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ternamente acusado de uma intragao pela solar, sente a ansiedade do banimento ents on familia, do grupo de companheiros, cone Quando 0 dever ao grupo nao foi ay seus costumes foram violados, ou seus padrn mativos de comportamento foram seriamente een tados, 0 ego sente-se ameacado pelo medo do i eda solidao. Muitas vezes, esse medo causa remorso, o remorso leva a uma confissdo e finalmente a confissao condur a reintegrago no grupo. Um vivido relato dessa cadeia de acontecimentos pode ser encontrado no primeiro capitulo do romance de Hermann Hesse, Demian. Na juventude, Demian envol- vye-se com outro rapaz vindo “do lado de 1a dos trilhos’ que tenta, primeiramente, fazé-lo cometer uma infragéo sem importancia e depois ameaca denuncié-lo se nao con- tinuar colaborando. A ameaga da chantagem aumenta a culpa e a angtistia de Demian, e sua subseqiiente infeli- cidade é magistralmente retratada por Hesse. A questio fundamental é a sensacao que Demian tem de sentir-se apartado do calor de sua vida familiar. De repente, ele se sente um solitério, um estrangeiro em seu proprio lar. Com o passar do tempo, seu sofrimento torna-se intole- ravel e ele confessa seu crime aos pais. Com grande ali- Vio, é reintegrado ao coragao da vida em familia. Esse padrao circular de crime seguido de culpa e iso- amento, bem como de confisséo e reintegragao final, é pico no dominio da consciéncia solar. Aconsciéncia solar, que primeiro extrai os costumes © normas dominantes de um grupo e depois aplica-os a0 —— ainda outro nivel de eee Blew os cede a ao plano de ideais altamente abstra pies conn ttade, justica e pureza. Através dessa al A ‘sitiva, pode valer-se dos costumes mais concretos de 37 neia Ico da da comunidade tribal cumprido a contento lesrespei- solamento avic-los a niveis rarefeitos de perfeig; um rupee en ante aplice estes preceitos, gas” Pons ey ideais abstratos, ao ego. A partir de entay como sobe 0 ideal de ego ou a perfeigéo abstrata ¢ x ce eel semis padrées de perfeigio moral pertencem a cons. cjancia solar. Apoiado no vértice desses ideais abstratos oindividuo também pode desfechar seus julgamentos con. tra as imperfeiges de uma sociedade em geral, e contr certas pessoas e grupos dentro dela. Estes nao cor. respondem. Com freqtiéncia, isso se torna uma deliciosa arma nas méos dos jovens que a empregam contra os pais ea geracéo mais velha. O desenvolvimento da consciéncia solar Muitos psicélogos, entre os quais mais notavelmen- te Freud e Piaget, tentaram entender exatamente a com- plexa questo de como os contetidos especificos da cons- ciéncia solar imprimem-se no individuo. As observacies do comportamento de bebés indicam a auséncia de uma nogao inata de certo e errado, na acepgéio que esses ter- mos recebem da famflia e da cultura. O bebé nao herda conhecimentos de natureza moral; tampouco os padrées arquetipicos que dominam as atitudes dos pais e da cul- tura encontram-se fortes e visivelmente presentes e cons telados no individuo, quando nasce. Contudo, ja desde os primeiros meses e certamente #0 completar um ano, & possivel constatar a disposi¢s? da criancinha para a obediéncia e desobediéncia aos de Tu08 & instrugées dos pais. Embora ela talvez néo com Preenda o significado especifico das palavras do pai ° da mae, sente, sem divida, a natureza geral da order dada e reage de acordo. Podemos perceber esse proces 38 na ligeira pausa que a crianca faz a0 ouvir uma reprimenda na vor de seu pai ou de sua mae. ou um tna de ameaca, Robert Scholl, em seu livro The conscience of the child, argumenta com bastante persuasio a favor de ac raizes deste aspecto da consciéncia encontrarem-se na relagdo que a crianga tem com os pais, em particular com amée. Scholl afirma que a crianga experimenta uma agra- davel sensacdo de harmonia com a mae até que ocorra alguma espécie de comportamento indevido. Entao a re- lagdo é perturbada, e isso gera ansiedade no bebé Ele tenta reaver a harmonia original por meio de reparagio € bons comportamentos. Estes siio atos que agradam a mie se despertam nela 0 sorriso, seu calor, sua ternura Com 0 aumento da memoria, a crianga vai aprendendo o que agrada e desagrada aos pais e tenta agradé-los, fi- nalmente, mesmo em situagdes nas quais ¢ improvavel que isso seja notado. O drama inteiro pode agora desen- rolar-se no plano interno. “E nesse momento”, escreve Scholl, “que a consciéncia nasce” (1970, p. 27) Na lin- Suagem que estou usando, é esse o momento em que 0 “specto solar da consciéncia consolida-se 0 suficiente na Psique para que os contetidos particulares apresentados Pela familia e pela cultura possam ali instalar firmemente “uas raizes, e comegar a ser aplicados ao ego. Até esse Ponto, a consciéncia solar permaneceu como uma condi- Heestrutural possivel na psique, ainda néo constelada Meonsciente, aad sengg 4 Scholl, o pré-requisito para a consciéneia ¢ na rela s? fundamental de seguranca que o bebé vivencia Ser contig harmoniosa com sua mie, em sua sensagao de di, ,{ Protegido por ela. Quanto mais intensa essa 8 por ens Profundamente a crianga ficaré pertur- ia). Sehtimentos contrarios de ruptura e desarmo- tanto, mais forte sera a consciéncia infantil 39 ) ae 970, p. 29). Neste nivel pré-edipiano da gon. “a recompensa do ego por um bom compo, cineca solar, & Tonia com a mae, €& Puni¢ao por condy, tamento éa harmen ansiedade desencadeada pela perdy tas inacei vein com ela, pela assustadora sensaga, ‘ke de nniliadee isolamento. O lado solar da conse pessoa com quem se vincula 6 a mae. 1 ‘A consciéneia solar torna-se constelada — emerge das 4guas do inconsciente, por assim dizer — quando 9 ego desenvolve sua eapacidade de recordar-se e de ligar. se ao ambiente. Embora ainda nao seja em si uma enti. dade psiquica plenamente auténoma e separada, o ego, nessas fases iniciais, depende macicamente da identify, cagao projetiva com pessoas do ambiente, basicamente 4 mae. Conforme o ego do bebé vai desenvolvendo sua coe. réncia a partir de uma matriz indiferenciada do Si-mes. mo, o aspecto solar do arquétipo da consciéncia torna-se projetado no genitor mais importante de seu ambiente. A ansiedade que a crianga sente quando a harmonia com esse genitor é ameagada é, portanto, extraordinariamen- te profunda, pois o eixo cgo-Si-mesiw tem pouca estabi- Iidade, ou confiabilidade, nesse ponto. A ameaga de set colapso provoca uma sensa¢ao aterrorizante de abando- noe ansiedade no cerne do embridnico complexo do ego .0 egc, que gradualmente vai se precipitando de sua uniao ocednica com 0 Si-mesmo pré-existente, depende {adicalmente— para sua unio e estabilidade _- dos po tadores da identificagio Projetiva, vale dizer, os pais. Esta’ Peosoas S40 08 objetos a partir dos quais o bebé iré s¢ aa “si elas que Ihe tornam possivel vir & ile no content aosico de ter um ego préprio. Consol a tico, as norms peeifice de um ambiente familiar e domés far ormas de atitude e de comportamento entéo P netram na crianga por osmose. 40 (Scholl, 1 Aestabilidade da sensaea dade e bem-estar passa a depender de positivas com esses costum: 80 tem de integri- estar em relagies eS © normas ince i A nti los pais e de sua observancia. As primeimse peroenin Pee es do certo e do errado que a crianga tem sao mediada: essa relagio dentro do ambiente familian econ eo rezaconcreta. Aquilo que os pais aprovam eden torna-se uma espécie de estrutura protolegal. Se.os ran transmitem as convengées padronizadas ¢ as normar a. letivas da sociedade, a crianga irs aprender, imitando og pais, quais S40 os mores basicos de adaptagao espeeificos aessa cultura. Se, por outro lado, os pais transmitem valores e atitudes que nao correspondem aos padres ti. picos vigentes, a adaptagao posterior do filho a sociedade sofreré conflitos e sera problematica. A medida que os filhos vao saindo de sua dependén- cia essencial da mae, o pai vai assumindo o papel de prin- cipal portador da projegao da conscincia, e essa evolugao assinala uma profunda transigao no ambito da conscién- cia. Um pélo desta torna-se identificado com o pai, enquanto © outro permanece atras, com a mie. A porcao da cons- ciéncia que se vincula a imagem do pai desenvolve-se na- guilo que estou chamando de consciéncia solar. A porgao que permanece com a mae transformar-se-4 no que cha- marei de consciéncia lunar (no préximo capitulo). Este Momento, no qual ocorre transferéncia e o pai entra em cena como portador disponivel das projegoes, bifurca a cons- ciéncia e deixa-a dai em diante para sempre alterada. Ela “tora uma estrutura de dois andares, por assim dizer. '@ Sociedade patriarcal, em especial, 0 pai representa ba a familia os padroes sociais dominantes e os ale "antes no mundo cultural mais amplo. O pai tran i regnundo cultural para os filhos ¢ 0s nee nouns nao-pessoal das expectativas sociais extern: a fora do dominio das relagées interpessoais intimas. 41 ver cembora os fundamentos da consciy, agio da crianga com Sua mae, sy, nada muito mais intensamen, Nesse sentido, el cia encontrem-se na Tr determil estrutura solar é d pelo pai e seus herdeiros psicol6gicos. ‘A influéncia do pai na introdugdo dos valores ¢ ideais sociais na organizacao da consciéncia solar é pos. teriormente reduzida ou deslocada pela influéncia do gry po de companheiros. Se o pai ndo esta presente na fami Tia, essa transferéncia para o grupo de companheiros pode coserer muito antes do que se houvesse uma figura forte de pai na familia. Agora os contetidos da consciéncia so. lar se tornam localizados no grupo de amigos, por meio da dindmica da identificagdo projetiva, e o ego busca man- ter sua identidade e estabilidade através da conformida. de aos valores adotados pelos companheiros. A fungéo que esse grupo tem de determinar valores e ideais é particu- Jarmente intensa durante a adolescéncia, quando mae e pai séo geralmente menosprezados em seu papel de por tadores das projegdes idealizadas e nao sao mais conside- rados modelos ideais. A consciéncia solar agora passa 2 adotar valores e ideais muito mais sintonizados com #5 atitudes dos companheiros, e esse grupo defende-os com? as mais reluzentes verdades. A ansiedade criada quand? a consciéncia solar é violada neste ponto tem a qualidade ie ostracism e isolamento social. 5 por isso que 0 bande adolescentes tem tanto poder e autoridade sobre ca“? membro individual. data 88 Posterior do desenvolvimento, mo A poesia . @ nos anos de maturidade, a projet. tional pare lar tende a deslocar-se para 0 erp Fa! epee Teligiéo coletiva aceita pela tribo O° ciedade, @ costumes, leis e normas mais Laat soe ra contrib &rupo profissional, a religido e 4 CUNY ons ibuem diretamente com contetidos pare # 42 ciéncia solar, € 0 ego busca ajustarse adultos de se viver de modo responsiivel, dentrodascan dade em geral, e de estabelecer relacionamentos hanna. niosos com a consciéncia coletiva ‘Muitas vezes, em algum ponto do desenvolvimer psicolégico e cognitivo, a consciéncia solar destaca.se dng regras e dos costumes concretos e se torna mais abstrata etranscendente. A reflexao transforma as expectativas concretas € @ persuasao moral da cultura ou grupo ime- diato em valores impessoais e abstratos. Agora, estes tor. nam-se filos6ficos ou até mesmo teolégicos. ‘Talvez, como parte do desligamento que acontece no seio das relagies entre pais e filhos, a consciéncia solar dirige-se para fora, para cima e para longe do aqui-agora, e ingressa no reino. dos princfpios e leis espirituais. Parece existir uma afini- dade inerente com 0 logos, por parte da consciéncia solar. Embora atravesse a identificacdo projetiva com figuras tao especificas como as de me, pai, lider do grupo de companheiros e professor(es), essa consciéncia solar nao se contenta com os portadores coneretos que represen- tam o egu-ideal. Em vez disso, busca ascender rumo aos Prinefpios e leis abstratas que essas pessoas ou elemen- tos coletivos podem representar em certos perfodos. Nes- se movimento em diregao ao abstrato, a pessoa indivi dual distila os valores e ideais espirituais distinguindo- Seda atmosfera moral-espiritual concreta que envolve os Portadores dos imperativos da consciéncia solar. O ego Pode experimentar essa movimentagdo como uma espé- G2 ¢eiluminacao moral, e entéo ideais como os de verda- de, justica e miserieérdia séo vividos em si mesmos, e a aes ‘eo si mesmos. Estes valores nao precisam pais a tir ntados por alguém em particular. Podem sul Por si, blign €85° © lastro vivencial dos grandes profetas bi- ue permitiu-lhes redigir linhas téo imortais e 43 08 valores nto cque o direito corra como Aguas © a an tose” (Am 5,24), apelando a oy. esmas vivéncias abstratas de tina al eomo Kant declara em seu relaty ca” e “diretl € " juste cirstico, existe uma intuigao da lei eterna ins. do imperativo Aimy resco na consciéncia solar desta ener. cra oniea necendéncia e a clareza de prin, nica para a tral ; < ae aor de ‘modo algum, inevitavel; a tendéncia oy capi , v potencial para isso parece pertencer A prépria dinamica do aspecto solar da consciéncia. emocionantes como yustiga como um rio cada {ros que partilham das 7 ‘Ao se afastar dos habitos morais especificos rumo a principios e ideais espirituais implicitos nos padrées cul- turais vigentes, a consciéncia solar leva o ego a distan- ciar-se do apego afetivo pelas figuras concretas e a envol- ver-se numa espécie de relagdo amorosa com a lei e o prin- cipioem si, num profundo e apaixonado compromisso com os valores abstratos que subjazem a uma tradigéo cultu- ral ou religiosa em especial. A Biblia expressa elogiiente- mente esse processo: Eu te busco com todo o meu coragao, nao me deixes afastar dos teus mandament ($1119,10) ees Vou meditar teus preceitos © considerar teus caminhos. Eu me delicio com teus estatutos © nao me esquego di a (81119,15-16) ee? 4 tua palavra. Como mo amo a tua lei! Eu a medito (S1119,97) 11? 19490 dia, Proveniente da consciéncia solar, entao, a voz de Dest emuitas ne PFeceitos. Essas leis podem ser aprendida® mam 08 align et transcritas nos livros sagrados ©" alicerces espirituais abstratos de tradigées © 44 fala turais e religiosas especificas. Kase avelmente entendido como tendo fompore, num tempo mitico muito re hum momento especial, escolheu re tos divinos (Eliade, 1963). Por meio da atuaca d ciéncia solar, a heranca espiritual de leis e preeeitg contra morada no individuo e é elevada no plano tran cendente de vox Dei (a “voz de Deus”). Nesse sentide consciéncia solar pode recapitular, de certo modo, o mo. mento da revelacdo original quando se pronuncia a par. tir do cerne da lei e do preceito. ‘A questo da intensidade e da qualidade da cons- ciéncia solar num individuo deve ser relacionada aos seus impasses e fracassos em seu desenvolvimento. Se a cons- ciéncia solar nunca for constelada como fator psfquico na vida de uma pessoa, significa que o relacionamento com a mie foi altamente conturbado e talvez tenha sido inexistente, emocional ou fisicamente. A auséncia de cons- ciéncia indica autismo, ou seja, uma falta profunda de relacionamento em, pelo menos, um setor importante da existéncia psiquica, Nunca houve uma ligagao de apego entre mae e bebé, e por isso ndo houve também a oportu- nidade de uma identificagao projetiva com ela nem da ansiedade de abandono. Est ausente a energia que ori- gina a consciéncia, e a consciéncia solar nunca 6 esta- belecida, portanto. Permanece profundamente incons- Ciente e estruturalmente néo-constelada, em termos da formagéo de uma relagao determinativa além doe ego, Esse tipo de pessoa tem uma consciéncia so ‘ente ou completamente inconsciente. a oh ae isso ndo queira dizer que a con ances Ta pode mente inative, mesmo em ee cia oor qu Pode exeeutar seu trabalho com muita efick ete nto inconscientemente. O criminoso socio: a *2, inadvertidamente, pistas de sua identidade na cem 45 Corpo de leis ¢ inva Se originado tn slp moto, quando Deus velar 05 mandamen. contra jlar 1a- do crime, indicios que permitem sua captura. Esses ja, sos fornecem evidéncias em favor da alegacao de que ex, te em funcionamento uma consciéncia ignorada pelo eg, uma consciéncia que pode nao ser capa? de produzir cy). pa ou ansiedade no campo egéico, mas nao obstante gerz punigées impostas por fontes externas. Esta personal. dade sociopatica encenaré uma consciéncia produzinds cenas em que culpa e punicao sao vivenciadas em fungic de agentes externos, como a policia eo tribunal. A pessoa casada que, inadvertidamente, deixa pistas de um roman- ce extraconjugal para o conjuge descobrir est4 fazendo a mesma coisa. Esses fenémenos, porém, cabem melhor na discussao sobre consciéncia lunar que ocuparé o préximo capitulo. A consciéncia solar pode nao enveredar pelas abs- tragdes, que descrevi antes, mas em vez disso permane- cer fixa no nivel concreto. Isso depende do desenvolvi- mento cognitivo em outras areas. Se existe alguma in- terrupcao geral neste nivel do funcionamento cognitivo, entao a consciéncia solar nao pode ultrapassé-lo. Ou, ¢ possivel também que o desenvolvimento cognitivo ocor- ra de maneira intelectual, mas nao no Ambito da cons- ciéncia solar, por causa de uma fixagdo da identificags° Projetiva num portador concreto da mesma e da incap- Sade do an parading deste objet ama. parte tao naturalmente qe ae constatamos i caso, bloqunia ente da consciéncia solar é nese n Por uma necessidade mais intensa 4° Permanecer contida num relaci jional. abstragdo ameaga ess acionamento emoc! ‘de d 0 eo ¢ relacionamento, e a ansieda’ © Separacao é maior do que a necessidade de desenvo!” vimento. 46 As relacoes entre a consciéneia solar g , exo Embora 0 perfodo mais precoce para da consciéneia solar esteja claramente ide vinculo mae-bebé, o formato definitive o afetiva da entidade solar madura tem mais a 1 subseqiente relacionamento entroopaieacnan: sn” ji foi dito, é assim porque o pai introduz.o mundeocee ral na vida psicolgica de uma pessoa de ums aut: que a mée, em geral, nao efetua, pelo menos nas Prime. ras ases do desenvolvimento. Esta proporciona a vivinag da mutualidade e da intimidade, e cria um mundo pes. soal de ligagées afetivas de apego e vinculos emocionais, O pai apresenta para o filho o mundo impessoal do costu, me e das normas sociais, das expectativas culturais em termos de atitudes e comportamentos. A consciéneia so- lar encaminha-se para a abstragao; com isso, passa da mae para o paie, deste, para o grupo de companheiros, a sociedade em geral e, finalmente, para a lei e a regra como preceitos em si. A relagdo entre ego e consciéncia solar 6, por conse- guinte, significativamente afetada pela relagéo que a Pessoa tem com seu pai. A especulagao antropolégica de Freud sobre a horda primal com 0 pai brutal, o dominador, seus filhos, primeiro submissos e depois revoltados, como oantepassado filogenético da relagdo entre ego e superego, éuma proposta de como essa relacao pode ser concebida. as néo € a tinica e, a seguir, espero oferecer outros ele- mentos para a composigao desse contexto. tm Nas imagens da relagéo pai-crianga, Ce Htos, na religido e nos contos de fada, podemos en ia clay aTi8s Possibilidades de a relagio ego-conse Sra com nifestar-se. Aconsciéncia solar po st pode rela- Cionay.¢. 2° 4 tantas maneiras quantas 0 pal PU “Se com seu filho. Considerando todas as po 47 4 qualidade s posigoes extremas: 1) dads e nuances, exstem (Orn caracterizada por ree e filho destrutain oe de benevoléncia; 2) pai e filho tam peito ¢ uma atin da com aspectos de tirania, vitimi. uma relagéo tortura questo geralm: zagio e rebeldia, Para as pessoas, @ questéo & ente ritaa.se em algum ponto entre estes extremos e talvez sofra flutuagées acentuadas conforme a situacao, 0 esta. do de espirito, a intensidade dos impulsos etc. Em sua faceta benéfica, o pai recompensa a pessoa por seus bons comportamentos oferecendo-lhe o sentimen- to de realizagao, competéncia, inclusividade e auto-satis- facao. Suas exigéncias e ideais nao sao impossivelmente altos e inatingiveis, e o prego que cobra em termos de sa- crificios de desejos e vontades do ego nao é por demais exorbitante. Ele até protege 0 ego de sua propensio a tor- nar-se exageradamente escrupuloso e perfeccionista. E benevolente. Na sua faceta negativa, 0 pai é visto como um de- vorador que engole os filhos, reprime-os e interdita-lhes sua inécua espontaneidade. Pune-os com um remorso € uma culpa deformantes, e ameaga-os com 0 isolamento e © exilio em relacdo & comunidade humana. Quando Freud apresentou pela primeira vez sua bared SUPErEED, outa pouca coisa boa. Via essa agressividade « pee @ por uma despética auto- pelo desejo de morte. Tal atitude com res- peito 4 consciéncia e A cultura pode ter suas razdes 28 istéria moderna. Jung observa: Este mundo superior (i.6 . owe seen or (6, do Espirito) em um eardter impes Tectuais¢ moran quan gas em todos valores tradicionais inte educam e cultivam a pessoa e, por ou! ciente que se apresentam como idéits Mas quando, en dom ea paeehfrtauecidos pela idade ou por eitica, estes Pe preencher a lacanen¥iesio, as idéias arquetipicas afluem Pa" '. Reconhecendo corretamente essa situacs” 48 Freud denominou os valores tradicionais de “superegn”. arquetipicas mantiveram-se ignoradas por ele (14. ‘dein par. 673) Os valores tradicionais em si, quando impostos ao ego de uma pessoa sem significado ou racionalidade por uma civilizagao cansada e desgastada, podem ser expe rienciados como tirania sem sentido, e é melhor ignoré. los e eliminé-los. Era essa a atmosfera cultural indiscu- tivel na Viena dos Habsburgos, no inicio do século. Em um ambiente histérico como este, a imagem freudiana de um pai brutal atormentando a horda primal, para servir de base ao superego, tem sentido. Nao teria semelhanca com o Imperador Habsburgo? Para fazer contraponto a esta perspectiva sobre a consciéncia solar, no entanto, podemos considerar os pro- nunciamentos de Jesus sobre o Pai, a veneragao oriental dos antepassados e as muitas histérias, mitos e contos de fada em que os pais tém uma relagao positiva e prestativa com seus filhos. Para os psicoterapeutas, entretanto, as imagens ne- Bativas do pai, enquanto figuragées da consciéncia solar, séo mais fascinantes. Elas sao as que representam a na- tureza problematica da consciéncia solar, e séo imagens conhecidas de todos que trabalham em profundidade com alma das pessoas. A titulo de exame de uma parte das Possibilidades dessa relaco negativa entre a conscién- “1a solar e 0 ego, farei uma andlise de trés famosas figu- ras de pai da mitologia grega: Urano, Cronos e Zeus. Elas ‘epresentam um desenvolvimento ao longo de trés gera- Stes de pais, endo podemos furtar-nos hipétese de que "gnifiquem uma evolugo da consciéncia solar na pré- Pria cultura grega. cam enuanto pais miticos, Urano e Cronos sao prati- doe nate idénticos. Os dois praticam a severa supressa0 * 0 primeiro arremessando-os de volta a sua mae, 49 Gaia, ¢ 0 segundo engolindo-os para manté-Los cativos en seu estémago. Mas, como imagens da consciéneia Solar ha diferengas sutis e importantes a serem observadas, Urano Esta é a mais antiga e primitiva deidade grega do grupo dos Grandes Pais. Segundo Hesjodo, é 0 filho de Gaia, a Terra, que era o Principio Primeiro. Como Pai Céu, Urano descia todas as noites e cobria Gaia, e de seu incesto nasceram numerosos filhos, os Titas. Tanto os de natureza masculina como os de natureza feminina nao eram tolerados por Urano, que os empurrava de volta para dentro do titero, para o fundo da Terra Mae, onde estagnavam por auséncia de atividade e liberdade. Fi- nalmente um deles, Cronos, foi secretamente removido do préprio titero pela Mae Gaia, e quando Pai Urano des- ceu naquela noite, esse filho titanico rebelde e irado cas- trou-o. Depois libertou seus irméos e irmas, e com iss0 deu inicio A era dos Titas. A relagdo pai-filho na constelagao de Urano é carac- terizada por uma vasta distancia: Urano é 0 céu, e seus filhos estao trancados no fundo do titero da terra. Segut do a visdo de Jane Harrison, existe uma distingao impor tante entre ta metarsia (os céus mais altos, o éter) € !@ ‘meteopa (os céus inferiores, 0 clima). Urano governa a bos, mas antes pertence ao primeiro. Ela diz que Uran? representa “toda a forca do ar superior” e que dele varios “Titas saem especializados em Séis-Deuses” (1912, PP 454-455) ..._Platao, em seu didlogo Cratylus, afirma que Urano ® corretamente denominado ao ser visto de baixo pa™* cima”, e prossegue para indicar que olhar para cima ¢° 50 alcangar uma mente pura (Hamilton e Py, p_ 434). Em Bpinomis, ele denomina Urano tp dos deuses e ineumbe-o de ensinar sabedoria i Ma matematica e de exercer um controle distante frelas e as estagdes do ano em sua movimen- assegurando dessa maneira que até mes- tags mais baixas criaturas... para as quais Deus con- oy a capacidade de aprender” possam captar pelo ceaos, as habilidades bésicas da contagem (ibid., pp. 1520-1521). Naastrologia, tem a ver com “transcendéncia, espago”. Urano, ela prossegue, causalidade e continuidade. Segundo o horéscopo, Urano é apresentado como poder criativo que, de repente, surge eum contexto incompreensivel. Enquanto poder, que até eno gra desconhecido, é novo tanto para o bem como para 0 mal, aparentemente nao-conectado ao mundo das aparéncias; que parece capaz de irromper 86 como essa espécie de invasao criati va e sem interesse em conquistas permanentes ou estaveis, ape nas satisfazendo-se com o momento. (1934, p. 443) 0 para se mai trav! sobre as eS tagao regular, segundo Sigrid Strauss-Kloebe, Urano auséncia de tempo e de nada sabe de Para os filhos de Urano, presos como estao no plano concreto da ‘Terra, 0 pai deve parecer inteiramente ausen- tee incompreensivel. Também é um inimigo. O que re- presenta é desconhecido para eles. A elevada espiritua- ee Urano nao esta dispontvel eo relacionamento des- s filhos com seu pai é pleno de conflitos e enigmético on a fato a nao terem acesso direto a ele e a seu espiri- Peleg tuet dizer que nto sofram sua forga repressora. vas. Estao rio, 6 justamente ele que os mantém nas tre- mmotiden rouos dentro da mae, mas indiretamente sub- autoneragi™ Pai que néo Thes concede mais separagao & mente metelagio de Urano, 0 ego permanece essencial- la mae. A respeito desse tipo de situacao 51 psicolégiea Brich Neumann, em sett volumoso © magintra) estudo sobre o arquétipo da Grande Mae, evereve: “para 08 filhos de maes, 0 deus-pai ¢ eclipsado pela Mae Torry, © esses filhos sio inconscientemente mantidos em cative ro, dentro do titero, alienados do lado solar, criativo” (1974, p. 189). Afastados do potencial espiritual inerente ao rela. cionamento com o pai, nao obstante sofrem sua influéncia repressora. Por continuar cativa e contida no Ambito da me, a consciéncia solar nessas psiques nao pode superar onfvel concreto e dogmatico de abstragéo. Na falta de aces- so ao espirito da lei, o ego fixa-se sobre esta tiltima em nivel concreto de costumes e regras grupais especificas, permanecendo dependente de e apegado a figuras espect- ficas de autoridade no ambiente ao qual é-Ihe sempre es- sencial agradar. Costumes, leis e tradigdes particulares, 86 por pertencerem de modo intrinseco & matriz cultural, passam a ser portadores da forca de verdades absolutas, Este é 0 fundamentalismo da consciéncia solar. Se a consciéncia solar torna-se fixada no grau de Urano, vemos uma espécie de tradicionalismo cego e de conservadorismo primitivo e desprovido de reflexaes. Os seo gra de Urano domina e caracteriza a eons. Se solar numa pessoa, localizamos outros movimen- vro do psiquismo. Os simbolos de Urano sio 0 flamejante eo passaro (Harrison, 1912, p. 176), entos identificam com exatiddo o modo como Urano “ataca”, A consciéncia solar uraniana irrompe como um medo espontaneo ou um repentino pensamen- compaioso que sinaliza perigo, Assemelha-se a um ata- quedeansiedade. Os filhos de Urano estao contidos den- aM da mae e véem-se incomumente submetidos a uma repetitividade cega de condutas conhecidas. Também vi- sob a ameaga de um pai cuja rigidez e desconfianga Nie indicios de sua inseguranga. Essa pessoa tende a ser décil, rapida para concordar e extremamente teme- rosa de pessoas que abusam da autoridade. Existe ne- las pouca capacidade para reflexdes morais ou inova~ cées éticas, s6 para obedecer aos manuais e guias de etiqueta. ion tos den machado stes elem Cronos De acordo com Hesiodo, 0 movimento de saida da constelagao de Urano comeca quando Gaia fica sobre- oe com 0 fardo dos filhos, que lhe foram socados a as ventre, 0 incdmodo de Gaia, devido ao peso Ree fies titénicos em seu titero, prenuncia do-filho Uran plano em que trama derrubar seu mari- No a valendo-se de Cronos, o filho heréico. Priclogienr, le uma pessoa, esta situacdo é denunciada cine gamente no quadto da obediéncia plici’a ees 40 mesmo fae lidade coletiva, no nivel da consciéncia, Volta, Frustra PO que ocorrem sonhos e fantasias de re- lencio no pies conflito ¢ raiva acumulam-se em si- ior e retinem-se em torno de uma deter- 53 minagao de mudanga; porém determinagao profundamen te inconsciente, mas potencialmente heréica. ‘A explosiva elevagao de Cronos surte um efeito roy, lucionério transformador sobre & consciéncia do ego. 144 uma modificagao dramatica da atitude consciente, 4 crianga, até entao placida, torna-se 0 adolescente rebel. de, a esposa décil e gorda vira uma onga. Nos tempos classicos, esse tipo de inversdo de papéis e de atitudes era representado nos antigos festivais dedicados a Cronos e Saturno, em Roma e na Grécia. O festival de Cronos (Saturno) era celebrado no equinécio de primavera, quan- do o sol rompia o inverno e trazia a nova estagao (cf. Harrison, 1912, p. 252). Nesse dia, “é costume”, escreveu Ateneu, festejar os escravos, os senhores estdo realizando pessoalmente para essa ocasiao 08 afazeres dos servos. O costume também grego... pratica semelhante 6 adotada em Creta a época da Herméia: os escravos séo festejados e adulados enquanto seus senhores praticam seus trabalhos despreziveis (Harrison, 1912, p. 251). Entre 0 povo beécio, de acordo com Plutarco, esse dia “era chamado 0 dia do Bom Espirito”, e os espiritos dos mortos eram libertados para a ocasido “da priséo dos tamulos” (ibid., p. 253). Também nesse dia, 0 velho reié afastado e substituido por um novo, jovem e vigoroso pirito (ibid., p. 223). Desse modo, a emergéncia de Cronos 6 caracterizada por sublevagées sociais e psicolégicas ey dicais, pela inversao de valores, pelo desfrutar de liber dade e possibilidades ilimitadas, e por uma violenta ati: tude revolucionéria quanto a velha ordem moribund. Apesar de toda essa turbuléncia e zelo revolucion® rio, contudo, nao é compulsério que as coisas mudem revolugéo em andamento é apenas momenténea, tal a até a encenagdo da parédia “rei por um dia”, pois n° © 54 inte os escravos esto novamente em seus alojamen eos senhores, em seus palicios. Isso porque Cronos *,¢ muito diferente de seu pai Urano — no maximo, .a versao das mesmas ansiedades. Cronos também suprime seus filhos. Depois de coa- pitar com Réa, sua irma, e de sua uniao frutificar, ela da pian varios filhos de ambos os géneros. Cronos ento co mega ficar inquieto, tal como seu pai na geragdo ante- or, porque um ordculo predissera que um de seus filhos jria destroné-lo, da mesma meneira como ele havia des- tronado seu pai. Assim, Cronos engole os filhos inteiros, Ble 60 tipo de pai que devora a vida dos filhos apoderan- dose de sua independéncia psicolégica e espiritual. Ele 9s absorve inteiros em si mesmo. Assim, 0 que pareceu seruma mudanga revolucionaria na consciéncia solar néo é realmente téo grande, afinal de contas. Ha mudangas na consciéncia solar, sem divvida, e caracterizam-se pelo desenvolvimento cognitivo e pela libertagao do potencial para a espiritualizagao através de valores e ideais. Os significados e principios s4o extraidos dos costumes e mores concretos, e existe uma evolugao na nogao de lei Mas a relagao entre a consciéneia solar e o ego permane- ce éspera, dura, repressiva e, agora, também devoradora. Através deste desenvolvimento, de uma estrutura uraniana em outra ditada por Cronos, a consciéncia so- lar torna-se mais onipresente e estavel em sua influén- cia. Antes era momentanea e arbitrdria, ineidindo como um acesso de ansiedade aguda, um ataque de panico. impen g®ieais solares e valores espirtuais chogam para Lane dea na imagem de un mestre-de-obrascons- Meio dia eo due guia forte e claro nos campos do Pensementoa 4 Pai no cfu que observa e computa atos e almente spies esada © continua nogio do dever, denice pti pelos filésofos morais como a mais elogidvel postura ética, entra em atuagao. O 55 nai out ™ dever, agora, é definido como obediéneia — nao a figuras coneretas do ambiente ou a exigéncias culturais especi cas, mas ao espirito ou a idéia de relacionamentos ou cy) tura, a ideais como os de verdade e justi¢a, de misericéy dia e corregio, Como decorréncia, a pessoa experimenta, de acordo com Erich Neumann, a perda da “consciéncia dessa natureza dual por meio do repidio de suas partes teliricas, seus instintos” (Neumann, 1954, p. 187). Cronos leva para dentro de si mesmo seus filhos, separando-os radicalmente da terra, de seus corpos ¢ instintos. Lé, con. serva-os escravizados a ideais e valores espirituais abs. tratos. Eis o homem biblico. No nivel da estrutura de Cronos, a consciéncia solar julga de acordo com os mais elevados e rigorosos princi. pios ¢ ideais, enxergando nitidamente maquinagéer, es- tratagemas e concessdes morais; é capaz de infligir inter- namente vergonha e culpa a fantasias e atos que des- vie dos ideais de pureza e perfeicao moral. Estas pessoas tém uma consciéncia altamente sen- sivel. O mestre construtor de Ibsen, Solness, 6 um caré- ter assim. Ele se recrimina pelo ineéndio que destruiu a casa que sua esposa trouxe para 0 casamento, fato que Ihe permitiu tornar-se um grande sucesso, mas também arruinou seu casamento e sua familia, Depois de ter ex- plicado seu atormentado raciocfnio para a jovem Hilda, eles tém o seguinte didlogo: Hips (olhando-o com atengao): © senhor esté doente, st: Solness. Muito doente, eu diria, ‘Souness: Louco. Pode dizé-lo. & 0 que esta pensando. Hina: Nao, nao penso que o senhor tenha perdido o juizo, Souwess: O qué, entio? Fale logo! Hivpa: Estou achando que talvez o senhor tenha entrado vida com uma conseiéneia frégil Souxess: Uma consciéncia frigil? O que essa palavra quet er, afinal de contas? 56 Hips: Que sua conseiéneia & muito fri smaisou menos. Nao é talhada para lutar com as doses na o que é pesado e agiientar. as — pegar ‘Sones (resmungando): Hum! E que tipo de consciéncia recomenda? _ Ha: Bu poderia desejar que sua consciéncia fosse, bem, mais robusta. Souwess: Oh? Robusta? E suponho que voeé tem uma consciéncia robusta? Hitpa: Sim, acho que sim. Nunca reparei que nao fosse. Souness: E eu diria que vocé nunca passou de verdade por um teste, para saber. (Ibsen, 1965, p. 831) 0 que Ibsen fez, nesta peca primorosa, foi traduzir as intuigoes da tragédia grega, que sempre acontecem através de eventos predestinados e de acontecimentos histéricos, no palco das vivéncias pessoais, no ambito da interioridade. Como disse Jung, os deuses nao desapare- ceram, tornaram-se nossas doengas (1957, par. 54).O que os gregos projetaram como Cronos e os latinos como Saturno, nés, modernos, experimentamos como cons- ciéncia. E o filho de Cronos-Saturno parece-se bastante coin Solness, o mestre construtor com uma sensagao cro- nica de culpa e uma consciéncia plena de remorsos a ator- menté-lo. 0 préprio Cronos mitico vive sob a ameaga de insur- reigdo e violenta perda de seu trono. O medo da subleva- coe de ser destronado alavanca sua rigidez, e uma sutil einsinuante desconfianga generalizada, geralmente pre- sente como pano de fundo discreto dos relacionamentos entre pai e filhos, caracteriza sua aco. Um exemplo da a defensividade saturnina pode ser encontrado, em ds ae de cédigo, num documento intitulado “Atos ¢ Leis ‘olénia de Connecticut” promulgado em 1715, em que sac . : ‘ ‘0 arrolados doze crimes capitais, entre os quais 05 Se- Buintes: 57 Fitho Obstinado e Rebelde com sufi aber, 16 anos de idade, gue nip Obed ate eu Pai nem a vor de sua Mie, e que depois de estes 5 Serban ufo i de le eS tere fen, tomo seus Pais Naturais, poderdo prendé-l elev, aoe eater Magistrados Reunidos em Assembléia na Corte saree inhar diante deles que seu Filho é Obstinado e Rebel deer save Filho sera Condenado & Morte (citado por Alsop 1972) ‘Se uma Pessoa tem tn te entendimento, e sal Besse tipo de atitude cruel e autoritdria que a cons. ciéncia de Cronos pode injetar nos valores culturais e fa. miliares e usar para governar 0 ego. Mas isso nao inclui tudo sobre a historia de Cronose a influéncia desse tipo de consciéncia solar sobre a psi que. Existe outro lado de Cronos, mais benigno e positi- vo. Neste, 0 aspecto positivo da consciéncia solar pode ser constatado. Plato, os heraclitenses e os érficos iden- tificavam Cronos como eniautos, “aquele que tem todas as coisas em si” (Harrison, 1912, p. 186). Nos festivais do ano novo, Cronos era apresentado como eniautos-daimon, espirito da fertilidade (ibid., p. 223). Para entender a fer- tilidade de Cronos e da consciéncia solar, precisamos con- siderar 0 valor potencial dos conflitos que esse tipo de consciéncia solar cria no seio da consciéncia egdica. Cronos liberta a pessoa da mae, da identificagao con creta com o corpo e da unidade com os instintos, erguet do uma barreira contra a gratificagao automatica e itt? Setida dos oe Por um lado, a consciéncia sola culpa Deh i ideais elevados; por outro, pune com ® : portante resultado deste opus contra no turam, assinala Jung, 6 ; ee ,6uma mai scien esi noes ior percepcao con: O.komem em sua condigéo ‘natural’, ndo é bom nem puro; © ho cosenernelse de modo natural, o resultado sera inetintidele nte diferente de um animal. A mais eee ‘uma inconsciéncia ingénua predominaria™ 58 ito houvesse interrompido o livre desenvolvimento do |, introduzindo uma distingéo entre bem mal para ‘Uma vez que, sem culpa nae existe consciéncia ai quesem a percepgio consciente das dferencas ni existe snort gamente consciéneia, devemos coneordar que a estranha atwofengao do mestre de almas foi absolutamente necesséria tory jesenvolvimento de algum tipo de consciéncia, e que, nesse pantido, foi para o bem (1948, par. 244) Mestre ser natural panir o mal ‘Aconsciéncia solar desempenha uma parte na fun- ante de distingdo e diferenciagdo executada pela srpsciéneia, acrescendo-lhe 0 elemento moral com um fator continuo em agao. A contribuigao especifica de Cronos a esse processo de conscientizagao é a introdugao deum tipo de cola ou cimento que impede que a conscién- cia moral seja desautorizada pelos complexos, pelas emo- gées, pelos impulsos e pelas motivagées. A consciéncia solar reforga o ponto de distingao entre 0 que é bom e o que é mau, e leva sua relagao polarizada a um ponto de tensdo mais rigoroso. E na criagao dessa tensao que en- contramos o significado de Cronos-Saturno como espirito fertilizador. E da natureza de Cronos-Saturno estipular limites claros e definir fronteiras. Ele também cinge. O metal relativo a Saturno 6 o chumbo. James Hillman escreve que “certos tipos de distiirbios sexuais poderiam ser con- trolados por meio do chumbo, segundo Alberto Magno: ‘O efeito do chumbo ¢ frio e constritivo e tem poder especial Sobre a lascivia sexual e as emissées noturnas’” (1970, P. 155), a oacenve Saturno limita o fluxo do desejo libidinal; ele cia nao con impoténcia sexual. Mas constri¢ao e impotén- Como astitiem, necessariamente, um beco sem sai- extering “Sereve Hillman, “a sexualidace esgota-se em Sates 2200s, deleites eopulativos, fertilizagses inces- Poder da rasse que Cronos pode levar aum “acentuado ginacao” (ibid.). fo incess: 59 ‘Ao mesmo tempo que Cronos estabelece limite, constrigées e intensifica a tensdo entre 0s opostos de ber, e mal, também concentra, coagula € promove na cons ciéncia egdica a adogao de atitudes firmes e de peso. Aon, centragao da atengao na imaginacao moral, bloqueand, , expansividade extrovertida, favorece 0 poder extraorg. nario do pequeno — da pena, das representagées simbg, licas, da arte. Diodoro alegava que Cronos introduziu maneira civilizada de viver na cultura humana (Harrison, 1912, p. 252). O poder do pequeno e da imaginagao moral sao aspectos do que habitualmente chamamos de caré. ter. Esse desenvolvimento da personalidade é certamen. te do interesse da cultura e da ordem social, mas tam- bém serve ao interesse da continuidade da evolugao de cada pessoa. Sem um rastro sequer de moralidade créni- ca, ninguém se incomodaria com 0 confronto com a som- bra nem reagiria a ela com “a violenta averséo que se sente quando o sujeito precisa enxergar através de suas projegdes e reconhecer a natureza da anima” (Jung, 1955- 56, par. 674). O resultado de uma atitude de puro e irrestrito naturalismo seria “o discernimento ser privado de sua eficadcia, j4 que a reagdo moral esté ausente” (ibid) Na verdade, seria muito fécil a pessoa ser seduzida a dar razao aos impulsos da sombra e as fantasias da anime. Se essa tendéncia prevalecer, o processo de individuaca® terd baixos resultados (dentro das imagens alquimicas, Mereirio escaparia do vaso), pois a sombra e a anim@ nao ofertardo seus tesouros sem ter de enfrentar a res!" téncia do ego. Quem verifica o cumprimento dessa resi téncia moral — as vezes brutal, irredutivel, e sem?” surda a seducdo — é a consciéncia solar saturnins. Um analisando apresentou 0 seguinte sonho: i Estou num reservatério de gua; ele 6 cercado por um jar com arvores, flores ¢ arbustos e correndo por toda a volt | Jardim existe uma cerca. Olho em diregao ao portdo & Vi? 60 animal, uma cobra;jacaré, ereto © apoiudo nas patas traseiras, estando o portao c tentando sair. Com medo de que ele vfetiva, teste consiga escapar, fico quieto ¢ observo. Finalmeste, vl Miravessa o porto e desaparece. Agora estou correndo pela en. atsta de um morro, muito leve, como se cu pudesse voar. Perto Ja base, deparo-me repentinamente com varios tmulos aber tos; num deles, esta deitada a cobra-jacaré, morta, parecendo empalhada. sonhador era homem jovem com sérios problemas em seu casamento, Antes desse sonho, ele teve um ro- mance extraconjugal. Achava que o sonho estava indi- cando uma ansiedade de castragao (a morte da cobra-ja- caré, que ele entendia ser um simbolo do pénis) e que essa forca de castragao vinha de fora, pois ele nao se sen- tia culpado por causa do romance. O reservatério de agua e o jardim sao imagens co- nhecidas nos sonhos e na arte, e indicam a transferéncia ea situacao analitica. A figura do analista esta ausente, de modo que a forca controladora que ele poderia exercer est ausente, e a contencdo da cobra-jacaré fica a cargo do portao e da grade. A grade, o portao, o limite, a fron- teira do que 6 dentro e fora sao imagens que indicam a atividade e o papel da consciéncia solar saturnina. Aqui, esses limites pertencem ao trabalho analitico e formam 0 continente para o que pode ser mobilizado pelo trabalho. Identificamos aqui o problema alquimico de manter a tolha no vaso e, com isso, conter o espfrito mercurial. O que ¢ libertado do inconsciente, nesse sonho, é re- aes Pela cobra-jacaré, Existem muitos significados finer ts’es possiveis para cobra ejacaré. Alguns sio per- ven, adi a esse caso, por exemplo: a cobra simboliza, tal- ay ieee mais profundamente numinosa, ameaga- carat conatt® ¢ ineonseiente da psique; envenena epode Simbwliga 4m 08 OPestos de matéria e espirito e, em geral, étanto félice core esséncia do inconsciente. Nesse caso, mo espiritual (elemento indicado pela pos- 61 tura targida, ereta, quase humana). O simbolo da serpen, te inclui, ainda, os atributos dojacaré, um monstro matey. nal geralmente ameagador, de dentes afiados. Esse animal, que o analisando libertou do reservats. rio do inconsciente, quer ir em frente, ultrapassando og limites da andlise, e entrar no mundo externo. Essa cana. lizagao para o plano externo, ingressando no plano da rea. lizagao concreta da fantasia, era caracteristica da atitude consciente desse analisando: a menos que uma fantasia pudesse ser posta em pratica, era considerada indtil, Mas © ego onfrico sabe do perigo de uma atuagao e, em virtude desse medo, tem uma espécie de alianga secreta com a gra- de e 0 portdo. Quando a cobra-jacaré escapa, o plano ex- tenso ganha as custas da intensidade, que diminui. O ani- mal se langa a frente, e lé adiante é morto ou morre. A cerca nao conseguiu conter 0 impulso ¢ isso assi- nala uma fraqueza estrutural nas barreiras de conten- 40 da consciéncia solar saturnina. Nesse caso, em que uma atitude psicolégica de contengdo estd ausente e em que se percebe uma falta de capacidade para reter um poderoso jorro de libido no campo da conseiéncia, por tem po suficiente para se poder anulisé-lo e elabord-lo, uma das tarefas do analista é reforcar e fortificar a cerca, # consciéncia solar saturnina. O analista atento a dimen- sao psicolégica faria isso nao basicamente para atendet aos interesses da sociedade (embora esse possa ser U™ motivo forte), mas em favor do proprio crescimento pe soal do analisando. Quando a cobra-jacaré é contida, enfrentada, e combatida, a personalidade ganha vig" criativo e um aumento de sua profundidade e intensid® de que faltariam de outro modo, o que promete 0 encam nhamento até fontes subterrdneas de riquezas e eners!* que nao estariam disponiveis de outra maneira. Essa tencao da natureza animal depende da forca e da intes™ dade do portao e da cerca. 62 0 intenso poder criativo do pequeno ¢ 0 filho do Cronos eniautos — “aquele que contém todas as coisas fm si mesmo : ‘Quando a consciéncia solar saturnina — com seus elevados ideais espirituais, sua atitude altamente critica que queima 0 que est4 abaixo, como o sol forte do meio- aie suas rigidas estipulagées éticas — é dirigidaparao go, exerce seu dominio através do ideal do ego e da ‘ameaga de uma culpa feroz. Também pode dirigir sua atengdo para a sociedade e, por meio de visées utdpicas, impor uma critica inexordvel aos acordos politicos da vida toletiva, geralmente casuisticos e repletos de concessées Utépicos sociais, de Platao aos profetas biblicos e de ‘Thomas More, Marx e Engels até os radicais contempo- raneos, mantém-se sob o influxo ea tutela da consciéncia solar saturnina cuja mira assenta no longiquo. Em Cronos, encontramos uma espécie de consciéncia solar social que nao se satisfaz com ocasionais obras de carida- de. O utépico social quer reorganizar as estruturas bési- cas da sociedade, de acordo com um sistema de ideais, normas e padres abstratos. Platao descreve a “era de Cronos” com imagens do paraiso que caracterizam mais ou menos todas as vis6es da utopia: * deus, em sua bondade para com o homem,... estendeu sobre nés essa raca superior de espiritos que se incumbe, sem levar fem conta seu préprio sossego, para a nossa maxima convenién- cia, de nos proporcionar paz e misericérdia, leis sensatas e just ¢a inquebrantével, dotando as famflias da humanidade com fe- licidade e com a concérdia interna (Hamilton e Cairns, 1951, pp. 1304-1306). vegeN’ss® Sociedade ut6pica imaginada néo existiase- Yageria nem a caga de uma criatura pela outra, néo ha- wuguerras nem eonflites de qualquer espécie Quando 0 s Cronos era pastor, ndo havia constituigdes politi- 63 cas, casamento nem a geragao de filhos, nove soas safam diretamente da terra e nao tinhan YB cao de coisas anteriores. Nao havia ress via frutos e vegetais perfeitos que nasciam de gry, de plantas, e nao precisavam ser cultivados Porque tavam por si $6 do chao, sem qualquer esfores human. Os seres humanos andavam livremente Por toda Parte sem precisar de vestimentas nem de abrigo, pois as esta. goes do ano sucediam-se de maneira tao harmoniosa que ninguém era agredido pelo clima, e a grama que recobrig abundantemente toda a terra servia-lhes de came macia (ibid., p. 1037). Na era dourada de Cronos, os humanos nao governavam uns sobre os outros, da mesma maneira como nao instituimos bodes Tegentes de bodes nem vacas liderando vacas. entimentag , como Platao a descreve, er corrumpidos ou subor- comodagées politicas, por conse- gitagdo. o social visiondria, a consciéncia ga até a medula”, “deixa de lado a nados, e concessées e a guinte, estao fora de co; Enquanto percepe: solar saturnina “enxer, ens6es ut6picas. Nisto, 6 evidente, imiscui-se nitidamente um elemento de destrutividade extrema, um violento impulso para emascular a velha ordem, para despedacar e incinerar, e considerar inimi- Fie @08 98 que duvidam ideologicamente, aos quais a Unica recompensa merecida 6 serem langados ao pogo de enxofre: Sanam teu e intquo parte para a pristo de vinganca ¢ pu- Caieatag chamam de Tartare (Platao, Gorgias, em Hamilton e Cairns, 1961, p04) 64 Criar amigos ou inimigos de acordo com padroes ideologicos e normas ideais, considerar todos os que nao gata do mesmo lado como inimigos, punir transgressores Som o banimento, a tortura e a desgraca — todas essas demonstragées da “justiga” inflexivel, desprovida de mi sericérdia e de compreensdo do que seja a fraqueza hu- nana, pertencem ao campo saturnino, Essas imagens e nogoes vividas da puni¢do pés-morte pelos pecados tam- em estdo profundamente entranhadas na tradigdo cris- 14, Nas pessoas modernas, encontram-se internalizadas ce experimentadas da forma como a personagem Solness, de Ibsen, expressa. O efeito da postura critica radical e da utopia visio- néria sobre a sociedade esté no aparecimento de tensdes, choques, reagdes de defesa e de constrangimento hostil por parte dos governantes. Nesse recrudescimento da tensdo e da intensidade est o potencial criativo da ago da consciéncia solar saturnina. A flexibilidade cinica dos politicos 6 desafiada, as portas trancadas dos “atra- vessadores” do poder so arrombadas e as mais sacros- santas pressuposigoes da irresponsabilidade aristocrali- ca so questionadas. Os criticos sociais saturninos sen- tem de longe 0 cheiro de fumaga, do que esta podre, da corrupgao nas sombras do poder dos mercendrios ¢ ex- poem suas constatagées & luz da consciéncia coletiva. So os jornalistas investigadores de hoje. E essa dissemina- 40 do lixo da corrupgdo moral, ao ser exposta & luz das Tellexdes éticas, fertiliza a vida coletiva ao mobilizar a Sociedade para que saia de seu estado letargico e de sua estagnagao e comece a se mexer, pressionando centime- tro a centimetro a consolidagéo de imegens de uma or- dem social ideal. Mesmo que os eriticos saturninos radi- Tone, consigam produzir um endurecimento roscion® arenDt Parte da elite no poder, ainda assim sio dteis pare © nivel da consciéncia e da atenga0 social. 65 lhor das hipéteses, sao os génios morais de uma Socieda. de: Gandhi, Martin Luther King Jr., Albert Schweitzer, Acomunidade humana precisa desses representantes da consciéncia solar. O préximo pai mitico na linha grega de desenvolvi- mento 6 Zeus. Quando Zeus comega a dominar a cons- ciéncia solar, mais uma vez deparamos com elementos de Tepressao (Zeus tranca os Titas no Tartaro) e de filicidio (Zeus engole Métis, que esta gravida; mais tarde, essa crianga nasce da cabega de Zeus: Atena). Mas o reino de Zeus também demonstra flexibilidade bem maior: ele permite a interagéo do bem com o mal em seu reino ¢ tolera desacordos no Olimpo. Os significados e as ima- gens de Zeus na estrutura da consciéncia solar sero apre- sentados no quarto capitulo, em que discutirei a questo a luz de seu casamento primordial com Témis, um aspec- to da consciéncia lunar A qual agora me volte, 3 CONSCIENCIA LUNAR & possivel que uma consciéncia pesada, que lite- ralmente pode matar pessoas ou fazé-las enlouquecer, seja produto da natureza tanto quanto da cultura? Um “sim” pode corroborar uma convicgao amplamente acei- ta, segundo a qual podemos acarretar doengas fisicas e mentais letais para nés mesmos ao comportarmo-nos mal. ‘Aculpa nao é a unica punigao para uma consciéncia pe- sada. Esta visdo engloba as antigas nogées de Destino e Nemesis. A percepgao de que us valores morais séo pro- pagados pela cultura, e igualmente pela propria natu- reza humana, 6 uma idéia de raizes milenares. Talvez a mente humana seja construida de tal modo que uma sensibilidade ética seja, pelo menos, parcialmente her- dada, __ Gostaria de expor a nogao de a 6a fonte da lei e o representante in de leis de uma determinada sociedade, 20 passo qué & consciéncia lunar é a fonte da percepeéo da. justica, uma Sensagéo mais profunda do certo e do errado que na? de- pende da “lei comum” nem a reflete, que transcende Tegras e os regulamentos recebidos comumente para o nor uma sociedade especifica. Embora a m ate nservar certa cautela cética @ TesPel 67 ue a consciéncia solar terno de um conjunto em nome do rigor, as questies suscitadas mere, cussao, ti, (A trégica historia da antepassada casa de Ay, na Grécia, assinala como um ato malévolo, cometid mat geragio, afeta todos os seus descendentes, inclygyn™ ponto de ameagar de extingo aquela linhagem gengy<® Similarmente, a idéia do pecado original na doutrina gst ta afirma que um ato pecaminoso de desobediéneis passado mitico, cometido por Adao e Eva, estabeleceu par, toda a raca humana um itinerdrio trégico. Essas crenea e percepgées antigas sobre crime e castigo descortinan um vasto panorama acerca do tema da consciéncia, x paz de ampliar nossas proprias maneiras de pensar gp, bre o assunto. Talvez a consciéncia néo seja téio pessoal determinada pela cultura, afinal de contas. Quando abordamos a consciéncia do ponto de vista lunar, nossa atengao desloca-se dos determinantes pes- soais, e até culturais e sociais do contetido moral, paraos aspectos arquetfpicos inconscientes da natureza huma- na, e para o corpo ¢ o instinto como fontes de orientagaoe valorizagdo morais. Distanciando-nos das certezas do que 6 certo e errado (na forma como costumam ser adotadas pela familia, pela sociedade e pela religido coletiva), pas- saremos agora a considerar esses fendmenos como para: doxos bizarros de certas compulsées éticas, além da inexplicdvel presenca de respostas morais endossadas inconscientemente; a sintomatologia da enfermidade mental, em particular do distirbio de personalidade limitrofe, como uma fungéo da consciéncia lunar; e a8 doengas psicossomaticas © catdstrofes sincrénicas como tragos de uma consciéncia pesada. A idéia basica ¢ que vivendo a vida de mé fé — e em particular os padroes basicos da vida humana — a pessoa (a tribo ou a familia) esté condenada a uma cadeia de conseqtiéneias que a tr digao oriental chamaria de karma negativo. Nés também 68 _dedicamos & investigacao de um tipo de eo Ws forgaria 0 ¢80 @.ndo trilhar um caminho e \eecionismo moral, mas, sim, a eneaminhar. dade e & integridade. Se na consciéncia so ‘os como fruto 0 amor pela lei, na lunar co; da lei do amor. nsciéneia streito de Se rumo a lar encon- nstatamos total tram tragos Ao tratarmos da espinhosa questao dialética da re- tagio entre natureza e cultura, imediatamente emerge uma davida: até que ponto ainda estamos falando sobre consciéncia? Haveria, na natureza humana, na “mae”, no inconsciente, alguma coisa que pode ser designada como consciéncia? Nao é certo que os valores e a moral tém de ser ensinados? A etimologia do termo consciéncia parece afirmar essa crenga, pois con ciéncia significa “saber jun- to” ou aquilo que é geralmente sabido de modo conscien- te por um grupo e tido como lastro comum de referéncia pelos membros que o compéem. Aconsciéncia lunar, entretanto, sugere outra ma- neira de entender a nogao do estar junto, baseada me- nos exclusivamente nos contetidos conscientes de um dado grupo e mais numa camada do ineonsciente, que Jung chamou de inconsciente coletivo. A consciéncia lunar designa aquilo que é comumente conhecido e acei- to como humano, mas porque irrompe do substrato co- mum da psique profunda e forma uma espécie de eixo moral coletivo. A consciéncia lunar emerge de padroes arquetipicos, aqueles elementos basicos de constitui- sao da mente humana que sao nossa heranga humana Como seres sensitivos. Apresento aqui minha argu tagdo em defesa da alegagdo de que essa camade 40 “onsciente contém suas proprias leis de hignaetr) wh ‘8, © que a violagdo das mesmas implica poms Ns’, Nstituidas por essa totalidade psicossom Pessoa humana. 69 O caso de Orestes Um exemplo paradiygmatico de atuagio da conscién cia lunar corre na historia de uma antiga figura greg, Orestes. Ele ¢ filho de Clitemnestra e de Agamemnon, Um dia, consulta o oriculo de Apolo, em Delfos, para saber se deveria ou nao vingar o pai, assassinado pela esposa enfurecida quando voltava da Guerra de Tréia. Ela o mata em seu préprio palicio porque ele havia sacrificado a fi Iha, Ifigénia, a deusa Artemis, em troca de ventos favors. veis para avangar até Trdia. Apolo defende a lei patriarcal e ordena a execugdo da mae, que Orestes entao realiza Depois do assassinio, Orestes, segundo Esquilo, chama o coro para que o escutem, e faz um apelo ao sol: Estendam-na. Coloquem-se em volta de mim e estendam essa rede que apanhou um homem. Para que, néo o meu pai, mas 0 grande pai que vé tudo, o Sol, olhe para 0 sacrilego ato que as ‘mos de minha mae executaram e seja testemunha de minha defesa no dia em que for julgado por tudo o que esteve correto na morte que executei, a de minha mie. (“The Libation Bearer’s", pp. 983-989) Mas Apolo, deidade solar e, por isso, representante da consciéncia solar e da atitude coletiva, aqui represen- tada pelo coro, apéia decididamente este ato de violéncia contra a mée, incentiva-o e dé-lhe apoio moral. Depois do assassinio, porém, Orestes sente-se am- bivalente, mesmo que o coro insista em que cumpriu seu dever. O coro parece cego para as figuras negras, as Fui- rias, que esto comegando a se reunir em torno da cabega do vingador do pai: Cono Nao, o que vo fer fi bem-feito, Portantonéo empreste para palavras tolas. Nao permita 0 mal em seus labios. 70 Vocé libertou toda a cidade de An ‘quando decepou as cabecas dee 648 deseas duns go dom um Gnico golpe. dluas serpentos Orestes Nao! ‘As mulheres que servem a esta casa vém como gérgonas, clas vestem tinicas negras e estao coroadas por um emaranhado de serpentes, Nao posso ficar mais. Cono Orestes, 0 mais querido do teu pai dentre todos os homens, que fantasias atormentam-te? Espera, nao eedas ao meth” Orestes Nao séo fantasias de afligao. Sao claras, reais, e estdo aqui os perseguidores do dio de minha mae, (‘The Libation Bearer's”, pp. 1044-1054) A lenda de Orestes torna parcial a opinio de que a consciéneia solar 6 0 tinico fator de moderacao do com- portamento ético. As Erineas, ou Furias, defendem o di- reito da mae — mesmo de alguém vingativo, assassino e moralmente questionavel como Clitemnestra — diante das presas arreganhadas de Apolo, o Sol, da cidade de Argos e dos protestos do pai. Elas falam em nome da cons- ciéncia num nfvel pré-racional, nao dominado pelo coleti- vo. Em termos de psicologia profunda, falam pelo e a par- tir do inconsciente. . - Em suas reconstrugées histéricas, 0 pioneiro alemao dos estudos de mitologia comparada, J. J. Bachofen, cons- tatou um aspecto das antigas sociedades mediterréneas ue chamou de “o direito da mae”. Este compde um ooh Junto de obrigagdes que decorrem do elo entre mae partir relagio mée-filho, explica ele, eria uma matriz 410 @ qual emerge “toda cultura... cada virtude.. e258 °°" to mais nobre da existéncia... atua, NO eto . Tencia, como o prinefpio divino do amor, 1 paz” (1954, p. 91). Bachofen langou 0s alicerces histor cos e coletivos para o que Robert Scholl (ver capitulo dois) observa nas interagoes envolvendo mae e bebé quando postula a origem da consciéncia nesta matriz interpessoal, Antes que 0 pai, a mae estende seus interesses para além do préprio ego, dizia Bachofen, ao conter os filhos num circulo de amor protetor. Seus interesses particula- res estendem-se a eles, ¢ isso cria o primeiro elo de empatia humana. A natureza do principio materno é diferente, em muitos sentidos, do prinefpio paterno, e aqui Bachofen fez uma declaragdo que também serve como distingao basica nas definigdes de consciéncia lunar e solar: Enquanto o prinefpio paterno é inerentemente restritivo, 0 ma- terno 6 universal; 0 prinejpio paterno implica uma limitagéo a grupos definidos, mas o principio materno, como a vida da hatureza, nao conhece barreiras. A idéia da maternidade pro- duz uma sensacéo de fraternidade universal em todos os ho- mens... (1954, p. 80) Enquanto a consciéncia solar faz distingées, divide, eleva, julga e exclui, a consciéncia lunar obnubila essas distingoes para incluir, conectar, acolher. ‘A fase matriarcal do desenvolvimento cultural, con- tinua Bachofen, “é inteiramente subserviente & matéria aos fendmenos da vida natural”. Encoraja igualmente valores materialistas como 0 conforto corporal ¢ os ador- nos, ao mesmo tempo que permanece aberta a experién- ‘cia mais transcendente da “harmonia do universo”. Esta “enraizada na sensagéo do natural”, sendo centrada na matéria e no concreto; nao obstante é também sintonica com as harmonias mais profundas da existéncia natural. “fm suma’”, conclui Bachofen, “a existéncia matriarcal € regulado” (1954, pp. 91-92). .quisas hist6ricas confirmem, quer reje- de Bachofen, sua reconstrugao oferec, um naturalismo Quer as pes tem as alegagoes 72 termos e metiforas historicas, um rel em edas e dinamismos da conseiéneia a fontes, i esse aspecto da consciéncia que Orestes, in tidamente, desrespeita quando mata a mae ne {agi e insisténcia do Apolo solar. As Farias, se aa 5 idstings em sua Enciclopédia das religides e tices, nig Fo ‘monitores internos, mas agentes externos que pu. nem a pessoa por haver transgredido a lei moral, e em Esquilo, sio invisiveis ao coro que representa a opiniao ¢ gs-valores coletivos da pélis. Estes dois pontos indicam a distancia psicolégica existente entre a consciéncia lunar fe os valores egdicos e consciéncia coletiva: as Farias, guardias do direito materno, nao pertencem ao mundo daconsciéncia diurna, representado no drama grego pelo coro; elas irrompem subitamente, espontaneamente, vin- das de algum lugar desconhecido do inconsciente e ata- cam 0 ego, aparentemente isento de culpa, com seus gru- nhidos horripilantes e aparéncia sobrenatural medonha. Diferentemente da consciéneia solar que se faz presente naqueles que incorrem em erro produzindo sentimento de culpa e distanciamento do afeto da familia e da comu- nidade, ou uma sensagav de inferioridade moral, a cons- ciéncia lunar atesta sua presenga em acessos de loucura, em pesadelos e sonhos ruins, em um sentimento perse- cutério e ansioso a respeito da prépria vida estar & merce de forgas escuras, sinistras e irracionais. Essa é a situa- ¢4o clinica da personalidade limitrofe (ver Schwartz- Salant, 1989). h A origem das Erineas (também ¢ untae ee lentes") diz muito a respeito de sua naturets ¢ NOP. Existem varios mitos a respeito. one Erineas vém luz quando Gaia é imprest gue do Urano emasculado (Kerenyi, 1985, P.* a, sio tro mito, sao as filhas da Noite; num outr ® 3 amadas Firias ¢, — filhas da Terra e seu pai é Skotos, “Trevas” (ibid, p, 49) Em todas as versoes, sio extremamente antigas, tém mg ximas ligagdes genéticas com a Mae primordial e ocupan lugar no mundo inferior. Na tradigdo 6rfica, Hades ¢ gen pai e Perséfone sua mie, segundo essa perspectiva o. tao especificamente localizadas entre as sombras (ibig Nas Erineas, o arquétipo da Grande Mae manifest, seu instinto voltado para a preservacéo da vida e, em particular, aos lagos de parentesco. Sempre que as leis dos lacos de sangue (o elo primario de ligagao no mundy matriarcal) sao violadas, as Erineas aparecem com sey mau cheiro, com sua “saliva venenosa” e seus latidos fe. Tozes, como os ces dos infernos (ibid., pp. 47-48). Pare. cem especialmente sensiveis As transgressdes envolven. do 0 vinculo com a mée. Na qualidade de guardias do parentesco, as Erineas indicam uma intengdo basica dentro da consciéncia lu. nar: defender os direitos e as prerrogativas do vinculo de apego com pessoas, lugares e objetos materiais. A consciéncia lunar baseia-se em valores afetivos de rela- cionamentos. E muito menos abstrata do que a cons- ciencia solar. Seu movimento é “para baixo”, em vez de “para cima”, rumo A matéria e as reivindicagées mate- Tiais sobre o ego. Defende nossos sentimentos mais inti- mos e penetrantes de vinculagdo afetiva, nossos primei- Tos elos fisicos e psicolégicos de relagao com pessoas ¢ coisas, e também nossa ligagdo com o corpo e nossas préprias necessidades fisicas, A consciéneia lunar asst me a postura de uma mae diante dos filhos: cuida de suas necessidades fisicas, ama-os incondicionalmente, emocionalmente, primitivamente, absolutamente. Tal como a mae faria, a consciéncia lunar recomenda a0 eB que aceite a vida e que a viva plenamente. Esta impre Sa na consciéncia lunar uma ética de aceitagao e de auto aceitagao. 74

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