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A ANGELA B. KLEIMAN (ORG) OS SIGNIFICADOS DOLETRAMENTO UMANOVAPERSPECTIVA [SOBRE A PRATICA SOCIAL DA ESCRITA ons4se13 : MODELOS DE LETRAMENTO E AS PRATICAS DE ALFARETIZ.\CAO NA ESCOLA! Angela B. Kleiman » 0. QUE E LicRAMENTOR Os estudos sobre o letramento no Brasil esto numa etapa ao mesmo tempo incipiente e extremamente vigoro- sa, configurando-se haje como uma das vertentes do pesqui- ea que melhor conerotiza a unide do intorease tosrico, a busca de deserigées e explicages sobre um fenémeno, com o interesse social, ou aplicado, a formulagéo de perguntas ceuja resposta possa vir a promover uma transformapao de \umta realidade tao preocupante comoo é a crescente margi- nalizagso de grupos sociais que ndo conhecem a escrita. conesito de letzamento comegou a ser usado nos meios académieas numa tantativa de separar os estudos sobre o “impacto social da ascrita” (Kleiman, 1991) dos catudos sobre a alfabotizagio, cujas eonotagbes eseolares 1 Bate estado & parte de um projeto mein sraplo densminad Letremento € Comunicugto Intrealrva, foancado pelo CNF9 ta eoncicao de Projeto Integrado,« a projet concminads Inerepdo em Sota de Att: Sbadice ars Au tf Projeaor, Reamciase pela PAPESD, nm condi de Prato Temtin ambos porimim exordensdee 6 destacam as competéncias individuais no uso ena prati- ca da escrita. Eximem-se dessas conotagies os sentidos que Paulo Freire atribui a alfabetizagdo, que a ve como capaz, de levar o analfabeto a organizer reflexivamente seu pensamento, desenvolver a consciéneia erftica, intro- duzi-lo nam proceso real de demoeratizagao da cultura e de libertag4o (Freire, 1980). Porém, como veremos na préxima sosdo, esse sentido ficou restrito aos meios aca- démicos (v. também Matencio, neste volume). - Os estudos sobre letramento, por outro lado, exami- nam o desenvolvimento social que acompanhou a expan- sio dos usos da escrita desde o século XVI, tais como a ‘emergéncia do Estado como unidade politica, a formagio de identidades nacionais néo necessariamente baseadas em aliangas énicas e culturais, as mudangas socioeeond- micas nas grandes massas que se incorporaram as forcas de trabalho industriais, o desenvolvimento das ciéncias, adomindncia e padronizacao de uma variante de lingua- gem, a omergéncia da cocole, 0 aparecimonto das buro- cracias letradas como grupos de poder nas cidades, enfim, as mudangas politicas, sociais, econdmicas e cognitivas redacionadas com 0 uso extensivo da escrita nas socieda- des tecnoldgicas (Heath, 1986; Rama, 1980). * Aos poucos, os estudes foram se alargando para des- crever as candigées de uso da eserita, a fim de determinar ‘como eram, ¢ quais os efeitos, das préticas de letramento em. ‘grupos minoritérios, ou em sociedades néo-industrializadas, quecomecavam a integrar a escrita como uma “teenologia” de comunicago dos grupos que sustentavam 0 poder. Isto 6, 0s ostudes j4 no mais prossupunham efeitos universais do. Ietramento, mas pressupunham que os efvitos estariam eor- relacionados &s préticas sociais eculturais dos diversos gru- pos que usavam a escrita. Por exemplo, é possfvel estudar 16 ‘as praticas de letramento de grupos de anzlfabetos que fun- cionam em meio a um grupo altamente letrado e teenologi- zado, como os fiuncionérios analfabetos de uma instituigéo do estado de Sio Paulo, com 0 objetivo de examinar, em relagéo a estes grupos, as consegiiéncias sociais, afetivas, lingtifsticas que tal insergo social significa. Para realizar tais estudos, utilizam-se, na pesquisa atual sobre o letra- mento, metodologias que permitam descrever e entender os microcontexttos em que se desenvolvem as pritticas de letra- mento, procurande determinar em detalhe como sio esses préticas. Tais metodologias podem ser complementadas com metodologias experimentais (por exempl, a fim dettes- tar os sujeites para comprovar um efeito especttico da aqui- sigho e conhecimento da eserita), com o objetivo de conhecer mais profundamente, mediante a combinagio de métados cetnogréficos e experimentais, as conseqiténcias que diferen- tes préticas de letramento, socialmente determinadas, tém no desempenho desses sujeitos. Apalavra “letramente” néo esté ainda dicionariza- da, Pela complexidade e variagao dos tipos de estudos que se enquadram nesse comfnio, podemos pereeber a com- plexidade do conceito. Assim, se um trabalho sobre letra- ‘mento examina a capacidade de refletir sobre a propria linguagem de sujeitos alfabetizados versus.sujeitos anal- fabetos (por exemple, falar de palavras, sflabas e assim sucessivamenta), entdo, segue-se que para esse pesquisa- dor ser letrado significa ter desenvolvido e usar uma ca- pacidade metalingtifstica em relacdo & prépria lingua- gem. Se, por outro lado, um pesquisador investiga como adulto e crianga de um grupo secial, versus outro grupo 2 Pele que ubemos, terme etrainento" fo cunhado por Mary Kato, rn 1086 Kato, 3998:7) a social, falam sobre o livro, a fim de caracterizar essas pratices, e, muitas vezes, correlacioné-las com 0 sucesso da crianga na escola, entiio, segue-se que para esse inves- tigador o letramento significa uma pratica discursiva de determinado grupo sorial, que est4 relacionada ao papel da escrita para tornar significativa essa interacéo oral, mas que nae envolve, novessariamente, as atividades e3- peeificas de ler ou de eserever. (v. Heath, 1982, 1983; v. também Rojo, neste volume). De fato, a oralidade 6 objeto de andlise de muites estudos sobre letramento. Um outro argumento que justi- fica 0 uso do termo em vez do tradicional “alfabetizacao” estd no fato de que, em certas classes sociais, as eriangas io letracas, no sentido de possuirem estratégias orais Je- tradas, antes mesmo de sarem alfabetizadas. Uma erianga que eompreende quando ¢ adulto lhe diz: ‘Olhao queafada madrinha trouxe hoje!” esté fazendo uma relagio com um texto escrito, o conto de fadas: assim, ela est participando deum evento de letraienio (porque jé participou de outros, ‘como o de ouvir uma estorinha antes de dormir); tambem el aprendendo uma pratica diseursiva letrada, e portan- to essa erlanga pode Ser considerada letrada, mesmo que ailfda nao saiba ler e escrever. Sua oralidade comega a ter as caracteristicas da oralidade letrada, uma vez que 6jun- to% mae, nas atividades do cotidiano, que essas praticas orais sio adquiridas. Similarmente, se, durante a realiza- Go de uma atividade qualquer, ouvimos e compreendemos a expressio “deixa eu fazer um paréntese’, ott, ainda, se entendemos uma expressdo como uma ironia (isto 6 ex- pressando 0 contrério do que esté dito), porque o falante utiliza a expressio “entre aspas” ou porque faz um gesto com as duas mios algadas a altura dos ombros, ¢ ecm dois, dedes de cada mao desenhando a forma das aspasno papel, 6 porque temos familiaridade com a eserita através da lei- 18 tura de certos tipos de textes, isto 6, temos familiaridade com certas préticas de letramento. Podemos definir hoje o letramento como um conjun- to de praticas sociais que usam a escrita, enquanto siste- ma simbélico e enquanto tecnologia, em contextos espect- feos, para objetivos especificos (cf. Scribner e Cole, 198). ‘As praticas espevificas da escola, que forneciam 0 para- metro de pratica social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram clasificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou ndo-alfebetizado, passam a ser, em fungio dessa definieso, apenas um tipo de pratica — de fato, dominante—que desenvolve alguns tipos de habilidades mas nao outros, ¢ que determina \ uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita, Isto fica mais claro através de um exemplo relativo as praticas de letramento de uma alfabetizadora partici- pante do projeto de pesquisa que coordeno, Essa alfabeti- zadora escrevia poemas (‘Se eu nao escrever, acho que eu morro, se eti ndo ... sair aquilo de mim’), e demonstrava “uma reflexéo sobre 0 seu ato de eserever bastante desen- volvida. Assim, num depoimento ela afirmou que quando lia poemas fieava ponsands “Que coisal Brincar com as palavras, com as palavras pequenininhas sai uma coisa [..] com sentido enorme”. Na sua relagio:pessoal com a poesia, enti, ela utilizava seu conhecimento sobrea escr}- ta para definir uma relagio estética coma linguagem atra- ves da anailise e criagio de poemas. Porém, essa mesma, alfabetizadora costumava elaborar exereicios de alfabeti- za¢o nos quais solicitava que seus alunos procurassem palavras que rimassem com outras como “pastel’, ‘barril”, ‘ane!’ e corrigia os “erros” dos alunos que forneciam res- pastas como “chapéu”, “cu”, porque no rimavam com a lista de palavras que ela fornecera (v. Oliveira, 1994). Po- 19 a demos dizer, portanto, queas préticas de letramento dessa alfabetizadora estio determinadas pelas condigées efeti- vas do uso da escrita, pelos seus objetivos, o mudam segun- do esses condigées mudam. 0 fenémeno do letramento, entao, extrapcla o mun- do da escrita tal quel ele & concebido pelas instituigées que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Podo-se afirmar que a escola, a mais importante das agéncias de letraments, preocupa-se, néio com o letramento, prética social, mas com apenas um tipo de prética de letramento, a alfabetizagio, 0 processo de aquisigao de eédigns (alfabético, numérico), processo ge- ralmente coneebido em termos de uma eompeténcia indi- vidual necesséria para o sucesso e promagao na escola. Jé outras agéncias de letramento, como a famflia, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientagies de le- tramento muito diferentes. Os estudos de Carraher, Carraher & Schliemann (1988), por exemplo, investigaram eriangas que resolvem, cxtidianamente problemas de matemitica. Sao criangas ayjos pais tém uma barraca na feira, por exemplo, ¢ que aeompanham os pais, num primeire momento sem se en- volver com as atividades. Logo, a partir dos dez. anos apro- ximadamente, passam a assumir responsabilidade pelas transapbes, e mais tarde, comecam a desenvolver uma ati- vidade independente, como vendedores ambulantes. Se- gundo os autores, os sistemas abstratos de céleulo mate- mético utilizados pelas eriangas para desempenhar tran- sages ligadas a sobrevivéncia, desenvolvides coletivamen- te, primeiro através da observagao dos adultos, e depois através das interagdes com os fregueses, séio extremamen- te eficientes, porém muito diferentes dos sistemas utiliza- dos pela escola no processo de alfebetizacdo (v. também 20 Matencio, 1994, sobre a relagdo entre agéncie de letramen- to e estilo comunicativo). {As préticas de uso da escrita da escola — ali, pré- ticas que cubjazem & coneepgio de letramento dominante na sociedade — sustentam-se num modelo de letramento que 6 por muitos pesquisadores considerado tanto parcial ‘como equivocado. Essa é a concepgso do letramento deno- minada modelo auténomo por Street (1984), eoncepgo que pressupde que hd apenasumamaneira deo letramento ser desenvelvide, sendo que essa forma esta associada quase que causalmente com progresso, a civilizegéo, a mobili- dade social. Como varios dos trabalhos neste volume o do- ‘monstram, esse 60 modelo que hoje em dia ¢ prevalente na nossa sociedade eque se reproduz, sem grandes alteragées, desde oséculo passado, quando dos primeiros movimentos de educagio em massa (v. Gee, 1990). A esse modelo auté- nome, Street (op. eit.) contrapse 0 modelo ideoldgico, que afirma que as préticas de letramento, no plural, sio social eculturalmente determinadas, e, como tal, 0s significados especificos que a escrita assume para um grupo social de- pendem dos contextos ¢ instituigdes em que ela foi adqui- rida. Nao pressupée, esse modelo, uma relapao causal en- tre letramento e progresso ou civilizacéo, ou modemnidade, pois, ao invés de conceber um grande divisor entre grupos orais e letrados, ele pressupée a existéncia, @ investiga caracteristicas, de grandes reas de interface entre pré cas orais ¢ préticas letredes. O objetivo deste trabalho é familiarizar o leitor des- te volume com essas duas concepcées de letramento. A relevaneia dessa-familiarizagio ficard evidente, espero, na parte final deste trabslho, ao diseutir as praticas de letramento na escola, ea relagdo que se estabelees entre ‘0 modelo subjacente a essas praticas e 0 sucesso ou fra- a casso na construgdo de contextos facilitadores da trans- formagao dos alunos em sujeitos letrados 0 MODELO AUTONOMO DE LETRAMENTO A caracteristica de “autonomia” refere-se ao fato de ‘que ascritaseria, nesse modelo, um produto completo em si mesmo, que néo estaria preso ao contexto de sua produ- cho para ser interpretado; o proceso de interpretagio es- taria determinado pelo fiuncionamento légico interno a0 texto escrito, néo dependendo das (nem refletindo, portan- to) reformulagoes estratégicas que caracterizam a oralida- de, pois, nela, em fungao do inter‘ocator, mudam-se ramos, improvisa-se, enfim, utilizam-se outros prineipios que os regidos pela l6gica, a racionalidade, ou consisténcia inter- na, que acabam influenciando a forma da mensagem. As- sim, a escrita representaria uma ordem diferente de comu- nicagdo, distinta da oral, pois a interpretacdo desta tltima estaria ligada & fungao interpessoal da linguagem, as iden- tidades e relagies que interlocutores consiroem, ¢ recons- troem, durante a interagio. ~ Da énfase no funcionamente regide pela légica de- yrrem outras caracteristicas do modelo, dentre as quais jestacamos: 1.a correlacdo entre a aquisi¢ao da eserita e 0 desenvolvimento cognitivo; 2. a dicotomizagac entre a “oralidade e a escrita; 3. a atribuigdo de “poderes” e quali- dades intrinseeas A eserita, e por extensio, aos povos ou grupos quo possuem. 1) Letramento e desenvolvimento cognitivo Oargumento que correlaciona a aquisigao eo desen- volvimento da escrita com 0 desenvolvimento cognitive se utiliza, basicamente, de trabalhios empiricos e etnogratfi- cos que tém comparado as estratégias de resolugao de 22 problemas utilizadas por grupos letradoa e néo-letrades. De certa forme, a prépria configuragdo da experiéncia ou da observagdo parte do pressuposto da existéncia de um grande divisor entre grupos out povos que usam a escrita, e aqueles que nao a usam. Em alguns autores, a divisio letrado néo-letrado vem substitutir as divises mais anti- gas entre povos primitivos e avangados, pré-légicos e logi- e08, tradicionais ¢ modernos, pensamento mitico e pensa- mento cientifico, O argumento da abstragéo inerente & eserita (Goody, 1977; Olson, 1983) aponta diretamente para esse divisor, no cotejo de pensamento conereto versus pensamento abstrato. Goody (1977), que critica varios dos pardmetros dessa grande dicotomia, considera o parame- tro da abstragso diretamente dependente da escrita: Quando se fala do desenvolvimenty do per camento abstrato a partir da ciéncia do conereto, da mudan- @ dos signos para os conceites, do abandono da in- tuigéo, imaginagzo, pereepys, essas sto pouco mais do que formas rudimentares de avallar em termos gerais os tipos de processos envolvidos no cresci- mento cumulativedoconhecimenta sistemético, um crescimento que envolve procedimentos de aprendi- zagem complexos (além de saltos Imaginatives) ¢ que depende criticamente da presenga do livro. (op. cit.:150). A tese das conseqiténcias cognitivas da aquisigo da escrita pareceria se remontar as efetivas diferengas na re- solugio de problemas de classificagho, categorizagio, racio- ino dedutivo légico, entre outros, constatadas por Luria (1976) em pesquisas realizadas no infeio da década de 30, na regiges de Uzbekistan e Kirghizia na Unido Soviética, entre camponeses que ainda viviam sob as condigdes de um regime feudal (os mais velhos, analfabetos, quesubsistiam de economias tradicionais) e outros grupos que passavam 23 3 transformagies soioecontmicas ecultarais profundas a conseqiiéncia de seu engajamento na Revolugao (jo: vens, participantes de comunas, com alguns — de a 2 trés — anos de escolarizacso, e portanto, alabetizat. Comparando recolugio de una iarfa como ciegriza so nesses dois grupos, Luria aponta para diferencas sig nificativas quanto as = Mauger ar Te o, Assim, por exemplo, dado um conj e ee te ae clasificados como membros de uma categoria sete ca (por exemplo, um pepino e un xo pee vegetal, uma coruja eum peixe, a vida animal), mnais ovens, allabotivados eque iabahavam colstivrenie ampo comparavam os objetos utilizs eee nae ene sure que participavam de economias e formas de vida tradico nais tipicamente respondiam seguindo quar prstes, muitas vezes utilitérios, como esti ilustrado no ex (1)a seguir, retirado de Luria (op. cit.:82): ~ EXEMPLO1 | (@) (Batrovistador| Oque que osangun.c'a Sigua tim Se enicamun? i é les Eque 3 vistado] O que é semelhante entre eles = Lee pede lavar todo tipo de sujeira, entao pode lavar osangue também, ©) [Entrevistador] 0 que que um corvo e um peixe témnem sora? tre um, itrevistado] Tém muitas diferengas er vice pein Un vo na Sige, oun wea. “nica oka em qu se paren que o peice we figua eo orv0asvezes também, quando tem sede, ie atarefa consistia em criar Accstratégia para resolver a tarel meriar nice em o ‘08 dois objetos fusneionascom, ou inter 4 gissem. As diferengas nas formas de categorizacéo, acima ilustradas, eram sistemaiticas, reaparecendo em todas as \avefas solicitadas aos dois grupos. Uma ver que os sujcitos entravam em contato oom institiig6es como a escola, a escrita, a comuna, eles comecavam a utilizar principios de organizacao do conhecimento que nao estavam contextual. mente determinades. Oproblema de isolamento da variavel que determi- ha as difereneas, — se a escolarizagdo o4 a aquisigao da cscrita — ficou sem resposta por muito tempo: na maloria das vezes, letramento ¢ escolarizegso se déo simutitanea mente, uma vez que a escola é, em quase todas as socio. dades, a principal agéncia de letramento. Quase cinco décadas depois do estudo de Luria, Seribner e Cole (1981) investigaram um contexto na Libéria, que permitia isolar essas duas varidveis, Havia, entre os grupos Vai da Libé. 7 trés formas de eserita em uso: a eserita vai, adquirida informalmente, em contexto familiar, utilizada para cor. Tespondéncias sobre assuntos pessoais ¢ transagdes co merciais informais; a escrita inglesa, adquirida forma’. Tnente na escola, com fungées tipieamenta escolares, @ a eserita arabica, adquirida formalmente em eontexto reli. Si9s0, utilizada para a leitura dos textos sagrados ¢ para registros formais e, aparentemente, secrets. Os resultados da pesquisa desses autores apontam claramente que o tipo de “habilidade” que 6 deserivelvide depende da prética social em que o sujeito se engaja quan. do ele usa a eserita. Assim, o desenvolvimento de “habi dades cognitivas” que o modelo auténomo de letramonto atribui universalmente a eserita 6 conseqiiéneia da esco- larizacdo, pois foram apenas os sujeitos escolarizados, que conheciam a escrita inglesa, os que demonstraram dife- Tencas significativas sisteméticas quanto as formas de re- 25 aT solver tarefas de dassificagio, categorizagso, raciosinio l6gico dedutivo, memorizagao. Basiaronia, oa derenas se radzem numa bar ili jtagdo: 0s sujeitos escclarizados ennse- ulus eamstssenet, ero nips qu jam envolvidos na resolugdo das diversas tarefas a vateda Neo haoveentetanta ua malor cece ddos sujeitos escolarizados na resolugao de tarefas sque re uriam o que Seibner¢ Cole (op, cit) denominam de “etude abstrata”(1981:13D. E, muito importants aan ko da cada ums das tarefas mostra queso tant oo 1s envolvides naqui ; CEP tia un fenton eaibeco qromto 6 res Rtribuir a uma capadidade cognitiva, ou outre, 9s sie ip jue se define na resolucdo de uma determins ‘ a fo. Assim, por exemplo, os sujeitos nfo-escolarizados oe réan letradas em val eou arabico) rerlaram entra tremamente complexas diante Ge problemas fiistcos eom oexerpiifcado em 2, retiradh,sogunde 8 antares, de Piaget, 1929: Geribner e Cole, 1981: “EXEMPLO 2 todo mundo se reuniu e decidi CMe See ie amarionovlaeine sajna ceria chamada de sol. Tudo que vamos se & trocar os nomes. Poderfamos fazer isso se qu semos? nome no, quando vos fenss para a cama i noite, co Serato gun dos sujeitos refle- do os autores, as respostas le sacar console octane expetiea ar, endo ‘uma confusé co avras (como : confado ane exis pla pas cries 3, que respondiar usando ju eras Ne pice 6 60! brilha com meis eslor do vas ; 26 que a lua’). Por exemplo, eles rechagavam a possibilidade Ge troca de nomes wilizando justificativas toolégieas, po. rém mantendo a diferenga entre objeto e nome: “IA dues coisas no mundo: uma eoisa pode ser, © uma coisa pode ser falada, A coisa que 6 nfo pode sor mudada, Qualquer c»isa criada por Deus. Sua palavra, os nomes que Ble dew as coisas nao podem ser mudades” (op. cit.:142), A interpretagao de Scribner e Cole para as diferen- (2s atestadas entre os escolarizados e os ndo-eacolarize. dos correlaciona a presenga das “habitidades cognitivas a prética nos usos dos diferentes alfabetos, colocando as- sim em evidéncia a importancia do contexto social (v. também, a respeito, Tfounl, 1988). A maior capacidade Para verbalizar o conhecimento eos processos envolvidos numa tarefa € conseqiéncia de uma pratica diseursiva Privilegiada na escola que valoriza ndo apenas o saber mas 0 “saber dizer”, Os problemas da associagio da eserita 2o desenvol- vimento cognitive sao varios. O mais importante talver Saja o fato de que uma vez que os grupos ndo-letrades on ndo-escolarizados sao comparados com grupos letrados out escolarizados, estes altimas podem vir a ser a norma, 0 esperacio, 0 desejado, prineipalmente porque oo pesquisa. doves so membres de culturas ocidentais letradas. Quan. do a comparacéo é realizada, estamos a um passo do con, pbtbes deficitrias do grupos minoritarios (de Lemos, 1983, Brickson, 1987; Scares, 1986), concepedes estas Perigosas Pois podem forneser argumentos para reproduzir 0 pre~ conceito, chegando até a criar duas espécies, cognitiva- mente distintas: os que sabem ler e ecerever e os que nao sabem (v. a andlise de Ratto, noste volume, sobre a propa- ganda na televisao brasileira em que analfabetos sao rep. resentados come simios). a7 y ©) A dicotomizagdo de oralidade e da escrita Nas concepeses que privilegiam o estudo do leire- mento independentemente das prétieas discursivas nas quais a escrita esté integrada, a prética de letramento fo- calizada 6 aquela que leva produgao do texto tipo ensaio (isto 6, 0 texto expositivo e/ou argumentative) justamente aquele texto que mais se diferencia da oralidade, particu- larmente se 0 padrao da oralidade é o diflogo. Olson e Hil- dyard (1983) — o primeiro caracterizado por Street (1984, 1993) camo um dos proponentes da verséo mais marcada do modelo auténomo— dizem a respeito que os enunciades orais conversacionais tendem a ser pouco planejades, informalmente empregados, eex- pressam contetides informal. Os textos escritoc, ‘por outro lado, tendem a ser cuidadosamente plane- jados, utilizades seletivamente, e expressaim con juntos formais de conhecimento (1985; 41). Entretanto, as diferengas so bem mais relativas quando 0 foco nao est nas difereneas e quando a concep- go néo é polar, Em primeire lugar, porque nem toda es- crita 6 formal e planejada, nem toda oralidade 6 informal sem planejamento. As cartas pessoais, por exemplo, tem mais semelhangas com a conversagao do que a conversa- sao%em com uma palestra inaugural, pois esta altima, muitas vezes, parece ter apenas a modalidade —isto 6, 0 fato de ser falada — em comum com outras formas orais. ‘Alguns autores que trabalham com a interface entre a oralidade oa eserita (por exemplo, Tannen, 1960; Chafe, 1984) tém proposto um continuo, em vez de pélos extre- mos de diferenciago entre as duas modalidades. Nese continuo, a oralidade partilharia de mais tragos com a escrita quando o foco esta no contetido (por exernplo, uma aula), a que Halliday chama de funedo ideacional da lin- 28 guagem, ¢ a escrita, por sua ver, toria mais tragos em comum com a fala quando o foeo muda da fun¢éo ideucio. nal para a fungéointerpessoal, isto 6, quando a identidace dos participantes, © a relagdo que se quer estabelecer com 2 audiéneia eu com o interlocutor sao mas releventes pa- comunicasdo (por exemple, ganda vender um preduto,nojomal s PoPagends para Em segundo lugar, apés as reflexes sabre lingtagom, dae ondises quo agenda iversas vertantes da andlise do discurso, isto 6, anilives que consideram que a pratica social € constitutiva da lin- guagem, a reducéo da dimensao interpessoal ne eserita fica diffeil de ser sustentada, A linguagem, sela qual fo ‘sua modalidade de comunicagéo é, por natureza, polifS. nica, incorporando o diélogo com vozes outras que as do enuneiador. Estabelecendo o enunciado, au aque nés cha. tarfamos de text, como a unidade real da comunicacao discursiva, Bakhtin insiste na necossidade de focalizar o lingitstico como denominador comum dos mais diversos tines de textes, apetar de suas grandes dierengas for malted oe nplexidede intrinseea dos generos a que eles ___ 0s géneros discursivos seaunditios, sin Stes deni pr sy mais complexes, como porque absorvem ¢ reelaborarn os géncros mais simples da comunicagao diseursiva imediata, Esses generos complexos — nos diz Bakhtin —. tais come romances, dramas, relatériascientfcos do todo tpo, gran. generos jomnelisticos ete. “surgem em candigées de co- municagao cultural mais complexa, relativamente mais de senvolvida e organizada, sobretudo ‘escrita...” (1990;250). Adotando o pressuposto do dialogi inguagem de logismona | © da polifonia do texto, a oralidade e a escrita poder aot 20 sss“ investigadas néo apenas da porspectiva da diferenga mas também da perspectiva da somelhanga, do eompartilhado. ‘Tal perspectiva ¢ importante, pois, como Bakhtin jé previa, (© menosprezo da natureza do enunciado ea indife- renga pata com os detalhes dos aspectos genéricos €o discurso levam, em qualqueresfora da investiga- ‘60, a0 formalismo e a uma excessiva abstrag Gesvirtuam o eariter histirico da investigndo, en: fraquecem o vineulo da Hinguagem com a vide 4990251). Da perspectiva da pratiea, a concepeao dialégica da linguagem, a incorporagao do outro no texto do autor, nos permite pensar numa outra dimensdo para o ensino da ‘escrita, em que o abstrato, que remove os vinculos com, e osuporte de, a oralidade no processo de aquisicao da es- ctita, ndo 6 0 elemento de maior saliéneia. Um olhar que vaja a linguagem oral ea escrita nao através das diferen- gas formais, mas através das semelhancas constitutivas, permite que pensemos a aquisigao da escrita como um processo que dé continuidade ao desenvolvimento lingtifs- tivo dacrianga, substitaindo 0 processo de ruptura, que subjaz @ determina a praxis escolar (v. por exemplo, de Lemos] 983; Terzi, 1992, e neste velume). S& focalizarmos, por outro lado, 0s processos de pro- dugdo da fala © da escrita, a pesquisa etnogréfica © expe- rimental aporta dados importantes que também mostram odenominador commum om ambos: as praticas letradas em instituigées como a familia, que sio as instituigées que introduzem a crianga no mundo da eserita com sucesso, so praticas coletivas, em que 0 conhecimente aobro a es crita 6 construido através da volaboracéo, numa relagio quase que tutorial (a dfade), ou através da participagao ‘em pequenos grupos, que discatem a melhor maneira de redigir uma carta, ou comentam e interpretam coletiva- 30 mente uma carta oficial, um texto no jornal (ef. Heath, 1083). O suporte do adulto nesses eventos de letramento éessencial, tanto como no proceso de aquisigio da orali- cade, como também 6 esseneial que o livro, a escrita, seja elemento significativo nessas interagées. Por todas essas razoes, faz mais sentido reencaminhar o ensino da eserita ta escola priorizandoo que ha de eomum erelegando a um segundo plano a diferenga. \ 2/ Qualidades intrinsecas da escrita ‘Um corolario da tese das conseqiéncias cognitivas da aquisigdo da escrita (Olson, 1981, 1984) 6a incorpora- ao desse poder transformador denossas estruturas men- tais como atributo intrinseco da eserita. Q poder libera- dor da escrita ja 6 predicado quando se tece o argumento de que a posse da escrita permite que o possuidor, seja ele um individuo ou um povo, dedique suas faculdades men- tais ao exereicio de operagies mais abstratas, superiores Cng (1982: 83), por exemplo, caracteriza negativamente fala quando nos diz, que ela 6 restritiva: “nas eulturas orais, a restri¢do das palavras ao sonore determina néo sb modos de expressfio mas também processos mentais’. De fato, num influente estudo que apresenta a tese da escrita enquanto tecnologia (e pertanto artificial, em oposigao ao natural), Ong (op. cit.) mantém que ‘Comp outras criagdes artificiais e de fato mais do que qualquer outra, a escrita ¢ absolutamente valiosa e alias essencial para a realizapae do po- tencial interior humane mais completo. As tecno- logias nao sao meros auxiliares externos, mas também transformacées interaas do nossa ser ciente (consciousness), ¢ 6 sio muito mais ainda quando elas afetam 2 palavra. A escrita aumenta st eondligho de ser cionte. (1982:82) 31 Essa conclusdo esta fundamentada numa complex Ihadores sto analfabetos (da entrevista de um om- presério paulista na Follta de S. Paulo, 7/3/1993). — Agente necessério no processo de emancipagéo da mu- her - ; dificil entender quea prépria emancipacio da mulher soja Fungo da escolarizagao: enquanto os conhecimentos ites se transmitem s6 dentro do lar e ligados a figura materna, também se assiste & reprodugio da discriminagio em razao do sexo. (O ~ Globo, 13/3990). — Agente necessério para o avango espiritual: % O analfabetismo inibe o Progresso oa produtivida- de, impede o avanco cultural eespiritual,e ajuda a manter a dependéncia crinica de ‘sociedades intei- ras (Correio Braziliense, T/9/SR9). A metéfora do analfabetismo como elemento cer- ceador da liberdade e sebrevivencia ¢ comum nas campa- nhas pablieas ou privadas em prol da alfabetizagao uni- Versal. Recentemente, por exemplo, uma propaganda te. levisiva apresentava o analfabeto na figura de um he. mem com as méos atadas, dentro de um carro que lenta, mente ia submergindo num lago e que néo conseguia, apesar de suas tentativas desesperadas, se livrar de suas amarras para se salvar, enquanto uma voz comparava explicitamente oretrato desse homem com a luta do anal. fabeto para sobreviver na sociedade brasileira ‘Trata-se, como vomos, de uma grandé gama de con. soghineias para euja postulagio nao existe evidéncia his. Lérica. Em sous estudos sobre a histéria do letramento, Graff (op. cit.) mostra, através da anélise de esforgos con- cretos de.alfabetizagio em massa em paises do Hemisféria Norte no século passado, que ndo houye um efeito estatis. ticamente significative da alfabetizagéo na mobilidade sa. cial. Pelo eontrério, alguns individuos conseguiram ascon. sto social mas os grandes grupos de pobres e diserimina. dos ficaram ainda mais pobres. Nao existe evidéneia para correlagéo entre letramento universal « desenvolvimen. ‘o¢condmico, igualdade social, modernizagio. Entretanto, asvozes de historiadores, educadores, sociélogosraras ve. zesse fazem ouvirna midia ontreas vozes mais fortes dos politicos profissionais e dos burocratas. Quando 0 fazer, éjustamente para desmistificar o letramento: Sao os mais pobres, os mesmos que néo puderam participar do banquete do milagre, aqueles que fa- em crescer os indices de analfabetismo. E nio sao 3a ee pobres porque sic analfabetos. Sdo analfabetos por: que so pobres. (Sérgio Haddad, “O Analfabetismo no Brasil’, na Folha deS, Pauto, 1989). modelo auténomo tem o agravante de atribuir 0 fracasso e a responsabilidade por esse fracasso ao indivi- duo que pertence ao grande grupo dos pobres e margina- lizados nas sociedades tecnolégicas (Gee, 1990; ef. Ratto, neste volume). E comum a percepeaio do problema em termes individuais, contraditérios & realidade social, nas avaliagdes dos analfabetos eventualmente citades no jor- nal: assim, uma analfabeta paraibana, estado onde mais de 50% da populagdo 6 analfabeta, atribui primeiro acs seus pais essa responsabilidade ao relatar que “nunca freqientou a escola quando erianga ‘por causa da igno- rrancia das pais” e logo culpa-se a si mesma por ter desis- tidoda escola quando adulta, Apesar do relato que fazdas condigdes em que tentou estudar (“as aulas eram a noite ela dormia, cansada do trabalho de faxineira que tinha de die”), ela afirma: “Isso foi ha 15 anos. Hoje eu me arrependo de nio ter continuado para aprender mais.” 250 MODELO IDEOLOGICO DB LETRAMENTO Street (1984, 1993) denomina o modelo alternativo de Ketramento ideolégico para destacar explicitamente 0 fato tle que todas as praticas de letramento sao aspectos néo apenas da cultura mas também das estruturas de poder numa sociedade.' Segundo Street, qualquer cetudo otrogrificodoletramentontastaré, por implicapao, ua significdncia para diferenciagses {que aio feta com base no poder, na autoridade, na 4 Notosequeaquijésefaledepritis, ro plural, nose subentendendoentio ‘nenistéacin de apenas um tipo de lotramento, neat, como no modelo aut 38 classe social, a partir da intorpretagiio desses concei- ton lapesquiador. Asin, equetaloses ees ‘sobre o letramento tenio um vies ‘desse tipo, faz mais ‘sentido, do ponto de vista da peoquisa seailémien admitire revelar, de inicio, o sistoma ideoldgico uti, lizado, pois assim ele pode ser abortamente catuda- do, contsstado refinado (1983:9, 7 O modelo ideolégico, portanto, nao deve ser dio como uma nogagéo de resultados expecticns deseo. realizados na concepedo autonoma do letramente Os correlatos cognitivos da aquisicéo da escrta ne escola lovem ser entendidos em relagao as estruturas cultursie ede poder quo o contexto deaquisieso daescrita na escola representa. Por outro lado, como os estudos neste volume atestam, 0 questionamento dos efeitos universais do lo. tamento alarga campo de investigacio consideravel, mente, Pois aspecios especifices do fendmeno poder ser examinados relativamente a questies outras que ormancy divisor entre oralidadee escrita, » mesmo as consequén, €ias cognitivas podem ser estudadas enquanto fendmienes complexes euiacorrlagao simplista om a aquisiego da atita eeanco a exmplesidade do fenimeno (Olver, Priticas discursivas e eventos de letramento. __ 0 nosso entendimento das diferen; discursivas de grupos socivecondimicas distintes deed at formas om quocles integram a escrita no seu eotidiano tem avangado devido a estudos que adotam um pressupesto «ve poderia ser considerado bésico no modelo ideol6gicn, 2 saber, que as préticas de letramento mudam segundo o contexto. Assim, através de um estudo etnogréfien de quenas comunidades no Sul dos Estados Unidos, Heath (1882, 198%) mostra que’o modelo universal de oriontagae 89 letrada;o modelo prevalentens escola, constitui uma opor- tunidade de continuagio do desenvolvimento lingtiistico para criangas que foram sociabilizadas por grupos majori- ‘érias, altamente escolarizados, mas representa uma rup- tura nas formas de fazer sentido a partir da oserita para criangas fora desses grupos, sojam clos pobres ou do classe média com baixa escolarizagao. A unidade de andlise no estudo da autora € 0 evento de letramento, isto é, situagbes em que a escrita constitui parte essencial para fazer sentido da situago, tanto em rolagiio a intaragao entre os partieipantes como em rolago aos processos € estratégias interpretativas. Por exemplo, ‘uma atividade como a estorinha antes de dormir, evento de Jetramento existente em ambas as comunidades de classe ‘média do ponto de vista eoondmico, mas diferenciadas pelo nivel de escolarizagéo, revela padrées diferenciados para, nas palavras de Heath, “extrair significado da escrita’. Re- senharemos as préticas de letramento desses dois grupos, mais préximos, justamente porque em ambos hé eventos superficialmente similares mas profundamente diferentes, Jé as praticas discursivas de um terceiro grupo estudado pela-gutora aparecem radicalmente diferentes: néio hi es- torinhas na hora de dormir, a leitura 6uma atividade cole- tiva de extragio de significado ete, De acorde com a autora (1982:52-62), no grupo ma- joritario, isto 6, famtflias com nfvel de escolarizagdo alto (universitério), adulto e crianga alternam os turnos num didlogo durante o evento de letramento: a mae ou o adulto dirige a ateneao da crianga para olivro, lhe faz perguntas (fo qué?”, “quando?” rotula itens na pégina, tratando a figura bidimensional como se fosse um objeto tridimen- sional, ¢ estabelecendo rotinas para que a crianga fale de um objeto arbitréria, descontextualizado, cuja existancia 40. se dé somente no papel. J4 pelos dois anos de idade, a crianga tem familiaridade com a mais importante estru- tura de tures da sala de aula; inisiagdo, resposta, ava- liagao (Sinclair & Coulthard, 1975; Cazden, 1969). Isto 6, Tos Seus anos pré escolares, no processo desociabilizagao priméria do lar, a crianga aprende uma maneira de falar informativamonte sobre o livroe a escrita que logo depois escola retoma na interagao grupal, Esse padrao de letramento incipiente tem outras caracter{sticas observadas em todas as familias com nivel alto deescolarizagéo. Os livros e a informagéo proveniente dos livros (personagens dos cléssicos infantis, por exem- plo) ceupam ura lugar central no quarto da crianga, ¢ jé ‘208 sois moses ela presta atengdo a esses elementos deco- rativos. Nessa idade comega a reconhecer perguntas sobre 08 livros, e tao logo a crianga comega a verbalizar 0 adulio. asexpande e re-clabora, abandonando o simples pedido de rouilos (“O que €?°) para incluir perguntas sobre as atri- butos ("O que o gato disse”, “De que cor era o gato”). Os adultos verbalizam constantemente, como se se tratasse de um didlogo continuo, sobre elementos que o erianca conhecetr nos livros (‘Olha esse gato, igual ao x. Serd que 0 dono dele também 6 muito pobre”’)./A partir dos dois anos, as criangas comegam a inventar, contar histérias que ndo sio verdadeiras, eos adultos encotajam esse tipo de atividade verbal. Além disso, hd uma atitude generali- vada de tratar o livro como se fosse uma diversda.' Assim, Por exemplo, quando a crienga tem que se engajar numa alividade tediasa, como esperar para ser atendida num consultério, os adultos se valem do livro para quebrar 0 tédio, ou aproveitam esse espao para fazer com que a crianga descreva, nomeie, eonte como se senta. Hi, de fato uma verbslizacdo continua, concomitantemente a realiza- (do de outras atividades. Quando a erianga tem mais ou a ‘menos trés anos, oadulto espera que ela se comporte como um membro numa eudiéncia, escutando a estéria em si- Tancio eesperando até queo adulto Thefaea uma pergunta. Nesse periodo, a crianga comega a “ler” (fingir que est Jondo) para o adulto. Os eventos de letramento, nessas familias, quais- quer que eles sejam, sao altamente valorizados, pois qual- quer iniciativa da crianea de comegar um evento de letra- mento faz. com que tima interrupeao de uma conversacio entre os adultos, uma inverdade, uma tétiea diversiva por parte da crianga sejam aceitaveis e bemvindas. No grupo de baixa escolarizagio, segundo Heath, as criangas também tm um ambiente colorido, decorado com ilustragses de contos de ninar. Possuem livros que ilustram chjetos familiares e que enfatizam habilidades como abo- toar, fazer lapos, além de livros de estorinhas infantis. A autora distingue trés estdgios diferentes na leitura de esto- rinhas para dormir no processso de sociabilizagéo priméria da crianga nesse grupo. Num primeiro estagio, 0 adulto reconta de maneira simplificada as estérias dos livros, in- troduz informagdes diseretas sobre a escrita, como nomes das letas, nimeros, cores, e nomes de chjetos familiares através de perguntas. A crianga responde, ‘Ié” o material 20s adultos, memoriza trechos. Nao ha, noentanto, porgun- tas ou explicagées analigicas que relacionem as cemelhan- sase diferencas existentes entre as figuras bidimensionais ¢ 05 objetos reais, néo havendo, assim, uma transferénda da compreensao da escrita, das atividades realizadas e das habilidades desenvolvidas durante o evento de letramento para outros contextos. Num segundo estégia, quando a eri- anga quer falar durente a sessdo de estorinhas, ela nao é mais encorajada a participar; espora-se que sua participa- 0 se restrinja a de um observador que ira ser entretido “2 pela leiturra, ou que devers aproonder a informagao do livro, ara depois reconté-la respondendo a perguntas do adulto, Num terceiro estagio, a crianga conhece livros de exercicios sobre formas, cores, ¢ seu trabalho com os livros 6 monito- rado pelo adulto, Durante essesanos pré-escolares, os adul- tos encorajam e praticam, repetidas vezes, regras sobre o ‘uso correto da palavra escrita, que consideram importante para 0 sucesso escolar. p ; ~~" Uma diferenga mareante entre os dois grupos 6 que | 08 adultos com menos escolarizagso néo estendem nem o contetido nem as praticas dos eventos de letramento a ou- {70s contextos, lembranco as criangas, na presenea de chje- tos do mundo real, de eventos ou objetes semelhantes nos livros que conheeem. Nao existem a verbalizacdo e retoma- das constantes que caracterizam 0 grupo majoritério. Ati- vidades do cotidiane, como cozinhar ou montar um brinquo- do, no séo comentadas ou descritas numa série de passes ‘ou procedimentos seqiienciais: por exemple, para ensinar a crianga a segurar a bola na forma correta, em vez de dizer “coloea o pologar neste lugar e depois abre os dedos” como 0 adulto das classes majoritérias fez, o adulto nos grupos menos escolarizadlos confia nos poderes de observacdo da erianga dizendo apenas ‘faz assim, 6”, Outra diferenca notavel 6 que as eriangas das famf- lias de baixa escolarizapéo ndo recebem encorajamento quando inventam estérias, poie apenas alguns membros da comunidade tém o papel de contadores de est6rias; além disso, as estérias valorizadas pela comunidade séo relatos factuais que servem para enfatizar alguma ligdo moral. Quando as eriangas de ambos os grupos esiudados chegam & exeola, clas sto bem-sucedidas nas trtss primel- a8 séries, quando o trabalho escolar com o livra se centra 43 ha leitura de partes do texto, ¢ na resposta a perguntas sobre informagoes explicitas da estéria. Na extrapolacso para outros contextos (por exemplo, a opiniao sobre a esté- ria, ou analogias com situagdes do eotidiano), sio as crian- ‘as dos grupos majoritarios as que participam plenamen- te, Quando chegam & quarta série, as diferengas entre os dois grupos siio marcadas. Como a escola pressupde quea erianga pode eatender as suas pritticas em eventos de lo- tamento a outros contestos, como de fato 60 caso da crian- ga majoritdria, que jé teve ampla pratica pré-escolar nes- sas formas discursives na dfade, comsua mde, a escolango ensina essas eriangas a fazé-lo, O processo de reproducao da classe social, que leva 4 desisténcia quando a obrigato- riedade de freqiientar a escola jé foi atingida, restabelece- se em mais um lugar, justamente naquele onde estariam atuando os agentes e os processos que poderiam mudar o destino (Bourdieu & Passeron, 1970): eomo sous pais, essas eriangas nao chegardo 4 universidade. [AS PRATICAS DE LI'TRAMENTO NA ESCOLA @s resultados do estudo de Heath acima resenhado mostram com clareza que o modelo que determina as pra- tices eagolares 6 0 modelo autnomo de letramento, que ‘considera a aquisigdo da escrita como um processo neutro, que, ingependentemente de consideragées contextuais & sociais, deve promover aquelas atividades necessdrias pa- ra desenvalver no aluno, em iiltima instaneia, como objet vo final do processo, a capacidade de interpretar e eserever taxtos abstratos, dos géneros expositivo ¢ argumentativo, dos quais 0 protétipo seria o texto tipo ensaio. ‘As praticas escolares nesse contexto americano esta- riam constitufdas por préticas de letramento ideologica- mente determinadas, que encaminham oalino por trilhas previamente determinadas em fungao de sua classe social 4 e/et etnia do aluno, nao em fungao de sua inteligéncia ou potencialidade, Pssas trilhas efotivamente reproduzom as desigualdades do sistema. Segundo Geo (1990), este tipo de atrelamento (tracking) 6 provalente nas escolas america- nas, ¢ determina as atitudes de ambos —o professor e 0 aluno, Num extenso estudo realizado por J. Oakes e rese- ahado por Gee (op. cit.) a autora descabriu, ao entrevistar alunos e professores, fatos significativos sobre esse proces- so:enquanto a diseiplina, a honestidade, o respeito, o dorai- nio de habilidades para seguir instrugses eram os chjetivos considerados desejveis pars os akunosno atrelamenta pro- fissionalizante (ow tracking), para os gruposno atrelamen- to académico superior (high tracking), os objetives visados polo professor, ¢ apontados pelos préprios alunos como-o mais importante que tinham aprendido na escola, consis- tiam no desenvolvimento de habilidades verbais e analti- ‘as, pensamente critico, capacidade de comunicacdo. Os estudes realizados no eontexto brasileiro mos- fram uma situagéo semelhante quanto & reprodugao do status quo pela escola, situagao esta, entretanto, muito egravada pela pobreza e pelo analfabetismo generaliza- €o, que tornam as conseqttencias desse processo cidlico de Teprodugao da desigualdade muito mais desumanas. ‘Uma pritica escolar que visa ao dominio da eserita Fars a produgo do um exto expsitivo abstrato, interna. mente consistente, pressupse uma entre a oralidad ts exrita. Por iso pata sor eneronts oon essa concepea0, a pratica escolar deveria se finda. mentar numa anélise das diferengas entre ambas as mo- dalidades, comezando por aquelas diferencas que decor- rem da transmutagéo de ume mensagem de um meio fini. © para o visual, que se cantram na fugacidade de uma versus a permanéncia da outra: assim, a possibilidade de 45 ‘mais planejamento, uma maior potencialidade de reviséo eportanto de exatidio no texto, a exploragéo das diversas fungées da escrita, comoas fungies de apoio para a memo- via, de transmisstio de contetidos independente das limita- ‘goes do espago.e do tempo seriam relevantes nesse enfoque. Segundo essa mesma concepedo de letramento, que analisa’a escrita enquanto objeto, o ensino teria como ob- Jetivo iniciar, e avangar, um processo que culminaria na producdio de tm objeto ja definido de anteméo através de suas diferencas formais eam o texto oral. Como asco cbjoto tem earacteristicas lexicais e sintétieas quo o diferenciam da oralidade, o ensino teria que estar baseado num conhe- cimento contrastivo das duas modalidades. Esse objeto revelaria também mareas estruturais de um planejamen- to prévio que resultasse num texto ordenado, seqdencia- do, amarrado num tecido que constitai alguma forma es- trutural reconhectvel, do genero narrativo, expositivo, ar- gumentativo. ‘No plano referencial, ou ideacional, isto 6, dos con- tedidas, esse objeto seria maisabstrato do que o texto oral,: ‘embora néo seja tdo evidente em que consista essa abs- trag&g. Teriamos, por um lado, o grau de abstrardo que seria-determinado pelo distanciamento do interlocutor, ausente do contexte imediato de produgio do texto, resul- tando assim num texto com menos mareas de interpes- soalidade. Também 2 dimensio abstrata poderia estar determinada pelo rito de iniciagdo 2 eserita. O iniciado pode ir se adentrando num universe informacional cada vex, mais restrito Aqueles iniciados, ondo a intertoxtuali- dade, as roferéneias, oxplicitas ou ndo, a outros textos excrites server como mecanismo de exclusio de grandes grupos. Por tiltimo, terfamos a progressio e o desenvolvi- mento teméticos, mais abstrates porque seriam de res- 46 ponsabilidade do autor sem o apoio da interlocugéo ime- diata, que permite a construcao conjunta de texto, e por- tanto o desenvolvimento de tépicos conjuntamente, em grande parte das comunicagées orais, Sabemos, entretanto, através de estudos ‘sobre reda- ‘ges do vestibulandes, por exemplo, que so poucos os al- nos quemactram conhecimento sobre e dominio no uso des- 8e objeto que decorreria da andlise contrastiva nas linhas acima. Para citar apenas um exemplo, estudos sobre o léx £0 (Azevedo, 1989) mostram uma conscientizagdo dos al- hos sobre as diferenpas entre a oralidade e a escrita, mas resultam na criagio de formas novas, pesadas do ponto de vista inflexional (como “linguajdveis” por “Talantes’, “afe- tuesidade” por “afeto’), revelando uma concepgio vaga, im- pressiontstica, das diferenas. Similarmenta, estudos sobro leitura por alunos com oito ou mais anos de oscclarizago inclusive universitarios e egrossos de cursos de magistério) mostram que o texto expositivo tipo jomalistico acarreta problemas de compreenséo para grupos significativos de leitores nesses niveie (v. por exemplo, Carraher & Santos, 1984; Kleiman, 1969; Oliveira, 1994), No entanto, as deficiéncias do sistema edueacional na formegao de sujeitos plenamente letrados néo decorrem apenas do fato de o professor nao ser um representante pleno da cultura letrada (v. Kleiman, 1991) nem das falhas num currfeulo que néo instrumentaliza o professor para 9 ensino. As falhas, acredita, séo mais profundas pois so decorrentes dos prépries prescupostes que subjazem ao modelo de letramento escolar. A coneepgio de ensino da eserita como 0 desenvol vimento das habilidades necessérias para produzir uma linguagem cada vez mais abstrata esté em contradigao 4a com outros modelos que considoram a aquisigéo da eseri- ta como uma pritica discursiva quo na medida em que possibilita uma leitura critica da realidade, s¢ constitul como um importante instru- mento de resgate da ciadania e que reforga 0 engn- jamento do cidado nas movimentos socais que lu- tam pela methoria da qualidade de vida © pola transformagao social Freire, 1991:68). O resgate da cidadania, no caso dos grupos marginaliza- és, passa necessariamente pela transformagio de priti- cas socials tao excludentes como as da escola brasileira, ¢ tum dos lugares dessa transformagéo poderia ser’ a des- construgéo da eoncepeao do letramento domninante, Letramento e alfabetizagao de adultos Os estudos etnogrificas, que examinam a construgao das préticas escolares na inveragao, seconstituern num cam- po propfelo para a transformagao da préxis, uma vez que ‘esses estudos permitem perceber a inscrigto, no microcon- texto da interagao em sala de aula, de questies macrosso- ais, otto a ideologia do letramento. O contexto da aula de alfabetizagao de adultos ¢ particularmente revelador por- que 05%ontextos de aprendizagem, formais ou informais, ‘gem como catalisadores das diferengas nos sistemas de erengas valores de grupos letrados ¢ ndo-letrados (v. Sig. ‘orini, neste volume). Apresentarei a seguir, dados da nos- ss pesquisa sobre a interapio na aula de alfabetizagio de adultos, focalizando a potencialidade de transformagao da coneepedo de letramento dominante nesses contextos. 48 Praticas discursivas em conflito: 4 construgao de fungées nao-complementares A interagao na aula de alfabetizagao de adolescon- tes ¢ adultes ¢ potencialmente conflitiva, pois nela se visa 20 deslocamento e substituigéio das préticas diseursivas sb aluno por outras préticas, da sociedade dominante. Ae ‘mesmo tempo em que a aquisieao das novas praticas ¢ Percebida como necesséria para a sobrevivéncia o a mo. bilidade social na sociedade tecnologizada, ossa aquisi¢do Se constitui no prentincio do abandono das priticas die. cursivas familiares, Acredito que o distanciamento entre a lingua oral ¢ a lingua escrita devido & especializacéo e ao funcionamen. ‘odiferenciado de ambas configura uma situacao digléasi_ ca, nao de Iinguas em contato, mas de I{nguas em conflito (Ferguson, 1959; Hamel, 1983; Martin-Jones, 1980). Tra. tase de duas modalidades que constituiriam variedades discursivas da mesma lingua, sendo que eada uma tem status e prestigios diferentes, e que também teriam dife, Tengas devido as suas fisngées diferenciadas na sociedade (v. Bortoni, neste volume), ‘Também nos nfveis formais — lexical, merfol6gico, sintético —do sistoma, hé diferengas, Estas se acentuam mais ainda quando consideramos. que: apenas a lingua escrita tem uma horanga literéria de pres- Ugio, que codifica, reproduz o divulga os valores cultuirais dos grupos de poder da comunidade. Também apenas a lingua escrita tem sido objeto de processos de ‘gramaticali- zacao, dicionarizaso e normatizagéo. Do ponto de vista S6cio-histérico, as condigdes para a configuragao de uma situagio digléssiea de linguas em confito também estan Bresentes: 0 uso da eserita esta limitado a uma pequena elite, ¢ a situagéo de usos, fungdes e contextos diferencia: os tom uma realidade histérica, pois emerge juntamente 9 com a burocracia letrada nas cidades no século XVI (cf. Rama, 1985). | Tal potencialidade de confito nos permite entender melhor a inadequagao de préticas pedagégicas que, aps- sar de parecerem estar sustentadas em prinefpios peda- gogicos razodveis, nao sao bem-sucedidas. Gornidcanes © exemplo a seguir, numa aula de produgao coletiva de um texto (uma receita), em que o que pareceria estar sustentando a aedo pedagigica ¢, por um lado, a instru- mentalizagio para uma atividede, profissional ou néo, e, por outro, uma estratégia pedagégica de utilizar oconhe- cimento anterior do aluno pare construir 0 nove: ‘EXEMPLO 3 = Profa.: (..) que que vai (faltar) a gente sabé? ... Vou dé um exemplo, Presta atengio aqui. ... Bu tenho uma receita de bolo de fubé. E eu digoassim, ode.... Qual éo titulo da receita? Bolo de fubs. Que que vai.né? Quais sio os ingredientes? Ah, vai .. diuas xicaras de fubé, ahmm... és colheres de fari- nha de trig, una colhé de p6 royal, dois ovos, um oppo e meio de agicar .. cabou af a receita? ‘Alunos: (quase inaudivel) Nao ‘Profa.: Oque que esta faltando? Ne:Oleite a , Broth: Nio, (faz de conta) que eu fale todos as in- one tina leite, também. Que é que vai falta fa gente nabé ainda? Ne: Margarina Profa.: Nao, eu num tou falando que t4 faltando ingrediente. O que que vai falté a gente sabe? Ne: Fazé _. Profi: Into! © como que a gent fica sabendo isso’ Vi: Ah, fica sabeno 6, .. no jeito de fazé ela todinha 50 A professora est4 tentando construir uma fungao, Para a escrita, quo ora perfeitamente preenchida pela oralidade. As alunas néo tém dificuldade em relagéo ao Procedimente envolvido no uso de uma receita; a incom. preensae se estabelece relativamente as caracterfsticas formais de uma receita escrita. Note-se quo o foco na interagao acima esta na forma desse tipo de texto. Numa outra aula observada, do alfabetizagao de mulheres, 2 Professora promovia atividades coletivas para aprender a fazer sabéo, aprender a fazer massa de modelar ete. Nesse contexto, essas receitas, escritas depois das ativi. dades “para nao esquecer como a gente fez” circulavam naturalmente no grupo, e logo outres receitas, néo apoia- das contextualmente por atividades conjuntamente de- senvolvidas em sala de aula, foram trazidas pelas alunas que queriam partilhar algum conhecimento, \ No primeiro grupo (exemplo 3), que adota uma pers- ectiva ideacional, com énfase no conteddo, para introdu- air essa nova modalidade de reeeitas, a aceitacao dessa bratiea traz consigo a desestruturagao de uma pritica dis. cursiva oral eficiente, se constituindo af numa Perda fun- cional na Ifngua do aluno. Podemos atribuir ao modelo de Jetramento aut6nomo da professora a inadequagio da c=. \ratégia: pressupie-se que a escrita seria um facilitador neutro dos processos mneménicos e mentais. Porém, como Heath (1982) aponta, nem todos os grupos letrados verba. lizam ou se apdiam na eserita para analisar a seqiiéncia de passes envolvides na realizagéo de urna tarefa, e, com cer. teza, 0s grupos de tradigéo oral tem outras estratégias Para cuxiliar a memsria, Certamente introduzir para gru- pos de tradigao mais oral uma fungdo restrita, numa pra. tica que representa uma mera tradugao da fala para a escrita édecorrente de uma concepeao de letramento auté. 51 nom contestvel, pois postula fungées universais da escri- ta independentes do contexto de uso, Identidades em conilito: a (re)construgao de um sujeito menor ‘Um dos pressupostos mais prevalentes, populares e duradouros do/letramento auténomo, que, como vimos anteriormente, pode se reproduzir tanto na fala de um ministro como na fala do analfabeto, 6 0 das conse cias cognitivas da alfabetizagao, Sndependnterenia 8 contextos e praticas de aquisi¢ao da escrita. Nas beans mais grosseiras, 0 ndo-alfabetizado nao tem nem & inal géncia da espécie: 6 um stmio, como a propaganda er siva nos dizia, ou um bobo como um dos adolescent infere da fala de outra das professoras durante a conciu- sdo de uma aula de leitura: EXEMPLO4 ; fa.: Por que seria bom sabé Ié escrev como poeedie ett orcs -gnganado? Voeé 6 enganado, E? ; An: Eu acho que nao. Num precisa. Bamema coisa! 7B: Tem que usd a cabopa 04. B tude igual, uma ‘Pessoa que num cabe Ié, num pode 6é engunada née. Btudo igual. ‘Ade: Ble foi esperto porque ele desmanchou o negé- ‘An: Mas ele perecbeu que tava sendo enganado, Néo sabé 1é num significa que é bobo cosso designificagaona estrutura de pergun- tase ue exemple (4), 0 aluno An inicia 0 pace so de negagao da pressuposigao subjacente 20 enuretile da professora (a escrita nos torna mais espertos), seme ‘comprometer totalmente com essa negago, como 0 52 da modalidade subjetiva “eu echo” indicarla. Os seus co- legas, entrotanto, retomam a proposigao de forma catog6- rica, indicando maior comprometimento com 0 ¥i lor de verdade da proposigao, como o presente categérieo e a dupla negagao no ultimo turno indieam, (‘ndo sabé 1é num significa que é bobo”), Ora, na interagao, 0 uso de modalidades que significam uma creseente adesdo A pro- Posicdo implica muito mais a construgéio de elos de soli- Gariedade entre os interlocutores, do que crenga no valor de verdade da proposigio (v. Fairclough, 1992). A solida- riedade assim se constitui numa estrategia que reforga a identidade do grupo numa situagao de conflito, mas que, 20 mesmo tempo, torna disfuncional a participagéo dos alunos no curso, geralmente motivada pela mesma can. cepgdo de letramento que esto contestands: ' A discussio aberta do postulado das consequéncias cognitivas eonduziria & desnaturalizagao da ideologia do modelo auténomo subjacente & pratica escolar, refletida na fala da professora acima; alids, se os diversos contextos Sociais em que as praticas de letramento se inserem si0 objeto de exame, as relagdes entre poder e discurso fica menos opacas. Além disso, o tipo de conhecimento que esse exame produziria é um elemento essencial na forma- sA0 do professor, pois com base nele poderia ser iniciado o Processo de o sistema se adeptar a grande maioria de ceus alunos em ver de esperar que estes se adaptem a ele. Valores em conflito: a resisténcia & cultura letrada As abordegens predominantemente instrumentais, mais tpicas de programas emergenciais, como a alfabeti. zagio de adultos, organizam-se, geralmente, com base na andlise dasnecessidades de leitura diversificada: a selegao de panfletos do sindicato, bulas de romédios, contratos de compra e venda, faturas, cheques, embalagens, como ma- terial did&tico estariacbedecendo a critérios utilitarios que visam permitir o acosso a informagées cujas confiabilidade e objetividade estariam no fato de pertencerem ao mundo da eserita e da cieneia, ‘Tal selepao se fundamenta nas concepyées funcionais de ensino da escrita para grupos extremamente defasados, como seriao analfabetoadulto, Entretanto, a confiabilidade c a objetividade das formas escritas sdo construtos das dasses que tém acesso a estrita, produto de praticas discursivas estebelecidas muito cedo, jé na sociabilizagao primaria (ef. Mey, 1975). Consideremos, por exemplo, a pratica de lermos as bulas antes de ingerir um remédio. Como Gee (1990) bem apon- ta, para que alguém possa compreender um texto como esse, sera primeiro necessério desvendar questies relati- ‘vas ao discurso em que esse texto faz sentido: quem é 0 interlocutor previsto, que valores culturais estdo nele re- presentados, qual é a relagéio social que o responsavel pelo texto (a companhia farmacéutica) estabelece? Nesse caso, 9 ensino instrumental de leitura deixa de ser mera- mente funcional, para se tornar um instrumento eritico que pgieria levar & transformacao do disearso. 2A concepgao autdnoma do letramento nao nos per- mite questionar textos como a bula, que vém respaldados por instituigées de prestigio, como seriam a instituigao médica e a prdpria tradigdo letrada, ambas instituigies autoritérias. Entretanto, se analisarmos as nossas cren- gas em relagao ao corpo de conhecimento que essas insti- tuigies representam, veremos que essa relagio 6 uma questo de f, e nao de logica oa consisténcia interna. Em relagdo ciéncia médica, sabemos, por exemple, que 0 conhecimento sobre virus ¢ instével na prépria ciéncia médica, ¢ que muito falta ainda para desenvolver as va- 54 cinas necessérias para combatélos, Também, i n até-os, como Lei. _ _ tomes, nenhuma evidéncia empirica sobre sua exist nia. Entretanto, se uma moléstia 6 diagnosticada belo médio como causada por tum virus, aecitamos o ve. ‘0 € seguimos suas instru, es alivi: i desse virus no nosso ec gatlanin, Seine eee Essa relagdo, no entanto, é muito dif My a o tito diferente nos gran- des grupos ara 0s quaisnem livro representa uma fonte Informagio confidvel, nem a classe médiea inspira eon. fianga jé que as interagses entre os dois grupos acontesem ‘has piores condi¢ées imagindveis. Para ©SS€5 grupos, nas. Ralavras de um dos adolescenies do curso de ashedizn be: . Fs a < o 4 $9 Te meio extioasonadis para tir dine ds AA concepeio do mocielo ideol6gico do lotram sana eee ign renin texto social, permitiria a rolativizacéo, por parte de moe, sor, daquilo quote considora como universulmente rena, vol, ou vilide, porque tem sua origem numa instituigdo de Prestigio nes grupos de cultura letrada. Sittagdes confit vas na aula de alfabetizagao deadultos, que terminam cnn oaluno se negandoa eontinuar, poderiam ser previstes, Ne exemplo (5) a seguir, apés 75 minutos de leitura e discus, Séo sobre as informagées contidas numa bule, ein que oc ‘Se posicionaram frontalmente contra a medicina e a indtstria farmacéutica (v. Kleiman, 1992), a prof revorre finalmente & estrutura institucional para cereear g Palayra dos alunos, que reiteram suas posigdes iniciaia cpostas is posigdes sulbjacentes as informagies que a pro, ‘€ssora tentava repassar: tomar remédio, ou niio, nae fag diferenca, eu fico com o remédtio easciro, a doenga um azar predeterminado, nao dependendo, portanto, de reme dio para ser curada (Kleiman, 1993). ' " 56 Le EXEMPLO5 ‘Profa: Mas todo mundo acha assim? Que remédio de agora num presta? .. ; D: Pra mim é 2 mesma coisa. Tomé ou nfo toma é ‘Al: Bu gosto de ché de erva-doce / :Gnaudivel) mas eu num posso tom jé, se tivé que Se re nos Ged queers, sre los Est ‘num vou tomé remédio néo é ndo nessa aula gente, ere aaa mos falando Al: mesmo né Profa:(subinde o tom de voz, acelerando, sem per- mitir ao aluno continuar) voot come tise Al: de mors i inter- (falando mais alto e mais nipide, som i ‘essa doenga, vocé corre o risco desse remédio num “t mais efeito, porque de tanto que vore jé ‘omou, ele num vaiservipra mais nada. Yoo num vai ae 72 yoo’ corre o rises desse remédio té perdido a vali- . ‘Nesse trocho, que conclui a aula, s4o trés os shinee jue se posicionam contrariamenta de infrmagéns, No int Gi da diseussdo, apenas um manifestara sua ineredlide. de relativamente aos remédis recitades por médios, A medida que a professora vai deemontando os argumentas da medicina caseira, do aluno sobre as vantagens e de utilizé-los para discutir os pressupostos da informagi e, so no deseonstrut-los, pelo menos relativizé-los,m alunos se juntam ao primeiro; contestando a informagéo e mostrando, pela linguagem corporal, seu deseonforto (nfo 56 olham para a professora, mudam de posigao na cadeira constantemente, fazem apartes entre si, jogam longe o Papel portador do texto). Enfim, o objetivo instrumental da professora certamente néo foi atingido, e as relagoes | que professora e alunos construfram na aula prejudica- | ram 0 contexte de aprendizagem. ae Acredito que a anélise da interagéo nas linhas pro- Postas (anéllise de microniveis) se constitui num olemento Potencial de transfermagao da prética escolar. O conflito constitutivo da comunicagao entre professor e alunona au. la de alfabetizagio de adultos pode vir a ser 0 elemento transformador quandoas praticas discursivas. quereprodu- zem, na sala de aula, préticas sociais dominantes séo exa- minadas aim de desnaturalizar os pressupostos do modelo de letramento dominante, 0 modelo auténomo. Somente quando essa pritica discursiva for adotada que podore- mos pensar na construed de contextos de aprendizagens, A tarefa de. introdugéodoadulto nas ‘Prdéticasletradas majoritérias ndo fica necessariamente mais fficil uma ver Ue os nossos pressupostos sobre as conseqiiéncias sociais ecognitivas do Jetramento, de cardter universal, so ques- tonados e problematizados/ Para pensar na pratica, preci- Samos conhecer as praticas discursivas de grandes grupos que se inserem precariamente nas sociedades letradas tec- nologizadas, particularmente as préticas de letramento de grupos ndo-escolsrizados: por exemplo, quando fazem bi, cs, como calculam o material que necessitargo para reali. var uma tarefa, quem faz o papel de escriba desses grapos, ~ isto 6, a. quem recorrem quando precisam mandar uma cor. Tespondencia, ¢ como é a interapao entre escribe e cliente, quais so as estratégias que eles usam quando fazem cursos de troinamento em servigo, quais sao as operagies mentais que eles utilizam para realizar tarefas complexas, e assim 81 sucessivamente. Porém, novamente, esse questionamento se faz possivel somente se adotarmos alguma das perspec- tivas dentro do modelo ideolégico do letramento. Levando em consideragio g fato de queos objetives que nos interessa atingir no ensiné S40 aqueles de uma pedagogia cultural- mente relevante’(Erickson, 1987) e critica (Freire, 1980), devemos concluir que 0 modelo ideolégico do letramento, que leva em conta a pluralidade e a diferenea, faz mais sentido como elemento importante para a elaboragéo de programas dentro dessas concepgses pedagégicas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AZEVEDO, LEP, "“Criagées ¢ Recriagdee do Palavras em Redagies de Universitarios”, Revista Delta, 5:1, 1989, pp. 23-35. BAKHTIN, M. 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