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g.A ordem publica em uma era de violéncia Um dia, na década de 1970, a Associacao dos Chefes de Poli- cia disse ao governo britanico que ja nao havia condigdes de impe- dir desordens puiblicas nas ruas, como antes, sem uma nova lei de seguranga publica. Poucos anos depois, creio que no comego da década de 1980, fui convidado a um coléquio em um lugar da Noruega e notei que o folheto de propaganda do hotel em que se realizava 0 evento — um centro de convengées normal em um lugar turistico de belas paisagens — proclamava que as janelas do edificio eram a prova de balas. Na Noruega? Sim, na Noruega. Quero comegar esta conferéncia com esses dois incidentes. Nossa era tornou-se mais violenta, inclusive nas imagens. Nao ha diivida a respeito, Esta conferéncia € sobre o que isso significa e sobre como os governos podem proporcionar protegao a vida normal dos cidadaos. Ela se refere sobretudo a Gra-Bretanha, onde 0 aumento da violéncia publica (revelada nos indices de criminali- dade) é particularmente expressivo. Mas o problema nao se limita a um tinico pais. Nem se refere apenas ao terrorismo. O tema é muito mais amplo. Inclui, por exemplo,a violéncia nos campos de 138 futebol, outro fendmeno historicamente novo que surgiu na aécada de 1970. Como sugere minha lembranga da Noruega, é patente que grande parte dessa violéncia € possiblitada pela extraordinéria explosio da ofertaedisponibilidade global de armas destrutivas poderosas que estdo a0 alcance de pessoas e grupos privados. ‘Armas baratas ¢ portateis, que podem ser manuseadas por qual- quer um. Originalmente, sso era uma consequiéncia da Guerra Fria, mas, como esse é um negécio lucrativo, a produgao conti- nuou a aumentar. Em todas as décadas desde a de 1960, 0 mi- mero de empresas que produzem essas armas vem aumentan- do, especialmente na Europa ocidental ¢ na América do Norte. m 1994, havia trezentas companhias em 52 paises no negécio dasarmas pequenas, 25% mais do que em meados da década de 1980, Em 2001, a estimativa ja era de quinhentas empresas. Em outras palavras, os Kalashnikovs, rifles de assalto ax 47, desen- yolvidos originalmente na Unio Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, s4o uma forma absolutamente terrivel de arma leve e, de acordo com o Bulletin of the Atomic Scientists, algo como 125 milhdes deles circulam hoje pelo mundo. Podem ser encomendados pela internet, pelo menos nos Estados Unidos, em Kalashnikov usa. Quanto aos revélveres e &s facas, quem é que sabe? Mas é evidente que a desordem ptiblica, mesmo na forma extrema do terrorismo, nao depende de equipamentos caros e de alta tecnologia, como ficou demonstrado em 11 de setembro de 2001. Os seqtiestradores dos avides que destruiram as Torres Gé- ‘meas s6 estavam armados com facas pequenas. Os grupos arma- dos mais duradouros, como o IRA ¢ 0 £TA, utilizam sobretudo explosives, alguns dos quais podem ser feitos em casa. Os perPe- tradores do atentado de 7 de julho de 2005 em Londres produzi- Tam seu proprio explosivo. E, se os informes mais recentes forem 139 corretos, esse massacre custou a0s seus autores apenas umas cen. tenas delibras no total. Além das suas vidas, naturalmente. Assim, ainda quesaibamos que mundo de hoje esté mais cheio de coisas matam e mutilam do que em qualquer outro periodo da his- esse 6 apenas um dos dados do problema. a ordem ptiblica? Claramente, os que toria, Esta mais dificil manter sntes empresariais pensam que ‘sim.O tamanho na Gra-Bretanha aumentou em 35% desde ao final do século, 34 agen- governoseos dirige das forcas policiais 1971. Para cada 10 mil cidadaos havia, tes de policia,em comparagao com 244 trinta anos antes (um au- mento de mais do que 40%). Endo estou sequer contando o meio milhdo de pessoas que se estima estarem empregadas nos oficios de seguranca, como guardas e profissdes semelhantes — setor da economia que se multiplicou nos titimos trinta anos, desde quea Securicor sentiu-se suficientemente grande para ter suas ages cotadas na Bolsa, em 1971.No ano passado ja havia umas 2500 fir- mas nessa rea. Como se sabe, a desindustrializagao da Gra-Breta- nha gerou um grande ntimero de pessoas sadias para as quais con- seguir um emprego como guarda de seguranga é uma das poucas oportunidades de trabalho disponiveis.Pode-se dizer queaecono- ia, em vez de basear-se no principio de que “um ajuda o out pode um dia basear-se na oferta macica de empregos em que“um tro", vigia 0 outro”. Nao € 56 0 emprego de mao-de-obra que aumenta. Também aumentao emprego da forca. Os especialistas em controle demas- sas dispéem hoje de quatro tipos principais de instrumentos pale enfrentar manifestagées violentas: quimicos (por exemplo, lactimogeneo);“cinéticos’, como armas de dispersdo, balas de bor racha etc. jatos de agua; e tecnologias de atordoamento. Aqui esté uma lista de paises que ilustra as variagdes entre o enfoque tradi- cionaleo: moderno no campo real do controle demassas. A Norue- ga ndo emprega nenhum dos quatro; Finlandia, Holanda, India ¢ gis ago yrélia, apenas UM & saber, do tipo quimico. Dinamarca, Irland, asia Espanha, Canad e Australia usam dois;a Belgica eos By pesados Estados ‘Unidos, Alemanha, Franca, Reino Unido emus, pequena Austria tém 0s quatro tipos prontos para a aco. £ evi- jente que a Gr-Bretanha, que antes se orgulhava de que sua poli aandava completamente desarmada, jé nao vive no mesmo mundo ordeiro da Noruega ou da Finlandia, Como ocorreram esses desenvolvimentos? Acho que duas coisas esta0 acontecendo, A primeira é a reverséo do que Norbert Blias analisou em uma obra chamada O proceso civilizador. a transformacao do comportamento ptiblico no Ocidente a partir da ldade Média, Ele se tornou menos violento, mais “educado’, mais atencioso; inicialmente no seio de uma elite restrita e depois emescalas maisamplas. Mas hoje isso jé nao éverdade. Jénosacos- tumamos tanto a ouvir xingamentos em puiblico ¢ a0 uso coletivo delinguagem deliberadamente rude e ofensiva que quase néo nos lembramos de quao recente é essa alteragdo, em termos compara- tivos. Porrae merda hé muito tempo sao expressdes comuns entre homens especializados em atividades rudes, como soldados — embora eu nao conhe¢a nenhum Exército ocidental que tenha 0 mesmo repertério de obscenidades dos russos. De toda maneitra, depois da guerra, quando deixei o Exército, onde me familiarizei com essa pratica, voltei para um mundo de palavras mais doces. Com certeza, nenhuma mulher usava esse tipo de linguagem, que ampla na década de 1960. palavra “puta” ainda nao sé comecou a surgir como pratica social Lembrem-se de que antes dessa década a fazia parte da cultura impressa. A palavra “fuck’, por exemplo, s6 foiincorporada a um dicionério britanico em 1965,eaum ameri- cano em 1969." Ao mesmo tempo, as regras € co ueceram-se, Parece claro, por exemplo, nil entre atorzeevinte anos de idade—comegou a reser nvengoes tradicionais enfra- quea delinggténcia juve- des- 4h proporcionalmentena segunda metadeda década de 1960, Jovens do género masculino, estimulados pela testosterona e pela afi. agai sexual, sempre foram turbulentos, sobretudo quando se organizam em grupos, algo que supostamente se mantinha den- tro de limites por ser tolerado em ocasides especiais. Isso se apli- cava também aos jovens bem-educados, como 0s membros do “Clube dos Vagabundos”, dos livros de P. G. Wodehouse. Lem- brem-se de que a propensao que eles tinham para derrubar 0 capacete da cabeca dos policiais nas noites de corrida de barco levou Bertie Wooster para a cadeia de ‘Vine Street. Mas nao é ape- nas a erosdo das regras e das conveng6es sociais, e sim também a erosdo das convengdes e das relacdes no seio da familia que trans- formaram os rapazes no que os vitorianos chamavam de “classes perigosas”, Ndo vou mais falar sobre isso nem sobre o processo maislongo de barbarizacao do século xx, quelevou até a situagoes de escindalo, quando alguns idedlogos do Ocidente chegaram a oferecer justificativas intelectuais para a pratica da tortura, mas € claro que ele pesa na balanga. O segundo fenémeno, mais direto, também teve inicio na década de 1960. Trata-se da crise do tipo de Estado em que todos nos acostumamos a viver no século pasado — o Estado nacional territorial. Antes desse ponto de inflexao, durante 250 anos 0 Estado vinha ampliando seus poderes, recursos, espectro de ativi- dades, conhecimento e controle sobre o que acontece no seu terri- torio. Esse desenvolvimento ocorreu independentemente da poli- tica e da ideologia: ocorreu nos Estados liberais, conservadores, comunistas e fascistas. Alcangou 0 auge nos anos dourados do “estado de bem-estar” e da economia mista depois da Segunda Guerra Mundial. Mas tudo isso estava baseado na premissa ante- rior do monopélio da lei e da justiga estatal sobre outras leis (por exemplo, 0 direito religioso ou o direito costumeiro). O mesmo é valido para o monopélio do uso da forga armada. No transcurs0 142 do século XIX @ maior parte dos Estados do Ocidente eliminoua pose eo uso de armas salvo para o uso desportio) por pate de todos0s: cidadaos, exceto seus propriosagentes,emesmoa pratica asduelosno sei da nobreza, (Os Estados Unidos tm uma posi ode flagrante exce¢ao nesse campo, entre os paises desenvolvi- dos, pois tem uma taxa crescente de homicidios nos iltimos dois séculos, contra uma taxa decrescente na Europa,)*Na Gra-Breta- nha,as conveng0es chegaram a proibir 0 uso de facas e adagas em |utas, por ser“antiingls’,e criaram regras para as lutas de boxe ¢ assemelhadas — as Regras de Queensberry. Em condigdes deesta- pilidade social, até o poder oficial passou a sair desarmado em piblico. No Reino Unido, os policiais s6 andavam armados na Irlanda do Norte, conhecida pelo seu potencial insurrecional, mas nio na ilha maior. As revoltas piblicas, arruacas e marchas foram institucionalizadas, ou seja, reduzidas ou transformadasem mani- festages cada vez mais pré-negociadas comapolicia.O prefeitode Londres, Ken Livingstone, acaba de recordar aos chineses que isso éoqueaconteciano Hyde Parkena Trafalgar Square desde aépoca vitoriana, Isso era verdadeiro mesmo em pafses que consideramos propensosavioléncia urbana, comoa Franca, independentemente das palavras de ordem incendiarias das manifestagdes de massa.’ Por isso a grande revolta estudantil de 1968 em Paris nao causou praticamente nenhuma morte em nenhum dos dois lados. O mes- mo vale para as mobilizagGes recentes que derrubaram a nova lei deempregos para a juventude francesa. Mashé outro elemento no enfraquecimento do Estado:aleal- dade que os cidadaos lhe devotam, assim como sua disponibili- dade para fazer 0 que o Estado lhes pede, esto erodindo. As duas guerras mundiais foram lutadas por exércitos de recrutas — ou sea, por soldados cidadaos preparados para matar € morrer aos milhdes “por seu pafs”, como se diz. Isso ja nao acontece. Duvido ue qualquer governo que dé algum direito de escolha aos seus 143 _— —e cidadaos nessa matéria — e mesmo varios dos que nao dg possa fint-lo, Esse 6 certamente, 0 caso dos Estados Unidos, ga, aboliram o servico militar depois da Guerra do Vietna, Mas, de maneira mais discreta, isso também se aplica a disposicig go, cidaddos a cumprir a lei —ouseja, 0 senso de queaa lei tem uma justficagao moral. Se sentimos que uma lei élegitima, ela log acatada, Nés acreditamos que os jogos de futebol realmente pre. cisam de Arbitros e bandeirinhas e confiamos a eles 0 exercicig de uma funco legitima. Sendo o fizéssemos, quanta forca seria ne- cesséria para manter 0 jogo em ordem? Muitos motoristas nao aceitam ajustificagao moral das cameras de controle de velocidade eporisso nao hesitam em burlé-las. E, se vocés conseguirem trazer para casa algum contrabando, ninguém vai pensar mal de vocés, > Quando a lei carece de legitimidade e 0 respeito a ela depende "| sobretudo do medo de ser apanhado e punido, émuito mais dificil manté-la vigente,além deser mais caro. Acho quehé pouca divida de que hoje, por varias razes, 0s cidadaos tém menos propensioa respeitar a lei eas convengoes informais do comportamento social do queantes. Além disso, a globalizagdo, a vasta ampliagdo da mobilidade das pessoas ea eliminagao em grande escala dos controles frontei- rigos na Europa e em outras partes do mundo tornam cada ver mais dificil para os governos controlar 0 que entra e sai dos seus territérios eo que ocorre neles. E tecnicamente impossivel contro- lar mais do que uma frag4o minima do contetido dos conteineres que transitam pelos portos sem reduzir o ritmo da vida econémica didria quase pela metade. Os traficantes e os comerciantes ilegais valem-se amplamente dessa facilidade, assim como da incapaci- dade dos Estados de controlar ou mesmo monitorar as transagdes financeiras internacionais. O estudo mais recente desse fendmeno, olivro Iicito, de Moises Naim, diz com franqueza que‘na luta con- tra o comércio ilicito global os governos estao fracassando [..]. 44 Nao hé simplesmente nada no horizonte que aponte para uma rida reversdo dessa stuado para as miriades de redes |] do comérioilicltO ‘Todas essas coisas tém causado uma forte diminuigdo nos poderes dos Estados edos governosnos dims trnta anos, Em casos extremos, eles podem até perder o controle de Partes dos seusterritorios. A Agéncia Central de Inteligéncia (cua) identifi- cou, em 2004, cinqitenta regides do mundo sobre as quais os governos nacionais exercem pouco ou nenhum controle. “Mas”, citando novamente o livro de Naim sobre a economia ilegal, “na yerdade é raro encontrar-se hoje um pais que nao tenha bolsées deilegalidade que, por sua ver, estdo bem integrados em redes globais mais amplas.”Em casos menos extremos, é possivel para 0s Estados estaveis e florescentes, como o Reino Unido ea Espa- nha, conviver durante décadas com pequenos grupos armados 4°" | em seus territérios, como 0 IRA € 0 ETA, que Os governos nao sio capazes de eliminar por completo. E isso apesar do fato evidente deque as informagées de que dispomos sobre os paises ¢ as po- pulagdes so hoje muito maiores do que no passado. Embora a capacidade tecnolégica das autoridades puiblicas para observar oshabitantes, escutar suas conversas, ler seus e-mails e, como na Gra-Bretanha, vigid-los com inumerdveis cameras de Tv de cir- cuito fechado supere a de qualquer governo no passado, € pro- vavel que eles tenham menos conhecimento do que seus prede- Cessores a respeito de quem sao e até quantas sao as pessoas que €std0 nos seus territérios em qualquer momento determinado, onde elas vivem e o que fazem. Os organizadores dos censos atuais tem muito menos confianga nas suas informagoes do que-y tinham até a primeira metade do século xx—e com boas raz6es. Esses fatores explicam por que mesmo Bstados que funcio- tam bem tiveram de ajustar-se, em certa medida, a um graumut ‘omais alto de violencia ndo-oficial do que no passado. Pensem 145 na Irlanda do Norte nos tiltimos trinta anos. Gracas a uma com. binacao da forga com arranjos tacitos, a governanca efetiva ea vida normal, o que inclui os movimentos de entrada ede saida dy provincia, tiveram prosseguimento apesar de uma situagao de Gquase guerra civil. Em todo o mundo os ricosajustam-sea ames. a dos pobres violentos formando condominios fechados, mai visiveis em areas de expansdo imobilidria recente. Estima-se que existem cem deles na Inglaterra, pequenos na maior parte dos casos, 0 que nao é nada em compara¢ao com 0s 7 milhdes de familias que vivem nessas verdadeiras fortalezas nos Estados Unidos, mais da metade das quais so comunidades “em que acesso é controlado com portées, cédigos, cartes magnéticos ¢ guardas”\Com o aumento da violéncia, essa tendéncia vem cres- cendo rapidamente, 0 que pode ser confirmado por qualquer pessoa que tenha estado no Rio de Janeiro ou na Cidade do México ao longo destes anos. Hé algo que se possa fazer para con- trolar essa situagao? Duas perguntas surgem. Primeira: os problemas de ordem publica podem ser controlados em uma era de violencia? A res- posta tem de ser afirmativa, embora nao se saiba ainda em que medida. A violéncianos campos de futebol éum exemplo de como isso podee vem sendo feito. Ela surgiu como fendmeno de massas recorrente na Gra-Bretanha na década de 1960 e foi amplamente copiada em outros paises. Chegou ao ponto maximo na década de 1980, com 0s terriveis incidentes de Bradford e as 39 mortes no estddio Heysel, em Bruxelas, durante a final da Copa da Europa entre o Liverpool e a Juventus, Falou-se muito na necessidade de medidas extremas, como cartdes de identidade compuls6rios, mas, na verdade, desde entdo o “hooliganismo” reduziu-se muito na Gra-Bretanha com o emprego de métodos mais moderados, que incluem modificagdes técnicas, como a venda de ingressos xclusivamente para lugares sentados,circuitos fechadosdetelev 146 .goselborinteligencia ecoordenact,tticas plicisismaisee jeas—0fsolamento dos hooligansjéconhecidosalém on melhor, eqerda“contensa0" gral dostorcedoresvstamtestamodernc, quanto fora do estédio, Paralelamente, a policia desenvolvens capacidade de concentrar-se em incidentes mais sétios wens ven que ocontrote da ordem dentro dos estos foi transterido para osfuncionarios dos clubes locais. Todas essas coisas sao mais, caras, muito mais caras, tanto em termos de dinheiro quanto de traba- Iho, Foram necessérios 10 mil homens para policiar 0 Euro 96 na Gra-Bretanha. Nao vias estimativas de gasto em dinheiro etraba- Iho para Copa do Mundo da Alemanha, no verdo de 2006. Mas 0 fato équea melhoria foi obtida sem as medidas extremas inicial- mente sugeridas. Nova York também éum lugar bem mais seguro do que era, como podem atestar todos os que se lembram de comoa cidade era perigosa e suja nas décadas de 1970 e 1980.Na medida em que isso se deve ao prefeito Rudy Giuliani, pode ser atribuido muito mais a mudancas nas taticas da policia (toleran- cia zero) do que aos acréscimos feitos ao seu armamento, que jé era impressionante. Isso nos leva & segunda pergunta: qual deve ser a proporséo entre forcae persuasdo, ou confianga ptiblica, no controleda ordem publica? A manutengao da ordem em umaerade violéncia tem sido mais dificil e mais perigosa, inclusive para os policiais, que usam armas e tecnologias cada vez mais robustas, destinadas a repelir os ataques fisicos, e se assemelham a cavaleiros medievais com escu- dos e armaduras. A policia sofre a tentacdo de ver-se como um corpo de “guardiaes”, com conhecimentos profissionais especiali- ad0s, separada dos politicos, dos tribunais e da imprensa liberal, e ‘SHticada, com ignorancia, por todos eles.O mundo de hoje—enao “Penas fora da Europa — esta cheio de aparelhos policiais e servi- $08 de seguranca que estdo convencidos de que, independente- Mente do que os governos e a imprensa digam em piblico, nao é0 147 estado de direito esim a forga (e,senecessirio for aviolencia)o que assegura a manutengao da ordem, e também de que essa atitugy temo apoio pelo menos técito tanto dos governos quanto da op. nig piblica. No Reino Unido, depois da tranqiilidade das décaday de 1950.e 1960, a reagdo inicial anova situagio,com orn, s greyeg dos mineiros eos distirbios raciais, foi a de aumentar ahostilidadg elevar as confrontacées a um nivel quase militar, mesmo na tha principal. O enfrentamento com os ertoristas promoveu a miltg rizagao da policia, A orientagao de “atirar para matar” provocoy diversas vitimas inocentes ¢, diga-se, evitéveis—a mais recente day quais foi o brasileiro Jean Charles de Menezes. No entanto, feliz. mente a Gra-Bretanha ainda nao chegou, como éa tendéncia no continente europeu, ao ponto de dotar-se de esquadrdes especiais antidisturbios, como o crs da Franga. Por outro lado, duas coisas fazem parte da sabedoria bésica da policia. A primeira é que os policiais ndo sao ut6picosenaopensam, em climinar o crime de uma vez por todas; ele tem de ser reduzido e controlado para que a populacao civil viva em paz. Isso faz com que os policiais vejam com ceticismo as cruzadas politicas e, por outro lado, também pode tentar alguns para o caminho da corrup. do. A segunda, ainda mais pertinente, é que as pessoas que com- pOem a ordem piiblica devem ser protegidas, e ndo antagonizadas enquanto os policiais isolam e perseguem os “baderneiros”.A forca ostensiva ou excessiva, em especial quando dirigida contra grupos, pode antagonizar, se nao 0 puiblico como um todo, os grandes gru- pos que supostamente podem conter uma proporcao maior de maus elementos: negros, adolescentes de reas degradadas, asiti- cos,ouquem quer que seja. Seassim for feito, os riscos paraaordem piiblica se multiplicardo, Um bom exemplo desse tipo de situagao ocorreu nos distirbios do Carnaval de Notting Hill, na década de 1970, desencadeados por uma operagio policial de revistas pessoais destinada a deter punguistas, que afetou um ntimero excessivo de 148 . 235088 © foi tomada pelos circunstantes como um ataque racial jgido contranegros. Esse €um perigo real. Duranteo nn prone 1981, ninguém duvida de que a policia ee . 0s negros fossem arruacelros Potenciais, 0 que exacerbou as. rlgoes.co 0 PUBIICD local. Felizmente, durante os problemas da jplanda do Nortesas Forgas policiaisbritinicasresistiramatentasao deconsiderar todos os irlandeses da Gra-Bretanha como membros «encaisdoRA.Amanutencaoda ordem piblicsejaemumacra Jeviolénciaoundo,depende doequilibrioentreaforsa,aconfianga eainteligéncia. NaGrd-Bretanha, em circunstncias normais, descontadosos desconttoles ocasionais, pode-se ter confianca, grosso modo, no equiibrio estabelecido pelo governo e pela forsa piblica, Mas, desde 0 Onze de Setembro, as circunstancias j4 ndo sao normais. Estamos nos afogando em uma onda de ret6rica politica a respeito dos perigos terriveis ¢ desconhecidos que vém do estrangeiro—a histeria das armas de destruicao em massa, a inadequadamente chamada “guerra contra 0 terrorismo” ea “defesa do nosso estilo de vide? —e contra inimigos externos mal definidoseseusagentester- roristas internos. Trata-se de uma retérica que visa mais arrepiar os cabelos dos cidadaos do que enfrentar o terror — com objetivos que deixo a voces a tarefa de identificar, pois arrepiar os cabelos e criar o pinico é exatamente o que os terroristas querem fazer. O objetivo politico deles nao é atingido pelo ato de matat, sim pela publicidade dada aos seus atos, que quebra a moral dos cidadaos. ‘Naépocaem quea Gra-Bretanha tinha um problema terrorista real econtinuo, ou seja, as operacdes do 1RA, a regra fundamental se- guida pelas autoridades encarregadas da luta contra o terror era, tanto quanto possivel, nao dar nenhuma publicidade aos atos de terror endo anunciar as contramedidas a serem tomadas. ‘Vamos entio livrar-nos dessa balela. A chamada “guerra con- traoterror” nao é uma guerra, exceto nosentido: metaf6rico, assim 149 uando se fala da “guerra contra as drogas” ou da “gue, ee a ra sexos”, 0 “inimigo” nao tem condigbes de derrotarno, danos volumosos. Recente estudo sobre 9 h Ss fer. como q| entre 0S nem de cauisar-Nos i it umento de Est: mn rorismo global, feito pelo Departal stado americano em 2005, enumera — sem contar o Iraque, que uma guerra de RS dade—7500 ataques terroristas no mundo inteiro,com 6600 viti. que sugere que a maioria dos ataques falhou, Estamog enfrentando terroristas articulados em pequenos grupos, seme. Jhantes aqueles aos quais jé estamos acostumados ha muito: tempo mas com duas inovag6es significativas. Ao contrario dos terro- ristas antigos, eles est4o dispostos a perpetrar massacres indiscri- «podem mesmo té-os como objetivo predeterminado, jf praticaram um massacre com milhares de mort, mas, 0 minados Com efeito, .s com centenas de mortos cada um e muitos com dezenas de algun: i ‘Aoutraéaarrepiante inovagao historica do homem- vitimas fatais.. bomba. Essas mudangas sao sérias, especialmente na era da inter- net ¢ do acesso generalizado a armas portateis muito destrutivas. ‘Nao nego que esta ameaga seja mais séria do que ado terrorismo antigo e justfique medidas excepcionais por parte dos que se ocu- pam de enfienté-la, Mas devo repetir que isso nao nem pode ser uma guerra. £ basicamente um problema muito sério de ordem publica. Mas a seguranga puiblica, que as pessoas chamam de “lei e cordem’ tem como salvaguarda essencial as instituigdes e as auto- ridades da vida civil em tempo de paz, o que inclui a policia. Asins- tituiges de guerra—ou seja, sobretudo as Forgas Armadas —si0 mobilizadas apenas em situagdes de guerra e nas rarfssimas oca- sides em que os servicos ptblicos entram em colapso. Mesmo em situagdes parciais de guerra, como na Irlanda do Norte, uma longa experiéncia mostrou-nos os perigos politicos a que nos expomos quando a manutengao da ordem ¢ feita por soldados, sem uma forsa policial regular e separada do Exército. Apesar de tudo 0 que 150 bh «ete falado sobre o terrorismo, nenhum pais da Unido Europeia seem guerraznem é Provavel que venha a estar e suas estruturas cjais e politicas nao sao frageis a ponto de se desestabilizarem seriamente pela a¢a0 de pequenos grupos de ativistas, A fase atual fo terrorismo internacional 6 mais séria do que no passado pela asibilidade de massacres deliberadamente indiscriminados, nas nao pela Sua ado Politica ou estratégica, Bu diria que cleé menos perigoso do que a epidemia de assassinatos politicos que comecou na década de 1970 e que nao despertou a atensdo da inde imprensa porque nao afetou a Gra-Bretanha e os Estados Unidos. O proprio Onze de Setembro nao logrou interromper a vida de Nova York por mais do que algumas horas, e suas conse- quénciasfisicas foram equacionadas com rapidez ¢ eficiéncia pelos servigos civis normais. Oterrorismo requer esforgos especiais, mas éimportanteno perdermos a cabega ao desenvolvé-los. Teoricamente, um pats que nunca perdeu a calma durante trinta anos de tumultos irlandeses nao deveria perdé-la agora. Na pratica,o perigo real do terrorismo do estd no risco causado por alguns punhados de fanaticos and- ‘nimos, e sim no medo irracional que suas atividades provocam ¢ que hoje é encorajado tanto pela imprensa quanto por governos insensatos. Esse ¢ um dos maiores perigos do nosso tempo, certa~ mente maior do que o dos pequenos grupos terroristas. 151

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