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PETER E eoria da van a a se Tele | Sa r | ‘tr { I Beur | gave | Secr { ¥ore { tice pees ee — a er | + ARIE re 5 \ esse ee ee 1 \ {wea | \ soca! ag | ‘Weug | sae | Bue | OEY OU a et et ee eee ewe Apt we? Sour | Sevy | Sour a a Soeur! Sour pene” i as r PaPirarsese: Sour Sout Seup | Seer | Sova | Sour ae rarsrarsr wee Seve | Sece | Soue | Suoe | Sour | Sour 3 PIMs shes ASTER COE tour se Pama ice | ace | ear ates [ree TEORIA DA VANGUARDA Titulo original: Theorie der Avantgarde Autor: Peter Burger Colec¢do: Vega/ Universidade Tradugdo: Ernesto Sampaio ©Suhrkamp Verlag 1 edigao 1993 jos em lingua portuguesa por Vega, Limiteda Alto dos Moinhos, 6-4 1500 LISBOA — Telef. 77894 14 Sem autorizacdo expressa do editor néo é permitida a reprodugdo parcial ou total desta obra desde que tal reprodupdo niio decorra das finalidades espectficas da divulgago e da critica. Editor: Assirio Bacelar Capa: Luis EME Fotocomposigo e Montagem: Corsino & Neto - Gab. de Fotocomposigéo, Lda, ISBN-972-699-33-8 Depésito Legal n.° 6411193 Impressio e Acabamento: ARTIPOL — Artes Tipograficas, Lda. Teel, 644 435 —- AGUEDA PETER BURGER TEORIA DA VANGUARDA IV—A OBRA DE ARTE VANGUARDISTA 1. Problematica da categoria de obra O emprego do conceito de obra de arte, referido aos Produtos de vanguarda, coloca algun problemas. Poder-se- -ia objectar que a crise do conceito de obra provocada pelos movimentos de vanguarda nao é evidente, ¢ que a discus- so parte, portanto, de falsas premissas. «A decomposicao da tradicional unidade da obra pode ser apresentada, de modo completamente formal; como tendéncia colectiva da modernidade. A coeréncia_e a independéncia da. obra questionam-se conscieritemente ¢ talvez se destruam meto- dicamente»('). Nada a opor a esta constatacdo de Bubner; nao € claro, no entanto, que daqui decorra a forgosa rentincia actual da estética do conceito de obra. Bubner, por seu lado, pensa no regresso ao kantismo como unica estética actual(2). «As_tinicas..obras que. contam actual- mente sAo aquelas que ja nfo sio.obras»(3). A enigmatica sentenga de Adorno emprega o conceito de obra num duplo sentidd: por um lado, num sentido geral (e deste ponto de vista a arte moderna ainda possui cardcter de obra); por outro lado, no sentido de obra de arte organica (Adorno fala de «obra redonda»), e € este conceito limitado que a vanguarda destréi. Isto serve-nos para. distinguir entre 0 significado geral do conceito de gbra-e um determi- fiado uso histérico. Num sentido geral,;a obra de arte 101 estabelece-se como unidade de generalidades e particulari- dades. Esta unidade, sem a qual é impossivel conceber uma obra de arte, realiza-se, no entanto, de modos muito dife- rentes nas diversas épocas.da evolugdo da arte. Nas obras de-arté organicas (simb6! licas) a unidade do geral e do par-. ticular verifica-sé’ sem mediagées; ‘has obras inorganicas (alegéricas), pelo contrario, entre as quais se encontram as de vanguarda, existe media¢io. O momento da unidade est4 aqui de certo modo contido e, em casos extremos, sé 0 receptor o produz. Adorno assinala com razio que «até mesmo onde a arte (...) consiste numa discrep4ncia ¢ < disso- ia extremas, existem também eles nao existiria a dissonanci: guarda n4g nega a unidade em geral (se bem que os dadais- tas o tenham tentado), mas um determinado tipo de unidade, a relagZo entre a parte eo todo caracteristica das obras de arte organicas. A argumentacdo precedente pode s para repli- car aos tedricos que sustentam estar a Gaugaie de obra] “obra] definitivamente ultrapassada, pois podemos demonstrat que os movimentos histéricos de vanguarda desenvolveram acti- vidades cuja adequada compreens4o requer o uso da ca- tegoria de obra: os actos dadaistas, por exemplo, cujo propésito manifesto era a provocacao do publico. Estes actos envolvem algo mais do que a liquidagao da categoria de obra: visam a liquidacgdo da arte enquanto actividade separada da praxis vital. Devemos insistir em que, mesmo nas suas manifestagdes mais extremas, os movimentos de vanguarda se referem negativamente a categoria de obra. Os ready mades de Duchamp, por exemplo, sé tém sentido se os relacionarmos com a categoria de obra. Quando Duchamp assina um objecto produzido em série e 0 envia a uma exposigao, a sua provocacdo a arte implica um deter- minado conceito de arte. E o facto de que assine os ready mades pressupde uma referéncia clara a categoria de obra. A assinatura, que torna a obra individual e irrepetivel, é aposta precisamente sobre o produto fabricado em série. Deste modo, questiona-se provocatoriamente o conceito de esséncia da arte, tal como tem sido entendido desde o 102 Renascimento, isto é, como criagdo individual de obras sin- gulares; o préprio acto de provocacdo ocupa o lugar da obra. Nao estard, portanto, em decadéncia a categoria de obra? A provocacéo de Duchamp dirige-se contra a insti- tuigéo social da arte em geral, e j4 que a obra de arte per- tence a essa instituigao, o ataque também a afecta. Con- tudo, depois dos movimentos de vanguarda continuaram a produzir-se obras de arte: a instituigdo social da arte re- sistiu ao ataque da vanguarda. Uma estética do nosso tempo nao pode ignorar as modificagdes transcendentais que os movimentos de van- guarda provocaram no dominio da arte, e tio-pouco pode prescindir do facto de que a arte se encontra desde hi algum tempo numa fase pés-vanguardista. Esta caracteriza- -se pela restauragado da categoria de obra e pela aplicagado com fins artisticos dos processos que a vanguarda concebeu com inteng4o antiartistica. Nao se deve ver nisto uma «trai- ¢4o» aos fins dos movimentos de vanguarda (superagdo da instituigdo social da arte, unido da arte e da vida), mas o resultado de um processo histérico. Podemos interpret4-lo do seguinte modo: o fracasso do ataque dos movimentos histéricos de vanguarda contra a instituigdo arte, a sua incapacidade para reintegrar a arte na praxis vital, criaram condigées para a subsisténcia da instituigao arte como algo separado da praxis vital. Mas 0 ataque mostrou-a como instituigéo e¢ descobriu o seu principio na (relativa) des- continuidade da arte na sociedade burguesa. Toda a arte posterior aos movimentos histéricos de vanguarda na socie- dade burguesa tem que ajustar-se a este facto: pode dar-se por satisfeita com o seu status de autonomia, ou entéo empreender iniciativas que acabem com esse status, mas 0 que ja nado pode — sem renunciar a pretensZo de verdade da arte — é purae simplesmente negar 0 status de autono- mia e acreditar na possibilidade de um efeito imediato. Assim, pois, o que é referido pela categoria de obra nao sé é restaurado a partir do fracasso da intengdo van- guardista de reintegrar a arte na praxis vital, como ainda se amplia. O objet trouvé, a coisa, que nao resulta de um processo de producdo individual, mas é 0 encontro fortuito 103 em que se materializa a intencdo vanguardista de unir a ar- te a praxis vital, € hoje reconhecido como obra de arte. O objet trouvé perdeu o seu cardcter antiartistico, transfor- mou-se numa obra auténoma com lugar reservado, como as outras, nos museus(°). Neo-vanguarda: Daniel Spoerri, Who Knows Where Up and Down Are?, 1964. (C)Siegfried Cremer, Estugarda. A restauracio da instituigéo arte ¢ a restauracdo da categoria de obra indicam que hoje a vanguarda ja passou a histéria. Naturalmente, verificam-se na actualidade tenta- tivas de continuar a tradicdo dos movimentos de vanguarda (e que se possa pér por escrito este conceito, sem ficarmos chocados, demonstra uma vez mais que a vanguarda sur- giu historicamente); tais tentativas, porém, como por exem- plo os happenings — que poderiamos designar de neovanguardistas — ja nao podem atingir o valor de pro- testo dos actos dadaistas, independentemente de poderem ser concebidos e realizados com maior. perfeigéo(9. A 104 fazHo disto esta em que o meio proposto pelos vanguardis- tas perdeu, desde entdéo, uma parte consideravel do seu efeito de choque. Se bem que também possa ser decisivo que a superagao da arte pretendida pelos vanguardistas, a sua reintegragdo na praxis vital, no fim de contas nfo se tenha verificado. A recuperagao das intengdes vanguardis- tas e dos préprios meios de vanguarda j4 nao pode, num contexto diferente, voltar a atingir o efeito restrito das van- guardas histéricas. Enquanto o meio através do qual os vanguardistas esperam alcangar a superacdo da arte obteve com o tempo o status de obra de arte, a sua aplicagao jé nao pode ser legitimamente vinculada 4 pretensio de um renovo da praxis vital. Em suma: a neovanguarda institu- cionaliza a vanguarda como arte e nega assim as genuinas intengdes vanguardistas. A validade desta assercio nada tem a ver com a eventual consciéncia que 0 artista tenha da sua actividade, e que pode muito bem ser vanguardista(7. Porém, no que diz respeito ao efeito social da obra, este ja nao depende da consciéncia que o artista tenha da sua obra, mas do status dos seus produtos. A arte neovanguar- dista é arte auténoma no pleno sentido da palavra, e isto significa que nega a intencZo vanguardista de uma reinte- gracao da arte na praxis vital. Os préprios esforgos no sen- tido da superagao da arte transformam-se em actos artis- ticos que adoptam o cardcter de obra independentemente da vontade dos seus produtores. N§&o deixa de ser problematico falar de uma restaura- go da categoria de obra a partir do fracasso dos movimen- tos histéricos de vanguarda. Poderia dar a impressdo de que os movimentos de vanguarda nao tiveram um signifi- cado radical para o desenvolvimento ulterior da arte na sociedade burguesa, Mas assim como as intengées politicas dos movimentos de, vanguarda (reorganizagéo da praxis vital por meio da arte) nado sobreviveram, dificilmente pode ser ignorado, por outro lado, o seu efeito a nivel artistico. Deste ponto de vista, a vanguarda foi revolucionaria, dado que destruiu o conceito tradicional de obra organica e ofe- receu outro em seu lugar. Iremos ver em que consistiu esse novo conceito (%). 105 2. O Novo A Asthetische Theorie de Adorno certamente que nao se concebe como uma teoria da vanguarda, antes preten- dendo uma generalidade maior: Adorno parte, nao obs- tante, do conhecimento de que a arte do passado sé se pode compreender 4 luz da arte moderna. E portanto natu- ral investigar se as categorias aplicadas por Adorno no importante capitulo sobre a modernidade (AT, pags. 31-56) sGo Uteis ou néo para uma compreensio das obras de arte de vanguarda(%). No centro da teoria de Adorno sobre a arte moderna, encontra-se a categoria do novo. A partida, Adorno conta com a eventual objecgdo a aplicagfo dessa categoria e pro- cura enfraquecé-la, antecipando-se & sua formulagdo: «Numa sociedade essencialmente no tradicionalista (como a burguesia) a tradigdo estética é duvidosa a priori. A auto- tidade do novo é a do historicamente necessario» (AT, pag. 38). «Mas ndo nega [0 conceito do moderno] 0 que sempre negaram os estilos artisticos, isto ¢, a arte superior, mas a tradigéo enquanto tal e, nesta medida, ratifica o principio burgués na arte» (idem). Adorno faz do novo a categoria da arte moderna, da renovacao dos temas, motivos € pro- cessos artisticos estabelecidos pela evolucao da arte desde a admiss#o da modernidade. Cré que a categoria se apoia na hostilidade contra a tradicfo caracteristica da sociedade burguesa capitalista. Noutro lugar, Adorno explicitou a ideia: «A sociedade burguesa cai por completo sob a lei do cambio e da troca, do “igual por igual”, dos calculos que ajustam tudo e onde tudo se ajusta. Na sua vera esséncia, 0 cambio é algo de intemporal, como a prépria ratio (... Mas isto ro fica nada menos de que recordacao, tempo, meméria (...) sao liquidados como um residuo irracio- nal» (19), Comecemos por ilustrar com alguns exemplos o pensa- mento de Adorno. A novidade como categoria estética e como programa tem sido proposta pelos modemos desde ha muito tempo. O trovador cortés apresenta-se com a aspiragao de cantar uma «nova can¢&o»; os autores da tra- gicomédia francesa dizem satisfazer, através da nouveauté, 106 uma exigéncia do publico(!"). Em ambos os casos, trata-se de algo diferente da pretensio de novidade da arte moderna. A «nova cancdo» dos poetas de corte nao con- siste apenas num determinado tema (0 amor), mas também numa quantidade de motivos particulares; aqui, chama-se novidade a variacgéo dentro dos estreitos limites de um género. Na tragicomédia francesa, os temas j4 nao se encontram predeterminados; o que esta predeterminado é um esquema de desenvolvimento no qual as transformagdes bruscas do argumento (quando descobrimos, por exemplo, que uma personagem morta afinal nfo tinha morrido) constituem o traco distintivo do género. Na tragicomédia, que se aproxima daquilo a que mais tarde se chamara lite- ratura de consumo, os efeitos de choque (surpresa) que o publico reclama est&o ja previstos nos esquemas estruturais do género; a novidade surge como efeito calculado e esta- belecido. Poderiamos recordar, finalmente, um terceiro tipo de novidade, aquele que os formalistas russos pretenderam transformar na lei da evolugao da literatura: a renovacaio dos processos dentro de uma dada linha literdria. O pro- cesso «automatico», que ja ndo se reconhece como forma e que precisamente por isso tao-pouco permite qualquer nova visio da realidade, deve ser substituido por outro novo, livre de tais limitagdes, até que esse outro processo se torne Por sua vez «automatico» e exija uma nova substituicao (!%). Nenhum destes trés tipos de novidade coincide com o que Adorno chama de caracterizagéo do moderno. Ja nao se trata de variagdes dentro dos estreitos limites de um género (a «nova cancao», por exemplo), nem de um efeito de surpresa garantido pela nova estrutura do género (a tra- gicomédia, por exemplo), nem t&o-pouco da renovacdo dos processos de uma linha literdria; nao se trata de uma subita evolugao, mas da ruptura de uma tradigao. O que distingue a aplicago da categoria do novo no moderno de qualquer aplicac&o precedente, inteiramente legitima, é 0 radicalismo da sua ruptura com tudo o que até entZo se considerava em vigor. Ja nio se negam os principios operativos ¢ esti- listicos dos artistas, validos até esse momento, mas a tradi- ¢ao da arte na sua totalidade. 107 Neo-vanguarda: Andy Warhol, 100 Campbell's Soup Cans, 1962. (C)Hessisches Landesmuseum, Darmstadt, Republica Federal da Alemanha. E neste ponto que Adorno aplica a categoria da nova critica, inclinando-se a considerar que a singular ruptura histérica com a tradig&o, que caracterizou os movimentos histéricos de vanguarda, deve entender-se como sendo o principio do desenvolvimento da arte moderna em geral: «A activagio da mudanga dos programas e¢ tendéncias esté- ticas, que os filisteus desprezaram como um abuso da moda, vé-se afectada por uma hostilidade sempre crescente, ja detectada por Valéry»(). E claro que Adorno se da conta de que a novidade é a etiqueta sob a qual o mercado oferece sempre aos consumidores as mesmas mercadorias. A sua argumentacdo torna-se discutivel quando proclama que a arte se «apropria» do mercado dos bens de consumo. «S6 conduzindo a sua imagerie (refere-se 4 poesia de Bau- delaire) em direc¢4o 4 autonomia propria, pode atravessar esse mercado que lhe é heterénomo. O moderno é arte mediante a imitacéo do estranho» (AT, pag. 39). Comega aqui a cobrar vinganca o facto de que Adorno nao procure fixar com preciso o caracter histérico da categoria do 108 novo. Ao omitir esta tarefa, tem que deduzir directamente a categoria da sociedade de consumo. Para Adorno, por- tanto, a categoria do novo é a necessdria duplicagéo no Ambito artistico do fenémeno dominante na sociedade de consumo. J4 que as mercadorias produzidas também sdo vendidas, aquele fenémeno sé pode consistir na sedugao permanente do comprador através do estimulo da novidade do produto. Segundo Adorno, a arte também est4 subme- tida a esta pressdo, e mediante a constatag4o de tal facto espera ver na lei que domina a sociedade a propria resistén- cia contra esta. Contudo, deve tomar-se em conta que na sociedade de consumo a categoria do novo nao é substan- cial, quedando-se sempre pela aparéncia. Nao designa a esséncia da mercadoria, mas a aparéncia que se lhe impde al jalmente (pois 0 novo na mercadoria é sé a apresen- tag4o). Quando a arte se acomoda a essa superficialidade da sociedade de consumo, ha que reconhecer com pesar que se serve precisamente de tal mecanismo para opor re- sisténcia 4 prépria sociedade. A resisténcia que Adorno julga descobrir sob a pressio contra o novo é, na realidade, dificilmente discernivel; trata-se de algo reservado ao sujeito critico, que em virtude de um pensamento dialéctico pode descortinar a posi! dade no negativo. Porém, deve assinalar-se, perante isto, que sempre que a arte se submete de facto a pressio ino- vadora imposta pela sociedade de consumo, passa a confundir-se com a moda. Aquilo a que Adorno chama «imitagao do estranho» podia haver sido inspirado -por Warhol: se se quiser, a reprodu¢ao de 100 latas Campbell’s. Talvez possa implicar também um modo de resisténcia con- tra a sociedade de consumo. A neovanguarda, que recupera a ruptura vanguardista com a tradi¢fo, tende a admitir insensatamente qualquer pretenséo de sentido. Para apre- sentar com justica a posicao de Adorno, deve naturalmente ter-se em conta que ao falar de «imitagdo do estranho» n@o quis simplesmente referir-se 4 acomodac4o, mas signifi- car algo que tem a ver com criagao, e segundo esta inter- pretagao fidedigna vemos que confiava numa _possivel percepcao de alguma coisa que noutro tempo permanecia 109 oculta. Ele préprio, contudo, no que concerne a arte, viu a aporia, como se demonstra no seguinte paragrafo: «Nao cabe julgar se se trata em geral de um megafone das cons- ciéncias acomodadas, que faz tabua rasa de toda a expres- sio, ou da expresséo aténita, inexpressiva, que esse megafone denuncie» (AT, pag. 179). Ficam assim patentes os limites da utilidade da catego- tia do novo para a compreensdo dos movimentos histéricos de vanguarda. Se se tratasse de compreender uma transfor- mag4o dos meios artisticos de representacdo, nesse caso a categoria do novo seria explicavel. Mas dado que os movi- mentos histéricos de vanguarda operaram uma ruptura da tradigdo, de cujas consequéncias resulta a transformagao dos sistemas de representaco,('4) entdo tal categoria ja nao se adequa ao reflectir da situacdo. Perde todo o valor quando se descobre que os movimentos histéricos de van- guarda nao sé pretendem romper com os sistemas de repre- sentagéo herdados, como ainda aspiram superar a instituigfo arte em geral. Trata-se, de facto, de fazer algo de «novo», sé que este «novo» distingue-se qualitativamente tanto da transformag4o dos processos artisticos quanto da transformacio dos sistemas de representagdo. O conceito do novo nao é falso, mas sim geral e inespecifico, aten- dendo ao radicalismo da ruptura com a tradicfo a que deve referir-se. E tio-pouco é util, como categoria, para a descrigdo das obras de vanguarda, nao sé por ser geral ¢ inespecifico, mas também por nio oferecer qualquer possi- bilidade de distinguir entre a moda e a inovag4o historica- mente necessdria. Outra opinigo de Adorno bastante problematica é a de que a mudanga sempre r4pida de ten- déncias artisticas corresponde a uma necessidade historica. A interpretacdo dialéctica segundo a qual a acomodag¢ao a sociedade de consumo pode, ao fim e ao cabo, constituir uma forma de resisténcia contra essa mesma sociedade, acaba por refluir no problema da concordancia fastidiosa entre modas de consumo e aquilo a que porventura deveria chamar-se modas artisticas. Em vista disto, reconhece-se facilmente a relatividade histérica de outro teorema de Adorno: a opinido de que sé 110 a arte que serve a vanguarda pode fazer justiga ao movi- mento histérico de desenvolvimento das técnicas artisticas. Cabe perguntar seriamente se a ruptura com a tradicdo, levada a cabo pelos movimentos histéricos de vanguarda, n&o terd tornado supérfluo o discurso que relaciona o tempo presente com o momento histérico das técnicas artisticas. A sedug&o manifestada pelos movimentos de vanguarda em relagdo aos processos artisticos de épocas passadas (pense-se, por exemplo, na técnica dos mestres antigos em muitas obras de Magritte) torna quase impossi- René Magritte, Le Ready-Made Bouquet, 1956. (C)ADAGP, Paris, 1982. mw vel a referéncia a um nivel histérico dos processos artisti- cos. Os movimentos de vanguarda transformaram a sucessio histérica de processos e estilos numa simultanei- dade do radicalmente diverso. O resultado foi que nenhum movimento artistico pode hoje arvorar a pretensdo de ocu- par, enquanto arte, um lugar historicamente superior ao de outro movimento. De modo que a neovanguarda, ao assu- mir esta pretenséo, mais nao pode do que proclamé-la, porque ja foi realizada num periodo anterior. Contra a aplicagdo de técnicas realistas, é impossivel argumentar nos dias de hoje recorrendo ao nivel histérico das técnicas. Se Adorno argumentou assim, isso demonstra que como teé- rico pertence 4 época dos movimentos histéricos de van- guarda. Prova disso é té-los considerado, nao como algo de histérico, mas como algo cuja vida perdurou até ao presente (15). 3. O Acaso Na sua aproxima¢do a uma histéria dos «acasos lite- rarios», ou seja, das versdes que a literatura deu do acaso desde o romance cortés da Idade Média, Kéhler reserva um volumoso capitulo a literatura do século XX. «O fervor entusiasta pelo material e a sua resisténcia contra 0 acaso €, desde os poemas de Tristan Tzara a base de recortes de jornal até aos modernos happening, nao causa, mas conse- quéncia de uma situacdo social onde a falsa consciéncia sé Trespeita as manifestagdes do acaso, libertas de ideologia, nao estigmatizadas pela total coisificagao das relagdes vi- tais entre os homens»('). Kohler assinala justamente o abandonar-se ao material como caracteristica tanto da arte vanguardista como da neovanguardista, mas ja me parece mais duvidoso que possa fazer concordar a sua interpreta- gao, como pretende, com a que Adorno deu do mesmo fenémeno. Haveré que mostrar, no exemplo do hasard objectif (acaso objectivo) dos surrealistas, por um lado as esperancas que os movimentos de vanguarda depositam no acaso, e por outro a ideologizacéo cometida no uso de tal categoria, precisamente com base nessas esperangas. 112 No comego de Nadja (1928), Breton descreve uma série de estranhos acontecimentos onde fica esclarecido 0 que os surrealistas entendem por «acaso objectivo». Os aconteci- mentos seguem um padrdo basico: dois deles entram em relagéo a partir do facto de apresentarem uma ou mais coincidéncias. Por exemplo: Breton e um amigo descobrem no marché aux puces, ao folhear um livro de Rimbaud, uma jovem vendedora que nado sé escreve versos, como ainda leu o Paysan de Paris, de Aragon. O segundo «acon- tecimento» nao é aqui expressamente recolhido porque os leitores de Breton ja o conhecem: os surrealistas sio poetas, e Aragon é um deles. O acaso objectivo baseia-se na selec- gao de elementos semAnticos concordantes (aqui: poeta e Aragon) em acontecimentos independentes uns dos outros. Os surrealistas constatam a coincidéncia, que remete para um sentido insusceptivel de ser captado. O acaso da-se, pois, de per si, mas exige por parte dos surrealistas uma orientagio que permite observar a coincidéncia de elemen- tos em acontecimentos independentes entre si('). Valéry observou judiciosamente que 0 acaso se pode provocar. Para se conseguir um resultado em que 0 acaso intervenha, basta eleger um objecto de entre uma quanti- dade de objectos similares. Os surrealistas, entZo, nao pro- duzem realmente acaso, embora dediquem muita atengdo ao que sai fora do Ambito da expectativa, permitindo-se assinalar «acasos» que, devido a sua insignificancia (a sua falta de relagdo com os pensamentos dominantes dos indi- viduos), passariam despercebidos’ A partir da verificagdo de que numa sociedade ordenada conforme a racionalidade dos fins, a possibilidade de desenvolvimento dos individuos € sempre limitada, os surrealistas procuram descobrir momentos de imprevisio na vida quotidiana. A sua aten- g&o concentra-se, portanto, em fendmenos que néo cabem no mundo da racionalidade dos fins. A descoberta das maravilhas do quotidiano representa, evidentemente, um enriquecimento das possibilidades de experiéncia do «homem urbano», mas nao deixa de estar ligada a um tipo de comportamento que renuncia as iniciativas em favor de uma predisposicio universal para a impressAo. Os surrealis- 113 tas nao se dao por satisfeitos com isso, e procuram provo- car o excepcional. A fixagéo por determinados lugares (lieux sacrés) e 0 seu esforco no sentido de uma mythologie moderne demonstram que o que pretendem, ao dominar o acaso, é poder repetir o extraordindrio. O aspecto ideolégico da interpretag&o surrealista da categoria de acaso nao reside na tentativa de dominar o extraordindrio, mas na inclinagdo em ver no acaso um sen- tido objectivo. O sentido é sempre obra de individuos e grupos; das relagdes de comunicacdo entre os homens nao resulta nenhum sentido, Para os surrealistas, no entanto, existe um sentido nas coisas do acaso, nas constelagées de acontecimentos, e dao-lhe o nome de «acaso objectivo». Embora o sentido nao se deixe determinar, isso nao altera as expectativas surrealistas, dado que esperam encontra-lo na realidade. Devemos ver neste facto uma abolicfo do individuo (burgués). Posto que 0 momento activo de for- mac&o da realidade se encontra de certo modo ocupado pelos homens da sociedade da racionalidade dos fins, ao individuo que protesta contra a sociedade sé lhe resta entregar-se a uma experiéncia cujos valor e caracteristica consistem na independéncia dos fins. Que seja sempre ina- preensivel o sentido procurado no acaso, explica-se pelo facto de que se fosse determinado, seria imediatamente assumido pela racionalidade dos fins, e assim perderia 0 seu valor de protesto. Deste modo, a esperanga sé se explica pela total oposig&o a sociedade existente. Contudo, ao n&o reconhecer que um determinado dominio da natu- reza necessita de uma organizagao social, os surrealistas correm o perigo de que o seu protesto depressa se trans- forme em protesto contra o social. Nao se critica a finali- dade da sociedade burguesa capitalista, que faz do lucro o principio dominante, mas a racionalidade dos fins em geral. O acaso, a que os homens estao submetidos de modo com- pletamente heterénomo, transforma-se assim paradoxal- mente na chave da liberdade. A partida, uma teoria da vanguarda nao pode admitir © conceito de acaso, tal como foi desenvolvido pelos teéri- cos da vanguarda, dado que se trata de uma categoria ideo- 14 légica: a produc&o de sentido, que é do foro humano, é atribuida a natureza, e sé resta decifrar esse sentido. Esta redugao a natureza dos sentidos produzidos nos processos comunicativos nao é arbitraria; esta relacionada com a abs- tra¢éo do protesto que caracteriza a fase inicial do movi- mento surrealista,. Mas a teoria da vanguarda nfo pode renunciar por completo a categoria de acaso, nem que seja apenas por ser decisiva para a compreensdo do movimento surrealista. O significado que os surrealistas deram a cate- goria, que pode considerar-se categoria ideolégica, permite ao critico captar a inteng¢io do movimento, embora deva naturalmente criticar-se em simulténeo a missio para que foi concebida. Existe uma aplicagdo da categoria de acaso diferente do que vimos até agora. Esta categoria localiza o acaso na obra de arte e nao na realidade, no produzido e nfo no percebido, posto que o acaso pode produzir de maneiras muito diferentes. Podemos distinguir entre produgio do acaso imediata ou mediada. A primeira surge na pintura durante os anos cinquenta, com movimentos como o tachismo, a action painting e alguns outros. Trata-se de molhar a tela com o pincel. A realidade ja nao é formada nem interpretada: renuncia-se a criacdo intencional de figu- ras em favor de um desenvolvimento da espontaneidade; em grande medida, o acaso abandona a figurag4o. O pin- tor, liberto de todas as pressdes e regras formais, entrega-se finalmente a uma subjectividade vazia. O sujeito ja nao pode entregar-se a algo que seja ‘exigido pelo material e a tarefa; o resultado torna-se casual no mau sentido da pala- vra, ou seja, passa a ser arbitrério. O protesto total contra aquele momento de coacg4o conduz o pintor, nao a liber- dade da forma, mas unicamente a arbitrariedade, embora esta também possa ser interpretada como expresso de individualidade. Temos, por outro lado, a produgao de acaso mediada, que ja nao resulta de uma espontaneidade cega no manejo do material, mas, pelo contrario, é fruto de um calculo muito preciso, O cdlculo, porém, refere-se ao meio; o pro- duto é bastante imprevisivel. «O progresso da arte como 115 actividade», sublinha Adorno, é «acompanhado da tendén- cia para a determinagao absoluta. Assinalou-se com razéo a convergéncia entre as obras realizadas totalmente de acordo com a técnica € as que sdo absolutamente casuais» (AT, pag. 47). O principio de construgSo renuncia 8 i imagi- nag4o subjectiva em beneficio do abandono da construgdo ao acaso. Adorno interpreta isto como reaccfo a impotén- cia do individuo burgués: «A impoténcia a que a tecnologia reduziu o sujeito, desencadeada por ele préprio, foi assimi- lada pela consciéncia, transformando-se em programa» (AT, pag. 43). Repete-se aqui a interpretagdo a que ja alu- dimos ao discutir a categoria do novo. Acomodar-se a alie- nacio parece ser a unica forma possivel de resisténcia contra a mesma alienagdo. A observacdo que fizemos antes, também aqui, mutatis mutandis, se aplica. E licito supor que a tese de Adorno, ao ver na prima- zia da construgdo uma legalidade a que os artistas se entre- gam sem conseguir prever as consequéncias disso, resulta da sua familiaridade com os modos de composigéo da musica dodecafénica. Na sua Philosophie der neuen Musik (Filosofia da nova musica) chama 4 racionalidade dodeca- fénica «um sistema simultaneamente fechado e opaco, no qual a constelac¢éo dos meios é hipostasiada de imediato como finalidade e lei (...). A legalidade em que esta se cum- pre fica ocultada pelo material, ao qual determina sem que esta determinacgio, em si mesma, possa oferecer um sentido» (18). A produgao do acaso pela aplicagdo de um principio de construcio verifica-se na literatura, se ndo me engano, no caso da poesia concreta, mas mais tarde do que na musica. A menor importancia do semantico na mdsica tem como consequéncia que no caso da construgao formal a misica e a literatura se encontram muito préximas uma da outra. Para que o material literario se submeta completa- mente a uma lei de construgdo que lhe é sempre alheia, é preciso que renuncie ao contetdo sem4ntico, Ha que deixar bem claro, no entanto, que a aplicagdo de uma legalidade ao material da literatura nado tem o mesmo valor da aplica- 116 g&o de um principio de construgéo semelhante 4 misica, partindo da genuina diversidade dos meios. 4. O conceito de alegoria em Benjamin Uma tarefa central da teoria da vanguarda é o desen- volvimento das obras de arte inorganicas. Semelhante tarefa pode iniciar-se a partir do conceito de alegoria de Benja- min, o qual, como ja vimos, € uma categoria articulada particularmente rica, prépria para englobar quer 0 aspecto da produgdo, quer o do efeito estético das obras de van- guarda. Benjamin aplicou, como sabemos, 0 conceito a lite- ratura barroca;(') pode afirmar-se, no entanto, que o seu objecto mais apropriado é a obra de vanguarda. Por outras palavras: a experiéncia de Benjamin no contacto com obras de vanguarda é o que permite quer o desenvolvimento da categoria, quer a sua aplicag4o a literatura do barroco. Dado que o desenvolvimento dos objectos se apoia também na interpretagéo do passado imediato, pode entender-se facil- mente o conceito de alegoria de Benjamin como uma teoria da arte de vanguarda (inorganica), prescindindo obviamente dos momentos que derivam da sua aplicaco 4 literatura bar- roca(”), Ainda assim, é légico perguntar como é que 0 carac- ter de um determinado tipo de obra de arte (a alegérica) pode explicar, na sua estrutura social, épocas tao diferentes. Para responder a esta pergunta seria um erro procurar afinidades histérico-sociais em ambas as épbcas, supondo que formas artisticas iguais hdo-de ter necessariamente um mesmo funda- mento social. Nao é este o caso. As formas artisticas, pelo contrario, devem a sua origem a um determinado contexto social, mas néo mantém nenhum vinculo com tal contexto nem com situagées sociais andlogas, podendo assumir outras fungdes em contextos sociais diferentes. A investigagdo nao deve centrar-se na possivel analogia entre contextos primario e secundario, mas nas modificagdes sociais da fungdo da forma artistica. Decompondo o conceito de alegoria, obtém-se o se- guinte esquema: 1. O alegérico arranca um elemento a to- 17 talidade do contexto social, isola-o, despoja-o da sua fun- cdo. A alegoria, portanto, é essencialmente um fragmento, em contraste com o simbolo organico. «No terreno da intuig&o alegérica, a pintura é fragmento (...). A falsa apa- réncia da totalidade desaparece» (Ursprung, pag. 195). 2. O alegérico cria sentido ao reunir esses fragmentos de rea- lidade isolados. Trata-se de um sentido dado, que nado resulta do contexto original dos fragmentos. 3. Benjamin interpreta a funcdo do alegérico como expressdo de melan- colia. «Quando 0 objecto se torna alegérico sob o olhar da melancolia, deixa escapar a vida, fica como morto, fixado para a eternidade. Assim se depara ao artista alegérico, a ele destinado para gléria ou infortunio; quer dizer, o objecto é totalmente incapaz de irradiar sentido ou signifi- cado, apenas lhe cabendo como sentido aquele que o alegé- rico Ihe conceda» (Ursprung, pag. 204 e segs.). O trato do alegérico com as coisas supde um intercambio prolongado de simpatia e fastio: «a absorta simpatia dos enfermos pelo esporddico e insignificante tem origem no desencantado abandono dos simbolos vazios (idem, pag. 207). 4. Benja- min também alude ao plano da recepgao. A alegoria, cuja esséncia é o fragmento, representa a histéria como deca- déncia: «na alegoria reside a facies hippocratica (ou seja, 0 aspecto funebre) da histéria como primitiva paisagem petri- ficada do que a vista se oferece» (idem, pag. 182 e segs.). Independentemente de que os quatro elementos do conceito de alegoria ja enunciados possam aplicar-se 4 and- lise de obras de vanguarda, podemos comprovar que se trata de uma categoria complexa, que ocupa um lugar par- ticularmente elevado na hierarquia das categorias utilizadas na descric¢&o de obras. Esta categoria reune claramente dois conceitos da produgao do estético, dos quais um diz res- peito ao tratamento do material (separacdo das partes do seu contexto) e o outro a constituigéo da obra (ajuste de fragmentos e fixagdo de sentido), com uma interpretagao dos processos de producdo e recepcio (melancolia nos pro- dutores, visio pessimista da histéria nos receptores). Dado que permite distinguir no plano da analise os aspectos da produco e o efeito estético, sem deixar por isso de pensd- 118 -los como unidade, o conceito de categoria de Benjamin pode considerar-se apropriado para ocupar a categoria cen- tral de uma teoria das obras de arte de vanguarda. Através do nosso esquema, pode ja constatar-se que a utilidade da categoria consiste na andlise da estética da producio, mas para o Ambito do efeito estético ndo chega, exigindo algum complemento. Uma comparagao das obras de arte organicas com as inorganicas (vanguardistas), do ponto de vista da estéti- ca da producdo, encontra uma ferramenta essencial naq lo a que chamamos montagem, onde coincidem os dois pri- meiros elementos do conceito de alegoria de Benjamin. O artista que produz uma obra organica (passaremos a chamar-lhe classicista, sem pretender dar com isso um con- ceito da arte classica) maneja o material como se fosse algo de vivo, respeitando o seu significado conforme a forma que tomou em cada situagdo concreta da vida. Para o van- guardista, pelo contrario, o material nada mais é que isso: material. A sua actividade principal consiste apenas em acabar com a «ida» dos materiais, arrancando-os ao con- texto onde realizam a sua fungdo e recebem o seu signi- ficado. O classicista vé no material o portador de um significado e aprecia-o por isso, mas o vanguardista sé vé nele um sinal vazio, pois € o Gnico com direito a atribuir significados. Deste modo, o classicista maneja o seu mate- tial como uma totalidade, enquanto que o vanguardista se- para o seu da totalidade da vjda, isolando-o e fragmen- tando-o. A diversidade das atitudes em relacgio ao material Tteproduz-se no que diz respeito 4 constituicdo da obra. O classicista, com a sua obra, quer dar um retrato vivo da totalidade; é essa a sua inteng&o, mesmo quando a parte de realidade apresentada se limita a ser a restituigao de uma atmosfera fugaz. O vanguardista, por seu lado, reine fragmentos com a intengdo de fixar um sentido (que bem poderia ser o aviso de que jé néo ha nenhum sentido). A obra j4 nfo é produzida como um todo organico, mas montada sobre fragmentos (falaremos disto na préxima secedo). 119 Dos aspectos do conceito de alegoria até agora discu- tidos, que descrevem um determinado processo, devem distinguir-se aqueles que pretendem interpretar o processo. E este o caso quando Benjamin caracteriza a conduta do artista alegérico como melancdlica. Tal interpretagéo nado se pode transferir alegremente do barroco para a van- guarda, porque nesse caso atribuir-se-ia ao processo um significado determinado, desprezando assim o facto de que um processo pode ser aplicado com significados diversos no decurso da histéria(2!). No caso da alegoria, no entanto, parece possivel, considerando os modos de produgdo dos produtores, encontrar semelhangas entre o alegérico bar- roco e o alegérico vanguardista. O que Benjamin designa por melancolia é uma fixacao no singular, destinada ao fra- casso porque nao corresponde a nenhum conceito geral da formagao da realidade. A devogio por cada singularidade é desesperada, pois implica a consciéncia de que a realidade se escapa como algo que se encontra em continua forma- cdo. E natural que se tome o conceito de Benjamin como uma descrigéo da mentalidade do vanguardista, a quem, ao contrario do esteticista, esta j4 vedado transfigurar a pré- pria caréncia de funcgao social. O conceito surrealista do ennui (de que o termo «aborrecimento» é apenas uma tra- dugo parcial) apoiaria talvez esta interpretagdo (79. Também a segunda interpretagdo, a da estética da Tecepg4o, que Benjamin da do conceito de alegoria (a ale- goria mostra a histéria como historia da natureza, ou seja, como histéria fatal da decadéncia) parece admitir uma transferéncia para a arte de vanguarda. Se se toma o com- portamento do eu surrealista como protétipo de atitude vanguardista, verificamos que na base dessa conduta esta a redugdo da sociedade a natureza(?4). O eu surrealista pre- tende restaurar a originalidade da experiéncia encarando como natural o mundo produzido pelos homens. Deste modo, a realidade social fica protegida contra a ideia de uma possivel transformagao. A histéria feita pelos homens reduz-se a histéria natural quando se petrifica numa ima- gem da natureza. A grande cidade experimenta-se como natureza enigmatica, onde o homem surrealista se move 120 como o homem primitivo se movia na verdadeira natureza: em busca de um sentido que os acontecimentos ocultam. As transformagées sofridas pela func&o alegérica desde o bar- roco so consideraveis: a desvalorizagao barroca do mundo em favor do além transforma-se, na vanguarda, numa afir- maco francamente entusiasta do mesmo mundo, embora uma primeira andlise das técnicas artisticas nos permita verificar o caracter vacilante dessa afirmagdo, que é expres- sdo de angustia perante uma técnica e uma estrutura social gravemente restritivas das possibilidades de ac¢do dos indi- viduos. As interpretagdes que temos dado do processo alegé- rico poderiam ser, no entanto, menos importantes do que os conceitos explicitados pelos préprios processos, entre outros motivos porque, enquanto interpretacées, se movem jé a um nivel que requer andlises de obras concretas. Pa- Ta continuar a nossa comparagdo entre obras organicas e inorganicas, teremos, portanto, de passar a prescindir de categorias de interpretagao. A obra de arte organica oferece-se como uma criagdo da natureza: «a arte bela deve ser considerada como na- tureza, por mais que se tenha consciéncia de que é arte», escreve Kant (KdU, § 45, pag. 405). E Georg Lukacs distin- gue uma dupla missdo do realista (em contraste com o artista de vanguarda): «primeiro, a descoberta intelectual e a configurac¢do artistica dessas relacgdes (refere-se as re- lagGes da realidade social); segundo, e articulado com o anterior, o recobrir artistico das relagSes abstraidas e trabalhadas, a superagdo da abstracedo»(?4. O que Lu- kacs designa por «recobrim é precisamente o dar aparén- cia de natureza. A obra de arte organica pretende ocultar 0 seu artificio. A obra de vanguarda, pelo contrario, oferece- -se como produto artistico, como artefacto. Nesta medida, a montagem pode servir como principio bdsico da arte van- guardista. A obra «montada» da a entender que é composta de fragmentos de realidade, acabando com a aparéncia de totalidade. Assim, a instituigdo arte realiza-se paradoxal- mente na propria obra de arte. A reintegragdo da arte na 121 praxis vital propde-se revolucionar a vida e provoca uma revolugao na arte. A mencionada distingdo também se aplica aos diferen- tes modos de recepgao estabelecidos pelos principios cons- trutivos de cada tipo de obra (é Obvio que estes modos de recepcdo nfo precisam de coincidir em cada caso com os modos efectivos de recepgao de cada obra em particular). A obra organica pretende dar uma impressdo global. Os seus modos concretos, que sé tém sentido em relagfo com a totalidade da obra, remetem sempre, observando-os por separado, para essa totalidade. Ao invés, os momentos con- cretos da obra de vanguarda possuem um elevado grau de independéncia e podem ser lidos ou interpretados tanto em conjunto como em separado, sem necessidade de contem- plar o todo da obra. Na obra de vanguarda sé pode falar- -se em sentido figurado de «totalidade da obra», como soma da totalidade dos possiveis sentidos. 5. Montagem E importante esclarecer desde j4 que o conceito de montagem nfo introduz nenhuma categoria nova, alterna- tiva ao conceito de alegoria; trata-se antes de uma catego- ria que permite estabelecer com exactidao um determinado aspecto do conceito de alegoria. A montagem pressupde a fragmentacdo da realidade e descreve a fase da constituigao da obra. Posto que 0 conceito desempenha um papel, nao sé nas artes plasticas ¢ na literatura, mas também no cinema, devemos averiguar a que se refere em cada meio concreto. O cinema baseia-se, como sabemos, no encadeado de imagens fotograficas que produzem impressio de movi- mento devido a velocidade com que se sucedem diante da nossa vista. A montagem de imagens é a fécnica operatoria basica do cinema; nao se trata de uma técnica artistica especifica, dado que é determinada pelo meio, se bem que o préprio uso do meio ja implique diferengas, porque nao € a mesma coisa quando a sucessdo de planos fotograficos 122 reproduz o curso de um movimento natural e quando re- produz um movimento artistico (por exemplo: a partir de um lefo de marmore adormecido, depois acordado e posto de pé produz-se a impressdo de que esse lefo salta, como acontece em O Couragado Potemkine). No primeiro caso também se «montam» imagens isoladas, mas a imagem cinematografica reproduz por iluséo ou engano o curso de um movimento natural. No segundo caso, porém, a impres- sfo de movimento sé pode ser produzida pela montagem de imagens (75). Enquanto que no cinema a montagem de imagens é um processo técnico, dado pelo préprio meio cinematogra- fico, na pintura adquire 0 status de um principio artistico. N&o é por acaso que a montagem — descontando os «pre- cursores» sempre descobertos a posteriori — aparece histo- ricamente ligada ao cubismo, 0 movimento que dentro da pintura moderna destruiu conscientemente o sistema de representacao em vigor desde o Renascimento. Nos papiers collés de Picasso ¢ Braque, realizados durante os anos da Primeira Guerra Mundial, estdo sempre presentes duas téc- nicas contrastantes: o «ilusionismo» dos fragmentos de rea- lidade (um pedago de fio de verga, um papel de parede) e a «abstraccdo» da técnica cubista com que s&o tratados os objectos representados. Este contraste assume sem divida um interesse prioritario para ambos os artistas, coisa que podemos reconhecer também nos quadros da época que renunciam a técnica da montagem (*), Na tentativa de determinar as intengdes de efeito esté- tico préprias do quadro-montagem, ha que usar de muita cautela. Colar papéis de jornal em quadros supée evidente- mente um momento de provocag4o, mas nao devemos atri- buir muita importancia a isso, dado que ao fim e ao cabo os fragmentos de realidade esto ao servigo de uma compo- sigdo estética de figuras que procura o equilibrio de ele- mentos concretos tais como os volumes, as cores, etc. Pode facilmente ocorrer-nos falar de uma intengdo reprimida: trata-se de destruir as obras organicas que pretendem reproduzir a realidade, mas n4o mediante o questionar da arte em geral, como acontece nos movimentos histéricos de 123 Pablo Picasso, Natureza morta, 1912. (C/SPADEM, Paris/VAGA, Nova York, 1981. vanguarda. A tentativa aponta para a criagdo de objectos estéticos que prescindam dos critérios tradicionais. Um tipo completamente diferente de montagem é 0 das fotomontagens de Heartfield, que nao sao essencial- mente objectos estéticos, mas conjuntos de imagens propos- tos a leitura (Lesebilder). Heartfield recuperou a velha técnica dos simbolos e transferiu-a para 0 campo da poli- 124 Pablo Picasso, Violino, 1913. (C)SPADEM, Paris/ VAGA, Nova York, 1981. tica, O simbolo reune uma figura com dois textos diferen- tes, um (assumindo frequentemente o caracter de dentncia) como titulo (inscriptio) e outro, mais extenso, como expli- cacao (subscriptio). Numa das fotomontagens de Heart- field, por exemplo, enquanto Hitler discursa, 0 seu térax transparente mostra-nos uma pilha de moedas no lugar do 125 John Heartfield, Adolfo-O Superhomem-Que Engole Ouro..., 1932. (©)Gertrud Heartfield. eséfago. Inscriptio: «Adolfo, 0 super-homem»; subscriptio: «Engole ouro e cospe lata» (jogo de palavras: blech, em alemao, tanto pode significar lata como disparate). Ou- tro exemplo: sobre um cartaz do SPD (Partido Social- -Democrata Alem&o), com o slogan «A _ socializagéo avanga!», sobrepdem-se duas personagens do mundo da financga, altivos, de guarda-chuva e chapéu alto, e em segundo plano dois militares, um dos quais leva uma ban- 126 “Die Goslatifierds —— maridiert! John Heartfield, A Alemanha ndo perdeu ainda!, 1932. (C)Gertrud Heartfield. deira com a cruz gamada. Inscriptio: «A Alemanha ainda nao esta perdida!»;, subscriptio: «A socializagao avangal!, escreveram os social-democratas num cartaz, e estao bem decididos: os socialistas sio abatidos a tiro (...)»(2). E de destacar tanto o sentido politico é6bvio como o momento anti-estético que caracterizam as montagens de Heartfield. Em certo sentido, a fotomontagem esta préxima do ci- nema, nao sé porque ambos utilizam a fotografia, mas 127 também porque nos dois casos se disfarca ou pelo menos n&o € evidente o facto da montagem. E ¢ isto que a partida separa a fotomontagem da montagem dos cubistas ou de Schwitter. As observagées precedentes nfo pretendiam natural- mente esgotar o assunto (a collage cubista ou a fotomonta- gem de Heartfield), mas apenas mostrar 0 emprego do conceito de montagem. No quadro de uma teoria da van- guarda, nfo interessa a acepcdo cinematografica deste con- ceito, posto que é o préprio meio a déa, A fotomontagem t&o-pouco ajuda a resolver a questéo, porque ocupa um lugar intermédio entre a montagem cinematografica e o quadro-montagem, e o mais frequente é que oculte o facto da montagem. Uma teoria da vanguarda tem que partir do conceito de montagem tal como derivou das primeiras col- lages cubistas. O que distingue estas obras das técnicas de pintura praticadas desde o Renascimento, € a incorporacao de fragmentos de realidade na pintura, ou seja, de materiais que nao foram elaborados pelo artista. Assim se destrdi a unidade da obra como produto absoluto da subjectividade do artista. O pedago de fio de verga que Picasso cola num quadro pode ser escolhido de acordo com uma intengdo de composi¢ao; como pedago de fio de verga continua a fazer parte da realidade, e incorpora-se no quadro tal qual é, sem sofrer alteragdes essenciais. Deste modo, violenta-se um sistema de representacdo que se bascia na reproducdo da realidade, quer dizer, no principio segundo o qual a tarefa do artista é a transposi¢ao dessa mesma realidade. E certo que os cubistas ndo se contentam em exibir — como pouco depois o faria Duchamp — um mero fragmento do real, mas renunciam a constitui¢éo do espago do quadro num todo continuo (#8). O problema de uma técnica pictérica que foi aceite pelo século nao se pode resolver reduzindo-o a uma quest4o de poupanga de esforgo supérfluo; (7%) em vez disso, -os argu- mentos de Adorno sobre o significado da montagem na arte moderna proporcionam um importante ponto de apoio para a compreensdo do fenémeno. Adorno constata a carga revo- lucionaria (e aqui a metafora tdo gasta pode ser oportuna) 128 dos novos processos: «A aparéncia da eventual reconciliagao da arte com a experiéncia heterogénea devida ao facto de representa-la entra em ruptura, enquanto que a obra literal, que admite os escombros da experiéncia, sem aparéncia, reconhece a ruptura e alcanca uma fungdo diferente para 0 seu efeito estéticon (AT, pag. 232). A obra de arte organica, elaborada pela m&o do homem sem deixar de se pretender natureza, apresenta um quadro de reconciliagdo entre o homem e a natureza. Caracteristico das obras inorganicas que se apoiam no principio da montagem é¢, para Adorno, o facto de jé nfo provocarem a aparéncia de reconciliagdo. Embora n&o partilhemos a totalidade da filosofia que sus- tenta o estudo de Adorno, neste ponto especifico concorda- mos com ele(3), A obra de arte transforma-se substancialmente ao admitir no seu seio fragmentos de reali- dade. Ja nao se trata apenas da renuncia do artista 4 criagdo de quadros completos; os préprios quadros, alias, adquirem um status diferente, pois uma parte deles j4 nado mantém com a realidade as relacées caracteristicas das obras de arte organicas: ndo sao sinal da realidade; sdo a propria reali- dade. Nao € evidente que possa atribuir-se, como faz Adorno, um significado politico ao processo da montagem. «A arte quer confessar a sua impoténcia perante a totali- dade do capitalismo tardio e inaugurar a sua aboligZo» (AT, pag. 232). Contudo, a montagem aplicaram-na tanto os futuristas italianos, de quem nao se pode presumir em absoluto qualquer vontade de suprimir o capitalismo, como os vanguardistas russos pds-revoluciondrios, empenhados na construgdo da sociedade socialista. Atribuir um signifi- cado estricto a um processo é problematico por principio. Parece mais acertada a alternativa de Bloch, ao supor que um processo pode ter efeitos distintos em contextos histéri- cos diferentes, e por consequéncia distinguindo a «monta- gem imediata» (do capitalismo tardio) da «montagem mediada» (da sociedade socialista) (2). Embora as defini- ges que Bloch da da montagem sejam por vezes pouco claras, é notério que ndo atribui aos processos determina- g6es semanticas permanentes. 129 Nas investigagdes de Adorno, devemos separar, por- tanto, os seus achados na descrigéo do fendmeno e 0 signi- ficado limitado que Ihes atribuiu. Uma das suas definigdes da montagem éa seguinte: «A negacao da sintese é o prin- cipio da criagdéo» (AT, pag. 232). A negacdo da sintese exprime para a produgdo estética o que para 0 efeito esté- tico se chama renincia a reconciliagéo. Aplicando uma vez mais as descobertas de Adorno 4s collages cubistas, pode- mos dizer que nestas se aprecia um principio de constru- ao, mas néo uma sjntese no sentido de unidade de significado (recorde-se o contraste entre «ilusionismo» e «abstracgéo» a que antes nos referimos) (22). Quando Adorno interpreta a negacdo da sintese co- mo negac&o de sentido em geral (AT, pag. 231), convém lembrar que até a negac&o de sentido € um modo de dar sentido. Tanto os textos automaticos dos surrealistas co- mo o Paysan de Paris de Aragon e a Nadja de Breton po- dem ser entendidos como constituindo o resultado de uma técnica de montagem. De facto, os textos automaticos caracterizam-se superficialmente pela destruigéo das rela- gdes de sentido; mas. também nfo é de excluir uma inter- pretagdo capaz de reconhecer um significado relativamente consistente, embora ndo sujeito 4 busca de relagées légicas, mas sim aplicado ao processo constitutivo do texto. Pode dizer-se algo semelhante da série de acontecimentos isola- dos com que se inicia a Nadja de Breton. Nao os liga nenhum vinculo narrativo do qual se possa deduzir qual- quer sequéncia ldégica; os acontecimentos, porém, est&o vin- culados de outro modo: todos se desprendem do mesmo modelo estrutural. Em termos estruturalistas, diriamos que o vinculo é de natureza paradigmatica, nao sintagmatica. Enquanto o modelo estrutural sintagmatico, a oracdo, se caracteriza, por maior que seja, por ter um fim, o modelo estrutural paradigmatico, o discurso, € eminentemente inconclusivo. Esta diferencga essencial também da lugar a dois modos de recepcdo distintos (33). A obra de arte organica é construida a partir do modelo estrutural sintagmatico: as partes e o todo formam uma unidade dialéctica. A leitura adequada é descrita pelo 130 circulo hermenéutico: as partes sé estfo no todo da obra, ¢ este, por sua vez, sO pode ser entendido através das partes. A interpretagao das partes rege-se pela interpretacdo anteci- pada do todo, e a primeira, por sua vez, corrige a segunda. A hipotese de uma necess4ria harmonia entre o sentido das partes e 0 sentido do todo é condic&o basica neste tipo de recepgdo (34), Esta hipdétese — que deriva do rasgo decisivo das obras de arte organicas — nfo é valida para as obras inorganicas. As partes «emancipam-se» de um todo situado acima delas, no qual se incorporam como componentes necessarias. Isto, porém, significa que as partes carecem de necessidade. Num texto automatico, onde as imagens se sucedem sem interrup¢4o, poderiam omitir-se algumas delas sem que o texto sofresse alteragdes essenciais. Isto também vale para os acontecimentos narrados em Nadja. A incluso de novos acontecimentos semelhantes, assim como a eliminagdo de alguns dos que s4o narrados, nao produzi- ria alteragdes essenciais. O decisivo nado é a singularidade dos acontecimentos, mas o principio de construg4o que esta na base da série de acontecimentos. Tudo isto tem, naturalmente, consequéncias substan- ciais para a recepcao. O receptor das obras de vanguarda descobre que o método de apropriagdo de objectivacées intelectuais que se formou para as obras de arte organicas é agora inadequado. A obra de vanguarda nfo produz uma impressdo geral que permita uma interpretacdo do sentido, nem a suposta impress’o pode tornar-se mais clara dirigindo-se as partes, porque estas ja nao estAo subordina- das a uma intengdo de obra. Tal negagao de sentido produz um choque no receptor. Esta é a reaccfo que 0 artista de vanguarda pretende, porque espera que o receptor, privado do sentido, se interrogue sobre a sua particular praxis vital e se coloque a necessidade de transformd-la. O choque procura-se como estimulo para uma alteracao de comporta- mento; € o meio indicado para acabar com a imanéncia estética e iniciar uma transformagado da praxis vital dos receptores (5). A problematica do choque, como pretendida reaccéo dos receptores, ¢ o seu cardcter inespecifico. Mesmo acei- 131 tando que se possa conseguir a ruptura da imanéncia esté- tica, daqui nao resulta uma tendéncia determinada nas possiveis alteragdes de comportamento dos receptores. A reacgdo do publico perante o comportamento dada é carac- teristica como resposta inespecifica. O publico responde a provocag&o dos dadaistas com um furor cego(*). Sdo escassas as alteragdes de comportamento na praxis vital dos receptores; devemos mesmo perguntar-nos se a provo- cacao nao reforga antes as atitudes vigentes, que nao dei- xam de manifestar-se quando se lhes da ocasiao para isso (37). A estética do choque pée ainda mais um pro- blema: o da possibilidade de fazer durar um efeito assim. Nada perde o seu efeito tao rapidamente como o choque, porque a sua esséncia consiste em ser uma experiéncia extraordindéria. Com a repeticg&o, transforma-se radical- mente. O choque é esperado. As violentas reacgdes do publico perante a simples entrada em cena dos dadaistas s&o prova disso; 0 publico estava preparado para 0 choque pelos relatos jornalisticos, e esperava-o. Um choque desta natureza, quase institucionalizado, esta muito longe de se repercutir sobre a praxis vital dos receptores; é «consu- mido», O que fica é 0 cardcter enigmatico do produto, a resis- téncia que denota contra o intento de lhe captar o sentido. O receptor nao se pode resignar simplesmente a descrever 0 sentido de uma parte da obra; tentara alargar o préprio caracter enigmatico da obra de vanguarda, e para isso tem que situar-se noutro nivel da interpretagdo. Em vez de pre- tender captar um sentido mediante as relacdes entre 0 todo e as partes da obra, procurard encontrar os principios cons- titutivos desta, a fim de neles encontrar a chave do cardcter enigmatico da criagdo. A obra de vanguarda provoca assim no receptor uma ruptura andloga a do cardcter inorganico da criag&o. Entre a experiéncia, registada pelo choque, da inconveniéncia do modo de recepc#o formado nas obras de arte organicas, e o esforgo por uma compreensdo do princi- pio de construg4o, produz-se uma fractura: a renuncia a interpretagdo do sentido. Uma transformagao decisiva para o desenvolvimento da arte, provocada pelos movimentos 132 histéricos de vanguarda, consiste nesse novo tipo de recep- ¢4o nascido com a arte de vanguarda. A atencao dos recep- tores j4 no se dirige para um sentido da obra captavel na leitura das suas partes, mas sim para o principio de cons- trugdo. Este tipo de recep¢do leva o receptor a aceitar que a parte, necessdria na obra de arte organica pelo seu contri- buto para a constituigo do sentido da totalidade da obra, nao passe, na obra de vanguarda, de simples recheio de um modelo estrutural. Procuramos reconstruir geneticamente a relagdo entre a obra de arte de vanguarda e o método formal da ciéncia da arte e da literatura, por nés interpretado como reaccfo dos receptores frente as obras de vanguarda que se furtam aos processos da hermenéutica tradicional. Nesta tentativa de reconstrucao, deve sobretudo destacar-se a ruptura entre os métodos formais (que dizem respeito aos processos) € a interpretagdo de sentido pretendida pela hermentutica. Semelhante reconstrugao de uma relacdo genética nao deve incorrer no equivoco de atribuir a um determinado tipo de obras um determinado método cientifico, as obras organi- cas 0 hermenéutico e as de vanguarda o formal. Atribuir esse sentido a sua interpretacdo entraria em contradi¢ao com o que temos vindo a argumentar. A obra de van- guarda obriga, de facto, a um novo tipo de compreensao, mas nem este a toma por unico objecto de aplicacéo, nem faz desaparecer a problematica hermenéutica da compreen- sio. Em vez disso, acontece que a partir da transformagao essencial no ambito do objecto se chega também a uma alteragdo estrutural do processo de apreensdo cientifica do fenémeno artistico. Supde-se que este processo de oposi¢ao dos métodos formal e hermenéutico precede o momento da superagdo de ambos, no sentido hegeliano do termo, e afigura-se-me que a ciéncia da literatura deve actualmente deter-se neste ponto (3%). A causa da possibilidade de uma sintese dos processos formal e hermentutico é a ideia de que a emancipacao das partes, mesmo na obra de vanguarda, nao resulta nunca huma completa cisio do todo da obra. Até onde a negacao da sintese se converte em principio da criacdo, se pode pen- 133 sar ainda numa unidade precaria. Para a recep¢do, isto sig- nifica que a obra de vanguarda também deve entender-se segundo o processo hermenéutico (quer dizer: como totali- dade de sentido), com a ressalva de que a unidade assumiu a contradigéo, A harmonia das partes ja nado constitui o todo da obra, que consiste agora na relago contraditéria de partes heterogéneas. Os movimentos histéricos de van- guarda nao exigem uma simples substituigdo da hermenéu- tica pelo processo formal, nem que a transformemos, de agora em diante, num processo intuitivo de compreensao. As transformagées da hermenéutica devem estar em conso- nAncia com a nova situa¢% histérica. O método de anilise formal de obras de arte adquire grande import4ncia no seio de uma hermenéutica critica, A medida que a subordinagao das partes ao todo em que se apoiava a interpretagdo da hermenéutica tradicional se revelou em func&o de uma esté- tica classica. Uma hermenéutica critica, em vez do teorema sobre a necéssdria harmonia dos todos e das partes, estabe- lecera a investigacfo das contradicdes entre os niveis da obra, e deste modo procuraré deduzir em primeiro lugar 0 sentido do todo. IV—A OBRA DE ARTE VANGUARDISTA () R. Bubner, «Uber einige Bedingungen gegenwartiger Asthetik» («Acerca de algumas condigdes da estética contempor&neas), em Neue Hefte Sir Philosophie, n.° 5 (1973), pig 49. (@) A estética kantiana no parte, como sabemos, de uma definigao das obras de arte, mas dos juizos estéticos. Para essa teoria, contudo, néo ¢ deci- siva a categoria; pelo contrario: Kant também pode incluir nas suas reflexdes a beleza natural, que nao tem cardcter de obra, nem é produzida pelos homens. () Th. W. Adorno, Philosophie der neuen Musik (Filosofia da nova musica), Ulstein Buch, 2866, Frankfurt/Berlim/ Viena, 1972, 2.* ed., pag. 33. (4) Th. W. Adorno, Asthetische Theorie (Teoria estética), editada por Gretel Adorno ¢ R. Tiedemann, Gesammelte Schriften (Obras completas), 7, Frankfurt, 1970, pag 235; passara a ser citado por AT. () Exemplo: a exposigo apresentada em Bruxelas ¢ noutras cidades, Metamorphose des Kunst und Antikunst, 1910-1970 (Metamorfoses da arte ¢ antiarte, 1910-1970), 1970. (9 Ver a propésito M. Damus, Funktionen der bildenden Kunst im Spa- tkapitalismus. Untersucht anhand der «avanigardistischen» Kunst der sechzi- der Jahre (Fungées da arte figurativa no capitalismo tardio. Investigagdo Sobre a arte «anguardista» dos anos sessenta), Fischer Taschenbuch, 6194, Frankfurt, 1973. © autor procura destacar a fung&o afirmativa da arte neo- vanguardista. Por exemplo: «A arte pop (...), que na escolha dos objectos ¢~ das cores e no modo de execugo parece intimamente ligada A vida das gran- des cidades americanas, faz, por assim dizer, como qualquer arte aplicada, publicidade de historias aos quadradinhos, estrelas de cinema, cadeiras eléc- tricas, casas de banho, automéveis ¢ acidentes de automéveis, ferramentas ¢ comestiveis de toda a espécie, em suma, faz publicidade da publicidade» (pags. 76 ¢ segs.). Damus, no entanto, no dispde de um conceito dos movi- mentos histéricos de vanguarda, pelo que tende a descurar a diverg¢ncia entre dadaismo ¢ sutrealismo, por um lado, ¢ a arte neovanguardista dos anos sessenta, por outro. (7) Gisela Dischner, por exemplo, reportando-se explicitamente A exigtncia de Breton quanto a pratica da poesia, resume as intengdes da poc- sia concreta do seguinte modo: «A obra de arte concreta aspira a uma situa- G40 utépica: & sua anulagdo na realidade concretan, Konkrete Kunst und Gesellschaft (Arte concreta e sociedade), em «Konkrete Poesia. Text+Kritik, n.° 25, Janeiro de 1970, pag 41. (®) O significado atribuido aqui aos movimentos de vanguarda nJo é compartilhado, longe disso, por todos os investigadores. Em Die Struktur der modernen Lyrik (A estrutura da lirica moderna), de H. Friedrich, que pretende ser uma teoria da poesia moderna, o dadaismo & completamente excluido, S6 é teferido no quadro cronolégico, com esta magra anotacéo: «1916, Nasce 0 dadaismo em Zurique», Die Struktur der Modernen Lyrik. Von der Mitte des neunzelien bis zur Mitte des zwanzigsten Jahrhunders (A estrutura da lirica moderna desde o meio do século XIX até ai meio do século XX), Rowolts Deutsche Enzyklopadie, 25/26/26 a, Hamburgo, 1968, 135 22 ed.. pag. 288. Sobre o surrealismo, diz-se o seguinte: «Quanto aos sur- realistas, s6 pode interessar-nos o seu programa, que confirma através de instrumentos pseudo-cientificos um modo de fazer poesia inaugurado por Rimbaud. A convicg4o de que 0 homem pode ampliar ilimitadamente a sua experiéncia no caos do inconsciente, a ideia de que o louco, ao criar uma «sobrerrealidade», néo & menos «genial» do que o poeta, a concep¢io da Poesia como um ditado amorfo do inconsciente, eis alguns pontos desse pro- grama. Assim se confunde 0 vémito — poético, bem entido — com a cria~ 0. Nao resulta daqui nenhuma poesia de nivel. Liricos de qualidade elevada, que se costumam incluir entre os surrealistas, como Aragon ou Eluard, ndo devem a sua poesia a semelhante programa, mas antes & geral forga estilistica que desde Rimbaud incorporou na lirica a linguagem do ilé- » Pig 192). Em primeiro lugar, € preciso deixar bem claro que a va do meu trabalho € diferente da de Friedrich, O que chamo com- Preensio das rupturas histéricas essenciais na evolugao do fenémeno arte no seio da sociedade burguesa, ¢ designado por Friedrich como «poesia de nivel». Ha porventura algo de mais importante: a tese da unidade estrutural de Baudelaire até Benn nao pode ser discutida se se aceita 0 conceito de estrutura de Friedrich, que surge como bastante problemitico. Nao se trata da palavra estrutura (na passagem citada, Friedrich fala, por exemplo, dt «orga estilistica»), utilizada num sentido diferente do que foi usado pelo estruturalismo, tadiamente conhecido na Alemanha, mas sim do processo cientifico. Este processo caracteriza-se pelo facto de que Friedrich reine sob © conceito de estrutura fendmenos completamente heterogéneos: processos poéticos (técnicas de encadeamento, por exemplo), conteddos explicitos (a solido, a angustia) e um teorema poetolégico do poeta (a magia da lingua- gem). A unidade destes Ambitos diversos consegue-se através do recurso a0 conceito de estrutura. Mas s6 se pode falar de estrutura quando estfo rela- cionadas categorias de ordem id@ntica. Fica por saber se os processos artisticos néio foram j4 completamente desenvolvidos por Rimbaud. E aqui intervém 0 problema dos «precursores». Estes sio descobertos a partir da estrutura narra- tiva das interpretagées histéricas, mas sempre s6 a posteriori. S6 depois de determinados os processos empregados por Rimbaud (nao todos), é possivel descrevé-lo como «precursor da vanguarda. Por outras palavras: 56 gracas aos movimentos de vanguarda atribuimos hoje a Rimbaud a importancia que merece. (%) Adorno chama moderna & arte produzida a partir de Baudelaire. O conceito engloba os antecedentes dos movimentos de vanguarda, os proprios movimentos ¢ a neovanguarda. Enquanto eu tento mostrar os movimentos histéricos de vanguarda como um fenémeno delimitado pela histéria, Adorno parte da unidade da arte moderna como tnica arte legitima do pre- sente. Por meio de uma histéria do conceito de «moderno» ¢ da sua proble- matizago, H. R. Jaub esbogou uma histéria da experitncia da transig&o desde a antiguidade tardia até Baudelaire: «Literarische Tradition und gege- nwartiges Bewusstsein der Modernitat» («Tradicdo literaria ¢ consciéncia pre- sente da modernidade»), em Literaturgeschichte als Provocation (Historia da literatura como provocagdo), Ed. Subrkamp, 418, Frankfurt, 1970, pags. 11-66. (9 Th. W. Adorno, «Aufarbeitung der Vengangenheit» («Que significa 136 acabamento do passado»), em Erziehung zur Mindigkeit (Educagdo para a idade adulta), editado por G. Kadelbach, Frankfurt, 1970. pag. 13. (1) Sobre a nouveauté na tragicomédia, ver P. Burger, Die friihen Komodien Pierre Corneilles und das franzdsische Theater um 1630. Eine wirkungsasthetisch Analyse (As primeiras comédias de Pierre Corneille ¢ 0 teatro francés cerca de 1630. Uma andlise das suas consequéncias estéticas), Frankfurt, 1971, pags. 48-60. (13 Sobre isto, ver J. Tynjanov, Die literarischen Kunstmittel und die Evolution in der Literatur (Os recursos antistico-literdrios e a evolugdo da literatura), Ed. Suhtkamp, 197, Frankfurt, 1967, pags. 7-60,. especialmente a pag. 21. (13) Th. W. Adorno, «Thesen iiber Tradition» («Teses sobre a tradicao»), em Ohne Leitbid. Parva Aesthetica (Sem modelo. Parva Aesthetica) Ed. Suhrkamp, 201, Frankfurt, 1967, pag. 33. ('9 Em contraste com as continuas transformagées dos meios particula- res de representaco forjados pelo desenvolvimento da arte, a transformaco dos sistemas de representacio (mesmo quando se prolonga consideravel- mente) é um acontecimento histérico transcendente. P. Francastel investigou esta transformagao dos sistemas de representago (Etudes de sociologie de Tart, Bibl. Médiations, 74, Paris, 1970): no decurso do século XV, formou-se na pintura um sistema de representag&o caracterizado pela perspectiva ¢ por uma criago uniforme do espaco. Enquanto que as diferengas de tamanho entre as figuras remetem na pintura medieval para o seu diferente significado, a partir do Renascimento mostram o lugar da figura em relagio com um espago adequado a geometria euclidiana. E enquanto que a pintura medieval retine varias cenas € permite contar uma historia, desde o Renascimento que © espaco da pintura ¢ uniforme, sé permitindo representar um determinado acontecimento. Este sistema de representagSo, aqui caracterizado de modo esquemético, dominou a arte ocidental durante quinhentos anos. Em come- gos do século XX, porém, perde a sua autoridade indiscutivel. No préprio Cézanne, a perspectiva central perde j4 a importancia que ainda tinka nos impressionistas, que a conservaram apesar da sua decomposicao das formas. Acaba-se, desde modo, com a autoridade universal dos sistemas de represen- tago tradicionalista. (') S6 € consequente quando a conscitncia neovanguardista apoi pretensio politica vinculada A sua produgio numa argumentac&o estreita- mente ligada a Adorno. Chris Bezzel, um autor de poesia concreta, afirmaré assim que «im escritor revoluciondrio nfo é 0 que realize uma composiclo semntico-poética que possufa como conteido € propésito a necessidade da revoluco, mas aquele que revoluciona, com meios potticos, a poesia co- mo modelo da propria revolugao (...). Em comparac&o com a alienagio da burguesia tardia, a alienagdo composta pela arte perante a realidade repres- siva é uma forca que empurra para a frente. Esta forga & dialéctica, jé que pde em funcionamento a alienacSo estética em relago com a realidade insu- Portével», Dichtung und revolution (Poesia e revolucdo), em wKonkrete Poe- sie. Text+Kritik», n° 25 (Janeiro de 1970), pigs. 35 ¢ segs. O proprio Adorno, porém, mostra-se bastante céptico em relago a essa «forga que empurra para a frente» da arte neovanguardista; na teoria estética, como ja 137 vimos, chega-se a apontar para a total ambivaléncia de tais obras, abrindo a possibilidade da sua critica. (19 E. Kohler, Der literarische Zufall, das Mégliche und die Notwendi- gkeit (O acaso literdrio, 0 possivel e a necessidade), Munique, 1973, cap. 3. (17) Sobre o significado da orientag’o como categoria da estética da produgdo, ver P. Burger, Der franzésische Surrealismus. Studien zum Pro- blem der avantgardistischen Literatur (O surrealismo francés. Estudos sobre 0 problema da literatura de vanguarada), Frankfurt, 1971, pags. 154 ¢ segs. Em relago com 0 que se segue, Veja-se a andlise do Paysan de Paris incluida nesta obra. ('9 Th. W. Adorno, Philosophie der neuen Musik, pig. 63. (9) W. Benjamin, Ursprung des Deutschen Trauerspiel (Origem da tra- gédia alemd), editado por R. Tiedemann, Frankfurt, 1963, pigs. 174 € segs. Passaremos a cité-lo como Ursprung. (29) No meu Der franzésische Surrealismus, cap. XI, pags. 174 ¢ segs., apliquei o conceito de alegoria de Benjamin como instrumento para a inter- ptetacdo da poesia de Breton. Creio que foi G. Lukécs o primeiro a afirmar que 0 conceito de alegoria de Benjamin se pode aplicar & obra de vanguarda («Die weltanschaulichen Grundlagen des Avantgardeismus» — «Os principios ideolégicos do vanguardismon), em Wider den missverstandenen Realismus (Contra o realismo mal entendido), Hamburgo, 1958, pags. 41 © segs. A investigacdo de Benjamin obedece ao interesse por uma compreensdo da lite- Tatura contemporanea, ¢ isso ndo s6 € evidente nas suas referencias a0 impressionismo na introdugéo da sua obra (Ursprune, pags. 41 ¢ segs.) como também Asja Lacis 0 mostrou explicitamente: «Em segundo lugar, diz que a sua investigagio nao é académica, mas esté imediatamente relacionada com problemas contemporaneos muito actuais. Insiste explicitamente em que © seu trabalho assinalou a busca de uma linguagem formal pelo dramético barroco como um fenémeno andlogo ao expressionismo. £ por isso que diz que tratou com tanto pormenor os problemas artisticos da alegoria, do sim- bolo € do ritual, Revolutionaie im Beruf (Revoluciondrio por profissao), editado por Hildegard Brenner, Munique, 1971, pag. 44. (2!) Sobre o problema da «wemantizagao dos processos literarios», cf. H. Gunther, «Funktionsanalyse der Literatur («Andlise de fungao da litera~ turay), em J. Kolbe (ed.), Neue Ansichten einer kunftigen Germanistik (Nova perspectiva de uma futura germanistica), Reihe Hanser, 122, Muni- que, 1973, pags. 179 € segs. (2) O comportamento do cu surrealista, tal como surge reflectido por Aragon no Paysan de Paris (1926), determina-se pela recusa em submeter-se As presses de ordem social. A petda de possibilidades praticas de acco, que se deduz da falta de uma fungfo social, dé lugar ao aparecimento de um vazio, precisamente 0 ennui. Do ponto de vista surrealista, este ennui estd muito longe de ser valorizado negativamente; é, pelo contrario, a condicio decisiva para a transformagao da realidade quotidiana em que se empenham os surrealistas. (3) E pena que a obra de Gisela Steinwachs, que acerta na sua determi- nagdo do fenémeno, no conte com as categorias descritivas que permitem uma compreensio precisa. Ver Gisela Steinwachs, Mythologie des Surrealis- mus oder die Ruckverwandlung von Kultur in Natur (A mitologia do surrea- 138 lismo ow a devolugdo da cultura @ nalureza), Sammlung Luchterhand, 40, Neuwied/Berlim, 1971, pags. 71 € segs. (9 G. Lukécs, «Es geht um Realismus» («Trata-se do realismo»), em Marxismus und Literatur. Eine Dokumentation (Marxismo e literatura. Uma documentacdo), editado por F. J. Raddatz, tomo Il, Reinbeck em Ham- burgo, 1969, pags. 69 © segs. (2) Sobre 0 problema da montagem no cinema, yer W. Pudovkine, «Uber die Montage» («Sobre a montagem»), em Theorie des Kinos (Teoria db cinema), editada por K. Witte, Ed. Suhrkamp, 557, Frankfurt, 1972, pags. 113-130, e S. Eisenstein, Dialektische Theorie des Films (Teoria dialéc tica do cinema), em D. Prokop (ed.), Materialen zur Theorie des Films. Ast- hetik, Soziologie, Politik (Materiais para uma teoria do cinema. Estética, sociologia, politica), Munique, 1971, pags. 65-81. 9 Cf, por exemplo, Un Violon (1931), de Picasso, no Museu de Arte de Berna. (@) John Heartfield. Dokumentation, editada pelo grupo de trabalho Heartield, Berlim (Neue Gesellschaft fur bildende Kunst), 1969/1970, pags. 31 e 43. (2) J. Wissmann, que oferece uma util panoramica sobre a utilizagao da técnica do collage na pintura moderna, resume assim o efeito da colagem cubista: «as partes que assinalam a realidade tem a missdo de «tornar legi- veis para o observador os sinais pictéricos que se tornaram néo objectuais». Com isso, n&o se persegue nenhum ilusionismo no sentido até entéo em vigor: «obtém-se em seu lugar um distanciamento que joga de uma forma muito diferente com a oposigdo entre arte ¢ realidade», com o que as contr: dices entre o pintado ¢ 0 real so «dissolvidas pelo seu observador» («Colla- gen oder die Integration von Realitat im Kunstwerky — «A colagem ou a integracSo da realidade na obra de arte»), em Immanente Asthetik. Asthetis- che Reflexion (Estética imanente, Reflexo estético), Poetik und Herme- neutik, 2, Munique, 1966, pags. 333 € segs. Aborda-se aqui o collage do Ponto de vista da «estética imanenten; trata-se da questo da «integracZo da realidade na obra de arten. Este extenso artigo apenas dedica uma pagina A fotomontagem de Hausmann ¢ Heartfield. Contudo, teriam sido estes, preci- samente, que poderiam oferecer a possibilidade de provar se necessariamente se produz no collage essa «integraco da realidade na obra de arten, se o Principio do collage nao se opde antes a uma tal integracdo, possibilitando assim um novo tipo de arte comprometida. Cf. neste contexto as reflexdes de S. Eisenstein: «Para substituir o “reflexo” estatico de um acontecimento, dado necessariamente pelo tema ¢ pela possibilidade da sua solugSo unica- mente através de consequéncias logicamente vinculadas a esse acontecimento, aparece um novo processo artistico: a livre montagem de influéncias (atrac- gSes) independentes, conscientemente seleccionadas (com efeitos para além da composicio presente ¢ da cena-sujeito), mas com uma inten¢So exacta sobre um determinado efeito tematico final», Die Montage der Attraktionen (A montagem de atraccées), em «Asthetik und Kommunikation», n.° 13 (Dezembro de 1973), pag. 77; ver também a este respeito Karla Hielscher, S. M, Eisenstein Theaterarbeit beim Moskauer Proletkult 1921-1924 (O traba- tho teatral de Eisenstein na cultura proletdria moscovita 1921-1924), em «Asthetik und Kommunikation», n.° 13 (Dezembro de 1973), pags. 68 e segs. 139 (2% Ver Herta Wescher, Die Collage. Geschichte eines Kustlerischen Ausdrucksmittels (A colagem. Histdria de um meio de expressdo artistico), Coldnia, 1968, pag. 22, que explica a introdugdo do collage por Braque como desejo de «se evitar o fatigante processo de pintary. Uma breve apre- sentagao da evolugdo do collage, em que se insiste, com razdo, nas transfor- magées de significado desta técnica, € oferecida por E. Rotets, «Die historische Entwicklung der Collage in der bildenden Kunst» («A evolugio histérica do collage nas artes plasticas»), em Prinzip Collage (Principio col lage), Neuwied/ Berlim, 1968, pags. 15-41. (79 Sobre a relagto entre a teoria estética de Adorno e a filosofia da historia desenvolvida na Dialektik der Aufklarung (Dialéctica do Mumi- nismo), Amsterdo, 1947, ver Th. Baumeister/J. Kulemkampfl, Geschichisp- hilosophie und philosophische Asthetik. Zu Adornos «Asthetischer Theorien (Filosofia da histéria e estética filosdfica, Sobre a ateoria estéticar de Adorno), em «Neve Hefte fir Philosophie», n.° 5 (1973), pags. 74-104, (1) E. Bloch, Erbschafi dieser Zeit (O legado deste tempo), edigio ampliada. Gesammausgabe (Obras completas), 4, Frankfurt, 1962, pags. 221- 8. (°3, W. Iser ocupou-se da montagem na lirica moderna em «Image und Montage. Zur Bildkonzeption in der imagistischen Lyrik und in T. S. Eliots «Waste Land» (almagem € montagem. Sobre a concepgdo representativa na lirica de imagens ¢ em «Waste Land» de T. S. Eliot), em [mmanente Ast- hetik und asthetische Reflexion (Poetik und Hermeneutik, 2, Munique, 1966, pags. 361-393). Partindo de uma determinagdo da representagio poética como «representagio iluséria da realidade» (a representacdo devolve a vista um dnico momento do objecto), Iser assinala como montagem representativa a reuniSo (a sobreposigfio) de imagens que se referem ao mesmo objecto. Descreve 0 seu efeito da seguinte forma: «A montagem de imagens destrdi a sua finitude iluséria e supera a confusdo de fenémenos reais com a forma em Que os vemos. As “imagens” interferentes oferecem entdo a irrepresentabili- dade do real como uma plenitude de pontos de vista estranhos, os quais, precisamente pelo seu cardcter individual, podem ser produzidos em nimero indefinido» (id., pdg. 393). A «irrepresentabilidade do real» ndo é 0 resultado de uma interpretacdo, mas 0 facto descoberto pela montagem de imagens. Em vez de perguntar porque aparece a realidade como ircepresentavel, mostra-se ao intérprete esea irrepresentabilidade como algo certo e indiscuti- vel, Iser adopta assim a posic¢fo contraria & teoria do reflexo; até nas ima- gens da lirica tradicional julga descobrir a ilusio realista (1a confusio de fenémenos reais com a forma em que os vemos»). (9 A aplicagdo das categorias de paradigma ¢ sintagma a Nadja de Breton € 0 aspecto mais convincénte do trabalho de Gisela Steinwachs, Mythologie des Surrealismus oder die Riickverwandhing von Kultur in Natur, Eine strukturale Analyse von Bretons «Nadja» (A mitologia do sur- realismo ou a devolucdo da cultura & natureza. Uma andlise estrutural da «Nadja de Breton, Sammlung Luchtethand, 40, Neuwied/Berlim, 1971, cap. IV. defeito do trabalho consiste em que se limita a procurar analogias entre motivos surrealistas e varios principios também surrealistas, cujo valor de conhecimento € discutivel. 140 (249 Sobre 0 circulo hermentutico, ver H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode. Grundziige einer philosophischen Hermeneutik (Verdade e método. Fundamentos de uma hermenéutica filosdfica), 2.2 ed., Tubinga, 1965, pags. 275 ¢ segs., e J. Habermas, Zur Logik der Sozialwissenschaften. Materialen (Materiais sobre a ldgica das ciéncias sociais), ed. Suhrkamp, 481, Frankfurt, 1970, pags. 261 ¢ segs. M. Warnke mostra como a dialéctica da parte e do todo na interpretagao de uma obra pode degenerar num pres- suposto interpretative «que observe sempre a autoridade ilimitada do todo perante o individual» («Weltanschauliche Motive in der kunstgeschichtlichen Popularliteraturs» — «Motivos ideolégicos na literatura popular histérico- artistican), no seu livro (como editor) Das Kunstwerkzwischen Wissenschaft und Weltanschauung (A obra de arte entre a ciéncia e a ideologia), Gilters- Joh, 1970, pags. 88 ¢ segs. (9 Sobre o problema do choque (shock) na modernidade, ver as suges- tivas observagées de W. Benjamin, que no entanto pretendiam provocar 0 seu poder («ber einige Motive bei Baudelaire» — «Sobre alguns temas em Baudelaire»), em Iluminationen (Iuminagdes). Ausgewiihlte Schriften I (Obras escothidas 1), editado por S. Unseld, Frankfurt, 1961, pégs. 201-245. (C9 Ver a apresentacio de R. Hausmann, agil ¢ particularmente valiosa pela sua documentaco, em Am Anfang war Dada (Ao principio era dadd), editado por K. Riha ¢ G. Kampf, Steinbach/Gie, 1972. (27) A teoria da distanciagéo de Brecht seré uma tentativa coerente para superar 0 efeito inespecifico do choque, recuperando-o ao mesmo tempo de forma didactica. (9 Ver a propésito P. Burger, «Zur Methode. Notizen zu einer diale- ktischen Literaturwissenschaft» («Sobre 0 método. Noticia a propésito de uma ciéncia dialéctica da literaturan), em Studien zur franzisischen Frithaw Jfklarung (Estudos sobre o primeiro Ikuminismo frances), Ed. Suhrkamp, 525, Frankfurt, 1972, pags. 7-21, ¢ P.Burger, «Benjamins *rettende Kritik”. Vort- berlegungen zum Entwurf einer kritischen Hermeneutik» («A “critica salva- dora” de Benjamin. Reflexes preliminares ao projecto de uma hermenéutica critica»), em Germanisch-Romanische Monatschrift N. F. 23 (1973), pags. 198-210. Os problemas cientificos ¢ tedricos criados por uma sintese de for- alismo ¢ hermentutica aborda-los-ei no quadro de uma critica do método. 141

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