, sobrinho do principe Regente D. Joao, 1812, no Palicio da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, cujo longo noticiétio é reproduzido por Hipélito (CB, IX, 555 - 559). Tais noticias referentes 4 dinastia e vida cortesi eram freqiientes nas gazetas oficiais e ganhavam, como neste caso, espago em jornais nao oficiais. Em outro plano de comparacio, podemos concluir que tanto a Gazeta do Rio de Janeiro quanto 0 Correio Braziliense defendiam idéntica forma de governo (monarquica), a mesma dinastia (Braganga), apoiavam o projeto de unio luso-brasileira e comungavam o reptidio as idéias de revolucao e ruptura, padronizado pela critica comum & Revolugao Francesa e sua meméria historica durante a Restauracio. Além disso, uma leitura sistematica indica como, a partir de meados de 1821 (apés a Revolugio do Porto e com o ministério de José Bonifacio ¢ convocacio da Constituinte brasileira), a Gazeta do Rio (0 titulo é reduzido), escrita pelo cénego Vieira Goulart, passa a defender 0 liberalismo e a modernidade politica (citando Rousseau e outros da Janeiro 2005 / Margo 2007 26 Dossié: Histéria e Imprensa mesma linha). E acompanha de perto o proceso de sepatagio entre Portugal e Brasil, posicionando-se a favor da independéncia deste antes mesmo do Correio Braziliense, que levava a desvantagem da distancia geografica e das comunicagdes demoradas entre os dois Hemisfétios. Ou seja, € possivel enxergar nuances nesta polatizacio, As vezes maniqueista, entre estes dois jornais luso-brasileiros, vistos mais tarde como brasileitos apenas. Ambos faziam parte do mesmo contexto politico e mental e, ainda que com diferengas, partilhavam um universo de referéncias comuns. A historiografia brasileira sobre a imptensa, mais particularmente sobre © surgimento dos periddicos em principios dos oitocentos. A énfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores explicativos e caracteristicos destes primeitos tempos da imprensa nao me parece, em termos analiticos, suficiente para explicar a complexidade e compreender as caracteristicas de tal imprensa, gerada numa sociedade em mutacio, do absolutismo em crise. Sem negar aqueles trés fatores, em getal mais facilmente perceptiveis até pelo actimulo de trabalhos nesta linha, gostaria de propor ou acrescentar outro elemento: 0 de que o surgimento da imprensa periédica no Brasil niio se deu numa espécie de vazio cultural, mas em meio a uma densa trama de relagdes e formas de transmissao ja existentes, na qual a imprensa se insere. Ou seja, a imprensa petiddica pretendia, também, marcar e ordenar uma cena piblica que passava por marcantes transformagées no ambito das relagdes de poder ¢ de suas dimensées culturais ¢ que dizia respeito a amplos setores da hierarquia da sociedade, em suas relacdes politicas e sociais. ‘A citculacio de palavras — faladas, manuscritas ou impressas — no se fechava em fronteiras sociais e perpassava amplos setores da sociedade que se tornava brasileira, nfo ficava estanque a um cfrculo de letrados, embora estes, também tocados pot contradicées € diferencas, detivessem 0 poder de produgio c leitura direta da imprensa. A sociedade hierarquica existente no territério brasileiro nesta passagem dos setecentos pata os oitocentos pode ser representada em mosaico, como demonstram ha algum tempo estudos de Maracanan 3 O surgimento da imprensa no Brasil: questies atuais 27 perspectivas variadas e que ultrapassam visdes simplistas de uma sociedade dicotémica composta apenas de um punhado de senhores ¢ uma multidio de escravos. Diversificados foram os espacos que serviram de base para tais transmiss6es, impressas ou nao — alguns ja estabelecidos, como as administragées civil, militar e eclesidstica, comportando ou nao transformagées; a expansio ou tedefini¢io de fronteiras territoriais internas, para agricultura, mincragio, colheita extensiva ou pecuaria; as rotas de comércio terrestre ou maritimo, de subsisténcia ou exportacao, com seus variados tipos de viajantes; as instincias de representatividade eleitoral j4 existentes a nivel municipal e as que se implantavam a nivel provincial nacional. Grupos politicos com alguma estabilidade ¢ identidade formavam-se baseados em vinculos diferenciados, como vizinhanga, parentesco, clientela, trabalho (livre ou escravo), interesses materiais ou afinidades intelectuais, em torno de chefes, cidades, regides ou sob determinadas bandeiras, que poderiam mudar com os contextos. Afinal, as identidades politicas cram mutaveis, ainda mais neste perfodo de definigdes e embates. Associagdes secretas, reservadas ou ptiblicas ganham novo impulso a partir da Independéncia, com altos e baixos e uma verdadeira explosio quantitativa a partir de 1831, ano inicial das Regéncias, dentro destas tramas que surge a imprensa, que marcava e era matcada por vozes, gestos ¢ palavras. Além do mais, a énfase a censura ¢ ao oficialismo para caracterizar © surgimento da imprensa no Brasil, embora compreensivel e justificdvel, pode conter elementos anacrénicos em termos historiogrificos, isto é, quando autores estudam um petiodo passado direcionando suas abordagens e preocupagdes para questées do tempo presente do historiador, como 0 corajoso combate aos autoritarismos € censuras oficiais do Século XX. B, apesar do valor empitico e interpretativo de tais trabalhos, eles podem deixar de lado, pot conseguinte, uma compreensio mais especifica da dindmica e de certos aspectos de uma sociedade que, em principios do Século XIX, era ainda marcadamente otganizada e concebida nos moldes absolutistas (com seus diferentes graus de I/ustrapdo), em crise e transformagio2! Janeiro 2005/ Margo 2007 28 — Dossié: Histéria e Imprensa Desta forma, parece ser sugestivo compreender que a primeira geracio da imprensa peridica produzida no Brasil nio surge do vazio, numa espécie de gestacio espontinea ou extemporinea, mas baseada em experiéncias perceptiveis. A partir do conjunto de questdes propostas aqui penso que é possivel relativizar a nogio de que a imprensa no Brasil do Século XIX era “elitista”, mesmo levando em conta a imprecisao desta categoria. Se ela indica acesso restrito, podemos levar em conta os mais recentes estudos de histéria cultural que nos permitem compreender estas intersecdes possiveis entre o que se escrevia ¢ 0 que se falava, numa sociedade onde a tradicio oral era predominante, inclusive pelo analfabetismo, ¢ na qual a imprensa recém-surgida era de certo modo engolfada pela transmissfo oral. Trata-se também de discutir a visio iluminista sobre o escrito impresso, considerado superior ¢ mais potente, como aquele que influencia e determina. Além disso, podemos perceber um caminho de duas mios, circularidade na qual a imprensa se insetia, marcava ¢, ao mesmo tempo, era matcada pelas expressdes nao escritas. De qualquer modo, é inegavel que o estudo, pelos historiadores, da imprensa, conttibui de modo efetivo para a compreensio da sociedade em que vivemos, para podermos transformi-la, de preferéncia para relagdes que no sejam opressoras como as atuais. Notas ¢ Referéncias: 1J. C. Fernandes Pinheiro, A Imprensa no Brazil, Revista Popular, Rio de Jancito, 20/11/1859; A J. de Mello Moraes, Jornais que se tem publicado no Brasil desde o dia 10 de setembro de 1808 até 20 de outubro de 1862, Comerafia Historica, Cronagrifica, Genealigica, Nobilria e Politica do Império do Brasil, Rio de Janeiro: ‘Typographia Brasileira, 1.1, 2a. patte, 1863, p. 123, Moreira de Azevedo, Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Revista do Instituto Historica e Geogrifico Brasileiro, t. XXVIII, p. II, 4o. trimestre de 1865, p. 169 — 224, 2-H. Vianna. Contribuirdo & Histéria da Imprensa Brasileira (1812 — 1869), Rio de Janeico: Imprensa Nacional, 1945, p. 73. 3 Ado Valle Cabral. Annaes da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro, de 1808 — 1822, Maracanan wf 3 O surgimento da imprensa no Brasil: questies atuais 29 Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1881. Obra que veio a ser complementada pelo trabalho de A Camargo eR. B. de Moraes. Bibligrafia da Impressio Régia do Rio de Jancira, 2vols. Sao Paulo: Edusp / Kosmos, 1993. 4 V. por exemplo, “Primeito Centendrio da Imprensa Petiddica no Brasil”, publicado no tomo especial da Revisia do Instituto Historica e Geogrfico Brasileiro, vol. 1, 1a, Parte, 1908. 5.A J. Barbosa Lima Sobrinho. O problema da imprensa, Rio de Jancito: Alvaro Pinto, 1923 {2a. ed., Edusp, 1988} 6 J. H. Rodrigues Teoria da Histévia do Brasil. Introdugio Metodolégica, 10, vol., 2a. ed., So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957, pp. 261 — 263. Entretanto, o mesmo autor viria a estudat os periddicos e folhetos para compreender as posicdes brasileira ¢ antibrasileira, em Independéncia: Revolucao e Contra-Revolurdo. A evalugia politica, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, pp. 149-168. 7AD,Contier Imprensa e Ideologia em Sia Paulo 1822/42, Petropolis: Vozes, 1979. 8 H, Vianna, op. cit. O mesmo autor realizatia curioso estudo sobre D. Pedro I Jjornalista, Sio Paulo: Melboramentos. 9) Historia da Imprensa no Brasil. 1a. ed., Rio de Janeito: Civilizagio Brasileira, 1966; 4a. ed., Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 10 Sociologia da Imprensa Brasileira, Petropolis: Vozes, 1973 11 V. por exemplo M. de Ipanema. Leeislago de Imprensa. Leis de Portugal e Leis de D. Joao (primeito volume) e Lzis do Brasil (segundo volume), Rio de Janeiro: Aurora, 1949. 12 R, Darnton & Daniel Roche (orgs). Revolugdo Impressa: a imprensa na Franga 1775 — 1800, Sio Paulo: Edusp, 1996; J-P. Bertaud. Histoire de la presse et Revolution, in Anmales: Historiques de la Révolution Francaise, n, 285, Patis, juillet - septembre 1991, propdc estudo baseado na gramitica e na sintaxe dos textos de época, como expressio de signos politicos 13 C,H, Salles de Oliveira. O disfarce do anonimato. O debate politico através dos folbetos (1820-1822), dissertacio de Mestrado em Historia, Universidade de Sao Paulo, 1979.1. Lustosa, Incutos Inpressos.A guerra dos jomalistas na independéncia. 1821-1823, Si Paulo: Cia. Das Letras, 2000. L. M. B, Pereira das Neves, Corcundas e constitucionais —A cultura politica da independéncia (1820-1822), Rio de Jancito: Editora Revan/Faper), 2003. 14 F-X Guerra. Madernidad eindependencias, Madti: Mapfte, 1992 (v. 08 cap.7 € 8) € © attigo “Voces del pueblo”: redes de comunicacién y origenes de la opinién publica enel mundo hispanico (1808 ~ 1814), Revista de Indias, Madti: 2002, vol. LXH, 0° 225, pp. 357 ~ 384. 15 J. Gargurevich, Historia de la prensa pernana 1594 — 1990, Lima: La Voz, 1991 Catlos O Buljevic, E/ oreprisculo de los sbiosy la irrupeién de ls publiistas. Prensa y espacio publico en Chile (siglo XIX), Santiago: Universidad Arcis, 1998. Janeiro 2005 / Marco 2007 30 — Dossié: Historia e Imprensa 16.B. Anderson, Nacdo ¢ consciéucia nacional, Rio de Jancito: Paz ¢ Tetra, 1989. 17 Notadamente os textos de Frangois-Xavier Guetta, Antonio Hespanha ¢ José Carlos Chiaramonte, em L. Jancs6 (org). Brasil: formagao do Estado ¢ da Nagao, Sio Paulo: Hucitec, 2003. 18 Veja-se por exemplo este equivoco conceitual no artigo de Renato Lopes Leite, ‘A nogio de liberdade ¢ nos panfletos Sentinela da Liberdade ¢ O Federalista, hitp://wwwifch.unicamp.br/anphlac/anais/encontro6/tenato6.pdf. 19 Cf. nota 17. 20 Sobre as dimensées deste aprendizado de Hipélito da Costa, v. M. Morel, Entre estrela e satélite, em A. Dines (org). Hipélito Jose da Costa e 0 Correio Braziliensey Sio Paulo: Imprensa Oficial do Estado / Correio Braziliense, 2002, v. 30, p. 269 ~ 320. 21 Sem pretender iguali-las, desmerecé-las ou mesmo analisé-las aqui, tomo como exemplo as obras jécitadas de Barbosa Lima Sobrinho, Rubens Borba Moraes, Carlos Rizzini ¢ Nelson Werneck Sodré. Variando do liberalismo democritico ¢ do nacionalismo de esquerda ao marxismo, 0 contextos em que foram escritas correspondem, em getal,a momentos mais agudos de combatea diferentes formas de autoritarismo e coer¢io da liberdade de expressio no Brasil republicano do século XX, passando pela Primeira Repiblica, Era Vargas e ditadura civil militar de 1964. Maracanan rf 3

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