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MARCIA MENDONCA PARA CONHECER AS COISAS, HA QUE DAR-LHES A VOLTA, DAR-LHES A VOLTA TODA. José Saramago! A AULA DE GRAMATICA: UM ESPACO DE CONFLITO? ensino de gramatica constitui um dos mais fortes pilares das aulas de portugués e chega a ser, em alguns casos, a preocupagao quase exclusiva dessas aulas. Nas tltimas duas décadas, entretanto, vem se firmando um movimento de revisao critica dessa pratica, ou seja, vemn-se questionando a validade desse “modelo” de ensino, o que faz emergir a proposta da pratica de andlise lingufstica (AL) em ver. das aulas de gramé Essa critica se baseia em pontos-chave, dos quais citamos dois: a) 08 resultados insatisfatérios da énfase nas aulas de gramatica (parcial- mente evidenciados em avaliagdes como ENEM e SAEB’), ou seja, alunos cujas habilidades basicas de leitura e de escrita nao foram potencializadas, ja que estas ficam em segundo plano; b) aconstatacio, por meio de pesquisas, de que a gramdtica normativa, base do ensino de gramitica na escola, apresenta inconsisténcias tedricas (por ex., a definicio de sujeito ¢ suas subclassificagdes, que misturam aleato- 1 Depoimento no documentétio Janela da alma (J. Jardim & W. Carvalho, Europa Filmes, 2001). 2. Ainda que se questione a validade absoluta dos nimeros apresentados nessas avaliages, elas indicam dificuldades dos alunos em questées de compreensdo de texto ¢ também de produgao de textos, quando esta é solicitada, Para uma discussio sobre essas avaliagdes, ver © capitulo 4, de B. Marcuschi 200 wdncus uexdonca riamente critérios semanticos, sintaticos e até pragmaticos), além de descrever adequadamente a norma padrao contemporanea’, o que ej apontado por Oswald di ja no inici 10 Pp swald de Andrade, j4 no inicio do século XX: PRONOMINAIS Dé-me um cigarro Diz a gramatica Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nagao Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dé um cigarro (Poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1978. p.8 7 Tomemos como exemplo desse movimento o langamento da obra orga: nizada por J. W. Geraldi, O texto na sala de aula, em 1984. Os artigos de livro ja propunham uma reorientaco para o ensino de portugués. oat if na leitura e escrita de textos como priticas sociais significativas ine da e na anilise dos problemas encontrados na producio textual como me ‘ a pratica de AL, em vez dos exercicios estruturais de gramatica Goomnetll descritiva). Apesar de ter-se convertido num marco entre as publicagdes val tadas para a formagao de professores, nao se efetivaram, desde seu aime grandes mudangas quanto ao ensino de gramitica, ao passo que o trabalho com leitura e escrita j4 apresentou algumas modificagdes*. Quando se trata do que acontece numa sala de aula, nao ha padres inflexivei: modelos fixos; na verdade, recorre-se a diversos caminhos tedrico-metodoldgi i pa a Sondineas, do processo de ensino-aprendizagem. Por isso, neste nomi 1 ae ey naa eee as oe de ensino de lingua materna do ensino eee eae M), revel (como sempre revelaram) 0 jeito “tradicional”* de ensinar gramética ainda esti Presente, a0 passo que novas praticas também ja sao encontradas. 3 Duas falhas da abordagem da norma padrio apontadas por Faraco (2002) slo 4 identificaga fi fi ae clio . padrio com o contetido dos compéndios gramaticais ea consideragho do adrao como ge e estitic P homogéneo c estitico por parte desses mesmos compéndios, sem que se admil a variagio © a mudanga. = 4 Ver, neste livro, ov capitulon 2 @ 4, sobre lelturay ie , © 46 6, sobre produgho de textoy ANALISE LINGUISTICA NO ENSINO MEDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO oBJETO QA) Um exemplo de como isso ocorre de fato nos foi relatado por uma professora do EM de Recife (PE): ao mesmo tempo em que ela abordava 08 pronomes a partir da classe e de suas subclassificagSes e nomenclaturas espect~ ficas (pessoais, demonstrativos, possessivos etc.) — ensino de gramatica —, comecou também a fazer uma reflexao sobre a sua funcdo textual como recurso coesivo de retomada de referentes — AL. Essa professora ainda revelou sentir certa angiistia, uma vez que nao conseguia dar esse “salto” para outros con- tetidos curriculares convencionais. A tentativa de aliar uma nova perspectiva a formas conhecidas de ensinar 4 natural num processo de apropriacao, por parte do docente, de uma proposta tedrico-metodolégica diferente da sua pratica cotidiana’. Isso se explica porque nao é possivel, para o professor, desvencilhar-se da sua propria identidade profissional, © que seria quase negar a si mesmo, de uma hora para outra, a nao ser por melo de uma adogio acritica de novas propostas, de um “inovacionismo” irresponsivel. Nesse sentido, atravessamos um momento especial, em que convivem “velhas” e “novas” praticas no espaco da aula de gramética, por vezes, conflituosas. Alguns desses conflitos revelam-se também com questionamentos de alu« nos: “Por que a gente tem de estudar isso?”, “Pra que serve saber a diferengit entre complemento nominal e adjunto adnominal?”. © problema nio ¢ 0 surgimento das perguntas, desejaveis para a aprendizagem, mas a auséncia de respostas convincentes na grande maioria dos casos. Isso parece indicar que muitos professores nao encontram outra razao para ensinar 0 que ensinam nas uma abordagem obsoleta, equivocada ou sem sentido. Aponta na verdade, para um conjunto dle préticas que se solidificaram com 0 passar do tempo, com regularidade ce ocorrénclay 0 que terminou por constituir uma “tradigio”, Aspectos dessa tradigo podem ser hoje questionados com 0 devido distanciamento, que nos possibilita um olhar menos envolvide ¢ mais objetivo, mas isso nfo significa desprezat todo 0 trabalho feito em determinados momentos da nossa educagdo (dadas essas explica 5 no capitulo), Por exemplo, na escola tradicional, também ha préticas de letramento significativas, aljgumiy deveriam ser resgatadas, mesmo com outra roupagem. f 0 caso da recitagilo de Je, nao mais usaremos a das quai poemas, dos saraus na escola, em que os alunos eram solicitados a conhecer textos postieos, memorinielos e declamé-los, para uma audiéncia de colegas, professores ¢ pais. Era, enfim, umn evento de letramento significative dentro da vida escolar, A respeito de mudangas historicas no ensino de portugués, ver o capitulo 8 deste livre, de Bunzen. 6 Alguns livros didéticoy @ gramiticas pedagdgicas assumem essa configuragie intermedidria entre o ensino de gramétien © 4 pritica de AL, como os langamenton, em 1998, du Gramdtica apticada aos rexeor (Infante, 1995); © em 1999, da Gramdtica reflexiva: sant ndntica ¢ ineragdo (Gore}a & Magalies, 1999), Ov pedprion Hitulos apontam em sctttaiacilimeetiialiciai aulas de gramitica, a nao ser a forga da tradigao, revelando uma pritica docente alienada de seus propdsitos mais basicos. A partir desse olhar para que atualmente se vivencia nas aulas de portugues, Propomos discutir, junto com professor em formagao, o papel das praticas de AL, no EM. Que lugar ocupa, portanto, a AL nesse cendrio? Perguntam os professores “AL és um novo nome para o ensino de gramatica?”; “Como trabalhar com AL, sem “cair’ nas regras e nomenclaturas da gramatica normativa?” Sabe-se ainda que a interligagao entre os eixos da AL, da leitura e da produgao de texto no ensino de lingua materna permanece um desafio para professores ¢ pesquisadores do campo aplicado da linguistica. Assim, ganham espago, entre docentes, questées como: “ff necessdrio articular a AL com as praticas de leitura e de produg&o textual? Por que raziio? De que maneira?”, “Se o foco sio os usos linguisticos — materializados na _ leitura e a produgao de textos — por que dedicar um papel especifico 8 AL?”, “Ii, preciso ensinar nomenclaturas? Quais?”, “Fazer AL é substituir nomenclaturas da gramdtica normativa por nomenclaturas da linguistica (coesao, coeréncia, sintagma, — andfora, déitico etc.)?”. A reflexdo sobre tais questdes norteara este capitulo. 2. LiNGUA MATERNA NO ENSINO MEDIO: ALGUMAS PARTICULARIDADES O ensino de lingua portuguesa no EM apresenta algumas caracteristicas espe~ cificas que se relacionam a organizacao dessa etapa da escolarizagéio quanto a escolha dos contetidos a serem convertidos em objetos de ensino, quanto A progressao desses objetos nas séries e quanto as justificativas para se estudar tais topicos. O EM, por caracterizar-se como a etapa final da educagiio basica, carrega um peso significativo quanto A selec&o dos objetos de ensino (contetidos e competéncias) a abordar e das estratégias a adotar, pois nao é possivel “retomar © que no foi visto” ou “suprir as lacunas” para além dos trés anos de EM. Além disso, o carater de preparacio para o trabalho (hoje em dia, quase restrita a vagas oferecidas em concursos) e/ou para o vestibular, que efetivamente nao pode ser negado, traz outras implicagdes para essas escolhas. Na selegao de objetos de ensino da drea de lingua materna, o EM tem privilegiado, em geral, uma revisio/repetic&o do que foi visto no EFII, o que se restringe, primordialmente, a uma revisio de gramatica’ e de técnicas de 7 Essa repetigio jé era apontada por Neves no seu livro Gramdtica na escola (1994), Tangado em 1990. redagio, especialmente para as dissertagdes escolares, com a novidade da intro- dugio do estudo da literatura. No Ambito do ensino de gramatica, aborda-se a andlise fonética e morfossintatica de palavras e expressdes no 1° ano do EM, como revistio do 1° ciclo do EFI (5" e 6" séries); introduz-se a andlise sintatica de periodos, agora com as oragdes reduzidas, no 2° ano do EM, revisando-se 0 2° ciclo do EFII (7 € 8" séries) etc. O 3° ano do EM seria dedicado a uma revisao geral de todo 0 curriculo escolar, com énfase no treinamento para o vestibular, situago mais comum em escolas privadas. A l6gica subjacente a essa organizag’o é a sucesséio de unidades a serem analisadas, cada vez mais complexas do ponto de vista morfossintatico: da palavra, para a oracio; da oracao, para o perfodo*. Entretanto, muito raramente se chega & unidade maior: 0 texto. Menos ainda se tematizam aspectos discursivos. E o que denominamos de organizagéo cumulativa. Nessa pers- pectiva, a listagem de tépicos gramaticais a serem ensinados assemelha-se, muitas vezes, ao sumario de uma gramatica normativa: da fonologia para a morfologia, dai para a sintaxe e daf para a semAntica (da frase), onde parece acabar 0 universo dos fendmenos lingufsticos. A perspectiva da organizac&o cumulativa ignora dois aspectos fundamentais. O primeiro deles é 0 fato de que a aquisigao de linguagem se da a partir da produgao de sentidos em textos situados em contextos de interagdo especificos nio da palavra isolada; ocorre, portanto, do macro para o micro. Mesmo quando apenas fala algumas palavras, a crianga est, na verdade, produzindo discurso: é a interacio com © outro que importa e é para isso que ela procura aprender a falar (ea escrever, posteriormente). O fluxo natural de aprendizagem é: da competéncia discursiva para a competéncia textual até a competéncia gramatical (também cha- mada por alguns de competéncia linguistica). O isolamento de unidades minimas — que é parte da competéncia gramatical — é um procedimento de andlise e que s6 tem razdo se retornar ao nivel macro: na escola, analisar o uso de determinada palavra num texto s6 tem sentido se isso trouxer alguma contribuico 4 compre- ensio do funcionamento da linguagem e, portanto, se auxiliar a formagéio ampla dos falantes’. A andlise pela andlise nao faz sentido, conforme apontam os PCN+: 8 £ 0 caso da inclusdo tardia das oragées reduzidas no estudo da subordinaca geralmente apenas no EM, supondo-se que estas sejam dificeis para os alunos do EF. Ignora- se que as oracdes reduzidas (por ex.: Chegarei ao entardecer) 86 so dificeis de se categorizar, mas nio, de se usar. 9 Perini (1995: 28-33) apresenta trés razdes para o ensino de gramética: aplicagio imediata 1, observacio, (por ex.: saber procurar palavras no dicionério), formaciio de habilidades (racioci Considera-se mais significativo que o aluno internalize dete canismos e procedimentos basicos ligados a coeréncia e a coesio do que memorize, sem a devida apreensio de sentido, uma série de nomes de oragdes subordinadas ou coordenadas (...) (p. 70-71). rminados me= Em segundo lugar, a organizac3o cumulativa ignora o objetivo de formar usuarios da lingua, para privilegiar a formaciio de analistas da lingua. A escola ndo tem de formar gramaticos ou linguistas descritivistas, e sim pessoas capazes de agir verbalmente de modo aut6nomo, seguro e eficaz, tendo em vista og propésitos das miiltiplas situagées de interacdio em que estejam engajadas. Por isso, a AL surge como alternativa complementar as praticas de leitura e produg3o de texto, dado que possibilitaria a reflexdo consciente sobre fendmenos gramaticais e textual-discursivos que perpassam os usos lin« Suisticos, seja no momento de ler/escutar, de produzir textos ou de refletir sobre esses mesmos usos da lingua. Nao se exclui aqui a necessidade de sistematizacao na AL, j4 que, espe- cialmente nessa etapa da escolarizagao, nao ha mais motivo para tratar og fendmenos normativos, sistémicos, textuais e discursivos de forma intuitiva, | Isso € defendido para a abordagem de alguns aspectos no EFT (principalmente) e EFII, quando a meta maior é alfabetizar e letrar, ou seja, levar os alunos a apropriagao do sistema de escrita e inseri-los em diversas praticas letradas _ significativas. Portanto, é preciso que o trabalho com AL no EM parta de uma. reflexo explicita e organizada para resultar na construgao progressiva de conhecimentos e categorias explicativas dos fendmenos em anilise. 1 Outra peculiaridade do EM é 0 seu objetivo de Ppreparar para o trabalho e/ ou para o vestibular, que traz implicacées para a selego de contetidos e estratégias de ensino, pois se passa a questionar 0 que seria essencial nessa formagao, entre os objetos de ensino abordados na escola. Numa visio mercadolégica, alegou-se, durante um tempo, que alguns saberes seriam um “luxo” dispensavel. Por exemplo, a fruig&o estética e andlises linguisticas mais sofisticadas, que levariam a leitura testagem de hipéteses sobre aspecto da estrutura da lingua, enfim, formagdo para a pesquisa € 0 pensamento independente) e formago cultural (t6pico valorizado socialmente, embora sem aplicagio imediata). Esta tltima justificativa € pertinente numa formagdo generalista, que suponha um lasiro forte de conhecimentos gerais, necessérios, por exemplo, para se produsit entender um comentario como “Bela metéforal”. Porém corre o risco de ser mal compreendida como uma énfase na filigranas gramaticais, nas minicias. Nesse caso, passaria a revelar um deseo de formagao erudita, de cardter elitista, insustentivel dentro do atual paradigma da formagdo para a cidadania e a inclusao. critica, das entrelinhas, nfo encontrariam espago num curriculo voltado para sa~ heres de aplicagao pratica imediata no mundo do trabalho. No entanto, mesmo que se vise ao mercado, essa formag3o de erahcemat pratico, criada para atender as necessidades do Brasil na sua fase de oud fea industrializac4o, no mais contempla as necessidades humanas deste 3° milénio, in clusive do mercado de trabalho. Por essa razio, a articulag3o entre ciéncia, conheci- mento e cultura seria 0 eixo central do EM, de modo a permitir a formagio de capacidades criadoras e emancipatérias, e nZio apenas reprodutoras (Frigotto, 2004). Quanto ao vestibular, ha uma tendéncia crescente de valorizar as habilidades e competéncias de leitura e escrita (saber fazer), em detrimento de conhecimentos metalinguisticos (saber sobre), sendo estes auxiliares aquelas Desse patamar mais amplo, a AL constitui uma das ferramentas para o desenvolvimento de habilidades essenciais de leitura e producio de texto, conforme detalharemos a seguir. 3. ANALISE LINGU[STICA: AFINAL, O QUE & MESMO? Novas palavras surgem quando surgem novas necessidades, ja japontamn os dicionaristas e lexicégrafos. A esse respeito, Soares (1998: 19) diz: ; (...) novas palavras s&o criadas, ou a velhas palavras dé-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreender os fendme- nos”. O termo andlise linguistica nao foge a regra, ou seja, surgiu. para deno- minar uma nova perspectiva de reflexao sobre o sistema linguistico e sobre os usos da lingua, com vistas ao tratamento escolar de fenémenos gramaticais, textuais e discursivos. Foi cunhado por Geraldi em 1984, no artigo “Unidades basicas do ensino de portugués”, parte da coletanea O sexta na sala de aula ([1984]1997c) para se contrapor ao ensino tradicional de gramitica, para firmar um novo espago, relativo a uma nova pratica pedagégica. Essa outra perspectiva, porém, nao pde em divida a necessidade de refletir sobre a linguagem, atividade que praticamos dentro e fora da escola, ao longo de toda a nossa vida. A questao reside em como se da essa reflexiio na escola, com que objetivos e com base em que aspectos, pois a AL explicita e sistematica é uma pratica que nasceu nessa institui¢do, sendo, portanto, parte dos eventos de letramento escolar". 10 Atualmente, a reflexdo sobre a linguagem extrapolou os muros escolares com os “consultérios gramaticais” (programas de rv, colunas em jornais e revistas etc.), mas estes a fazem numa perspectiva normativa estreita, dos pecados e das virtudes. Geraldi (1996) amplia a critica & tradig%io do ensino gramatical nas esco- ie, pols considera que rigorosamente nem se leva 0 aluno a fazer anilise, pois, le ae aos dados aplicam-se andlises preexistentes, aquelas cristalizadas nas peamiteas normativas, sem que os alunos possam testar suas hipdteses sobre os fendmenos observados. Tais andlises seriam, para o autor: G..) respostas dadas a perguntas que os alunos (enquanto falantes da lingua) sequer formularam. Em consequéncia, tais respostas nada lhes dizem e 08 estudos gramaticais passam a ser ‘o que se tem para estudar’, sem saber bem para que apreendé-los (Grraxp1, 1996: 130). Ainda assim, a AL nao elimina a gramatica das salas de aula, como muitos Pensam, mesmo porque € impossivel usar a lingua ou refletir sobre ela sem grama- tica. Nao ha lingua sem gramitica, ja nos lembram Possenti (1996) e Antunes (2003). A AL engloba, entre outros aspectos, os estudos gramaticais, mas num paradigma diferente, na medica em que os objetivos a serem alcangados so outros, Entao, o que ha de novo e de diferente em fazer AL, que nao é ensinar gramatica? De fato, a diferenca comeca pela prépria concepgio que serve de base a toda reflexio sobre ensino de lingua materna: 0 que é lingua(gem). Assumir determinada concepgao de lingua implica repensar o que é importante ensinar nas aulas de portugués e também como realizar esse ensino, Por isso, nu i ii ioni fi itui F SS0, numa perspectiva sociointeracionista de lingua, a AL constitui um dos trés eixos basicos do ensino de lingua materna, ao lado da leitura e da produgao de texto: i i Ori : P a0 textos, Ao assumir tal ponto de vista tedrico, o estudo dos enédmenos linguisticos em si mesmos perde sentido, pois se considera que a selegao eo emprego de certos elementos e estratégias ocorre, afora as restricdes Obvias do sistema linguistico, em consonancia com as condigSes de produgio dos textos) ou seja, de acordo com quem diz o que, para quem, com que paces c em que género, em que suporte etc. Surge, entdo, a proposta da AL, que teria como objetivo central refletir sobre elementos e fendmenos linguis- ticos e sobre estratégias discursivas, com 0 foco nos usos da linguagem., Conforme explice Geraldi (1997c: 74), em nota de rodapé: © uso da expresso ‘andlise linguistica’ nao se deve ao mero gosto por novas terminologias. A andlise lingujstica inclui tanto 0 trabalho sobre as questdes tradicionais da gramatica quanto questdes amplas a propésito do texto, entre as quais vale a pena cita + coesio e coeréncia internas do texto; adequagao ie texto aos objetivos pretendidos; anilise dos recursos expressivos utiliza~ os 4 ae - nee . ae (meraforas, metonimias, pardfrases, citagdes, discursos direto e indireto ete.); organizagao e incluso de informagées etc. Essencialmente, a pratica de anilise linguistica nio podera limitar-se & higienizago do texto do aluno em seus aspectos gramaticais e ortograficos, limitando-se a “corregées’. ‘Trata-se de trabalhar com o aluno o seu texto para que ele atinja seus objetivos junto aos leitores a que se destina. Para uma melhor compreensio das diferengas basicas entre ensino de gramatica e AL, elaboramos a tabela abaixo, ilustrativ: ENSINO DE GRAMATICA PRATICA DE ANALISE LINGUISTICA * Concepgdo de lingua como ada interlocutiva situada, sujeita as interferéncias dos falantes. * Concepcao de lingua como sistema, estrutura inflexivel e invariavel. + Fragmentagao entre os eixos de ensino: as aulas *|ntegracao entre os eixos de ensino: a de gramética nao se relacionam necessariamente AL é ferramenta para a leituia ea com as de leitura e de producéo textual producéo de textos, + Metodologia transmissiva, baseada na exposicao —| * Metodologia reflexiva, baseada na dedutiva (do geral para o particular, isto 6, das inducéo (observacao dos casos regtas para 0 exemplo) + treinamento. particulares para 4 conclusdo das regularidades/regras).. * Trabalho paralelo com habilidades + Privilégio das habllidades metalingufsticas. metalinguisticas e epilinguisticas. * fhfase nos contetidos gramaticais como objetos *fnfase nos usos como objetos de ensino de ensino, abordados isoladamente e em | (habilidades de leitura e escrita), que sequéncia mais ou menos fixa. remetem a varios outros objetos de ensino (estruturais, textuais, discursivos, normativos), apresentados e retomados sempre que necessario. + Centralidade da_norma-padrdo. «Centralidade dos efeitos de sentido. + Auséncia de relacao com as especificidades dos | * Fuso com o trabalho com os géneros, géneros, uma vez que a anélise € mais de cunho ‘na medida em que contempla estrutural e, quando normativa, desconsidera;o —«|_justamente a interseccao das condigées funcionamento desses géneros nos contextos de de produgo dos textos e as escolhas interagao verbal. linguisticas, * Unidades privlegiadas: a palavra, a frase e 0 periodo. * Preferéncia pelos exercicios estruturais, de *Preferéncia por questdes abertas e identificagao e classificagdo de unidades/ funcoes | _atividades de pesquisa, que exigem morfossintaticas € correcao. comparacac e reflexao sobre adequacéo e efeitos de sentido. *Unidade privilegiada: o texto TABELA 1: DIFERENCAS ENTRE ENSINO DE GRAMATICA E ANALISE LINGUISTICA” 11 Esta tabela, como as outras neste capitulo, tem propésitos ilustrativos. Portanto, ao reduzir os fendmenos e enfocar apenas 0 que é normalmente observado, ela nao pretende Por isso, pode-se dizer que a AL é parte das praticas de letramento escolar, consistindo numa reflexao explicita e sistematica sobre a constituigdo e 0 funcionamento da linguagem nas dimensdes sistémica (ou gramatical), tex- tual, discursiva e também normativa, com o objetivo de contribuir para 0 desenvolvimento de habilidades de leitura/escuta, de producio de textos orais ¢ escritos e de andlise e sistematizacio dos fendmenos linguisticos. Note-se que, no lugar da classificagiio e da identificagao, ganha espago a reflexfo. A partir de atividades linguisticas (leitura/escuta e produgio oral € escrita) e epilinguisticas (comparar, transformar, reinventar, enfim refletir sobre construgées ¢ estratégias linguisticas e discursivas), que familiarizam — com 0 aluno com os fatos da lingua, este pode chegar as atividades metalin- guisticas, quandc a reflexdo é voltada para a descricdo, categorizagiio e siste- matizacao dos conhecimentos, utilizando-se nomenclaturas (Franchi, 1988; Geraldi, 1997; PCN, 1998c). E certo que a AL inclui o trabalho com a norma de prestigio e com estruturas morfossintaticas, mas refletir sobre a linguagem vai muito além disso. Desse ponto de vista, o que pode, enfim, ser trabalhado na pratica de AL? Ou melhor, que aspectos da lingua sao transformados em objeto de reflexio? Norma e variaco linguistica? Morfologia? Vocabulario? Sintaxe? Modalizaciio? Rimas ealiteracGes? Coesio? Estratégias argumentativas? Cada um desses conjuntos de fendmenos pode estar envolvido na pratica de AL, alguns deles simultaneamente numa mesma atividade. O que configura um trabalho de AL éa reflex3io recor rente e organizada, voltada para a produgiio de sentidos e/ou para a compreen- sao mais ampla dos usos e do sistema lingufsticos, com 0 fim de contribuir para a formacao de leitores-escritores de géneros diversos, aptos a participarem de eventos de letramento com autonomia e eficiéncia. Quanto a organizagao das atividades de AL na sua relagdo com os demais eixos do ensino, apresentamos trés possibilidades, igualmente validas, mas que supdem metas distintas. Outras organizagdes podem ser pensadas para atender a outros objetivos. abarcar a multiplicidade de procecimentos utilizados de fato em sala de aula, inclusive a mescla de perspectivas, j4 mencionada. UE ES TOON Analisar a producao textual, para detectar os problemas a Bo, deci 4 objeto de AL na sala de aula Producao _. | @,entdo, decidir 0 que seré objeto de teitua | ia. | Ab | Reescrta (proposta de Gerald, 1997c, para a melhoria da produco escrita). we eee “O ensino de gramatica nao deve ser visto como um fim aia REFLEXAO | rm si mesmo, mas como um mecanismo para a a mobilizacio de recursos titeis 8 implementagao de tenes | Pe Recs. outras competéncias, como a interativa e a textual” e | de textos | gy | Mefacs#0 | (oroposta dos PCN, 2002: 81, para desenvolver escrita | ais do texto | competéncias de leitura/escuta e escrita). | escritos oral we Analisar os géneros lidos, para canhecer as suas ‘ Produgao Reescrita- | caracteristicas e, entdo, produzi-los, na proposta de Dalz, LeltUra | go textos inefaccao | Noverraz e Schneuly ((1996] 2004): segundo a qual se @ | oraise || *Y | do texto | deve conhecer 0 género, lendo-o e analisanco-o, para esctlta | ascritos oral | depois produzi-lo e, entdo, reelabora-lo apés (auto)avaliagao, por meio de AL. TABELA 2: ANALISE LINGUISTICA NA RELACAO COM OS EIXOS DE LEITURA E DE PRODUCAO Nessas trés alternativas, a AL constitui ferramenta, auxilio, para as praticas de leitura/escuta e de escrita”. No proximo tépico, aprofundaremos a discussao sobre como a pratica da AL se relaciona com os demais eixos de ensino. 4. ANALISE LINGUfSTICA: EXEMPLOS PARA DISCUSSAO Tomando-se os pressupostos discutidos, é possivel agora apresentar algu- ibili imaga é inguisti iscursivos mas possibilidades de aproximagao dos fendmenos linguisticos e dis 12 Salientamos aqui a situag%io paradoxal dos professores de “gramética”, que nao “podem” trabalhar com produgio; ¢ dos professores de “redagio”, que nao podem “invadir’ a 4rea do professor de “gramética”. Quanto a “leitura”, parece n&o haver professor especifico... por meio da AL. Nesta d ussao, a pratica de AL estard relacionada aos demals eixos do ensino de lingua materna, constituindo uma ferramenta para a potencializagio das habilidades de leitura e escrita, conforme dizem os PCN, de Lingua Portuguesa do EFII (1998c: 34): Ainda que a reflexio seja constitutiva da atividade discursiva, no espaga escolar reveste-se de maior importancia, pois é na pratica de reflexdo sobre a lingua e a linguagem que pode se dar a construgio de instrumentos que Permitirio ao sujeito o desenvolvimento da competéncia discursiva para falary. escutar, ler e escrever nas diversas situagdes de interagao (grifo nosso). 4.1 Andlise linguistica e leitura Alguns professores, ao afirmarem trabalhar com gramatica “contextualizada”, em que tudo seria abordado a partir da leitura do texto, mascaram, na verdade, uma pratica de andlise morfossintatica de palavrag, expresses ou periodos retirados de um texto de leitura, transformado em pretexto para a andlise gramatical tradicional. A tabela abaixo compara 0§ procedimentos do ensino de gramatica com os realizados na pratica de andlise linguistica para o eixo da leitura. ENSINO DE GRAMATICA Objeto de Estratégia mais usada Habilidade esperada ensino | Advérbios, *Exposicao de frases ¢ *Identificar e classificar os termos em oragdes locucées | periodos (ora inventados, e periodos. adverbiais e ora retirados dos textos de | *Transformar advérbios em locugées oragées leitura) para identificacdo e adverbiais, adverbiais classificacao dos termos, “Fazer 2 correspondéncia, em exercicios *Uso das explicagdes das escolares, entre locucdes adverbiais gramaticas como texto advérbios, resultando, algumas vezes, em didatico de base para a construcées que nao se equivalem abordagem do assunto, pragmaticamente (por ex.: de forma feliz = felizmente, de forma rea + realmente etc.). Adjetivos, *Exposicao de frases | -identficar e classficar os termos em oragGes locugées periodos (ora inventados, © periodos; adjetivas e ora retirados dos textos de | * Transformar adjetivos em locugées adjetivas, oragdes. leitura) para identificagio e | *Conhecer e reproduzir, em exercicios adjetivas classificagéo dos termos. escolares, a correspondéncia entre locucdes "Exposicao de listas de adjetivas e adjetivos, geralmente de uso adjetivos relativos a certas menos comum {de gelo = glacial; de locucdes, a serem chumbo = plimbeo etc.) memorizadas. “Uso das explicacdes das gramaticas como texto didatico de base para a abordagem do assunto, Rieck ~ ANALISE LINGUISTICA i Objeto de Sugestao de estratégias Competéncia esperada ensino eh ‘ ira e comparacao de Perceber que: ; = see, | gents ees «a creanetandas podem ser sinalzadas indicadoras | observagio de casos por meio dos adjuntos adverbiais e de ‘outros recursos — construindo-se | expectativas de leitura e matizes de sentido relevantes para a compreensao global (ex.: 0 uso de Wa verdad, indicando a posicao do locutor); em diferentes géneros, hd usos especticos desses recursos para atender a prapésitos distintos (ex.: noticia e fébula). de particulares para se chegar circunstancias | a conclusdes mais gerals. * Consulta a manuais, grarnaticas e dicionarios para ampliar as discussées @ 0 proprio repertorio de expresses ete. Processos de adjetivacao! qualificacao Perceber que: : +2 adjetivacao pode ser construida por meio de varias estratégias ¢ recursos, criando diferentes efeitos de sentido; *géneros diferentes admitem certas adjetivagdes e néo outras, como as noticias com descricées mais “contidas” que uma fabula ou um artigo de opinigo; + 0s processos de adjetivacaa/qualificagao,— inclufdos numa descricéo, podem estar além do uso dos adjetivos, revelando-se na escolha dos verbos (esravefou no lugar de afirmath, por exemplo, sLeitura e comparacao de textos; observagao de * casos particulares para se chegar a conclusdes mais gerais. * Consulta a manuais e gramaticas e dicionérios para ampliar as discusses 2 0 proprio repertério de expresses etc. TABELA 3: LEITURA: ENSINO DE GRAMATICA E ANALISE LINGUISTICA i jetivago é a chave No fragmento de poema a seguir, © processo de adjetivagao é a ch: a a irico feminino: para a construgio da representagdo do eu lirico t J fat, 0 angulo prometido, , apedra rejeitada, (CORALINA, C IMeu Inro de cordel Goiénia: PD. Aratjol Livaria © Editora Cultura Goiana, 197 O eu lirico feminino é apresentado/representado metonimicamente por suas pics, que so descritas, caracterizadas ao longo do texto. Numa aula de gramatica tradicional, o olhar talvez fosse dirigido primeiramente (e apenas?) para a localizagio e classificagao dos adjetivos, locugdes adjetivas e oragbey adjetivas (eha uma profusao deles no poema). Numa pratica de AL, a leitura, do texto seria essencial, 0 ponto de partida na verdade. $6 ent’o, com o intuito de ampliar os potenciais de leitura, seriam focalizados os recursos linguisticos usados para construir sentido, neste caso, a adjetivacio como processo central, que permeia todo 0 poema. Classificar as oragdes adjetivas, por exemplo, ne seria o objetivo do trabalho, mas sim levar a reflexdo oe 4 4 a) por que, no poema, a descrigao das maos é 0 mote para tematizar as caracteristicas do eu lirico e os percalgos de sua vida; b) com que recursos essas descrigdes sdo realizadas. Assim, pode-se dizer que a AL é uma ferramenta importante nas aulas de literatura, pois contribui para desvelar tragos da criagdo literdria. } | No trecho abaixo, retirado de uma entrevista, podem-se focalizar outros ‘atores relevantes para compreensao do texto e para o funcionamento do género: A A paz do primeiro emprego i "alses com grande populacao Jovem sem trabalho tém mais chance de sofrer contlitos armados @ até guerra civil, aponta o pesquisador americano ; Ivan, Paniita Paises com alta porcentagem de jovens tém duas ia mai: 0 a vezes e meia mais chances de se to de contlitos attnados de que os paises com populacéo adulta madura. A mesma oe crime, indica o pesquisador americano Richard Cincotta, presidente da ONG Population Ae International € consultor do Institute Worldwatch, ambos com sede em Washington. Ele diz ae Pe ae é similar 4 da Coreia do Sul e Taiwan na década de 80, quando asidticos despontaram, Mas aferta: para i é i nee oe para isso acontecer, é preciso investir macicamer EPOCA — Paises com populacao jovem sao mais instaveis? Richard Cincotta — Sim. Palses com alta proporgao de ‘i i chard Gin 1, Paises porcgdo de jovens tém aproximadamente duas ve @ meia mais chances de instabilidades que os paises com populacdo adulta madura. Muitas razae nas Tuas - desempr ego. por bandos criminosos ou radicals HOGA Qualseriaasoluggo? ay Cincotta — A curto. prazo, € necessario estimular @ cfiagdo de empregos. (...) A longo prazo, 5 pafses devem promover pragressos em ‘sua transicao demografica. (...) Os governos, tanto do Sul como do Norte, devem incentivar meninas a it & escola, lutar contra a mortalidade infantil, permitir acesso a métodos contraceptivos, assegurar que as mulheres nao sofram preconceito. Cole & (Epoca, 06/06/05, n° 368, pp. 75-76). Percebem-se, como recursos e estratégias linguistico-discursivas: © 0. uso da justaposi¢éo (a auséncia de conectivos}, como estratégia de construgao do discurso argumentativo na primeira resposta do entrevistado; «a adjetivagao do pesquisador, com profissio e local de trabalho, importante para legitima-lo como entrevistado da revista sobre o tema e sancionar a relevancia da publicagdo da entrevista no veiculo. A propésito, no texto original, ha um boxe com mais detalhes sobre a atuacdo profissional do pesquisador; + estabelecimento de progresséo t6pica, pelos nexos coesivas (ora explicitos ora impli- citos), entre: oO primeiro periado e A mesma légica, o “isso” (Para isso acontecer...) ¢ a afirmagéo anterior sobre o crescimento dos tigres asiaticos, relacao implicita que necesita da leitura das entrelinhas (0 Brasil so podera crescer como os tigres asiaticos se investir em educa¢ao.) © Muitos jovens vo para as ruas, essa hierarguia masculina que se forma fora de casa e gangues de garolos nas 1uas, criando uma rede de causa e efeito importante na sustentagdo dos argumentos centrais; 0 progressos em sua transicao demogréfica e 0 ultimo periodo, que detalha que progressos seriam esses, fazendo avancar a argumentacao do texto; © 0 us0 dos verbos alertar e avisar e das expressoes é preciso e é necessdrio, indicando a posicdo dos interlocutores: um especialista no tema fala a nao especialistas; © 0 estabelecimento da coeréncia global com a explicacéo (no subtitulo, na abertura da entrevista e nas respostas do especialista) dos implicitos que estéo do titulo Vovens empregados nao sao recrutados para a violencia e a guerra); * 0 uso dos operadores argumentativas 4 curto prazo e 2 longo prazo indicando duas linhas de argumentagéo complementares pare encaminhar a solucdo dos problemas; a alternancia de perguntas e respostas, tipica do género entrevista, também constrdi a progresso topica e a coeréncia global do texto, na medida em que os topicos podem ser lancados pelo entrevistador em sua pergunta ou pelo entrevistado em sua resposta; etc, (varios outros aspectos relevantes para a compreensdo do texto e para o funcio- namento do género nessa situagdo especifica de interacéo. Cf. PCN+, 2002: 82-83) Assim, a reflexdio organizada e sistemati sobre aspectos como os citados pode ajudar os alunos a desenvolverem habilidades importantes para a formas gao de leitores proficientes, auténomos e criticos. 4.2 Andlise linguistica e produgéo de texto A titulo de comparagao, explicitamos as diferengas de perspectiva no tratamento de um mesmo fendmeno linguistico, segundo a tradi¢3o das aulas de gramatica e a proposta de AL, na tabela a seguir: ENSINO DE GRAMATICA Objeto de Estratégia ensino mais usada Habllidade esperada Oracdes *Exposigo de | + Identificar e classificar as oragies @ 0s periodos coordenadas e periodos para subordinadas identificacao e classificagdo dos termos. ANALISE LINGUISTICA Objeto de Sugestao de Habilidade esperada ensino estratégias Operadores: + Leitura e *Perceber que as varias formas de estruturar periodos e argumentativos; | comparacao de liga-los por meio de operadores argumentativos organizacso de textos. (preposigdes, conjuncées, alguns advérbios e expresses) estrutural das + Exercicios de podem mudar os sentidos do texto, ou podem resultar sentencas. feescrita de em textos mais OU menos coesos e coerentes. textose de | Ser capaz de escolher, entre as diversas possibilidades da trechos de lingua, a que melhor atende a pretensao de sentido de textos. quem escreve. + Saber consultar diciondrios e graméticas para ampliar 0 repertério de operadores argumentativas e conhecer suas nuances de sentido, TABELA 4: PRODUGAO DE TEXTO: ENSINO DE GRAMATICA E ANALISE LINGUISTICA. No desenvolvimento das habilidades de escrita de textos e de produgao oral, em varios géneros, a AL pode ser de grande auxilio, na medida em que supée nao uma atitude de higienizagao dos textos, da corregdo por parte do professor sem a colaboragao do aluno, mas um movimento de reflexdo sobre virtudes e lacunas percebidas, de natureza diversificada, como a tabela a seguir exemplifica. Nas atividades de produgao de texto, podem-se enfocar problemas de ordem: * — Ortografica — erros de grafia em palavras que apresentam regularidade devido ao mesmo radical (ex. pesquisa/pesquisador) e tambem certas alteragbes relativas ao contexto silabico (coragem/corajoso); by * Morfossintatica/normativa — problemas de concordancia verbal, comuns, por exemplo, com sujelto posposto, distante do verbo; © Textual — problemas de coesdo/coeréncia, por ambiguidades indesejadas, organizacao sintatica inadequada e/ou por mau uso de operadores argumentativos (preposiges, con- jungOes e locugdes conjuntivas; certos advérbios e adjuntos adverbiais, como assim, agora) logo depois) etc; © Discursiva — uso inadequado de vocabulario em relacdo a orientacdo argumentativa do texto (referir-se a adolescentes infratores como “bandidos” num texto que argumente serem eles vitimas de causes sociais), inadequagao do grau de formalidade ao género (formal ou informal demais) etc. TABELA 5: PRATICA DE ANALISE LINGUISTICA PARA A PRODUCAO DE TEXTO Como estratégias didaticas, pode-se trabalhar com a avaliagdo da produ- cdo por parte dos colegas, com a comparagao entre os textos produzidos e entre estes e outros textos, com a escolha de alguns exemplos para atividades indi- viduais, em grupo ou coletivas. Nesses momentos, 0 professor conduz a reflexio, reescrita de trechos/textos e, principalmente, a sistematizagio dos conhecimentos construidos"’. tca. 4.3 Andlise linguistica e andlise lingut: Apesar de o foco da AL ser a produgio de sentido, certos aspectos da lingua remetem as dimens6es normativa e sistémica. Assim, ha tépicos que precisam ser trabalhados de forma recorrente, independentemente do género (lido ou produzido). Por exemplo, erros de grafia relativos a parénimos de uso corriqueiro (sess@o/se¢io) podem no interferir na compreensio de um texto, mas devem ser trabalhados para que os alunos passem a dominar, cada vez mais, as convencdes da norma ortografica. Em outros casos, é preciso chamar a ateng3o para certos recursos de coesdo e coeréneia, que nao dizem respeito a um ou outro género em especial, mas aos textos de modo geral. Exemplos sao a auséncia de contradigao para o estalveleci- mento da coeréncia, a progressdo tépica, o uso adequado de conectivos etc. Aulas que focalizem especificamente tais aspectos, ainda que exemplifiquem os fendmenos em géneros diversos, podem ser necessdrias e pertinentes, dependendo da turma. 13 Sobre produgio de textos, ver o capitulo 9 deste livro, de I. Antunes. A tabela a seguir resume as principais diferengas para o tratamento da norma padrao no ensino de gramatica e na pratica de andlise linguistica, ENSINO DE GRAMATICA Objeto de Estratégia mais usada Competéncia esperada ensino Sujeito e *Exposigao de frases ¢ *Identificar e classificar os termos em predicado petiodas para identificacdo | oracbes e perfodos. e classificacao dos termos, *Utilizar as formas verbais coretas em frases e periodos, geralmente preenchendo lacunas. *Justificar a concordancia, explicitando a regra prescrita pela gramatica normativa, Concordancia *Resolucéo de exercicios verbal estruturais com frases e periodos para escrita da forma verbal correta. ANALISE LINGUISTICA Objeto de Sugestao de ensino estratégias Competéncia esperada Concordancia + Andlise e comparacdo de verbal € textos, especialmente referéncia produces dos alunos, com posterior reescrita; consulta a gramaticas para compreender por que determinada concordancia se faz de certa forma etc. *Perceber a que termo o verbo se refere {qual é 0 sujeito), para efetuar a concor- dancia de acorda com a norma padrao. *Habituar-se a consultar gramaticas para dirimir duividas nos casos menos comuns. + Compreender as regras ai apresentadas pata ser capaz de recorrer 8s gramaticas com autonomia em momentos de duvida. TABELA 6: NORMA PADRAO: ENSINO DE GRAMATICA E ANALISE LINGUISTICA Os fendmenos eventualmente podem até ser os mesmos nas aulas de gra- matica e de andlise linguistica, entretanto os objetivos de ensino diferem, o que leva a adogao de estratégias distintas, situadas em praticas pedaggicas distintas. 5. LoONGE DO CONSENSO... Certas questdes relativas 4 AL na escola sio recorrentes e polémicas, merecendo alguma discussao, na qual assumiremos nossos pontos de vista. 5.7 Nomenclatura: ensinar ou nao ensinar? O primeiro passo da gramatica usual consiste numa definigio, e de defini- gdes ¢ clas cages, e preceitos dogmaticos se entretece todo este ensino. Em todo esse longo e penoso curso de trabalhos, que nos consomem o melhor do tempo nos primeiros anos de estudo regular, nao se sente, nado ha, niio passa o mais leve movimento de vida. Como se as teorias fossem 4 primeira, ¢ nao a titima expresstio da atividade intelectual no desenvol- vimento, ou da humanidade. Como se 0 uso no pressupusesse 0 conheci- mento cabalmente real do objeto definido. Como se a linguagem, numa palavra, no precedesse necessariamente a codificagdes gramaticais. (Rui Barbosa, Parecer sobre a reforma do Ensino Primario em 1883, apud A. J. L. Jurodugdo a Rui Barbosa: escritos e discursos seletos. Rio de Janeiro: Edigéo Aguilar, 1960). Na encruzilhada entre calar sobre as nomenclaturas ou priorizd-las, o professor se pergunta “ensinar ou nao nomenclatura?”. Essa divida surgiu com as criticas feitas ao privilégio da apresentagao de classificagdes e conceitos nas aulas de gramatica, em detrimento da reflexdo sobre os fendmenos. Na verdade, é uma falsa questo, pois a nomenclatura técnica é parte dos objetos de ensino, ou seja, nomear os fendmenos é necessdrio para a construg’o de qualquer saber cientffico. A nomenclatura é mais uma ferramenta no processo de aprendizagem, 0 que nao equivale a eleger como objetivo das aulas o dominio dos termos técnicos, como ja criticava Rui Barbosa em 1883. Além disso, na escola, nao basta apenas saber, é preciso saber dizer. E sé é possivel dizer com propriedade se usarmos alguma metalinguagem, seja ela uma nomenclatura técnica, seja ela uma pardfrase individual e intuitiva. Quan- to a isso, dizem os PCN+ (2002): Aplica-se com muita frequéncia 0 conceito em todas as disciplinas: a metalinguagem constitui-se instrumento de descrigdo ¢ analise dos diversos cédigos utilizados na cultura (p. 49). Assim, se a escola espera que o aluno nao sé se aproprie de certos conhe- cimentos, mas também saiba falar a seu respeito, saiba verbalizar seu saber (boa parte das avaliagdes solicitam isso), é necessdrio o uso de nomenclaturas, quaisquer que sejam elas. A esse respeito, Kleiman (1995: 27) afirma: A maior capacidade para verbalizar 0 conhecimento e 0s processos envol- vidos numa tarefa é consequéncia de uma pratica discursiva privilegiada na escola, que valoriza nao apenas o saber mas 0 “saber dizer”. Se o EFI deve se voltar essencialmente para a apropriagao do sistema de escrita e para a ampliagao das experiéncias de letramento dos alunos, com énfase nas praticas de leitura e escrita, esse trabalho é ampliado no EFII, com o acrés- cimo de outras habilidades e outros conceitos, estes devidamente nomeados. O EM, por sua vez, continua essa abordagem, mas 0 aluno deve, além de perma- ico tw nomenclaturas técnicas, saberes culturalmente construidos e socialmente valor: zados. Negar aos alunos esse conhecimento é um equivoco, por varias razbel, necer desenvolvendo habilidades de leitura e escrita, ter acesso sistem: Em primeiro lugar, 0 uso da metalinguagem é econdmico porque powe sibilita referir-se aos fendmenos em qualquer exemplo, desde que estes estejam englobados sob um nome genérico. Por exemplo, a compreensao do conceit@ de “ambiguidade”, referido por esse mesmo termo, serve para explicar quale quer ocorréncia ambigua, permitindo aos alunos analisar outros exemplow ambiguos e generalizar sobre o fendmeno. O conhecimento das nomenclaturas é fundamental também para que 0} alunos manipulem, com autonomia, manuais de consulta e gramaticas, cuj indice se constitui de uma lista de termos técnicos. Também é ttil para sani dividas na consulta a diciondrios, pois os verbetes apresentam informag6i relevantes, por meio de abreviaturas de termos técnicos, por exemplo, s.m, adj., v.td., sin., para substantivo masculino, adjetivo, verbo transitivo direta | sinénimo, respectivamente. Em ultimo lugar, citamos os exames de selegdo — vestibulares e concu: sos pliblicos — que exigem, em maior ou menor grau, o conhecimento dl termos técnicos basicos, seja como ferramenta para a compreensao dos enut ciados das questdes, seja como objeto das préprias questdes"'. 5.2 AL e organizacao curricular Outra questaio pendente nas discussdes sobre as mudangas no ensino di lingua é como organizar o curriculo tendo em vista a integragdo dos eixos di leitura, produg&o e AL. Mesmo sabendo que o curriculo nao é uma grad fechada de contetidos, ja que dialoga com as demandas sociais de cada épociy a escola precisa de saberes minimamente estabilizados, para poder funcion: como agéncia de disseminagao e reformulagao desses saberes. Tradicionalmente a organizacao cumulativa, de que j4 falamos, nao cons templa a integracdo dos eixos de AL, leitura e produgao. Para integra-los, a selegao e a organizagao dos contetidos deveria seguir nao uma légica meramente estrutural (fonologia, morfologia, sintaxe etc.), como se observa correntemente, mas sim critérios discursivos, relativos 4 produg&o de sentidos com base em 14 O conhecimento de nomenclaturas como foco das questdes tem sido cada vez men frequente nos concursos e vestibulares, dada a tendéncia crescente de privilegiar as habilidad de leitura e escrita. recursos ¢ estratégias linguistico-discursivos, que seriam 0 foco da pratica de AL. Entretanto, esses recursos e estratégias aparecem a todo o momento, em qualquer género, o que dificulta a progressiio de abordagem na escola. Dolz & Schneuwly ([1996] 2004) sugerem, numa perspectiva de trabalho com géneros, que a progressao escolar se organize em torno da exploracao de habilidades necessarias 4 leitura e produgao de géneros pertencentes aos diver- sos agrupamentos: do relatar (narrativas nao ficcionais), do narrar (narrativas ficcionais), do descrever agGes (textos instrucionais e prescritivos), do expor e do argumentar. Em todos os momentos de escolarizagao, os alunos seriam levados a refletir sobre a organizag’io de géneros diversos, pertencentes aos jidades varios agrupamentos, ¢ a progressio se daria de acordo com as hab relativas a cada um dos agrupamentos. No ambito das habilidades argumentativas, por exemplo, haveria pro- gressio quanto a elaboracio de argumentos ao longo dos anos escolares: da exposigio de pelo menos um argumento, passa-se a solicitar a hierarquizagao de uma sequéncia de argumentos em fungio da situacao, depois a sustentagao por meio de exemplos, até a exploraciio dos argumentos de cada uma das teses possiveis sobre 0 tema em debate, Progressdo semelhante ocorre quanto a escolha de outros recursos linguisticos necessdrios 4 argumentagiio: desde a simples utilizago de organizadores de causa nos ciclos 1-2 (porque, por isso etc.) até a escolha entre verbos declarativos neutros (dizer, falar), apreciativos (assegurar) e depreciativos (ciubear) em ciclos posteriores. Para que esse tipo de progressao possa ser implementado nas escolas, é preciso estudar mais a respeito da constituigéo dos géneros diversos e refletir sobre o que seria relevante para a abordagem da escola. Essa ligdo de casa esta sendo feita por varios pesquisadores, mas no esta desenvolvida a ponto de podermos propor, sem grandes dividas, uma organizacio curricular minima que sirva de ponto de partida para a elaboragio de curriculos e programas, nas diversas instancias de decisiio sobre educagao. Por essa raz&o, cremos que a mescla de perspectivas vai ser 0 mais comum nas salas de aula ainda durante um bom tempo: uma progress que ora segue critérios estruturais, tradicio- nais; ora segue critérios discursivos. 5.3 Ensino de gramdtica: identidades em jogo MINHA ESCOLA A escola que eu frequentava era chela de grades como as prisdes. E 9 meu Mestre, carrancude como um dicionario; Lindas historias do ae da Mae-d’Agua... _E me ensinava a tomar a bengdo a lua nova. (A, Ferreira, Poemas de Ascenso Ferreira. 0 ASSASSINO ERA O ESCRIBA Meu professor de caleamaly era 0 tipo de sujeito inexiste Um pleonasmo, 9 principal | predi ido da sua vida, regular como um ie da 1° conjugacdo. ‘ Entre uma oracao subordinada e um adjunto adverbial, ele nao tinhe duvidas: sempre achava um jeito assindético d= nos torturar com um oe Casou com uma egéncia. Foi infeliz, Era possessivo como um pronome. E ela era bitransitiva, Tentou ir para os EVA. Nao deu, Acharam um arti i agi A interjeicdo do bigade declinava particulas expletivas, conectivos @ agentes da passiva, o tempo todo. Um dia mate'-o com um objeto direto na cabeca, AP. Leminski, Caprichos e relaxos. Sho ae Brasiliens Para quase finalizar, reafirmamos um principio jA bastante aludido: 0 que entra em jogo quando se discute o ensino, inclusive de gramitica, é mais do que uma questao de ordem linguistica'’, mesmo porque nao ha ensino neutro, como nos ensinou o mestre Paulo Freire. Na verdade, ao optar por uma ou 15 Possenti (1997) e Geraldi (1997b) j4 discutiam essa questio na coletanea O texto na sala de aula, langada em 1984, além de Possenti & Iari (1992), em Linguistica aplicada ao ensino de portugués, cuja primeira edigio data de 1987. Outros trabalhos sobre variaclo preconceito lingufstico também abordam o caréter politico-ideolégico das questdes relativas a0 ensino de lingua materna (Bagno, 1998, 2000; Britto, 1997; Gnerre, [1985], 1991). outra corrente tedrica, por esta e ndo aquela metodologia, valores e crengas sio acionados, uma vez que a identidade profissional de quem ensina é posta em xeque e, por consequéncia, o valor que se atribui ao seu trabalho. O ensino de gramatica tem relagao direta com as identidades construidas no interior da escola e até fora dela: o que é importante ensinar, o que faz um bom professor de portugués, como deve ser a aula de portugués, o que se deve avaliar e como etc. Interligam-se, inevitavelmente, concepgdes tedricas, sejam elas conscientes ou nao, e escolhas metodolégicas: (...) toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opgio politica — que envolve uma teoria de compreensio e interpretagio da realidade — com 0s mecanismos utilizados em sala de aula (Geraldi, 1997b: 40). A critica ao ensino de gramitica nos chamados moldes tradicionais tem- se tornado tdo presente em encontros de formagao continuada, textos de divulgagao cientifica e artigos académicos que chegou a produzir a negacio dessas praticas no discurso docente: poucos professores atualmente admitem que ensinam gramiatica 4 maneira tradicional. A imagem de uma priatica ultra- passada est vinculada a esse ensino de gramitica, pratica recriada nos poemas de Ascenso Ferreira (inicio do século XX) e Paulo Leminski (meados do século XX), na epigrafe deste topico. Mesmo separadas por cerca de 50 anos, as experiéncias com o ensino de portugués relatadas nos poemas s4o bastante parecidas (e atuais!), pois percebe-se o foco em anilises e classificagdes morfossintaticas, e regras de uso da norma culta, com critérios que oscilam entre 0 certo ou o errado, sem maleabilidade — tudo isso, como ainda hoje, através de exercicios estruturais que no ultrapassam a unidade do periodo. Orgulhar-se dessa pratica é cada vez mais raro em muitos ambientes de convivio dos professores, ao contrario do que ocorria ha cerca de apenas 20 anos, quando o bom professor era o que dominava e cobrava com rigor as minticias da gramética, o hoje chamado professor “gratimaqueiro”. Percebe-se a instalagdo de um certo conflito de identidades docentes: a assumida publicamente, como o professor que trabalha “tudo a partir do texto”, com a “gramatica contextualizada”, mesmo que eventualmente nao saiba muito bem por que nem como; e a praticada nas salas de aula, como 0 professor que mescla diferentes objetos de ensino — aspectos da gramatica normativa, como concordancia, ortografia etc.; aspectos da gramatica descritiva, como classes de palavras, fungdes sintaticas; aspectos textuais, como esquemas para textos dissertativos, entre outros —a varias abordagens metodolégicas — exposi¢&io-transmissao, exer- cicios estruturais com frases e periodos, leitura e escrita de textos etc. Na verdade, a afirmagio de que se trabalha com a gramatie “contextualizada” oculta, muitas vezes, o fato de que essa contextualizagilo refere normalmente a retirada de frases e perfodos de um texto, sem qualqu referéncia ao funcionamento do fendmeno gramatical em estudo na produgi de sentido dos discursos. Em outras palavras, o texto é pretexto para ensinil gtamatica, tal e qual j4 se vinha fazendo. O duplo perfil do professor de portugués pode ser observado também. escolha dos LDs avaliados pelo PNLD em 2000". Nao por acaso, os LDs mill escolhidos pelos professores sao os recomendados com ressalvas (RR) (65,42) pela avaliagéo do PNLD 2001, conforme aponta o estudo de Batista (2004: 42) Contraditoriamente, 41,10% desses mesmos professores declaram, nos questionih tios aplicados, preferir os LDs recomendados com disting&o (RD), contra 7,88 de preferéncia declarada pelos recomendados (REC) e 4,45% pelos recomendad com ressalvas (RR). Esses dados parecem indicar que 0. professor tanto buse aproximar-se dos discursos oficiais favoraveis 4s mudangas quanto se apega 4 esquemas que ja lhe sdo familiares, inclusive para o ensino de gramatica. Isso talves Ocorra porque ele niio se sinta 4 vontade para (ou convencido a) trabalhar gerais, o trabalho a partir de: a) praticas de leitura e de escrita assemelhadas interlocugdo que ocorre em contextos extraescolares, b) abordagem sistematica diversidade de géneros, c) reflexiio sobre os fendmenos linguisticos em fungio d usos e da produgao de sentido, entre outros princfpios norteadores. ouvir 0 aluno “cantar a gramatica”, ou seja, fazer uma andlise morfolégica ou sintatica de-alhada, quase como um ato de declamagao para uma plateia atenta Outros depoimentos de professores experientes, do EM e EF I e Il indicam ainda quao angustiante pode ser perceber as lacunas de um model de ensino, sem conseguir avangar, ainda que gradualmente, rumo a outta pratica pedagdgica. Muitos chegam a declarar: “Desaprendi a ensinar.” Nessa mudanga que se pretende radical, com uma nova identidade pro- fissional sendo forjada em meio a conflitos, a reflexdo sistematica sobre os fendmenos linguisticos comega a perder espaco, embora a maioria dos profes» i 16 Para ma informagées sobre o PNLD, ver 0 capitulo 3 deste livro, de Jurado & Rojo 17 Essas categorias nfo mais sio usadas nos guias dos LDs. ainda defenda o ensino tradicional de gramatica, para melhorar a pro~ dugio oral e escrita do aluno. nor No vacuo formado pela rejeigéo ao modelo anterior, a tentativa de aten= der ds demandas mais recentes em termos da discussao sobre ensino de pore tugués pode levar 4 adogao de uma metodologia “ativista”, a exemplo do que propdem Privat & Vinson para o ensino da produgio escrita (1994, apud Dolz, & Schneuwly, [1996] 2004: 46-47). Esses autores alegam que seria suficiente 4 exposigao as propriedades culturais do texto. Trata-se de uma metodologia que pressupde uma aprendizagem quase “natural”, quase esponténea, apenas pelo exercicio da leitura e da escrita de textos. Se a tendéncia atual é buscar a formagio do leitor-produtor de textos, com a ampliagao das experiéncias de letramento dos aprendizes, a “solugio” seria a superexposigao, na escola, as situagdes de leitura e escrita. No lugar da gramatica, o texto, mas sem ensino, sem sistematizac4o, sem progressao curricular, sem objetivos definidos. Dolz & Schneuwly criticam essa proposta, apontando a enorme lacuna quanto ao ensino sistematico ¢ & fungao catalisadora da intervengao do professor. Ainda assim, a despeito desse perigo da pedagogia do “com o texto, estamos salvos”, nota-se que j4 ha um redirecionamento para explorar aspectos discursivos e textuais, seja como resultado de uma reflexdo consciente sobre as novas orientagdes para o ensino de portugués, seja para construir uma identidade profissional distinta da “gramatiqueira”. 5.4. Formando o professor para (ndo) ensinar gramédtica? O processo de formacio de professores é um dos fatores que interfere na mudanga de parametros para 0 ensino ou na manutengio destes. Alguns cursos de graduagiio em letras continuam preparando professores para ensinar grama~- tica, enquanto outros, no extremo oposto, formam para nao ensinar gramatica. Com perfis profissionais diferentes, nado parecem ser to distintos, con- tudo, os efeitos dessas experiéncias de formagio frente as novas propostas de ensino de lingua materna, conforme ja apontamos em outro trabalho (Men- donga, 2005): efeito de rejeigao, efeito de perplexidade, efeito de inércia, em meio a tentativas de realizar um trabalho mais “antenado” com a discussio em pauta. Em muitos casos, o professor chega a retornar as aulas de gramatica convencionais, ainda que compreenda as falhas desse modelo, justamente pela dificuldade de efetivar a pratica de AL, ou seja, de articular a reflexdo sobre os fenémenos linguisticos 4 produgao de sentido, ao tratamento da norma e as necessidades de aprendizagem dos alunos. Cremos que, para fugir ao dogmatismo ou a mera intuigio quanto ag) papel da AL na escola, a formagtio docente deve respaldar-se numa clarit: concepgio: a) do objeto de ensino das aulas de portugués — a linguagem; bh) de seus objetivos centrais — a ampliagio das experiéncias de letramento e ¢ desenvolvimento de competéncias linguistico-gramaticais, textuais discursivas; c) do papel dos recursos gramaticais e das estratégias textual @ discursivas nesse processo. De fato, para uma formagao mais adequada as novas demandas para @ ensino de lingua materna, so necessdrias mudangas estruturais e pedagdgici profundas nas instituigdes formadoras, além de uma politica consistente dé aperfeigoamento em servigo, para que o professor seja capaz de atuar co agente de letramento (Kleiman, 2005a) no seu sentido mais amplo. Em suma, nao ha consenso quanto a essas questdes, pois as formas de encaminhar alternativas de solugao sao bem diversas, as vezes até opostas, g@~ rando tensdes por parte de quem vive o cotidiano do ensino de lingua maternal, em todos os graus de ensino, como mostra o trabalho de Morais (2002). Mas 0 primeiro passo é identificar os pontos polémicos e comegar a refletir sobre eles, para que alternativas sejam pensadas, negociadas e encaminhadas. my 6. FINALIZANDO MESMO AULA DE PORTUGUES — A linguagem oe Professor cai is, ele éq na ponte da fingua, eval desmetando Z tao facil de falar 0 amazonas da minha ignoran ede entender, figuras te fe esquipaticas, ‘A linguagem na superficie estrelada de lowes, sabe la 0 que ela quer dizer? ee ja ‘esqueci au em que coi em que pedia para ir 18 fora, em que levava e dava pontapé, ee lingua, breve lingua enon Refletir sobre a linguagem é algo que fazemos a todo o momento, como seres pensantes que somos. Ponderar se foros muito ofensivos, se vamos dizer isso ou aquilo, se de fato entendemos o trecho daquele livro, se uma palavra tem este ou aquele sentido, tudo isso é AL, ainda que assistematica e sem os objetivos escolares. A escola cabe, diante dos objetivos que lhe sao préprios, tornar tais andlises conscientes e sistematicas, especialmente no EM, de modo que os alunos construam um conjunto de conhecimentos necessdrios 4 ampliagao da sua competéncia discursiva, inclusive para saber expressar a sua andlise, nao mais intuitiva, o que exige o uso de alguma metalinguagem. Por isso, a AL deve ser complementar as praticas de leitura e produgio de texto, uma vez que possibilitaria a reflexio consciente sobre fenémenos textual-discursivos que perpassam os usos linguisticos nos momentos de ler/ escutar ou de produzir textos. Em meio a necessidade de mudangas, as dificuldades e resisténcias em implementd-las e a um tatear metodolégico por parte do professor, este se pergunta: espelho, espelho meu, que professor de gramatica sou eu? Nesse jogo de identidades, assumidas e no reveladas, em que se busca, muitas vezes, a consonancia com os discursos “oficiais (“gramatica contextualizada”, “en- sino a partir de textos”), a pratica de AL pouco pode avangar na escola. E preciso maior clareza quanto ao que se pretende, em termos de ensino, com essa nova perspectiva, que tanto assusta alguns professores, de tao diferente que é de sua pratica docente cotidiana. A mudanga na pratica pedagégica que prevemos é gradual e repleta de dtividas, com passos adiante e atrds, e este parece ser € 0 caminho mais pro- vavel e seguro, por paradoxal que parega. Nesse percurso, esperamos que a competéncia discursiva seja pouco a pouco construfda no trabalho com leitura e produgao, e também com a pratica de AL. Nessa pratica, o saber a respeito de estratégias discursivas ou do uso intencional de elementos e estruturas gramaticais no deve ser mais um desses “bichos esquisitos” que povoam os curriculos, mas um conjunto de conheci- mentos acessivel e, principalmente, itil, em nossas interagSes diarias. Que a lingua seja, para os alunos, cada vez menos misteriosa, no dizer de Drummond, sem deixar de ser fascinante. Novos olhares, outros objetos, praticas diferentes, enfim. ATIVIDADES 1. O objetivo desta atividade é leva-lo(a) a refletir sobre sua pratica de ensino de gramatica/analise linguistica. Escolha um ou dois assuntos abordados em sala de aula e procure identificar, numa sintese escrita, os objetivos subjacentes: a) a escolha desse(s) objeto(s) de ensino; b) & sequenciagdo desse(s) objeto(s) no curriculo escolar; c) as atividades propostas; d) aos critérios de avaliacdo usados. Agora reflita: * essa pratica de ensino tem permitido o desenvolvimento de competéncias linguisticas? textuais? discursivas? Em que medida? « E possivel torna-la melhor? Como? 2. Esta segunda atividade tem o objetivo de leva-lo(a) a esbocar — propostas de intervencéo didatica. Selecione um género e planeje uma sequéncia de dois ou trés encontros que focalizem recursos _ e estratégias usados para a producdo de sentido, sejam eles recorrentes nesse género, sejam eles especificos do exemplo escolhido. Procure elaborar atividades que integrem os eixos de leitura, producéo e analise linguistica, de modo que esta Ultima seja ferramenta para o desenvolvimento de competéncias de leitura e escrita. Se possivel, vivencie o planejamento em sala de aula e avalie os seguintes aspectos: que topicos gramaticais, textuais e discursivos foram abordados? Qual o objetivo das atividades 4 Propostas? Houve sistematizacgao ao final dos encontros? Marcia Ropricues pe Souza Menponca é€ professora de Lingua Portuguesa no Departamento de Letras da UFPE, universidade onde obteve seu grau de mestre em Linguistica e onde hoje cursa 0 doutorado na area, Atua na formacdo continuada de professores de lingua materna e presta assessoria pedagdgica a escolas e a faculdades de formacéo de professores. Desenvolve pesquisas sobre livros didaticos, géneros e letramento, tendo publicado artigos e capitulos de livros a respeito, como em O fivro didético de portugués: miltiplos olhares e Géneras textuais e ensino (Editora Lucerna), € membro do Nucleo de Avaliacao e Pesquisa Educacional (NAPE - UFPE) e do Centro de Estudos em Educacao e Linguagem (CEEL - UFPE), no qual coordenou, em colaboracéo com Carmi Santos e Cristina Teixeira de Melo, a elaboracéo de materiais didaticos (livro, video e guia didatico) para a formacdo de professores na area de alfabetizacdo e letramento. E-mail: marcia@nlink.com.br.

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