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OURO Estudos & Documents Yo LAMM 2225235 Henrique Costa Gomes de Aradijo| Etica econémica em D. Antonia Adelaide Ferreira ** 1. INTRODUGAO «Sou christd catholica, apostolica romans; nascida e baptisada no gremio da Santa Igreja, creio em tudo quanto ella ensina e n‘esta crenga espero viver ¢ mor- rer», Assim comaca o primeiro testamento de Dona Anténia Adelaide Fereira, feito a0 2 de Agosto de 1889, sete anos antes da sua morte - cujo centenério hoje aqui lembramos. ‘Quando morre 2 26 de Margo de 1896, com 85 anos de idade, Dona Anténia atinha erguido 20 apogeu © nome da familia ¢ multiplicado muitas vezes os bens herdados. Ao lado desta riqueza, uma bondade sem limites, mos abertas para todas as misérias e infelicidades que encontrava no seu caminho, um prestigio ‘quase supersticioso» — como consta da meméria da familia Ferrers, D. Luiz de Castro enfatiza antes, a dimensio da sua obra: «Foi Dona Anténia ‘quem adquiriu esses vagas quintas e largas charnecas incultas, quem edificou os seus edifcios, as suas oficinas modelares; quem mandou plantar a vinha, 0 olival e 2 laranjeiras; quem gastou centonas do contos a fundar © mais centenas a replan- tar depois da invasso filoxérica; quem pagou a construgo de quilémetros de estrada; quem formou essa exploraglo agricola que chega, por vezes, 2 ter em ‘trabalho mil operérios, e era ela ainda quem, nos uitimos anos da sua longa, bbenemérita vida, velhinha mas vivissima, percorria todas as suas quintas,fiscali- 1 Doursande am Anapoleaie Sedan | S.C. TE. [Wi Agredag rica do Prot Dour Raul ura, do Departamento de Anvopologa Socal doistuta Superior de Clandas do Trabalho © da Empresa (.S.C.TE) de Lisboa, © parecer do Or. Antsnio Vieie Cur, de Faculdade de Diets de Universidade da Coimbra e a colaboragbo de D, Marla Laden Clara co Arquve Msi de A.A. Pein SA, = 2 enrique cds comes de tate zando e drigindo...» (ullustragdo Portuguesa», 1906, Il série, p. 235). © «impériow ue ela soubera construir estendlia-se, no momento da sua morte, de Borqueires 2 Barca d'Alva A hipotese que orienta este texto & a de que tais préticas sociais eram legiti- mades pela ética econémica que esta figura quase lendiria do Douro protagoni- z0u a0 longo da segunda metade do século XIX. O esclarecimento desta hipotese val ser aqui focalizedo na andlise de algumas das disposigdes testamentirias de Dona Anténia ¢ do seu cotejo com o articulado estatutério mais relevante da Companhia Agricola e Comercial dos Vinhos do Porta. Esta hipdtese emerge de Luma pproblemtica concreta que gira em torno da determinago da natureza e das caracteristicas dessa ética econémica Miltiplos autores ~ entre os quais se contam S. Toms de Aquino (século Xl) M, Weber (1908), R. H. Tawney (1922), K. Polanyi (1944), T. Veblen (1970), A. Guide dens (1985), R. turra (1991), J. Le Goff (1994), etc. ~ tém analisado e discutido a ética econdmica do capitalismo como sua instincia legitimadora. Qual a sua génese? Qual a sua natureza? Em que contextes sécio-culturais e em que conjun- turns histéricas se assume como tal? Séo algumas das questdes-chave desta prox blematica tedrica cuja dilucidaséo exige, 8 partida, a definicso do conceito de ética econémiea: defino-a como sendo um sistema de valores morais (da con- fianga, da honestidede, da integridade, da lealdade, do respeito pelo outro e por si préprio, do espirito de sacrificio, da criagéo de valor, etc) que legitima a acumu- ago de riqueze, através da sua subsungao 8 condigéo prévia de a propriedade ser usufruida dentro de cortos limites, consenténeos com a utlzac3o de parte dos seus lucros na realizago de obras destinadas ao bem comum. A hipétese tedrica {ue guia e, 20 mesmo tempo, ¢ informada por aquele problemética é a de haver = em certos contextos sécio-culturais e em certas conjunturas histéricas ~, uma legitimaco ética das relagdes de producéo capitalistas. Em sintese, © primeiro objectivo deste texto 6 0 de esclarecer a hipstese de tice econémica de Dona Anténia Adelaide Ferrera, & luz da problemética teérica acima exposta. O segundo abjectivo é o de comparar algumas «economias racio- 2, 0 PODER E © AMOR Dois ou trés acontecimentos, envoltos em lend, fazem parte da meméria no 86 da Casa Ferreira, mas também de préprio Doura e revelarn bem a personali- dade e a conduta de Dona Anténis. A primeira historia é relative & tentative de rapto de sue filha Maria da Assun- ‘S80 pelos enviados do Duque de Saldanha, dos quais fazia parte 0 seu outro flho tex ecniin om 0. Anni lf aria Anténio Bernardo. Esta, assim, a historio de ume mée e da discérdia entre seus ois hos. Em 1854, o Caso Ferreira tinha atingido uma situagdo prvilegiade no sector do Vinho do Porto e 0 Duque de Saldanha pretendeu c2sar seu flho, 0 Conde de Seldsnha, com aquela menina, julgando que o prestigio do seu nome e a sua alta posi social seriam factores suficientes para produziem a aceitacéo da suo pro- posta Mas enganu-se, pois Dona Antéria respondeurthe assim, segundo consta da meméria da Case: «Recorhego que © Duque 6 um dos homers ilustes do nosso pals. Quanto a mim, tenho 2 dizer que a minha fiha ainda no tem doze anos e t50 ppouco desenvolida esté que parece muito mais nove. € demesiado ced pare que © cosamento possa verifiarse js! Desejo que a minha filha tenha voto na escolha, © que 86 mais tarde teré lugar. Se néo hé nenhum partido que o filho do Duque prea por causa desta demore, honra-me muito a proposta © eu ndo a rejeiton. ‘© Marechal insist, mas perante a recuse de Dona Anténia, perde a cabeca, habituado como esté ser obedecido © declara taxativamente que «ou a mBe da ienina quisesse ou nBo, © casamento se levaria a efeito com brevidadev. A partir daqui, definem-se @ extremam-se posigBes. O Duque ervia 20 Porto os seus filhos, © Conde de Saldanha e a Condessa de Taverede @ © seu sobrinho D. Rockigo de ‘Almeida para negociarem o casamento. Dona Annie foz-se representar por vstios intermedisros. No tendo conduzide nade de postive tal reunigo, © Duque opta pelo rapto dda menina, Assim é que na neite de 24 de Agosto, pelas 2 hores da mnhi, um bbando armado - de que fesia parte Anténio Bernardo Ferrera (ll, 0. Rodrigo de ‘Almeida e Eduardo Soverl -, ciige-se ro absixo em direcgio 8 Quinta de Travas- 405, tendo encontrado apenas alia avé, Dona Margarida Rosa Gil, Dona Antonia, svisada da persequigio do Dugue, reugiara-se na Régua em casa de Dona Ana Maxima Silva Pereira. Dei vei escoltada para Lamego. Pede aslo no Convento das Chagas ~ 0 que Ihe negado. Refugia-se entio em cass de Custodio Correia Rocha, primo de Joaquim C. Cardoso Monteiro (administrador da Casa Ferreira na Régua).Trés dias mais tarde, volta 8 Regus, @ casa de Dona Ana Maxim. ’A 25, saem do Porto © Conde Saldanha, 0 Bardo de Palma, 0 Condessa de Taverede © a mulher de Anténio Bemardo, com 0 objectivo de se encontrarem com 08 és raptores em Entre-os-Rios. A 29, 0 Conde procura Dona Antonia, © ‘io a tendo conseguide encontar, vai ter com Dona Margarida, mae de Dona ‘Anténia, por quem & muito bem recebido. {AB de Setembro, Dona AntGnia pate pora Vila Real com Anténio e Francisco Claro de Fonsece, Inco Pinto Saraiva ~ administrador dos tabecos em Vila Real -© ‘com Luis José FAratjo, compadre de Dons Anténia. Em Vila Real, Dona Antonia tira.o passaporte e érecebida pelo Governador Civil. Daqui part para Vigo. ventaue cell comes de ari A noticia corre 0 Douro, © povo arma-se ¢ aparece a defendé-la a0 longo das estradas que a levam de Vila Real a Vigo, avavés de Vila Pouca de Aguiar, Boticas fe Montalegre. Conta-se que mée ¢ filha iam «disfargadas de camponesas, monta~ das em burrinhos». Depois de seis dios de viagem, chegaram a Orense, donde seguirem para Vigo. Aqui Francisco José da Sika Torres - do Contato da Tabaco =, junta-se 2 Dona Anténia e & sua fiha. Os trés embarcam 2 20 de Setembro para Inglatera No exilio 0 repérter do «Petit Journals entrevista-2, dada a repercussso do caso. Dona Anténia responde: «Dige 20 seu jornal que no fugi com medo do Duque de Saldanha, porque ele nunca me roubaria a minha filha. Fugi para evitar a efuséo de sangues. E bem possivel era que tal efusso pudesse acontecer, dado © carisma® que Dona Anténia tina entre © pove duriense. ‘A 24 de Dezembro, Anténio Bernardo Ferreira vai a Londres ¢ 2 Paris, mas néo Visita nem a mée, nem 8 iema. € precise nfo esquecer que a 12 de Agosto Anté- rio Bernardo tinha sido jé agraciado com a Comenda de Cristo e que depois da tentativa de rapto, teve as honras de Adido as Embaixadas do Norte. Ties anos depois, Dona Anténia regressa a Portugal, tendo casado em 1856, ‘em segundas nipcias, com Francisco José de Silva Torres, seu comissério e valido durante toda a sua viuver, tendo-a ajudado a manter a sua Casa. Chegou a Par do Reino, tendo sido também Comendador da Ordem Nossa Senhora da Conceigéo de Vila Vigoss. Ere amigo intimo do Rei D. Luis, simpatizando com Fontes Pereira de Melo. Deste casamento néo houve geracéo. ‘Quatro anos mas tarde a filha de Dona Anténia, Dona Maria da Assungéo, casa ‘com o Conde de Azambuja (Gomes de Aratjo, 1995a: 136) AAs repercussdes deste caso na imprense da époce foram notérias, a ponto de ‘no dia 13 de Outubro desse ano de 1854, o Duque de Saldanha ter escrito aos jomais de Lisboa © do Porto, «declarando, sob a sua palavra dhonra, que eran faleas todas as arguigdes que se Ihe foziom, acerca dos meis ilictos empregados pare realizar 0 casamento de seu fiho com a filha da Sne* Dona Anténia Adelaide Ferreira © promettendo, accusar, perante os Tribunaes, os que com esses argu {62s 0 caluniavam.(«Sessées do Julgamento da Querela do Duque de Saldanho contra o editor do Peridcico dos Pobres No sequimento desta declaragéo, © Duque apresentou a despacho, em 25 do mesmo més, «a sua Peticfo de querela contra os artigos de fundo dos nimeros 203, 207, 208, 217 e 233 do Periédico dos Pobres do Porto, de 1854m (idem) Wh Algumas extuurss do simboles prvados purecam cantegir acitagfo pie devo aos tlen- tos expecnis da possoa que os comunica, A parr dere ponta de vss, podemos def cares come 2 capacidade de faerscstar publcamente os siois priadoss (FIRTH, Raymond = Sy bole Public and priate, London, Genges Alen and Un, id, 1973) © Director do Jornal, apresenta assim a histéria do proceso: «Tinhamos por 1nés, € verdade, uma justica evidente, e aquella vontade decidida de triumphar, {que nic hesita diante dium sacrifcio, e que s8 sabe parar onde comecam os ‘meios ilicitos, Mas tinhamos contra nés 2 influéncia do Poder, armado de todo os seus meios usuaes de chicana, coacgio comupséo, Nesta desvantajosa posigso, demos e acceitamos porfiada batalha: © fomos: muletades. E quando todos escandalisados nos aconselhavam que apellassemos, ‘que nds resolvemos trocar o recurso judicial pelo da presente publicaglo» (idem). Nesta tentative de repto, ficam expostas diante de nés, relagdes socisis de poder, forga ¢ lei em contradigo com relagGes interpessoais de amor maternal, paixio © ddio, Mas, a0 cantrério do que acontece na tragédia, aqui o poder nde triunfa sobre o amex, pois aqui a morte tragica no chaga a produzir-se (Berteaux, 1976: 199). O que aqui se joga so relagdes politics antagénices (iberais/conser- vvadores) imbrincadas em relagées familiares complexas (armor/violéncia). 3. A MORTE E A SUCESSAO Este duplo contexto de dissengao entrecruzada de que Dona Anténia foi parti- cipante na sua primeira viuvez, vai constituir, na sua segunda viuvez, um problema aque ela vai ter que enfrentar para assegurar a sua sucesso @ a continuidade da Case A. A. Ferreira, Scrs.: como especialmente compatibilizar, num censrio familiar cestigmatizado pela tentativa de rapto, a necessidade imperativa da partiha pelos dois irméos, com a selvaguarde da continuidade da Casa? ‘Aparentemente, 0 problema no tinha, assim, soluglo. Certo & que a socie~ ‘dade anénima que se constituiu dois anos apés a sua morte — © prazo testaments- Fio para 0 seu cumprimento -, tem tido uma histéria de sucesso no panorama exportador do Vinho do Porto Isto mostra que, afinal, o problema acima referido, ‘eve solugéo e que 2 sua chave se pode encontrar na andlise comparada dos dois testamentos de Dona Antonia e dos Estatutos da Companhia Agricola ¢ Comer- cial dos Vinhos do Porto. Na segunda pagina o 1° testamento diz logo: «lnstituo por meus herdeiros nas suas porgdes legitimérias meus dois tinicos filhos, havidos do meu primeiro matr- ménio com Antonio Bernardo Ferreira, Dane Maria d’Assumpcio, condessa d'Azambuja, casade com © conde do mesmo titulo, ¢ Anténio Bernardo Ferreira. Esta disposicio testamentaria resulta da aplicagio do artigo 1784° do Cédigo Civil de 1867 que diz expressamente: cLegitima é a porgSo de bens, de que o tes- tador no pode cispor, por ser applicads pela lei 90s herdeiros em linha recte ascendente, ou descendentes. E pelo seu pardgrafo Unico, estipula-se que: «ests porgdo consiste nas dues tergas partes dos bens do testador». Qualquer udireito a seniaue cdl comes de cio de primogenitura» esté daqui excluido: © testamento determina, & luz do dlreito entdo vigente, a partie dos bens pelos dois irméos, des ques aliés 0 vero 6 0 mais velho (n®. 1837 © 1842, respectivamente). ‘Aquele mesmo pardgrafo legitima, «a contrarian, a disposigdo testamentéria seguinte: «Passo a disp6r de terca disponivel da minhe herangan. Enumera depois 0s legados que deixa, por sus morte, a parentes, empregados e criados, aps 0 {que estipula, que 0 restante que ficar do meu terga seja dividido em duas partes iguees, sendo ums para 8 minha filha Maria d'Assumpgio Ferreira, hoje condessa d'Azambyja, ¢ a outra para meu filho Anténic Bernardo Ferreira, mas tanto quella como este s6 sero senhores do usufruto enquanta vivos, porque a raiz fica desde logo pertencendo 8 meus netos, filhos dos sobreditos meus filhoso. Usiizando a propriedade de raiz, caracteristica do dirsito vsigético, Dona Anténia Vso assegurar, com esta disposiglo testamentéria, a transmissio do legado a cada lum dos seus netos, sem prejudicar os seus dois filhos, com @ atribuigée a cada um deles do respective usufructo. O mesmo espirito de estrta previdéncia e segu- Fanga se encontra a seguir, quando a testadora consigna que os legedos aos rretos, acima referidos, sejam ssatisfeitos em fundos publices consolidados (ou seja: ttulos de divida piblics), portuguezes ou inglezes (..) que deve represen- tar 0 valor real dos legados no mercado (un No segundo testamento, esta disposigo vai ser alterada, com base ne facul- dade de revogagio que Ihe & concedida pelo artigo 1754° do Cédigo Civil (O tes- temento pode ser iviemente revogado, no tado ou em parte, pelo testador (.), com a seguinte justficago: «Reparando, porém, depois de o haver feito, que esta minha fiha tinha sido muito prejudicada pelo facto das avés paterna e matema ‘erem ambas deixado as suas tergas aquelle meu flho Antonio, resolvi, no intuito de iguoler 0 mais possivel as condigdes de fortuna duma e d'outro, compensar ‘aquella minha filha, até onde me fosse possivel d'esse prejuiton. A seguir pres- Creve a referida alteracdo testamentaria: wrevago a disposicdo que fiz das sobras dda minha terga na parte em que as deixava por metade a cada um dos meus ditos filhos, pare deixar, como deixo, duas tergas partes d'essas sobras ou remanescen- ‘8 da minha terga que ficar (..), 2 minha filha Condessa d'Azambuje, ¢ @ outra ‘erga parte dos ditos remanescentes a meu filho Antonio Bernardo Ferreira, com @ mesma concigio do testamento anterior, relative & atribuigée do usufruto e de raiz, De modo idéntico 20 que tinha jé estipulado no primeiro, determina que ‘toda 2 importincia dos remanescentes da minhe terga que ficar liquide, depois de satisfeitos os legados todos, seré convertida em ttulos nacionaes ou estrange- Fos (..) attento 0 seu valor real no mereade (..r No primeiro testamento, Dona Anténia determina que os seus empregados ‘Anténio José Claro da Fonseca e Francisco Correa Cardoso Monteiro e Santos ‘cministrem a sua cese comercial © no comercial e sejam (ao abrigo dos artigos a 185° 1899° do Cédigo Civil), seus testamenteiros, ou ceja, vigiem que todas 2 suas kdisposicées sejam cumpridas completamente ¢ com a maior fidelidades. E cestipula o prazo para tal cumprimento: «dois annos 2 contar da data de eseriptura das parilhas, se estas forem extrajudiciais e desde que @ sentenga que a julgar passe em julgado se forem judicaes». Uma das cinco testemunhas da aprovago dos dois testamentos de Dona Antonia & Francisco José dAzevedo Coutinho que, no segundo, aparece também como seu advogado e, nessa qualidade, seu eescripter, a rogo da testadoray. (Ora, José Claro da Fonseca (somente durante o primeiro ano) e Francisco José D’Azevedo Coutinho (durante os 3 anos do seu mandate) vo ser os elementos da 1" direcgo que escolhe para advogado da Companhia o mesmo Azevedo Coutinho (c. Art 41° dos Estatutos). Esta dupla pertenga & Casa comercial (ainda ‘em vida de Dona Antonia) e 8 Companki (2 anos apés a morte desta), é indica- dora de que, cada um, nas suas competéncias, pode muito bem ter sido porta-voz do vontade de Done Anténia de wornar a casa segura para os vindouros» ~ tal como consta da meméria oral que ainda hoje circuls na familia Ferreira ~, corpor- zando-a na constituigéo da sociedade anénima «Companhia Agricola ¢ Comercial dos Vinhos do Porto». Pode assim dizer-se que se esté aqui perante um caso de interpretago da meméria oral pelo recurso 8 meméria escrita dessa familia. Esta hipétese parte da constatago de que Dona Anténia néo podia consagrar nos seus testamentos a vontade expressa da constituigde de tal sociedade, apés a sua morte; mas, por outro lado, parte também da constatacSo do papel enfético atiibuido aos seus testamenteiros: umuito recommendo a meus filhos que facam (12s partihas amigavel e extrajudicialmente, se risso estiverem d'accordo meus testamenteiros». Aquela hipétese parece, entdo, ganhar consisténcia com a atri= bbuigdo deste papel aos testamenteiros, na medida em que a figura da sociedade lanénima parece ter sido por eles estudada como a melhor forma de compatibili- zar a necessidade imperstiva das partlhas pelos dois irmaos, com a salvaguarda da continuidade da Caso. Assim € que 0 artigo 1° dos respectivos Estatutos con- agra: «A Companhia Agricola e Comercial dos Vinhos do Parte, saciedade and- nima de responsabilidade limitada, é 2 transformacéo da casa comercial A. A. Ferreira, Sucessores, de cuja firma ¢ marca, nos termos do artigo 24° do Cédigo ‘Comercial, continuaré a usar Na meméria oral da Casa, © Conselheiro Wenceslau de Lima (casado com uma neta de Dona Anténia) aparece como tendo sido o redactor destes Estatutos. Tal responsabilidade deve ser antes imputada a Francisca José d’Azevede Coutinho, dada 2 sua qualidade de acvogado da Companhia. A Wenceslau de Lime parece ter cabido antes o papel de seu mentor (Gomes de Araujo, 1995a: 142). ‘A eseguranga» que @ Companhia configura ests, antes de mais, traduzida no articulade minuciosa ¢ coerentemente elaborado dos Estatutos, Encontra-se, Heniaue cls comes de Artio depois, na figura original e eficaz do usécio-fundador» que justamente introduz lum valor acrescentado de consisténcia & empresa, na juste medida em que con- traria ea regre da maioria do capital, imitando, assim, a acgSo dos fundadoresm (Gomes de Araijo, 1996}. Mas encontra-se, também, na atribuiglo da raiz nfo 20s fihos, mas sim aos netos de Done Anténia ~ 0 que ver reforcar a idela de que na cadeia da tansmissio hereditéria, 0 neto é sempre um elo mais seguro do que 0 filho. 4, DONA ANTONIA E MAX WEBER A constituiglo da Compania vai, deste modo, recontextualizar as relagies, familiares, no sentido da consolidagio do bom entendimento entre irmaos dantes desavindos. Revela-se, assim, uma solugdo adequada néo s6 para os problemas dda Casa, mas também, para os da familia. Sem duvida que tal solugio possivel gr2G2s 8 intimidade, imposta pela prépria evolugso historica, entre as estratégias familiares e 2s da empresa. Mas no s6. Nao fora uma ética econémica e travejar a8 préticas sociais, familiares e empresariais, ¢ tal solugSo no taria futuro como teve. Esta 62 hipétese de pantida. Como vimos na introduglo, esta ética econémica caracteriza-se, antes de mais, ppor ser Social, ou seja, por subtrair parte dos lucros & acumulagio de riqueza, com Vista a aplicé-los ne realizago de obras destinadas 20 bem comum. E esta sus ‘dimensdo social que encontramos nas inumerdveis obras de caridade de Dona ‘Anténia, jé referidas na introdugéo, bern como no financiamento de asilos, de hos- Pitis, de estradas, etc. Os seus testamentos dio também dela testemunho: lega- dos pios a0 Hospital da Régua, as Confrarios do Peso da Régua © 80 Asilo da Infancia Desvalida de Vile Real Do segundo testamento, consta a seguinte disposigSo: «Quero que o meu parente Tobias Guedes, que mandei para um callegio educar por minha conta, Continue 3 sua educagao litterdria, ¢ para isso Ihe deixo a pensio annual de qua- ‘rocentos mil eis, que Ihe seré fornecida e paga pontualmente até a completa for- ‘matura na carreira que escolher, se a sua conducta for regular e no se desviar dos Preceitos que deve seguir um homem de bem, pois do contrario cessaré este legedo». Nao fossem suficientes todos os dados até agora carrilados para este texto, e ests disposigdo seria s6 por si expressiva das outras dimensies da ética fem apreso: responsabilizadora, individualizadora maximizadora (Gomes de Aragjo, 1995b: 161) Esta disposigio testementéria lembra também 0 «topos» epistemoldgico ati- bbuido por Weber 20 conceito de «Berufy (profissio/vocagéo), presente nos textos Protestantes: 2 profissdo 6, para Lutero e, sobretudo, para Calvino, a expresso a do amor 208 autos, © cumprimenta no mundo da ascese que os cotslcos fazem ccumprrnosiléncio da vid mondstice (Weber, 1983: 52, 101) Ora, Dona Anténie «christ catholiea, apostalica romana» como confessa ogo no inicio do seu 1° testamento © a sua prética social revela 20 longo da 2* metade do século XIX, Equivocou-se Max Weber? Generalzou, atribuindo, pela negativa, 20 catolicismo © que é caracterstico apenas de certos periodos seus? Nao se deservolvou © wespirito capitalistan, em Veneza, Florenca, Sul da Alema- nha @ na Flandres que eram regies catdlicas (Tawney, 1971: 202)? A esta critica a ‘Weber junta-se uma outra: a de que a sua tese das relagbes entre purtanismo & capitaliemo se baseia em winsuficientes materiais empiricos» (Guiddens, 1975: XXIV), Certo parece ser que na administracao da empresa Fereira, na organizacio do trabalho @ na sua orientagao segundo normas de responsabilidad, discipline e contengdo, encontramos as mesmas caracteristicas da ética econémica que Weber julgava espectica do protestantismo. Esta similitude compreende-se se se atender a que «Os paises do Norte limita- ram-se a tomar o lugar, durante tanto tempo e to brilhantemente, ocupado, antes deles, pelos velhos centros capitaistas do Mediterraneo. N&o inventaram nada, nem na técnica, nem na conduglo dos negécios. Amsterdo, copio Venezo, tal como Londres capiars Amsterdéo © Nova lorque, depois, copiaré Londres» (Braudel, 1986:71) No mesmo sentido vai a erica a Weber que pretende dizer que no é preciso esperar pelo Renascimento para assist 20 surgimento do espiito capitalista», na medida em que 0 «cristianismo medieval levanta em grande parte os bloquoios que wravavam 0 desenvolvimento de ume economia de tipo modemo, 9 que mais tarde se chamaré capitalismo. Ao admit a legitimidade de certos lucros e a cobranca de uma taxa de juro moderads, a0 ter em conta a nogSo de rsco econé- rico, 20 substair algumas préticas comerciais 8 condenagao por usura, a0 abrir 3 ‘esperanga do Purgatério ao usurévo, até entio presa do Inferno, a0 renunciar 8 ideia do dinheio como objecto diabélico, a Igreja crsté faz desaparecer ~ por vvezes demasiado lberalmente -, 0s tabus que contribuiam pera impedir o desen- volvimento econémico 2, em especial, a economia monetéria ¢ uma economia, mundial» (Le Goff, 1995: 32). Deste modo, pode agora compreender-se que as préticas socais de Done Anténia tém uma legiimidede ética que histérice © geo- cgraficamente se enraiza na lgreja crstS dos finas da Idade Média meditertnica 5. AS «ECONOMIAS RACIONAIS» Vole a pena terminar com esta outra critica & hipétese etnocéntica de Weber (1983: 9), de que 2 modernidade 26 péde produzirse no ocidente europeu: senigue cll comes de Asie ‘Antes de atribuirmos 0 seu aparecimento & ética particular do Protestantismo, ‘por exemplo, vale a pena considerar que os mercadores budistas letrados do Sri Lanka medieval ndo eram seriamente restringidos pelos seus preceitos religiosos, ‘muito menos os empresérios envolvidos no fabrico da seda e da cerémica na CChina medieval, ou do algodso na india, sensivelmente no mesmo periodo. Com feito, os proprios mosteiros budistas eram geridos segundo linhas "camerciais”, ‘com uma abundiincia de resistos, pondo de lade a tradigSo ascética dos fundado- res, @ tomando-se, como 0 préprio Weber observau falando de templos e moste- Fios noutro contexto, "as proprias sedes de todas as economias racionais”. Com efeito, na China e no Tibete, tal como sucedeu com algumas ordens na Europa ‘ocidental, encontravam-se profundamente envolvides no comércio. E 2 natureza desta “racionalidade" relecionava-se com a aplicago da escrta a fins que eram ‘econémicos bem como religosos» (Goody, 1987: 203} A hiipétese que esta andlise comparada permite formular & a de que, no cerne de todos estes processos religiosos ¢ econémicos, est o ritual e a dinamizagio ‘que ele produz ~ através do sistema de didivas que integra -, das relagSes de Feciprocidade no violenta, no sentide da troca de produtos, pessoas, conheci- mentos ¢ tecnologias (Gomes de Aradjo, 1995b: 166). Esta hipétese - que aqui do pode ser devidamente testada -, repousa na constatago que nas diferentes épocas histéricas, quatro funcdes esto presentes: reprodugée humana, de ideias, de tecnologias © de cédigo ético (turra, 1991: 191) 6. BIBLIOGRAFIA BERTEAUX, D.— Histores de Ve ~ ou Récits de Pratiquos?, Pais, MSH/CEM.S,, 1975, BRAUDEL, D. - A Dindmica do Capitalismo, Lisboa, Teorema, 1986 GOMES DE ARALLO, H.~ © Conselhoiro Wenceslau ce Lime, in sLer Histriy,n* 29, 19950, GOMES DE ARAUJO, H. ~ Dar Raceber o Retnbuir, in «Sociologia: Problemas e Priticass, 1° 18, 1998b. GOMES DE ARAWJO, H.— Aprenclem os Pais cam os Fihos 7, 1996 lem pullicacio). GOODY, J.-A Lagica da Escrita a a Organizacio de Sociedade , Lisbos, EdigSes 70, 1967, GUIDDENS, A. (rel. WEBER, M, ~ The Protestant Ethie and the Spint of Capitalism, Lon- don, Counterpoint, 1985. ITURRA, R.A Religiso como Teoria da Reprodugao Social, Lisbos, Escher, 1991, LE GOFF, J.~A Veha Europa e a Nossa, Lisboa, Gradiva, 1995, TAWINEY, R. 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