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URRY Feiner Condenser do Forum de Ciba Calne EDITORA UFR Dien Ealvora Eseostve Condenadera de Praduis Ealtna Asioente Comedie Edtorat Jou Henrique Vlhons de Paiva ‘Afoaso Catlos Marques dos Sanos ‘Yeoune Mage Maria ‘eres Kopi de Bacros ‘Ana Catsivo (Ceclin Moria ‘Ywonne Mage (resident), Afonso Carloe Marques dos Santos, Ana Cristina Zaha Carlos Lesa, Fernando Lobo Carneiro, Pete ys Silvano Sansigo O PODER DAS BIBLIOTECAS a meméria dos livros no Ocidente one Sob a diregao de Mare Baratin e Christian Jacob Tradugio de Marcela Mortara Copyright © by Eaions Albin Michel, 1996 “Thao exiginal em ramet: Le poner de bblhigues a mémoire des Heres en Oecident. Pan ita te bao > poms dr Bre wo Oslo Baratin, Maree Jacab, Chinen; wadugio de Marea Mort Rio de Janeiro: Editors UFRJ, 2000, 382 ps 16 x 23 cm “Tradugio de: Le pouvoir der bibithéques 1. Liv - Hint 2. Biblitees ~ Histria 1 Brain, Mat, coord. I Jacob, Chistian, coord ep: 020) TN Treas coe Ianto de Cape Vege dla Nowe Guin, P. Somer, 1776 Revie de Tradagso Mata Thera Peso Kopichite Edighe de Teo ¢ Reviio (Coin Moreira ‘Maria "Terra Kopschite de Basos Prajto Grif ¢ Ellvragto Beinice Jnive Duane Universidade Federal do Rio de Jencro Forum de Cicia ¢ Coleara dtora UFR) ‘x. Pasteut, 250/als 107 Pia Verma ~ Rio de Janeco CEP: 22295-900 Fels QL) 295-1595 6 124 2 127 axe (21) 542-3899 « 542-4901 pdf wwew.diora.i be Ema edton@eitoralbe poi Sore Bonito (Cet ourrage, publi dans le cadre du programme de pariipation & |a publican, bade du sourien du Ministre Frangais des Afuires Entangire del Ambisade de France du Beet dels Mason ranaise de Rio de Janene. Ese lvr, publicdo no ambica do programa de paricipagio & publica, contou com © apoio do Minin Frands das Relais Exteriores da Embsnada da Fraga no Bra eda Maison Frame do Rio de Jeni Sumdrio Nota preliminar 7 Prefitcio Christian Jacob 9 I Da ordem dos livros i carta dos saberes: utopias e inguietudes Redes que a raz40 desconhece: laboratérios, bibliorecas, colegées, Bruno Latour 21 Ler para escrever: navegagbes alexandrinas, Christian Jacob 45 Bibliotecas portéteis: as coletineas de lugares- comuns na Renascenga tardia, Ann Blair 74 A biblioteca como interagio: a Icitura ¢ a linguagem da bibliografia, David Mekisterick 94 Warburg continuatus. Descrigo de uma biblioteca, Salvatore Settis 108 Novas ferramentas, novos problemas, Roger Laufer 155 Redes que a razio dewonbece: Laboratérios, bibliotecas, colegées Re ‘Os que se interessam pelas bibliocecas falam freqiientemente dos textos, dos livros, dos escritos, bem como de sua acumulagio, de sta conservacio, de sua leitura ¢ de sua exegese. Tém certamente ravfio, mas hé um certo tisco cem limitar a ecologia dos lugares de saber aos signos ou & simples maréria do escrito, um risco que Borges ilustrou bem com sua fibula de uma biblioteca total remerendo apenas a si propria. Nessa fibula muito literdtia, 0 império dos signos se apresenta como uma fortaleza de intertextualidade. Plena e sélida enquanto nos interessamos somente pelas glosas da exegese, ela parece va ¢ frigil a partir do momento cm que procuramos ligar 0s signos aos mundos que 0s cercam. Usudtio muitas vezes frustrado das bibliotecas francesas, escolhi emoldurar esses lugares de meméria com outros lugares menos freqiientados, como os laboratérios ¢ as colegées, que a histéria e a sociologia das ciéncias nos ensinaram recentemente a conhecer melhor.' Através desta breve meditagio sobre as relagdes das inscrigSes e dos fendmenos, espero mostrar que @ circulagio desses intermedidrios muitas vezes desprezados fabrica no s6 0 corpo mas também a alma do conhecimento. Neste capitulo, preendo seguir nfo o caminho que leva de um texto 2 outro no interior de uma biblioteca, ¢ sim 0 caminho que leva do mundo 2inscriso, a montante e a jusance do que chamarei um “centro de eileulo”? Em vez de considerar a biblioteca como uma fortaleza isolada ou como um tigre de papel, pretendo pincé-la como o né de uma vasta rede onde circulam nao signos, nao macérias, e sim macérias tornando-se signos. A biblioteca nto secrguc como 0 palicio dos ventos, isolado numa paisagem real, excessivamente real, que Ihe serviria de moldura. Ela curva 0 espago e © tempo ao redor dle si, e serve de recepticulo provisério, de dispatcher, de transformador ¢ de agulha a fluxos bem concretos que ela movimenta continuamente. Apesar dle algumas imagens, a viagem para a qual estou convidando 0 leitor nao ser tio exética quanto a de Christian Jacob na Biblioteca de Alexandria, mas talvez permita sair do universo dos signos no qual se quer as vezes ~ por des- prezo como por respeito ~ confinar a cultura e seu instrumento privilegiado. Talvez o leitor compreenda por meio desse périplo o que os pesquisadores franceses perdem por nao se terem beneficiado, até agora, de uma verdadeira biblioteca, ¢ 0 crime cometido contra o espirito por uma nagao que se consi- dera, no entanto, muito espiritual. Comecemos por subir a montante do signo e por perguntar a nds mesmos como definir a informagao. A informagao nao ¢ um signo, ¢ sim uma relapao estabelecida entre dois lugares, 0 primeiro, que se torna uma periferia, e 0 segundo, que se torna um centro, sob a condicio de que entre 0s dois circule um vefculo que denominamos muitas vezes forma, mas que, para insistir em sen aspecto material, eu chamo de inserigdo. Para tornar esta definigao mais concreta, consideremos este auto-retrato do naturalista Pierre Sonnerat (Fig. 1). Aqui, ndo nos encontramos nem numa biblioteca nem numa colegio, mas aquém delas, na costa da Nova-Guiné, O naturalista nto 1. Desenbaside'P) Sorinerat (auro-teunen), Vonage 2 ta: Nowuelle- Gunde, Patls, 1776. Coen a autorizagio da Houghton Library, Harvard Univeniy. 2 Reves QUE A Razko vuscowece cstd em sua terra, mas longe, enviado pelo rei para levar na volta desenhos, espécimes naturalizados, mudas, herbdrios, relatos e, quem sabe, indigenas. Tendo partido de um centro europeu para uma periferia tropical, a expedigio que ele serve traga, através do espago-tempo, uma relagio muito particular que vai permitir ao ccntro acumular conhecimentos sobre um lugar que até ai ele nao podia imaginar. Nesta gravura muito estudada, 0 naturalista se desenhou a si préprio em plena atividade de transformacio de um lugar em outro, registrando a transicZo entre o mundo das matérias locais eo dos signos méveis e transportaveis para qualquer lugar. Observemos, aliés, que ele se retsata num quase-laboratério, um lugar protegido pela folha de bananeira que o abriga do sol e pelos frascos de espécimes conservados no alcool. Observemos também que o mundo indigena deve fazer-se ver a fim de ser colhido pelo movimento da informacio. A escrava de formas generosas exibe © papagaio e permite ao desenhista detectar mais rapidamente os tragos caracteristicos do mesmo. O desenho produzido por esse quase-laboratério ‘em breve circulard em todasas colegles reais; quanto aos espécimes, empalhados ‘ou em frascos de dleool, irZo enriquecer os gabinetes de curiosidades de toda a Europa’ © que € entao a informagio? O que os membros de uma expedigio devem levar, na volta, para que um centro possa fazer uma idéia de outro lugar. Por que passar pela mediagio de um veiculo, de um desenhista, por que reduzir escrita, por que simplificar a ponto de levar apenas alguns frascos? Por que, 20 retornar, nao levar simplesmente o lugar, em sua inte- gralidade, para 0 centro? Afinal de contas, era o que faziam os académicos de Lagado que Gulliver vistou. Em vez de falarem, eles se faziam acompanhar por servidores carregando em carrinhos de mio 0 conjunto das coisas que deviam constituir o objeto de suas conversas, ¢ que Ihes bastava apontar. Grande economia de saliva, mas grande gasto de suor!® Ora, a informacio permite justamente limitar-se & forma, sem ter 0 embarago da matéria, Os papagaios permanecerfo na ilha com seu canto; levar-se-4 o desenho de sua plumagem, acompanhado de um relato, de um espécime empalhado e de um casal vivo, que se tentaré domesticar para o viveiro real, A biblioteca, 0 gabinete, a colegio, o jardim botinico e o viveito se enriquecerio com isso sem, no entanto, se entulhar com todos os tragos que nao teriam pertinéncia, Verifica-se que a informagao nao é uma “forma” no sentido platonico do termo, € sim uma relagio muito pritica ¢ muito material entre dois lugares, © primeito dos quais negocia o que deve retirar do segundo, a fim de manté- lo sob sua vista e agir & distancia sobre cle. Em fungio do progresso das ciéncias, da freqiiéncia das viagens, da fidelidade dos desenhistas, da ampli- 2 0 rovee ons e1stiorecas tude das taxionomias, do tamanho das colegées, da riqueza dos colecionadores, da poténcia dos instrumentos, poder-se-4 retirar mais ou menos matétia ¢ carregar com mais ou menos informagies vetculos de maior ou menor confia bilidade, A informagio nio é inicialmente um signo, e sim o “carregamento”, em inserig6es cada vez mais mévcis ¢ cada vex mais fiis, de um maior de matérias A produgio de informagies permite, pois, resolver de modo pritico, por operagées de sclegio, extragao, reducao, a contradigéo entre a presenga num lugareaauséncia desse lugar. Impossivel compreendé-a sem se interessar plas instituigées que permitem o estabelecimento dessas rlagGes de domingo, ¢ sem os velculos materiais que permitem o transporte ¢ 0 carregamento. O signo nfo remete de inicio a outros signos, e sim a um trabalho de produgio Go concreto, tio material quanto a extragio de urinio ou de antracito. Um gabinete de curiosidades, um volume de pranchas ornitolégicas, um relato de viagem devem, pois, ser tomados como a ponta de um vasto tridngulo que permite, por graus insensfveis, passar dos textos a situagGes ¢ voltar aos livros por intermédio das expedigoes, da transposigo em imagem e das inscrigies.?” Entretanto, convém completar este primeiro triangulo isbsceles por um segundo, invertido, cujo vértice repousa, desta vex, na situagio de partida, € cuja base se expande nos centros de cilculo. Um segundo movimento de amplificagio sucede ao primeiro movimento de redugio (Fig. 2).* Compatibilidade Repucto Padronizagso Texto Figura 2, Iustremos 0 movimento deste segundo tridngulo com outra fotografia, tirada do livro admirével, ilustrado por Pierre Béranger, que Michel Butor ntiga galeria do Museu de Histéria Natural (Fig. 3).? Reencontramos os voliteis empalhados de hi pouco, mas no meio de todos 08 seus congéneres, trazidos, do mundo inteiro, por espago € no tempo. Em comparacio com a situacio inicial, em que cada ave vivia livremente em seu ecossistema, que perda considerivel, que diminuigéo! Mas, em comparagio com a situacio inicial, em que cada ave voava invistvel nna confusto de uma noite tropical ou de um amanhecer polar, que ganho fantéstico, que aumento! O ornitélogo pode entio, tranqiiilamente, em local protegido, comparar os tragos caracteristicos de milhares de aves rornadas compariveis pela imobilidade, pela pose, pelo empalhamento. © que vivia disperso em estados singulares do mundo se unifica, se universaliza, sob 0 olhar preciso do naturalista. Impossivel, é claro, compreender este suplemento consagrou & listas dispersos no Figura 3. P, Beranger. fv M. Buror, Les naufiagés de Larche, Pats, La Diflérence, 1981 25 © rover ons matiorecas de preciso, de conhecimento, sem a instituiglo que abriga todas essas aves cempalhadas, que as apresenta ao olhar dos visicantes, que as marca por um fino jogo de escrita e de exiquetas, que as classifica por um sistema retificdvel de prateleiras, de gavetas, de vitrines, que as preserva e as conserva borrifando- fas com inseticidas. Af também, tanto para a amplificagio como para a redugio, a informagdo exige uma competéncia, um trabalho tio material quanto 0 do embutidor ou do fresador. Talvez 0 naturalista no pense diferentemente do ind{gena que percorria sua ilha em busca de um papagaio, mas ele vive, com certeza, num outro ecossistema. A comparagio de todas as aves do mundo sinoticamente visiveis e sincronicamente reunidas lhe dé uma enorme vantagem sobre quem s6 pode ter acesso a algumas aves vivas. A redugao de cada ave se paga com uma formidivel amplificaséo de todas as aves do mundo."* Passando do primeiro ao segundo tringulo, af também nio descubro tum mundo de signos cortado de tudo ¢ remetendo somente a si préprio. A colecio, 0 gabinete, 0 livro ilustrado,"" © relato, a biblioteca servem, a0 conttitio, de intérprete, de intermediério, de encruzilhada, de distribuidor, de central telefOnica, de dispateber, a fim de regular as relagGes miiltiplas entre o trabalho de redugao e o trabalho de amplificacio. Todos esses lugates esto repletos de ligagdes com 0 mundo, e cada pigina puxa atrds de si tancas tomadas e fichas quanto a parte posterior de um computador. Ao falar de livros ¢ de signos, nfo esquegamos sua “conéctica”. Apés quarenta anos de trabalhos sobre a intertextualidade e 0 espléndido isolamento do mundo dos signos, convém lembrar que os textos agem sobre o mundo, e circulam em redes praticas e instituig6es que nos ligam a situagdes. Evidéncia segunda, que, com certeza, ndo nos leva de volta & evidéncia primeira do realismo ¢ da semelhanga ingénua, mas que, assim mesmo, nos afasta um pouco do império da semistica. Eis, por exemplo, uma pigina da revista Nature de alguns anos atrés, apresentando uma seqiiéncia de ADN bem como os aminodcidos que as bases podem codificar (Fig. 4). Seria absurdo considerar esta pdgina como a expressio transparente, a réplica, na linguagem da seqiiéncia, do gene ral como ele é, desde sempre, na natureza das coisas.'* No entanto, seria igualmente insensato isolar esta pagina do conjunto das tomadas referenciais que a ligam & ago de um gene em células vivas, através do laboratério, depois de cenrenas de operagbes de manipulagio."? Questio clissica que a filosofia das ciéncias quis ‘enquadrar por muito tempo, opondo os realistas de um lado e os construtivistas do outro, como se no se tratasse, a0 contrério, de compreender a “construsio dda realidade” bem real desse gene. 6 pe ee ce Yet fOMAE Sone © nt alae en tn ge me i tetas te ae pst sup ee ee Re eal a ecto tT Figura 4. © Nature: DR. O texto deste artigo comenta a seqiiéncia de genes inscrita como um documento grifico no interior da prosa. Embora se trate de dois eédigos, ‘no nos encontramos af na intertextualidade. O comentétio “fax referéncia” a um documento que serve de prova ¢ que fundamenta seus dizeres. Esse documento, pela mudanca de nivel da citaglo, assegura em parte a veracidade do comentario, Mas aonde nos leva o proprio documento, se seguitmos a série das mudangas de nivel que, por sua ver, Ihe servem de provas? Chegamos a0 gene? Nao imediatamente. Chegamos ao programador de genes — instrumento de laborat6rio -, aos biélogos moleculares manipulando com precaugio placas fotogrificas irradiadas por produtos radioativos e montando- as numa mesa luminosa como fariam forégrafos. O gene que acaba se inscrevendo em claro nas paginas da revista nfo pode ser desligado da rede de transformagées, de deslocamentos, de tradugées, de mudangas de nivel, que vai, transversalmente, do texto 4 manipulacio de laboratério. Como no caso do papagaio de hé pouco, nfo ¢ posstvel sicuar uma informagio sobre o gene sem a rede das instituigées, dos aparelhos e dos técnicos que asseguram © duplo jogo da redusio e da amplificagio. Conforme o lugar em que voce se situar para retirar o sinal, vocé conseguiré: um Ifquido num tubo de ensaio, gesto de um técnico que maneja a pipeta, faixas cinzentas ou pretas num papel prateado, seqiiéncias dle ADN na listagem de um computador, um texto 2 em prosa sobre a localizagéo possivel de um gene, um argumento na boca de um homem de branco, um boato que corre no bar da esquina, Nunca se encontra 0 famoso roteiro de uma linguagem cortada do mundo ¢ de um mundo cortado da linguagem, mas se encontra por toda parte a relagio transversal, ao mesmo tempo continua por alinhamento — ¢ descontinua ~ por mudanga de nivel ~ que liga centros de célculo, a montante ¢ a jusante, a outras situagées. Como mostrou muito bem Christian Jacob," a cartogeafia pode servir de modelo para todo esse trabalho de transformagSes que inverte as relagGes ntre um lugar e todos os outros. Nesta imagem (Fig. 5), 0 cartégrafo desenha, em local abrigado e no plano, a paisagem que ele domina com o olhar. Figura 5. DAR. Inversio propriamente fantistica, pois aquele que seria dominado, na paisagem desenhada ao fundo, torna-se 0 dominante assim que entra em seu gabinete de trabalho © desdobra os mapas para rasuré-los. Para compreendet esta inversio, nio devemos esquecer, bem entendido, a conéctica, que liga este lugar a todos os outros, por intermédio das expedigoes, das viagens, dos 2% Rees Que 4 RAzA0 pescowslece coldquios, das academias, pela mediacio das vias comerciais tragadas a fogo e sangue, da matemética pura, que permite experimentar varios sistemas de projecio, e pela dos gravadores em cobre e dos impressores. Prestemos atengio por um instante & inversio das relagées de fora entre aquele que viaja numa paisagem e aquele que percorre com o olhar o mapa recém-desenhado. Da mesma forma que as aves do Museu ganhavam, pelo empalhamento, uma coeréncia que as tornava todas comparives, assim também todos os lugares do mundo, por mais diferentes que sejam, ganham, através do mapa, uma coeréncia ética que os toma todos comensurdveis. Por serem todos planos, ‘os mapas podem ser sobrepostos, ¢ permitem, portanto, comparagies laterais com outros mapas ¢ outras Fontes de informagio, que explicam essa formidavel amplificagio prépria dos centtos de cileulo, Cada informagio nova, cada sistema de projegio favorece todos as outros.'® Compreende-se melhor, entio, a expressio “centros de cilculo”. A partir do momento em que uma inscrigio aproveita as vantagens do inscrito, do calculado, do plano, do desdobrivel, do acumulivel, do que se pode ‘examinar com o olhar, ela se torna comensurivel com todas as outras, vindas de dominios da realidade até entio completamente estranhos. A perda considerivel de cada inscrigéo isolada, em relagio a0 que ela representa, se paga ao céntuplo com a mais-valia de informagées que lhe proporciona essa compatibilidade com todas as outras inscrigdes. O mesmo mapa pode cobrir- + & possivel sobrepor a ele mapas geol6gicos, metcorolégicos, pode-se comenté-lo num texto, integré-lo num relato. Nesta imagem do servigo da Météo-France, por exemplo (Fig. 6), pode-se ver como, gragas se de céleul Figura 6, © Méiéo-France, 2» coeréncia ética do mapa, se superpéem tipos de informagio diferentes, uns, provenientes de um céleulo numérico, e os outros, de uma imagem em infravermelho tomada por satélite. Hoje compreendemos melhor esta compatibilidade, pois todos utilizamos computadores que se tornam capazes Je remexer, religar, combinar, traduzir desenhos, textos, foroprafias, cilculos ida agora fisicamente separados. A digitalizacio prolonga essa longa histéria dos centros de cilculo, oferecendo a cada inscrigo 0 poder de todas as outras. Mas este poder no vem de sua entrada no universo dos signos, e sim de sua compatibilidade, de sua coeréncia ética, de sua padronizagio com outras inscrig6es, cada uma das quais se encontra sempre lateralmente ligada 20 mundo através de uma rede. Nesta imagem (Fig. 7) que Tufte considera como um dos diagramas cientificos mais “eficazes”,'* compreende-se a origem dessa aposta dupla que faz 0 cientista ganhar cada vez que parece ter perdido 0 contato direto com ‘© mundo. No mesmo desenho, Marey, 0 grande fisiologista (e inventor do inverso do cinema!”), pOde superpor o mapa da Riissia, a medida das temperaturas, 0 percurso da Grande Armée, a data de seus deslocamentos ¢, mais tragicamente, © mimero de soldados sobreviventes em cada bivaque! Informagbes diferentes, procedentes deinstrumentos separados, podem unificar- se numa s6 visio, porque suas inscrigées possuem todas a mesma coeréncia Sem a superposicéo das inscrigGes méveis e figis, seria imposstvel Fees tops pastcopamesm conan oo igura 7. Mapa estabelecido por M. Minard, E, J. Marey, © métado grifico, Patis, 1885. 30 apreender as relagGes entre os lugares, as datas, as temperaturas, os movimentos estratégicos ¢ as vitimas do general Inverno. Neste “lugar-comum”, oferecido pela roteirizagio do grifico, cada dado se liga, por um lado, a seu préprio mundo de fendmenos, e, por outro lado, a todos aqueles com os quais se torna compativel. ‘Quando Mercator utiliza pela primeira veza palavra Atlas, para designar ngo mais 0 gigante que carrega 0 mundo em seus ombros, ¢ sim o volume aque permite segurar a Terra entre as mios, ele materializa a inversio das relagies de forga que a cartografia torna tio claramente visiveis ~ mas que se encontram, em graus diferentes, em todas as disciplinas que entram sucessivamente na “Via direta de uma cigncia”. Resumo notivel da hist6ria das citncias, este frontisp{cio em que Atlas nfo tem mais nada a fazer, seno medi a bola que segura sem esforgo nos joelhos (Fig. 8). Ora, essa inversio Figura 8. Foro B, Lacour. at 0 roots Das miniioveens das relagGes de forga se realiza por uma inversio literal das proporgoes, dos tamanhos respectivos, entre 0 gedgrafo e a paisagem. Quando se usa a metéfora astronémica da “revolugio copernicana”, sempre se esquece um pequeno detalhe: 0 que chamamos “dominar com 0 olhar” permanece impossivel enquanto nfo nos tornarmos Gulliver no pats dos liliputianos. Nao existe cigncia, rigida ou flexivel, quente ou fria, antiga ou recente, que no dependa dessa transformagio prévia, e que nfo acabe por expor os fendmenos pelos quais cla se ineeressa numa superficie plana de alguns metros quadrados, em volta da qual se revinem pesquisadores que apontam com o dedo os tragos pertinentes, discutindo entre eles. O controle intelectual, o dominio erudito, nfio se exerce diretamente sobre os fendmenos — galaxias, virus, economia, paisagens — mas sim sobre as inscrigbes que Ihes servem de vefculo, sob condigao de circular continuamente, e nos dois sentidos, através de redes de transformagées = laborat6rios, instrumentos, expedigoes, colegoes. dedo apontado sempre permite aos realistas afirmar seu ponto de vista, antes de dar um muro na mesa exclamando, num tom de camponés do Danibio: “Os fatos estio af, teimosos”."* Ora, o dedo desses cientistas, forografados antes de sua partida para a floresta amazdnica, nao designa a flotesta, esim asobreposigdio dos mapas e das foros satélices que lhes permitirao determinar onde estio (Fig. 9). Paradoxo do realismo cientifico, que s6 pode designar com o dedo a ponta extrema de uma longa série de transformagdes no interior da qual circulam os fenémenos. Mas este paradoxo, afinal de contas, nfo é menor que do anjo pintado por Fra Angelico (Fig, 10). Sua mio dircita designa, para surpresa das mulheres, 0 wimulo vazio (“cle niio std mais aqui”), enquanto sua mio esquerda designa a aparigio do ressuscitado, que as mulheres também nio véem, mas que 0 monge em oragio pode contemplar com devosio, sob condicio de compreender bem o duplo gesto do anjo: “Nao ¢ uma aparigio, Jesus, aqui na pintura, no esté aqui, no tiimulo, mas esté presente porque ressuscitado, nfo o procurem entre os mortos, mas entre os vivos”. Paradoxo desse déitico que designa também, como o das ciéncias, uma auséncia.” Em outras palavras, as ciéncias no sio ‘mais imediatas que as imagens picdosas nem menos transcendentes que elas. Tanto Deus como a Natureza circulam através de redes de transformagoes. Haveria impiedade em crer que se pode ver direramente a Floresta Amazdnica ou por diretamente, como Sio Tomé, os dedos nas chagas do Salvador. 22 Figura 10, Fra Angelico, Résurrection, Flotenca, Museu de San Marco, Cl. Giraudon. 2 0 rove was Para compreender um centro de cileulo, é preciso pois aprender o conjunto da ede de transformagies que liga cada inscrigio ao mundo, ¢ que liga em seguida cada inscrigéo a todas as que se tornaram comensuriveis a ha pela gravura, 0 desenho, o relato, o cilculo ou, mais recentemente, pela digicalizagio, Se quisermos compreender a imagem do geSgrafo trabalhando em seu gabinete, nao devemos esquecer a imagem tirada do mais belo romance verdadeiro da histéria das ciéncias (Fig, 11).* Na bruma dos contrafortes igura 11. J F. Trystram, Le procés des éoile, Paris, Seghers, 1979. Doc. Servigos Culturais da Embaixada da Franga no Equador. D.R. andinos, 0s infelizes geégrafos da expedigio La Condamine esforgam-se por avistar as balizas que com grande dificuldade levantam, mas que os indios de noite derrubam, ou que os tremores de terra ¢ as erupgGes vulcinicas destocam ligeiramente, arruinando assim a precisio de seus alinhamentos. Para que o mundo termine no gabinere do gedgrafo, é preciso que expedigies tenham podido quadricular os Andes com balizas bastantes para obter, por triangulagdes sucessivas, © meridiano de Quito ¢ visar em seguida as mesmas cestrelas fixas nas duas extremidades. Que tenham sido necessarios vinte anos de duros trabalhos e de inverossimeis aventuras para obter esse meridiano (Fig. 12), eis 0 que nao se deve esquecer, sob pena de crer que o signo representa ‘© mundo sem esforco ¢ sem transformasio, ou que ele existe & parte, num 4 vra 12, La Métidienne de Quito. fii F.Trystram. Le procts der éiles, Seghets, 1979, Doc. Bibliotheque de l'Institut, Cl. Lauros-Giraudon, 35 0 rove nas mieuiorceas sistema autdnomo que Ihe serviria de referéncia. Mito cientifico oposto a0 mito literdvio, ¢ que dissimula tanto o labor dos construtores de redes como 6 dos centros de cilcule, Com efeito, os estudiosos de literatura, como os de ciéncia — sem falar nos teélogos -, tém alguma dificuldade, mas por mo- tives opostas, em reconhecer 0 papel das inscrigées, em se interessar pelo corpo da pritica instrumental. Eu jé disse o suficiente para que se possa agora considerar a topologia particular dessas redes ¢ centros. Redes de transformagSes fazem chegar aos centros de cilculo, por uma série de deslocamentos ~ redugio ¢ amplifica- fo — um miimero cada vex maior de inscrigées. Essas inscrigGes circulam nos dois sentidos, tinico meio de assegurar a fidelidade, a confiabilidade, a verdade entre o representado € 0 representante, Como elas clevem ao mesmo tempo permitira mobilidade das relag6es ¢ a imutabilidade do que elas trans- portam, eu as chamo de “méveis imutiveis”, para dstingui-las bem dos signos. Com efeito, quando as seguimos, comegamos a atravessar a distingdo usual entre palavras e coisas, viajamos néo apenas no mundo, mas também nas di- ferentes matérias da exptessio, Uma vez nos centros, outro movimento se acrescenta 20 primeiro, que permite a circulagio de todas as inscrigGes capazes de trocar entre si algumas de suas propriedades. A coeréncia ética dos fendmenos relatados autoriza de fato essa capitalizagio, que parece sempre tio incom- preenstvel quanto a do dinheiro (Fig. 13). Coro pe cAreuto Deslocamento Figura 13. 36 O conjunto dessa galéxia descabelada — redes ¢ centro — funciona como um verdadeiro laboratério, deslocando as propriedades dos fendmenos, redistribuindo © espago-tempo, proporcionando aos “capitalizadores” uma vantagem considerdvel, uma vez que eles esto 20 mesmo tempo afastados dos lugares, ligadas aos fenSmenos por uma série revers{vel de transformagies, © aproveitam 0 suplemento de informagées oferecido por toda e qualquer inscrigio a todas as outras. Uma biblioteca considerada como um laboratério nto pode, é evidente, permanecer isolada, como se ela acumulasse, de modo manfaco, erudito e culto, milhées de signos. Ela serve antes de estagio de agem, de banco, representando para 0 universo das redes e dos centros © pel de Wall Street ou da City para o capitalismo. Para dar outro exemplo, cla se apresenta, nessa descrigao, como um grande instrumento de fisica, como osaceleradores do Centro Europécu de Recherche Nucléaire (CERN), obtendo seu interior condiges extremas, que redistribuem as propriedades dos fendmenos submetidos a provas que nio existem em nenhum outro lugar, € que detectores gigantes expressamente construidos para isso sabem colher, localizar, amplificar. Onde se encontram os fendmenos?, perguntat-se-d. “Fora, na extremida- de das redes que os representam fielmente”, dirio uns. “Dentro, ficcio regulada pela estrucura prépria do universo dos signos”, dirio os outros, Tanto os realistas como os construtivistas, tanto os epistemélogos como os leitores de Borges, todos gostariam de dispensar 0 conjunto tragado pelasredes ¢ pelos centros, e contentar-se seja com o mundo seja com os signos. Infel mente, 05 fendmenos circulam através do conjunto, e € unicamente sua cireu- lagio. que permite verifici-los, asseguriclos, validé-los. Nao esquesamos que belas palavras de conhecimento, exatidio e precisio perdem seu sentido fora dessas redes, dessas transformagies, dessas acumulagées, dessas mais- valias de informagio, dessas invers6es de relagbes de forca. Seria como querer separar a eletticidade doméstica das redes atendidas pela Blectricité de France (EDF) ow as viagens de aviso das linhas da Air France. Compreende-se entéo a obsessio da geometria, da matemética, da estatistica, da fisica, da metrologia, pela nogéo de constante. Com efeito, trata se sempre, pela invengao de instrumentos cada vez. mais sutis, de conservar o maximo de formas e forgas através do maximo de transformacées, deformagoes, provas. Ah, deter-se num ponto e, por uma série de simples transformagées, de simples dedugées, recriar todos os outros, & vontade! Os melhores espititos se entusiasmaram com essas invenges que, no entanto, 37 0 raven was atnsiorscas no os afastavam, muito pelo contrétio, da busca do poder € da criagéo de coletivos cada vez mais vastos e cada vez mais bem “dominados”. Para compreender essa esquisitice, ¢ preciso interessar-se pelo traco mais curioso dessas redes de transformagio, isto 6, por sua relatividade Tomemos o exemplo simples da perspectiva, bem estudado por Ivins ¢ por Booker.2' Nos desenhos feitos sem perspectiva, o leitor nfo pode deduzit 0 conjunto das posig6es do objeto no espaco (Fig. 14). Como diz. Edgerton: “Nio se gira por tris de uma Virgem de Cimabue".* Num desenho em perspectiva tinica, 4 moda italiana, € possivel imaginar outras posigdes do ‘objeto no espago, mas sujeito, quantoa ele, deve ocupar a posicdo privilegiada que o pintor Ihe reservou, Num desenho téenico, que obedega as regras da geometria projetiva — ¢ &s convengies relativas as sombras, as cores € aos Figura 14, Mr. Wilkinson's Bradly Forge Engine Working Gear. Escala: 18 por polegada, c, 1782. fn K. Baynes © F. Pugh, The Are of the Enginer, Guilford, Sussex, Lutherword Press, 1981. D.R. simbolos ~, & possivel ao leitor (competente) reconstituir a pega em todas as suas posigées através do espaco. Com o desenho industrial a mancira de Monge, a relatividade dé um passo de gigante. O documento grifico permite recalcular — como num mapa, mas em trés dimensics ~ a totalidade das posigées, bem como a totalidade dos pontos de vista do espectador. Todas as posigdes do sujeito € todas as posigdes do objeto sto equivalentes, tanto 38 Rots @ve a aazAo escosusce que se pode transportar o desenho téenico através do espago sem modificar tes que © compéem. Nao ha mais nem cgiados. em nada as relagGes entre as observador nem perspectiva pri De fato, como na relatividade de Einstein, existe sim um observador privilegiado, aquele que, no centro de célculo, pode capitalizar © conjunto dos desenhos, dos dados, dos levantamentos, dos mapas, das observagies, caviados por todos os observadores despojados de qualquer privilégio, e pode também, por uma série de corregies, de transformagées, de reescritas, de conversées, romé-los todos compativeis." F justamente porque os observadores delegados ao longe perdem seu privilégio ~ 0 relativismo — que 0 observador central pode elaborar seu panéptico ~ a relatividade — e encontrar-se presente 420 mesmo tempo em todos os lugares onde, no entanto, nfo reside. F essa negociagéo pritica entre os observadores da periferia e os do centro que da carne ¢ sentido & expressio, sem isso vazia, de “Icis universais”. A partir do momento em que um observador, um instrumento, um investigador se torna ‘muito especifico, muito particular, muito idiossincritico, ele interrompe 0 deslocamento dos méveis imutéveis, acrescenta ruido na linha, enfraquece 0 centro de célculo, impede o observador privilegiado de capitalizar, isto é, de conhecer.** Como se vé, os fendmenos nao se situam nem no exterior nem no interior das redes. Eles residem numa certa maneira de se deslocar que otimiza a manutencio das relagSes constantes, apesar do transporte © da diversidade dos observadores. A perspectiva, a teoria da relatividade, a geome- tria sio alguns dos vefculos que asseguram as inscrigées seja sua mobilidade, seja sua imutabilidade, Existem muitos outros, menos grandiosos, como empalhamento, a imprensa, © modelo redurido, a conservagio no azoto liqui- do ow a perfuragio para extragio de amostras.”* “Todos esses meios juntos permiem zeter os fendmenos, com a condigio de transformé-los, procurando de cada vez o que se mantém constante através dessas transformasées. A veridicidade nfo vem da superposi¢io de um enunciado ¢ de um estado do mundo, mas procede antes da manutengio continua das redes, dos centros ¢ dos méveis imutdveis que af circulam. A palavra verdade nao ressoa quando uma frase se prende a uma coisa como lum vagio a outro vagio, conforme o modelo comum da adequatio rei et intellectus. Deve-se ouvi-la antes como o ronronar de uma rede que gira ¢ que se estende, Compreende-se entio que as instituigdes como as bibliotecas, 65 laboracdrios, as colegSes nfo sio simples meios que se poderiam dispensar facilmente, sob pretexto de que os fendmenos filariam por si mesmos 4 0 simples luz da razio, Adicionados uns aos outros, cles compem os fendmenos que s6 tém existéncia por essa exposigao através da série das transformacées. No entanto, tal visio, que parcce muito afastada do realismo & moda antiga, no nos leva de volta ao simples jogo dos signos, pois essa série de transformagGes tem justamente como particularidade atravessar continuamente ¢ reversivelmente 0 ou os limites dos signos ¢ das coisas. A obsessio pela constante, pela manutencio de relagbes estiveis através das transformagbes mais extremas, nfo se manifesta apenas entre as inscrig6es, como no caso da perspectiva ou do desenho récnico. Ela se manifesta ainda mais claramente quando é preciso manter um fendmeno através das transformagées que 0 fazem passar da matéria & forma ou, inversamente, da forma & maté ‘Voltemos 20 exemplo simples da cartografia. Como verificara adequacio ao mundo — a menos 10s La Condamine, inantes e dominados, do mapa ao tertitdrio? Impossivel aplicé-lo direrament que se refaga o trabalho colossal que permitiu aos Cass aos Vidal de La Blache inverter a proporcio entre do: © que suporia outras instituig6es, outros meios, outros instrumentos. Na prdtica, aplicamos o texto do mapa a uma baliza, inserita na paisagem (Fig. 15 e 16). Reencontramos os dedos apontados de h4 pouco ¢ © mesmo jogo Figuras 15 ¢ 16, Fotos S. Lagoutte 40 ReDes QUE A kazto vesconuten sutil da auséncia e da presenga, Esse viajante apressado mostra com o dedo © mapa do metrd, © pode ler em letras grandes © nome da estagio que corresponde aquele, menor, do mapa. Essa moga aponta com o dedo o nome dda rua, € poe em correspondéncia, com um répido movimento da cabega, ‘© nome que sc encontra em sua planta de Paris ¢ nas placas de tua.’® As dats inscrig6es — a primeira no mapa, a segunda na placa ~ sero ambas signos? CCertamente, mas numa relagio que nos fasta da incertextualidade, Essas duias espécies de signos, mapas e placas, alinhados uns zos outros ¢ mantides ambos, por grandes instituigées (0 Instituto Geogréfico Nacional, o “Ponts et Chaussées”, 0 Ministério do Interior), nos permitem passar do mapa ao territério, negociando com cautela a enorme mudanga de nivel que separa uum pedago de papel, que dominamos pelo olhar, de um lugar onde moramos que nos cerca por todos os dos. Naturalinente, a série ndo para. A posigio da placa depende de um regulamento do ministro do interior; a marcagio das ruas se bascia, por sua vez, através de outra mudanga de nivel, nos marcos geodésicos que se encontram cravados nas calgadas, ou recém-pintados. Podemos enfim passar para 0 solo argiloso? Ainda nao, pois os «riingulos da rede nacional nos afastam logo do lugar balizado para nos alinhar em outras balizas a virios quildmetros de distancia, ou em satéites a vétios milhares de quilémetros de distancia, geridos por outras insticuigées. As inscrig&es no emetem no vazio a outros signos, uma vez que, a cada mudanga de nivel, clas se carregam de matéria e servem de validacio uma & outra. E, no encanto, nao se pode percorrer sua cadeia sem encontrar, atrés da matéria anterior, outras marcas, outras instituigées que jé “prepararam o terreno”, a fim de que sua leitura se torne compativel, apesar da mudanga de nivel, com o mapa que eu seguro na mio. Se desejamos entender como chegamos, as vezes, 2 dizer a verdade, devemos substituir a antiga distingio entre a linguagem e © mundo por essa mistura de instituigées, formas, matérias © inscrigdes. As vezes, pretende-se dispensar bibliotecas, laboratérios, colesées, sem com isso perder nem o saber nem a razio. E acreditar na “natureza se desvelando aos olhos da ciéncia", como nessa estétua de Ernest Bramar, que se encontra no Conservatério das Artes ¢ Oficios (Fig. 17). Esse mito no € criticdvel somente por seu sexismo,” mas cambém pela nudez terrificante na qual deixa sobreviver a Naturcza, como a Verdade saindo gelada de seu pose. Tudo 0 que aprendemos recentemente das ciéncias, e que eu lembrei aqui muito rapidamente, nos mostra, 20 contrétio, a verdade vestida, equi- pada, gorda, instrumentada, custosa, exposta, rica, € 0s pesquisadores fazendo uma coisa bem diferente de contemplar © mundo num dertisétio peep-show. a 0 ronen nas niniiovecas Figura 17. E. Bramar, A Natureza se desvelando a Ciéncia, 1895, Foto B, Latour. 5 estudiosos de letras como os de ciéncias, por razGes opostas, porém, no parecem poder reconhecer ao mesmo tempo 0 papel dos lugares fechados, onde se elabora o conhecimento, e as redes ampliadas e violentas, através das {quais circulam os fendmenos. Os estudiosos de letras consideram a linguagem autdnoma e livre de fazer referéncia a qualquer coisa, os estudiosos de ciéncias gostariam de dispensar 0 miserdvel intermédio das palavras, a fim de terem ‘acesso direto as coisas. Ora, esses lugares silenciosos, abrigados, confortiveis, dlispendiosos, onde leitores escrevem e pensam, se ligam por mil fios ao vasto mundo, cujas dimensGes e propriedades transformam. ‘Tomemos, para acabar, um tltimo exemplo, extremo, reconhego (Fig. 18). Eis um dos War Rooms em que Winston Churchill conducia a dlima guerra, abrigado das bombas num bunker cavado por baixo de Westminster, que foi aberto ao piiblico depois de restaurado. Neste lugar abrigado, 36 se véem nas paredes inscrigdes, compilagdes estatisticas e demogrificas sobre Renes que 4 RAzko pescoxsce Figura 18. Foto Imperial War Museum inimero de comboios afundados, de soldados mortos, de fornecimentos inilitares em produgio. Entretanto, este lugar nio esté isolado da grande batalha planetaria, Ao contrario, ele a resume, a mede, serve-lhe, literalmente, de modelo reduzido. Com efeito, como saber se o Eixo ganha ou nao dos Aliados? Ninguém pode sabé-lo com seguranga sem construir um “dina- mOmetro” que mega a relagio das forcas por meio de uma série de instru- imentos estatisticos e de contagens. Como o gabinete de nosso cartdgrafo, esta sala baixa e protegida das bombas se aplica, através de mil intermed ossiés, fichas, listas, relatdrios, avaliagées, fotografias, contagens, estoques -, 1 colher informagées sobre a batalha que se desencadeia If fora, mas cujo sentido global ficaria perdido sem esse pandptico, sem essa compilagio no- tarial2* Apesar de seu caréter marcial, eu afirmo que esta situagio se parece is com o lago que liga o leitor, curvado sob a aurgola amarela da limpada, 10 mundo que o cerca, que os mitos perversos de uma verdade desvelada pela cigncia ou que a biblioteca interminavel de Borges. E porque os laboratdrios, as bibliotecas eas colegées esto ligados num mundo que, sem eles, permanece incompreensivel, que convém manté-los, se nos interessarmos pela raz0. 0 0 rooee as siasiorcens Segundo Christian Jacob,” parece que a Biblioteca de Alexandria teria servido de centro de cilculo para uma vasta rede da qual eta a fonte abastecedora. Nao ¢ & toa que os Prolomeus eram gregos. O império de Alexandre sabia muito bem as forcas que podem ser derrubadas com o império dos signos.” Bruno Latour com a colaboragio de Emilie Hermant “ Ler para escever: navegagies alexandrinas' ee Origem, modelo fundador de todo projeto de acumulagio da meméria tsctita, a Biblioteca de Alexandria parece, hoje em dia, surpreendentemente substrata ¢ paradoxal? Como péde tal instituigéo apagar-se na tradigi0, a ponco de nos deixar t20 poucos documentos sobre seu funcionamento, seu pessoal, sua arquitecura, sua atmosfera? Estudarmos Alexandria hoje & nos {wrnarmos nés mesmos alexandrinos e seguir um fio de Ariadne muitas vezes {ntertompido nos meandros da tradigéo antiga. Alexandria nio é 0 protétipo dessas catedrais do saber que sfo nossas as de leitura. E uma biblioteca de Estado, mas sem ptiblico,* cuja finalidade ino é a difusio filantrépica © educativa do saber na sociedade, ¢ sim a io de todos os escritos da Terra, no centro do palicio real que, por ele mesmo, cons acumul m bairro da cidade? Biblioteca no sentido grego de “depésito de livros", rolos de papiros Jos em estantes ~ que, em Roma pelo menos, serio divididas em com- (0s, em nichos ou contraas paredes,¢ acessfveis a uma elite de sdbios fede homens de letras que Iéem, conversam, trabalham e, talvez, ensinam em al cobertas ¢ nas salas adjacentes. A exemplaridade da Biblioteca de Alexandria reside menos na monu- wentalidade arquiteténica’ do que na decisio, tanto politica quanto intelectual, dle rounir num mesmo lugar todos os livros da Terra, presentes ou passados, vai induzir efeitos intelectuais particulares, fundar préticas eruditas de leitura e de escrita, ¢ uma maneira erudita de gerit ‘vmemsria da humanidade, criando um novo objeto, o helenismo, ao mesmo tempo préximo e distance, porque posto a distancia pela mediagao da escrita. \urogos e birbaros. Esta acumul Figura 28, Mncrsine Foxo A. ¢ P. Poirice 10 u Notas 1. Redes que a razito desconbece: laboratérios, bibliotecas, colegbes Daston, 1988, p. 452-470; Latour, Woolgar, 1988; Daston, Galison, 1992, p. 81-128, Para a definigio do termo, ver Latour, 1989 (Folio, 1995), ¢ para exemplos rnumerosos, ver Larour, De Nobles, 1985. ‘Ver o artigo apaixonante de Star e Griesemer, 1989, p. 387-420, Sobre as separagées entre o exterior € 0 interior do Inboratério, ver os importantes trabalhos de Shapin, 1990, p. 191-218; Shapin, 1990, p. 37-86, e Shapin, 1991, p. 324-334, A nogio de mével imutivel ¢ combinivel se aplica, como se vé, tanto 3s coisas ‘como aos signos. Para uma apresentagio da teoria, ver Latour, 1985, p. 4-30. “No entanto, entre a elite do pensamento ¢ da cultura, sio numerosos os que adotaram essa nova linguagem por coisas. Aliss, sé Ihe acham um tinico incon- vreniente; é que, quando os assuntos de conversagio sao abundantes ¢ variados, 4 pessoa pode ser obrigada a carregar nas costas um fardo muito volumoso das diferentes coisas a serem debatida, se nfo tiver 0s meios de manter dois sélidos criados para este uso.” Swift, Paris, Gallimard, La Pliade, 1965, p. 195. Encontiarse-d em Desmond, Moore, 1991, a descrigio mais detalhada © mais convincente das relagées estabelecidas entre © trabalho do cientsta, no cas0 Darwin, no interior de sua colesio (particular), a rede de seus correspondentes, {que cobre, em determinado momento, todo 0 Império Brianico em construcio, Encontrar-se-4 o argumento de conjunto em Latour, 1993. Butor ¢ Béranger, 1981. E 0 que sorna possivel 4 (etno)eiéncia dos modernos, a superioridade que ela adquite, de fito, sobre a (ctno}eiéncia dos antigos, © permite levantar a questio dda simetria (Latour, 1991), apesar da ignoréncia manifesta dos antropélogos de profissio. ‘Ver a histéria dessa forma de primeira revolugio audiovisual em Ford, 1992. 1B 4 as 16 7 18 19 20 2 2 2B 24 25 26 7 28 29 30 Ver, por exemplo, Knorr-Cetina € Amann, 1990, p. 259-283, e a coletinea de Lynch € Woolgar, 1990, Ver © magnifico exemplo desenvolvido por Mercier, 1987, 1991, p. 25-34 Ver Jacob, 1992. O livro elissico sobre a grande questéo (hstérica cognitive) da sinoticidade do impresso petmanece o de Fisenstein, 1991 Tufte, 1984 © 1990. Dagognct, 1987. Para uma descrigio etnolégica dos gests obrigatérios do realismo, ver o execlente artigo de Ashmore, Edwards Potter, 1994, p. 1-14. Ver 0 magnifico livro de Marin, 1989. Trystram, 1979, Ivins, 1953: Booker, 1979, Edgerton, 1991 Latour, 1988, p. 3-44 Mallard, 1991 Ver 0 apsizonante exemplo dado por Bowker, 1994. Agradego ao fordgrafo Stéphane Lagoutte por ter tirado para mim estas fotos. Ver sua critica em Merchant, 1980 desta criagio pela contabilidade dos pandpticos, ver Milles, 1992, p. 61-86, ¢ para uma iil compilagio das invengées técnicas Tigadas a essas enumerages, ver Beniger, 1986. Ver abaixo, p. 68-72. Ver Serves, 1993. Para uma andlise mitito foucalti 2, Ler para escrever: navegagies alexandrinas Uma primeira versio deste texto, muito condensada, foi apresentada na abertura do colbquio “Alexandria ou a meméria do saber”. Sua génese deve muito a meu ensino na Universidade Johns Hopkins (Baltimore), de fevereiro a abril de 1994, no Ambito de um semindrio para graduates (Dept. of Classics). Agradego 20s estudantes por sua atengio e pela qualidade dos debates que animaram. A redacio definitiva benefciou-se das condigées privilegiadas de trabalho oferecidas pelo Geary Center forthe History of Artsand te Humanities (Santa Monica, Califérnia). Agradego a seu diretor, Salvatore Setis, pelo convite, ¢ a0 pessoal do Scholars Department ¢ das Resource Collections por sua ajuda constante. Eni, devo um reconhecimento amigo a Julia Annas, Luciano Canfora, Erangois Hartog, Claude Imbert, Kreyszeof Porian, Jacques Revel e Salvatore Seri, que aceitaram ler este texto € comunicat-me titeis sugestées. Este trabalho € uma etapa intermediiria 290 Novae cm vista de um livro de conjunto sobre a erudigo alexandrina, no qual 0 dossié das referéncias e das fontes seri. plenamente desenvolvido. Para nos limitarmos aalgumas obras recents,o essencial de nossos conhecimentos sobre a Biblioteca de Alexandria & apresentado e diseutido por: Parsons, 1952; Pfeiffer, 1968; Fraser, 1972 (em particular, 0 capitulo 6: "Prolemaic Patronage: The Mouscion and Library’); Canfora, 1986, 1993. O dossié consagrado a Biblioteca de Alexandria poderd também ser visto em Préfces,n. 12, mar.Jabr. 1989, p. 67-103. Os testemunhos antigos sio, freqlentemente,tardios ¢ parciais ou alusivos, ow ‘mesmo fortemente recaborados, recopiando-se, As vezes, uns aos outros. Entre (0s mais sugestivos sobre a fundasio da biblioteca, mencionemes a Carta de Arise, 9-10; Epifinio, bispo de Salamina de Chipre a partir de 367 d.C, (De ponderibus ¢ mensuris, PG, XLVI, p. 252); Galeno, Commentaire des épidémies (XVI 1, 606-607, Kithn); Tzetzes, De comedie (Kaibel, Com. Grace. Fragm., p. 19, Ph 20). A identficagio dos biblioteciriosalexandrinos e sua sucessio nos so co nhecidas através de uma lista (lacunar) conservada no Pap. Oxyr. 1.241, col Il Cavallo, 1988b, p. 38, usa mesmo, a propésito das biblioreeas helenistieas, a ex- pressio “bibliorecas pblicas sem piiblico”, que conviria reservar As hibliotecas de palécio. 6 se crataré, aqui, da biblioveca do pal eea que se encontrava Serapeu de Alexanalria, ¢ que; segundo Epifinio, era chamada “a filha da pri: mcira” (op. city p. 325). Ver Frases, 1972, p. 323-324 Ver o esclarecimento de Fraser, 1972, , p. 324. Sobre as biblioteca helenticas: ‘Canfora, 1986. Uma coletinea dos testemunhos antigos sobre as biblioteces pode ser encontrada em Platthy, 1968. A auséncia de “sal de leiura” € acompanhada daauséncia de mobilia especifica. A iconografia antiga sugere que se posia eserever sentado numa eadeiea, orolo de papiro nos joelhos. Umaestelafuneririaateniense, ‘dagpoca imperial, mostra uma estantesusteatando um rolo de papito. Ver Turner, 1987, p. 6 e nota 16, a propétito do termo analagein, glosado pelo lexiedgrafo Hesyehius como anagnditerin, “mével de leitura”. Por outto lado, 0 uso das mesas éatestado na Grécia. Como observa, com bom senso, Turner, é dificil imaginar (0s escribas copiando rolos inteiros apoiados nos joclhos. E diferente caso das biblioteca piblicas no Império Romano, cuja mais importante inovagio, como sublinha Settis, 1988, p. 61, reside na fusio, num s6 € mesmo «espago, da sala de leiura e do depésito dos livros nos armaria. Ver Fedeli, 1988. io, € no da Vera descrigio que dé Estabio (que nio menciona a biblioteca e sim o Museu, “com seu pértico (perfpatas, sua éxedra € seu vasto edificio (.)"), Geographic, XVI, 1.8, 6793-794, Sole w signifieayies simbieas da wnoriayay do ermal da biblioteca, em particular no Império Romano, ver Seutis, 1988, p.69-75. Estrabio, Géegraphie, XIII. 1.54, C 608, Nacuralmente, Estrabio nio sugere que Aristeles em pessoa tenha concebido a Bil 201

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