You are on page 1of 36
JOSE ALBERTO DOS REIS: OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL DE INSPIRACAO INDIVIDUALISTA E LIBERAL (*) Por Dr. Luis Correia de Mendonca Apesar de ter sido durante 45 anos um dos “mais preclaros ornamentos” (Beleza da Santos) da Faculdade de Direito da Uni- versidade de Coimbra, durante 12 anos Presidente da Assembleia Nacional e vogal vitalicio do Conselho de Estado desde 1933, de ter contribuido, como nenhum outro autor, para a formagao do nosso direito processual civil, de a sua extensa obra (') continuar a ser de consulta quase obrigatéria na prdtica forense, a verdade é que a figura de José Alberto dos Reis (1.11 .1875-2.9.1955) nao foi ainda objecto de um estudo adequado. (*) () Agradego ao Sr. Prof. Dr. Miguel Teixeira de Sousa a atengao que dispensou a0 presente trabalho,ndo sendo, naturalmente, da sua responsabilidade as conclusdes a que se chega neste artigo. () A bibliografia de Alberto dos Reis encontra-se organizada por Mario dos Reis Faria no Suplemento ao Boletim de Faculdade de Direito de Coimbra, vol. XV (1961), — CXXXII. ©) Beleza dos Santos, seu aluno, colega e amigo, debruca-se por duas vezes sobre a personalidade de Alberto dos Reis, evidenciando a faceta de ensinante (“Discurso”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XX1 (1945): 587-591; “Aspectos da personalidade do Doutor José Alberto dos Reis", Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XV, (1961 ) — VI-XD). Adelino de Palma Carlos dedica-Ihe duas paginas de homenagem (“José Alberto dos Reis”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XI (1957): 8), nao sendo mais significativa a do Sr. Desembargador Campos Carvalho em discurso proferido no dia 1188 LUIS CORREIA DE MENDONCA Nao € meu propésito integrar esta lacuna da historiografia juridica nacional. Pretendo apenas reconstituir 0 itinerdrio intelectual do Prof. Alberto dos Reis num perfodo que abrange os seus anos de forma- do numa escola onde prevalecia o método exegético e se estudava © processo segundo um modelo duelistico ¢ que se estende até ao final da monarquia parlamentar. Alberto dos Reis, nos seus primeiros anos de magistério, alia uma visio publicista do processo ao naturalismo juridico, corrente de pensamento em que se integrava. Os esquemas conceptuais, que comega a construir nesse perfodo e que transmitiu a distintos alunos como Oliveira Salazar e Manuel Rodrigues, antecipavam j4, em nao poucos pontos, 0 idedrio do Estado Novo. Quando este, pela mao precisamente de Manuel Rodrigues, 0 chamou a reformar o processo civil, mais nao fez do que pedir-Ihe 1.11.1955 (“José Alberto dos Reis”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol, XXXII (1956): 410). Barbosa de Magalhaes (“Discurso de homenagem ao Prof. José Alberto dos Reis”, 231-236), Ant6mio César Abranches (“Discurso de homenagem ao Prof. José Alberto dos Reis", 237-240), Campos Carvalho (“Discurso de homenagem ao Prof. José Alberto dos Reis”, 241-242) e Antonio. Batoque (“O magistério de José Alberto dos Reis”, 243-252), associaram-se na revista Jornal do Faro, ano 19.°, 1955, em preito ao Mestre falecido. A. Varela evocou “a frdgil mas veneranda figura do professor que fez do ensino um sacerdécio " na ceriménia, que teve lugar em 17-12-1961, a propésto da inauguracdo do Palécio da Justiga de Celorico da Beira e consistiu no descerramento de um busto na Praga fronteira ao novo tribunal ("Homenagem & meméria do Doutor José Alberto dos Reis”, BFDUC, XXXVIH, 1961, 205-213). Com maior utilidade pode conferir-se o discurso feito por Manuel Andrade, seu sucessor na titularidade da cadeira de processo (A. Varela, “Manuel Andrade e o Ensino do Processo Civil”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, BFDUC, vol. XXXV, 1959, 41-60), por ocasitio da sua jubilagao como professor, em que € tracejado um panorama da actividade do homenageado como processualista, “na tripla veste de ensinante, de escritor ou tratadista e de legislador” (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, BFDUC. vol. XI (1945): 592-601), ulteriormente retomado no prefécio ao 2.° volume (pdstumo) dos Processos Especiais, de modo a abran- ger os tiltimos 10 anos de produgdo do mestre. Guilherme Braga da Cruz dedica aquele que, depois de Chaves ¢ Castro, foi “o redactor da Revista que mais tempo de colaborao efectiva Ihe prestou”, expressivas paginas no seu estudo A Revista de Legislagdo e de Jurisprudéncia, Esbogo da sua Histéria, 2 vol., Coimbra, 1975 e 1979, maxime, vol. I, 474-488. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1189 que preparasse a realizagao pratica das ideias que defendera nas aulas,agora no quadro de uma ordem autoritdria e corporativa que nao lhe desagradava e que, de certa forma, como ensinante e escri- tor, contribuira para fundar. 1) — OS ANOS DE FORMACAO (1892-1898) Quando Alberto dos Reis se matriculou na Faculdade de Direito, em 1892, estava em vigor o plano de estudos de 1865, que perdurou até 1902. Este plano compreendia 15 cadeiras divididas por cinco anos lectivos (?). Havia duas cadeiras de processo, a 12.* cadeira, do 4.° ano, que versava sobre “Organizagio Judicial, teoria das acgdes, processo civil ordindério, compreendendo a execucio das senten- gas”, € a 15.* cadeira, do 5.° ano, sobre “Processos civis especiais, sumérios, sumarfssimos e executivos: Processo comercial e crimi- nal e pratica judicial e extrajudicial” (+). Durante todo 0 curso de Alberto dos Reis, 0 método exegé- tico (°) foi o dominante na explanagao do direito (positivo). A publicagdo do Cédigo Civil de 1867, j6ia, embora tardia, da codificagao, trouxera consigo a predilecgao por este método, que se traduzia numa submissao quase absoluta ao “império da lei”. Tal preferéncia implicava a adop¢ao do texto dos Cédigos como manual. Chaves e Castro di bem conta desta orientagiio ao escrever num parecer de 1884: “ Estuda-se 0 direito civil pelo Cédigo Civil; a organizag’o e competéncia dos tribunais e 0 processo propria- mente dito, pela Nov. Ref. Jud. e pelo Cédigo de Processo Civil; 0 direito e 0 processo comercial pelo Cédigo do Comércio; 0 pro- cesso criminal pela Nov. Ref. Jud.; 0 direito piblico interno pela ©) Paulo Meréa, “Esboco de uma histéria da Faculdade de Direito”, BFDUC, vol. XXIX (1953): 23 ss. (@) Por influéncia do plano de estudos anterior, era uso chamar-se 2 cadeira do 4° ano Teoria (do proceso)" e “Pratica (do processo)” a do 5.”. (8) Sobre aescola da exegese, Anténio M. Hespanha, Panorama Hist6rico da Cul- tura Juridica Europeia, Lisboa, Europa América, 1997, 176-180; para uma visio de con- junto do ensino nesse perfodo, Paulo Meréa, BFDUC, vol. XIX, 61 ss. 1190 LUIS CORREIA DE MENDONCA Carta constitucional, pelo Acto Adicional e pelas leis complemen- tares; 0 direito administrativo pelo Cédigo Administrativo, leis, decretos e portarias que o esclarecem e completam; o direito finan- cial pelas proprias leis da fazenda; o direito penal pelo respectivo Cédigo” (°). Em verdade, nas cadeiras cuja matéria se achava codificada, como a referida 12.%, era o proprio cédigo que o professor directa- mente comentava. ‘Alberto dos Reis foi aluno de Manuel de Oliveira Chaves € Castro em teoria do processo. No balango da produ¢ao cientifica deste seu mestre, feito por ocasido da sua morte, deixou registados os seguintes tragos: “uma notavel clareza a par de uma sébria con- cis%o, um equilibrio admirdvel conjugado com um tino e um senso juridico verdadeiramente privilegiados. Junte-se a isto uma palavra castica, servida por uma rica e sdlida educagado humanista, uma disciplina mental irrepreensivel, uma capacidade didactica inveja- vel e teremos as qualidades que fazem do Dr. Chaves, se nao um professor cintilante, que deslumbrasse pelo brilho, decerto um mestre util, seguro e consciencioso, cuja ligao doutrinava e enri- quecia o espirito. Em pedagogia, como no mundo mineral, 0 esplendor est4 na razao inversa da utilidade” (’). Chaves e Castro ingressara no corpo docente da Faculdade em 1871, mas s6 em 1881 lhe foi atribufda a regéncia da 12." cadeira que exerceu até 1897, data da sua aposentagao (*). A entrada em vigor do Cédigo de Processo Civil de 1876 obrigara a um trabalho de harmonizagao do titulo oficial da cadeira com o novo regime processual (arts. 1.° a 405.°). Chaves e Castro elaborou, em 1885, para este efeito, um programa, fixando-lhe o seguinte objecto: “organizagao € competéncia dos tribunais portu- (©) Citado por Paulo Meréa, BFDUC, XXIX, 61, nota 5. ©) José Alberto dos Reis, “Dr. Manuel de Oliveira Chaves e Castro”, BFDUC, ano V (1918-1920): 150. Alberto dos Reis destaca, de entre as obras do professor falecido, 0 livro Organizagao e Competéncia dos Tribunais de Justica Portugueses, que considera monumental, poe énfase na sua actividade de advogado (“o mais alto representante da escola dos advogados que fazem do oficio um culto ¢ da profissiio um sacerdécio”) € regista que Chaves e Castro fundou “quase sozinho “a Revista de Legislagao e de Juris- pradéncia, na verdade fundada, em 1868, com Luts Jardim ¢ Lucas Falcio. () Paulo Meréa, “Esbogo ...”, BFDUC, XXXI (1955): 80. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1191 gueses; teoria das acgdes; principios gerais do processo; processo civil ordindrio na primeira instancia; incidentes e preparatérios das causas” (°). Na organizagao judicidria, Chaves e Castro seguia as ideias e os processos da escola francesa (Bordeaux, Garsonnet, Boncenne, etc.). “Era ainda o espirito dogmatico e especulativo predomi- nando sobre a observagao histérica e sobre 0 estudo do dynamismo social” ('°), Por sua vez, 0 estudo do Processo Civil era feito através do comentario, artigo por artigo, do cédigo de 1876, por meio de deduges silogisticas caracteristicas do mos docendi tradicional, comegando nos 12 artigos da Carta de Lei de 8 de Novembro, pas- sando pelas disposig6es transitérias que se encontravam no fim do cédigo, “por serem como que 0 elo entre o processo civil antigo e moderno, e representarem como que a transi¢do de um para outro” e prosseguindo depois na andlise, uma por uma, das disposigdes do Cédigo até ao artigo 362.° ('"). Recorre-se as “razdes de ordem” no encadeamento dos assun- tos e substitui-se mesmo em alguns pontos 0 sistema do cédigo por outro mais adequado & explanaco das matérias. Ilustra-se a expo- sigdo com hipsteses e complementa-se a prelecgdo com exercicios praticos. Nas licdes de processo, o Dr. Chaves e Castro apoia-se sobre- tudo no Comentario ao Cédigo de Processo Civil de Alves de S4, nos trabalhos do anterior regente da cadeira Bernardo de Serpa e também no Manual de Processo Civil de Correia Teles, no Pro- ©) 0 Cédigo de Processo Civil de 1876, aprovado pela Carta de Lei de 8 de Novembro, cujo art. 4.° revogou as Ordenagdes Filipinas e a Novissima Reforma Judicié~ ria (leis gerais), esta dividido em 4 livros (I — Do Processo em Geral; II —- Do Processo nos Tribunais de Primeira Instncia; II — Do Processo nas Relagdes; IV — Do Processo ‘no Supremo Tribunal de Justiga ), estes em titulos, estes em capitulos, os capitulos em sec- ‘des, algumas destas em sub-seccdes ¢ ainda algumas destas em divisées, abrangendo 1.178 artigos. (9) Mamoco e Sousa e Alberto dos Reis, A Faculdade de Direito e o seu Ensino, Coimbra, F. Franga Amado, 1907: 78. ('') No ensino do direito de entdo vigorava 0 regime do compéndio ou, mais fre- quentemente, 0 regime da sebenta lirografada. A Pereira ¢ Celestino, um dos alunos “‘sebenteiros” devemos o registo das ligdes do Dr. Chaves € Castro ao 4.* ano juridico de 1889-1890, que aqui sigo de perto. 1192 LUIS CORREIA DE MENDONCA cesso Civil de Nazareth, para além dos trabalhos preparatérios do c6digo e de algumas monografias ou artigos de autores de menor relevo. Repete-se a célebre definigao de Celso (Nihil aliud est actio quam jus quod sibi debeatur, judicio persequendi, D. 44.7.51), retoma-se a questo de Hottman sobre a oportunidade de comple- tar 0 quod sibi debeatur com a mencio dos direitos reais e toma-se partido pelo entendimento da acg’o como direito que sanciona outro direito. As obras estrangeiras citadas sao quase exclusivamente as francesas, nomeadamente as dos comentadores do Cédigo do Pro- cesso Civil de 1806 (Bonnier, Garsonnet, Jacotton) ('7). Sem se subestimar a influéncia que possa ter tido em Alberto dos Reis o grupo daqueles mestres j4 entao sensiveis ao culto da filosofia positiva e da sociologia — a “onda positivista” (Mon- cada) deixard, como veremos, profundas marcas na sua obra —, € inegdvel que na sua formacdo universitéria em processo prevale- ceu a tendéncia maioritéria daqueles outros que “continuavam Tepresentando o antigo estado das coisas” ('*), ainda que de forma temperada, como era 0 caso do Dr. Chaves e Castro. Para compreender 0 itinerdrio intelectual de Alberto dos Reis, tanto ou mais importante do que a cultura juridica em que se for- mou, € a estrutura do processo que constituia o quadro de referén- cia na época. Ora, Alberto dos Reis aprendeu, e durante anos ensinara aos seus alunos, um processo de estilo hierdrquico virado para a reso- lugdo dos conflitos. Por influéncia da lei francesa de 20 de Abril de 1810, implan- tara-se em muitos paises da Europa Continental — e também assim aconteceu em Portugal — um modelo de organizagao judicial caracterizado por um corpo profissional de funciondrios, ordenado (?) Etambém citado o espanhol Gémez de la Serna, comentador das Leis de 5 de Outubro de 1855 ¢ de 3 de Fevereiro de 1881 (comentdrios de la Ley de Eujuiciamento Civil de 1855), Nao € feita qualquer referéncia a doutrina alema ou italiana. Ser necessé- rio aguardar por Afonso Costa, que regeu a 12.* cadeira de 1897-98 até 1902-1903, para se verem adoptadas as ideias da escola italiana, sobretudo as de Mortara. (") Paulo Meréa , “Esbogo...": op. cit, 66. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA 0 PROCESSO CIVIL 1193 de forma rigidamente hierdrquica e tomando decisées segundo cri- térios técnicos. A este modelo correspondia um processo de estilo também hierarquico ("*). A acgao atravessava quatro fases principais : os articulados, a instrugéo, a discussao e 0 julgamento; as decisdes dos juizes eram susceptiveis de ser reformadas através de varias espécies de recursos (embargos, apelacdo, agravo, cartas testemu- nhaveis e revista). Os autos escritos, integrando os varios niveis de decisao, constitufam 0 centro nevralgico de todo o processo e 0 meio para o juiz chegar a sentenga (vehiculum judicis ad senten- tiam). A prova por documentos era considerada a melhor. O pro- cesso tramitava-se através de pegas e audiéncias separadas, mediante as quais a matéria era recolhida gradualmente e de modo fragmentado ('5). Os magistrados e os funciondrios detinham o monopélio da fungao judiciaria. O processo estava ordenado por uma rede internamente coerente de regras rigidas e detalhadas. As decisdes, por fim, eram proferidas sem margem para a discriciona- riedade, segundo um legalismo légico. Este estilo nao era empregue para fazer actuar escolhas polf- ticas ou para introduzir no processo interesses e valores alheios aos das partes. O Estado liberal oitocentista nao tinha qualquer particular inclinagao para organizar a vida dos cidadaos e guiar a sociedade. O que é préprio dele € sustentar a dinamica social, manter 0 equi- librio e fornecer uma moldura para a auto-organizacao da socie- () Por contraposigio a0 estilo paritdrio, tal como o caracteriza Mirjan R. Damiska, / volti della giustizia e del potere, Analisi comparistica del pracesso, IL mulino, Bologna, 1991: 97-132, (°) © proceso contencioso comegava pela peticdo inicial; elaborada esta apre- sentava-se em audiéncia para ser distribuida; distribuida a acco, o réu era citado para vir acusar a sua citagio; a citagdio do réu seguia-se a acusagdo da citagdo, a realizar na 2.* audiéncia depois da citagdo e destinada a certificar solenemente que a acgdo estava ins- taurada; na audiéncia de acusago da citagdo, marcava-se ao réu prazo de trés audiéncias ara contestar, sob pena de a acco correr & revelia; a contestaglo seguia-se a réplica e tré- plica, oferecidas com intervalo de duas audiéncias; terminados 0s articulados seguia-se a instrugdo do processo (prova por documentos, por testemunhas, juramento ou confissao, por arbitramento); vinha depois a discussao da causa por alegagdes, geralmente escritas, ois nao era em regra requerida a intervengdo do jri; discutida a causa, tinha entdo lugar © julgamento pela emissio da sentenga. 1194 LUIS CORREIA DE MENDONCA. dade e a auto-determinagAo dos individuos. Podemos a seu respeito falar, com Damaska, num Estado reactivo ('°), cujo unico dever, na sua verséo minimalista, consiste “em fornecer uma estrutura de suporte no 4mbito da qual os cidadios perseguem os objectivos que escolheram” e a que cabe, afinal, fazer uma s6 coisa — resol- ver conflitos. A este tipo de Estado corresponde um processo organizado em volta da imagem — chave do conflito, um processo como reso- lugao de conflitos ('"). No corag&o do processo contencioso est4 sempre um litigio, uma quest&o a resolver, e é forgoso haver trés pessoas: um autor que pede; um réu contra quem se pede; um juiz que decide (actus trium personarum). ('*) O fim deste processo é a realizagdo de pretensdes privatisti- cas, chamando o juiz perante quem o processo é intentado a diri- mir quaisquer contendas e discérdias entre duas partes litigantes, em face das provas que uma e outra aduzir para fundamentar o seu direito. ('%) Como 0 Estado reactivo nao diz aos cidadaos, que sao os Gni- cos 4rbitros dos seus interesses, 0 que devem fazer e aprovar no plano substantivo, antes Ihes indica uma via para procurarem acor- dos e se vincularem e como se podem comportar em caso de con- flito, o juiz s6 deve intervir quando uma forga estranha o impelir. Esta forga é a acedo. A uma concepgao jusprivatista da finalidade do processo, Chaves e Castro alia uma ideia de accio teleologicamente depen- dente do direito subjectivo: “A todo e qualquer direito esté como que inherente um outro direito que Ihe serve de garantia; e esse direito € o de recorrer aos tribunais de justiga para ser assegurado, reintegrado na fruicao desse direito, ou indemnizado dos prejuizos resultantes da lesdo. Nao basta que a lei reconhega e especifique (®) Em contraposig&o, o Estado activo “assume ou persegue uma teoria global das condigées de vida 6ptimas ¢ tenta utilizé-la como base de programas teoricamente omnicom- preensivos do melhoramento moral e material dos cidadios”: Dam’aska, op. cit: 133-172. () Damiska, op. cit: 173-248. ('*)Licées do Dr. Chaves e Castro ao 4.° ano Juridico de 1889-1890, vol. 2: 722. (9) Licdes do Dr. Chaves e Castro ao 4.° ano Juridico de 1889-1890, vol. 2: 725. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1195 todos os direitos civis; é preciso que se mantenha e assegure 0 seu exercicio”. (7°) E acrescenta: “a acco direito é uma mera faculdade que existe como pura abstrac¢ao, e, quando toma um cardcter pratico chama-se demanda — causa e também acciio. Deixa de ser direito para ser meio.” (7!) Seguindo o Visconde de Seabra, que se inspirara em Blon- deau, Chaves e Castro distingue o direito de garantia (direito san- cionador) dos direitos (geradores) que garante “est4 ao lado delles como servindo de sentinella para afastar qualquer turbacao, ame- aca ou lesao do direito, ou melhor para dar actividade ao direito perante os tribunais de justiga”. (77) A Optica jusprivatista do processo civil prevalecente nesta concepgao da ac¢ao era depois desenvolvida na teoria do processo cujos tragos caracterizadores se podem captar, mesmo na auséncia de qualquer inclinagao para as construgées de “sistema”. No processo de 1876, concebido como uma disputa entre dois adversdrios perante um terceiro judicante (sistema adversarial), 0 respeito pela forma que regulamenta e disciplina a discussdo assu- mia particular relevo (a forma prevalecia sobre 0 fundo), pois 0 juiz estava vinculado & legitimigao processual das decisdes, que eram menos descrigdes do verdadeiro estado das coisas do que “um tratado de paz que pée termo aos combates”. As regras da contenda deveriam ser nao sé efectivas, mas também formalmente equitativas (igualdade de armas). A parte era dona da lide (domi- nus litis) estando legitimada a comportar-se como preferir (77), nao cabendo ao magistrado intervir para corrigir uma gestao deficiente dos interesses dos particulares, porquanto tal podia conduzir a um “paternalismo opressivo”. O processo estava exclusivamente sujeito ao impulso das partes (ne procedat judex ex officio), tanto 0 inicial como 0 sucessivo, podendo estas pér-lhe termo através de @) Licées do Dr. Chaves e Castro ao 4.° ano Juridico de 1889-1890, vol. 2: 729. ©) Licées do Dr. Chaves e Castro ao 4.° ano Juridico de 1889-1890, vol. 2: 731 ©) Licées do Dr. Chaves e Castro ao 4.° ano Juridico de 1889-1890, vol. 2: 730. C3) «Quanto a forma de pedir ou de defender-se néo precisam as partes de nenhum outro regulador, sendo o seu proprio interesse. Se no pedem bem ou ndo se defendem 1é tém 0 castigo no resultado da demanda»: Motivos do Projecto do Cédigo de Processo Civil, apresentado ao Ministro e Secretario d’Estado dos Negécios Eclesidsticos ¢ de Jus- tiga, pelo bacharel Alexandre de Seabra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1869:4. 1196 LUIS CORREIA DE MENDONCA confissao, desisténcia do pedido e de transaccao, pois, na auséncia de conflito, a causa perde a sua razdo de ser. As partes cabia defi- nir 0 objecto da controvérsia a resolver, incumbindo aquela que alegava os factos a obrigacao de os provar, salvo tendo a seu favor alguma presungao de direito, o que vedava a atendibilidade de factos nao alegados, mesmo os notérios (secundum allegata et probata judex judicare debet). O direito alegado presumia-se, sendo necessdrio prova-lo, por excep¢ao, quando fundado em cos- tume ou em estatuto ou postura municipal do pais ou em qualquer lei estrangeira cuja existéncia fosse contestada O juiz nao podia condenar além ou em coisa diversa do que se pedisse (ne eat judex extra petita) — art. 281.° O procedimento probatério era domi- nado pelas partes, nao podendo o juiz promover ex officio a pro- dugao de outras provas que as partes nao tivessem submetido a sua apreciagao, presidindo 4 assungdo e produgao de provas um estilo competitivo que se traduzia, entre outras manifestagdes, em nao haver sangGes especfficas contra a parte que se recusasse, a requerimento da outra, a juntar documentos que dissessem res- peito 4 causa e que confessasse existirem em seu poder (art. 211.°), em 0 depoimento de parte ser tirado pelo juiz e nenhu- mas perguntas lhe poder fazer a parte contraria (art. 266.°), em os peritos serem nomeados pelas partes (art. 236.°) e em serem os advogados das partes a interrogarem as testemunhas que tivessem produzido ou dado no rol (arts. 273.° e 274.°). Os Gnus e preclu- sdes processuais funcionavam como meio técnico de estimular a actividade das partes. Compreende-se que um Estado reactivo, cuja fun¢do primor- dial era fornecer um foro neutro para a resolugao das controvérsias, evitasse atribuir a um seu orgao responsabilidades, para além das burocraticas, no ritmo e impulso do processo; que este orga0 — 0 juiz — se abstivesse de uma procura activa dos factos e se limi- tasse a fazer de 4rbrito na competicfo entre as partes, resolvendo os incidentes interlocutérios que surgissem entre elas, verificando a observancia das regras fundamentais de conduta processual e proferindo a decisdo final sobre o mérito da causa. (**) C4) S6 em casos excepcionais 0 Cédigo de 76 permitia que o juiz tomasse provi- déncias ¢ resolugdes oficiosas (v.g. art. 3.° § 2, 131 § Unico, 235. § 1.°, 281, etc.). OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1197 E como esse Estado nao tinha qualquer intengdo que estas decisdes fossem um espelho da realidade, antes se preocupava sobretudo que fossem o culminar de uma discussdo processual- mente correcta, entende-se que a énfase posta na imagem de um juiz desinteressado e essencialmente passivo apareca como conse- quéncia da preferéncia por um orgao judicante que mais do que justo deveria ser imparcial. Neste quadro, a intervengdo dos advogados era indispensdvel. E deles se esperava que fossem nao amici curiae, mas defensores, activos e zelosos, dos interesses dos seus clientes, nos termos por estes definidos, no confronto com o adversario, sem se deixarem diminuir com as regras estatuidas tendo em vista coarctar as suas “demasias”. O Dr. Chaves e Castro, ao comentar 0 art. 98.° que cominava penas aos advogados que em juizo nos seus discursos ou escritos ofendessem ou injuriassem alguém, depois de dar conta que os tri- bunais superiores estavam sempre propensos a julgar estas ques- tées a favor dos advogados, recomendava: “nao devem os advoga- dos levar os seus escrtipulos ao ponto de omittirem nas suas petigdes, allegagdes e discursos forenses as expressdes necessdrias para a dedugao légica das ideias, ainda que faca referéncias offen- sivas A parte, quando sejam justificadas. Assim numa acgao de rei- vindicagao de uma propriedade nao pode deixar de se chamar espoliador, etc., aquelle que a possui indevidamente e de ma fe”. @) Alberto dos Reis deixard os bancos de Faculdade decana com uma bagagem tedrica onde s6 cabia, por conseguinte, a concepgao individualista, liberal e duelistica do processo que lhe transmitira o Prof. Chaves e Castro. Completado o 5.° ano, em 1897, teve lugar 0 acto de forma- tura e Alberto dos Reis recebeu, sem mais formalidade, a carta de curso. O Decreto de 15 de Junho de 1870 extinguira 0 6.° ano, cha- mado de “repetigao”, determinando que os bacharéis formados que tivessem obtido a qualificagao de bom ou de muito bom pudessem @) Licdes do Dr. Chaves ¢ Castro ao 4.° ano Juridico de 1889-1890, vol. 2: 995. 1198 LUIS CORREIA DE MENDONCA tequerer a admissio as provas ptiblicas para os graus de licenciado e doutor (actos grandes). Alberto dos Reis fard o seu acto de licenciatura em 1898, tendo-lhe sido dado para dissertagao 0 argumento Impedimentos e Suspeigées no Processo Civil, Comercial e Criminal portu- gués. 5) Il) — OS PRIMEIROS PASSOS NA REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL DE OITOCENTOS (1899-1909) Em 16 ¢ 17 de Margo de 1899, Alberto dos Reis apresentou, perante um jlri presidido pelo director da Faculdade de Direito, José Joaquim Fernandes Vaz, a sua “Dissertagao inaugural para o acto de Conclusdes Magnas na Faculdade de Direito da Universi- dade de Coimbra”, intitulada Dos Titulos ao Portador (7) e defen- deu teses (74), Nesta obra, dividida em 3 capitulos (génese e evolugao do titulo ao portador; teoria econémica e juridica do titulo ao porta- dor; a vida jurfdica do titulo ao portador), a importancia atribuida a hist6ria e ao direito comparado, o acolhimento dado as concep- g6es econ6micas, a influéncia de autores italianos e alemaes, mos- ©) Oacto de licenciatura constava de seis argumentos: “o primeiro era sobre uma dissertagdo manuscrita cujo objecto era designado pela Faculdade com a antecipagio de 30 dias; os restantes cinco argumentos versavam sobre outros tantos pontos, tirados & sorte dentre vinte € cinco pontos divididos em cinco grupos distintos e extraidos das matérias mais importantes do curso geral”: Paulo Meréa, “Esbogo...” BFDUC, XXIX: 48" @) Coimbra, Franga Amado, 1899. @) O acto de conclusdes magnas constava de uma dissertagdo. inaugural (de livre eleigdo do candidato) e de defesa de teses. As teses, a partir de 1868, eram redigidas em latim e portugués. Sobre “Organizacao dos tribunais, do processo judicial e do contencioso administrativo", Alberto dos Reis defendeu as seguintes 5 teses: 1.*: A magistratura do ministério piblico deve integrar-se no poder judiciério; 2: As atribuigdes que, em maté- tia de tutela competem ao conselho de familia, devem ser transferidas para as magistratu- ras judiciais; 3.*: Deve introduzir-se na legislagio portuguesa um processo semelhante a0 Processo francez de liquidacao judicigria; 4°: A impugnagao de créditos pelo administra- dor da massa falida tem 0 mesmo valor juridico que a impugnacdo deduzida pelos ctedo- res; 5: A auditoria administrativa, instituida pelo decreto de 2 de Marco de 1895, repre- senta uma anomalia e um retrocesso na legislagao portuguesa, OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1199 tram que Alberto dos Reis se situava j4 para além do método exe- gético. Mais tarde, dird que a sua dissertagdo se inspirou “na moderna orientagao scientifica de estudar systematicamente o direito comercial segundo os novos critérios econémicos; ao lado da teo- ria juridica e dos respectivos institutos, colloca-se sempre a theo- ria econdmica, que vivifica e inspira aquela” (*°). Obtido o grau de doutor e ainda em 1899, Alberto dos Reis concorrera ao lugar de lente substituto, apresentando a dissertagdo Das Sucessées no Direito Internacional Privado (**), tendo sido nomeado em Dezembro desse ano. Era pratica corrente que os lentes substitutos fossem encarre- gados da regéncia de varias cadeiras, “sem pesar consideragGes de especializagao ou de predilecgao intelectual”. Alberto dos Reis ird leccionar sucessivamente a 7." cadeira, Principios Gerais e Legislagdo Portuguesa sobre Administragdo Piiblica, sua Organizagao e Contencioso Administrativo, de Janeiro de 1900 até ao fim do ano lectivo; a 8.* cadeira, Sciencia e Legisla- ¢do Financeira no ano lectivo 1900-01; a 10." cadeira, Direito Ecclesiastico Comum e Privativo da Egreja Portuguesa no ano lec- tivo de 1901-02; a 2.* cadeira da nova reforma, Histéria Geral do Direito Romano Peninsular e Portugez, no ano lectivo de 1902-03. S6 no ano de 1904-05 sera promovido a lente catedratico, fixando- -se, a partir de 1910, ao cabo de “uma situagao universitaria assaz instavel e ingrata”, nas cadeiras de processo (*"). (®) Marnoco e Sousa e Alberto dos Reis, A Faculdade... op. cit: 76. ©) Coimbra, 1899. ()Jé depois de promovido a professor catedritico Alberto dos Reis leccionaré a0 2. ano juridico Sciéncia Politica e Direito Constitucional encontrando-se publicadas as ligdes feitas aos anos lectivos de 1906-1907, 1907-1908 ¢ 1908-1909. “Nestas ligGes, além das theorias fundamentais da sciéncia politica, estuda-se largamente a organizagio do poder legislativo, fazendo-se copiosas referéncias aos melhores tratadistas ¢ a critérios positivos da nossa legislacao sobre similhante assumpto. Ha até em tais ligdes uma certa predilecco pelas teorias radicais defendendo-se 0 jurisdicionalismo sobre as relagbes entre a Igreja ¢ 0 Estado, combatendo-se a existéncia de um poder moderador auténomo, a propésito da divisdo de poderes, € sustentando-se o systema unicameral como o mais scientifico de organizar o poder legislativo, apesar de ser verdade, como observa Rossi, ‘que nos tempos modernos se tem recorrido em geral ao systema duma s6 c4mara, quando se tem procurado levar a cabo uma revolucao” Marnoco e Sousa ¢ Alberto dos Reis, A Faculdade... op. cit: 30:31. 1200 LUIS CORREIA DE MENDONCA Tinha sido publicado, entretanto, 0 Decreto n.° 4 de 24 de Dezembro de 1901 (DG n.° 294 de 28-12), que reformou os estu- dos de Direito. (*7) O predmbulo deste diploma é um tributo ao naturalismo juri- dico (?3). Comega-se por referir que “o ensino do direito nao se pode limitar hoje 4 simples interpretacdo dos textos, mas encontra © seu complemento légico ¢ natural em todos os estudos que se teferem as relagGes do homem na sociedade, tanto na época actual como no passado”; “enquanto o ensino do direito se limitar a exe- gese dos textos, sem investigar a origem histdrica da lei, 0 seu valor philos6fico, politico, social e econdémico, e a sua razao de ser sob estes diferentes pontos de vista, como aconteceu durante muito tempo, € verdadeiramente impossivel qualificd-lo de scientifico, visto a sciéncia ser sempre um conjunto de principios apresentados debaixo de uma coordenag&o methodica e systematica, permitindo determinar o seu valor respectivo e deduzir as suas consequéncias légicas”. A reforma parte do entendimento de que o direito é um pro- cesso organico e natural, concepgdo que fundamenta nas doutrinas positivistas de Augusto Comte, nas teorias transformistas de Dar- win € no evolucionismo critico de Herbert Spencer, pelo que os fendémenos juridicos, possuindo embora uma independéncia rela- tiva, “ndo podem deixar de reflectir as particularidades sociolégi- cas do meio em que evoluem, e de adaptar-se as tradigGes, aos usos € as condigdes especiais de cada pais”. Por forga dessa reforma, a Faculdade de Direito passou a estar comprometida na tarefa de promover “o estudo e 0 progresso das sciéncias sociaes e juridicas”, para além de preparar para as fungdes ptiblicas e profissées que de tais ciéncias fossem depen- dentes (art. 98.°), e com um Programa que aliava a teoria A prac- ©) Sobre a reforma dos estudos juridicos, introduzida por este decreto preparado por Abel Andrade, lente substituto da Faculdade de Direito, Mario Jlio de Almeida Costa, “O ensino do Direito em Portugal no Séc. XX ( notas sobre reformas de 1901 e 1911”), BFDUC, Vol. XXXIX, 1964, 31-63, (*) Sobre o naturalismo juridico, Antonio M. Hespanha, Panorama Histérico... op. cit: 196-213; Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, Lisboa, Funda- ¢40 Calouste Gulbenkian, 1980: 650-660. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1201 tica, pois “o ensino das faculdades de direito nao pode deixar de ser theorico e pratico ao mesmo tempo, porquanto s6 a pratica pode esclarecer, dar corpo e vida aos principios scientificos; ¢ s6 a theoria pode tornar consciente, racional e verdadeiramente pro- ficua a pratica”. Nao surpreende, pois, que, de entre as 19 cadeiras, divididas por cinco anos, que passaram a constituir o curso geral da Facul- dade de Direito, ao lado da 15." cadeira (Organizacio Judiciari Teoria das Acgdes. Processo Ordindrio e Comercial. Pratica Judi- cial) e da 16.* cadeira (Processos Especiais, civis e comerciais. Processo Criminal. Practica Judicial), que formavam curso bienal, se tivesse criado uma 17.* cadeira de pratica extrajudicial. A Alberto dos Reis caberd a titularidade da 16.* cadeira em 1910, passando a reger por acumulagao também a 15." cadeira, vaga pelo afastamento de Afonso Costa, situagao que se prolongou por largos anos (™). Da sua catedra, Alberto dos Reis ird reagir, desde cedo, con- tra a concepgao individualista e liberal subjacente ao processo de 1876 e que foi, como vimos, a da sua forma¢io. Os tempos hd muito que nao eram os da exaltagao do indivi- duo e da sua liberdade feitas pelo jusnaturalismo do séc. XVII pelo jusracionalismo do séc. XVIII, nem se vinculava a criagao da finalidade do direito & vontade livre dos homens (**). () Alberto dos Reis sucede a Manuel Dias da Silva, falecido em 5 de Setembro de 1910, de cujo ensino nunca se afastara profundamente. () Criador da finalidade do direito humano poderia ser Deus, um “insondavel sentido global da existéncia” ou até “o grande arquitecto do Universo”. Alberto dos Reis adere em 1899, ano do seu doutoramento, 4 Maconaria, em cujo idedrio se faziam sentir fortemente os principios do positivismo. Foi iniciado, nesse ano, no tridngulo de Tavarede e um dos fundadores, em 1900, da loja Fernandes Tomds, n..” 212, da Figueira da Foz. Pediu o atestado de quite a esta loja em 1913 e, sob a sua Presidéncia, foi aprovada pela ‘Assembleia Nacional a Lei n° 1901, de 21.5.1935 que suspendeu as chamadas “sociedades secretas”: A. H. Oliveira Marques, Diciondrio da Magonaria Portuguesa Ul, Lisboa, Ed. Delta, 1986, entrada 1218. Alberto dos Reis adoptou 0 nome simbdlico de Descartes, dando razao, também nesta faceta da sua vida, a Manuel de Andrade quando afirma que 0 conceito de racionalidade é “um trago vincado e dominante nao sé da estrutura intelectual de José Alberto dos Reis, como também ( seja dito por incidente ) da sua individualidade”: Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra Editora, 1956, Prefacio XII. 1202 LUIS CORREIA DE MENDONCA A mainstream da €poca era © positivismo, tornado uma ver- dadeira “religiao laica”, critica do individualismo, do voluntarismo e do contratualismo. Alberto dos Reis adere, também ele, a escola positivista, per- filhando uma doutrina organica do poder politico, legalista e esta- dualista. A um Estado liberal e reactivo contrapde um Estado-orga- nismo intervencionista. A enfase que imprimiré a fungo regula- dora do Estado, expresso politica de um todo organico que preva- lece sobre as partes, conduzirdé, no seu caso, a uma teoria juspublicista e autoritaria do processo civil. O caso portugués confirma, como veremos, a demonstragaio feita por Pekelis (3) de que existe uma estreita conexdo entre a solugdo que se dé ao problema da ac¢iio e aquela que se da ao pro- blema do Estado. Mas ilustra também a ambivaléncia do natura- lismo juridico que, podendo desenvolver-se num sentido liberal, se orientou, no exemplo de Alberto dos Reis, numa direcgao rasgada- mente conservadora. Sao duas as obras de Alberto dos Reis que mais relevam neste periodo: Organizagdo Judicial, com duas edig6es de 1905 e 1909 (°), e Processo Ordindrio Civil e Comercial, também com duas edigdes, em 1906 e 1907 *). (*) Alessandro Pekelis, “Azione (Teoria Moderna)”, Novissimo Digesto Italiano, diretto de Ant6nio Azarae Emesto Eule, U1, Torino, Editrice Torinese, 1958: 29-46; sobre a historicidade do conceito de acgao, também Ricardo Orestano, “Azione in Generale”, Enciclopedia del Diritto, IV — Dot. A. Giuffre, 1959: 785-822 e Piero Calamandrei, “La relativité del concetto di azione”, Rivista di Diritto Processuale Civile, Vol. XVI, Parte I, 1939: 22-46 (") _Ligdes feitas ao curso do 4.° ano juridico de 1904 e 1905,Coimbra, Imprensa Académica, 1905, e Ligdes feitas ao 4.° ano juridico de 1908 e 1909, Coimbra, Imprensa Académica,1909. Ambas as ligBes esto divididas em 4 capftulos (Capitulo I — A Fungo Judiciéria; Capitulo II — Génese e evolugo dos orgios judicirios; Capftulo ll — Orga- nizagdo e Funcionamento dos Tribunais; Capitulo IV — Organizagto das magistraturas dos officios de justica), C5 Ligoes feitas ao curso do 4.° ano juridico de 1905-1906, Coimbra, 1906 & Ligoes feitas ao curso do 4.° ano juridico de 1906-1907, Coimbra, 1907. Para além de Nogdes Preliminares, as ligdes dividem-se em Teoria da Acco, Teoria da Competéncia e Teoria do Processo. As ligdes de 1907 contém ainda um Apéndice sobre o processo sumé- tio para as acedes de pequeno valor. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1203 Através da primeira captam-se as ideias do autor no que res- peita & Lei e ao Estado. Da segunda flui uma teoria da acgdo e do processo em complemento daquelas Nao podemos deixar de as relacionar a ambas com 0 ja citado estudo, A Faculdade de Direito e o seu ensino. Ainda que com 0 propésito de responder as criticas que entéo se dirigiam a Faculdade de Direito de ministrar um ensino arcaico, bafiento, dogmatico, reacciondrio até — donde o radicalismo que €é posto em alguns momentos no culto af prestado ao “espirito do tempo” —, tal trabalho constitui como que um pano de fundo metodolégico daquelas duas obras. (**) Nele se defende a necessidade de “integrar os fenémenos juri- dicos no conjunto das relagdes sociais” com o abandono dos “métodos da légica pura, tendentes a determinar a vontade do legislador, de que a lei se considerava a simples expresso” — “agora trata-se de acomodar as normas juridicas as necessidades ocorrentes, de isolar os textos da pretendida vontade que os dictou, para as considerar como produtos independentes que evolucionam sob a acco do condicionalismo social, animadas dum espirito pro- gressivo e ponderador, que a equidade e a utilidade Ihe imprimem” — uma doutrina intervencionista sobre a acgao do Estado, a meio termo entre o individualismo e 0 socialismo, de modo que “o Estado, sem exercer uma ingeréncia absorvente, promova 0 desenvolvimento econémico, intelectual e moral da sociedade” e, consequentemente, a superagao do “individualismo desenfreado e abstracto que serviu de base as codificagdes modernas” de quem se diz serem “ compromissos entre os privilégios da aristocracia e os privilégios do terceiro estado, nao tutelando eficazmente os verda- deiros interesses da sociedade, e precisando assim de ser comple- tamente transformadas, a fim de nao continuarem a constituir sim- plesmente o palladio dos fortes e dos ricos”. @) ©) Criticas que surgiram no ambiente criado pela greve académica de 1907 desencadeada na Universidade de Coimbra em 28/02 desse ano e que durou até Agosto, A origem imediata dos protestos foi a reprovagio, por unanimidade, do bacharel José Eug6nio Ferreira no acto de “Conclusdes Magnas “para a obtengao do grau de Doutor, mas as suas causas tinham rafzes mais profundas, analisadas por Alberto Xavier, Historia da Greve Académica de 1907, Coimbra, 1962. (®) Mamoco e Sousa e Alberto dos Reis, A Faculdade de Direito ¢ 0 seu Ensino, op. cit. 67 € 105. 1204 LUIS CORREIA DE MENDONCA. Nao creio, por outro lado, ser possivel compreender a produ- gao intelectual de Alberto dos Reis como se tivesse sido um homem s6 de duas dimensées, como pretendem Beleza dos Santos e Manuel Andrade. Alberto dos Reis foi nao s6 um professor e um técnico, mas também um cidadao com o seu empenhamento moral e politico. Quando profere as referidas Ligdes a monarquia constitucio- nal estava no seu creptsculo. Os partidos tradicionais — o Partido Regenerador e 0 Partido Progressista — debatiam-se com incémo- das dissidéncias e Jodo Franco fundara, em 1903, 0 Partido Rege- nerador Liberal (*'). Joao Franco era um leitor dos positivistas. A sua maxima pre- ferida era a de que “a lei tem de se adaptar aos factos hist6ricos”. Convictamente cat6lico, era também monérquico, mas apenas por- que pensava que a Republica era invidvel. Afastado, em 1901, do Partido Regenerador, sobe ao poder, em 1906, no culminar de uma campanha que oferecia uma politica de autoridade, que se propu- nha afastar os vicios dos “ partidos rotativos”, Estes s6 lhe suscita- vam desprezo; nao eram partidos, mas “clientelas de dois homens”; o Parlamento nao era um instrumento do Governo, des- tinado a cuidar dos interesses ptiblicos, mas uma “‘assembleia par- tidéria, em que cada um se preocupa apenas de Prejudicar politica- mente o seu adversério”. O franquismo queria significar a entrada de “ideias novas” numa administragiio até af corroida pela “feroz politica partidaria”. Como todos os conservadores da época, Franco pretendia fazer a Revolucgdo do poder para prevenir a da tua, Logo que teve condigées, dissolveu o Parlamento para gover- nar com quem sempre quis, com a Nagao. A ditadura franquista terminou com o assassinato do rei D. Carlos, em Lisboa, em 1 de Fevereiro de 1908. Franco entrara na histéria como o “ditador de 1895”. Dela saiu como o “ditador de 1907”. () Para todoo Perfode de 1890-1926, Rui Ramos, Histéria de Portugal, direcgao de José Mattoso, sexto volume, A Segunda Fundaco (1890-1926), Lisboa, Circulo Leito- res, 1994; sobre Joo Franco, maxime, 133, 135, 217, 219 e 267-297 e José Miguel Sar- dica, A dupla face do franquismo na crise da monarquia portuguesa, Lisboa, Cosmos, 1994, OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1205 Ora, Alberto dos Reis, que nao tinha paixio, nem tempera- mento politico — “eu que nao tenho paixdo nem temperamento politico, eu que nao sou pessoa de entusiasmos faceis nem de impulsos descomedidos” — langou-se “de alma e coracaéo” na aventura franquista. (*’) E porqué? “Porque Joao Franco pregava uma politica nova — uma politica de verdade nos processos e de pureza nos intuitos, uma politica rasgadamente nacional. Por isto, e porque tinha todas as qualidades necessdrias para realizar essa politica: coragem, energia, inteligéncia e probidade”™ (“*). Para o lente de Coimbra, Joao Franco foi mesmo um percur- sor de Salazar — “Estou do lado de Salazar pela mesma razao fun- damental que estive do lado de Joao Franco — porque um e outro investiram contra a desgracada politica de partido e procuraram edificar uma politica nova e fecunda de reabilitago nacional; por- que um me dava, e outro me da igualmente, garantia perfeita de capacidade, isencdo e patriotismo para levar a cabo essa bela e glo- riosa empreza” (+). O aluno tinha, porém, opinido diferente da do professor. Em 1928, Salazar avaliava o franquismo como uma bem “timida coisa”. Nao se veja em Alberto dos Reis, nem mesmo quando se opde ao poder moderador, o que ele verdadeiramente nunca foi, ou seja, um intelectual organico do franquismo. Na Organizagao Judicial, Alberto dos Reis defende até, luz da Carta Constitucional, a ilegitimidade da ditadura comum, no (®) A Faculdade de Direito tinha sido “um baluarte do partido progressista, que 6 abriu brecha na ultima década do Séc.X1X, com a entrada de alguns prestigiosos lentes da nova geracZo, que se ligaram ao partido regenerador ou professavam jé ideias republi- canas,"Anténio José Teixeira de Abreu, José Maria Joaquim Tavares, José Alberto dos Reis, Alvaro da Costa Machado Vilela e Abel Pereira de Andrade eram adeptos, de uma forma mais ou menos empenhada, do partido regenerador. Guilherme Alves Moreira e ‘Afonso Augusto da Costa apoiavam os republicans, embora s6 0 segundo fosse militante, ‘Aqueles trés primeiros professores aderiram ao partido regenerador liberal Gui- Therme Braga da Cruz, A Revista de Legislagdo e de Jurisprudéncia, op. cit. vol. 1— 155, nota 382. (®) José Alberto dos Reis. Politica de Partido. Politica Nacional, edigoes SPN, Lisboa, 1935: 9. (4) José Alberto dos Reis, Politica de Partido..., op. cit.: 4. 1206 LUIS CORREIA DE MENDONCA continente e ilhas adjacentes, enfileirando, aparentemente, com as teses dos progressistas. (45) Nesta obra, 0 autor propugna a teoria do Estado — Orga- nismo, em que os trés poderes se relacionam pelos princfpios da autonomia e cooperagdo ou solidariedade. Para ele, o Estado é um organismo “ em que todas as partes so conexas, todas as fungdes se acham coordenadas a ponto de se fundirem numa grande unidade”, razao pela qual rejeita a teoria mecdnica de separacao dos poderes de Montesquieu, preferindo o conceito de diferenciagdo orgdnica: “os poderes do Estado devem ser distintos, mas manter entre elagGes estritas, de forma a coor- denarem-se numa sintese organica e harmonica”. (4) Um “conceito virtuoso de organismo” leva-o a afastar as teo- rias que acrescentam o poder moderador aos classicos trés pode- tes: “Nos organismos vivos nada hd que se compare ao que pre- tende ser o poder moderador nos organismos sociais; nenhum orgdo se eleva acima dos outros para corrigir os desvios em que possam incorrer; a unidade organica resulta da accdo e reacgaio dos varios orgaos uns sobre os outros; toda a vez que um aparelho se afasta da sua fungdo, as perturbagdes que o proprio desvio thes causa e a reac¢ao dos outros aparelhos com ele relacionados asse- guram a restauragao do equilfbrio organico. O mesmo deve suce- der com os organismos politicos”. Cy (") Organizagdo Judicial, 1909, op. cit.: 36 — 54. Os governos, invocando cir- Cunstdncias de urgéncia, assumiram, nio raras vezes, 0 exercicio da fungdo legislativa a margem dos parlamentos. Chamava-se a tal usurpacdo ditadura e decretos ditatoriais os decretos promulgados nessas circunstancias. Perante uma conjuntura grave e imperiosa, 0 govemo s6 tinha, na opinido de Alberto dos Reis, uma saida legal: “obter do poder a con- Vocacdo extraordinéria das cortes, para que elas legislem ou autotizem 0 governo a le lar” (42). Porém, do ponto de vista tedrico, Alberto dos Reis defendia que a constituigio deveria permitir a suspensdo pelo governo da via legislativa ordinaria como forma de acudir a “conjunturas perigosas”. Entio os jutzes s6 poderiam sindicar “se 0 governo teve Jé tempo ou nfo para obter, ou pelo menos pedir, a raificagao parlamentar”: Organizacio Judicial: op. cit.: 39-40. (®) Organizagao Judicial, op. cit. 1909: 8. () Organizagdo Judicial, op. cit. 1909: 10. Em pelo menos dois outros lugares se manifesta, com evidéncia, o naturalismo de Alberto dos Reis. Em primeiro lugar, quando, 40 tratar de evoluc2o da justica, a explica, numa versio vitalista, como fendmeno essencial. mente bioldgico, radicado no movimento reflexo de defesa, na contracco nervosa desti- nada a afastar ¢ repelir as impresses incémodas do exterior, que repetida mil vezes ¢ OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1207 Para Alberto dos Reis, a contengdo dos poderes no seu desem- penho funcional obtém-se, em caso de necessidade, através da reacgao duns orgaos sobre os outros e “ da consciéncia collectiva do pais sobre todos elles”. A ingeréncia de um orgio no funcionamento de outro sé é, por conseguinte, legitima quando qualquer deles se afastar da indole da sua fungao prépria ou em caso de assim o recomendarem “as necessidades de equilfbrio organico do Estado”. Defensor da autonomia dos trés poderes, Alberto dos Rei: resolve o problema da constituigéo auténoma do poder judicial mediante a consagragao do principio do provimento por concurso, desde que a entidade nomeante se deva cingir rigorosamente a selecco feita pelo juiri respectivo. (**) Reconhecendo plena liberdade aos juizes na “ discriminagio e adaptacao da norma legal ao caso concreto (interpretagdo)”, mas nem tanto na “execugao da vontade do legislador assim especial zada e concretizada (aplicag&o)” (**), veda-lhes, porém, a criagdio de direito novo, pois “importa evitar que a casos perfeitamente iguais sejam dadas decisOes judicidrias diversas” (*"). E, caso a judicatura abuse das suas fungdes, entio cumpre aos tribunai de revista impedir “ que os magistrados inferiores fagam valer a sua propria vontade sobre a soberania da vontade legislativa”. E, se mesmo assim, o tribunal de revista preserverasse na usurpa¢ao legislativa, cabia ao poder legislativo intervir interpretando auten- ticamente as leis ( Carta Constitucional, art. 15.° § 6). ) E 0 respeito pelos dictames e declaragdes positivadas do jador, pelo centro organico que tudo coordena e harmoniza, legi transmitida de geragdio em geracao, acaba por integrar ¢ estratificar nas células nervosas, tomnando-se patriménio da humanidade (59). Em segundo lugar, quando toma partido pela especializagdo das jurisdigdes estribado na ideia de que “o ideal e a tendéncia de organi- zacdo social consiste na adaptacdo cada vez mais perfeita do orgdo a fungao respectiva. Desintegragdo de fungdes, especializacdo dos orgdos ais so as duas grandes leis da dynamica social” (115). (8) Organizagao Judicial, op. cit.: 15 € 86. (©) Organizagdo Judicial, op. cit: 18. (©) Organizagao Judicial, op. cit.: 21. ©!) “A unidade da legislagdo sem a unidade da jurisprudéncia € um processo fic~ ticio ¢ ilusério”. Organizagao Judicial: op. cit.: 20-22 € 188-89. 1208 LUIS CORREIA DE MENDONCA que leva Alberto dos Reis a defender o controlo judiciario sobre a constitucionalidade das leis e sobre a legalidade formal das normas legislativas. (%) Alberto dos Reis, para além de defensor de um organicismo anti-individualista, legalista e estadualista, como atrds se referiu, insiste no dever de obediéncia dos juizes a lei, fonte de direito por exceléncia e expressao da vontade disciplinadora do Estado e reage contra a “jurisdigo de equidade”. Proibindo ao intérprete que integre eventuais lacunas do sis- tema sem ser “em harmonia com a regra que 0 legislador teria pre- sumptivamente formulado se houvesse Previsto 0 caso em ques- t4o” (“'), por adesio ao dogma da plenitude do ordenamento juridico, barra o caminho a teorias e a orientagGes jurisprudenciais inspiradas em ideologias diferentes das do grupo dominante. Por outro lado, Alberto dos Reis pugna pela “unidade da juris- digéio” defendendo a eliminago da tentativa conci jatoria obriga- t6ria e do juizo arbitral que considera uma “panaceia inteiramente desacreditada”. (54) Quanto a este jufzo refere: “Se a justiga official tem defeitos, eliminem-se, mas no se proponha a sobreposicdo dum julgamento feito por individuos estranhos ao exercicio da fungao judicidria, ao julgamento proferido por magistrados que tém educagao profissio- nal e devem ter dado provas de aptidéio e moralidade”. @) A isto alia posigdes que vo no sentido do reforgo das orien- tagdes das reformas judicidrias anteriores — reducao das magis- traturas inferiores e transformagio das magistratura populares de electivas em nomeadas (5%) — da diminuig&o do nimero de comar- cas, da especializacao das jurisdigdes e da diminuigdo da interven- ¢4o do juri nas causas civis. Numa palavra, uma concep¢gao rigorosamente objectiva da fungdo judiciéria numa organizagao judicial hierarquizada, de 5. 9. (2) Organizagao Judicial. op. ci (©) Organizagao Judicial, op. ci a ©) Organizagdo Judicial, op. cit: 111. €) Organizagdo Judicial, op. cit.: 111. (%) _O sistema judicidrio portugués, no continente, era constituido pelo Supremo Tribunal de Justiga, pelas Relagbes (Lisboa, Porto e Ponta Delgada), por Juizes de direito, Jutzes municipais ¢ por Juizes de paz. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1209 cujo modelo tradicional apenas se afasta ao defender a dispensa da apelagao. (°7) Um processo de estilo hierérquico nao implicava, como vimos, 0 afastamento dos principios inspiradores do processo civil de oitocentos. Era, porém, pouco crivel que o organicismo de Alberto dos Reis se adaptasse a uma ideologia do processo liberal e individualista. A doutrina processualista nacional havia dobrado o século imune as influéncias dos autores alemaes que, na segunda metade do século XIX, tinham subvertido a problematica da actio do direito romano, em volta do antigo termo Klage e do novo termo Anspruch (Windscheid, Oskar Biilow, H. Degenkolb, Wach, Plosz, Kohler, Hellwig). Tomando por base o Cédigo de 1876, a doutrina nacional de oitocentos dividia-se, por influéncia francesa, entre os conceitos tradicionais de ac¢do-direito e acgdo-meio. (*) Para os defensores da primeira corrente, a acgdo era um ele- mento do direito subjectivo, um poder imanente ao direito de rea- gir contra a violagdo, 0 “direito em pé de guerra” como dizia expressivamente Puchta, opondo-se aqueles para quem a acgao era um simples meio de fazer valer em juizo os direitos ameacados ou violados. A ac¢’o nao era um direito auténomo, nem um direito novo que acrescia a um direito principal, “ mas sim a parte dina- mica, a energia fntima do préprio direito subjectivo, a qual se con- serva num estado latente ou potencial”. (*) Tinha sido esta a posigao do jovem Savigny, fundador, com Hugo, da Escola Histérica (), para quem a acgao era “o aspecto () “Consagrada definitivamente a autonomia do poder judicidrio, e estabelecido um sistema de recrutamento que assegure, melhor que 0 actual a idoneidade dos candidatos, a appelacio poderia entio dispensar-se. E as garantias que hoje a consciéncia publica reclama da appelago, encontré-las-ia depois na organizagao colectiva do juizo”: Organiza- eo Judicial, op. cit: 169. () A controvérsia sobre a acgio a propésito do Cédigo Civil de Seabra e do Cédigo de Proceso de 76 € analisada por Jodo Castro Mendes, O Direito de Acedo Judi- cial, Estudo de processo civil, Lisboa, 1956: 163-170. : () Luis Cunha Goncalves, Tratado de Direito Civil, em comentario ao Codigo Civil Portugués, vol. 1, Coimbra, 1929:311 () Sobre a Escola Historica do direito, F. Wieacker, Histéria do Direito Privado Moderno, op. cit.: 397-475. 1210 LUIS CORREIA DE MENDONCA particular que todo o direito assume quando se verifica a sua lesio”, o direito “no estado de defesa”, que é considerado como “um momento no processo da vida do direito, néo como direito em mesmo”. (') Pertencendo a uma classe que desconfiava da “dissolucao da antiga sociedade feudal —- corporativa pela igualdade burguesa que o iluminismo como revolugao (feita a partir de cima ou feita a partir de baixo) tinha posto em marcha”, Savigny “ encarava os grandes movimentos europeus posteriores a 1789 como um homem que sentia o chao fugir-Ihe debaixo dos pés”. (°) Quando se preocupa em demonstrar que nenhuma necessi- dade racional anima as instituigdes positivas tais como as consti- tuigdes dos Estados, os cédigos, a propriedade, o casamento, etc., quando contrap6e o direito popular, o dos juizes e dos letrados, a esses Estados e aos seus cédigos, a Escola Hist6rica parte na defesa da cultura aristocratica contra a politica democratica, do tra- dicionalismo europeu contra 0 novo sentimento nacional, como ficou nitido no duelo entre Thibaut e Savigny. Considerar esta escola, como fez Marx, a teoria alema do Ancien Regime francés, da mesma forma que se pode considerar a filosofia de Kant como a teoria alema da Revolugao Francesa, nado € de todo um mero efeito de um estilo radical e vigoroso. (*) Nao surpreende, pois, que 0 direito objectivo e os respectivos direitos subjectivos privados sejam entendidos por Savigny como totalmente independentes, nao s6 da actividade jurisdicional e legislativa do Estado, mas da prépria existéncia do Estado. Como refere Pekelis, “o cardcter meramente acess6rio e subordinado do direito de acgiio nao é mais, pois, do que um coro- lario epis6dico daquela visdo ampla, na qual ao préprio poder legislativo estadual é reservada a mesma fungio acesséria e subor- dinada em relagao ao direito positivo, obra do povo”. (*) (*) Pekelis, Azione, Novissimo Digesto, op. cit.: 37. (®) Franz Wieacker, Historia do Direito...., op. cit.: 447 ¢ 451. (") Karl Marx, “Le Manifeste Philosophique de L’Ecole Historique du Droit”, Oeuvres, Ill, Philiosophie, Gallimard, 1982: 224. (*) Pekelis, “Azione”, Novissimo Digesto, op. cit.: 37. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1211 Os processualistas da segunda metade do séc. XIX puseram de parte o monismo savignyano e criaram o dualismo dos direitos subjectivos independentes, o material e o processual, que encon- tramos reflectido, por exemplo, em Chaves e Castro, fruto da ten- so entre a afirmagio do poder do Estado e “as exigéncias da socie- dade civil no sentido da autonomia econémica e politica”. Fosse a acgao, acgao — direito ou acgao — meio, simples ele- mento do direito subjectivo ou direito auténomo e independente do direito material, sempre, porém, a doutrina se tinha recusado a des- vinculd-la da relagao substantiva. Isso mesmo é€ reconhecido por Alberto dos Reis no Processo Ordindrio de 1907: “em qualquer destas modalidades (acgi0-meio e acciio — direito) a acgao fica indissoluvelmente ligada, como um elemento ou como uma consequéncia, ao direito subjectivo cuja violagdo se pretende fazer reparar”. (°) Nesta obra, que tem essencialmente por objecto 0 estudo da marcha do processo (°°), ao abordar a natureza juridica da acgao e depois de criticar, apoiando-se em Chiovenda, os conceitos tradi- cionais nas teorias modernas da acco que reputa principais — teo- ria do direito @ tutela juridica, teoria do direito potestativo € teo- ria do direito abstracto de accionar —, da preferéncia a esta Ultima que é, seguramente, a que, das trés, mais mobiliza as ener- gias do Estado, conduzindo a uma declarada preponderancia do interesse ptiblico. A teoria do direito a tutela juridica (Rechtsschutzanspruch) & a de Adolf Wach (1843-1926). Nesta teoria, a acgao é concebida como um direito auténomo pertencente ao titular de um direito material que se exerce contra o Estado, fundado em pressupostos de direito privado, tendente a obter um determinado resultado favordvel. () J. Alberto dos Reis, Processo Ordindrio... . op. cit.: 62. () Sob a invocagdo surpreendente de que “no hd elementos seguros para dar uma amplitude maior a este assunto (teoria das acces) nem hé vantagem manifesta em 0 fazer, com preterigdo do estudo da marcha do processo ordinério”. Surpreendente porque rasura cinquenta anos de trabalho da doutrina germanica em volta do problema da ac¢do, © que 0 desconhecimento da lingua alema s6 por si nao pode justificar. 1212 LUIS CORREIA DE MENDONCA Wach ndo se colocou 4 margem da doutrina juridica alema da sua época que atribufa particular relevo ao Estado na configuragao dos institutos juridicos. No dominio dos estudos sobre o processo, esta tendéncia manifestava-se na atracc3o da telacdo processual e da acgdo para a esfera do direito puiblico, a luz de cujos esquemas conceptuais e finalidades passaram a ser explicados. Assistiu-se mesmo, no tiltimo tergo do séc. XIX, a uma espé- cie de “imperialismo da nova doutrina processualista” em Telagao a civilista, 0 que também radicava, como destaca Tarello, na exi- géncia de “atrair o maior ntimero de institutos, ao menos em parte, sob a Unica disciplina que, na Alemanha, no que respeita as rela- des com os privados, estava codificada e era moderna e unica para todas as pessoas do Império”. (67) Wach imbufdo, moderadamente embora, deste espirito, atri- bui ao processo uma finalidade objectiva — “a finalidade do pro- cesso € tinica e sempre a mesma, salvaguardar a justiga mediante o exercicio da jurisdigdo, finalidade que se satisfaz tanto com a improcedéncia da acco como com a condenagao” — (°8) e situa a acgao no campo do direito ptiblico ao acentuar as telagGes entre os cidadaos e 0 Estado. Sugerindo a distincao no processo de duas relagdes — a que se estabelece entre as partes e entre estas e 0 juiz —, é nesta ultima que centra a pretensdo a tutela juridica ou pretensao a uma decisio favordvel. Tendo posto em destaque a autonomia da acco — “aquele aspecto da accao em que se procura conseguir no processo um bem que s6 0 processo pode dar” (Chiovenda) — e chamando para pri- (°) Giovanni Tarello, “L’opera di Giuseppe Chiovenda nell Crepusculo dello Stato Liberali", Materiali Per una Storia Della Cultura Giuridica, vol. III — 1, ll Mulino, 1973: 727 € notas 124 € 38. Quando o BGB entrou em vigor em 1.1.1900, jé vigorava ha mais de vinte anos, como diploma unitério para o proceso, o Cédigo Imperial do Provesso Civil ( aprovado pela Lei de 30.1.1877 que entrou em vigor em 1.01.1879 ): Franz Wie. acker, Historia... . op. cit.: 531-535; E. Glasson, E. Lederlin, F.R. Dareste, Code de Pro. cédure Civile pour I’ Empire d’ Allemagne, traduit et annoté, Paris, Imprimerie Nationale, MDCCCLXXXVII, maxime, XLI-LXXXVI. (“) Adolf Wach, Manual de Derecho Procesal Civil, vol. 1, Ediciones Juridicas Europa-América, Buenos Aires, 1977: 24. Wach acrescenta que “a ciéncia processual deverd levantar 0 seu edificio sobre a determinacio objectiva da finalidade, e no sobre a subjectiva”. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA 0 PROCESSO CIVIL 1213 meiro plano a figura do tribunal no papel de terceiro judicante, Wach conservou “a necesséria ligacao entre o processo e 0 direito substantivo, na harmonica unidade do ordenamento jurfdico” (®) e nunca deixou de reconhecer ao interesse individual a sua anteriori- dade e primazia sobre o interesse piblico. Em verdade, a acgao continuou a ser considerada como ins- trumento e garantia dos direitos individuais, como meio para satis- fazer o interesse legitimo dos particulares a uma tutela jurfdica justa. Mas é sobretudo na configuragdo da relagdo processual segundo o esquema civilistico da relagdo juridica que se manifes tam as referidas prioridade e prevaléncia. A pretensao € deduzida contra 0 Estado, que fica obrigado ao cumprimento de uma prestagdo devida a parte, a qual consiste em satisfazer contra o demandado 0 interesse de tutela juridica na forma estabelecida pelo ordenamento processual. A pretensao da tutela é satisfeita através do acto tutelar, especialmente pela sentenga favo- ravel, e, depois de satisfeita, extingue-se, enquanto o direito material adquire com essa decisao novas forgas e € confirmado. Julgar-se liberal a teoria da acg3o de Wach €, pois, inteira- mente adequado. Avaliagao partilhada tacitamente por alguns dos seus contemporaneos, como Biilow, que 0 criticou por nela o pro- cesso se lhe afigurar demasiado sujeito ao direito privado. Mais perto de nés, Calamandrei considera-a mesmo “ a formulagao tec- nicamente mais perfeita e mais enérgica daquela concepgao essen- cialmente liberal segundo a qual 0 processo civil ndo é senado um instrumento de actuagio dos direitos subjectivos privados”. () A teoria da acgdo como direito potestativo pertence a Giu- seppe Chiovenda (1872-1937) (7). (®) Chiovenda, “Adolfo Wach”, Saggi di Diritto Processuale Civile. (1894- -1937), vol. J, Milano, Dott. A. Giuffre:1993: 266. () Piero Calamandrei, “La Relativité...”, op. cit.: 31. (*) Também a Jakob Weissmann, que na Alemanha publicou, nos fins de 1903, 0 primeiro volume do seu Lehrbuch des Deutschen Zivilprozessrechtes, no qual chegara, independentemente de Chiovenda, a andloga construco 2 deste. Alberto dos Reis, mostra conhecer directamente a ligdo inaugural “L’azione nel sistema dei diritti” proferida por Chiovenda em Bolonha, em 3.2.1903, que constitui o micleo em volta do qual foram cons- truidos os Principii de 1906, ambas inclufdas na bibliografia do Processo Ordindrio. Nao parece, pelo contrério, ter compulsado Wach ou Weissmann. 1214 LUIS CORREIA DE MENDONCA Para este autor, a acco é um direito potestativo — “o direito potestativo por exceléncia” (2) — que nasce da lesdo de um deter- minado direito subjectivo e se exerce diante de um adversério, mais do que contra um adversdrio — “L’azione & un potere di Sronte all’avversario piu che contro l’avversario” (7), pretendendo com esta distingdo sublinhar a ideia de que a accio nao sup6e qual- quer obrigagdo, nem a ela corresponde qualquer dever processual do réu, mas pura e simplesmente a sujeicdo deste aos efeitos jurf- dicos da actuacao da lei. Esta “descoberta” trazia consigo importantes implicagdes quanto ao cardcter da ac¢ao e as relagdes entre accdo, jurisdigdo e direito substantivo. Ao acentuar a posigdo da acgdio enquanto dirigida ao adversa- rio, Chiovenda pds em foco 0 tinico ponto de contacto existente, na sua 6ptica, entre o Estado e os cidadaos: a actuagao do direito objectivo. Na sua prelec¢ao de Bolonha, Chiovenda comega por conce- ber um organismo social “tao nervosamente zeloso da observancia da lei, que pde em movimento, sem pedido da parte, mas, sé (tomando o caso mais comum da necessidade de um Pprocesso) quando qualquer direito individual se encontre nao satisfeito, a actividade dos orgios de Estado pré-ordenados a actuaco da lei no processo civil”. (74) O Estado pode, todavia, por “consideragdes de utilidade social” — e ndo por razes necessdrias e absolutas —, subordinar © seu direito 4 manutengdo da ordem juridica a vontade dos priva- dos, ou, dito de outra forma, atribuir aos particulares uma fungao de tutela da norma em cuja observancia esté em jogo a propria autoridade do Estado. (75) Reconhecendo a estes a iniciativa de recorrerem a tribunal para a defesa dos seus direitos, Chiovenda vé na demanda um acto — condi¢ao que desencadeia uma situagao juridica objectiva. Com este acto de pedir o direito que o Estado tem de tutelar a (®) Giuseppe Chiovenda, “L'azione nel sistema del diritto”, Saggi, vol. I, op. cit: 23. () Chiovenda, “L'azi () Chiovenda, (5) Chiovenda, “L’azione...”, op. cit OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1215 ordem juridica passa de um estado de laténcia a eficdcia plena. Assiste entao aos particulares “o poder juridico de converter em incondicionada a vontade da lei a respeito da sua actuag3o” ou, por outras palavras, “o poder jurfdico de realizar a condi¢ao para a actuagao da vontade da lei. Esta realidade e nao outra entendemos que € a acgao”. (7%) Chiovenda afasta a teoria da acco do esquema civilistico da relagao juridica entre um credor e um devedor, j4 que, na sua cons- trugdo, nao ha qualquer obrigado a uma prestagio. Nao est4 obrigado 0 Estado pois intervém por interesse pré6- prio e nao como “ devedor de justiga”; também o réu nao esta obri- gado a coisa alguma perante o poder da acgao, antes se sujeita, tao somente, aos efeitos juridicos a que a acgao se dirige. As relagGes entre a acgio e a jurisdig&o resolvem-se, em Chio- venda, numa relagdo organica entre os cidadaos que tém a lei pelo seu lado e a funcao de tornar concreta a vontade colec- tiva manifestada nessa lei. (”’) Nesta concep¢io, o interesse ptiblico e o privado nao se podem mais considerar como duas forgas contrastantes; 0 equili- brio entre estes interesses rompe-se a favor do primeiro, na pros- secucao da finalidade para que ambas as vontades, a dos privados e a colectiva, convergem: a aludida actuagao da vontade da lei. A teoria de Chiovenda orienta-se, assim, no sentido do reforgo do principio da autoridade do Estado no processo, situando-se no inicio de um ponto de referéncia ideal para além do qual © interesse individual se submete ao interesse ptiblico e os cidadaos se subordinam sempre mais ao Estado. ("*) Anos mais tarde, 0 Governo fascista podera sem problemas apoderar-se desta teoria na preparagio do Cédigo de Processo Civil de 1942 e considerar a obra de Chiovenda e da sua escola “o comentario antecipado” desse Cédigo. (5) Chiovenda, “L'azione...”, op. cit. 6. () Giovanni Tarello, “L’ opera di Giuseppe Chiovenda...”, op. cit.: 734. () Para Calamandrei, Chiovenda “construiu um sistema claramente orientado por princfpios publicistas e de certo modo autoritérios, tomando como base o Cédigo de 1865 que pretendia ser no seu tempo expressio de tendéncias claramente individualistas e liberais”: “La Relativité...”, op. cit.: 24 32-35. 1216 LUIS CORREIA DE MENDONCA A teoria do direito abstracto de accionar foi desenvolvida na Itdlia por Alfredo Rocco (1875-1935) (7) na monografia La Sen- tenza Civile, editada em 1906. Para Rocco, “o direito de acgdo é (...) um direito subjectivo Ptiblico do cidadao perante o Estado, e s6 perante Estado, que tem por contetido substancial o interesse secundério e abstracto a inter- vengao do Estado para a eliminacao dos obstéculos, que a incerteza ou a inobservancia da norma valida no caso concreto podem opor 4 realizagao dos interesses tutelados”. (°°) Desta concepgao, 0 autor deduz que: — “o direito de acca direito subjectivo existente por si mesmo, distinto dos varios subjectivos principais e materiais aos quais pode referir-se (*"); — “o direito de acgdo é um direito subjectivo que pertence a qualquer cidadao como tal (...), ou seja, a todo aquele que no Estado seja teconhecido como titular dos direitos subjectivos, ou pessoa”. (*) Para Rocco, 0 direito de agir é um direito abstracto e geral, pertencente a categoria dos chamados direitos civicos (*°), que pre- existe 4 demanda judicial e é independente da lesao de um direito material ou de qualquer condigao especial subjectiva que se refira a existéncia de um direito subjectivo material (opiniao, crenga no direito, boa fé). Desde que um cidadao tenha um interesse (material ou pro- cessual, primdrio ou secundério) tutelado em abstracto pelo direito objectivo, pode provocar a intervengao do Estado para a realizacao dos interesses tutelados pelo direito, sendo indiferente que, in casu, 0 direito objectivo nao tutele o interesse invocado. Neste quadro também se reconhece ao réu 0 direito de agir, no seu caso para obter uma declaracdo negativa da relagdo, pois tam- (*) Ena Alemanha por Degenkolb. Nao é crivel que Alberto dos Reis tenha lido 2 obra deste autor Einlassungswang und Urtheilsnorm, Leipzig, 1877, e no Processo Ordi- ndrio limita-se a citar e a seguir 0 estudo de Rocco, sem cuidar, de resto, de destacar o que © separava daquele autor alemdo, designadamente a recusa em aceitar que a acco se diri- gisse também contra o demandado e estivesse dependente de “um certo estado de espirito ‘no titular do direito de acgao (boa fé)". (*) Alfredo Rocco, La Sentenza Civile, Studi, Dott. A. Giuffré; Milano, 1962: 89/90. () Rocco, “La Sentenza... op. ci (®) Rocco, “La Sentenza... op. ci (®) Rocco, “La Sentenza... op. cit OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1217 bém ele tem interesse “na delimitagao exacta do alcance concreto do seu direito de liberdade”. (**) Adolf Wach, que sempre pretendeu resistir aos impulsos para uma cada vez maior integragao da relagdo processual na esfera publica do Estado, ao apreciar esta teoria, na versao de Degenkolb, aconselhava que, pura e simplesmente, fosse posta de parte, porque “ induz em erro e € estéril do ponto de vista cientifico”. (85) Para este autor, 0 direito publicistico de accionar é res merae facultatis, “nao faz parte do ordenamento juridico concreto, mate- rializado em factos-tipo determinados, é unicamente uma formula- ¢do subjectiva da norma juridica abstracta” (*°). Por sua vez, Chiovenda interrogava-se se cabia reconhecer este direito supostamente pertencente a qualquer cidadao, precisa- mente aquela das partes a quem a sentenga justa nao dé razdo, para logo responder: “ nds devemos conceber 0 direito como qualquer coisa que actuando-se seja vantajoso para o seu sujeito: e nao entendemos 0 direito de nao ter direito, como nao entenderemos 0 direito do culpado a ser condenado, e 0 direito do condenado & exe- cugio da condenagao”. (*”) Uma teoria que abstrai do direito privado subjectivo, da necessidade de que este ou a posigao juridica a ele correspondente sejam tutelados, fazendo depender o direito de acgao da simples manifestagao da opinido, ainda que nao sincera, de ser titular de um direito, dissolve afinal 0 interesse privado no interesse ptiblico. Em verdade, 0 interesse que move a acgiio nao é senao 0 inte- resse “desinteressado” de qualquer cidadio no funcionamento da justica ou, dito de outro modo, o prdéprio interesse do Estado na actuacao do direito objectivo. Assim sendo, como refere Calamandrei, “todas as pontes entre a accao e o direito subjectivo ficam quebradas: 4 forga de se insistir sobre a independéncia do direito processual relativamente ao direito substantivo, acaba-se por erguer, entre eles, uma mura- Tha sem janela”. (**) () Rocco, “La Sentenza.... op. cit.: 94. (5) Adolf Wach, Manual..., op. cit.: 47-48. @) Adolf Wach, Manual. 7 (°) Chiovenda, L’azione..., op. eit: 12/13. @) P. Calamandei, “La relativité...", op. cit: 37. 1218 LUIS CORREIA DE MENDONCA O que Wach concebia como garantia e instrumento de uma situagdo concreta de direito substantivo e Chiovenda como cola- boracdo organica entre os privados e 0 Estado € visto por Rocco como algo semelhante ao exercicio privado de uma fungao publica, como depois sustentar Camelutti. Com esta teoria “j4 percorremos plenamente a curva descen- dente da parabola que, como tantas vezes documentou Piero Cala- mandrei na sua polémica cientifica, no trogo mais préximo de nés declina fatalmente em direccao a nacional-socialista — Kampf wider subjektiven Rechte”. (*) Ora, Alberto dos Reis, apés elencar aquelas trés teorias € depois de criticar as duas primeiras, com as proprias palavras de Rocco, que traduz (omitindo porém as aspas) (®), adere as ideias () Paolo Ungari, Alfredo Rocco e L'Ideologia Giuridica del Fascismo, Morcel- liana-Brescia, 1974: 62. (°°) Nao creio que se possa coneluir outra coisa do confronto entre La Sentenza Civile ¢ 0 Proceso Ordindrio. Um exemplo, dos muitos que poderia dar: Rocco escreve: “La bontd della nostra concezione trova una conferma anche nelle difficolta inestricabili, in cui si avviluppano tutte le altre concezioni. che le si sono opposte, in Germania ¢ in Ita- lia. Ed anzitutto, quella che ha il maggior numero di fautori, ¢ fra i pit autorevoli: ciot la teoria del Rechtsschutzanspruch. La quale, battuta in breccia dal Bulow e dal Kohler, con- tinua a difendersi vigorosamente, senza perd che le riesca di sfuggire a questo dilemma: o di identificare il diritto concreto alla tutela giuridica col diritto astratto di agire: 0 di con- fonderlo col diritto subiettivo materiale. Si prenda infatti il processo di accertamento, in cui la cosa appare evidente: qui un dirito alla sentenza favorevole non solo non sorge colla domanda giudiziale, ma neppure colla chiusura della trattazione della causa, bensi soltanto quando il giudice si & formata una determinata convinzione sul materiale di causa. Solo in questo momento, cio’ quando i processo & finito, sorge il diritto o per l'attore di vedere ‘accolta la domanda, o per il convenuto di vederla respinta (...) E allora che resta del diritto alla tutela giuridica? Quale diritto si fa valere durante il processo? Posto che non si fa valere il diritto ad una data sentenza, sia parte dell'attore, sia da parte del convenuto, quello che si fa valere non pud essere evidentemente che 0 il dirito astratto di agire, spet- tante ad entrambi, o il diritto subiettivo materiale (il diritto affermato per l'attore: il diritto di libert’ pel convenuto) spettante a colui che ha ragione” La Sentenza Civile, op. cit.: 81. Por sua vez, Alberto dos Reis diz: “Esta doutrina, vigorosamente combatida por Bilow e por Kohler, ndo consegue fugir a este dilemma: ou identifica 0 direito concreto & tutela juridica com o direito abstracto de accionar, ou confunde a acco com o direito subjectivo ‘material, Com efeito, o direito a tutela juridica particular, & sentenga favoravel, sémente surge no fim do processo, quando o juiz forma a sua convicgio sobre os elementos dos autos; e sendo assim, pergunta-se: que direito que se fez valer durante o decurso do pro- cesso? A no se admittir 0 direito abstracto € geral de accionar, s6 pode invocar-se 0 direito subjectivo, que se pretende tomar effectivo; ¢ entio a teoria cai no dominio do con- ceito que fica atraz rejeitado” Processo Ordindrio, op. cit.: 65. Para a critica feita a Chio- ivile, 85-89 e Processo Ordindrio; 66. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1219 deste autor sob a afirmagao de que “ a doutrina de Rocco avantaja- -se sensivelmente as concepgdes de Chiovenda e Wach: e parece- -nos que explica satisfatoriamente a relagao juridica processual” (*") E do mesmo modo, a concepgao de Rocco sobre o fim do pro- cesso () que A. dos Reis perfilha (°°), partindo dela para comegar a acalentar a ideia de um processo dirigido pela autoridade de um juiz que declara o direito pré existente através de um procedimento célere e pouco aberto a manipulagao da pericia dos advogados: “O Estado tem o dever de assegurar a effectividade da justiga: incumbe-lhe, pois, tornd-la tao répida e completa quanto possivel para isso precisa de intervir activamente, por intermédio dos seus orgios, na instrucgao e na marche do processo” () Compreende-se, pelo exposto, que sé por infinita benevolén- cia ou com 0 propésito de leg timugiio cientifica se pode conside- rar o Prof. José Alberto dos Reis de 1907 em polémica com Chio- venda e esta data como a da renovagao da ciéncia do processo em Portugal (°°). Por esta altura Alberto dos Reis era um mero discipulo de Rocco — e este sim polemizava com Chiovenda — nfo tendo uma 86 ideia original sobre o problema da acgio. (°°) () Proceso Ordindrio, op. cit.: 67. () “Para nés, como a actividade jurisdicional ¢, Estado, e a intervengaio das partes no proceso néo é mais do que condigio ou pressuposto € delimitagao dos limites de tal actividade, deve considerar-se como preponderante € absorvente no proceso o fim do Estado", La Sentenza Civile, op. cit.: 24. (®) “0 Estado tem no processo um interesse proprio, que absorve até 0 interesse dos litigantes - a realizagdo do direito objectivo. Processo ordindrio, op. cit.: 70. C*) Proceso Ordindrio, op. cit.: 70 (5) Jodo de Castro Mendes, O Direito de Acedo Judicial, op. cit: 79. nota 174 € 175. ©) 0 proprio Alberto dos Reis desmente a tese de, por esses anos, ser seguidor do professor de direito processual civil de Roma, para ele mais claro ¢ profundo nas suas aulas do que nas suas obras. No relatGrio da “misséo cientffica”, que conjuntamente com Mar- noco e Sousa levou a cabo com 0 propésito de “dar conta da organizagao dos estudos ¢ dos methodos de ensino nas Universidades de Paris, Turim e Roma”, concluindo a apreciagao das duas ligdes que ouviu a Chiovenda, Alberto dos Reis escreve: “Estas duas ligbes foram das melhores que na Itélia ouvimos. Chiovenda, apesar de novo, € jé distincto professor de processo; mostra-se conhecedor da litteratura alema que imprimiu uma nova feigdo aos estudos do proceso, elevando esta disciplina & categoria de uma verdadeira sciencia, ‘Ao contrério do que sucede em geral com os professores italianos, Chiovenda acusa, como professor, méritos superiores aos que revela como escriptor. 'As duas ligdes que Ihe ouvimos, esto, na verdade, tanto em clareza ¢ nitidez, como na profundeza e no rigor I6gico, acima dos seus trabalhos escriptos — Saggi de diritto pro 1220 LUIS CORREIA DE MENDONCA O que levou A. dos Reis a adoptar a teoria daquele que vird a ser 0 “legislador do fascismo”, 0 “ministro mais mussoliniano do regime 7” (*") Sem duvida que também ele participou da intengao que carac- terizou a intervengdo dos homens publicos da sua época e que Anténio Sardinha resumiu na expressao “A Segunda Fundagao”: “fazer dos Portugueses nao apenas cidaddos de um Estado livre, como haviam tentado os liberais, mas membros de um organismo cultural do qual o Estado devia ser a expressdo politica”. (°*) E ainda no seu caso é a resposta & “questao nacional” que con- diciona o seu empenhamento politico e a sua producao intelectual. Foi a mao forte de um homem a empunhar a “ bandeira da ordem, da autoridade, da disciplina social” que o fez sair da tran- quilidade da sua vida profissional para exercer actividade no campo politico. A dialéctica de partido, a concorréncia de mercado, a Carta Constitucional e os cédigos, receitas cldssicas do liberalismo, nao se mostravam jd prestdveis para acudir aos males da vida nacional, a desorganizagio e a indisciplina colectivas. A concepgao biolégica e orginica da sociedade, desenvolvida na Organizacao Judicial, onde se sente a presenga forte de um cen- tro propulsor e agregador — o Estado da Nagio —, configura, na medida em que oferece, fora da atmosfera da sociedade liberal, um modelo de como a “comunidade nacional” era ou poderia ser, uma resposta a esses males. Ora, em Rocco, Alberto dos Reis encontrava uma teoria da acgZo que permitia, para além da sua consisténcia cientifica, asse- cessuale, Principii di diritto processuale civille. Chiovenda segue 0 methodo systematico na exposic&io das matérias: estabelece os principios e tira as conclusées, preocupando-se mediocremente com o aspecto formulario”: O Ensino Juridico na Franga e na Itdlia (tra- balho de colaboragdo com Mamoco e Sousa ), Coimbra, 1910: 174/175, () Sobre Alfredo Rocco, para além do trabalho de P. Ungari jé citado, pode ver- -se Tullio Ascarelli “Alfredo Rocco”, Rivista di Diritto Civile, ano XXVI, 1935: 378-381, F.Carelutti, “Alfredo Rocco (Necrologia)” Rivisia di Diritto Processuale Civile, Vol. X11, parte I, 1935: 292 € sobre o projecto de sua autoria de cédigo de processo civil, Mariano D'Amelio, “Progetto del Ministro Guardasigilli Alfredo Rocco”, Rivista di Diritto Pro- cessuale Civile, vol. XIV, parte I, 1937: 3-7. () Rui Ramos, Histéria de Portugal, vol. VI: op. cit.: 9. OS PRIMEIROS ANOS DE REACCAO CONTRA O PROCESSO CIVIL 1221 gurar, como nenhuma das outras duas assegurava, a supremacia do Estado, a subordinagdo dos interesses individuais aos colectivos, desde que projectada no ordenamento juridico. Era, pois, natural a sua preferéncia. Preferéncia de um homem que nas suas ligdes de Direito Constitucional, defendendo embora 0 sistema representativo sim- ples, () a teoria unicameral ('") e até, em abstracto, a superiori- dade da reptblica em relagéo 4 monarquia ('°'), reputava pura e simplesmente inadmissfvel a teoria da soberania popular de Rous- seau (') e se rendia a teoria da soberania da nagdo assente sobre a doutrina da consciéncia colectiva ('™). Para o lente de Coimbra que se incomodava com 0 facto de se confiar a soberania a “uma multidao inorganica”, que receava nao se poder impor a obediéncia politica a uma minoria dissidente, s6 uma teoria de soberania de animal de rebanho (Nietzsche) satisfa- zia as exigéncias de disciplina e autoridade: “os individuos nao constituem na sociedade mais do que partes integrantes de fungdes organizadas”; “s6 a sociedade que tem os caracteres de uma na¢ao tem 0 direito de se constituir e de organizar politicamente”; “o voto € um direito historicamente conexo com uma forma especial de governo e conferido pelo Estado, segundo os seus interesses”. ('“) Partindo das ideias da escola “hist6rico-evolucionista” para a determinagao da capacidade eleitoral activa, que reconhece ao Estado o poder de negar o sufrdgio as “classes perigosas”, Alberto dos Reis configura uma representagio politica que, “para ser genufna e verfdica, devia reconhecer no eleitor a qualidade de () Alberto dos Reis, Direito Constitucional, op. cit.: 190-191 ( “Teoricamente o sistema bicameral € inadmissivel; praticamente representa entre nés uma complicagao inttil”: Direito Constitucional, op. cit.: 160 () As condigdes e circunstincias do povo podiam, no entanto, exigir de prefe- réncia a adopgio da forma monérquica “e neste caso a implantagao do regime republicano, por um simples dilletantismo politico ou por uma exigéncia exclusivamente doutrindria, € um erro e um perigo”: Direito Constitucional, op. cit.: 121 (!®) Alberto dos Reis, Direito Constitucional, op. (5) Alberto dos Reis, Direito Constitucional, op. () Alberto dos Reis, Direito Constitucional, op. 66-67, t.: 71-73. 1222 LUIS CORREIA DE MENDONCA membro duma determinada fung4o social, e nao uma quantidade numérica, exposta a combinac6es artificiaes. A representagao poli- tica deve ser a imagem fiel da sociedade e por isso deve reflectir todos os aspectos e modalidades da actividade social. Desta maneira, votando o eleitor dentro da sua classe ou dentro da sua fungdo, desappareceria a inconsciéncia absoluta que o torna instru- mento cego de ambig6es e interesses alheios e desappareceria tam- bém a fraqueza que o torna incapaz de resistir as solicitagdes e ordens daquelle de quem depende” ('°5). Era j4 um passo firme na direcgao do corporativismo. (') Alberto dos Reis, Direito Constitucional, op. Ci

You might also like