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ae | Obras completas do PADRE ANTONIO VIEIRA &. A. Vv. P. 2 Pe HORT A, SERMOES | Prefaciado e revista pelo Rev. Padre Goncalo Alves Prégador, ou S. Paulo ou Vieira. $s D. Lulz de Sousa, Are, de Braga 1951 LELLO & IRMAO —EDITORES ~ Rua das Carmelitas PORTO. AILLAUD & LELLOS, LIMITADA Rua do Carino, 76, 80 a 84 —LISBOA FESTAS MOVEIS E IMMOVEIS Sermado da Epiphania’ Prégado na Capella Real no Anno hws \ » * X Cum natus esset Jesus in“Bethl in dicbus Herodis regis, ecco Ma venerunt, © f ah V.P. bes Tees VOTE I @fiof, HERAELATO. PINHEIRO” Para que Portugal na nossa edade possa ouvir um prégador evangelico, sera, hoje, o Evangelho o pré; dor. Esta é a novidade que trago do Mundo Novo. O estylo era que o prégador explicasse 0 Evangelho : hoje o Evangelho ha-de ser a explicagio do prégador. Nao sou eu O que hei-de commentar 0 Texto; 0 Texto 6 o que me ha-de commentar a mim. Nenhuma palavra direi que n&o seja sua, porqne nenhuma clausula tem que néo seja minha. Eu repetirei_as suas vozes, elle bradard os meus silencios. Praza a Deus que os oigam os homens na terra, para que n&io cheguem a ser ouvi dos no céo. * Bste Sermao foi prégado na Capella Real, no anno de 1662, -4rainha D; Luiza, regente do Reino na minoridade d’el-rei D. Afton. so VI, em presenca d’ambas as magestades, na occasiao em que o auctor e outros Religiosos da Companhia de Jesus chegaram a Lis. boa expulsados das Missdes do Maranhdo pela furla do povo, por defenderem os injustos captiveiros e liberdade dos Indios que tinham a seu cargo. Este sermao encerra os periodos mais eloquentes que jamais se prégaram em pulpito christao. Sob a cloquencia d’algumas das suas paginas escreveu Camillo Castello Branco: « Vieira com. moveu até as lagrimas e fez que a santa liberdade volvesse 4 Ame. eee gargalheiras do Indio ¢ a cicratizar-Ihe as vergadas- lo tagante +. C. C. Branco, Continuagdo e complement de Witt. port, de Andrade Ferreira, pag. 102, men do Curso ooeRNe 6 PADRE ANTONIO VIEIRA Havendo, porém, de prégar 0 Evangelho, e com tao novas cireumstancias como as que promette o exor. dio ;nem por isso cuide alguem que 0 prégador eo sermao ha-de faltar ao mysterio, Antes pdde bem ser, que Tara vez ou nunca se prégasse n’este logar a ma- teria propria deste dia e desta solemnidade sepiio hoje. O mysterio proprio deste dia é a vocacio e con- verso da gentilidade 4 £6. Até agora cclebrou a Igreja © nascimento de Christo, hoje celebra o nascimento da Christandade. Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda. Este foi o nascimento de Christo, que j4 pas- sou. Hece Magi ab Oriente venerunt: este & 0 nasci- mento da Ohristandade, que hoje se celebra. Nasceu hoje a Christandade, porque os tres Reis que n’este dia vieram adorar a Christo, foram os primeiros que o reco- nheceram por Senhor, ce" por isso The tributaram oiro : os primeiros que 0 reconheceram por Deus, e por isso Ihe consagraram incenso: og primeiros que 0 reco- nheceram por homem em carne mortal, e por isso lhe offereceram myrra. Vieram gentios, e tornaram fieis ; vieram idolatras, ¢ tornaram christéos ; e esta é a nova gloria da Igreja, que ella hoje celebra, e 0 Evangelho, nosso prégador, refere. Demos-lhe attoncao. IL Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in die- bus Herdilis regis, ecce Magi ab Oriente venerunt. Es- tas sio 2s primeiras palavras do Evangelho, e logo n’ellas parece que repugna o mesmo Eyangelho a ser meu interprete, porque a sua historia e o seu mys- terio é da India Oriental: Ab Oriente venerunt, ¢ o meu casi 6 das Occidentaes. Se appelo para os Reis e para o sentido mystico, tambem esti’ contra mim, porque totalmente exclue a America, que é a parte do munde, d’onde eu venho: Santo Agostinho, 8. Ledio 1 Math, u, 1. SERMOBS “ t papa, 8. Bernarde, Santo Anselmo, e quasi todos os Padres reparam por diversos modes, em quo os Reis que vieram adorar a Christo, féssem tres ; e a limita- sao Weste mesmo numero 6 para mim, on contra mim, © maior reparo. Os Prophetas tinham dito que todos os reis e todas as gentes haviam de vir adorar, @ reco- nhecer a Christo: Adorabunt eum omnes reges terrix, omnes gentes servient ei: * Omnes gentes quascwmque focisti, venient, et adorabunt coram te Domine.* Pois se todas as gentes e todos os reis do mundo haviam de vir adorar a Christo, porque vieram sémente tres ? Por isso mesmo, respondem o veneravel Béda, 6 Ru- Perto Abbade. Foram tres, e nem mais nem menos que tres, os Reis que vieram adorar a Christo, por- que n’elles se representavam todas as partes do mundo que tambem so tres: Asia, Africa e Europa: Tres re- ges, tres partes mundi significant : Asiam, Africam, ot iuropam. diz Béda, E Ruperto com a mesma distinc- gio: Magi tribus partibus orbis, Asiz, Europe, atque adorationis exemplar exisiere meruerunt. Isto 6 6 que dizem estes grandes auctores como interpretes do Evangelho; mas o mesmo Eyvangelho para ser mou interprete, ainda ha-de dizer mais. Dizem que os tres reis significavam @ Asia, a Africa © a Buropa; e ondo Ihes ficou a America? A America nio é, também, parte do mundo, e a maior parte ¥ Se me disserem. que nio apparecen no Presepio, porque tardou e veio muitos seculos depois, tambem as outras tardaram ; antes ella tardou menos, porque se converteu e adorou a Christo mais depressa e mais sem repugnancia que todas. Pois se cada uma das partes do mundo teve 0 seurei que as apresentasse a Christo, por que Ihe ha-de faltar 4 pobre America ? Ha-de ter rei que receba e se enriqueca com os seus tributos, e nio ha-de ter rei que com elles ou sem elles a leye aos pés de ee, 1 Psal., uxx1, 11. 2 Mid., uxxxv, 9. 8 PADRE ANTONIO VIEIRA . Christo ? Sei eu (e ndo o péde negar a minha dér) que se a primeira e a segunda, e a terecira parte do mundo tiveram reis, fambem o teve a qnarta, emquanto Ihe néo faltou o quarto. 1 Mas vamos ao Eyangelho e con- ciliemos com elle esta exposigéio dos Padres. Ecce Magi ab Oriente venerunt. Diz o Evangelista, que os reis do Oriente vieram a adorar a Christo, westa mesma limitagio, com que diz que vieram nomeadamente os do Oriente, e nio outros, se reforca mais a duvida; porque assim no Testamento Velho como no Novo est& expresso, que no sé haviam de vir a Christo os gentios do Oriente, senio tambem os do Occidente. No Testamento Velho, Isaias fallando com a Igreja: Ab Oriente adducam semen tuum, et ab Oceidente congregabo te*: e no Testamento Novo a prophecia e oraculo de Christo: Dico vobis, quod multi ab Oriente et Occidente venient.* Pois so nao 86 haviam de vir a Christo os reis, e gentes do Orien- te, senio tambem as do Occidente ; como diz nomea- damente o Evangelista que os que vieram eram to- dos do Oriente, ou como vieram sé 0s do Oriente, e os do Occidente nfo? A tudo satizfaz 0 mesmo Eyan- gelista ; e na simples narragio da historia concordou admiravelmente 0 seu Texto com o dos Prophetas. Que diz o Evangelista? Cum natus esset Jesus in die- bus Herodis regis, ecce Magis ab Oriente venerunt. Diz que nos dias de Herodes, sendo nascido Christo, 0 vie- ram adorar os Reis do Oriente ; e n’estas mesmas cir- cumstancias do tempo, do logar e das pessoas, com que limitou a primeira vocagio da gentilidade, mos- trou que nado havia de ser s6 uma, senio duas, como estava prophetisado. A primeira vocagio da gentili- dade foi nos dias de Herodes: In diebus Herodis regis : # segunda quasi em nossos dias. A primeira foi quando Christo nasceu: Cum natus esset Jesus: a segunda 1 ELrei D. Jo&o IV, que {a era morto, 2 Isai., xu, 5. 3 Math., vim, 11. ¥ SERMOES 9 quando j4 se contavam mile quinhentos annos do nas- cimento de Christo. A primeira foi por meio dos reis do Oriente : Lece Magi ab Oriente venerunt : a segunda por meio dos reis do Occidente, e dos mais occidentaes de todos, que so os de Portugal. Para melhor intelligencia d’estas duas vocagdes, ou @estas duas Epiphanias, havemos de suppdr que n’es- te mesmo mundo em differentes tempos houve doi mundos: o Mundo Velho, que conheceram os anti- gos, € 0 Mundo Novo, que elles e o mesmo mundo nao conheceu, até que os Portuguezes o descobriram. O Mundo Velho compunha-se de tres partes: Asia, Africa e Europa; mas de tal maneira que entrando neste primeiro composto toda a Enropa, a Asia e a Africa nfo entravam intoiras, sendo partidas, e por um s6 lado : a Afriea com toda a parte que abraca o mar Mediterraneo, e a Asia com a parte a que se estende o mar Erytreo. O Mundo Novo, muito maior que 0 Velho, tambem se compoe de tres partes: Asia, Afri- cae America; mas de tal maneira tambem, que en- trando n’esta segundo composto toda a America, a Asia e 2 Africa, sé entram n’elle partidas, e com os outros dois lados tanto mais vastos e tanto mais dila- tados, quanto o mar Oceano -que os rodeia excede ao Mediterraneo e Erytreo. E como os Autores an- tigos sé conheceram 0 Mundo Velho ¢ n&o tiveram, nem podiam ter conheecimento do Novo ; por isso Béda e Ruperto disseram com muita propriedade quo os tres Reis do Oriente representavam as tres partes do mundo: Asia, Africa e Europa. Comtudo, 8. Bernar- do, + que foi contemporaneo de Ruperto, combinando o nosso Evangelho com as outras Escripturas, co- nheceu com seu grande espirito, ou quando menos arguiu com seu grande engenho, qte assim como houve tres reis do Oriente que levaram as gentilida- 1 Bern. sermao 3.* De Nativitate. 10 PADRE ANTONIO VIEIRA T des a Christo, assim havia de haver, outros tres reis do Occidente que as trouxessem & mesma f6: Vide autem, ne forte ipsi sint et tres Magi venientes jam non ab Oriente sed etiam ab Occidente. Quem fdssem ou quem houvessem de ser estes tres reis do Occi- dente, que S. Bernardo anteviu, nao © disse, nem o pode dizer o mesmo santo, posto que tie devoto de Portugal e tio familiar amigo do nosso primeiro rei. Mas 0 tempo, que 6 0 mais claro interprete dos futu- ros, nos ensinou d’alli a quatrocentos annos, que es- tes felicissimos reis foram cl-rei D. Joao o I, el-rei D. Manuel, e el-rei D. Joao o IIT; porque o primeiro comegou, 0 segundo prosseguiu, e o terceiro aperfei- goou 0 descobrimento das nossas conquistas, e todos tres trouxeram ao conhecimento de Christo aquellas novas gentilidades, como os tres Magos as antigas. Os Magos levando a luz da fé do Oriente para o Occi- dente ; elles do Occidente para o Oriente ; Os Magos apresentando a Christo a Asia, Africa e Europa ; e elles a Asia, Africa e America: Os Magos estendendo os raios da sua estrella por todo o Mundo Velho até ds gargantas do Mediterraneo; e elles alumiando com © novo gol a todo o Mundo Novo até ds balizas do Oceano. = Uma das coisas mais notaveis que Deus revelou e premeteu antigamente, foi, que ainda havia de crear um novo céo, 6 uma nova terra, Assim o disse por bocea do propheta Isaias: Eece ego creo calos no- vos, ct terram novam.* Bi certo que o céo e a terra foram creados no principio. do mundo: In principio oreavit Deus calum, et terram:? e também 6 certo entre todos os Theologos ¢ Philosophos, que depois @aquella primeira-creagio, Deus n&io creou, nem cria substancia alguma material e corporea; porque s6- mente cria de noyo ag almas, que so espirituacs : 1 Isai, uxv, 17. 8 Genvs., 1, 1. = q SERMOES neh logo que ‘terra nova, e que e6os novos sio estes, que Deus tanto tempo antes prometteu que havia de crear % Outros o que entendem d’outra maneira, n&o sei se muito conforme 4 lettra. Eu, seguindo 0 que ella simples- mente sda e significa, digo que esta nova terra e estes novos céos, sfio a terra e os céos do Mundo Novo descoberto pelos Portuguozes. Nao 6 verdade, que quando os nossos argonautas comegaram e prosegui- ram as suas primeiras navegagdes, iam juntamente descobrindo novas tcrras, novos mares, noyos climas, novos céos, novas estrellas ? Pois essa é a terra nova e esses s%0 Os céos novos que Deus tinha promettido, que havia de crear, nado porque nado estivessem ja erea- dos desde o prineipio do mundo, mas porque era este o Mundo Novo tao oceulto e ignorado dentro no mesmo mundo, que quando de repente se descobriu e appare- ceu, foi como se entiio comegdra a ser, e Deus 0 credra de novo. E porque o fim d’este descobrimento ou d’esta nova creacéo era a Igreja tambem nova, que Deus pretendia fundar no mesmo Mundo Novo, acrescentou logo (pelo mesmo Propheta e pelos mesmos termos) que tambom havia de crear uma nova Jerusalem, isto é, uma noya Igreja, na qual muito se agradasse : Quia ecce creo Jérusalem exultationem et populum ejus gau- dium. * Nao tenho menos auctor d’este pensamento que o Evangelista dos segredos de Deus, S. Jo&’0, no seu Apocalypse : Ht vidi calum novum, et terram novam : primum enim exlwm, ot prima terra abiit, et mare jam non est. Et vidi civitatem Jérusalem novam descen- dentem de celo.* Primciramente, diz S. Jo&o, que yiu um céo novo e uma terra nova: Vidi calum no- vum et terram novam : Esta 6 a terra nova e o céo novo, que Deus tinha promeottido por Isaias. Logo, acrescenta o mesmo Hyangelista, como commentador 1 Isai., uxv, 17. 2 Apoc., xxi, 1 € 2. 12 PADRE ANTONIO VIEIRA do Propheta, que 4 vista d’este céo novo, e Vesta terra nova, o céo e a terra antiga dosappareceram, e que o mar ja nfo era: Primum enim calum, et prima terra abiit, et mare jam non est: © assim aconteceu no descobrimento do Mundo Novo. Desapparecen a terra antiga, porque a terra Walli por diante jA nao era a que tinha sido, senio outra muito maior, muito mais estendida e dilatada em noyas costas, em novos cabos, em novas ilhas, em novas regides, em noyas gentes, em novos animaes, em novas plantas. Da mesma ma- neira 0 céo tambem comegou a ser outro. Outros as- tros, outras figuras celestes, outras alturas, outras declinagdes, outros aspoctos, outras influencias, outras luzes, outras sombras, e tantas outras coisas todas outras. Sobretudo o mar que fora, j& n&o é: Et mare jam non est ; porque até entio o que se conhecia com nome de mar, e nas mesmas Escripturas se chamava Mare magnum, cra o Mediterranco ; mas depois que se descobriu o Mundo Novo, logo se conheceu tam- bem que nio era aquelle o mar, senio um brago d’elle, e © mesmo nome que injustamente tinha usurpado, se passou sem controversia ao Oceano, que 6 86 0 que por sua immensa grandeza absolutamente, e sem ou- tro sobrenome se chama mar. E porque toda esta novidade do novo céo, da nova terra, e do novo mar, se ordenaya & fundagiio de outra nova Igreja, esta foi a que logo vin o mesmo Byangelista com nome tambem de nova: Ht vidi civitatem Jérusalem novam descendentem de czlo. Finalmente, para que ninguem duvidasse de toda esta explicagdo, conelue, que a mes- ma Igreja nova que vira, se havia de compér de na- gdes e reis gentios, que n’ella receberiam a Juz da fé, e sujeitariam suas cordas ao imperio de Christo : HE ambulabunt gentes in lumine ejus, et reges terre offerent gloriam suam, et honorem in illam. > Que é tudo o que temos visto no descobrimento do Mundo Novo, ou n’esta 1 Apocalyp., Xxt, V, 24, ioe 1 SERMOES 13 nova creagio @elle: Eece creo ocelos novos, ot terram novam. Houve, porem, n’esta segunda e nova creagato do mundo uma grande differenga da primeira, e de nova e singular gloria para a nossa nacio. Porque ha- vendo Deus creado o mundo na primeira creagao por si sé, © sem ajuda ou coneurso de causas segun- das, n’esta segunda creacio tomou por instrumento Wella os Portuguezes, quasi pela mesma ordem, ¢ com as Mesmas cireunstancias, com que no principio tinha creado 0 mundo. Quando Deus creou o mundo, diz o sagrado Texto, que a terra nfo se via porque estava escondida debaixo do elemento da agua, e toda escura © coberta de trevas: Terra autem erat invisibilis (como léem os Setenta) et tenebre erant super faciem abys- si .1 Entio dividiu Deus as aguas, ¢ appareceu a terra : creow.a luz e cessaram as trevas : Divisit aquas : facta est luc: appareat arida.? Este foi o modo da primeira creacio do mundo. E quem nao vé que o mesmo obser- vou Deus na segunda por meio dos Portuguezes * Estava todo o Nevo Mundo em trevas e ds escuras, porque n&o era conhecido. Tude © que alli havia, sendo tanto, cra como se n&io fdsse nada, porque assim se cuidava e tinha por fabula. Terra autem erat vanitas et nihil, come diz o Texto hebreu. O que encobria a terra, era o elemento da agua; porque a immensidade do Oceano, que estava em meio, se julgava por insuperavel, como a julgaram todes os antigos, e entre elles Santo Agostinho. Atreveu-se, finalmente, a ousadia e zélo dos Portuguezes a des~ fazer este encanto, e vencer este impossivel. Come- garam a dividir as aguas nunca d’antes sortadas, com as aventurosas proas des seus primeiro lenhos : foram apparecendo e surgindo de uma e outra parte, ¢ coquo nascendo de novo as terras, as gentes, 0 mundo que 1 Genes., 1, 2. 2 Rid, wry 14 PADRE ANTONIO VIEIRA as Mesmas aguas encobriam ; 8 © nao 86 acabaram en- tio no mundo antigo a u 8 trevas desta ignorancia, mas muito mais no Novo e descoberto, as trevas da infi- delidade, porque amanheceu n’ellas a luz do Byange- Iho © 0 conhecimento de Christo, 0 qual era o que gulava os Portuguezes, e n’elles e com elles navegava. Tudo estava vendo o mesmo prophetia Isaias @este des. cobrimento, quando, fallando com aquella nova Igre- Ja pelos mesmos termog da primeira creacéo do mun- do, Ihe disse: Quia ecce tenebre operient terram, ot caligo populos, super te autem orictur Dominus, ot gloria ejus in te videbitur ; et ambulabunt gentes in lu- mine tuo, et reges in splendore ortus tui», TIT Isto é 0 que fizerim os primeiros argonautas de -Por- tugal nas suas tio bem afortunadas conquistas do Novo Mundo, e por isso bem afortunados. Este é o fim para que Devs entre todas as nacdes escolheu a nossa com o illustre nome de pura na fé, e amada pela pie- dade : estas sio as gentes estranhas e remotas, aonde nos prometteu que haviamos de levar seu Santissimo Nome : este é 0 imperio seu, que por nés quiz ampli- ficar e em nds estabelecer ; @ esta é, foi, e sera sem- pre a maior ¢ melhor gloria do valor, do zélo, da religifio e christandade portugueze. Mas quem dis- sera ou imagindra que os tempos e os costumes se ha- viam de trocar, e fazer tal mudanga que esta mesma gloria nossa se visse entre nds eclipsada, e por nés es- curecida ? No quizera passar a materia tao triste, e tio indigna (que por isso a fui dilatando tanto, como quem rodeia 6 retarda os passos por niio chegar aonde muito repugna). Mas nem a forga da presente ocva- sido m’o permitte, nem a verdado de um discurso, que prometteu ser cvangelico, o conscnte. Quem ima- 1 Isat,, ux, 2 e3, SERMOES 15 t ginéra, torno a dizer, que aquella gloria t&éo h -roice mente adquirida nas tres partes do mundo, e t&o cele- brada e exclarecida em todas quatro, se havia de escurecer © profanar em um rincio ou arrabalde da America ?! _ Levantou 0 demonio este fumo ou assoprou este incendio entre as palhas de quatro choupanas, que com nome da cidade de Belém, puderam ser patria do Anti-Christo. © yerdadeiramente que, se as Wseri- pturas nos nio ensinaram que este monstro ha-de sahir de outra terra e de ouira nacio, ja puderamos cuidar que era nascido. Treme, e tem horror a lin- gua de pronunciar o que viram os olhos; mas sendo © caso tio fio, tao horrendo, tio atroz, e tio sacri- lego que se nfo pode dizcr, étXo publico e tio noto- rio que se nio deve calar. Oigam, pois, os excessos de t&o nova e tao estranha maldade, os que s6 lhe pé- dem pér o remedio: e se elles (0 que se ndo cré) faltarem 4 sua obrigac&o, nio é justo, nem Deus o permittira, que eu falte 4 minha. O officio que tive m’aquelle logar, e 0 que tenho n’este (posto que indi- gno de ambos) sio os que com dobrado vinculo da consciencia me obrigaram a romper o silencio, até agora observado ou supprimido, esperando que a mesma causa, por ser de Christo, fallasse e perorasse por si, e n&o eu por cilia. Assim o fizeram em similhantes, e ainda menores casos, os Athanasios, os Basilios, os Nazianzenos, os Chrysostomos, os Hilarios, e todas aquelles grandes Padres e Mestres da Igreja, cujas acgdes, como inspiradas ¢ approvadas por Deus, nao s6 devemos venerar e imitar como exemplos, mas obedecer ¢ seguir como preceitos. Fallarei, pois, com a clareza e publicidade com que elles fallaram ; © pro- varei e farei cérto o que disser como elles o fizeram, porque sendo perseguidos e desterrados, elles mes- mos eram o corpo do delicto que accusavam, e elles mesmos a prova. Assim o permittiu a Divina Provi- dencia que eu em tal férma, e as pessoas reverendas de meus companheiros, yiessomos remettidos aos olhos a * & 16 PADRE ANTONIO VIEIRA @esta corte, para que ella visse e nio duvidasse de erér, 0 que d’outro modo pareceria incrivel. Quem havia de erér, que em uma colonia cha- mada de Portuguezes se visse a Igreja sem obediencia, as censuras sem temor, 0 sacerdocio sem respeito, 0 as pessoas e logares sagrados sem immunidade ? Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de sous clautros aos Religiosos, e Jeval-os presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas publicas, e tel-os aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem ? Quem havia ‘de crér que com a mesma violencia e affronta Jangassem de suas christandades aos prégadores do Evangelho, com escandalo nunca imaginado dos anti- gos christdos, sem pejo dos novamente convertidos, e 4 vista dos gentios attonitos e pasmados ? Quem havia de crér que até aos mesmas parochos nio perdoassem, e que chegassem a os despojar de suas igrejas, com interdicto total do culto divino e uso de seus ministe- rios : as igrejas ermas, os baptisterios fechados, os sa- crarios sem sacramento; emfim, o mesmo Christo privado de seus altares, e Deus de seus sacrificios ? Isto é o que 1d se viu ent&o:e que sera hoje 0 que se vé, e © que se nao vé? Nao fallo dos auctores e execu- tores destes sacrilegios, tantas vezes, e por tantos titulos excommupgados: porque 14 lhes ficam Papas que os absolvam. Mas que seré dos pobres e misera- veis Indios, que so a presa e os 80) 08 de toda esta guerra ? ous ser& dos christdos ? Que serA dos cathe- cumenos ? Que serd dos gentios? Que serd dos pais, das mulheres, dos filhos e de todo 0 sexo e edade ? Os vivos e saos, sem doutrina, os enfermos sem sacramen- tos, os mortos sem suffragios nem sepultura, e tanto genero de almas em extrema necessidade sem nenhum remedio ¢! O§8 pastores, parte presos e desterrados, parte mettides pelas brenhas ; os rebanhos despedaga- dos ; as ovelhas ou roubadas ou perdidas ; os lébos fa- mintos, fartos agora de sangue,.sem resistencia ; a liber- dade por mil modos trocada em servidio e captiveiro ; ; e 86 @ cobica, a tyrannia, a sensualidade, e o inferno SERMOES 1? contentes. E que a tudo isto se atrevessem e atrevam homens com nomes de portuguezes,e em tempo de rei portuguez-?! Grandes desconcertos se léem o no mesmapitulo do nosso Evangelho ; mas de fodos acho e scusa nas primeiras palavras d’elle: In diebus Herodis re- gis. Se succederam similhantes escandalos nos dias @el-rei Herodes, 0 tempo os desculpava ou culpava menos; mas nos dias d’aquelle monarca, que com © nome e com a corda herdou o zélo, a fé, a religifo, a piedade do grande Affonso I Oh que patallelo tio indigno do nome portuguez se pudera formaran comparagio de tempo a tempo! N’aquelle tempo an- davam os Portuguezes sempre com7as armas 48 cos- tas contra os inimigos da fé, hoje tomam as armas contra os prégadores da fé: entio conquistavam eles- calavam cidades para Deus, hoje conquistam e escaam as casas de Deus: ent&o langavam os caciques féra das mesquitas, hoje langam os sacerdotes féra das igrejas: entio consagravam os logarcs profanos em casas de orac&o, hoje fazem das casas de oraciio logares profanos = ent&o, finalmente, cram defensores e prégadores do nome christ&o, hoje so perseguidores e destruidores, e opprobrio e infamia do mesmo nome. E para quo até a cdrte e assento dos reis que The suecederam, nio ficasse féra d’este parallelo; entio sahiam pela barra de Lisboa as nossaS naus Carre- gadas de prégadores, que voluntariamente se dester- ravam da patria para prégar nas conquistas.a Lei de Christo ; hoje entram pela mesma barra, trazendo ‘desterrados violentamente os mesmos prégadores, sé porque defendem nas conquistas a Lei de Christo. Nao se envergonhe j4 a barra de Argel, de que entrem ~ por ella sacerdotes de Christo, captivos e presos, pois o mesmo se viu om noasos dias na barra de Lis- boa. Oh que bem empregado prodigio fra n’este caso, so fugindo ‘d’aquella barra o mar, e voltando atras 0 Tojo, Ihe pudessemos dizer como a0 rio e@ ao mar da terra, que ent&io comeguya a ser santa: Quid est tibj 1 IT 18 PADRE ANTONIO VIEIRA marc, quod fugistt, et tu Jordans, quia conversus es re- trorsum ?* Glori’ava-so o Tejo quando nas suas ribeiras se fabricavam, e pelas suas correntes sahiam as armay das conquistadoras do imperio de Christo: gloriava-se, } digo, de ser elle aquelle famoso rio de quem cantavam os versos de David : Dominabitur a mari usque ad mare, at a& flumine usque ad terminus orbis terrarum : * mas hoje envergonhado de tio affrontosa mudanga, devéra tornar atras, e ir-se esconder nas grutas do seu nasci- . mento, se nio 6 que de corrido corre a0 mar para se ( afogar e sepultar no mais profundo delle. Desenga- ne-se, porém, Lisboa que o mesmo mar lhe estd lan- gando em rosto o soffrimento de tamanho escandalo, e que as ondas com que escumando de ira bate as suas praias, sio brados com que lhe est’ dizendo as mesmas injurias que antigamente a Sidonia: Hrubesce, Sidon, < ait mare. BE nao cuide alguem que estas vozes de t&o justo i sentimento nascem de estranhar eu, ou me admirar de que os prégadores de Christo e 0 mesmo Christo seja perseguido ; porque esta é a estrella em que o he mesmo Senhor nasceu: Cum natus esset Jesus in Be- thlehem Juda in dichus Horodis regis. Ainda Christo > nao tinha quinze dias de nascido, quando jai Hero- . des tinha poucos menos de perseguidor seu; para que @ perseguigio e o perseguido nascessem juntos. B { naio sé nasceu Christo com estrella de perseguido em } fe Belém, senfio em todas as partes do mundo, porque - : _ em todas teve logo seu Herodes que o perseguisse. i ‘Vou suppondo, como verdadeiramente 6, que Christo nao sé nasceu em Belém, mas que nasceue nasce em outras muitas partes, como ha-de nascer em to- $s das. Por isso o propheta Malachias muito disereta- mente comparou o nascimento de Christo ao nasci- a 2” Psat., cxm, 5;7 2° Ibid, ext, 8. SERMOES 19 Re mento do sol: Orietur vobis sci justitia. * O sol vae nascendo successivamento a todo o mundo, ¢ ainda que a umas terras nasga mais cedo, a outras mals tarde, para cada terra tem sou nascimento. Assim tambem Christo verdadoiro sol. A primeira vez nas- cou om Belém, depois foi nascendo succe ivamente por todo o mundo, conforme o foram prégando os Apos- tolos e seus successores: a wmas terras nasceu mals depressa 2 outras mais devagar ; umas muito antes, » outras muito depois ; mas para todas teve seu nasci- mento. Ti a energia com que fallou o Anjo 20s Pasto- res: Natus est vobis hodie Salvator : 7 nasceu hoje para y6s 0 Salvador : como dissera : hoje nasceu para vés, os outros, tambem, terio seu dia gn que ha-de nascer para elles. Assim havia de ser, ¢ assim foi, e assim tem nascido Christo em differentes tempos em tio diversas partes do mundo ; mas om nenhum tempo, ¢ em nenbuma parte nasceu onde logo nio tivesse um Herodes que © perseguisse. Viu §. Jo%o, no Apocalypse, aquella mulher celes- tial vestida de sol, a qual estava em vesperas do parto, @ diz que logo appareceu diante @ella wm dragiio fe- roz e armado, o qual estava aguardando que sahisse 4& luz o filho para o tragar e comer: Ei draco steitt ante mulierem que erat paritura, ut cum peperisset, filiwm ejus devoraret. * Que mulher, que filho, e que dragio 6 este? A mulher foi a Virgem Maria, e éa Igroja. O Filho foi o 6 Christo; que assim como a primeira vez nasceu da Virgem Santissima, assim hasceu e nasce muitas vezes da Tgreja, por meio da £6 e prégacio de seus ministros em diversas partes do mundo. E o dragio que appareceu com a bocca aberta para o tragar tanto que nascesse, 6 cada um dos tyran- nos que logo o mesmo Christo tem armados contra si, 1 Malach., 1v, 2» 2 Lue., m1, 11. 8 Apoc., XU, 4. 20 PADRE ANTONIO VIFTRA t tanto que nasce, © onde qnor que nasce. De mancira que nio ha nascimento de Chricto sem o seu persegui dor ou o seu Herodes. Nasceu Christo em Roma pela prégaciio de S. Pedro, @ logo so levantou um Herodes, que foi o imperador Nero, © qual crucificou ao meamo 8. Pedro. Nasceu Christo em Hespanha pela pri de 8. Tiago, © logo se levantou outro Herodes, que foi el-rei Agrippa, 0 qual degollou ao mesmo 8, ‘TI go. Nasceu Christo em Ethiopia pela prdgacio de S. Matheus, ¢ logo so levantou outro Herodes, que foi el-tei Hirtaco, 0 qual tirou, tambem, a vida ao mes- mo 8. Matheus, e estando sacrifieando 0 Corpo de Christo 0 fez victima de Christo. E para que dos exem- plos do Mundo Velho passemos aos do Novo : nasceu Christo no Japio pela prégagio e milagre de S. Fran- cisco Xavier, e logo se Jevantaram, nifio um, senio mui- tos Herodes, que foram os Nabunangas ¢ Taicozamaé, 08 quaes tanto sangne derramaram, 9 ainda derramam, dos filhos e successores do mesmo Xavier. Finalmen- te, nasceu Christo: na conquista do Maranhio, que foi a ultima de todas as nossas; e para que Ihe no faltassem n’aqnelle Belém e féra delle os seus Hero- des, se levantaram agora e declararam contra Christo em si mesmo, e em seus prégadores, os que tio impia e barbaramente niio sendo barbaros o Pperseguem. Assim que nfo é coisa nova nem materia digna de admi- ragio, que Christo e os prégadores de sua fé sejam per- seguidos. O que, porém, excede todo o espanto, e se uo péde ouvir sem horror e assombro, é que os perseyuidores de Christo e seus prégadores neste caso nfo sejam os infieis e gentios, senio os christios. Se os gentios indomitos, se os tapuyas barbaros e@ feros d’aquellas brenhas se armaram medonhamente contra og que lhes vio prégar a f{é; se os cobriam de settas, se os fizeram em pedagos, se Thes arrancaram as entranhas palpitantes e as langaram no fogo, e as comeram ; isso $ © que elles j4 tém feito outras vezes, e o que 14 vilo buscar os que pelos salvar deixam tudo; mas que agiio Se SERMOES 21 a estes homens com o cter de ministros de Christo 08 pe m gentilicamente os Christfios, quando essas a mesmas féras so Ihes humanam, quando esses mesmos barbaros se Ihes rendem, quando esses mesmos gen- tios os reverenceiam e adoram ; este 6 0 maior extre- mo de perseguigio, © a perseguicio mais feia e affron- tosa, que nunca padeceu a Igrej Nas perseguigdes dos Neros e Dioclecianos os gentios perseguiam 0s : uurtyres ¢ os christiios os adoravam ; mas nesta per- 4 seguigao nova © inaudita, os christiios sio os que per- seguem os prégadores, e os gentios os que os adoram. a S6 na perseguicdo de Herodes 6 na paciencia de Chris- to se acham juntos estes extremos. No Bvyangelho 4 femos a Christo hoje perseguido, e hoje adorado: mas 4 de quem adorado, e de quem perseguido ? Adorado aa dos gentios, e perseguido dos christios; adorado dos 4 Magos, que eram gentios, e perseguido de Herodes e %. de toda a Jerusalém, que eram os christios d’quelle S tempo. " 7 Ninguem repare em eu Ihes chamar christiios, por- ; que ha christéos de fé, © christdos de esperanga. Os, 4 filhos da Igreja somos christ&os de fé, porque crémos j ¢ que Christo j4 vein; os filhos da synagoga eram chris- a taios de esperanga, porque criam e esperavam que a Christo havia de vir. E que homens que criam em a Christo, e esperavam por Christo, e eram da mesma = nagio ¢ do mesmo sangue de Christo, persigam tio barbaramente a Christo ; e que no mesmo tempo, para maior escandals da fé e da natureza, os Magos 0 bus- quem, os gentios o creiam, os idolatras o adorem %! Bemdito sejaes, Senhor, que tal contradicgio quizestes ; padecer, ¢ bemdito mil vezes pela parte que vos dignas- : * tes communicar d’ella aos que tio indignamente vos S servem: ufo debalde nos honrastes com o nome de Companhia de Jesus, obrigando-nos a vos fazer com- panhia no que padecestes nascido debaixo do mesmo nome: Cum natus esse? Jesus in Bethlehem Juda. Vés cm Belém de Juda, para que os vossos perseguidores fossem da vossa mesma nagéo ; nés em Belém, nio a2 PADRE ANTONIO VIEIRA de Sida, para que o8 nossos fossem, taibem, da nos- sa: vés ha mesma terta, 6 NO mesmo tempo perse- guido de Herodes e adorado dos Magos ; o nés tam- bem pot mercé Vossa, no mesmo tempo e na mesma terra perseguidos dos christios, e pouco menos que adorados dos gentios! Assim 0 experimentam hoje 08 que por escapar 4 perseguigdo andam fugitivos por aquellas brenhas, se bem fugitivos nao por medo dos homens, senio por amor de Christo, e por seguir seu exemplo. D’aqui a poucos dias -veremos fugir a Christo ; mas de quom e para quem ? De onde e para onde t N&o se pudera crer, se o ndéo mandara Deus © 0. dissera tim Anjo: Fugé in Agyptum :+ fugi para o Egypto Pois de Israel para o Hgypto, da terra dos ficis para a terra dos gentios, o para a terra d’aquelles mesmos gentios, d’dnde antigamente fugiram, os filhos de Istacl? Sim. Qe tA¢ mudados estio os tempos ¢ os homens, ¢ a tdiito chega & forea da perseguicio. Puturum est enim ut Horodes querat puerum ad per- dendwim vitm.> Foge Chitisto, © fogem os prégadores de Christo, dos fieis pira os infieis, ¢ dos christaos para os gentios, porque os christdos 6s desterram, e os ‘gen- tios os ampatam, porque os christaos os maltratam, © os geritios Os defendem, pdrque os christios os per- seguei 6 os gentios os adoram. Nio foi grande maravilha que José preso e vendido dé seus proprios irmaos, os Egypcios, o venerassem e ostimassem tanté 6 abaixo do seti rei o adorassem ? Pois muito maior 6 a differeriga qie hoje experimen- tim entre aquelles gentios os yenturosos-homiziados da {6, que escaparido das piisdes dos christaos se re- tiraram para elles. Os Egypcios ainda que, gentios cram horhens: aquelles gentios, que hoje comegaram a ser homens, hontem eram ‘feras. Eram aquelles mesmos barbaros,; ou brutos, que sem uso da razio, 1 Maih., ti, 13, 2 Ivid., SERMOES t 23 ném sentido de humanidade; se fartavam de carne ht- mana; que das caveiras faziam tagas para lhe beber 9 sangiic, e das canas dos ossos frautas para festejart os convites. E estas sio hoje as feras que em vez de nos tirarem a vida, nos acolhem entre si, e nos ve- ner2m como og ledes a Daniel: estas as aves de rapina que em vez de nos comerem nos sustentam como og Gorvos a Elias, estes os monstros (pela maior parte marinhos) que em vez de nos tragarem e digerirem, nos mettem dentro nas entranhas, e n’ellas nos con- servam vivos, como a baleia a Jonas. E se assim nos tratam os gentios e taes gentios, quando assim nes tratiami 08 christ&ios e christdos da nossa nagio e do nosso Sangue ; quem se nio assombra de uma tao gran- de differencga ? Iv Vejo que estiio dizendo dentro de si todos os que ale Olveni, 6 tahtd mais, quanto mais admirados desta mesma differenga ; que tao grandes effeitos nio podem nas¢er soniio de grandes causas. Se os christa&os per- seguem os prégadores da fé, alguma grande causa tém para os perseguir. E se os gentios tanto os amam e¢ veneram, alguma catisa tém, tambem grande, para Os venerar e amar. Que causas serdo estas % Isto 6° © que, agora, se segue dizer. FE se alguma vez me déstes atten¢do seja para estes dois pontos. Comegandd pelo amor e veneragio dos gentios, aquella estrella que trouxe os Magos a Christo, era uifia figura celestial e muito illustre dos prégadores ‘da £6. Assim o diz S. Gregorio e os outros Padres commummente ; mas a mesma estrella o disse ainda melhor. Que officio foi o daquella estrella? Alu- miar, guiar e trazer homens a adorar a Christo, @ néo outros homens, senfio homens inficis e idolatras, nascidos e creados nas trevas da gentilidade. Pois esse mesmo 6 0 officio e exercicio ndo de quaesquer prégadores, senio d’aguelJes prégadores de que falla- 24 PADRE ANTONIO VIEIRA mos, e por isso propriamente estrellas de Christo. Re- para muito S. Maximo em que esta estrella que guiou os Magos, se chame particularmente estrella de Christo : Stella ejus: e argue assim: Todas as outras estrellas no sio, tambem, estrellas de Christo, que, como Deus as creou? Sim, sio. Pois porque razio esta estrella mais que as outras se chama especialmente estrella sua: Stella ejue? Porque as outras estrellas foram geralnente éreadas para techas do céo 0 do mundo; esta foi creada especialmente para prégadora de Christo. Quia quamvis omnes ab co ‘create stelle ipsius sint,hze tamen propria Christi erat, quia specialiter Christi nuntiabat adventum. Muitas outras estrellas ha n'aquelle hemispherio, muito claras nos resplendores e muito uteis nas influencias, como as do firmamento ; mas estas de que fallamos, sio propria e especialmente de Christo, nao s6 pelo nome de Jesus, com que. se pro- fessam por suas; mas porque o fim, o instituto, e 0. officio para que foram creadas, 6 0 mesmo que o da estrella dos Magos, para trazer inficis e gentios 4 £6 de Christo. Ora se estas estfelas fossem tio dilligentes, tao sollicitas e tio pontuaes em acompanhar e guiar, e servir aos gentios, como a que acompanhou, guiou e serviu acs Magos; nao teriam os mesmos gentios muita razio de as querereme estimarem, de sentirem muito sua falta, e de se ulegrarem e consolarem muito com sua presenga ? Assim o fizeram os Magos, e assim o diz o Evangelista, néio wcabando de encarecer este con‘entamento: Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno vaidé.* Pois vamos agora seguindo os passos d’aquella estrella desde o Oriente até ao Pre- sepio, e veremos como as que hoje vemos tio mal‘vistas e tio perseguidas, n&o so limitam e igualam em tudo a estrella dos Magos, mas em tudo a excedem com grandes vantagens. Primeiramente dizem os Magos que onde viram a 1 Math., 11, 10. SERMOES 25 estrella foi no Oriente : Vidimus stellam ejus in Orien- te.» Do mancira que podendo a estrella ser vista de muito longe, como se véom as outras ostrellas, ella os foi buscar 4 sua terra. N’esta diligencia e n’este caminho se avantajou muito a estrella dos Magos aos Anjos que appareceram aos Pastores. Os Anjos tam- bem alumiaram aos Pastores : Claritas cireumfulsit il- los:* e tambem Ihes anunciaram 0 nascimeato de Christo: Evangelizo vobis gaudium magnum quia ne- tus est vobis Salvator: % mas essa luz e esse Evange- Tho aonde 0 levararh os Anjos ? Nao ds terras do Orien- te ou a outras remotas, como a estrellas ; mas a qua- fro passes da cidade de Belém, e nos mesmos arra- baldes d’ella, um transito muito breve: Transeamus + usque Bethlehem. * E quanto vae de Belém ao Orien- te, tanto vae de um evangelizar a outro. Isto écom- parando .a estrella com os anjos, e muito mais se a compararmos com os mesmos pastores. Estes Pas- tores de Belém sio os mais celebrados da Igreja, e os que ella allega por exemplo e propde por exem- “ plar aos -pastores das almas. Mas que fizeram ou que faziam -estes bons Pastores? Pastores erant in regione eadem custodientes vigilias nuctis super gre- gem suum. * Eram tio vigilantes e cuidadosos do seu gado, que com. ser 4 mia noite nio dormiam, sendo que o estayam guardando, e velando ‘sobre elle. Muito bem. Mus no sei se advertis o que nota o Evangelista acerca do logar, e Averca do gado. Acer- ca do logar diz que estavam ‘ua mesm: regi Et : pastores erant in regione eadem © Acerca do gado, diz que as ovelhas eram suas: Super gregem suum. Bem -ambas estas coisas consiste a vantagem que lhes fez a estrella. Os pastores estayam na sua regido, e a estrella Math., 1, 2. Lue., 11, 9. Ibid., 10 @ 14, Ibid., 15, Ibid., 8. 26 PADRE ANTONIO VIEIRA a. Le De foi a regides estranhas: elles guardavyam as ovelhas suas, e ella foi buscar ovelhas pata Christo. E guardat as$ suas Gvelhis na sua regido, ou ir buscar ovelhas para Christo a regides estranhas, beri se vé quanto vae a diz Mas ainda que tudo isto fez a estrella dos Maos, faltoti-Ihe muito para se igualar com as nossas 68- trellas. Ella foi buscar gentios a uma regifio remota, mas distante séménte treze dias de caminho : as nos- sas vic buscar em distantia de mais de mil leguas dé mate por rios, que sé o das Amazonas, sem se lhe saber nascimento, tem quatto mil de ecérrenté. A estrella dos Magos nunca saliiu do seu elemento ; as nossas ji no da terra, j& 10 da agua, j4 no do-ar,e dos Vventos, supportamn os perigos e rigores de todos. A dos Magos caminhou da Arabia 4 Mesopotamia sem- pre dentro dos mesmos horizontes ; as nossas vio do ultimo cabo da Europa ao mais interior da America, dando Yolta a meio mthdo e passando d’este he- mispherio a6s antipodas. Finaltnente (para que ajun- temos 4 distancia a differenca das terras) 4 estrella dos Mages ia com ellés para a Terra da Promissio, a mais aména @ deliciosa que creou a natureza ; as nossas desterram-se para toda a vida em companhia de degradados, nao como elles, para as colonias ma- ritimas, onde os ares siv mais benignos ; mas para os sertOes habitades de feras, e minados de bichos Yenenosos, nos climas mais nocivos da Zona Torrida. Nao 6 porém este o maior trabalho. Vidimus stellam ejus. Perguntam aqui os interpre- tes, por que mandou Christo aos Magos uma estrella, e nado um Anjo ou um Propheta? Os profetas ado 0s embaixadores ordinarios de Deus, 0s anjos 08 ex. traordinaries, e tal era esta embaixada. Por que naio mandou logo Christo aos Magos um anjo ou um pro- pheta, senfio uma estrella? A razio foi (dizem todos) Porque era conveniente, que aos Magos sé enviasse um embaixador que lies fallasse na sua propria lin- gua. Os Magos eram astrologos ; a lingua por onde ‘ SERMOES 24 bs astrologos entendem 6 que diz 0 céo, sid trellas ; @ tal era essa mesina estrella, 4 qual chama Santo Agostihho: lingua cali: lingua do céo: pois va uina estrella aos Magos, p que ella Ihes falle na lingua que elles entendem. Se eu no entendo a lingua do gentio, nem o gentio entende a minha, eoto 0 hei-de converter e trazer a, Christo ?, Por isso tethos por regra e instituto aprender todos a lingua ou litiguas da terra, onde imos pregar; ¢ esta é a maior difficuldade ¢ o maior trabalho @aquella espiritual conquistia, © ei qtie as nossas estrellas excedem muito & dos Magos. Notae. Os Magos entendiam a lingua da estrella, e o que ella Ihes dizia ; nftas por que a en- tenderam ? Porque como astrologos que eram, pelos livrds dos Chaldeus sabidin que aquella estrella era nova @ ntinca vista; e como discipulos que tambem eram a6 Balaso, sabia pelés livros da Wscriptura,. que witha estrella nova que hayia de apparécer, era signal da vinda nasciiiiento do Messias, descéndente de Facob: Orictur stella ex Jacob: > e por esta sciencia adduirida corn Gobrado éstudé prideram aleargar, e ontetder o que a estrella signiticava, o lhes dizia. C4 Hdd 6 assim, serio 4s avessas. LA, para entender a estrella, ostudavam 6s Magos; cd, para entender 6 gén- tio; hac-de estudar as estrellas. Nés que 0s itos buscar, somos ‘os que Ihes havemos de estudar ¢ sa- ber a lingua. E quanta diffieuldade e trabalho seja haver de apretider um etropeli, nao com mestres e Sori livros cdind os Magos, mas sem livro, sci, mestre, m principio, & sem documiento algum, nao uma, Seriado muitas liiguas birbiras, incultas e horridas : 86 quemo padece, e Deus por quem ge padéce 6 sabe. ue 5 _ Quandé Deus confundin as linguag na torre de Ba- breu, que todos fica: que todos fallavai ‘am mu= e todos bel, ponderdu Philo dos e surdds, porque 2: 1 Num., xxiv, 17. PADRE ANTONIO VIEIRA ouviam, nenhum entendia o outro. Na antiga Babel houve setenta e duas linguas: na Babel do rio das Amazonas ji se conhecem mais de cento e cin- coenta, tao diversas entre si como a nossa e a Grega; e assim quando 14 chegamos, todos nés somos mudos, e todos elles surdos. Véde, agora, quanto estudo e quanto trabalho sera necessario para que estes mu- dos fallem, e estes surdos oigam. Nas terras dos Ty- rios e Sydonios, que tambem eram gentios, trouxe- ram a Christo um mudo e surdo para que © curasse 3 e diz 8. Mareos, que 0 Senhor se retirou com elle a um logar apartado, que Ihe metteu os dedos nos ou- vidos, que Ihe tocou a lingua com saliva tirada da sua, que lovantou os olhos ao céo, ¢ deu grandes ge- midos, e¢ ent&o fallon o mudo, e ouviu o surdo: Apprehendens eum de turba seorsum, misit digitos suos in auriculas ¢jus, et expuens, tetigit linguam ejus : et suspicions in calum ingemuit, ot ait ili: Hphphe- ta, quod est adaperire.* Pois se Christo fazia os ou- tros milagres t&o facilmente, este de dar falla ao mudo, e ouvidos ao surdo, como Ihe custa tanto tra- balho e tantas diligencias ? Porque todas estas siio ne- cessarias a quem ha-de dar lingua a estes mudos, e ouvidos a estes surdos. I necessirio tomar 0 barbaro a parte, e estar e instar com elle muito 86° por sé, e muitas horas, e muitos dias: é necessario trabalhar com os dedos, escrevendo, apontando e interpretando " por acenos o que se n&o pdde aleangar das palavras : 6 necessdério trabalhar com a lingua, dobrando-a, ¢ torcendo-a, e dando-lhe mil veltags para. que chegue @ pronunciar os acentos t&o duros e tio estranhos : 6 necessario levantar os olhos ‘ao céo, uma e muitas vezes com. a oracio, e outras quasi com desespera- gio, é necessario, finalmente, gemer, e gemer com toda a alma ; gemer com o entendimento, porque em tanta escuridade nio yé sahida ; gemer com a memoria, por (Se 1° Matc., vit, 33 6 84, SERMOES 29 que em tanta variedade nfo acha firmeza ; e gemer até com a vontade, por constante que seja, porque no = aperto de tantas difficuldades desfalloce ¢ quasi des- E maia. Emfim, com a pertinacia da industria, ajudado da graga divina fallam os mudos, e owvem os surdos ; mas nem por isso cessam as razdes de gemer ; porque com o trabalho d’este milagre ser tio similhante ao de Christo, tem mui differente ventura, e mui outro galardio do que Ble teve. Vendo os circumstantes aquelle milagre comecaram a applaudir e dizer: Bene omnia fecit, ct surdos fecit audire, et mutos loqui, * niio ha duvida, que este propheta tudo faz bem, porque faz ouvir os surdos e fallar os mudos. De maneira que a Christo bastou-Ihe fazer fallar um mudo 6 ouvir um surdo, para dizerem que tudo fazia bem feito ;e a nés nio nos basta fazer 0 mesmo milagre F em tantos mudos, e tantos surdos, para que nos nio P= tenham por malfeitores. Mas vamos seguindo a ¢s- trella. Quando os Magos chegaram & vista de Jerusalem, esconde-se a estrella: @ esta foi a mais bizarra acgiio, e a mais luzida que eu d’ella considero. Basta, lu- zeiro celestial, que sois estrella de reis e escondeis- vos, e fugis da cdrte ? Ainda nfo entrastes nella, e ja a conheceis ? Mas bem mostraes quanto tendes de Deus, e quanto o quereis servir, e louvar todas as estrellas, como diz David louvam a Deus: Laudate eum omnes stellz, et lumen:2-mas o mesmo Deus disse a Job, que os louvores das estrelas da manh& eram os que mais Ihe agradavam: Oum me lauda- rent astra matutina.* E por que agradam mais a Deus os louvores das estrellas da manh&, que os das estrellas da voite Porque as estrellas da noite lou- vam a Deus luzindo, as estrellas da manhi louvam a 1 Mare., vit, 37. 2 Psal., exivit, 3. a 8 Job, xxxvit, 7. Abs hig la 30 PADRE ANTONIO VIEIRA Deus escondendo-se : as estrellas da noite communicam as influencias, mas conservam a luz: as estrellas da manh& perdem a Iuz para melhor lograr as influen- cias : emfim, as estrellas da noite luzem, porque estéio mais longe do sol; as estrellas da manha escondem-se, porque estéo mais perto. Isto é 0 que faz a estrella dos Magos, mas por poucas horas: as nossas por toda a vida. A estrella dos Magos quando se escondeu, nao lnziu, mas nio alumiou: as nossas escondem-se onde alumiam, e nio luzem: a dos Magos alumiava, onde a viam os reis: Vidimus stellam ejus: as nossas alu- miam onde no sio vistas, nem o pédem ser —no logar mais desluzido, e no canto mais escuro de todo o mundo. E 6 isto verdadeiramente esconder-se, porque nfo é s6 desterrar-se para sempre, mas enter- Yar-se. Assim esteve escondida a estrella, emquanto os Magos se detiveram em Jerusalem; mas tanto que sahiram para continuar seu caminho, logo tornou a se descobrir e apparecer: Et ecce stella, quam vide- rant in Oriente, antecedebat eos.1 Reparae no ante- cedebat. Ta a estrella diante, mas de tal mancira diante, que sempre se accommodava e em tudo ao passo dos que guiava. Ambulante Mago stella ambulat, sedente stat, dormiente excubat, diz S. Pedro Chrysvlogo. Quando os Magos andavam, andava a estrella : quando se assentavam, parava; mas nio dava um passo mais que elles. Pudera a estrella fazer todo aquelle caminho do Oriente a0 Occidente em dois momentos: 8#rut fulgur exit ab Oriente, et paret usque ad Occidentem. 2 E que ella contra a sua velocidade natural, j4 moven- do-se vagarosa e tardamente; j4 parando e ficando immovel, se fOsse accommodando, e medindo em tudo com a condigéo e fraqueza d’aquelles a quem guiava, quanto, quando, e como elles podiam, grande ‘violen- 1 Math., 1, 9. 2 Math., xxiv, 27: SERMOES 5 cia! E mais sv levantasse og olhos a0 firmamento, visse que as outras do seu nome davam volta ao mundo em vinte e quatro horas, e ella quasi parada. Mas assim faz, e¢ deve fazer quem tem por officio levar almas a Christo. Aquelles quatro animaes do carro de Eze- chiel, que olhavam para as quatro partes do mundo, e significavam os quatro Evangelistas, todos tinham azas de aguia ; mas nota o Text 0, que os pés com que andavam eram de boi: Et planta pedis eorxm, quasi planta pedis vituli.* E que se haja de mover a Passo de boi quem tem azas, e azas de aguia ? Sim : que isso 6 ser Evangelista, isso é ter officio de levar o Evange- Tho a gentes estranhas, e isso é o que fez a estrella: Antecedebat eos. a Mas estes cos quem eram? Aqui est4 a differenga daquella estrella 4s nossas. A estrella dos Magos accommodava-se aos gentios que guiava; mas esses gentios eram os Magos do Oriente, os homens mais Sabios da Chaldéa, e os mais doutos do mundo ; po- rém as nossas estrellas, depois de deixarem as’ ca- deiras das mais illustres Universidades da Europa (come muitos d’elles deixaram) accommodam-se 4 gente mais sem entendimento e sem discurso de quantas creou, ou abortou a natureza, e a homens de quem se duvidou se eram homens, e foi necessario que’ os Pontifices definissem que eram racionais © néio brutos. A estrella dos Magos parava, sim, mas nunca tornou atrds; as nossas estrellas tornam uma e mil vezes.a desandar o j& andado, e a ensinar ° Jé ensinado, © a repetir 6 j4 aprendido, porque o barbaro bocal e rude, o tapuya corrado © bruto, como nio faz inteiro entendimento, ndo imprime nem re- tem na memoria. Finalmente, para o dizer em uma palavra, a estrella dos Magos guiaya a homens que caminhavam nog dromedarios de Madian, como an- teviu Isaias: Dromedarii Madiam, et Epha: omnes de —_—____ 1 Ezech., t, 1 BRAS 32 PADRE ANTONIO VIEIRA Saba venient, aurum, et thus deferentes:? @ accom- modar-se ao passo dos dromedarios de Madian, ou ao somno das preguicas do Brazil, bem se vé a diffe- renga. : Ainda a palayra eos nos insinua outra, que se nio deve passar em silencio. A estrella, guia e prégadora dos Magos, conyerteu e trouxe a Christo almas de gen- tios; mas de que gentios e que almas? Almas illus- tres, almas coroadas, slmas de gentios reis : as nossas estrellas tambem trazem a Christo, e convertem almas ; mas almas de gente onde nunca se vin sceptro, nem corda, nem se ouviu o nome do rei.. A lingua geral de toda aquella costa carece de tres lettras: F, L, R.: De F, porque nio tem f6, de L, porque nao tem lei, de R. porque nao tem rei: e esta 6a policia da gente com que tratamos. A estrella dos Magos fez a sua missio entre purpuras é brocados, entre perolas e diamantes, entre ambares e calambucos; cmfim, entre os the- souros e delicias do Oriente: as nossas estrellas fazem as suas missées entre as pobrezas e desam- paros, entre os ascos e as miserias da gente mais inculta, da gente mais pobre, da gente mais vil, da gente menos gente de quantos nasceram no mundo. Uma gente com quem metteu tio pouco eabedal a natureza, com quem se empenhou t&o pouco a arte e a fortuna, que uma arvore Ihe dd o ves- tido e o sustento, e as armas, e a casa, o a embarca- gio. Com as folhas. se cobrem, com o fruto se susten- tam, com 0s ramos se a:tuam, com o tronco se abrigain, ‘e sobre a casca navegam. Estas sio todas as alfaiay @aquella pobrissima gente; e quem busca as almas @estes corpos, busca sé almas. Mas porque o mundo nao sabe avaliar estia acg&éo, como ella merece, oiga o mesmo..mundo o prego em que a estimou quem sé a péde pagar. Quando o Baptist: mandou s discipulos que fos 1 Isat. tx, 6. SERMOES 33 rem perguntar a Christo, se ers elle 0 Messias, a res- A posta do Senhor foi esta: Hentes renuntiate Joanni quer audistis, et vidistis :» ide, dizei a Jo&o o quo vvistes © ouvistes. EH que é 0 que tinham visto e ouvido % © que tinham visto, era que os cegos viam, os man- cos andavam, os leprosos sarayam, os mortos resus- citavam: Czxeci vident, claudi ambulant, leprosi. mun- dantur, mortui resurgunt.*? TE) nio bastavam todos es- tes milagres vistos, para “prova de ser Christo o ‘fos sias ? Sim, bastavam ; mas quiz 0 Senhor acrescentar ao que tinham visto, o que tinham ouvido, porque ainda era maior: prova, e mais certa. O que tinham ouyido os discipulos do Baptista, era que o Evange- Iho de Christo se prégava aos pobres: Pauperes ovan- gelizantur,*e esta foi a ultima prova com que o Re- demptor do mundo qualificon a verdade de ser ello © Messias ; porque prégar o Evangelho aos pobres, 20s miseraveis, aos que nio tém nada do mundo, 6 accao t&o propria do espirito de Christo, que depois do teste- munho de seus milagres a poz -o Filho de Deus por sello de todos elles. O fazer milagres, péde-o attri- buir -a malicia a outro espirito; e o evangelisar sos “ pobres nenhuma, malicia péde negar que é espirito de Christo. 3 Finalmente, acabou a estrella o seu curso : parou; - = mas onde foi parar ? .Usque dum vonions staret supra, : ‘ubi erat puer.* Foi parar em um Presepio, onde os. : ; tava Christo sobre palhas, e entro brutos, ¢ allio dou 2% conhecer. Oh que estrella tao santae tao disereta ! Estiella que n&o quer apparecer em Jerusalem, © se vae parar no Presepio: estrella que antes quer estar . em uma choupana com Christo, que om uma corte e sem Elle? Discreta e santa estrella, outra vez! Mas = mais discretas e mais santas as nossas. A razii 35, POTS ree ves¥s = 34 PADRE ANTONIO VIEIRA see clara. Christo n’aquelle tempo estava no Presepio, mas n&io estava na cérte de Jeruszlém; de sorte quo se a estrella quizesse ficar na cérte, havia de ficar sem Christo. Nas cOrtes da christandade nao 6 assim. Em todas as cértes esta Christo, e em todas se péde estar com Christo Agora vae a differenga e a yvantagem. Trocar Jerusalem pelo Presepio, e qucrer antes ‘s- tar em uma choupana com Christo, que em uma corte sem elle, n&io 6 finoza, 6 obrigacio; © isto fez a es- trella dos Magos. Mas querer antes estar no Presepio com Christo, que em Jerusalem com Christo : querer antes estar na chonpana com Christo entre brutos, que na corte com Christo entre principes: isto 6 nio 86 deixar a cérte pelo Prosepio, scnéio deixar a Christo por Christo, e 0 seu maior servigo pelo menor ; deixar 5 a Christo onde est& acompanhado para o acompanhar onde esta s6 ; deixar a Christo onde esté servido, para © servir onde esté desamparado 3 deixar a Christo onde esté conhecido, para o dar a conhecer onde 0 nao conhecem. A estrella dos Magos tambem deu a conhecer a Christo ; masa quantos homens, e em quanto tempo @ A tres homens, e em dois annos. Esta foi a Tazao por que Herodes mandou matar todos os innocentes de dois annos para baixo, conforme o tempo em que a estrella tinha apparecilo aos Magos: Secundum tom. pus, quod eaquisierat 4 Magis. Véde, agora, quanto vae d’aquella estrella _As~nossas estrellas, e da sua misséo 4s nossas. Doixadas as mais antigas, fize- ram-se ultimamente duas, uma pelo rio dos ‘ocan. tins, outra pelo das Amazonas : e com que effeito ? A primeira reduziu e trouxe a Christo & nagio dos To- Pinambés, o a dos Pochiguéras; a segunda paciticoa ¢ e trouxe 4 mesma fé a nagiio dos Nheengaibas e a dos Mamayanazes; e tudo isto em espago de seis mezes. De maneira’ que a estrella dos Magos em es 8 1 Math., u, 16, SERMOES \& dois anos trouxe a Ghristo tres homens, e as nossas em meio anno quatro nacdes. E como estes progadores da f6 por officio, por instituto, por obrigagio, e por caridade, e pelo conhecimento e fama geral que tém entre aquelles barbaros, os vio buscar tio longe com tanto zélo, e Ihes fallam em suas proprias linguas com tanto trabalho, © se accommodam 4 sua capaci- dade com tanto amor, e fazem por elles tantas ou- tras finezas, que até nos brutos animaes costumam achar agradeciento ; nfo é muito que elles os amem, qué elles os estimem, quo elles os deferidam, e que antes ou depois de conhecerem e adorarem a Christo, quasi os adorem, ¥ Agora se segue em contraposiciio adrmiravel ou 6s- tupenda (ce por isso mais digna de attengio) vér as causas por que os christdos perseguem, aborrecem, e langam de si estes mesmos homens. Persoguirem os christiios a quem defendem os genvios, aborrece= rem os do proprio sangue a quem amam 6s estra- nhos, langarem de si os que tém uso de razio a quem recolhem, abragam, e querem comsigo os barbaros ; coisa era incrivel, se nado estivera tio experimentada, e tio vista. E suppondo que é assim, qual pode ser causa ? Com ‘serehi tio notaveis os effeitos, ainda a causa é mais notavel. Toda a causa de nos persegui- rem aquelles chimados christdos, 6 porque fazethos pelos gentios 0 que Christo fez pelos Magos: Prociden- tes adoraverunt éwm: ct responso accepto ne redirent ad Herodem, per atiam viam reversi sunt in regionera suam.* Toda 4 Providencia Diviila para tom os Magos consistiti em duas accdes: primeira ern os trazir aes pés de Christo por um caminho : segunda eth dg livrar das maos de Herodes por outro. No fora grande 1 Math., ut, 11 6 12, 36 PADRE ANTONIO VIEIRA semrazio, nio fora grande injustiga, nio fora grande impiedade, trazer 0s Magos a Ghristo, e depois entre- gal-os a Herodes? Pois estas sio as culpas d’aquelles progadores de Christo, e esta a unica causa porque se yéem, e os védes tio perseguidos. Querem que traga mos os gentios 4 {6, 6 que os entreguemos 4 cobiga ; querem que tragamos as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos 20 cutello: querem que tragamos os Magos « Glristo, « que os entreguemos a Herodes. E porque encontramos esta semrazio, nds somos os desar- razoados : porque resistimos a esta injustiga, nds somos og injustos : porque contradizemos esta impiedade, nés somos os impios. ‘Acabe de entender Portugal que nao péde haver Christandade nem christandades nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois caminhos, que -hojo Ihes mostrou. Christo. Um eaminho para trazerem os Magos 4 adoracio, e outro para os livrarem da perseguig¢éio: um caminho para trazerem os gentios 4 fé, outro para os livrarem da tyrania : um caminho para lhes salvarem ag almas, outro para lhes libertarem os corpos. N’este segundo caminho esté toda a duvida, porque n’elle consiste toda a tentagio. Querem que aos ministros do Evan- gelho pertenga sé a cura das almas, e que a servidio © eaptiveiro dos corpos seja dos ministros do Estado. Isto € 0 que Herodes queria. Se o caminho por onde se salvaram os Magos estivera 4 conta do Herodes, muito boa conta daria d’elles: a que deu dos Inno- centes. Nio 6 esse o governo de Christo. A mesma Providencia que teve cuidado de trazer os Magos a Christo por um caminho, essa mesma teve o cuidado de os livrar e pér em salvo por outro ; e querer divi- dir estes caminhos © estes cuidados, é querer que niio haja cuidado, nem haja caminho. Ainda que um d’estes caminhos parega sé espiritual, © 0 outro temporal, ambos pertencem 4 Igreja e 4s cha'ves de S. Pedro, porque por um abrem-se as portas do céo, e por outro fecham-se as do inferno. As igreias novas hio-de-se SERMODS 37 + oe fundar e estabelecer, como Christo fundou e estabele- ecu a Igreja universal, quando, tambem era nova. Que disse Christo a S. Pedro ? Super hane Petram xdificabo coclesiam meam: Tibi dabo claves regni calorum: et porte inferi non prevalebunt adversus eam.? Que im- porta que Pedro tenha chaves das portas do céo, se prevalecerem contra elle e contra a Igreja as portas do inferno ? Tsto n&o 6 fundur nova igreja, 6 destruil-a em seus proprios fundamentos. N&o sei se reparaes em que deu Christo a S. Pe- dro n&o sé chave, senio chaves: ibi dabo claves. Para abrir as portas do céo, bastava uma sé chaye: pois porque Ihe dA Christo duas ? Porque assim como ha caminhos contra caminhos, assim ha portas contra portas: Porte inferi non prevalebunt adversus eam. Ha caminhos contra caminhos, porque um caminho leva a Christo, e outro pode levar a Herodes: @ ha portas. contra portas, porque umas sao as portas do eéo, e outras as portas do inferno quo o encontram. Por isso 6 necessirio que as chaves sejam duas, e que ambis estejam na mesma mao. Uma com que Pedro possa abrir as portas do céo, e outra com que possa aferro- Ihar as portas do inferno: uma com que possa levar os gentios a Christo, e outra com que os possa defen- der do demonio, e seus ministros. E toda a teima do mesmo demonio, e do mesmo inferno, 6 que estas chaves e estes poderes se dividam, e que estejam em differentes mos. Nao o entonderam assim os senhores reis que fun- daram aquellas Christandades, e todas as das nossas conquistas, os quaes sempro uniram um e outro po- der, ce o fiaram sémente dos ministros do Evangelho ; ea razéio christ& e politica que para isso tiveram, foi por terem conhecido © experimontado, que sé quem converte os gentios, os zela ¢ os defende ; e que assim como dividir as almas dos corpos 6 matar, assim divi- 2 Math., xv1, 18 e 19, ATE 38 PADRE ANTONIO VIEIRA dir estes dois cuidados é destruir. Por isso estéo des- truidas e deshabitadas todas equellas terras em t&o poucos'annos; ¢ do tantas ¢ tio numerosas povaagdes, de que 86 ficaram os nomes, nio se véem hoje mais quo ruinas © cemiterios. Necessario 6 logo, n&o 86 para ocspiritual, sendo, tambem, para o temporal das conquistas, que os mesmos que edificam aquellas no- yas igrejas, assim como tém o zélo e a arte, para as edificar, tonham juntamente o poder para as.de- fender; Quando os Israclitas recdificavam o Templo e a cidade do Jerusalém, diz a Escritura Sagrada, que cada um dos officiaes com uma m&o fazia a obra, © na outra tinha a espada: Una manu faciebat opus, ot altera tenebat gladium.* Pois n§o era melhor traba- har com ambas as mos, e fariam muito mais ? Me- lhor era; mas nfio podia ser: Porque n’aquclla mes- ma terra morayam os Samaritanos, os quaes, ainda que diziam que criam em Deus, resistiam e faziam cruel ‘guerra 4 edificagio do Templo; e como aos Tsraelitas' lhes impediam a obra, eta forga fazel-a com uma mao, ¢ defendel-a com a outra, sob pena de nao ira fabrica por diante: O mesmo Ihes acontece’ aos cdificadores @aquellas novas igrejas. Muito mais se obraria n’ellas, senio fdsse entre inimigos, e¢ entre homens de meia f6, quaes eram os Samaritanos. Mas como estes com todas as forgas do seu poder (ou do poder que no 6 nem péde ser seu) impedem o edi- ficio, 6 necess:rio trabalhar e juntamente defendcr. EH se os miesmos trabalhadores n&o tiverem espada com que deféndam 6 que trabalham, nado sé 4, ng a arard, como e&t& parada a obra; mas’ perder-se-ha, Seite 88° vae perdendo, quanto com tant ) wee sper , 0 trabalho se tem Sim. Mas a espada 6 instrumento d profano e lei, oni diz bem em maos sagradis, Primeiraménte quent poz! a espada nad mio dos que edificavam o Teniplo; 3 —— 1 2.° Livro de Esdr., tv, 17, 4 aes SERMOES 39 foi Nehemias, 0 mais sabio, 0 mais santo EADS p o mais zelador da honra de Deus que entao ha- via no mundo. EB se alguem tem os olhos tao deli- cados, que os offenda esta apparencia (que nao é raziio, sendo pretexto) aparte-os um pouco de nds, € ponha-os em §, Paulo. Nao védes a 5. Paulo com sspada em uma mio, e o livro na outra ? Bstes sto ps instrumentos, e as insignias, com que nos pinta » representa a Igreja aquelle grande homem, por an- tonomasia chamado o Apostolo. E porque ? Porque traz Paulo em uma mo o livro, n’outra a espada ? Porque Paulo entre todos os outros Apostolos foi o yaso de eleic#o escolhido particulasmente por Christo para prégador dos gentios: Vas electionis est mihi iste, ut portet nomen meum coram gentibus:* e quem tem por officio a prégagao e conversacio dos gentios, ha-de ter o livro em uma mio, e a espada na outra: 0 livro para os doutrinar, a espada para os defender. Ese esta espada se tirar da mio de Paulo, e-se metter na mio de Herodes, que succederé ? Nadaré toda a Belém em sangue innocente ; e isso é 0 que vemos. Mas porque n&o faca duvida o nome de espada, trognemos a espada em cajado, que é instrumento proprio dos pastores (como alli somos) e respondei- me: Quem tem obrigagio de apascentar as ovelhas # O pastor. E quem tem obrigac&io de defender as mes- mas ovelhas dos lébos ? O pastor tambem. Logo o mesmo pastor que temo cuidado de as apascentar, ha-de ter, tambem, o poder de as defender. Hsse é0 officio do pastor, e esse 0 exercicio do cajado. Langar o cajado 4 ovelha para a encaminhar,e ter¢al-o contra o lébo para a defender. E vés quereis que este poder esteja em uns, e aquelle cuidado em outros ? Nao seja isso conselho dos lébos! Quando David andava no campo apascentando as suas ovelhas, e vinha o urso, ou o leio para Th’as comer, que fazia? Ia a Zerusa- 1 Aet., 1x, 15.,

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