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Salvar o fogo
Capa
Folha de Rosto
A vingança tupinambá
Luzia do Paraguaçu
Manaíba
A alma selvagem
Agradecimentos
À minha mãe
A terra, esse vale de lágrimas
Juan Rulfo
“Como era a minha mãe?”, perguntei mais uma vez. Tinha os pés dentro
d’água e segurava um graveto que fazia de caniço, sem nunca conseguir
pegar um peixe. Já deveria ter feito aquela pergunta muitas vezes, mas as
respostas de Luzia nunca me satisfaziam.
“Como no retrato que está na parede”, respondeu sem me olhar,
enquanto esfregava um lençol com os nós dos dedos.
Ela se referia à pintura em cores fixada na parede e que, de forma
milagrosa, tinha sobrevivido ao incêndio. Nela, nossa mãe surgia na única
imagem que eu conhecia — e era bem provável que não houvesse nenhuma
outra. No retrato, mãe Alzira se apresentava com uma cor de terra e o
cabelo ondulado na altura dos ombros, diferente do de Luzia. Ainda era
possível ver uma pequena mostra de seu vestido azul. Com o envelhecer da
imagem, aos poucos desbotada, ficávamos sempre em dúvida se era
realmente azul, ou se verde.
O rosto de minha mãe estava inerte, mas não era somente na fotografia.
Havia algo na posição de seus olhos que a fazia parecer indiferente ao que
estava à sua volta. Não era possível distinguir traços de tristeza ou de
contentamento. No mesmo retrato, meu pai se encontrava rígido e ostentava
um bigode que nunca voltou a usar. Vestia terno e gravata que, de acordo
com o que Zazau afirmava nas suas espaçadas visitas, nunca teria
envergado, ou seja, era fruto da criatividade e do engenho do fotopintor. O
rosto também era o mesmo do único documento que meu pai tinha,
atestando que não havia posado para a fotografia. Meu pai e minha mãe
juntos, uma união que parecia ir muito além do habitar a casa onde viveram.
Diferentemente da mãe, meu pai tinha a pele mais clara, ainda que curtida
de sol. Zazau garantia que nossa irmã Mariinha, que havia deixado a casa
anos antes de eu nascer, sem nunca mais retornar, se parecia comigo. Meu
irmão Raimundo, que nunca conheci, nem mesmo por fotografia, também.
O fato é que em nossa casa essas pequenas diferenças provocavam debates
sobre “barriga limpa” e coisas que eu não compreendia durante minha
infância. Na Tapera, as pessoas eram de muitas cores, e os que tinham
cabelo liso se diziam descendentes dos índios que ali viveram muito tempo
antes.
As histórias da família de meu pai eram mais conhecidas do que as da
família de minha mãe. Luzia repetia que Mariinha havia saído à nossa
bisavó Didita, a avó de meu pai, “caçada a dente de cachorro”. Eu escutava
as histórias atrás das portas, porque os adultos se recusavam a falar sobre
determinados assuntos na presença das crianças. De tanto escutar escondido
as conversas das irmãs, soube que a avó do meu pai era uma velha índia de
cabelo longo e grisalho. Soube também que se sentava na beirada da mesma
porta que dava para o quintal e picava fumo. Que quase não falava, mas
sabia benzer criança e conhecia as ervas da mata. Era a única pessoa da
beira do Paraguaçu que dizia ter visto o olho-de-fogo-rendado no topo de
uma velha árvore emitindo seu trinado. Uma dádiva, diziam, que só quem
se comunicava com o mundo dos mortos trazia consigo. Foi a Luzia que vó
Didita se afeiçoou. Logo depois a família deixou a Tapera para trabalhar nas
fazendas da região. Desse curto tempo juntas, Luzia dizia ter sido levada
por Didita para cima e para baixo, se embrenhando pelas matas, canaviais e
águas do Paraguaçu.
Mas quase nunca Luzia respondia às minhas perguntas, cada vez mais
frequentes conforme eu crescia — e que aumentavam na proporção de
minha curiosidade. Meus irmãos eram bem mais velhos do que eu e
partiram da Tapera pouco a pouco, antes mesmo de eu poder perguntar
sobre minhas inquietações. Luzia nunca estava disposta a responder,
guardando sempre o semblante cerrado. Meu pai, nos momentos de revolta,
dizia em alto e bom som que ela nunca se casaria porque ostentava uma
carranca no lugar do rosto. A amargura parecia fazer dela uma mulher
velha, como as que já perderam o tino pela vida ou tiveram demasiado
tempo para descobrir que nada vale a pena e a vida pode ser um imenso
fardo. Mas havia os raros momentos em que ela se desarmava por inteiro,
punha um vestido florido surrado de domingo e se esquecia de seu terço e
missal. Quando isso acontecia, era como se o tempo anunciasse uma visita
esperada: Luzia se postava junto à janela, fechava os olhos de quando em
quando. A cada aragem suspirava, e o peito subia e descia com o vaivém
das águas sobre o mangue. Era tempo de abrir janela, de ver a casa
iluminada, a luz ofuscando minha visão. Ela seguia até a cozinha para
preparar cavacos. Fritava-os na banha de porco, polvilhava com açúcar e
canela. Sabia da minha ansiedade e me permitia observar o preparo. Eu
rolava a garrafa de aguardente vazia sobre a massa, e ela me dizia qual o
ponto para que ficasse mais fina. Cortava com suas mãos pequenas. Dias
raros em que de seu rosto despontava um sorriso, um botão de flor,
deixando de lado o desgosto sem fim. Esse sentimento de paz e afeto me
encorajava a perguntar mais uma vez:
“Você sabe como eu nasci?”
Eu sabia, mas gostava de ouvir Luzia contar outra vez, e outra vez, para
ter a certeza de que nenhum detalhe havia me escapado. Só assim poderia
saber mais sobre a mãe que não conheci.
“Minha mãe”, ela começava a contar sem olhar para mim, “sentiu dores
numa noite de lua cheia”, e continuava retirando os cavacos fritos do tacho
quente. “Ela já tinha muitos filhos. Estava variada das ideias e achava que
faltava mais uma lua. Sentiu dor e foi para o rio à noite aquietar a barriga se
banhando nas águas. Mas você não esperou mais uma lua e nasceu.”
“E meu pai?”
“O pai não andava por aqui, trabalhava na cidade.”
De repente a memória de Luzia parecia se embotar porque não dizia
mais nada que eu não soubesse. A cada vez que eu perguntava, respondia
algo diferente. Certa vez ela me disse que a mãe andou comigo no colo sem
cortar o umbigo e foi sozinha para casa. De outra vez tinha sido ela, a
própria Luzia, a sentir a falta da mãe no meio da noite. Terminou por
encontrá-la com a criança nos braços.
“Mas eu nasci na beira do rio ou dentro d’água?”
Nesse instante seus olhos brilhavam. O rosto se voltava para o mundo
além da casa, buscando um sopro de vida entre a mata e a aldeia, tentando
encontrar a recordação da história nos movimentos das árvores e dos
animais.
“Ela estava tão relaxada na água que o menino escorregou feito um
quiabo. Mas ela coou você na camisola que vestia. Por isso, quando chegou
em casa e contou pra todo mundo, lembrou de uma história ouvida nas
missas” — se benzeu —, “a do menino que apareceu num cesto
atravessando o rio e foi pego pela filha do faraó.”
Por um momento eu ansiava que Luzia afagasse minha cabeça. Seus
olhos estavam tomados de emoção. Ela se desarmava, deixava de lado sua
prontidão para as batalhas contra o mundo. Eu me enredava naqueles fiapos
de recordações e avançava querendo saber mais.
“E por que a mãe morreu?”
De repente, era como se um pássaro tivesse sido atingido por um
estilingue no alto de seu voo. Luzia baixava os olhos, o rosto se crispava,
encolhia os ombros e a corcunda parecia crescer ainda mais.
Interrompia a conversa.
“Chega, já fez pergunta demais.”
Eu sabia que não poderia prosseguir.
5
Estudei na escola do mosteiro por quase oito anos. O anexo, onde as salas
funcionavam, era um galpão de alvenaria simples, destoando da construção
antiga da igreja, embora estivesse num terreno contíguo. As paredes eram
caiadas de branco com uma tinta ordinária todos os anos antes do início do
período escolar. Contrastavam com as paredes do edifício principal,
cinzentas, envelhecidas, que pareciam ter sido reparadas em outra época.
Quando chegávamos para as missas, entrávamos pelas portas laterais. Ainda
no caminho, pela rua principal, era possível avistar a única torre. Dela
ecoava o tilintar do sino preenchendo de sons a vida da Tapera, anunciando
as cerimônias, as missas, os dias santos e as mortes. O telhado era antigo,
formado por telhas nobres, diferentes das que recobriam as nossas casas e
que mal se encaixavam. No alto, crescia uma vegetação daninha que se não
revelava abandono, poderia ser a materialização da longa passagem dos
anos. Expressava também a luta entre a natureza e a construção dos
homens.
Nos momentos de brincadeiras, quando os monges seguiam seus rituais
de oração e contemplação, nós, crianças, chegávamos ao pátio da frente,
onde ficava o cruzeiro, em silêncio para não sermos notados. A igreja havia
sido erguida com a porta principal voltada para o Paraguaçu. Ao lado, como
parte do conjunto, havia um edifício sem adorno, antigo, uma ruína
chamada de salão do mar. Não estava instalado na parte mais elevada da
margem do rio, como as construções principais, mas no nível da linha de
enchente. Nas marés-cheias a água recobria sua velha estrutura, exposta
como ossos de uma criatura morta. Já não dispunha de telhado, e a água
entrava pelas aberturas circulares no interior. Talvez por isso permanecesse
ainda de pé, resistindo à permanente oscilação das águas.
Os pescadores e os vizinhos, que viviam do transporte no rio, tinham a
melhor vista da igreja de Santo Antônio do Paraguaçu de cima de seus
saveiros, suas canoas e jangadas atravessando as águas. As crianças, livres,
sem os limites dos monges ou da família, se lançavam no rio para poder
chegar ao jardim cultivado em níveis, como se fosse uma escada de acesso
à igreja. No último patamar ficava o cruzeiro. Irmão Timóteo, professor de
Religião, contava que o edifício havia sido construído com areia, cal, tijolos
de barro cozido e óleo de baleia, caçada nas enseadas da baía. Era nesse
lugar que brincávamos e dali também observávamos a navegação, até que,
esquecidos de onde estávamos, éramos surpreendidos por um ou outro
monge. Ele então nos pedia, tranquilo e assertivo, que fôssemos brincar fora
dos limites do mosteiro: “A casa de Deus não é lugar para brincadeira”.
Passadas semanas, enveredávamos pelas mesmas ruas da Tapera e de
maneira inevitável voltávamos ao jardim até sermos retirados de novo sob
ameaça de reclamações às nossas famílias.
Um dia, enquanto acompanhava Luzia recolhendo as peças de roupa no
mosteiro, um dos monges me reconheceu e contou à minha irmã sobre as
brincadeiras no jardim. Contou que pisoteávamos os canteiros, que
tínhamos sido advertidos a não maltratar a casa de Deus, mas que sempre
voltávamos; que acertávamos passarinhos com o estilingue e danificávamos
o cruzeiro ao treparmos ali com os pés sujos. Vi o rosto de Luzia se aquecer
como um braseiro. Ela pediu muitas desculpas antes de entrar para a missa
me puxando pelo braço. Flexionou os joelhos diante do altar, fez o sinal da
cruz. Falou para que apenas eu pudesse escutar: “Quando chegar em casa
você me paga”. Naquela hora, só me restava torcer para que o sermão fosse
inspirador a ponto de aliviar o peito de Luzia da amargura e da vontade de
me surrar pelo pecado de profanar o jardim da igreja.
Foi assim que a missa transcorreu com o longo sermão de dom Tomás
sobre a Trindade. Luzia passou todo o tempo atenta, sem desviar seus olhos
do altar para qualquer outra distração. Nos dias de domingo, ela escolhia
um lenço bem engomado e menos puído para recobrir sua cabeça, com uma
abertura por onde escapava uma grossa trança. Uma vez por semana eu a
via desfazer o cabelo entrelaçado para lavá-lo no rio. Depois, Luzia o
penteava, domando-o, uma árvore frondosa despontando plena.
Enquanto se dirigiu junto à romaria de mulheres para a comunhão, eu
fixei meus olhos nos seus passos arrastados, na corcunda que diminuía à
medida que se afastava de mim. Luzia retornou, se ajoelhou para as
penitências enquanto só me restava mirar seu lenço, a trança como uma
corda caindo ao lado da corcova, que de tanto eu olhar passou a pulsar
como um coração. Ela rezava por nossas aflições, e eu aproveitava para
pedir ao Bom Deus que acalmasse seu gênio. Que ela se esquecesse de meu
malfeito e se desse por satisfeita com a reprimenda. Nessas horas, quando a
observava de joelhos, equilibrando o que batia vivo em suas costas, eu me
enchia de afeto por ela. Luzia era uma andarilha solitária por todo canto da
aldeia. Sabia que era desprezada pelo povo da Tapera por um passado sobre
o qual ela não teve escolha.
Não foram poucas as vezes que me deitei na rede e pedi a Deus
enquanto todos dormiam: por Luzia, por meu pai, pelos irmãos que
deixaram a casa antes e depois, e por mãe Alzira, que dormia em alguma
nuvem pairando sobre o céu da Tapera. Pedi, como se sonhasse com os
olhos abertos, por uma vida boa para Luzia e meu pai, de preferência longe
dali, onde as pessoas não eram confiáveis e a infâmia era um grande peso
recaindo sobre nossa casa. Pedi por um lugar onde pudéssemos começar
uma vida nova, como se fosse possível viver sem ser julgado pelo próprio
corpo, pelos males e pelos dons que carregamos conosco.
7
Não sei precisar ao certo quando me dei conta de que estudar na escola da
igreja foi minha bênção e também minha maldição. Lá, aprendi a ler e
escrever e criei gosto por leituras e descobertas. De alguma forma a escola
preencheu o espaço das minhas ausências: a ausência da mãe e dos irmãos
com quem pudesse compartilhar a convivência da infância. Na escola,
aprendi também que a violência não estava apenas nos castigos aplicados
por Luzia. A violência era traiçoeira e poderia vir travestida de afeto.
Poderia habitar os olhos do benfeitor sem que percebêssemos. Quase
sempre era justificada por boas intenções, por compaixão e redenção. Às
vezes poderia ser uma promessa de sorte, adoração, deslumbramento,
ocultando as sementes da loucura e da danação.
Não demorou para que eu sentisse vontade de estar no ambiente da
escola. Se no início havia apreensão e receio pelo rigor dos monges, depois
percebi que havia crianças com quem eu poderia compartilhar o dia. Havia
livros e cadernos para manusear, coisas a aprender e assuntos que me fariam
sonhar. Meu primeiro professor foi irmão Miguel. Foi ele que me
alfabetizou com uma velha cartilha. Eu observava com atenção sua
caligrafia reproduzindo o alfabeto no quadro, enquanto tentava repetir nos
cadernos pautados letras e palavras desenhadas em meu horizonte. Sempre
que recordo os anos de estudante, quando aprendi a ler, a decifrar as linhas
das letras, sinto esse momento como uma experiência de grande
intensidade. Era como nascer outra vez, mas desembarcar num mundo de
compreensões e sentimentos que me acompanharia sempre. Depois,
reproduzir tudo, experimentando nomear as coisas, as pessoas, as emoções,
os mais vagos pensamentos: o que estava fora e o que estava dentro.
Muitas das crianças se mostravam arredias, com dificuldade para pôr em
prática o aprendizado. Para mim tudo inspirava a magia, e o medo de errar
quase não existia. Captava com rapidez os significados, a origem, os nomes.
Lia com a avidez que recordava uma fome antiga e persistente. Só não
escrevia mais por faltarem papéis e cadernos. Escrevia na areia à beira do
Paraguaçu, depois mostrava a Luzia e perguntava se ela sabia o que era. A
sós comigo ela não parecia se envergonhar de não saber ler. Estava
conformada e contente de que pelo menos eu soubesse. Ao encontrá-la na
igreja, irmão Miguel contava com entusiasmo a minha evolução na escola,
que, quando eu dava por cumprida uma tarefa, desejava outra sem cansaço
aparente, o que parecia raro, já que muitos se queixavam.
Em nossa casa não havia livros ou jornais. Quando aparecia algo
embrulhado em papel de jornal, eu lia, ainda que não entendesse o
significado de todas as palavras ou o sentido dos fragmentos truncados.
Guardava só para ter o que ler depois. O que eu não sabia, arriscava
perguntar a Luzia. No começo, ela parecia irritada com minha insistência.
Repetia que era ladainha, lenga-lenga: “Onde já se viu tanta pergunta?”.
Depois foi inevitável não despertar sua atenção para as minhas descobertas.
Ela me pedia para ler sua certidão de nascimento envelhecida, com nódoas
de umidade. Assim como eu lia, ela repetia o nome dos pais, dos avós,
corrigindo uma ou outra pronúncia. Sempre comedida, mas sem disfarçar
sua admiração pelo meu aprendizado. Se eu errava uma palavra, Luzia não
deixava passar. Ainda que não soubesse ler, tinha boa memória, conhecia as
palavras de ouvido. Pedia que eu repetisse, repetisse outra vez, até ter
certeza de que havia aprendido.
Em seguida, fazia questão de estimular que eu reiterasse tudo ao pai. Ele
olhava de través sem o mesmo interesse de Luzia, continuava meio ausente
enquanto amolava o facão. Depois de muito escutar — e um tanto entediado
— dizia: “Bem, vai ser doutor”. Com o passar dos anos me importava que o
conhecimento adquirido pudesse me dirigir a um caminho diferente do
percorrido por meus irmãos. Mas, no começo, o que importava mesmo era a
liberdade de ler os nomes dos saveiros — Dadivoso, Coqueiral, Sombra da
Lua, Da Vida; de decifrar os avisos da escola; de ler O Domingo das missas
sentado no banco da igreja, enquanto Luzia se curvava em penitência.
Ainda que não compreendesse o que ali estava me entretinha nas expressões
“Cordeiro de Deus”, “Espírito Santo”, “piedade de nós”. Explorar as
palavras e seus significados era penetrar na alma das coisas. Era como ser
Deus, vigiando os mais íntimos pensamentos. Me despedia daquele folheto
desejando levá-lo comigo. Ao perceber minha intenção, Luzia o retirava de
minha mão e o devolvia ao receptáculo.
E depois, à medida que avançava na compreensão, passei a almejar a
biblioteca do mosteiro, onde estavam reunidos todos os livros. Não me
recordava de Luzia ter entrado num desses cômodos enquanto eu a
acompanhava em suas visitas para a coleta das roupas. Talvez até tivesse
visto a biblioteca, porém sem saber do que se tratava, havia considerado ser
tudo parte da mobília escura que compunha o conjunto. Restava imaginar
como seria o lugar que, de tão evocado por irmão Miguel, se tornou quase
mítico para mim. Era um templo dentro de outro templo, onde as palavras
estavam registradas para a eternidade — era assim que eu fantasiava. Os
livros eram como dúzias e dúzias de ovos de um galinheiro povoado ou a
fartura de vagens num pé de feijão. Os concebia na minha imaginação,
empilhados no solo, formando grandes colunas; ou guardados em urnas
diferentes a sete chaves, como relíquias imemoriais. Minha compreensão
não os considerava enfileirados em prateleiras, organizados por sobrenome.
Não os imaginava velhos e empoeirados, com páginas amareladas, roídos
por traças. Para dizer a verdade não imaginava serem os livros escritos.
Pensava que surgiam como nós, das vidas de outras pessoas, vivos, sem
grandes explicações.
Quanto mais eu aprendia, mais eu parecia me distanciar da vida na
Tapera. Cheguei a considerar ser meu destino entrar na Ordem religiosa
quando adulto. Aos meus olhos ser monge era melhor do que ser pescador
ou trabalhador da roça, de sol a sol. Mas eu nunca tive coragem de externar
minhas intenções a Luzia, e ela nunca soube do meu interesse. Eu
observava o conhecimento dos padres em contraposição à rudeza dos
homens da aldeia, como meu pai, limitados a repetir o que conheciam de
seu cotidiano. Se não era lavrador, era pescador, e os de alguma sorte eram
pequenos comerciantes e cobradores do foro. Não queria o mesmo destino.
Passei a me considerar melhor e mais importante — sem ter a exata
dimensão do significado de tudo — do que as pessoas à minha volta. Eu
detinha o conhecimento que muitos não tinham. A ironia de meu pai, “Vai
ser doutor”, havia sido compreendida por mim como uma previsão.
Mal sabia: junto à aura de virtude que acompanhava minha
aprendizagem viria a condenação por querer um caminho diverso do
esperado de pessoas como eu. Meu interesse despertou a cobiça por algo de
que, por ironia, eu sequer sabia o nome. Por não conhecer, fui tomado por
uma aflição involuntária, materializada em pesadelos vividos numa cama
molhada de urina, para fustigar ainda mais a cólera de Luzia. Sem
compreender por que de uma hora para outra comecei a urinar na cama ou
na rede, ela começou a acreditar que era tudo uma armadilha, aventou se
tratar de um jogo de malcriação para lhe punir; e mais: acreditou com
convicção que era minha vontade lhe impor o castigo, o que a deixou mais
revoltada, comigo e consigo mesma, por talvez se considerar merecedora.
Toda vez que intentei chegar ao íntimo do que me ocorria, me restavam
lembranças difusas: portas fechadas, sombras, calor e frio sentidos quase ao
mesmo tempo, água corrente, a percepção de que estava enxovalhado em
meio à imundice. Sensações percorrendo o corpo dividido de uma criança.
O arrepio constante derivado de sentimentos sem nome, tão distintos como
a vergonha e o prazer, me acompanhou por muito tempo sem que eu tivesse
controle, tampouco pudesse saber de onde vinha e por que vinha.
Mas, assim como aprendi com os livros, as lembranças também formam
um calhamaço: viro uma página, outra se sucede, e o que não fazia sentido
a princípio desponta como uma revelação.
Na teia do esquecimento, a memória se faz de doses iguais de verdade e
de imaginação.
9
“Esmola para são Vicente, para quem mija na cama e nem sente. Repete!”,
Luzia ordenou entre uma boa dose de revolta e outra de comoção.
Eu estava rijo diante da porta aberta, com o colchão molhado
equilibrado na cabeça. Não conseguia olhar para Luzia, tomado pela
vergonha e pela raiva. Era evidente meu mal-estar quanto ao que me
acontecia, mas para ela eu urinava na cama de maneira intencional. Luzia
continuava atrás de mim à espera de minha saída. Depois de muitos
incidentes como aquele nas últimas semanas, sua promessa de me castigar
iria se cumprir. Me envergonhar diante das crianças da aldeia seria seu novo
recurso para me fazer parar de urinar durante o sono. Nem esfregar o lençol
no meu rosto antes da lavagem nem gritar foi capaz de reverter minha
incontinência. Então só restava o recurso da humilhação pública. Eu deveria
caminhar pela rua com o colchão sujo, repetindo a prece para são Vicente.
Mas antes de pôr meu pé para fora da soleira, voltei meus olhos para os
de Luzia, atrevido, como ela mais detestava. Eu disse que poderia sair,
poderia até apanhar e ser motivo de zombaria para as crianças da Tapera.
Mas ela, por tabela, ficaria envergonhada, afinal a vizinhança já a tratava
com desdém desmedido. Eu era seu irmão e isso seria motivo de mais uma
humilhação, que certamente não precisávamos.
Luzia olhou para mim controlando a revolta. Seus olhos estavam úmidos
e vermelhos.
Talvez soubesse que eu não passaria pela porta carregando o colchão; ela
não permitiria. Seu instinto de proteção falaria mais alto, e por isso puxou
meu braço com força para que eu deixasse a soleira. Seus olhos crispavam
de raiva. Depois de me soltar, bateu a porta. O estrondo ecoou pelas ruas da
aldeia. Ela ainda gritou para que eu fosse estender a “porcaria do colchão”
ao sol, próximo à cerca da horta. “E vai lavar a roupa, mijão!”, determinou,
sem que eu tivesse chance de replicar. Com um pedaço de sabão em barra,
me dirigi ao rio com o lençol puído enrolado nas mãos.
Depois da briga com Boca de Peixe, passei a ser chamado com
frequência à sala de dom Tomás. Passei a me sentir vigiado e isso era fonte
de grande desconforto. Nas primeiras vezes acreditei ser ainda por
consequência da contenda no pátio. Cheirei a mancha amarela e senti o odor
de minha própria urina. Mergulhei o lençol na água. Naquele canto do
mundo só era possível escutar o som da brisa e dos animais. Ouvi o chilrear
dos pássaros sem conseguir identificá-los. Vez ou outra um saveiro
deslizava pelas águas, distante de onde eu me encontrava. Mergulhei outra
vez o tecido e o atritei com as mãos na expectativa de que o cheiro o
deixasse. A espuma branca se deslocou na direção da correnteza.
“O Diabo é sujo”, falou o abade depois de me observar em silêncio por
longo período. Na maior parte do tempo, eu mantinha os olhos à frente,
sobre a mesa, e contemplava os objetos dispostos de forma ordenada: bloco
de notas, mata-borrão, caneta-tinteiro. Era curioso observar aquelas peças
que não faziam parte do nosso material de uso. Todas as vezes que fui me
sentar diante do abade encontrei livros sobre a mesa, e tentava ler os títulos.
Havia também uma xícara branca com desenhos azuis de onde vinha o
cheiro de café frio. Sentado na cadeira, meus pés balançavam inquietos.
Quando precisava responder às poucas perguntas que ele me fazia, olhava
para seu rosto. A mesma face sem traços definidos, sem olhos e nariz, sem
linhas e expressões. Só a boca despontava delineada, brilhante, como os
lábios das artistas na televisão, pensava no instante em que eu lavava a
roupa. Seria uma fenda vermelha, vibrante, se não conservasse uma baba
branca, um veneno peçonhento, nos cantos.
Aos dez anos meus braços eram finos feito gravetos e eu não conseguia
retirar toda a água entranhada no lençol depois de torcê-lo. Estendi-o sobre
as pedras, esperaria por um tempo até que secasse por completo. O sol se
firmava no alto do céu, imensa brasa ardente, e eu fechava os olhos me
esquivando da luz. De novo era inundado por imagens confusas. Um fio de
luz entrava pela janela da diretoria e iluminava os objetos dispostos no
ambiente. Dom Tomás segurava meu pescoço. Era um toque cordial, como
os que não recebia em casa. Quando passei a ser chamado com frequência à
sala de livros antigos e cheiro de mofo, o medo deu lugar à espera. O bem-
estar se confundia com a inquietação e já não desviava meu pescoço das
mãos de dom Tomás, com medo de que fosse apertá-lo. Ele caminhava pela
sala, passos medidos e sem movimentos bruscos. A roupa escura ainda
sufocava, mas já não me angustiava como a respiração preenchendo o
cômodo. A luz encontrava o crucifixo que ele levava ao peito,
resplandecente, uma estrela entre as paredes.
O sol havia percorrido o céu e a superfície do rio refletia as mesmas
estrelas, como se o crucifixo estivesse se estilhaçando sobre as águas. Tanto
tempo havia se passado que nem percebi que já era tarde. Luzia estava ao
meu lado. Perguntava o que eu tinha aprontado, se não iria mais para casa,
se não reparei que tinha passado a hora do almoço. Eu a olhava sem
responder, me sentia estranho. Impaciente, ela aproximou a mão, tocou
minha testa — “Valha-me Deus”. Pediu com insistência que eu ficasse de
pé, mas minhas pernas não obedeciam. Eu não estava desperto por
completo das horas exposto ao calor, sem sombra e sem beber água. Me
sentia prostrado, o sono era senhor de meu corpo. Luzia pediu de novo que
eu me levantasse, dizia que eu estava crescido, já não dispunha de força
suficiente para me carregar. Não sei de onde busquei energia para caminhar
até em casa, mas quando percebi estava instalado no mesmo colchão com
catinga de urina seca.
Passei dias com Luzia ao lado da cama, aplicando compressas de água
fria para amainar a febre. Meu pai andava desassossegado de um lado a
outro. Conseguiu trazer uma enfermeira da cidade. Depois, remédio da
farmácia, que ficava distante. Repetia que se fosse no tempo das rezadeiras,
eu ficaria curado. Luzia não largava o terço nem quando precisava ir à
cozinha ou à porta. Já não se importava que eu urinasse na cama; me
levantava pela manhã, trocava o lençol e minha roupa, mudava o lado do
colchão. Quando não havia mais jeito, o retirava para expor no quintal e me
instalava na rede. Trazia as refeições, me dava de colher como se eu fosse
uma criancinha, se mostrando inquieta para que eu comesse.
Naqueles dias, os pesadelos pareciam mais reais do que a vida concreta
à minha volta. A febre me levava ao desvario, a territórios povoados por
assombros, medos ancestrais e palpitações inexplicáveis. Frio e calor se
alternavam com a mesma intensidade. Eu gemia quando percebia estar
sendo devorado por uma besta de vestido escuro, a boca no lugar da barriga,
os olhos saltados do corpo. Era engolido, regurgitado e depois sentia
vergonha de mim mesmo por me encontrar naquele estado. Talvez
convencida de que a reza não surtia mais efeito, Luzia passava ramos de
guiné e arruda sobre o meu corpo. Improvisou um braseiro, defumou a casa,
se atendo em especial à minha cabeça. Meus olhos permaneciam a maior
parte do tempo fechados e eu sentia o cheiro forte impregnando o ar. Luzia
mantinha a janela fechada para que não apanhasse sereno. Pés calçados para
não pisar o chão frio do quarto. O mundo de proibições era o mesmo, só
não poderia ser contado aos quatro cantos da aldeia para que não fôssemos
acusados pela religião de supersticiosos.
Passados os dias — não sabia precisar quantos —, a febre se foi e a
energia foi sendo restituída ao corpo, e Luzia já não considerava necessário
estar ao meu lado todo o tempo. As vezes que precisou buscar a roupa para
lavagem, voltou tentando me animar dizendo que dom Tomás havia
perguntado por mim. “Ele está rezando”, Luzia disse, “você vai melhorar.”
Eu permanecia em silêncio, fingia não dar importância. Mas gostava de
sentir que ela estava ao meu lado e de suas tentativas quase infantis de me
dar ânimo, esperando que reagisse à doença.
Quando estava restabelecido do mal sem nome, a ponto de Luzia ter
suspendido as regalias às quais já tinha me acostumado, ela passou a se
mostrar cismada com todo o tempo que passou ao meu lado. Se mostrava
confusa, buscava desvendar a causa da doença. Refutava a tese de
insolação, a tese da manga com leite ou da banana que não comi debaixo do
sol. Achava ter sido feitiço, mas não poderia dizer em voz alta, sob o risco
de ser questionada. Depois se voltou a mim, intrigada com o teor dos meus
sonhos. Começou a contar meus delírios, com detalhes que eu desconhecia.
Por fim se pôs a perguntar, insistente, sobre os relatos desconexos que eu
fiz enquanto ardia sob seus cuidados. Quis saber quem era a mulher de
vestido escuro a quem eu pedia que fosse embora com insistência. Queria
saber por que eu chorava — “Você nunca chora” — e por que eu repetia
que a cruz me cegava.
11
Não me perguntem o que se passou na Tapera nos últimos anos. Vou ter que
dizer: a Luzia medrosa, a Luzia obediente à aldeia, essa Luzia morreu. A
lavadeira da igreja não parou de lavar as roupas dos padres porque a igreja
queimou e todos levantaram revoada feito abutres apavorados. Parou
porque despertei, descobri verdades e a dor do mundo. Então o muro do
medo caiu e não houve quem o pudesse erguer outra vez.
A Tapera se levantou contra mim de novo. Da primeira vez eu era uma
menina assustada, amedrontada pelos mistérios do Céu, pela presença
assustadora de Deus, e por meus pensamentos imaturos. Mais tarde eu já
era Luzia, a lavadeira do Paraguaçu, e não seria como antes. As histórias
que contavam sobre minha vida, entre a menina e a velha que me tornei,
eram falatório de gente mexeriqueira. Anos e anos depois, a mesma calúnia
retornou. Queriam me atingir, ferir como o fizeram outras vezes, mas antes
me acusaram de ter espírito ruim, de ter parte com o Mal. Contavam
histórias em que os móveis velhos de nossa casa se mexiam sozinhos, assim
como as roupas estendidas no varal, a capoeira crescida dos caminhos da
aldeia, queimavam se por lá eu passasse. Era menina e muito cedo aprendi a
temer o povo da Tapera. Ensinada por eles, aprendi a ter medo de mim
mesma. Diziam que eu guardava o Mal. Só Cristo, filho de Deus, poderia
me curar dos espíritos daninhos. Minha mãe adoeceu apavorada e implorou
aos padres para que eu fizesse a primeira comunhão e fosse crismada às
pressas. Não temia só por mim, temia também pelo destino da família.
Dessa vez não foi por causa do mato incendiado. Tampouco pelo
canavial ardente com o qual não pareciam se importar. Também não foi por
causa dos boatos de objetos saindo de seus devidos lugares. Mas no fundo
era o mesmo sinal de agouro que me destinaram há tempo. Um incêndio
consumiu a igreja no mesmo dia em que eu tinha levado uma trouxa de
roupa limpa e passada aos padres. O bastante para me acusarem outra vez
de feitiçaria.
Não houve água do Paraguaçu para apagar o fogaréu que se levantou da
igreja e do mosteiro. Para meu azar, mas isso ninguém parecia saber, foi
justo no dia em que avisei ao dom Tomás que não lavaria mais a roupa do
mosteiro. Ele quis saber o porquê e eu não consegui disfarçar meu grave
descontentamento. Meu rosto deveria estar transtornado, embora eu
continuasse a olhar para os meus pés calçados com as sandálias de sempre.
O cansaço era grande, mas ninguém deixaria de trabalhar por sentir na
carne o peso das longas e extenuantes jornadas. Era o pretexto de que
precisavam para o povo da aldeia me chamar, além de todos os nomes
ordinários, de preguiçosa, vadia, porca. Mas a minha decisão era mais certa
do que meu cansaço. Era o esgotamento da minha mente, da minha vida, do
meu peito e das coisas que lá estavam. Noutros tempos continuaria a lavar
roupa pela mixaria que eles pagavam. Mas eu não era a mesma Luzia
entrando na igreja num dia de chuva, em busca do trabalho e do abrigo que
a casa de Deus poderia me dar. Agora eu era a velha Luzia, forjada nos
embates da vida e que não aceitava mais os insultos e as pedras que o
povaréu cheio de ódio me destinava.
Se tivesse aceitado o tratamento oferecido pela Tapera, é provável que
não estivesse mais aqui para repetir essa história. Quando começaram a me
perseguir, permaneci calada, sempre tinha sido assim. Nas primeiras vezes,
quando nova, inocente de tudo, chorava. Depois fiquei exausta de chorar, e
por não reagir parecia que eu havia aceitado o destino escrito pelas linhas
tortas de Deus. Quando o teto da nossa casa queimou, atiraram pedras em
nós, até que uma atingiu o menino. Senti ódio, mas a minha fraqueza
prevaleceu, e tampouco sabia como reagir. Depois veio o incêndio da igreja
e voltaram a atirar pedras em mim. Me chamaram de bruxa, feiticeira,
macumbeira. “Pois chamem”, gritei, “e tenham medo do feitiço.”
Em meio ao alvoroço que minha vida se tornou depois do fogo na igreja,
meu pai foi ficando cada dia mais alheio à hostilidade do povo. Seguia uma
rotina de fingimento e era possível que não tivesse a consciência do seu
fingir. Se dirigia à tarefa de terra carregando a enxada com esforço para
passar o dia limpando tudo sem plantar nada. O que costumava fazer numa
manhã agora levava mais de uma semana. Os cultivos não eram sortidos, de
nada serviam. Plantava mais aipim, mas o certo era que morressem antes da
colheita por falta de cuidado. Quase nada vingava e cada vez mais era
preciso comprar a comida que levava à mesa. Meu pai passava o dia
retirando as ervas daninhas crescidas a esmo. Tinha uma aparência fraca,
uma vida desregrada. Emagreceu, se alimentava mal, e aos poucos ficou
com jeito de doente. Mas o juízo respondia bem — até demais — e não
costumava acatar conselho algum. Para ele, eu continuava a ser a filha
incapaz, a solteirona, e que só havia vivido para cuidar das roupas da igreja.
As cabeças de Zazau e do Menino balançavam à minha frente com os
solavancos da van. O dia úmido me fazia suar feito cuscuz. Se metade do
tempo eu pensava em como cuidaríamos do nosso pai quando voltasse para
casa, na outra metade era o cortejo doloroso de recordações correndo em
minha cabeça, e por isso eu repetia a mim mesma: nem me perguntem por
que vocês não conseguirão acompanhar meu raciocínio. Não conseguirão
sentir tudo o que senti porque nunca habitaram este corpo. Até você, minha
irmã, uma mulher batalhadora, mulher de trabalho, é incapaz de
compreender. Bom ou ruim, você tem um marido, tem seus filhos e não foi
marcada com o Mal, nem carregou os mesmos fardos que eu, incluindo o
que está nas minhas costas. E você, Menino, é agora um homem e as coisas
pesam diferente. Não sabe o que se passa no coração de alguém como eu,
alguém que teve que enfrentar o mundo sem nunca entender por que
precisava ser assim. Então, eu aviso, Menino: não preciso do seu perdão,
assim como espero que não precise do meu. Advirto também: depois de
tudo o que eu vi naquele mosteiro assombrado, não precisamos do perdão
de Deus nem Ele deve esperar que consideremos essa possibilidade.
Esqueça, tire isso da sua cabeça. Se você ainda tem alguma mágoa, não a
persiga, nem tente recordar todos os dias o mal que te fizeram. Você não é o
mal que te destinaram, nem Luzia é o mal com que a desenharam.
O transporte deu um solavanco depois de passar por mais uma lombada,
arre, pensei, segurando a sacola e me aprumando no assento. Zazau olhou
para trás, talvez para perguntar se faltava muito até a Santa Casa. Eu
devolvi o olhar e bem sabia que era provável que continuasse a me
compreender.
E o Menino me ajudou a descer da van, nos dirigimos ao hospital
apinhado de gente. Camas velhas e enferrujadas, médicos e enfermeiras
passando apressados olhando os telefones de um lado a outro. “É por ali”,
uma senhora disse antes de me olhar de cima a baixo. Chegamos à
enfermaria e vimos nosso pai com o rosto, o torso e uma das pernas
enfaixados. Nos aproximamos bem devagar, Zazau primeiro, eu depois e
em seguida o Menino. “Como o senhor está?”, “Dói?”, “O senhor se
alimentou?”, Zazau dirigia todas as perguntas que queríamos fazer. Ele nos
olhava, fechava os olhos, respondia com vagar. Mas parecia não reconhecer
o rosto do Menino e o chamou de Joaquim. “Não, pai, este não é Joaquim”,
Zazau falou.
“Sou Moisés”, ele corrigiu.
E os olhos de meu pai marejaram. Ele repetiu: “Você veio, Moisés, você
veio!”. Olhou então para mim e falou: “E não é que ele parece com minha
avó índia? E parece com você também, Luzia”.
Naquele instante percebi que a história mais bem guardada pelas
mulheres da casa, abandonadas no passado em suas misérias, no ano que a
rapariga perturbou a vida da Tapera, já não tinha como ser mantida em
segredo.
5
E foi há muito tempo que a maré começou a mudar. Foi antes de meu pai
partir num saveiro atrás da mulher perdida, da mulher da vida, e ao mesmo
tempo que chegou o meu devedor à Tapera. E minha mãe, minha mãe
catando os fiapos da vida diante da beira da derrota, minha mãe um dia
reparou num homem vistoso e gentil me cercando de cima de seu cavalo.
“É preciso melhorar a raça, Luzia, é preciso se antecipar às moças da
Tapera que põem olho grande nos forasteiros”, ela me disse. “É preciso
segurar um homem que possa te levar daqui para um lugar melhor. Não faça
como sua irmã Maria que desembestou a seguir um zé-ninguém e deu no
que deu”, repetiu. E eu, sem entender o que minha mãe queria dizer, deixei
aquele homem, aquele homem bem-apessoado, que os nossos começaram a
chamar de almofadinha, que tinha parentela com os antigos donos da
fazenda vizinha, se acercar e desejar bom-dia, e deixei também seus olhos
percorrerem meu corpo. Seu jeito requintado de homem de posse me fez
suspirar, como se descobrisse que meu dia havia chegado.
Eu dei corda. Eu, que me achava feia perto das caboclas da Tapera, não
entendia muito bem o que aquele homem tinha visto em mim. Seguia para o
rio para lavar as roupas de casa com Zazau. Prestava mais atenção no
horizonte, em quem chegava e quem partia, do que nas nódoas de roupa a
serem alvejadas. Mais importava a minha salvação. Quem sabe não seria ele
a me levar da Tapera, a me levar para a cidade, para viver numa casa
decente onde pudesse ver os carros da minha janela, onde pudesse andar de
ônibus e frequentar os mercados que diziam existir? Só assim para escapar
da sina de mariscar, de viver da maré, de roçar e ver homem partir nos
saveiros atrás de mulher da vida para nunca mais voltar.
E vez ou outra ele se achegava pelas beiradas do rio, diante da porta de
nossa casa, pelos caminhos da Tapera. Olhando de través, sempre, enquanto
eu esperava que se dirigisse a mim, atravessando conversa com os que
lambiam suas botas e infernizavam nossas vidas com a cobrança do
imposto. “Vá ver ele nem está olhando para a gente, Luzia, isso é coisa da
cabeça da mãe, que está a cada dia mais aluada”, Zazau me alertava. Mas eu
sentia meu corpo mudar, na mesma medida em que queria encontrar a paz
que não tinha. Buscava meios de me afastar do povo da Tapera, que criava
suas histórias para me ferir. Deixar a casa com um homem era maneira
digna de uma mulher deixar a Tapera. Nenhuma mulher deixava a casa
sozinha; só saía para o mundo sem homem se estava perdida, se era mulher
do mundo. Minha irmã Mariinha precisou sair com um zé-ninguém. E
mesmo nossa mãe, contrária, não se opôs, porque qualquer coisa valia
quando o destino era se salvar da vidinha ordinária, rasteira, da penúria da
Tapera, da pobreza e da fome que nunca nos dava trégua. Mesmo a mãe não
tendo nenhuma simpatia pelo homem que levou Mariinha, mesmo a mãe
reclamando pelos cantos da casa que não fazia gosto pela união da filha
com o tal sujeito, ela arrumou o farnel, a farinha, as raízes da tarefa de terra
do pai. Pediu a Joaquim, com os últimos tostões de que dispunha, que
comprasse um pacote de bolacha mata-fome para que a filha fizesse a
travessia com alguma dignidade. Minha mãe chorou feito uma criança
quando viu Mariinha partir em pau de arara, a caminho de destino incerto
para viver de morada, em terra que ninguém conhecia, só porque não havia
lugar para os filhos na Tapera. Essa era a sina dos fracos, dos que moravam
em casa humilde, dos que plantavam roça ou trabalhavam apanhando peixe,
dos esquecidos pelo Deus das esperanças. Os fortes eram os comerciantes,
os cobradores, os que diziam não ter medo de trabalho, os abençoados por
dom Tomás e por Bom Jesus.
Mas a maré estava mudando e era possível que tivesse chegado a minha
hora também. O meu destino podia ser diferente do de Mariinha. Aquele
homem não era branco, eu bem via, mas reluzia claro. Era perfumado,
gargalhava, não eram bons modos, tudo bem, “mas qual o rapaz que não
fazia o mesmo?”, minha mãe perguntou. Ele não podia ver um rabo de saia,
as moças da Tapera atravessando a terra com as latas de marisco na cabeça,
ele olhava. Olhava para todas, mas também olhava para mim na ausência
delas. Eu fui amolecendo, comecei a retribuir os bons gestos, o sorriso, o
chapéu caindo sobre os olhos, o capim no canto da boca. Eu ria sem riso,
desviando o olhar, fingindo não me importar. Não fazia mais porque Zazau
andava sempre comigo, era ordem da mãe, uma cuidava da outra para que
nenhum filho de uma égua atrevido desgraçasse as filhas antes do tempo.
As mulheres só podiam se desgraçar no tempo certo, dizia. Se desgraçavam
cuidando de filhos e marido, se desgraçavam com o tempo ferino.
E o tempo passava e aquele homem não se achegava à minha mãe, não
se achegava a meu pai, para dizer qualquer coisa. “Tire isso da sua cabeça”,
Zazau advertia, “não dê ouvidos para essa conversa doida da mãe. Não está
vendo que esse fulano não vai querer nada com a gente morando nos
arrabaldes da Tapera?” Mas o meu corpo não queria saber, o cheiro forte
que deixava meus braços, minhas pernas, o meu rosto oleoso, as feridas que
se abriam, era por isso, eu sabia, era porque tinha chegado a minha hora de
ser bicho também. Como seria bom se ele quisesse me conhecer e que o
desejo da mãe se realizasse.
Haveria de ter um dia em que minha irmã não precisasse me
acompanhar, e que o moço, ainda que vivesse em bebedeira com os sem-
trabalho da Tapera, se chegasse a mim. Então, as coisas poderiam acontecer
mais rápido: um encontro, um pedido de namoro, ou quem sabe até pulava
para o noivado. Dei um jeito de dispensar Zazau, no dia em que ela me
contou da cólica. Um chá de cavalinha e panos quentes sobre a barriga
foram suficientes para que entendesse que eu precisava lavar a roupa
sozinha. “Olha lá, Luzia”, minha irmã me disse, e eu devolvi a preocupação
dizendo que ela sossegasse porque eu ia num pé e voltava noutro. Equilibrei
a trouxa na cabeça, essa seria minha sina por poucos dias, eu tentava me
convencer, e segui pelas veredas para encontrar o rio. Mas o corpo é chama
e se atiça. Pode nos levar pelos caminhos arrevesados, para longe do rio
onde tem água, a água que apaga o fogo.
Foi então que no caminho um menino da aldeia me deu um bilhete e
pediu para eu entregar a um viajante. “É assim que ele se chama”, me disse,
e assim que estava escrito. Poderia ter perguntado por que ele mesmo não
fazia a entrega, mas era a minha chance, talvez a derradeira de ficar frente a
frente com a fera e deixar que ele transformasse seu olhar em promessa. Eu
diria: “É com meu pai e com minha mãe, são eles que decidem”. Mas
devolveria o olhar com confiança, deixaria claro que eu queria. Que quando
ele quisesse eu iria embora para a cidade, porque ele se vestia como os
moços de bons caminhos. Suas roupas não eram puídas, nem sujas, ou pela
metade como as dos homens da Tapera. Se bem que aquele menino que me
deu esse bilhete, de onde saiu?, me perguntei. Era tarde: eu me consumia
feito folha seca, e minha barriga cantava feito madeira quando queima.
Me vi diante de um barraco abandonado. “Arte de homem”, minha mãe
diria, “deve ter inventado essa história de bilhete apenas para criar coragem
de falar contigo.” Deixei me levar com a trouxa na cabeça, era uma trouxa
pequena, metade das peças já que não teria Zazau para ajudar. O barraco
estava sombreado, em silêncio, era uma penumbra, já não tinha janela e o
teto era palha gasta. Cumprimentei, “Tarde”, ele não respondeu. Estendi a
mão, e nem consegui dizer que o moleque na estrada pediu para entregar o
bilhete. Ele me puxou com força pelo mesmo braço que estendi, a trouxa
caiu, caiu macia no chão de terra. Ele cheirou meu pescoço e eu me assustei
e olhei para a porta para ver se vinha alguém. Tentei me desvencilhar:
“Não, moço, eu tenho que lavar a roupa no rio, minha irmã está me
esperando”, menti. Ele chamou baixinho: “Venha, morena, venha, morena”,
e já estava com as calças nas mãos quando me empurrou e eu caí no chão.
Tentei me rastejar como uma cobra para chegar à porta, mas ele veio feroz
como um cão e me cobriu feito os bichos se cobrem. Tudo foi ficando
escuro, o corpo doía, até que eu estava sozinha de novo e não conseguia
saber como tinha ido parar ali.
Baixei o vestido, pus a mão na minha perna e uma linha de qualquer
coisa me deixava. Perguntei, depois de tudo, para onde ele tinha ido, o que
tinha acontecido, era tarde e talvez nunca mais eu soubesse o que havia
ocorrido naquele barraco. E quando cheguei na beira da estrada desabei de
novo, sozinha, era o mormaço, o vento não corria e a trouxa fez um som de
coisa leve encontrando a terra. Meu corpo parecia macio e depois foi
ficando duro, rígido, seco.
Do chão eu olhei para o céu e vi os galhos de um jequitibá miúdo. A luz
era como as rendas que as mulheres teciam, um véu a cobrir meu corpo. E
lá do alto, um pássaro, um pássaro preto de olhos vermelhos olhava para
mim como se me conhecesse: e só por isso soltou um trinado.
6
O dia em que Zazau perguntou se eu estava bem foi o mesmo em que meu
pai deixou a casa. Naquela manhã, minha mãe se contorceu na cama
quando percebeu o vaivém de Mundinho recolhendo os poucos pertences e
perguntou para mim, para Zazau, e sobretudo para ele, o que estava
acontecendo. “Aonde Mundinho vai com essa trouxa?”, quis saber. Ele
vestiu a roupa menos remendada e que parecia ser mais nova e disse que ia
trabalhar na cidade. Iria viajar no saveiro de seu Valter. Penteou o cabelo
crespo, bateu no rosto depois de se barbear com a velha navalha amolada no
couro e se mirou num pedaço de espelho. Minha mãe quis saber que
história era aquela de viajar para a cidade, de ir trabalhar por lá. “Você
queria voltar a viver nesta aldeia onde nasceu e se criou, nunca falou de ir
morar na cidade. Como vamos ficar?”, perguntou, e os olhos pareciam
adormecidos, depois inquietos e, no momento seguinte, paralisados. “Aqui,
me esperando”, meu pai disse. Desviei meus olhos dos de Zazau, que,
observando meu corpo, começava a entender o delicado estado em que me
encontrava.
Meu pai chegou à porta sem olhar para trás. Então minha mãe se lançou
à sua frente querendo saber sobre a decisão de viver longe. “É a vadia, não
é?”, perguntou. Ele quis saber de que mulher ela falava. “A rapariga que
anda para cima e para baixo atrás dos homens casados, as vizinhas estão
dizendo.” “Cambada de mulher que não tem o que fazer e fica por aí
falando da vida dos outros”, ele berrou. Minha mãe se agarrou à manga da
camisa de meu pai que eu tinha passado no dia anterior. Ela estava tomada
pela raiva e por um momento parecia reagir à melancolia. Sua agonia era
pelo apego ao marido, já sentia a aflição de viver sem ele, de perder, talvez,
seu homem para outra mulher.
Anos vivendo sob o mesmo teto e dividindo a vida, a labuta, os filhos.
“Dividindo” não era bem a palavra, ela que vivia todas as coisas. Meu pai
passava os olhos e se sentia satisfeito apenas de ver as coisas em seu devido
lugar. Da porta para fora o mundo era seu e as coisas de que precisávamos
também eram sua obrigação. Desde cedo carregou os filhos para o trabalho,
era sua maneira de ensinar a se virarem, se protegerem, crescerem no
mundo para sobreviver. Da porta para dentro era minha mãe a provedora.
Transformava o alimento em comida. Agradava, enchia a barriga dos filhos.
Ela nos ensinou a manter a casa limpa. “Casa suja é chiqueiro e nós não
somos porcos”, repetia. Era autoridade a ser considerada. Trabalhava feito
um animal e não dispunha dos momentos de convivência com o povo da
Tapera, como meu pai. Saía de casa apenas para lavar a trouxa de roupa no
rio ou para mariscar na beira do mangue ou ainda para ir à igreja, domingos
e dias santos, para servir ao Bom Jesus, sempre acompanhada da renca de
filhos.
“Sai de mim, Alzira, deixa de maluquice, mulher.” A mão de meu pai
empurrou minha mãe para o canto da parede, e ela, fraca, cedeu. Ela gritou,
gritou como se fosse a última coisa que seu fiozinho de força lhe fosse
permitir. Gritou porque as mulheres em algum momento da vida, as
mulheres da Tapera, passaram por destino parecido. Zazau tentou ajudar
minha mãe a se recompor. Ela recuperou o equilíbrio, mas saiu
desembestada pela porta atrás de meu pai, caminhando em direção ao
saveiro. Gritava mais alto e já não era possível esconder que nossa família
tinha sido atravessada pela mulher perdida. Enquanto ele se afastava, minha
mãe parou, sem fôlego. Segurou os joelhos com as duas mãos. Zazau a
alcançou enquanto mulheres e crianças da vizinhança cercavam a paisagem
para abelhudar a desavença.
Não tive coragem de seguir Zazau para tentar proteger minha mãe da
vergonha que se abatia sobre a gente. Da porta, observei a cena com
apreensão, mas também com a certeza de que já tinha visto outras mulheres
gritarem por seus homens na Tapera. Meu corpo tremeu feito vara verde, o
coração prestes a sair pela boca levando tudo e mais o pouco que tinha
comido ao me levantar. Naquele instante foram passando coisas medonhas
na minha cabeça. Me preocupava como ficaríamos sem o pai por perto e se
daríamos conta das obrigações. Se não cultivássemos a tarefa de terra, os
padres e os cobradores de impostos iriam destinar o que era nosso a outra
família. Então só nos restariam a casa e o mangue e as frutas doces da
quinta dos padres, quando nos permitissem colher.
Já sentia mágoa do meu pai por tanta coisa, e assim vi crescer ainda
mais o mal que me assombrava, agora sem fim. Naquele instante passei a
sentir raiva pela indiferença aos gritos de minha mãe; por ele permitir a
desordem sob os olhos da vizinhança. Por meus olhos estarem voltados para
minha mãe, não vi quando ele subiu no saveiro, nem quando a embarcação
correu o rio com os ventos enchendo suas velas. Queria apenas que Zazau a
trouxesse para casa, porque meus pés eram incapazes de sair do lugar.
Os dias se seguiram piores, porque à medida que minha mãe definhava
na cama sem querer falar, comer ou tomar banho, minha irmã parecia se
cansar das tarefas. Além de vigiar nossa mãe, Zazau implorava para eu
dizer o que acontecia comigo. “Luzia, sua regra desceu?”, minha irmã
sussurrou, com receio de que algum bisbilhoteiro ou mesmo Deus nos
ouvisse. Respondi. “E quem foi, foi aquele homem que desapareceu?”,
perguntou. Baixei os olhos. “E o que vamos fazer quando a mãe descobrir,
minha Nossa Senhora?”, Zazau continuou a perguntar, sussurrando. A
pergunta não era para mim, mas ficou repisando a minha cabeça até me tirar
o sono.
No domingo, minha mãe não se levantou para ir à missa e por isso eu
pedi para ficar em casa. Zazau se ofereceu para ficar em meu lugar, mas
preferi não estar a sós com o povo da Tapera. Não poderia arriscar um
acerto de contas. Foi quando ela me disse: “Eu fico com você”, mas eu a
convenci de que alguém precisava prestar contas a Deus da condição da
nossa mãe e suplicar para que nosso pai voltasse, do contrário ela não daria
conta de tanto desgosto.
Um mingau de tapioca era a medida do doce e da quentura para tentar
reanimar minha mãe. Com uma colher aproximei a papa da boca
entreaberta, os olhos ainda fechados, mas para minha surpresa ela despertou
e não resistiu a comer. Como falar com minha mãe sobre as coisas da vida,
eu ensaiava dizer, mas não tinha coragem. A vida dos pais era imperfeita, e
filho nenhum tinha a medida certa das desavenças. Isso estava além do meu
entendimento. Por isso tentei contornar, dizendo que ele voltaria, que logo
se cansaria da cidade. “O pai não foi feito para cidade, é homem de roça.
Nem pescar o pai pesca”, falei sem encarar seus olhos. “Não é de viver
errante pelo mundo. O pai tem os pés no chão. Os pés na terra.”
Minha mãe me olhou e perguntou se eu achava de verdade que ele
voltaria. “Sim”, respondi, “eu não dou um mês para ele voltar. A senhora
precisa estar bem, minha mãe, para quando ele voltar, ele vai se sentir
aliviado de te ver disposta.” Me levantei para deixar o prato sobre uma
cadeira e quando voltei ela estava sentada na cama. “Que carcunda é essa,
Luzia, aí, nas suas costas?”, ela me perguntou. Estremeci de medo do que
ela poderia estar vendo. “Eu sempre tive isso”, disfarcei. “Deve ser da
idade.” “Que idade”, me perguntou, “você é muito moça.” “Pois eu me
sinto velha, minha mãe. Nasceu um fio de cabelo branco esses dias, logo
vou ter cabelo grisalho, como foi com a senhora.”
Mas tive medo e me afastei para o quintal. Retirei a tampa do tonel de
água e abaixei a roupa que me cobria o corpo. Virei de um lado a outro,
tentando ver o que minha mãe e Zazau tinham notado. Com minhas mãos
fui me enlaçando, como agarramos as coisas de que precisamos para
sobreviver, e então notei meus dedos encontrando e percorrendo a saliência
rija, uma marca de tudo o que eu ainda viveria.
9
Foi Joaquim quem deu o dinheiro para pagarmos o imposto da Igreja, para
nosso alívio e o de minha mãe, a cada dia mais abatida. Restava cuidarmos
da tarefa de terra para que não fosse ocupada pelo trabalho de outra família.
Além da roça, o imposto dizia respeito às casas da Tapera onde vivíamos,
porque tudo pertencia a Deus, e se era de Deus, era da Igreja. Tinha sido
assim desde que desembarcaram os jesuítas, contavam os mais velhos.
Eu me sentia disposta apesar do calor e da vontade crescente de beber
água e de urinar. Tomei as rédeas das tarefas de casa, as que Zazau também
fazia, para que ela e Joaquim, quando aparecia, cuidassem dos plantios de
milho e mandioca. Os camboeiros chegaram e estrondos luminosos lavaram
os telhados e as ruas. A água caía farta, salpicando de lama as paredes das
casas. Se passava um carro pesado era preciso fechar as janelas porque o
barro parava dentro das casas, sobre a cama, paredes e móveis. As chuvas
chegaram encharcando os vales e enchendo o rio, cobrindo os mangues e as
margens. Eram duas as coisas mais certas da vida da Tapera: a cobrança do
imposto e a chegada dos camboeiros. Depois da primeira chuvarada, o povo
corria para as roças e cuidava do cultivo da época.
Como os cobradores já tinham passado naquele ano, então seria difícil
alguém bater à nossa porta. Eu permanecia ao lado de minha mãe entre
suspiros, cochilos e perguntas: “Onde está Zazau? Joaquim trouxe notícias
de seu pai? Quem está cuidando da tarefa de terra? Você não está saindo,
Luzia?”. Eu me resguardava para não desapontar minha mãe e envergonhar
nossa casa. Bastava o que tinha acontecido, suportávamos a hostilidade do
povo da Tapera desde outros tempos.
Se juntava à indisposição da aldeia comigo a rebeldia de meu pai,
sempre indagando por que ele tinha que pagar o imposto: “A terra estava
aqui desde antes desses padres novos chegarem” — dizia, iniciando o
sermão. A igreja passou muito tempo abandonada. As terras das roças
pertenciam à viúva e beata Isabel, senhora de passar o dia de vela acesa e
rosário na mão. Vivia de luto fechado e chegava à missa sempre de preto e
véu cobrindo o rosto. “Minha avó Didita, a que me criou”, meu pai
continuava a contar, “me levava ainda menino para a igreja depois de
restaurada. Essa igreja é antiga, dos tempos das sesmarias, mas foi
queimada, valha-me Deus, não sei nem porque estou falando disso.
Ninguém quer mais saber dessa desgraça. Minha avó disse que minha mãe”,
meu pai continuava, “deveria ter uns oito para nove anos quando chegaram
os primeiros padres depois da restauração. Monge, eles chamam, mas o
povo não se acostumou e chama de padre até hoje. Eu mesmo não alembro
de nada, nem está escrito, mas os antigos sabem de tudo. Quando eu nasci,
a igreja já era essa igreja e passou quase cem anos fechada. Mas foi dona
Isabel, dona da terra, que pagou a restauração. Mandou trazer engenheiro
do Rio de Janeiro e as imagens dos santos de outros lugares. Promessa feita
a santo Antônio, padroeiro da Tapera, que lhe curou de uma febre sem fim e
fez do marido político respeitado. Essa foi a graça, e a promessa era doar
aos padres. Hoje eles cobram o imposto, porque de verdade as terras da
Igreja, somente estas, sempre foram deles. Repetem quando mandam fazer
a cobrança que as terras sempre pertenceram à Igreja. Como nós não temos
o documento, mesmo nossa gente estando aqui há duzentos, trezentos,
quinhentos anos, ficamos de mãos atadas.”
Todos os anos escutávamos a mesma história e não era diferente de
recordar, mesmo na ausência de meu pai. Ele não deveria estar preocupado
em saber como enfrentaríamos os cobradores. Já tinha cantado o caminho
das pedras, nós que recordássemos da cantiga.
Joaquim e Zazau retornaram da tarefa de terra depois do meio-dia.
Minha irmã tinha as mãos estropiadas. “Não quero essa vida, não, Luzia”,
dizia enquanto esfregava as mãos na bacia. “Quero ter dinheiro para
comprar tudo. Não quero plantar milho nem aipim nem feijão, nem ficar
debaixo do sol do meio-dia. O primeiro homem de fora que passar pela
Tapera, e me olhar diferente, eu arrumo minha trouxa e vou embora, como
fez Mariinha. Não saio de casa para viver com homem da Tapera, não. Tudo
pé-rapado. Pena que você não teve sorte, o seu foi embora e ainda te deixou
uma encomenda.”
Senti meu rosto se afoguear com a ofensa. Ah, minha irmã, boa alma,
mas às vezes podia ser traiçoeira. Agora ela conhecia mais um infortúnio
para me azucrinar. “Para de dizer isso, Zazau”, pedi, me firmando em seus
olhos enquanto ela esfregava as mãos na bacia. “Se você jogar na minha
cara mais uma vez eu vou no seu lugar cuidar da roça. Também não gosto
da Tapera, quero ir embora, mas não vou te culpar.” “O que é que vamos
fazer, Luzia, você já pensou, quando a criança nascer?”, ela me perguntou.
“O que vamos dizer ao pai quando ele voltar?”
Com ele me resolveria depois.
Eu me fazia de forte diante de Zazau, mas no fundo de mim, no fundo
do meu coração, eu não pensava em outra coisa que não fosse a minha
desonra. Dormia o sono dos passarinhos, sem sossego, e pelejava com meus
pensamentos tentando enganar a insônia. Era Deus e Nossa Senhora de um
lado, a memória da minha desonra e a certeza da má sorte de outro. Me
revirava na esteira de palha, no colchão velho ou na rede de dormir,
dependendo da minha disposição para adormecer. Passava as manhãs
sonolenta, indisposta, os olhos como se estivessem cobertos de areia fina.
Acreditava ser ora o calor, ora meu embaraço crescendo a olhos vistos.
E veio a dor de dente. “Mulher prenha, os dentes ficam sensíveis”,
escutei minha mãe dizer. Passei noites em claro e meu rosto começou a
inchar. Nunca conseguia saber se era do lado esquerdo ou direito. Zazau se
preocupou. Disse que ia saber na igreja quando o médico voltaria à Tapera.
“Faz mais de três anos que eles passaram pela última vez, Zazau, por que
passariam agora de novo?”, perguntei. “Não custa saber”, e lá se foi em
busca de notícia. Quando voltou, disse: “Dentista não tem, mas me deram
esse remédio aqui”, me entregou um pequeno frasco com um líquido claro.
“Embebe em um pouco de algodão, Luzia, e põe em cima.” Aliviou a dor
por um tempo, mas depois voltou ainda mais forte. Se fosse Zazau estaria
gemendo, mas como era eu, Luzia, orgulhosa, não dava meu braço a torcer.
Minha mãe, Zazau e até o Joaquim, quando estava em casa, dormiam
durante a noite, enquanto eu zanzava de um lado a outro para aliviar a dor.
O sangue quente da minha agitação fazia a dor diminuir. Mas era só esfriar
o corpo e voltava tudo outra vez. Continuei andando pela casa, a barriga
mexeu ainda mais, e subia pela garganta uma vontade estranha de gritar,
como se pudesse expulsar a dor. No fim das contas tive a certeza de que iria
enlouquecer.
“No tempo de minha avó”, minha mãe disse tentando acalmar minha
aflição, “não havia dentista e o povo se resolvia sozinho. Minha avó era
uma mulher chegada às coisas do espírito, essas coisas que o padre diz que
Deus abomina. ‘Onde já se viu servir a dois senhores?’, perguntava nas
missas, ‘tudo coisa de gente índia e preta.’ Mas ela falava de uma árvore, o
Loco, e do leite que se tira da raiz. Uma gotinha que embebe o algodão ou
um pedaço de tecido e tiro e queda: amolece o dente até cair por si. Não há
dor que perdure para sempre.”
“Como achar a tal árvore, será que ainda existe?”, perguntei à minha
mãe quase gritando porque minha vontade era agarrar em seu braço e fazê-
la caminhar comigo até encontrar. Falei tão alto que quase acordei minha
irmã entre a dor e a lágrima que insistia em cair de meus olhos, desafiando
meu limite. “Não gosto de mexer com essas coisas, Luzia, Deus não gosta
porque tem parte com a religião de gente feiticeira, não mexemos mais com
magia na Tapera. Mas se é necessidade, então vamos andar para o lado da
mata para ver se a gente encontra o Loco. Vamos antes de o sol se levantar,
assim ninguém nos vê e nossos nomes não param na boca do povo por
causa das nossas doenças.”
11
Quanto mais se aproximava a hora de parir, mais minha cabeça zunia. Tinha
muita gente falando dentro de mim, o que nunca era boa coisa. Se a Tapera
descobrisse esse falatório em minha cabeça, me acusaria de feiticeira. Por
isso, eu subia em pé de árvore e saltava para o chão. Subia num galho mais
alto e pulava, tomada pela valentia das feras. No chão, voltava a me sacudir
sem parar, pulava forte, para expulsar o que crescia em mim. À noite, eu
entrava no rio escondida em água mais afastada das casas, onde quase não
se via pescador lançando malha para apanhar camarão de madrugada. Me
movimentava com violência. Espantava os peixes. Batia forte em meu
corpo. Meu interior ecoava como um tambor de pele de cabra. Não me
preocupava em ser vista. Molhada, voltava para casa sob o sereno pensando
que poderia ter pneumonia, tuberculose, alguma doença nos pulmões. Que
iria morrer tísica. Tossir até expulsar tudo o que vivia dentro de mim. Era
certo que estava ficando louca de tanto falarem que eu era louca, de tanto
falarem que eu tinha parte com o Mal. Sentada, esperava um tempo para pôr
a mão por baixo do vestido, na roupa íntima, e ver se tinha algum sinal,
alguma mancha escura. O corpo doía e a barriga enrijecia.
A boa hora veio nada boa para mim. Chegou junto ao desespero. Zazau
percebeu que eu não estava bem das ideias. Temia por mim. Além de cuidar
de minha mãe, tinha que cuidar da irmã aluada. O resto de sua paciência foi
embora nos últimos dias. Me recusava a comer, não olhava para seu rosto.
Quando ela percebia que eu iria trepar mais uma vez na árvore, apertava
meu braço com força e dizia: “Pare com isso, Luzia, vai provocar uma
desgraça. Já não basta tudo o que nos aconteceu, você quer que toquem
fogo na casa, na gente?”, perguntava. Joaquim passava em casa de tempos
em tempos, mas era como se lá não estivesse. Nem sequer parecia saber do
meu estado, meu irmão, como todo homem, não desconfiava. Dizia estar
próximo a ficar de vez na capital. Ficaram de lhe conseguir trabalho na
construção de um edifício, onde ele iria morar e dormir. A cabeça sempre
na lua ou na capital.
Foi assim que o silêncio se pôs entre nós. Era como alguém cuidando de
todos e os segredos continuavam vivos. Só teriam um destino nos dias de
confissão na igreja, quando deixassem nossas almas para expiarmos nossos
pecados.
Naquele dia, no dia derradeiro antes de o menino nascer, eu vi as
mulheres passarem com os cestos para colherem o que encontrassem no
pomar do mosteiro. As mulheres, humilhadas por seus homens
desaparecidos, e só por isso eram elas a prover a casa com a bondade dos
padres. Elas não se dobravam por inteiro, mostravam suas cascas
orgulhosas, como se não estivessem sofrendo pela falta de comida e de fé.
Eu não queria acabar como elas e as olhava com desprezo e mágoa. Elas
têm seus homens, podem colocar o nome dos pais nos registros das
crianças, mas isso não faz suas vidas melhores. Me desonraram e nem me
permiti ter raiva porque achava ser assim mesmo, todos os homens faziam a
mesma coisa. Que o moço matreiro, o nome eu nunca mais quis recordar,
voltaria para fazer o mesmo outras vezes. Ele iria me derrubar no chão e
satisfazer as vontades. Depois teríamos uma casa e uma cama. Mas o tempo
foi me contando, o tempo fala, sim, se pronuncia através dos dias e das
noites, das paredes descascadas, do cabelo crescido, dos dentes que deixam
nossa boca, o tempo fala de muitas maneiras, pela saudade e pelo abandono,
o tempo me disse estar errada. E eu teria uma criança e nem mesmo minha
mãe, minha boa mãe, poderia me ajudar dizendo o que fazer, por estar
definhando sem juízo sobre a cama. E eu temia acabar do mesmo jeito.
À noite, Zazau dormiu de exaustão. Eu, indiferente ao cansaço de minha
irmã, não conseguia pensar em mais nada senão em como evitar a minha
desgraça. Ela zelou por mim temendo minha inconstância, mas o cansaço
foi maior e a tomou por completo. As dores nas pernas, nos quartos e nas
costas haviam começado no fim da tarde. Eu andava de um lado a outro,
como nos dias em que sofri com dor de dente. “O movimento esquenta o
sangue”, minha mãe dizia, e enganava a dor porque corpo de sangue quente
resiste mais. Eu não poderia dividir aquele momento com Zazau. Só
atrapalharia o que eu tinha decidido fazer.
Eu deixaria a criança na mata depois do nascimento. Que a natureza se
encarregasse do resto.
A dor começou muito cedo, eu mordi as palmas das mãos para abafar a
vontade de gritar. A agonia do corpo subia à cabeça e eu chamava meu
desassossego de loucura. Quando minha irmã e minha mãe dormiram, eu
arriei meu corpo no chão. Seria ali ou no quintal que eu iria parir. No
quintal era melhor, longe dos ouvidos de Zazau e de minha mãe. Desfiz a
trança com as mãos agitadas, com violência, a ferocidade era uma maneira
de enfrentar tudo. Os tufos de cabelo ficaram em minhas mãos, caíram pelo
chão. Eu trançava meu cabelo desde que fora crismada. Cabelo cheio,
grosso, ensebado de suor, e do jeito que o desamarrei ele ficou armado, a
copa de uma árvore. De cabeça para baixo eram raízes encontrando a terra.
“Cabelo ruim como o meu”, minha mãe repetia. “Cabelo bom é o de sua
irmã Mariinha, mas não lhe serviu de nada, ela se enfeitiçou por um zé-
ninguém. O cabelo de Zazau engana, é meio como o seu, meio como o de
Mariinha”, minha mãe assegurava. Para ajudar a domar o cabelo e para que
não nos acusassem de desleixo, ela me ensinou a trançar. Três ramas de fios
de cabelo, cruza um por dentro do outro. Um grampo na ponta impedia que
se soltasse. Mas agora eu não precisava ser domada. Carecia soltar os
bichos que moravam em mim.
A dor cresceu, minha visão ficou fraca, via gente de outro mundo, via
bicho entrando e saindo de casa, mesmo com a porta trancada, ainda que
houvesse silêncio. A algazarra morava na minha cabeça, enquanto meu
corpo suava feito uma cachoeira. Pobre da minha mãe; doente de
melancolia por causa do pai, mas não só por causa dele. Ela se sentiu
muitas vezes como eu me sentia agora, mãe não apenas de uma criança,
mas como se tudo vivo no mundo estivesse nascendo junto. Árvores, bichos
bons e ruins, o rio, a terra. Todo o sofrimento deve ter deixado a cabeça de
minha mãe fraca. Todo o desespero e depois o que vai comer e depois tem
mal de sete dias e depois tem febre porque o dente nasce e depois cresce e
cai na estrada da vida como todos os outros. E não retornam. Ah, minha
mãe, pena seu juízo estar fraco para me dizer o que fazer.
A lua me convidou a deixar a casa. Um farol me chamando à rua, luz se
esgueirando pelas frestas das telhas e da única janela. Quase não conseguia
me erguer do chão. A camisola empapada de suor e grudada ao meu corpo.
Pensei em seguir para o quintal e depois deixar na mata o que ia nascer. Se
eu chamasse minha irmã para me amparar, ela tentaria me impedir. Ela pode
mais do que eu. É mais forte do que eu. Ela cuida de todos e sua vontade
sempre vai prevalecer. De modo que só me restava sair sem alvoroço e parir
em qualquer lugar longe de casa.
Levantei a barra de madeira que reforçava a fechadura da porta. “Nunca
se sabe”, meu pai disse antes de prender a barra. “O mundo mudou bastante
e a bandidagem está por toda parte. Nos tempos de seus avós, o povo
dormia de porta aberta”, ele dizia. Não pude deixar de pensar nele, e de
pensar também como Deus era bom. Levou meu pai para fora de casa.
Talvez ele tivesse me mandado embora depois de uma surra ou me matado
de tanto bater. Uma filha desonrada merece morrer, era o que os homens
diziam na Tapera. Por isso as mulheres enchiam a mata de anjinhos. Ou
então meu pai caçaria o moço traiçoeiro, o que trouxe uma nesga de
esperança à minha mãe, e o obrigaria a reparar o malfeito. Antes meu pai
longe, com certeza teria sido pior se estivesse por perto.
Enquanto meus pés se arrastavam procurando o alívio que meu corpo
precisava, os animais deixavam a trilha por onde eu caminhava. Entravam
nas moitas, voavam pela noite e adentravam os rios sorrateiros. Tudo iria
melhorar quando o Mal deixasse meu corpo. A cabeleira se tornou um
fogaréu e verteu chamas pelo caminho gota a gota. Minhas mãos,
embrutecidas, ajudariam no que precisava ser feito.
A correnteza tentou me levar em direção à baía. Finquei os pés na areia
para me segurar. O Paraguaçu era o caminho de toda uma vida, e do povo
que andou por essas terras antes de nós, e tornaria mais leve e mais pesado
o meu fardo. Mais leve por não precisar carregar um dos muitos pesos que
as mulheres carregavam pelo resto de suas vidas. Mais pesado por, mais
cedo ou mais tarde, ter que acertar as contas com Deus. E minha boca se
abriu como se fosse engolir o céu inteiro sobre minha cabeça, sem que dela
saísse uma palavra. Senti um corpo deixar meu corpo, um bicho que nasceu
e afundou.
“Luzia! Luzia!”
Alguém me chamava. Alguém me fazia despertar daquele mal-estar. A
valentia de passar por tudo sozinha, como um animal, me deixou sozinha
outra vez. Voltei meu rosto para a terra e vi Zazau entrando no rio. Fui
tomando consciência de estar só, desvalida no meio das águas, e de que em
breve seria vista pelo povo da Tapera. Nesse despertar eu senti que o
menino seguiria a correnteza em direção ao mar quando o umbigo que
ainda me ligava a ele deixasse meu ventre. O filho rejeitado ainda estava
preso a mim por um cordão de carne. Ao ver o desespero de minha irmã, eu
segurei as pontas das minhas vestes com as duas mãos e coei o menino que
nasceu debaixo d’água. Coei como um pescador levanta a malha de apanhar
peixe na hora certa.
Minha irmã segurava meu braço com força, parecia ter medo de se
afogar. “Vamos sair daqui”, e me recordo de escutar seu medo. “Vamos sair
daqui, Luzia, antes que os vizinhos nos vejam.” Eu, minha irmã, o menino
coado, banhado de lua, os restos de parto presos ao pequeno corpo, e minha
vida, inundada de rio, nunca mais seria a mesma.
13
Minha mãe despertou e olhou para a rede que Zazau balançava no único
cômodo de dormir de nossa casa. “Balançando a rede sozinha, minha filha,
está variando?” Zazau permaneceu quieta, sem nada dizer. Eu continuava
deitada na esteira, sem dormir com a agitação da noite, sem conseguir
reagir a nada, alheia a tudo. Minha mãe se recostou na cabeceira da cama e
com muito esforço tentou se levantar, sem conseguir. Continuou tentando
depois de uma pausa. Se ergueu assim mesmo, fraca a olhos vistos, se
esgueirando pela parede até chegar à rede. Ela sabia o que tinha acontecido.
Abriu a rede e viu o menino dormindo, suspirando, e exclamou para Zazau:
“Ele é clarinho, ela tem a barriga limpa!”. Era o que escutávamos quando
nascia uma criança mais clara na Tapera. Minha irmã permaneceu em
silêncio. E minha mãe, no seu estado de fraqueza, disparou perguntas e
mais perguntas a Zazau, que parecia não ter vontade alguma de responder:
se cuidou do umbigo, se a criança já tinha mamado, se tinha pedido a dona
Nita, a parteira de unhas sujas, o ferrado para me aliviar dos gases. “Não
precisa dizer que o filho é de Luzia”, falava, olhando para a esteira onde eu
estava, “diga que é o meu derradeiro. Não devemos dar satisfação à gente
da Tapera. Olha para isso, Zazau”, ela disse com os olhos marejados, ao
mirar mais uma vez a rede. “Seu pai não vai se zangar quando voltar para
casa. O coração há de amolecer quando ele vir o menino.”
Mas se pôr de pé de qualquer maneira para espiar o neto, o neto que
povoava seus sonhos de redenção, depois de passar tanto tempo deitada
sofrendo de melancolia, cobrou seu preço. Logo minha mãe estava de novo
apática, como em todos os dias que antecederam àquela chegada. Fui me
levantando aos poucos, mas não me aproximava da rede. Minha irmã não
me deixava a sós com a criança, parecia ter medo do meu juízo, duvidava se
estaria perfeito, depois de parir dentro do rio e planejar deixar a criança por
lá; depois de pular da árvore e zanzar pela casa; depois de tomar banho de
rio à noite sem medo de adoecer. Ela preparava o mingau no velho papeiro
de esmalte que serviu boa parte dos nossos irmãos. Não me perguntou se eu
tinha leite nem se gostaria de dar de mamar. Estava decidida a me manter
afastada até ter a certeza de que nada ruim pudesse acontecer a partir de
minhas mãos.
E logo, sem que soubéssemos como, começou a correr notícia na Tapera
de que tinha nascido criança em nossa casa. Uns diziam que era de Zazau,
outros que o recém-nascido era meu. Outras notícias davam conta de que
Alzira, minha mãe, havia parido mais um filho. Que a doença que a deixou
acamada era doença de prenha. Zazau estava exausta e só por isso não
desmentia, apenas agradecia quando alguém aparecia na janela mais pela
curiosidade, pelo mexerico, do que pela cortesia que se prestava quando se
tinha notícia de nascimento. Até que um dia minha mãe, ouvindo o rumor
de gente arrodeando a casa, perguntou:
“Quem é, Isaura?”
“O povo da Tapera, dona Mira querendo saber se a senhora ganhou
menino”, minha irmã respondeu.
“Pois deixe que pensem”, disse minha mãe, “ninguém precisa saber o
que se passou nesta casa.”
Dias e dias, eu já estava de pé como estive desde sempre. Zazau
continuava a embalar o menino na rede, a alimentar, a mostrar ele para
minha mãe na esperança de que sua presença a curasse da melancolia. Não
falávamos sobre mim, sobre minhas obrigações, nem sobre o futuro da
criança. Falávamos do menino como se fosse alguém que estivesse ali há
muito tempo. Como um de nós. Existia entre mim, minha irmã e minha mãe
um trato não dito. Para aliviar o fardo de Zazau, eu me ocupei mais de
minha mãe, de lavar as roupas, de cuidar da roça, coisa que não gostava de
fazer, mas reconhecia a necessidade. Era a batata-doce e o inhame e o aipim
e o peixe que nos alimentavam. Cuidava não como os cobradores queriam,
mas como minhas forças e vontades permitiam. Plantava a manaíba,
retirava o mato, colhia o milho. Joaquim já havia seguido em definitivo
para a cidade e só tínhamos notícias, dele e de meu pai, por seu Valter.
Durante aquele tempo eu não olhei para o menino, não o carreguei nem
embalei, nem troquei fralda, nem queria falar dele. Mas lavava as roupas de
doação da igreja trazidas por Zazau quando já não era segredo que tínhamos
uma criança em casa. Para compensar seu trabalho, eu cuidava das duas, de
minha mãe e de minha irmã, com todo o zelo.
Num fim de tarde de setembro, meu pai adentrou a porta, como se
estivesse retornando da mesma roça abandonada. Estava mais escuro de
permanecer ao sol e com as mesmas roupas surradas. Chegou cabreiro e
desconfiado. Adentrou o quarto e chamou por minha mãe. Aquele rosto de
mulher de pouco mais de quarenta anos, envelhecida pela vida, se iluminou.
Mas já não era o brilho de antes, era como uma flor mirrada se abrindo no
fim da florada. “Quer dizer que você teve menino, Alzira, e nem me disse
que esperava?”, meu pai perguntou num tom que não era nem severo nem
carinhoso. Minha mãe ficou sem entender o que ele dizia por um tempo, a
boca aberta, procurando uma maneira de desfazer a confusão. Entrei pelo
meio: “Fale, minha mãe, que a senhora ficou receosa de atrapalhar a lida do
pai e fazer que voltasse às pressas”. “Ora, mas que bobagem, onde já se viu,
se é meu filho”, disse meu pai. Minha mãe olhou para mim, depois olhou
para Zazau, atordoada com aquele disse me disse, e talvez tenha percebido
ser o menino a salvação a trazer meu pai para casa, se a verdade que
pertencia apenas a nós três não fosse descoberta. “Você queria que eu
fizesse o quê, Mundinho? Do jeito que você deixou essa casa era como se
nunca mais fosse voltar”, foi o que ela disse, num sinal para que nós
continuássemos a prestar nosso falso testemunho. “Tenho meu orgulho,
Mundinho, não podia exigir que você voltasse sem vontade”, minha mãe
falou, olhando para mim e percebendo a confusão chegando em boa hora.
“Joaquim deve ter dito que eu não andava bem de saúde, você voltou para
cuidar de mim?”, perguntou entre lágrimas. Meu pai baixou os olhos,
envergonhado do que tinha feito, mas sem pedir desculpas. “Nunca na
minha cabeça, Alzira, passou que você fosse ter um menino temporão”, ele
disse baixo, “tanto tempo depois de nascida Mariinha.”
Meu pai se acercou da rede onde o menino dormia. Zazau olhava de
longe, a boca ainda aberta, sem acreditar nos rumos que o boato da Tapera
havia tomado. “Olha, e não é que ele parece com minha avó índia, dona
Didita, a mãe de meu pai que me criou”, comentou, olhando para a rede.
“Ela era assim, mais clara, e tinha o cabelo escorrido como o de Mariinha.
Que barriga farta, Alzira, seis filhos e nasce mais outro… nós que já somos
avós!” “É coisa de Deus mesmo”, minha mãe disse, dessa vez indo longe
demais ao colocar o nome santo no meio da mentira.
Quarenta e alguns anos não era tão tarde assim para uma mulher parir
um filho. Tinha muitos casos na Tapera de mãe e filha, sogra e nora, que
ficavam de barriga no mesmo ano. Minha mãe se uniu a meu pai ainda
muito nova, quando ainda tinha os peitos miúdos, ela nos dizia. Contava
não saber o ano com medo de que tivéssemos pressa de casar e parir. Só
minha irmã Mariinha se apressou a sair de casa e ganhar o mundo. Eu e
Zazau ficamos e nos aproximávamos dos vinte anos e ainda esperávamos
marido. E a mãe, se não fosse a melancolia, era bem capaz de estar parindo
mais filho.
Mas a notícia que trouxe meu pai de volta para casa não tinha corrido só
a Tapera. Chegou à igreja, Zazau soube ao recolher doações de roupa para
vestir o menino. Logo os padres cobrariam o batizado, escreveriam o nome
do bendito no livro de batismo. A notícia havia chegado à capital,
alcançado meu pai. Chegou também a Joaquim, meu pai disse, que só não
retornou porque estava trabalhando na construção do edifício e não teria
folga para viajar à Tapera. Meu irmão deveria estar espantado, tamanha
inocência. Como não soube e não desconfiou que a mãe esperava menino,
deveria estar se perguntando.
“E o que você vai fazer agora, Mundinho?” “Não sei, Alzira, lá na
cidade não falta trabalho e mando dinheiro para casa”, respondeu. “Pouco
dinheiro e o trabalho que você abre a boca para dizer que tem é uma ilusão.
Antes você na roça, pelo menos tem o pão, a batata-doce, o inhame e os
temperos. É aquela mulher, não é?”, perguntou com a voz baixa. “A vadia
que você foi atrás?” O semblante de meu pai se modificou, e ele jurou
nunca ter tido outra mulher e que foi para a cidade por nossa causa.
Convivia há tanto tempo com meu pai que sabia, por seu tom de voz e
expressões do rosto, quando não falava a verdade.
Saí do quarto e Zazau carregou o menino para fora. Deixamos os dois,
pai e mãe a sós. Talvez precisassem daquele momento para poder acertar as
diferenças e refazer o que parecia desfeito entre eles. Talvez meu pai
percebesse a fraqueza da mulher e, se ela continuasse definhando na cama,
sendo devorada pelo desânimo, iria embora mais rápido do que
pensávamos. Ele não podia abandonar a mãe de seus filhos, deixar a casa, a
tarefa de terra e a família ao deus-dará. Eu me sentei num toco de árvore na
porta de casa e Zazau se sentou em outro toco na extremidade. Corria a
brisa, não agitava os coqueiros nem as árvores que nos abençoavam com
suas sombras para tornar o calor do vale do Paraguaçu suportável. Olhei
para a criança como acho que talvez não tivesse olhado nenhuma outra vez
desde o nascimento. Era um menino mirrado, magro, mas com os olhos
espertos e movimentos inquietos. Não chorava. Parecia conformado com a
mãe que o rejeitou, mesmo que não tivesse discernimento para
compreender. Ele sente, minha irmã refutaria se pudesse ler meus
pensamentos. Mas eu experimentei de novo alguma coisa no meu peito,
alguma coisa que não sabia dizer o que era. Olhei muitas vezes,
disfarçando, enquanto minha irmã o distraía fazendo sons com a boca para
fazê-lo sorrir, sem que o menino de olhos atentos fosse capaz de
corresponder. Senti paz em meio à revolta ao ver o menino ali ao meu lado,
bem cuidado, e que de alguma maneira sua chegada poderia ajudar a reunir
meu pai e minha mãe de novo. Minha mãe precisava, não soube superar o
afastamento de meu pai, e definhava, sem que tivéssemos mais a esperança
de vê-la despertar da doença, da tristeza sem fim, mais uma vez.
E o tempo me diria: a emoção sem nome era algo forte que eu tornaria a
sentir.
14
Minha mãe morreu no dia de são José, no mesmo dia em que meu pai
plantava na tarefa de terra o milho a ser colhido em junho. Não se queixou
de dor, não ouvimos nenhum lamento nem mesmo desespero. Se foi em
silêncio, um pássaro caindo do ninho quando o coração perde o fôlego.
Minha mãe estava leve e magra e o caixão se tornou grande demais, uma
caixa sem renda e flores que dessem conta de preencher o vazio deixado por
seu corpo mirrado. Parecia uma criança e cheguei a propor à minha irmã,
numa lamúria sem fim, se não seria melhor trocar a urna grande por uma
menor. Pagaríamos prestações menores e ela estaria mais bem acomodada.
Eu mesma fui buscar meu pai no roçado. “Ela não se levantou e está
fria”, disse em meio à terra preparada para receber as sementes de milho.
Ele deixou tudo por lá e nem passou por sua cabeça que poderiam levar as
sementes do plantio, como descobrimos mais tarde que eram capazes de
fazer. Quando chegamos em casa, Zazau estava sentada na cama e chorava
sem conseguir olhar para nossa mãe. As lágrimas vieram como um rio e eu
dei por fé de que não poderia mais contar com minha mãe. Quando minha
irmã Zazau se casasse, quando o pai se fosse para junto da mãe, eu estaria
só. Meus irmãos já tinham caído no mundo e não davam sinal de querer
retornar. Quem vai querer se casar com uma aleijada, não foi o que pensei
naquela exata hora, mas era o que passava por meus pensamentos desde que
a corcova tinha despontado em minhas costas e a aceitei como meu fardo.
O menino se aproximou e segurou os meus joelhos. Ele começou a dar
os primeiros passos havia um mês. Era uma criança atenta e olhava para
nossos rostos; mas, incapaz de perceber algo diferente, continuou a brincar
com o carro de madeira. Eu senti conforto com aquele toque e me
penitenciei por não ser tão generosa como minha mãe tinha sido com os
filhos. Mas agora era tarde e Inês é morta, era o ditado que nos dizia quando
se deparava com algo que não poderia mais desfazer. Sem minha mãe era
mais difícil contornar toda a mentira que compartilhamos de que o menino
era seu filho, que era meu irmão e de Zazau. Aquela história tinha sido
inventada por nós e precisaríamos sustentar o que dissemos até o fim. Não
era só meu pai que havia sido enganado; a Tapera havia sido enganada e os
padres da igreja também. Deixe que Deus nos castigue assim, aos poucos,
pelo que fizemos. O que aconteceu à minha mãe era a prova de Sua ira. Mas
acertar as contas com Deus era menos complicado do que acertar com a
Tapera e com meu pai, que se sentiria traído não só pela mulher, mas pelas
filhas que ainda estavam ao seu lado, vivas. Não haveria como perdoar
tamanha mentira. Minha mãe poderia ser perdoada, afinal as razões dela
eram aceitáveis. Nas suas rezas era assim que deveria se acertar com Deus,
que tudo tinha sido por um motivo importante.
Em meio à sentinela, Zazau foi para o único telefone público da Tapera
tentar se comunicar com os que estavam longe. Joaquim já havia sido
avisado por seu Valter. Chegaria pela madrugada a tempo de se despedir.
Minha irmã não conseguiu falar com Humberto, que tinha partido havia
anos para a Amazônia, onde trabalhava nos seringais. Talvez algum dia lhe
chegassem notícias sobre nossa mãe. Raimundo, que morava para os lados
de São Paulo, lamentou, falou muito em Deus, mas era isto, mais não
poderia fazer. Por último, Zazau conseguiu falar com o telefone da fazenda
onde morava Mariinha, e nossa irmã, aturdida, prometeu viajar sem, no
entanto, conseguir chegar.
Antes de Zazau sair carregando pedaços de papel velhos com os
números, as carpideiras chegaram para velar minha mãe na sala de casa. As
beatas cumpriram a vocação de chorar pelos que se foram. Não recebiam
dinheiro das famílias porque, exceto Mãozinha e Chico da Colmeia, o povo
da Tapera não tinha onde cair morto. Até os caixões eram comprados a
muitas prestações. Elas eram tidas em alta conta pelos padres, e por isso
encorajadas a chorar pelos mortos, sem se importar se foram bons ou maus,
compadres ou desafetos. Se tratava das mesmas fofoqueiras que
apregoavam mentiras no dia a dia da aldeia, que insuflaram a maledicência
na Tapera e fizeram a desgraça desabar sobre nossa casa.
Naquele dia de aflição, ainda pude me perguntar se esse não seria meu
destino também. Talvez, se eu ganhasse alguma função na Tapera que me
libertasse da mácula com que me marcaram, pudesse ser deixada em paz.
Unida às beatas, me restaria apenas rezar e falar mal da vida alheia. Seria
como elas, rezando pelas almas com a boca luminosa e pregando a
discórdia com a alma obscura. Seria perdoada pelo passado e ao mesmo
tempo me penitenciaria por meus pecados. Sem que o corpo tivesse
esfriado, lá estavam elas entre rezas e lágrimas, dizendo que minha mãe
tinha deixado um menino pequeno, que tinha partido para a casa do Pai
ainda nova, e que sina a das filhas, duas moças; qual das duas cuidaria do
irmãozinho?, ou Mundinho se casaria de novo?, cochichavam entre elas,
apostando como velhas viciadas em jogo do bicho. Não havia por que ter
raiva, mágoa, esse era o jeito do povo da Tapera.
Depois da missa de sétimo dia, Zazau me disse que o padre havia lhe
perguntado se ela não poderia lavar a roupa do mosteiro; a antiga lavadeira
já não podia com a erisipela lhe comendo as pernas, como a melancolia
devorou a alma de minha mãe. Zazau disse que ia conversar em casa, afinal
ela cuidava do menino. Era um sinal de importância lavar as toalhas, as
cortinas, as estolas da igreja. Os padres poderiam convidar qualquer mulher
da Tapera, mas, compadecidos de termos perdido nossa mãe, fizeram um
gesto generoso à minha irmã. Ter consciência desse prestígio me fez ter
vontade de saber mais. Foi quando eu perguntei se eles pagavam alguma
coisa. “Pagam, sim, só não perguntei quanto”, ela me disse. “Então se você
não quiser… eu quero”, completei. Cuidaria da casa de Deus e dos homens
santos e assim pagaria minhas penitências, disse a mim mesma. Quiçá
acolhida pelos padres, servindo a Deus como uma boa lavadeira,
conseguisse fazer com que os vizinhos me olhassem com mais respeito e,
por fim, esquecessem do que me acusavam.
Assim, me apresentei a dom Tomás num dia de forte chuva. Com medo
de perder a vaga de trabalho andei e depois corri debaixo de um aguaceiro.
Cheguei molhada à igreja. Como eles custaram a abrir a porta antiga,
pesada, rangendo mais do que a porta de são Pedro, os entendidos diriam!
Mas olhando bem era tudo simples e tomei a bênção nas mãos de dom
Tomás, um estrangeiro vivendo no mosteiro havia muitos anos, incapaz de
falar de forma que eu pudesse compreendê-lo. Ainda bem que não seria ele
a dizer do que precisava; então logo me encaminhou para um padre jovem
de cabelo vermelho. Fui entendendo do que precisavam: as roupas de cama
estariam separadas no dia certo, era tarefa dos padres no começo da manhã
de quinta-feira recolher os lençóis usados e trocá-los por outros limpos e
passados. Na sacristia, na sala do abade e no refeitório, poderia entrar e
efetuar as trocas de toalhas, cortinas, estolas e outras peças. Levaria tudo
para lavar no rio, e depois engomaria em casa. Devolveria lavado, alvejado
e bem passado. Naquele tempo não sabia dizer se o pagamento era bom ou
não, mas era suficiente para nossas despesas.
Havia um empecilho: a quizila de meu pai com a Igreja por causa da
cobrança do imposto. Eu imaginava como contornar sua resistência dizendo
que minha mãe gostaria de me ver zelando pela casa de Deus. Ele pareceu
não se opor, sabia que eu lavava a trouxa da igreja. Eram coisas distintas na
cabeça de meu pai, ele não dizia, mas eu intuía. O dinheiro aliviava as
contas do armazém, ajudava na compra das pequenas coisas que não
produzíamos, e ainda salvava a todos nós do tormento da cobrança do
imposto, embora eu fizesse o pagamento escondido para não contrariar meu
pai.
Lavar roupa deixava minhas costas doloridas. Muito jovem estava eu
encurvada sobre o monte de roupa para esfregar e quarar, carregar de um
lado a outro e depois passar com o velho ferro de carvão. Ao mesmo tempo
fui conquistando meu lugar na Tapera. Já não vivia mais escondida nem
com medo de ser insultada e acusada de praticar magia pelos mais velhos,
pelo menos não a olhos vistos. Agora, eram as crianças a ouvirem as
maledicências em suas casas e as repetirem contra mim. Tocavam minha
corcunda e faziam um pedido, repetindo crenças tolas. Me ofendiam, mas
as ofensas não me provocavam o mesmo pavor das pessoas mais velhas,
que poderiam ser perversas se quisessem. Ser a lavadeira da igreja também
era sinal de algum respeito, e qualquer maldade contra mim teria o repúdio
dos padres.
Ali, no espelho d’água do Paraguaçu, vivi por longo tempo cercada da
brancura dos tecidos. O rio refletia o branco e muitas vezes a luz me cegava
por breves instantes. Eu procurava um lugar bom para limpar as roupas.
Batia os lençóis nas pedras, esfregava o tecido encardido e amarelado entre
os nós dos dedos. Aquele rio, e isso não saía de minha cabeça, era o rio
onde muitas fizeram o mesmo antes de mim. Águas que não lavaram apenas
a roupa da Tapera, dos donos das terras e dos padres. Lavaram nossas
mágoas e renovaram nossos sonhos. Limparam nossos corpos das aflições
que nos consumiam e carregaram segredos que não podiam ser contados.
Foi ali que o menino nasceu e eu, por mais que não soubesse como dizer,
pedia que ele crescesse forte e bem-aventurado. Com meus pés nas águas,
eu já não era apenas uma corcunda, um cabelo crespo e trançado e a pele de
mãos que afinavam de tanto usar barrela para deixar tudo mais branco.
Entre as águas e os sentimentos, meu corpo era a própria correnteza.
15
Quando ele já era um moleque, lia bem e andava com um livro para cima e
para baixo, e cumpria ofício como coroinha na missa para minha graça e
satisfação, e eu achava que tudo caminhava, aos trancos e barrancos, ele me
contou um segredo. Um segredo que eu preferia não saber. Minha reação à
revelação não foi a correta, hoje eu sei; mas foi a única reação possível para
tentar salvar a mim e a ele.
O que ele me contou sobre o padre era grave, meu Deus, e como eu iria
reagir àquela história? Primeiro é que era um menino, e meninos mentem.
Depois é que eu não tinha onde cair morta se perdesse o pagamento do meu
trabalho como lavadeira. Mas não só: o que a gente da Tapera diria sobre
mim? O Menino tinha a boca queimada de mentiras, atacava a santidade da
Igreja, portanto dessa vez o povo da Tapera não iria me perdoar. Iam dizer
que eu havia plantado aquela invenção para destruir a aldeia ou que eu tinha
enfeitiçado a criança para desviar o padre. Esqueça, Menino, esqueça tudo o
que se passa na sua cabeça, você está sonhando, nada disso é verdade.
Ponha uma verdade na sua cachola: há coisas mais importantes na vida.
Conclua seus estudos na escola para conseguir um trabalho e viver sua vida
longe da Tapera.
Eram palavras inquietas tecidas em meus pensamentos e coração, mas
não foi bem assim que chegou aos ouvidos do menino. Chegou com
palavras fortes: “Mentira, demônio, você ouviu isso onde?”, perguntei.
“Está aprendendo essas coisas com aqueles pivetes que sempre aprontam
comigo e com você. Não levante falso testemunho, Deus vai nos fulminar
com um castigo! Você deve estar vendo essa depravação nas revistas
daqueles moleques, não é?” E sentei a mão na cabeça do menino, sentei
mais outra e mais outra vez e ele pediu: “Para, Luzia, para, para”. O
enfrentei com o cipó e ele lutou o arrancando de minhas mãos. Eu estava
furiosa, perdida, como proteger o nosso mundo cheio de defeitos para não
se despedaçar de uma vez? Os meus olhos e os do povo da Tapera não
tinham presenciado aquele relato. Esqueça, Menino, não se deve prestar
atenção em tudo. “Esqueça essa mentira, onde já se viu falar de padre?
Nunca mais torne a repetir o que você me contou.”
Achava que com minha raiva, pancadas, com minhas palavras, eu iria
apagar o que havia escutado. Achei que batendo na cabeça do menino iria
fazê-lo esquecer o que, porventura, se entranhou nos seus pensamentos.
Mas não, o que eu fiz foi o encher de mais revolta, de mais mágoa, e
quando dei por mim ele tinha partido. Encontrei a porta sem a volta do
trinco e sem a barra de madeira escorando. Olhei para a rede e lá não estava
o menino, e abri as janelas para enxergar a escuridão da madrugada. Até
que minhas ideias se iluminaram e eu corri para o meu colchão e pus a mão
no forro. Não, não, meu castigo estava dado; o menino havia levado o
dinheiro e talvez tivesse se ido embora para sempre.
Se passou outro dia e outra noite e quando dei por mim era a alvorada.
Eu me vi sozinha. Meu pai estava emborcado na rede de dormir, o que
sentiria quando lhe contasse que o menino tinha caído no mundo, como
todos os outros? Me engasguei, não consegui controlar a tristeza crescendo
como um bolo de saliva na minha garganta, e os olhos lavaram meu
fracasso em ser mãe. Eu o maltratei desde o dia em que veio ao mundo.
Não, não presto, não valho nada, sou ruim, por isso a Tapera cismou
comigo, por isso o pai do menino não quis mais a mim depois de me
desonrar. Lamentei e depois se seguiu uma sensação de alívio: não vou mais
maltratar o Menino, ele não vai mais esperar por um afago meu, agora ele
cresceu, vai ser do mundo, vai aprender com a vida e ficar mais forte. Na
Tapera, o futuro não reservava nada de bom, então, aonde for viverá melhor.
Os dias se sucederam e o tempo não se importou comigo. Esperava que
se importasse com o Menino e fizesse dele um bom homem, e lhe desse as
coisas que eu não pude dar. Eu retornava à igreja e percorria os corredores e
aposentos do mosteiro para recolher as peças de roupa. Depois as
embrulhava em trouxas e equilibrava uma na cabeça e a outra levava
encangada entre o braço e o corpo. Dom Tomás me perguntou pelo menino,
e eu disse que ele tinha ido para a cidade, cansou da Tapera, foi tentar
trabalho. O abade parecia decepcionado, disse que era sempre assim. “São
uns ingratos”, lamentou por ele não ter esperado o fim do ano para concluir
o ensino. “Depois ele volta, dona Luzia”, me disse, “sempre dá errado. Uma
pessoa da aldeia não tem educação para viver na cidade, leem e escrevem
parcamente, ninguém vai querer um roceiro para trabalhar numa loja ou
supermercado”, riu com desdém. Nem passou por minha cabeça contar o
segredo, contar o que ele me fez escutar, até porque eu o havia impedido de
dizer o nome, não sabia quem era o padre. Eu não iria arriscar a paz que
tanto havia me custado, restando a mim guardar aquela história como um
delírio. Só me restava me esforçar para esquecer.
Mas aquela ausência foi crescendo, crescendo, eu não o vi mais, não tive
notícias dele. Deve ter subido em algum saveiro ou ônibus e partiu para
bem longe. Só Deus sabe para onde. Um mês depois chegou notícia de
Joaquim: o Menino tinha pousado na casa de meu irmão e procurava
trabalho. Tinha prometido se matricular para concluir os estudos no começo
do ano. Meu coração se aquietou e voltei à vida da Tapera, cuidando das
tarefas de casa, recolhendo os copos de cachaça e a sujeira de meu pai, indo
de vez em quando à tarefa de terra para ver se havia cultivo, se tudo estava
em ordem. A lavoura estava minguada, já não havia a fartura de antes. O
vício comprometia o zelo de meu pai.
Por essas coincidências da vida, comecei a sentir outra dor de dente.
Sem médico, eu consegui o mesmo frasco de remédio que Zazau conseguiu
da primeira vez para curar minha dor, enquanto esperava o menino. Como
da outra vez, não deu nem para o gasto e lá estava o dente latejando de
novo. Foi então que decidi voltar à velha árvore, a árvore para onde um dia
minha velha mãe me levou. Armada de facão retornei ao Loco, vivo,
majestoso, como o conheci. Iria me curar da dor que irradiava da boca para
o fundo do meu corpo. Tentei recordar como foi que minha mãe se
aproximou para transformar em remédio o leite da árvore. Dessa vez pulei
etapas e não acendi cigarro para a Caipora, por não saber como fumar. Não
amarrei o ojá no tronco e pensei comigo mesma ser tudo crendice,
importava apenas o leite da raiz.
No meu desespero não havia tempo a perder e mesmo a ave-maria e o
pai-nosso não saíram direito de minha boca porque a dor me comia o juízo
e não conseguia mais pensar. O padre que me deu o remédio me disse:
“Reze, dona Luzia, e amanhã vá à cidade procurar um dentista”. Mas eu
não podia ir à cidade, faltava dinheiro, o Menino tinha levado tudo. Quando
chegasse o tempo do imposto, não haveria como pagar, e apenas essa
lembrança era capaz de consumir meu juízo toda vez que surgia.
Dei uns golpes desconjuntados de facão e quase cortei a raiz inteira.
Golpeei na mesma intensidade da minha dor e, diferentemente da última
vez, era como se a árvore fosse uma inimiga e estivesse sendo violada,
atravessada pela dor. Vi o leite brotar e era tanto que encharcou o pedaço de
chão. Retirei com pressa o algodão do mato e o embebi no líquido e o pus
na boca. O leite escorreu pela boca, dente a dente, tudo adormeceu. Fui
atravessada pela lembrança de minha mãe dizendo: “Não engole, Luzia”.
Obedeci a alguns preceitos, os demais eram superstições dos antigos e eu
era filha de Deus.
Daquela vez eu não repousei em paz, como fiz com minha mãe aos pés
da árvore. Fui-me embora, não agradeci, e o leite continuava a minar da raiz
partida. Cuspi o que escorria de minha boca e quando retirei o algodão
estava tudo dormente. O alívio me alcançou de novo e segui olhando para o
alto e, já que a boca não se mexia, elevei meus pensamentos ao Bom Deus
para agradecer o remédio da mata por ter me curado da dor que me
endoidecia.
Quando a dormência passou, eu ainda caminhava para casa. A boca
voltou a se mexer e a língua tateou à volta encontrando os dentes da frente.
Dois bons caíram de minha boca e encontraram a terra. Parei, arregalei os
olhos, valha-me Deus, e me perguntei o que eu tinha feito. Depois os
dentes, um a um, deixaram minha boca e caíram no chão. Parei diante das
águas do Paraguaçu e me percebi desdentada. Imaginei: o sorriso que não
dei estava guardado para um dia de liberdade. Uma mulher como eu,
marcada pela Tapera, não poderia sorrir sem estar cedendo à tentação do
Mal. Agora não tinha mais os dentes e minha nova condição me faria quase
sempre levar minha mão à boca quando encontrasse alguém.
Tudo para não morrer mais uma vez de vergonha.
17
A má sorte de meu pai trouxe as visitas que tanto esperávamos. Sinais dos
anos, do envelhecer, do sentir que já não há tanto tempo. Não fui ensinada a
falar sobre o que precisava, e por isso jamais me manifestei sobre a vontade
de rever o Menino, Zazau e Joaquim. Queria encontrar mais ainda os irmãos
que viviam distante. O Menino agora era um homem-feito. Eu conseguia
ver os primeiros fios brancos despontarem de sua cabeleira. Estava frente
ao meu pai, o avô que o acolheu como um filho temporão. Bom, existia a
memória de minha mãe contando a história do nascimento há tanto tempo,
mas meu pai nunca esteve convencido do fato de que o Menino era seu
filho. Depois da morte de minha mãe e da viagem de Zazau sem levar a
criança, ele compreendeu que era minha. Um dia, enquanto eu cozinhava e
Moisés brincava distraído no chão, ele se aproximou e gritou que eu era
mentirosa. Levantou a mão para me bater e a deixou suspensa no ar, sem
que me tocasse. Senti seus olhos fixos em mim, esbugalhados, ferido estava
pela mentira. Eu apenas olhava para o chão, sem contestar, e a criança nos
observava com curiosidade, sem compreender de fato o que ocorria.
Entendi que meu pai havia juntado os pontos soltos e se deu conta de que eu
havia caído em desgraça. Mas, diferente do que eu pensava e de todas as
suas promessas de nos castigar por qualquer desonra, meu pai não tocou
mais no assunto e fez descer sobre a certeza o silêncio, sua forma de me
proteger da aldeia e de me estender o perdão.
Zazau conversava num canto da enfermaria com o médico, enquanto eu
segurava a pequena sacola com a roupa suja. Trouxe algumas limpas, mas o
corpo de meu pai estava recoberto por faixas e lençóis encardidos do
hospital, não poderia usar o que eu tinha trazido. As mãos duras e calejadas,
as mãos enrugadas do meu pai, estavam salvas das queimaduras e
encontraram as mãos de Moisés. Conversavam sem mágoa, e o Menino
parecia desconfiado com tanta mudança, cabreiro por ter passado tanto
tempo fora e distante de todos nós. Ele demonstrava atenção e sua mão não
deixou a de meu pai. Eu ainda pude ouvir ele o chamar de filho, e filho era
um jeito mais largo de chamar a todos os descendentes, não só os desta
família, mas os da família dos filhos da Tapera.
Alguém percorreu o corredor apressado, passando por salas e parando
nas portas para ver se encontrava quem procurava. Os passos não me eram
estranhos, conhecia aquele jeito de arrastar os pés ligeiros no chão. Pena
que minha visão já não fosse a mesma, tinha percebido meus olhos fracos
enquanto costurava. Além dos dentes precisarei de óculos, pus na “nota” de
minha mente para o dia em que me restasse algum dinheiro. Quando se
aproximou, reconheci meu irmão Joaquim, mais pesado do que a última
vez, e cumprindo a promessa feita quando avisado sobre o acidente.
Joaquim se aproximou da cama, e me senti mais à vontade para estar por
perto, já que o Menino e meu pai não estavam mais a sós. Os olhos brancos
das cataratas de Mundinho estavam alertas. Olhar em volta e perceber que
uma parte de seus filhos espalhados pela terra estava ali por ele, fraco e
ferido sobre uma cama enferrujada, deve ter mexido com velhos
sentimentos demonstrados à sua maneira. Joaquim ria dos olhos marejados
do pai. Eles tinham uma cumplicidade diferente da dos outros. Era o caçula
dos homens e foi o último a deixar a casa. Haviam compartilhado um tempo
de vida na capital, mesmo que não morassem juntos. Se compreendiam,
entendiam suas necessidades, muito diferentes das minhas e das de minhas
irmãs. Naquele instante um sorriso competiu com os olhos emocionados no
rosto de meu pai. Estávamos atentos aos pedaços de família se juntando.
Relutava em pensar, mas era capaz que o reencontro ficasse entre nós. Não
tínhamos notícias de Raimundo e Humberto. Nem sabíamos mesmo se
Raimundo estava vivo, muito era o tempo sem notícias suas. Humberto
vivia nos seringais e eu não conseguia imaginar como seria um lugar assim,
nem mesmo a distância que se encontrava da Tapera. Sabia apenas que
estava a muitas léguas e talvez não se chegasse por lá nem com os ônibus
que cortavam a estrada.
Faltava também minha irmã Mariinha. Tinha prometido vir no recado
que recebi. Mas já tinha prometido outras vezes sem cumprir, e minha
esperança estava abalada. A desculpa era a mesma e não a contestávamos.
Sabíamos o que era não ter meios para se deslocar por esse mundão de
terra. Minha irmã mal tinha casa, vivia de galho em galho com o marido,
procurando trabalho e abrigo. Depois de muito andar foi que pousou num
canto e dali talvez não precisasse sair. Não iria esperar por sua chegada,
não, havia feito isso outras vezes e sofri quando não aconteceu.
Um rio de histórias correu por minha vida e a vida da Tapera e eu já não
me martirizava pelo calvário de viver naquela terra. Não sei o que se
passava no coração de Mariinha, o tanto de mágoa, revolta e vergonha que a
entranhavam, que lhe devoravam o juízo. Às vezes me perguntava, em
silêncio, se era por causa somente do dinheiro que não aparecia. Dinheiro
faltava a todos nós. Passava por minha cabeça se a vergonha ou outro
sentimento a assombrava por não ter estado ao meu lado quando do que nos
aconteceu há tanto tempo. Se eu pudesse encontrar minha irmã, lhe diria
que não havia o que temer, nada do que me aconteceu tinha sido sua culpa.
Perdemos tempo demais acreditando em tudo que o povo da Tapera dizia.
De uns tempos para cá passei a desconfiar que o Mal não vinha do
coração daquela gente. O Mal foi plantado pelos senhores de terra. Tinha
sido regado pelos padres que habitavam o mosteiro de Santo Antônio. Não
saía mais da minha cabeça que nos dividiram para nos enfraquecer. Tudo se
iluminava na mesma medida em que me assombrava. Não tive estudo como
o Menino, mal sabia ler ou escrever e guardava um missal como amuleto,
feito as beatas carpideiras. Mas os anos me ensinaram que não há nada que
não se possa conhecer quando criamos atenção para o mundo, quando
deixamos o tempo contar as histórias do seu jeito. Só assim nós somos
capazes de perceber o que existe no coração dos outros.
Despertei do remoer de vida quando Zazau me chamou num canto para
contar que os médicos queriam transferir nosso pai para a capital, onde
havia mais recursos para tratar das queimaduras. Fiquei irrequieta: “Ele está
lúcido”, ponderei, “não vai aceitar ficar tão longe. Quem da família vai
poder dar assistência a ele lá?”, quis saber. “Joaquim e Moisés moram lá”,
Zazau disse, “eu posso ficar por um tempo, depois pode ser você, e tudo se
arranja.”
“Mas não vamos dizer agora”, pedi, “vamos falar aos poucos para ele se
convencer da necessidade de mudar de hospital.”
“Não há muito tempo, Luzia, o médico deve pedir a transferência
amanhã”, ela disse.
“Então, vamos aguardar até amanhã e pensamos como vamos fazer.”
Por meia hora ficamos os quatro ao redor da cama. Os remédios eram
fortes, a enfermeira tinha dito, e meu pai parecia não sentir dor. Estava de
lado, com as costas amparadas por travesseiros. A queimadura maior era a
das costas, eu vi quando o puseram sobre a cama de casa, e a do rosto que
havia deixado a pele rosa. Meus pensamentos se encheram dos anos ao lado
de meu velho pai, o pai que nunca tomou um rumo certo e vivia como se
não tivesse sido feito para a vida de família. Que gostava mesmo de estar
entre os amigos, rindo, ouvindo música, jogando dominó ou palito. Que
achava injusto trabalhar o dia todo para não ter nenhum patrimônio. Então
pregava trabalhar apenas o suficiente para ter o alimento, para dar de comer
aos seus. Quando achou ser a Tapera um horizonte estreito, sem chance de
ter mais tarefa de terra e prosperar, ele seguiu no saveiro de seu Valter pelo
Paraguaçu até a capital. Voltou depois e nunca mais quis deixar a aldeia.
Nada dizia, mas a culpa que sentia pela partida de minha mãe pesava nos
seus pensamentos. Assim como parecia ter consciência de que as dores do
mundo e das pessoas não se resolviam apenas por sua vontade.
De todos nós, talvez fosse o que melhor conhecesse os próprios limites e
não se desafiava a ser diferente. A bebida lhe deu algum prazer e o fez
esquecer as frustrações da falta de paz semeada entre nós por disputas
provocadas pelos vizinhos, quando mudavam as cercas avançando para o
terreno ao lado, quando soltavam os animais na lavoura alheia e tudo era
tragado. Foi assim que o Mal cresceu entre nós.
Zazau tocou meu braço. Era hora de partir. Joaquim ficaria o resto do
tempo ao lado do pai e no dia seguinte um de nós retornaria para render
meu irmão até tudo se resolver. Meus pensamentos agora não paravam
mais. Rumavam mais ligeiro do que o transporte e freavam de supetão nas
lombadas da estrada. O céu tinha uma cor viva e o sol indicava sua partida.
O Menino desembarcou por último. Quando estava com os pés no chão da
Tapera, seus olhos se fixaram surpresos na torre queimada. Ele perguntou a
mim e a Zazau quando havia ocorrido o incêndio.
No dia seguinte, enquanto Zazau coava o café e eu lançava milho às
galinhas, o Menino se aproximou e perguntou se alguém cuidava da ruína
da igreja. Contei que todos haviam ido embora. Ele passou a me contar as
lembranças que tinha dos espaços do jardim, dos cômodos que eram os
dormitórios dos padres e onde ele não podia entrar, além da escola. Quis
saber se eu parei de lavar roupa por causa do incêndio. “Deixei de lavar um
pouco antes, porque já não dava mais conta do cansaço”, desconversei.
“Tinha um porão lá, não é, Luzia?”, me perguntou.
“Porão? Acho que não”, respondi.
“Tinha, sim, um lugar escuro e sujo de onde se via o rio e a água entrava
nas cheias da maré.” Ele se abaixou para espiar as galinhas mais de perto.
E perguntou sem olhar para mim: “Lembra, uma vez eu me perdi e você
me encontrou por lá?”.
19
Uma brisa leve soprou contra seu rosto, afastando o cabelo da testa suada.
A face de uma mulher de cabelo à moda das religiosas foi sua primeira
visão depois do mal-estar. Ela movimentava um livreto com energia para
restituir seu fôlego. Outras pessoas observavam curiosas, enquanto um
senhor abria passagem trazendo um copo com água. Maria Cabocla se viu
às voltas com a fraqueza velha conhecida, que se pôs de novo à sua frente.
Se recompôs, ainda que transpirasse muito. Procurou pelos pertences antes
mesmo de querer saber o que havia ocorrido e encontrou tudo ao seu lado.
A mulher cuidava dela com atenção e perguntou se se sentia melhor. Com a
afirmativa, ela agradeceu: “Graças a Jeová Deus”.
As pessoas paradas ao redor, curiosas ou solidárias, voltaram aos seus
caminhos sem grandes preocupações. Maria Cabocla ficou com a mão da
senhora de rosto redondo feito a lua apoiada em suas costas. Era uma
mulher com o semblante das imagens dos santos, observados sempre que
possível com particular interesse. As imagens das igrejas lhe transmitiam
conforto. Então a mulher perguntou com interesse se ela iria a algum lugar,
se morava na cidade, e se havia algum telefone para avisar à família que
pudesse ir encontrá-la. Ela disse sim e a respiração voltou a acelerar.
Finalmente Deus e seus encantados enviaram alguém para lhe ajudar.
Porém, depois de procurar pelo número do telefone para recado na sua
bolsa, se deu conta de que o papel onde estava anotado era o embrulho do
dinheiro perdido.
“Acho que perdi o papel com o telefone, junto com o dinheiro que
trouxe comigo”, disse, esperando que a mulher acreditasse na sua história.
“Por isso não consegui pegar a condução até a Tapera.”
“Ah, não se preocupe, a senhora não vai ficar sozinha”, a senhora disse
com uma expressão firme, tentando confortar. “Meu nome é Alzira”, pôs a
mão nas costas de Maria Cabocla, “acho que o último carro para Tapera do
Paraguaçu já saiu, então o próximo só pela manhã. Eu vim da reunião e
deixei minha irmã na condução para Coqueiros”, disse, tentando contornar
o estranhamento. “Mas a senhora pode vir comigo para casa. É lugar
pequeno, humilde, não repare. A senhora não precisa passar a noite aqui.
Amanhã eu mesma te trago para que possa encontrar sua família.”
Maria Cabocla não era mulher de grande fé, embora se interessasse
pelos mistérios tidos como sagrados. Desde sempre escutou e ouviu sobre
milagres por onde passou, durante a infância, e por todos os lugares onde
esteve na vida adulta, sem se deixar intrigar. Mas o fato de o nome da
mulher que a amparava ser Alzira, feito sua mãe, foi recebido como um
sinal. Ela perguntou se era certeza de que não incomodaria, e Alzira
respondeu: “De modo algum. Como é seu nome, minha filha?”. “Maria”,
respondeu enquanto se levantava. Caminharam pelas ruas calçadas de pedra
até a casa.
Alzira se esforçava para falar com calma, transmitindo o conforto de que
Maria Cabocla precisava. Ela carregava uma Bíblia e Maria Cabocla se
recordou que havia algum tempo foi levada por uma vizinha para uma das
novas Igrejas na cidade. Fora criada como católica, criança e mesmo mais
velha. Cochilava nas missas, é verdade, sem entender o porquê de tanta
conversa. Mas achou aquela nova Igreja por demais barulhenta. O senhor de
paletó não discursava, berrava, e no final da cerimônia muitas pessoas
dançavam e falavam coisas que ela não conseguia entender. Retornou para
casa com dor de cabeça, confusa, mas não disse nada à vizinha para não a
magoar. De qualquer modo prometeu a si mesma que lá não voltaria. Não
tinha mais interesse nas festas de santo, nem em romarias ou procissões. Se
contentava em conversar com Deus no quintal, ao acender a vela, ao colher
ou semear o milho da lavoura, quando se deitava à noite e se levantava ao
amanhecer.
Agora, esperava que aquela senhora não tentasse convertê-la. Não se
importava que falassem de Deus, e até gostava de ouvir seus muitos nomes.
Gostava de sentir a afeição das pessoas pelo sagrado, sentimento que não
tinha mais.
“A senhora é crente?”, quis saber. Alzira confirmou.
“E a senhora?”, Alzira perguntou.
“Sou batizada e crismada na Igreja”, Maria Cabocla disse, esperando a
tentativa de conversão, mas Alzira a olhou com certa dose de compaixão.
“Se algum dia a senhora desejar, podemos estudar a Bíblia”, disse,
levantando o livro.
A casa era limpa e conservava o cheiro da água doce do rio correndo em
frente. “É o Paraguaçu?”, Maria Cabocla perguntou quando avistou a
correnteza no horizonte. “É, sim, o rio. Passa lá na sua terra também.”
Mesmo sem se aproximar, viu fileiras de casas e ruas inertes na margem
onde se encontrava e tudo o mais na margem oposta. Não recordava se
havia estado naquelas ruas algum dia. Era possível ter passado por ali com
os pais e os irmãos, quando peregrinavam de um lado a outro em busca de
trabalho.
Alzira pôs café fresco e pão na mesa. Pediu que ela não se acanhasse,
comesse bem, o mal-estar era por causa da fome. E comer, de fato, restituiu
seu vigor e as preocupações que lhe rondavam desde que havia decidido
viajar à Tapera. Quando se sentiu mais à vontade, contou a história do
dinheiro perdido. Contou também que estava a caminho da Tapera por conta
do acidente do pai. “Que coisa mais triste, dona Maria!”, Alzira de novo
pôs os muitos nomes de Deus entre as duas para pedir que tivesse fé e tudo
se resolveria.
As horas se passaram e Maria Cabocla não lamentou por um tempo sua
má sorte e toda a confusão da viagem à Tapera. Pensou não estar de todo
desamparada, tinha encontrado uma boa alma para lhe acolher, alimentar e
dar abrigo até poder retornar à rodoviária no outro dia e seguir viagem. Na
casa, conheceu o marido de Alzira e os filhos crescidos. Contou-lhes dos
seus e já sentia o aperto da distância. Garantiu que estavam todos bem-
criados. No dia seguinte, antes de levá-la ao terminal, Alzira lhe deu um
discreto rolinho com uma única cédula para que pudesse retornar. “Não se
preocupe”, Maria Cabocla disse, “vou voltar para pagar a senhora.”
Enquanto se acomodava na van foi tomada por uma dúvida: se o brilho
que viu despontar dos olhos de Alzira era feito da mesma umidade dos seus
prestes a transbordar por tudo e todos naquele instante.
4
“Luzia!”
A face pálida de Maria Cabocla refletia a gravidade do chamado.
Primeiro, um duradouro silêncio. Depois, uma sequência de gritos seus e de
Luzia irrompeu no campo da infância, revelando o perigo.
Pouco antes ouviram a voz da mãe ecoar na beira da mata, onde tinham
se entocado para brincar. Chamava por elas, ameaçando com castigo caso
não retornassem de imediato. As folhas secas quebravam sob os pés de
Alzira, a velocidade de suas pisadas e o teor dos sons as advertiam do
castigo por vir. Mariinha abafava o riso enquanto olhava para Luzia. Era
capaz de ouvir o coração da irmã, quase à boca, retumbando através das
árvores e arbustos sempre verdes por causa da chuva sem trégua. Corriam,
enquanto a mãe se aproximava cada vez mais, não queriam retornar para a
estalagem onde dormiam os trabalhadores da fazenda. Passariam vergonha
com os castigos que receberiam diante das outras crianças e de todo o
barracão habitado por homens bêbados, mulheres exaustas e mal-
humoradas, onde o som mais comum era o de choro de criança e o ar vivia
impregnado de odores de doença. Na mata, eram apenas meninas e
brincavam de viver na casa que um dia teriam. Casa de verdade, não as
estalagens ou os barracos improvisados onde passavam meses, o tempo em
que seus pais trabalhavam na colheita. No lar da imaginação de Mariinha,
Luzia e Zazau — às vezes Joaquim, o mais novo, também se juntava a elas
— havia quarto para as crianças, comida na mesa e patrões dando ordens a
trabalhadores invisíveis. Assim tinham visto desde sempre. Naquelas
fantasias não havia escola nem livro nem se escrevia. Os irmãos mais
velhos trabalhavam, tinha passado o tempo da brincadeira. A família desde
cedo andou por fazendas à procura de trabalho, e os pais não puderam
aprender a ler e a escrever, nem esperavam que os filhos tivessem destino
diferente. Quem sabe os filhos dos nossos filhos, divagavam sem um fio
concreto de esperança.
Brincadeira de menina era casa, marido, filhos. Às vezes também a
morte dava as caras e eram os sabugos feito gente (ou apenas a imaginação)
que morriam dos males que as benzedeiras não conseguiam curar. Quando
não eram crianças feitas de sabugo, eram imagens etéreas, vistas com os
olhos da alma, porque nem sempre havia milho para ser transformado em
bonecas nas brincadeiras. Às vezes brincavam de cultivar roça de cana, de
fumo, de mamona. Ou eram pastoras de vacas e cabras a serem levadas aos
campos. E no meio da itinerância em que viviam só contavam com a
imaginação para lhes recordar que ainda eram crianças e, portanto,
poderiam esperar por uma vida diferente.
Trabalhavam dia após dia ajudando a mãe a colher o que fosse preciso e
por isso as mãos nunca andavam limpas. Banhavam-se nos rios, mas o
ranço do trabalho por muitas vezes impregnava a pele e deixava as unhas
entranhadas de terra. Por quantas fazendas passaram durante aqueles anos?
Maria Cabocla não saberia dizer, e por muitas outras ela precisou passar até
chegar à derradeira, onde os pés criaram raízes com Aparecido e os filhos.
Ainda que trabalhassem quando sequer tinham idade para cuidar de si
próprios, uma força inquebrantável, inocente, emanava das horas de
diversão que ainda não haviam lhes confiscado. Qualquer intervalo entre a
lida e o descanso era tempo de se distrair, retirando de si a possibilidade do
prazer. Mas daquela vez o jogo era outro, não era brincadeira de casa nem
família, era se sentir livre, descobrindo insetos e plantas e o que mais
estivesse pela frente. Se afastaram da estalagem e penetraram a mata, sem
permissão. Por isso não atenderam a mãe, sabiam que se o fizessem
poderiam ser castigadas com o cipó guardado para as transgressões.
Foi assim que Maria Cabocla se viu diante de um ninho de cascavel. As
serpentes se enrolavam vivas numa coreografia hipnotizante. Aquele
momento foi de silêncio, sabiam pelos contos dos mais velhos que não
deveriam provocar a ira das serpentes. Ela arregalou os olhos, esperou que a
atenção de Luzia se voltasse para a armadilha e que juntas pensassem numa
maneira de escapar do perigo. Era preciso deixar o lugar o quanto antes
para não serem picadas. Qualquer movimento poderia assustar as víboras e
provocar um ataque.
Luzia permaneceu inerte, se locomovendo a passos medidos, encantada
com os movimentos das serpentes. As observava com atenção, como se
naquela fração de terra somente elas importassem. Ao contrário de Maria
Cabocla, seu medo não havia saltado à superfície, permanecia adormecido,
latente, pronto para ser despertado. E, enquanto o medo não vinha, se
entregou ao tempo e disse num tom quase inaudível à irmã: “Fique quieta”.
Continuou a se aproximar do ninho, em direção ao círculo formado pelas
serpentes que deslizavam no entorno da irmã. Por um momento era como se
tivessem decidido abraçá-la. Então Maria Cabocla se deixou levar pela
experiência de observar Luzia, como se estivesse envolta em algum
encanto. As cobras continuavam a se movimentar, mas desviavam dos
corpos das irmãs, como se ao redor deles existisse um campo magnético a
impedir o avanço. Nenhuma ergueu o corpo, nem mesmo chocalhou a ponta
da cauda. Deslizavam enfeitiçadas e traiçoeiras sobre o terreno, enquanto as
meninas permaneciam imóveis.
Foi quando Maria Cabocla percebeu que dos olhos de Luzia emanavam
as cores e o brilho do fogo. Talvez fosse a luz do fim de tarde refletindo o
céu avermelhado de abril. Naqueles olhos dançavam chamas, duas
labaredas crepitando prontas para devorar o entorno, caso fosse preciso.
Uma imagem que Maria Cabocla guardaria para sempre como um segredo.
A luz do crepúsculo se modificava com rapidez e quando as irmãs
olharam ao redor perceberam que as serpentes tinham seguido o caminho da
mata. O grito de pavor abafado pela necessidade de se preservarem
atravessou as copas das árvores em direção à estalagem. Gritaram despertas
do breve silêncio evocado pelo instinto de sobrevivência.
Por mais que tivessem se afastado da estalagem, elas conheciam a trilha
percorrida e conseguiram deixar a mata. Maria Cabocla correu enquanto o
cabelo grudava em seu rosto úmido de choro. Luzia saltava como se ela
própria estivesse no ninho das serpentes, agitando os braços para afastar a
presença de animais imaginários. Alzira esperava as duas com o cipó na
mão, pronta para o castigo que julgava merecido, mas desistiu quando
contaram do ninho de cascavel. A mãe se abaixou para inspecionar as duas
com desespero; braços e pernas à procura de algum ferimento. Zazau e
Joaquim foram ao encontro das irmãs e observavam tudo atônitos. “Hoje
vocês escaparam de apanhar, mas amanhã vocês me pagam”, disse a mãe,
tentando disfarçar a própria agonia. Também não contou de imediato a
Mundinho, preferiu deixar tudo se acalmar para poder narrar a história com
a devida ênfase para castigar as duas.
Naquela noite, enquanto dividiam uma rede de dormir, recordaram as
recomendações do pai quando percebia os filhos brincando inquietos. “Não
se deve abrir a porta de noite, se não estiver esperando ninguém”,
Mundinho dizia, era certeza corrente nas roças por onde passava, “pode ser
uma cascavel, o rabo é um chocalho e a gente pensa que é uma batida na
porta. Deixa que os mais velhos atendem.” Tudo isso para dizer que as
crianças não deveriam assobiar, para as cobras não atenderem ao silvo
como a um chamado. Luzia adormeceu cansada de chorar, abalada com o
fim da brincadeira. Maria Cabocla demorou a pegar no sono, ainda que
estivesse exausta da tensão. Com seus olhos fechados ou abertos,
continuava a recordar os de Luzia feito duas labaredas, ainda mais vivos na
escuridão onde se encontravam.
6
Aparecido tremeu de ódio e Maria Cabocla não ousou segurar seu braço
para não receber um empurrão seguido dos gritos habituais: “Deixe que isso
eu resolvo, mulher!”. Ele tinha arado a terra e separado as sementes para o
plantio a ser feito no chão de onde esperava retirar o sustento da família.
Depois da chuva, que caiu com regularidade em dias alternados, ele lançaria
os grãos no solo revolvido. Isso se não descobrisse antes dois homens
trabalhando o pedaço de terra que lhe foi prometido. Ainda não tinha
completado um mês desde a chegada da família à fazenda, a meio caminho
do sertão, a meio estirão de Água Negra. Não houve tempo para levantar
casa e por isso se abrigaram num galpão em ruína, onde os trabalhadores
armazenavam de sementes à sucata. Quando chovia, a construção
improvisada parecia descoberta, tanta era a água a entrar pelo telhado mal-
ajambrado.
Então disseram a Aparecido que ele havia compreendido errado. O
terreno onde poderia plantar estava na extremidade da fazenda, próximo à
cerca. Ele não estava louco, sabia, jurava ser aquele o lugar a que o
administrador o conduzira para mostrar e dizer: “É aqui”. Seu corpo foi
atravessado por uma eletricidade perturbadora, como os loucos dizem sentir
nos momentos de maior desespero. Ele pediu sem paciência para lhe
mostrarem de novo onde poderia trabalhar. Ao mesmo tempo, percebia o
prazer do administrador e um leve desdém de sua parte enquanto caminhava
até o lugar permitido, cuja superfície se encontrava recoberta de pequenas
pedras.
Maria Cabocla não o seguiu. Por isso também não pôde ver a crescente
humilhação a que estava sujeito enquanto caminhava por considerável
distância até o limite da propriedade. Quando, por fim, Aparecido viu a
terra que lhe havia sido destinada, engoliu a saliva que tinha na boca quase
seca. Ele também não quis ver o sorriso do administrador reluzindo em sua
face cínica, esculpida, como a sua, pela sobrevivência. Sabia do escárnio,
estava lá o sorriso e o deboche. Sabia, e se olhasse não resistiria à tentação
de ameaçar o homem com o facão que levava à cintura. O administrador era
um sobrevivente da seara do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Ninguém deveria ser julgado por ter vontade de viver, mesmo que para
alguns isso significasse afligir os mais fracos. Mas não era preciso mirar a
face do outro para alimentar o ódio crescente. Foi quando disse: “Se é aqui,
é aqui que eu planto!”.
As mãos ásperas seguraram a enxada e desceram à terra, chispando fogo
junto a seu corpo humilhado. Se daquele chão não brotava urtiga nem
capim-navalha, muito menos nasceria batata, inhame e aipim para alimentar
a família. Mas precisava trabalhar com sofreguidão, com raiva, com ódio,
afinal era a terra o animal a lhe devorar os anos, e a cada golpe ele devolvia
o recebido. Para aquele homem sem futuro, a terra era tão rara quanto o
ouro que diziam existir a caminho da serra. Era ainda pior: o ouro não se
via em todo canto; o metal não habitava o mundo de uma maneira tão
ostensiva quanto a terra. Para a certeza da desgraça de sua gente, a terra não
apenas estava em todo canto, em todo lugar; a terra era o canto, era o lugar,
e sem este chão não haveria vida para ninguém. Dos pássaros às árvores.
Dos ricos aos pobres. Nem mesmo os montes se sustentariam em pé, e os
rios morreriam antes mesmo de correr.
Aparecido blasfemou aos Céus por conhecer um mundo imenso e
dividido entre pouca gente. Maria Cabocla não ousou intervir e dizer: “É
assim porque Deus quis” ou ainda: “Essa gente trabalhou e comprou com o
próprio esforço”. Sabia bem que suas respostas não satisfaziam nem a si
própria, quanto mais ao marido. Foi sozinha que lamentou sua sina. “A mãe
tinha razão”, foi o que muitas vezes considerou ao recordar a decepção com
a sua partida e com a decisão dela de viver com um “zé-ninguém”. A má
vontade da mãe se devia à pobreza e à má sorte de ver a derradeira, moça,
peregrinando de fazenda em fazenda à procura de morada como eles tinham
feito até retornar à Tapera. Se devia também à crença pessoal de que, para
se redimir da crueldade da vida e ter alguma sorte, era preciso ser como a
gente abastada que conheciam das andanças de um lado a outro. Ser como
os estrangeiros que habitavam o mosteiro, rezavam as missas e culpavam as
pessoas da aldeia por toda a desgraça que lhes acontecia. À gente mestiça,
índia e negra, restavam as sobras, era o que a mãe dizia, por mais que
pensasse ser essa a sentença de uma mulher amargurada. “Com ele, tu vai
caminhar para trás”, vaticinou. Anos depois a rudeza da vida fez Maria
Cabocla concordar com a mãe. Não pelos mesmos motivos, achava
inclusive um despautério a ideia de se ter uma descendência clara,
perseguida pela mãe com tanto afinco. Concordava que teria tido destino
melhor se seguisse o Paraguaçu à frente, a caminho do mar, e não para trás,
para o olho-d’água onde o rio surgia.
Do chão destroçado nada nasceu e Aparecido se levantou com as mãos
feridas para percorrer a estrada. Tirou os filhos e a mulher daquela terra e
partiu para um lugar qualquer onde pudesse encontrar dignidade. Era a
história dentro da história e Maria Cabocla cumpria o destino de seu pai e
de sua mãe, repetindo os passos errantes na esperança de um dia regressar
em definitivo para sua terra. Algum dia voltaria à aldeia abandonada,
arrodeada de mata e de ruínas antigas do mosteiro ditando como seria a vida
de todos? Era o que se perguntava todas as noites, antes de dormir, e
quando a fome parecia roer o estômago. O pai e a mãe descansaram dos
passos vagantes pelas margens e margens do Paraguaçu, porque o dia de
regressar para a casa da família tinha chegado. Poderia ocorrer com ela, não
por esperar que os pais se fossem para assumir o seu minguado quinhão,
mas porque talvez as regras de ontem não fossem as de hoje. Seria mais
fácil levantar qualquer barraco na Tapera e não precisar viver errante
pedindo morada. Seria mais fácil, se a Igreja não controlasse a vida da
aldeia com as mãos da tirania, sem ceder um palmo do chão em volta para
construir uma tapera.
Quando tudo parecia estar em paz — a paz enviesada e precária dos
sobreviventes —, acontecia algo. Era a violência dos matadores vingando
seus mortos ou eliminando os obstáculos que impediam a prosperidade de
outrem. Era a barragem a inundar o solo para o sepultar sob água e fúria.
Era a transação cordial dos homens de posse que vendem e compram sem
pensar por que o fazem. A terra era a riqueza que não se carrega para onde
se vai. Se não a podemos levar conosco, assim como as casas, que pelo
menos retiremos os dejetos que se encontram nela, nos livrando das tralhas
vivas que lá se encontram para nos recordar a feiura do mundo. Maria
Cabocla só não correu do fogo porque não chegaram a incendiar seu
galinheiro, como fizeram com o dos vizinhos, nem as choupanas onde
habitava. Mas tinha notícias de gente que correu das chamas. Fossem
acidentais, provocadas pela má sorte, ou causadas pela cobiça dos que
limpam suas terras da capoeira velha. Queimar os arbustos e a erva daninha
era desculpa aceitável, afinal não podiam queimar bicho e gente. Mas nada
mau se a raposa que mata o galinheiro aparece esturricada ou se o fogo
espantasse a gente teimosa que fazia de sua a propriedade alheia.
O tempo pode ser um adversário implacável, mas também ajuda a criar
couraça nos resilientes. Quando tentaram fazer o mesmo no último chão —
esperava com a fé dos vivos —, Maria Cabocla e Aparecido deixaram de
lado as diferenças e se juntaram aos vizinhos para enfrentar os desmandos
sem fim dos que podiam tudo. Não levantaram armas, nem incendiaram a
mata, mas se puseram juntos, lado a lado, como as hastes finas e flexíveis
dos bambus, as que vergam, rangem, mas jamais se quebram. O bambuzal
resistiu aos ventos fortes. Mas a vida na Tapera era diferente e solitária,
desagregada, cada um, na impossibilidade de salvar o todo, se esforçava
apenas por salvar a si mesmo.
Por isso não saía da cabeça de Maria Cabocla, e talvez da de Luzia, que
as cinzas que quase não se viam e se misturavam à terra úmida não eram
vestígios do acidente que vitimara o pai, mas de um crime. Não eram cinzas
das queimadas da cana, a lavoura destinada a esse cultivo não estava
próxima. O fogo espalhou uma fina poeira sobre a aldeia, desordenado, e
serviu para confundir um velho bêbado, estorvo para a prosperidade de
outro. Terra malcuidada onde nada mais se desenvolvia e estava nas mãos
de um incapaz, só porque tinha sido assim desde sempre. Não havia mais
igreja para ditar regras, embora os cobradores de foro lá estivessem para
azucrinar a vida. Não era Mãozinha, muito menos Chico da Colmeia,
velhos e sem voz. Eram homens de quem não se tinha notícia, apoiados
pelos que não se importavam com vivalma na aldeia.
Viram no dinheiro esperança e promessa que já não viam na terra de
antes.
9
Luzia não perguntou sobre o tal “dono”. Não queria saber o que tinham a
dizer os desconhecidos sem antes procurar pelos cobradores do foro, ou por
quem pudesse explicar com alguma propriedade o que estava acontecendo
na Tapera. Engoliria a seco a raiva sentida por todos, mas precisava saber
sobre seu destino. Cada vez mais isolada de sua comunidade, e em
definitivo após o incêndio do mosteiro, ela não sabia que depois da partida
dos monges — até que o mosteiro pudesse ser recuperado — os cobradores
passaram a vender lotes de terra para comerciantes, funcionários públicos e
fazendeiros desejosos de ampliar as propriedades vizinhas. Aproveitavam-
se das famílias desagregadas, da gente que partia todos os dias para a
capital em busca de sorte ou dos idosos que viram seus descendentes
deixarem a aldeia em busca de oportunidade.
A falta de conhecimento de Luzia não lhe permitiria compreender que a
tarefa de terra trabalhada por seus bisavós e herdada por seu pai, e que
pertencia à Igreja sabe-se lá desde quando, não tinha nenhum documento
para certificá-la como propriedade da família. Para ela, estaria tudo
resolvido quando retirasse do colchão velho os recibos mal escritos e
manchados pelo tempo. Não pagaram os últimos anos, é verdade, não
contava mais com o trabalho de lavadeira da igreja. Mas tudo estaria
resolvido quando mostrasse os papéis àqueles homens, dizendo: “Meus
senhores, vejam, é um engano, essa tarefa de terra é da minha família”.
Foi o que fez no dia seguinte ao retornar ao local com uma sacola
plástica cheia de papéis, alguns roídos por traças e outros indecifráveis pelo
mofo que grassava na estação das chuvas. Um dos homens foi até a cerca,
estendeu a mão suja de trabalho para ler o que havia no papel, contudo sem
se deter. Disse, olhando nos olhos de Luzia: “Isso não é o documento da
terra, senhora. O dono tem a escritura”. Mas Luzia não era de se render às
explicações fáceis. Não disse não saber o que era uma escritura, nem
mesmo que não sabia ler satisfatoriamente, nem mesmo que Maria Cabocla,
a irmã a lhe fazer companhia nessa busca por explicação sobre o que estava
acontecendo, não sabia também. Ela disse então querer ver o tal documento
do senhor. Os homens riram e disseram que ela precisaria pedir ao “dono”.
“Pois digam quem é o tal dono”, ordenou sem paciência enquanto seu corpo
tremia. Maria Cabocla sentiu o desconforto na garganta ao ver a tensão da
conversa. Os homens riram de novo e um deles respondeu: “Ele mora na
cidade”.
A cidade era maior do que a aldeia e a resposta era para fazer, decerto,
Luzia desistir de reaver o terreno. Ela não se deu por vencida e quis saber o
endereço exato. “Numa rua”, o outro homem informou enquanto ria e
colocava mudas nas pequenas covas abertas, sem dar atenção às duas. Eram
mudas de mamona, Luzia tinha observado, e apertou os lábios murchos pela
ausência dos dentes. “Que rua?”, ela quis saber, e eles fingiram não ouvir.
“Que rua?”, gritou mais alto e eles riram com mais vigor.
Maria Cabocla quis proteger Luzia. Puxou a manga da camisa que a
irmã vestia e pediu: “Vamos sair daqui, pelo amor de Deus”.
Luzia estava determinada e puxou o braço para que a irmã largasse a
manga de sua roupa. Se abaixou e colheu uma fruta pêca no chão e a jogou
na direção onde os homens trabalhavam. Eles fingiram não ver e riram. O
que será que diziam? Foi a primeira pergunta de Maria Cabocla. Será que a
chamavam de feiticeira, como os moradores da Tapera? Será que riam da
boca sem dentes ou do cabelo solto e grisalho feito a copa de uma árvore?
Ou punham-se a gargalhar do desespero de uma mulher ao descobrir que o
canto trabalhado por seu pai nunca fora de fato dele? Sentia raiva por ver
Luzia humilhada, e por ver o trabalho do pai destroçado, mas precisava
preservar algum equilíbrio para ampará-la. Logo ela, que havia sofrido
aflições iguais por toda a vida, estava de novo diante do menosprezo que
sua gente sofria. Viu o pai e a mãe com os filhos passando por humilhações
sem fim. Viu o vizinho caído morto por questionar o pertencimento do chão
onde sua família e a dos vizinhos nasceram. Viu outros tantos morrerem
adoecidos, com os nervos abalados por disputas desiguais.
Mas Luzia não se dava por vencida. Se apropriou de outra fruta pêca
para lançar na direção dos homens. Quando Maria Cabocla gritou: “Pare,
Luzia!”, o fruto ressecado já tinha estalado nas costas de um deles. Ele se
voltou para trás, tirou o chapéu e correu até a cerca. Segurou no braço de
Luzia com força, mas ela não se mexeu. Olhavam-se com raiva mútua e
Maria Cabocla se enfureceu, ordenando que ele largasse o punho da irmã. A
mão direita do homem, a mesma a segurar a enxada agora caída no chão,
apertava o corpo de Luzia. Era tanta força percorrendo o corpo negro
reconhecível dos filhos da terra — “É um de nós”, qualquer pessoa
constataria — que o punho parecia próximo a se esfarelar sob a mão calosa
de trabalho. Sem baixar a cabeça e engolindo a seco a dor de seu braço
comprimido, Luzia repetiu quase sem abrir a boca e de maneira pausada:
“Que rua?”. E ele disse entre os dentes: “Perto da igreja matriz”.
O homem soltou o braço de Luzia, e Maria Cabocla se pôs ao seu lado
enquanto estava ameaçada. “Não se bate num homem”, ele disse, “a
senhora deveria temer o que pode lhe acontecer. Muito menos se bate num
homem armado”, completou com os olhos injetados de cólera.
“O senhor está na terra do meu pai e não é só porque sou mulher que vai
me tirar daqui”, Luzia devolveu. “Pode até me tirar”, continuou,
reconhecendo que sua resiliência tinha limite, “mas vai ser morta.”
O outro homem segurou o braço do companheiro, pedindo que deixasse
a “doida” sozinha, antes de se afastarem da cerca.
Luzia estava plantada no mesmo lugar. Não sentia medo algum do
presente, dos homens e suas ameaças. Temia o futuro, o porvir, o
desconhecido, não eles. Gritou de novo: “O nome! O nome do que diz ser
‘dono’. Eu procuro por quem?”.
“Estêvão”, o homem gritou, levantando o braço num gesto de desdém
enquanto caminhava em direção à enxada largada no chão. Maria Cabocla
sentiu o coração desacelerar e viu um longo suspiro deixar as narinas da
irmã. Luzia tremia, nervosa, enquanto se afastava do local.
Seguiram o caminho para casa. As duas permaneceram em silêncio
enquanto andavam. Talvez ruminassem sobre a tensão e se aquilo
significava uma declaração de guerra. Maria Cabocla pensava, sobretudo,
no desprezo com que Luzia sempre tratava a roça, dizendo preferir lavar a
roupa da igreja a ter que cuidar da terra. Repetia o desdém a Zazau, que por
sua vez contava a Maria Cabocla nos telefonemas. Agora a irmã estava ali,
como se ferida, mas era provável que não fosse pelas razões mais aparentes.
A princípio, a disputa pela terra destinada aos seus antepassados era mais
uma questão de honra que de sobrevivência. Ou talvez Luzia percebesse
agora que, em sua iminente velhice, fosse precisar retirar o sustento da
terra, já que não havia as roupas da igreja para serem lavadas, nem o
dinheiro do pai para prover a casa. Em pouco tempo, quando Maria Cabocla
retornasse à própria casa, Luzia se tornaria a última remanescente da
família na Tapera. Só poderia contar consigo mesma e teria que encontrar
meios para tocar a vida.
Maria Cabocla rompeu o silêncio e perguntou se não seria melhor
falarem com Joaquim. Luzia nada disse, mas passou por seus pensamentos
não envolver o irmão. Não poderia contar com ele por toda a vida. Agora
seria ela a resolver os problemas que a afetavam. Em algum momento
Joaquim seria informado. Da mesma maneira contaria a Zazau. Mas sabia
que, se não agisse por conta própria, seria engolida pela aldeia que
definhava.
Quando chegaram em casa, Luzia permaneceu calada, sentada na cadeira
escorada na parede. Trocou de lugar com a irmã, sentada em choque, ainda
emudecida pela notícia da morte do pai. Não havia brisa e o ar estava
impregnado de um mormaço adentrando a casa e a paisagem. Do seu rosto
minavam gotas de suor que ao longe recordavam o orvalho sobre as
superfícies nas manhãs de maio. Maria Cabocla colheu cidreira no quintal,
fez uma boa quantidade de chá e serviu num copo de vidro.
“Beba”, disse. “vai te fazer bem.”
O silêncio de Luzia advinha da preocupação sobre o que seria de sua
vida sem a terra. O que Maria Cabocla poderia fazer pela irmã? Só lhe
restava aguardar por mais informações sobre a transação envolvendo o lote.
No dia seguinte, quando o sol ainda se levantava, Maria Cabocla
despertou do sono leve, mas não viu Luzia dormindo nem na cama nem na
rede. Temeu que pudesse ter retornado à tarefa de terra e saiu do quarto
num sobressalto. Mas Luzia estava à porta, pronta para deixar a casa. Ela
levantou os olhos para a irmã e a convocou:
“Vamos procurar o tal Estêvão.”
10
Foi no alvorecer que Luzia deixou a casa rumo à porção de terra trabalhada
pela família Silva desde sempre. Andou quase na ponta dos pés pela casa,
com toda a dificuldade que a deformidade em suas costas infligia, para não
despertar o sono leve da irmã. Apanhou os feixes no chão do quintal e saiu
carregando a enxada velha. No caminho, pensou nas histórias escutadas nos
galpões, acampamentos, nas boleias dos paus de arara transportando a
família de um lugar a outro. O pai, quando menino, ajudou o avô a cultivar
aquele mesmo lote. Essa foi a primeira e única escola que teve, e seu
aprendizado lhe permitiu sobreviver por longo tempo.
A relação de Mundinho com o quinhão de terra não era isenta de
conflitos. Amaldiçoava, maldizia as pragas, o tempo, o solo empobrecido à
exaustão. Foi capaz de deixá-lo sem trabalho no período em que se retirou
para a capital. Mas retornou, se conformou com o destino e viveu
remexendo cada palmo como se aquele ato confirmasse a sua posse. Viu
pulgões, gafanhotos, insetos desconhecidos e se arriscou até a usar o veneno
que os cobradores traziam da cidade e juravam resolver os males e que
abandonou de imediato quando teve urticária, falta de ar e encontrou tatus e
teiús mortos.
Envelheceu subindo o tabuleiro, se equilibrando no cascalho que calçava
o caminho, medindo os passos atrapalhados pela cachaça. Luzia se irritava
com a bebedeira do pai. Se pudesse, despejaria a garrafa no mato. Mas nada
dizia, o pai era a autoridade, e no fim da vida ela não se importava mais de
vê-lo beber. Restava-lhe se entorpecer diante das dificuldades sem fim, da
saudade de Alzira e dos filhos ausentes. Enquanto caminhava, Luzia pensou
que não havia semana que ele não falasse de Mariinha, a filha que partiu
sem voltar. Talvez não passasse por sua cabeça morrer sem vê-los, nem que
os anos fossem tantos a indicar que estava a caminho do fim.
Os feixes de manaíba estavam num cesto de palha acomodado sobre
uma rodilha de tecido sobre a cabeça de Luzia, à moda das trouxas de
roupa. Quem a visse caminhar tão cedo se admiraria da sua força para levar
a enxada pesada e do equilíbrio com que carregava o balaio na cabeça. O
corpo estava mais encurvado, acentuado pela força dos anos. Era o começo
do declínio. Mas, se lhe perguntassem se o fardo era grande — o fardo de
manaíba e da enxada, não o fardo de uma vida —, ela diria que não, que lhe
caía leve. Havia uma energia diferente a atravessando de ponta a ponta,
vibrando como nos anos de juventude. Como quando sentiu seus cheiros e
desejou o homem, que por fim desgraçou sua vida. Mas nada parecia
importar com a mesma intensidade do passado. Nada mais era capaz de lhe
tirar o sono nem amargurar seu espírito.
Se resignou com sua guerra cotidiana e sua vitalidade emergia com uma
força incomum. “Não vou dar a terra de mão beijada aos invasores”, e fez
daquela raiva uma âncora poderosa para o controle de que precisava. Como
será que seus avós tinham chegado àquele lote? Herdaram dos
antepassados? Foi benesse da carola abastada, que depois doou tudo à
Igreja? Como saber, se a memória se apaga, se as pessoas se esquecem com
a mesma urgência com que recordam ser preciso viver? Os que vieram
antes, muito antes dos que aqui estavam, foram embora de que maneira?
Jamais saberia a história dessa terra, dos seus, jamais poderia contar com o
sentido de uma história antiga, remota, para justificar a vida presente. Luzia
compreendia o hoje e um pouco mais além, mas não era capaz de avançar o
suficiente para saber de que era feito seu espírito. Se sua história se resumia
às lembranças de sua família, em seu sangue, mal sabia, corria um rio
imemorial.
Quando alcançou a porção que considerava terra da família, estava ainda
mais disposta para trabalhar. Se achou que não suportaria, que sucumbiria
ao cansaço, deve ter se surpreendido com o vigor esbanjado naquela manhã.
Muitos passos atrás dela estava Maria Cabocla, despertando da rede e
estranhando a ausência do cheiro de café coado. Por um instante imaginou
ser a escassez batendo à porta. Não poderia se oferecer para comprar, mas
poderiam fazer algo para conseguir o café. Se levantou com vontade de
chamar de novo Luzia para mariscar no mangue. Poderiam vender os
mariscos e depois comprar o que precisavam. Mas não encontrou a irmã e
de imediato não se preocupou. Abriu a lata de café e viu que tinha pó.
Aproveitou o fogo aceso e pôs a água para ferver. Não encontrou o coador
de tecido — se sentia perdida, não era a sua casa, onde sabia o lugar de
tudo, mas havia achado um cartão telefônico enquanto procurava o coador,
e deixou o líquido decantar. Tomou sua caneca matinal pensando nos filhos,
se estavam bem, se precisavam de algo. Nunca havia estado longe deles e
aquelas quase três semanas era tempo demais para seu costume. Faria uma
chamada para o telefone público frente à escola, pediria que chamassem
Paixão, o terceiro, para saber se tudo estava no mesmo lugar.
Maria Cabocla se aproximou do quintal para lavar a caneca e deu por
falta dos feixes de manaíba deixados no canto da casa no dia anterior.
Primeiro considerou a possibilidade de a irmã os ter armazenado em outro
lugar. Até que se recordou da promessa do dia anterior. Se pôs pensativa,
fez cálculos sobre a probabilidade de Luzia ter ido sozinha ao lote onde o
pai trabalhava. Não pôde mais esperar: subiria o tabuleiro para evitar um
conflito maior. Enquanto dava seus primeiros passos fora de casa para
alcançar os da irmã, Luzia atravessava o arame farpado que passou a
delimitar o lote de terra. Lançou os feixes de manaíba para dentro. Escorou
com um galho uma das linhas de arame para deixá-la erguida. Colocou as
mãos pequenas entre as farpas pontiagudas e pressionou a linha inferior da
cerca. Foi assim que passou o corpo com poucos danos na pele e nas vestes.
Olhou à sua volta e viu quase metade da área com o cultivo de mamona. A
outra metade estava pronta para ser semeada.
Luzia decidiu plantar a manaíba na parte sem mudas. Depois resolveria
o que fazer com o cultivo de mamona. Destruiria? Deixaria crescer?
Devolveria aos homens para que fizessem o que bem entendessem? Agora
só queria demarcar sua posse naquele pedacinho de mundo, como se
faltasse o rito para entenderem que aquele chão era seu por direito e
ancestralidade. Houvera ritual também para que seu pai se apossasse
daquele lote, quando seu bisavô tinha morrido de saudade da bisavó que
Luzia e Maria Cabocla não conheceram? Quando avisaram da morte do
velho Leandro, seu pai se desesperou em busca de transporte que levasse a
família e as mudas de roupa, trapos carregados de um lugar a outro, de volta
à Tapera do Paraguaçu. Bem sabia que se demorasse um pouco mais outro
seria posto no lugar. Foi assim que do dia para a noite entraram na aldeia
num carro de boi, depois de percorrer grande parte do caminho num pau de
arara. A estrada final ainda não era de rodagem e foram no carro de boi de
um conhecido da família.
Algumas poucas ruínas de engenho de açúcar despontavam na paisagem,
mas o que ficou como memória da viagem foram duas imagens: a pequena
igreja caiada de branco num descampado a perder de vista — “Ali o dono
do engenho mandava batizar os filhos e também a gente cativa!”, disse o
condutor do carro, que desapareceu anos depois sem que Luzia soubesse de
que jeito; e, ao entrar na Tapera, o pináculo da torre da igreja visto muito
antes dos telhados das casas. A família se apossou da casa e dos poucos
móveis velhos. As roupas puídas dos mortos foram dadas a um passante.
Mas o rito, a transmissão do lote para seu pai, disso Luzia não tinha
lembrança alguma. Foram os homens da aldeia e um dos cobradores que
cumpriram, em respeito, o desejo do avô. Tempo em que a palavra valia
algo. Mas só se tornou de fato de seu pai quando conferiu à terra o usufruto
pelo trabalho. Foi quando ele lançou a enxada e plantou a manaíba que
virou aipim, depois farinha e beiju para alimentar sua gente. Da mesma
maneira Luzia tomaria posse do lote que havia alimentado sua família.
“O que você está fazendo aí?”
Luzia não escutava nem temia. Era Maria Cabocla próxima à cerca,
suada, armada até a alma para proteger a irmã.
“O que você está fazendo aí?”, gritou um dos homens, o mesmo que
apertou o braço de Luzia a ponto de imaginar que poderia fazê-la
desaparecer em suas mãos.
13
Luzia não olhou para trás e continuou a abrir a cova com a enxada. Lançava
uma estaca de manaíba para dentro e depois fechava. Estava em paz
consigo mesma, apesar do conflito iminente. Maria Cabocla atravessou a
cerca junto ao mesmo homem que a havia ameaçado, observando como ele
fazia para passar no pequeno espaço entre as linhas de arame farpado. A
irmã estava de pernas abertas, equilibrada sobre o chão, e a enxada quase
escandia palavras, o som do instrumento ecoando ao encontrar o solo
argiloso, úmido e vermelho. O sol começava a aquecer o ar, e a luz caía
sobre seu corpo acentuando ainda mais a cor terrosa de sua pele.
O homem repetia que o lote tinha dono e que ela precisava sair dali, do
contrário tudo iria acabar mal. Maria Cabocla o seguia, repetia que não,
aquele lote pertencia ao pai, à família, que elas procuraram pelo tal Estêvão
para resolver a situação, mas não o encontraram. Passaram um dia na
cidade andando de um lado a outro. O corpo do pai sequer havia esfriado
sob a terra, disse com um nó na garganta, e já haviam se apossado de seu
quinhão, sendo que ele tinha herdeiros — falou no plural, para que não
soubesse que se tratava apenas da irmã. O homem repetia o que tinha
ouvido, que aquela terra não pertencia à Igreja, diferente da aldeia no
entorno do mosteiro, mas que o verdadeiro proprietário estava vendendo
lotes. Maria Cabocla nem se estendeu nas suas justificativas, sabia que
aquela confusão por terra era igual em todo lugar e, por mais que
explicasse, não surtiria efeito. Precisava proteger Luzia do ódio explodindo
nos olhos do homem, pronto para pará-la de uma vez por todas.
Luzia continuava impassível, concentrada no trabalho pelo qual não
tinha estima alguma. Sonhou em viver na cidade, trabalhar em qualquer
lugar onde não precisasse sujar o corpo e as mãos, suar, ou ver o alimento
comido pelas pragas ou pelo tempo. Em lugar, pensava com ingenuidade,
onde não precisasse se dobrar ao tempo e aos vizinhos. Mas os anos se
passaram e ela não esperava muito mais da vida. Moisés havia partido e era
provável que não regressasse. Nada o unia a Luzia, as mágoas eram feridas
abertas, e o pai já não vivia para justificar seus retornos eventuais. Zazau
espaçava suas visitas, tinha uma numerosa família que a consumia. Joaquim
era comerciante do bairro na capital, tinha vida própria e não voltaria à
aldeia uma vez por ano, como fazia com regularidade. Humberto e
Raimundo estavam no mundo, não sabia se vivos ou mortos. Mariinha
retornaria para os filhos, para a terra conquistada com dificuldades, não se
arriscaria a regressar à aldeia e viver em meio a conflitos, com pessoas
hostis à irmã. A decisão de lavrar a terra tinha sido tomada de um dia para
outro, depois de muito remoer sobre o passado e o futuro. Era arriscada,
mas algo precisava ser feito. Não esperaria que lhe tomassem os restos e se
pôs na linha de frente para reivindicar o que considerava legítimo. Se não
fizesse algo por si, estava fadada a desaparecer como tantos outros
desejaram.
Resignada, lançava a manaíba na cova aberta, e fechava, paciente,
ignorando tudo mais à sua volta. O homem gesticulava com os braços,
Maria Cabocla falava cada vez mais alto. Então, ele ordenou que ela
parasse a irmã, do contrário ele não responderia por si. O outro homem se
aproximou e começou a insultar as duas. Mandou que procurassem o que
fazer, que eles precisavam trabalhar para levar comida para casa. Duas
mulheres velhas… deveriam estar em casa cuidando da família — se
exasperou. A medida do tempo eram as cabeleiras grisalhas, os fios
brancos. Eram as rugas e a pele começando a se tornar flácida. Era a
deformidade nas costas de Luzia, que parecia ter diminuído mas ainda
demarcava seu corpo como um espaço indissociável do mundo onde se
encontrava. Era a aparente fragilidade da magreza de Maria Cabocla.
Percebendo que Luzia não parava, o homem passou a abrir as covas
onde ela lançava a manaíba. Procurou pela primeira, abriu com a enxada,
jogou o toco para o lado. Abriu outra e outra, jogava o toco para cima com
uma porção de terra úmida. Maria Cabocla o seguia para evitar uma
tragédia, não saía de sua cabeça que ele poderia parar a irmã com a pá que
carregava. Um golpe e ela estaria aniquilada. Ela se pôs alerta, com os
braços soltos mas firmes para agarrá-lo caso tentasse agredir Luzia. Ele
seguia abrindo as covas e lançando no ar terra e toco de mandioca. Uma
dessas porções parou sobre o cabelo de Maria Cabocla, que limpou a boca e
os olhos com a mão. Até que ela não suportou mais o medo à espreita, já
tinha visto a morte por causa de cerca e de terra, por causa de briga de
vizinho e por ganância de fazendeiro. Gritou para Luzia parar.
“Deixe disso, Luzia, vamos! Esse homem vai te fazer uma desgraça.”
A princípio ela não respondeu. Cavava, tirava um toco do cesto que
empurrava com o pé direito, lançava-o no buraco, fechado logo após com a
enxada. Mas o homem tentava ser mais rápido, tinha força e juventude, e se
aproximava cada vez mais de Luzia, que por muito que estivesse disposta
era mais lenta. Quanto mais ele se aproximava, mais Maria Cabocla gritava,
repetindo a sentença como uma ladainha. Pedia que Luzia deixasse tudo ali,
tentariam resolver de outra maneira. Luzia trabalhava como se estivesse em
transe, atravessada pela vida, pela necessidade, por indignação e raiva. O
homem arrancou o último toco do chão antes que ela plantasse o seguinte.
Parecia ter vencido a guerra.
“Luzia, Luzia, pelo amor de Deus, deixe o diabo dessa manaíba aí!
Estou vendo a hora de esse homem te matar.”
Luzia parou, levantou o rosto suado e coberto de terra. Ela estava suja
porque ele se aproximava arrancando os tocos e os fragmentos de terra e
mato recaíam sobre seu corpo. Agora uma lama grossa feita de barro e suor
descia de sua face. Mas ela não guardava nenhuma expressão de desgosto
ou desânimo em seu semblante. Ignorou o homem e a ameaça. Olhou para
Maria Cabocla com um ar de insubmissa satisfação.
“Não paro, Mariinha.”
“Mas ele vai fazer uma desgraça”, Maria Cabocla disse, olhando com
firmeza para o homem que respirava ofegante e tinha o ódio incendiando
suas expressões.
“Pois que faça! Se ele me matar, vai matar uma mulher honesta e que
está trabalhando. Não posso mais ter medo.”
Prosseguiu com o plantio. A irmã a cercou com um galho retirado do
chão para protegê-la. O homem continuava a retirar os tocos de manaíba e
dizendo palavrões aos quatro cantos. Até que, no momento seguinte, Maria
Cabocla puxou com força a enxada das mãos de Luzia. No início a irmã
resistiu, achou que ela havia se deixado vencer pelo pavor da violência. A
mulher que trabalhava concentrada, conciliando urgência e paciência,
resistiu, gritou, mas já tinha perdido o instrumento. Mas quando a outra
estava com a enxada nas mãos, se pôs a abrir as covas com mais rapidez.
“Coloque as manaíbas. Eu abro o buraco”, ordenou Maria Cabocla.
As palavras agressivas se tornaram mais abundantes, mas elas agora
estavam juntas. Não havia ninguém da Tapera por perto e eles poderiam
golpeá-las sem que houvesse chance de defesa. O homem continuou a
retirar os tocos com violência e a terra pesada de umidade voava recaindo
sobre os corpos das irmãs. Elas sabiam que o trabalho estava perdido, mas
enviavam uma mensagem de que não seria tão fácil afastá-las. O homem as
humilhava com palavras e ações. Contudo, elas não engoliam o desaforo e
reagiam trabalhando antes de serem vencidas pelo cansaço.
Quando o último toco de mandioca foi jogado na cova, elas se olharam
satisfeitas com o trabalho e a energia despendida. Luzia agora estava sem
fôlego, curvada, o rosto era feito de lama. Maria Cabocla pôs as mãos nas
cadeiras, mirava o campo como se as mudas estivessem no lugar correto
para crescerem fortes. Ignoraram os homens. Luzia pôs o balaio debaixo do
braço, a rodilha de tecido estava aberta no seu interior. Elas começaram a
caminhar juntas para atravessar a cerca.
Passariam pelas farpas do arame, lanhariam a pele, rasgariam um pouco
mais as vestes. Mas não se sentiam derrotadas. Pelo contrário: sem que
dissessem palavra, experimentaram a força sem nome que só os que se
consideram vivos conseguem sentir.
14
Uma labareda caminha pela aldeia deserta. Percorre as ruas tomadas pelo
silêncio e chamusca as pedras do calçamento sob seus pés. Não teme a ira
de sua gente. Os olhos ardem e o peito inteiro é uma flâmula oscilando no
ritmo da própria batida. A labareda atravessa o que restou do mosteiro, os
vãos escuros impregnados do fedor do incêndio. Percorre os espaços entre o
rio e a igreja, mas também o passado e o presente, a memória e o
esquecimento. Constata que o salão do mar continua ali, de pé.
Seu interior não é apenas um vazio, embora entre as velhas paredes não
haja móveis e o telhado tenha sido reduzido a cacos. Restam fragmentos de
objetos e a vegetação que cresce nas frinchas do edifício. Como no passado,
o fogo poupou a ruína do salão, seja pela permanente umidade das águas do
rio se entranhando nas paredes, seja por algum mistério impossível de
explicar.
É mais que a curiosidade habitual a convocar Luzia para o recanto
secreto da aldeia. Naquele espaço ocupado pelas águas da maré alta
recobrindo o chão de terra, há pedaços de correntes de ferro corroídas pela
ferrugem, ripas de madeira escuras e podres, paredes molhadas ao relento
resistindo ao tempo. Nas entranhas do mosteiro vive a história da aldeia.
Tendo penetrado a construção no dia em que procurou pelo menino perdido,
experimentando a amplidão dos próprios sentidos, Luzia esperou muitos
anos para retornar àquele lugar. Somente depois do incêndio — a
construção desabitada —, ela se dirige com regularidade aos restos do
mosteiro.
Luzia deixa a casa antes de o sol se levantar. Ultrapassa os escombros e
empurra a grande porta emperrada, a única que foi poupada pelas chamas,
pondo os olhos sobre a chaminé onde existem ninhos de diferentes
pássaros. Antes de descer ao vão, admira a vastidão do espaço. E basta pôr
os pés no recinto para os sussurros, as vozes, os lamentos, os gritos
preencherem seus sentidos. O vento traz os sons — de onde? — e o rio
penetra as passagens devagar, formando no chão um espelho d’água.
Embora não seja capaz de compreender o desenrolar da história da
aldeia, Luzia sente o aportar das embarcações de outros tempos na margem
do Paraguaçu. Divisa através do espelho formado pela maré alta o
desembarque de homens brancos vestidos de uma maneira que não se vê
mais. Inala o forte odor que trazem nos corpos pelas longas distâncias em
meio à imundice dos navios onde viajam acompanhados de mais homens de
hábitos escuros. Estes juram ter o poder de conversar com os deuses e
decidir sobre a vida e a morte de qualquer pessoa.
No começo, o povo acredita serem os visitantes os xamãs da terra sem
males andando por cima das águas.
Por isso se põem a escutar com atenção ao redor da cruz erguida, mesmo
sem entender sua língua. Riem dos olhares de espanto quando eles se
mostram surpresos por tudo o que admiram: o corpo forte, as penas
coloridas, o conhecimento dos caminhos para chegar às fontes da vida. Mas
não se sentem confiantes nem mesmo seguros na presença dos visitantes e
os vigiam tentando compreender aonde querem chegar.
Percebem então que, embora os homens brancos dominem o fogo e
disponham de tacapes que lançam chamas, não podem ser xamãs, por
sempre demonstrarem medo diante do desconhecido. Mas logo em seguida
a teoria de que são xamãs se fortalece por carregarem os males para o povo
da aldeia, que começa a adoecer. Luzia é mais um dos da terra e sente,
como eles, a fraqueza os tomar de assalto. O conhecimento dos pajés não é
suficiente para curá-los.
Antes que todos que aqui estavam desapareçam, alguém marca os
homens brancos como inimigos e conclama para que os mortos sejam
vingados.
Decidem então que serão devorados, como aqueles cuja punição é
irrevogável. Mas para tanto precisam se tornar humanos. É quando raspam
seus pelos porque são parecidos com os uacaris, e cortam seus cabelos
como os dos homens da aldeia. Depois pintam seus corpos e se sentam para
comer e beber cauim por muitos dias, vivendo juntos como se fossem da
família.
Todos dançam sem suspeitar que a morte está à espreita.
Os homens brancos acreditam que se tornaram, cada um, um deles,
mesmo que seus pensamentos estejam em busca de rotas e meios de fuga.
Antes de reclamar a si a nova condição de homens da terra, são mortos —
com bordunas —, cozidos e devorados. Quando os demais sabem do
sucedido, fogem acossados pelo medo.
A vida se esvai como água escorrendo entre os dedos.
Os que ficam passam a repetir os gestos e a história dos homens brancos.
Agora vivem entre eles os filhos dos estrangeiros, paridos pelas maués. Não
se passa muito tempo até que novos homens brancos retornem com os
xamãs deles em embarcações maiores carregadas de tijolos e cativos
trazidos de além-mar. Erguem dia e noite uma grande maloca de pedra onde
todos irão trabalhar e morar com os deuses. Alguns cativos morrem de
exaustão por trabalharem sem descanso até nas noites de lua cheia. A
persistência dos homens brancos faz um grupo da aldeia se render, seduzido
pelos deuses alheios. Outros morrem doentes. A maior parte abandona a
terra e viaja por léguas, enquanto os homens brancos espalham dor e morte.
Quando a grande maloca está pronta, os cativos sobreviventes
continuam a trabalhar para os xamãs dos homens brancos. O rio traz mais e
mais cativos desterrados à comunidade. Alguns se unem às mulheres da
aldeia nas cerimônias dos padres, para não ter que viver na terra dos males.
Continuam a trabalhar no canavial sem fim ao redor da maloca.
A grande maloca é chamada de igreja, e mais trabalhadores
desembarcados dos tumbeiros são transportados por oceano e rio até a
aldeia.
Luzia deixa o salão do mar e segue pelos caminhos da Tapera. Passa as
horas reverberando os ecos de sua experiência. Quando se sente preparada,
retorna às ruínas do mosteiro. Penetra na umidade do salão, os pés fincados
no charco da maré baixa enquanto os sons invadem os sentidos e projetam
imagens desconexas em seu espírito. Ela reúne os fios da história como se
dispusesse de um tear e urdisse um cobertor para estender sobre a Tapera.
A terra e o céu, as paredes carcomidas pelo fogo e pelo tempo, as ervas
crescendo nos campos abandonados, as cheias e as vazantes do rio e da
maré, os ventos ora mansos ora violentos, contam a história de vida e morte
de sua gente.
Quando a água para de oscilar no chão, Luzia vê imagens sobrepostas ao
céu e ao seu rosto murcho refletidos na poça. Um cativo passa por ela e
grita, desafiando o feitor que segura um vergalho. É dia de serviço de
enxada, corte da safra de cana no engenho ao redor da igreja. Outro cativo
se dirige furioso ao padre. Diz que não vai limpar os pés de cana porque era
trabalho feito. Resmunga, amaldiçoa a vida no engenho. O padre promete
castigo e ordena que o feitor e outro prisioneiro o levem para o salão do
mar.
Quando deixam o canavial, o trabalho é paralisado. Um clamor irrompe
em meio às folhas verdes das hastes de cana e encontra o céu. A súplica é
carregada pelo vento, atravessa os anos e encontra Luzia em seu tempo.
Ela fecha os olhos quando não se sente capaz de assistir ao sofrimento.
Aquela dor também é sua e percorre seu corpo cada vez mais vulnerável.
Luzia precisa proteger a mente e o coração. Quer manter intocável algum
ponto de seu espírito. Mas escuta os gritos de uma mulher cativa quando o
tacho da garapa fervente é entornado sobre ela. Não se sente capaz de olhar
a pele se desfazendo ao ser queimada.
Luzia vê o homem castigado pelo vergalho ser preso por correntes à
parede do salão do mar. Ao seu lado uma mulher esquálida, pele e osso, e
um prato de comida coberto de moscas que parece não ter sido tocado. Ela
o distrai contando que não é ladra nem revoltada, mas que está presa para
não comer mais terra. Por um momento ele esquece a agitação e se põe a
ouvir a mulher. Ela fita os olhos do revoltado com os seus, amarelos, e
conta: sem poder cavar a própria cova, ela se enterra por dentro na
esperança de um dia concluir seu próprio sepultamento.
Luzia se sente tonta, sacode a cabeça, a respiração acelera. Se recorda
quando os lençóis da igreja tingiram de vermelho as águas do Paraguaçu.
Ela levantava as mãos e as cheirava. Olhava o tecido sem acreditar no que
via, erguendo-o contra a luz. Precisava saber se havia mancha capaz de
tingir a água daquela maneira. Rezava pai-nossos e ave-marias e dizia a si
que era o Mal a desafiá-la. De tanto a gente da aldeia dizer que Luzia era o
Mal, ela havia se tornado parte dele. Depois achou ser um sinal de Cristo, as
chagas de seu suplício. Mas quem acreditaria na feiticeira? Não podia
confessar a dom Tomás suas visões, era capaz de ser impedida de lavar as
roupas, pondo um fim ao seu sustento.
Seus olhos pousam de novo sobre a poça d’água.
Um grupo de cativos para de trabalhar e se dirige ao local para onde o
rebelde foi levado. Pedirão o indulto do irmão, do vizinho, do camarada.
São os cativos da religião servindo a Deus e à ordem. Eles retiram o chapéu
diante do sacerdote e pedem misericórdia pelo rebelde. Dizem que estão
dispostos a limpar juntos os pés de cana. Mas dom Lucas está possesso,
vocifera inclemente, considera insubordinação o pedido de perdão. Decide
que todos serão castigados e lançados à míngua no salão. O padre olha para
trás à procura do feitor e de seus ajudantes, mas não os encontra. É preciso
castigá-los para o descontentamento não se tornar uma rebelião.
Um dos cativos ergue a enxada e golpeia a cabeça de dom Lucas. Foices,
enxadas e barras de madeira destroçam seu corpo.
Luzia abandona a ruína com passos ligeiros. Contudo, a história não a
abandona nem durante o sono. Ela sente ser imperioso voltar até não ter
mais nada a conhecer. Regressa, atravessa as paredes erguidas por seus
antepassados e penetra o portal até o núcleo do salão. Encontra a poça seca,
não poderá mais ver. Mas os sons, os sussurros, os gritos, começam a
invadir o vão. Luzia ouve os homens se aproximando do canavial. A
calmaria se faz quando os instrumentos cessam de trabalhar. Alguém grita
aos que ficaram:
“Matamos o Diabo. Está estirado na porta da igreja.”
Algumas mulheres choram e fazem menção de ir em direção à igreja e
os homens obstruem a passagem. Antes que todos possam prosseguir, uma
coluna de fumaça se ergue em direção ao céu. O dia se torna noite no
passado, e agora o corpo de Luzia estremece. Uma mão pousa sobre seu
ombro.
É o Menino.
“Era desse lugar que eu falava.”
2
Nos dias que seguem seu retorno da Tapera após o sepultamento do pai,
Moisés não tem notícias de dom Tomás. Continua a servir às mesas, e
esquadrinha cômodos e corredores do antigo casarão colonial nos horários
de maior movimento. Observa os eventuais noviços que surgem para a
refeição. Não consegue se lembrar dos jovens que haviam acompanhado o
abade nas vezes em que esteve no restaurante. Refaz os dias em sua mente,
mas não é capaz de recordar, da mesma maneira que o rosto de dom Tomás
continua a ter traços indefinidos em sua memória.
Não irá prosseguir com seu interesse de saber o que se passava na mente
do abade para fazer o que fez. Não esqueceu da violência, mas tampouco
desejou um acerto de contas. Se deixou levar pelas urgências. Era preciso
sobreviver à cidade e, mais ainda, contornar os desafios mais imediatos: a
fome para matar, um teto para se abrigar e um trabalho para se sustentar. O
ressentimento foi ultrapassado pelas necessidades, embora descobrisse que
o desejo de reparação poderia ser uma semente adormecida pronta para
brotar em meio ao deserto da existência.
Quando se dirigiu à Tapera para visitar o pai, temeu encontrar Luzia. A
imaginava cheia de mágoa por sua fuga, por ter interrompido o sonho de
vê-lo formado na escola do mosteiro, por ter subtraído o dinheiro que ela
havia economizado às custas de privações. Temeu os próprios sentimentos,
afinal se ofendeu com as dúvidas que ela devolveu à sua confissão sobre os
abusos que sofreu. Deixou a aldeia carregado de mágoa por todos os maus-
tratos recebidos e pelo que Luzia não conseguia expressar.
Remoeu inclusive a ausência de notícias sobre sua busca. Luzia e pai
Mundinho pareciam ter desistido dele. Enquanto esteve na casa de Joaquim,
não teve informação de que o procuravam, nem mesmo de que quisessem
saber onde vivia. Ao deixar a casa de Joaquim, escutou de Jandira, num
rompante de humilhação, que ele não era irmão do marido, mas o filho
rejeitado de Luzia. Conhecia a história do seu nascimento, de como Alzira o
coou com a própria roupa para que não morresse afogado no Paraguaçu.
Não imaginava que a indisposição de Jandira com ele fosse grande a ponto
de ela inventar uma mentira tão grande para o ferir. Num primeiro
momento, pensou em tirar a prova da história junto a Joaquim — Luzia era
sua mãe? —, mas o orgulho o impediu de buscar uma explicação, restando-
lhe ecoar as palavras implacáveis em sua consciência.
O regresso ao Paraguaçu lhe devolveu um mundo perdido. Não sentiu
vontade de evocar as ausências, nem de se lamentar ou obter reparação.
Pai Mundinho se mostrava fraco e o hálito guardava a gravidade de seu
estado. Talvez por isso estivesse afetuoso como raras vezes tinha sido.
Riram sem jeito da inaptidão que Moisés demonstrava para o trabalho na
terra por estar com a cabeça nos livros e os sonhos navegando o rio.
Naqueles instantes a tristeza dos anos habitava o passado e não provocava o
mal-estar de antes. Ainda assim, Mundinho desejou o perdão por ser
incapaz de compreender que aqueles eram valores criados por outrem. Se o
mundo poderia ser diferente, talvez fossem necessários outros sentimentos
para substituir os consagrados. Se rendeu às velhas emoções por prever que
sua hora se aproximava. Não queria fechar os olhos sem levar consigo os
males que porventura tivesse infligido aos seus.
Moisés pousou os olhos em Luzia e naquele instante não quis que sua
mágoa continuasse a ter o lugar que um dia teve. Foi além: no corpo frágil
da mulher que começava a envelhecer, a mulher que não havia desejado ser
mãe e que talvez tivesse motivos para tê-lo rejeitado, continuava a
despontar o espírito irrequieto e magnético, jamais sufocado, nem mesmo
nos anos de medo e perseguição. Descobriu sentir falta de sua presença
inflexível demonstrando uma força difícil de definir, sempre exigindo o
melhor para que ele aprendesse a sobreviver. A imagem de Luzia
equilibrando a trouxa na cabeça, resistindo às zombarias, suportando o
fardo da vida nas costas e sem nunca deixar de se levantar quando levada ao
chão, era a única a perdurar.
Por isso mesmo voltou da aldeia, talvez desconsiderando revirar o
passado. Por mais que reconhecesse o sofrimento a que tinha sido
submetido, e mesmo o impacto da sua decisão de se retirar da Tapera do
Paraguaçu quando era pouco mais que um menino, lembrar seria reviver, e
não estava disposto a atravessar tudo outra vez.
Seria assim, não fosse o despertar da alma selvagem atravessando seu
corpo depois de percorrer os séculos.
A intuição o levou a descobrir que a incapacidade de perdoar ou
esquecer tudo que o mortificava era também a necessidade de recriar a
memória. Um monumento a ser narrado ao tempo, celebrando a devoção
em oposição ao esquecimento, a transformação em contraponto à
constância. Era preciso preparar o inimigo a ser devorado pela história.
A consciência remota, inscrita nos rios que percorriam seu corpo, o fez
parar na porta do mosteiro da cidade, mais suntuoso do que o que havia sido
queimado na aldeia, quando se dirigia à praça onde a condução o levaria
para sua residência. Com a voz baixa e os olhos domados por uma falsa
consternação, se apresentou como um ex-aluno muito grato por tudo que
recebeu de dom Tomás. Ouviu que o abade estava cada vez mais debilitado
e não recebia visitas. Mostrou os olhos úmidos, a voz embargada e uma
vulgar compreensão da fragilidade de seu estado.
Sem se dar por vencido, retornou outras vezes, com frutas frescas e
depois com um livro roubado, anos antes, da mesa da diretoria da escola do
mosteiro. Fez questão que lhe entregassem com um bilhete assinado por ele,
com palavras de preocupação com o preceptor. Esse livro, o bilhete eivado
de pieguice, e a descrição do homem que retornava com regularidade à
portaria do mosteiro na esperança de ter a oportunidade de reverenciar o
velho mestre, tornaram o encontro possível.
Moisés caminhou pelos longos corredores do mosteiro com incontida
admiração: as paredes ostentando pinturas antigas, o assoalho de madeira
nobre rangendo com seus passos, os monges — como os que atormentavam
a vida da Tapera — andando em silêncio e conjurando os próximos atos da
guerra moral a serem incutidos no pensamento do rebanho. Matar a imagem
— Moisés profanava em sua mente a linhagem de prelados exposta na
parede — e prosseguir em direção ao ato derradeiro.
Quando transpôs a porta do quarto de dom Tomás, observou o ambiente
abastado de madeira negra, cortinas pesadas e lençóis de linho, como os
lavados por Luzia. A compaixão pelo trabalho exaustivo dela, desgastando
as mãos nos tecidos encardidos do mosteiro, alimentava ainda mais o
desprezo pela religião. “Então é assim que vivem?” — fingir surpresa a si
mesmo, fogo aquecendo o metal onde o inimigo seria cozido. Dom Tomás
não era o mesmo, à exceção da respiração ruidosa preenchendo o ambiente.
Um monge havia deixado o recinto sob a ordem da mão trêmula de seu
superior e fechado a porta.
De um lado havia a expectativa do perdão. Do outro, o compromisso
com a vingança. Sem preâmbulos, dom Tomás quer saber as razões para
Moisés insistir em encontrá-lo.
“O senhor sabia desde o encontro no restaurante quem eu era, embora
fingisse não saber”, diz de maneira direta.
Nesse ponto dom Tomás silencia e depois tosse, encurvando o corpo
para ressaltar a própria debilidade. Diz ter necessitado de tempo para
refletir, se aconselhar com Deus e decidir como pedir perdão. Tenta travestir
seus atos com o manto da inocência ao tratar seus sentimentos como
genuínos e por vezes mal interpretados. Insiste em chamar Moisés de “meu
filho”, antes de ser advertido para o chamar pelo nome.
“Por que o senhor agiu daquela forma? Eu era apenas uma criança” —
Moisés procura os olhos do abade, que não se desviam.
“Eu queria cuidar de você. É verdadeiro que era meu preferido, o filho
que Deus havia mandado para mim.”
“Um filho para servir aos próprios propósitos de quem o concebe” —
Moisés diz algo pior.
“Não!”, dom Tomás reage. “Desejei o melhor para você.”
Se Moisés pudesse olhar para trás, muito além do que viveu ou do que
seus pais, avós e bisavós viveram, talvez, entre os tupinambás, é provável
que pudesse conhecer a contenda entre o matador e o cativo a ser devorado,
antes do ato de morte. Todo o drama, debate e sacrifício, e a discussão
calorosa girando em torno da honra do guerreiro.
“Veja como você anda. Olhe seus trajes”, disse dom Tomás. “Enquanto
se educava, eu sonhava com você como professor, engenheiro, diferente dos
miseráveis moradores ao redor do mosteiro. Mas você foi trabalhar num
restaurante como um serviçal…”
Moisés considera não prosseguir. A crueldade do discurso enfraquece
sua determinação e deixa seus olhos marejados com a lembrança da
tormenta, dos pesadelos, da enurese que deteriorava ainda mais a relação
dele com Luzia. Mas uma flecha atravessa seu peito para despertá-lo dos
desenganos a guiarem o debate.
“A vida não acabou para mim e só estou aqui diante do senhor para que
eu mesmo consiga prosseguir”, diz com um tom de voz mais alto.
“Abra aquela gaveta, meu filho”, dom Tomás diz, reproduzindo o
mesmo gesto de antes com a mão que se encontrava livre, a mão sempre
disposta a dar ordens aos subalternos. “Traga a caixa que está logo à
frente.”
Moisés cogita não se levantar, temendo romper o encanto da reparação,
mas é movido por curiosidade, a necessidade de escrutinar tudo. Abre a
gaveta arrumada com esmero e retira uma caixa polida. Deixa-a próxima às
mãos do abade.
Dom Tomás retira um envelope, e dele cédulas de dinheiro. Põe tudo
sobre a mesa e empurra o volume devagar em direção a Moisés, que não se
cobre de vergonha, nem de indignação. Apenas se concentra para não
perder o controle da situação.
“É para você se arrumar na vida”, diz dom Tomás antes de suspirar
visivelmente cansado. “Para mostrar minha preocupação.”
Moisés continua a observar o abade e cita o nome das crianças que
atravessaram a porta da sala da diretoria. O velho sacode a cabeça como se
não quisesse escutar, mas confessa que sim, que não quis macular, mas
iluminar a vida das crianças conforme os desígnios de Deus. Ele recorda
que cada toque era desonra, mancha que não se apaga com o tempo. As
vozes travam um crescente duelo até que dom Tomás baixa a cabeça.
“O senhor se sente pronto para morrer?”
“Eu estou velho, mas ainda tenho tempo. Por que deveria estar pronto
para morrer?” Parece aterrorizado.
“Porque seu corpo fede, dom Tomás. É como se já estivesse morto.
Viver atormentado pela culpa é morrer um pouco a cada dia. Seu tempo
acabou.”
3
Mais cedo, enquanto caminhava com a trouxa, Luzia foi assaltada por
muitas imagens. Uma delas era a do recanto do rio onde lavava a roupa
tingido de sangue. Por um tempo acreditou ser culpa dos males que
carregava, sem cogitar outra motivação. Tentou afastar o mal rezando com
mais frequência, pedindo a Deus que mantivesse longe de sua vida aquela
aparição. Sem resposta, começou a considerar que o sangue vertia de
estigmas que não conseguia ver. O rio, as árvores derrubadas para ampliar o
plantio de cana, os pássaros aprisionados pelos alçapões dos homens e
meninos que os vendiam na estrada, os peixes anunciando o desaparecer.
Talvez fosse a chaga do mundo, e Luzia era incapaz de estancar a ferida.
Conformada, não contou a ninguém sobre o que via. Prosseguiu com a
lavação e frequentando as missas. Se benzia quando dobravam os sinos e a
ave-maria tocava no rádio da cozinha. Precisava do dinheiro do trabalho, e
qualquer deslize identificado em sua confissão faria a revelação se voltar
contra ela mesma.
Foi assim que ela prosseguiu com a labuta. Para os lençóis mais
encardidos usava barrela. Fervia os tecidos num caldeirão alimentado por
uma fogueira no quintal; deixava para quarar à espera do branco imaculado
exigido pelos monges. Não conseguia deixar de pensar em sua mãe à espera
da graça de uma descendência cada vez mais clara para se redimirem da
miséria. Pudesse embranquecer os filhos como se alveja um tecido, ela teria
feito. Se antes Luzia considerava um desatino o delírio que a levou à
desonra, diante das dificuldades acentuadas pelos anos passou a considerar
os sonhos da mãe sintoma da crueldade de seu tempo.
A mãe elevava as mãos ao céu à espera da graça, sem nunca a alcançar.
Remoendo o passado, Luzia tremeu no jardim do mosteiro esperando
pelo pagamento. Ensaiava em silêncio o comunicado a ser feito sobre sua
decisão de não lavar mais a roupa do mosteiro e lhe veio a imagem das
roupas de criança no cômodo usado pelo abade. Observou aquele achado
com estranhamento. Depois se agitou com o vaivém de meninos a caminho
da sala do abade. “Provável que fosse sempre assim. São demônios e já não
se interessam pela escola.” Mas as acusações do Menino retornaram,
semeando a dúvida.
Antes que viessem até sua presença, e Luzia pudesse dizer, controlando
a indignação, que não lavaria mais a roupa, ela se ocupa de evocar os fatos
da última semana. Se sentia indisposta, não gozava da mesma energia do
passado, embora a necessidade de trabalho permanecesse. As mãos doíam
nas manhãs de inverno depois de encontrar a água fria do Paraguaçu. As
mesmas mãos empunhavam o pesado ferro de passar para livrar os tecidos
dos vincos e amassados. Mas Luzia não guardava o interesse de antes pelas
coisas do mosteiro. Entrou e saiu distraída dos cômodos, com a certeza de
que havia se tornado invisível.
Enquanto recolhia as peças que seriam lavadas, percebeu a porta da sala
do abade entreaberta. Se certificou de que estava vazia. Provável que fosse
a hora das preleções aos monges e ela aproveitou para recolher o que podia
antes do fim do dia. Em meio à distração, os pensamentos percorrendo
veredas incontáveis, ela abriu a porta do banheiro para retirar as toalhas.
O abade esfregava as costas de um menino durante o banho e voltou o
rosto para trás, enquanto Luzia fechava a porta tomada pela surpresa.
Num primeiro momento, Luzia sentiu vergonha de ter invadido o espaço
por aparente desatenção e deixou a sala sem as peças recolhidas. Mesmo
com o andar lento, ela conseguiu avançar até o cômodo seguinte. Quando
dom Tomás surgiu no corredor para se certificar sobre quem havia deixado
o recinto — uma corrente de ar fechara a porta esquecida entreaberta? —,
Luzia se encontrava num ambiente abafado, ofegante, desejando abrir a
janela, mas sem coragem para emitir ruído algum. Aos poucos a vergonha
ficou em segundo plano. As confissões de Moisés voltaram precisas, plenas
de sentido, enquanto sua incapacidade de perceber o que ele dizia e o fato
de ainda o acusar de mentira deixaram seu corpo mais encurvado e abatido.
Restou a certeza de que havia falhado de maneira desprezível. As
lembranças da impaciência, da violência dos castigos, das mentiras
sustentadas até sua partida para que ele não conhecesse sua exata origem
retornaram intactas. E veio mais: os pesadelos que o atormentaram, os
lençóis empapados de urina, o desinteresse pelo estudo. A vergonha não
tinha mais o mesmo sentido de minutos antes, mas era agora uma flecha a
atravessar seu peito. Luzia foi incapaz de tratar a revelação de Moisés sobre
sua desonra como uma dúvida. Pelo contrário: lançou sobre ele a certeza da
mentira — sem hesitar por um instante —, tão confiante se sentia nas
virtudes da Igreja.
Na manhã antes do incêndio, Luzia continuou a remoer a revelação que
a havia atormentado durante os últimos dias. Por fim, quando dom Tomás
se aproximou, ela se cobriu de coragem para fazer o anúncio:
“Eu não vou mais lavar a roupa do mosteiro.”
Ele quis saber por quê. “Não posso mais”, Luzia respondeu, “já não
tenho a saúde de antes” — e inexistia inverdade na sua resposta. Só não
conseguia dizer o que a sufocava. Na correlação de forças com a Igreja
sabia estar fadada à derrota. O abade tinha a aldeia nas mãos e poderia
fomentar a perseguição de Luzia, como havia ocorrido em anos idos, e seu
pai poderia ser privado de trabalhar a terra.
Dom Tomás não insistiu. Talvez já esperasse que a lavadeira abdicasse
de seu posto. A lavação de Luzia não tinha o mesmo esmero de outrora.
Pediu então que esperasse pelo pagamento. Ela permaneceu de pé
observando o mosteiro à sua volta. Anos percorrendo o edifício à exaustão
sem receber nenhuma palavra de gratidão. Se tratava de sua obrigação,
afinal era paga para tanto, e não havia por que os monges agradecerem por
um trabalho contratado. Desnorteada, caminhou pelos corredores à procura
do salão onde tinha encontrado o Menino depois de tê-lo perdido de vista.
Mas, em vez de encontrar o salão, Luzia subiu a escada e terminou por
entrar num dos cômodos. O calor era grande, e quase sem ar, abriu a única
janela do ambiente. O voal da cortina envolveu seu corpo e uma revoada de
maritacas emitiu sons estridentes. Enquanto as seguia com olhos e sentidos,
notou sobre o parapeito da janela um olho-de-fogo-rendado. Luzia ficou
paralisada pela raridade do pássaro, segurando a respiração para não o
espantar. O animal inclinou a cabeça em busca de um ângulo, devolvendo o
olhar curioso, como quem tivesse descoberto uma espécie nova.
Luzia ergue o rosto da terra para onde estava voltado e retira uma porção de
barro da boca. Tem o corpo fatigado de trabalho e ressentido pelas pedras
que se chocaram contra suas costas, e mesmo assim encontra forças para se
levantar. Um pequeno grupo à sua volta brada orações e maldições. Mas ela
está resignada, afinal se prepara há anos para o acerto de contas. Nesse
exato momento seu pai deve estar desolado no campo, embriagado,
retirando ervas daninhas crescidas onde não há cultivo ou deitado sob a
sombra do jequitibá à procura de forças para voltar para casa. Passa pelos
pensamentos de Luzia que, antes do retorno do pai, darão cabo de sua vida
e não restará mais nada para contar a história.
“Não quero morrer sem ver Mariinha”, é o pedido que a atravessa com
angústia enquanto se levanta. Ao mesmo tempo deseja boa sorte ao Menino,
onde quer que ele esteja, sem conseguir se perdoar pela injustiça de sua
descrença quando ele confessou a violência que sofreu. A facção carrega
paus e pedras e brada furiosa. Quanto mais fragilidade Luzia aparenta, mais
determinados parecem para o juízo final. Percebe que a queda ou as mãos
que a encontraram rasgaram sua roupa, deixando um dos seios à mostra, o
que a faz se encolher na tentativa de recobrir sua nudez.
Luzia tenta, mas não encontra meios de deixar o centro do círculo
formado à sua volta. Sob seus pés está a terra, a mesma terra por onde
andaram viajantes de muitos caminhos, a mesma terra de onde retiravam os
alimentos e onde recolhiam seus mortos. Ela observa seus pés desnudos
sem encontrar as sandálias, que devem ter se perdido enquanto fugia da
perseguição. Do barro vermelho, teve a impressão de ver olhos
aterrorizados brotando feito cogumelos depois da chuva, os olhos de Maria
Cabocla quando a viu cercada pelas mesmas pessoas no dia em que o
vestido de Edite foi encontrado.
Enquanto ergue o corpo, imagina uma coruja se levantando do chão para
percorrer a noite. Ave de mau agouro — a aldeia diria —, e por trás da
repulsa existe também admiração. Toda vez que observa uma coruja se
levantar para encontrar o céu, Luzia se benze, e, no entanto, não descansa
os olhos até perdê-la de vista na escuridão. Há dias Luzia retorna a uma das
muitas histórias contadas por sua avó Didita, depois por seu pai, e que diz
respeito às crenças dos pioneiros. Os antigos guerreiros se recobriam com
um manto de penas das aves da mata que circunda a aldeia. Araras,
carcarás, canários-da-terra, sabiás, galos-da-serra, guarás, maritacas, corujas
e o olho-de-fogo-rendado, emprestando seus ornamentos para vestir os
eleitos. Nos rituais de dança se tornavam grandes pássaros a alçarem voo.
Se por dentro Luzia é uma candeia que aos poucos se torna uma
fogueira, por fora ela quer se cobrir com o manto imaginário. Sem ter como
escapar da emboscada, só lhe resta encarnar a salvação e se libertar da fúria
do povo da Tapera. Quando se põe de pé, recebe outra pedra no ombro. Não
se curva à dor nem à morte, e levanta os braços como as aves erguem as
asas quando se preparam para cruzar o espaço. Tem que assustá-los, e para
tanto é preciso fazer com que temam o desconhecido. Os seios estão
descobertos e quando percebe ri sem controle. Quem pudesse ver Luzia
admiraria a efígie libertária. Gira o corpo o mais rápido que pode, agita os
braços e parte para cima do rebanho formado por homens, mulheres e
crianças. Grita, e o som penetrante clamado por vozes de todos os tempos
paralisa a algazarra, mobilizada por preceitos difundidos através dos
séculos. Alguns parecem despertar do transe, embora não se redimam da
perseguição implacável. Recuam porque despertaram “o Mal” e se sentem
desafiados por um espírito perigoso. Alguns correm para longe, outros se
afastam devagar, atordoados, e o agrupamento se desfaz.
Após retirar a terra da roupa e de fazer um inventário dos ferimentos
deixados em seu corpo, Luzia se afasta sem olhar para trás, enquanto as
labaredas que consomem o edifício vão escalando o céu. Horas depois, o
som da sirene do carro de bombeiro anuncia o socorro à Tapera, mas aí já é
tarde demais: o mosteiro e a igreja estão destruídos.
Nos dias seguintes Luzia não pensa no incêndio, nem na pequena
multidão prestes a castigá-la sem julgamento. Se deixa invadir por algo a
ser compreendido como um regresso ao começo, a um tempo primordial,
sem memória ou narrativa. Passa a vagar pelas margens do rio, por matas e
estradas, por vielas, de cabeça erguida e sem o temor de antes. Mundinho
estranha a mudança de comportamento da filha, mas não a considera má.
Sem nada dizer, sente agora Luzia liberta da religião, assim como ele
poderá estar desobrigado de atender os cobradores de impostos.
Nesse vagar Luzia recolhe plumas e penachos, penas de toda sorte
encontradas nos quatro cantos da terra que conhece. Guarda tudo num
grande saco de aniagem e o deixa escondido longe dos olhos do pai e de
quem mais chegar à casa. Sem rezas e lamentos, sem missas e procissões,
Luzia pode olhar para dentro para encontrar seu âmago. Depois da morte do
pai, do retorno dos irmãos e, por fim, de suas partidas, ela retira o fardo de
penas guardado sob a cama e as espalha pela casa, imaginando como coser
o manto.
Luzia pretende se vestir da história e decide refazê-lo.
Não há fotografias ou ilustrações para guiá-la em seu intento, então lhe
resta a imaginação. No manto pensava quando viu Maria Cabocla se
emaranhar num ninho de cascavel no meio da mata. Os sonhos iniciais
permaneceram ao largo, e a religião se entranhou profundamente na sua
vida. Os sermões dos padres a envolveram e a tragaram, um mundo
perigoso dividido entre o bem e o mal, e estar ao lado da Igreja era estar ao
lado dos bons. Não havia meio-termo nessa teologia do medo. Mas os
segredos guardados entre as paredes do mosteiro, as injustiças reveladas
com o cair do véu da farsa, lhe deram a oportunidade de examinar a vida
para poder decidir para onde prosseguir. Habitando o desterro do mundo, e
em meio às penas espalhadas pelos quatro cantos da casa, Luzia decide
preparar o manto.
É depois da decisão que passa a encantar abelhas selvagens para colher
sua cera. Encera o cordão de algodão. Trança uma tela à moda jereré das
malhas dos pescadores da Tapera. Pena a pena, a peça ganha forma e cores
num trabalho delicado de inteira entrega que suspende o tempo na aldeia.
Uma mão pousa sobre o ombro de Luzia sem causar desconforto pela
proximidade. Moisés regressou, como havia prometido. Ela faz um
movimento para se reerguer e o acompanhar para fora do mosteiro. Sente
que precisa protegê-lo daquele lugar e se apoia no seu braço para se
levantar. Os dois caminham juntos para longe da ruína.
Ela poderia falar muito sobre tudo que ainda não foi dito, mas ainda
assim prefere se abster de qualquer manifestação. É minha natureza, reflete.
Parece conformada ao perceber que o Menino, diferentemente do que
ocorria no passado, não espera por um afeto. Moisés cresceu e a criança que
um dia foi permaneceu em algum lugar do passado. O tempo seguiu seu
caminho e a ansiedade de se sentir amado se tornou noutros quereres.
Enquanto esteve distante, retribuiu à vida a rudeza e o sofrimento que lhe
foram dispensados. Agora, prefere a recompensar pelos cuidados de antes
com sua presença na Tapera.
Ele não deixa de notar a sutil transformação de Luzia. O semblante
permanece sereno, livre da tensão que a acompanhou durante boa parte da
vida. A corcunda não lhe parece maior nem menor, e nem mesmo sente
motivos para vergonha e piedade. Os vincos na sua face lhe conferem um ar
de mulher mais velha, embora ainda esteja na meia-idade. A trança deu
lugar a uma cabeleira vasta, cacheada e grisalha, inspirando uma aparência
de descuido, mas também de liberdade.
Luzia se mostra curiosa e quer saber sobre o trabalho de Moisés. Ele
aproveita o súbito interesse e conta que foi despedido — sem detalhes —,
mas que tem uma entrevista para um novo emprego assim que voltar à
cidade. Ela insiste em saber mais, pergunta se o novo trabalho renderá
dinheiro. Ele se evade a uma resposta ao perceber que se encontram diante
do rio Paraguaçu. Saveiros, jangadas e canoas navegam à distância. As
poucas embarcações da aldeia restam abandonadas.
Moisés pergunta pela terra de trabalho e Luzia relata o conflito ocorrido
depois de sua partida há poucos meses. Conta pormenores do
enfrentamento, confessando não ter retornado ao lote enquanto espera por
notícias de Joaquim sobre o tal comprador. Luzia está confiante ao lado de
Moisés e mais à vontade para contar até os fatos vividos por seus bisavós.
Se mostra determinada a reaver a terra, e seu argumento simples —
“Sempre foi nossa” — é suficiente para dissipar qualquer dúvida sobre a
legitimidade de sua reivindicação.
Ele quer saber se deve ir até a roça, se identificando como da família e
conhecedor dos direitos, para convencer os invasores de que a terra é posse
deles. Luzia permanece em silêncio e sente uma ponta de emoção ao
perceber a preocupação de Moisés com os assuntos da casa. Depois,
promete pensar, e reitera a confiança em que Joaquim trará enfim boas
notícias. De qualquer sorte nada impede que eles caminhem nos próximos
dias para o tabuleiro.
Ao entrar na sala de casa, ele se depara com o manto de penas cobrindo
uma estaca de madeira. Se aproxima da peça, curioso para saber como e por
que Luzia fez. “Parece fantasia de Carnaval”, ele diz sorrindo, e Luzia conta
ter recolhido as penas durante meses para ter a quantidade necessária para
compor o manto. Não o fez com nenhum propósito, mas talvez quisesse
recordar a bisavó, o pai e as histórias que ouviu na infância. “Era roupa dos
índios”, diz, e explica que se ocupou da costura para o tempo passar mais
depressa.
Então, ela colhe raízes no quintal e prepara uma refeição para os dois. E
deseja que o Menino “se sinta em casa, como nos velhos tempos”, enquanto
capricha nos cuidados. O cheiro de café coado e a luz da manhã envolvem
Moisés no espaço que nunca abandonou por completo. Ele senta na soleira
da porta e o olhar avança além da casa. Enumera as lutas travadas nos
últimos anos e se sente aliviado como um soldado que regressa da batalha
mais sangrenta de uma guerra.
Ao se levantar na manhã seguinte, Luzia não encontra Moisés. Se põe a
lavar a louça, tenta recordar os sonhos da noite. A rede de dormir está no
mesmo lugar. Ao abrir a janela, ela o observa nadando no rio e só naquele
momento tem a certeza de que sua presença na Tapera não era mais um
devaneio. Sente o mesmo alívio que sentia ao encontrá-lo todas as vezes
que precisava saber onde estava — isso é ser mãe? Estava além de sua
razão saber o que a fez rejeitar a criança ao nascer. Era um mistério jamais
desvendado. Um impulso incontrolável que nasceu dentro de seu corpo
abrigando outro corpo que não foi querido, e precisava mantê-lo à distância
para sobreviver. Um corpo crescendo no seu sem qualquer perspectiva de
que ela conseguisse cuidar de alguém, esmagada que estava por toda a vida.
Mesmo assim, de alguma maneira insondável até mesmo para ela, Luzia era
mãe. Lavar, cozinhar, pôr na cama, rezar pela sorte, exigir que estudasse,
castigar quando preciso, ensinar o que considerava justo e bom. Em seu
juízo isso era ser mãe. Ainda que se sentisse incompleta nesse papel por
motivos que não poderia enumerar. Fez o que era possível, sente um certo
dever cumprido, mas não se perdoa por não ter acreditado no Menino
quando contou sobre a violação, e por isso suportaria a culpa até o fim dos
seus dias. E enquanto vivesse faria o que estivesse ao seu alcance para se
redimir.
E pôde se redimir muitas vezes. O procurou desesperada pelo mosteiro
quando se perdeu, até o encontrar no salão do mar. Vigiou com cuidado e
responsabilidade todas as vezes que ele adoeceu. Defendeu e protegeu
quando ele foi atingido por uma pedra dirigida a ela. Desejou sempre o
melhor, tanto que mal pôde esperar para pedir por uma vaga na escola da
igreja. Não eram poucos os sinais de dedicação destinados ao Menino.
E havia também outro sinal guardado em segredo por todos esses anos.
Para ela, aquela era a marca mais especial do seu afeto. Quando o recém-
nascido atravessou a noite, inquieto e sem conseguir sugar o mingau
preparado por Zazau deitada exausta na rede ao seu lado, Luzia o carregou
sem que a irmã percebesse para o cômodo ao lado. Alzira estava na cama,
os olhos se abriram, mas sem reagir, tamanha a melancolia. Ou talvez
confiasse que o momento deveria ser apenas de Luzia e da criança.
Ela deixou a alça do vestido cair e ofereceu o seio esquerdo ao menino.
Ele continuava com dificuldades para sugar, mas ela estava mais paciente
que o habitual e persistiu na oferta. Luzia acreditava que seu rancor era
grande e era muito provável que o leite tivesse secado. Feito a água que
mina de um olho-d’água depois da chuva, o leite ralo pingou e o menino
mamou com tanta avidez que tirou um sorriso desajeitado de Luzia. É o
mesmo sorriso sem jeito — murcho, envelhecido, desdentado — desse
instante em que observa Moisés homem-feito se banhando no rio.
O leite — maná da vida — trouxe em definitivo o menino ao mundo.
Foi seu batismo.
Nos dias que se seguem, Moisés aproveita que Luzia está na beira do
fogão enquanto abana a brasa para queimar a madeira, e diz que precisa lhe
dar algo. Ela para e escuta com atenção. Ele começa a falar, fazendo muitos
rodeios, buscando encontrar a melhor maneira de realizar o que tanto
queria, mas sem saber como.
“Luzia, quando fui embora eu levei todo o seu dinheiro.” Ri, achando
um tanto óbvio falar dessa maneira, como se ela não soubesse o que ele
tinha feito. “Mas eu não esqueci do empréstimo.” E os olhos de Luzia se
movem contestando a palavra “empréstimo”. “Trabalhei e consegui juntar
algo para te devolver.”
“Não, não, não…”, Luzia protesta e dá as costas para Moisés.
“Sim, Luzia. Aceite. Pode comprar qualquer coisa de que precisa.”
“Não precisa. Estou bem”, replica demonstrando certo orgulho.
“Aceite, Luzia, vai.”
Ela não olha para Moisés por reserva, mas sente nele a expectativa de
que aceite a oferta. Recusar pode decepcioná-lo, e isso é tudo que não
gostaria de ver acontecer. Luzia estende a mão e recebe o envelope. O
guarda no bolso da saia, e continua a abanar o fogão até que o crepitar das
chamas lhe dê a certeza de que o fogo se assenhorou da madeira.
Quando está sozinha conta o maço de notas e decide sem pestanejar o
destino do dinheiro. Dali a uns dias estará no consultório do único protético
da cidade para orçar o custo de uma dentadura. Vai abrir a boca o suficiente
para a impressão do molde de sua arcada. Vai realizar o desejo de ter dentes
de novo para mastigar e falar sem as limitações que a ausência lhe impõe —
a língua a encontrar os dentes incisivos quando pronunciar “pe-dra”, “mun-
do”, “la-ba-re-da”.
Ele lhe dará um pequeno espelho para que veja o resultado. Luzia
escancarará a boca, verá os dentes iluminando onde antes era breu.
Aproveitará a distração do protético enquanto recolhe os instrumentos, e,
com o espelho nas mãos, se sentirá livre para esboçar um sorriso outra vez.
O primeiro, ao fim de tantos anos.
7
A sombra dos anos ronda a casa e Luzia termina por juntar as folhas do
quintal com um rastelo enferrujado quase imprestável. Quando põe fogo no
monturinho é tomada por imagens que combinam sonhos, revelações do
salão do mar e o que viveu nos últimos anos. É certo que o mosteiro foi
queimado muito antes pelas mãos dos cativos. Foram eles que se rebelaram
contra a religião e puseram fim ao tempo de terror. As histórias foram
sopradas pelo vento a Luzia, projetadas por luz e sombra no resto das águas
do Paraguaçu empoçadas no chão. O que ela não sabia era que eles viveram
em liberdade, afastados da aldeia e sem a tirania dos religiosos enquanto
eram caçados pelo regime. Depois, privados da terra com o avanço dos
falsificadores de títulos, se tornaram desterrados e voltaram pouco a pouco
para trabalhar nas fazendas da região do mosteiro. Sobreviveram como
puderam e continuaram a se unir à gente que habitava a Tapera.
Luzia não sabia, mas intuía. Uma torrente de sangue corre em seu corpo
e nela viajam memórias antigas de um tempo duro e impenetrável. A
epopeia ancestral navega o rio da vida e promove o despertar de sua
existência selvagem. Não a transporta para o passado, mas conduz o que há
de valioso neste tempo até o presente.
Depois de comunicar que não mais lavaria a roupa da igreja, Luzia
aguarda o abade fazer o pagamento por seu trabalho. Ela é tomada por uma
disposição estranha de percorrer os corredores do mosteiro. Quer chegar ao
salão onde encontrou o menino perdido e esteve envolta em vozes e visões.
Talvez seja a última vez que possa experimentar o que viveu com liberdade.
Mas Luzia está inquieta e caminha para o andar superior. Naquele dia de
calor e rupturas quase se sufoca, a respiração se acelera refletindo a
ansiedade que a atravessa. Entra num cômodo e abre a janela. O tecido leve
e branco de uma das camadas da cortina foi lavado por ela em algum
momento daquele ano. O voal se ergue com o vento e envolve seu corpo.
Luzia gira o corpo e levanta os braços para se desvencilhar da armadilha.
Os trinados dos pássaros ecoam convocando os pensamentos para uma
aterrissagem, mas os olhos de Luzia encontram os olhos do fogo e sua mão
quase toca sua penugem negra. O pássaro inclina a cabeça para admirar a
espécie rara que encontrou: Luzia prestes a se tornar senhora da vida e do
mundo por onde caminha.
Ao sair do cômodo, esbarra na mesa de canto, derruba o castiçal, as
velas apagadas rolam pelo chão e o tecido da cortina se alonga ao vento,
fazendo de Luzia algo próximo a uma aparição. Enquanto se encurva, ela
tateia o piso à procura das velas caídas. As devolve de qualquer jeito ao
castiçal e avança para o ponto de partida, onde dom Tomás a espera para
repreendê-la — “O que a senhora fazia lá em cima?”. Ainda assim, ela
sairia liberta e vivendo o mundo de uma maneira diferente.
Quando o monge jovem que habita o cômodo acende a vela, não se dá
conta do vento por chegar. O ar é calmaria e ele adormece de leve na
cadeira de balanço com o rosário na mão. É assim que a brisa avança e no
segundo seguinte é vendaval. O lume da vela oscila, é o fogo que dança e
finge desaparecer para logo depois ressurgir, ondulante e feroz. O tecido
imaculado da cortina se encanta e parece enfeitiçado pelo lume, invocando
que se aproxime. É uma língua em movimento lambendo as franjas do
tecido e sussurrando a palavra “desolação”. A chama se reproduz voraz,
alimentada pelo sopro que vem da direção do rio.
O monge desperta envolto na fumaça e por muito pouco não permanece
preso à incandescência, que pode ser um dos muitos nomes do fogo. Os
religiosos se evadem do edifício com agilidade — os mais novos
empurrando os mais velhos —, e a visão que resta é de uma grande fogueira
consumindo a matéria que um dia foi árvore, foi terra, que um dia foi vida,
até que reste apenas a ruína.
Luzia volta seu olhar para a casa quando o monturinho se torna um
punhado de cinzas varrido para a terra.
Do seu interior, Moisés pergunta se Luzia quer falar com Maria Cabocla
antes que ele se vá. Caminham juntos para uma área descoberta onde o
telefone pode funcionar. “É como um rádio que precisa ter uma boa
antena”, ele diz, e Luzia espera, arrancando alpiste do chão para lançar aos
pássaros. Alguém atende do outro lado o telefone público — lá não há sinal
para telefones como o de Moisés — e depois de alguma espera dizem que
Mariinha não está em casa. Luzia estranha a irmã não estar — “Ela vive pra
casa” — mas parece não se preocupar excessivamente — “Notícia ruim
avoa”.
Antes de o sol se levantar, Luzia põe fim à espera. Decide subir o tabuleiro
e retornar à roça do pai. Há dias de calmaria — e nesses dias espera
controlando a impaciência —, mas há outros de grande fúria, e nesses é
melhor medir os passos, avançar e recuar conforme a necessidade. Ela se
veste, e sob o manto de penas a corcunda desaparece. Luzia não pode evitar
a risada ao imaginar a loucura que será quando a olharem naquele traje.
Ao levantar os braços, se tornará um grande pássaro vindo do mundo
dos mortos, e seus olhos refletirão o fogo que é vida e a habita desde
sempre.
Está consciente dos riscos que corre, mas é tomada por um sentimento
mais forte que não lhe permite voltar atrás. Se sente disposta a enfrentar o
mundo — seria capaz de enfrentar tudo? —, e por isso se põe a caminhar
até a terra de trabalho.
Seu nome é coragem, e já não teme a morte.
Agradecimentos
capa
Elisa v. Randow
ilustração de capa
Aline Bispo
preparação
Márcia Copola
revisão
Ana Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN 978-65-5692-416-8
CDD B869.3
O neurocirurgião Eitan Green parece ter a vida perfeita. Ele ama a esposa,
Liat, uma policial. Ele adora seus dois meninos. Transferido com relutância
de Tel Aviv para a poeirenta Beer Sheva, à beira do deserto, o médico
compra um carro novo — um utilitário — para transitar pelas estradas
tomadas pela areia. Certa ocasião, no entanto, quando retornava de seu
cansativo turno no hospital, ele atropela alguém e foge do local. A vítima é
um imigrante africano que, como muitos, está buscando uma nova vida em
Israel. Quando a viúva da vítima bate à porta de Eitan no dia seguinte,
portando sua carteira e afirmando saber tudo o que aconteceu, o médico
descobre que o preço dela pelo silêncio não é dinheiro. É algo totalmente
diferente e aterrador. Algo que irá solapar a sua existência segura e o
conduzirá a um mundo de segredos e mentiras que ele nunca poderia ter
imaginado. Enquanto a investigação acerca do atropelamento é confiada à
sua própria esposa, o médico é arrastado para a voragem de uma vida dupla,
num contexto de tráfico, violência e desejos vergonhosos. Mas também
passa a conhecer um outro lado de seu país: a existência de toda uma
população de imigrantes da África que chega a Israel com a esperança de
encontrar um novo capítulo para suas vidas depois de enfrentarem a fome, a
guerra e o preconceito. Um dos nomes mais importantes da literatura
israelense contemporânea, Ayelet Gundar-Goshen constrói um suspense
humanitário sobre dilemas morais que faz o leitor mergulhar em um mundo
desconhecido e palpitante.
Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela, para além de sua
trama, um poderoso elemento de insubordinação social.