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ore 7 Oprimidos © opressores Oprimidos ¢ apressores ndo podem ser candidamente confundi- dos com anjos © demonios. Quase nao existem em estado puro, nem uns nem outros, Desde o inicio do meu trabalho com o Teatro do Opri- mido, fui levado, em muitas ocasiées, a trabalhar com opressores no mein dos oprimidos, e também com alguns oprimidos que oprimiam. Em 1977, trabalhando com camponeses na Sicilia, ao sul da Iea- 41 em que se mostrava o prefeito da cidade de lia, preparamos uma pe urante o espetaculo de Godrano como 0 grande opressor dos pobres. Di Teatro Forum, 0 proprio prefeito apareceu na praca e pediu para subs- tituir, nao © protagonista-oprimido como € nosso costume, mas 0 pet- sonagem do prefeito — ele proprio — para melhor justificar suas ag6es. O prefeito era perfeitamente consciente do que fazia; seus atos hostis ¢ argumentos direitistas, em cena, apenas reforgaram as convic- cées que 0s camponeses, na vida real, tinham sobre ele. Como sabia o que fazia e como fazia, esse opressor nao poderia ser transformado, nem podia transformar a si mesmo, naquilo que nao era nem queria ser: tinha consciéncia do mal que causava ¢ dos beneficios que, disso, tirava. Trabalhar com esse homem seria tempo perdido, inutil temeri- dade. Lutar contra ele, sim, valia a pena... € ele foi derrotado nas elei- cies seguintes. Existe também o opressor que sabe o que faz, mas se defende di- ndo que nao tem “outra saida”, apesar de nao concordar com 0 que diz ser obrigado a fazer. :xemplo disso é aquele policial que me que- brou o joelho em rotineira sessao de tortura, em 1971, e me pedia per- dao toda vez que ligava a cletricidade: “Vocé me desculpe, eu nao te- nho nada contra vocé, respeito muito, um verdadeiro artista, mas esta tenho mulher e filhos, preciso do meu salario, tenho éaminha fungao, que trabalhar e... voce caiu no meu horario...”. 19 Oprimidos ¢ opressores Com gente cinica como essa nada se pode fazer OM nag poderia fazer com aqueles poliiaissubalternos nos pa europe ocupados durante a Segunda Guerra Mundial que cacayam wr vam suas vitimas a Gestapo para que fossem Mortas nog camp pa. concentragio nazistas. Argumentavam que tinham familia 0S do © Precisa, vam dos seus saldrios... E, afinal, as vitimas eram apenas iudeus munistas, ciganos ¢ homossexuais... pouca monta, Gente como essa — ridiculos émulos de Pinochet dos — nao pode ser absolvida com 0 argumento de q » CO. © Outros bang, Ue € pr uma sociedade, pois foram criados em sociedades que también ne ziram pessoas éticas. Nenhuma sociedade fabrica, “em séign ot cidadaos — somos todos responsaveis por nossos atos. Ja algumas vezes ouvi 0 argumento vergonhoso de tler nao nasceu monstro, foi a sociedade que o tornou a: ao contrario, que nao podemos fingir ignorar que temos © somos responsaveis pelas escolhas que fazemos, cada claro, dentro de uma situaco social e politica concreta rosa ¢ determinante, mas nao exclusiva. A historia dos grafia dos individuos nao sao obra da fatalidade. Const vidas que nao esto escritas nas linhas de nossas mos, cigana. > 05 seus que até “Hy, Ssim”. Penso, livre-arbitrig um de Nés, é » que € pode- POVos € a bio- TUIMOS nossas lidas por uma Nao podemos conceder perdao ¢ oferecer nossa amizade a quem escolheu o proveito proprio as custas da infelicidade dos outros, ede. cidiu gozar a propria vida ao custo da morte alheia. Aqueles que que- rem a todos perdoar, “ver os dois lados da questo” ou “ver a questo de todos os lados”, aqueles que tentam justificar as razdes dos opres- sores, S40 os imobilistas do mundo. Se fosse verdade que todos tém razao, e que todas as razées se equivalem, seria melhor que o mundo ficasse do jeito que esta. Nos, no Teatro do Oprimido, ao contrario, queremos transforma-lo, quere mos que mude sempre em direco a uma sociedade sem opressio. E isto que significa bumanizar a humanidade: queremos que 0 “home™ deixe de ser 0 lobo do homem”, como dizia um poeta. Sabemos que todas as sociedades se movem através de esrruturas conflitantes: como poderiamos nés, entao, assumir uma virginal ae <4o isenta diante de conflitos dos quais, queiramos ou nao, faze’ 5 Augusto Boa! _d wy parte? Seremos sempre aliados dos oprimidos... ou ciimplices dos opressores. Fazer Teatro do Oprimido ja 6 0 resultado de uma escolha ética, jd significa tomar o partido dos oprimidos. Tentar transforma-lo em mero entretenimento sem consequence seria desconhecé-lo; transfor- milo em arma de opressao seria tra lo. F verdade que © Coringa, em uma sesso de Teatro Férum, por exemplo, deve manter sua neutralidade e nao tentar impor suas pré- prias ideias, porém... s6 depois de ter escolhido 0 seu campo! ato responsavel e surge depois da escolha feita; sua subs- ua neu- tralidade rincia € a duivida, semente de todas as certezas; seu fim é a descoberta, nao a isens Dou dois exemplos bem simples, e estou certo de que todos en- tenderao: 1, Em um confronto entre Davi e Golias, a neutralidade significa tomar o partido do opressor, o gigante Golias; se quisermos tomar 0 partido do oprimido Davi, temos que ajudé-lo a encontrar as pedras; 2. Para aqueles que sao religiosos, quero notar que nem mesmo Deus, no Juizo Final, mantém-se neutro: baseia seu julgamento em uma tabua de valores, Seguindo o exemplo divino, até nés, simples mortais com os dias contados, devemos ter a nossa tabua de valores éticos — temos que estar claramente ao lado dos oprimidos e nao de todos os lados, assim no teatro como na vida cidada. A partir de uma clara tomada de posicdo, e $6 ento, seremos neu- tros em relacao a todos os oprimidos participantes de uma sesso de Teatro do Oprimido: devemos a todos ouvir e tentar compreender 0 significado de suas intervengdes. A partir dai, podemos tentar ver a coisa de todos os lados. Trabalhar com os oprimidos é uma clara op¢ao filos6fica, politica e social. Essa op¢ao pode se constituir em uma ideologia, que é uma des- sas palavras-guarda-chuvas que podem abrigar diversos conceitos. Se- gundo os diciondrios, pode significar: Oprimidos ¢ opressores 21 1. Conjunto de ideias presentes nos Ambitos tedrico, cultural © institucional das sociedades, que se caracteriza por ignorar sua origem has necessidades ¢ interesses das relagées econdmicas de producao «, portanto, termina por beneficiar as classes sociais dominantes: as ide dominantes em uma sociedade sao as ideias das classes dominantes, mesmo quando transmitidas de forma inconsciente; 2, Conjunto de ideias € conviegdes que, conscientemente, dirigy agdes de um individuo ou de um grupo social; 3. Conjunto de normas ¢ objetivos predeterminados independen- temente de cada situacao concreta, geralmente atribuidos aos dogmas de um partido politico, seita ou religiao. Vemos, assim, que 0 Teatro do Oprimido nada tem a ver com es- ta tiltima definigao da palavra ideologia, que € a vulgarmente usada, pois que nds nos afastamos conscientemente de todos os dogmas po- liticos ou religiosos. Mas nao nos podem faltar, jamais, a conviccdo € a determinacao da segunda definigao a fim de, com eficdcia, lutarmos contra a primeira. Nos exemplos citados falei de opressores antag6nicos, contra os quais outra coisa nao se pode fazer seno lurar: € necessdrio destruir 0 seu arsenal e a sua forca, para que os oprimidos se libertem. argumento pode justificar a colaboragao com tais inimigos. Nenhum Este nao é um tema de teatro: é um dever da cidadania! Algumas pessoas, por culposa ingenuidade ou doloso oportunis- mo, usam alguns elementos esparsos do arsenal do Teatro do Oprimi- do dissociados da sua filosofia, ¢ se deixam contratar por empresas co- merciais ou industriais para trabalharem com seus empregados. A fal- ta grave ndo esta em ser contratado por uma empresa ou por uma agéncia governamental para fazer 0 seu préprio projeto com os grupos da sua propria escolha, mas sim em nao perceber que essas empresas jamais permitirao em seu espago empresarial e com os seus funciona rios — e, menos ainda, financiarao — a liberdade de expressdo que o Teatro do Oprimido exige e sem a qual fenece. Se pagam pelo trabalho teatral, é porque desejam melhorar a produtividade de seus operarios 22 Augusto Boal ¢ funcionarios, ou resolver problemas relacionais, a fim de aumentar seus lncros — 0 que esti perfeitamente dentro de sua légica competi- tiva. Pagam ¢ compram um servigo como se fosse me doria c, quem assim procede, em mercadoria se transforma. Para se justificarem, al; suns afirmam que, tendo o Teatro do Opri- mido nascido e se desenvolvido inicialmente em paises pobres ¢ pouco industrializados da America Latina, torna-se necessaria uma adaptagio as “sociedades mais sofisticadas” — argumento que demonstra congé- nita ma-fé ov voluntiria miopia. Todas as sociedades humanas sao complexas: o que pode ser sim- plorio ¢ © modo de percebé-las. Algumas pessoas so incapazes de ver, sentir e compreender sutilezas existentes em outras culturas que ndo a sua, OU Nem Mesmo na sua propria. E, se ndo as veem, decretam que nao existem. Mesmo quando a evidéncia salta aos olhos, ha quem nao perceba que o mundo esta sendo cada vez mais dominado pelos dogmas da economia de mercado — 0 Deus Mercado substituiu os outros deuses! Sua fome é 0 lucro. Em todo o mundo, os ricos estao cada vez mais ri- cos e os pobres cada vez mais pobres. Paises africanos, dizimados pela AIDS, sao obrigados a pagar eternos juros de suas dividas, mesmo ao preco de maior mortandade. Vale 0 lucro, os dividendos: a vida huma- na nada vale, e as mortes nao se contabilizam! Diante do mercado e do lucro, que no mundo globalizado substi- tuem todos os valores chamados “humanisticos”, temos que tomar uma posi¢ao filos6fica, politica e social — agdo! Nao podemos flutuar acima da Terra na qual vivemos, procurando cosmicamente compreen- der as razGes de todos e procurando a todos justificar, aos que explo- ram € aos que sao explorados, aos senhores e aos escravos. Nossa tomada de posigao tedrica e nossas agdes concretas devem acontecer nao porque sejamos artistas, mas porque somos cidadaos. Fossemos veterindrios, dentistas, pedreiros, fildsofos, bailarinos, pro- fessores, jogadores de futebol ou lutadores de judé — qualquer que seja a nossa profissao —, temos a obrigagao cidada de nos colocarmos ao lado dos humilhados e ofendidos. Somos seres vivos: precisamos de ar, agua e terra. O ar esta polui- do pela fumaga, a 4gua contaminada pelos detritos industriais, e a ter- sa cercada de arame farpado © MUO Ends... nao diam nade ndo afora, paises bélicos € blindados impem gy, mui yam — 2 £4740 do Principe € seu poder, E nds... ficamos calados? r aqueles artistas que dedicam suas yj. é seu direito ou condi¢ao! —, mas mos sores SOCiais: " vontade, invadem, escrav? Mundo adentro, cai a noite. Tenho sincero resperto pol das exclusivamente 4 sua arte — € Seu © prefiro aqueles que dedicam sua arte a vida. di O Teatro do Oprimido jamais foi um teatro equi istante gue se recusa a tomar partido — € teatro de luta! Eo teatro dos oprimidos, para os oprimidos, sobre 0s oprimidos e pelos oprimidos, sejam eles operarios, camponeses, desempregados, mulheres, negros, Jovens ou velhos, portadores de deficiéncias fisicas ou mentais, enfim, todos aque- Jes a quem se impée 0 silencio e de quem se retira 0 direito a existéncia plena. : Existem também os opressores 120 antagOnicos, com os quais 0 cuidadoso didlogo € possivel e as transformacoes relacionais também. Em Santiago do Chile, em 1974, convidado pelo consulado fran- cés, trabalhei com operarios chilenos: entre eles, aquele que era o mais combativo na luta contra a ditadura propés uma cena de familia na qual ele, inconscientemente, mostrava-se ditador em relagdo a sua es- posa ¢ as suas filhas. Na politica, lutava contra a ditadura e, na fami- lia, exercia poderes ditatoriais. ‘Aquele operdrio era inconsciente das opressdes que exercia, pois, para ele, eram a tinica forma que conhecia ¢ aceitava de “ser um bom pai severo”. Confundia suas opgdes opressoras com a fungdo de pai. Era to inconsciente do significado do que fazia como aquele guarda de presidio que, depois de uma sesso de Teatro Forum sobre 0 com- portamento violento de guardas carcerarios, comentou: “Eu nao sabia que era um torturador: pensava que isso que eu fazia fosse ‘educar os presos’”. Este guarda ¢ aquele operdrio algo aprenderam sobre ética e, cer- tamente, mudaram seu comportamento. Eram opressores nao cons- cientes e, em parte, deixaram de sé-lo. Trabalhar com estes vale a pena ¢ pode ser transformador. No Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro ja trabalha- mos com homens que batiam em suas mulheres. A vergonha que alguns ° Augusto Boal il sentiam, ao ver-se em cena, ji era 6 inicio do caminho da tanstorma cio possivel. E pouco? Sim, muito pouco, mas a diregiio da caminbada é mais importante do que 0 tamanho do passo. Trabathamos com profe em seus filhos: ores que batiam em seus alunos, ¢ pais vi do teatral de suas opressoes envergonhava esses os, transformava, O espago estético & um espelho de aumento que revela comportamentos dissimulados, inconscientes ou ocultos. opressores ¢, am Nao devemos ter medo ou pudor de trabalhar com pessoas que exergam fungdes ou profissdes que oferecem a oportunidade ¢ 0 poder de oprimir — temos que acreditar em nés © no teatro. Mas temos que ter muito cuidado. ¢ saber escolher nosso lado.! ' Texto acrescentado na 7* edigao deste livro, em 2005. (N. da E.) Oprimidos e opressores 2s

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