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Copyright © 2015 Marcus Cézar Belmino (org-) Capa : Miligrama Design Editoragao Eletrdnica Bruno Melo Revisao Sara Colares Rua Manuelito Moreira, 55 - Benfica ‘CEP 60025-210 - Fortaleza-CE Fone: (85) 3214.8181 comercial@premiuseditora.com.br swwvepremiuseditore.com.br Filiada a Aze> 8 .UBE BLIOTECA Unio Brasileira de Eseritores ia cease Doe meCaITOR -- NACIONAL: Sto Paule- SP Dados Internacionais de Catalogagdo na Publicagio na fonte (CIP) B451g —_ Belmino, Marcus Cezar. Gestalt Terapia e atengao psicossocial organizado por Marcus Cezar Belmino.- Fortaleza: Premius, 2015. (vol. 1) 312p. ISBN 978-85-7924-438-4 L Psicologia Gestalt, 2,Terapia Gestalt, 1. Titulo, CDU 159,9,019.2 Digitalizado com CamScanner 60 ee OS CAMINHOS DA SAUDE MENTAL EA GESTALT-TERAPIA: COMPREENSAO DR CAMPO NA ATENGAO PSICOSSOCIAL, Diogo de Oliveira Boccardj O sofrimento humano pode ter diferentes faces. Se vocé sen- tir uma forte dor no abdémen, fruto de uma inflamagao na vesicula, haverA sofrimento. Mas e se, ao invés de a inflamacao estar no seu corpo, ela estiver no corpo do seu filho? Vendo a dor dele, vocé provavelmente sofrerd também. No entanto, estas manifestagdes do sofrimento sao bastante distintas, e nossos recursos para acolhé-las, também. No ambito da atengao psicossocial, sio particularmente comuns histérias de sofrimento que demandam cuidados muito proprios. Algumas histrias podem nos ajudar a dar esta dimensao: + Giordana chega 4 Unidade Basica de Saude de seu bairro chorando muito, Aos 22 anos de idade e com um filho de 2 anos nos bragos, ela pede ajuda, pois acaba de se sepa- rar do marido. Ha seis dias, ela descobriu que ele tinha um relacionamento extraconjugal; brigaram e ele saiu de casa. Desde entao, ela nao tem dormido, nem conseguido trabalhar ou manter as atividades cotidianas, como cul dar do filho, + Gustavo morava em uma pequena casa de dois andares junto com sua mée e dois irmos, Durante anos, trabalhe- ram para construir a casa e comprar os eletrodoméstico® até que, na ultima semana, as fortes chuvas provocaram™ alagamentos e o desabamento de uma encosta, desu” APL Digitalizado com CamScanner do tudo 0 que a familia tinha: a casa, os méveis, as roupas, os documentos, as fotografias e as esperangas de viver dignamente. As aguas levaram boa parte do passado e do futuro da familia de Gustavo. Otacilia é encontrada no chao da praca, um cachimbo de aluminio ao seu lado: durante toda a noite fez uso de crack. Essa cena tem se repetido ha seis meses, desde que a mae de Otacilia se recusou a recebé-la em sua casa — e apés diversos furtos cometidos com a intengao de comprar drogas. Espancada e abusada diversas vezes por policiais e comerciantes da regido, a moca agora pensa em encontrar outro lugar para morar. “Quem sabe vou pra outra cidade, no sul do pais, talvez 14 eu consiga ser feliz...” Agnaldo ouve a sirene da ambulancia e comega a gritar: “Nao me levem! Nao me levem!! As vozes mandaram eu avisar a presidenta e dizer a ela que o espirito do mal quer estourar as bombas!”. Os profissionais do SAMU tentam conversar com ele, mas, como esta muito agitado e falan- do coisas que ninguém entende, a familia pede que o le- vem para 0 Hospital Psiquiatrico. A ameaga de atear fogo no carro da familia deixou a todos muito assustados, e, mesmo Agnaldo argumentando que “sé queria salvar o mundo” e que nao sairia dali “até a presidenta chegar’, acaba sedado e amarrado a maca. F conduzido a sua séti- ma internacdo no manicémio, Jéssica sente que ninguém a compreende, mas descobriu uma forma de aliviar sua angtistia: com um estilete, faz pequenos cortes nos bragos e nas coxas. Chora muito e, por duas vezes, j4 ingeriu todos os comprimidos que ti- nha em casa. Na primeira vez, disse que nio queria mor- Gt rer, apenas dormir por varios dias seguidos. Na segunda : 6 rERABIA EATING PSICSSOCAL, Digitalizado com CamScanner ~; vez, de fato nao aguentava mais viver. Agora, sob Vigilan cia constante para que nao atente contra a prépria Vida novamente, ela se sente ainda menos compreendida, Estes cinco casos sao exemplos de situag6es muito recorren. tes. O que elas trazem em comum sao dois aspectos importantiss). mos: em primeiro lugar, precisamos perceber que as pessoas Teagem de maneiras singulares as situagdes que a vida impde. Em segundo lugar, que os profissionais de satide so chamadosa participar de qua- dros de sofrimento que nao necessariamente sao de natureza orga- nica. Ao cuidado a essas situagdes, damos o nome de Satide Mental, A Satide Mental é um campo de pesquisa e intervencao nos comportamentos humanos e, historicamente, tem se dedicado aos comportamentos considerados “anormais” ou indesejados. Por isso, € comum pensarmos que este campo diz respeito a doenga mental. Mas nem sempre foi assim. Observemos as contradicées: 1) Aloucura nem sempre foi combatida. Antes do process de urbanizacao das cidades (que se acentuou no periodo p6s-Revolugao Industrial), os chamados “anormais” fa- ziam parte do cenario, eram conhecidos como as pessoas “estranhas” do lugarejo (como se fossem pessoas com al- guma deficiéncia mental) e que exigiam cuidados e des pertavam a piedade da populagio. Nao havia qualquer interesse do pensamento médico em estudar ou caracte- rizar a loucura como um quadro psicopatolégico. 2) No periodo pés-industrial, entretanto, todo ser human? passou a ser visto como “mio de obra”. Aqueles que "4° trabalhavam (0s loucos, por exemplo) foram tomad® como “vagabundos”: um problema social. Comegara? entao a ser removidos e encarcerados, assim como S¢ a E-ATENGAO PSIGOSSOCIAL Digitalizado com CamScanner com 0s leprosos. A loucura foi considerada entao extre- mamente perniciosa e perigosa! Como nao tinham condi- ges de trabalhar, foram tratados como escéria, cidadaos de segunda classe. Foi 0 inicio dos manicémios como os conhecemos hoje. No entanto, o hospicio nao era lugar de “doente’, nao tinha nenhum objetivo de tratamento. Ele era exclusivamente uma forma de “tirar de circulagao” aqueles que nao se adequavam a “vida em sociedade”. 3) Com o aumento da populacao encarcerada nos hospicios e sem condig6es minimas de vida, a classe médica foi chamada a se posicionar perante a sociedade a respeito dos comportamentos desviantes. $6 a partir do século XIX € que efetivamente se associa a loucura ao saber mé- dico. Com isso, foram criadas categorias psicopatoldgi- cas, que nada mais sao do que nomes dados a conjuntos de comportamentos. Foi o nascimento da Psiquiatria. Até aqui, vemos como aquilo que chamamos de doenga men- tal nem sempre existiu, mas foi se configurando aos poucos. Cabe ressaltar que a Psiquiatria e o campo da Satide Mental estao desde sempre atrelados ao julgamento moral das condutas humanas: o que é normal no homem? Como devemos agir? O que é errado fazer? O que é “estranho”, imoral, incorreto? As condutas indesejadas deve- riam ser afastadas, seja pelo aprisionamento em instituicoes (como ©S manicémios) ou pelos tratamentos que anulariam os sintomas. Com o passar do tempo, 0 papel da Medicina no controle dos comportamentos foi se acentuando. Nao apenas as “doengas” deveriam ser tratadas, mas todo o sofrimento. Hoje, ¢ muito co- mum que psicélogos e psiquiatras sejam procurados para “curar” @ tristeza, o luto, a inseguranga, a timidez, etc. Tomamos um com- Primido para reduzir a ansiedade, outro para melhorar o humor ea ba Digitalizado com CamScanner disposigéo para o trabalho, outro para dormir, outro para enfrentar © dia que comega: é como se nossa vida pudesse ser regulada pelas substancias que ingerimos. Os psicofarmacos ja esto entre os me- dicamentos mais comercializados no mundo. Nossa sociedade, bas- tante resistente e preconceituosa em rela¢ao ao uso de drogas como a maconha ou a cocaina, parece nao se escandalizar quando alguém comenta, entre uma cerveja e outra, que esté tomando diariamente um comprimido para induzir 0 sono e também um antidepressivo. Mas qual é a diferenca? Sera que o fato de essas substancias serem legalizadas ou prescritas por um médico as tornam muito diferentes? O fato é que vivemos em uma sociedade entorpecida e medicada e que espera que os profissionais de satide respondam as suas demandas. Se, por um lado, temos que ser capazes de preservar a indivi- dualidade de cada um, também temos que nos preparar para ajudar aqueles que carregam uma dor emocional muito forte e nos soli- citam apoio. Para oferecer atengdo a Satide Mental, dois modelos ou, como preferimos chamar, duas légicas se apresentam: a légica manicomial e a logica antimanicomial. Légica manicomial e légica antimanicomial O julgamento moral associado aos comportamentos consi- derados diferentes da norma incorreu num modelo de tratamento que tinha no manicémio seu principal representante. Quem nao se adequasse aos padrées de civilidade e normalidade deveria ser se- gregado, nao deveria circular entre os demais, Nao apenas 0 apri- sionamento nos hospitais psiquiatricos representa esta Jégica mani- 64 comial: ela diz respeito a toda a supressao da individualidade e ao controle dos comportamentos, Digitalizado com CamScanner Oposta a ldgica manicomial, encontramos outro modelo de atengdo que preserva os direitos de cidadania de todas as pessoas, mesmo as consideradas loucas. E a légica antimanicomial, a qual preconiza que o atendimento das pessoas seja realizado em liberda- de, nos bairros, e que se salvaguarde sua individualidade acima de padrées socialmente aceitos. Nesta légica, 0 prioritario é a redugéo do sofrimento do sujeito, e nao seu controle. Esquematicamente, podemos comparar assim as duas ldgicas: Logica manicomial Légica antimanicomial Padronizagao. Aquele que | Singularizacéo. Cada pes- desvia da norma é consi- | soa é diferente, e suas di- Comporta | j.,ado louco ou doente e | ferengas devem ser respei- mento ea es Et exige intervengao especiali- | tadas. zada (médica). Segregacéo. Controle dos | Inclusao. Reabilitacao psi- comportamentos (conten- | cossocial. Orientacao da Tratamento | cao fisica ou quimica). comunidade a respeito das possibilidades de convi- véncia com as diferengas. Tem a fungao de diminuir | Servem para trazer confor- e, se possivel, apagar com- | to € reduzir o sofrimento, Medicacao | pletamente os “sintomas’, a | apenas na medida em que qualquer custo. nao reduzam a autonomia do sujeito. ‘A fala das pessoas “loucas” | Os discursos revelam mo- nao faz sentido e, portanto, | dos préprios de articular as nao devemos dar atengao | vivéncias. Apenas ouvindo Linguagem ao que dizem, nem consi- | atentamente os sujeitos & derar suas opinides. que poderemos ajuda-los e compreendeé-los, Digitalizado com CamScanner Todos sao sujeitos de di- reitos, devendo ser garan- nao tém direito de fazer] tida a cidadania, mesmo nee escolhas e gerir as prprias | daqueles que apresentam Dircitos. | vidas, estando sujeitados| quadro _psicopatolégico. as decisées da familia, dos | Valorizagao das escolhas e médicos e do Estado (nega- | da autonomia da pessoa. 40 dos direitos civis). Como néo agem racional- mente, os doentes mentais A légica antimanicomial é uma bandeira importante dos profissionais de Satide Mental. Tem suas origens na Reforma Psi- quiatrica italiana (que muito influenciou a mudanga da legislacao sobre a atengdo psicossocial no Brasil) e sobre os trabalhos de emi- nentes pesquisadores na Inglaterra e na Franca'. Da satide a satide mental O conceito de sauide é objeto de muita discussao teérica e, claro, ideolégica. A amplamente divulgada definigao da Organiza- 540 Mundial da Satide (OMS), que Postula que satide é “o estado de perfeito bem-estar fisico, mental e social e nao consistindo somente da auséncia de uma doenga ou enfermi, criticas, especialmente pela dificuldad sa de fato encontrar-se num estado “completo” de bem-estar, A final, 1 No Brasil, hoje, temos uma regulamentagao b antimanicomial, Destaca-se a Lei 10.216/01 e nistério da Sade, mas, aie ie Para além delas, os direitos ¢ a ordenacao do cuidado esti ‘ 6 outaslgislagdes~ seja no campo ce Pe onco ian cated cial, comes ode usudrios de substinciaspsicontiveg cee COMO as que regU- Social, como as que regem o atendimento | POpUIACTO crn eee bite da assisténcia cass amples como € 0 caso do Estatuto da Caicos Suasao de rua ou mesmo algumas, hanca e do Adolescente, para citar dade” tem recebido muitas astante consolidada no viés da logica as Portari i sa '88 336/02 e 3088/11 do Mi- GESTALT-TER, Digitalizado com CamScanner como é possivel trabalhar com um conceito tio amplo, sem cair na (in)cémoda posi¢ao de que tal estado nunca serd alcangado? A na- tureza idealista do conceito nao favorece a avaliagdo das condi¢ées de satide de individuos ou populagées, como observam com acerto Segre e Ferraz (1997), evidenciando que L...] ainda que se recorra a conceitos “externos” de avaliagao (é assim que se trabalha em Satide Cole- tiva), a “perfeigao” nao é definivel. Se se trabalhar com um referencial “objetivista’, isto é, com uma avaliagao do grau de perfeicao, bem-estar ou felici- dade que um sujeito externa a ele proprio, estar-se -4 automaticamente elevando os termos perfeicao, bem-estar ou felicidade a categorias que existem por si mesmas e nao estao sujeitas a uma descrigdo dentro de um contexto que hes empreste sentido, a partir da linguagem e da experiéncia intima do sujeito. So poder-se-ia, assim, falar de bem-estar, felicidade ou perfeigao para um sujeito que, dentro de suas crengas e valores, desse sentido de tal uso semantico e, portanto, o legitimasse. (p. 3). Mesmo com toda a problematica, esta definicao é base para a maioria dos documentos reguladores das politicas de satide pu- blica Assim como para 0 conceito de Satide, a definigéo do que é Satide Mental ainda nao é um acordo entre a comunidade cientifi- ca. Entretanto, diferentemente daquele, este sequer é questionado: nao foi encontrada na literatura qualquer mengio a “satide mental” 2 Toda legislasao nacional sobre o assunto pode ser consultada no sitio www.saude.gov. br. Além disso, varios documentos normativos ¢ deliberagdes nas esferas estaduais € municipais, em consonancia com a OMS, embasam-se nessa definigio ao apresenta- rem suas prerrogativas. STALT-TERAPIA, ATENGIO Psteossocta, ae Digitalizado com CamScanner que nao diga respeito somente a “auséncia de transtorno mental’, contrariando assim 0 conceito mesmo de satide da OMS. Esta com- preensao, apesar de nao causar estranhamento nos gestores e sequer em muitos profissionais da drea, para nds, é insuficiente para pensar a satide como um fenémeno em si, ainda que em relagao dialética com a doenga ou com a falta de satide. Uma questo se antepée ainda a defini¢o precisa do que seja satide mental: é a problematica da cisio “mente versus corpo’. Nossa intencao nao é fortalecer tal compreensao, de que psique e soma séo duas instancias separadas, e sim tentar identificar como o uso do termo “satide mental” foi construindo um paradigma de expli- cagées e acées equivocadas e como, ao atribuirmos outro sentido ao mesmo termo, podemos favorecer novas formas de trabalho. Satide mental e discurso hegeménico Compreendemos a definicao de Amarante (2007, p. 15), que conceitua Satide Mental como “[...] um campo (ou uma drea) de co- nhecimento e de atuacao técnica no ambito das politicas puiblicas de satide”. Interessa, porém, buscar compreender a especificidade desta drea dentro de toda complexidade do campo da Satide, na tentativa de evidenciar como se tem dado o desenvolvimento de conhecimen- to — e, consequentemente, de politicas e agdes - no Ambito da satide mental, Ao procurar definir satide mental, estamos dizendo que nos- so intento tem como justificativa a necessidade de discutir as prati- cas, sobretudo clinicas e politicas, que sao nosso interesse central. Foi Foucault quem desvelou outra implicagao da definigdo de satide mental, vinculando-a a um mecanismo de controle social. Para os alienistas do século XIX, o delirio era a parte mais impor- 68 tante da loucura, ao passo que, para a ciéncia psiquidtrica que surge Ms naquele momento, ele se torna desnecessdrio: assume entio status * GBSTA APIA Feng sicoss0ciAl Digitalizado com CamScanner de loucura a inadequagao a norma, A ordem social vigente. “Toda conduta deve poder ser situada igualmente em relagao a e em fun- do de uma norma que também é controlada, ou pelo menos perce- bida como tal, pela psiquiatria” (FOUCAULT, 2001, p. 201). Com efeito, ele atesta que: Dai em diante, o funcionamento sintomatolégico de uma conduta, 0 que vai permitir que um ele- mento de conduta, uma forma de conduta, figure como sintoma de uma doenga possivel, vai ser, por um lado, a discrepancia que essa conduta tem em relagao as regras de ordem, de conformidade, definidas seja sobre um fundo de regularidade ad- ministrativa, seja sobre um fundo de obrigagées familiares, seja sobre um fundo de normatividade politica e social. S40 portanto essas discrepancias que vao definir uma conduta como podendo ser eventualmente sintoma de doenga. [...] A discre- pancia em relacdo & norma de conduta e ao grau de afundamento no automatico sio as duas va- ridveis, que, grosso modo, a partir dos anos 1850, vio permitir que se inscreva uma conduta seja no registro da satide mental, seja, ao contrario, no re- gistro da doenga mental. Quando a discrepancia e co automatismo sao minimos, isto é, quando se tem uma conduta conforme e voluntiria, tem-se, grosso modo, uma conduta sadia. Quando, ao contrario, a discrepncia e 0 automatismo crescem (e nao ne- cessariamente, alids, na mesma velocidade e com o mesmo grau), tem-se um estado de doenga que é necessério situar precisamente, tanto em fungao dessa discrepincia, como em fungiio desse auto- Digitalizado com CamScanner | matismo crescente. [...] Em suma, 0 Conjunto das condutas pode ser agora interrogado sem que seja necessdrio referir-se, para patologiza-las, a uma alienagéo do pensamento. (FOUCAULT, 2001, p, 200-201). Toda conduta humana passa a ser, assim, Patologizavel, Além disso, a psiquiatrizacao da vida cotidiana serve ao Propési- to de manutengao do status quo, pelo seu carater explicitadamente Coercitivo e de controle social. E a partir desse paradigma — da falta de adequa¢ao — que surgem definicées de satide mental (ainda que nao usem © termo) para sustentar a ideologia? hegeménica, como Nos mostra Santos (1994): Na tese [psiquidtrica], encontramos as primeiras formulacées tedricas da psiquiatria, que ainda con- tinuam se desenvolvendo no tecido social, conhe- cidas como psiquiatria classica. Como represen- tante dessa concepcio podemos resgatar o nome de Benjamin Rush, por ter sido um dos primeiros médicos americanos a sustentar com argumentos a transformacao de problemas sociais em proble- mas médicos, assim como seu controle coercitivo. (p. 17). é aqui usado como definido por Demo, sendo “[..] 0 modo como justificamos nossas posi¢des politicas, nossos interesses Sociais, nossos privilégios dentro da estratificacio da sociedade” (1985, p. 17). Ainda neste sentido, Werneck, a partir de Marx, afirma que ideologia € “[...] um sistema de Ppensamento [...] um Conjunto de ideias fundamentais consideradas nao somente em seus aspectos naturais mas especialmente em aspecto social [..] [que] s6 pode ser compreendido como pro- duto ou reflexo de uma época [..]. Nio é um sistema de Pensamento neutro ou indcue mas que, tendo uma funcio ou direcionalidade que se constitu em parte essencial dos conflitos da HistOria, teria como funcio legitimar, justificar e assim, contribuir paraa manutengdo da ordem social vigente” ( 1984, p. 18), STALT-TERAPIA excld mcowoc Digitalizado com CamScanner A defini¢ao de satide mental que advém deste modelo, cria- da por Rush, ainda carrega a necessidade de comparagao entre sani- dade ¢ insanidade, porém aponta claramente seu entendimento do que é satide mental. Pensando 0 desvio social como doenga mental Rush declarou que “sofrimento, vergonha, terror, célera, sao loucuras passageiras [...]”. Por sua vez, Szasz observa que Rush corajosamente definiu sa- nidade e insanidade: ‘Sanidade é a aptidao para julgar as coisas como outros homens, e habitos regulares. A insanidade é um distanciamento com relagao a isso”. (SANTOS, 1994, p. 17). O autor afirma acertadamente que “[...] com esta perspec- tiva, Rush igualou conformismo social a saude mental, e inconfor- mismo social a doenga mental.” (SANTOS, 1994, p. 17). Nota-se assim que os critérios para definir as condicées de satide mental de um individuo sao, mais do que técnicos, ideolégi cos. A explicagao biolégica para a génese dos transtornos mentais vem para justificar e apoiar a ideologia da adequacdo como medidor de satide, bem como mascarar as determinag6es sdcio-historicas na construgio de estados de sofrimento psiquico (ANDERY, 1984). Além de um instrumento de coergao social, tal explicagio mostra- se um equivoco epistemoldgico, haja vista que, sem evidenciar o que de fato esta implicado no desenvolvimento das chamadas “doengas mentais”, incorre-se no erro ao definir quais as estratégias de in- tervengao mais adequadas a cada situagdo, Apenas a compreensio exata dos determinantes dos processos de satide-adoecimento, ¢ a consequente acao sobre elas, pode garantir que os servigos de Satide Mental sejam eficazmente resolutivos. Digitalizado com CamScanner 2 Contudo, como construir um conceito de satide mental que sirva a um propésito diferente do que até agora se tem visto, qual seja, que colabore com a tranformacao da sociedade, ao mesmo tempo que permite que os sujeitos protagonizem a produgao de sua existéncia, inclusive o cuidado de sua satide? Como desconstruir uma epistemologia construida a partir de pressupostos ideolégicos t&o marcadamente apoiados na coer¢ao social e no controle dos comportamentos dos cidadaos? E quais seriam os pressupostos de uma metodologia ética de intervencao na area da Satide Mental? Em primeiro lugar, urge inverter a logica da dominagao. Se a concep¢ao de satide mental — vista unicamente pela dimensao da doenga ou dos transtornos mentais — serve 4 manutengao do sis- tema de opressio e normatizacao das condutas, condenando com- portamentos de critica social (0 inconformismo social apontado por Santos), um novo conceito deve partir justamente do fomento a cri- tica, a articulacao dos grupos sociais para o protagonismo, para o controle social, para a capacidade de transformagao do status quo. Sao as relagdes de autonomia que devem pautar os servicos de satide, em lugar de relagdes heternomas. O que propomos é que se consi- dere a emancipagao dos individuos como indicador de satide mental. Sobre isso, ha muito se tem escrito. Recentemente, porém, novos paradigmas apontam saidas técnicas para a problematica da intervengao eticamente comprometida. Um desses paradigmas, que consideramos fundamental para a atuagdo em satide mental, é a no- ¢ao de promogao de satide. A Promogao de Satide como prerrogativa de intervencdo A formulagao das politicas publicas em Satide passou, ao longo das ultimas décadas, por significativas transformagées, tan- to no Brasil quanto internacionalmente. Especialmente a partir da GESTALT-TERAPIA EATERGAO PSICOSSOCAL Digitalizado com CamScanner década de 1980, os servicos puiblicos passaram a preocupar-se em garantir 0 acesso a satide, culminando, no Brasil, com a implantacao do Sistema Unico de Satide (SUS), em 1990. Antes disso, entretanto, ja se buscavam formas de atender satisfatoriamente a populagio, tendo em vista a complexidade da relacio satide-doenca-cuidado: ganha forga entao, principalmente como proposta metodolégica, mas também como abordagem epistemoldgica e politica, a nogio de Promogao da Satide. Este conceito, oriundo de paises em desen- volvimento, aparece certamente como uma alternativa ao quadro de acentuada medicalizagio do modelo de intervengao, em que as demandas tendem a superar a capacidade de atendimento. Buss (2004) localiza que, apés a divulgagao da Carta de Ot- tawa, em 1986, que foi um dos documentos fundantes desta com- preensao da intervengao em Satide, o termo Promogio de Satide [...] esta associado inicialmente a um ‘conjunto de ida, satide, solidariedade, equidade, de- cidadania, desenvolvimento, participagao e parceria, entre outros. Refere-se também a uma ‘combinagio de estratégias’: ages do Estado (poli- ticas ptiblicas saudaveis), da comunidade (reforgo da agao comunitaria), de individuos (desenvolvi- mento de habilidades pessoais), do sistema de satide (reorientagao do sistema de satide), e de parcerias intersetoriais; isto é, trabalha com a ideia de ‘respon- sabilizag&io multiple, seja pelos problemas, seja pelas solugdes propostas para os mesmos. (p. 16). Um primeiro entendimento do que é promover satide diz Tespeito, usualmente, as atividades dirigidas a modificar comporta- Mentos de individuos, ou de grupos de individuos, GESTALT-TERAP breast Digitalizado com CamScanner focando nos seus estilos de vida e localizando -os no seio das familias [...]. Neste caso, os progra- mas ou atividades de promogao da satide tendem a se concentrar em componentes educativos prima- riamente relacionados com riscos comportamen- tais cambiaveis, que se encontrariam, pelo menos em parte, sob o controle dos préprios individuos. (BUSS, 2004, p. 18-19). Como exemplos desses “comportamentos cambiaveis’, po- demos citar o planejamento familiar, o habito de fumar, as relagées cuidador-bebé, os habitos de higiene, entre outros. O autor eviden- cia que, com esta compreensao, entretanto, escapam ao conceito to- dos os fatores que nao esto sob o controle do individuo. O papel dos individuos — comumente chamados “usuarios” — e demais atores sociais identificaveis em cada comunidade é, ain- da assim, fundamental para o estabelecimento de agées que promo- vem satide, Trata-se, entao, de compreender a satide como [..] um espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida, incluindo um padrao adequado de alimentagao e nutricdo, de habitagaéo e sanea- mento, boas condigées de trabalho, oportunidades de educagao ao longo da vida, ambiente fisico lim- Po, apoio social para familias e individuos, estilo de vida responsdvel ¢ um espectro adequado de cuidados de satide. (BUSS, 2004, p. 19). As atividades de promogao da satide deveriam estar [...] mais voltadas ao coletivo de individuos ¢ 4° ambiente, compreendido, num sentido amplo, po" GESTALT-TERAPIA EAPENGAOTSICOSSOCLAL, Digitalizado com CamScanner mel : ‘ 1 de politicas puiblicas ¢ de ambientes favo eis ao desenvolviment oreo : ‘0 da satide e do reforco da capacidade dos individuos das comunidades (empowerment). (BUSS, 2004, grifo do autor). Estas so, portanto, duas dimensées da Promogio da Satide: aorganizacao do sistema de vida dos individuos, no ambito do par- ticular; e a producio das relagées sociais mais amplas e estruturais — politicas, econdmicas, juridicas — no ambito do genérico. Observa-se, coetaneamente, 0 aumento dos quadros de so- frimento psiquico, como os quadros depressivos € de ansiedade. Controlamos as doengas transmissiveis mais facilmente do que as nao transmissiveis que assolam as populacées. Tal panorama nos impele a buscar diferentes formas de enfrentamento, que apresen- tem maior resolutividade e participagao social. Nao ignoramos, também, a necessaria critica as estratégias biopoliticas manifestas nas Cartas de Promogio de Satide: estas apontam claramente para uma normatizagao dos comportamen- tos, julgados como mais ou menos saudaveis. Sob a perspectiva do que os individuos adotem aquelas condutas que yitariam agravos. Dizendo as como “regras do bem- rvativos, realize exames s. Cuidado com 0 que risco’, propde-se permitiriam viver por mais tempo ¢ © juntos de condut ‘a sexo sem prese! ridades sanitaria claramente, postulam con, viver”: nao fume, nao fa¢ regularmente, escute as auto Js riscos nao pode ser levado a esse exclusivamente o futuro ‘veeméncia das autoridades am tantos debates em rela- alitarias que instituem constituem como imagens Neg possivel consideri-la a 10s & distin- 4 “{..] adotar comportamentos saudaveis de ovine es sério como a solugao do problema, como se dai dep’ da hamanidade, tal como parecer, 8s Ver*s, sanitarias, Nao h4 motivos suficientes pase qui Gao as razées cientificas dessas perspectivas Pl oe um sentimento de culpabilizagao coletiva, Ree as, Ser tvastornadas abjetos (ind au vl otal e manutengao dos rs nova ‘utopia’ contemporanea — * cia” (CASTIEL, 2012, p- 78). ay Digitalizado com CamScanner < F are : comes e com os prazeres que te satisfazem! A légica do TI8cO acy ba por determinar um padrao de outa) “Corretas” que automa. ticamente impetra seu oposto, as vanlantess como indesejadas e até mesmo proibidas. Temos 0 que Castiel (2012) chama de atopig social, uma reagao “imunoldgica” ao diferente, uma alergia ao que destoa da norma. Presente nos sistemas de pensamento que Pau. tam as politicas de satide como um todo, tal postura atépica ainda permanece imperante nas expectativas neoliberais hegeménicas no Ambito da satide mental, com especial vigor nos ideais higienistas das politicas de combate ao uso (e, sobretudo, aos usuérios) de dro- gas, as psicoses, a “desatengao” das criangas e as depress6es - numa clara preocupagio com a manutencao da capacidade de trabalhar, consumir e reproduzir o modelo capitalista que se acirra, corrigin- do as trajetérias individuais que desviam da norma. E inegavel que a mudanga de paradigma que gerou as prati- cas de promogio de satide foi e continua sendo uma revolucao na forma de gerir os sistemas de Satide Publica. Esta revolugao ain- da esta em curso, haja vista que a efetivacao deste modelo acarreta transformagées sociais dramaticas, O Proprio Castiel propde uma inflexdo na compreensio do carater utépico-atépico das politicas de Promogio de Saude: Parece haver pouco lugar para a existencia de wlo- PIs esperancosas, E as propostas de utopia Si Precdrias formulas de resisténcia ao atual estado de Soisas, que fraquejam em termos de mudangas & Pressivas. Endo somente de corregao de trajetérias com um destino ideol nido. Assim, _ desconformi 6gico e econdmico pré-defr um caminho possivel diante de 05% dade pode ainda ser no limite, 0” *eagir atopicamente, [..] Isso posto, vamos 08 P* Gust) RADIA /AIENGAO PSICOSSOCIAL Digitalizado com CamScanner seat nesse caso, sobretudo na etimologia do grego atopia’, para além do significado médico-imunita- rio, ou seja: a ideia de singularidade ou de extraor- dinario como forma de criticar a mesmice renova- da da cultura consumista globalizada. (CASTIEL, 2012, p. 74). Como, entao, conceber uma nova forma de olhar a satide mental partindo de uma ética da intervencdo profissional? Pode- mos dizer que ha um ethos da intervencao do profissional de saiide mental? E como é possivel a “promocao de satide mental”? A busca por uma ética na conceituacao e na intervengao em satide mental inicio, da concepgao de que é na comunidade, e junto com ela, onde se podem efetuar mudancas radicais no modelo assistencial. A Estratégia de Saude da Familia esta imbuida, desde seu ‘Assim, o PSF elege como ponto central 0 estabeleci- mento de vinculos e a criacao de lagos de compro- misso e co-responsabilidade entre os profissionais de savide ¢ a populacio, [...] As agdes sobre esse espaco [a familia e 0 ambiente onde vive] repre- sentam desafios a um olhar técnico e politico mais ousado, que rompa os muros das unidades de sat- | de e enraize-se para o meio onde as pessoas vivem, trabalham e se relacionam. (BRASIL, 1997, p. 7-8). Na mesma direco, aponta 0 modelo da Promogio de Satide, co comunitaria e no vinculo Pautado na territorializagao, na inser Digitalizado com CamScanner com os usuarios do sistema de satide. Vé-se ai um movimento, ne- cessdrio a esta concepgiio de satide, de aproximagao do outro, de des- centramento do trabalho e do profissional. Esta concep¢ao desloca das unidades de satide para a comunidade o local de encontro entre o técnico de satide eo usuario. Reside aia grande diferenca que este pa- radigma propée: a promogio de satide implica um encontro entre os usuarios, entre a equipe de satide, bem como entre usuarios e equipe. No caso especifico da satide mental, o modelo hegeménico de atengao a satide — de base eminentemente ideolégica — tem Proposto como estratégia de enfrentamento aos transtornos men- tais a internagdo e a medicalizacio (AMARANTE, 2007), agdes de segregacao para individualizar 0 cuidado e isolar a pessoa. A con- traposi¢éo desse modelo implica, entao, o esforco de agregar e re- unir usuérios, e usudrios e equipe, para buscar a efetivacdo do cui- dado eficiente aos determinantes do Pprocesso satide-adoecimento. Assim, comega-se a depreender uma ética Ppossivel da inter- ven¢ao em satide como um todo, e especialmente em satide mental, Tal ética esta pautada no “aproximar-se do outro” Piaget (1973) nos ajuda a pensar os fundamentos epistemoldgicos desse encontro com © outro, que pressupée o descentramento do individuo, Para ele, a possibilidade de cooperacao, isto é, cionada por agées reciprocas, da autonomia, a atribuicao de valores condi- € 0 que garante o desenvolvimento com relagées que superam a imposic&o externa de valores e condutas (heteronomia). “A cooperacao constitui o siste- ma das operacées interindividuais [...] que permitem ajustar umas as outras as operagées dos individuos” (PIAGET, 1973, p. 105). A cooperagao, ou seja, 0 operar em comum, opée-se, assim, tanto ao egocentrismo quanto a opressio e se estabelece como possibilidade de emancipagao dos sujeitos, Ha que se destacar que, de forma pratica, desenvolvimento da capacidade de cooperar e da autonomia se da no processo mes- ©” GHSTALT-TERAPIA Pffexcio rsicooche Digitalizado com CamScanner mo de vinculagao, da valorizacao da sociabilidade como fundamen- to da atua¢o profissional. Ora, nao é isto um pressuposto ético? Ortega afirma que “[...] 0 ético é colocado nesse nivel primario da relagdo com 0 outro; subjetividade e sociabilidade tém um cara- ter ético. A ética ndo se exprime nos principios universais; ela nao possui uma forma normativa, mas surge da situacdo elementar do encontro.’ (ORTEGA, 1999, p. 142). Ou seja, de relagdes de recipro- cidade e cooperacao, livres da heteronomia. Afirma Ortega (1999, p. 142) que “[...] sob o fundamento da proximidade do outro seré possivel o surgimento da comunidade. Nesse sentido, Lévinas falara de uma ‘espiritualidade da sociabilidade’ entendida como uma pos- sibilidade de se aproximar do outro? Como vimos, é na comunidade que se dao as condi¢gées pré- prias de cuidado da satide. O modelo de Lévinas, na forma do face-a-face, corresponde a situacao do olho-a-olho. O ser olha- do pelo outro constitui um chamado, um apelo irresistivel, pois me obriga e exige de mim uma resposta [...]. O mero fato de ser olhado introduz o individuo numa relacao ético-social. Assim, Lé- vinas afirma que a sociabilidade surge da relacao originéria do face-a-face. (ORTEGA,1999, p. 143). Assim, também percebemos que a comunidade é, pois, 0 lugar privilegiado para o cuidado de si, pois, como defende Ortega (1999, p. 142), “L...] a presenga do outro € necessdria para consti- tuir a relacdo consigo mesma expressa No cuidado de si”. Explica o autor que 5 Para ver mais sobre a constituigdo do social a partir de padrdes consensuais de aco, ‘ver Maturana (2002). GESTALT-TERAPIA ~~ EATENGAO FSICDSSOGIAL Digitalizado com CamScanner Foucault concebe 0 cuidado de si como o ponto de resisténcia preferencial e util contra o poder politico, e localiza o objetivo politico no fomento de novas formas de subjetividade. O individuo al- canga autonomia mediante as praticas de si e me- diante a unido da prépria transformacao com as mudangas sociais e politicas. (ORTEGA, 1999, p. 153, grifo do autor). Ora, parece-nos claro que o “cuidado de si” corresponde jus- tamente ao empoderamento, objetivo da promocio de satide. Isso € promover satide: promover novas formas de subjetividade, novas formas de se mover (operar) no mundo. “Foucault advoga a criagaéo de novos esbocos de si mesmo que nao tenham obrigatoriamente como resultado a formagao de um sujeito décil” (ORTEGA, 1999, p. 154). Disso decorre superar de modo mais contundente o viés adap- tativo amplamente denunciado das psicoterapias e dos tratamentos farmacolégicos conduzidos pelos servicos de sate. Limites e contrapontos Diante da proposta foucaultiana do “cuidado de si’, ha de se ter certo resguardo. Considerar que cabe aos sujeitos que atende- mos, através de seus “comportamentos diversificantes”, questionar 0s dispositivos disciplinares do biopoder através da “coragem” e da “verdade” (cf, FOUCAULT, 2011) parece-nos subestimar a capaci- dade das estruturas totalitarias. Com efeito, nem sempre é possivel Superar as injungoes de tais dispositivos. Tal tarefa militante ou par- ) residstica pode sim ser atribuida aos profissionais de satide mental, mas nao deve ser amplamente terceirizada aos usuérios, que nem GESTALT-TERAPIA, ESTENGLO FICOSSOCLL Digitalizado com CamScanner sempre terao condigées de suportar as demandas que lhes sao diri- gidas (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2012a). Contrapondo 0 que historicamente se estabeleceu, a saber, a concepgao de Satide Mental como adequagio a norma, quere- mos propor que 0 conceito de satide mental contemple o desen- volvimento da capacidade de cuidar de si (nao vinculada a mode- los aprioristicos), atrelada 4 nogdo de cooperagao vista em Piaget. Acreditamos ser esta a melhor forma de apropriagdo de um con- ceito usado para manter as relagées heterénomas que compoem a sociedade, sem incidir no “elogio a loucura’, pouco eficaz para lidar com o sofrimento de quem vive em sua carne as vulnerabili- dades socioafetivas. Acreditamos que, dessa forma, “[...] estamos chegando a uma redefinicao da satide mental como a participagéo do individuo e do seu grupo social na melhoria das condigées de vida e nao apenas como episédio individual aleatério e puramente hereditario.” (ANDERY, 1984, p. 31). E preciso integrar na psicoterapia o trabalho com grupos e co- munidades, e nao apenas o atendimento individual, ambulatorial. E nas relagées que os sujeitos vivem e é nas relacdes que eles adoecem. Além disso, importa nao manejar apenas o verbal, mas implicar 0 corpo e a acao, reunindo as pessoas numa tarefa comum, que as permita fazer diferente o que vinha sendo mantido, superando uma visao determinista da Histéria e das histdrias, construindo projetos existenciais com cada individuo (MOFFATT, 2007). E no futuro a construir que se realiza a mudanga. Se conseguirmos, assim, definir satide mental como a capacidade de cooperar, superando relagées heterénomas, é possivel avangar € conceber 0 que vem a ser a “pro- mogio de satide mental”: promover satide mental é promover auto- nomia e capacidade de cooperagao. Conquanto possamos vislumbrar numa afirmagio axiomati- —.g4 ca como esta um substrato proficuo para nossas praticas, néo é sem. cesta Digitalizado com CamScanner i | temor que o fazemos. Isto porque a propria afirmagao esta prenhe de uma perigosa valéncia: ‘Ao que parece a tendéncia prevalecente da “cul. tura” dominante atual consiste na difusio de uma varidvel indiferenca, de um embotamento “sensa- cional” (sensorial e sensacionalista), de uma tio frenética quanto agonica axiomatizacao capitalisti- ca dos valores, de diversos tipos de individualismo etc. Trata-se de gerar sujeitos completamente “au- tonomos”, ou seja, preparados para um autocon- trole dessolidarizante e desmobilizador, resignados a uma produtividade obsessiva mas decrescente, a um consumo sobrepropiciado mas progressi- vamente impossivel e crentes de sua pertinéncia a uma tnica entidade totalizante definida como “mercado”. (BAREMBLITT, 1993, p. 4-5). Botomé (1996, p. 197-198) afirma que: No passado, varios psicélogos denunciaram, com © conhecimento que produziram, o moralizante modelo da classificagio do comportamento em categorias de anormalidade e doencas. Hoje, é pre- ciso ir mais longe no conhecimento e divulgacao das varidveis que determinam 0 comportamento das autoridades e dos profissionais cada vez mais poderosos em uma sociedade basicamente susten- tada pelo principio da autoridade e da domina¢ao. Neste momento, = mo evidenciar as contradi¢Ses presentes eM nosso proprio discurso é 0 modo como se quer propor uma refle- a ESTALT-TERAPIA SESTASraconocnt Digitalizado com CamScanner xdo e evitar tal principio de dominagio pelo discurso de autoridade, pretensamente preocupado com o bem-estar da populacado e com certo viés humanista. Entretanto, nao podemos parar por aqui. E mister nao perder de vista as cenas que ilustramos no inicio, as vivéncias de Giordana, Gustavo, Otacilia, Agnaldo, Jéssica e tantas outras que se nos apresen- tam cotidianamente. Nao podemos nos furtar a responder, para além das andlises histéricas e dos componentes ideoldgicos, como acolher e manejar as dificuldades que se interpoem no decurso de suas vi- das, Nosso recurso a eminentes pensadores como Michel Foucault, Emmanuel Levinas, Jean Piaget, Humberto Maturana e Alfredo Moffatt, bem como aos pesquisadores do campo da satide coleti- va e da satide mental que citamos, nao enseja ainda propriamente uma clinica. Sequer as propostas reformadoras e antimanicomiais, no que pese os avangos na garantia de direitos e a dentincia aos “tratamentos” higienistas e degradantes, lograram apresentar for- mulagées técnicas suficientes para a interven¢ao qualificada. Neste sentido, Baremblitt é extremamente contundente: Ainda que certamente tenhamos iniciativas mag- nificas [...] a imensa maioria do aparato psiquidtri- co € psicolégico do pais [Brasil] se debate no mais arcaico dos obscurantismos. Também se evidencia que a competi¢ao entre a Psiquiatria Social nor- te-americana, a Comunitaria inglesa, a de Setor francesa e a vanguardista Psiquiatria Democratica italiana tampouco foi tio longe como eles e nés gostariamos. (1993, p. 17). Fica patente que “[...] a psicologia enfrenta, deste modo, um desafio importante que nao se pode resolver com retérica, mas sim < GESTALT-TERAPIA TEATENGAO FSICOSOCIAL Digitalizado com CamScanner com resultados praticos.” (CALATAYUD, 1991, p- 366), oque exige dania e recuperar a dimensio da 1° No entanto, de qual clinica redimensionar a énfase dada a cida clinica nos servicos de satide mental ita r i falamos? Em que medida uma abordagem clinica poderia fazer jus ao legado da luta antimanicomial, propor intervengoes que anit corressem na adaptacdo & normatividade dos modos de producao e exploracao capitalistas e, ainda assim, apresentasse propostas con- cretas de intervenc4o no sofrimento? Contra 0 individualismo: o paradigma gestaltico como mote para uma clinica E uma ambiciosa empreitada responder a estas questées. Cabe evidenciar, inclusive, que nao importa tanto dar novas respos- tas as perguntas que fazemos, mas passar a perguntar de outra for- ma. Ao invés de tentar demonstrar como esta ou aquela teoria “da conta” das exigéncias que a “logica antimanicomial” nos apresenta, urge compreender: do que as pessoas que nos procuram precisam? Por que sofrem? E como cada uma delas sofre? Ou (0 que seria 0 mesmo) perguntar: como vivem, amam e se relacionam? Como criam possibilidades de vinculo diante das demandas que se lhes apresentam? 6 Concordamos como que Amancio (2012) chama de exacerbagao do resgate da cidada- nia ¢ da normatividade: “A percepsao da loucura vigente no movimento da Reforma Psiquidtrica Brasileira foi marcada pela exclusao social e privagao da cidadania, Sendo assim, a estratégia da assisténcia foi ao encontro do Principio da reabilitacao social, resgate da cidadania e valorizacéo dos lacos socioafeti ili : ‘etivos, familiares e arios. Porém, tomadas em primeiro plano, a polit s rarapeia tas de reabilitagio e, em um aspecto mais geral, direcio a abdicar a0 tratamento dos sintomas através da exclusao da clinica, ja que acolhem o psicético sem escutar o seu discurso, Desse modo, alien velo d exclusio e segregagao do manicomio” (p. 48). a ~~” GESTALT-TERAPIA EATENG1O FSICOSSOCIAL Digitalizado com CamScanner Perguntar pelos modos de vinculo e pelas demandas dirigidas aos sujeitos de atos ja é apontar possiveis caminhos para responder as questdes. Sobretudo, indica um olhar a partir das relag6es intersub- jetivas. Cremos que nisso reside uma fundante diferenga: enquanto nos calcarmos no pensamento psicolégico, que parte de um para- digma que coloca a subjetividade encapsulada em cada corpo, numa tradi¢do que vai dos gregos classicos A modernidade e que ainda hoje impera, pouco avancgaremos nas quest6es que ora apresentamos. Concordamos com Wheeler (2005), em seu ensaio sobre 0 legado do individualismo, quando aponta que nossa cultura, nossa ciéncia e nossas praticas sio profundamente tributdrias da tese de que o ho- mem € um ser fechado em si mesmo, que cada comportamento é tomado como pertencendo a um “agente” tinico e localizado. Nas palavras do autor, o “paradigma do individualismo” consiste em: Um complexo e intrincado conjunto de crengas subjacentes e pressuposi¢ées ocultas que tem uma genealogia de trés mil anos no Ocidente, Surge na Grécia e se transmite de forma ininterrupta aos hebreus helenizados, a sintese cristé e seu apogeu medieval, ao Renascimento e seu redescobrimen- to do humanismo, 4 Ilustrag4o, ao materialismo cientifico do século XIX, até chegar a nossa épo- ca pés-moderna. Em seu trajeto, esse paradigma serviu para integrar pensadores e movimentos tao dispares como Platao e os profetas hebreus, Galileu ea Igreja, Freud e os comportamentalistas, ou Carl Jung ¢ Karl Marx, todos os quais podem ter discor- dado com veeméncia, e em algumas ocasiées vio- lentamente, sobre a dindmica e os determinantes do comportamento humano, a direcdo da histéria, a motivacio e propésito da vida etc., mas com- GESTALT-TERAPIA EATENGAO PSICOSSOCIAL Gj, Digitalizado com CamScanner partilhavam suposigGes subjacentes, poucas vezes expressadas, acerca da natureza do eu individual, quer dizer, quem sao esses seres humanos indivi- duais que estdo vivendo essa vida e vivenciando, criando ou submetendo-se a essas experiéncias. (p. 66, grifo do autor). Duas proposigées decorrem deste modelo de pensamento: 1. © individuo é anterior as relagGes interpessoais e existe em alguma forma essencial, separado de seu contexto e vinculos relacionais; e Pportanto, as relacdes interpessoais sio secundarias e, em certo sentido, menos reais que os individuos que as esta- belecem, que ja existiam, completamente formados, as- sim como podem ir e vir de uma relacdo a outra segundo suas necessidades e circunstancias, provavelmente sem alterar sua natureza essencial. (WHEELER, 2005). A vigéncia deste paradigma ndo se dd 4 toa, pois tem servi- do para enunciar valores de verdade na politica e no idedrio social, como os liberalismos econémicos. Note-se, entretanto, a forca da cren- ga de que, no processo civilizatorio, torna-se indispensdvel estabelecer restri¢Oes sistemdticas as individualidades, tomadas como ontologi- camente “antissociais”, De forma alguma contraditérias, essas teses na verdade reforgam uma a outra, justificando formas de controle biopolitico e perpetuando modos de exploracio capitalista. No ambito da Satide Mental, este paradigma se mostra so- bremaneira presente nas tipologias psiquiatricas % “esté em fase maniaca”), 56 mente repetidos, borderline”, mas também em diversos bordées comu- como: “Ele nao adere ao Projeto Terapéutico que GESTALT-TERAPIA BATENGO FSICOSSOCIAL Digitalizado com CamScanner propomos’, “Ea doenca falando’, entre tantos outros, Estamos ope- rando sob esta légica sempre que consideramos que um “transtor- no” € uma ocorréncia apenas individual, mais ou menos controlével com medica¢ao; ou que nos contentamos em aceitar a “geracdo es- pontanea” de um sintoma (“Estava tudo bem, doutor, ele surtou do nada’; “Eu nao tenho motivos para me matar, mas nao quero mais viver.’); ou ainda quando invalidamos uma producio delirante ou alucinatéria como se ela nao tivesse qualquer sentido ou funcio- nalidade, necessitando ser suprimida; ou, finalmente, quando pro- curamos causas meramente organicas ou “intrapsiquicas” (como, inclusive, uma certa leitura da nogao de estrutura em psicanalise) para as condutas. Contra estas proposigées, encontramos uma fecunda alter- nativa na nogao de Gestalt’. Mais do que as conhecidas pesquisas sobre a percep¢io realizadas a partir da década de 1920 (com os psicdlogos Wertheimer, Kéhler, Koffka e seus sucessores), 0 que prevalece é o axioma que propée compreender qualquer compor- tamento como uma relagdo de campo, em que um sujeito ou uma a¢do individual é tomada numa dinamica de figura e fundo. Mais propriamente, a partir da fenomenologia de Edmund Husserl, 0 sig- nificante Gestalt designa a relagdo de transcendéncia de um sujeito de atos a algo que nao é o proprio ato, mas que é por ele visado, intencionado, Em um exemplo dado por Perls (2002), podemos buscar uma ilustra¢do que nos esclare¢a: facilmente assumimos que a respiracao é uma “agao” de um corpo ou um “comportamento” Um olhar mais cuidadoso, no entanto, revela que respirar envol- ve diferentes elementos. Por um lado, localizamos 0 movimento do diafragma, a expansio dos pulmées, a organizagao da musculatura tordcica e das vias aéreas. Por outro lado, temos 0 ar. De fato, sem 7 Para compreender a genese e a profundidade da nogao de Gestalt na filosofia, na psico- logia e na clinica, remetemos leitura de Miiller-Granzotto e Miiller-Granzotto (2007). GESTALT-TERAPIA TEATENGAO PSLCOSSOGIA Digitalizado com CamScanner ar nao haverd respiragao. O que nos indica que, mais do que uma ago meramente individual, a respiragéo é uma fungio que envolve tanto o corpo quanto o ambiente. Tal correlagdo, mais do que um polo ou outro, é o que define a vivéncia. Basta imaginar 0 desespe- ro que é estar submerso e aspirar apenas 4gua salgada do mar ao invés do oxigénio, ou o sofrimento de uma pessoa com enfisema que, no leito, percebe seus pulmées falharem. As contingéncias (or- ganicas ou ambientais) determinam — ou mais precisamente, dao forma — a experiéncia. Talvez quem mais engenhosamente tenha se apropriado desta concep¢ao para abordar os processos de sati- de/adoecimento como ocorréncias de campo tenha sido o neurofi- siologista Kurt Goldstein. A luz da teoria husserliana da intencio- nalidade operativa’, este médico soube reconhecer, nos soldados acometidos de lesdes cerebrais em decorréncia da Primeira Guerra Mundial, reconfiguragées nas percepgdes e condutas que nao po- diam ser explicadas pelas lesdes elas mesmas, mas apenas como uma sorte de consércio entre o corpo e seu meio. Em parceria com Adhemar Gelb, as pesquisas de Goldstein mostraram que “[...] 0 sintoma é uma resposta do organismo a uma questao do meio, e que assim 0 quadro dos sintomas varia com as Pperguntas que fazemos ao organismo” (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 95). Nesse sentido, afirmam Miiller-Granzotto e Miiller-Granzotto: Goldstein percebeu que, mais do que uma falha do funcionamento homeostético, a doenca é como um 8 Grosso modo, Husserl evidencia que as relacdes intersubjetivas so vivencias de sintese temporal em que, a cada situago presente, um horizonte de passado e de futuro se atualizam nos atos individuais de maneira espontanea e sem que seja necesséria uma deliberacdo tética, representacional, A essa doagao espontanea das inatualidades, que orientam (dio forma) as vivéncias, ele chamara de intencionalidade operativa. No- vamente, indicamos a leitura de Miiller-Granzotto € Miiller-Granzotto (2007), para maior esclarecimento ¢ para discusses sabre as implicagGes desta tese para a ciencia psicolégica e para a clinica, TALT-TERAPIA Pieandoracosocu Digitalizado com CamScanner outro ego, que impée ao organismo uma nova for- ma de se ajustar, a qual é tao criativa e espontanea quanto aquela atribufda ao “saudavel”. A partir des- sa leitura egolégica da doenga e da satide, Golds- tein compreendeu que: o organismo é ele mesmo um campo fenomenal povoado por muitos vetores intencionais, por muitas formas de intencionalida- de, as quais sao correlatas daquelas que vigem en- tre o organismo e os outros organismos no interior de um novo campo fenomenal, mais abrangente, que é 0 “meio”. (2007, p. 122) Faltava a Goldstein esclarecer em que medida a dimensao da subjetividade estava atrelada 4 dinamica temporal da consciénci: como fizeram em sua esteira Fritz Perls (1942) e Paul Goodman (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1951), fundadores da Ges- talt-terapia, numa releitura da clinica psicanalitica a partir da feno- menologia husserliana e do pragmatismo. Para tanto, estes autores cunham a expressio fronteira de contato, que nao indica a separacao entre um corpo e outro, sequer sua unidade sintética (como muitas vezes é entendida a ideia de todo gestaltico), mas precisamente a impossibilidade de localizar espacialmente onde comega um e ter- mina outro, isto é, a ambiguidade da relagao intersubjetiva. Cada evento de fronteira, cada situagao presente, é a ocorréncia inédita da atualizacdo do passado e do futuro nos atos individuais, a criagao de um campo em que 0 eu € 0 outro esto imbricados. A este campo in- tersubjetivo a Gestalt-terapia chama de selfe analisd-lo é sua tarefa. Eis 0 modo como propomos superar 0 egocentrismo fundante do Pensamento psicoldgico, pois que este Seal predicamento egocén- trico pressupée a ideia de que a consciéncia se encerra em si mesma como pura interioridade” (BELMINO, 2014, p. 98). No lugar de um Digitalizado com CamScanner discurso sobre 0 sujeito, ou mesmo do sujeito em primeira pessoa, a clinica deve poder ser um espago de reflexdo sobre as implicagées do campo em cada comportamento, sobre as demandas dirigidas a cada organismo e as respostas inéditas que emite. Sobretudo, deve poder ser um espaco de acolhida das singularidades e de invengao de novos campos de correlagio. A teoria gestaltica do self se estabe- lece assim como a possibilidade de olhar, a cada momento, de que forma se produzem modos de ajustamento diante das demandas: nas diversas vulnerabilidades de um campo aos pedidos que ali sur- gem, podemos ver emergir modalidades clinicas distintas. Ja enunciadas por Goodman em 1951, e seguindo a am- pliacdo proposta por Miiller-Granzotto e Miiller-Granzotto (2007, 2012a e 2012b), as clinicas da neurose (vulnerabilidade da fungao de ato diante do exercicio do desejo e do poder), da psicose (vul- nerabilidade da fungao id diante das demandas por excitamento) y e do sofrimento (vulnerabilidade da fungdo personalidade diante da perda de dados materiais) exigem intervengGes especificas. Em. comum, vige a proposta de uma clinica ética, ou seja, a operacdo de desvio em dire¢do ao acolhimento ao que se apresenta como es- tranho no outro, para ele mesmo ou para as representacdes sociais de que participa’. Sem intentar oferecer uma “prescrigao” de como Tal proposicao esta calcada no pensamento fenomenoldgico que dé origem a Gestalt- terapia, como assinalam Miiller-Granzotto € Miiller-Granzotto (2007, p. 121-122): “[..] na trilha aberta pelo proprio Husserl, Merleau-Ponty admite pensar 0 outro como uum ‘estranho; como essa lacuna de nossa experiéncia que, enfim, nunca conseguimos preencher ou habitar integralmente. E é essa transformacdo no modo de compreender © problema husserliano do outro que propriamente fundamenta nosso dizer sobre uma ‘deriva da fenomenologia em direcio a ética, Ao dar diteito de cidadania ao ‘estranhe, Merleau-Ponty delina de uma fenomenologia que quer ser explicitagac: para estabele, cer um discurso que tem antes um sentido ético (com eta), um sentido de acolhida e to- Jerancia Aquilo que se mostra como um irredutivel,(.) Cada ego é para seu semelhante a encarnacao do mistério que, a partir de agora, define a consciéncia como um campo fenomenal, como um campo de ocorréncias nao apenas inatuais, mas investidas de uma autonomia que nao pode ser integralmente possuida, integralmente habitada’” PRAPIA FE xTENGAO eSICOSSOCIAL Digitalizado com CamScanner pensar 0 atendimento as questées de satide mental (sobretudo nos servigos puiblicos), cremos ser adequado apontar os caminhos para a interven¢ao em cada clinica, a luz da Gestalt-terapia como abor- dagem, mas especialmente como paradigma, As clinicas politicas e a intervencao em ajustamentos neuréticos Diante do desejo do outro, desde muito cedo somos instados anos subordinar. Em diversas situagdes, submeter-se pode ser uma decisdo importante para o sujeito, além de ser uma oportunidade para se ter prazer. Contudo, quando sequer podemos tomar tal de- ciséo — seja porque somos orientados por habitos que nao nos séo conscientes ou por nao reconhecermos os recursos para enfrentar os conflitos impostos a nés — sentimos uma diminuicao da satis- fagio nas experiéncias de vida, uma frustragao que nao se explica simplesmente pela auséncia de objetos e vai, portanto, muito além do desprazer. Quando o fundo de excitamentos estd inibido, o que se apresenta na fronteira de contato é apenas ansiedade e, para lidar com ela, diversos expedientes manipulativos sao usados. Quando busca apoio profissional, o sujeito solicita que desempenhemos cer- tas fungdes para minimizar a ansiedade presente no campo. Perls (1973) nos coloca de modo bastante simples esta questao: Bem, que necessita o paciente de nés? Um muro de lamentagées, um ombro sobre o qual chorar? Um aliado para condenar sua esposa ou seu chefe, um ouvinte paciente, alguém para puni-lo de seus pecados ou, se ele jé se puniu bastante, para per- doa-lo ou redimi-lo? Necessita reafirmagao, uma injecao de confianga? Ser que sonha em adquirir GRSTALT-TERAPIA EATENGAO PSICOSSOCIAL Digitalizado com CamScanner ae ——— submeter-se a uma milagrosa eres magicos 20 pes 7 9 reforco do seu autocontro- cura sem dor? Quer | > ua poténcia sexual, um cami- a felicidade? Quer aceitagio ou amor, um amparo para gua falta de autoestima, uma libertagao da monotonia da vida, resgate da solidao intolerdvel, aumento de sua memiéria? Sera que quer significados € interpretagoes, esperando que eles lhe tragam @ compreensio de si proprio? Ou quer a confirmagao do seu sentimento de que é uma pessoa to doente que nao pode lutar sozinho pela vida? (p. 58-59). Je, um aumento de si nho mais curto para Nao é dificil reconhecer nestas perguntas os apelos que sio dirigidos aos profissionais de satide diariamente. Nos campos em que uma neurose se forma, é fundamental compreender que ha uma vulnerabilidade nas relagdes intersubjetivas que compromete acapacidade de agir em favor dos proprios desejos e, por isso, con- yoca os clinicos a dirimir a ansiedade que se manifesta. Se simples- mente acatamos esta convocacao e assumimos a tarefa de “resolver” os “problemas” apresentados, pouco contribuimos para a emanci- pagio dos sujeitos diante do desejo do outro social. Na mesma me- dida, apenas procurar esclarecer por meio de uma abordagem re- trospectiva 0 que estd a se passar com a pessoa nao necessariamente amplia seus recursos para encontrar novas formas de lidar com suas dificuldades. Ora, se a neurose é a obsolescéncia dos modos . age ants _ on e sac atualmente na forma nipulativas 0 material para a died a ae Se me como se configura 0 campo entre 0 listen cs podemos reestabelecer a poténcia da fun - £6) consntente(®) -. G40 de atos. Esquematica- GRSTALT-TERAPIA SE ENeNarsteossocul, — Digitalizado com CamScanner mente, a intervengao nos casos de vulnerabilid: ade politica inclui as seguintes dimensées: Pontuacao e acolhimento das formas de vinculo inéditas € das repeticdées no campo clinico (entre 0 sujeito e o cli- nico, compreendendo também as relagées cotidianas — familiares, de amizade, de trabalho etc.) a partir dos des- centramentos vividos em fungao dos afetos (e nao apenas dos contetidos); frustracao habilidosa das estratégias manipulativas; tomada de consciéncia das formas de inibigdo reprimi- das, isto é, esquecidas (habitos inibitérios) e provocagéo da emergéncia da ansiedade; experimenta¢ao de novas possibilidades de acao. A proposta da Gestalt-terapia consiste aqui em intervengoes nao normativas: nao ha uma meta a ser atingida nem uma conde- nagao dos ajustamentos neuréticos como modos menos legitimos de interacao, haja vista serem respostas criativas as demandas por submissao aos dogmas ¢ ideologias. O que consideramos inovador €a importancia dada as relacdes de poder como ocorrem na atuali- dade do encontro clinico: Os “pacientes” e “clientes” sao muitas vezes induzi- dos a pensar que o mal-estar que sentem pode ser resolvido mediante uma investigacio das relacées parentais arcaicas, ou do treinamento em técnicas de reforgo da autoestima [..]. Se é verdade que ja nas relagdes parentais modos de dominagao sio ex- perimentados, isso nao significa que as relacdes de 95 sujeigéo vividas na atualidade da situacao se expli- STALI-TERAPLA NTENGAO PSICOSSOKL Digitalizado com CamScanner | quem por aquelas. Um dos principais motes da Gestalt-terapia foi justamente alertar para o fato de que, se uma forma arcaica (como uma evitacao, por exemplo) sobrevive na situacao atual, isso se deve 4 presenca de uma demanda que a exige. A interven. ao clinica jamais pode ignorar o papel dos deman- dantes, o papel dos dispositivos de saber veiculados pela midia, a astucia do outro capitalista em nos fa- zer exigir, de nés mesmos, que sejamos individuos bem-sucedidos. (MULLER-GRANZOTTO; MUL- LER-GRANZOTTO, 2012b, p. 133). O modo mais eficaz de discutir a emancipagao diante das demandas por sujeicéo é pontuar, na relacao terapéutica, a forma como cada um vive o poder e o desejo diante do clinico. Motivo pelo qual nao vemos com bons olhos a inclusao indiscriminada em Oficinas terapéuticas com carater de socializagéo, como as que utilizam linguagens artisticas ou artesanais. Se estas nao sao postas como espagos de critica da cultura (manifesta nas crencas e habitos neur6ticos) acabam por reforgar a ideia de que ao individuo cabe recolher-se sem questionar as contingéncias a que estd submetido e as relacées que reproduz. O mesmo vale para a “escuta” oferecida por psicdlogos e outros profissionais de satide sem problematizar os conflitos vividos ou sem que se impliquem como participes do campo que dirigem demandas aos sujeitos. A vulnerabilidade ética ea intervencao nos ajustamentos psicéticos Com efeito, os desejos dirigidos pelo outro social podem nao apenas encontrar uma vulnerabilidade de ordem politica. GESTALT-TRRAPIA EATEN(AO PSICOSSOGIAL — Digitalizado com CamScanner Caso o que esteja comprometido (por condi¢gées orgdnicas ou nao) seja a capacidade do fundo de excitamentos para orientar os atos, 0 que veremos éa producao de ajustamentos que chamamos de psicsticos. Trata-se da busca por supléncia aos excitamentos ou desejos através de medidas de isolamento (no caso dos autismos), de preenchimento (esquizofrenias) ou de articulagéo (quadros delirantes, paranoides e identificatérios) para defender-se das de- mandas por afeto. Na auséncia dos excitamentos ou na Ppresenga os- tensiva deles, alucinamos, deliramos ¢ identifica- mos, nos dados materiais presentes em-nosso cam- PO de relacées, possiveis representantes daquilo que os demandantes esperam que facamos com os excitamentos. (MULLER-GRANZOTTO; MUL- LER-GRANZOTTO, 2012a, p. 144). Tal resposta, que de modo algum consideramos uma doen- ¢a, mas antes um ajustamento criador, consiste em se fixar em par- tes da realidade (como sons, movimentos, palavras, objetos) ou em organizar ativamente estas partes em totalidades (como histérias, explicagdes magicas ou estabelecendo relagGes entre diversos ele- mentos) bizarras — como bizarros sao os excitamentos que se busca suplantar. Nota-se aqui uma elaboragao diferente das da psiquiatria classica e ampliada e de certas psicologias, para quem a psicose seria uma “fuga da realidade’. Ao contrario, entendemos a psicose como uma posigao diante do outro, um modo de correlagdo em um campo vulnerdvel. A compreensao dos ajustamentos psicéti- cos como uma fixacdo na realidade (mais além ou mais aquém das fantasias tipicas dos comportamentos neurdticos) no é se- TALT-TERAPIA BATENGAG PatCossocuAT AS Digitalizado com CamScanner nao, para a Gestalt-terapia (MULLER-GRANZOTTO; MULLER. GRANZOTTO, 2012a), a tentativa de se defender da ambiguida. de presente entre os horizontes de passado e de futuro na Telacio com 0 outro empirico, quando este faz pedidos que 0 sujeito nao consegue compreender: Mas quais so os pedidos que os sujeitos das forma. es psicdticas parecem nao entender? Por certo nao sdo os pedidos por inteligéncia social, como aqueles em que compartilhamos pensamentos, valores e sen- timentos. [...] Desse modo, quando nos referimos a pedidos que os sujeitos psicéticos parecem nao com- preender, temos em conta aqueles em que nos volta- mos para o que nao estd dado na realidade: é 0 caso dos pedidos por afeto (os quais sempre esto volta- dos para um fundo de vivéncias que nao so para nds mais que rastros) e os por novidade (voltados para um horizonte de criagSes virtuais ou desejos). Logo, pedidos extremamente amb{guos, uma vez que sempre estao apoiados na realidade [...], mas en- deregados ao que a ela nao se restringe, por exemplo, as pulsdes e os desejos. (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2012a, p. 40). Assim, as fixagdes psicdticas séo formas criativas de res- ponder a tais pedidos, como se as alucinacées ou delirios pudes- sem fazer ds vezes de excitamentos ou fantasias, quando a fungéo id esta vulneravel por nao se apresentar ou Por se apresentar de for ma desarticulada. O que nos permite afirmar, ie como é notério, qué os sujeitos das formagdes psicéticas podem tranquilamente com- preender os expedientes sociais, podem aprender o que quer que seja (normas, ciéncias, valores), desde que estes expedientes n40 GESTALT-TERAPIA JP ATENGNO PSICOSSOCIAL — Digitalizado com CamScanner venham acompanhados da ambiguidade das relagées afetivas. Ve- mos inclusive o prazer que podem sentir ao compartilhar espagos de convivéncia como rodas de conversa, festas e oficinas ofertadas nos servicos especializados de satide mental ou no territério, Ainda que sua participacao nao deva ser uma norma imposta aos sujeitos, entendemos ser bastante benéfico oferecer tais espagos de forma a ampliar sua circulacao social. Afinal, o sofrimento que vivem os su- jeitos das formagées psicdticas reside muito menos em seus delirios ealucinagGes do que no fato de que é dificil para os que esto ao seu lado participar destas produgées. Ainda que haja diferentes estratégias de intervencio em cada ajustamento de busca (MULLER-GRANZOTTO; MULLER- GRANZOTTO, 2012a), podemos depreender uma orientagao geral para o atendimento clinico: + acolhimento das produgées psicéticas como respostas criativas 4s demandas do meio social; * manejo das produces delirantes e alucinatérias de forma a ampliar seu poder de contratualidade social (desloca- mentos em diregao a formagées com maior capacidade de interlocugao com o meio); « andlise das demandas ambiguas a que o sujeito esta sub- metido, especialmente aquelas feitas pelos profissionais e pela rede social (familiares, amigos, colegas de traba- Iho), e elaboracao da implicagao destes na produgao dos “sintomas”; + orientacdo do meio social a respeito de como agir frente aos sujeitos, evitando injungées que levem ao surto. Em fungao da complexidade das interven¢6es psicosso- ciais, que incluem a escuta analitica aos delirios e as alucinagées GESTALT-TERAPLA IATRNGKO PSICOSSOCUAL H Digitalizado com CamScanner = em regime de confidencialidade, a orientagao aos familiares ¢ a ampliacao da contratualidade social, além de uma possivel tera- péutica medicamentosa, convém que mais de um profissional pos- sa conduzir 0 atendimento de forma integrada e com fungoes di- ferentes. Por exemplo, que um clinico se encarregue da andlise da forma como as respostas psicéticas ocorrem, enquanto um Acom- panhante Terapéutico possa circular com 0 sujeito e reconhecer as demandas a que ele esta submetido na familia e na comunidade, dando orientagdes e mediando as relagées, e, ainda, outro pro- fissional estabeleca vinculos de cuidado visando ao conforto e 4 socializacao. Este trabalho integrado é algo que ainda precisamos muito aprofundar. Note-se que aqui temos falado sobre as produgées psicéticas como modos de ajustamentos de busca por supléncia aos excita- mentos e aos desejos demandados pelo outro no campo intersubje- tivo. Conforme descrevemos, estas criacdes nao sdo necessariamen- te patolégicas nem, em si mesmas, geradoras de sofrimento, Sao, antes, respostas possiveis e que devem ser legitimadas, reforcadas e incluidas nas relagGes interpessoais, como acolhimento a diferen- Ga que podemos encontrar em cada um. No entanto, nem sempre este acolhimento ocorre: em fungao da estranheza que nos acomete, tanto quanto dos ideais sociais, nao raras vezes os individuos sio impedidos de dar as respostas que habitualmente os defendiam das demandas. As fortes injungées e os pedidos ambiguos incessantes podem acabar por levar ao surto, © que ja configura outro tipo de ajustamento. Trata-se da faléncia dos ajustamentos de busca, geran- do intenso sofrimento no campo. Conforme nossa pratica e nos- sas conviccées indicam, os surtos devem ser evitados com afinco e atendidos o mais prontamente possivel, Posto que sao situacdes emergenciais e de crise. Este tipo de sofrimento nos solicita outros tipos de intervencao. GESTALT-TERAPIA Sirmgio psicossocist 4 Digitalizado com CamScanner A vulnerabilidade antropoldgica e a intervengio no sofrimento ético-politico E frequente que nossas possibilidades de ago se encontrem dramaticamente reduzidas: seja em fungio da perda da capacidade fisica pelo acometimento de uma doenga grave (como a Doenga de Parkinson, a cegueira ou amputacado decorrente de diabetes, para citar alguns exemplos), seja pelo falecimento de um ente querido com o qual nao iremos mais conviver, seja pela injungao de con- digdes socioambientais, como um desastre natural ou uma guerra civil, vivemos situagdes de aflicao pela impossibilidade de vislum- brar horizontes de futuro ou de repetir habitos simples. Nesses mo- mentos, os recursos de que dispomos costumam ser insuficientes para responder as nossas necessidades. Também nao raro, vemos que respostas habitualmente bem-sucedidas (como os ajustamentos neuroticos ou psicéticos) podem entrar em faléncia em fungao das demandas do meio, gerando crises muito intensas. SA0 momentos de sofrimento para todos os envolvidos, j4 que sao caracterizados justamente, como dissemos, pela falta de recursos para lidar com 0 que se apresenta. Afinal, com a perda dos dados materiais que dao suporte aos ajustamentos, também nao ha como usar as palavras que preencheriam de sentido o que vivemos. Nao conseguimos se- quer explicar nosso sofrimento ou nos alienar em fantasias desejan- tes relativas a estes dados ausentes (a satide, a presenca de alguém, o dinheiro com o qual manteriamos nossa sobrevivéncia). As crises atendidas nos servicos de satide mental corriqueiramente decorrem da vulnerabilidade da fungao personalidade diante de condigées de privacao (pobreza, violéncias, auséncia de apoio afetivo)"", TO. Nao surpreende que as questdes sociais e econdmicas sejam apontadas como princi- ais determinantes para a condiglo de saiide mental das populagdes, conforme revi- fio feta por Alves e Rodrigues (2010). Na auséncia de marcadores orginicas espe- GRSTALT-TENAPLA, Enrengto ratcossoc Digitalizado com CamScanner

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