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RAFAEL KALAF COSSI & CHRISTIAN INGO LENZ © DUNKER » Pees . A DIFERENCA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPEGIE E FAMILIA! PSICANALISE E FEMINISMO Judith Butler € uma filésofa de alto impacto no universo anglo-saxénico. Marcada por autores pés-estruturalistas, como Foucault, Deleuze, Derrida, e por teses da filosofia _ critica alema pés-kantiana e hegeliana, ela nao deixa de tra- var um didlogo critico com Lacan. Lembremos que Lacan _ foi um psicanalista que inspirou varias autoras da chamada segunda onda do feminismo, como Luce Irigaray, Rosi Braidotti e, mais tarde, Julia Kristeva. Ao criticar 0 biolo- gismo naturalizante de Freud e valorizar a dimensio de lin- Suagem inerente aos processos simbdlicos de subjetivacao € de sexualizacao, Lacan recolocou a psicandlise no debate, 10 presente artigo foi publicado pela primeira vez na revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, Vol.33, p1-8. — os anos 1970, sobre o carater ético-politico das «a _ntidades, dos discursos € das praticas sexuais. a principalmente nos trabalhos da década de 1999, ae uma forte ligagdo entre psicanilise e feminismo, inspirando a retomada da obra de Hacan para um novo con junto de autoras feministas, como ipo Benjamin, Erica Burman e, dentro da propria psicanilise, Monique David- Ménard. Essa nova critica 4 psicanilise agora voltara suas forgas contra 0 universalismo masculino e sua reificacdo culturalista do simbélico, que impregna as teses dualistas do Lacan mais proximo do estruturalismo de Saussure ¢ Lévi-Strauss’. Para Butler, a nogdo de género é problems. tica ¢ no pode ser pensada sem um aporte performativo da linguagem e fora das politicas que implementam mudangas nas relagdes de poder que existem entre os géneros, go \ ences pa sexUaL Nos anos 1950, com Simone de Beauvoir, as feminis- tas demandavam igualdade social e politica com telacdo aos homens; nos anos 1970, a reivindicacao desloca-se para o reconhecimento da sobreposicio da diferenca sexual 4 diferenga de raga e classe social’. No terceiro momento, no qual se insere Butler, notadamente a partir dos anos 1990, a énfase se concentra na legitimagao de novos modelos de identidade ¢ na tentativa de definir o que poderiam ser as “politicas de gozo”. Nesse momento, a teoria feminista havia conquistado relativo reconhecimento universitario, atestado *CAMPBELL, K. Jacques Lacan and feminist epistemology. New Yorkand London: Routledge, 2004. Ril SLAGO, M. C. S. A psicanilise nas ondas dos feminismos. In rs & J. M. Pedro (Eds.), Diversidades: Dimensdes de género ¢ 20° 2010, p. 1-23. Recuperado de http://www. siriamgrossich br/pdff/a_psicanalise_nas_ondas. pdf. ‘ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIE E FAMILIA \ 131 pela autonomizacio de areas de pesquisa como “estudos gays € lésbicos” e depois estudos queer’, pela sua presenca na delimitagao de politicas publicas voltadas para minorias e pela organiza¢ao institucional de sua militancia engajada. A teoria de Butler € original, sobretudo, por buscar investigar género a partir daquilo que foge 4 norma. Os géneros nao-inteligiveis envolvem uma gramitica diferente da mera transgresso, suspendem as premissas constituin- tes dos edificios normativos, indicando que talvez exista uma anomalia no prdprio proceso social, mais vasto que a génese de identidades e que age consensualmente na delimita¢ao e nomeacao dos géneros. O problema nio é, portanto, apenas separar o género das relacdes familiaris- tas, nas quais os papéis sociais so encenados, reproduzindo relag6es de poder e hierarquia, por meio de conflitos admi- nistrados e reificados entre paternidade e masculinidade ou entre maternidade e feminilidade. Ha algo de indis- cernivel, inerente ao conceito de género, que corrompe o fundamento identitarista das relagdes sociais. Butler lé a psicandlise com a forte presenga de Foucault e, portanto, absorve a maior parte das criticas que esse autor faz a psi- candlise. No entanto, assim como em Butler, a posigio de Foucault com relagao 4 psicanilise ¢, no minimo, ambigua’. ‘Convencionou-se chamar de estudos queer aqueles que apontam para as estruturas de poder e de dominagio que estabelecem os padrdes de acei- tabilidade e rejeigio de identidades sexuais. A teoria queer incita que as Praticas sexuais nio-normativas funcionem como formas de resisténcia simbélicas e politicas, tencionando transformagGes sociais. a cp DUNKER, C. 1. L. (2011). Estrutura e constituigao da clinica psicana- itica: Uma arqueologia das praticas de cura, psicoterapia e tratamento. Sio Paulo: arts el ee 32. \. Fates 0 SEXUAL B compreendida como dispositivo auxiliar do Processo de psiquiatrizagao €, a0 eS tempo, alternativa Critica ag silenciamento da loucura; discurso que aloca a verdade ds sujeito em sua sexualidade e, a0 mesmo tempo, heranca da tradigdo “espiritual do cuidado de si”; unica forma de pen- samento, a0 lado de Heidegger, a perguntar o Prego que 9 sujeito deve pagar para poder ter acesso a verdade de seu desejo; modalidade de poder e de resisténcia ao controle da sexualidade, que absorve as figuras da hipétese Tepressiva, tais como a crianca masturbadora, o adolescente Perverso, a mulher naturalizada e 0 pai impotente, em um regime renovado de confissao pastoral-crista. Butler segue essa retérica da ambiguacao em sua importa- Gao € critica de conceitos, o que € muito produtivo, pois leva o leitor a se perguntar por qual das psicandlises devemos nos orientar tendo como horizonte uma clinica critica. A dissolu- cao da unidade dos géneros talvez possa ser deslocada também para a dissolucio dos géneros psicanaliticos e suas familias, Curiosamente, as nogdes que parecem despertar maior sim- patia em Butler so aquelas que oferecem maior resisténcia 4 incorporagao estruturalista lacaniana, caracterizada pelo periodo do retorno a Freud, de 1953 a 1963. Entre tais nogées, destacamos a de pulsao. Até certo ponto, “somos dirigidos por aquilo que no conhecemos e nao podemos conhecer. Essa ‘pulsio’ (Tried) & precisamente o que nao se reduz A biolo- gia e nem a cultura, mas sempre o lugar de sua densa con- vergéncia”. O corpo pulsional nao acata completamente 38 an Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004 a ee ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 133 normas que impéem sua materializagao em corpos-homens e corpos-mulheres. A pulsio carrega, portanto, uma poténcia transformadora e outra que faz resisténcia, o que a torna uma nogio interessante aos propésitos politicos de Butler. Por outro lado, a filésofa critica duramente conceitos fun- damentais em Lacan, como o simbélico e a diferenga sexual, principalmente em Problemas de género’ e Undoing gender’, que haviam sido recebidos como um avango desnaturalizante feito pela psicandlise. Contudo, a prépria existéncia social da psicandlise como pratica clinica funciona como uma espé- cie de prova de que a sexualidade nfo se submete 4s normas sociais que pretendem controlé-la, ou seja, uma espécie de “resistencia dos materiais” de que nem tudo pode ser cons- truido indiferentemente em termos de sexualidade. Butler pode ser considerada uma construtivista que critica o essen- cialismo universalizante e naturalista que recai sobre a teoria clissica de género. Mas ela desconfia também da soberania da plasticidade do simbélico, como advoga 0 pensamento socio- l6gico liberal, como o de Giddens, e também de sua totaliza- ¢4o dualista e formalista, como quer 0 estruturalismo classico. ESPECIES DE GENEROS Em Problemas de género’, Butler aponta que a heteronor- matividade prevalecente na contemporaneidade se assenta "BUTLER, J. (1990). Problemas de género — feminismo e subversio da identidade, Tradusio: R. Aguiar, Rio de Janeiro: Editora Civilizacao Brasileira, 2003. ; ‘BUTLER, J. Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004. °BUTLER, J. (1990). Problemas de género - feminismo e subversiio da identidade, Traducio: R. Aguiar, Rio de Janeiro: Editora Civilizasio Brasileira, 2003. 134 \ FACES 00 SEXUAL na concep¢a4o bindria dos sexos e dos géneros, n ‘ ; ; AGE sao heteronormativa estipula ainda que caracter, . ae . es mico-fisiolégicos, as nomeagoes sociais q le Ati exuai os e praticas s is devem ser concorda; ompul. Sexuaig Benerog ; a : inte ue nao se enquadram nesse sistema ideal d, 8. Os © coe- réncia € continuidade nao correspondem a géneros ; ligiveis, masculino € feminino, sendo, Gainer relegados 4 invisibilidade e 4 patologia. Mais além de ae critica a segregagao de genero, esse modelo trouxe oe dade. Ele permite pensar a emergéncia de patologias iedade histdrica € conhecida, como uma rte anato os desej sujeitos q novi cuja var de forgamen da individualidade. Seguindo a trilha aberta por Foucault, Butler mostra que as patologias, particularmente as patolo- dem sempre a um excesso de indi- to presumido por uma matriz identitarista gias “mentais”, correspon! vidualizagao identitaria de uma experiéncia. Dai que se possa imaginar entéo uma politica pés-i- dentitaria e desconstrucionista do género. Isso promoveria dade de existéncia e direito de cidadania aos sujei- legitimi iam espécies tos que fogem 4 norma, nao porque eles seri desviantes ou patolégicas de um mesmo género, mas por que o desvio e a anomalia sao a regra universal em termos de género. A universalidade das “espécies” oper um deslocamento da patologia 4 politica. Nessa emprei- tada, a fildsofa denuncia a instabilidade e a a-naturalidade das identidades. A coeréncia_da identidade de _géneto, toteles, pela seguindo a acepcio légico-categorial de Aris qual conhecer é incluir a espécie ao genero, € esconseruida pelo argumento de que nao ha essencia por tras do gene ° Poderi: 5 A oderiamos dizer que é como se a ontologia que estip' assim, ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 136 género (gender), que naturaliza suas oposicées horizontais, a outros géneros, bem como determina uma hierarquia ver- tical, para as espécies que nele se incluem, ou nas familias que os contém, deveria ser substituida por uma ontologia dos géneros (genre), como matrizes literdrias, compostas por performances de estilo, por escolhas pragmaticas e por exigéncias de recep¢ao. Contra a hipétese da estrutura bindria estavel, que sus- tentaria teoricamente o poder invisivel que nos faz acre- 10 itar na “natureza-simbdlica” dos géneros, Butler" propée que género é um ato intencional e performativo. Palavras, —~—__—— gestos © atos expressos reiteradamente criam a realidade dos géneros. E como se ela estivesse percebendo aqui um “antigo problema legado no interior da antropologia de Lévi-Strauss". Como se sabe, o pai do estruturalismo ana- lisava os diferentes sistemas simbélicos como sistemas de troca social homélogos 4 troca de palavras, dai sua estrutura significante. A demonstracao dessa tese recorreu aos mitos e aos sistemas formais, como o parentesco, a culindria, as estratégias de nomea¢aio do pensamento selvagem, o que deixou um espago incégnito para qual seria exatamente a relacio entre 0 mito € 0 rito. O mito sempre se impde ao rito como o roteiro de uma pega de teatro? Observe-se que essa abertura é crucial para entender a importacao da nogao de estrutura por Lacan. Uma coisa € afirmar que o inconsciente possui estrutura de linguagem, Ibid. SLEVL-STRAUSS, C. (1955). Antropologia estrutural I. Tradusio: B. Perrone-Moisés, Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1998. — 136 \ FA ces 00 SEKUAL ea neurose € um mito individual, que os Sintomas qu i , a suem estrutura metaférica € que os desejos POssuem etry, mas outra coisa é afirmar que a onda nalitico pode interferir e transform a ar orque a teori ee algo um pouco diferente da teoriza¢ao da pratica clinica; ainda que a primeira possa condicionar a segunda, a primeira Possyj afinidade com o mito ea segunda, com 0 rito. E exatamente nessa conexdo instavel entre mMitos-dis. cursivos, que organizam a distribuigao dos géneros coma identidades e ritos-praxicos, que os transformam e atua- lizam diferencialmente, que Butler coloca seu argumento, Atos repetidos de uma forma estilizada produzem efeito de ontologizar os géneros, autojusti ficando a crenga na exis- téncia de o homem ou a mulher. E assim que corpos, em tura metonimica, do tratamento psica as variantes do mito, do sintoma ou do desejo. Isso ‘ izacio da estrutura das formas simbédlicas é Tg , si infinitamente diferentes, adquirem aparéncia de géne- ros fixos ¢ idénticos. Contudo, nao ha “agente” por tras do ato, nao ha estrutura pré-discursiva. O agente é construido repeticio imitativa pode ocorrer como parédia, como citacio ou como iteracao, organizando ‘atos on ———— performativos que criam a ilusio de substancia, unidade, eee eye a coeréncia e identidade. A ilusio de um modelo original, que nao existe fora dessa repeticio, explicaria o sentimento ents tequentemente presente de inadequacao de género, _ ou de inadequagio corporal. ACRITICA DE BUTLER A PSICANALISE DE LACAN Para Butler, a psicandlise lacaniana se sustentaria na matriz, heterossexual. Ao invés de contesté-la, sua estratégia tedrica zw — A DIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: ctNeRo, ESPECIEE FAMILIA \ 137 Fa fundamenta¢ao daria ainda mais forca a tal matriz, Categorias psicanaliticas como ordem simbélica e diferenca gexual impoem regras de inteligibilidade cultural que sio tomadas como se fossem transcendentais e imunes a trans- formagoes sociais. Isso fica claro na Passagem de dualismos | internos 4 estrutura da linguagem, como significante/sig- nificado, sincronia/diacronia, fala/lingua, que sao articula- dos com a diferenga sexual por meio de Oposicdes como falico/castrado, ativo/passivo ou falta-do-lado-do-sujeito/ falta-do-lado-do-Outro. Nesse contexto, a diferenga sexual, funcio recalcada e recalcante, seria apenas mais um caso da diferenca signi- ficante, na qual cada elemento possui valor e significagdo sobredeterminado por todos os outros. A ordem simbélica, como caso de dupla articulacao dos sistemas simbdlicos, funciona assim como sucedaneo ontolégico invertido do tealismo naturalista tradicional. A concepgio universalista de totalidade, com seu caracteristico ponto de negatividade, de incompletude ou de falta decidiria a instalagio de uma espécie de género subjetivo, como estrutura nao modifica- ' vel. Isso dificultaria a tarefa da psicandlise para repensar arranjos culturais como novos parentescos, novos tipos de . familia (como a unio entre homossexuais), praticas sexuais € géneros indiscerntveis (a transexualidade, por exemplo). Sem algum tipo de renovagio, o saber psicanalitico con- tinuarg pensando binariamente género. Desse modo, nao faré mais do que reproduzir os regimes de poder € negli- Senciar outras formas humanas de reconhecimento. Jéem Freud (2011/1925), sexo e jdentidade sexual nao andavam necessariamente juntos. Suas postulagdes sobre a | . , a | 138 \ FACES DO SEXUAL = formasio da identidade sexual e de Bénery ge 7 na nogao de narcisismo, assim como a modalige ty rencial de gozo se mistura com a identidade = rete, conceito de autoerotismo. Sao indicios tedri Ue, 08 que inuid: a apo, tam para a descont lade entre Sexo, Bénero, de 7 e Soria de Butlers Ss fatores tende ser patologizada. Sao os casos de fixacao pulsional = » TBtes. sio a uma organizacao pré-genital, inversio do objeto sexual, altera¢do do objetivo sexual ou escolha Narcisica de objeto. Butler critica a concep¢ao binaria dos sexos na qual Freud opera ¢ que o conduz a uma ontolologia da iden- tidade sexual, apoiada por uma teoria da génese natural dos géneros. . Grosso modo, para Freud, é a partir do Edipo que o sujeito se define como homem ou mulher. A teoria laca- niana dos anos 1950 ratifica tal concepgao: Nn praticas sexuais, tal como se evidencia na te Porém, em Freud, a incoeréncia entre tai: O complexo de Edipo tem uma fungao normativa, nio simplesmente na estrutura moral do sujeito, nem em suas relagdes com a realidade, mas quanto a assuncio do seu sexo [...] ha no Edipo a assungao do préprio sexo pelo Sujeito, isto ¢, para darmos os nomes As coisas, aquilo qué faz com que o homem assuma o tipo viril e com que # mulher assuma um certo tipo feminino, se reconhega como mulher, identifique-se com suas fungoes de mulher subversio Civilizagi “BUTLER, J. (1990). Problemas de género — feminismo ¢ identidade, Tradusio: R. Apaing, Re ‘ro: Editora Brasilien 2000 8% Aguias, Rio de Janeiro: . | ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIE E FAMILIA \ 139 A virilidade ¢ a feminilizagao sio os dois termos que tra- duzem o que é, essencialmente, a fungao do Edipo, iy O sujeito da psicandlise se estruturaria pela matriz das relacbes normativas da heterossexualidade. A passagem pelo Edipo “normalizaria’ ¢ “humanizaria” o sujeito, tor- nando as espécies de sexualidade, de género e de familia, como estrutura fundamental de socializagio, estruturas correspondentes e comensuraveis. Os casos de incoeréncia, incongruéncia ou disparidade conduzem 4 ilagio clinica de que 0 sujeito nao atravessou adequadamente o Complexo Edipo. Guardadas as proporcdes do contra-argumento de que a psicandlise universaliza a condigéo patolégica da sexualidade, de que a propria pulsao é perversa e miltipla do ponto de vista de suas formas, ainda assim o processo de deducao das formas clinicas parte da neurose, passa pela perverstio e chega na psicose. O movimento clinico cru- cial que atestaria essa passagem € a localizagao do falo no campo do Outro, operacao realizada por meio da metafora paterna, no interior do qual o significante do Nome-do-Pai faz funcio fundamental. Butler’ recusa essa concep¢ao do Complexo de Edipo, cujo desfecho é a formacao de uma identificagdo de género, uma escolha de objeto e uma neu- totizagio do desejo pela fantasia. A teoria lacaniana da LACAN, J. (1957-1958). O semindrio, Livro 5: As formagbes do incons- ciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 171. : BUTLER, J. (1990). Problemas de género — feminismo ¢ saree identidade. Tradugio: R. Aguiar, Rio de Janeiro: Editora Civilizagao Brasileira, 2003. BUTLER, J. Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004 tao \ faces 00 SEXUAL seyicgo do sujeito € apenas um caso invertido © ma constituica0 ¢ orma heterosexual”. ole = ir dos anos 1953-1960, a ordem simbéti, pa ne sepresentagdes baseadas na Hinguagem Ja o sexo, fundando suas diferentes Posigoes, Masculing rere i ignificante falico, A oan ¢ feminina, a partir de um signil Seen ttiE gio da identidade sexual depende da submissag a castragig simbélica e da passagem pelo drama edipico. A diferena sexual se daria a partir da institui¢4o do falo como signifi- cante, como representante da falta produzida pela Castracio, “Ser o falo” referir-se-ia 4 posicao feminina. No homem, prevaleceria a dialética do “ter 0 falo”. Essa formulacao parece se incluir perfeitamente bem como caso no qual a inteligibilidade do género implica enquadramento nas normas da heterossexualidade compul- soria pautadas no falocentrismo. Butler recusa o postulado da binaridade dos sexos, expresso pela centralidade do falo como organizador tinico da sexualidade. Seu cardter onto- l6gico, denunciado Pot expresses como ser, ter, falta-em-ser © por suas predicacdes conceituais como um significante ‘mpronuncidvel, constitu uma contradi¢ao intrinseca 4 estratégia lacaniana: = termos lacanianos, perguntar sobre o “ser” do géneto e/ou di _ © Sexo € confundir o proprio objetivo da teoria da n : 4 om cm Lacan. O autor contesta a primazia dada nt i: 2 ina- » Bt M4 Metafisica ocidental e insiste na subordin 0 de pergunta “O que "4 Pergunta “como se institul® 5 Bona J, 95 A significagao do falo. In: LACAN, J- (1964) Janeiro: Jorge Zaher Ed., 1998, p. 701. So AOIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 141 meio das praticas significantes da eco- 16 ) Jocaliza © ‘ser po’ nomia paterna? nceito lacaniano de simbélico justificaria, por meio méascara l6gico-formal, o carater segregatério, ¢ moral dos critérios de inteligibilidade norma- bélica cria a inteligibilidade cultural por Oco! de uma yalorativo tiva. “A ordem sim! cio das posigoes mutuamente excludentes de ‘ter’ o falo m (a posicao dos homens) e ‘ser’ o falo (a posigao paradoxal das mutheres).””” O progresso cada vez mais formalista das teses de Lacan, areducio da significagao a uma fungio légica, por meio da incorporacao das teses de G. Frege, 0 avango rumo a uma teoria do poder derivada da estrutura quaternéria dos dis- cursos, simplesmente aprofundariam essa dificuldade ini- cial do pensamento lacaniano. E Butler conclui: Ora, é preciso entender o drama do Simbélico, do desejo, da instituicéo da diferenca sexual como uma economia significante autonoma que detém o poder de demarcar e excluir 0 que pode ¢ o que nao pode ser pensado nos ter- mos da inteligibilidade cultural’. Tal teorizacao parte do pressuposto equivocado de que ha uma substancia intrinseca aos géneros, mesmo que c SBUTLER, J. (1990) Probemas de ginero feminism ¢ suberdo da Rtidade, Tradugio: R, Aguiar, Rio de Janeiro: Editora Civilizacao pslleira, 2003, p. 74, ibid p.75, Ibid., p.117-118, ie | 142 \ FACES DO SEXUAL 5 ndo o teor dessa substancia Para a tin deslocai : para a negatividade. O falo € concebido com a a i : la réncia universal a partir da qual as posicées ase Tefy, Nas femininas sio dedutiveis. Obviamente, Butler yaj a nogées de diferenca sexual e de simbélico Propostag a momento da teoria lacaniana, j4 que alimentam q “ a que 0 que promove inteligibilidade seria 0 enguadramen, nas normas da heterossexualidade compuls6ria, 7 O IMPOSSIVEL E 0 CONTINGENTE Resta, entao, saber, de acordo com Knudsen”, se “a teorig psicanalitica permitiria incorporar novas formas de sexug- lidade, novos géneros, que nao se ativessem ao binarismo dominante em nossa sociedade, sem cair na patologia’. Para responder a essa pergunta, precisarfamos rever como a diferenca, a negatividade e a universalidade poderiam se recombinar na produgao social dos géneros. Géneros ininteligiveis como a transexualidade, 0 traves_ tismo, dag queens so, antes de tudo, praticas sociais, Nao sio sintomas, nem desvios de uma sexualidade original e univer- “salmente esperada. O « que Butler percebe com menos clareza € que ha em Lacan, desde seu inicio, uma critica dos excessos da experiéncia identidade. Isso ocorre desde a teoria da for- magao do eu contida em O estddio do espelho como. formadsr da fungéo do eu, de 1936. Para Lacan, o carater ontolégico da identidade é uma ilusio imaginaria. Depois disso, Lacan "KNUDSEN, P. PP. $. Genera, pocandlise ¢ Judith Butler: Do tate sxualismo a politica (Tese de doutorado). Universidade de Sio Paulo, Paulo, 2007, p. 16. . _ ANUIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LAGAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \. 149 se interessara pela nao-identidade do objeto da economia {bidinal, chamado objeto a, bem como pela experiéncia de corrosio da identidade que ele descreve com a categoria de goz0. Finamente, ele enfatizara a nao identidade ontolégica com seu conceito de Real, desenvolvido nos anos 1970 e decisivo para entender a sua nova teoria da sexuacio. Ora, se, para Butler, identidade se opde a diferenca, sendo a diferenga 0 conceito prim: io, para Lacan a dife- renga é secundaria em relacao a repeticao ¢ seus cruzamen- tos em termos de universalidade e existéncia. A pulsao, conceito tio importante para Butler, é um dispositivo de repeti¢éo que opera em todos os modos de subjetivacao: experiéncias de satisfacao, de gozo, de trauma, de luto, de transferéncia, de identificacio. Se levamos em conta o seminario 7 sobre a Etica da psicandlise”, encontraremos um grande esfor¢o de Lacan por articular a repeticao0 como categoria simultaneamente logica e moral. E a repeticao, a deformagao e a negacdo fundamentam simultaneamente gramaticas sociais de reconhecimento social e formas légi- cas do desejo e do gozo. O Real em Lacan é dedutivel do conceito de repeticao. Lembremos que o género como performativo, segundo Butler, também € estritamente referido por géneros discursivos baseados em espécies de repeticao, como a parédia, a ironia, a citagao e encenacio. Quando um autor como Zizek” critica “LACAN, J. (1959-1960) O semindria, livro 7: a ética da psicandlise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. ZIZEK, 8. The ticklish subject: the absent centre of political ontology. London and New York: Verso, 1999. 144 \. FACES DO SEXUAL Butler por desconsiderar 0 registro do Real; ting texto politico de mudangas sociais quanto no an 20 con, da diferenga sexual, o desencontro nao poderia sear te 6tigg vel. Esse desencontro decorre do fato de que 9 Real a Not possui duas implementagoes légico-topol6gicas. 8 prim, “can mais conhecida é aquela que o articula com a mog, alidede impossivel. A segunda, nao menos importante, Mostrar do o Real para Lacan também é a contingéncia. Quan, ah Bute critica Lacan, argumentando que os géneros siio Performa, vos contingentes e que a retérica do impossivel é apenas um efeito do estruturalismo transcendental, ela ignora, ¢ ¢ © que Zizek — esse tedrico engajado do ato contingente — quer fazé-la entender, que ha em Lacan espaco justamente Para incluir a pulsio como a teoria da geracao da contingéncia, & certo que a doxa lacaniana aceitou bem melhor o Real como impossivel do que o Real como contingente, assim como reduziu a teoria do ato analitico a um capitulo Ppreparatério da teoria dos quatro discursos. Mas esses so justamente tipos de diferengas internas as psicandlises, nesse caso a psicanilise lacaniana, que Butler nos faculta perceber. Para Butler, é justamente nas repetigoes performativas que pretendem materializar 0 corpo que algo subversivo escapa € pode vir 4 tona. O corpo nio se presta a estabili- dade ¢ maleabilidade que o subordinariam, por completo, as normas. No corpo, a norma fracassa e, nesse fracass0, 4 norma aparece como contingéncia. Processo semelhante 20 argumento de Bodies that matter?, no qual Butler exagera “BUTLER, J. Bodies that matter: On the discursive limits of ‘sex. NW York and London: Routledge, 1993, a /ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIE E FAMILIA \ 145 DS operadores ontolégicos da légica simbélica~-norma- tiva ao extremo até que nao funcionem mais como tal. Esse método, baseado no paroxismo da repeticao, emerge do interior dos proprios cédigos de legitimidade, abrindo espago para estratégias de desmantelamento e reconfigu- ragdes interiores ao sistema simbélico e ao cenério social. Zizek, em The ticklish subjec!, argumenta que essa estratégia de abalo do simbélico teria seu potencial critico superestimado. A subversio e as reconfiguracées performa- tivas que atingiriam 0 funcionamento do Outro sé promo- veriam mudangas parciais sem transformagio da estrutura. ‘Ao contrario, € possivel que tais intervengées alimentem o fancionamento hegeménico do simbélico, fortalecendo a resisténcia. A reconfiguracao do campo simbélico sé seria proporcionada pelo ato ético, ou seja, “pela intervenc4o do real de um ato”. Enquanto o ato da fala sustenta-se em normas simbélicas pré-estabelecidas e sobredeterminadas, entre 0 imposstvel eo necessario, 0 ato ético é contingente e possivel, capaz de reordenar as coordenadas simbélicas pela intrusio do real. O ato implica em “correr 0 risco de uma suspensio momentinea do grande Outro, da rede sécio-simbélica que garante a identidade do sujeito; um ato auténtico ocorre quando © sujeito arrisca um gesto que deixa de ser coberto pelo grande Outro”. O ato ético, por sua imprevisibilidade, nio irrompe cal- culadamente, nem é€ passivel de planejamento. Para que BZIZBK, §, The ticklish subject: the absent centre of politcal ontology. London and New York: Verso, 1999. ‘Ibid., p. 262. *Ibid., p. 264. ™~ 145 \_ FACES DO SEXUAL os géneros ininteligiveis possam ser reconhegj, da a existéncia legitima, a sua identidade deve se, Fa © $F descon trufda. Isso abre a possibilidade de reconheciment, 0 de y, imbélico”. No entanto, i 5 ma “lacuna no Simbélico’ , isso nao dea ainda a existéncia de experiéncias que repres entam o fae casso da possibilidade de reconhecimento, ou seja, de et riéncias que ponham em evidéncia a limitagao simb, icy desse processo. A reformulacao das nossas Pretensoes de reconhecimento, pela descoberta de que a propria facul, dade de reconhecimento esta sujeita 4 contingéncia no tempo e na histéria, ocorre por meio de atos que antecipam oy derrogam o ordenamento atual da lei, evidenciando a ocor- réncia do impossivel. SEXUACAO A concentragao da critica de Butler a Lacan no Simbélico revela que a filésofa opera com uma no¢4o. muito mais his- torica e circunstanciada de Simbélico do que costumamos encontrar no lacanismo corrente. O Simbélico estrutural poderia ser contraposto a uma acep¢do mais pragmitica € construtivista de Simbélico, ressignificando o estatuto teérico da diferenga sexual. Segundo Zizek, o cerne do problema reside no fato de que Butler nao teria levado em conta que, para Lacan, em seus semindrios tardios, a dife- rena sexual nunca pode ser propriamente simbolizada 0° traduzida em uma norma simbélica que fixa a identidade sexual do sujeito. O sexual comega a ser confrontado cada A DIFERENGA SEX! : UAL DE BUTLER A LACAN: oEyen, Espey EEFAMIUA \, 147 js com 0 Real, de tal maneita que, em um a aliisb astante butleriano, acaba Por se cee oe it a sentido e da significagio, como se tase me aideia inicial de que toda Significacio é sexual, rast sexualidade € indutora de significacao. Ali onde , 4 Ob simbolizagao-sexualizacio fracassa, fazendo 0, surge 0 Real. A expressio diferenga sexual pode decomposta em diferenca-Real e sexualidade-Sim- diferenca sexual deixa de ser uma duplicagao da ver rocess' ab-sens entao set polica. A diferenca significante e passa a ser referida a uma experién- cia nfo-identitaria de gozo. Essa ideia fica clara na nogao de que os discursos, para Lacan’, fazem uma espécie de contorno ao Real, sendo gerados pelas suas impossibilidades fundamentais: gover- nar, educar, fazer desejar, analisar. No interior da teoria dos quatro discursos, desenvolvida entre 1966 © 19 quatro cscus®s, passa a designar 0 homem € a mulher como semblantes. EPSSSARB ACES DEE Sena 7 on idua- E semblante € um lugar de diseurso no qua sin lizam agentes pragmiticos de fala. Tal como personagens ou individuos que “parecem” como senhores de suas pro- prias falas, quando, na Verdade, sao falados pelo discurso no qual estio incluidos. E inegavel que 0 conceito lacaniano de semblante, derivado da no¢4o jakobsoniana de domi- nante de discurso e do déixico na linguistica da enuncia- sio de Benveniste, é uma nogdo bastante proxima do que aparece na tradi¢do anglo-saxOnica de filosofia da lin- Suagem como performativo. E, portanto, pelo real do ato, es J. (1968-1969) 0 semindria, toro 16: de um Outro outro. ° Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. . ig, 14g. \_ Faces 00 SEXUAL ingénci tiva, e na ntingenc® performativa, € nao pelo Teal q, como col et bilidade estrutural, que Lacan © Bu q curso, como imposst podem se aproximar. Esse Real, como impos: pira norma alguma, mas, ainda assim, precisa ser difer;, do dk gua acep¢do como esséncia natural ou transcendente, Copjecss duvida que diferenca sexual seja uma diferenca especial iit diferenca que estabelece e cria outras diferengas, como 9 género cria suas espécies e familias. A diferenca sexual tal. vez pertenca a um género diferente de diferenca, quando a comparamos com a diferen¢a de raga, a diferenca cultural ou a diferenca de classe social. Enquanto estas preservam a lej geral de transporte topolégico de propriedades, que caracteri- zam os sistemas simbélicos formativos da Ordem Simbélica, a diferenca sexual é uma espécie de caso particular da dife- renga, uma diferenca sem familia na qual possa ser incluida. Copjec” compara as antinomias da razao e as formulas da sexuacao de Lacan, desenvolvidas a partir de 1971. Longe da anatomia e dos papéis de género, a sexuacao resulta das demandas ldgicas do discurso. E impossivel dizer por que a linguagem, esse sistema de reconhecimento de diferencas sexuais, falha. Existem, no entanto, dois modos de falhar: ° modo masculino e o modo feminino. A nao-estabilidade pe ae a sua nfio-identidade a si, nao decom’ ae aah nto dos termos nos quais a diferenca sexual © significada. A sua néo-inteligibilidade nao decorre da ley sivel de ser simbolizado - ve aOling: “COPJEC, J. Read my desire — Lacan against the historicists. Cambridge and L 4 “pid N4O™ MIT Press, 1994, A DIFERENGA SEXUAL OE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 149 jnfinitude da significagdo, permanentemente em Processo, Copjec nao interpreta a falha da linguagem como insufi- ciéncia para nomear um objeto pré-discursivo, mas como contradigdo que a linguagem carrega em si. O sexo coincide com essa falha e com essa contradicao inevitavel. Como se o sexo fosse uma identificagao fracassada. E “a incom- pletude estrutural da linguagem, e nao que o sexo seja em si mesmo incompleto”*°. Copjec quer desubstancializar o sexo, trata-lo como entidade vazia, enquanto Butler ainda o consagraria ao campo da linguagem: Vinculando o sexo ao significante, ao processo de signifi- cago, Butler faz da nossa sexualidade algo que se comu- nica a outros. Enquanto o fato de que a comunicacio, sendo um processo e, desta forma, continuo, impede uma completa revelagéio do conhecimento num determinado momento, um conhecimento adicional, ainda assim, esté colocado dentro do campo das possibilidades. Quando, pelo contrario, sexo é desvinculado do significante, ele se torna aquilo que nao se comunica, aquilo que marca © sujeito como nio podendo ser conhecido. Dizer que © sujeito € sexuado é dizer que nao é mais possivel ter qualquer conhecimento acerca dele ou dela. Sexo nao tem outra fungdo seno limitar a razfo, remover 0 sujeito do campo da experiéncia possivel ou do conhecimento puro.” Seo sexo nao pertence a ordem significante, ele nao pode ser desconstruido. O sentido sexual nao deve ser revertido id, p.206. Ibid., p.207, 150 \ FACES D0 SEXUAL cessos socais de sexualizacao do sca Cn falta ou fracasgo d Mas, es a esse extremo em sua Critica g Bae ns t; apenas em pro! justamente, con: tido. Copjec chega Sexo é 0 que 140 pode ser falado pelo discurso, ni ate ie nenhum dos intimeros significados que tentam day ont dessa impossibilidade. Eliminado esse impasse radical a discurso, Problemas de género, apesat de toda sua fala sobre 5 pee 2 sexo, elimina 0 proprio sexo. Butler erra justamente por circunscrever 0 sexo como um produto do simbélico, passivel de resignificacées histé- rico-culturais. Para Copjec®’, Lacan, ao introduzir a teoria da sexuagio, seria mais subversivo que Butler. Ao pensar 0 sexo fora do simbédlico, como incomensurabilidades entre modos de gozo, como se escreve no andar superior das f6r- mulas da sexuacao, ele estaria derrogando o principio do dualismo nao em fungao de uma multitude de géneros, mas pela impossibilidade de que os dois sexos facam um género. Os sexos se articulariam secundariamente com processos de subjetivacio como a fantasia, a castracao e © falo, como se escreve no andar inferior das formulas da sexuacao. Segundo Knudsen, “ao se manter nesse-nivel de critica, Butler teria sido deixada para tras por um Lacan, quando este saltou das identificagdes edipicas para as formulas da sexuacio”™. "Ibid. p. 211, “Ibid, p. 207. x aed PPPS. Género, psicandlise ¢ Judith Butler’ Do a Paulo 2000, ait (TTese de doutorado), Universidade de Sio Paulo» ae I ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 181 No seminario 20, ...mais, ainda®’, Lacan especifica a diferenga sexual a partir da diferenca entre o g0zo mascu- lino eo feminino. A critica de que o dualismo se mantém porque, no alto das formulas da sexuagio, como que a dar- -lhes titulos, Lacan escreve de um lado “homem” e de outro, “mulher”, nao se justifica. Como vimos, essas duas expres- s6es sio semblantes imagindrios ou déixicos performativos, exatamente como quer Butler. Eles definitivamente nao se relacionam com as diferengas biolégicas ou de género existentes entre homens e mulheres. A diferenca sexual é nao-abordavel pela linguagem e, por isso, a linguagem ‘10S tenta mimetiz4-la. Lacan, entao, recorre, nos semin: 18 a 21, a Frége, Cantor e Pierce, as categorias da légica modal (necessario, contingente, possivel e impossivel) e da quantificacao (quantificadores universal € existencial) para formalizar suas formulas da sexuacao. No lado homem, ha a proposi¢ao universal todo homem esta submetido a ordem filica em conjun¢4o com a proposi¢ao particular negativa, ha pelo menos um homem que nao esta submetido 4 ordem filica. Esse a0 menos um que escapa a lei € uma exce¢ao necessdiria para que o conceito de universal se sustente. Mas | ele se apresentara como um universal duplamente fratu- i tado, tanto porque contém uma exce¢ao subtrativa, quanto porque ele nao consegue recobrir a diferenga representada pelo Outro sexo. O ponto problemitico das formulas, como apontou David-Ménard®, é que elas sao vazias sem uma SLACAN, J. (1972-1973). O seminzrio, oro 20: ..mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Bator, 28 ed, 1985. a ‘DAVID-MENARD, M. As construdes do universal: psicandlise, oso Jfia.Tradusao: C,P, Almeida, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. 152 \ FACES D0 SEXUAL ue permita 1é-las. Essa antro, antropologia de base q' aa ada para explicar narrativg ogia, sistematicamente evoc: a sentido das formulas, remete-nos a Totem e Tabu, o te 9 > © Mito moderno proposto por Freud sobre a origem da civilizacs Assim, a existéncia da exce¢ao é imaginarizada na Sig pai da horda primeva no mito freudiano, sendo a i, dean cacao fracassada dos homens determinada por essa ape ga0 do “Um’. Do lado da mulher, a proposi¢4o universal € negativa idente sobre 0 proprio quantificador a funcdo ou argumento que ele quali- fica. Esse uso irregular da negagao exprimiria 0 carter nio- -todo e, portanto, nio-todo inscritivel do gozo feminino, assim, a referéncia Iégico-antropolégica co, nao toda a mulher esta subme- tida & ordem falica, ou seja, nem tudo de uma mulher esta sujeito a lei do significante. A nogio de ndo-todo estabelece algo fora do plano simbélico, sendo um operador relacional para designar o Real, assim como 0 nao-sem que designa 0 Real da angistia, ou o operador ou-ou em vel, que designa 0 Real na fantasia. Na posicao da particular afirmativa, Lacan estabelece uma dupla negacio, do quantificador existencial e da fungio falica: nao existe mulher que nao esteja su tida @ ordem filica. Nao € possivel encontrar ao menos uma mulher para quem a fungi falica seja totalmente jnope- rante ou inaplicavel. Isso soterra a critica feminista trivial de que a psicandlise toma a mulher pejorativamente como ie ee Nao existe ae ae que aa oe a 4 lei, contudo nao ha equivalente a horda, no caso dos homens, 0 44° sendo a nega¢a4o inci universal, e nao sobre Encontramos, possivel ao campo nao fali bme- AN OIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIE E FAMILIA \ 153 faz com que as mulheres nao formem um conjunto finito. Em termos butlerianos, a mulher se torna um género inin- teligivel. E, sem um género, 0 outro se dissolve em uma mera espécie sem par. O aforismo lacaniano “A mulher nio existe”>” denota que nio ha um significante proprio que represente as mulheres como um conjunto em totalidade. Nao ha o universal das mulheres, como acontece do lado dos homens. A femini- lidade nao € marcada pela incompletude, mas pela incon- sisténcia de um conjunto légico. Diferenga torna-se aqui dotada de duas propriedades novas: a indecibilidade de seu sentido e a indiscernibilidade de sua existéncia. De uma mulher nao se reduzem as outras do conjunto, as mulheres devem ser tomadas uma a uma. Como jé foi dito, a mulher é nao-toda inscrita na Ordem Simbélica, o que permite a Lacan acrescentar que “ha algo a mais”8, Esse “a mais” (en core) aponta aquilo que Lacan chama de Outro goxo — gozo para além do gozo filico e que persegue um significante impossivel de ser articulado. Contra a visio butleriana da psicandlise, as formulas da sexuacdo mostram que nem toda sexualidade é falica ou simbolicamente ordenada, dai seu carater plural. Para os semblantes homem e mulher, alocam-se heterossexuais, homossexuais, misticos, psicéticos, travestis etc. E porque a diferenca sexual é real que ela nao se fixa em identidades, que existem indeterminadas manifestagdes da sexualidade. *LACAN, J. (1972-1973). O semindrio, livro 20: ...mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2". ed., 1985. “Ibid., p. 100. 164 \. FACES bo sexuaL Ainda assim, Butler argumenta que a diferencg F psicandlise se mantém refém da binaridade: al &m Me parece que o futuro simbélico seré um no qual af nilidade ter miltiplas possibilidades eu [1] para lem ; demanda de ser uma Coisa, ou ter de ser Condes, uma norma determinada a base para se Pensar a atismo para que a ™ultiplicidade feminina emerja? Por que esta base nao Pode por g 86 se mover do binarismo em diregio 4 multiplicidader» Cendente Pelo fajo. diferenc, auma norma singular, -logocentrismo? Mas sexual deve ser o bin: Contra essa leitura butleriana da assevera: “De onde vem esta concepcao Opera nesta binaridade? Provém da ide tias de homem e mulher s40 complem: lecem relacées de teciprocidade e de outro.” Dai Lacan reiteradamente sexual nao existe”#! Psicandlise, Copjec de quea Psicanilise ia de que as catego- lentares, que estabe- que um depende do apontar que “a relacio — heterossexista é a crenga de que a telacao sexual existe! Cada lado das formulas descreve um diferente impasse, a fungao falica produz uma falha dos dois lados, lida com ele de uma forma. Isso se evidencia do quantificador universal todo nas formulas d e cada um respeito la sexuacao, “BUTLER, Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004 p.197, SCOPJEC, J. Read my desire - Lacan ‘against the bistoricsts, Cambridge MA and London: MIT Press, 1994, p 202, vs {LACAN J. (1972-1973) 0 semindeg apa Janeiro: Jorge Zahar Editor, 8 ed., 1986, a ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO. ESPECIEE FAMILIA \ 155 que nao atua no lado Core eno lado mulher da mesma forma. Enquanto 0 conjunto das mulheres € impossivel, o conjunto do homem é possivel com a condigao de que alguma coisa seja excluida dele. Dessa forma, o conjunto dos homens é uma ilusio fomentada por uma proibicio. Os conjuntos nao sao complementares, nao formam um meta- -conjunto, ou seja, um género com duas espécies, ou uma familia com dois géneros. A relacdo sexual falha por dois motivos diferentes: no plano légico, porque ¢ impossivel, no plano antropolégico, porque é proibida. Mas, ao con- trario do argumento lacaniano anterior que sobrepunha o dualismo significante as duas posigées relativas a0 falo, aqui © Real nao se articula com seus representantes ou designa- dos semblantes. As duas falhas nao fazem um todo®. BUTLER COM LACAN ‘A énfase nos aforismos “A mulher nao existe” e “A relacao sexual no existe”, elaborados a partir do seminirio 18, per- mite pensar a diferenga sexual tendo em conta o registro do Real e, consequentemente, permite perguntar pela plausibili- dade de reconstruir ideias butlerianas 4 luz de um lacanismo renovado, Drucilla Cornell utiliza justamente, 0 aforismo lacaniano “A mulher nao existe” para pensar possiveis des- dobramentos de teses de Butler. Para Cornell’, Lacan pode alpha sea ov manors ®COPJEC, J. Read my desire ~ Lacan against the bistorcsts. Cambridge MA and London: MIT Press, 1994, p. 234-235. ®CORNELL, D. Rethinking the time of feminism. In: BENHABIB, 8; BUTLER, J; CORNELL, D.; FRAISER, N. (Bds.), Femininst con ere ae ee New York and London: Routledge, 1995, p.145-157, —__—~S"—ti‘( it” 156 \ FACES 00 SEXUAL ser util ao feminismo porque seus aportes teéricg, para 0 reconhecimento das diferengas entre ag Jegitimando-as. Ele pode servir para rebater anil fe, pelas proprias feministas a elas mesmas de que = - se orientam na norma heterossexual, branca, cine vot do dificuldade de abarcar outros referentes, como rie nas categorizacées de mulher. Coinci dence ela propria Butler: te Ponta, ten exemplo, essa preocupagao é expressa pi Esse gesto globalizante [universalidade da identidade feminina] gerou um certo numero de criticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria das “mulheres” nor. mativa e excludente, invocada enquanto as dimensées nio marcadas do privilégio de classe e de raga permanecem intactas. Em outras palavras, a insist€ncia sobre a coeréncia ¢ unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente a multiplicidade das intersegoes culturais, sociais, politicas em que é construido o espectro concreto das “mulheres”. Segundo Cornell’, é fundamental questionar © sistema simbélico que constréi o que se entende por mulher a partir de imagens ou fantasias que acabam por relega-las a hie rarquia de género e as normas heterossexuais. A psicandlise lacaniana é util por apresentar instrumentos que auxiliam “BUTLER, J. (1990). Problem , «no suboersio Ht identii 7, i as de género — feminismo ¢ SUT 4 mee ae sto: R. Aguiar, Rio de ane Feditora Civilizasi® Brasileira, 2003, p. 34-35, y eee EES D. Rethinking the time of feminism. Int BENHAP an ‘ations HokJ3 CORNELL, D.; FRAISER, N. (Eds), Pee pag ap nieseeal exchange. New York and London: Rowt® A DIFERENCA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 187 q critica a essa realidade social, fornece elementos para ir além das fantasias ou imagens associadas 4 mulher. Cornell parece partidaria da desidentificagao, assim como Butler. Deve-se ir contra a proposta do fortalecimento da identi- dade feminina, O problema maior é como pensar o reco- nhecimento ¢ legitima¢ao das diferencas existentes dentro do universo das mulheres. O aforismo lacaniano “A mulher nao existe” é interessante por fornecer 0 aporte tedrico para essa empreitada. Nao hé o significante d’A mulher fixado na ordem simbélica. Nenhuma representa¢ao da mulher abarca o que sejam as mulheres, pois elas nao se estabilizam como significante. A mulher surge como uma categoria intrinsecamente critica da légica da identidade, como que- ria Butler, Ficamos entio entre as multiplas identificages em Butler e nenhuma identificagio em Lacan. A mulher como género-categérico deve ser refutada. Mulher é uma construcdo normativa que promove a ilusio de uma identi- dade de que tanto Butler quanto Lacan denunciam a pre- cariedade. E s6 a partir da conceituagio de que a mulher nio pode existir que as construg6es histéricas referentes as mulheres podem mudar. O deslocamento do conceito de diferenga sexual sob o prisma do registro do Real estabelece um didlogo que retorna ao que a prépria Butler via no conceito freudiano de pulsio. A rejei¢ao do essencialismo, sem a indetermina- 40 nominalista, permite combater a ideia comum de que 0 sexo bioldgico determina o género. Em Undoing gender, Butler recusa a tese de que o género é mera construgao “BUTLER, J. Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004. 158 \ FACES D0 SEXUAL by 47 cultural. Se, em Problemas de género, ela Pensay, ue ia da hetero, a lidade, agora ela tenta acomodar a dife, as incorporacao do conceito de pulsio, Sua teoria da diferenca sexual era uma teori: TENG sexy al 4 Da maneira que entendo, a diferenca sexual que a questio concernente telacio do bi tural € colocada e tecolocada, © locus em Oldgico 0 cyl. onde precisa Ser ¢ mas nao pode, estritamente falando, P entendido como um conceito limite, Olocade, Set tespondida, “Diferenga sexugp tem dimensées psiquicas, sométicas ¢ Sociais que praticg. mente nao desabam uma na outra, mas que nem Por isso sio finalmente distintas.‘® A partir dessa concep¢ao de diferenca sexual, entende- FO ten ~se por “género aquela parte da diferenca sexual que aparece como 0 social (género seria assim o extremo do social da en ASSIM 0 CX diferenga sexual), referente as visdes nstruidas socialmente sobre a masculinidade e a feminilidade”®. Género traduza = ll ——— diferenga sexual, mas a diferenca sexual nao se transcreve inteiramente em diferencas de género. A diferenca sexual 7 STR do se reduz ao psiquico nem a0 social. Nao se sabe onde os fatores biolégico, psiqui PS , social e discursivo comecam, nem ————L TT 7 rs ree i Be até onde vio para o estabelecimento da diferenca sexual”. Teg ~ puter, J: (1990). Probemas de género ~ fominismo e subvenso a ientidade, Traduéo: R. Aguias, Rio de Janeiro: Editora Civili Brasileira, 2003, “Ibid, p, 186, "Ibid, p. 185, Bid, Li 'ADIFERENGA SEXUAL DE BUTLER A LACAN: GENERO, ESPECIEE FAMILIA \ 159 Diferenca sexual teria, entdo, um estatuto ontolé- sco? Seria construida? Parcialmente construfda? Apesar de Butler nunca ter estabelecido tal aproximacio, a ideia de diferena sexual pulsional nos parece ser compativel com a diferenca sexual real de Lacan, inassimilavel pela lingua- gem, irredutivel a0 corpo € a0 social. Semblante de género gem espécie, espécie de gozo sem familia, a nogao lacaniana de mulher ainda pode interessar 2 teoria feminista.

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