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Mos Apou/te | | JAMES HOLSTON Cidadania insurgente Disjungoes da democracia e da modernidade no Brasil Tradugio Claudio Carina Revisdo tenica Luisa Valentini mete ‘S LETRAS: 3. Limitando a cidadania politica Ostrés préximos capitulos examinam a distribuigao substantiva da eida- dania brasileira em relagio as suas qualificagées formeis enalisando o desenvol- -vimente hist6rico de seus componentes politicos, civis¢ sociais. Neste capitulo, ‘meu foco esté na exchusio da maioria dos brasileiros da cidadania politica que permaneceu em efeito de 1881 a 1985, ou seja, durante quase toda a historia da Repaiblica do Brasil. © préximo capitulo concentra-se no acesso limitado & propriedade de terras que a grande maioria dos brasileiros vivenciou e suas terriveis consequéncias para a cidadania até o crescimento das periferias urba- nas depois da década de 1940, © capitulo final desta parte analisa o paradigma dda segregaco urbana que produziu essas periferias para a formagio de uma forca de trabalho industrial. Em seguida examina 0 desenvolvimento dos direi- tos sociais nos anos 1930 ¢ 1940 como direitos de posse especiais disponiveis epenasa certos tipos de trabalhadores urbanos. A combinacio dessas exclusoes politicas civis, socias ¢ espaciais transformou a universalizadora afiliagao ne ania politica tao ébvia e natural que nem precisava ser mencionada. De qualquer forma, 0 impacto do liberalismo democratico na legislagdo Mas, como 0 projeto de governanca dos militares nunca incluiu a criagao de uma cidadania politica de massa democraticamente organizada, as fontes decisivas para essa mudanga devem ser procuradas na intersepfo de outras tres transfor~ imagées da sociedade brasileira que ocorreram durante essas décadas: 0 voto ferninino, a democratizagdo ¢2 urbanizacio, sendo esta iltima a mis significa- tiva, A primeira permitiu a incorporagdo de um nsimero peqiueno porésm cres- cente de mulheres alfabctizadas no processo politico, Inicion também uma emancipacao mais geral,embora ainda incompleta, das mulheres como cidadas independentes. Hoje, as mulheres s80 a maioria dos votantes € nao apens majoria da populagao brasileira. ‘A segunda transformagio, a democracia cleitoral, seguiu-se a dois longos perfodos ditatoriais. Embora diferentes, a represso em cada um deles criow intense demanda por participaco clitoral como direito fundamental. De fato, em 1983 ¢ 1984 milhcs de brasileiros tomaram as ruas das cidades para exigir cleigbes diretas para presidente na maior mobilizagio de cidadios da historia do Brasil. A campanha Diretas Jé acabou nio atingindo seu objetivo, pois os militares mantiveram indireta aeleicao de 1985 para o primeiro presidente civil em 25 anos. Mesmo assim, esa mabilizagéo nacionel sem precedentes pela de~ mocracia influencion de forma importante a eleig&o direta dos representantes a Assembleia Constituinte no ano seguinte. Além disso, a organizagse do movimento permaneceu entusiasmada na Assembleia ao transmitir exigéncias de novos direitos de cidadania aos seus representantes. Esse conduto evoluiu para uma campanha organizada de propostas populares para a propria Consti- tuiglo. A mobilizagao popular de forgas para a mudanga foi tfo impressionante € tdo bem-sucedida na formagio dos principios constitucionais que ¢ nova carta de 1988 se tornou conhecids como a Constituigao Cidada. ‘No entanto, 0 fator mais significative na expansdo e equiparagio da cida- acelerada urbanizacdo do Brasil de 1950.a 1980.4 transfor- ‘de nagao rural a urbana durante casas décadas ndo apenas dania politica magio do Bras 9 consolidou e amplificou a forga do voto feminine da democratizagio eleitoral, ‘Mudou também os termos da formulagao da cidadania ¢, consequentemente, ‘da natureza de Seus conflitos. Por um lado, ¢ répida urbanizagao levow a um crescente isolamento ¢ atraso do setor rural. Em 1950, por exemplo, quando metade de todos os brasileiros era analfabeta,a taxa rural de analfabetismo era duas vezes ¢ meia maior que a urbana. Em 1980, quendo 25% dos brasileiros continuavam sem direito a voto por conta do analfabetismo,a taxa rural havia chegado a quase trés vezes mais que a urbana (tabela 3.2). Embora esse isol ‘mento rural tenha contribufdo para @ persisténcia de governos oligérquicos locais (coronelismo) no campo, levou também a uma crescente insignificénei no Estado mais abrangente ¢ na politica nacional. Por outro lado, nas cidades em que a maioria dos brasileiros vivia agora, 0 eleitorado urbano desenvolveu uma cidadania politica independente ede opo- sigdo.A urbanizagio resulton sum acesso sem precedentes a educagio basica,8 idia de massa, ao mercado de consumo ¢ acima de tudo a propriedade fundié- ta, precisamente para os brasileiros pobres que sempre foram excluidos dessas smanciras fandamentais de adquirir a posigo de cidadios. Esse acesso ndo s6 seduziu o analfabetismo de forma significativa, tornando assim a qualificago por capacidade cada vez mais irrelevante, Gerou também um novo ¢ explicito tipo de argumento a favor da participagao entre esses novos cidadzos urbanos: eles comegaram a raciocinar que, embora pobres, tinham na verdade estabele- ido “verdadeiros interesses” no Estado-nago como construtores da cidade, contribuintes e consumidores modernos. Como mastrarei adiante, sobre essa base sem precedentes eles exigiram novos tipos ¢ qualidades de participagao politica ‘Nos dois bairros da periferia de S80 Paulo em que mais trabalhei,erés acon- teclmentos durante os tltimos vinte anos mostraram a forga dessas exigéncias. Primeito, os moradores fundaram células locais do Partido dos ‘Trabalhadores (rr). Bm uma das que estude mais detalhadamente, 8? vizinhos do Jardim das, Camélias entraram para o partido e organizaram um niicleo em 1980. As pré- Prias custas, mantiveram uma sala de reunides no baitro— um fato notével, considerando-se sua pobreza — onde discutiam regularmente questdes de seu interesse, mobilizavam moradores em torno de problemas comunitérios (sobre- tudo de direitos a propriedade ea servigos urbanos) e organizavam campanhas leitorais para candidatos do er. Nes duas décadas seguintes, muitos desses as0 fandadores continuavam sendo os membros mais ativos ¢ articulados entre as vias organizagSes populares do bairro ¢,além disso, em movimentos soci iniclativas politicas que reuniam diversas comunidades. O que os atrain de forma apaixonada para o niicleo do Fr foi 0 valor que 6 partido dava a suas ex- periéncias e seus conhecimentos dos problemas urbanos como base para aarti- culacto de projetos de agao politica, Eles virem o rr como uma forma de con- tribuir para o futuro de sua cidade e do pafs com base em seus interesses no bairro residencial. Como um dos fundadores depois me explicou, “naqueles anos {1980-6] nossas ideias eram velorizadas, A lideranga do rr usava nossa experiéncia na comunidade para formular seus programas e suas aches” Nessa participagdo de baixo para cima, eles reescreveram a hist6ria de sua exclusio, do desrespeito edas manipulagbes que sofriam como cidadaos nacionais coma afirmagio de uma cidadania urbana, ; ‘O segundo evento foi a cleic8o municipel de 1988, o primeiro pleito de- mocrético para aprefeitura da cidade depois do fim do regime militar. Noventa por cento dos brasileiros adultos tinham direitos politicos, eas periferias esta- ‘vam bem organizadas para reivindicar poder eleitoral. Os resultados estreme- ceram o establishment politico: as periferias elegeram como prefeita da cidade a ‘candidata Luiza Brundina,do pr uma candidate oriunda das periferias, radi- calmente de esquerda, muller, ndo pertencente & elite, nZo intelectual, imigran- tedo Nordeste. Os moradores dos meus bairros fcaram em éxtase. Passei o dia a leigao ex um desses bairros observando as bocas de urna, asatividades dos ativistas do partido que tentam ganhar votos pata candidatos especificos no riomento em que os cleitores se aproximem dos locais de votagao. Na véspera 4a eleigdo, o Tribunal Superior Eleitoral proibis os cabos eleitorais, como so charados esses cagadotes de votos, de fazer companha num raio de cem metros dos postos. Além desse limite, porém, cada partide mobilizou suas tropas. Nos dois Jocais de votacio que acompanhei em Séo Miguel Paulista, os trés princi pais partidos pagaram aos cacadores de votos as seguintes quantias: 0 PsD (com ‘ocandidato Maluf) pagou cerca le 25 reais por dia, o Pwnn (do candidato Lei- ‘va), 20 reais, ¢ 0 Psvs (do candidato Serra), 10 resis (equivalentes aproximados em dinheiro de hoje). Se considerarmos que o salério minimo mensal era de ‘cerca de 110 reais, esses pagamentos eram bem altos para um dia de trabalho. Cada cabo eleitoral recebia também uma camisete, um boné e almogo. O er ti- tha muito menos soldados em campo naquele dia porque nao pagava nade, a io distribufa camisetas nem oferecia almogo. Mas todos os cabos eleitorais com quem filei que trabalhavam para outro candidato me disseram que ti- ‘nham votado ow que votariam na candidata do Fr, Luiza Erundina. Como me disse um deles, com ironia: “Bu aceito qualquer coisa de qualquer um — comi- da, camisetas, tjolos paca a minha casa, dinheiro. Eu aceito qualquer coisa, digo que vou votar no candidato que me dé alguna coisa, e depois voto como achar melhor"? Por mais que tentassem fazer jabaculé na elei¢io, os cabalistas mo- dernos nfo conseguiam votos de curral desses cidadtios. A diferenga de seus “§ antepassados rurais, o pobre urbano nfo vendéu seu voto. Ao contrério, eles forcaram os candidatos a competir por eles e a pagar por esse privilégio. les ‘venderam a impressio de apoio, mas votaram da forma que acharam melhor. O terceiro evento foi a eleigio de Lula para presidente do Brasil, em 2002. Como jé descrevi a alegria das classes trabalhadoras de Sto Paulo, gostaria de apresentar agui as nitidas divistes geogréficas ¢ econémicas da vitbria de Lula (mapa 3.1). No municipio de S40 Paulo, ele obteve 39% dos votos no primeiro turno, comparados aos 28% de seu principal adverstrio, José Serva, do rsp. Lula venceu em quase todos os distritos periféricos. Sio as regiées mais pobres, populosas da cidade, compreendendo 74% do cleitorado que voton no pri= ‘meiro turno, Serra venceu em todos os distritos mais centrais, que tém maior renda porém muito menos cleitores (apenas 2696). Essa distribuisio é apenas um entre muitos exemplos da divisdo espacial da cidade entre o centro.eas pe- tiferias, um padrlo de segregacdo analisado no capitulo 5. A diferenca entre esse exemplo ¢ quase todos 0s outros, contud, é que as pessoas ds periferias transformaram as desvantagens de suas condigées de moradia em uma vitéria, justamente ao exercer scus direitos 8 cidadania politica.* \Veremos adiante que esses novos cidadaos urbanos nao pensavamn que seus direitos Ihes tivessem sido conferides por um Estado benévolo por causa de seu valor moral como “bons” trabalhadores (em vez de vagabundos ou eri- ‘minosos), por serem clientes desse ou daquele cacique ou por preencherer al- gun pré-requisito regulamentado pelo Estado, Nem baseavam seus argumen- tos por seus direitos em sttas necessidades como seres humanos ou sobre set valor absoluto como cidaddos. De forma mais geral e consistente, eles usaram ‘um argumento de “verdadeiros interesses” que eles mesmos reelaboraram. Pa- radoxalmente, transformaram o proprio argumento que os exclu‘a na base de um movimento insurgente por direitos entre os pobres urbanos, voltando-o asa ‘Mapa 3.1. Resultado do primei presidenciais por distritos el Bi aie Inacio Lula da Sica Pr 1 soce Serra —rso8 io curno da votagdo de 2002 nas eleigSes raisem Sto Paulo. rowre: Seade 2004¢. contra a formulagio exclusivista de cidadania que, como este capitulo mostrow, esteve no poder durante mais de cem anos, Agora alfabetizados, mais bem in- formados ¢ proprietérios de iméveis, pagadores de impostos ¢ consumidores de mercadorias, ces adquiriram, sob seu proprio ponto de vista, 0 direito a uma fatia razoavel dos recursos. Ganharam 0 direito de serem tratados coma digni- dade de cidadaos plenos. Conquistaram seu direito aos direitos politicos. ‘Antes de examinar essa nova formutasio de direitos, devo primeiro esta- beleces, no préximo capitulo, até que ponto a antiga formulagio negava outro aspecto fundamental da cidadania & maioria dos brasileizos: devo mostrar que, s0b todos os sistemas politicos que © Brasil jé conheceu, essa formislagto rede iu a legitimidade civil do powo ¢ 0 alfenou da lei 20 limita seu acesso & pro- Priedade fundisria, $6 entio poderemos avaliar 0 impacto total do desenvolvi- mento das periferias urbanas sobre a cidadania. 354 4. Restringindo o acesso a propriedade fundidria : “ Em muitas nagdes, independéncia ¢ governo republicano assinalam 0 de- senvolviniento de movimentos pela igueldade de direitos, mas 0 comego da Repiiblica no Brasil marcou o inicio de disparidades ainda maiores entre os ci- dadaos. Como resultado, a maioria dos brasileiros teve direitos de cidadania esiguais durante séculos sob os regimes colonial, imperial ¢ republicano. Essa cextraordindria persisténcia de desigualdade de massas caracteriza todos 08 28 pectos da cidadania, ndo apenas os politicos, afeta tanto sociedade quanto © Estado, Os brasileiros captaram a imensiddo dessa desigualdade de forma su- cinta num aforismo:“O Brasil € uma terra sem povo e um povo sem terra” Bste capftulo revela que cada ume das metades do adagio descreve um elemento es- sencial no entsincheiramento da cidadania diferenciada do Brasil. Mas mostra também que elas indicam os termos da transformagio da cidadania. Porém, se o aforismo ainda catacteriza com precisio o Brasil rural, sua segunda parte ndo mais se aplica ao Brasil urbano, Com sua construgio das periferias urbanas, os brasileiros ndo s6 se mudaram em massa para as cidades como também uma grande parte do povo urbano ganhou pela primeira vez acesco& terra como proprietirios. Veremos que sua posse em geral resulta de urn complexo processo de legitimago, no qual a ocupasao ilegal ¢a0 mesmo tempo 0 nica meio de acesso a terra para a maioria dos cidadios e, paradoxalmente, 355 vida continvow a mostrar as brutais disparidades em correspondéncia quase li- near com a distancia até o centro, Com a notével excegao da casa propria ¢ do consumo de bens durdveis a ela relacionados (como produtos domésticos), es- ses lotesmentos indicam a l6gica dicotomica pela qual a sociedade ¢ organizada ‘no espago nas cidades brasileiras ¢ a perversidade com que o espago continua & se correlacionar com as oportunidades de vid Por essa razio,no periodo entre 1940 ¢ 1980, a distribuigao de desigualda- de no espago permanece ao mesmo tempo amplamente dicotomica e centrifu- {g sinda que existam alguns bolsGes de pobreza nos distritos centrais (a maio- a cortigos) ¢ de riqueza nas periferias (alguns enclaves fortificados). O centro € predominantemente rico, provide de todos os servicos ¢ infraestrutura urba- os, construide de modo legal, ¢ socialmente branco; seus moradores convivem muito menos com 0 crime, tém melhores indices de satide, mais educacdo ¢ ‘oportunidades culturais e se locomovem em téxis e automéveis. Em contraste, quando nos afastamos em diresio as periferias, os baitros se tornam pobres, mais precérios em termos de servigos de infraestrutura, expandidos cle maneira ‘legal, esocialmente menos brancos; seus moradores sdo mais jovens; convivern mais com o crime, tém sauide precétia, belxo nivel educacionel ¢ poucos recur sos culturais;¢ passam horas por dia amontoados como gado em Onibusindoe voltando do trabalho. Naverdade, o desenvolvimento dos distritos centrais e periféricos retém essa distribuigdo centrifuga da desigualdade até os dias de hoje, embora as periferies de forma geral tenham vivenciado melhorias significativas no pe- iodo 1980-2000 como resultado da autoconstruclo, delutas pelo direito de propriedade e mobilizag6es politica. Analisaremos essas melhorias mais adiante € veremos que elas resultam das reivindicagdes de moradores em bairros periféricos para se tornarern moradores legais e cidadaos integrais da cidade. Mesmo assim, persistem uma dramética desigualdade urbana e seu padrao de segregacio espacial centrifinga. O mapa 5.5 mostra essa persistén- cia num sé olhar. Apresenta instantaneos de seis indicadores sociais, todos chocantes em sua distribuigao centrifnga. Combinada com os rendimentos, sta s6ma indica uma situagdo urbana que continua sendo de uma desigual- dade profanda. DIRBITOS SOCIAIS PARA 0 TRABALHO URBANO ‘Ao mesmo tempo que muitas cidades brasileiras comegararn a fazer uma segregacio espacial por meio da urbanizagio periférica, o governo revolucio- ndrio de Getuilio Vargas (1930-4) determinou uma macicaintervengio do Esta- do para reorganizar a economia e 2 sociedade urbanas do pats. Sua proposta para esta dltima era crlar um novo tipo de esfera piblica nacional no qual cana~ lisar e regular a nova forga de trabalho urbana. O arcabougo dessa interpolasio cra 2 cidadania: 0 Estado constitnin os trabalhadores urbanos como cidaddos especiais, concedendo direitos sociais que eles nunca tinham tido e cclebrando uma dignidade do trabalho que nunca havia reconhecido. No entanto, isso foi Rito como forma de absorvé-los no ordenamento juridico ¢ administrative do Estado, Vargas reformulou a cidadanie dos trabalhadores exatamente para ex- tirpar quaisquer esfecas publicasalternativas de uma organizagio autérioma da classe trabalhadora. £ provével que nfo exista na hist6ria do Brasil um capftulo ais analisado do que o desenvolvimento do Estado corporativista e populista sob Vargas, entre 1930 ¢ 1945. Mas, como seus regimes criaram uma cidadania social patrocinada pelo Estado que em parte perdura no periodo contempor’- no, éindispensdvel compreender esse fato. Além do mais, meu argumento é de que as inovagSes de Vargas nfo constituem um novo modelo de cidadania, como € comum se afirmar, ras uma modemnizasio que perpetuou 0 paradig- ma de cidadania diferenciada do século x1x, adaptando-o as novas condigbes de uma sociedad industrial urbana emergente. A segui, vou me concentrar nessa adaptagio. Contudo, reservo uma diseussio sobre a interpretagéo dos trabalha- dores de sua cidadania social para o capitulo 7, em que analiso a medanga da esfera piiblica de direitos produrida pelas periferias urbanas.® tre 1889 ¢ 1930, a ortodoxia do laissez-faire da Primeira Reptblica havia permitide que industrializacfo do capital urbano eo trabalho se expandissem em sua organizaco de uma forma nfo regulamentada e que se enfrentassem cada vee mais num confronto caético e violento. Depois que a lei dos sindicatos ‘de 1907 permitiu a livre organizacio trabalhista, aumentaram drasticamente as associagbes de trabalhadores e os protestos organizados de todos os tipes. Em Sio Paulo, houve doze greves em fébricas entre 1888 e 1900, 81 entre 1901 ¢ 1914, € 109 entre 1917 e 1920, Nao surpreende que tenham sido os imigrantes europeus que mobilizaram a maioria dessas agbes ¢ associacbes, pois eles 245 ->'9'2 $097 2225 suN0#' 70002 ‘oInag OBS aD oxdpUMur‘sasmEAEs Zod Bug apepIENtIsaP Ep sagsingiNETP sag 4's edEyY (0002 "sopsed ‘soideu wepap 2s and) {200 "218 emma sonus9 seoa1oaKG (2ooe "epeusse enous) joxsertdea ——_‘snasnu‘sojea|sewoup) sun) sojueuedng Jouo)eBaxclve wee sopedancasg {c092) stew no apap ap sous 0} 69 (vog2) ep ap soue op ‘ogbeyndod © ase opis ap scuy Sp sous woo aebepdon ‘sou ewe RU COL ed 9 SvoWN AUG OPRAVOL Jod S=t0WY ‘ocupavam a maior parte dos empregos industriais da cidade (5196 em 1920) ¢ tinhamn muito mais experiéncia sindical que os trabalhadores nacionais (Fausto 1986). Além disso, muitos eram filiados 2 grupos anarquistes e comunistas ‘que constituiam uma esfera publica alternativa de debate sobre o desenvolv ‘mentoda economia eda sociedade brasileiras. Na década de 1920, a resposta do Estados manifestagées cada vez mais agressivas dessa forca de trabalho urbana foi negligenciar as causas subjacentes as disputas ereprimir suas manifestagbes. - 6. Apoiado por leis que consideravam militantes como subversivos, o Estado 2% desceu o porrete e deporton trabalhadores estrangeiros. ‘Ao mesmo tempo, porém, setores modernizadores da elite politica comes satam a rever o Estado como interlocutor do capital edo trabalho. Bles 0 ima- ginavam como uma terceira forga com poder para administrar os interesses das outras duas ¢ assim controlar 0 desenvolvimento de ambos ao definir seus conflitos e impor negociagSes em termos do prOprio aparato administrative do Estado. Na época da revolugio de Vargas de 1930, esse novo Estado estava erm dois anos, o regime propés assumir a responsabilidade das exigéncias dos mo- vimentos trabalhistas por justiga ¢ direitos s0% direitosaos trabalhadores, foi exigido que eles desistissem de qualquer autond- ia organizacional trabalhista. Para neutralizar a independénicia, 0 regime ga- rantia a regulamentago da vide nas fébricas e a mediacao das exigéncias entte trabalhadores ¢ empregadores. Seu objetivo era absorver 0s interesses dos dois ladose negar seus poderes de conflito.* ‘A primeira lei social, decretada em 1930, visava criar 0 corpo nacional de trabelhiadores 20 qual seriam conferidos os novos direitos trabalhistes de cide- dania. A chamada Lei dos Dois Tergos (Decreto n° 19.482) nacionalizou a forga de trobalho ao exigir que as empresas garantissem que dois tergos de seus em pregados fossem brasilciros natos ¢ ao restringir a imigragao de passageiros de terceira classe, Ao se propor assim a proteger os brasileiros da concorréncia es- trangeira numa época de depresstio mundial, o Estado alegava estar Iutando F contre 0 desemprego dos cidadaos. Mas a Jei também deu ao Estado controle do mercado de trabalho industrial e poderes para remover a lideranga estran- geira do movimento trabalhista. Como resultado, 0 Estado conseguiu supervi- “@ sionar substituigio de trabalhadores assalariados nacionsis por estrangeiros, | numa época em que a migragdo interna superava a imigeagio como forma de § 28 . Em troca da concessio de 7 fomecer novos trabathadores urbanos. Igualmente importante foi o fato de o governo revolucionério ter usado a Lei dos Dois Tergos para crier urn novo significado de cidadania nacional para os trabalhadores brasileizos, tornando- -os beneficiérios de suas qualificagbes para o direito ao trabalho. Para cidadaos que no tinham acesso a maioria dos direitos de afiliagao nacional, essalei criow a primeira identificacdo coletiva e, na maioria dos casos, individual, com a cica- dania como distribuigéo de direitos. ‘Com essa promulgagio, contudo, o novo Estado perpetueu um antigo principio de cidadania: promoveu a cidadania como tratamento especial basea- donna distribuigio diferenciada de direitos entre 0s brasileiros. A Lei dos Dois “Tetsos ndio apenas distinguia os direitos empregaticios dos cidadaos brasileiros dos de estrangeiros nie cidaddos. Distinguia também entre diferentes tipos de cidadios brasileiros e residentes legais, Dava tratamento especial aos cidadaos nascidos no Brasil, mas discriminava os cidadifos nascidos em outras partes do mundo que tivessem se naturalizado. Além disso, depois de alguns meses, emendas fei criaram um precedente que permaneceu bésico para todo 0 novo projeto de direitos sociais do Estadlo: eximirarn empresas agricolas, de forma aque 0s cidadaos brasileiros que trabalhavam em empzegos no agrarios (isto &, ttabalhadores urbanos) tinham direitos legais e protegao que os que trabalha- vam no campo nfo tinham. Se essa diferenciagéo entre os cidadaos brasileiros parecia nao precisar de justificativa, era porque seu principio passou como umn pressuposto técito da cidadania brasileira. Além de fazer dos trabalhadores os beneficidrios dos direitos, a novidade na lei em relagio as politicas trabalhistas dda Primeira Republica e do Império eram as discriminag6es legais ea deprecia- ‘do moral dos estrangeiros na definigao da cidadania nacional brasileira. Essa nova xenofobia produziu uma justificativa governamental. Em entrevista a um jornal, o ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, defendeu a nova lei alegande {que muitos imigrantes vinhaim ao Brasil por ser “um pais sem policia,tob mui tos aspectos um paraiso para os vagabundos” ¢ acusando-os de “aumentar as Gificuldades da vida nos centros urbanos ¢ contaminar o trabalhacor brasileiro ‘com ideias subversivas”(citado em Paoli s.d.: 166). A Lei dos Dois Tergos iniciou 2 estratégia do governo de criar uma nova forga de trabalho no apenas garantindo direitos aos trabalhadores urbanos ¢ controlando o mercado de trabalho. Também anunciou o plano do Estado de Promover o trabalhador nacional ao palco central do desenvolvimento nacional 249 econferiu dignidade ao seu trabalho, ena verdade ao préprio trabalho. Para un pais em que o trabatho nunca havia sido uma fonte de dignidade, mas sim seu ‘posto, em que as elites tinham aversio ao trabalho manusl e em que os que o desempenhavam eram pétias, se néo escravos, essa promogio foi muito impor- tante, ‘Aimedida tinha dois componentes principais, um como espetéculo e outro na lei, Tal qual outros populistas na América Latina e na Europa, Vargas foi pioneiro no uso do espetéculo eda cultura para formar uma moderna massa de © cidaddos empolgados com as personificagbes do poder." Ficou famosa a forma como se dirigia 8 nagao durante seu governo, como “trabalhadores do Brasil, forjando uma nova esfera puiblica para o corpo nacional a partir de uma conf sto sined6quica da parte com o todo, Esse apelo universal fez da classe traba- Thadora seu foco especial, pois de forma ret6rice convertia todos os cidadaos ‘em trabalhadores ¢ glorificava todos 0s trabalhadores como cidadaos especiais. Além disso, tornou o trabalho a esséncia da cidadania da classe trabalhadore. ‘Vargas foi um mestre nessa alquimia, a0 usar as novas midias do radio e to ci- nema, Falando & nacdo, ele a transmitia nos novos rituais de identificagao na- cional que inventou para escolas, fébricas e feriados. Esses esperéculos de cida- dania incorporavam 0 trabalhador bumilde nas fileiras dos cidadaos vatiosos. Ele deu nova embslagem a um simbolo de pobreza e abuso, apresentando-o como um modelo nacional exemplar de produtividade, disciplina e lealdade. ‘Mas esses espetdculos também deixavam claro que, em troca da promogao de seu bem-estar pelo Estado ea fim de receber suas doagdes de direitos sociais, 0s trabalhadores teriam de se conformar com seu modelo trabalhista, Nessa est pulago, o novo Estado com efeito esvaziou qualquer esfera publica alternativa ‘que pudesse competir na formulagio da cidadania brasileira. A estratégia mais eficiente do regime neste projeto foi fozer das definigees legais de trabalhismo do Estado o grande foco da cidadania da classe trabalhs- dora, Além do espeticulo, o governo promovia a dignidade do trabalhador 20 reconhecer seus direitos sociais na forma da lei. Esse reconhecimento consistia, ‘em primeiro luger, em concentrar 0 universo de suas exigéncias por direitos € © justiga em suas experiéncias trabalhistas e,em segundo lugar,em canatizar essas exiggncias para as esferas legal ¢ judicial do Estado. governo revolucionatio dos anos 1930 alegava adotar o proprio ideal de justi sociale legitimidade dos, direitos que os movimentos trabalhistas vinham exigindo havia década 250 seguranga no emprego, jomada de trabalho de oito horas didrias, periodos de escanso semanais ¢ em feriados, salério minimo, seguranga no trabalho, pen- s0¢s ea extingao do trabalho infantil, entre outros. O regime aceitou essas exi- sgincias por meio de uma série de leis que as definiam, regulavam e conferiam aos trabalhadores ne forma de direitos.” ‘Mas toda essa elaboragio de direitos socias tinha uma armadilha funda- ‘mental: embora o governo os apresentasse como a incorporagao universal dos “trabalhadores do Brasil” em um regime de cidadania e direitos sociais, nem todos 0s trabalhadores, muito menos todos os cidadaos, tinham acesso a esses direitos. Em ver disso, sua distribuigdo era legalmente restrita & fragio dos tra- balhadores com contratos legais em ocupagbes regulamentadas. Para garantir, que o movimento trabalhista cumprisse stas leis, o governe revolucionério de inicio tentou limitar 0 acesso aos direitos trabathistas aos trabalhadores que participassem de sindicatos organizados de acordo com suas regras. Assim, em 1932.0 governo decretau que apenas membros de sindicatos reconhecidos oft- Galmente tinbam direito a prestar queixas nos tribunais do trabalho e, em 1934, que 86 eles tinham direito aos beneficios de férias garantidas. Embora a Assembleia Constituinte tenhe julgado tais leis inconstitucionais mais tarde naquele mesmo ano.e tornado voluntéria a participagio sindical, ainda assim os nao sindicalizados ficaram exchuidos das regulamentagées coletivas (Santos 1919: 69). Quando a Constituigio de 1957 eliminow essa restrigfo, o que restou como qualificagao essencial aos direitos trabalhistes foi o contrato legalizado entre empregador ¢ empregedo numa ocupagio:oficialmente regulada. Com esse contrato, tanto trabalhadores sindicalizados coma nfo sindicalizados (am- bos tendo de pagar contribuig6es para o sindicato oficiel que representava suas profissdes) tinham direito aos beneficios garantides pelo Estado. Sem isso, os tuabalhadares dependiam apenas da boa vontade dos empregadores. A estrutura dessa diferenciacio dependia de quatro componentes, Pri- 1neiro: a lei sindical de 1931 estabeleceu que sé sindicatos organizados por profissio tinham valor legal e reconhecimento oficial, Segundo: uma série de leis complementares definia ¢ regulamentava o que constittsa as profissSes em cada categoria econ6mica, Como excluiam os trabalhadores agricolas, elas se aplicavam basicamente a forga de trabalho urbana. Terceiro: outras leis decre- tavam que apenas trabalhadores que exercessem uma profissio urbana regula ‘mentada, mecliada por tm contrato legal de trabalho, tinham direito ase filiar 2s eat cena a0 sindicato correspondente, xegistrar queixas em juntas e tribunais trabalhis- tas ¢, mais importante, ter acesso aos benelicios trabalhistas que o sindicato de ‘ua profissBo tivesse negociado com o Estado. Quarto: 0 governo instituin car- teiras de trabalho como forma de prover a classificagao ocupacional de um trabalhador e sua situagio contratual. Qualquer um que quisesse trabalhar poderia obter uma carteira de trabalho. Mas s6 os empregadores podiam fazer anotagdes para estabelecer a profissio de cada trabalhador c seguir seu hist6r co trabalhista (ou seja, contrato especifico, cargo, sélétios, datas de admissioe i demissio, férias e outros beneficios, acidentes, contestagdes eassim por diante). ‘Como conclui Wanderley Guilherme dos Sentos (1979: 69), essa carteira profis- sional era mais que urna prova legal de relacio contratual entre empregador € empregado. Essa prova estabelecia ao mesmo tempo situagao profissional do tiltimo ¢ uma segunda relagdo contratual entre o Estado ¢ o trabathador que vinculava cada wim a uma série de direitos trabalhistas em troca de deveres de trabalho devidamente reatizados e registrados. Os direitos dos trabalhedores derivavam dos da profissio, ea tinica forma de a profissdo negociar esses dirci- tos ficeva por conta da regulamentagao do Estado. Assim, a carteira de trabalho se tornou “uma certidao de nascimento ctvi- 4 co” no que Santos (1979: 68) descreve, numa frase bem conhecida, como uma “cidadania regulads’ ‘So cidadaos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localiza dos em qualquer ums das ocupagSes reconhecidase definidas por lei. A extensio dacidadania se faz, pois, via segulamentagio de novas profissdes e/ou ocupacdes, em primeira lugar, e mediante a ampliacso do escopo dos direitos associadosa essa5 prolissBes, antes que por extensto das valores inerentes 20 conceito de mem ‘broda comunidade. A cidadania esté embutida na profissao e os direitos do cide dao restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por le. Tornam-te pré-cidadios, assim, todos aqueles cujt cocapagao a lei desennhece. (Grifo do autor) ‘esse trecho, Santos identifica a estrotura da extensio da cidadania de Vargas asclasses trabalhadoras e seus mecanismos de desigualdade: ela exclufa todos 05 trabalhadores, ura e ucbanos, cujas ocupagiies nko tivessem sido regulamenta- ase das por lei ¢, devo acrescentas, que nao dispusessem do contrato legal de traba- Jho exigido por essa on por outras razdes.” Gostatia, contudo, de Jevintar dois problemas na anélise de Santos. Para comegar, é uma concepslo erronea distinguir um tipo de cidadania como “re- gulamentada’, Todas sio regulamentadas. Nao existe cidadania ndo regulamen- tada, Como 0 aspecto diferencial da extensio dos dircitos sociais de Vargas era sua distribuicao diferenciada, é mais itil descrevé-la como um tipo de cidada- nia diferenciada, em vez de uniforme ou igualitéria. E identificé-la como ume cidadania que marca diferengas tem uma vantagem importante: indica que, longe de criar um novo modelo, Vargas perpetuou 0 paradigma histérico da desigualdade incladente da cidadania brasileira 20 Ihe conferir uma forma moderna, adaptando suas diferenciagdes as novas condigSes da madema socie- dade industrial urbana, Vargeé Ihe insuflow nova vida por meio de inémeras inovagdes: ele acrescentou o componente dos direitos socioecondmicos, fez com que se concentrasse no trabalho da classe operdria ¢ desenvolveu um es- ‘quema especifico de distribuigao diferencial legalizada. Sem davida, essas ino- ‘vagbes tiverem consequéncias importantes para a modemizagio do Estado eda sociedade brasileizos. Contudo, nao resta dtivida de que Vargas fez uma adapta- (0, por certo brilhante, do secular paradigma de cidadania nacionalem que a incorporagdo parece universal — por meio da aparente wniversalidade da lei— ‘mas no qual a distribuigao das prerrogetivas referentes a cidadaniaé legalmen- terestrita, Como tal, também faz, pouco sentido definir, como o faz Santos, os inclufdos nessa distribuiggo como “cidadios” ¢ os excluides como “pré-cida- dios", Os dois grupos incluem cidadios nacionais. Um trabalhador rural ex- clufdo que seja brasileiro e um trabathador urbano incluido, com wm contrato de trabalho legal numa profissio regulamentada, que seja brasileiro so ambos cidadaos-membros da mesma comunidade politica nacional. problema € precisamentea desigualdade de sua cidadania comum, ‘O movimento trabalhista independente lutou com persistencia durante 05 anos 1930 para conceber alternativas vidveis a essa cidadania social resrita, ten- tando romper o vinculo entre direitos sociais, regulamentaglo de ocupagao ¢ ualificagio pela carteira de trabalho. Os trabalhadores desconfiavam particular- mente da carteira de trabalho, que eles tinham boss tazbes para ver como wna forma de vigilancia secreta do governo e de repressto policial. De fato, no inicio da década, alguns sindicatos independentes emitiram suas préprias carteiras de 253 trabaiho, ¢ afirmavam que estas estabeleceriam dizeitos aos beneficios. Esses sindicatos eoutras organizagdes aliadas tentaram compor uma esferaalternati- vade participagao por meio decomiss6es de fabrics nao oficias, greves, compi- ‘mentos, protestos ¢ outtas formas de mobilizaco popular. Embora essa resis- téncia tenha sido significative, embora sua repressdo tenha sido malvista, 0 ponto importante em relacio ao desenvolvimento da cidadania é que esses es- forgos fracassaram, Ao se recusar a reconhecer qualquer alternativa as suas re- gulamentegies, o Estado manteve de forma resoluta 0 vinculo entre profissao legelizada, contrato edireitos. Incapazes de competir com a cessfo de beneficios e/ou de consolidar uma esfera diferente de direitos, os sindicatos independentes esmoreceram. Quando o golpe de Vargas de 1937 estabeleceu o Estado Novo,a ‘maior parte das vozes por uma estruturacio alternativa da economia eda socie- dade urbana havia sido silenciada — pelo menos até década posterior Aqueda deVargas, em 1945, e depois disso foram de novo esmagadas pelo golpe militar de 1964.” ‘A Constituigo de 1957, que coroou o Estado Novo, sintetiza mais uma vex as muitas leis que haviam entrado em sua construgio, O artigo 136 dividia a populagdo do Brasil entre os que trabalhavam eos quent trabalhavam, fazen- do do trabatho 20 mesmo tempo um direito social e uma obrigago que propi- ciavam aos trabalhadores a protegio do Estado." Indo no mesmo sentido, pra- icamente criminalizava os que nao trabalhavam por outra razo que nao por enfermidade, O regime situou os que no trabalhavam nas margens morais da sociedade, rotulando-os de vagabundos ¢ excluindo-os categoricamente do tinico tipo de direitos de cidadania que os brasileiros podiam exercer de forma realista na época. As ae sociais. Aléin disso, o Estado de Vargas dividin a populagio frabathadora do Brasil em dois grupos desiguais: os que trabalhavam em profissdes legalmente defini- dase 0s que trabalhavam em outros tipos de empregos esituagdes. Os primeiros tinham o diteito dese filiar a sindicatos, ter uma carteira de trabalho assinada, ¢recebiam beneficios garantidos pelo Estado; os titimos néo tinham nenhum esses direitos. Assim, o sistema de cidadania social de Vargas gerou ndo s6 umm novo conceito de marginalidade que agregava desempregados e criminos0s, sas também o de mercado informal de trabalho, que abrangia todos os empre- ‘gados de forma icregular ¢ os subempregados, bem como os empregados de ero um novo constructo de excluséo e marginalida- 254 modo regular porém em ocupagSes nao oficiais. Diferenciava os cidadaos bra- ‘sileiros, portanto, em subgrupos désigualmente graduados em relagto a distri- ‘puigéo de direitos sociais: urbano/rural, empregado/desempregado, mercado formal/mercado informal, contratado/nao contratado, registrado/nio registra- do e sindicalizado/nio sindicalizado. Nesse esquema, apenas uma fracio dos cidadaos brasileivos se qualificava aos diteitos sociais da cidadania tal como exam definidos por meio do universo trabalhista." ‘Além disco, chegava a dividir ess aso em partes antagOnicas, pos cada categoria de trabalhadores tutava para defender éaumentar seus privilégios por meio de negociagSes especificas de cada profissio com 0 Estado. Assim, 08 profescores conseguiam se aposentar cinco anos mais cedo, os aposentados fi- xaram um salério minimo como o limite inferior de pensio, funciondtios pi- blicos ganharam empregos vitalicios e os juizes resistiram com sucesso a qual- ‘quer forma de controle e supervisio externos. As diferengas de direitos baseadas no trabalho érganizaram também a aposentadoria.O sistema nacional desegu- idade ficou vineulado a leis trabalhistas, especialmente depois da aprovagao da Consolidagéo das Leis do Trabalho em 1943, exeluiu os que no eram regula mentados por elas. Por exemplo, a Lei Organica da Seguridade Social de 1960 climinou explicitamente os beneficios dos trabalhadares rurais, domésticos € autnomos. $6 depois de 1973 todos os trabalhadores brasileiros foram inclui- dos no sistema de seguridade social. No entanto,algumas categorias continua ram a softer com a diferenciacio. Empregados domésticos, por exemplo, tém aposentadoria, mas no direitos trabalhistas. Ademais, a regulamentagao da cidadania social a partie da qualificagdo trabalhista criou uma distribuigio ob- viemente desigual de beneficios de aposentadoria, pois os que contribuiam ‘mais por categoria profissional c os que acumulavam mais de uma aposentado- tia por categoria recebiam maiores beneficios. Em resumo,a luta para formar a modernidade urbana emergente da socie- dade brasileira foi vencida decisivamente nos anos 1930 e 1940 por uma férmu- Ia especifica de governo, articulada por um projeto espectfico de cidadania. Ca- nalizava as classes trabathadoras urbanas numa nova esfera publica de leis, burocracia.e espeticulo patrocinada pelo Estado, que despolitizava suas exigén- cias por justiga e esvaziava sua autonomia organizacional. Tembém reprimia com rigor os que manifestavam outras escolhas, mesmo que fosse a exigencia de obedigncia das mesmas leis trabalhistas supostamente garantidas pelo Estado, 255 Essas|els eram na verdade implementadas de forma ineficiente, pois os empze- gadores costumavam ignorar impunemente 08 direitos trabalbistas e se apro- ‘veitavam de intimeras lacunes; a burocracia complicava tudo a exaustios ¢ a solugio judicial se provava invidvel. Os teabalhadores que exerciam seus direitos faziam-no correndo riscos consideréveis; os que de fato 0s concretizavam 56.0 conseguiam com uma perseveranca heroica.”” Paoli (6.4: 309) conclui que ostrabalhadores ...}eram reduzidos kimpotEncta ¢ao isolamento em seu traba- Jho dio |...) Em dima andlise,o que os empreencedorestinham conseguido noinfcio dos anos 1940 era a zeducio das condiges dos trabalhadores aos mode- los puros de privatizagio e esceaviddo encontrados na virada do século—coma

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