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DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS, HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE DICTATORSHIP “CIVIL-MILITARY""?: HISTORIOGRAPHICAL CONTROVERSIES OVER THE BRAZILIAN POLITICAL PROCESS IN POST-1964 AND THE CHALLENGES OF THE PRESENT TIME Resumo: O propésito deste texto é discutir a limitag3o de uma nogdo que desde 03 anos 2000 tem ganhado ares de “renovagio conceitual” para o entendimento do regime ditatorial implantado no Brasil em 1964. A partir da constatagao trivial de que tanto na operacio do golpe de Estado quanto na condugio da ditadura houve participagio importante de setores nfo-fardados em posicdes relevantes, esta idéia busca definir tal situagao a partir do termo “eivil-militar” adjetivando tanto 0 golpe de 1964 quanto a ditadura que se seguiu. A partir de um apanhado na literatura, procura-se apontar as insuficigncias eos —_desdobramentos. mistificadores que tal nogdo encerra, em primeiro lugar por naturalizar uma visio corporativa dos militares sobre a sociedade; em segundo, por nio ser capaz de dar conta dos nexos reais que articularam © grande capital monopolista com 0 aparelho de Estado naquela quadra historica. Palavras-chave: Ditadura _civil-militar, historiografia, revisionismo, *Golpe civil-militar”; “ditadura civil- militar”. O termo Gap apresentado pela historiografia como forma mais precisa para adjetivar o golpe de 1964 e do regime que lhe seguit * Doutor em Historia pela UFF ¢ Professor do curso de Historia da UFRI. Enail: demian_pesquisa@yehoo.combr Demian Bezerra de Melo Abstract: The purpose of this paper is to discuss the limitation of a notion that since the 2000 years has gained an air of “conceptual renewal” for understanding the nature of the dictatorial regime implemented in Brazil in 1964, From the observation, something trivial, that both operation of the coup, such as in the conduct of the dictatorship, there was participation of important sectors non-uniformed in relevant positions, that idea searches to define that situation with the ten “civil-military” adjectivizing both the 1964 coup as the dictatorship that followed it. From an overview on the literature, we seek to point out the shortcomings and the mystifying ramifications that such notion presents, first by naturalizing an enterprise view of the military on society, and secondly, for not being able to cope with the real nexus who articulated the big monopoly capital with the state apparatus in that historic block. Keywords: Civil-military historiography, revisionism. dictatorship, adjetivo visa lembrar que tambéi , quando a maior parte da localiza o fim daquela outro lado, a recente historiografia ditadura, Por Espaco Phiral * Ano XIII * N° 27 + 2” Semestre 2012 « p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE insisténcia sobre esse ponto por parte de alguns profissionais da area tem despertado algumas ctiticas, pois muitos dos que tem recortido a essa adjetivacio no parecem querer dizer @ mesma coisa. Senao vejamos alguns exemplos, Em uma aula inaugural do Programa de Pos-Graduacio em Histéria, Politica e Bens Culturais do CPDOC/FGV, em margo de 2010, © historiador Daniel Aario Reis enfatizou a importancia dessa (suposta) preciso, chegando mesmo a fazer uma autocritica de seus proprios textos pretéritos que fizeram com que circulasse a nogio “errénea” de ditadura militar.” Em 2012, 0 influente historiador voltou a intervir nesse mesmo sentido, em artigo publicado no jomal O Globo. posteriormente republicado na Revista de Histéria da Biblioteca Nacional, fazendo-o circular por um amplo piblico.* Logo em suas primeiras linhas esereveu: O mesmo texto seria Tomou-se um lugar comum, chamar 0 regime politico existente entre 1964 ¢ 1979 (sic) de “dit . ° Em nota ao texto da aula, 0 histeriador diz: “Eu mesmo empreguei o termo [ditadura militar]. © quantas vezes, inclusive em titulo de livro, contribuindo para consolidar uma tradicao equivocada, do que hoje me arrependo.” REIS, Daniel Aario, Ditadura, anistia e reconciliagde. Estudos Historicos, Rio de Janeiro, vol.23, 45, p-171-186, jan/jun.2010, citacdo a pagina 183. Nesta nota, © autor refere-se a0 seu Livro Ditadura ‘militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro Zaher. 2000, Ditadura civil-militar. 0 Globo, Rio de Janeiro, cademo Prosa & Verso, 31 de marco de 2012. © sol sem peneira. Revista dle Histéria da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, agosto de 2012. Disponivel em nipy/'www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o- sol-sem-peneira (acessado em 15 de novembro de 2012) & preguica intelectual. © problema € que esta meméria no contribui para’ a compreensio da hist6ria recente do pais e da ditadura em particular. Daniel Aarao Reis, professor Titular de Historia Contemporinea da UFF. convida a que seja retomada a atmosfera da época do golpe para que se entendam como as _multidées que que acreditavam ser wn se de um tipo de argums os mesmos ). ott eminéncias “civis” do como 0 ex-ministro do regime Planejamento, Roberto Campos. No artigo, 0 historiador carioe: elencou uma série de argumentos par provar a tese de que no sé civis, como a tie ope row Sal ae controversamente, 0 autor acredita ter periodizacdo, baseada na suposigao de que 0 estado de direito teria sido restabelecido apés a revogagio do AF-S e da Lei de Anistia, * Para uma critica a essa nocio de carte liberal, ver WOOD, Ellen M. O demo versus “nds, 0 povo”: das fantigas as modemas concepedes de cidadania. Tn Democracia contra capitalismo: a renovagao do materialismo historico. So Paulo: Boitempo, 2003. p.177-204. Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO Em polémica, o historiador busca atribuir aqueles que consideram o fim da ditadura em 1985 0 90 estado de excegao teria deixado de existir (sie). Em seguida, atribui aos que no fim da ditadura haviam construido egundo o autor, a propria num exercicio de Por essas razdes ¢ injusto dizer ~ outro lugar comum — que 0 povo nao tem meméria. Ao contritio, a histéria atual esti saturada de meméria, Seletiva e conveniente, como toda meméria, No exercicio desta absolve-se a soctedade de qualquer tipo de participagdo nesse triste —e sinistro — proceso, Em audiéneia piblica realizada pela Comissfio Nacional da Verdade na sede da OAB-RI no dia 13 de agosto de 2012, numa mesa intitulada “Antecedentes, contexto razées do golpe militar”, 0 historiador Carlos. Fico, logo no inicio de sua exposigio, foi enfitico ao afirmar que “o golpe nio foi militar, mas civil-militar’ afirmaciio seguida por aplausos da platéia.* Ao mesmo tempo, quanto ao cariter do regime que ali se instalou, Fico pronuneiou- se em favor da ideia que aquela foi apenas uma ditadura militar, nao sendo pertinente 0 adjetivo “civil”. Mas voltemos ao que o pesquisador discutiu sobre as razbes do golpe. © Da mesa também participaram a cientista politica Maria Celina D'Araujo ¢ 0 historico advogado defensor dos presos politicos Modesto da Silveira Toda a audiéncia piblica pode ser vista no enderego eletrénico _htip://aovivor).com.br/cabr)13082012/ (acessado em 20 de setembro de 2012). Som contrario do. que diz ser uma “memoria confortivel”, 0 golpe de 1964 foi uma operagio que contou nao sé E um dos setores que mais olpe foi a IgrejayCatolicay que ajudou a construir 0 atoms que foi a base para o golpe, as conhecidas Familia”, em Sao Paulo (antes do golpe), Rio de Janeiro e outras capitais e cidades do pais com o golpe ja vitorioso. Segundo o pesquisador, tais marchas seriam a base de uma narrativa de (justificagio)/do)/golpe -construida pelos militares durante toda a ditadura, segundo a qual “ay/Sociedade™) CGrandemmedidayeivertaderfeoncluin Fico, Ele também lembrou do apoio a imiprenisa)) ao golpe, cujo emblemas so os famosos editoriais do Correio da Manha, que estamparam na capa do jomal os titulos “Basta!”, “Fora!” e “Basta e Fora”, precisamente nos dias 31 de margo, 1° e 2 de abril de 1964. Ao mesmo tempo, defendeu que o que caracteriza a natureza sola lagalhaes Pinto. Ele Iembrou que 0 govemador udenista esteve integrado ao esquema golpista que contava -cém-nomeado) (AGGRO entre 0 sen (re secretirio sem-pasta Afonso Arinos de Melo Franco e 0 governo Lyndon Johnson, materializado na operagao Brother S A. conhecida esto que recentemente foi discutida em livro pelo 7 Essa histéria & contada pelo proprio Afonso Arinos tno documentitio de Silvio Tendler, Jemgo, de 1984. Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE autor —* contava com plano segundo o qual, jinterviessem no conflito em favor dos ‘CBolpistas,)Através do general de brigada José Pinheiro de Ulhéa Cintra ~ cadete de Castelo Branco na Escola Militar de Realengo (RI) e campanha da FEB na Itélia -, em contato com 0 adido militar estadunidense Vernon Walters — amigo pessoal de Castelo Braneo =o plano previa ajuda militar efetiva, inclusive desembarque de tropas no solo brasileiro. seu subordinado na A participagio dos “civis” Ora, a patticipagio de elementos “civis” naquele proceso nao constitu grande novidade para os que por acaso venham a se debrucar sobre a literatura académica produzida ao longo das iiltimas décadas, no obstante a insisténcia recente sobre esse ponto the querer atribuir cariter de novidade. Um exemplo merece destaque: a tese de doutorado de René Armand Dreifuss, publicada no Brasil em 1981 (e que ja se encontra em sua 1* edigao), onde & possivel ler que “a queda do governo ocomeu como a culminincia de um movimento civil-militar e no como um golpe das Forgas Armadas contra Joo Goulart”.’ Sobre a ditadura, o mesmo autor escreveu que Apesar de a administragio pés-1964 ser rotulada de ‘militar’ por muitos estudiosos de politica brasileira, a ® FICO, Carlos. O Grande Irmo: da operacio Brother Sam aos anos de chumbo. O goveno dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira, Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2008, ° DREIFUSS, René A. 1964, a conquista do Estado Peuzopolis: Vozes. 1981, p.361. predominincia continua de civis, os chamados técnicos, nos ministérios e érgios administrativos tradicionalmente nJo-militares, é bastante notivel.!” Ao contrario do que certa historiografia_ tem buscado apresentar,!" Dreifuss nao estava empenhado em apenas deserever a conspiragio levada a cabo por organizagdes da sociedade civil em conluio com militares e o governo dos EUA, afinal isso ja era conhecido e abordado em livros como os de Moniz Bandeira.’* Em sua tese, Dreifuss estudou a ago de uma importante organizagao da sociedade civil o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), constituida, jé no final de 1961, por setores empresarias, executivos de empresas oficiais das Forgas Armadas (alguns na reserva, como o general Golbery do Couto e Silva). Essa entidade, que desenvolven uma intensa campanha de desestabilizagio do governo Joao Goulart e de construgao de um. programa de poder, passatia a atuar ao lado de outras ja existentes como: o Instituto Brasileiro de Aci Democritiea (BAD) que tinha significativa participagdio no processo politico brasileiro desde sua fundagio em ? Idem, p.417. Refiro-me aqui a uma leitura enviesada do trabalho de Dreifuss, que o reduz a uma mera narrative focada nha conspiragao golpista, uma deturpagao grosseira de seu trabalho e que pode ser facilmente percebida por qualquer um que se debruce sobre seu trabalho. Essa deturpagio apareceu pela primeira vez no livro da também cientista politica Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas? Alternativas democréiticas 4 crise politica (1961-1964) (Sto Paulo: Paz e Terra, 1993), passando a ser reproduzida cm diversos balangos historiograficos subsequentes, Recentemente a historiadora Lucilia Almeida Neves Delgado incorreu no mesmo reducionismo, a0 enquadrar @ hipétese de Dreifiuss como uma narrativa de “curto prazo” (sic) focada na conspiragio. Ver DELGADO, L. A. N. O govemo Joao Goulart eo golpe de 1964: meméria, historia ¢ historiogratia Tempo, Niterdi, v.14, 0.28, p.125-145, jan-jun 2010. © BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo Jodo Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de Janciro: Civilizacio Brasileira, 1977. Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO 1959; a Escola Superior de Guerra (ESG), que formularia a doutrina de “Seguranga e Desenvolvimento”, fundamental na estruturagio do regime —_ditatorial; organizagies extremistas como o Movimento Anti-Conmunista (MAC); setores expressivos da imprensa; além das. tradicionais entidades patronais, como a Associagdo Comercial do Rio de Janeiro, a Federagao Brasileira de Bancos (Febraban) € a Federagdo das Indistrias do Estado de Sao Paulo (FIESP) so para citar as mais importantes. Com base em copiosa documentagio do IPES localizada no Arquivo Nacional (RJ), o cientista politico umiguaio buscou entender a agio desta entidade como a de um verdadeiro “partido politico” (no sentido gramsciano) do capital multinacional e associado, que havia deitado raizes na estrutura econémica do Brasil desde a década de cinquenta, tornando-se 0 eixo do processo de acumulagio capitalista no pais. No iltimo capitulo de sua tese, de onde tiramos 0 tltimo trecho supracitado, Dreifuss discute como tal articulagio foi capaz de tomar de assalto © aparelho de Estado, ocupando seus postos estratégicos, como: 0 Ministério do Planejamento, ocupado por Roberto Campos, o da Fazenda, por Otivio Gouveia de Bulhdes, Indiistria e Coméreio, por Paulo Egydio Martins, todos eminéneias pardas do IPES. Além desses, quadros militares da entidade, como os generais Goubery do Couto e Silva, € 0s irmios Emesto e Orlando Geisel, diversos ipesianos ocupariam posigdes de roa ao longo de todo o periodo ditatorial. Uma vez no poder, os quadros do TPES conseguiram implementar grande parte do. programa anteriormente formulado, empreendendo transformagdes_ importantes no arcabougo institucional de regulagao do capitalismo brasileiro, através de medidas como: uma vasta Reforma Administrativa; a ctiago do Banco Central e do Conselho Monetério Nacional; empreendendo a primeira flexibilizagio da _legislagao trabalhista no Brasil — através da lei do FGTS, que acabou com a estabilidade por tempo de servigo dos trabalhadores da iniciativa privada, criando um imposto compulsério que seria canalizada para 0 Banco Nacional de Habitagdo, também ctiado na ocasiao -, entre outras medidas no interesse do capital monopolista. Ou seja, ao contrario de um comentirio difuso sobre esses “civis”, a pesquisa de Dreifuss permite nfo 36 identificar socialmente 0s tais_“civis” envolvidos naquele processo, tanto no golpe quanto na ditadura, Além do mais, ele desvelou o que certa literatura apologética denominou de “tecnocratas”,"* termo usado para se referir a tais elementos “civis” que atnaram nos postos estratégicos daquele regime. Entendendo-os como parte de uma elite organicamente ligada aos interesses do capital multinacional e associado, o cientista politico uruguaio afirma: Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria esmagadora dos _principais técnicos em cargos burocriticos deveria (em decorréncia de suas fortes ligacdes industriais e bancérias) ser chamada mais precisamente de empresérios, ov, na melhor das hipoteses, de tecno-empresirios."* Ao contritio de tal preciso tedrico- metodolégica, alguns pesquisadores em tempos parecem ter deixado ctitériosmetodolégicos fundamentais de lado quando tém se referido ao termo “civil” (e dai explicamos por que da nossa recentes Roberto Campos, por exemplo, ¢ comumente referido como um desses “tecnoeratas”, nog que busca apresentar as agdes_destes agentes como ‘medias “técnicas” e despolitizadas. Idem, p17, grifo nosso. Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE insisténcia com as aspas). Em primeiro lugar & preciso dizer que os historiadores devem apurar a abordagem sobre a participagao das Forgas Armadas no processo_ politico brasileiro, evitando compartilhar das ideologias propria desta instituigio do Estado. Dizemos isso, pois, a visio segundo a qual a sociedade é dividida entre “civis” e “militares” & propria da ideologia corporativa das Forgas Armadas, enganosa e simplista, para dizer o minimo. Em suma, a argumento “civil-militar” da forma como vem sendo apresentado pela historiografia recente como “grande novidade”, a0 se distanciar do estudo da dindmica da luta de classes como nervo da politica, acaba por reproduzir a pobre visio corporativa dos militares, significando um retrocesso_no conhecimento jé acumulado pela pesquisa académica sobre o golpe e a ditadura, Pois enquanto Dreifuuss apresentou a natureza de classe desses “civis”, as novas abordagens em tela perdem-se numa desetigio dos elementos “civis” que teriam protagonizado as principais agdes (ou as mais visiveis) sem que sejam estabelecidos seus nexos sécio historicos. Essa questio tem implicagdes que estio além de uma mera querela entre historiadores, pois, como vimos na abordagem proposta por Daniel Aario Reis, © que tem acompanhado tais assertivas sto argumentos ~ esses sim perigosos ~ segundo os quais “a sociedade brasileira apoion 0 golpe ¢ a ditadura”, assunto sobre o qual nos deteremos agora. Apoio da sociedade ao golpe ¢ 4 ditadura? A partir do notério conhecimento da participagdo de elementos “civis” nesse processo (como vimos, jd conhecido na historiografia), escorrega-se para isso que podemos chamar de “verséo tupiniquim” de argumentos revisfonistas como 0 de David Goldhagen para o contexto da Alemanha nazista,!* de acordo com o qual teria sido a “sociedade brasileira” ciumpliee do “autoritarismo”. E preciso notar que, além de Goldhagen, esse tipo de proposi¢io alimenta-se de —_posigdes __ similares encontradas na historiografia internacional, e que dizem interessar-se pela forma como “as sociedades —produziram regimes autoritirios”. No Brasil, isso apareceu recentemente como substrato da colegio A construcéo social dos regimes autoritarios, organizada pelas historiadoras Samantha Viz Quadrat e Denise Rollemberg, particularmente presente nas proposigdes tedricas das autoras, explicitadas na Introdugio (comum a cada um dos volumes). Nesta, 6 possivel ler que a pretensio da obra coletiva “é entender como 0s ditadores foram amados — quando se trata de ditaduras pessoais — no porque temidos, mas, provavelmente, porque expressavam valores e interesses da sociedade que, em dado momento, eram outros que nao os demoeraticos”.*” Da forma como vem sendo apresentada a caracterizagao “civil-militar” da ditadura brasileira, & possivel verificar 5 Refirosme aqui ao seu Os carrascos voluntartas de Hitler, livro de meados de anos 1990 que defende a ideia de que a sociedade alema foi cumplice do nazi- fascismo © do Holocausto dos judeus em campos de concentragio. Edicio brasileira, GOLDHAGEN, D. Os carrascos voluntérios de Hitler. Os alemaes ¢ @ Holocausto. Séo Paulo: Companhia da Letras, 1997, * QUADRAT, S. Vs ROLLEMBERG, D. (org.). 4 construgdo social dos regimes autoritérios. 3 vols. — Brasil ¢ América Latina; dftica e sia; Europa. Rio de Janeiro: Civilizag2o Brasileira, 2010. E prudente destacar que em se tratando de obra coletiva, existe enorme diversidade quanto a0 grau de sofisticacao com que 0s autores dos eapiulos diseutem nesta obra a capacidade de “regimes autoritarios” constituirem bases consensuais na sociedade. "Tem, p17, gtifo noss. Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO um deslocamento das __proposigdes Greifussianas, © uma aproximagdo a este ‘iltimo paradigma, como, alids, esté explicito no artigo do professor Daniel Aario Reis, publicado em O Globo e mencionado no topo de nosso texto. Diga-se de passagem, as proposigdes historiogrificas desse autor sfo tomadas como inspiragdo para a colegio corganizada por Quadrat e Rollemberg Para desenvolver agora nossa critica, procederemos a uma breve digressio tebrica Desde Antonio Gramsci existe uma longa discussio no campo politico sobre a conformacio de mecanismos de consenso nas mais variadas formas de regime no século XX. Num plano histérico mais amplo, a questio remete pelo menos a Maquiavel e sua metifora do Centauro. Do aporte gramsciano € possivel entender que tanto nos regimes democriticos, onde existe uma relagdo equilibrada entre coereio ¢ consenso,'* até nas mais rudimentares ditaduras, nenhum regime politico foi capaz de sobreviver sem o estabelecimento de bases sociais e elementos de hegemonia, pelo menos desde que as sociedades capitalistas se tornaram de massas, isto & desde o fim do século XIX. De acordo com Gramsci, & precisamente naquele momento histérico que & colocada a questio da neeessidade das classes dominantes. tormarem-se também dirigentes: © que podemos aferir das reflexdes do marxista sardo que mesmo em * Como define o marxista sardo no {37 do caderno 13, “O exercicio ‘normal’ da hegemonia, no terreno clissico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinagdo da forca © do consenso, que se equilibram de modo varisdo, sem que a forca suplante em muito © consenso, mas, 20 contritio, tentando fazer com que a forga parega apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados ‘érgios da opiniio piiblica - jornais e assaciagbes -, os _quais, por isso, em certas situagdes, sto artificialmente mmuttiplicados.” GRAMSCT, Antonio. Cadernos co edrcere. Vol. Il. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2000, p.95, situagdes notoriamente no hegeménicas (como sio os contextos de ditaduras militares latino-americanas dos anos 1960- 70) a dominagdo sécio-politica néo foi possivel com auséneia de elementos de consenso, do mesmo modo que nenhum regime democritico ¢ capaz de se manter sem os aparelhos estatais de coergio (policia, Forgas Ammadas, sistema carceririo etc.). Em comentario a essa questo na obra gramsciana, precisamente ao trecho do caderno 13 onde Gramsci convoca a metéfora do Centauro do secretirio florentino, cientista politico Alvaro Bianchi ensina’ A imagem do Centauro ¢ forte © serve para destacar a unidade orginica entre a ‘coergao e 0 consenso. E possivel separar a metade fera da metade homem sem que ‘ocorta a morte do Centauro? E possivel separar a condigao de existéncia do poder politico de sua condigao de legitimidade? E possivel haver coergao sem consenso? Mas tais questdes podem induzir a um erro, Nessa concepedio unitiria, que era de Magniavel, mas também de Gramsci, nao € apenas a coergo que nao pode existir sem o consenso, Também 0 consenso nii0 pode existir sem a coergao,"” Todavia, estudar a forma como regimes ditatoriais constituem-se a partir de bases na sociedade, o que implica na recusa a9 bindmio da teoria politica liberal Estado/sociedade, ¢ muito diferente de buscar 0 “apoio da autoritarismo”, argumento sempre florido com a suposigiio politicamente correta segundo a qual “nao podemos vitimizar a sociedade”. Esse tipo de argumento nada mais faz do que trazer de volta o tal binémio liberal pela porta dos fundos, afinal de contas, a sociedade nfo € uma “pessoa” uma coisa monolitiea que possa ser sociedade a0 BIANCHI, Alvaro. 0 Laboratorio de Gramsci Filosofia, Historia e Politica. Sao Paulo: Alameda, 2008, p.190. Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE responsavel integralmente por apoiar ou se opor a um regime politico, do mesmo modo que 05 regimes politicos nao sto conduzidos por ETs, e sim por membros da propria sociedade, Deste modo, é igualmente errdnea a suposigio de que o golpe e a ditadura constituiram-se em oposigo a sociedade civil, afinal, se pensarmos o conceito de sociedade civil a partir de Gramsci — e no a partir do senso comum = parte da sociedade formada pelos “civis” — encontraremos os nexos causais a partir dos quais wna parte da sociedade brasileira apoiou uma ditadura feita contra outra parte da sociedade.”” Voltemos agora 4 aula inaugural de Daniel Aarlo Reis mencionada, para explorar alguns outros pontos de sua argumentagao sobre 0 alegado “apoio da sociedade” a “ditadura civil- militar”. © historiador carioca elencou trés argumentos com os quais quer provar seu argumento. Sao eles: anteriormente 1) as massivas Marehas com Deus, pela Patria =e | Familia, organizadas antes (em Sao Paulo) € depois do golpe de Estado (no Rio de Janeiro, capitais e muitas cidades do pais); 2) as votagdes expressivas no partido de apoio 4 ditadura, ARENA; 3) © a suposta_popularidade do general Médici a frente do Executivo federal Um a um os argumentos sto absolutamente insdlitos, postos que s6 so *°E claro que a opgdto por Gramsci implica na recusa do paradigma liberal presente em pensadores como Locke © Tocqueville. onde a sociedade civil em chave gramsciana nto € 0 “espago da liberdade”, como € propugnado pelos liberais, nem algo parecido como a “esfera publica” habermasiana, CE BIANCHI, 0 Laboratério, op. cit, p.173-198. possiveis de serem levados a sétio por agueles incapazes de fazer alguns questionamentos bem prosaicos ¢ que, com certa itritagdo, elencamos a seguir. Em primeiro fugar, sim as marchas em apoio ao golpe e 4 ditadura jé instalada foram massivas — mas se esperava 0 qué, que depois do golpe e da ditadura instalada as esquerdas promovessem atos piiblicos de repiidio, ou mantivessem a agenda de comicios pelas reformas de base? Em segundo, o argumento da “expressiva votagdo da Arena” nao leva em conta que a parte no desprezivel da oposigao ao regime pregou o voto nulo como forma de denunciar a farsa da oposigao entre 0 “sim” (ARENA) e “sim senhor” (MDB). Ora, 0 proprio autor em seu supracitado Livro Ditadura militar, esquerdas e sociedade enfatiza a enorme proporgio de votos nulos e brancos nas eleigdes de 1966 e 1970, denotando que o mesmo tem regredido em suas elaboragdes.”" Por fim, a tal “popularidade de Médici”. Ora, o minimo que se espera é que os historiadores sejam —capazes._ de problematizar certas fontes, em especial as pesquisas de opiniao feitas num contexto de uma ditadura, Imaginemos como qualquer opositor do regime ditatorial — seja revoluciondrio, reformista, de esquerda, liberal, democritico ou tropicalista — procederia em face de uma entrevista sobre a popularidade do ditador de plantio? Imagine-se_um entrevistador na saida do estidio do Maracand nos idos dos anos 1970 perguntando para um clandestino militante da uta armada se o “presidente” Médici * Naquele livzo ele afirma que nas eleigdes de 1966 fs votos brancos ¢ nulos alcancaram proporcées inéditas, ¢ sobre as eleigdes de 1970 o mimero destes ‘votos de protesto seria ainda maior, alcangando 0 indice de 30%. REIS, Ditadura militar, op. cit.. p44 59, Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO estava sendo “bom para 0 pais”? Se nio quisesse cometer suicidio, obviamente responderia 0 quio lindo era aquele pais, seu “presidente” e as Forgas Anmadas nacionais. E preciso destacar que ao lado desta proposi¢ao “civil-militar”, se desenvolven no Brasil uma importante reflexdo histériea ancorada na caracterizagio daqueles regimes existentes na América do Sul nos anos 1960/1970 como Ditaduras de Seguranca Nacional, opgoteorica- muito mais interessante e que remete a0 trabalho pioneiro de Maria Helena Moreira Alves.” historiador gaticho Enrique Serra Padros, que tem seguido essa linha interpretativa, argumenta que os aspectos gerais destes regimes compreenderam os seguintes elementos: a Doutrina de Seguranca Nacional; o alinhamento militante junto aos Estados Unidos na estratégia de “contengao do comunismo” que passou pela adogio de estratégias de contra-insurgéncia; e a defesa dos canones do capitalismo.”* Numa abordagem propria, o historiador Renato Lemos tem defendido a centralidade da_— categoria de contrarrevolugéo como articuladora de determinagdes do proceso. histarico brasileiro que, em linguagem braudeliana, remetem a: uma longa duragio, cujo marco € 1917 onde ha emergéneia de uma altemativa societiria ao capitalismo a partir da Russia, que promove uma inflexto em toda relagio de forcas intemacionais ¢ obriga as instituicdes politicas burguesas a ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposigao 10 Brasil (1964-1984). Petwopolis: Vozes, 1984. * PADROS, Enrique Serra. Histéria do tempo presente, Ditaduras de Seguranga Nacional © arguivos repressivos. Tempo ‘e Argumento, Floriandpolis, vil, al, 30-45, Jan,jun.2009. A politica de desaparecimento como modalidade repressiva das Ditaduras de Seguranca Nacional, Tenipos Historicos (EDUNIOESTE), v.10, p.105-129, 2007,__. ‘América Latina: Ditaduras, Seguranea Nacional = Terror de Estado. Revista Historia & Luta de Classes, v4, p 43-49, 2007 incorporar como tarefa histérica a prevencao de situagdes revoluciondrias; uma média duragdo, que remete ds alteragdes do padrao de acumulagao capitalista brasileiro; ¢ uma curta, que se liga a0 proceso politico imediato ¢ as alternativas disponiveis aos agentes sociais num quadro de crise de hegemonia.* Em suma, tal como na proposigéo de Dreifuss (que de certo modo é incorporado), as formulagdes de Moreira Alves, Padrés ¢ Lemos buscam o sentido daquelas experigneias histéricas face dinamica social interna e a relagdo de foreas internacionais, de modo que é possivel fugir das visdes mistificadoras aqui criticadas, Além do mais, em virios cireulos comeca a se manifestar por parte de pesquisadores (e também ativistas dos movimentos sociais) 0 desconforto com a expresso “civil-militar” (embora ela seja extremamente popular entre eles),2* de que sto exemplos dois artigos publicados em ano de 2012: um pelo jomalista Pedro Pomar e outro do professor Joao Quartim de Moraes.** O préprio artigo supracitado do professor Daniel Aario Reis publicado no jomal O Globo ~ cujo titulo é “Ditadura civil-militar” — foi alvo de inimeras criticas Entre as quais destacamos uma carta * LEMOS, Renato. Justiga Militar e processo politico no Brasil (1964-1968). In: 1964-2004, 40 anos do golpe. Ditadura militar ¢ resistencia no Brasil. Anais do semindirio, Rio de Janeiro: FAPERY: ‘TLewas, p.282-289: Contrarrevolucao & ditadura: ensaio sobre 6 processo politico brasileira 1p6s-1964.(mimeo). * maior parte dos ativistas dos direitos humanos que se promunciou na audiéncia piblica da Comissio da Verdade referida acima, enfatizou o termo “civil ailtar” ao se referir@ ditadura ** POMAR, Pedro, © modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Milita. Brasil de Faro, Sto Paulo, 10 de agosto de 2012, disponivel em Inap/rwworbrasildefato.coms.br/node/ 10300 (acessado em 20 de agosto de 2012). MORAES, Jodo Quartim de. Sobre o “aprimaramento” da expressao ditadura militar. Publicado no site hpy/www.vermelho.org.br’cokina.php?id_coluna t (acessado em 17 de Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE enviada pelo professor Renato Lemos, que embora nao tenha sido publicada na referida folha — como, alias, era de se esperar — foi publicizada na pagina eletronica do Laboratério de Estudos sobre Militares na Politica (LEMP) da UFRJ, do qual é coordenador.”” Nesta, o autor, entre diversas ctiticas que aqui ineorporamos, lembrou que © apoio “civil” ao golpe e a ditadura “é uma informagao muito utilizada por segmentos militares para legitimé-los — ao golpe © a ditadura”, ¢ que a apresentagao deste ponto com status de “novidade historiogrifica, estimula os interessados em geral, e os jovens historiadores em particular, a adotarem uma abordagem temerosa de ir a fundo na conexdo dos eventos em questio com poderosos interesses _classistas” Criticou ainda a forma como Reis buscou apresentar 9 periodo do “Milagre” como “anos de ouro para nfo poncos”, lembrando que: HA farta evidéncia de que o ‘Milagre brasileiro’ — a fabrica do ‘ouro” desses anos — custou a esmagadora maioria da classe trabalhadora brasileira o ‘chumbo” do arrocho salarial, dos servigos piblicos degradados e outras mazelas que se ausentaram da meméria do professor. Ditadura e capitalismo, ou a ditadura do grande capital Nesse ponto cabe entio polemizar com © ponto mais problemitico do programa de pesquisas desta “nova historia politica”, qual seja, 0 de buscar a compreensio do processo politico brasileiro deslocando-o do capitalismo. Sob 0 7 LEMOS, Renato. A ‘ditadura civilemiltar’ ea reinvengio da roda historiogrfica. Disponivel em Innpy//www.ifesf.br/—lemp/imagens‘textos/A_dita dura_civil- miliar_e_a_reinvenceo_da_roda_bistoriografice pat (acessado em 10 de abril de 2012) argumento (falacioso) segundo o qual incorporar a dinamica econémica na explicagao do proceso politico seja igual a “economicisun ou “teducionismo econmico”, desconsidera-se uma dimensio da realidade social que afinal nao diz respeito apenas 4 economia, Acreditamos que sem retomar uma visio totalizante a compreensio daquele periodo chave da historia recente do pais fica empobrecida.* As modificagées na estrutura do capitalismo brasileiro no periodo da ditadura slo por demais importantes para que se negligencie o projeto de classe que tomou 0 aparelho de Estado em 1964, Em primeiro lugar, uma das resultantes do processo de aceleragio da acumulaglo —capitalista conhecido naqueles anos foi, além de uma expansio da fragao do capital ligada a industria de bens duraveis, o fortalecimento de outras fragdes das classes dominantes nacionais cujos agentes teriam maior peso sobre 0 Estado no periodo subsequente Como exemplos eloquentes, pensemos o empresariado ligado a construgdo civil (como os grupos Camargo Corréa, Andrade Gutierrez, Mendes Junior ¢ Odebrecht), a industria pesada (Gerdau, Votorantim, Villares, entre outros), sem esquecer 0 sistema baneério (de que sio exemplares os grupos Moreira Salles, Bradesco e Iau), grupos capitalistas que construiram seus “impérios” naquele contexto.”? Nao é por % Como de tudo 0 mis, 20 contritio da metanarrative, pos-modemas segundo a qual no haveria mais Ingar para as “grandes explicagoes” ® Ver MANTEGA, Guido: MORAES, Maria Tendéncias recentes do capitalismo brasileiro. In. MANTEGA, G.; MORAES, M. _dewnilacdo monopolista e crises no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Tetra, 1979, p.83-106. CAMPOS, Pedro Hentique Pedieira, 4 Ditadura dos Empreiteros: as empresas nacionais de construgao pesada, suas formas associativas e 0 Estado ditstorial brasileiro, 1964- 1985, Niteréi, 2012, Tese de doutorado em Histéria Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO acaso que o auge da repressio tenha sido justamente no periodo do “milagre”, como, a propésito, defenderam Rui Mauro Marini € Theoténio dos Santos.’ Ao contrario da imagem enganosa de uma “era de ouro para nao poucos”, & mais preciso entender aqueles como anos nas quais a politica permanente de arrocho salarial aprofundou- se, garantindo lueros extraordinarios para o capital monopolista e certa euforia do consumo entre as classes médias. Nesse mesmo sentido, também nao é nenhuma coincidéncia que desde 1964 fossem sélidos aguilo que com muita propriedade Paulo Eduardo Arantes denominou de “vasos comunicantes” entre 0 mundo dos negicios ¢ os subterineos da repressio;*’ fato que, alids, ficou bem evidenciado recentemente no documentirio de Chaim Litewski, Cidadao Boilesen (Brasil, 2009). Neste filme, além do personagem central — 0 empresério dinamargués Henning Boilesen, membro do TPES desde 0 pré-golpe e articulador do apoio do capital privado & montagem da Operacio Bandeirante -. 0 entio ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto (1967- 1974), € um dos que aparecem entre os animadores da mesma iniciativa terrorista que resultaria na criagio dos famigerados DOT-CODI. Com a crise intemacional do eapitalismo dos anos setenta, uma das Programa de P6s-Graduaglo em Histéria da Universidade Federal Fluminense, p.508. * Como lembrou Francisco de Oliveira em 2004, a tese da dupla seria contestada por Femando Hearique Cardoso e José Serra nos anos setenta, uma vez que estes estariam interessados em convencer 0 empresariado nacional de que no haveria tal afinidade cletiva entre repressio e crescimento ecoudmico, OLIVEIRA, Francisco. Ditadura Militar 2 crescimento econémico: a redundéncia autoritiria, In: 1964-2004. 40 anos do golpe, op. cit, p. 219-225. “ARANTES, Paulo, 1964, 0 ano que nto terminou. In. TELES., Edson & SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. Sao Paulo: Boitempo, 2010, 206. principais fontes de financiamento do “modelo” (0 endividamento extemo) se exauriu, justamente no contexto onde era necessério um novo pacote de investimentos. A outra importante fonte de financiamento, que era a mais-valia resultante do proprio ciclo interno de reprodugio do capital, era frigil para sustentar as condigdes da acumulagao pelo restante da década, j4 que seria necessario apertar ainda mais o valor da forga de trabalho para baixo. Depois de dez anos de politica de arrocho o sistema possuia limites estruturais em garantir a recuperagio da taxa de Iucro simplesmente a partir do aumento da mais-valia absoluta.* Somada a contradigdes do “modelo” explodiriam no fim da década de 1970 quando das antologicas greves operiias do ABC paulista, principal ponto de concentragio da indastria de bens duraveis no Brasil, particularmente a automobilistica. Por entre as falas das liderangas operarias que organizaram tal movimento, a deniincia do “arocho” como politica da ditadura para a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, a atmosfera do conflito social seria pontuada pelo recurso do empresariado paulista aos aparelhos de repressio do Estado: sejam as policias estaduais paulistas (militar ¢ civil) na repressio direta as greves e sindicalistas: seja na reivindicagaio dos instrumentos da estrutura sindical corporativista, ocasidio em que o titular da pasta, Murilo Macedo, langou todos 0s recursos disericionarios disponiveis — como a liderangas sindieais, intervengio. em sindicatos etc. -, ficando evidenciados os fortes compromissos que o regime possuia com 0 capital. A falsificagdo dos indices de outros fatores, as cassagio das * MENDONCA, Sonia Regina de, Estado e economia no Brasil: opcaes de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p.L01, Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE inflagio, que tornaria o nome de Delfim Neto “famoso” entre os trabalhadores, nao pode ser compreendida sem — que estabelecam os nexos reais entre a ditadura e © grande capital, Caso contririo devemos nos contentar com uma deniincia da “maldade do sistema” Também nao é possivel esquecer que os famosos Atos Institucionais, além do reforgo aos instrumentos discricionarios de que se revestiu o regime, via de regra dotaram o Estado de capacidade de atributos modemizadores, como foi o caso do Ato Complementar n.40, promulgado na esteira do ALS, que centralizou tributos na esfera federal em detrimento de estados municipios. Tal procedimento possibilitou a ditadura dispor de recursos para sua patticipagao direta__no proceso de acumulacdo, através das empresas estatais. Aqui cabe mais uma vez polemizar com outro ponto de Daniel Aarao Reis. E que, de acordo com este, embora jé tenha reconhecido que o primeiro governo da ditadura tenha se empenhado em por em pritica as diretrizes formuladas pelo IPES, apos a morte trigica de Castelo Branco teria havido uma retomada da participagio do Estado no proceso econdmico, estando ai, para esse autor, a razio maior para que entre © fim dos anos 1960 e inicio dos 1970 0 Brasil tena conhecido seu “milagre”. Baseando-se numa oposicdo metafisica entre dois projetos que alegadamente teriam polarizado a politica brasileira por largo periodo, 0 “nacional-estatista” e 0 “liberal- internacionalista”, Aarao Reis praticamente nos diz que o “milagre” teria sido 0 resultado da retomada do papel do Estado na economia, Sendo vejamos 0 que nos diz. em * Reveladas pelos estudos do DIEESE ¢ que embalaram as campanhas por reposigio das perdas salariais (e que dasiam origem ao ciclo revista). seu livto Ditadura militar, esquerdas e sociedade “Rompendo com os _propésitos internacionalistas-liberais do governo Castelo Branco, o Estado, além de incentivar, regular, financiar e proteger. intervinha ativamente nos mais variados setores, seja através de tradicionais — ¢ gigantescas — empresas estatais, como a Petrobris, Vale do Rio Doce e Companhia Sidenirgica Nacional, seja através de outras, a que deu alento — como a Eletrobris, ou ainda, a Siderbras, imensa holding da produgdo de aco -, além de estimular fusdes e associagdes do capital privado nacional e estrangeiro as quais, com frequéncia, comparecia 0 proprio Estado.” Ora, € preciso ser crente na ideologia propagandeada pelo liberalismo econémico para conceber a possibilidade de um capitalismo sem interveng3o estatal. O que dizer dos mecanismos de —poupanga compulséria erigidos sob a primeira administragio ditatorial — 0 jé mencionado Fundo de Garantia por Tempo de Servigo (FGTS), além do Programa de Integracao Social (PIS) e o Programa de Formacao do Patriménio do Servidor Pablico (PASEP) ~ que se destinaram a financiar a formagao do capital fixo das empresas privadas?** Por acaso as empresas estatais arroladas pelo historiador deixaram de funcionar durante a gestio do Marechal?” Desde sua constituigo até sua reproducio histérica, o Estado é um elemento constitutive da acumulagao capitalista na modernidade, e naqueles anos ndo poderia ser diferente, muito menos num pais como o Brasil. Sendo o ® REIS, Ditadra militar, op. cit. p56 * MENDONCA. Sénia Regina de. Estado ¢ economia no Brasil: opgdes de desenvowimento. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.97. *® Como de resto esta ser uma caracteristica da constituigdo histérica da sociabilidade do valor. Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO desenvolvimentismo da ditadura um aprofundamento do padro de acumulagio dependente que emergiu desde meados dos anos cinquenta, ndo haveria como o sistema retomar sua fase ascendente sem que o Estado estivesse bem colocado em sua posigdo de “empresirio”, participando do tip também formado pelos _capitais nacional, estrangeiro e associado, Em relagio aos grandes impérios empresarias constituidos sob a ditadura, caberia também mencionar os grandes grupos monopolistas do setor de comunicagio de massa, como ¢ evidente o caso das Organizagdes Globo, cuja trajetéria de colaboragao com 0 regime ditatorial esti bem descrita no documentirio Muito Além do Cidadao Kane, de Simon Hartog (Reino Unido.1993). Mas preciso lembrar também de outros importantes grupos capitalistas, como o setor da imprensa que, antes de tudo, constituia uma historia de colaboracdo intima com a ditadura, como & © caso do Grupo Folha, da familia Frias, e O Estado de Sao Paulo, a revista Veja, além, é claro, de O Globo. Sobre as empresas da familia Frias, recentemente o vinculo entre esta e o regime ditatorial foi lembrado em razio de uma tentativa da Fotha de S. Paulo apresentar a expresso “ditabranda” para _caracterizar aquele regime.” A controvérsia que se seguiu, que envolveu desde cartas de leitores até uma manifestagio em frente 4 sede do joral,*® trouxe a tona o passado de FONTES, Virginia. O Brasil e 0 capital- imperialismo. Teoria ¢ historia, Rio de Jancio: EUFRJ; Editora Escola Politécnica de Saide Joaquim Venancio, 2010. No editorial “Limites & Chavez" da Fotha die S. Paulo, do dia 17 de fevereiro de 2009. ** Manifestagao que reuniu cerea de 300 pessoas, segundo noticion a propria Follia de S. Paulo, em edicio de 8 de marco de 2009. Um apanhado do ‘ecortido pode ser lido em TOLEDO, Caio Navarro de. Cronica politica sobre um documento contra a “ditabranda”. Revista de Sociologia e Politica, (Curitiba, v.17, 2.34, p.209-217, 2009, colaboracio de érgios do Grupo Folha com a face mais cruel da ditadura: a perseguigio, prisio, assassinato—e “desaparecimento” de opositores do regime, especialmente da Folha da Manha, que por aquela época ficaria conhecido entre a militincia da luta armada como “Diitio Oficial da Operac3o Bandeirantes” Nao demorou também para que, da direita do espectro politicos, vozes fossem levantadas para defender as _benesses modernizantes trazidas pela ditadura, e em alguns casos a defesa de uma periodizagio ainda mais resttita que a hipotese de Daniel Aatio Reis. No mesmo momento em que a propria Folha fazia uma timida autocritica da “ditabranda”, 0 mais caricatural dos revisionistas, Marco Antonio Villa, escrevendo no mesmo periédico paulista, chegou ao ponto de dizer que ditadura s6 teria existido mesmo entre 1968-1979." Capturando 0 sentido revisionista dese episédio, Paulo Arantes escreveria: tortura, elas novas lentes revisionistas, a dita ccuja s6 teria sido deflagrada para valer em dezembro de 1968, com o Ato Tnstitucional n°5 (AT-5) — retardada, a0 que parece. por motivo de “efervescéncia" cultural tolerada — e — encerrada precocemente em agosto de 1979, gragas 4 autoabsolvigdo dos implicados em toda a cadeia de comando da matanga. © que ‘vem por ai? Negacionismo a brasileira?” E verdade, diversos orgios de imprensa, alguns antes, outros depois, construiram uma meméria sobre sua participacio naquele periodo da historia do Brasil, especialmente quando comegou a ficar claro que a ditadura acabaria, Mas identificar a posigao da imprensa com a opiniio da sociedade, assumindo de forma acritica aquilo que vulgarmente se denomina % VILLA, Mareo Antonio. Ditadura & brasileira Fotha de Sao Pauio, Sa0 Paulo, 5 de margo de 2009. * ARANTES, 1964: 0 ano que nao terminou, op. cit .209. Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVERSIAS HISTORIOGRAFICAS SOBRE O PROCESSO POLITICO BRASILEIRO NO POS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE “opinido publica”, nfo é argumento plausivel, sendo para aqueles que insistem em, a despeito das evidéncias, provar uma cumplicidade dos “brasileitos” com a ditadura implantada em 1964. Em vez disso, melhor seria o entendimento da imprensa, para além de uma fonte de informagdes sobre 0s acontecimentos correntes e da opiniio de seus leitores, um mercado formado por empresas. capitalistas fabricantes de ideologias que se comportam como “partidos”, no sentido dado por Gramsci.“’ Quem produziu as narrativas justificadores do golpe e da ditadura foram jomais como O Globo, Folha de Sto Pauio, © Estado de Sto Paulo que nos idos de margo de 1964 venderam a versio de que era Jango quem pretendia dar um golpe, perpetuando-se no poder e abrindo 0 espago para que a “infiltragao comunista” tomasse 0 poder. Principalmente em periodos de crise de hegemonia, a imprensa corporativa exacerba sua ago que niio. somente visa satisfazer todas as necessidades (de uma certa categoria) de seu pliblico, mas pretende também criar € desenvolver estas necessidades _e, conseqiientemente, em certo sentido, gerar seu pliblico = ampliar progressivamente sua dea.“ ‘Mas isso nem sempre é eficiente, e capaz de moldar as opinies politicas de setores expressivos da sociedade, como denota o fato de que embora jd fosse a mais importante corporagdo empresarial na Area das comunicagdes, as empresas da familia Marinho nfo tenham logrado sucesso em evitar que a oposigio ao regime tenha conquistado amplas parcelas da populagao * GRAMSCI, Antonio. Cademas do edrcere, Vol. 3 Rio de Faneiro: Civilizagao Brasileira, 2007, p.350, * GRAMSCI, Antonio. Cadernas do earcere. Vol.2. Rio de Fanciro: Civilizagio Brasileira, 2000, p.197, brasileira para os maiores movimentos de massas da historia do pais nos anos 1980 (que compreenderam desde a campanha das Diretas ja!, ¢ wm cenitio ascendente da luta de classes, em meio a uma crise sem precedentes na economia brasileira). Consideragdes finais A primeira parte do documentirio de Patricio Guzman, A batatha no Chile, cujo tema é 0 golpe contra Salvador Allende, denomina-se “A insurreigdo da burguesia”.“* Como o proprio subtitulo indica, seu autor atribuiu ao 11 de setembro de 1973 nao simplesmente uma militar contra um governo de esquerda constitucional; nem simplesmente uma intervengao de “civis” militares interrompendo o regime democritico. Tal como ocorreria em diversos outros paises da América do Sul nos anos 1960 e 1970, também ali se tatou de uma agio das classes dominantes chilenas, em conluio as Forcas Armadas e as forgas do imperialismo estadunidense. Para além do terrorism de Estado, o cariter de classe do golpe chileno seria logo evidenciado pela répida implantagio de politicas_econémicas neoliberais.“* Ocorrido quase uma década antes, o golpe de 1964 no Brasil foi lide por uma série de criticos numa chave muito proxima, embora por aqui, certamente, 0 projeto vencedor nfo tenha sido o neoliberal. O propésito deste trabalho foi o de problematizar © questionar as. formulagdes de certa historiografia recente que, sob o invélucro do temo impreciso “civil- intervencao 8 GUZMAN, Patricio, 4 batalha no Chile (Cuba, Chile, Franga, 1975), “HARVEY, David. O Neoltberalismo: historia ¢ implicagdes. 2° edicao. Sto Paulo: Loyola, 2011 p.l7-19, Espago Plural * Ano XIII * N° 27 + 2° Semestre 2012 * p. 39-53 * ISSN 1518-4196 DOSSIE DITADURAS DE SEGURANCA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO militar”, deslocou © sentido dado por um dos pioneiros do seu uso, René Dreifuss ‘Além de descolar a explicagio do proceso politico da dindmica do capitalismo ¢ de suas contradigdes, tais historiadores ainda introduzem nogdes algo perigosas, como a de que a “sociedade brasileira” teria sido ciimplice — daqueles. anos tertiveis, Especialmente em tempos de Comissio Nacional da Verdade e desses bem vindos movimentos de jovens conhecidos como escrachos, as responsabilidades _éticas intrinsecas disciplina cujo propésito é a investigagio e © esclarecimento sobre 0 passado devem ser levadas em conta Ao distribuir a “culpa” ao coujunto da sociedade (a esquerda e a direita, os torturadores e os torturadores, 0s que deram © golpe e os que o softeram) tal revisionismo histérico acaba por incorrer, no campo construgdo do conhecimento historico, no mesmo tipo de mistificagio conservadora que engendrou a Lei de Anistia e o pacto de conciliagao que presidin a transigfo para o atual regime demoeritico brasileiro, Recolocar o capitalismo no centro da reflexo sobre a ditadura parece ser a tarefa premente do pensamento critico nos embates que temos pela frente. Dito isto, melhor seria que em vez de “civil-militar” nos habituéssemos a utilizar uma outra caracterizagao também feita por Dreifuss, ¢ que talvez capture com mais precisio a natureza daquele regime: uma ditadura empresarial-militar implantada a partir de uma insurreigio contra-revoluciondrias das classes dominantes. 6/11/2012 0/11/2012 Recebido em: Aceito e Espago Plural * Ano XIII + N° 27 * 2° Semestre 2012 p. 39-53 * ISSN 1518-4196

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