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Baseado em algumas ideias da série televisiva da B.B.C., Ways of Seeing, este livro, através de sete ensaios, alguns puramente visuals, procura interpretar aspectos contraditérios da tradigéo da pintura a dleo © analisar as implicagdes sociais do conteddo de algumas das imagens que 08 diversos meios de comunicagéo nos oferegem 1 que devemos aprender a ver. l coes TO oss | | Avista chega, de tatar. Isto 6 também verdadeiro noutro sentido. A vista é aquilo que estabelece 0 nosso lugar no mundo que nos rodeia; expli- ‘camos 0 mundo com palavras, mas as palavras nunca podem anular 0 facto de estarmos rodeados por ele. Ainda se néo es- tabeleceu a relacdo entre o que vemos e o que sabemos. Todas as tardes vemos 0 Sol por-se. Sabemos que é a Terra que gira & sua volta. O conhecimento, a explicagao, nunca se adequa, sem divida, completamente a viséo. O pintor surrealista Magritte comentava este fosso sempre presente entre as palavras e a viséo num quadro intitulado A Chave dos Sonhos, SOHNOS SOG AAVHO V ~ (2961-8681) SLOW Aquilo que sabemos ou aquilo que julgamos afecta 0 modo ‘como vemos as coisas. Na Idade Média, quando os homens acreditavam na existéncia fisica do Inferno, a visdo do fogo ti- nha certamente para eles um significado muito diferente do q tem hoje para nds. No entanto, a'sua ideia de Inferno dependia ‘muito da viséo do fogo que consome e das cinzas que perma- ecem, bem como da experiéncia dolorosa das queimaduras. Quando se ama, a visao do ser amado tem um cardcter de absoluto que nenhuma palavra, nenhum aerago, podem igué lum carécter de absoluto que s6 0 acto de fazer amor pode atin- gir temporalmente. © facto, porém, de vermos antes de sabermos falar e de. palavras nunca substituirem por completo a funcao da vista nao significa que esta seja uma pura reaccdo mecanica a deterr nados estimulos. (S6 6 possivel pensar assim isolando um: fima parte do processo, a que diz respeito a retina.) Somente vemos aquilo para que olhamos. Ver ¢ um acto voluntério.~ ‘Como resultado dele, aquilo que vemos fica ao nosso alcance ‘embora nao necessariamente ao alcance da nossa mao. Tocar nalguma coisa é situarmo-nos em relacao a ela. (Feche os othos, mova-se pela casa e repare como 0 sentido do tacto é uma espécie de forma estitica, limitada, de viséo.) Nunca olha- mos para uma 86 coisa de cada vez; estamos sempre a ver a 2 relagdo entre coisas e nds préprios. A nossa visio esta em constante actividade, sempre em movimento, sempre captando coisas num circulo & sua volta, constituindo aquilo que nos é presente, tal como somos. Pouco depois de se adquirir a faculdade de ver, apercebe- ‘mo-nos de que também podemos ser vistos. Os olhos do outro ‘combinam-se com os nossos para tornar completamente crivel que fazemos parte do mundo visivel. Se aceitamos que podemos ver aquela colina, postulamos que daquela colina podemos ser vistos. A natureza reciproca da visio é mais fundamental que a do didlogo falado. Muitas vezes, até, o didlogo é uma tentativa de verbalizar isso mesmo — uma tentativa para explicar como, metaférica ou literalmente, «se véem as coisas» e uma tentativa para descobrir como «o outro as veo, No sentido em que a usamos neste livro, significa Imagem feita pelo homem. palavra imagem Uma imagem ¢ uma vista que foi recriada ou reproduzida. E éncia, ou um conjunto de aparéncias, que fol isolada do local e do tempo em que primeiro se deu 0 seu aparecimen- to, e conservada — por alguns momentos ou por uns séculos. 13 Todas as imagens corporizam um modo de ver. Mesmo uma fotografia. As fotografias nao s4o, como muitas vezes se pensa, ‘um mero registo mecénico. Sempre que olhamos uma fotografia tomamos consciéncia, mesmo que vagamente, de que 0 foto- grato seleccionou aquela vista de entre uma infinidade de ou- tras vistas possivels. Isto 6 verdade mesmo para o mais banal instantaneo de familia, © modo de ver do fotdgrafo reflecte-se na sua escolha do tema. © modo de ver do pintor reconstitui-se através das marcas que deixa na tela ou no papel. Todavia, ‘embora todas as imagens corporizem um modo de ver, a nossa percepgao ea nossa apreciagdo de uma imagem dependem também do nosso proprio modo de ver. (Por exemplo, Sheila pode ser uma entre vinte pessoas; mas, por motivos pesso: ‘36 temos olhos para ela.) As Imagens foram feitas, de principio, para evocar a apa- réncla de algo ausente. A pouco e pouco, porém, tornou-se evi- dente que uma imagem podla sobreviver aquilo que representa vva; nesse caso, mostrava como algo ou alguém tinham sido— consequentemente, como o tema havia sido visto por outras pessoas. Mais tarde ainda, a visao especifica do fazedor de imagens foi também reconhecida como parte integrante do re- gisto. A imagem tornou-se um registe de como X tinha visto Y. Constituiu isto 0 resultado de uma crescente tomada de cons- cléncia da individualidade, acompanhada de uma crescente consciéncia da histéria. Seria ousado pretender datar com rigor este ultimo avango. No entanto, pode afirmar-se com certeza ssta consciéncia existe na Europa desde o inicio do Renas~ espécie de vestigio ou de texto do passado nos pode dar um testemunho tao directo sobre o mundo que rodeou outras pessoas, noutros tempos. Sob este aspecto, as imagens sao mais rigorosas e mais ricas que.a literatura. Esta atirmagao no nega a qualidade expressiva ou imaginativa da arte, como se a considerassemos uma mera prova documental; quanto mais imaginativa 6 a obra, mais profundamente nos permite compartithar da experiéncia que o artista teve do visi- “4 ‘Ainda_assim, quando_uma imagem 6 apresentada como obra de arte, 0 modo como as pessoas oiham para ela é condi- clonado por toda uma série de pressupostos adquiridos sobre a arte. Pressupostos que se ligam a Beleza Verdade Génio Civilizagao Forma Estatuto Social Gosto etc. Muitos destes pressupostos nao se encontram jé ajustados a0 mundo tal como ele 6 (0 «mundo tal como ele 6» 6 mais do ‘que um puro facto objectivo: inclul também a consciéncia). Em desacordo com o presente, estes pressupostos obscurecem 0 pasado. Mistificam, em vez de clarificar. © passado nunca esta pronto a ser descoberto, reconhecido, exactamente como fol. A histéria reconstitul sempre uma relagao entre um presente © 0 seu passado. Por consequéncia, o medo do presente conduz mistificagao do pasado. O passado nao serve para se viver rele; 6 uma mina de conclus6es que utilizamos para agir. Amis tificagao do passado arrasta consigo uma perda dupla: as obras de arte tornam-se desnecessarlamente remotas; @ 0 passado dé-nos menos conclusées a completar com a aceéo. Quando «vemos» uma paisagem, situamo-nos nela. Se givissemos» a arte do passado, situar-nos-iamos na historia, Quando nos impedem de a ver, estamos a ser privados da histé- ‘que nos pertence. A quem lucra esta privagao? Ao fim e ao ssado vem sendo mistificada porque uma 4 minoria privilegiada se esforga por inventar uma histéria que £ possa justificar retrospectivamente o papel das classes dirigen- tes e porque tal justficacao [4 nao faz sentido em termos mo- # dernos. Por isso, inevitavelmente, mistifica. + Seymour Sve, Franz He ‘Vejamos um exemplo tipico desta mistificagao. Publicou-se, recentemente um estudo, em dois volumes, sobre Franz Hals.’ E um trabalho que se reclama autoridade sobre a matéria. Como livro de histéria especializada de arte, néo 6 melhor nem pior que a generalidade. 5 (6991-0881) STVH ZNYUS 8 8 5 R fe 8 ‘S¥H13A 3a ONISY 00 S3IN3O3¥ (o991-0051) SvH ZNvELS As duas dltimas grandes pinturas de Franz Hals retratam os Regentes e as Regentes de um asilo para pobres idosos na dade holandesa de Haarlem, no século XVII. Eram retratos feltos por encomenda oficial. Hals, um homem de mais de oitenta ‘anos, fora despedido. A maior parte da sua vida passara-a com grandes diticuldades financeiras. Durante 0 Inverno de 1664, em que comecou estes quadros, obteve trés fardos de turfa por 6 ‘esmola piblica, 0 que the permitiu néo morrer de frio. Os que ‘agora posavam para ele eram os administradores dessas esmo- las. © autor anota estes factos e diz expressamente que seria Incorrecto ler nos quadros qualquer espécie de critica as figu- ras retratadas. Nao ha qualquer prova, afirma, de que Hals as, tenha pintado com acriménia. O autor, no entanto, considera-as obras de arte notaveis, e explica porqué. O passo seguinte é extraido da descricéo do quadro das Regentes: Cada uma das mulheres nos fala, com igual eloquéncia, a condi¢ao humana. Cada mulher, se destaca, com igual cla~ reza, da vasta superficie obscurecida e, no entanto, estao liga- das por uma firme composi¢ao ritmica © pela subtil diagonal formada pelas cabecas @ pelas méos. As modelacdes subtis dos _negros brilhantes e profundos contribuem para a fusdo hharmoniosa do todo ¢ produzem um inesquecivel contraste com (05 brancos pujantes © os vividos tons de carne em que as pin- celadas Isoladas atingem um maximo de densidade e de for- ga.» (Os itdlicos so nosso.) A.unidade de composigao de um quadro é fundamental para ‘© poder da sua imagem. E, pois, correcto considerar a compo- sigao de uma pintura. Mas, neste caso, a composicao 6 descrita ‘como se fosse, por si propria, a carga emocional da obra. Ter- mos como «fusdo harmoniosa», «contraste Inesquecivel», atin- gindo «um maximo de densidade e de fora», transferem a emogao provocada pela imagem do plano da experiéncia vivida para 0 da «apreciagao artistica desinteressada». Todos os con- 9's desaparecem. Resta-nos a «condig¢ao humana» Imutavel © a opinio de que o quadro é um objecto maravilhosamente feito. ‘Sabe-se muito pouco de Hals e dos Regentes que Ihe fize- ram a encomenda. Nao ¢ possivel apresentar documentos que Provem 0 tipo de relaces que tiveram. Existe porém a prova, que sao os préprios quadros; a prova de um grupo de homens e outro de mulheres tal como foram vistos por outro homem, 0 pintor. Estudem esta prova e respondam por v6s proprios. " O historiador de arte receia esse juizo directo. Como em tantas outras obras de Hals, a caracterizacao Penetrante seduz-nos, quase nos induz a eer que conhecemos 2 personalidade e mesmo os habitos dos homens e das mulhe- 198 retratados.» Que «seducdo» ¢ esta de que o autor nos fala? Nao & mais do que 0 trabalho do quadro em nés. As pinturas actuam em 6s porque aceitamos 0 modo como Hals viu as mulheres sen- tadas. Ea nossa aceitacao nao ¢ inocente, Aceitamo-la na me- didarem que corresponde a nossa propria observacéo das pes- 8088, dos gestos, dos rostos, das instituigées. Isto & possivel Por ainda vivermos numa sociedade de relagdes sociais e valo- Fes morais comparéveis. E 6 precisamente isso que dé a estes quadros a sua acuidade psicologica e social. E isto - e nao o talento do autor como «sedutor» — que nos convence de que Podemos conhecer as pessoas retratadas, © autor continua: sPara alguns criticos, a sedugéo foi um éxito total, Ficou Perfeitamente clarficado, por exemplo, que o Regente de cha- éu & banda, que mal oculta 0 cabelo desgrenhado ¢ ralo ¢ Cujos olhos, curiosamente apontados, néo estao focados, foi epresentado em estado de embriagués.» 18 Isto, segundo se sugere, é uma caldnia. Argumenta o autor que, naquele tempo, era moda usar chapéus inclinados sobre um dos lados da testa. Cita opinioes médicas para provar que a expresséo do Regente podia ser o resultado de uma paralisia facial. insiste em que 0 quadro haveria sido inaceitavel para os Regentes se um deles tivesse sido retratado em estado de em- briagués. Seria possivel continuar a discutir cada um destes pontos ao longo de paginas e paginas. (Os homens, na Holan- da, no século XVII, usavam o chapéu inclinado para parecerem aventureiros © amigos de prazeres, a embriagués era uma pratl- a socialmente aceitavel, etc.) Essa discussao, porém, apenas nos afastaria mais ainda da unica confrontagao que interessa e que © autor ¢ obstina om ovitar. Neste confronto, os Regentes e as Regentes olham para Hals, um velho pintor desemprogado que perdeu a boa reputa- ‘go que tivera e vive da caridade publica; ele observa-os com 08 olhos de um pobre que, todavia, procura ser objectiva, isto 6, que necessita ultrapassar o mado como vé, que é 0 de um po- bre. Este 6 0 drama destes quadros. Um drama de «inesquecivel contraste». ‘A mistificagéo pouco tem a ver com 0 vocabulério empre- que. Mistificagao consiste, neste caso, no processo de explicar 1° ‘aquilo que, sem explicagao, se tornaria evidente. Hals fol 0 prl- meiro retratista a pintar os novos caracteres @ as novas expres- s6es criadas pelo capitalismo. Fez, em termos picturais, o que, dois séculos mais tarde, Balzac fez em literatura. E, no entanto, © autor da obra magistral sobre estas pinturas resume a obra do artista referindo «0 inquebrantavel apego de Hals a sua viséo pessoal, que enriquece © conhecimento que possuimos dos nossos seme- thantes © aumenta a nossa admiracao pelo poder sempre cres- Cente dos impulsos fortissimos que Ihe permitiram dar-nos uma Visio fie! das frogas vitais da natureza.» Isto € mistificagao. Para evitar a mistificagao do passado (que também pode ser vitima de mistificagdes pseudomarxistas), examinemos ago- ra a relacao especifica existente hoje em dia no que respeita as entre o presente e 0 passado. Se pudermos imagens pictérica ter do presente a visdo exacta, facil serd questionar o pasado com as perguntas correctas. Vemos hoje a arte do passado como ninguém a viu antes. Apercebemo-la de modo diferente. Esta diferenca pode ser exempliticada através do que tem sido considerado como a definicao da perspectiv 40 da perspectiva, que ia € foi estabelecida no Alto Renascimento, centra toda a compo- sigéo no olhar do espectador. E como um felxe luminoso de um farol— com a Unica diferenga de que, em vez de se dirigir para 0 exterior, s40 as aparéncias que vém para dentro. As conven- goes designam estas aparencias pelo nome de realidade. A perspectiva faz do olho 0 centro do mundo visivel. Tudo con- verge para o olho do espectador como para o ponto de fuga do Infinito. O mundo visivel é organizado para o espectador como, outro tempo, se pensou que o Universo estava organizado em fungao de Deus. De acordo com a convencao da perspectiva, néo ha reci- procidade visual. Deus nao necessita situar-se em relagao a Outros: ele proprio é a situacao. A contradicao inerente a pers- pectiva era a de estruturar todas as imagens da realidade por forma a dirigi-las para um Gnico espectador, o qual, a0 contrario de Deus, 86 podia estar num lugar de cada vez. 2 fol-se tornando evidente. em 1999 por Diga Vero ralzadorrovlucontite soviet, Esta ctagdo 6 extalda de um artigo ex viii 3a WNINO¥N WOO WaWOH 30 VAYHDOLO3— «Sou um olho. Um olho mectinico, Eu, a maquina, mostro-vos 0 ‘mundo de um modo como s6 eu posso vé-0. Liberto-me hoje @ ara sempre da imobilidade humana. Estou em constante mo- vimento. Aproximo-me @ afasto-me dos objectos. Rastejo de- baixo deles. Movo-me colada A boca de um cavalo a correr. Caio e levanto-me juntamente com corpos que caem @ se le- vantam, Isto sou eu, a maquina, manobrando entre movimentos caéticos, registando um movimento apés outro, nas combina- (ges mais complexas. Liberto dos limites de tempo e de espa- 90, coordeno cada um @ todos os pontos do Universo, onde ‘quer que eu queira que eles se encontrem. © meu caminho conduz a criagéo duma nova percepeéo do mundo. Assim ex- plico, de uma nova forma, 0 mundo por vés Ignorado.» (*) a ‘A maquina isolou aparéncias momentaneas e, a0 fazé-lo, dostruiu a ideia de que as imagens nao tinham tempo. Ora, por outras palavras, a maquina mostrou que a nogao de passagem do tempo era inseparavel da experiéncia do visivel (excepto em intura). Aquilo que se vé depende de onde nos situamos e ‘quando. © que apreendemos pela visio 6 fungao da nossa po- sigao no tempo e no espaco. Deixou de ser possivel imaginar todas as coisas convergindo para o olho humano como para um Ponto de fuga situado no infinite. Nao queremos com isto dizer que antes da invengao da maquina de filmar os homens acreditassem que todas as pes- 50a podiam ver todas as coisas. Mas a perspectiva organizara © campo visual como se esse fosse realmente o ideal. Todos 08, desenhos ou pinturas que utilizavam a perspectiva propunham ue 0 espectador fosse o centro do mundo. A maquina — e mul- to especialmente a maquina de-filmar — demonstrou nao existir esse centro. ~~ A invencao da maquina modificou a nossa maneira de ve © visivel veio a significar para nés algo de diferente e isso re- flectiu-se imediatamente na pintura. Para os Impressionistas, 0 visivel |é nao surgia aos homens or forma a ser visto. Pelo contrario, 0 visivel, num fluxo cons- tante, tornou-se fugidio. Para os Cubistas, 0 visivel deixa de ser aquilo que se vé a vista desarmada e passa a ser a totalidade das vistas possiveis a partir de pontos a volta da pessoa ou objecto a ser descrito, vitTva 30 vurgavo Woo ViLNOW YZaUALYN (eisi-18e0) Ossvold 2 © aparecimento da maquina fotogratica tambem moditicou ‘0 modo de ver quadros pintados antes da sua Invencao. A prin- cipio, as pinturas eram parte integrante da construcao para que iham sido executadas. Por vezes, numa capela ou numa Igreja do Alto Renascimento, temos a sensacao de que as Imagens ‘nas paredes sao registos da vida interior do edificio, de que, juntos, constituem a meméria do edificio — tanto quanto sao Partes constituintes da especificidade desse edificio. OOSIONvus 'S 30 WraUOI SISSY A singularidade de qualquer pintura fazia parte da singula- ridade do local onde se inseria. Por vezes, a pintura era trans- portavel; mas nunca podia ser vista em dois locais a0 mesmo indo a maquina fotogrética reproduz um quadro, des- ingularidade da sua imagem. Dai resulta que 0 seu signi- ficad6 se modifica ou, mais exactamente, se multiplica e trag- menta em muitos significados. ‘Temos um exemplo flagrante deste facto quando observa- mos um quadro reproduzido na Televisao)O quadro entra em casa do espectador. Aqui, 6 rodeado pelo seu papel de parede, pela sua mobilia, pelas suas recordagoes. Penetra na atmosfera 2B da familia, torna-se tema de conversa. Empresta o seu signifi- cado aos significados das outras coisas. Ao mesmo tempo, en- tra em milhoes de outras casas e em cada uma é visto num Contexto diferente. A custa da maquina, o quadro viaja agora até ao espectador, ém vez de ser 0 espectador a deslocar-se até ele. Nas viagens que empreende, o seu significado diversifi- Pode objectar-se que todas as reprodugées distorcem mais ‘ou menos e que portanto a obra original ¢ ainda, de certo modo, nica. Vemos aqui uma reprodugao da Virgem dos Rochedos, de Leornardo da Vinci. a IONIA Va OGUYNO? » Bz 23 28 #8 Be #8 5s 38 5a 88 25 Py Dopois de observar esta reprodugao, qualquer pessoa pode deslocar-se & National Gallery ver original ¢ descobrir entao aquilo que falta & reprodugao. A outra alternativa é esquecer a qualidade da reprodugao e recordar apenas, perante o original, ue se trata de um quadro famoso Ja observado numa reprodu- ¢¢a0. Em qualquer dos casos, porém, a singularidade do original ‘std em que, agora, ele 6 0 original de uma reproducao. O que nos Impressiona nao 6 jé o que a imagem mostra, por ser dnico; 0 80u significado primeiro ja nao se encontra no que nos diz ser, mas naquilo que Este novo estatuto da(obra original é a consequéncia pert tamente racional dos novos meios de reproducdo. Mas 6 neste onto que surge de novo um proceso de mistificagao. O signi- ficado da obra original deixa de residir no que 86 ela diz @ passa ‘a ser 0 que $6 ela 6. Como se define © valoriza essa existéncia nica na nossa cultura actual? Define-se como um objecto cujo valor depende da sua raridade, valor esse confirmado e caucio- nado pelo pre¢o que atinge no mercado. Mas porque é, apesar de tudo, uma «obra de arte» ~ e se pensa que a arte é superior ‘20 comércio -, 0 seu prego de mercado explicado por um r flexo do seu valor espiritual. No entanto, visto o valor espiritual de um objecto, sendo distinto de uma mensagem ou de um exemplo, 86 encontrar explicagéo em termos de magia ou reli- ‘l80, que nao constituem na sociedade actual foreas actuantes, © objecto de arte, a «obra de arte», é envolvido numa atmostera de religiosidade beata. As obras de arte sao discutidas e apre- sentadas como se fossem reliquias sagradas: reliquias que 80 ‘2 maior e a mals forte prova da sua propria sobrevivencia. O assado em que tiveram origem 6 estudado para provar a ge- hulinidade da sua proveniéncia. S80 consideradas arte quando a sua arvore genealégica pode ser certificada. Perante a Virgem dos Rochedos, o visitante da National Gal- lery podera, encorajado por quase tudo 0 que tenha ouvido e lido sobre o quadro, sentir aproximadamente o seguinte: «Estou a sua frente, Posso vé-lo. Este auadro de Leonardo ¢ diferente de todos os quadros do mundo. A National Gallery tem 0 ori nal. Se eu olhar com muita atencao para este quadro, talvez seja capaz de sentir a sua autenticidade. A Virgom dos Rochedos, de Leonardo da Vinci, é auténtico, logo, 6 belo.» 25 Classificar apressadamente de Ingénua esta atitude seria errado. Esta perfeitamente de acordo com a cultura refinada dos peritos de arte, para quem o catélogo da National Gallery foi elaborado. A referencia a Virgem dos Rochedos 6 uma das mai fongas do catélogo: catorze paginas de linhas apertadas. O seu contetido nao discorre sobre o significado da imagem, mas re- {ere quem adquiriu 0 quadro para a Galeria, problemas legais, a quem pertenceu, data provavel de execucao, as familias dos Seus sucessivos proprietérios, etc.. Por detrés destas informa 9608 estdo anos de pesquisa, cujo objectivo primeiro consiste ‘em provar, sem a sombra de uma diivida, que a pintura é um Leonardo genuino, embora se preocupe também em provar que lum quadro quase idéntico que se encontra no Louvre é uma da National Gallery, AMSTIVS NOUN, 25 B25 5 gs ea 838 28g eee 82 RS ge BB rio, O° historiadores de arte franceses tentam provar 0 contré- io. % LEONARDO DA VINCI (1452-1519) AVIRGEM E MENINO COM SANTA ANA ES. JOAO BAPTISTA A National Gallery vende mais reprodugées do cartao de Leonardo da Vinei A Virgem e o Menino com Santa Ana @ S. Jodo Baptista do que de todos os outros quadros da sua coleceao. Esta obra, até hé bem poucos anos s6 conhecida dos eruditos, tornou-se famosa apés um americano intentar compré-la por dois milhdes e meio de libra: ‘Agora, tom um saldo $6 para si, um saléo que parece uma capela, onde o desenho foi colocado por detrés de uma protec- ¢¢é0 antibala e onde adquirlu uma nova capacidade de nos im- pressionar. Mais que pelo trabalho artistico que apresenta ou pelo significado da sua imagem, tornou-se impressionante e misterioso pelo seu valor de mercado. ‘A religiosidade beata que hoje envolve as obras de arte or ginals, e que depende, em ultima anélise, da sua cotacao no ‘mercado, substituiu o que as pinturas perderam quando a.foto- grafia as fornou reprodutivels. A sua fungao é nostalgica. E o Lltimo grito, vazio de contetido, exigindo a continuidade dos valores de uma cultura oligérquica e antidemocratica. Se a ima: gem deixou de ser nica e exclusiva, ao objecto de arte, & coisa, nada mais resta que transformar-se em objecto de mistério. 2 ‘A maloria das pessoas néo frequenta museus de art quadro seguinte dé uma ideia como o interesse pela arte est pre 9.90 180 04s, 080 FONTE Pee Brirdiov «in Dab UAnou de Pa. Eatons de Mat Po Einar As pessoas consideram indiscutivel, com frequéncia, que 0's museus se encontram repletos de reliquias sagradas aludi do a um mistério de que elas proprias estao excluidas: 0 misté- rio das fortunas incomensuraveis. Ou, por outras palavras, cré- que as obras-primas originals pertencem a coutada (mat rial e espiritual) dos ricos. Um outro quadro dé-nos a Idela do ‘que uma galeria de arte sugere as diferentes classes social eo(e=8a) Toa as) Oa Bw) FORTE Dian anos aio Na era das reproducées de arte, o significado das oniginals fa ndo-estsligado a Seas: 0'seu signeade forhouse ffansmiissivel, que 7 dizer ter-se transtormado numa ‘espécie de informagio que, como qualquer informacao, poder ‘ser utilizada ou ignorada, pols como esta nao tem, por si pré- ria, qualquer autoridade. Que ido, 0 seu significado modifica-se parcial ou totalmente. A ‘questo uma reprodugao.néo conseguir reproduzir Tieliente aiguns dos aspectos de uma imagem; esta em uma feprodugdo tornar possivel, inevitavel mesmo, que uma imagem seja utiizada para muitas finalidades diferente réproduzida, a0 contrério da obra inical, 4 todas elas. Examinemos alguns dos modos por que reproduzida se prest utilzagao. LWW 3 SANIA (ois-sep)) r730WLL08 AA reprodugao isola um pormenor de uma pintura do sou conjunto. © pormenor transforma-se. Uma figura alegorica tor- na-se o retrato de uma jovem. Quando. um q oduzide por uma maquina de fllmar, torna-se inevitavelmente material para o argumento do realizador. Um filme que reproduz imagens de uma pintura conduz 0 espectadior, através da pintura, ds conclusGes do proprio argue ‘mentista. A pintura dé autoridade a quem faz 0 filme. Num filme, 0 modo como a uma imagem se segue outra, @ sua sucessio, constréi o argumento, que se torna irreversivel. Numa pintura, todos os elementos podem ser vistos a0 mesmo tempo. O espectador pode necessitar de tempo para examinar os elementos de uma pintura mas, no momento ef que chega a uma conclusao, a simultaneidade do quadro global esta presente para negar ou confirmar a sua conclusio. A pintu- ra mantém a sua prépria autoridade. x SREUGHEL (1525-1969) ~ SUBIDA AO CALVARIO Um quadro é muitas vezes reproduzido com palavras a vol- Vemos uma paisagem de uma seara com passaros que vantam voo. Observe-a por um momento. Depols, vire a pagina. VAN GOGH (1853-1890) ~ SEARA COM CORVOS. 31 YAN GOGH (1853-1890) - SEARA COM CORVOS (Este 8 0 ultimo quadro que Van Gogh pintou antes de se suicidar.) E dificil definir exactamente como as palavras modificaram a imagem, mas é certo que o fizeram. Agora, a imagem ilustra a frase. Neste ensaio, cada imagem reproduzida tornou-se parte de uma exposieao que pouco ou nada tem a ver com o significado independente de cada pintura original. As palavras citaram as pinturas para confirmarem a sua propria autoridade verbal. ( ensaios sem palavras, neste livro, podem tornar esta distingao ‘mais clara.) ‘As reprodugdes de pintura, como toda a Informagao, tém de defender a sua propria posicao contra todas as informagoes Portanto, uma reproducao, além de fazer as suas préprias referéncias & Imagem do seu original, torna-se, por sua vez, 0 Ponto de referéncia de outras imagens. O significado de uma imagem varia consoante o que se vé Imedatamiente ao’ lado ou imediatamente a seguir. A autoridade que Ihe 6 propria é distri- buida pelo contexto global em que surge. Como as obras de arte sio reprodutivels, podem, teorica- mente, ser usadas por qualquer pessoa. Todavia, quase sempre = em livros de arte, revistas, filmes, ou em molduras douradas reprodugées sdo ainda usadas para refor- Jue nada mudou, de que a arte, com a sua auto- fidade sem par'e sem contronto,jusifice a maloria das cutras formas de autoridade, de que a arte faz a desigualdade parecer Nobre e as hierarquias excitantes. Por exemplo, 0 concelto de heranga cultural nacional explora em toda a sua extensdo a auto- ridade da arte para glorificar o actual sistema social e as suas, ‘opgées. 2B Os processos de reprodugao sao usados politica e comer- claimente para disfargar ou negar o que a sua existéncia torna possivel. Mas, por vezes, as pessoas, individualmente, usam- -nas de outras forma. Os adultos e as criangas tém, por vezes, no quarto, ou na sala de estar, painéis onde pregam recortes de papel, cartas, fotogratias, reprodugdes de quadros, recortes de jornal, dese- inhos originais, postais, etc. Em cada painel, todas as imagens ertencem @ mesma linguagem e todas possuem, no conjunto, mais ou menos o mesmo valor, porque foram escolhidas de ‘modo extremamente pessoal, para condizerem com a experién- ‘cia de quem all mora ou para a exprimir. Logicamente, estes painéis deviam ser substitutos de museus. ‘Mas, com Isto, que queremos dizer? Comecemos, porem, Por esclarecer 0 que ndo desejamos dizer. Nao estamos a afirmar que nada resta jé para sentir perante uma obra de arte original além de uma sensagao de respeito por aver perdurado. © modo como normalmente se abordam as obras de arte originais — através de catélogos de museu, guias, de gravador, etc. ~ nao constitui a nica forma de as abordar. Quando a arte do passado deixar de ser encarada nostalgica- mente, as obras hao-de perder o seu cardcter de reliquias sa- gradas ~ embora nunca mais voltem a ser o que eram antes ra das reprodugdes. Nao estamos dizendo, contudo, que, hoje em dia, as obras de arte originals ndo sirvam para nada, ut LIT] OONYSYA U3H7TNW ~ ($291-2691) U33NEBA As pinturas originals sao silenciosas e quietas num sentido ‘em que a informacao nunca 0 & Mesmo uma reproducao pen- dendo de uma parede nao ¢, sob esse aspecto, compardvel, ja que, no original, o siléncio e a quietude impregnam 0 proprio, ‘material, a pintura, na qual se podem seguir os vestigios dos gestos imediatos do pintor. Isto tem como resultado diminulr a incia no tempo entre o pintar do quadro e a nossa acgéio de olhar Neste sentido especial, todas as pinturas s4o contempora- nneas. Dai a imediatidade do seu testemunho. O seu momento hist6rico esté literalmente aqui, 4 nossa frente. Cézanne fez uma observacdo semelhante, do ponto de vista do pintor: «Pas 3a um minuto na vida do mundo! Pinté-lo na sua realidade e esquecer tudo para isso! Tornar-se esse minuto, ser a chapa sensivel... dar a imagem do que vemos, esquecendo tudo o que ‘apareceu antes do nosso tempo...» Aquilo que fazemos desse instante pintado quando ele esta perante os nossos olhos de- ende do que esperamos da arte, e Isso, por sua vez, depende hoje em dia da experiéncia que ja tivemos do significado dos quadros através de reprodugés 35 ‘Também nao estamos a afirmar que a arte pode ser com- preendida espontaneamente. Nao afirmamos que recortar de uma revista a reproducao da cabeca de uma escultura arcaica grega, porque ola se liga a qualquer experiéncia pessoal, e es- petd-la num painel junto de outras imagens dispares, seja com- preender a fundo todo o significado dessa cabeca. A Ideia de inocéncia tem dois rostos. Quando se recusa par- ticipar numa conspiracdo, fica-se inocente dela. Contudo, estar inocente pode ser o mesmo que permanecer ignorante. A op¢éo nao é entre Inocéncia e conhecimento (ou entre o natural eo cultural), mas entre uma abordagem total da arte que procure lacioné-Ia com todos os aspectos da experiéncia @ a abord: gem esotérica de meia duzia de especialistas que sdo os bon- z08 da nostalgia de uma classe social em declinio. (Em declinio, do perante o proletariado, mas perante 0 novo poder das or- ‘ganizacdes econémicas e do Estado.) A verdadeira questo ¢ a Seguinte: a quem pertence efectivamente o significado da arte do passado? Aqueles que o podem aplicar na sua vida, ou a uma hierarquia cultural de especialistas de reliquias? ‘As artes visuais existiram sempre dentro de determinada coutada: originariamente, essa coutada era magica ou sagradi ‘Mas era também fisica: era 0 local, a caverna, 0 edificio onde, ou para o qual, o trabalho se destinava. A experiéncia da arte, que foi a principio a experiéncia do ritual, fol isolada do resto da vida ~ precisamente para poder exercer 0 seu poder sobre ela. Mais tarde, o Isolamento da arte tornou-se social. Entrou na cul- tura da classe dirigente, enquanto fisicamente era colocada em lugar a parte e isolada nos seus palacios e casas. Durante toda esta histéria, a autoridade da arte fol insepardvel da autoridade particular da propria coutada. (© que os modernos processos de reprodugao fizeram foi destruir a autoridade da arte e subtrai-la — ou melhor, fixar, as ‘suas imagens, a fim de as reproduzir - a qualquer coutada. Pel primeira vez, desde sempre, as imagens de arte tornaram-se ‘efémeras, ubiquas, insubstanciais, ao alcance de qualquer pes 0a, sem valor, livres. Rodeiam-nos, tal como nos rodeia a lin- ‘guagem. Entraram na corrente geral da vida, sobre a qual deixa- ram, em si proprias, de ter poder. % No entanto, ¢ porque os meios de reproducao sao usados ‘quase sempre para reforcar a iluséo de que nada mudou, muito poucas pessoas se apercebem do que acontece, compreenden- do-se assim que as massas permanecam cépticas e desinteres- sadas. A nao ser que, gracas as reproducées, essas massas Possam, agora, comecar a apreciar a arte, o que outrora 86 era possivel as minorias cultas. Se a nova linguagem de imagens fosse utllizada de outro modo, conferiria, pelo seu uso, uma nova forma de poder. Pode- riamos, através dela, iniciar a definicéo das nossas experién- clas, com maior rigor, em dreas onde as palavras néo so ade- quadas (ver comega antes das palavras). Nao 86 a experiénci Pessoal como também a experiéncia historica, essencial da ‘nossa relagao com o passado: ou, melhor dizendo, a experién- ‘cia de procurar dar um significado as nossas vidas, tentar com- Preender a histéria, da qual podemos tornar-nos os agentes dinamicos. A arte do passado ja ndo existe tal como existiu outrora. A sua autoridade perdeu-se. Surgiu, em seu lugar, uma linguagem de imagens. © que importa agora é saber quem usa essa lin- guagem.e com que fim. Esta questao prende-se com outras, com os direitos de autor de reprodugées, com a propriedade dos jornais e das edigdes de arte, com toda a orientacao geral das galerias de arte e dos museus. Tal como séo normalmente apresentadas, estas questoes parecem estritamente profissio- nais. Uma das ambicdes deste ensaio fol a de mostrar que o que esta em jogo é algo bastante mais vasto. Um povo ou uma cl ‘se que @ segregada do seu préprio passado é menos livre de escolher e agir como povo ou como classe que outros que ha: jam conseguido situar-se a si préprios na historia. € esta a ra- z40 ~ @ a Unica razdo — pela qual toda a arte do passado se tornou agora uma questéo politica. 9 ‘Muitas das ideias deste ensaio foram extraidas de um outro, escrito ha mais de quarenta anos pelo filésofo e critico alemao Walter Benjamin. 0 seu ensaio intitula-se A Obra de Arte na Era da Sua Repro- ‘dugao Mecdinica. © + Publesdo om lingua ingles na colecglo«llumintonss, Cape, Londres, 1970 Nas cidades em que vivemos, todos os dias vemos cente- ‘nas de imagens publicitarias. Nenhum outfo tipo de imagem ‘os aparece com tanta frequen Nunca houve uma forma de sociedade na histéria em que ‘se desse uma tal concentragao de imagens, uma tal densidade de mensagens visuais. Podemos fixar ou esquecer essas mensagens, mas capta- mo-las rapidamente e elas estimulam, ainda que por instantes, a iossa Imaginagao, quer através da memoria quer através da peranea. A imagem publicitaria pertence ao momento que passa. Vémo-la quando passamos uma pagina, quando viramos uma esquina, quando um carro passa por nés. Ou vémo-la na 133 televisdo, enquanto esperamos que acabe a pausa publicitar ‘As imagens public ‘também pertencem ao instante que intido em que necessitam ser constantemente reno- ‘sente. Referem-se muitas vezes ao passado e falam sempre do futuro. blico (o consumidor) e os frabricantes mais competentes -, Portanto, a economia nacional. E esta intimamente ligada a al gumas ideias sobre liberdade: liberdade de escolha do compra- dor, liberdade de iniciativa do fabricante. Os grandes painéis ‘08 anuncios luminosos das cidades do capitalismo sao os si- nals imediatamente visiveis do «Mundo Livre». Estamos de tal modo habituados a ser atraldos por essas, imagens que mal nos apercebemos do seu impacto total. Uma pessoa pode reparar numa imagem em particular por ela vir a0 encontro de algum interesse especial sentido. Mas aceitamos 0 sistema global das imagens publicitérias, como aceltamos os ‘elementos do clima. Por exemplo, 0 facto de essas imagens per- tencerem ao momento presente ¢ falarem do futuro produz um estranho efeito que se tornou tao familiar que mal o notamos. Habitualmente somos nés que passamos pela imagem —a pé, de automével, passando a pagina . porém, 6 um pouco diferente mas, mesmo neste caso, somos nés, em teorla, os agentes activos — podemos nao olhar, baixar o som, it fazer café. Todavia, e apesar disso, tem-se a impressao de que as imagens publicitérias estéo constantemente a passar por 6s, como comboios a caminho de um términus distante. So- ‘mos estéticos; elas séo dinamicas — até que se deita fora 0 jor- nal, o programa de televisio muda, ou o cartaz ¢ arrancado. A publicidade 6 normalmente explicada e justificada como um meio de competigao que, em ultima andlise, beneficia o pu- 134 Para muitas pessoas da Europa Ocidental, certas imagens do ocidente sintetizam aquilo que falta & Europa do Leste, A publicidade —diz-se — oferece a liberdade de opeao. E verdade que, em publicidade, um tipo de fabrico, uma marca, competem com outros, mas nao menos verdade que qualquer imagem publicitéria contirma e retorca todas as ou- tras. A publicidade nao 6 meramente um conjunto de mens: gens concorrentes; é em si propria uma linguagem constant mente ulilizada para fazer uma mesma proposta geral. Dentro da publicidade, oferece-se a oportunidade de escolher entre este ou aquele creme, este ou aquele automével, mas a publici- dade, como sistema, faz apenas uma proposta. Prope a cada um de nés que se transforme, que modifique a sua vida pela compra de mais qualquer coisa. Esta coisa mais ira tornar-nos - segundo essa proposta — idade convence-nos dessa transformacéo mos- trando-nos pessoas que aparentemente se modificaram e sao, portanto, invejavels. O estado de ser invejado é o que constitul a fascinacao, e a publicidade ¢ o processo de fabricar fascinio. 135 Importa nao confundir aqui publicidade com o prazer ou 08. beneficios que podem advir das coisas publicitadas. A publici- dade ¢ eficaz precisamente porque se radica na realidade, Ves- tuério, comida, automéveis, cosméticos, banhos, calor do sol, constituem coisas reais que sao, em si mesmas, muito aprecié- vels. A publicidade comega por trabalhar a partir de um apetite natural de prazer. Mas nao pode aferecer o abjecto real do pra~ zer endo h nenhum substituto convincente para um prazer, ‘nos termos desse mesmo prazer..Quanto mais persuasivamente 2 publicidade desperta o prazer de tomar banho num mar remo- ‘toe quente, mais o espectador comprador sente que esta a mi- Ihares de quilometros desse mar e mais remota Ihe parece a oportunidade de vir a merguihar nas suas aguas célidas. Por esta razao, a publicidade nunca pode realmente centrar-se no produto ou na oportunidade que propée ao comprador que ain- ‘da a nao tem na mao. A publicidade nunca é a celebragao de um prazer em si préprio. A publicidade trata sempre do futuro com- prador. Oferece-lhe uma imagem de si préprio tornada fascinan- te pelo produto ou pela oportunidade que tenta vender. A im ‘gem fé-lo invejoso daquilo que pode vir a ser. E no entanto, que existe de invejavel nessa criatura em que ele se pode transfor~ mar? A inveja que provocaré nos outros. A publicidade trata de relagées sociais, nao trata de objectos. As suas promessas nio 880 de prazer, so de felicidade: felicidade tal como é vista de fora, pelos outros. A felicidade de se ser desejado 6 aquilo a que se chama fascinio. Ser invejado 6 uma forma solitéria de afirmacao. Depende precisamente de néo compartilhar a nossa experiéncia com aqueles que nos invejam. Somos observados com interesse, ‘mas nao observamos com interesse — s¢ o fizéssemos, seria- mos menos invejéveis. Sob este aspecto, os invejaveis séo ‘como os burocratas: quanto mais impessoais, maior sera a ilu- (para eles e para os outros) do seu poder. O poder dos cinantes reside na sua suposta felicidade; 0 poder dos burocra- tas, na sua suposta autoridade. E esta a razao do aspecto au- sente, distante, de tantas imagens fascinantes. Elas olham para |é dos olhares de inveja que as observam. 137 _anDINaNOId (€881-Z691) LANVIN do principio de que a espectadora-compradora se inveja a si propria tal como se imiagina depois de comprar 0 produto. Parte-se do principio de que se imagina transformada pelo produto num objecto da inveja dos outros, uma inveja que fortificaré a sua consideracao por si propria. Ou, por outras pa- lavras: a imagem publicitéria retira-lhe o amor que sente por si, tal como é, e devolve-tho pelo preco do produto. Teré a linguagem da publicidade algo em comum com a da pintura @ dleo que dominou o modo de ver europeu durante quatro séculos, até a invengdo da fotografia? Este ¢ 0 tipo de pergunta que s6 necessita ser formulada para que a resposta se torne clara. Ha uma continuidade direc- a, 86 ocultada por motivos de prestigio cultural. Ao mesmo tempo, ¢ apesar da continuidade, existe uma diferenga profunda que nao é menos importante analisar. Em publicidade fazem-se muitas referéncias directas a Obras de arte do passado. Por vezes, a imagem néo passa de um «pastiche» descarado de uma pintura famos: 138 qu pinturas, para reforcar ou dar autoridade & sua propria men- ‘sagem. Multas vezes, a decoragao de montras utiliza quadros a éleo bem emoldurados. Qualquer obra de arte «citada» pela publicidade serve duas finalidades: a arte 6 um sinal de riqueza, pertence a boa vida, faz parte do mobiliério de que se supée estar rodeada a vida das pessoas ricas e belas. Ae Oe tra de os Couns Mas uma obra de arte também sugero autoridade cultural, ~ tuma torma de dignidade, senao de sabedoria, que esté acima de qualquer interesse material vulgar; uma pintura a Oleo pertence 40 patriménio cultural; 6 um recordatério daquilo que significa 2 ree um Europeu culto. Deste modo, a obra de arte cltada (esse o motivo porque ¢ tao util & publicidade) afirma ao mesmo: tempo duas colsas quase absolutamente contraditérias: denota | riqueza e espiritualidade; implica que a compra que propée 6, ‘20 mesmo tempo, um luxo e um valor cultural. De facto, a publi- aus a maioria dos historiadores de arte. Apropriou-se das relagoes ou implicagées entre a obra de arte oo espectador-proprietario © ‘com elas procura persuadir e linsojear o espectador-compra- dor. Porém, a continuidade entre a pintura a 6leo ¢ a publicidade vai bastante mais longe que a simples «citagao» de quadros. A Publicidade baseia-se, em larga medida, na linguagem da pintu- a a dleo. Usa a mesma vor para falar das mesmas coisas. Por vezes, as correspondéncias visuais sio tao proximas que 6 possivel fazer uma espécie de jogo do loto ~ colocando ima- gens quase idénticas, ou pormenores de imagens de uma mes- ma espécie, ao lado das imagens de outra, 139 uM Mas nao $6 a0 nivel da correspondéncia pictural exacta que a continuidade se afigura importante: 6-0 também ao nivel do. Conjunto de signos utilizados. ‘Compare-se as imagens publicitarias e picturais deste livro, ou veja-se uma revista ilustrada, ou desca-se uma rua comer- clal olhando as montras, e passem-se depois as paginas ilus- tradas do catélogo de um museu, e repare-se como mensagens ‘semelhantes sao transmitidas pelos dois media. Devia fazer-s6 ‘um estudo sistemético sobre este assunto. Aqui, limitar-nos- -emos a indicar alguns aspectos em que a semelhanca de meios de finalidades ¢ particularmente evidente. = 08 gestos dos modelos (manequins) e 0s das figuras mitologicas; =a ullizagao romantica da natureza (folhas caidas, &rvo- res, agua) para criar um espaco onde se pode reencontrar a ‘nostic ~ a atracrao exética e nostalgica do Mediterraneo; = as poses assumidas para indicar estoredtipos femininos: @ mae serena (madona); a secretéria emancipada (acti, amante do rei) a anfiia modelo (a esposa do espectador- -comprador); 0 objecto sexual (Vénus, ninfa surpreendida), etc; ~ a énfase muito especial dada as pornas das mulheres; = 08 materiais especialmente utlizados para conotar 0 luxo: metais gravados, peles, couro poli, etc, — as alludes © os enlaces de amantes, dispostos trontal- mente om beneficio do espectador; ~ omar, propondo uma mudanga de vida; ~ a atiude fisica dos homens, sugerindo riqueza e virlida~ de: = 0 tratamento da distancia pela perspectiva ~ sugetindo mistério; ~ a relagdo entre bebida e éxito. = ehomem como cavaleiro (cavalheiro) tornado motorsta Por que motivo depende tao fortemente a publicidade da linguagem visual da pintura a éle0? va A publicidade ¢ a cultura da sociedade de consumo. Propa- ga, através das imagens, a confianga da sociedade em si pro- ria. Ha varias razdes para que essas Imagens utilizem a ‘guagem da pintura a éleo. A pintura a dleo, antes de ser outra coisa, constituia a cele- bragao da propriedade privada. Como forma de arte, derivou do principio de que cada um 6 aquilo que tem, yw ustrinn vis nog vista NownO® 22'oanoan Sova Wor 938) ONINONY E um erro pensar-se que a publicidade suplantou a arte vi- ‘sual pés-énascentista europeia: ela 6 a ditima forma, moribun- A publicidade €, por esséncia, nostélgica. Tem de vender 0 passado ao futuro. Nao pode por si atingir o nivel das suas pré- prias exigéncias. E, assim, todas as suas referéncias a qualida- de sao obrigatoriamente retrospectivas e tradicionais. Falta -Ihe-ia credibilidade e nao inspiraria confianca se utilizasse uma linguagem estritamente contemporanea. 3 A publicidade necessita virar a seu favor a educagao tradi- clonal do espectador-comprador médio. O que este aprendeu escola sobre histéria, mitologia, poesia, pode ser utilizado para 0 fabrico de fascinio. Podem vender-se cigarros conotados com um rel, roupa interior associada a Esfinge, um novo mod Jo de automével relacionado com o estatuto social de uma casa Na linguagem da pintura a leo, estas vagas referéncias hist6ricas, poéticas ou morais, estio sempre presentes. O facto de serem imprecisas e, em ultima analise, sem significado 6 uma vantagem: nao convém que sejam inteligiveis, pois devem ‘ser simples reminiscéncias de licdes culturais semi-aprendidas. A publicidade transforma a historia em mitologia mas, para 0 ‘conseguir ¢om eficdcia, necesita de uma linguagem visual com dimensdes histéricas. we ftnn be Mas thenan, idan Pines} Ultimamente, um novo avango técnico velo facilitar a tradu- {go da linguagem da pintura a 6leo em «clichés» publicitérios. Foi a invencao, ha cerca de quinze anos, da fotografia a cores. Esta fotografia pode reproduzir a cor, a textura e a tangibilidade dos objectos como sé a pintura a dleo soubera fazé-lo. A foto- gratia a cores € para 0 espectador-comprador o que a pintura leo fora para o espectador-proprietério. Ambos os media utili- vat Ge ee eee eae eee S| zam meios semelhantes, poderosamente tacteis, de actuar so- bre a impressao que o espectador tem de adquirir a coisa real representada pela imagem. Em ambos os casos, a sua sensacado de quase poder tocar o que esté na imagem recorda-Ihe que pode possuir, ou possui, a coisa real, (ig91-2/9651) 26310 s0d09 Wo VLNOW VZaUNLYN Todavia, apesar desta continuldade de linguagem, a fungao da publicidade ¢ muito diferente da da pintura a dleo. A relagao do espectador-comprador com o mundo 6 muito diferente da do ‘espectador-proprietario. us A pintura a 6leo mostrava aquilo que o proprietério j4 usu- {fruia entre 0 que possula e no seu estilo de vida. Consolidava 0 sentido do seu proprio valor. Reforcava a sua visio de si pré- prio, tal como |é era. Comecava com factos, os factos da sua vida. As pinturas embelezavam um interior em que realmente vivia. © objectivo da publicidade 6 tornar 0 espectador marginal- ‘mente insatisfeito com a vida que tem. Nao com o modo de vida da sociedade em geral, mas com o seu. Sugere-Ihe que, ‘comprar que Ihe € proposto, a sua vida melhorara. Oferec -Ihe uma alternativa melhorada para aquilo que é. A pintura a 6leo ditigia-se a quem ganhava dinheiro no mercado. A publicidade dirige-se aqueles que constituem o ‘mercado, ao espectador-comprador que é também o produtor- -consumidor a partir do qual os lucros duplicam ~ primeiro ‘enquanto trabalhador, depois enquanto comprador. Os tnicos locais relativamente livres de publicidade sao os bairros mult ricos; 0 dinhelro 6 de quem ali mora e deles continuara a ser. us Toda a publicidade incide sobre a ansiedade, O resultado de tudo ¢ dinheiro; ter dinheiro € vencer a ansiedade. Alternativamente, a ansiedade em que a publicidade se baseia 6 0 receio de que, ndo tendo nada, nao se seja ninguém. Dinheiro @ vida. No no sentido de que, sem dinhelro, se ‘morre de fome. Nao no sentido de que o capital permite o poder de uma classe sobre a inteira existéncia de outra classe. Mas no ‘sentido de que o dinheiro é a garantia e a chave de toda a capa. cidade humana. O poder de gastar dinheiro 6 0, poder de viver. De acordo com os mitos da publicidade, os que nao possuem o poder de gastar dinheiro tornam-se literalmente homens sem rosto. Quem o tem, torna-se digno de ser amado. uw \has afferent kindof a A publicidade usa cada vez mais a sexualidade para vender toda a espécie de produtos e servicos. Mas esta sexualidade ‘do 6 livre, em si propria: 6 o simbolo de algo que se pressupoe ser mais vasto que ela: a boa vida, a vida em que se pode obter tudo 0 que se deseja. Poder comprar 6 0 mesmo que ser se: xualmente desojével; pode dar-se 0 caso de esta ser a mensa- gem explicita, como no antincio do Barclaycard, reproduzido acima. Normalmente é a mensagem implicita, ou séja: se se esta ‘em condic6es de comprar o produto em causa, é-se desejavel; ‘se no se pode compré-lo, 6.se menos desejével. Para a publicidade, o presente 6, por definicao, insatistat6- rio. A pintura a 6leo era considerada como um Inventario per- manente. Uma das satisfagdes que um quadro dava ao seu pro- rietario era o de poder pensar que ele daria a Imagem do seu presente aos seus descendentes vindouros. Assim, a pintura a 6leo era naturaimente pintada no presente do indicativo. O pit tor pintava o que tinha & sua frente, na realidade ou em imagi- nagao. A imagem publicitaria, que 6 efémera, s6 usa o futuro. «Com isto, voce seré desejavel.» «Neste ambiente, (9608 tornar-se-A0 felizes e prosperas.» v8 hn J trabathadora tende a prometer uma transformagao pessoal através da fungao.. do produto que quer vender (Gata Borrathelra), a publicidade dirigida & classe média promete a transtormagao Gas relagd socials atraves do ambiente geral criado por um conjunte de Produtos (Palacio Encantado)< A publicidade fala no futuro, mas, no entanto, a realizagao desse futuro 6 continuamente adiada. Como consegue entao a publicidade continuar a merecer credibilidade — ou a usufruir da redibilidade suticiente para exercer tanta influéncia? Continua fa té-la porque a veracidade da publicidade se afere, nao pel realizagdo das promessas que faz, mas pela correspondéncia entre as suas fantasias e as fantasias do espectador-compra- dor. 0 seu verdadeiro ponto de aplicagao nao é a realidade, ¢ 0 devanelo, 0 sonhar-acordado. Para o compreendermos melhor, regressemos & nocao de fascinio. © fascinio 6 uma invengéo moderna. No apogeu da piniura a 6leo ainda nao existia. As idelas de graciosidade, elegancia, autoridade, ligavam-se a algo aparentemente semelhante mas, na verdade, radicalmente diferente. 150 SNOGGIS YHOHNIS V~ (88z1-L221) HONOUORSNIV ‘A Senhora Siddons, vista por Gainsborough, nao é fascl- ante, pols nao é apresentada como invejével e, portanto, feliz. Pode ser considerada rica, bela, talentosa, afortunada. Mas essas qualidades pertencem-Ihe e foram reconhecidas como tais. Aquilo que nao depende inteiramente do facto de os ou- tros se quererem parecer com ela. Nao 6, pura e simplesmente, a criatura do desejo dos outros - 0 que é 0 caso, por exemplo, do modo como Andy Warhol apresenta Marilyn Monroe. JOUNOW NATIUVW— TOHEYM AGNY 0 fascinio nao pode existir sem que a inveja social pessoal constitua um sentimento vulgar e generalizado. A sociedade industrial, que caminhou para a democracia e depois parou a ‘meio caminho, é a sociedade ideal para gerar este tipo de emo- (96es. A procura da felicidade Individual foi considerada um di- Feito universal. No entanto, as condigdes socials existentes fa- zem 0 individuo sentir-se impotente. Vive na contradicao entre ‘aquilo que 6 e aquilo que gostaria de ser. E entéo, ou se torna plenamente consciente da contradi¢ao e das suas causas © adere & luta politica por uma democracia ampla, que envoive, entre outras coisas, 0 derrube do capitalismo, ou continua a viver continuamente sujeito a uma inveja que, associada ao seu sentimento de impoténcia, se dissolve no recurso ao devaneio, ao sonher-acordado. ‘Assim se podem compreender 0s motivos por que a publi cldade continua a merecer crédito. O fosso entre o que é e aqui- lo que gostaria de ser. Os dois fossos tornam-se um s6 e, em vvez de esse fosso Unico ser superado pela acco ou pela expe riéncia vivida, é preenchido por sonhos fascinante: © processo @ multas vezes reforcado pelas condi¢des de trabalho. As horas interminaveis de trabalho sem significado, do pre- sente, sao contrabalancadas por um futuro sonhado, em que a actividade imaginéria substitul a passividade do momento. No que ele ou ela sonham acordados, o trabalhador (trabalhadora) Passivo torna-se o consumidor activo. ser trabalhador inveja © ser consumidor. Nao ha dois sonhos iguais. Uns sao instantaneos, outros protongados. sonho & sempre préprio do sonhador. A publi- cidade nao fabrica 0 sonho. Tudo o que faz é dizer a cada um de Os que ainda ndo somos pessoas invejavels, mas que pod mos vir a sé-lo. A publicidade tem outra fungao social importante. 0 facto de essa fungao nao ter sido prevista como finalidade pelos que fazem e usam a publicidade em nada diminui o seu significado. A publicidade transforma o consumo num substituto da demo- cracia. A escolha do que cada um come (ou veste, ou gula) toma © lugar da opgao politica significativa. A publicidade ajuda a ‘compensar e a encobrir tudo 0 que ¢ antidemocratico na socie- dade. E também encobre o que se passa no resto do mundo. ‘A publicidade contribul para uma espécie de sistema fllosé- fico. Explica tudo nos seus proprios termos. Interpreta o mun- do. 153 © mundo inteiro torna-se uma espécie de palco para a rea- A publicidade consegue até transpor a revolucéo para os lidade da promessa publicitéria da bela vida. © mundo sorri- ‘seus préprios termos. -nos. Esté & nossa disposicao. E como todas as latitudes so imaginadas como estando a0 nosso dispor, todas as latitudes ‘840 mais ou menos a mesma coisa. De acordo com a publicidade, dos confitos. © contraste entre a interpretagao publicitéria do mundo e a ‘situagao real do mundo ¢ abissal, @ isso torna-se por vezes evi- dente nas revistas ilustradas da actualidade. Reproduzimos uma pagina de uma dessas revistas. 155 © choque de semethante contraste é consideravel, nao s6 coexisténcia dos dois mundos apresentados como também (0s apresenta um a par do outro, foi pe pelo cinismo da cultura q Pode argumentai-se que @ lustaposigéo das Imagens texto, as fotografias tiradas no Pé folograontradas, para o antinclo, a edicao da revi ta, o «layout» publicitario, a impressao de ambas, o facto de as paginas de aniincios e as paginas de noticiario nao poderem ‘ser coordenadas, tudo é produzido pela mesma cultura. 156 Nao 6, todavia, 0 choque moral do contraste que deve ser posto em relevo. Os préprios anunciantes levam esse choque fem consideracao. © Advorisers Wookly de 3 de Margo de 1972 informa que algumas agéncias de publicidade, conscientes ago- ra do perigo comercial dessas justaposicées infelizes nas revis- tas de actualidade, estéo decididas a usar imagens menos gri- tantes, com cores mais sombrias, mais vezes a preto ¢ branco que a cores. O que é preciso é tomar consciéncla do que esses Contrastes revelam sobre a natureza da publicidade. lade, por definico, nao hd acontecimentos, O seu ‘campo de accao estende-se tanto mais quanto nada esteja a acontecer. Para a publicidade, todos os acontecimentos real ‘so excepcionais e acontecem 6 a estranhos. Nas fotografias do Bangla Desh, os acontecimentos eram tragicos e longin- quos. Mas 0 contraste néo teria sido menos violento se tives- ‘sem acontecido mesmo ao pé da nossa porta. De resto, 0 con- traste ndo depende necessariamente do caracter tragico dos acontecimentos. Se sao tragicos, a sua tragédia desperta em 1n6s o sentido moral do contraste. No entanto, se os acontec!- ‘mentos fossem alegres e fotogratados de um modo directo e nao esteriotipado, o contraste seria igualmente grande. ‘A publicidade, situada num futuro continuamente adiado, exclui 0 presente e elimina portanto todo o devir, todo o desen- volvimento. Nela, a experiéncia 6 impossivel. Tudo o que acon- tece, acontece fora dela. © facto de a publicidade constituir um espago sem aconte- ‘cimentos seria 6bvio, se ela nao recorresse a uma linguagem ‘que faz da tangibilidade, em si propria, um acontecimento. Tudo ‘0 que a publicidade mostra esté ao alcance da nossa mao, & ‘espera de ser adquirido. A accao de comprar tomou 0 lugar de todas as outras aceées, o sentido da posse obliterou todos os ‘outros senti ‘A publicidade exerce uma enorme influéncia @ 6 um fené- meno politico de grande importancia. Mas a sua oferta 6 tio li- mitada quanto as suas referencias séo vastas. S6 reconhece 0 oder de compra. Todas as outras faculdades ou necessidades hhumanas se tornam subsidiérias deste poder. Todas as espe- rangas se resumem, se tornam homogéneas, se simpliticam, para se transformarem na promessa, intensa mas vaga, magica mas repetivel oferecida em toda e qualquer compra. Na cultura do capitalismo ja nao 6 possivel imaginar outra espécie de es- peranca, de satistacdo ou de prazer. 17 A publicidade ¢ a vida desta cultura — na medida em que, ‘sem publicidade, 0 capitalismo nao poderia sobreviver ~ e, a0 ‘mesmo tempo, o seu sonho. © capitalismo sobrevive forgando a maioria que explora a definir 0s seus proprios interesses com a maior mesquinhez possivel. Outrora, isso conseguia-se pela miséria generalizada. Hoje, nos paises desenvolvidos, esta a conseguir-se pela impo- ‘sigao dum falso critério do que é, ou nao desejavel. 198 3B om ac 3B Ba Ba BS ge gt Re 199

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