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ducagio se define como 0 conjunto dos processos envolvidos na socializaga0 dos individuos, correspondendo, portanto, a uma parte constitutiva de qualquer sistema cultural de um povo, en- globando mecanismos que visam 4 sua reprodugio, perpetuagao e/ou mudanga. Ao articular instituigdes, valores ¢ praticas, em integragio dindmica com outros sistemas sociais, como a economia, a politica, a religiao, a moral, os sistemas educacionais tém como referéncia basica 08 projetos sociais (idéias, valores, sentimentos, habitos etc.) que thes cabem realizar em espagos ¢ tempos sociais especificos. Assim, a educagao indigena refere-se aos processos préprios de trans- misao ¢ produgao dos conhecimentos dos povos indigenas, enquanto a educagao escolar indigena diz respeito aos processos de transmissio ¢ produgao dos conhecimentos nao-indigenas ¢ indigenas por meio da escola, que € uma instituigSo propria dos povos colonizadores. A edu- cago escolar indigena refere-se 4 escola apropriada pelos povos indi- genas para reforcar seus projetos socioculturais e abrir caminhos para © acesso a outros conhecimentos universais, necessarios e desejaveis, a fim de contribuirem com a capacidade de responder as novas demandas geradas a partir do contato com a sociedade global. © capitulo tera como objetivo trabalhar os processos préprios de educagio tradicional dos povos indigenas na relagio estabelecida com © processo histérico da educagao escolar incorporada por eles; 0 surgi- mento do movimento dos professores indigenas na luta pela educagio escolar indigena diferenciada; ¢ a situagao atual que impera nas aldeias da educagio escolar ¢ da educagio indigena. HG algum tempo atr4s, os povos indigenas do Brasil acreditavam que a educagao escolar era um meio exclusivo de aculturagao ¢ havia certa desconfianga e repulsa quanto a escolarizagio. Isto esté mudando, Dian- te das necessidades de um mundo cada vez mais globalizado, os indios julgam que a educagao escolar, quando apropriada por cles e direcionada para atender as suas necessidades atuais, pode ser um instrumento de for- talecimento das culturas e das identidades indigenas e um possivel canal de conquista da desejada cidadania, entendida como direito de acesso aos bens e aos valores materiais ¢ imateriais do mundo moderno. 129 Ainda existe no Brasil a idéia generalizada e errdnea de que os povos indigenas nao possuem nenhum tipo de educagao. Nada mais equivoca do, posto que os saberes ancestrais sio transmitidos oralmente de gera- 40 em geragao, permitindo a formasao de miisicos, pintores, artesdes, ceramistas ou cesteiros, além de todos saberem cultivar a terra ¢ a arte de cagar e pescar. Os pais ¢ os avds so os responséveis por transmitir aos seus filhos ou netos, desde a mais tena idade, a sabedoria aprendida de seus ancestrais. Assim, as criangas desde cedo vio aprendendo a assu- mir desafios ¢ responsabilidades que Ihes permitam inserit-se na vida so- cial e o fazem, principalmente, por meio da observacao, da experiéncia empirica ¢ da auto-reflexao proporcionadas por mitos, historias, festas, ccriménias ¢ rituais realizados para tal fim. Os bons exemplos dos pais, dos irmaos mais velhos dos lideres comunitérios s4o fundamentais para o desenvolvimento do carter, das atitudes, dos comportamentos, das virtudes das habilidades técnicas de uma pessoa, indispensaveis para a vida individual e a boa convivéncia social. Por esta razio, nio ha necessidade da figura e do papel do professor, na medida em que este se- ria interpretado como o resultado da in e da propria comunidade de cumprirem o seu papel social. apacidade dos pais, dos adultos Ao contrério do que muita gente pensa, os povos indigenas do Brasil continuam mantendo sua alteridade gragas a estratégias proprias de vi- véncia sociocultural, sendo a pratica pedagégica uma delas. As formas de educagao que desenvolvem thes permitem continuar a ser eles mesmos ¢ transmitir suas culturas através das geragGes. Subsiste uma variedade de povos indigenas com suas linguas e culturas; as vezes, sem suas linguas, mas com culturas e saberes préprios. A educagio praticada e vivenciada pelos povos indigenas possibilita que o modo de ser ¢ a cultura venham a ser reproduzidas pelas novas geraces, mas também dio a essas socieda~ des 0 poder de encarem com relativo sucesso situagdes novas, o que faz com que eles nao se mostrem “perdidos” diante de acontecimentos para cles inteiramente inéditos. A educagao indigena tradicional continua le- vando em conta essa alteridade a liberdade de o indio ser ele proprio — em que hi 0 propésito de uma educagao que visa A liberdade, ou seja, faz com que as pessoas ¢ as coletividades possam ser elas mesmas. 130 Cada povo indigena projeta ¢ deseja para si um tipo de alteridade, ‘© que se confunde com a constituigao da pessoa, a sua construgao e 0 seu ideal. © ideal de vida de um individuo tem a ver com 0 que é bom para cle e para o seu povo, Ser um bom xavante, um bom guarani, um bom baniwa é o objetivo que guia a agio pedagégica xavante, guarani ¢ baniwa. E1 dicional indigena integea, sobretudo, elementos relacionados entre si: 0 territério, a lingua, a economia ¢ o parentesco. Sio os quatro aspectos fundamentais da cultura integrada, De todos eles, 0 territério ea lin- gua sido os mais amplos ¢ complexos. O territério é sempre a refer © a base de existéncia, ¢ a lingua é a expressao dessa relagao. © modo como se vive esse sistema de relages caracteriza cada um dos povos conformidade com esse ideal, a pratica pedagégica tra- indigenas. A forma como se transmitem os conhecimentos acumulados sobre a vida e sobre o mundo, especialmente aos mais jovens, isto é a vida pedagégica. Uma maneira de compreender um pouco mais 0 processo educativo indigena (educagao indigena) é percorrer, ainda que de forma sucin- ta, 0 ciclo de vida de um indigena. Nele, 0 momentos criticos ou os momentos importantes — como a recepgio do nome, a “iniciagéo”, 0 nascimento do primeiro filho, a morte de um parente ou de um membro da comunidade — sio fortemente marcados por ages pedagégicas das quais participa quase toda a comunidade. 1. Avida antes do nascimento: a crianca desde que é concebida no ven- tre da mie é considerada uma béncio da vida, por isso, deve ser festejada, mas sobretudo deve ser celebrada por meio de um compromisso a ser estabelecido com ela pelos pais, pelos fami- liares ¢ pela comunidade. Este compromisso diz respeito & pro- tecdo e, principalmente, ao desenvolvimento integral da crianga até a sua vida adulta. O desenvolvimento integral refere-se 4 for: magio fisica, moral e espiritual da crianga. Durante a gravidez, os pais precisam evitar a pratica de varios comportamentos ¢ habitos proibidos para nao prejudicarem as atitudes e as virtudes da crianga apés o nascimento. Entre os Baniwa, por exemplo, os pais precisam acordar ¢ levantar de manh& bem cedo para tomarem banho antes que os outros da casa se levantem, a fim 131 132 de evitar que a crianga nasga fraca e cresga preguigosa. Durante toda a vida, os adultos nao podem discriminar nenhuma crianga ou pessoa deficiente, para que seus filhos nao nascam deficien- tes. E durante a gravider, eles tém que praticar a generosidade ¢ a caridade para evitarem que o filho nasga e cresga egoista, o que para os Baniwwa ¢ 0 pior comportamento social, ao lado da inve- ja. Assim, existem varios procedimentos praticos para estimular 6 desenvolvimento sadio da crianga no ventre da mie e para aju- dé-la a nascer preparada para encarar a vida da melhor maneira possivel, sendo portadora das condigdes fisicas, mentais, morais ¢ espirituais potencialmente ao seu alcance Nascimento: 0 nascimento de uma crianga é sempre um momento sagrado, rodeado de mistérios, rituais e ceriménias. Assim que a crianga nasce, ela é benzida pelo pajé para ser apresentada aos seres da natureza, seus novos pares na vida, para que nin- guém possa fazer mal a ela. Os pais ¢ os avés sao os responsdveis prioritérios para cuidar do desenvolvimento integral da crianga ¢ preparé-la para a vida adulta, o que inclui todos os ensina- mentos morais, espirituais ¢ as habilidades técnicas necessarias para ser um bom filho, um bom marido ou uma boa esposa no futuro, um bom membro da familia, da comunidade e do povo. A aprendizagem se dé prioritariamente por meio da observagio, da experimentagao ¢ da curiosidade de descobrir o mundo dos adultos. © bom exemplo dos pais, da familia e da comunidade € fundamental. As virtudes sao transmitidas por meio dos mi- tos que os pais e os demais adultos passam oralmente e, muitas vezes, ritualisticamente para as criangas. Sao eles que irdo orien- té-las para o resto de suas vidas e que mais tarde retransmitirao para os seus filhos e netos e assim por diante. Passagem da vida de crianca a vida adulta: os ritos de passagem ou de “iniciag40” sao espécies de colagio de grau, 0 m4ximo de capa- cidade de aprendizagem para a vida indigena. E 0 ponto supre- mo da experiéncia da vida como ela é e nao como é idealizada, aquela que é necessaria para a auto-realizagao individual e cole- tiva da pessoa. O rito € 0 momento em que o jovem demonstra que est preparado para assumir suas responsabilidades pesso- ais e como membro de uma coletividade. Em termos de carater e virtudes, o jovem precisa chegar maduro e completo, pois a partir daf dificilmente conseguirs mudar seus comportamentos ¢ atitudes. Habilidades técnicas so exigidas dos homens nos dominios basicos da arte de cagar, pescar, fazer roga, construir casa ¢ fabricar utensilios utilitérios, enquanto para as mulheres sao exigidos os dominios na prética de producao de alimentos, cuidar de criangas, fabricar artesanatos ¢ ter os hébitos de ge- nerosidade em servigos familiares e comunitarios. E ela quem comanda o patriménio doméstico, principalmente a reserva ali- mentar. Mas para chegar Id ha um longo processo preparatério que a familia ea comunidade tiveram que assumir e cumprir para ajudar a crianga e o jovem a alcangar o seu objetivo maximo: a liberdade de ser ele mesmo. Os ritos de passagem geralmente compreendem trés momentos relevantes: 0 primeiro refere-se aos, preparativos semanas antes da ceriménia, durante os quais os jovens iniciantes passam por duros testes de sobrevivéncia na selva, quando sao testadas as suas habilidades técnicas, as capa- cidades e as virtudes de paciéncia, de solidariedade e de carater em condigdes quase extremas de vida, depois de trés ou quatro dias de jejum e intensa atividade fisica. © segundo momento é 0 que principia o rito; nele, os jovens iniciantes so apresentados & comunidade e recebem longos conselhos e orientagdes dos adul- tos, geralmente acompanhados de um simbolismo que as vezes inclui leves autoflagelagdes, como surra ou comer pimenta brava ainda em estado de jejum. Logo em seguida, poderdo alimen- tar-se da comida preparada e benzida pelo pajé especialmente para eles. O terceiro momento é o ritual propriamente dito, que esta repleto de dangas, cantos, rezas, festas e outras atividades sociais, como casamentos. A partir dai, o jovem considerado adulto e est pronto para casar, ter filhos, cuidar de sua familia e contribuir para 0 desenvolvimento e 0 bem-estar da comunidade € de seu povo. Vida madura: outro momento importante na vida de um indio é a velhice. E 0 periodo em que os velhos tém a obrigacao de repas- sar todos 0s conhecimentos adquiridos ¢ acumulados durante toda a sua vida a seus filhos e netos. E 0 tempo em que os pajés € 08 sabios indigenas escolhem seus herdeiros, para os quais irio repassar os conhecimentos secretos ou sagrados que nao podem ser repassados A coletividade, para o seu proprio bem, por causa dos riscos e dos perigos que representariam se fossem do domi. nio de todos. Neste sentido, os velhos so muito importantes ¢, consegiientemente, muito queridos pelos filhos ¢ netos, nao sen- do necessério qualquer tipo de asilo para eles. Quando os velhos 133 decidem, por qualquer razio, ndo repassar os seus conhecimen- tos para as novas geragdes, esses conhecimentos podem desapa- recer, empobrecendo a riqueza cultural e as condigdes de vida do grupo. Os velhos séo os verdadeiros guardiées ¢ produtores de conhecimentos. Em situagdes em que ha alguma tragédia, como epidemia, e os mais velhos morrem em curto periodo de tempo, os descendentes, perdidos e sem perspectiva, decidem abando- nar seus territ6rios, suas culturas e se aliam aos outros grupos, como uma espécie de digspora transitéria © breve relato de como acontece © proceso de formagao na edu- cago tradicional de muitos povos indigenas no Brasil serve para iden- ionais ¢ aqueles da educacio escolar ofertada a eles pelo Estado brasileiro desde que tificar a diferenga entre os processos educativos tradi chegaram os primeiros portugueses a estas terras. A partir disso, nossa questo volta-se para uma pergunta importante: como ou até que ponto a escola conhece, respeita e valoriza na sua pratica politico-pedagdgica esse tipo de agio pedagégica tradicional? Ou ainda, como essas dife- rentes pedagogias se articulam ou se contrapéem na pritica escolar? © que se percebe é que na maioria dos casos a escola continua ignoran- do e sufocando as pedagogias indigenas e, quando isto acontece, a esco- la esta contribuindo para o enfraquecimento ou o desaparecimento das culturas ¢ dos préprios povos indigenas. Este sera o nosso propésito de aprofundamento daqui para frente, a partir de como os povos indigenas incorporam a nova instituigao ~ a escola — que vai se instalando em sua cultura e 0 que esperam dela. Uma vez. tratados os aspectos gerais dos processos educativos tra- dicionais, fica mais facil entender o porqué das permanentes criticas dos povos indigenas aos processos pedagégicos adotados pela escola formal, resumidas nas seguintes questdes: * O modelo de ensino das escolas indigenas reproduz o sistema escolar da sociedade nacional. » Normalmente, as diretrizes, os objetivos, os curriculos ¢ os pro- gramas sio inadequados A realidade das comunidades indigenas. ~ O material didatico-pedagégico utilizado é insuficiente ¢ inade- quado, prejudicando as ages educativas. 134 » Nao existe supervisio pedagégica adequada e eficaz nas escolas, ~+ As atividades educacionais nas escolas sio prejudicadas diante da dificuldade de fixar os professores nas comunidades, fato que se deve A auséncia de moradias dignas, transporte e alimentagao para os mesmos e falta de programas de formagao de professores indigenas locais. + O material didatico a alimentagio recebidos sao insuficientes ¢ ndo-convenientes ¢ o seu fornecimento nao segue uma progra- magao sistematica, * Devido & barreira lingitistica, os professores encontram dificul- dades no desenvolvimento de seus trabalhos didatico-pedagé- gicos e, conseqiientemente, o processo de alfabetizacao é pre- judicado. As criticas apontadas acima indicam de forma clara que atualmen- te a questao da escola passa a compor o cotidiano dos povos indige- nas do Brasil, sendo inclusive uma das suas principais preocupagées, presente nas suas assembléias ¢ nos encontros ligados sempre a luta mais ampla, como o direito e a garantia das terras. Podemos constatar que a conscigncia a respeito da necessidade de criar um modo préprio de fazer escola cada vez, mais se fortalece. Entra em cena o papel fun- damental dos professores indigenas, um dos principais envolvidos na busca de coneretizagio de processos escolares norteados pelas peda- gogias indigenas. Significa que seu trabalho s6 poder ser realizado com eficdcia segundo os ideais afirmados ¢ em uma proposta de escola realmente indigena. Isto s6 poder ser construido com a participagao efetiva de todos: professores, liderangas, alunos, comunidades, poder piblico ¢ assessorias. Mas esse ideal preconizado pelos povos indigenas nem sempre fica claro e é defendido, pelo menos aparentemente, por todos os indigenas, devido a fortes influéncias de outras formas de pensar e viver do mundo moderno. Por exemplo, ocorrem com freqiiéncia os casos de profes- sores indigenas, provenientes de setores mais jovens que, por diversas circunstancias, nao tiveram uma educagio tradicional e muitos foram escolarizados em ambientes de preconceitos e até de hostilidades contra 0s proprios costumes tradicionais, serem nomeados pelas comunidades 135 indigenas por razées politicas ou culturais. Eles nao se identificam com © modo de ser tradicional e parecem estar integrados ao sistema nacio: nal, mas sio indicados para atuarem como professores das comunida- des por serem filhos ou parentes das liderangas, numa opsao clara pela ligica do individualismo ou de grupos elitistas de poder que cada vez mais os afastam da realidade indigena. Foi assim que os famosos inter- natos do passado prepararam o individuo indigena mais para si do que para a comunidade, levando 0s jovens a abandono de suas comunida- des ¢ de suas culturas, Ainda hoje a escola é em muitos casos, a ponte a estrada que levam para individualismo. E_ ai acabam a alteridade a diferenga, na medida em que o indio ow a india, seres individuais, tornam-se um indio ou uma india, algo genérico, sem passado, presente nem futuro. Por outro lado, ocorre com maior freqiiéncia o contrario. Sio pro- fessores indigenas aqueles que viveram com consciéncia critica ¢ ativa os problemas de suas comunidades ou de seus povos, de tal modo que a escola tem sido o lugar em que se originaram movimentos de resistencia ¢ de reivindicagao de direitos sobre a terra contra a discriminagao ¢ a falta de respeito. Neste caso, a escola que se constréi serve para ser um espago de reafirma: autonomia ¢ alteridades. das identidades ¢ da construgao permanente de 4.1 Situagao da educacao escolar indigena no Brasil Segundo dados do Censo Escolar Indigena de 2005, divulgados pelo MEC em fevereiro de 2006, existem atualmente 2.324 escolas indige- nas de Ensino Fundamental e Médio funcionando, atendendo a 164 mil cestudantes indigenas. Dessas escolas, 72 oferecem 0 Ensino Médio, mas a grande maioria nao trabalha com os principios da educagio escolar indigena especifica ¢ diferenciada. Dos 164 mil estudantes indigenas que estdo no Ensino Fundamental e Médio, 63,8% estao entre a lea 4 série do Ensino Fundamental e apenas 2,9% cursam o Ensino Médio. Nessas escolas, trabalham aproximadamente 9.100 professores. Desses, 136 88% sao indigenas, Segundo estimativa da Fundagao Nacional do Indio (FUNAD), apresentada por ocasiéo do Seminario Nacional sobre Ensi- no Superior Indigena, organizado ¢ realizado em Brasilia pelo Museu Nacional/LACED em 2005, jé ultrapassa a ordem de 2.000 o mimero de estudantes indigenas que ingressaram no Ensino Superior. Em 2006, 86 na area de licenciaturas interculturais oferecidas pelas Universidades Puiblicas aos professores indigenas ha 1.068 estudantes, sendo que al- guns j4 concluiram 0 curso, como é 0 caso da primeira turma de 198 professores indigenas da Universidade Estadual de Mato Grosso que se formou em julho de 2006. Vejamos alguns dados mais detalhados sobre a oferta de educacio escolar aos povos indigenas no Brasil: ESCOLAS INDIGENAS SEGUNDO A ESFERA ADMINISTRATIVA Estee administativa Nimere de ecolas Porcentagem Eads 108 465% Muna 18 25% Particles 2 09% Total aw 100% (OM RELAGAO AOS ESTUDANTES INOIGENAS TEMOS 0 SEGUINTE QUADRO Modalidaes/ ives de ensine Namero de estudants, Edvaci fant 1st Sees rcs d asin Fundamental 10657 ‘ua itias sis do asin Fundamental MoI Easine Média 4s Eduaci de ves Aalos nae Eos Superior 2.000" Total 166518 * tad eid Dados relatives a estudantes indigenas no Ensino Superior sao abso- Iutamente precérios. Tudo indica que tanto 0 Ministério da Educagao quanto a FUNAI nao possuem dados mais concretos ¢ precisos sobre 0 137 assunto. Os cerca de 2.000 estudantes indigenas que jé ingressaram no Ensino Superior conformam uma estimativa bastante realista, que se haseia no fato de que em 2006 havia 1.068 professores indigenas cur- sando ou que jé haviam cursado Licenciaturas Interculturais Especificas oferecidas por universidades publicas, como mostra a tabela abaixo. -ALUNOS DE LICENCIATURAS INTERCULTURAIS Institugio N'de alunos Situagio 188 alunos formas Universidade Estadual de Mata Gresso~ UNEMAT 98 tunes fermad Universidade de Roraima — UFRR 180 Emandamento Universidade Federal de Minas Geras—UEMG vo Emandamena Universidade Estadual do Amazonas—UER 250 Emandamento Universidade de io Paulo US? 0 Emandamento Universidae Federal da Grande Bourados — UFGD Iriando Universidade Federal de Gis -UFGe Universidade Federal de Tocantins —UFT “ Inicando Total de alunos 1.068 Sabemos que mesmo antes do surgimento da primeira Licenciatura Intercultural, que foi a da UNEMAT em 2001, jé havia estudantes indi genas ingressados em diversos cursos regulares de universidades, como os estudantes indigenas do estado do Amazonas, que desde 1992 apro- veitaram o projeto pioneiro de interiorizagao daquela universidade para ingressarem nos cursos oferecidos nos campos instalados nos municipios do interior do estado. $6 no municipio de Sao Gabriel da Cachoeira (AM) mais de 500 estudantes indigenas ja cursaram ou estao cursando o Ex sino Superior, reforcado atualmente, nesses muni ios do interior, pela presenga da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) que também est oferecendo cursos especificos aos estudantes indigenas, além de vagas, também especificas, nos cursos regulares da capital, aderindo As politicas de ages afirmativas por meio do sistema de cotas. 138 DISTRIBUIGAO DOS ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL NAS ESCOLAS INDIGENAS PELO BRASIL Regito Estados Porcentagem Brasil Norte ere 299% Norte maps 196% Norte Amazonas 88 3026 Nore ars a3 si Nore Ronda 2480 1% Nowe Roraima or 89% Nowe Tocantins oy 245% Total Regido Norte 85.434 52.70% Nordeste Alagoas um 1.0886 Nordeste Bahia 6035, 368% Nordeste Cea 498 3.03% Nordeste Naranhio 11338 an Nordste Paraiba aan 248% Nordeste Pernambuco 357 Si Nordeste Sersipe I 009% Tota Regidw Nordeste 7751 Bas Cento-Oeste Gots a 004% Conto-Deste Mato Gras n1182 68% Cento-Deste Mato Grasse do Sul 4108 608 Total Reside Centro-Oeste ae 15459 Sudeste Esp Santo sa 036% Sudeste Minas Gerais 3.008 13% Sudeste Ride Janeiro m9 Ons Sudeste SioPaule m4 059% Total Regio Sudeste am Por sul Parané ate 15% sul RioGrande de Su 520 321% sul Santa tring 2008 12% Total Regido Sul om 593% TOTAL BRASIL 64.018 100% 139 Os dados na tabela da pagina anterior revelam que definitivamente 0s povos indigenas entraram na era da escolarizagao. O Ensino Funda- mental foi o que mais avangou, aquele que saltou de 117 mil alunos em 2002 para 164 mil em 2005 = 40% de crescimento apenas nos tiltimos trés anos. Apesar do mimero reduzido de escolas ¢ conseqiientemente de estudantes indigenas no Ensino Médio, os tiltimos dados revelam que é chegada a hora também do processo de universalizagao do Ensino Mi dio, 0 que ira pressionar por maior demanda do Ensino Superior. Entre 2002 ¢ 2005, houve um crescimento de 300% no niimero de escolas de Ensino Médio: de 18 escolas em 2002 para 72 em 2005. de Alunos 1 de Alunos (rescimente de em 2002 em 2005, Matricula Educate Bsica aman isa0r8 40% Os dados mostram a expansio da oferta do Ensino Fundamental principalmente na segunda etapa (de 5* a 8 série), 0 que indica uma possibilidade maior, a médio prazo, de garantir o Ensino Fundamental completo nas terras indigenas. Veja na tabela a seguir 0 crescimento do Ensino Fundamental. N'de Alunos Nde Alunos (rescimente de Cs ‘em2002 em 2005 Matra Primeirafrapa (de Pa sere) ase sass 261% Segunda Ftapa eee 68 mast S028 Total 99.066 nasa 300% ‘Mas o crescimento acentuado esta no Ensino Médio oferecido nas terras indigenas, em grande parte pela forte pressio das comunidades indigenas, uma vez que a demanda ¢ o déficit s40 muito acentuados e, por isso mesmo, este segmento de ensino s6 tende a crescer. 140 200 2005 Tara de Expansio de escolasindgenas com Ensino Mio « n 3005 de estudantesindigenas ofnsina Médo a7 ams 308 de esos indgeras ie am same em Eéucagio Basa Varios fatores contribuem para o crescente aumento ¢ expansio da oferta de educagao escolar aos povos indigenas em todos os niveis, tais como: “+ Taxa de crescimento populacional da maioria dos povos indige- nas no Brasil que se aproxima de 4,0%, quando a média nacio- nal é 1,4%. O crescimento demografico é um fator decisivo para aumento da demanda, principalmente quando a demanda re- primida é alta. “+ Como a maioria das terras indigenas em termos absolutos jé foi demarcada, caso da Amazénia Legal, as organizacées ¢ as comu- nidades indigenas passam a concentrar seus esforgos e suas lutas politicas em outras questdes relevantes para os seus interesses, como educagao, saiide ¢ auto-sustentagéo econdmica, pressio- nando o governo a dar respostas a estas ¢ a outras demandas. ~ Nos iltimos dez anos, foram formados ou estio em formagio, em cursos especificos de Magistério Indigena, cerca de 8.000 professores indigenas em quase todos os estados do Brasil. Esse novo contingente de atores e de liderangas contribui para mobi- lizar os povos indigenas, junto aos municipios e aos estados, na busca da implantagao de escolas nas suas comunidades. Desde a década de 1990 vem ocorrendo uma multiplicagao de organiza- 4gdes de professores indigenas em todas as regides do pais, ~ Diante da permanente pressao indigena, os governos munie! pais, estaduais eo federal tém procurado responder as deman das apresentadas, criando politicas de expansio da oferta da educagio escolar indigena. O grande aliado dos indios nessa luta a legislagao sobre a universalizagio do Ensino Fundamental em todo 0 pais, incluindo os povos indigenas. Um exemplo desse esforco por parte do governo brasileiro foi a criagao em 2003 da 141 Secretaria de Educagio Continuada, Alfabetizagao e Diversida- de (SECAD) na estrutura do MEC, a qual passou a desenvolver ages permanentes junto as secretarias estaduais e municipais de educagao ¢ a outras instituigdes que tém a responsabilidade pela oferta de ensino escolar aos povos indigenas. © avango quantitativo, pelos sistemas de ensino, da oferta de en- sino escolar nao tem sido acompanhado, porém, pela qualidade ¢ a especificidade que as comunidades ¢ os povos indigenas desejam, seja no que concerne A infra-estrutura ¢ ao material didatico, seja quanto ao assessoramento ¢ ao apoio técnico ¢ pedagdgico especificos para a formulagao e a implementagao de processos politico-pedagégicos requeridos pelos povos indigenas e garantidos pela Constituigao Fe- deral e por outras leis regulamentares do pais. Em grande medida, 0 crescimento da oferta, no primeiro momento, esta ligado a pressio permanente ¢ crescente dos povos indigenas, cada vex mais organiza- dos ¢ articulados, e pela obrigatoriedade imposta pelas leis instituidas nos iiltimos anos para todo o pais, como é 0 caso da universalizagio da educagao basica. Felizmente, na medida em que experiéneias locais bem-sucedidas vao acontecendo, alguns gestores de sistemas de ensino parecem cada vez mais sensiveis aos propésitos da educagao escolar indigena. Isto permite o surgimento de primeiras experiéncias inova- doras construidas a partir de parcerias entre as comunidades indige- nas ¢ os diferentes sistemas de ensino, em muitos casos, criando con- digdes politicas e operacionais para a efetividade do sonhado regime de colaboragao dos sistemas de ensino que visam atender as demandas indigenas voltadas para a educagio escolar. Os dados revelam importantes avangos obtidos nos iilsimos dez anos, mas também muitas coisas que ainda precisam ser feitas para de fato e de dircito garantir 0 acesso ¢ a permanéncia dos estudantes indigenas em todos os niveis de ensino, Por exemplo, a relagio entre o niimero de alunos indigenas nos dois segmentos do Ensino Fundamental é de 4,3, quando o valor médio para todo o pais é de 1,23. Esta relagao entre o Ensino Fundamental e 0 Ensino Médio é ainda muito maior: 5,1, ou seja, de cada cinco estudantes indigenas que chegam a concluir o Ensino 142 Fundamental, apenas um tem a possibilidade de cursar o Ensino Mé- dio. Deste modo, 0 mimero de estudantes indigenas no Ensino Médio ainda é muito reduzido, assim como nas séries finais do Ensino Funda- mental. Isto significa que centenas de jovens indigenas precisam deixar suas aldeias e migrar para as cidades, enfrentando iniimeras situagdes complicadas e graves riscos sociais em busca de niveis de escolarizagao mais avangados e que nao existem nas aldeias. As Organizagdes Indigenas espalhadas por todo o Brasil estimula- ram ¢ possibilitaram momentos de reflexao, discussao, formagao, troca de experiéncia ¢ avaliagao para os professores, as liderangas ¢ outros agentes envolvidos e interessados na educagao escolar indigena, através de encontros, cursos, assembléias ¢ outros eventos. Nos tiltimos anos, foram realizados grandes encontros de professores indigenas. A partir de 1994, o movimento indigena priorizou encontros locais para melhor articulagao dos professores das aldeias mais distantes ¢ para divulgar © novo processo em curso. Foram realizados cursos sobre Regimentos ¢ Curriculos. Também é importante registrar que o antigo Movimento dos Professores Indigenas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR), transformado atualmente em Conselho dos Professores Indigenas da Amazénia (COPIAM), desde 1988 vem se reunindo em encontros anu- ais para discutir os problemas comuns e tirar linhas gerais de acio ¢ reivindicag4o, procurando mudar a situasao das escolas indigenas na regio. Como parte desse trabalho, ajudou a elaborar e assume como pauta de luta os 15 pontos do documento “Declaragao de Principios”, {elaborado em 1991 durante o IV Encontro, em Manaus, e reafirmado em 1994 no VII Encontro, novamente em Manaus). ‘Transcrevemos a seguir a “Declaragao de Principios” do Movimento dos Professores Indigenas do Amazonas, Roraima e Acre, pois enten- demos que, embora tenha sido elaborada ha mais de uma década, ela continua como uma proposta de politica educacional indigena discuti- da ao longo de quatro anos por milhares de professores indigenas da regiio amazénica, a qual pode subsidiar ¢ fortalecer qualquer projeto de constituigao de escola indigena em todos os niveis de ensino, ainda inspirar novos projetos de escola indigena. 143, 144 0 " R B 4 As escolas indigenas deverao ter curriculos e regimentos espe- cificos, elaborados pelos professores indigenas, juntamente com suas comunidades, liderancas, organizacées e assessorias. As comunidades indigenas devem, juntamente com os professores as organizacies, indicar a direcao ¢ a supervisio das escolas. As escolas indigenas deverdo valorizar culturas, Iinguas e tradi- ges de seus povos. £ garantida aos professores, comunidades ¢ organizagdes indige- nas a participagdo paritéria em todas as instdncias - consultivas ¢ deliberativas — de érgaos piblicos governamentais responsdvcis pela educagao escolar indigena. E garantida aos professores indigenas uma formacao especifica, atividades de reciclagem e capacitagao periédica para o seu apri- moramento profissional. £ garantida a isonomia salarial entre professores indios ¢ nao- indios £ garantida a continuidade escolar em todos os nfveis aos alunos das escolas indigenas. As escolas indigenas deverao integrar a satide em seus curricu- los, promovendo a pesquisa da medicina indigena e o uso corre to dos medicamentos alopaticos. (© Estado deverd equipar as escolas com laboratorios, onde os alu nos possam ser treinados para desempenhar papel esclarecedor junto as comunidades no sentido de prevenir ¢ cuidar da satide As escolas indigenas serao criativas, promovendo o fortaleci- mento das artes como formas de expressio de seus povos. £ garantido o uso das linguas indigenas e dos processos proprios de aprendizagem nas escolas indigenas. As escolas indigenas deverao atuar junto as comunidades na de- fesa, na conservagao, na preservacao e na protecao de seus terri- térios, Nas escolas dos nao-indios sera corretamente tratada e veicula- da a histéria ¢ a cultura dos povos indigenas brasileiros, a fim de acabar com os preconceitos ¢ o racismo. Os municipios , os estados ¢ a Unido devem garantir a educa- cao escolar especifica as comunidades indigenas, reconhecendo oficialmente suas escolas indigenas de acordo com a Constitui- gio Federal. 15 Deve ser garantida uma Coordenagao Nacional de educagio es- colar indigena, interinstitucional, com a participagio paritéria de representantes dos professores indigenas © movimento indigena brasileiro reconhece que 0 processo de for- mulacao ¢ de execugio da pratica educacional no pais vem se apresen- tando de forma cada vez mais respeitosa em relagao as culturas ¢ a0s interesses dos povos indigenas, No entanto, considera que ainda é preci- so avangar, para que de fato tenhamos nao somente principios teéricos ¢ politicos socioculturalmente adequados mas, sobretudo, mecanismos administrativos ¢ financeiros que garantam efetivamente o dircito dos povos indigenas de desenvolverem processos politico-pedagégicos pré- prios e com autonomia. Os povos indigenas tém hoje uma nova cons- ciéncia sobre a sua realidade histérica e estao construindo o seu futuro com dignidade. A consciéncia das contradigdes ¢ das complexidades dos problemas ¢ dos desafios enfrentados é acrescentada aos conheci- mentos tradicionais, a necessidade de entender a dinamica da sociedade envolvente, assim como ter o dominio dos novos saberes que ajudem no encaminhamento das variadas situagdes que surjam, © movimento indigena, desde a década de 1980, tomou varias ini- ciativas, seja nas escolas ou comunidades, seja nas diversas instancias das organizages indigenas. Algumas linhas politicas ¢ pedagégicas tém norteado os debates ¢ as experiéncias de escolas inovadoras, as chamadas escolas indigenas especificas ¢ diferenciadas. Sao linhas po- liticas ligadas as questoes pedagégicas e culturais e que tém propiciado profundas reflexes sobre as experigncias em curso. Ha hoje em dia leis bastante favordveis a essas iniciativas, mas na pratica apresentam enormes distdncias, conflitos ¢ contradigdes a serem superados. Por exemplo, como construir nas escolas indigenas novos parametros que se contraponham a mais de cem anos de um modelo de sistema escolar que ndo tinha nada a ver com as pedagogias ¢ os métodos prprios de aprendizagem das diferentes culturas tradicionais? Ou como pensar ¢ implementar praticas educacionais que atendam aos projetos sociocul- turais dos povos indigenas, concorrentes com os modelos e as perspec tivas de projetos globais de escola ¢ de educagio homogeneamente co- 145 locados a servigo do mercado? Percebe-se que o ponto central ~ 0 mais importante ~ é justamente ter resgatado 0 conceito mais amplo de edu cacao — essa concepgao original de ligar a pratica educacional a pratica da vida. Em termos de futuro, essa perspectiva é vista como algo capaz de suprir as necessidades emergentes da realidade histérico-cultural dos povos indigenas do Brasil. Para enfrentar esse desafio, julgamos importante algumas reflexdes basicas ja trabalhadas por varios educadores e assessores indigenas ¢ pelo proprio movimento indigena brasileiro. O fato de o processo edu- cativo nas sociedades indigenas apresentar diferengas radicais quanto 4 chamada “educagao nacional” levou os colonizadores que aqui chega- ram a uma conclusio equivocada de que nao existia educagao indige- na, Numa viséo etnocéntrica, pressuponha-se que os indios nao tinham educacao, porque nao tinham as mesmas formas ¢ os mesmos modelos educacionais ocidentais. E com esse ponto de vista que historicamente se tém implantado 0s projetos escolares para os indios. Em outras pa- lavras, a escola e a alfabetizacao entram em cena como sinénimos de educasao, cultura e civilizago, como se os indios nao as tivessem. ‘Um dos pressupostos basicos para essa discussao é o entendimento e a afirmagao de que sempre houve formas préprias de educagao indigena que as suas pedagogias sio valores fundamentais que devem também orientar os trabalhos escolares. Entendemos educagao como todo 0 co- nhecimento que uma comunidade ou povo possui e que é de dominio de todos, transmitido de pais para filhos e necessario para se viver bem Neste sentido, edi do qual toda pessoa aprende a viver. Essa aprendizagem se da na famé- cacao nao é o mesmo que escola. £ 0 processo através lia, na comunidade e/ou no povo. A educagao escolar enquanto novo espago e termo educativo deve basear-s ¢ nos principios educativos ¢ nos métodos préprios de aprendizagem dos povos indigenas (conforme garante a Constituigao do Brasil), para entao acrescentar outros conhe- cimentos, também necessarios a vida atual. Um segundo pressuposto é de que a escola nao é 0 tinico lugar de aprendizado. Ela é uma maneira de organizar alguns tipos de conhe cimento para serem transmitidos as pessoas por um professor. Escola 146 nao é 0 prédio construido ou as carteiras dos alunos, sio os conhe- cimentos, os saberes. Também a comunidade possui a sua sabedoria para ser comunicada, transmitida. Vejamos alguns valores e exemplos de mecanismos de educagao tradicional dos povos indigenas mantidos e valorizados até hoje: + A familia ¢ a comunidade ou 0 povo sio os responsiveis pela educagio dos filhos. £ na familia que se aprende a vi um bom cagador, um bom pescador. “+ Aprende-se a fazer roca, plantar, fazer farinha “> Aprende-se a fazer canoa, cestarias. “> Aprende-se a cuidar da satide, benzer, curar doengas, conhecer plantas medicinais. “+ Aprende-se a geografia das matas, dos rios, das serras; a ma- temética ¢ a geometria para fazer canoas, remos, casas, rogas, caruri ete. “+ Nio existe sistema de reprodugio ou selegao, + Os conhecimentos especificos, como o dos pajés, esto a servigo © a0 aleance de todos. + Aprende-se a viver e a combater qualquer mal social, para que no haja na comunidade criangas drfas e abandonadas, pessoas passando fome, mendigos. ~ Alunos ¢ professores de escolas atuais ensinam novos conheci- mentos aos antigos pajés, mestres e caciques tradicionais e vice- E extremamente importante reconhecer que os povos indigenas ain da mantém vivas as suas formas de educagio tradicional, que podem ¢ devem contribuir para a formagio de uma politica e de uma pratica educacional adequadas, capazes de atenderem aos anseios, aos inte- s necessidades da realidade atual. Tais conhecimentos nao sio necessariamente incompativeis com os conhecimentos da escola moderna Um terceiro pressuposto inicial esté ligado & avaliagao de que a es- cola é hoje uma espécie de necessidade “pés-contato”, a qual tem sido assumida pelos indios, mesmo com todos os riscos e os resultados con traditdrios jé registrados ao longo da historia. A escola é, assim, neste 447 contexto, um lugar onde a relagao entre os conhecimentos tradicionais € 08 novos conhecimentos cientificos ¢ tecnolégicos deverao articular: se de forma equilibrada, além de ser uma possibilidade de informacio a respeito da sociedade nacional, facilitando o “diélogo intercultural” ¢ a construgio de relagdes igualitarias — fundamentadas no respeito, no reconhecimento ¢ na valorizagao das diferencas culturais — entre os povos indigenas, a sociedade ci inclusive a perspectiva apontada pelos “Novos Parametros Curriculares do MEC”, nos quais a questao da diversidade cultural figura entre os “temas transversais”. il e 0 Estado, Sabemos que esta é E desejavel que isto possa contribuir para o complexo processo de mudanga de mentalidade ¢ postura quanto as diferentes culturas dos povos que habitam e constituem 0 nosso pais: olhar a diferenga nao como um problema, mas como um valor, um enriquecimento da so- ciedade brasileira (um patriménio nacional). Nosso entendimento é de que a escola, um dos principais instrumentos usados durante a historia do contato para descaracterizar ¢ destruir as culturas indigenas, possa vir a ser um instrumental decisivo na reconstrugao e na afirmagao das identidades e dos projetos coletivos de vida Um tiltimo pressuposto é o esforgo de se projetar uma nova educagao escolar indigena realmente concretizada com a participagio ¢ a gestio direta dos principais interessados — os povos indigenas do Brasil. Essa participagio ¢ auto-gestio efetiva em todos os momentos do proces- so nao deve se ater a meros detalhes técnicos ou formais, mas sim & condigio e a garantia da realizagao, de forma adequada, da desejada educagao escolar indigena de qualidade. © desafio que se coloca é 0 de construir uma politica piblica do Estado articulada com 0 movimento indigena, seus interesses ¢ suas necessidades, exercitando assim o geren- ciamento democratico co-participativo. A educagio escolar oferecida aos povos indigenas durante séculos sempre teve como objetivo a integracao do indio & sociedade nacional, sem respeito as diferencas culturais ¢ lingtiisticas. Era uma educacio de branco, da cultura do branco para os indios. Em outras palavras, a escola servia para o branco ensinar ao indio a ser ¢ a viver como ele. 148 A educagio escolar em todos os niveis ¢ modalidades é uma necessi- dade ¢ um desejo atual dos povos indigenas. Essa busca cada vez mais ampla pela escolarizagio e por novas oportunidades de vida melhor tem promovido, em varias terras ¢ comunidades indigenas do Brasil, o éxo- do para as cidades, © que gera problemas sociais de toda ordem, além de reforgar o esquecimento da lingua materna e de outros aspectos da cultura indigena por parte dos jovens estudantes. Hi a necessidade de formulagio de cursos e de projetos especificos para indigenas que valorizem a sua cultura ¢ o seu conhecimento, sem- pre articulados ao conhecimento cientifico néo-indigena que permite 0 registro desses saberes por meio da produsao do material didatico, Esse material tem como base a realidade da regio ¢ deve estar vinculado a projetos que possam promover o desenvolvimento social, cultural, politico ¢ econémico das comunidades, apresentando alternativas sus- tentveis de sobrevivéncia e reforgando a identidade étnica ¢ cultural dos povos indigenas, Alunasindigenas Baniwa 149 4.2 0s povos indigenas e a escola A implantagao das primeiras escolas nas comunidades indigenas no Brasil € contempordnea & consolidagao do préprio empreendimento colonial. A dominagao politica dos povos nativos, a invasio de suas terras, a destruigao de suas riquezas ¢ a extingao de suas culturas tém sido desde o século XVI 0 resultado de praticas que sempre souberam aliar métodos de controle politico a algum tipo de atividade escolar civilizatéria, A educagao indigena no Brasil Coldnia foi promovida por missionarios, principalmente jesuitas, por delegagao explicita da Coroa Portuguesa, ¢ instituida por instrumentos oficiais, como as Cartas Ré- gias e os Regimentos. Assim, em todo aquele periodo, compreendido entre os séculos XVI e XVII, é praticamente impossivel separar a ativi dade escolar do projeto de catequese missionaria. Pouco a pouco, a Coroa comegou a diversificar suas parcerias, pas- sando o encargo da educagio escolar indigena a alguns fazendeiros ou mesmo moradores comuns de regides vizinhas aos indios. A introducio desses agentes “leigos” nio significou, contudo, a emergéncia de uma educagao indigena dissociada da catequese. A civilizagao e a conversao dos “gentios” (indios) - associadas & catequese — continuaram sendo explicitamente os objetivos da escola, Com 0 advento do Império, em 1822, o panorama da educagao escolar indigena, em seus aspectos gerais, permaneceu inalterado. As- sim, © Projeto Constitucional, elaborado logo apés a declaragio da Independéncia, propés explicitamente a criagao de “estabelecimentos para a Catechese ¢ civilizagao dos indios”. Em 1834, a competéncia da oferta da educago escolar indigena foi atribuida as Assembléias Provinciais, a fim de que fosse promovida cumulativamente com as Assembléias ¢ os Governos Gerais “a catechese ¢ a civilizagao do in- digena c o estabelecimento de coldnias”. Dessa forma permaneceu até 0 inicio do século XX. Em 1906, os assuntos indigenas, ¢ em particular a educagdo esco- lar indigena, passaram a ser atribuigdes do recém-criado Ministério da Agricultura e, em 1910, de um drgao especialmente dedicado 4 ques- 150 tao, o Servigo de Protecao ao Indio (SPI). Nesse novo quadro juridico- administrativo, surgem pouco a pouco as primeiras escolas indigenas mantidas pelo governo federal. Na década de 1930, 0 SPI passa do Mi- nisté io da Agricultura, onde foi criado, para o Ministério do Trabalho, Indistria e Comércio (1930), para o Ministério da Guerra (1934) e de la volta para o Ministério da Agricultura (1939), onde permanece até sua extingio nos anos 1960. ‘A Constituigao de 1934 foi a primeira que atribuiu poderes exclu- sivos da Unido para legislar sobre assuntos indigenas, consolidando um quadro administrative da educagao escolar indigena, que s6 vai ser significativamente alterado em 1991. Neste cendrio, as 66 escolas indi- genas organizadas pelo SPI até 1954, assim como as intimeras escolas missiondrias, passaram a representar, junto com as frentes de trabalho, os principais instrumentos institucionais dessa “incorporacao” prevista em lei, processo marcado pela negagao a diferenga cultural e pelo assi- milacionismo étnico, Convém assinalar que as escolas do SPI caracteri- zavam-se fundamentalmente por apresentarem curriculos e regimentos idénticos aos das escolas rurais, incorporando rudimentos de alfabeti- zacao em portugués, além de atividades profissionalizantes. As primeiras propostas de implantagao de um modelo de educagio bilingiie para os povos indigenas, ainda nos anos 1950, como influéncia da Conferéncia da UNESCO de 1951, foram consideradas inadequadas a realidade brasileira por técnicos do SPI, com base em argumentos que mais expressavam as deficiéncias do proprio érgao indigenista do que propriamente uma avaliagdo dos eventuais méritos das novas propos- tas. Um dos argumentos mais significativos era de que programas de educagao bilingiie poderiam colidir com os valores ¢ os propésitos da “incorporacéo dos indios 4 comunhio (lingiiistica) nacional”, consa~ grados na Lei. Este quadro passou a ter nos dltimos anos da década de 1950 um forte contraponto: a Convengao n° 107 da Organiza do Trabalho, de 26 de junho de 1957, que trata da protecao e da inte- gragio das populagées tribais e semitribais de paises independentes, incorporada ao cenério brasileiro apenas na década seguinte. Neste do- ‘0 Internacional 151 cumento, sio preconizados os novos parametros da educacio escolar indigena, incorporados a partir dos anos 1970 as agendas reivindicat6 rias das organizagées indigenistas ndo-governamentais e do movimento indigena, ¢ finalmente absorvidos pelo arcabougo juridico brasileiro a partir da Constituigao brasileira de 1988. Vale ressaltar alguns principios definidos pela OIT Convengao 107 da 1 A universalizagao do direito 4 educagao formal aos povos indf- genas (art. 21). 2 Acconsideragao de realidades sociais, econdmicas ¢ culturais es- pecificas e diferenciadas (art. 22). 3. A prescrigo de modelos de alfabetizacdo em lingua materna ¢ de educagao bilingiie (art. 23). 4 A incorporacao pelo ensino primario de conhecimentos gerais ¢ aptidées tornados necessarios pelo contato (art. 24) 5 O combate ao preconceito contra os povos indigenas nos diver- sos setores da comunidade nacional, através da adogao de medi das educativas (art. 25). 6 © reconhecimento oficial das Iinguas indigenas como instru- mentos de comunicagao com essas minorias (art. 26) Se, por um lado, é inegavel 0 avango permitido pela incorporagao da Convengao 107 da OIT na legislagao indigenista e, em particular, nos pardmetros juridicos da educacio escolar, por outro, nao se pode esquecer que 0 seu reconhecimento se da em 1966, em pleno regime mi litar e as vésperas de seu momento mais autoritério. Assim, em 1969, 0 Ato Institucional n’ 1 reafirma com todas as letras a necessidade de “in- corporagio dos silvicolas 4 comunhio nacional” (Art. 8). Nesse mesmo ano, o governo federal cria a Fundagao Nacional do {ndio (FUNAI), Sérgio sucessor do SPI, com a explicita missio de acelerar 0 processo de integragao dos indios Os artigos sobre a educagao escolar indigena no Estatuto do Indio, promulgado em 1973 sob a influéncia da convencéo 107/0IT na poli- tica indigenista, mencionam explicitamente a alfabetizagao dos indios “na lingua do grupo a que pertencem” (art. 49). No entanto, nada men- 152 cionam sobre a adaptagio dos programas educacionais as realidades sociais, econdmicas e culturais especificas de cada situagao, o que deixa implicita a idéia de um bilingtiismo meramente instrumental, sem ne- nhum interesse pela valorizagao das culturas indigenas. Com 0 fim do regime militar, novos dispositivos juridicos e adminis- trativos foram elaborados sobre a educagao escolar indigena, retoman- do cada vez mais os prineipios formulados pela Convensao 107 da OIT, tais como: Em primeiro lugar, convém evocar a Constituigao Federal de 1988 que, além do disposto no artigo 231 - que reconhece aos indios “...sua organizagio social, costumes, linguas, crencas e tradigdes, e os direitos origindrios sobre as terras que tradicio- nalmente ocupam...” ~ estabelece ainda que: Art. 210 § 2 - O Ensino Fundamental regular sera ministrado em lin- gua portuguesa, assegurada as comunidades indigenas também a utilizagao de suas linguas maternas ¢ processos préprios de aprendizagem. ant. 215 § 1-0 Estado protegerd as manifestagées das culturas popula- res, indigenas e afro-brasileiras, ¢ das de outros grupos partici- pantes do processo civilizatério nacional. Além desses dispositivos constitucionais, o cendrio atual é balizado pelos seguintes instrumentos: a) O Decreto n* 26 de 1991, que transfere da FUNAI para 0 Mi- nistério da Educagio e do Desporto (MEC) a responsabilidade de coordenagio das ages de educagao escolar indigena, ¢ aos estados ¢ municipios a sua execucao. b) As “Diretrizes para a Politica Nacional de Educagio Escolar In- digena” publicadas pelo MEC em 1994. 0 A Lei 9394 de 1996, Lei de Diretrizes ¢ Bases da Educagio Nacional. 4) Plano Nacional de Educagao (Lei 10.172/2001): Capitulo sobre Educagao Escolar Indigena. 153 €) Resolugao 03/99 do Conselho Nacional de Educagao. f) Criago em 2004 da Comissio Nacional de Educacao Escolar Indigena (CNEEI) vinculada ao Ministério da Educagao, com- posta por 10 representantes de organizagdes de professores indi genas, quatro representantes de organizagées indigenas regionais € a representacao indigena no Conselho Nacional de Educagio. 9) Decteto Presidencial 5.051 de 2004 que promulga a Convengao 169 da OTT, Por ser a LDB 0 instrumento juridico mais importante da educacio brasileira, vale destacar alguns dos seus aspectos relativos & educagao escolar indigena, o que reafirma, em suma, a diversidade sociocultu- ral e lingiiistica dos povos indigenas, garantindo a eles uma educagao pautada no respeito a seus valores, no dircito preservacao de suas identidades ¢ na garantia de acesso As informagdes ¢ aos conhecimen- tos valorizados pela sociedade nacional (Art. 78). Além disso, atribui 8 Unido o encargo do apoio técnico e financeiro a estados ¢ a munii pios para o desenvolvimento de agdes no campo da educagao escolar indigena, com a garantia de incorporacio de “curriculos e programas especificos” ¢ a publicagao sistemética de “material didético especifi- coe diferenciado (Art. 79). ‘Um dos efeitos imediatos desses novos instrumentos juridicos na esfe- ra administrativa corresponde A criagao, intensificada nos iltimos anos, de micleos, divisdes e conselhos estaduais nunicipais de educagao es colar indigena em todas as regides do pais, o que € um passo significati- vo. Neste sentido, pode-se afirmar que se os instrumentos & disposigio so inegavelmente mais adequados que os do passado, eles mereceriam ainda o aperfeigoamento nas garantias de controle e na participagio efetiva dos povos indigenas no planejamento, na execusao € na gestao dos novos programas de educagio escolar indigena. Ao contrério do quadro juridico marcado pela centralizas’o_ no Grgio indigenista federal, do financiamento ¢ da execugio das ages educacionais (SPI e FUNAI) ¢ do histérico subestabelecimento dessas responsabilidades a misses religiosas, os instrumentos institucionais 154 atuais definem um novo panorama da educagao escolar indigena. Nele, outros atores ¢ sujeitos institucionais, inclusive organizagies indigenas, entram em cena com fungées ¢ responsabilidades relevantes no desen- volvimento das agdes de educagao escolar junto as comunidades indi- genas do pais. O proceso de expansao da lingua portuguesa ¢ de refluxo ou mes mo abandono das linguas indigenas insere-se em um quadro mais ge- ral das relagdes de contato interétnico que, no caso brasileiro, com- binam mecanismos aparentemente contraditérios de assimilagao ¢ de exclusio. Como reagao a essa tendéncia emancipacionista dos indios na década de 1970, surgiram propostas educacionais, formuladas por organizagées nao-governamentais ¢ setores da academia, que propug- navam a apropriagao da escrita pelos povos indigenas nao s6 como estratégia de valorizagao ¢ conservacao de suas linguas, mas também como um imperativo nos processos de reafirmagao de suas identidades étnicas ¢ culturais. ‘Nos tltimos 25 anos, algumas experiéncias de implantagio de mode- los alternativos desenvolveram-se em diferentes regides do pais, consoli- dando um novo quadro educacional para as comunidades indigenas Os desafios atuais da educasZo indigena no Brasil giram em torno de duas grandes questes: a) implementagio de programas adequados baseados em metodologias especificas de aprendizagem, por meio de pesquisas e de acordo com os interesses e as demandas das comunidades € dos alunos, © que necessariamente inclui a capacitagao de recursos humanos b) garantias de autonomia dos projetos educacionais, escola- res ou nao, tendo em vista as caracteristicas ¢ as necessidades definidas pelos povos indigenas. Outras condigées minimas de protegao aos povos indigenas, como a busca e/ou a consolidagao de alternativas econdmicas que permitam © atendimento de demandas sociais basicas, como as de ordem alimen- tar, sanitdria, de geragao de renda, sdo necessrias para a efetividade dos principios de autonomia dos processos de educacio indigena. Sio precisos programas que incorporem a recuperagao de suas memérias hist6ricas ¢ a reafirmagao de suas identidades étnicas e culturais ¢ da 155 valorizagio de suas culturas, assim como a preservacio ambiental, 0 manejo de recursos naturais, a recuperagao de éreas degradas et O provimento da educagio intercultural as comunidades indigenas corresponde a um objetivo que nao se implantara adequadamente a nao ser que esteja associado a uma politica de investimento, capaz de ga- rantir a realizagdo de pesquisas, levantamentos, diagnésticos, materiais didaticos, programas de formagio ete. Evidentemente nao bastam adequados instrumentos juridicos e admi- nistrativos se nao forem garantidas as condigdes minimas de exeqiiibil dade para a efetivacao das conquistas, dentre as quais a de compreensio desses direitos por parte dos Poderes, principalmente o Judiciério. Em razio disso, persistem sérios problemas. Em sintese, 0 Brasil comega 0 século XXI com uma legislagao, em suas linhas gerais, sobre educagio escolar indigena avangada. Contu do, os efeitos sao ainda timidos no panorama atual das comunidades indigenas. 4.3 Educacao escolar indigena: avancos, desafios e possibilidades ‘A grande importdncia inicial da proposta de educasao escolar indi- gena diferenciada, com suas educagio intercultural ¢ educagio bilingite ou plurilingite foi ter trazido idéias e propostas concretas que alimenta ram 0 Animo, a motivagao e a esperanca dos professores ¢ das liderangas indigenas emergentes. As idéias serviram como valioso argumento para marcar posigao politica e uma razao necessria para capitanear 0 apoio dos povos e das comunidades indigenas em favor das lutas mais amplas do que aquelas que as emergentes organizagdes indigenas estavam de- senhando ¢ implementando, como a defesa da terra ¢ a (revalorizacao cultural. A proposta, portanto, ao lado de outras bandeiras de luta, como a defesa ¢ a garantia da terra, a defesa do meio ambiente, o desen- volvimento sustentavel e a satide indigena diferenciada, alimentaram o repert6rio da agenda politica interna ¢ externa do movimento indigena 156 contemporaneo. Os discursos foram bem-aceitos, principalmente pelo piiblico externo preocupado com o futuro da humanidade ameagado pelo desequi tantes aliados nessa luta. No ambito interno, a luta por ofertas de politicas piblicas diferen- ciadas somava-se, por um lado, ao processo maior de luta por reconhe- cimento étnico ¢ por uma cidadania diferenciada e, por outro lado, por uma necessidade de superagio do fracassado modelo tutelar do érgio indigenista oficial que, com o discurso ¢ a pratica assimilacionista ¢ paternalista, nao fora capaz de garantir o minimo de condigdes de so- brevivéncia as comunidades indigenas. rio ecolégico ~ os povos indigenas poderiam ser impor- 4.3.1 Professores indigenas como agentes politicos e educativos A proposta de educaso escolar diferenciada foi também fundamen- tal para o surgimento de um novo segmento estratégico do movimento indigena: o dos professores indigenas. Os nimeros atuais séo repre- sentativos desse avango. Ha 20 anos atrés, 0 ntimero de professores indigenas nao ultrapassava a marca dos 20% do total dos docentes que trabalhavam nas escolas implantadas em comunidades indigenas. Em 2005, esse namero subiu para 88% (Censo Escolar Indigena, 2005). Sao cerca de 9.100 professores, dos quais 8.800 sao professores indige nas atuando em suas préprias comunidades. A causa do crescimento nao pode ser creditada apenas aos investi- mentos piblicos na formagao dos professores, que passaram a acontecer por forca da lei,’ mas sim a toda uma luta de articulagao dos povos indi- genas visando cobrar ¢ exigir cada vex mais mudangas na organizagao [A Constituigda Federal de 198 obriga os municipios eos estados a aplicarem no minima 25% deo das as suas receitas em educago, ALeide Diretrzese Bases da Educagio (108) nstituivoFundo de Manutencéoe Desenvolvimento do Ensino Fundamental, que definiv um percentual minima a ser aplcado no Ensino Fundamental em cada estado e, quando isso nao for possvel, a Uni participa cama camplementagio necessiria para que o estado alcanceopercentual minimo fxado, 157 ena administragio das escolas, 0 que incluia a escolha dos professores ¢ seus dirigentes. De fato, a Lei de Diretrizes e Bases da Educagao bra sileira condicionou que os professores de todos os niveis e modalidades de ensino tivessem formagao em magistério superior para exercerem a funcao. Por conta disso, a Uniao, os estados ¢ os municipios passaram a investir também na formagao de professores indigenas em magistério secundario e superior. Atualmente, a maioria dos professores indigenas atuantes possui a formacio secundaria e muitos estio em fase de con- clusao da formasao superior. No ambito das organizagées c dos povos indigenas, a luta por uma educagao escolar indigena diferenciada representava a possibilidade de retomada do controle sobre a vida de suas comunidades, que a escola ¢ a igreja Ihes haviam roubado, e aos professores, a oportunidade de con- quistarem espaco social e politico na luta maior de suas comunidades ¢ de seus povos. Atualmente, os professores indigenas formam um impor- tante segmento de luta por direitos, como acontece com a Organizagio dos Professores Indigenas de Roraima (OPIR), que tem sido um braco forte do movimento indigena local na luta pela terra. 4.3.2 Escolas indigenas diferenciadas como projetos-piloto estratégicos A emergéncia do movimento articulado de professores indigenas aliado ao movimento maior dos povos indigenas criou condigdes para © surgimento das primeiras escolas indigenas diferenciadas, denomina- das escolas-piloto indigenas, S40 denominadas escolas-piloto por se tra- tarem de experiéncias inovadoras de iniciativa néo-governamental, ou seja, das proprias comunidades indigenas ¢ de suas assessorias. As expe- rigncias ainda sio em pequeno nimero, mas estio hoje espalhadas por todo o territ6rio brasileiro. Essas escolas 40 as primeiras que levam em consideragio a idéia central da educagio escolar indigena diferenciada: a de pensar e praticar os processos politico-pedagégicos a partir das realidades sécio-histéricas dos distintos povos. Sao, portanto, escolas 158 com projetos politico-pedagégicos préprios, capazes de atenderem as necessidades das comunidades especificas e com autonomia na gestao administrativa, politica e pedagégica. As escolas indigenas diferenciadas pautam suas ages ¢ estratégias de transmissio, producio ¢ reproducao de conhecimentos na proposta de possibilitar as coletividades indigenas a recuperagao de suas memérias historicas, a reafirmagao de suas identidades étnicas, a valorizagao de suas linguas, tradigdes e ciéncias, a defesa de seus territérios e outros direitos bésicos, além de thes dar acesso adequado as informagoes ¢ aos conhecimentos técnicos ¢ cientificos da sociedade global, necessé- rios & garantia e melhoria da vida pés-contato. As experiéncias levam em conta a necessidade da autogestéo de todo 0 processo escolar a ser conduzida pelos proprios povos indigenas. Nela, o papel da assessoria e das politicas piblicas resume-se a buscar apoio e a oferecer condi técnicas, financeiras e operacionais para a efetivagao dos projetos. Des- ta forma, as comunidades indigenas discutem, propéem ¢ desenvolvem seus projetos ¢ ideais de escola, levando em consideracao as pedagogias préprias ¢ os projetos coletivos de vida. Apesar de todas as dificuldades ¢ barreiras, algumas dessas escolas esti sendo aos poucos incorpo- radas pelos sistemas oficiais de educagao, o que nao esta sendo facil, por conta da esquizofrenia do sistema educacional do pais que, embora reconhega aos indios os direitos quanto aos seus processos particulares de aprend ¢ financeira para garantir esses direitos. zagem, nio criou nenhuma condigio administrativa, t nica 4.3.3 Ensino Basico © Ministério da Educagao reconhece que a ampliagao da oferta se deve em grande parte a demanda ¢ & pressio dos indios; a outra parte, 3 forga da lei que obrigou os estados ¢ os municipios a investirem na edu- cacao fundamental, incluindo os povos indigenas, através do Fundo de Manutengao ¢ Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF). £ verdade que houve uma melhora no investimento piblico, o que ampliou 159 substantivamente a oferta, © problema é que os investimentos nio aten- deram satisfatoriamente os reclamos dos custos financeiros necessarios aos propésitos didaticos e pedagégicos de uma educagio especifica ¢ diferenciada. Em termos de materiais didaticos, por exemplo, os investi- mentos foram destinados 4 aquisigao e A distribuigao de livros didaticos convencionais (voltados para o piblico urbano ou rural do pafs) houve pouca verba para a produgao de livros didaticos especificos, & excegao de algumas produgées nas escolas-piloto. Outro exemplo é 0 caso da merenda escolar, que continuou sob o controle exclusive dos municipios que mantém a pratica de aquisicio de alimentos industrializados, fora dos hébitos alimentares das criangas indigenas, quando poderiam com- prar a propria producio das comunidades locais, melhorando a quali- dade, respeitando os costumes ¢ os habitos alimentares, além de ser um investimento econmico importante na vida dessas comunidades. Em geral, as escolas de educacao bésica presentes nas comunidades indigenas enfrentam hoje profundas contradigdes ¢ ambigilidades, em grande medida por conta do modelo educacional seriado vigente no pais. O bilingiiismo, por exemplo, geralmente s6 é praticado nas pri- meiras quatro séries iniciais. Sao pouquissimas as escolas que traba- Tham o ensino bilingiie ou plurilingtie em todo o Ensino Fundamental. ‘A boa novidade por conta das escolas-piloto que estao se multiplicando a cada ano. que cada vez mais cresce esse mimero, principalmente © mesmo acontece com materiais didaticos proprios. JA é significati- vo 0 mimero de cartilhas de alfabetizagao, mas s40 pouquissimos os materiais didaticos que tratam de conhecimentos especificos, como as mitologias, as etnomatematicas, as etnociéneias, as etnogeografias, as etnohistorias ¢ outras especialidades que deveriam ser trabalhadas de forma articulada durante todo 0 ciclo do Ensino Fundamental. ‘As causas dessas dificuldades sao diversas, mas duas podem ter maior responsabilidade. A primeira delas é relativa ao proprio modelo de sis- tema educacional, que ainda condiciona certos principios, métodos ¢ contetidos universais para o estabelecimento de uma escola na comu- nidade, sem os quais a escola nao pode ser aprovada pelos Conselhos de Educagio, o que dificulta aos estudantes indigenas darem continui- 160 dade aos seus estudos. O modelo educacional brasileiro ainda coneebe a escola para os indios como instrumento de integrasao, de civilizagao linear e gradativa. Por isso, trabalha com a légica de séries como etapas cvolutivas ¢ seletivas. Os conteidos sao impostos como necessérios para a desindianizacao das criangas, dai o desinteresse pelos conhecimentos e valores ¢ pelas formas de vida indigena. A segunda causa é conseqiién- cia da primeira: a auséncia deliberada de recursos financeiros para a produgio de materiais didaticos proprios e especificos ¢ que passa pela necessidade de qualificagao adequada dos recursos humanos que atuam nas escolas indi cnas, principalmente os professores indigenas. © Ensino Médio é da competéncia dos estados, portanto, muito mais distante das possibilidades de pressio das comunidades indigenas. No atual sistema educacional brasileiro, 0 Ensino Médio é o inicio do pro- cesso seletivo excludente para qualquer cidadao brasileiro, indio e nio- indio. Embora seja necessario reconhecer 0 esforgo do governo em am- pliar a oferta no Ensino Médio, os ntimeros ainda continuam irrisérios diante das demandas indigenas. Mas o problema da oferta nao é 0 que mais preocupa os indios. O maior problema é a qualidade do ensino é oferecida. As escolas de Ensino Médio continuam sendo as princi- pais responsdveis pelo afastamento espacial e sociocultural dos jovens indigenas, em grande medida porque sio instaladas por pressio dos indios, sem nenhuma reflexao sobre seu papel social na vida presente ¢ futura das comunidades. As escolas seguem 4 risca, na maioria das ve- zes, 0 modelo urbano de para o mundo branco ¢ centrado exclusivamente nos conhecimentos dos brancos. muito comum ouvir dos estudantes indigenas de Ensino Médio que o Ensino Fundamental é 0 lugar onde se “estudam as cultu- ras indigenas” e o Ensino Médio é o lugar de “aprender conhecimentos importantes”. O que preocupa é que esta fase de ensino ¢ de vivéncia individual (adulta) representa um momento decisive na vida do jovem indigena, uma vez que o encaminharé para uma determinada perspec- tiva pessoal social. Aqui reside 0 problema. Convencionalmente, 0 Ensino Médio é visto como uma preparagao para 0 Ensino Superior ou para a vida profissional. Desta forma, para o jovem indigena, represen- insino Médio — disciplinar, profissionalizante 161 ta uma passagem da vida de aldeia (indigena, tradicional) para a vida nao-indigena (cidade, emprego, dinheiro etc.). ‘A impressio que se tem é de que enquanto o Ensino Fundamental é mais flexivel e aberto a mudangas necessarias para as comunidades in- digenas organizarem ¢ conduzirem seus processos de aprendizagem de acordo com seus horizontes socioculturais, o Ensino Médio é o diferen- cial na manutengao da hegemonia colonizadora da sociedade branca do- minante. Neste sentido, pode-se afirmar que as escolas de Ensino Médio, com raras excegdes, atuam no sentido inverso ao dos avangos conceituais ¢ metodolégicos alcangados no E tes interculturais, bilingiies e diferenciadas. Nao basta, portanto, apenas ampliar a oferta, mas melhorar substancialmente a qualidade do Ensi- no Médio, o que passa necessariamente pela gestao indigena das escolas para que clas sejam colocadas efetivamente a servigo do que precisam, do que Ihes interessa e de seus legitimos projetos socioculturais. \sino Fundamental através das verten- 4.3.4 Ensino Superior A ampliagio da oferta do Ensino Fundamental e do acesso ao Ensino Médio resultou no crescimento da demanda pelo Ensino Superior. Esti- ma-se atualmente mais de 2.000 estudantes indigenas nas universidades brasileiras (FUNAL, 2004). Isto representa 50% dos estudantes indige- nas do Ensino Médio e menos de 1,5% dos que ingressam anualmente no Ensino Fundamental. A ampliagio do acesso ao Ensino Superior teve inicio ainda na década de 1990, a partir das propostas de pol cas de ages afirmativas adotadas pelos governos, pelas instituigdes de ensino ¢ pelas iniciativas privadas. Algumas instituigées de Ensino Su- perior, como a Universidade Federal do Amazonas — UFAM, adotaram as chamadas po do aos indios a oportunidade de participar dos processos seletivos. No caso da UFAM, trata-se de abertura de pélos universitarios em alguns municipios estratégicos, em cujos espagos s4o oferecidos alguns cursos na modalidade de salas de extensio. icas de interiorizagao de ensino e pesquisa, permitin- 162 As primeiras experiéncias de ages afirmativas propriamente ditas envolvendo estudantes indigenas remontam ainda ao inicio da década de 1990, feitas por meio de convénios entre a FUNAT ¢ algumas uni- versidades piiblicas e privadas, como aquela que permitiu o ingresso de um grupo de estudantes indigenas na Pontificia Universidade Catélica de Goias (PUC da do milénio que as propostas mais abrangentes comegaram a ganhar fora e forma. Desde o inicio da década atual, a FUNAI vem oferecendo uma bolsa de estudos para estudantes indigenas de escolas particulares. Atualmente, esses estudantes estdo sendo aos poucos incorporados pe- las universidades piblicas, como acontece na Uni através das politicas de cotas ¢ das bolsas oficiais, como o PROUNI, a CAPES e as bolsas do CNPq. Paralelamente as iniciativas tomadas pelas instituigdes publicas, al- gumas instituigdes privadas também entraram na arena a fim de con- tribuir para a ampliacao do acesso de estudantes indigenas e negros a0 Ensino Superior. A Fundagao Ford, por exemplo, através do IFP (Inter- national Fellowship Program}, oferece desde 2001, no Brasil, 42 bolsas por ano para estudantes carentes para ingresso ¢ permanéncia no En- sino Superior, exclusivamente nos niveis de pés-graduagao (mestrado doutorado}. No Brasil, 10 estudantes indigenas j4 foram beneficiados pelo programa: nove bolsas foram para os cursos de mestrado e uma para o curso de doutorado. 30) no comego dessa década. Mas foi a partir da vira~ rsidade de Brasilia, Atualmente, a grande e polémica novidade quanto as agdes afirmati vas gira em torno da politica de cotas nas universidades brasileiras, En- quanto a discussio esta acontecendo na sociedade como um todo ¢ no Congresso Nacional em particular, a partir de um projeto de lei de au- toria do Poder Executivo que visa instituir 0 universidades piiblicas ¢ privadas jé se anteciparam e puseram em pré- tica as idéias de cotas, gerando tensas discussées nos meios politicos ¢ académicos. Essa resisténcia j4 era esperada, se considerarmos o secular sistema educacional brasileiro profundamente excludente, discrimina- dor e colonizador. A cultura politica académica sempre foi o baluarte do processo dominador ¢ colonizador das sociedades ocidentais euro- tema de cotas, algumas 163 péias, razo pela qual sempre mantiveram as portas das universidades cerradas para os povos colonizados. Dai a forte reagao ao sistema de cotas como possibilidade de ingresso de indios ¢ negeos. Foi assim desde © periodo medieval, quando os conhecimentos ficavam guardados a sete chaves com aqueles que detinham o poder terreno ¢ celestial, ou seja, a Igreja, e muito longe de qualquer possibilidade de acesso a eles pelos povos que pudessem ameagar a ordem das coisas. Nosso entendimento é de que a discussio da proposta de cotas nas universidades passa necessariamente por uma opsao politico-ideols- gica da sociedade brasileira, ou seja, que tipo de sociedade se quer: culturalmente rica ¢ plural, economicamente inclusiva e justa ¢ social- mente pacifica ¢ digna, ou culturalmente pobre e homogénea, econo- micamente excludente ¢ miseravel ¢ socialmente injusta, escravista e violenta. © grande né é que essa decisio teoricamente deveria ser da sociedade brasileira, mas na prética passa por uma minoria da clite que manipula a conscigncia da maioria, porque detém o poder politico ¢ econdmico todo o aparato instrumental & sua disposi¢a0, como os meios de comunicagao de massa, a tecnologia ¢ 0 proprio sistema educacional estabelecido. A esperanca é a de que, apesar do poder ma- nipulador das elites, a sociedade brasileira — representada por alguns politicos decentes e compromissados com o bem-cstar social de todos — consiga vencer o preconceito, o racismo, a intolerancia e a prepotén- cia de poucos. Sucedem nos debates dois conflitos de interesses quanto ao tema © primeiro diz. respeito A natureza politico-ideol6gica da proposta, ou seja, se a proposta é legal, se é desejavel ou nao. A recorréncia em rela- 40 & sua ilegalidade ou inconstitucionalidade, para mim, é apenas des- culpa esfarrapada para impedir a quebra dos privilégios das elites, pois a elaboragao ¢ a aprovacao das leis sio da competéncia da sociedade, que as instituem segundo sua vontade e decisio soberana. © segundo argumento contrdrio refere-se as oportunidades ¢ As condigdes iguais de acesso ao Ensino Superior para todos os brasileiros, o que também nao procede. Basta olhar 8 volta para perceber o quanto o sistema atual que abrange oportunidades ¢ condigées é injusto, desigual e excludente, 164 mesmo com a vigéncia da famigerada lei de direitos iguais que aparen- temente fundamenta os principios de seletividade universal dos vestibu lares universitdrios. O sistema de cotas tem exatamente o propésito de amenizar ¢ de corrigir, pelo menos em parte, a vergonhosa desigualdade ¢ injustiga das priticas tradicionais de selegao adotadas pelas universidades brasi- leiras. E absolutamente desigual ¢ injusto que estudantes indigenas de aldeias, negros das periferias das grandes cidades, que durante toda a vida vivenciaram as péssimas condigdes do ensino piblico, concorram aalgumas pouquissimas vagas nas uni que sempre estudaram nas melhores escolas privadas ou puiblicas e ain- da puderam contar com seletos cursos preparatorios especializados. ersidades com os filhos das clites Quanto a este primeiro aspecto, nao hé portanto meio-termo: ou se éa favor ou se é contra, carregando os seus respectivos conceitos, pre- conceitos e carga ideolégica. Ou se é favoravel maior democratiza~ 40 de acesso ao Ensino Superior, tendo o sistema de cotas como uma medida compensatéria da enorme divida historica do Brasil com os negros ¢ os indios que representam a metade de sua populagao, ¢ que formam segmentos sociais importantes na construgao da nagio brasi- leira, ou se é favoravel & continuidade da manutengao dos privilégios das classes dominantes. Sem a politica de cotas ou outras propostas reparadoras, muitos negros ¢ indios continuarao forsando entradas nas universidades, como tem sido até hoje, mas continuarao sendo in- cémodas minorias colonizadas. O grande barato do sistema de cotas é © valor simbélico que a proposta traz quanto ao reconhecimento por parte do Estado brasileiro da sua divida histérica para com os povos indigenas e com os negros. Este reconhecimento é imprescindivel para qualquer projeto de construgao de uma nagio brasileira efetivamente pluricultural e plurigtnica. As politicas de cotas séo, portanto, necessarias enquanto politica compensatéria, mas nao enquanto politica piblica permanente. A so- lugao definitiva para superar as desigualdades de condigdes ¢ oportuni- dades deve ser pautada por um servigo educacional de qualidade, sem privilégios, ao aleance de todo cidadao brasileiro e, sobretudo ¢ funda- 165 mentalmente, intercultural ¢ interétnico em todos os niveis de ensino. © certo mesmo seria ninguém ter de passar pelo constrangimento da peneira seletiva do vestibular. © Estado deveria disponibilizar vagas suficientes aos interessados, nos moldes em que isto acontece nas séries € nos niveis iniciais do ensino. E muito dificil explicar aos indios com argumentos plausiveis 0 porqué do processo sofrido de selesio para ingressar na universidade, quando isso ndo acontece no Ensino Funda- mental e no Médio. No caso especifico dos povos indigenas, é necessé- rio reconhecer efetivamente (na lei ¢ na convivéncia) os seus sistemas préprios de educagao, para que os alunos indigenas nao sejam penali- zados no acesso ao Ensino Médio ¢ ao Superior por terem freqiientado escolas diferenciadas em suas aldeias. Nas situagdes em que se aceitou o sistema de cotas, outras ques- tes operacionais ndo menos relevantes tém apimentado as discusses, principalmente quanto as formas de selegio de candidatos. Entre 2004 € 2005, por exemplo, ocorreram intensos ¢ acalorados debates entre antropélogos ¢ educadores em torno de uma experiéncia protagonizada pela Universidade de Brasilia que, ao instituir ¢ implementar o sistema de cotas, adotou critérios supostamente racistas para a identificagdo dos candidatos negros e indios. Nao queremos entrar no mérito cienti- fico da questo, por isso limitar-nos-emos aqui a abordar brevemente a dimensio politica do problema a partir do ponto de vista indigena. Nosso entendimento é de que, no caso particular dos povos indigenas, a definigao de critérios de identificagao passa pela concepg4o que se tem dos processos educativos desenvolvidos por eles. A formagao es- colar é entendida como um interesse ¢ um propésito pessoal, coletivo ou articulado? Se a considerarmos como projeto individual, é natural que critérios fisicos ou a autodeclaragao quanto a eles sejam utilizados, nenhuma comunidade ou povo indigena ir questionar isso, uma vez que nao Ihes interessa. Mas sc considerarmos que é possivel c legitimo trabalhar a educagao escolar em todos os niveis ¢ modalidades de en- sino como estratégia de um projeto sociopolitico do qual o individuo parte orginica, como nos parece que deveria ser, os critérios fisicos e a correspondente autodeclaragao tornam-se inadequados. Neste caso, as 166 coletividades (aldeias, comunidades, povos ¢ organizacées indigenas) deveriam ser as referéncias para a identificagao dos estudantes, com toda a complexidade que isso implica. Interessante neste caso é que nao ndios (mesmo com representagio indigena) que decidem so os nio: pelos indios, mas os préprios indios. Penso que o maior problema nao € 0 mais correto moral, cientifica ou tecnicamente, mas sim o mais le- gitimo. A decisio legitima das comunidades para identificarem ou até indicarem seus candidatos nao pressupde negar o papel das técnicas, as quais podem subsidiar qualificar os critérios de decisdes das coletivi- dades sem anularem a autonomia dos grupos. Para nds esse 6 0 ponto nevrdlgico quando tratamos de agdes afir- mativas. Elas esto voltadas para os individuos ou para os povos his- toricamente excluidos e oprimidos? Os individuos podem ter ou nao ter vinculo sociopolitico com as coletividades étnicas. Salientamos que ser muito mais fécil trabalhar com individuos indigenas dissociados de suas comunidades, pois isto atende exatamente 4 racionalidade indivi- dualizante do modelo educacional escolar tradicional-europen vigente. Temos a conviegao de que para os povos indigenas (enquanto coletivi- dades) nao interessa apenas a capacitagio de individuos, mas as respon- sabilidades desses individuos na vida das comunidades. Dai a necessi- dade de articulagio entre os interesses individuais, as fungdes sociais € as organizasées sociopoliticas dos povos. Experiéncias indicam que no caso dos povos indigenas os estudantes que sairam das aldeias para estudar com aval de suas comunidade, uma vez formados, voltaram ou continuaram trabalhando em sintonia ¢ a servigo de suas comunida- des de origem. Diferente daqueles que jé estavam nas cidades quando ingressaram nas escolas, uma vez que consideram 0 mérito como pes- soal, nao devendo nada a ninguém. sistemas de controle das comunidades indigenas por seus membros sto muito fortes ¢ costumam ser exercidos de diversas formas. Apesar de todas as contradigdes, 0 processo histérico de escolariza- 40 dos povos indigenas tornou-se uma das condigdes ¢ uma das causas da formagao da consciéncia de cidadania, na medida em que possibi litou © dominio dos cédigos basicos estruturantes da sociedade nao- £ bom lembrar que os complexos 167 indigena; a conseqiiente capacidade de reformulagao de estratégias de resisténcia e de promosao de culturas, valores e conhecimentos; a apro priagio de outros saberes titeis ¢ necessirios 4 melhoria das condigdes de vida. Isto prova que a escola pode ser um instrumento poderoso de afirmagao de identidades, de valores ¢ de conhecimentos indigenas. E este 0 desafio da proposta de educagao escolar indigena diferenciada. Assim, 0 aumento gradativo de investimentos financeiros em escolas indigenas ¢ © conseqiiente aumento de oferta, mesmo sem uma uni- dade orgamentéria especifica como acontece atualmente com a satide indigena, tém grande importancia e podem ser o diferencial positivo para o fortalecimento da luta dos povos indigenas por seus direitos. No entanto, ainda é necessario dar saltos gigantescos em investimentos financeiros para se alcangar 0 minimo necessario. Apenas para ilustrar, a satide indigena recebe investimentos anuais superiores a R$ 150 mi- Ihdes, enquanto para a educacao indigena esto previstos para 2006 cerca de R$ 25 milhdes. A proposta de educagio escolar indigena diferenciada vem cumprin- do a sua fungao, chamando a atengao da sociedade brasileira ¢ dos povos indigenas em particular para a necessidade de se repensar o papel da escola no passado, no presente € no futuro desses povos. O trata- mento especifico ¢ diferenciado continuard a ser uma luta primordial do movimento indigena no ambito das politicas piblicas, como condi de efetividade da pluriculturalidade do Estado brasileiro, tendo como perspectiva a instauragao de uma cidadania diferenciada ou cidadania no plural. Esta deve ser considerada como instrumento de sobrevivén- cia dos indios, uma vez que o futuro promissor pés-contato depende da capacidade de instrumentalizagao politica do direito a ela, a escola devendo assumir esta fungio social. Nao obstante, no ambito da educagao, a proposta diferenciada tor- nou-se carregada ideologicamente de preconccitos ¢ manipulagées ¢ vem mostrando sinais de decadéncia semantica e simbélica. Este des- gaste esta relacionado, em grande medida, aos limites impostos pela po- litica oficial que tem permanentemente se negado a apoiar ¢ a oferecer as condigdes de sua realizacao. De outro lado, anti-indigenas de plantio 168 propositadamente a carregaram de idéias ora exéticas ora de separatis- mo étnico e cultural (isolamento cultural, regresso ao passado ete.). E necessario, pois, pensar novas propostas que déem conta dos anseios indigenas ¢ que nos realimentem na luta por uma educagao menos dis- criminatéria, colonizadora ¢ mais articulada interculturalmente com os diferentes mundos em que vivem os povos indigenas contempordneos. ‘Um novo sistema educacional pautado nos pressupostos da inter- culturalidade e da plurietnicidade se faz urgente para superar os atuais pontos de estrangulamento do processo de educagao escolar indigena, quais sejam: auséncia de mecanismos administrativos/burocraticos para a implementagao de escolas indigenas autonomas e diferenciadas e auséncia de recursos financeiros orcamentarios especificos destinados & educagao escolar indigena (formagao adequada de recursos humanos, contratagao de assessorias especificas e qualificadas, producao de mate- riais didticos também especificos, construgao ¢ manutengao das esco- las). No campo politico-administrativo, é necessario definir com maior clareza as responsabilidades oficiais pela educasio escolar indigena ¢ as diretrizes ¢ parametros politico-pedagégicos a serem seguidos por todas as esferas da administragéo publica. Nao da para cada instituigio fazer o que quer e como quer. Se a diretriz.é possibilitar autonomia de gestao das escolas indigenas pelas préprias comunidades indigenas, por que estados, como 0 do Amazonas, insistem em continuar entregando aos missionarios brancos o gerenciamento das escolas indigenas? 4.8 Aciénciae os conhecimentos tradicionais Os povos indigenas do Brasil possuem uma longa historia que se es- tende por muitos milhares de anos antes da conquista portuguesa, 0 que fax com que eles tenham um conhecimento genuino de sua realidade, ‘© que lhes possibilitou viverem ¢ desenvolverem civilizagdes milenares equivalentes a qualquer outra civilizagio humana. Os saberes indigenas respondem as suas necessidades e desejos. Suas crengas, valores, tecno logias etc. provém de um conhecimento comunitério pratico e profundo 169 gerado a partir de milhares de anos de observagGes e experiéncias empi- ricas que sto compartilhadas e orientadas para garantir a manutengio de um modo de vida especifico. Esta constatagao é importante para desconstruir a idéia preconceitu- osa de que os indios sio incapazes de assegurar a sua propria sobrevi- véncia e, por isso, precisam dos brancos para ensiné-los a viver. E ébvio que os conhecimentos cientificos ¢ tecnologicos da sociedade moderna so importantes ¢ desejéveis para aperfeigoar suas condigées de vida, como é 0 desejo de toda a sociedade humana, Mas isso nao significa que sem cles os indios nao possam se manter. Como se explicaria entao 0 desenvolvimento de centenas de complexas civilizagdes autéctones no continente americano milhares de anos antes da chegada dos europeus? Se alguns povos indigenas na atualidade de fato passaram a depender da tutela assistencial do Estado para sobreviver, é porque foram condu- zidos a essa situagao pelo processo violento de colonizagio, principal- mente pela expropriacao de seus territérios ¢ saberes e suas culturas. Os principais saberes indigenas esto ligados 4 percepgao ¢ A com- preensao que eles tém da natureza, e se manifestam no trabalho, nos ritos, nas festas, na arte, na medicina, nas construgdes das casas, na comida, na bebida e até na lingua, que tem sempre um significado cos- molégico primordial. Apesar da alta consciéncia indigena e das leis mais favoréveis & pro- tecdo dos conhecimentos tradicionais, muitos saberes estio desapare- cendo diante da pressao da cultura dominante e da globalizagao. Os povos indigenas nao so passivos. A meméria tradicional é sempre ca- paz de agregar informacao nova. Por exemplo, uma atitude diferente converte os rituais antes sagrados ¢ restritos a certos grupos sociais em festas abertas para todos. Torna-se evidente a diferenca entre as vi- sdes de mundo e de vida que orientam os povos indigenas ¢ aquela dos brancos ocidentais (médicos, astronautas, religiosos etc.). Elas produ- zem pressupostos de racionalidades e lgicas diversos que constituem os conhecimentos. Podemos concluir que cada cultura tem forma prépria de organizar, produzir, transmitir e aplicar conhecimentos — conheci mentos sempre no plural. 170 Os povos indigenas organizam seus saberes a partir da cosmologia ancestral que garante e sustenta a possibilidade de vida. A base primor dial é a natureza/mundo. £ a cosmologia que estabelece os principios norteadores ¢ os pressupostos basicos da organizagao social, politica, econdmica ¢ religiosa. As virtudes ¢ os valores sio definidos desde a criagao do mundo, mas cabe ao homem produzir as condigées reais, efetivas. Deste modo, os conhecimentos produzidos ¢ transmitidos re- ecbem esta fungio social e se constituem em um pilar do poder politico, portanto, objeto de disputa ¢ manipulagao de grupos ¢ individuos, 0 que acaba criando status de poder diferenciado e uma escala de valores subjetivos. Os conhecimentos indigenas sao essencialmente subjetivos ¢ empiricos, por isso mesmo livres de métodos e dogmas fechados ¢ ab- solutos, e se garantem na efetividade prética e nos resultados concretos que acontecem no seu cotidiano. Nao importa como func! sua eficdcia. Uma das caracteristicas da ciéncia indigena diz respeito ao acesso aos conhecimentos que sio ptiblicos ¢ esto ao alcance de todos, embo- ra scjam respeitadas as competéncias ¢ as aptiddes individuais ¢ grupais em certas especializagées especificas, como aquelas de dominio do pajé. A diversidade de conhecimentos é condigao de sociabilidade ¢ a sua seletividade (o que é piiblico e o que é secreto) é forma de eficacia. Por- tanto, os critérios de confiabilidade dos conhecimentos variam, porque © seu valor é relativo. Além disso, eles esto baseados nas dimensdes do sna, importa espirito e do corpo, sem a primazia de uma ou de outra. A natureza, ¢ nao o homem, é a fonte de todo 0 conhecimento, Cabe ao homem des- vendé-la, compreendé-la, aceité-la e contemplé-la © método preferencial das ciéncias indigenas é a visio da totali- dade do mundo. 0 individuo deve buscar compreender e conhecer a0 maximo 0 funcionamento da natureza, nao para dominé-la ¢ contro- lila, mas para seguir e respeitar sua légica, seus limites ¢ potencia- lidades em beneficio de sua propria vida enquanto ser preferencial ¢ privilegiado na criagio. © saber é mais do que querer criar ou saber dizer, é saber fazer, baseado em conhecimentos acumulados no decor rer da vida. 1

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