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Itamar Vieira Junior

Salvar o fogo
Capa
Folha de Rosto

A vingança tupinambá
Luzia do Paraguaçu
Manaíba
A alma selvagem

Agradecimentos
À minha mãe
A terra, esse vale de lágrimas
Juan Rulfo

O que ela quer da gente é coragem


João Guimarães Rosa

A tristeza inteira era o fogo


Simone Schwarz-Bart
A ira do corpo se torna mais violenta em noite de lua cheia.
Ela já não conseguia se recordar das coisas que tinha para fazer no dia
a dia. Também não soube dizer a si mesma como e quando havia se deitado
exausta na esteira de palha e nem em que momento desfez — num acesso
de fúria — a grossa trança que domava seu cabelo crespo e negro
refletindo o brilho da luz de um candeeiro. Depois ela imaginou que os fios
do seu cabelo se tornavam raízes encontrando o chão do quarto, e talvez
tudo isso tenha se passado antes de uma dor violenta lhe atravessar o
quadril. Ou foi antes de sua visão ficar turva. Ou um pouco antes de o suor
escorrer de seu rosto e de suas costas como uma fonte de água morna. Foi
ao mesmo tempo em que sentiu uma incômoda vontade de urinar.
Enquanto estava deitada deixou a mão repousada sobre o ventre de seu
pequeno corpo. Ali, sabia, estava a causa de sua aflição, a vida se
contorcendo com violência, e era como se ela própria fosse arrebentar com
a força que se digladiava para deixá-la. Poderia ficar quieta e permitir que
seu corpo seguisse o próprio fluxo como o rio, porque tinha visto as
mulheres fazerem o mesmo à sua volta. Poderia pedir ajuda e mandar
alguém chamar a parteira da Tapera do Paraguaçu, aquela mulher que
cheirava a aguardente e tinha as unhas grandes e sujas. Mas preferiu
seguir em silêncio. E por fim não houve escolha e sua tormenta a consumia
e rasgava o ventre e a pélvis e estava cada vez mais intensa.
Era uma noite úmida, de poucos sons, alguns zumbidos de insetos, sem
sequer assobio do vento avançando sobre as palmeiras da margem
esquerda do rio.
Sua gente dormia ao seu lado e vez ou outra movimentavam os pés, se
viravam, agitavam as mãos para afastar os mosquitos que zuniam
inquietos. Que fosse breve, se concentrasse no que tinha a fazer porque
estariam despertas quando o dia começasse. Recordou a luta de sua gente
quando as crianças exigiam comida e energia para apaziguar as brigas,
para os banhos, para cuidar das feridas, para colocar o alimento nos
velhos pratos de esmalte, e parecia nunca ser suficiente tamanha era a
fome.
Nos últimos meses a chuva finalmente chegou, mas os homens
desencantados deixaram as minguadas roças ao deus-dará, seguiram nos
saveiros para vender o que havia sobrado da última colheita. Pequenos
carregamentos de farinha de mandioca, coco, azeite de dendê. Prometeram
trazer dinheiro. Voltaram depois de semanas sem nada ou, quando muito,
garrafas de cachaça. As mulheres da Tapera observavam a maré, e a maré
avançava e recuava sobre o rio enquanto elas viviam à espera de seus
homens. Aproveitavam as águas baixas para irem com lata e colher em
busca de mariscos. Sabiam que eles não voltariam no tempo prometido. As
crianças chorariam por comida, sem se preocupar se os pais tinham ou não
voltado, e sobrariam as mães cada vez mais velhas para dar conta das
obrigações.
As mulheres arrumavam um jeito próprio de seguir a vida; uma das
certezas era que pediriam aos monges permissão para colher o caju nos
terrenos da Igreja. Eles cediam, desde que elas levassem os melhores frutos
para a cozinha do mosteiro. Feito isso, poderiam comer o resto. Elas
vendiam as sobras da colheita para os viajantes, cheias de dignidade, em
pequenos tabuleiros erguidos nas portas das casas voltadas para a estrada.
Depois, no fim do ano, os maturis que nasciam nos galhos mais baixos para
matar a fome, além dos frutos que sobreviveram à primeira colheita e
cresceram nos galhos altos.
Durante a manhã ela observou de longe o povo da Tapera seguir com
seus cestos para colher o que encontrasse no caminho. Não se juntou para
não verem sua barriga, pois ainda que fosse uma barriga pequena e
comprimida e envergonhada, não era possível enganar as mães da Tapera.
Elas conheciam a pele e o brilho e o cabelo das que carregavam uma
criança no ventre. Elas sabiam pelas unhas e pelo hálito doce e pela
largura das ancas. Sabiam se a criança seria graúda ou miúda e em que
tempo chegaria. E se tivesse andado entre elas nos últimos meses, saberia
que naquela noite de lua cheia era a boa hora.
E se levantou equilibrando o corpo, acocorada no chão, a camisola
empapada de suor e colada às costas e por baixo dos seios. A dor cresceu,
e cresceu também a raiva que já não sabia de onde vinha, e com certeza ela
havia arrancado boas mechas do cabelo enquanto desfazia a trança.
Deixou a cabeleira livre feito a copa de uma árvore. Seus pés deslizaram
sobre o chão de terra batida, procurando o caminho para fora de casa.
Quando se aproximou da cortina que separava o cômodo da sala, ela
ergueu a cabeça e a seguiu com os olhos. Mas nem isso foi capaz de detê-
la, e era possível que na manhã seguinte a sua imagem se revelasse como
um sonho na noite que avançava, como todas as outras sobre todos os seus,
sem sobressaltos.
Então ela deslizou não só pelo chão da casa mas também pela noite que
reinava sobre o céu: a lua, um farol adentrando as frestas da janela como
um convite para que o animal noturno deixasse a toca. Retirou a barra de
madeira que cerrava a porta, não sem antes morder os lábios, um gesto
oportuno para impedir que se ouvisse o ruído das dobradiças.
Sentiu um bafo, era a brisa morna a levando para fora da casa.
Não tinha pensado sobre sua hora nem mesmo sobre o que faria, e o
corpo despertou por um momento da apatia dos últimos dias. Seguiu os
próprios instintos. Não queria aquela criança; não podia levar outra boca
para uma casa sem recursos. Só não bebeu os chás porque não os
conhecia. Nem fez os encantos das mais velhas e os segredos guardados
nos lugares mais insondáveis do espírito das suas mulheres. Havia muito
que essa vida passada era rejeitada por sua gente, que aos poucos se
tornou outra, pois passou a acreditar nas palavras de forasteiros. Mas
nada pôde deter o animal que crescia dentro de outro animal e ela não
sabia se era por falta de conhecimento, se pelo eco das pregações do
mosteiro que sepultaram a Tapera sob a permanente ameaça de castigo dos
Céus ou pelos desígnios do Espírito de Deus. Enquanto caminhava sentiu
que outros animais deixavam o caminho e subiam nas árvores e se
agitavam nas matas e se escondiam nas tocas e entravam no rio, antes que
ela pudesse alcançá-los.
Um depois do outro, seus pés tocaram a água, e seu corpo se desviou
como um galho seco no sentido da correnteza. E a dor, a dor não estava
apenas no seu ventre, a dor a possuía por inteiro. Se permitiu gemer
enquanto os peixes tocavam sua pele com seus corpos e para não seguir em
direção à baía junto à correnteza, fincou os pés na areia do leito na altura
em que sua barriga ficava submersa. O movimento das águas trouxe algum
alívio que logo se desfez. Mas não havia entrado no rio em busca de
conforto. Ela queria se agitar no fluxo que a atravessava e passar por tudo
o que precisava para se sentir viva. Foi assim que afastou as pernas e a
maré e o rio a invadiram e estavam próximos de afogá-la: as águas
inundaram seu corpo e seu coração.
Quando a criança enfim nascesse, a entregaria às águas. Que o rio
cuidasse de sua cria. Que a correnteza a levasse para bem longe.
A vingança tupinambá
1

Sempre que eu contrariava Luzia desobedecendo a suas ordens, contestando


quase tudo com respostas agressivas, ela me dizia que eu era tão ruim que
minha vinda ao mundo pôs um fim à vida da mãe. “Deu fim à nossa mãe”,
era a sentença cruel, lançada para me atingir e evocar as complicações que
se seguiram ao meu nascimento. Minha mãe se acamou, deprimida. “Nossa
mãe se foi de melancolia”, era o que se contava em casa. Nunca soube ao
certo o que Luzia sentia por mim, graças ao que nos aconteceu. Por ter sido
a responsável por minha criação ainda muito jovem, dizia que ninguém quis
se casar com ela por causa dessa obrigação. Nenhum homem iria aguentar
minhas malcriações. Sua mágoa era duradoura. Caí feito um fardo sobre
suas costas depois da morte da mãe e da partida dos nossos irmãos. Eu era
mais uma atribulação para Luzia, além de todas as outras: cuidar da casa, do
pai, da roupa da igreja, e ter que se esquivar dos humores do povo da
Tapera.
Diferente da mãe e das mulheres da aldeia, Luzia, a irmã mais velha,
parecia não ter se interessado pela arte do barro, nem mesmo pelo roçado.
Dizia que lavoura era trabalho para homem. Repetia, ao ver a ruma de
mulheres caminhando para o mangue à beira do Paraguaçu, que não foi
feita para ficar sob o sol catando mariscos, e que se pudesse moraria na
cidade grande. Desde cedo passei a seguir seus passos. Às terças e sextas-
feiras Luzia andava até o mosteiro, recolhia cortinas, toalhas e estolas, e
formava uma imensa trouxa. Equilibrava tudo sobre a cabeça com uma
rodilha feita de peça menor, podia ser uma fronha de travesseiro ou uma
toalha pequena. Cada entrada no mosteiro era precedida de reprimendas a
mim: “Você não pode tocar em nada”, “Não fale alto, nem corra pelo pátio”,
“Peça a bênção aos padres quando se dirigirem a você. Seja agradecido se
lhe ofertarem algo”. E, claro, só poderia receber qualquer coisa se tivesse
seu consentimento. Eu não fazia mais gestos de assentimento às suas
recomendações. Planejava como contrariar as regras, em especial aquela
que dizia que deveria olhar sempre para o chão e andar como se fosse
invisível para não incomodar as orações. Tanta advertência não era por
acaso, Luzia confessou num rompante de desabafo: queria manter seu
ganha-pão como lavadeira do mosteiro e conseguir uma vaga para que eu
estudasse na escola da igreja.
Nessa altura, meu irmão Joaquim tinha retornado de um tempo longo
morando na capital. Ele levava uma vida errante, mas quando jovem
aparecia vez ou outra para ajudar seu Valter nos carregamentos do saveiro
Dadivoso, com sacas de grãos e caixas de verduras. Saíam às quintas-feiras
em direção à Feira de São Joaquim e não tinham dia certo para regressar.
Foi um tempo em que manejei os saveiros na imaginação, nas brincadeiras
de menino, enquanto admirava o Dadivoso e outras embarcações
navegando o Paraguaçu em direção à baía. Quando meu irmão começou a
trabalhar com seu Valter, eu o seguia até o rio para observar o carregamento
das sacas de farinha, dos barris de azeite de dendê e das caixas de inhame e
aipim. Guardava a esperança de que me considerassem pronto para
trabalhar. Sonhava ir embora de casa, não precisar mais olhar a carranca de
Luzia me dizendo que eu era um fardo. Meus irmãos deixaram a Tapera
antes mesmo de me conhecerem. Da maioria deles não havia fotografia nem
recordação. Eu fiquei só com Luzia e meu pai. Como não havia quem
cuidasse de mim na sua ausência, precisei seguir seus passos muito cedo, a
todo canto, até que ela me considerasse pronto para ficar sozinho.
Quando eu era pequeno, Luzia me levava nas suas caminhadas para
recolher as roupas do mosteiro. Entrava e saía dos cômodos e caminhava
contrita até o altar da igreja, benzendo-se toda vez que passava por alguma
imagem de santo ou pela de Nosso Senhor do Bonfim, a maior delas. Eu me
afastava em silêncio, ao mesmo tempo que tentava manter os movimentos
de Luzia no meu campo de visão, domando meu ímpeto explorador.
Não poderia desobedecer de todo a suas ordens, como a de estar sempre
ao seu lado. Planejava como caçar os insetos no jardim do pátio interno.
Retirava viuvinhas do pé de carambola e as pousava em meu braço. Dava-
lhes nomes, cuidava para não caírem sob os sapatos dos monges
percorrendo os corredores em silêncio. Às vezes, ao notarem minha
presença, punham a mão sobre minha cabeça. Me abençoavam e ofertavam
as carambolas maduras que eu mesmo poderia pegar, não fosse a proibição
de Luzia. Eu a seguia e gostava de sentir sua paz, quieta, silenciosa,
recolhendo as peças a serem lavadas, fazendo um grande esforço para não
ser notada, os pés flutuando acima do chão. Não era possível ouvir sequer
suas sandálias surradas encontrando o piso do mosteiro. Diferente de mim
que, ao me perceber sozinho, deslizava os pés como se fossem barcos
quebrando a correnteza do rio, ruidosos a perturbar a calmaria sagrada do
mosteiro.
Quando não encontrava os insetos, me sentava no banco de pedra e
olhava Luzia de um lugar privilegiado. Observava seu caminhar, sua ronda,
o percorrer das celas, abrindo e fechando portas, o ranger das dobradiças
douradas, ela recolhendo as roupas brancas. Me aproximava, mas não tinha
permissão para adentrar os vãos, não tinha permissão para olhar o interior,
embora eu sempre desse um jeito de espreitar. Luzia entrava de cabeça
baixa, olhando o que a interessava. Recolhia, dobrava, alisava com as mãos
as peças de roupa. A boca se movimentava em silêncio recitando preces que
não podiam ser escutadas, e os olhos contemplavam sem demora os
crucifixos e os santos. Era a casa de Deus, foi o que me ensinou, e ali
expiava em contrição as dificuldades dadas pela vida. Mas era das costas de
Luzia que se elevava um pequeno monte, uma corcunda, e eu sentia
vergonha. Nesse ponto concordávamos, porque ela parecia sentir igual
acanhamento. Houve um tempo em que não entendia sua deformidade,
ainda não compreendia as coisas da vida e não me incomodava com muita
coisa. Mas, à medida que eu crescia, andava cada vez mais distante para
não ouvir as zombarias das crianças. As mais atrevidas se aproximavam
sem que ela notasse para pôr a mão sobre a corcunda e fazer um pedido.
Aprenderam com os viajantes que passavam ao largo da estrada da Tapera.
Muitas vezes vi minha irmã chegar em casa e se dirigir ao quintal, para
longe de mim ou de meu pai. Parava diante da pequena horta e engolia a
seco as lágrimas que não chegavam a deixar seus olhos.
Quando Zazau, a mais velha entre as mulheres, nos visitava, repetia que
eu não deveria contrariar Luzia — “Ela sofre dos nervos”. Eu sabia que, no
fundo, não queriam falar sobre os males que o povo da aldeia cochichava
pelos cantos e fizeram de Luzia uma assombração evitada por todos. As
crianças nas ruas, e depois na escola, repetiam as histórias contadas pelos
mais velhos: que nossa casa era amaldiçoada, que as coisas se quebravam
sozinhas, os móveis se moviam do nada; que o fogo se apoderava das coisas
sem ser provocado. O fogo, em especial, parecia preocupar os que
contavam. Diziam que nos dias de lua, por onde Luzia andava, as coisas
queimavam. Roupas secas estendidas no varal, o colchão de palha, o mato
ao redor das casas e dos caminhos. Contavam que Luzia fora trancada em
casa pelo pai e pela mãe para que os vizinhos não resolvessem suas
diferenças com as próprias mãos. Se os primeiros eventos estranhos
surgiram enquanto ela crescia, não se sabia ao certo quando deixaram de
acontecer. Uns diziam que foi depois da morte da mãe, outros que os males
cessaram quando Luzia foi crismada. Mas saber que minha irmã tinha o
poder da magia quando eu ainda nem existia, me atormentava e atiçava
ainda mais minha curiosidade.
Um dia, depois de uma surra de Luzia, resolvi eu mesmo lhe castigar.
Não lhe contava sobre tudo o que ouvia, as coisas que diziam dela pelas
ruas da aldeia. A raiva me fez planejar algo traiçoeiro para atingi-la em
cheio. Aproveitei sua ausência da cozinha e retirei uma lenha ainda ardendo
do fogão. Encostei a chama na cortina que separava o cômodo do resto da
casa. Eu queria atingir Luzia, provocar algo tão forte quanto as lapeadas de
cipó que havia recebido, sua arma para me manter sob controle. Seguindo
seu exemplo, eu não tinha chorado, não me dobrei aos seus castigos.
Contudo, queria vingança. Aos seis anos não podia imaginar que o fogo não
queimaria apenas a velha cortina, mas alcançaria o teto e consumiria as
ripas de madeira que sustentavam o telhado. Em pouco tempo as chamas se
alastrariam. Comecei a gritar: “Fogo” e tive medo de que ocorresse o pior.
Luzia aguava os canteiros de plantas porta afora. Ao me ouvir gritar,
correu apressada para o interior da casa feito uma flecha, sem que tivesse
tempo de me notar. Parou na porta, enfeitiçada pela cena. Olhava para o
alto, parecia admirar o vermelho vivo das ripas consumidas pelas chamas.
Depois de breve tempo sem reagir, ela me puxou para fora de casa,
enquanto a fumaça escura se elevava ao céu pelas brechas das telhas.
Quando considerou que eu estava seguro no terreiro, retornou para dentro,
me deixando sob o céu da Tapera. Não falava alto nem parecia perturbada.
Eu permaneci do lado de fora. Senti medo e culpa. Tinha pecado, Deus me
castigaria, e Luzia também, se descobrisse a verdade. Atravessei a soleira
da porta sem conseguir ver Luzia em meio à fumaça que já havia tomado os
poucos vãos da casa. Imaginei que talvez tentasse recuperar o terço e o
missal que levava para todo canto. Mas a encontrei agachada e talvez sem
perceber respirava a fumaça.
Diante de Luzia havia um pedaço de madeira crepitando. Uma fagulha
em meio à brasa. Ela parecia enfeitiçada. Carregou a tocha até a porta. Mas,
antes de sair, abriu a boca e engoliu o fogo, como se precisasse guardá-lo.
2

O pai chegou pouco depois do fim do incêndio, acompanhado de dois


vizinhos que foram buscá-lo na roça. O fogo tinha sido contido pelos baldes
de água trazidos do Paraguaçu. Um pouco tarde porque o telhado já estava
completamente destruído. Comecei a chorar sentindo culpa por minha
inconsequência. Chorei pela punição caso meu pai e Luzia descobrissem
meu feito. Fui consolado por duas mulheres que se aproximaram — “Não
se assuste, já apagaram o incêndio”; “Logo logo vocês terão um telhado
novo para cobrir a casa.” As mesmas mulheres que me consolavam, eu
sabia, alimentavam o rancor contra Luzia. Chorei por medo de descobrirem
a minha vingança, que tinha como propósito ferir o juízo dela. Luzia
continuava tranquila, revelando um temperamento diferente do habitual. O
pensamento andava distante. Olhava para casa como se não houvesse mais
nada a ser feito.
Ainda recordo o rosto do pai quando viu o telhado avariado e de como
percorreu a roda de mulheres no terreiro para encontrar Luzia. A boca
aberta e o sinal da cruz antes de entrar para ver o que havia restado. Para
nossa sorte, os danos se concentraram mesmo no telhado. E, se não recebi
outra surra, meu castigo foi sonhar vezes e vezes com a coluna de fumaça
alcançando as nuvens e percorrendo sem rumo o céu da Tapera.
Naquele mesmo dia me levaram para a casa da vizinha, dona Nadir,
moradora da beira da estrada. Lá me instalaram numa esteira na sala. Meu
pai permaneceu na casa sem teto para proteger os objetos que não podíamos
retirar. Não houve convite para que Luzia repousasse em casa de algum
conhecido. Para aumentar minha culpa, as pessoas não lhe deram abrigo,
com medo de que a própria casa também se incendiasse. Durante o dia eu
retornava para casa para encarar o vazio e o que eu havia feito. Seriam dias
de silêncio se os poucos vizinhos, que tinham estima por meu pai, não
trabalhassem serrando a madeira retirada da mata e armando as ripas sobre
as paredes da casa. Luzia continuava quieta. Entrava e saía de casa como se
nada tivesse acontecido. Cozinhava para os homens da construção, cuidava
da roupa do mosteiro, aguava as plantas e a horta, que cresciam indiferentes
às nossas virtudes e aos nossos pecados.
A nossa casa sem teto não era mais uma casa: até que lhe restituíssem o
telhado, era apenas uma carcaça. Eu a tinha ferido de morte. Reagi assim
observando os poucos homens solidários a meu pai. Primeiro, se lançaram
na mata para retirar a madeira de que precisavam para as ripas. Depois, a
cortaram, carregaram e serraram tramando sobre o vão do teto. Eu e Luzia
revirávamos as telhas caídas na esperança de encontrar algumas peças
inteiras para recompor o telhado, mas poucas poderiam ser reaproveitadas e
mesmo as melhores estavam chamuscadas. Foram dona Mira e as filhas,
consternadas com a nossa situação, que se uniram aos homens para ajudar a
cobrir a casa, fabricando as telhas com o barro retirado do leito do rio.
Moldavam nas fôrmas de madeira, como os antigos costumavam fazer.
Depois os homens ergueram uma grande fogueira na beira do Paraguaçu
para cozer as telhas. Quando prontas e frias, após um dia e uma noite, eu e
os netos da velha Mira as empilhamos no terreiro para a cobertura do teto.
Uma semana e estava tudo tinindo de novo, deixando a casa com um cheiro
de madeira cortada e barro cozido até os nossos narizes não perceberem
mais. Mas as paredes continuaram enegrecidas.
O povo da Tapera que não se juntou ao mutirão, espalhou boatos sobre
Luzia na mesma velocidade com que os vizinhos aprumavam o cume das
telhas. Diziam que os seus males tinham retornado. As mulheres contavam
os contos de porta em porta, nas esquinas e na saída da igreja. Continuavam
a passar por nossa casa, mantendo certa distância. Observavam a
construção, conferindo o andamento da obra. Pareciam não querer nada
além de verificar a situação. Se benziam. Os boatos se alastraram mais
rápido do que o fogo do incêndio e a correnteza do Paraguaçu. Por todo
lado se escutava que Luzia estava possuída. Que, antes de o teto queimar,
ela havia subido nas paredes e caminhado de cabeça para baixo como uma
aranha; que eu chorava dia e noite porque os olhos brancos de Luzia
pousavam sobre mim lançando maldição; que as rezas proferidas por ela
eram feitiços para manter tudo sob seu controle. Havia quem jurasse ver
Luzia na prainha à noite, onde mantinha conversa com a mulher da trouxa,
a lavadeira das noites de lua cheia a equilibrar o embrulho de roupas na
cabeça seguindo para a mata sem deixar rastro.
Não tardou para que, depois do nosso retorno a casa, vez ou outra
crianças atirassem pedras no telhado. Ou então que acordássemos pela
manhã com um encanto no alguidar de barro na encruzilhada do caminho
de casa. Ou mesmo com uma beata aspergindo água benta em nossa
direção. Luzia fingia não ver, sabia que a indisposição com aquela gente
acabaria mal. Talvez imaginasse que, tal como no passado, os boatos se
dissipariam e logo o incêndio seria esquecido.
A maior parte dos acontecimentos se deu quando meu pai trabalhava a
terra e se encontrava distante de casa. O povo o respeitava, ainda que o
chamassem, longe de seus ouvidos, de “pai da feiticeira”. Mas o silêncio
resignado de Luzia se rompeu quando uma das pedras lançadas pelas
crianças atingiu minha testa. Daquele pequeno ferimento fluiu sangue
quente e abundante, o suficiente para cobrir meu rosto. Ela, que a maior
parte do tempo parecia não se importar comigo, se tornou um animal feroz,
proferindo maldições com toda a sua indignação. Os vizinhos espiavam das
janelas de suas casas. As novidades se alastrariam como rastilho de pólvora
nos dias seguintes. Dona Mira se aproximou para tentar amainar a tensão e
lavou meu rosto na beira do rio.
Depois de despejar toda a raiva engasgada em seu peito aos quatro
ventos, de se movimentar de um lado a outro catando as folhas secas que
caíam da mangueira, eu vi por um breve tempo sua corcunda desaparecer.
Luzia se voltou para mim quando eu estava com o rosto limpo e ainda
molhado, mas com o ferimento estancado. Apertou a pele ao redor para ver
se era grave. Pude antever em seus olhos uma preocupação sincera, como se
estivesse vasculhando a integridade das poucas coisas que lhe pareciam
importantes.
3

Dom Tomás, o abade do mosteiro de Santo Antônio do Paraguaçu, me


observava com atenção enquanto Luzia, mãos unidas como se estivesse
rezando, aguardava com ansiedade. Eu tinha completado sete anos e,
segundo minha irmã, era tempo de ingressar na escola para aprender a ler e
a escrever. Era seu desejo, já que nem ela nem as pessoas mais velhas da
Tapera puderam aprender no devido tempo. A única escola havia sido
aberta pela igreja fazia mais de quinze anos, embora os monges estivessem
ali há mais tempo. Os mais velhos comentavam que a escola atendia a um
pedido da antiga proprietária da fazenda. Ela concordara em doar as terras
do Paraguaçu para o mosteiro desde que a ordem promovesse a educação
das crianças que lá viviam.
O mosteiro era uma construção antiga erguida entre o rio e as ruas da
Tapera. Toda a vida da aldeia acontecia em seu entorno: as referências, o
tempo, a história, era como se nada tivesse existido antes do mosteiro.
Como se as pessoas, a terra e tudo mais só tivessem ganhado vida depois de
sua edificação. Era assim que se contava, até que, bem mais tarde, eu
pudesse compreender a sucessão de eventos que nos levou àquela situação.
O povo já não sabia quem tinha chegado antes, se os donos das terras, se o
mosteiro, se a nossa gente. Mas a resposta não fazia muita diferença. O fato
é que se houve uma ordem de chegada, isso não importava. A única certeza
era que o mosteiro estava ali havia muito e a vida continuava a mesma.
Dom Tomás era o senhor a projetar sua sombra em tudo ao redor, não
apenas no mosteiro e na escola, como também nas ruas e nas vidas das
famílias da Tapera. Com os anos, minhas recordações foram se tornando
imprecisas. No dia em que Luzia foi lhe pedir que eu ingressasse na escola,
vi seu rosto, sua pele branca, ouvi seu sotaque estrangeiro — como todas as
vezes em que estive nas missas de domingos e dias santos. A imagem mais
duradoura, a que permaneceu comigo, foi a de um grande crucifixo
prateado, luminoso, que ele ostentava à altura do peito. Em minha memória
sua face já teve muitas formas e marcas, nariz, boca, e mesmo grandes
olhos azuis. Depois, à medida que eu crescia e o encontrava com menos
frequência, seus traços foram se diluindo numa mancha até que a imagem
se tornou um vazio que nunca mais seria preenchido.
Se seu rosto foi se apagando como uma pintura malconservada ou como
as abstrações que nos escapam dos sonhos, o mesmo não ocorreu com o
restante de sua figura. As vestes escuras, pesadas e com cheiro de naftalina,
que pareciam quentes, continuaram a surgir vivas em meus pensamentos,
assim como as gotas de suor a sobressair num rosto para sempre enevoado.
Seu andar lento e os movimentos sincronizados ao seu discurso também
permaneceram plenos no que me restou de recordação. Da mesma forma, os
sermões ora ponderados ora inflamados, os questionamentos ásperos que
nos dirigia sem esperar por respostas, pareciam na mesma medida suaves e
revoltos ao encontrarem nossos ouvidos. Foi dessa maneira que quis saber
se gostava da ideia de estudar. Respondi que sim. Quis saber também se
ajudava a Luzia em casa e, sobretudo, se temia a Deus. Luzia fez questão de
recordar a dom Tomás do meu batizado por suas mãos para que não
crescesse pagão. “São tantas crianças”, disse, justificando a falta de
memória. Sem demora, informou que minhas aulas começariam logo após o
início da Quaresma. Luzia poderia retirar o uniforme uma semana antes do
Carnaval.
Guardei daquele encontro uma genuína felicidade. Poderia sair só de
casa, teria um ambiente diferente para estar com outras crianças. Aprender a
ler e a escrever era o passo firme a caminho do mundo adulto, ainda que
muitos dos que vivessem ao meu redor não tivessem tido a mesma
oportunidade. Quem deixava a Tapera a caminho da cidade dizia ser preciso
saber ler para encontrar as ruas, usar o transporte, se virar de todo jeito.
Sem contar as chances de conseguir um trabalho melhor, que não exigisse
tanto esforço físico, como o de meu irmão Joaquim carregando fardos do
cais para o saveiro, e do saveiro para a cidade, e com o que mais trabalhava
quando já se encontrava distante da Tapera.
O ambiente do mosteiro também era familiar. Eu já estava acostumado a
acompanhar Luzia enquanto ela recolhia as roupas dos cômodos para lavar.
Eu a seguia distraído com o movimento dos becos, das crianças correndo e
brincando, dos animais do céu e das matas circundando as casas.
Caminhava ora detido nos meus pés, ora observando a miríade de animais a
tomar as mais diferentes direções. Olhava para o alto para identificar se
havia nuvens ou não, quais seus atributos, se eram alvas ou encardidas feito
as peças de roupa carregadas por Luzia. Quando não estava caminhando no
mundo de minha imaginação, meus olhos a seguiam e se detinham na
corcova erguida de suas costas, uma pequena casa de caracol carregada por
Luzia para todo o sempre. A corcova não estava alinhada à coluna, se
concentrava no lado esquerdo, abaixo da linha do ombro. Eu sentia
vergonha quando as crianças apontavam para ela e riam, diminuía meus
passos para estar cada vez mais distante. Às vezes, meu constrangimento
quase desaparecia, dando lugar à raiva e à vontade de brigar com os
zombadores. Eu ameaçava atirar as pedras recolhidas do chão, ao passo que
os meninos corriam, gritavam e riam da provocação. Muitas vezes senti
pena e rezei por sua vida antes de dormir. Elevei meus pedidos a Deus, a
quem ela dizia poder todas as coisas. Pedia para aliviar seu fardo, a miséria
de seu corpo. Pedia que eu não precisasse andar distante. Que assim fosse
para não sentir mais vergonha de caminhar ao seu lado.
Mas a aparente fraqueza de Luzia escondia também sua força. Nunca a
vi se queixar dos males que a afligiam. Tampouco respondia quando alguém
perguntava se havia nascido com aquele monte nas costas; se tinham sido
problemas no parto da mãe, se esteve mal encaixada ou se era feitiço, praga
ou mau-olhado. Esse era um assunto proibido em casa, ninguém falava e
muito menos sabíamos como tudo havia começado. Chamar Luzia de
corcunda era motivo para castigos, já que meu pai não permitia que se
falasse mal de nenhum dos filhos.
Durante nossa caminhada, quando Luzia percebia que eu estava muito
distante, largava as sacolas no chão e se voltava em minha direção,
equilibrando a trouxa na cabeça, para perguntar por que eu demorava.
Repetia que eu era distraído, lerdo e por isso andava cheio de machucados.
Se tornava ríspida e me olhava por inteiro, para depois voltar ao caminho de
sempre, compensando todo o peso que precisava carregar.
Mas era quando dormia ao seu lado que sentia seu corpo pequeno
demais, finito demais para caber na correnteza de forças que afluíam em sua
direção. Luzia parecia se iluminar como se tivesse nascido outra vez
enquanto repousava do trabalho, longe das rezas e das obrigações. Quando
me sentia pronto para me levantar da cama, mesmo atravessado por arrepios
acompanhando meus medos, me postava frente ao seu rosto e o
contemplava na escuridão, nas linhas de luz que atravessavam as frestas da
casa. Pensava sobre o que poderia sonhar, as tormentas sobre as quais nunca
falava. Me perguntava se, apesar da rudeza de seus gestos a me manter
afastado de qualquer possibilidade de afeto, ela seria capaz de gostar de
mim.
4

“Como era a minha mãe?”, perguntei mais uma vez. Tinha os pés dentro
d’água e segurava um graveto que fazia de caniço, sem nunca conseguir
pegar um peixe. Já deveria ter feito aquela pergunta muitas vezes, mas as
respostas de Luzia nunca me satisfaziam.
“Como no retrato que está na parede”, respondeu sem me olhar,
enquanto esfregava um lençol com os nós dos dedos.
Ela se referia à pintura em cores fixada na parede e que, de forma
milagrosa, tinha sobrevivido ao incêndio. Nela, nossa mãe surgia na única
imagem que eu conhecia — e era bem provável que não houvesse nenhuma
outra. No retrato, mãe Alzira se apresentava com uma cor de terra e o
cabelo ondulado na altura dos ombros, diferente do de Luzia. Ainda era
possível ver uma pequena mostra de seu vestido azul. Com o envelhecer da
imagem, aos poucos desbotada, ficávamos sempre em dúvida se era
realmente azul, ou se verde.
O rosto de minha mãe estava inerte, mas não era somente na fotografia.
Havia algo na posição de seus olhos que a fazia parecer indiferente ao que
estava à sua volta. Não era possível distinguir traços de tristeza ou de
contentamento. No mesmo retrato, meu pai se encontrava rígido e ostentava
um bigode que nunca voltou a usar. Vestia terno e gravata que, de acordo
com o que Zazau afirmava nas suas espaçadas visitas, nunca teria
envergado, ou seja, era fruto da criatividade e do engenho do fotopintor. O
rosto também era o mesmo do único documento que meu pai tinha,
atestando que não havia posado para a fotografia. Meu pai e minha mãe
juntos, uma união que parecia ir muito além do habitar a casa onde viveram.
Diferentemente da mãe, meu pai tinha a pele mais clara, ainda que curtida
de sol. Zazau garantia que nossa irmã Mariinha, que havia deixado a casa
anos antes de eu nascer, sem nunca mais retornar, se parecia comigo. Meu
irmão Raimundo, que nunca conheci, nem mesmo por fotografia, também.
O fato é que em nossa casa essas pequenas diferenças provocavam debates
sobre “barriga limpa” e coisas que eu não compreendia durante minha
infância. Na Tapera, as pessoas eram de muitas cores, e os que tinham
cabelo liso se diziam descendentes dos índios que ali viveram muito tempo
antes.
As histórias da família de meu pai eram mais conhecidas do que as da
família de minha mãe. Luzia repetia que Mariinha havia saído à nossa
bisavó Didita, a avó de meu pai, “caçada a dente de cachorro”. Eu escutava
as histórias atrás das portas, porque os adultos se recusavam a falar sobre
determinados assuntos na presença das crianças. De tanto escutar escondido
as conversas das irmãs, soube que a avó do meu pai era uma velha índia de
cabelo longo e grisalho. Soube também que se sentava na beirada da mesma
porta que dava para o quintal e picava fumo. Que quase não falava, mas
sabia benzer criança e conhecia as ervas da mata. Era a única pessoa da
beira do Paraguaçu que dizia ter visto o olho-de-fogo-rendado no topo de
uma velha árvore emitindo seu trinado. Uma dádiva, diziam, que só quem
se comunicava com o mundo dos mortos trazia consigo. Foi a Luzia que vó
Didita se afeiçoou. Logo depois a família deixou a Tapera para trabalhar nas
fazendas da região. Desse curto tempo juntas, Luzia dizia ter sido levada
por Didita para cima e para baixo, se embrenhando pelas matas, canaviais e
águas do Paraguaçu.
Mas quase nunca Luzia respondia às minhas perguntas, cada vez mais
frequentes conforme eu crescia — e que aumentavam na proporção de
minha curiosidade. Meus irmãos eram bem mais velhos do que eu e
partiram da Tapera pouco a pouco, antes mesmo de eu poder perguntar
sobre minhas inquietações. Luzia nunca estava disposta a responder,
guardando sempre o semblante cerrado. Meu pai, nos momentos de revolta,
dizia em alto e bom som que ela nunca se casaria porque ostentava uma
carranca no lugar do rosto. A amargura parecia fazer dela uma mulher
velha, como as que já perderam o tino pela vida ou tiveram demasiado
tempo para descobrir que nada vale a pena e a vida pode ser um imenso
fardo. Mas havia os raros momentos em que ela se desarmava por inteiro,
punha um vestido florido surrado de domingo e se esquecia de seu terço e
missal. Quando isso acontecia, era como se o tempo anunciasse uma visita
esperada: Luzia se postava junto à janela, fechava os olhos de quando em
quando. A cada aragem suspirava, e o peito subia e descia com o vaivém
das águas sobre o mangue. Era tempo de abrir janela, de ver a casa
iluminada, a luz ofuscando minha visão. Ela seguia até a cozinha para
preparar cavacos. Fritava-os na banha de porco, polvilhava com açúcar e
canela. Sabia da minha ansiedade e me permitia observar o preparo. Eu
rolava a garrafa de aguardente vazia sobre a massa, e ela me dizia qual o
ponto para que ficasse mais fina. Cortava com suas mãos pequenas. Dias
raros em que de seu rosto despontava um sorriso, um botão de flor,
deixando de lado o desgosto sem fim. Esse sentimento de paz e afeto me
encorajava a perguntar mais uma vez:
“Você sabe como eu nasci?”
Eu sabia, mas gostava de ouvir Luzia contar outra vez, e outra vez, para
ter a certeza de que nenhum detalhe havia me escapado. Só assim poderia
saber mais sobre a mãe que não conheci.
“Minha mãe”, ela começava a contar sem olhar para mim, “sentiu dores
numa noite de lua cheia”, e continuava retirando os cavacos fritos do tacho
quente. “Ela já tinha muitos filhos. Estava variada das ideias e achava que
faltava mais uma lua. Sentiu dor e foi para o rio à noite aquietar a barriga se
banhando nas águas. Mas você não esperou mais uma lua e nasceu.”
“E meu pai?”
“O pai não andava por aqui, trabalhava na cidade.”
De repente a memória de Luzia parecia se embotar porque não dizia
mais nada que eu não soubesse. A cada vez que eu perguntava, respondia
algo diferente. Certa vez ela me disse que a mãe andou comigo no colo sem
cortar o umbigo e foi sozinha para casa. De outra vez tinha sido ela, a
própria Luzia, a sentir a falta da mãe no meio da noite. Terminou por
encontrá-la com a criança nos braços.
“Mas eu nasci na beira do rio ou dentro d’água?”
Nesse instante seus olhos brilhavam. O rosto se voltava para o mundo
além da casa, buscando um sopro de vida entre a mata e a aldeia, tentando
encontrar a recordação da história nos movimentos das árvores e dos
animais.
“Ela estava tão relaxada na água que o menino escorregou feito um
quiabo. Mas ela coou você na camisola que vestia. Por isso, quando chegou
em casa e contou pra todo mundo, lembrou de uma história ouvida nas
missas” — se benzeu —, “a do menino que apareceu num cesto
atravessando o rio e foi pego pela filha do faraó.”
Por um momento eu ansiava que Luzia afagasse minha cabeça. Seus
olhos estavam tomados de emoção. Ela se desarmava, deixava de lado sua
prontidão para as batalhas contra o mundo. Eu me enredava naqueles fiapos
de recordações e avançava querendo saber mais.
“E por que a mãe morreu?”
De repente, era como se um pássaro tivesse sido atingido por um
estilingue no alto de seu voo. Luzia baixava os olhos, o rosto se crispava,
encolhia os ombros e a corcunda parecia crescer ainda mais.
Interrompia a conversa.
“Chega, já fez pergunta demais.”
Eu sabia que não poderia prosseguir.
5

Março era um mês de aflição para as famílias da Tapera. Era o tempo de


pagar o foro à Igreja. A cobrança não era feita pelos monges, mas por
vizinhos com posição privilegiada na comunidade. Os homens chegavam às
casas com um carnê em branco, e o preenchiam com a caligrafia precária de
quem era pouco escolarizado. Esse recibo com o carimbo de pago se
tornava um documento valioso guardado pelas famílias. Tinha a
importância de uma escritura, ainda que não tivesse de fato valor algum.
Em nossa casa não era diferente. Era momento de tensão, em especial
para Luzia. Observávamos afastados o debate acalorado entre nosso pai e o
cobrador. O cobrador — gente da própria Tapera com prestígio junto do
abade por cerrar fileiras na igreja, como Matias, Almir, Mãozinha e Chico
da Colmeia — vinha seguidas vezes à nossa porta à procura de meu pai.
Queria saber se ele tinha deixado o pagamento do foro. Luzia gaguejava,
inventava uma história para omitir a resistência do velho contra a cobrança.
Mentia que ele havia esquecido, mesmo diante da contestação do cobrador.
“Todo ano é a mesma coisa. Mundinho é sempre o último a pagar”,
ouvíamos, “um dos poucos que me faz voltar muitas vezes.” A celeuma se
arrastava durante vários dias. O cobrador retornava para então encontrar
meu pai picando fumo ou amolando o facão para capinar a roça, em geral,
aos domingos, quando ele saía mais tarde para trabalhar, permanecendo na
tarefa de terra debaixo do sol até o meio-dia. A tensão escalava ainda mais,
porque meu pai não se justificava como Luzia. O cobrador começava a
dizer a que tinha vindo e meu pai escutava sem olhar para o vizinho. Eu e
Luzia ficávamos em algum canto da casa tentando ouvir o que diziam, os
sons de suas vozes competindo com a batida dos nossos corações
acelerados.
Primeiro, meu pai dizia que não tinha como pagar, o que decerto era
verdade. A produção era pequena e supria a casa na maior parte das vezes
para livrá-la da fome. Depois as sobras eram embarcadas nos saveiros para
serem vendidas nas feiras da cidade. Sem disfarçar a indignação, dizia que a
Igreja era rica. Seus avós haviam nascido naquelas terras antes de a Ordem
chegar — essa confusão entre tempo e história sempre embaralhava a todos.
Pelo que sabia, nunca precisaram pagar imposto algum. “A velha dona
dessas terras não exigia”, retrucava. Em seguida, mandava o homem passar
um dia qualquer, sempre numa data distante, enquanto amolava o facão
mais gasto do que o do cobrador, guardado na bainha em sua cintura. O
homem ia embora, mas não sem antes ameaçar de cercar a roça para
impedir o trabalho, caso o foro não fosse pago. Meu pai respondia sem
medo: “Tá pra nascer o homem que vai me impedir de trabalhar na terra”.
A arrecadação se arrastava por semanas e a aflição para o pagamento
não era apenas da nossa família, mesmo que o cobrador quisesse nos fazer
acreditar no contrário. Na Tapera, não se falava em outra coisa: dos
orgulhosos, que pagaram sacrificando muitas vezes o bem-estar da família,
aos desassistidos, que não tinham como quitar de imediato a cobrança. Os
pescadores complementavam o sustento com suas pequenas lavouras, mas
como a atividade principal era a venda dos pescados, conseguiam pagar no
devido tempo. As casas das viúvas e das poucas mulheres solteiras eram as
que mais atrasavam. Nos dias de cobrança, o povo da Tapera se gabava,
vaidoso, dos que podiam pagar sem maiores sacrifícios, diferente dos que
faziam das tripas coração. Ano após ano Luzia retirou do colchão, depois de
descosturar uma pequena abertura, o dinheiro minguado que ganhava da
própria igreja como lavadeira. Era a quantia dada ao cobrador, para pôr fim
à cobrança e termos paz. O recibo, às vezes com algumas cédulas de troco,
era guardado dentro do colchão de palha, porque ela sabia que se Mundinho
visse o pagamento a casa viria abaixo por ter contrariado sua autoridade.
Conhecíamos bem nosso pai e sabíamos que não recusaria um conflito para
exibir sua valentia. A certeza de que o respeitavam pela rudeza era tanta
que considerava a não continuidade da cobrança uma vitória. Acreditava
dever-se ao respeito que lhe restava.
Lá pela quinta ou sexta visita do cobrador, já adentrando abril, era certo
que Luzia pagaria. Ainda ouviria de qualquer um deles que a Igreja era
muito generosa em não cobrar juros. Ela pagava sem ressalvas, como se
nosso pai a tivesse incumbido da tarefa. Eu queria ver onde guardava tudo,
mas Luzia me enxotava quando a seguia até o quarto: “Ande, menino,
corre, o que veio fazer atrás de mim?”. Apenas eu sabia que ela pagava com
o dinheiro do trabalho. Apenas eu via o braço de Luzia estendido no ar
depois de dar o dinheiro até que o recibo estivesse na mão. Só eu sabia que
ela depositaria o recibo e o troco no colchão, se certificando antes se estava
sendo observada, temerosa do nosso pai. À espreita, a observava alinhavar
o tecido recobrindo as palhas, compenetrada em sua tarefa de salvar a terra
de trabalho da família.
Luzia foi nossa valência durante os anos; sem cobradores à porta, nosso
pai se ocupava do trabalho e sua inquietação parecia encontrar o sossego
nunca sentido por seus pais e avós, contrariando o que ele mesmo contava.
Não sei se era mentira deliberada ou se meu pai acreditava piamente na
farsa de uma paz nas terras da Tapera. O fato era que ele prosseguia com
sua vida, caminhava de cabeça erguida, a enxada no ombro e o facão na
cintura, como se não tivesse qualquer dívida. Trabalhava o pedacinho de
chão escolhido a cada chuva, sempre próximo à última fração que, por fim,
entrava em pousio. Trabalhava com esmero e o corpo agitado deixava a
roupa molhada de suor, da mesma maneira que o orvalho brotava na terra
vermelha dos canaviais do passado e do presente, úmida o bastante para
fazer nascer qualquer semente que o chão encontrasse.
Mas nem todos conseguiam pagar. Acumulando dívidas ano após ano,
algumas famílias iam sucumbindo ao destino de serem excluídas do
convívio de sua gente. Nos sermões proferidos nas missas, e mesmo diante
do orgulho dos bons pagadores, se enchiam de uma vergonha que tornava a
convivência cada vez mais difícil. Por fim, quando não morriam de velhice
ou de doença, deixavam a Tapera pelo rio, nos saveiros, ou pela estrada, nos
velhos ônibus, como um dia aconteceria comigo.
6

Estudei na escola do mosteiro por quase oito anos. O anexo, onde as salas
funcionavam, era um galpão de alvenaria simples, destoando da construção
antiga da igreja, embora estivesse num terreno contíguo. As paredes eram
caiadas de branco com uma tinta ordinária todos os anos antes do início do
período escolar. Contrastavam com as paredes do edifício principal,
cinzentas, envelhecidas, que pareciam ter sido reparadas em outra época.
Quando chegávamos para as missas, entrávamos pelas portas laterais. Ainda
no caminho, pela rua principal, era possível avistar a única torre. Dela
ecoava o tilintar do sino preenchendo de sons a vida da Tapera, anunciando
as cerimônias, as missas, os dias santos e as mortes. O telhado era antigo,
formado por telhas nobres, diferentes das que recobriam as nossas casas e
que mal se encaixavam. No alto, crescia uma vegetação daninha que se não
revelava abandono, poderia ser a materialização da longa passagem dos
anos. Expressava também a luta entre a natureza e a construção dos
homens.
Nos momentos de brincadeiras, quando os monges seguiam seus rituais
de oração e contemplação, nós, crianças, chegávamos ao pátio da frente,
onde ficava o cruzeiro, em silêncio para não sermos notados. A igreja havia
sido erguida com a porta principal voltada para o Paraguaçu. Ao lado, como
parte do conjunto, havia um edifício sem adorno, antigo, uma ruína
chamada de salão do mar. Não estava instalado na parte mais elevada da
margem do rio, como as construções principais, mas no nível da linha de
enchente. Nas marés-cheias a água recobria sua velha estrutura, exposta
como ossos de uma criatura morta. Já não dispunha de telhado, e a água
entrava pelas aberturas circulares no interior. Talvez por isso permanecesse
ainda de pé, resistindo à permanente oscilação das águas.
Os pescadores e os vizinhos, que viviam do transporte no rio, tinham a
melhor vista da igreja de Santo Antônio do Paraguaçu de cima de seus
saveiros, suas canoas e jangadas atravessando as águas. As crianças, livres,
sem os limites dos monges ou da família, se lançavam no rio para poder
chegar ao jardim cultivado em níveis, como se fosse uma escada de acesso
à igreja. No último patamar ficava o cruzeiro. Irmão Timóteo, professor de
Religião, contava que o edifício havia sido construído com areia, cal, tijolos
de barro cozido e óleo de baleia, caçada nas enseadas da baía. Era nesse
lugar que brincávamos e dali também observávamos a navegação, até que,
esquecidos de onde estávamos, éramos surpreendidos por um ou outro
monge. Ele então nos pedia, tranquilo e assertivo, que fôssemos brincar fora
dos limites do mosteiro: “A casa de Deus não é lugar para brincadeira”.
Passadas semanas, enveredávamos pelas mesmas ruas da Tapera e de
maneira inevitável voltávamos ao jardim até sermos retirados de novo sob
ameaça de reclamações às nossas famílias.
Um dia, enquanto acompanhava Luzia recolhendo as peças de roupa no
mosteiro, um dos monges me reconheceu e contou à minha irmã sobre as
brincadeiras no jardim. Contou que pisoteávamos os canteiros, que
tínhamos sido advertidos a não maltratar a casa de Deus, mas que sempre
voltávamos; que acertávamos passarinhos com o estilingue e danificávamos
o cruzeiro ao treparmos ali com os pés sujos. Vi o rosto de Luzia se aquecer
como um braseiro. Ela pediu muitas desculpas antes de entrar para a missa
me puxando pelo braço. Flexionou os joelhos diante do altar, fez o sinal da
cruz. Falou para que apenas eu pudesse escutar: “Quando chegar em casa
você me paga”. Naquela hora, só me restava torcer para que o sermão fosse
inspirador a ponto de aliviar o peito de Luzia da amargura e da vontade de
me surrar pelo pecado de profanar o jardim da igreja.
Foi assim que a missa transcorreu com o longo sermão de dom Tomás
sobre a Trindade. Luzia passou todo o tempo atenta, sem desviar seus olhos
do altar para qualquer outra distração. Nos dias de domingo, ela escolhia
um lenço bem engomado e menos puído para recobrir sua cabeça, com uma
abertura por onde escapava uma grossa trança. Uma vez por semana eu a
via desfazer o cabelo entrelaçado para lavá-lo no rio. Depois, Luzia o
penteava, domando-o, uma árvore frondosa despontando plena.
Enquanto se dirigiu junto à romaria de mulheres para a comunhão, eu
fixei meus olhos nos seus passos arrastados, na corcunda que diminuía à
medida que se afastava de mim. Luzia retornou, se ajoelhou para as
penitências enquanto só me restava mirar seu lenço, a trança como uma
corda caindo ao lado da corcova, que de tanto eu olhar passou a pulsar
como um coração. Ela rezava por nossas aflições, e eu aproveitava para
pedir ao Bom Deus que acalmasse seu gênio. Que ela se esquecesse de meu
malfeito e se desse por satisfeita com a reprimenda. Nessas horas, quando a
observava de joelhos, equilibrando o que batia vivo em suas costas, eu me
enchia de afeto por ela. Luzia era uma andarilha solitária por todo canto da
aldeia. Sabia que era desprezada pelo povo da Tapera por um passado sobre
o qual ela não teve escolha.
Não foram poucas as vezes que me deitei na rede e pedi a Deus
enquanto todos dormiam: por Luzia, por meu pai, pelos irmãos que
deixaram a casa antes e depois, e por mãe Alzira, que dormia em alguma
nuvem pairando sobre o céu da Tapera. Pedi, como se sonhasse com os
olhos abertos, por uma vida boa para Luzia e meu pai, de preferência longe
dali, onde as pessoas não eram confiáveis e a infâmia era um grande peso
recaindo sobre nossa casa. Pedi por um lugar onde pudéssemos começar
uma vida nova, como se fosse possível viver sem ser julgado pelo próprio
corpo, pelos males e pelos dons que carregamos conosco.
7

Eu não paguei a Luzia como ela havia prometido, tampouco as estripulias


nos jardins do mosteiro foram esquecidas. Ao me observar esgueirando o
corpo pela porta, ela sentenciava que eu estava proibido de vadiar pelas
ruas, como se não tivesse casa e muito menos família. Só poderia sair
quando recomeçassem as aulas.
Logo as coisas mudaram. Luzia fez do meu ingresso na escola algo
importante para nossas vidas: ora tentava me convencer de que lá
aprenderia a ler e a escrever, que só se daria por satisfeita quando eu
soubesse mais do que os irmãos que não foram alfabetizados; ora dizia que
eu não fazia mais do que a minha obrigação ao frequentar as aulas. Falava
com a voz firme para me convencer a tratar do assunto com seriedade. Era
um ultimato para que eu fizesse valer a generosidade da Igreja, como se
aquela fosse a oportunidade mais preciosa da minha vida.
Aquela decisão atendia, em parte, às expectativas que eu começava a
traçar. Enquanto eu crescia e ganhava conhecimento com os mais velhos
sobre a vida na cidade, alimentei o desejo de ir embora e não mais continuar
a viver na Tapera. Não me via trabalhando a terra como meu pai,
levantando enxada e cavando cova para semear de sol a sol. Nem mesmo
me via no rio para ganhar a vida, lançando rede e apanhando peixe,
retirando escamas e vísceras na beira do Paraguaçu. Quando queria
contrariar Luzia, dizia preferir carne a peixe, tão insatisfeito eu estava com
a vida na Tapera. Ela olhava para mim com desprezo dizendo que eu só
queria ter o que não podia. Parava o que estivesse fazendo, da lavação de
roupa à limpeza do quintal, e gritava como se quisesse que mais alguém
ouvisse. “Se quiser ser grã-fino, vá estudar para ir trabalhar na cidade
porque a Tapera é para gente ‘grã-grossa’.” Outras vezes aparentava estar
ofendida, e quando ria parecia ser de desdém. Eu desviava o olhar e passava
o resto da manhã emburrado com a zombaria.
Eu não gostava da Tapera, e o rio era o caminho a percorrer quando
chegasse a minha hora de partir. Então, para que isso acontecesse, e mesmo
contrariado com os mandos e desmandos de Luzia, só me restava estudar e
aguentar os rigores da escola. Suportar as aulas monótonas, dispensáveis,
que talvez nunca me servissem para nada. Passava longas horas sentado,
assistindo os monges desfiarem seus conhecimentos onde eu não conseguia
antever nenhuma utilidade prática para a minha vida. Eu contava o que
aprendia a Luzia que, indiferente estava, indiferente ficava, tamanha a
distância entre a minha história e a do povo. Às vezes, ela se interessava
quando eu contava algo sobre o mosteiro, sobre quando fora construído,
havia quantos anos, e de como a Ordem ajudou a nossa aldeia. Ela me dizia
que eu continuasse prestando atenção porque ler e escrever era melhor do
que cavar chão ou viver pescando na maré debaixo do sol forte.
Eu passei a gostar de ir às aulas por lá estarem as crianças da Tapera,
assim não me sentia tão só como em casa. Meu pai dizia que eu tinha
nascido “temporão”, “fora de hora”, ninguém achava que mãe Alzira teria
mais filhos. Mariinha havia nascido dezesseis anos antes de mim. Eu sentia
a falta de irmãos com quem pudesse brincar e, com minhas saídas à rua
vigiadas por Luzia, só podia ter contato com outras crianças na escola. Lá
era tudo controlado com o rigor dos monges, a quem as crianças chamavam
de padres porque era assim que os chamavam em casa. Mas ainda existia o
caminho de ida e volta. Se no começo eu fazia o percurso sob o olhar de
Luzia, depois ela ganhou confiança para me deixar seguir sozinho com
outras crianças. Eu preferia ir só, não gostava das provocações dirigidas a
Luzia quando ela me acompanhava: o fardo que ela carregava foi se
tornando meu também, e me perguntava se não teria sido esse o motivo para
meus irmãos deixarem a Tapera. Se a imagem de Luzia estava associada à
má sorte, a minha também estaria. Se os meninos zombavam de sua
corcunda, eu era malhado por ser o irmão da corcunda. Ao crescer fui
percebendo que caminhar longe de Luzia poderia me render menos
problemas. Noutros momentos eu era tomado por um sentimento de pena.
Era insuportável ouvir as ofensas lançadas sobre Luzia sem, contudo, reagir.
Mas, se não conseguia protegê-la da agressividade, era levado a me afastar
ainda mais. Se eu não podia salvar a todos, talvez pudesse salvar a mim
mesmo.
Não fui apenas eu que me afastei com o passar do tempo. Meu pai
também parecia cada vez mais alheio a tudo que se referia a mim e a Luzia.
Trabalhava de sol a sol, mas antes mesmo de sair entornava doses de
aguardente. Bebia cada vez mais cedo, justificando que beber dava energia
para trabalhar sob o sol forte. Nos dias de mormaço, quando não ventava e
a terra parecia uma panela em banho-maria, beber espantava a leseira. Tinha
que ser pouco, nenhuma quantidade a mais do que o necessário para não
afetar a disposição. Mas a regra ia mudando de acordo com a necessidade, e
ia bebendo sempre mais um pouco para ter o mesmo efeito de antes.
Luzia passou a ficar inquieta com a bebedeira do pai. Ele começava o
dia desperto, mas depois ia ficando mais lento e às vezes cochilava antes de
sair. Ele acordava antes da alvorada, e costumava sentar na soleira para
observar as canoas deslizando pelo rio. O ar se enchia dos sons dos animais
e das vozes dos homens arrastando a malha de peixe. Meu pai me levava
aos sábados para a roça, mas a minha falta de interesse foi desestimulando
esses passeios. Eu brincava com as pedras, com os insetos, lagartos, com o
que encontrasse no meio do mato. Só entregava a manaíba para ele plantar
depois de muita queixa e quase sempre de má vontade. Então, impaciente,
ele tomava os instrumentos e as sementes de minhas mãos, o que lhe dava
motivo para passar o resto do dia proferindo sermões sobre a importância
do que fazia. Que eu não desfizesse daquele trabalho porque foi dele que
nossa família sobreviveu por gerações. Enquanto eu crescia, meu pai passou
a recusar minha companhia e assim deixei de ter que segui-lo até a lavoura.
Às vezes, quando ele se sentava à mesa, se queixava da solidão do
trabalho. Se lamentava pelos filhos que não ficaram na Tapera. Lamentava
por ninguém mais ter interesse em trabalhar a terra. Luzia retrucava, dizia
que o trabalho na terra mal dava para suprir nossas necessidades e que na
Tapera não tinha terra para todos. Assim, só restava que cada um corresse
atrás de seu ganha-pão longe da aldeia.
Meu pai olhava para Luzia de través e respondia que não sabia de nada
do que ela falava. Olhava para mim com uma expressão de decepção e dizia
para que ela também pudesse ouvir: “Esse menino, sei não. Gosta de
florzinha, bichinho, porcaria, livro, não sei a quem puxou”.
Luzia não levantava a cabeça e engolia a observação a seco.
8

Não sei precisar ao certo quando me dei conta de que estudar na escola da
igreja foi minha bênção e também minha maldição. Lá, aprendi a ler e
escrever e criei gosto por leituras e descobertas. De alguma forma a escola
preencheu o espaço das minhas ausências: a ausência da mãe e dos irmãos
com quem pudesse compartilhar a convivência da infância. Na escola,
aprendi também que a violência não estava apenas nos castigos aplicados
por Luzia. A violência era traiçoeira e poderia vir travestida de afeto.
Poderia habitar os olhos do benfeitor sem que percebêssemos. Quase
sempre era justificada por boas intenções, por compaixão e redenção. Às
vezes poderia ser uma promessa de sorte, adoração, deslumbramento,
ocultando as sementes da loucura e da danação.
Não demorou para que eu sentisse vontade de estar no ambiente da
escola. Se no início havia apreensão e receio pelo rigor dos monges, depois
percebi que havia crianças com quem eu poderia compartilhar o dia. Havia
livros e cadernos para manusear, coisas a aprender e assuntos que me fariam
sonhar. Meu primeiro professor foi irmão Miguel. Foi ele que me
alfabetizou com uma velha cartilha. Eu observava com atenção sua
caligrafia reproduzindo o alfabeto no quadro, enquanto tentava repetir nos
cadernos pautados letras e palavras desenhadas em meu horizonte. Sempre
que recordo os anos de estudante, quando aprendi a ler, a decifrar as linhas
das letras, sinto esse momento como uma experiência de grande
intensidade. Era como nascer outra vez, mas desembarcar num mundo de
compreensões e sentimentos que me acompanharia sempre. Depois,
reproduzir tudo, experimentando nomear as coisas, as pessoas, as emoções,
os mais vagos pensamentos: o que estava fora e o que estava dentro.
Muitas das crianças se mostravam arredias, com dificuldade para pôr em
prática o aprendizado. Para mim tudo inspirava a magia, e o medo de errar
quase não existia. Captava com rapidez os significados, a origem, os nomes.
Lia com a avidez que recordava uma fome antiga e persistente. Só não
escrevia mais por faltarem papéis e cadernos. Escrevia na areia à beira do
Paraguaçu, depois mostrava a Luzia e perguntava se ela sabia o que era. A
sós comigo ela não parecia se envergonhar de não saber ler. Estava
conformada e contente de que pelo menos eu soubesse. Ao encontrá-la na
igreja, irmão Miguel contava com entusiasmo a minha evolução na escola,
que, quando eu dava por cumprida uma tarefa, desejava outra sem cansaço
aparente, o que parecia raro, já que muitos se queixavam.
Em nossa casa não havia livros ou jornais. Quando aparecia algo
embrulhado em papel de jornal, eu lia, ainda que não entendesse o
significado de todas as palavras ou o sentido dos fragmentos truncados.
Guardava só para ter o que ler depois. O que eu não sabia, arriscava
perguntar a Luzia. No começo, ela parecia irritada com minha insistência.
Repetia que era ladainha, lenga-lenga: “Onde já se viu tanta pergunta?”.
Depois foi inevitável não despertar sua atenção para as minhas descobertas.
Ela me pedia para ler sua certidão de nascimento envelhecida, com nódoas
de umidade. Assim como eu lia, ela repetia o nome dos pais, dos avós,
corrigindo uma ou outra pronúncia. Sempre comedida, mas sem disfarçar
sua admiração pelo meu aprendizado. Se eu errava uma palavra, Luzia não
deixava passar. Ainda que não soubesse ler, tinha boa memória, conhecia as
palavras de ouvido. Pedia que eu repetisse, repetisse outra vez, até ter
certeza de que havia aprendido.
Em seguida, fazia questão de estimular que eu reiterasse tudo ao pai. Ele
olhava de través sem o mesmo interesse de Luzia, continuava meio ausente
enquanto amolava o facão. Depois de muito escutar — e um tanto entediado
— dizia: “Bem, vai ser doutor”. Com o passar dos anos me importava que o
conhecimento adquirido pudesse me dirigir a um caminho diferente do
percorrido por meus irmãos. Mas, no começo, o que importava mesmo era a
liberdade de ler os nomes dos saveiros — Dadivoso, Coqueiral, Sombra da
Lua, Da Vida; de decifrar os avisos da escola; de ler O Domingo das missas
sentado no banco da igreja, enquanto Luzia se curvava em penitência.
Ainda que não compreendesse o que ali estava me entretinha nas expressões
“Cordeiro de Deus”, “Espírito Santo”, “piedade de nós”. Explorar as
palavras e seus significados era penetrar na alma das coisas. Era como ser
Deus, vigiando os mais íntimos pensamentos. Me despedia daquele folheto
desejando levá-lo comigo. Ao perceber minha intenção, Luzia o retirava de
minha mão e o devolvia ao receptáculo.
E depois, à medida que avançava na compreensão, passei a almejar a
biblioteca do mosteiro, onde estavam reunidos todos os livros. Não me
recordava de Luzia ter entrado num desses cômodos enquanto eu a
acompanhava em suas visitas para a coleta das roupas. Talvez até tivesse
visto a biblioteca, porém sem saber do que se tratava, havia considerado ser
tudo parte da mobília escura que compunha o conjunto. Restava imaginar
como seria o lugar que, de tão evocado por irmão Miguel, se tornou quase
mítico para mim. Era um templo dentro de outro templo, onde as palavras
estavam registradas para a eternidade — era assim que eu fantasiava. Os
livros eram como dúzias e dúzias de ovos de um galinheiro povoado ou a
fartura de vagens num pé de feijão. Os concebia na minha imaginação,
empilhados no solo, formando grandes colunas; ou guardados em urnas
diferentes a sete chaves, como relíquias imemoriais. Minha compreensão
não os considerava enfileirados em prateleiras, organizados por sobrenome.
Não os imaginava velhos e empoeirados, com páginas amareladas, roídos
por traças. Para dizer a verdade não imaginava serem os livros escritos.
Pensava que surgiam como nós, das vidas de outras pessoas, vivos, sem
grandes explicações.
Quanto mais eu aprendia, mais eu parecia me distanciar da vida na
Tapera. Cheguei a considerar ser meu destino entrar na Ordem religiosa
quando adulto. Aos meus olhos ser monge era melhor do que ser pescador
ou trabalhador da roça, de sol a sol. Mas eu nunca tive coragem de externar
minhas intenções a Luzia, e ela nunca soube do meu interesse. Eu
observava o conhecimento dos padres em contraposição à rudeza dos
homens da aldeia, como meu pai, limitados a repetir o que conheciam de
seu cotidiano. Se não era lavrador, era pescador, e os de alguma sorte eram
pequenos comerciantes e cobradores do foro. Não queria o mesmo destino.
Passei a me considerar melhor e mais importante — sem ter a exata
dimensão do significado de tudo — do que as pessoas à minha volta. Eu
detinha o conhecimento que muitos não tinham. A ironia de meu pai, “Vai
ser doutor”, havia sido compreendida por mim como uma previsão.
Mal sabia: junto à aura de virtude que acompanhava minha
aprendizagem viria a condenação por querer um caminho diverso do
esperado de pessoas como eu. Meu interesse despertou a cobiça por algo de
que, por ironia, eu sequer sabia o nome. Por não conhecer, fui tomado por
uma aflição involuntária, materializada em pesadelos vividos numa cama
molhada de urina, para fustigar ainda mais a cólera de Luzia. Sem
compreender por que de uma hora para outra comecei a urinar na cama ou
na rede, ela começou a acreditar que era tudo uma armadilha, aventou se
tratar de um jogo de malcriação para lhe punir; e mais: acreditou com
convicção que era minha vontade lhe impor o castigo, o que a deixou mais
revoltada, comigo e consigo mesma, por talvez se considerar merecedora.
Toda vez que intentei chegar ao íntimo do que me ocorria, me restavam
lembranças difusas: portas fechadas, sombras, calor e frio sentidos quase ao
mesmo tempo, água corrente, a percepção de que estava enxovalhado em
meio à imundice. Sensações percorrendo o corpo dividido de uma criança.
O arrepio constante derivado de sentimentos sem nome, tão distintos como
a vergonha e o prazer, me acompanhou por muito tempo sem que eu tivesse
controle, tampouco pudesse saber de onde vinha e por que vinha.
Mas, assim como aprendi com os livros, as lembranças também formam
um calhamaço: viro uma página, outra se sucede, e o que não fazia sentido
a princípio desponta como uma revelação.
Na teia do esquecimento, a memória se faz de doses iguais de verdade e
de imaginação.
9

Ainda me recordo com assombro quando tudo começou. Me atraquei como


um cão vadio da aldeia com um colega da escola. Zombar de Luzia a
chamando de “bruxa corcunda” foi a gota d’água e eu cuspi em seu rosto
como se lançasse um veneno. Em seguida, estávamos no chão; ele ofendido
pela cusparada; eu por querer vingar a dignidade de Luzia. Antes que os
monges viessem nos separar, segurei sua cabeça e a lancei contra o piso.
O menino era Eliomar, conhecido por todos como Boca de Peixe. Era
filho de um pescador. Uma boca grande para o tamanho de uma criança,
somada ao falatório de uma matraca, lhe deu a alcunha. Seu dom para a
conversa era como uma desgraça para os ouvintes. Quando abria a boca era
um peixe em busca de uma nova presa, e de tão faminto terminava
mordendo a isca. Para mexer comigo ele falou de Luzia, como outros
meninos faziam. E, de todos, ele era o mais detestável, e só por isso eu
mantinha distância. Semanas antes, Boca de Peixe me chamou de “irmão da
feiticeira”. Lancei um punhado de terra contra seus olhos. Ele devolveu a
terra com mais valentia e perdigotos. Como se recuperava de uma papeira,
eu terminei por adoecer. Fui cuidado por Luzia, que, no final, pôs a culpa da
doença em mim, por não ter me mantido distante o suficiente. Não tive
coragem de dizer que a defendia da língua de Boca de Peixe. Passei dias de
febre, na cama, proibido por Luzia de fazer qualquer esforço, com risco de,
caso desobedecesse, a doença descer para minha “vergonha” — era como
ela dizia — e me deixar estéril. Meu pescoço e meu peito ficaram moles
feito fígado de galinha, e por isso levei uns bons dias para retornar às aulas.
Depois ele me ofendeu de novo ao atacar o nome de Luzia. Por mais que
fosse aconselhado por ela a ignorar, “Deixe, que Deus resolve”, eu queria
revidar o insulto. Rolamos no chão, com um círculo de meninos inflamando
ainda mais a luta, como homens acompanhando uma rinha de galos. Até
que apareceu um dos monges, e ele tinha o rosto transtornado. Nos levantou
e arrastou até a sala de dom Tomás, a temível sala do abade, pátio de nossas
assombrações. A referência ao recinto era acompanhada de um sentimento
de pavor dos alunos, como se ali funcionasse o Tribunal do Juízo Final.
Separados pela força do monge, percebi minha roupa suja, enlameada,
enquanto ele nos segurava pela gola da camisa. Levado junto, Boca de
Peixe segurava o choro para não entregar sua derrota na frente de todos.
De imediato, achei que nosso castigo seria a tradicional palmatória. Mas,
embora nos referíssemos ao instrumento em nossas conversas, sabíamos
que esse tipo de punição não era aplicado com frequência. As brigas não
eram comuns porque pairavam sobre nós os mais diversos medos incutidos
pelos sermões do abade. Devíamos respeitar a casa de Deus, do contrário
habitaríamos o inferno. E o mau comportamento seria relatado à família. Os
castigos físicos eram a ordem nas casas, e deles não escaparíamos. Assim
os monges mantinham relativo controle sobre as crianças e, por sua vez,
sobre a aldeia.
Na sala ocupada por mobília velha e escura, uma faixa estreita de luz
atravessava a cortina quase cerrada, conferindo certa gravidade ao
ambiente. O monge continuava a nos segurar pela gola e fez uma reverência
a dom Tomás. Narrou o que viu da confusão e retransmitiu os relatos das
outras crianças, colhidos às pressas, sem que pudéssemos contar a nossa
própria versão. Boca de Peixe tentou escapar interrompendo e chamando a
atenção para sua cabeça, dizendo que eu a havia batido várias vezes contra
o chão. Meu orgulho não me permitiu ficar calado e por isso considerava
certa a surra que levaria de Luzia. Dom Tomás permaneceu sentado, nos
observando. Parecia começar a nos repreender com as expressões do rosto
— um borrão em minha memória —, mas sem sustar o relato do monge.
Quando deu a narrativa por completa, o dispensou. Ficou com os dois
meninos de pé, frente à sua mesa. Seu olhar era severo e sua voz se
modulava calma, menos inflamada do que os sermões da missa de domingo.
Foi com esse tom de voz, mais suave do que poderia ser a voz de Deus,
quando queria ser bom, que dom Tomás se pôs a advertir, dizendo sem
rompantes que se continuássemos a agir daquela maneira envergonharíamos
ao próprio Deus. Recordou que Jesus pregou o amor ao próximo, e na casa
de Deus e além dela deveríamos seguir à risca seus ensinamentos sob a
ameaça de cedermos às tentações do Diabo. “Vocês não querem ceder ao
Inimigo, sim?”, perguntou enquanto se levantava para passar a nos
circundar no centro da sala. Com as mãos para trás do corpo, um rosto sem
formas, um rosto que desde esse dia imaginei envolvido em sombras,
começou a dizer que era melhor benquerermos, vivermos como irmãos,
cuidarmos uns dos outros como Deus cuida de cada um. Dava voltas com
um andar compassado e, por fim, depois do breve discurso, quis nos ouvir.
Boca de Peixe se pôs a falar, afoito, contando que eu havia agredido
primeiro e por fim tinha levado a melhor porque ele teve a cabeça atirada
contra o chão. Contou sua versão: jamais ofendeu a mim ou à minha irmã,
omitindo que o deboche era diário. Queria se salvar — e eu também — da
reclamação que seria levada aos nossos pais. Queria evitar os castigos dos
monges e da família, afinal a famosa palmatória poderia estar nas mãos de
dom Tomás. Boca de Peixe falava com inquietação, apavorado, não queria
dar espaço para contestações de minha parte. Eu o escutava rangendo os
dentes, olhos fixos no assoalho, tentando acompanhar os passos do abade
para decifrar qual seria o veredito de seu julgamento. Dom Tomás
perguntou se eu tinha algo a dizer e contei que Boca de Peixe havia
chamado minha irmã de “bruxa corcunda”. “Sua irmã, a nossa lavadeira?”,
disse para enfatizar seu conhecimento sobre mim, e eu assenti com a
cabeça. “E você a defende agindo como um animal?”, permaneci em
silêncio.
A voz do abade parecia mais baixa. Em contrapartida sua respiração
acelerava a ponto de preencher toda a sala e eu temi que seu fôlego fosse o
prenúncio de castigos mais severos. Boca de Peixe também se calou,
provavelmente temendo o mesmo. Só nos restava esperar a sentença —
expulsão? Seríamos proibidos de retornar à escola? —, enquanto
escutávamos o ar escapar por suas narinas com aflição.
Segurando primeiro meu ombro, depois o de Boca de Peixe, ele nos
colocou frente a frente. Falava de perdão e que deveríamos viver como
irmãos, cuidando um do outro. Ouvi o trinco da porta se fechar e logo em
seguida ele retornou à sua cadeira atrás da mesa escura de onde nos
observava. Dom Tomás ordenou que nos abraçássemos. O medo de Boca de
Peixe era tão grande que ele deu o primeiro passo enquanto eu continuava
parado. O abade ordenou de novo, sem justificar. A única palavra que eu
havia compreendido era “abracem”. Se aquele gesto nos livraria de castigos
maiores, pelo menos no mosteiro, que fosse então a pena a se cumprir. Eu
sentia raiva por estar numa posição humilhante, mas dei um passo hesitante
em direção ao meu inimigo.
Foi um abraço rápido, sem verdade alguma, e no segundo imediato
estávamos já separados. Dom Tomás não era tolo e exigiu o cumprimento
da pena. “Deus está nos vendo”, disse para reavivar o medo. “Vocês
precisam se abraçar e se perdoar. Não irão mais repetir o que fizeram”,
falou esperando que nos uníssemos de novo. “Mas o abraço só vai terminar
quando eu sentir verdade dos dois”, e seus pés surgiam relaxados por baixo
da mesa.
Permanecemos aprisionados naquele castigo travestido de gesto de
perdão. Estávamos sujos e sentíamos nossos odores desejando que aquela
opressão terminasse. Depois de um tempo, Boca de Peixe perguntou se
estava cumprido. “Não. O castigo é ficar junto até a hora que for necessário.
Até eu perceber que vocês não estão enganando a Deus”, respondeu o
abade. O menino chorava baixo e talvez se eu não estivesse tão perto nem
percebesse que chorava. Naquele instante eu só conseguia sentir mais raiva,
mas pior seria descumprir a ordem de dom Tomás. Escutava a respiração de
Boca de Peixe muito próxima, mas era a respiração do abade que preenchia
o ambiente. O mesmo som dos animais cansados após uma fuga. Eu não
conseguia olhar para Boca de Peixe e meus olhos seguiam fechados a maior
parte do tempo. Quando os reabria, encontrava os sapatos de dom Tomás
saindo por baixo da mesa; tornozelos brancos contrastando com o couro
preto dos sapatos. Seus pés, vez ou outra, se mexiam, como se procurassem
uma posição confortável. Tremiam com breves espasmos. Se fixavam no
chão, mas por fim escorregaram livres para longe de seu corpo.
Bateram na porta e ele ordenou que nos afastássemos. Tínhamos
cumprido a punição. Deixamos a sala sob os cuidados do mesmo monge
que nos levou até dom Tomás. Percebi então que algo havia se posto entre
mim e Boca de Peixe, como se a intimidade daquele castigo fosse pior do
que a surra que poderíamos levar em nossas casas. A consequência foi que
não conseguíamos mais olhar um para o outro.
A raiva deu lugar à vergonha.
10

“Esmola para são Vicente, para quem mija na cama e nem sente. Repete!”,
Luzia ordenou entre uma boa dose de revolta e outra de comoção.
Eu estava rijo diante da porta aberta, com o colchão molhado
equilibrado na cabeça. Não conseguia olhar para Luzia, tomado pela
vergonha e pela raiva. Era evidente meu mal-estar quanto ao que me
acontecia, mas para ela eu urinava na cama de maneira intencional. Luzia
continuava atrás de mim à espera de minha saída. Depois de muitos
incidentes como aquele nas últimas semanas, sua promessa de me castigar
iria se cumprir. Me envergonhar diante das crianças da aldeia seria seu novo
recurso para me fazer parar de urinar durante o sono. Nem esfregar o lençol
no meu rosto antes da lavagem nem gritar foi capaz de reverter minha
incontinência. Então só restava o recurso da humilhação pública. Eu deveria
caminhar pela rua com o colchão sujo, repetindo a prece para são Vicente.
Mas antes de pôr meu pé para fora da soleira, voltei meus olhos para os
de Luzia, atrevido, como ela mais detestava. Eu disse que poderia sair,
poderia até apanhar e ser motivo de zombaria para as crianças da Tapera.
Mas ela, por tabela, ficaria envergonhada, afinal a vizinhança já a tratava
com desdém desmedido. Eu era seu irmão e isso seria motivo de mais uma
humilhação, que certamente não precisávamos.
Luzia olhou para mim controlando a revolta. Seus olhos estavam úmidos
e vermelhos.
Talvez soubesse que eu não passaria pela porta carregando o colchão; ela
não permitiria. Seu instinto de proteção falaria mais alto, e por isso puxou
meu braço com força para que eu deixasse a soleira. Seus olhos crispavam
de raiva. Depois de me soltar, bateu a porta. O estrondo ecoou pelas ruas da
aldeia. Ela ainda gritou para que eu fosse estender a “porcaria do colchão”
ao sol, próximo à cerca da horta. “E vai lavar a roupa, mijão!”, determinou,
sem que eu tivesse chance de replicar. Com um pedaço de sabão em barra,
me dirigi ao rio com o lençol puído enrolado nas mãos.
Depois da briga com Boca de Peixe, passei a ser chamado com
frequência à sala de dom Tomás. Passei a me sentir vigiado e isso era fonte
de grande desconforto. Nas primeiras vezes acreditei ser ainda por
consequência da contenda no pátio. Cheirei a mancha amarela e senti o odor
de minha própria urina. Mergulhei o lençol na água. Naquele canto do
mundo só era possível escutar o som da brisa e dos animais. Ouvi o chilrear
dos pássaros sem conseguir identificá-los. Vez ou outra um saveiro
deslizava pelas águas, distante de onde eu me encontrava. Mergulhei outra
vez o tecido e o atritei com as mãos na expectativa de que o cheiro o
deixasse. A espuma branca se deslocou na direção da correnteza.
“O Diabo é sujo”, falou o abade depois de me observar em silêncio por
longo período. Na maior parte do tempo, eu mantinha os olhos à frente,
sobre a mesa, e contemplava os objetos dispostos de forma ordenada: bloco
de notas, mata-borrão, caneta-tinteiro. Era curioso observar aquelas peças
que não faziam parte do nosso material de uso. Todas as vezes que fui me
sentar diante do abade encontrei livros sobre a mesa, e tentava ler os títulos.
Havia também uma xícara branca com desenhos azuis de onde vinha o
cheiro de café frio. Sentado na cadeira, meus pés balançavam inquietos.
Quando precisava responder às poucas perguntas que ele me fazia, olhava
para seu rosto. A mesma face sem traços definidos, sem olhos e nariz, sem
linhas e expressões. Só a boca despontava delineada, brilhante, como os
lábios das artistas na televisão, pensava no instante em que eu lavava a
roupa. Seria uma fenda vermelha, vibrante, se não conservasse uma baba
branca, um veneno peçonhento, nos cantos.
Aos dez anos meus braços eram finos feito gravetos e eu não conseguia
retirar toda a água entranhada no lençol depois de torcê-lo. Estendi-o sobre
as pedras, esperaria por um tempo até que secasse por completo. O sol se
firmava no alto do céu, imensa brasa ardente, e eu fechava os olhos me
esquivando da luz. De novo era inundado por imagens confusas. Um fio de
luz entrava pela janela da diretoria e iluminava os objetos dispostos no
ambiente. Dom Tomás segurava meu pescoço. Era um toque cordial, como
os que não recebia em casa. Quando passei a ser chamado com frequência à
sala de livros antigos e cheiro de mofo, o medo deu lugar à espera. O bem-
estar se confundia com a inquietação e já não desviava meu pescoço das
mãos de dom Tomás, com medo de que fosse apertá-lo. Ele caminhava pela
sala, passos medidos e sem movimentos bruscos. A roupa escura ainda
sufocava, mas já não me angustiava como a respiração preenchendo o
cômodo. A luz encontrava o crucifixo que ele levava ao peito,
resplandecente, uma estrela entre as paredes.
O sol havia percorrido o céu e a superfície do rio refletia as mesmas
estrelas, como se o crucifixo estivesse se estilhaçando sobre as águas. Tanto
tempo havia se passado que nem percebi que já era tarde. Luzia estava ao
meu lado. Perguntava o que eu tinha aprontado, se não iria mais para casa,
se não reparei que tinha passado a hora do almoço. Eu a olhava sem
responder, me sentia estranho. Impaciente, ela aproximou a mão, tocou
minha testa — “Valha-me Deus”. Pediu com insistência que eu ficasse de
pé, mas minhas pernas não obedeciam. Eu não estava desperto por
completo das horas exposto ao calor, sem sombra e sem beber água. Me
sentia prostrado, o sono era senhor de meu corpo. Luzia pediu de novo que
eu me levantasse, dizia que eu estava crescido, já não dispunha de força
suficiente para me carregar. Não sei de onde busquei energia para caminhar
até em casa, mas quando percebi estava instalado no mesmo colchão com
catinga de urina seca.
Passei dias com Luzia ao lado da cama, aplicando compressas de água
fria para amainar a febre. Meu pai andava desassossegado de um lado a
outro. Conseguiu trazer uma enfermeira da cidade. Depois, remédio da
farmácia, que ficava distante. Repetia que se fosse no tempo das rezadeiras,
eu ficaria curado. Luzia não largava o terço nem quando precisava ir à
cozinha ou à porta. Já não se importava que eu urinasse na cama; me
levantava pela manhã, trocava o lençol e minha roupa, mudava o lado do
colchão. Quando não havia mais jeito, o retirava para expor no quintal e me
instalava na rede. Trazia as refeições, me dava de colher como se eu fosse
uma criancinha, se mostrando inquieta para que eu comesse.
Naqueles dias, os pesadelos pareciam mais reais do que a vida concreta
à minha volta. A febre me levava ao desvario, a territórios povoados por
assombros, medos ancestrais e palpitações inexplicáveis. Frio e calor se
alternavam com a mesma intensidade. Eu gemia quando percebia estar
sendo devorado por uma besta de vestido escuro, a boca no lugar da barriga,
os olhos saltados do corpo. Era engolido, regurgitado e depois sentia
vergonha de mim mesmo por me encontrar naquele estado. Talvez
convencida de que a reza não surtia mais efeito, Luzia passava ramos de
guiné e arruda sobre o meu corpo. Improvisou um braseiro, defumou a casa,
se atendo em especial à minha cabeça. Meus olhos permaneciam a maior
parte do tempo fechados e eu sentia o cheiro forte impregnando o ar. Luzia
mantinha a janela fechada para que não apanhasse sereno. Pés calçados para
não pisar o chão frio do quarto. O mundo de proibições era o mesmo, só
não poderia ser contado aos quatro cantos da aldeia para que não fôssemos
acusados pela religião de supersticiosos.
Passados os dias — não sabia precisar quantos —, a febre se foi e a
energia foi sendo restituída ao corpo, e Luzia já não considerava necessário
estar ao meu lado todo o tempo. As vezes que precisou buscar a roupa para
lavagem, voltou tentando me animar dizendo que dom Tomás havia
perguntado por mim. “Ele está rezando”, Luzia disse, “você vai melhorar.”
Eu permanecia em silêncio, fingia não dar importância. Mas gostava de
sentir que ela estava ao meu lado e de suas tentativas quase infantis de me
dar ânimo, esperando que reagisse à doença.
Quando estava restabelecido do mal sem nome, a ponto de Luzia ter
suspendido as regalias às quais já tinha me acostumado, ela passou a se
mostrar cismada com todo o tempo que passou ao meu lado. Se mostrava
confusa, buscava desvendar a causa da doença. Refutava a tese de
insolação, a tese da manga com leite ou da banana que não comi debaixo do
sol. Achava ter sido feitiço, mas não poderia dizer em voz alta, sob o risco
de ser questionada. Depois se voltou a mim, intrigada com o teor dos meus
sonhos. Começou a contar meus delírios, com detalhes que eu desconhecia.
Por fim se pôs a perguntar, insistente, sobre os relatos desconexos que eu
fiz enquanto ardia sob seus cuidados. Quis saber quem era a mulher de
vestido escuro a quem eu pedia que fosse embora com insistência. Queria
saber por que eu chorava — “Você nunca chora” — e por que eu repetia
que a cruz me cegava.
11

Luzia decidiu que era momento de me confessar ao abade. Eu precisava


contar tudo o que se passou durante a enfermidade e, por consequência,
relatar meus pesadelos. “O demônio está à espreita”, ela dizia. A cruz de
Cristo não poderia cegar um verdadeiro cristão, isso era desdenhar de suas
bênçãos. A seriedade com que Luzia falava me deixou assustado, embora,
desde que me entendesse por gente, conhecesse sua devoção exagerada e o
apego às crenças da Igreja. Ela se pôs numa cruzada, determinada a sufocar
o mal à nossa porta. Naquele período associei de maneira remota o medo
aos segredos do seu passado. Mas, anos depois, se instaurou a certeza:
Luzia temia que se repetisse comigo o mal atribuído a ela nos quatro cantos
da Tapera.
“Sua irmã me contou sobre os pesadelos”, dom Tomás disse ao afagar
minha cabeça. Em seguida deslocou a mão para minha nuca e me guiou até
o confessionário. Luzia estava com os joelhos no estrado baixo do banco,
rogando a todos os santos para me livrarem do encosto.
“Bom saber que Deus te curou, Moisés. Não há nada que o Senhor não
possa nos dar”, dom Tomás disse em tom baixo, enquanto se acomodava de
maneira confortável por trás da treliça do estande. Ele submergiu na sombra
e eu só conseguia entrever uma mancha iluminada no lugar dos olhos. A
imagem e o sussurro de sua voz permaneceram íntegros em minhas
lembranças. A respiração de dom Tomás parecia normal, distante da
sofreguidão com que invadia a sala quando estávamos a sós. O crucifixo
pendia sobre o hábito na altura do peito e emitia pequenos lampejos à
medida que seu corpo, de maneira sutil, se movimentava.
“Poderia repetir para mim o que contou à sua irmã?”
“Eu não lembro, senhor, Luzia disse que eu sonhava e falava coisas…”
“Ela me contou que você falava de uma mulher com vestido escuro
tentando te machucar.”
O silêncio se interpôs entre nós. Respondi que não sabia e, por mais
esforço que fizesse, não conseguia lembrar. Ele disse que não era preciso ter
pressa, às vezes os sonhos ficam lá no fundo da alma e então retornam —
límpidos, claros e inteligíveis, como num dia ensolarado. Mas mesmo que
fosse possível, não era meu desejo persistir. Embora não me recordasse dos
pesadelos, tinha a nítida sensação de que deixaram uma sombra sobre mim,
um peso que nunca se dissipou e que, passados anos, continuo a sentir.
Dom Tomás não estava satisfeito e continuava a sussurrar de maneira
quase hipnótica. Sua voz ecoava feito o som de um instrumento musical,
como na antiga história do flautista que levou as crianças para a caverna.
Ao retornar sempre para o mesmo ponto do inquérito, percebi aonde ele
queria chegar: saber se meus delírios se referiam às últimas passagens por
sua sala. Queria compreender o significado da sentença “a cruz me cega”
contada por Luzia. Tencionou ir além e se inteirar do que eu sonhava não só
durante a doença, mas nos últimos meses, e por que eu urinava na cama.
Por mais que ele insistisse, eu me sentia incapaz de responder. Sabia dos
meus sonhos, mas as imagens retornavam em faíscas, sem, contudo, se
fixarem. Por fim, contei os pecados de sempre: a má-educação contra Luzia
e os desejos de vingança que fermentavam em mim contra qualquer um que
a ofendesse.
“Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo.”
Recebi a penitência de rezar ave-marias e pai-nossos. Me pus de joelhos
ao lado de Luzia. Minhas preces eram maquinais, alternando a
memorização dos versos e o número exato de orações para cumprir minha
penitência. Ela estava absorta em suas preces, cuidava de deixar parte de
suas angústias no altar dos santos.
Naqueles anos, meu pai passou a maior parte do tempo fora de casa,
entre a roça e o bar da aldeia. Saía cedo todos os dias e algumas vezes
retornava trôpego, voz pastosa, ânimo alterado. Tinha abandonado seus
planos de me ensinar sobre nosso mundo, como fez com todos os filhos
homens. Nem por isso parecia conformado de me ver lendo e escrevendo,
falando de ciência, da viagem do homem à Lua — me dizia que tudo isso
era bestagem, mentira da televisão para nos engambelar — e dos cálculos
que eu fazia de memória. Às vezes ele me retirava da rede com o livro entre
as mãos. Dizia que homem o tempo todo dentro de casa passa a pensar e
agir como mulher. Que eu deveria jogar bola na rua com outros meninos ou
ir nadar no rio; eram atividades que faziam parte da minha rotina há um
ano, mas fui deixando de lado à medida que crescia. Quando eu ouvia suas
queixas intermináveis, ficava amuado, e pensava em maneiras de não o
desagradar por completo. Às vezes Luzia o enfrentava, dizia que era melhor
ser estudioso do que vadio ou pau-d’água. A escola me daria uma vida
diferente. Nessas horas rompia com sua submissão de filha e contestava: “O
destino dele vai ser cair no mundo como todos os outros, mas pelo menos
saberemos que estará bem, que terá um bom trabalho na cidade, diferente
de nossos irmãos, de quem não temos notícias”. Meu pai repetia a Luzia:
“Você ainda estraga esse menino com sua educação de florzinha”. Insistia
em que sentiria desgosto de ver um filho se tornar padre e entrar para o
mosteiro que dominava as terras do povo da Tapera.
Luzia retrucava, mas conhecia seus limites. A última palavra deveria ser
a do pai, e por isso ela recolhia o livro ou o caderno de minhas mãos e me
empurrava porta afora para que saísse um pouco. Eu contestava, reiterava
meu desejo de ficar em casa, e então ela dizia:
“Tudo tem limite. Vai ficar igual ao maluco da casa verde.”
Ela se referia ao filho de dona Santa, que passava o dia na janela com o
olhar perdido, babando como uma criança de colo. Em alguns momentos,
confesso, a possibilidade aventada por Luzia de que eu enlouquecesse me
perturbava. Eu deixava o livro de lado, saía, caminhava até o rio, voltava a
sonhar com o dia em que deixaria a aldeia num saveiro com destino à baía,
mas não só. Remoía os sentimentos estranhos que haviam me assaltado no
último ano e as emoções derivadas de minha convivência na escola do
mosteiro. Sentia uma profunda inquietação, mas também satisfação por
qualquer forma de afeto que não existia em casa. Talvez por isso não me
esquivasse por completo de retornar à sala da diretoria, mesmo sem
compreender por exato o tratamento diferente que me era dispensado.
Sabendo do meu crescente interesse pelos livros, dom Tomás os retirava da
estante, soprava a poeira da parte superior do miolo e dizia que eu tinha
permissão para os levar de empréstimo. Ele escolhia os que poderiam me
interessar, os que julgava apropriados à minha compreensão, com o
conhecimento próprio dos grandes leitores. O universo peculiar das
histórias passou a preencher os vazios de minha vida na Tapera: singrei
mares em busca de uma baleia-branca, dei a volta ao mundo, sofri com os
descaminhos de Oliver. Continuei a dispensar as saídas de casa para estar
com os livros. Era melhor que afundar de novo na vida da aldeia.
Os anos se passaram e eu continuei levando livros da biblioteca do
mosteiro para casa. A cabeça ia se ajustando ao corpo que se modificava: os
pelos cresciam, o buço despontava, um traço do bigode que nunca cultivei.
A voz mudava e parecia estranha a mim mesmo, me fazendo mergulhar
ainda mais no silêncio. Passei a auxiliar dom Tomás nas missas, ganhei
túnica vermelha e sobrepeliz, me tornei coroinha. Luzia se mostrava feliz
com meu destino e meu pai parou de me aborrecer, como se tivesse
desistido de mim. Mas foi justo nesse tempo em que não conseguia mais
viver sem leituras, que dom Tomás se afastou. As idas à sua sala cessaram
de um dia para o outro. Nas missas eu já não era o centro de suas atenções
e, por vezes, era como se não me conhecesse. Fui tomado por sentimentos
divergentes: por vezes imaginava que ele sequer sabia meu nome.
Não podendo mais enfrentar aquela indiferença, resolvi me arriscar, me
incutir coragem para ir à sala da diretoria sem convite. Os meninos
continuavam a ser convidados, fosse por mau comportamento ou por outras
motivações. Sem os livros e a atenção anterior, eu me sentia dependente
daqueles gestos. Entrei ao encontrar a porta entreaberta. A sala estava vazia,
os objetos antigos no mesmo lugar sobre a mesa. O que denunciava a
presença de dom Tomás era sua respiração agitada que eu tão bem
conhecia.
Abri a porta da sala anexa evitando ruídos, não queria que me
repreendesse por má-educação. Havia uma criança sentada numa cornija
que, num primeiro momento, não cheguei a reconhecer. Dom Tomás estava
ajoelhado à sua frente, os olhos fechados, a cabeça balançando, sua
respiração rumorosa inundou então os meus ouvidos. Estremeci e, se
pudesse ter visto o meu próprio rosto naquele momento, era provável que o
apreendesse se esvaindo por completo de sua cor de terra.
12

Não retornei mais à escola do mosteiro. Nos primeiros dias, vesti o


uniforme e saí para vagar pela mata. Não podia caminhar pela aldeia para
não ser denunciado como um evadido, mesmo sabendo que mais cedo ou
mais tarde isso iria acontecer. Me aproximava do mangue, a cabeça
povoada de pensamentos carentes de sentido. Sentia um sono persistente e
dormia em qualquer lugar. Bastava uma sombra, caía adormecido e era
acordado apenas pelas picadas dos insetos. Quando buscava pelo rosto de
dom Tomás no turbilhão de pensamentos que me absorvia, o encontrava
enodoado. Por outro lado, minhas emoções foram se definindo com mais
nitidez.
Na segunda semana eu fingi estar doente, menti sobre dores de cabeça
frequentes. Luzia continuava sem desconfiar do meu estado, preparava chá
de capim-cidreira e evitava me tratar com o rigor e as exigências de sempre.
O fato de não andar com um livro nas mãos aumentou sua crença no que eu
dizia. No primeiro domingo após minhas faltas, ela precisou avisar à escola
que eu havia adoecido, e me trouxe de volta votos de melhora. No segundo
domingo, ela parecia preocupada com minha apatia e meus olhos quase
sempre fechados. Deixou de ir à missa para me fazer companhia e disse que
iríamos ao médico da cidade no dia seguinte. “Talvez seja a vista, você não
tem febre”, disse se aproximando da cama. “Deve ter estragado os olhos de
tanto ler.”
Depois de longo tempo na fila do posto de saúde, o médico me
examinou sem muito interesse. Avaliou meus olhos, prescreveu exames.
Indicou remédio para dor de cabeça. Algumas vezes eu escondi o
comprimido debaixo da língua. De outras, engoli na esperança de que
curasse o rebuliço que sentia por dentro. Voltamos à cidade para mais
exames. Por fim, o resultado não acusou necessidade de óculos, minha
visão estava melhor do que se supunha.
A partir desse momento, Luzia começou a suspeitar da minha insistência
em ficar em casa. Na terceira ida ao mosteiro para recolher as roupas, foi
cobrada por um dos monges sobre minha ausência pedindo informações
sobre meu estado. Era provável que passassem a considerar minha
indisposição um fingimento, mera artimanha para abandonar a escola —
como muitos faziam. Luzia deve ter resistido a princípio, afinal tinha
certeza do meu interesse pelas aulas. Era sempre pontual, ávido por leitura,
me destacava nas atividades e cumpria com aplicação as tarefas que
chegavam às minhas mãos. Nos últimos oito anos não se tinha
conhecimento sobre algum desinteresse de minha parte. Eu conversava em
casa sobre os temas das aulas, mesmo quando meu pai não via serventia nas
minhas intervenções e zombava do meu tom professoral, ria dizendo que eu
ficaria maluco, mas parecendo em paz com o fato de que eu caminhava em
direção ao meu destino.
Depois daquele encontro Luzia começou a contestar minha apatia.
Chamou de preguiça e fez questão de demonstrar sua aversão aos
indolentes. “Nesta casa podemos não ter tido instrução como você, mas
somos todos trabalhadores”, disse em pé ao lado da cama, “portanto, trate
de se arrumar e voltar para a escola.” Continuei onde estava e minha agonia
aumentou. Quando não estava ruminando tudo o que tinha vivido, pensava
em como dobrar Luzia para aceitar a decisão que eu havia tomado. Mas ela
estava determinada a me fazer voltar, e suas intervenções passaram a ficar
mais frequentes.
Um dia, ela partiu para as ameaças. Com os acessos que a assolavam de
quando em quando, apareceu de manhã cedo na porta do quarto, depois da
saída de meu pai, munida com uma tira de cipó. Foi direta ao mandar que
me levantasse e vestisse a farda para ir à escola. Virei a cabeça para o outro
lado. Percebendo a minha recusa, avançou e tentou me levantar puxando
meu braço: “Se veste! Anda, não tenho mais o que dizer aos padres”. Teve
início uma discussão difícil. Lembrei que não era mais uma criança, que
Luzia era minha irmã e não poderia mandar mais em mim — “Minha mãe
já morreu”, repeti muitas vezes —, enquanto ela elevava a voz dizendo que
era mais velha e que tinha me criado. Estava farto do mau humor de Luzia,
de seus maus-tratos, exigências, da falta de afeição. Joguei sobre ela todas
as dores que carregava, as ausências e os desejos sufocados: a falta que me
fazia ter uma mãe para cuidar de mim como todas as mães cuidavam de
seus filhos na aldeia. “Pois a mãe tinha muitos filhos, tinha que trabalhar,
apoiar o pai de todo jeito. Não teria tempo de te mimar como se fosse
único”, disse ela com os olhos arregalados. Me chamou de ingrato, me
culpou pela vida que levava. “Deus deveria ter levado a mim e não minha
mãe”, gritou tomada pelo rancor. Eu queria levá-la ao limite, aproveitar
todo o peso que recaía sobre mim para dizer o que nunca tive coragem.
Naqueles anos Luzia já não repetia que minha mãe tinha morrido por
minha culpa. Talvez essa história não fizesse mais sentido diante de tudo o
que passamos. Os dias de silêncio me fizeram remoer o tempo ao seu lado,
e a mágoa, no fim, cresceu sem controle. Ela deixou o quarto e eu a segui,
tentando dar nome ao que me assolava, atribuindo meus males à vida que
ela e meu pai haviam me proporcionado. Na porta do quintal ela empurrou
uma enxada na minha direção — “Não quer estudar, vai trabalhar na roça
com o pai” — e eu dominado pela raiva a joguei no chão.
“Você ainda está sob meus cuidados”, disse Luzia, franzindo a testa.
“Enquanto estiver nesta casa, as regras são do pai, e na ausência dele são
minhas. Quer ser dono do próprio nariz? Estude e depois trabalhe, tome seu
rumo. Enquanto estiver sob este teto será como eu quero.” Aquelas palavras
enrijeceram ainda mais os meus pesares. Pus para fora os sentimentos mais
vis: a vergonha que eu sentia por Luzia, pelo que diziam dela e sobre seu
corpo, de como ele era “estranho”, “feio”, “uma aberração”. Queria vê-la
experimentar o sofrimento que me acometia, mas ela permaneceu
inabalável, não pareceu se condoer nem por um segundo. Antes que eu
terminasse me interrompeu, “Faltou a você uma boa surra”, e lançou o cipó
contra meu corpo.
Eu fui mais rápido e o segurei com minha mão. Travamos um cabo de
guerra. Ao perceber que a nossa batalha não nos tinha levado para lugar
nenhum senão o da raiva mútua, resolvi falar com franqueza porque não
voltaria à escola. Era provável que a revelação desse um novo rumo ao
nosso embate, Luzia haveria de compreender meu desânimo.
“Mentira”, gritou mais alto. “Não minta com o nome de Deus,
mentiroso! Não é Deus, é você o desviado inventando essas histórias
cabulosas!”, continuou transtornada.
Tinha sido derrotado. Luzia não acreditava em nada do que eu dizia.
Àquela altura eu percebi que não era mais o mesmo, dava meus primeiros
passos como homem e deveria seguir meu próprio caminho.
13

Deixei a aldeia em direção à capital com o dinheiro que Luzia guardava


costurado no colchão, a roupa que carregava no corpo e uma pequena
sacola amparada por meus pés durante a viagem. Quando cheguei ao
destino me dei conta de que tinha ido longe demais, que era tudo grande e
diferente demais e que não seria tão fácil me arranjar na cidade, como eu
havia imaginado. Tive medo, mas não cogitei retornar. Estava envenenado
pela raiva e por isso segui em frente. Perguntei às pessoas que encontrava,
andando de um lado a outro, como chegar ao endereço que trazia no bolso.
O destino era a morada de Joaquim. Eu não o via há um bom tempo.
Tinha encontrado o endereço anotado num caderno pequeno e sem capa, de
páginas soltas, escrito numa de suas visitas, com o garrancho do pouco que
ele deveria ter aprendido na cidade. Era um livreto que não pertencia nem a
meu pai nem a Luzia. Pertencia à casa. Consegui decifrar o que estava
escrito. Guardei a anotação dentro de um livro para o caso de seguir meu
plano de deixar a Tapera rumo à cidade. À medida que crescia, considerei
que o melhor momento para partir seria quando concluísse o período
escolar. Só assim, imaginava, encontraria um emprego. Mas aos poucos fui
percebendo que as mudanças exigiam uma boa dose de ação e esperar por
esse momento não era mais possível. Da mesma maneira, toda a reprovação
dirigida a mim por Luzia, as acusações de mentira e o mal-estar que se
estabeleceu entre nós, incluindo meu pai, foram determinantes para eu
deixar a casa.
Me informei sobre o ônibus, o percurso e o custo. Escolhi partir o mais
cedo possível, antes que me vissem na estrada e levassem a notícia a meu
pai, o que me renderia uma boa surra. Deixei a trouxa escondida num cesto
de vime um dia antes de partir, e nela estava a calça de meu pai e o dinheiro
retirado do colchão de Luzia.
Saí sem olhar para trás. Eu me movimentava com os animais, e o
orvalho frio encontrou os dedos de meus pés na trilha onde o mato crescia
sem limite. Estive alerta durante a viagem, observando tudo, e meu coração
acelerava a cada recordação de que rumava para o desconhecido. “Cair no
mundo”, como haviam feito meus irmãos, era uma combinação de
sentimentos distintos: liberdade e estranhamento, coragem e medo, sonho e
pessimismo. Embora tivesse deixado a infância havia pouco e não pudesse
ser considerado um adulto, precisava decidir sobre minha vida sozinho.
Mesmo alerta a tudo à minha volta, viajar foi como dormir em casa, na
Tapera. Despertei entre carros, ruídos, um formigueiro humano e ruas onde
cabiam muitas aldeias, como a nossa. Aquele turbilhão de novidades me
atraía na mesma medida em que provocava a inquietação, a antecipação do
medo, mas só me restava tentar conhecer e compreender as engrenagens do
lugar onde agora estava. O vaivém de gente, de carros, o comércio, os
edifícios altos. Era como se a grande aldeia fosse o destino de todas as
aldeias, de toda roça que produzia alimento, de toda madeira retirada da
mata para virar móveis e casas, de todas as pessoas que desejavam
sobreviver. O futuro do mundo era ser asfalto, substituir os animais pelos
carros, comer o que se vendia já pronto sem precisar de fogo para preparar.
A cidade era uma imensa casa de cupim feita de gente andando de um lado
a outro, e só aquietava à noite quando parecia dispor de certo sossego.
Assim guardei a imagem da minha chegada, dos primeiros anos de vida na
grande aldeia construída pela multidão que a habitava.
Para me deslocar até o endereço de meu irmão, consumi quase o mesmo
tempo da viagem da Tapera à capital. No bairro em que ele vivia era tudo
diferente de onde eu tinha desembarcado: um amontoado de casas velhas e
precárias juntas, o chão de barro e uma água malcheirosa que corria pela
beirada da rua. Procurei pelo número da casa e percebi que não seria fácil
encontrá-lo. Não havia ali ordenamento algum que servisse para me
orientar. Estava perdido. Naquele quinhão, as casas eram mais pobres que
as da Tapera, mas o jeito de viver de alguma maneira se parecia. Crianças
brincavam na rua e as mulheres conversavam nas portas. Me observavam
como se vigia um forasteiro, tentando descobrir onde o intruso iria parar.
Tive que deixar de lado minha timidez e perguntar onde morava Joaquim.
Apontaram para uma encosta com degraus esculpidos no próprio barro. Ao
pé do morro as ruas se afunilavam, se tornavam becos, caminhos onde mal
passava uma pessoa.
Cheguei no alto da encosta. Subi mais alguns degraus para alcançar a
soleira. Na frente da casa o mato crescia e qualquer descuido de quem
passava poderia se reverter num acidente, rolando barranco abaixo. Depois
de muito bater, a porta se abriu, uma pequena fresta onde mal se via quem
estava do outro lado. Uma mulher se deixou entrever, e logo duas crianças
se aproximaram com curiosidade. Perguntei se era ali que morava Joaquim.
Antes de responder, ela me perguntou o que queria, se era cobrança, se
trazia má notícia. Disse que Joaquim era meu irmão e ela se antecipou
dizendo que ele tinha irmãos, sim, mas que cada um morava num canto.
Parecia desconfiada e me falou que se qualquer um fosse visitá-lo — o que
nunca haviam feito —, avisaria antes. Repeti que eu era o irmão mais novo
e ela encurtou a conversa, dizendo que em todo caso eu deveria retornar à
noite porque no momento ele se encontrava no trabalho. Pediu licença e
fechou a porta.
Só me restava caminhar pelo bairro até anoitecer. Zanzei por ruas
estreitas, íngremes, à beira de encostas que davam em vales habitados como
os topos. Me equilibrava ao descer e subir escadas esculpidas em níveis no
próprio barranco. Era meu primeiro contato com a cidade e de pronto já me
encontrava fascinado e espantado. A sina de qualquer um que sonhasse com
a sorte de estar na grande aldeia era viver amontoado.
A fome e a sede deram sinais de estarem em seus limites. Ao fundo de
uma viela havia um armazém de secos e molhados, com ovos pendurados
num cesto de arame, pães, açúcar e biscoito mata-fome. Mediante
pagamento antecipado, um senhor mal-humorado me serviu um copo de
café preto, quase frio, e pão dormido a um preço alto. Viver na aldeia me
fez ignorar o custo da vida na cidade, e o que eu sabia era de escutar meu
pai contar. Lá se ia mais um pouco do parco dinheiro subtraído do colchão
de Luzia. Se continuasse assim, em breve estaria sem nada.
Era possível que o medo da mulher de Joaquim fizesse sentido. Era
possível que os perigos na cidade fossem outros, diferentes dos da Tapera.
Quando me senti cansado de vagar sem destino, me sentei na soleira da
porta da casa de Joaquim e me pus a esperar, enquanto admirava uma
imensa torre metálica sem saber do que se tratava.
Bem depois, quando a fome, o cansaço e a escuridão haviam me
cercado, senti alguém sacudir meu ombro. Custou algum tempo para
Joaquim me reconhecer, e sem saber como agir, perguntou o que eu fazia
ali.
14

Foram meses na casa de Joaquim, enquanto procurava trabalho e um lugar


onde pudesse viver. Ele morava com a família num casebre de apenas um
quarto, e só me restava a sala para dormir. Minha presença não agradava a
Jandira, ela só se dirigia a mim quando necessário, quase sempre para
reclamar de algo: por eu ter guardado pratos e talheres em local diferente do
habitual ou ter estendido a toalha de banho quando o céu estava nublado e
prometia chuva. Eu precisava estar de pé antes que eles acordassem, para
transitarem sem obstáculos pela sala. Observava ela preparar a marmita que
Joaquim levaria ao trabalho, enrolando-a em tecido limpo para conservar o
calor. Eu saía cedo para procurar emprego e quando voltava no meio da
tarde, cansado de perambular — as distâncias eram imensas —, precisava
esperar pela hora do retorno de Joaquim para poder fazer alguma refeição.
Mesmo assim esperava a mulher servir a ele, a si própria e aos filhos, para
então me contentar com as sobras.
Mesmo com as atribulações, e a constatação de que a vida na cidade
poderia ser pior do que na aldeia, a possibilidade de retornar à Tapera
inexistia em meus planos. À noite, Joaquim me sugeria onde procurar por
trabalho. Contava um pouco de sua história ao chegar na capital para
descarregar a produção da aldeia. Conhecendo um e outro comerciante,
aprendeu a se entranhar na desordem das ruas, a reconhecer os perigos e
descobrir com conhecidos onde precisavam de pessoas para trabalhar. Me
orientou a buscar pelos documentos pessoais que ainda não tinha, além de
observar os anúncios de vagas nos jornais. Meus primeiros passos, todos os
dias, exceto nos fins de semana, eram em direção à biblioteca, onde
encontrava os jornais para consulta. Sem dinheiro para comprá-los, era
preciso andar muito e anotar as ofertas de emprego sem entender de todo o
perfil à procura. O dinheiro restante servia para o transporte público e para
os telefonemas quando obtinha mais informações. Quando não, me restava
apenas procurar por ofertas mais completas, com endereço e hora para
apresentação.
Quatro meses depois — quando completei dezesseis anos —, após andar
léguas e léguas à procura de emprego e ouvir muitos nãos, fui trabalhar
embalando compras num supermercado. Sem experiência, nem formação
escolar completa, eram poucas as oportunidades que se encaixavam em
minhas habilidades. Nas entrevistas, mesmo exagerando sobre minha
disposição para aprender e demonstrando um temperamento submisso que
não tinha, era descartado por ser menor de idade, por ter vindo do interior e
outras coisas que a princípio não identifiquei. Eu evitava pensar no amanhã,
e talvez por isso continuava sem cogitar o regresso à aldeia. Minha
determinação continuava inabalável. Seria isso ou nada.
Uniforme grande demais e desajustado no corpo esquelético, cartão para
registrar hora de entrada e de saída, corpo apalpado por seguranças na saída
do estabelecimento para terem a certeza de que eu não havia subtraído nada
das prateleiras ou do estoque. O pavor que não sabia existir de que alguém
me tocasse. Envergonhado, aprendi a fechar os olhos, abrir braços e pernas
e esperar pela dispensa. Sobreviver era aprender a domar os medos, a
primeira lição dos meus primeiros anos de minha precoce vida adulta.
Enquanto era acossado por uma ansiedade paralisante — que talvez tivesse
a mesma origem da enurese de antes —, aprendi a identificar um fio me
aquecendo por dentro, vindo de onde imaginava não existir mais nada vivo.
Então eu fechava os olhos e atravessava o incômodo profundo em luta
desigual para me dominar. Nesses momentos não conseguia recordar nem
dos rancores nem do orgulho por trás de quase todos os meus atos. Eu
habitava a escuridão, de olhos vendados, sem a noção real do que estava à
minha volta. Transpunha mais uma batalha atravessado apenas pela
centelha que aquece os sobreviventes.
Não era sempre que conseguia ter o domínio, mas a mesma energia vital
passou a me invadir nos momentos em que minha integridade parecia sob
risco. Diante dos seguranças embrutecidos pelo trabalho, treinados para
caçar ilícitos, o medo não era de ser pego por algum desvio. O medo estava
no toque, no desespero que se apoderou de minha razão, da infinita tristeza
de recordar os anos na escola, de meus passos a caminho da sala de dom
Tomás. Afligido pelo poder do domador de espírito da aldeia, eu me sentia
esgotado ao atravessar a tormenta para, por sua vez, cruzar o tempo
seguinte e me descobrir a salvo. É certo que parte do que eu era e parte do
que poderia ter sido ficaram na sala escura preenchida pelos sons da
respiração que ouviria para sempre.
No meu primeiro ano na cidade, saía de casa ao meio-dia e retornava
próximo à meia-noite. Como a casa era pequena, aprendi a caminhar em
meio ao breu para que meus movimentos não incomodassem Jandira,
recolhida no quarto com Joaquim. Mesmo assim se tornaram comuns
discussões entre eles, quando trocavam ofensas e a discussão desembocava
sempre no tema da minha presença. Me sentia intruso, humilhado por
escutar que eu não era nem nunca seria bem-vindo. Nos dias de folga passei
a procurar por um lugar onde pudesse morar. A ideia inicial de alugar uma
casa como a de meu irmão logo foi abandonada quando percebi que o
salário não chegava ao fim do mês. Restava-me buscar por vagas em
pensões e negociar um bom valor.
Apesar das dificuldades acumuladas, me sentia livre. Tentava não pensar
em Luzia, em meu pai, nem mesmo na igreja ou em dom Tomás. Me sentia
de certa maneira renascido para um momento novo que, se não era melhor,
também não me asfixiava como o da aldeia. Estabeleci vínculos com as
pessoas que trabalhavam comigo e não passava mais os dias de folga em
casa. Andava pelo centro da cidade, por praias, admirava a paisagem se
transformando sem parar. Havia o encantamento das descobertas, o fascínio
que a promessa de liberdade é capaz de exercer sobre nós. Retomei meu
interesse pela leitura sem depender mais dos favores de dom Tomás. A
mesma biblioteca onde procurei por anúncio de emprego nos jornais, foi a
que passei a frequentar para levar livros de empréstimo. Era muito mais
diversa do que a biblioteca do mosteiro. Mesmo com todas as adversidades,
havia a esperança de recomeço rondando minhas ações, as novas
aprendizagens e o ambiente da cidade.
Talvez por isso não tenha sido tão difícil deixar a casa de Joaquim,
tampouco ele se opôs. Apenas perguntou para onde eu iria, aliviado por
diminuir as tensões com a mulher motivadas por minha presença. Eu
também sentia um pouco de paz por saber que as humilhações tinham os
dias contados. Não foram poucas as vezes em que eu, exausto, passava da
hora de desocupar a sala. Jandira dava seu próprio jeito para que eu saísse
do caminho, esbarrando em mim de maneira intencional, com pedido de
desculpa em seguida, sem esforço algum para que soasse verdadeiro.
Ao ver minha sacola arrumada para seguir para a pensão, ela passou a
procurar pelo lençol que recobria o sofá onde eu dormia. Fingi não perceber
a pequenez de seu gesto. Eu havia escutado mais cedo ela discutir com
Joaquim sobre a gratidão que inexistia. Sabia que aquela conversa se dirigia
a mim. Era provável que Jandira esperasse por um agradecimento meu, que,
por minha vez, e por puro orgulho, decidi não expressar. Então ela foi mais
direta e perguntou se eu não tinha pegado o lençol “por engano” e guardado
entre meus objetos. Sabia que ela queria me ferir, afinal era um dia
importante para mim. Eu poderia vencer aquele embate se me mostrasse
justo e dissesse que não havia nada comigo. Retirei minhas poucas coisas
da sacola com fúria, bradando que se Joaquim estivesse ali ela não faria
aquilo. Era o pretexto de que ela precisava para iniciar um sermão repleto
de rancor. Enquanto falava, pus tudo na sacola para sair de imediato.
Quando já me encontrava do lado de fora da casa e deixava um adeus
desajeitado às crianças, ouvi que ela proferiu rumores sobre minhas origens.
Começava da mesma maneira que a sentença de Luzia — Você é tão ruim…
— e terminava diversa — … que sua mãe te rejeitou. “Mentira”, gritei,
“história tão falsa quanto a do lençol roubado.”
Foi a minha primeira reação. Mas depois, mesmo custando a acreditar,
passei a remoer aquelas palavras — seriam confissões ou um segredo antigo
a ser desvendado?
15

Quanto mais a distância do tempo entre a aldeia e a cidade se alargava, mais


minhas recordações pareciam ser apenas fruto da imaginação de uma
cabeça inquieta. Não revisitar o passado foi a maneira que encontrei de
proteger minha saúde, sem nenhuma autopiedade. Segui sem me deixar
envolver pelo incômodo de ter nascido na aldeia e vivido sem a mãe que me
visitava em meus sonhos, como se fosse possível preencher o vazio.
Encontrei afeto na atenção recebida de dom Tomás, fui seduzido por seu
interesse nas minhas vontades e pelo sentimento estranho que me dedicava.
Anos depois compreendi que esse evento retirou mais de mim do que
agregou.
Eu retomei os estudos, embora tenha avançado muito menos do que
desejava. Estudei o suficiente para não trabalhar como estivador, feirante,
ou empurrando carrinhos de compras em supermercado. Todos os trabalhos
que realizei me maltratavam, mas continuava a conservar certo orgulho que
sempre me acompanhou. Deixava os empregos quando me cansava da
exploração da vez: auxiliar de reprografia, atendente de farmácia e de
armarinho, voltei outra vez ao supermercado para trabalhar como caixa,
cozinheiro e o que mais se possa imaginar. Na aldeia, só se poderia sonhar
em ser lavrador, pescador, professor ou padre. Embora este último fosse
uma possibilidade, ninguém que eu conhecia viria a vestir o hábito dos
monges, muito menos trocaria seu nome por outro monástico; não por falta
de interesse, mas porque o corpo da Igreja era restrito a uma casta muito
diferente de nós.
Os anos que passam são capazes de nos dar conhecimento sobre o
mundo. Não esgotamos os mistérios, mas desvendamos uma parte
expressiva deles. Se no campo a vida era árdua e de muitas privações, na
cidade poderia ser terrível de igual maneira, considerando que qualquer
movimento só era possível com dinheiro: comer, ter um teto e uma cama
para repousar, até mesmo tomar um simples banho. Nem todos eram
capazes de cumprir o que se esperava deles. Ainda era preciso suportar a
presença ostensiva dos que tinham poder, prontos para degradar os que não
tinham. As dificuldades se amontoavam, mas tentei me convencer de que
pior seria uma vida de escassez como a de minha família. No futuro, seria
provável que eu percebesse que a distância entre uma miséria e outra era
menor do que supunha. A indigência poderia ser pior na cidade; nem todos
aqueles atraídos por seu brilho conseguiam sobreviver.
Os empregos me ofertavam sempre mais do mesmo: as horas tomadas
por tarefas intermináveis, a remuneração aquém do necessário para chegar
sem preocupações ao fim do mês. Meus sentimentos vagavam longe, era
quase impossível remoê-los. Em certa medida isso era um ganho, evitava
que eu me perdesse na solidão e no estranhamento a me perseguirem. Foi
assim que vivi um quase casamento com Ana e a mudança da última das
muitas pensões deterioradas para uma residência popular. Levei uma vida
ordinária e sem grandes sobressaltos. Ao menor sinal de agitação,
reencontrava o caminho a ser seguido e quase sempre a contenção própria
funcionou.
A primeira oportunidade de autocontrole foi ainda sob as asas de Luzia.
Cansado de seus discursos vexatórios quando eu urinava na cama, passei a
beber água até o meio da tarde. A boca secava, e eu me esvaziava de tudo o
que podia até a hora de dormir. Se tornou mais fácil atravessar a noite
quando adquiri domínio sobre minhas necessidades. Depois foram a sombra
e a dúvida que me acometeram quando tentei compreender o que acontecia
na sala de dom Tomás. Me tornei arredio, solitário, mais isolado do que era.
Enquanto estava na Tapera, havia Luzia para me desafiar com sua rudeza e
me chamar para a vida. Na cidade, só me restava soterrar qualquer intenção
de repetir a melancolia herdada dos antepassados. Tornei o passado um
livro a ser aberto quando eu queria mas que permanecia a maior parte do
tempo fechado. “O que não tem remédio, remediado está”, Luzia repetia
para se consolar da frustração do que não poderia mudar. Então, não vivi
atormentado por não saber a verdade sobre meus anos de infância, nem pelo
desejo de vingança caso minha dúvida se confirmasse. Não sofri mais por
não conseguir salvar Luzia de sua corcunda, nem por não poder levar um
pouco de dignidade à sua vida.
Foi assim na maior parte do tempo.
Até o dia em que servi a um senhor, no restaurante onde trabalhava, um
prato de arroz, feijão, legumes frescos e um pedaço de carne que sangrava
como se estivesse viva. Seria um gesto corriqueiro como o de todos os dias,
não fosse o fato de aquele rosto me ser familiar. Mas por mais que tentasse
recordar de onde conhecia aquela fisionomia, mais a imagem fugia em
direção ao abismo. As mãos eram outras mãos, mãos velhas, brancas e
manchadas; os movimentos eram trêmulos. Uma fragilidade capaz de
suscitar até compaixão. Aquela imagem me perturbou por muitos dias até
encontrá-lo outra vez.
Na segunda vez, não fosse o crucifixo de prata que pendia do pescoço
envelhecido, consideraria que minha perturbação não tinha fundamento.
Mas a posição em que ele se sentou à janela, junto a dois homens jovens,
pôs o objeto em evidência. O sol refletia com intensidade, e eu recordei de
Luzia me contar assustada que, nos meus delírios, eu dizia que a cruz me
cegava. Foi pelo objeto que ofuscava meus olhos que pude voltar aos anos
idos.
Se os traços do rosto de dom Tomás permaneciam enevoados em minha
memória, a face daquele senhor velho caminhando com a ajuda de uma
bengala e precisando do apoio dos seus cuidadores para deslocar uma
cadeira se definiu desde o primeiro dia e foi talvez o elo para compreender
o que de fato teria me acontecido. As mãos fracas não eram sequer capazes
de cortar a carne servida no prato, o que era feito por um dos jovens
acompanhantes. Eles se portavam como religiosos. Todos usavam crucifixo,
embora o único que brilhasse como uma joia fosse o do velho. Muito
próximo de nós havia um mosteiro, uma construção imponente, que
ocupava o espaço tumultuado da cidade sem grande interferência, diferente
de toda a vida da Tapera girando em torno da igreja, das missas e dos
sermões do abade.
Da terceira vez, eu que me adiantava aos meus colegas para servir a
carne retirada do braseiro, parei diante do velho e me coloquei em sua linha
de visão ansiando que me reconhecesse. De início ele continuou sem atinar.
Ou talvez fosse uma incapacidade fingida, oportunista, e eu, que durante
anos não quis pensar no passado, me descobri determinado a persistir.
Cortava a carne no prato, o sangue escorria quente e se empoçava
contrastando com as bordas brancas. Eu olhava para ele com uma expressão
de intimidade e em troca era ignorado. Nunca precisou se importar com
alguém, apenas com seu prazer.
Mas eu me importava em saber.
Da quarta vez, eu cortava a carne imaginando o que eu iria devorar em
breve. Guardava a mesma disposição de servir em meu rosto, mas o que
havia por trás dos bons modos era meu instinto antigo para cativar o
inimigo. Quando o único jovem que o acompanhava dessa vez se dirigiu ao
caixa para pagar a conta, eu me aproximei da mesa para recolher os restos e
disse:
“Bom te ver, dom Tomás.”
Ele esboçou um sorriso ingênuo, me chamou de “meu filho”, mas
parecia mesmo não saber quem eu era. Porém se atendeu ao meu chamado,
não poderia ser outra pessoa. Olhou com interesse meu rosto, buscando nos
trapos da memória o lugar de onde eu o conhecia. Eu deveria esperar a
próxima vez, a derradeira, antes de tragar seu espírito no meu ritual de
vingança.
Antes que eu prosseguisse, me chamaram na sala do telefone. Eu pedi
licença, fiz uma breve reverência e ele acenou desnorteado, as mãos
continuavam trêmulas. No semblante transparecia seu pequeno tormento de
não saber quem eu era e o que o aguardava.
Não considerei que o telefonema fosse para mim, era mais provável que
fosse algum fornecedor pedindo mais prazo para entrega de mercadoria. Eu
tinha um telefone particular, me encontrariam com facilidade através dele.
Do outro lado da linha, falava alguém que custei a reconhecer e que por fim
descobri ser a filha da madrinha, ainda vivendo na Tapera.
Ela transmitia um chamado de minha casa: que eu retornasse à aldeia o
quanto antes, havia acontecido um grave acidente. Devolvi o telefone ao
gancho, desnorteado, e voltei à sala. A mesa já estava vazia.
Luzia do Paraguaçu
1

E do céu, do céu para onde elevávamos nossas rezas, aflições e graças, do


céu de onde vinha a água que regava o chão e enchia o rio, do céu caía uma
fina palha queimada, chuva seca a trazer mau presságio. Aconteceu num
minuto, enquanto abria as peças de roupa torcidas com as mãos enrugadas
de lavar o mundo, enquanto estendia uma a uma no varal como desde
sempre. Parei por um tempo e abri as mesmas mãos molhadas para deixar
as cinzas caírem sobre elas. Senti o vento percorrendo o vale, o rio,
inquieto, o vento carregando o que dava. Então comecei a retirar as peças
do varal, não podia deixar as roupas se sujarem com os restos do canavial.
Deve ser do canavial. Que insistência de se plantar cana, dá tanto trabalho.
Só pode haver ganância por trás dessa plantação. Os antigos plantaram
muita cana, era o que o povo dizia. Por um tempo, a mesma gente não quis
saber mais de cultivo grande, mas agora os forasteiros que ocuparam as
terras estão plantando cana, cobiçando mais terra para estender os plantios.
E um rumor, um rumor de gente, palha queimada, rumor e vento,
correram a Tapera. Arrodeei a casa com o cesto de roupa nas mãos para
atinar de onde vinha o rebuliço. Dois homens carregavam um velho e os
abutres da Tapera sobrevoavam, acompanhando para saber de quem se
tratava. Pés descalços, bainhas e facões, as mulheres ergueram a cabeça de
suas obrigações, e as marisqueiras, por um instante, deixaram latas e
colheres para saber quem vinha nos braços dos lavradores.
Meu pai, meu velho pai, valha-me Deus, e meu corpo então se retesou
frio. Agonizando, sem as vestes, carregado nos braços da mesma gente que
me desprezava. Deixei o cesto que carregava, e as roupas lavadas, que zelei
e retirei do varal para não se sujarem, foram ao chão e se misturaram à
terra. Deixei que os homens entrassem em casa e o pusessem na cama, de
bruços, sujo, sem as roupas, que tinham sido rasgadas na tentativa de
acudirem meu pai do fogo.
Era preciso chamar a ambulância, alguém lembrou. Meu pai, de olhos
abertos, pedia perdão por tudo que não pôde ser. O rosto rosado de um lado
era a chaga, a pele escura se desprendendo da carne. Aquele rosto rosa era
como o rosto das crianças quando nasciam e depois iam escurecendo à
medida que elas cresciam debaixo do sol. Meu pai, como um menino
traquino, a respiração exalava o cheiro doce da cana, da cachaça, e o corpo
agora estava de bruços porque tinha se metido em confusão.
Pela manhã, havia garrafa e copo sujo sobre a mesa. Meu pai estava
entregue à bebida. Deus, Nossa Senhora, Bom Jesus, indiferentes, tinham
ouvido minhas preces. Depois as ervas, os feitiços que se contavam à boca
miúda, por muito tempo, para que os padres não soubessem que a Tapera
ainda mexia com alguma magia. Agora estava ali, o velho à espera de
ajuda, contendo o choro arrependido por tudo que não conseguiu ser.
Os homens contavam o que se sucedeu às paredes, se recusavam a olhar
para mim, o encontraram caído no canavial ardendo. “Mas o canavial de
quem, se ele não cultiva cana?”, quis saber. Não houve resposta. Eles
sabiam, mas se protegiam. Meu pai se recusava a pagar o foro desde
sempre, ainda mais agora que o mosteiro e a igreja estavam fechados. “Não
pago”, dizia. Eu também não, completava em pensamento. Eu não lavava
mais as roupas dos padres, eles tinham partido da Tapera depois do
incêndio. Nem que eles ainda estivessem vivendo sob aquele teto, por trás
daquelas paredes grossas, eu lavaria as roupas imundas da igreja. Já não
havia dinheiro no colchão de palha, que serviu ao pagamento do foro por
anos e que o Menino levou quando foi embora e nunca mais voltou.
Estávamos marcados pelos mesmos cobradores. Diziam que iríamos
ficar sem a tarefa de terra. Nossa casa não seria mais da família se fôssemos
embora ou depois de nossa morte. Era gente como a gente nascida e criada
na Tapera, mas, sem percebermos, ganharam importância aos olhos de
todos. Gente sem eira nem beira mas que conseguiu vida melhor que a da
maioria.
Meu pai sentiu o peso da idade no corpo. O peso da vida é coisa que se
sente sempre, mas a mente estava boa e ele ficou danado com os recados
vindos de toda parte de que estávamos marcados para ir embora. “Quero ver
quem vai me tirar da Tapera”, repetia alto para provocar. E os mesmos
camaradas de outros tempos viraram as costas, como se a promessa de
injustiça não lhes dissesse respeito. Olhei para os que me ignoravam e
perguntei: “Quem fez isso com meu pai?”. “Ninguém fez nada com seu
pai”, disseram, “ele bebeu demais e andou por onde não devia. Estava caído
na roça de cana que queimava.”
“Ninguém fez nada, Luzia”, ele confirmava, “eu caí porque sou
teimoso.”
O povo se aglomerou diante da casa e os mais preocupados diziam que
deveríamos correr ao hospital. As queimaduras pareciam graves. Nas
costas, tinham o tamanho de duas mãos espalmadas. A da perna direita era
comprida feito um rastro de cobra. Rita de Mira se ofereceu para chamar a
ambulância. Meu pai pedia: “Não deixe eles me levarem, Luzia, se eu for,
de lá não saio vivo”. Pela primeira vez na vida vi seus olhos cheios de um
brilho que não existia. “Talvez o senhor nem precise ficar no hospital”,
disse, “é só para limpar a ferida e fazer o curativo.”
“Eu não preciso disso, Luzia, não preciso de nada. Se tiver de morrer,
que seja em minha casa. Quero mesmo é ver meus filhos. Você chama sua
irmã Isaura?”, me perguntou, “talvez ela consiga chegar hoje. E o
Joaquim.” Meu pai respirou e o choro parecia aliviar a ferida do rosto.
“Quero ver Moisés”, disse depois de nomear Raimundo, Humberto e
Mariinha. “Quero ver o Menino.” Dado o tempo de sua partida, o tempo
sem que procurasse por nós, dada a distância de uma palavra e outra dita
pela boca arrependida, dado o espaço entre um suspiro e outro a deixar seu
corpo, do nome de Joaquim ao de Moisés, havia um sinal importante no
pedido de meu pai. Um sinal de que seu conhecimento sobre a nossa
história estava se transformando, aos poucos, ao reconhecer o lugar de cada
um em sua vida.
2

Quanto tempo cada um levará para chegar?, me perguntei, sem esperança


de conhecer a resposta, enquanto coava o resto de café e o servia num copo
de vidro para Rita. Ela me disse que a primeira a receber a notícia foi
Zazau, que prometeu chegar, no mais tardar, no dia seguinte. Joaquim
também foi avisado, viria o quanto antes. Rita, a filha da finada Mira,
estava mais à vontade que o habitual. Por toda a vida se mostrou
desconfiada, jamais quis se aproximar de nossa casa. No fundo, não queria
ficar marcada pela Tapera como alguém próxima a mim. Mas, naquelas
horas, ela venceu a distância imposta pelo passado e se mostrou de
serventia, pesou a consideração que nossas finadas mães tinham entre si. Na
Tapera todos tinham a ver com a vida do outro: por apadrinhamentos, por
primos em comum, pelo convívio que nem a maledicência das línguas
conseguia desfazer por completo.
Rita contou que para Mariinha deixou um recado. De início ninguém
sabia quem era a tal Mariinha, e depois ela pensou que sim, talvez a
conhecessem por outro nome. “Maria”, disse no telefone, “é Maria de
fulano.” “Dona Maria qualquer coisa?”, perguntaram. “Deve ser”, Rita
disse. “Era o telefone público instalado na fazenda onde morava ou de
algum vizinho melhor de vida?”, perguntei. Havia anos eu não botava os
olhos em minha irmã. Há tempos não via o Menino. Mariinha deixou a casa
dois anos antes de minha mãe fechar os olhos. Desde então telefonávamos
todos os dezembros. Era quando perguntava a mim ou Zazau, na pressa do
telefone público, que engolia o dinheiro com mais fome que os famintos,
pelos conhecidos da Tapera. Informávamos sobre os mortos e os nascidos
ano a ano. Mas nos últimos telefonemas a memória dava sinais de confusão,
ela não se lembrava de todos. Mariinha não retornou desde que se foi, e
viveu mudando de um lugar para outro com o marido, morando de fazenda
em fazenda em troca de trabalho. Quando soube da morte de nossa mãe,
meses depois, desabou desorientada. “Não deveria ter me juntado a
homem”, disse a Zazau, “não deveria ter deixado vocês sozinhas. Nunca
mais vou ver minha mãe.” Prometeu vir assim que tivesse algum dinheiro,
queria visitar o túmulo, agradar, colocar ali um punhado de mato e flores.
Choramingava sem querela a própria vida e dizia que, assim que pudesse,
voltaria a viver na Tapera porque não gostava de nenhum lugar por onde
tinha passado.
Os anos correram depressa e Mariinha nunca mais pôs os pés na Tapera,
embora nunca tivesse se acostumado à vida errante, bastava recordar as
longas conversas travadas depois dos seus telefonemas. Ela contava as
dificuldades a Zazau, porque se inverteu a camaradagem da infância.
Afinal, nós, que éramos próximas, nos afastamos. Minha irmã Zazau
assumiu o cuidado com nossa mãe durante o tempo da melancolia e talvez
por isso se tornou mais próxima de Mariinha e nos manteve informados de
nossa gente que cedo saiu pelo mundo para ganhar a vida.
Sabíamos sobre Mariinha, Joaquim, um pouco sobre Raimundo e o
Menino e quase nada sobre Humberto. O Menino carregava seus
ressentimentos, eu não o condenava. Era minha obrigação cuidar dele
depois da morte de nossa mãe, depois do casório de Zazau, e falhei no meu
dever de protegê-lo. O Menino seria avisado do desejo de meu pai, Joaquim
prometeu, dizendo que tentaria de toda forma trazer ele, o menino feito
homem, para cumprir a promessa. De todos os que poderiam adentrar a
porta da velha casa da Tapera, era ele o que mais me causava inquietação e
contentamento. O Menino a quem poucas vezes chamei pelo nome
enquanto esteve nesta casa; o que esperava de mim mais do que eu poderia
dar. Muitas vezes ele me devolveu as mágoas que lancei sobre a vida da
pior maneira, com malcriação e traquinagem. Enquanto esteve aqui,
vivemos uma batalha nunca deflagrada entre uma mulher amargurada,
sobrevivente como quase todas as outras, e um menino esperto e agitado, de
olhos inquietos e implorando para ser amado.
Trinta anos se passaram desde que ele nasceu no rio, do ventre de uma
mãe de juízo perturbado. Tantos anos decorridos e era quase um estranho
pelo tempo que tinha nos deixado sem jamais retornar. O Menino não
voltaria, considerei, por que faria isso se sequer nos dava notícias? Capaz
de já ter se casado e tido filhos. Não voltaria para recordar a mulher que o
criou, carregada de má vontade para com ele e o mundo. Não retornaria
para atender um pedido de nosso velho pai. Eu o assombrava com minhas
dúvidas e a minha recusa em acreditar no que contava. Se pudesse voltaria
àquele momento e o deixaria falar mais uma vez, mesmo exigindo como
compensação o silêncio eterno sobre o que me falava. Mas além de não
acreditar, o acusei de pecado, de crime, o chamei de degenerado e o
ameacei com o fogo do inferno pelo que dizia.
Agora enfrentava meus desacertos com a vida entre um recado e outro
trazidos por Rita. Esperava os irmãos chegarem para seguirmos ao hospital
onde meu pai se encontrava. A idade avançada me dizia que, mesmo que
ele se recuperasse das queimaduras, carregaria sequelas para sempre. Foi o
que percebi quando o observei amparado pelo enfermeiro e pelo motorista
da ambulância, uma sucata, enquanto o acomodavam para o levar à Santa
Casa. Os anos passaram sem pedir licença e arrombaram as portas de nossas
vidas. Não parecia fazer tanto tempo que vi meu pai sair de casa para seguir
uma mulher da vida, morar na capital e viver vagante enquanto minha mãe
afundava numa apatia sem volta. Como se tudo tivesse acontecido ontem,
tão viva a memória despontava em meio à confusão. Agora estava velho e
dependente, se agarrando aos fios de vida, como todos parecem querer se
agarrar quando nada mais lhes resta. Ele clamava pela presença dos filhos e
não sabíamos se conseguiria rever todos. O tempo era uma folha seca
atravessando um descampado.
E no dia seguinte, enquanto arrumava a pequena sacola para me dirigir à
Santa Casa, ouvi palmas soarem no terreiro, como os sinos da igreja,
avisando que um dos nossos havia retornado.
3

Antes de Zazau, antes de Joaquim, antes de qualquer dos irmãos, foi o


Menino que chegou. Foi assim que o chamei até o dia de sua partida. Não
conseguia imaginar um novo nome por ser ele a mesma criança que se
entranhou em minha vida como um irmão temporão. O Menino era agora
um homem-feito, de mãos calejadas de uma maneira diferente e rosto
marcado da gente vivida. À minha frente, à porta, carregava uma mochila.
Calçava sapatos dignos, vestia uma camisa branca de manga comprida —
encardida, eu notava, e pensava na minha barrela a deixando alva na
primeira oportunidade. Como cresceu, como ficou mais cheio, como
escureceu e como se parece conosco. Com um pouco de cada um de nós; o
cabelo liso, preto — era o de Mariinha; os olhos pequenos e rasgados, ainda
mais na claridade do dia, feito os de alguma avó índia que meu pai dizia ter;
a boca grande feito a nossa, a boca da gente cabocla e negra da Tapera.
Zazau o embalou na rede quando pequeno e um dia, um dia quando a
esperança pairou sobre esta casa, o menino no colo de minha irmã parecia
ser a criança que minha mãe desejou para nos redimir do desprezo do
mundo por nós. Mas se minha mãe o visse agora descobriria estar
enganada. Menino cresceu e se transformou, não tinha a pele mais clara do
que qualquer um de nós. Mas era ainda o mesmo menino nascido das águas
do Paraguaçu.
Como eu poderia olhar para ele e o receber depois de tantos anos? A
soleira da porta separava o mundo da Tapera do mundo da casa. Não pude
deixar de recordar o dia em que o fogo consumiu as vigas que escoravam as
velhas telhas, e de que a minha primeira reação foi retirar o menino do meio
da fumaça, acreditando que, se ele pudesse e entendesse, teria feito o
mesmo por mim. Mas naquele espaço pequeno da sala da casa, com a
Tapera e a luz por trás de seu corpo, perguntei ao meu peito o que duas
pessoas que nunca se abraçaram, que quase nunca se tocaram, poderiam
dizer uma à outra quando se reencontrassem. Moisés bateu os pés na soleira
da porta para retirar o excesso de barro do calçado e olhou os meus pés
descalços como se estivesse vendo uma coisa de outro mundo. “Luzia”, ele
chamou por meu nome sem me olhar. Quis saber se o pai estava no hospital.
“Luzia”, ele me disse, e aquele nome não era mais um nome; era a palavra
que carregava um sopro de vida, mesmo que as nossas vidas tivessem
trilhado caminhos diferentes.
Eu queria recuperar o tempo ido e tudo que existe, mas percebi que as
mágoas restavam inteiras sem se dissolverem. Para saber se ele estava bem,
perguntei se queria um copo de água. Para saber como tinha passado todos
esses anos longe da Tapera — quinze, será que eu contei certo? —, eu disse
poucas coisas, insistindo em que se sentasse na cadeira velha de pé
quebrado. “Não se preocupe, não cai, está bem amarrada”, o encorajei. Não
lamentamos o tempo passado nem quisemos falar sobre o que nos
aconteceu durante aqueles anos. Para saber se ele havia sentido falta de
mim, do pai e da Tapera eu disse: “Já, já vou à Santa Casa para saber como
o pai está, mas você não precisa ir, pode descansar no quarto” — o único
mais arrumado — “e amanhã voltaremos todos juntos”.
Mas Menino não olhava direto nos meus olhos, não ainda. Olhava a
casa, o teto, as paredes manchadas pela umidade da chuva e desbotadas dos
anos. Talvez procurasse alguma recordação. Talvez aquele reencontro lhe
provocasse algum estranhamento que eu não poderia saber de todo. Menino
se levantou e se pôs na janela, e no seu horizonte havia algumas árvores, a
gente abelhuda da Tapera e o rio correndo para o lugar de sempre.
Se percebia pelas vestes e preocupação que carregava no semblante a
boa vida que não tinha. Pelo que sabíamos das poucas notícias de Joaquim,
sua vida deveria ser como a batalha de todos nós desde sempre.
Relâmpagos e luzes se colocavam entre nós sem que olhasse por muito
tempo para seu rosto. Eu o via e ansiava por ver mais enquanto me abaixava
para acomodar a roupa na sacola, e depois retirar um copo de água da
moringa. Andava para lá e para cá, perdida, como se procurasse o que não
era possível encontrar. Até que meus olhos se voltaram para seu rosto sem
nenhum obstáculo e ele estava de boca aberta, enfeitiçado por minhas
costas. A saliência, a ferida que o tocava de alguma maneira, que me fazia
digna do seu afeto e por causa do qual, quando menino, ele rezava sem
saber que eu o via. Minha corcunda nos uniu e é possível que despertasse
curiosidade sobre minha vida, revelando algo que minha própria boca e
meu coração não me permitiam fazer. Há muitos anos ele me perguntava:
“Dói, Luzia?”. E quando a amargura e a raiva me deixavam responder eu
dizia: “Não, não dói nada, há palavras que doem mais, há desprezo que dói
mais, há malcriação que dói mais, existem muitas coisas que doem mais”.
E de repente o tempo havia passado e Zazau entrou na casa, carregada
de mala e cuia, e nem bom-dia conseguiu dar. Perguntou onde o pai estava e
eu repeti: “Na Santa Casa”, duas vezes. Ficamos assim aprisionados em
nossas próprias cercas, como animais em baias sem passar de um lado a
outro. Não houve abraço nem mesmo afago de conforto entre irmãs. Era
tudo uma rudeza de gestos porque o mundo tinha nos tirado em algum
tempo o desembaraço de manifestar o que éramos capazes de sentir. Não
conseguíamos mais demonstrar afeição nos encontros, e nisso o Menino
parecia igual, sem tirar nem pôr.
Zazau não reconheceu o Menino, não assim, esbaforida, como havia
acabado de entrar. Foi quando se deteve mais atenta a seu rosto e as
expressões de aflição que tinha se desarmaram um pouco que ela
perguntou: “É você mesmo, Moisés?”. Eu conhecia Zazau como a palma de
minha mão e daria uma moeda se naquele instante de revelação não
tivessem se passado em sua cabeça os dissabores do nascimento e as vezes
que precisou preparar o mingau e trocar cueiro para proteger a criança de
meu descontrole. Até que por fim seguiu a própria vida.
Por um tempo, eu achei que ela pediria a meu pai que a deixasse cuidar
do menino, e a quase certeza de que o levaria consigo me trouxe alívio. Mas
quando Zazau disse que começaria a vida com seu companheiro longe da
Tapera, contou também que eles não tinham um lugar certo para viver e não
poderia tirar a criança do convívio de meu pai. Foi assim que recebi a
notícia, um castigo, e por isso me mantive amargurada, chamando o dever
da criação de penitência.
“Está um homem.” E só. Zazau não conseguiu dizer mais nada a respeito
do reencontro. Talvez tivesse mágoa pela forma como o Menino deixou a
Tapera. Pelo dinheiro que havia levado, e por nunca mais ter nos dado
notícia. O pouco que sabíamos era por Joaquim, mas mesmo com ele havia
uma distância. Moisés tinha passado um breve tempo com a família de
nosso irmão, mas havia deixado a casa depois de fazer desfeitas à sua
mulher.
Contidos, com tantas contas para ajustar, com tanto por dizer, se é que
algum dia seria possível perdoarmos em silêncio uns aos outros as mágoas
que nos provocamos. Hora de reunir as linhas das vidas desatadas:
perguntei que horas eram e Moisés tirou um telefone do bolso para olhar.
“Meia hora”, avisei. “Meia hora para a van passar na estrada e nos levar
para a Santa Casa.” Precisávamos nos apressar.
“E Joaquim?”, Zazau perguntou. Não sabíamos a que hora chegaria,
deixaríamos recado com Rita, certos de que se não nos encontrasse,
procuraria por ela. Tirei uma fita da bolsa e amarrei o cabelo. “Quase não
lembrava do seu cabelo solto”, Zazau me disse. Eu não pude olhar por pura
vergonha e por perceber que Menino me mirava. O cabelo era um manto
grisalho e, solto, era um véu sobre minha cabeça. Os anos haviam passado e
minha mocidade foi levada pela correnteza dos dias. Contei a mim mesma,
durante o caminho até chegar à Santa Casa, as coisas que me aconteceram.
E por vezes eu encontrava os olhos do Menino sobre mim, me guiando pelo
caminho por onde a vida havia andado. Me levando de volta ao passado.
Durante trinta anos usei trança feito uma beata para que a Tapera me
deixasse em paz.
4

Não me perguntem o que se passou na Tapera nos últimos anos. Vou ter que
dizer: a Luzia medrosa, a Luzia obediente à aldeia, essa Luzia morreu. A
lavadeira da igreja não parou de lavar as roupas dos padres porque a igreja
queimou e todos levantaram revoada feito abutres apavorados. Parou
porque despertei, descobri verdades e a dor do mundo. Então o muro do
medo caiu e não houve quem o pudesse erguer outra vez.
A Tapera se levantou contra mim de novo. Da primeira vez eu era uma
menina assustada, amedrontada pelos mistérios do Céu, pela presença
assustadora de Deus, e por meus pensamentos imaturos. Mais tarde eu já
era Luzia, a lavadeira do Paraguaçu, e não seria como antes. As histórias
que contavam sobre minha vida, entre a menina e a velha que me tornei,
eram falatório de gente mexeriqueira. Anos e anos depois, a mesma calúnia
retornou. Queriam me atingir, ferir como o fizeram outras vezes, mas antes
me acusaram de ter espírito ruim, de ter parte com o Mal. Contavam
histórias em que os móveis velhos de nossa casa se mexiam sozinhos, assim
como as roupas estendidas no varal, a capoeira crescida dos caminhos da
aldeia, queimavam se por lá eu passasse. Era menina e muito cedo aprendi a
temer o povo da Tapera. Ensinada por eles, aprendi a ter medo de mim
mesma. Diziam que eu guardava o Mal. Só Cristo, filho de Deus, poderia
me curar dos espíritos daninhos. Minha mãe adoeceu apavorada e implorou
aos padres para que eu fizesse a primeira comunhão e fosse crismada às
pressas. Não temia só por mim, temia também pelo destino da família.
Dessa vez não foi por causa do mato incendiado. Tampouco pelo
canavial ardente com o qual não pareciam se importar. Também não foi por
causa dos boatos de objetos saindo de seus devidos lugares. Mas no fundo
era o mesmo sinal de agouro que me destinaram há tempo. Um incêndio
consumiu a igreja no mesmo dia em que eu tinha levado uma trouxa de
roupa limpa e passada aos padres. O bastante para me acusarem outra vez
de feitiçaria.
Não houve água do Paraguaçu para apagar o fogaréu que se levantou da
igreja e do mosteiro. Para meu azar, mas isso ninguém parecia saber, foi
justo no dia em que avisei ao dom Tomás que não lavaria mais a roupa do
mosteiro. Ele quis saber o porquê e eu não consegui disfarçar meu grave
descontentamento. Meu rosto deveria estar transtornado, embora eu
continuasse a olhar para os meus pés calçados com as sandálias de sempre.
O cansaço era grande, mas ninguém deixaria de trabalhar por sentir na
carne o peso das longas e extenuantes jornadas. Era o pretexto de que
precisavam para o povo da aldeia me chamar, além de todos os nomes
ordinários, de preguiçosa, vadia, porca. Mas a minha decisão era mais certa
do que meu cansaço. Era o esgotamento da minha mente, da minha vida, do
meu peito e das coisas que lá estavam. Noutros tempos continuaria a lavar
roupa pela mixaria que eles pagavam. Mas eu não era a mesma Luzia
entrando na igreja num dia de chuva, em busca do trabalho e do abrigo que
a casa de Deus poderia me dar. Agora eu era a velha Luzia, forjada nos
embates da vida e que não aceitava mais os insultos e as pedras que o
povaréu cheio de ódio me destinava.
Se tivesse aceitado o tratamento oferecido pela Tapera, é provável que
não estivesse mais aqui para repetir essa história. Quando começaram a me
perseguir, permaneci calada, sempre tinha sido assim. Nas primeiras vezes,
quando nova, inocente de tudo, chorava. Depois fiquei exausta de chorar, e
por não reagir parecia que eu havia aceitado o destino escrito pelas linhas
tortas de Deus. Quando o teto da nossa casa queimou, atiraram pedras em
nós, até que uma atingiu o menino. Senti ódio, mas a minha fraqueza
prevaleceu, e tampouco sabia como reagir. Depois veio o incêndio da igreja
e voltaram a atirar pedras em mim. Me chamaram de bruxa, feiticeira,
macumbeira. “Pois chamem”, gritei, “e tenham medo do feitiço.”
Em meio ao alvoroço que minha vida se tornou depois do fogo na igreja,
meu pai foi ficando cada dia mais alheio à hostilidade do povo. Seguia uma
rotina de fingimento e era possível que não tivesse a consciência do seu
fingir. Se dirigia à tarefa de terra carregando a enxada com esforço para
passar o dia limpando tudo sem plantar nada. O que costumava fazer numa
manhã agora levava mais de uma semana. Os cultivos não eram sortidos, de
nada serviam. Plantava mais aipim, mas o certo era que morressem antes da
colheita por falta de cuidado. Quase nada vingava e cada vez mais era
preciso comprar a comida que levava à mesa. Meu pai passava o dia
retirando as ervas daninhas crescidas a esmo. Tinha uma aparência fraca,
uma vida desregrada. Emagreceu, se alimentava mal, e aos poucos ficou
com jeito de doente. Mas o juízo respondia bem — até demais — e não
costumava acatar conselho algum. Para ele, eu continuava a ser a filha
incapaz, a solteirona, e que só havia vivido para cuidar das roupas da igreja.
As cabeças de Zazau e do Menino balançavam à minha frente com os
solavancos da van. O dia úmido me fazia suar feito cuscuz. Se metade do
tempo eu pensava em como cuidaríamos do nosso pai quando voltasse para
casa, na outra metade era o cortejo doloroso de recordações correndo em
minha cabeça, e por isso eu repetia a mim mesma: nem me perguntem por
que vocês não conseguirão acompanhar meu raciocínio. Não conseguirão
sentir tudo o que senti porque nunca habitaram este corpo. Até você, minha
irmã, uma mulher batalhadora, mulher de trabalho, é incapaz de
compreender. Bom ou ruim, você tem um marido, tem seus filhos e não foi
marcada com o Mal, nem carregou os mesmos fardos que eu, incluindo o
que está nas minhas costas. E você, Menino, é agora um homem e as coisas
pesam diferente. Não sabe o que se passa no coração de alguém como eu,
alguém que teve que enfrentar o mundo sem nunca entender por que
precisava ser assim. Então, eu aviso, Menino: não preciso do seu perdão,
assim como espero que não precise do meu. Advirto também: depois de
tudo o que eu vi naquele mosteiro assombrado, não precisamos do perdão
de Deus nem Ele deve esperar que consideremos essa possibilidade.
Esqueça, tire isso da sua cabeça. Se você ainda tem alguma mágoa, não a
persiga, nem tente recordar todos os dias o mal que te fizeram. Você não é o
mal que te destinaram, nem Luzia é o mal com que a desenharam.
O transporte deu um solavanco depois de passar por mais uma lombada,
arre, pensei, segurando a sacola e me aprumando no assento. Zazau olhou
para trás, talvez para perguntar se faltava muito até a Santa Casa. Eu
devolvi o olhar e bem sabia que era provável que continuasse a me
compreender.
E o Menino me ajudou a descer da van, nos dirigimos ao hospital
apinhado de gente. Camas velhas e enferrujadas, médicos e enfermeiras
passando apressados olhando os telefones de um lado a outro. “É por ali”,
uma senhora disse antes de me olhar de cima a baixo. Chegamos à
enfermaria e vimos nosso pai com o rosto, o torso e uma das pernas
enfaixados. Nos aproximamos bem devagar, Zazau primeiro, eu depois e
em seguida o Menino. “Como o senhor está?”, “Dói?”, “O senhor se
alimentou?”, Zazau dirigia todas as perguntas que queríamos fazer. Ele nos
olhava, fechava os olhos, respondia com vagar. Mas parecia não reconhecer
o rosto do Menino e o chamou de Joaquim. “Não, pai, este não é Joaquim”,
Zazau falou.
“Sou Moisés”, ele corrigiu.
E os olhos de meu pai marejaram. Ele repetiu: “Você veio, Moisés, você
veio!”. Olhou então para mim e falou: “E não é que ele parece com minha
avó índia? E parece com você também, Luzia”.
Naquele instante percebi que a história mais bem guardada pelas
mulheres da casa, abandonadas no passado em suas misérias, no ano que a
rapariga perturbou a vida da Tapera, já não tinha como ser mantida em
segredo.
5

E foi há muito tempo que a maré começou a mudar. Foi antes de meu pai
partir num saveiro atrás da mulher perdida, da mulher da vida, e ao mesmo
tempo que chegou o meu devedor à Tapera. E minha mãe, minha mãe
catando os fiapos da vida diante da beira da derrota, minha mãe um dia
reparou num homem vistoso e gentil me cercando de cima de seu cavalo.
“É preciso melhorar a raça, Luzia, é preciso se antecipar às moças da
Tapera que põem olho grande nos forasteiros”, ela me disse. “É preciso
segurar um homem que possa te levar daqui para um lugar melhor. Não faça
como sua irmã Maria que desembestou a seguir um zé-ninguém e deu no
que deu”, repetiu. E eu, sem entender o que minha mãe queria dizer, deixei
aquele homem, aquele homem bem-apessoado, que os nossos começaram a
chamar de almofadinha, que tinha parentela com os antigos donos da
fazenda vizinha, se acercar e desejar bom-dia, e deixei também seus olhos
percorrerem meu corpo. Seu jeito requintado de homem de posse me fez
suspirar, como se descobrisse que meu dia havia chegado.
Eu dei corda. Eu, que me achava feia perto das caboclas da Tapera, não
entendia muito bem o que aquele homem tinha visto em mim. Seguia para o
rio para lavar as roupas de casa com Zazau. Prestava mais atenção no
horizonte, em quem chegava e quem partia, do que nas nódoas de roupa a
serem alvejadas. Mais importava a minha salvação. Quem sabe não seria ele
a me levar da Tapera, a me levar para a cidade, para viver numa casa
decente onde pudesse ver os carros da minha janela, onde pudesse andar de
ônibus e frequentar os mercados que diziam existir? Só assim para escapar
da sina de mariscar, de viver da maré, de roçar e ver homem partir nos
saveiros atrás de mulher da vida para nunca mais voltar.
E vez ou outra ele se achegava pelas beiradas do rio, diante da porta de
nossa casa, pelos caminhos da Tapera. Olhando de través, sempre, enquanto
eu esperava que se dirigisse a mim, atravessando conversa com os que
lambiam suas botas e infernizavam nossas vidas com a cobrança do
imposto. “Vá ver ele nem está olhando para a gente, Luzia, isso é coisa da
cabeça da mãe, que está a cada dia mais aluada”, Zazau me alertava. Mas eu
sentia meu corpo mudar, na mesma medida em que queria encontrar a paz
que não tinha. Buscava meios de me afastar do povo da Tapera, que criava
suas histórias para me ferir. Deixar a casa com um homem era maneira
digna de uma mulher deixar a Tapera. Nenhuma mulher deixava a casa
sozinha; só saía para o mundo sem homem se estava perdida, se era mulher
do mundo. Minha irmã Mariinha precisou sair com um zé-ninguém. E
mesmo nossa mãe, contrária, não se opôs, porque qualquer coisa valia
quando o destino era se salvar da vidinha ordinária, rasteira, da penúria da
Tapera, da pobreza e da fome que nunca nos dava trégua. Mesmo a mãe não
tendo nenhuma simpatia pelo homem que levou Mariinha, mesmo a mãe
reclamando pelos cantos da casa que não fazia gosto pela união da filha
com o tal sujeito, ela arrumou o farnel, a farinha, as raízes da tarefa de terra
do pai. Pediu a Joaquim, com os últimos tostões de que dispunha, que
comprasse um pacote de bolacha mata-fome para que a filha fizesse a
travessia com alguma dignidade. Minha mãe chorou feito uma criança
quando viu Mariinha partir em pau de arara, a caminho de destino incerto
para viver de morada, em terra que ninguém conhecia, só porque não havia
lugar para os filhos na Tapera. Essa era a sina dos fracos, dos que moravam
em casa humilde, dos que plantavam roça ou trabalhavam apanhando peixe,
dos esquecidos pelo Deus das esperanças. Os fortes eram os comerciantes,
os cobradores, os que diziam não ter medo de trabalho, os abençoados por
dom Tomás e por Bom Jesus.
Mas a maré estava mudando e era possível que tivesse chegado a minha
hora também. O meu destino podia ser diferente do de Mariinha. Aquele
homem não era branco, eu bem via, mas reluzia claro. Era perfumado,
gargalhava, não eram bons modos, tudo bem, “mas qual o rapaz que não
fazia o mesmo?”, minha mãe perguntou. Ele não podia ver um rabo de saia,
as moças da Tapera atravessando a terra com as latas de marisco na cabeça,
ele olhava. Olhava para todas, mas também olhava para mim na ausência
delas. Eu fui amolecendo, comecei a retribuir os bons gestos, o sorriso, o
chapéu caindo sobre os olhos, o capim no canto da boca. Eu ria sem riso,
desviando o olhar, fingindo não me importar. Não fazia mais porque Zazau
andava sempre comigo, era ordem da mãe, uma cuidava da outra para que
nenhum filho de uma égua atrevido desgraçasse as filhas antes do tempo.
As mulheres só podiam se desgraçar no tempo certo, dizia. Se desgraçavam
cuidando de filhos e marido, se desgraçavam com o tempo ferino.
E o tempo passava e aquele homem não se achegava à minha mãe, não
se achegava a meu pai, para dizer qualquer coisa. “Tire isso da sua cabeça”,
Zazau advertia, “não dê ouvidos para essa conversa doida da mãe. Não está
vendo que esse fulano não vai querer nada com a gente morando nos
arrabaldes da Tapera?” Mas o meu corpo não queria saber, o cheiro forte
que deixava meus braços, minhas pernas, o meu rosto oleoso, as feridas que
se abriam, era por isso, eu sabia, era porque tinha chegado a minha hora de
ser bicho também. Como seria bom se ele quisesse me conhecer e que o
desejo da mãe se realizasse.
Haveria de ter um dia em que minha irmã não precisasse me
acompanhar, e que o moço, ainda que vivesse em bebedeira com os sem-
trabalho da Tapera, se chegasse a mim. Então, as coisas poderiam acontecer
mais rápido: um encontro, um pedido de namoro, ou quem sabe até pulava
para o noivado. Dei um jeito de dispensar Zazau, no dia em que ela me
contou da cólica. Um chá de cavalinha e panos quentes sobre a barriga
foram suficientes para que entendesse que eu precisava lavar a roupa
sozinha. “Olha lá, Luzia”, minha irmã me disse, e eu devolvi a preocupação
dizendo que ela sossegasse porque eu ia num pé e voltava noutro. Equilibrei
a trouxa na cabeça, essa seria minha sina por poucos dias, eu tentava me
convencer, e segui pelas veredas para encontrar o rio. Mas o corpo é chama
e se atiça. Pode nos levar pelos caminhos arrevesados, para longe do rio
onde tem água, a água que apaga o fogo.
Foi então que no caminho um menino da aldeia me deu um bilhete e
pediu para eu entregar a um viajante. “É assim que ele se chama”, me disse,
e assim que estava escrito. Poderia ter perguntado por que ele mesmo não
fazia a entrega, mas era a minha chance, talvez a derradeira de ficar frente a
frente com a fera e deixar que ele transformasse seu olhar em promessa. Eu
diria: “É com meu pai e com minha mãe, são eles que decidem”. Mas
devolveria o olhar com confiança, deixaria claro que eu queria. Que quando
ele quisesse eu iria embora para a cidade, porque ele se vestia como os
moços de bons caminhos. Suas roupas não eram puídas, nem sujas, ou pela
metade como as dos homens da Tapera. Se bem que aquele menino que me
deu esse bilhete, de onde saiu?, me perguntei. Era tarde: eu me consumia
feito folha seca, e minha barriga cantava feito madeira quando queima.
Me vi diante de um barraco abandonado. “Arte de homem”, minha mãe
diria, “deve ter inventado essa história de bilhete apenas para criar coragem
de falar contigo.” Deixei me levar com a trouxa na cabeça, era uma trouxa
pequena, metade das peças já que não teria Zazau para ajudar. O barraco
estava sombreado, em silêncio, era uma penumbra, já não tinha janela e o
teto era palha gasta. Cumprimentei, “Tarde”, ele não respondeu. Estendi a
mão, e nem consegui dizer que o moleque na estrada pediu para entregar o
bilhete. Ele me puxou com força pelo mesmo braço que estendi, a trouxa
caiu, caiu macia no chão de terra. Ele cheirou meu pescoço e eu me assustei
e olhei para a porta para ver se vinha alguém. Tentei me desvencilhar:
“Não, moço, eu tenho que lavar a roupa no rio, minha irmã está me
esperando”, menti. Ele chamou baixinho: “Venha, morena, venha, morena”,
e já estava com as calças nas mãos quando me empurrou e eu caí no chão.
Tentei me rastejar como uma cobra para chegar à porta, mas ele veio feroz
como um cão e me cobriu feito os bichos se cobrem. Tudo foi ficando
escuro, o corpo doía, até que eu estava sozinha de novo e não conseguia
saber como tinha ido parar ali.
Baixei o vestido, pus a mão na minha perna e uma linha de qualquer
coisa me deixava. Perguntei, depois de tudo, para onde ele tinha ido, o que
tinha acontecido, era tarde e talvez nunca mais eu soubesse o que havia
ocorrido naquele barraco. E quando cheguei na beira da estrada desabei de
novo, sozinha, era o mormaço, o vento não corria e a trouxa fez um som de
coisa leve encontrando a terra. Meu corpo parecia macio e depois foi
ficando duro, rígido, seco.
Do chão eu olhei para o céu e vi os galhos de um jequitibá miúdo. A luz
era como as rendas que as mulheres teciam, um véu a cobrir meu corpo. E
lá do alto, um pássaro, um pássaro preto de olhos vermelhos olhava para
mim como se me conhecesse: e só por isso soltou um trinado.
6

Mas o Mal não me alcançou naquele instante, enquanto um fio de qualquer


coisa escorria por minha perna. Eu conhecia o Mal desde antes e era como
uma labareda se estendendo feito uma língua para me encontrar onde eu
estivesse. Quando tudo começou, eu não sei, na barriga da minha mãe, não
sei, quando demoraram de me batizar, era o que diziam. Quando fui
crescendo, vi o povo encontrando o Mal em todo lugar, talvez tenha sido
por isso que o Mal me encontrou. Estava por toda parte. Falavam do Mal
enquanto os meninos se banhavam nus no rio. Era o Mal que fazia os
homens perderem a cabeça e surrarem as mulheres. Culpavam o Mal
quando uma mulher deixava a casa para cair no mundo, sem volta, atrás de
um homem. Por isso chamavam por Deus; a gente não tinha força suficiente
para lutar. O Mal invadia o corpo, invadia os pensamentos, era assim que os
padres diziam nas pregações. Comigo foi pior porque o povo da Tapera
começou a dizer: “As desgraças que se abatem sobre nós são culpa da
menina Luzia”. Começou quando Edite contou que eu invocava o fogo e
depois desapareceu sem nos dizer como.
Dessa vez o Mal não estava nos olhos dos outros. Comecei a senti-lo por
mim mesma, em minhas próprias entranhas, e aos poucos ele foi ganhando
outros nomes: fogo, fúria, raiva, ódio, danação. Mas antes de começar a
sentir o grande desconforto, fui tentar entender o mundo. Talvez o moço
que me cheirou o corpo e me jogou no chão fosse encabulado. Não
aguentou esperar pelo casamento, o instinto tinha sido mais forte do que
ele. Ele voltaria, continuaria a me olhar, não me deixaria perdida pela vida.
Talvez ele já soubesse que se meu pai descobrisse o que me fez, me mataria.
Minha mãe era capaz de não me olhar nunca mais por vergonha. Ele não
faria tamanha descortesia.
Eu me levantei depois da vertigem, debaixo da sombra do jequitibá,
depois que o pássaro cantou e voou com seus olhos de fogo. Eu abaixei a
saia, o branco se incrustou na pele e era também o barro do chão e a cor, a
minha cor. Levantei a trouxa e segui para o rio, meus pensamentos
tentavam arrumar a desordem. Ah, menina! É a vida! E o rio foi se
achegando, não fui eu que caminhei, foi o rio que se achegou até mim.
Lavei as roupas, estendi ao sol e esperei que secassem para voltar para casa.
As águas me lavaram, banharam minha vergonha entre as pernas, e até ali o
Mal não tinha se apossado de mim.
Ele só começou a me queimar por dentro quando o tempo foi passando,
quando as veredas não sentiram mais o trotar do cavalo cavalgado pelo
moço ora claro, ora pardo, aquele homem que a depender da luz e da
distância da minha memória, mudava de cor. Aceitei, por fim, que estava
sem minha honra. Não conseguia mais dormir porque não saía da minha
cabeça que, se meu pai soubesse, me mataria. Que minha mãe não passaria
a mão por minha cabeça, iria me excomungar. Iria dizer que o moço tinha
ido embora porque me entreguei e era mulher fácil. Quem iria acreditar que
eu fui entregar um bilhete que me deram e a pressa havia sido dele? Talvez
me pusessem para fora de casa. Foi quando eu me senti mais fraca do que
antes. Agora é que essa gente da Tapera vai pintar e bordar sobre minha
carcaça.
Eu não desisti de primeira. Fiquei como besta na janela, olhando para o
povo indo e vindo do rio, esperando que ele aparecesse. Esperei por muitos
dias. Provável ser um mal-entendido. Ele não iria para longe. Voltaria,
procuraria por mim. Faria chegar a ele a mensagem sobre minhas prendas:
de que iria tratar o moço bem, que eu já não era uma ignorante, tinha virado
mulher. Não iria ficar pelos cantos esperando que ele se decidisse e o
chamaria à responsabilidade.
Mas ele desapareceu da mesma maneira que chegou. E o Mal já não
estava somente no povo que inventava coisas sobre mim: se acendeu por
dentro e eu estalei de novo como a lenha numa fogueira. Quando fui
sentindo essa coisa se acender, pude entender por que a vida da Tapera
girava em torno das desavenças, das mentiras e dos desencantos que foram
minando toda a história que tínhamos em comum. Foi quando a língua de
fogo, invisível, que me chegava pelas intrigas dos vizinhos, não ficou mais
do lado de fora de meu corpo me lambendo, queimando. Foi se entranhando
em mim como uma alma penada, e ficando aqui dentro para nunca mais
sair.
Zazau percebeu meu desnorteio e tentou falar comigo. Fiquei quieta.
“Minha mãe encheu sua cabeça de caraminhola, Luzia, agora você está
sofrendo”, ela me disse. O rapaz se foi e nunca mais voltou. Continuei
quieta. “O que dizer?”, me perguntei, mas não conseguia imaginar uma
história que parecesse verdadeira. Meu rosto foi ficando amargurado. Meus
olhos miravam as águas enquanto lavava a roupa e via o mesmo desgosto
de minha mãe. O que havia se sucedido nos últimos anos fez a velha Alzira
ficar mais velha. Abatida, encurvada, não vivia bem com o pai e ele perdia
a cabeça por qualquer besteira. E ela foi perdendo o tino das coisas: a
vontade de cozinhar, de se lavar, de se levantar da cama. Zazau dizia que
era melancolia pelos filhos que se foram. Era marasmo porque meu pai
andava cada vez mais longe de casa, bebendo no bar da Tapera.
Minha desolação pela espera, a certeza de que tinha sido enganada, foi
ganhando traços, como as pinturas que as mulheres da vida usavam. Mas
era uma pintura sem tinta, feia, sulcos rachando a pele, marcando a velhice
e o desgosto. O Mal era tudo isso e, também, a náusea que me tomou de
surpresa. Como não enjoar desse mundo mesquinho, me perguntei. O Mal
foi o vômito que não controlei e jogou restos de cuscuz aos pés de Zazau,
apavorada com meu estado. Ela me fez beber um chá de hortelã miúdo. O
Mal endureceu meus peitos e levou as regras que chegavam de lua em lua.
Quando já tinha se apossado de meu corpo, fez meu bucho crescer como se
estivesse cheia de vermes. E um dia, enquanto eu lavava a roupa de casa no
rio, Zazau me perguntou se eu estava bem. Que dizer?, me perguntei, de
cabeça baixa, esfregando a calça surrada de meu pai. “Suas costas, Luzia,
tem uma corcova nascendo em suas costas”, ela me disse.
E eu me arrepiei.
7

Onde mais o Mal nasceria?, me perguntei, enquanto escutava a missa. Ao


meu lado estava minha mãe, ausente de tudo, junto com minha irmã. Pus
um pano surrado sobre os ombros, um pano ordinário para cobrir minha
corcova. Nasceria um chifre ou um olho no meio da testa?, quis saber de
Deus e de santo Antônio entre uma ave-maria e um pai-nosso. Mas não foi
só a mim que o Mal apareceu: chegou feito mulher, vindo da capital e com
o nome de Zoraide. Enfeitiçou metade dos homens da Tapera. Meu pai,
Mundinho, estava entre eles. Já não era diligente com o trabalho. Tinha dias
que nem subia o tabuleiro para limpar o campo. Vivia no único boteco
daquelas paragens entre dominó, palitos e goles de cachaça. Zoraide
também bebia, bebia para espanto das mulheres maltratadas da Tapera. E
gargalhava bem alto. Depois de sua chegada não havia outro assunto. As
mulheres diziam que a perdida se amasiava com um e com outro, como se o
mundo fosse acabar. Vinha verão sim, verão não, para visitar a família,
gente da Igreja que comungava conosco. Prima, irmã, nunca soube ao certo.
Não tenho memória de ter visto a perdida quase nunca antes daquela
estação.
Eu só soube sobre Zoraide porque sua presença naquele ano causou
grande confusão. Era provável que, se não corressem notícias sobre sua
presença, como correram de maneira desenfreada, eu não viesse a saber.
Minha vida era de casa para a igreja e da igreja para casa, e de casa para o
rio durante a semana. Mas tenho memória de ver Zoraide pintada, a boca
rubra, os cílios grandes e o cabelo arrumado, preto, cheio, pedindo para ser
vista. Usava um vestido curto, os homens paravam de trançar as redes de
peixe apenas para a ver passar. Zoraide fazia eles revirarem os olhos na
esperança de poderem divisar um pouco mais de seu corpo. As mulheres
andavam aflitas, torciam a boca, cochichavam entre si e as rezas já não
eram suficientes, diziam, então recorriam aos feitiços das mais antigas da
Tapera: nome do homem no mel, velas e incensos. Água daqui e de acolá
para encantar os maridos. Trocavam magias, simpatias, mas Zoraide era
coisa-feita. Continuava para lá e para cá arrebatando os homens.
Mais de uma vez chegou notícia à beira do rio. As mulheres ficaram
desesperadas, disputando histórias, acusando umas às outras de tramarem,
inventarem, de favorecerem a perdida da Zoraide. Isso envolvia as donas
daquela casa, a casa onde Zoraide se instalava, que levantavam as vassouras
e brandiam com as mãos no ar para demonstrar força e indignação com os
boatos multiplicados. Começaram a dizer que eram católicas, cristãs, para
por fim lembrarem que também eram filhas de Cachoeira, terra de santo, e
sabiam mexer com ebó e despacho. Uma delas era beata e passou a
desconfiar de um momento para outro. Vivia de fuxicar pela ordem da gente
sem regra, conforme orientada pelos padres da Tapera. Levava os relatos da
esculhambação para a sacristia. Na missa seguinte o sermão costumava se
estender, render, esticar para além dos sinos. O padre clamava por decência
e repetia que, se não fôssemos capazes de vigiar o Mal, perderíamos a
guerra.
Minha mãe foi se dando conta da ausência de meu pai quando começou
a faltar a comida que nos alimentava. “Quede o aipim?”, perguntava.
“Quede a batata-doce?”, e revirava os trapos em cima da lenha. “Quede seu
pai?”, perguntava a Zazau. A gente dizia: “Eu não sei, minha mãe”. Passou
a ficar desconfiada. “Ele saiu e não levou a enxada. Esse homem não quer
mais saber de trabalhar.” Zazau corria para colher algo na roça. Voltava
mexida. “Os pés de planta estão secando, Luzia, que havemos de fazer, me
diga?” O sol forte tornava a brisa um bafo quente e as nuvens no céu não
eram prenúncio de chuva. Colhíamos as raízes mirradas, as ervas daninhas
se alastravam pelos pés de tudo, matando o que crescia no terreno sem
cuidado. Passávamos longe do boteco e lá estava ele, rindo, mas nem sinal
da perdida. Os homens batiam as pedras do dominó no tabuleiro com força,
como se atirassem em pássaro no ermo do campo, só para impressionar a
rapariga. Mas não contávamos à nossa mãe, ficávamos quietas. Trazíamos
do caminho araçás-mirins, pitangas, cocos — que os meninos trepavam
para colher —, as coisas que cresciam livres sem precisar pagar nem
plantar. Pagávamos pelo cacho de dendê, pilávamos à mão, escorríamos a
flor do azeite nas garrafas de vidro. Tinha a cor do sol alaranjado quando se
punha no começo do ano. Vendíamos os litros para os atravessadores, que
nos davam quase nada. Os braços se tornavam duros como os dos homens.
Meu pai não era diferente dos homens que conhecíamos e não
abandonou a roça de todo. Trabalhava dia sim, dia não, mas estava com a
cabeça na gandaia sem fim do boteco. E o pensamento todo em Zoraide.
Minha mãe saía da cama para a janela, da janela voltava para a cama.
Beliscava a comida, afastava o prato, contrariada. Olhava para Zazau e
perguntava: “Quede seu pai?”. “Deve estar na venda”, minha irmã
respondia. Voltava à janela, inquieta, e mirava a gente andando para lá e
para cá. Eram mulheres, umas falavam mais baixo, vergonha, outras diziam
alto, na esperança de serem ouvidas, que seus homens estavam atrás da
vadia. Minha mãe conversava pouco com a vizinhança desde que me
marcaram como o Mal, mas sentia o rumor como um pássaro pressente a
chuva. Algo de ruim estava para acontecer, algo de ruim já tinha acontecido
no passado, então era mais fácil ter atenção para sentir o ar inquieto, o
rumor de homens e mulheres, as coisas que às vezes sequer são ditas.
Minha mãe foi mergulhando no desespero pouco a pouco. Desconsolo
sem grito, mudo, mas retumbava nos olhos, no tremor do corpo, nas mãos
agitadas que, exaustas, paravam uma a uma sobre o peito. “Seu pai está
demorando, Luzia, vá chamar.” Ele não voltaria, eu tinha certeza, mas não
conseguia deixar minha mãe olhando para mim como se fosse seu último
recurso para se manter sã. Então eu ia para a rua, veja bem, seguia ladeando
para não levantar as suspeitas de meu pai, que não perdoaria uma filha ir
buscar um homem-feito, o provedor da casa, na porta do boteco. Joaquim já
vivia no saveiro Dadivoso, indo e voltando do mercado da capital,
carregando e descarregando suprimentos para a feira. Humberto, Mariinha e
Raimundo já tinham caído no mundo, não sabíamos por onde andavam nem
onde viviam. Então sobrava para Zazau e para mim. “A gente chega perto,
Luzia”, minha irmã dizia, “mas a gente não pode chamar o pai senão a
desgraça estará feita em casa.” Depois mentíamos: ele não estava, ou estava
ajudando o fulano na roça, ou que parecia já estar se aprumando para voltar
para casa. Lá estavam eles, os homens da Tapera, e a puta com as pernas de
fora falando alto e rindo mais ainda. Ria certa de que poderia ter qualquer
homem ao seu lado.
A raiva me alcançava, subia fervendo pelas entranhas. “É o Mal”, o
padre dizia nos sermões. Mas ao mesmo tempo meus olhos não conseguiam
deixar de olhar aquela mulher. Tinha mistério no jeito escandaloso. Olhava
como ela se sentava, se levantava, deixava os homens lhe servirem bebida.
Havia na falta de recato qualquer coisa de repulsivo, uma devassidão, a
libertinagem, só para usar as palavras de advertência do padre aos
domingos. Mas também tinha encanto, o encanto de saber que uma mulher
podia fazer o que quisesse com os homens, sempre dominantes com todas
as outras, mesmo que Deus e o povo não aprovassem. Tinha sedução nos
seus gestos e minha barriga esfriava como se descobrisse o novo. Uma
mulher pode, ela ensinava para outra. E falava com sua presença,
ofendendo as mulheres. Falava com a boca pintada, as unhas grandes e
vermelhas. Me dizia coisas mesmo que não olhasse para mim, mesmo que
não soubesse meu nome. Me dizia à alma o que eu nunca conseguiria
revelar.
8

O dia em que Zazau perguntou se eu estava bem foi o mesmo em que meu
pai deixou a casa. Naquela manhã, minha mãe se contorceu na cama
quando percebeu o vaivém de Mundinho recolhendo os poucos pertences e
perguntou para mim, para Zazau, e sobretudo para ele, o que estava
acontecendo. “Aonde Mundinho vai com essa trouxa?”, quis saber. Ele
vestiu a roupa menos remendada e que parecia ser mais nova e disse que ia
trabalhar na cidade. Iria viajar no saveiro de seu Valter. Penteou o cabelo
crespo, bateu no rosto depois de se barbear com a velha navalha amolada no
couro e se mirou num pedaço de espelho. Minha mãe quis saber que
história era aquela de viajar para a cidade, de ir trabalhar por lá. “Você
queria voltar a viver nesta aldeia onde nasceu e se criou, nunca falou de ir
morar na cidade. Como vamos ficar?”, perguntou, e os olhos pareciam
adormecidos, depois inquietos e, no momento seguinte, paralisados. “Aqui,
me esperando”, meu pai disse. Desviei meus olhos dos de Zazau, que,
observando meu corpo, começava a entender o delicado estado em que me
encontrava.
Meu pai chegou à porta sem olhar para trás. Então minha mãe se lançou
à sua frente querendo saber sobre a decisão de viver longe. “É a vadia, não
é?”, perguntou. Ele quis saber de que mulher ela falava. “A rapariga que
anda para cima e para baixo atrás dos homens casados, as vizinhas estão
dizendo.” “Cambada de mulher que não tem o que fazer e fica por aí
falando da vida dos outros”, ele berrou. Minha mãe se agarrou à manga da
camisa de meu pai que eu tinha passado no dia anterior. Ela estava tomada
pela raiva e por um momento parecia reagir à melancolia. Sua agonia era
pelo apego ao marido, já sentia a aflição de viver sem ele, de perder, talvez,
seu homem para outra mulher.
Anos vivendo sob o mesmo teto e dividindo a vida, a labuta, os filhos.
“Dividindo” não era bem a palavra, ela que vivia todas as coisas. Meu pai
passava os olhos e se sentia satisfeito apenas de ver as coisas em seu devido
lugar. Da porta para fora o mundo era seu e as coisas de que precisávamos
também eram sua obrigação. Desde cedo carregou os filhos para o trabalho,
era sua maneira de ensinar a se virarem, se protegerem, crescerem no
mundo para sobreviver. Da porta para dentro era minha mãe a provedora.
Transformava o alimento em comida. Agradava, enchia a barriga dos filhos.
Ela nos ensinou a manter a casa limpa. “Casa suja é chiqueiro e nós não
somos porcos”, repetia. Era autoridade a ser considerada. Trabalhava feito
um animal e não dispunha dos momentos de convivência com o povo da
Tapera, como meu pai. Saía de casa apenas para lavar a trouxa de roupa no
rio ou para mariscar na beira do mangue ou ainda para ir à igreja, domingos
e dias santos, para servir ao Bom Jesus, sempre acompanhada da renca de
filhos.
“Sai de mim, Alzira, deixa de maluquice, mulher.” A mão de meu pai
empurrou minha mãe para o canto da parede, e ela, fraca, cedeu. Ela gritou,
gritou como se fosse a última coisa que seu fiozinho de força lhe fosse
permitir. Gritou porque as mulheres em algum momento da vida, as
mulheres da Tapera, passaram por destino parecido. Zazau tentou ajudar
minha mãe a se recompor. Ela recuperou o equilíbrio, mas saiu
desembestada pela porta atrás de meu pai, caminhando em direção ao
saveiro. Gritava mais alto e já não era possível esconder que nossa família
tinha sido atravessada pela mulher perdida. Enquanto ele se afastava, minha
mãe parou, sem fôlego. Segurou os joelhos com as duas mãos. Zazau a
alcançou enquanto mulheres e crianças da vizinhança cercavam a paisagem
para abelhudar a desavença.
Não tive coragem de seguir Zazau para tentar proteger minha mãe da
vergonha que se abatia sobre a gente. Da porta, observei a cena com
apreensão, mas também com a certeza de que já tinha visto outras mulheres
gritarem por seus homens na Tapera. Meu corpo tremeu feito vara verde, o
coração prestes a sair pela boca levando tudo e mais o pouco que tinha
comido ao me levantar. Naquele instante foram passando coisas medonhas
na minha cabeça. Me preocupava como ficaríamos sem o pai por perto e se
daríamos conta das obrigações. Se não cultivássemos a tarefa de terra, os
padres e os cobradores de impostos iriam destinar o que era nosso a outra
família. Então só nos restariam a casa e o mangue e as frutas doces da
quinta dos padres, quando nos permitissem colher.
Já sentia mágoa do meu pai por tanta coisa, e assim vi crescer ainda
mais o mal que me assombrava, agora sem fim. Naquele instante passei a
sentir raiva pela indiferença aos gritos de minha mãe; por ele permitir a
desordem sob os olhos da vizinhança. Por meus olhos estarem voltados para
minha mãe, não vi quando ele subiu no saveiro, nem quando a embarcação
correu o rio com os ventos enchendo suas velas. Queria apenas que Zazau a
trouxesse para casa, porque meus pés eram incapazes de sair do lugar.
Os dias se seguiram piores, porque à medida que minha mãe definhava
na cama sem querer falar, comer ou tomar banho, minha irmã parecia se
cansar das tarefas. Além de vigiar nossa mãe, Zazau implorava para eu
dizer o que acontecia comigo. “Luzia, sua regra desceu?”, minha irmã
sussurrou, com receio de que algum bisbilhoteiro ou mesmo Deus nos
ouvisse. Respondi. “E quem foi, foi aquele homem que desapareceu?”,
perguntou. Baixei os olhos. “E o que vamos fazer quando a mãe descobrir,
minha Nossa Senhora?”, Zazau continuou a perguntar, sussurrando. A
pergunta não era para mim, mas ficou repisando a minha cabeça até me tirar
o sono.
No domingo, minha mãe não se levantou para ir à missa e por isso eu
pedi para ficar em casa. Zazau se ofereceu para ficar em meu lugar, mas
preferi não estar a sós com o povo da Tapera. Não poderia arriscar um
acerto de contas. Foi quando ela me disse: “Eu fico com você”, mas eu a
convenci de que alguém precisava prestar contas a Deus da condição da
nossa mãe e suplicar para que nosso pai voltasse, do contrário ela não daria
conta de tanto desgosto.
Um mingau de tapioca era a medida do doce e da quentura para tentar
reanimar minha mãe. Com uma colher aproximei a papa da boca
entreaberta, os olhos ainda fechados, mas para minha surpresa ela despertou
e não resistiu a comer. Como falar com minha mãe sobre as coisas da vida,
eu ensaiava dizer, mas não tinha coragem. A vida dos pais era imperfeita, e
filho nenhum tinha a medida certa das desavenças. Isso estava além do meu
entendimento. Por isso tentei contornar, dizendo que ele voltaria, que logo
se cansaria da cidade. “O pai não foi feito para cidade, é homem de roça.
Nem pescar o pai pesca”, falei sem encarar seus olhos. “Não é de viver
errante pelo mundo. O pai tem os pés no chão. Os pés na terra.”
Minha mãe me olhou e perguntou se eu achava de verdade que ele
voltaria. “Sim”, respondi, “eu não dou um mês para ele voltar. A senhora
precisa estar bem, minha mãe, para quando ele voltar, ele vai se sentir
aliviado de te ver disposta.” Me levantei para deixar o prato sobre uma
cadeira e quando voltei ela estava sentada na cama. “Que carcunda é essa,
Luzia, aí, nas suas costas?”, ela me perguntou. Estremeci de medo do que
ela poderia estar vendo. “Eu sempre tive isso”, disfarcei. “Deve ser da
idade.” “Que idade”, me perguntou, “você é muito moça.” “Pois eu me
sinto velha, minha mãe. Nasceu um fio de cabelo branco esses dias, logo
vou ter cabelo grisalho, como foi com a senhora.”
Mas tive medo e me afastei para o quintal. Retirei a tampa do tonel de
água e abaixei a roupa que me cobria o corpo. Virei de um lado a outro,
tentando ver o que minha mãe e Zazau tinham notado. Com minhas mãos
fui me enlaçando, como agarramos as coisas de que precisamos para
sobreviver, e então notei meus dedos encontrando e percorrendo a saliência
rija, uma marca de tudo o que eu ainda viveria.
9

Depois de dias, depois que o relógio imaginário mostrou sua vontade de


trabalhar, e o tempo era marcado pelas nuvens do céu, pelo sol e pela lua,
pela maré indo e vindo, meu pressentimento sobre a volta de meu pai não se
confirmou. Minha barriga cresceu, pequena e malnutrida, despontando
visível para que minha mãe, envergonhada, me rogasse para não sair de
casa. “As mulheres saberão de você, Luzia, se puser os pés para fora.” Os
dias, as semanas e os meses passaram e Zazau ficou cansada e mal-
humorada porque tudo que precisava ser feito no rio ou na rua passou a ser
sua tarefa. Meu irmão Joaquim ia e vinha da capital como fazia havia
tempos, esperando a oportunidade de se instalar por lá de uma vez.
Agora que Joaquim se preparava para deixar a casa, se tornou o portador
de notícias, mensageiro entre os mundos distintos da Tapera e da cidade.
Trazia junto com os peixes, com a farinha de mandioca, com o pacote de
bolacha mata-fome, o pouco dinheiro que o pai mandava. Minha mãe queria
saber se Joaquim tinha visto o pai, se ele morava com alguma mulher, se
estava bem de vida. O “bem de vida” fazia Joaquim rir bastante. “Meu pai
dorme no armazém, trabalha carregando sacas, não está sem fazer nada,
devia estar desencantado com a roça, é isso”, retrucou. O pai bebia,
imaginávamos, e encontrava a rapariga, a mãe não tirava aquilo da cabeça.
Minha mãe voltava para a cama, se deitava com as mãos cruzadas sobre a
barriga, esperava não mais se levantar, como se dali só fosse sair para a
cova, nos dizendo sem palavra que só viveria de novo se meu pai
retornasse.
O dinheiro que nos chegava era pouco. “Ele deve ficar com a maior
parte”, minha mãe dizia, esquecendo que nunca houve conforto algum para
a família. Eu observava o suor abundante correndo pelo seu rosto. Sem a
carícia do vento, o ar de fevereiro era quente e úmido, e o suor descia em
ondas carregadas de mágoa, medo e saudade, como uma febre que leva a
doença embora. Os males transbordavam de minha mãe, não havia lugar em
seu peito para guardar. Ela estava amargurada e eu a compreendia porque
era assim também que me sentia. Cheguei a considerar ter sido cortejada.
Que aquele moço gostava de minha aparência, que ele gostava de me ver.
Ele galanteava outras moças da Tapera, mas se persistia comigo era porque
me desejava de verdade. Meu desejo também foi crescendo, e os conselhos
da mãe para melhorar o nosso destino, embora nada se dissesse, me fizeram
acreditar que era possível. Sentir desejo era sentir afeição, então bastava,
ainda que o desejo fosse o Mal, diziam os padres, mas não conseguia deixar
de sentir. Rezava, me penitenciava, pedia a misericórdia de Deus pelo
pecado de sentir.
Não foi o bastante para me livrar da desgraça. Fui atraída como a
mariposa que segue a luz do candeeiro. A luz é bonita, é brilhante, é quente,
e quando menos se espera você é torrada pelo calor. Um pássaro atraído
pelo alpiste fresco para um alçapão. Alimento bom, puro, a fome de comer
e de viver e, pronto!, fecha-se a cancela para sempre. Dali não há saída.
Daqui eu também não vou sair jamais, desse corpo que agora cresce para a
frente e para trás, uma barriga e um aleijão. Eu entendia a amargura de
minha mãe pelos anos de serviços a meu pai, aos filhos e a Deus. Tudo o
que transbordava de sua vida começava a se tornar familiar. Eu, daqui a
pouco, estaria transbordando das coisas que não cabiam em mim, inclusive
daquilo que crescia em meu interior. Como se nossas intimidades fossem
uma coisa só, e sofríamos juntas com o meu estado. Minha mãe se culpava
talvez pelo que me aconteceu, mas não falava, não tinha forças, então
nossas culpas estavam lá, luminosas como a claridade penetrando as
janelas, juntas, e nossas misericórdias também.
Em breve os cobradores viriam recolher a taxa. Todo ano a mesma
guerra e a constatação era acompanhada de uma pergunta: de onde retirar o
dinheiro do imposto da Igreja? Quando o pai estava, questionava, se
aborrecia, pintava o diabo para não pagar, e a confusão estava dada. “Todo
mundo paga, compadre, só o senhor fica inventando história”, era o que
diziam Mãozinha e Chico da Colmeia, padrinhos de metade da Tapera. Não
me recordo se batizaram alguém da nossa casa. Sempre diziam e eu sempre
me esquecia. Eles tinham as melhores casas: pintadas, telhados novos,
portas e janelas de pau-d’arco maciço. “Deus e santo Antônio ajudaram”,
diziam. Eles definiam os cultivos fora da Tapera e nas terras da Igreja. Que
tarefa de terra seria trabalhada por família. Eles são justos, o povo dizia.
Gozavam de prestígio junto aos padres, a qualquer problema eram
chamados à casa paroquial, e dali em diante eles cuidavam. Facão na bainha
e espingarda nas costas. Nem sempre espingarda nas costas; somente nos
dias de caça, mas sabíamos que eles tinham espingarda nova e boa mira.
Naquele ano de grandes mudanças na vida e na casa, em meio à
mesmice da Tapera, Mãozinha foi ter à nossa porta. Não perguntou por meu
pai, sabia que andava trabalhando longe, mas perguntou se estávamos
cuidando da tarefa. “Sim”, Zazau mentiu. “Pegamos as últimas raízes de
aipim. Agora é capinar, limpar e fazer a coivara para plantar milho depois
da chuva de são José. Joaquim cuida da tarefa enquanto meu pai está fora”,
escutei minha irmã falar; mentira, eu sabia. Da janela eu observava o
inquisitório, fazia tempo que meu irmão não pisava na Tapera. Zazau tinha
ido algumas vezes só para ter certeza de que não nos tomavam o lote. “E
comadre Alzira?”, Mãozinha quis saber. “Está bem, mas hoje está
descansando.” “O médico virá aqui no fim do mês, vou pedir para passar na
casa de vocês”, ele disse. “Carece não, seu Mãozinha, minha mãe está bem,
graças a Deus e à Nossa Senhora”, Zazau devolveu, olhando firme nos
olhos do cobrador. “Compadre Mundinho deixou o dinheiro do imposto?”,
Mãozinha perguntou, balançando o carnê de cobrança. “Deixou não, mas
decerto Joaquim vai trazer na próxima semana. O pai sempre manda o
suprimento”, mentiu Zazau mais uma vez. Mandava, mandava, mas não
mandaria o dinheiro da Igreja.
Mentir era a desonra, mas não havia outra saída. “Bom cristão jamais
mente”, o padre dizia em seus sermões. Mas mentir às vezes era meio de
sobreviver. Mentíamos e confessávamos aos padres, que mandavam nos
cobrar, e mentíamos de novo. Mas não dizíamos sobre o quê. Pedíamos
perdão e recebíamos a penitência: dez ave-marias, dez pai-nossos.
Pagávamos e estávamos livres de ir viver no inferno. Era mais fácil pagar a
Deus do que pagar aos padres e aos cobradores, aprendemos. Pelo menos
Ele não vinha pessoalmente nos cobrar. Nos cobrava com doenças,
discórdias, aflições e com a perda da lavoura. Mas tudo isso já
enfrentávamos mentindo ou não e, tenho certeza pelo que os padres diziam
na missa, Deus não iria querer um filho seu sem sua terra para dela retirar o
sustento.
Quando Mãozinha foi embora prometendo voltar, minha mãe me
chamou ao quarto. Contei que era o cobrador, que tinha vindo buscar o
dinheiro do imposto. Zazau me repreendeu arregalando os olhos, não devia
preocupar nossa mãe. “Veio cobrar, sim, minha mãe”, ela tentou remendar
antes que eu abrisse a boca. “Mas avisei que o pai está fora e que vai
mandar o valor.” “Seu pai?”, minha mãe perguntou com ironia. “Nós é que
vamos ter que dar um jeito de conseguir o dinheiro para pagar. Vocês duas
não sabem que todo ano seu pai arma essa confusão com o imposto por não
achar justo pagar?”
Naquele instante, por trás do véu do quarto, sob o telhado da casa, meu
corpo se enrijeceu e a ponta de alguma coisa se revelou por baixo de minha
mão repousada sobre a barriga. Era como se tudo aquilo fosse uma grande
mentira e eu estivesse morando num sonho ruim, tamanho o incômodo que
sentia.
10

Foi Joaquim quem deu o dinheiro para pagarmos o imposto da Igreja, para
nosso alívio e o de minha mãe, a cada dia mais abatida. Restava cuidarmos
da tarefa de terra para que não fosse ocupada pelo trabalho de outra família.
Além da roça, o imposto dizia respeito às casas da Tapera onde vivíamos,
porque tudo pertencia a Deus, e se era de Deus, era da Igreja. Tinha sido
assim desde que desembarcaram os jesuítas, contavam os mais velhos.
Eu me sentia disposta apesar do calor e da vontade crescente de beber
água e de urinar. Tomei as rédeas das tarefas de casa, as que Zazau também
fazia, para que ela e Joaquim, quando aparecia, cuidassem dos plantios de
milho e mandioca. Os camboeiros chegaram e estrondos luminosos lavaram
os telhados e as ruas. A água caía farta, salpicando de lama as paredes das
casas. Se passava um carro pesado era preciso fechar as janelas porque o
barro parava dentro das casas, sobre a cama, paredes e móveis. As chuvas
chegaram encharcando os vales e enchendo o rio, cobrindo os mangues e as
margens. Eram duas as coisas mais certas da vida da Tapera: a cobrança do
imposto e a chegada dos camboeiros. Depois da primeira chuvarada, o povo
corria para as roças e cuidava do cultivo da época.
Como os cobradores já tinham passado naquele ano, então seria difícil
alguém bater à nossa porta. Eu permanecia ao lado de minha mãe entre
suspiros, cochilos e perguntas: “Onde está Zazau? Joaquim trouxe notícias
de seu pai? Quem está cuidando da tarefa de terra? Você não está saindo,
Luzia?”. Eu me resguardava para não desapontar minha mãe e envergonhar
nossa casa. Bastava o que tinha acontecido, suportávamos a hostilidade do
povo da Tapera desde outros tempos.
Se juntava à indisposição da aldeia comigo a rebeldia de meu pai,
sempre indagando por que ele tinha que pagar o imposto: “A terra estava
aqui desde antes desses padres novos chegarem” — dizia, iniciando o
sermão. A igreja passou muito tempo abandonada. As terras das roças
pertenciam à viúva e beata Isabel, senhora de passar o dia de vela acesa e
rosário na mão. Vivia de luto fechado e chegava à missa sempre de preto e
véu cobrindo o rosto. “Minha avó Didita, a que me criou”, meu pai
continuava a contar, “me levava ainda menino para a igreja depois de
restaurada. Essa igreja é antiga, dos tempos das sesmarias, mas foi
queimada, valha-me Deus, não sei nem porque estou falando disso.
Ninguém quer mais saber dessa desgraça. Minha avó disse que minha mãe”,
meu pai continuava, “deveria ter uns oito para nove anos quando chegaram
os primeiros padres depois da restauração. Monge, eles chamam, mas o
povo não se acostumou e chama de padre até hoje. Eu mesmo não alembro
de nada, nem está escrito, mas os antigos sabem de tudo. Quando eu nasci,
a igreja já era essa igreja e passou quase cem anos fechada. Mas foi dona
Isabel, dona da terra, que pagou a restauração. Mandou trazer engenheiro
do Rio de Janeiro e as imagens dos santos de outros lugares. Promessa feita
a santo Antônio, padroeiro da Tapera, que lhe curou de uma febre sem fim e
fez do marido político respeitado. Essa foi a graça, e a promessa era doar
aos padres. Hoje eles cobram o imposto, porque de verdade as terras da
Igreja, somente estas, sempre foram deles. Repetem quando mandam fazer
a cobrança que as terras sempre pertenceram à Igreja. Como nós não temos
o documento, mesmo nossa gente estando aqui há duzentos, trezentos,
quinhentos anos, ficamos de mãos atadas.”
Todos os anos escutávamos a mesma história e não era diferente de
recordar, mesmo na ausência de meu pai. Ele não deveria estar preocupado
em saber como enfrentaríamos os cobradores. Já tinha cantado o caminho
das pedras, nós que recordássemos da cantiga.
Joaquim e Zazau retornaram da tarefa de terra depois do meio-dia.
Minha irmã tinha as mãos estropiadas. “Não quero essa vida, não, Luzia”,
dizia enquanto esfregava as mãos na bacia. “Quero ter dinheiro para
comprar tudo. Não quero plantar milho nem aipim nem feijão, nem ficar
debaixo do sol do meio-dia. O primeiro homem de fora que passar pela
Tapera, e me olhar diferente, eu arrumo minha trouxa e vou embora, como
fez Mariinha. Não saio de casa para viver com homem da Tapera, não. Tudo
pé-rapado. Pena que você não teve sorte, o seu foi embora e ainda te deixou
uma encomenda.”
Senti meu rosto se afoguear com a ofensa. Ah, minha irmã, boa alma,
mas às vezes podia ser traiçoeira. Agora ela conhecia mais um infortúnio
para me azucrinar. “Para de dizer isso, Zazau”, pedi, me firmando em seus
olhos enquanto ela esfregava as mãos na bacia. “Se você jogar na minha
cara mais uma vez eu vou no seu lugar cuidar da roça. Também não gosto
da Tapera, quero ir embora, mas não vou te culpar.” “O que é que vamos
fazer, Luzia, você já pensou, quando a criança nascer?”, ela me perguntou.
“O que vamos dizer ao pai quando ele voltar?”
Com ele me resolveria depois.
Eu me fazia de forte diante de Zazau, mas no fundo de mim, no fundo
do meu coração, eu não pensava em outra coisa que não fosse a minha
desonra. Dormia o sono dos passarinhos, sem sossego, e pelejava com meus
pensamentos tentando enganar a insônia. Era Deus e Nossa Senhora de um
lado, a memória da minha desonra e a certeza da má sorte de outro. Me
revirava na esteira de palha, no colchão velho ou na rede de dormir,
dependendo da minha disposição para adormecer. Passava as manhãs
sonolenta, indisposta, os olhos como se estivessem cobertos de areia fina.
Acreditava ser ora o calor, ora meu embaraço crescendo a olhos vistos.
E veio a dor de dente. “Mulher prenha, os dentes ficam sensíveis”,
escutei minha mãe dizer. Passei noites em claro e meu rosto começou a
inchar. Nunca conseguia saber se era do lado esquerdo ou direito. Zazau se
preocupou. Disse que ia saber na igreja quando o médico voltaria à Tapera.
“Faz mais de três anos que eles passaram pela última vez, Zazau, por que
passariam agora de novo?”, perguntei. “Não custa saber”, e lá se foi em
busca de notícia. Quando voltou, disse: “Dentista não tem, mas me deram
esse remédio aqui”, me entregou um pequeno frasco com um líquido claro.
“Embebe em um pouco de algodão, Luzia, e põe em cima.” Aliviou a dor
por um tempo, mas depois voltou ainda mais forte. Se fosse Zazau estaria
gemendo, mas como era eu, Luzia, orgulhosa, não dava meu braço a torcer.
Minha mãe, Zazau e até o Joaquim, quando estava em casa, dormiam
durante a noite, enquanto eu zanzava de um lado a outro para aliviar a dor.
O sangue quente da minha agitação fazia a dor diminuir. Mas era só esfriar
o corpo e voltava tudo outra vez. Continuei andando pela casa, a barriga
mexeu ainda mais, e subia pela garganta uma vontade estranha de gritar,
como se pudesse expulsar a dor. No fim das contas tive a certeza de que iria
enlouquecer.
“No tempo de minha avó”, minha mãe disse tentando acalmar minha
aflição, “não havia dentista e o povo se resolvia sozinho. Minha avó era
uma mulher chegada às coisas do espírito, essas coisas que o padre diz que
Deus abomina. ‘Onde já se viu servir a dois senhores?’, perguntava nas
missas, ‘tudo coisa de gente índia e preta.’ Mas ela falava de uma árvore, o
Loco, e do leite que se tira da raiz. Uma gotinha que embebe o algodão ou
um pedaço de tecido e tiro e queda: amolece o dente até cair por si. Não há
dor que perdure para sempre.”
“Como achar a tal árvore, será que ainda existe?”, perguntei à minha
mãe quase gritando porque minha vontade era agarrar em seu braço e fazê-
la caminhar comigo até encontrar. Falei tão alto que quase acordei minha
irmã entre a dor e a lágrima que insistia em cair de meus olhos, desafiando
meu limite. “Não gosto de mexer com essas coisas, Luzia, Deus não gosta
porque tem parte com a religião de gente feiticeira, não mexemos mais com
magia na Tapera. Mas se é necessidade, então vamos andar para o lado da
mata para ver se a gente encontra o Loco. Vamos antes de o sol se levantar,
assim ninguém nos vê e nossos nomes não param na boca do povo por
causa das nossas doenças.”
11

Minha mãe se levantou da cama e andou até a mata. Por um momento,


parecia ter voltado à vida anterior. Não lembrava a mulher abandonada pelo
marido e doente de melancolia. Saímos antes de minha irmã se levantar e
nos convencer de que andarmos as duas, juntas, pelo sereno da madrugada
não era uma boa ideia. Descobri naquele dia que minha mãe ainda guardava
alguns segredos dos antigos, passados de pais para filhos, de avós para
netos. O povo da Tapera já havia esquecido ou tinha vergonha de dizer que
sabia. Os padres abominavam as crenças dos mais velhos e diziam ser
superstição. Não era a ciência de Deus, diziam em tom de reprovação.
Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitou homens, Ele próprio ressuscitou e se
levantou da morte. Nenhum chá, nenhum banho de folha, nenhum feitiço
ressuscitou alguém. Mas se Deus faltava, perdoe o pecado, meu Deus, mas
se Ele não conseguia fazer a solução chegar para nossos males, nem sempre
era de Sua vontade porque decerto queria que aprendêssemos com a dor.
Mas nosso corpo foi aprendendo a conhecer seus limites, não éramos santas
nem bem-aventuradas, então a sabedoria dos mais antigos poderia nos
aliviar. E, se bem não fizesse, mal também não faria.
Nem mesmo ver minha mãe se levantar e caminhar a passos pequenos
até a mata, uma alma atravessando o amanhecer, me fez esquecer a dor de
dente. Ela se agarrou a um galho de aroeira perdido no caminho, retirou as
folhas secas e o fez de cajado para afastar cobras e outros bichos. Levou
também uma sacola de palha com o facão do pai e um pano branco,
encardido, restos de um lençol velho e esgarçado. Minha mãe, minha velha
mãe, andou no seu tempo; minha boa mãe que sonhava com uma família
mais clara destinada a ser salva da miséria pela sorte que só a gente branca
pode ter. Ela me levou por caminhos por onde eu já costumava andar e,
antes de entrar na mata, retirou um cigarro da sacola e, valha-me Deus,
acendeu a palha para a Caipora. Deu três tragadas e deixou o cigarro aceso
sobre uma pedra preta onde os caminhos se dividiam. Fez o sinal da cruz,
pedindo perdão mais uma vez. Nem de longe parecia a mulher que se
esforçava para esquecer o jeito de viver do passado.
Na vereda, no caminho, encontramos as plantas, velhas conhecidas, até
chegar à árvore também conhecida, sem que eu soubesse ser ela o Loco da
história. Ali, sob sua sombra imensa, o frescor me aliviou da algazarra de
sentimentos, da dor à loucura, do ressentimento à tristeza, tudo o que não
me deixava pregar os olhos havia dias, agitando meu sono. Minha mãe
olhou para a copa escura e espalmou a mão sobre o tronco largo coberto de
cipós, uma cortina de contas sem nos deixar ver seu interior. Ela não me
disse, mas eu sabia que naquele instante puxava pelo tempo para refazer os
costumes do mesmo jeito que os mais antigos. Repetia a toda hora que não
acreditava nessas coisas, mas naquele momento, na mata, era como se
estivesse guiada pelas presenças do outro mundo que tanto renegava.
Foi assim que ela retirou o pano branco da sacola e envolveu o tronco.
Caminhou por cima das raízes observando atenta até escolher com cuidado
o local onde golpearia com o facão. Um leite branco, leite do peito, leite do
verde, leite da árvore, leite da terra brotou da ferida aberta. Um leite
generoso e forte. Minha mãe não tocou o líquido como também não se toca
no sacrário da hóstia. Deixou apenas o sumo escoar, grosso, suculento, um
fio sobre o facão, e esse mesmo fio devolveu ao pequeno pedaço de tecido
que depois eu poria sobre o dente doente. “Não bebe”, ela me disse, “nem
deixe espalhar e escorrer para outros dentes.” Nem vontade eu tinha,
tamanha a amargura e a queimação em minha boca. Só cuspia e babava,
como se tivesse bebido veneno.
Mesmo aflita, dolorida de tanto sofrimento, passou por minha cabeça
que a mãe poderia me ensinar o chá das antigas para pôr para fora os filhos
não desejados. O chá dos anjinhos. O que salvava as moças desonradas, as
mulheres de muitos filhos, as mulheres prenhas de homens perdidos, as
mulheres que não queriam ver os seus passarem fome. Os antigos deveriam
ter a receita para a perdição. Mas minha mãe ficaria indignada com meu
pedido, e eu tinha vergonha até mesmo de pensar nesse pecado sem nome.
Nos sentamos sobre as raízes da árvore. Ali, o calor não nos alcançava e
a brisa perene nos envolvia. Aos poucos a calmaria fez minha mãe relaxar.
O esforço de caminhar até a mata a tinha deixado mais fraca. Ela dizia que
não, que era apenas sono. Foi ficando fria, fria, até que se deitou no chão de
terra e raízes e adormeceu. Eu também me deitei, os olhos pesavam na
mesma medida em que a dor diminuía. Me perguntei há quanto tempo não
ficava assim ao lado de minha mãe, explorando o quintal e o rio e o céu, há
quanto tempo o bem viver não se acercava de nossas vidas sem que nos
preocupássemos à exaustão com a bebedeira de meu pai, com a falta de
dinheiro, com os pecados incontáveis — “Basta estar vivo para pecar”,
segundo o padre —, com a tarefa de terra que poderia parar na mão de
algum desconhecido ou avarento da Tapera, com a gente da família que saiu
pelo mundo e nunca mais deu notícias. Adormeci pensando em Mariinha.
Quanta falta minha irmã me fazia! Nas chamadas para o telefone público da
Tapera, falávamos por pouco tempo todo dezembro. A cada dia estava num
lugar com o marido, trabalhando para gente diferente. Me falava do lugar
onde se encontrava, mas eu não era capaz de recordar. Da última vez contou
ter tido um menino. Nos anos seguintes diria ter tido mais não sei quantos
— dois, três —, isso porque o tempo e a distância fazem a gente perder a
sabedoria de contar e de sentir. Mesmo o rosto de minha irmã ia se
esfumando de minhas lembranças. Sentia dificuldade de relembrar dos seus
olhos, seus traços, restando apenas seu cabelo liso e preto e seu cheiro doce
que não dava para esquecer.
Quando dei por mim, o sol estava alto e minha mãe ainda dormia.
Despertei do sono babada feito gado doente de febre. A cabeça estava numa
poça de saliva e o emplastro já havia caído sem que eu desse por falta. A
língua tocou o dente doente e ele balançou mole, molinho. Foi para a terra
com o resto do cuspe envenenado que ainda tinha na boca. Que alívio. Se
foi o dente, se foi a dor. Bem que poderia acontecer o mesmo com a barriga
e a corcunda. Chamei por minha mãe. Dormia um sono profundo; o sono
que não a alcançava em casa a venceu na mata. Seu rosto não parecia mais
amargurado. Estava tranquilo, angelical, o rosto dos santos. O peito subia,
descia, e um silvo deixava sua boca para dizer que era apenas um sono.
Senti pena da minha mãe e esperei mais um pouco para chamar outra vez.
Zazau nos encontrou e seu rosto apontava aflito. “Sumiram desde cedo,
o que vieram fazer aqui, deveriam ter avisado”, disse sem esconder a
agonia. Minha mãe foi abrindo os olhos ao ver a agitação de minha irmã e
nos disse: “Vamos nos pondo de pé”. Espanou as folhas secas e a terra que
impregnava a roupa. “E o dente?”, quis saber. Mostrei a poça de cuspe e o
dente carcomido. Deu a Zazau a sacola de palha e o facão, não tinha mais
forças para carregar coisa alguma e se pôs na dianteira. Eu tomei a sacola
das mãos de minha irmã e levei como se carrega uma criança, para cobrir
minha barriga miúda. Minha mãe deixou a vara de aroeira para secar ao sol
e se quebrar em pedaços cada vez menores até se tornar pó. Assim era com
os ossos de todos os viventes. Voltamos para casa, as três, sem temer a
maledicência da vizinhança. O pano amarrado à árvore seria encontrado
mais cedo ou mais tarde, mas quem diria ser o feitiço de nossa casa?
Rezávamos, éramos católicas, batizadas, crismadas, praticantes. Éramos
assíduas às missas e guardávamos os dias santos. Tanto era que depois da
crisma o povo me deixou mais em paz; está contida, afastada, diziam, do
demônio que cospe fogo. Íamos às procissões, temíamos a Deus e à Nossa
Senhora dia e noite. Mesmo assim, até nós poderíamos ser acusadas de
praticar as crenças dos antigos. Nos dirigimos ao Loco por desespero e mais
alguns dias tudo estaria no passado outra vez. Se Deus permitisse, não
precisaríamos mais voltar à mata.
Mas nos dias que se seguiram a maré virou de novo: minha mãe estava
cada vez mais paralisada sobre a cama, muda, apática. A melancolia a
devorava sem arrodeio. E eu, apesar dos pés inchados e da lentidão, tinha
um corpo magro, a barriga mirrada mexia quase nada. Talvez fosse um
aviso de que a criança não iria vingar.
12

Quanto mais se aproximava a hora de parir, mais minha cabeça zunia. Tinha
muita gente falando dentro de mim, o que nunca era boa coisa. Se a Tapera
descobrisse esse falatório em minha cabeça, me acusaria de feiticeira. Por
isso, eu subia em pé de árvore e saltava para o chão. Subia num galho mais
alto e pulava, tomada pela valentia das feras. No chão, voltava a me sacudir
sem parar, pulava forte, para expulsar o que crescia em mim. À noite, eu
entrava no rio escondida em água mais afastada das casas, onde quase não
se via pescador lançando malha para apanhar camarão de madrugada. Me
movimentava com violência. Espantava os peixes. Batia forte em meu
corpo. Meu interior ecoava como um tambor de pele de cabra. Não me
preocupava em ser vista. Molhada, voltava para casa sob o sereno pensando
que poderia ter pneumonia, tuberculose, alguma doença nos pulmões. Que
iria morrer tísica. Tossir até expulsar tudo o que vivia dentro de mim. Era
certo que estava ficando louca de tanto falarem que eu era louca, de tanto
falarem que eu tinha parte com o Mal. Sentada, esperava um tempo para pôr
a mão por baixo do vestido, na roupa íntima, e ver se tinha algum sinal,
alguma mancha escura. O corpo doía e a barriga enrijecia.
A boa hora veio nada boa para mim. Chegou junto ao desespero. Zazau
percebeu que eu não estava bem das ideias. Temia por mim. Além de cuidar
de minha mãe, tinha que cuidar da irmã aluada. O resto de sua paciência foi
embora nos últimos dias. Me recusava a comer, não olhava para seu rosto.
Quando ela percebia que eu iria trepar mais uma vez na árvore, apertava
meu braço com força e dizia: “Pare com isso, Luzia, vai provocar uma
desgraça. Já não basta tudo o que nos aconteceu, você quer que toquem
fogo na casa, na gente?”, perguntava. Joaquim passava em casa de tempos
em tempos, mas era como se lá não estivesse. Nem sequer parecia saber do
meu estado, meu irmão, como todo homem, não desconfiava. Dizia estar
próximo a ficar de vez na capital. Ficaram de lhe conseguir trabalho na
construção de um edifício, onde ele iria morar e dormir. A cabeça sempre
na lua ou na capital.
Foi assim que o silêncio se pôs entre nós. Era como alguém cuidando de
todos e os segredos continuavam vivos. Só teriam um destino nos dias de
confissão na igreja, quando deixassem nossas almas para expiarmos nossos
pecados.
Naquele dia, no dia derradeiro antes de o menino nascer, eu vi as
mulheres passarem com os cestos para colherem o que encontrassem no
pomar do mosteiro. As mulheres, humilhadas por seus homens
desaparecidos, e só por isso eram elas a prover a casa com a bondade dos
padres. Elas não se dobravam por inteiro, mostravam suas cascas
orgulhosas, como se não estivessem sofrendo pela falta de comida e de fé.
Eu não queria acabar como elas e as olhava com desprezo e mágoa. Elas
têm seus homens, podem colocar o nome dos pais nos registros das
crianças, mas isso não faz suas vidas melhores. Me desonraram e nem me
permiti ter raiva porque achava ser assim mesmo, todos os homens faziam a
mesma coisa. Que o moço matreiro, o nome eu nunca mais quis recordar,
voltaria para fazer o mesmo outras vezes. Ele iria me derrubar no chão e
satisfazer as vontades. Depois teríamos uma casa e uma cama. Mas o tempo
foi me contando, o tempo fala, sim, se pronuncia através dos dias e das
noites, das paredes descascadas, do cabelo crescido, dos dentes que deixam
nossa boca, o tempo fala de muitas maneiras, pela saudade e pelo abandono,
o tempo me disse estar errada. E eu teria uma criança e nem mesmo minha
mãe, minha boa mãe, poderia me ajudar dizendo o que fazer, por estar
definhando sem juízo sobre a cama. E eu temia acabar do mesmo jeito.
À noite, Zazau dormiu de exaustão. Eu, indiferente ao cansaço de minha
irmã, não conseguia pensar em mais nada senão em como evitar a minha
desgraça. Ela zelou por mim temendo minha inconstância, mas o cansaço
foi maior e a tomou por completo. As dores nas pernas, nos quartos e nas
costas haviam começado no fim da tarde. Eu andava de um lado a outro,
como nos dias em que sofri com dor de dente. “O movimento esquenta o
sangue”, minha mãe dizia, e enganava a dor porque corpo de sangue quente
resiste mais. Eu não poderia dividir aquele momento com Zazau. Só
atrapalharia o que eu tinha decidido fazer.
Eu deixaria a criança na mata depois do nascimento. Que a natureza se
encarregasse do resto.
A dor começou muito cedo, eu mordi as palmas das mãos para abafar a
vontade de gritar. A agonia do corpo subia à cabeça e eu chamava meu
desassossego de loucura. Quando minha irmã e minha mãe dormiram, eu
arriei meu corpo no chão. Seria ali ou no quintal que eu iria parir. No
quintal era melhor, longe dos ouvidos de Zazau e de minha mãe. Desfiz a
trança com as mãos agitadas, com violência, a ferocidade era uma maneira
de enfrentar tudo. Os tufos de cabelo ficaram em minhas mãos, caíram pelo
chão. Eu trançava meu cabelo desde que fora crismada. Cabelo cheio,
grosso, ensebado de suor, e do jeito que o desamarrei ele ficou armado, a
copa de uma árvore. De cabeça para baixo eram raízes encontrando a terra.
“Cabelo ruim como o meu”, minha mãe repetia. “Cabelo bom é o de sua
irmã Mariinha, mas não lhe serviu de nada, ela se enfeitiçou por um zé-
ninguém. O cabelo de Zazau engana, é meio como o seu, meio como o de
Mariinha”, minha mãe assegurava. Para ajudar a domar o cabelo e para que
não nos acusassem de desleixo, ela me ensinou a trançar. Três ramas de fios
de cabelo, cruza um por dentro do outro. Um grampo na ponta impedia que
se soltasse. Mas agora eu não precisava ser domada. Carecia soltar os
bichos que moravam em mim.
A dor cresceu, minha visão ficou fraca, via gente de outro mundo, via
bicho entrando e saindo de casa, mesmo com a porta trancada, ainda que
houvesse silêncio. A algazarra morava na minha cabeça, enquanto meu
corpo suava feito uma cachoeira. Pobre da minha mãe; doente de
melancolia por causa do pai, mas não só por causa dele. Ela se sentiu
muitas vezes como eu me sentia agora, mãe não apenas de uma criança,
mas como se tudo vivo no mundo estivesse nascendo junto. Árvores, bichos
bons e ruins, o rio, a terra. Todo o sofrimento deve ter deixado a cabeça de
minha mãe fraca. Todo o desespero e depois o que vai comer e depois tem
mal de sete dias e depois tem febre porque o dente nasce e depois cresce e
cai na estrada da vida como todos os outros. E não retornam. Ah, minha
mãe, pena seu juízo estar fraco para me dizer o que fazer.
A lua me convidou a deixar a casa. Um farol me chamando à rua, luz se
esgueirando pelas frestas das telhas e da única janela. Quase não conseguia
me erguer do chão. A camisola empapada de suor e grudada ao meu corpo.
Pensei em seguir para o quintal e depois deixar na mata o que ia nascer. Se
eu chamasse minha irmã para me amparar, ela tentaria me impedir. Ela pode
mais do que eu. É mais forte do que eu. Ela cuida de todos e sua vontade
sempre vai prevalecer. De modo que só me restava sair sem alvoroço e parir
em qualquer lugar longe de casa.
Levantei a barra de madeira que reforçava a fechadura da porta. “Nunca
se sabe”, meu pai disse antes de prender a barra. “O mundo mudou bastante
e a bandidagem está por toda parte. Nos tempos de seus avós, o povo
dormia de porta aberta”, ele dizia. Não pude deixar de pensar nele, e de
pensar também como Deus era bom. Levou meu pai para fora de casa.
Talvez ele tivesse me mandado embora depois de uma surra ou me matado
de tanto bater. Uma filha desonrada merece morrer, era o que os homens
diziam na Tapera. Por isso as mulheres enchiam a mata de anjinhos. Ou
então meu pai caçaria o moço traiçoeiro, o que trouxe uma nesga de
esperança à minha mãe, e o obrigaria a reparar o malfeito. Antes meu pai
longe, com certeza teria sido pior se estivesse por perto.
Enquanto meus pés se arrastavam procurando o alívio que meu corpo
precisava, os animais deixavam a trilha por onde eu caminhava. Entravam
nas moitas, voavam pela noite e adentravam os rios sorrateiros. Tudo iria
melhorar quando o Mal deixasse meu corpo. A cabeleira se tornou um
fogaréu e verteu chamas pelo caminho gota a gota. Minhas mãos,
embrutecidas, ajudariam no que precisava ser feito.
A correnteza tentou me levar em direção à baía. Finquei os pés na areia
para me segurar. O Paraguaçu era o caminho de toda uma vida, e do povo
que andou por essas terras antes de nós, e tornaria mais leve e mais pesado
o meu fardo. Mais leve por não precisar carregar um dos muitos pesos que
as mulheres carregavam pelo resto de suas vidas. Mais pesado por, mais
cedo ou mais tarde, ter que acertar as contas com Deus. E minha boca se
abriu como se fosse engolir o céu inteiro sobre minha cabeça, sem que dela
saísse uma palavra. Senti um corpo deixar meu corpo, um bicho que nasceu
e afundou.
“Luzia! Luzia!”
Alguém me chamava. Alguém me fazia despertar daquele mal-estar. A
valentia de passar por tudo sozinha, como um animal, me deixou sozinha
outra vez. Voltei meu rosto para a terra e vi Zazau entrando no rio. Fui
tomando consciência de estar só, desvalida no meio das águas, e de que em
breve seria vista pelo povo da Tapera. Nesse despertar eu senti que o
menino seguiria a correnteza em direção ao mar quando o umbigo que
ainda me ligava a ele deixasse meu ventre. O filho rejeitado ainda estava
preso a mim por um cordão de carne. Ao ver o desespero de minha irmã, eu
segurei as pontas das minhas vestes com as duas mãos e coei o menino que
nasceu debaixo d’água. Coei como um pescador levanta a malha de apanhar
peixe na hora certa.
Minha irmã segurava meu braço com força, parecia ter medo de se
afogar. “Vamos sair daqui”, e me recordo de escutar seu medo. “Vamos sair
daqui, Luzia, antes que os vizinhos nos vejam.” Eu, minha irmã, o menino
coado, banhado de lua, os restos de parto presos ao pequeno corpo, e minha
vida, inundada de rio, nunca mais seria a mesma.
13

Minha mãe despertou e olhou para a rede que Zazau balançava no único
cômodo de dormir de nossa casa. “Balançando a rede sozinha, minha filha,
está variando?” Zazau permaneceu quieta, sem nada dizer. Eu continuava
deitada na esteira, sem dormir com a agitação da noite, sem conseguir
reagir a nada, alheia a tudo. Minha mãe se recostou na cabeceira da cama e
com muito esforço tentou se levantar, sem conseguir. Continuou tentando
depois de uma pausa. Se ergueu assim mesmo, fraca a olhos vistos, se
esgueirando pela parede até chegar à rede. Ela sabia o que tinha acontecido.
Abriu a rede e viu o menino dormindo, suspirando, e exclamou para Zazau:
“Ele é clarinho, ela tem a barriga limpa!”. Era o que escutávamos quando
nascia uma criança mais clara na Tapera. Minha irmã permaneceu em
silêncio. E minha mãe, no seu estado de fraqueza, disparou perguntas e
mais perguntas a Zazau, que parecia não ter vontade alguma de responder:
se cuidou do umbigo, se a criança já tinha mamado, se tinha pedido a dona
Nita, a parteira de unhas sujas, o ferrado para me aliviar dos gases. “Não
precisa dizer que o filho é de Luzia”, falava, olhando para a esteira onde eu
estava, “diga que é o meu derradeiro. Não devemos dar satisfação à gente
da Tapera. Olha para isso, Zazau”, ela disse com os olhos marejados, ao
mirar mais uma vez a rede. “Seu pai não vai se zangar quando voltar para
casa. O coração há de amolecer quando ele vir o menino.”
Mas se pôr de pé de qualquer maneira para espiar o neto, o neto que
povoava seus sonhos de redenção, depois de passar tanto tempo deitada
sofrendo de melancolia, cobrou seu preço. Logo minha mãe estava de novo
apática, como em todos os dias que antecederam àquela chegada. Fui me
levantando aos poucos, mas não me aproximava da rede. Minha irmã não
me deixava a sós com a criança, parecia ter medo do meu juízo, duvidava se
estaria perfeito, depois de parir dentro do rio e planejar deixar a criança por
lá; depois de pular da árvore e zanzar pela casa; depois de tomar banho de
rio à noite sem medo de adoecer. Ela preparava o mingau no velho papeiro
de esmalte que serviu boa parte dos nossos irmãos. Não me perguntou se eu
tinha leite nem se gostaria de dar de mamar. Estava decidida a me manter
afastada até ter a certeza de que nada ruim pudesse acontecer a partir de
minhas mãos.
E logo, sem que soubéssemos como, começou a correr notícia na Tapera
de que tinha nascido criança em nossa casa. Uns diziam que era de Zazau,
outros que o recém-nascido era meu. Outras notícias davam conta de que
Alzira, minha mãe, havia parido mais um filho. Que a doença que a deixou
acamada era doença de prenha. Zazau estava exausta e só por isso não
desmentia, apenas agradecia quando alguém aparecia na janela mais pela
curiosidade, pelo mexerico, do que pela cortesia que se prestava quando se
tinha notícia de nascimento. Até que um dia minha mãe, ouvindo o rumor
de gente arrodeando a casa, perguntou:
“Quem é, Isaura?”
“O povo da Tapera, dona Mira querendo saber se a senhora ganhou
menino”, minha irmã respondeu.
“Pois deixe que pensem”, disse minha mãe, “ninguém precisa saber o
que se passou nesta casa.”
Dias e dias, eu já estava de pé como estive desde sempre. Zazau
continuava a embalar o menino na rede, a alimentar, a mostrar ele para
minha mãe na esperança de que sua presença a curasse da melancolia. Não
falávamos sobre mim, sobre minhas obrigações, nem sobre o futuro da
criança. Falávamos do menino como se fosse alguém que estivesse ali há
muito tempo. Como um de nós. Existia entre mim, minha irmã e minha mãe
um trato não dito. Para aliviar o fardo de Zazau, eu me ocupei mais de
minha mãe, de lavar as roupas, de cuidar da roça, coisa que não gostava de
fazer, mas reconhecia a necessidade. Era a batata-doce e o inhame e o aipim
e o peixe que nos alimentavam. Cuidava não como os cobradores queriam,
mas como minhas forças e vontades permitiam. Plantava a manaíba,
retirava o mato, colhia o milho. Joaquim já havia seguido em definitivo
para a cidade e só tínhamos notícias, dele e de meu pai, por seu Valter.
Durante aquele tempo eu não olhei para o menino, não o carreguei nem
embalei, nem troquei fralda, nem queria falar dele. Mas lavava as roupas de
doação da igreja trazidas por Zazau quando já não era segredo que tínhamos
uma criança em casa. Para compensar seu trabalho, eu cuidava das duas, de
minha mãe e de minha irmã, com todo o zelo.
Num fim de tarde de setembro, meu pai adentrou a porta, como se
estivesse retornando da mesma roça abandonada. Estava mais escuro de
permanecer ao sol e com as mesmas roupas surradas. Chegou cabreiro e
desconfiado. Adentrou o quarto e chamou por minha mãe. Aquele rosto de
mulher de pouco mais de quarenta anos, envelhecida pela vida, se iluminou.
Mas já não era o brilho de antes, era como uma flor mirrada se abrindo no
fim da florada. “Quer dizer que você teve menino, Alzira, e nem me disse
que esperava?”, meu pai perguntou num tom que não era nem severo nem
carinhoso. Minha mãe ficou sem entender o que ele dizia por um tempo, a
boca aberta, procurando uma maneira de desfazer a confusão. Entrei pelo
meio: “Fale, minha mãe, que a senhora ficou receosa de atrapalhar a lida do
pai e fazer que voltasse às pressas”. “Ora, mas que bobagem, onde já se viu,
se é meu filho”, disse meu pai. Minha mãe olhou para mim, depois olhou
para Zazau, atordoada com aquele disse me disse, e talvez tenha percebido
ser o menino a salvação a trazer meu pai para casa, se a verdade que
pertencia apenas a nós três não fosse descoberta. “Você queria que eu
fizesse o quê, Mundinho? Do jeito que você deixou essa casa era como se
nunca mais fosse voltar”, foi o que ela disse, num sinal para que nós
continuássemos a prestar nosso falso testemunho. “Tenho meu orgulho,
Mundinho, não podia exigir que você voltasse sem vontade”, minha mãe
falou, olhando para mim e percebendo a confusão chegando em boa hora.
“Joaquim deve ter dito que eu não andava bem de saúde, você voltou para
cuidar de mim?”, perguntou entre lágrimas. Meu pai baixou os olhos,
envergonhado do que tinha feito, mas sem pedir desculpas. “Nunca na
minha cabeça, Alzira, passou que você fosse ter um menino temporão”, ele
disse baixo, “tanto tempo depois de nascida Mariinha.”
Meu pai se acercou da rede onde o menino dormia. Zazau olhava de
longe, a boca ainda aberta, sem acreditar nos rumos que o boato da Tapera
havia tomado. “Olha, e não é que ele parece com minha avó índia, dona
Didita, a mãe de meu pai que me criou”, comentou, olhando para a rede.
“Ela era assim, mais clara, e tinha o cabelo escorrido como o de Mariinha.
Que barriga farta, Alzira, seis filhos e nasce mais outro… nós que já somos
avós!” “É coisa de Deus mesmo”, minha mãe disse, dessa vez indo longe
demais ao colocar o nome santo no meio da mentira.
Quarenta e alguns anos não era tão tarde assim para uma mulher parir
um filho. Tinha muitos casos na Tapera de mãe e filha, sogra e nora, que
ficavam de barriga no mesmo ano. Minha mãe se uniu a meu pai ainda
muito nova, quando ainda tinha os peitos miúdos, ela nos dizia. Contava
não saber o ano com medo de que tivéssemos pressa de casar e parir. Só
minha irmã Mariinha se apressou a sair de casa e ganhar o mundo. Eu e
Zazau ficamos e nos aproximávamos dos vinte anos e ainda esperávamos
marido. E a mãe, se não fosse a melancolia, era bem capaz de estar parindo
mais filho.
Mas a notícia que trouxe meu pai de volta para casa não tinha corrido só
a Tapera. Chegou à igreja, Zazau soube ao recolher doações de roupa para
vestir o menino. Logo os padres cobrariam o batizado, escreveriam o nome
do bendito no livro de batismo. A notícia havia chegado à capital,
alcançado meu pai. Chegou também a Joaquim, meu pai disse, que só não
retornou porque estava trabalhando na construção do edifício e não teria
folga para viajar à Tapera. Meu irmão deveria estar espantado, tamanha
inocência. Como não soube e não desconfiou que a mãe esperava menino,
deveria estar se perguntando.
“E o que você vai fazer agora, Mundinho?” “Não sei, Alzira, lá na
cidade não falta trabalho e mando dinheiro para casa”, respondeu. “Pouco
dinheiro e o trabalho que você abre a boca para dizer que tem é uma ilusão.
Antes você na roça, pelo menos tem o pão, a batata-doce, o inhame e os
temperos. É aquela mulher, não é?”, perguntou com a voz baixa. “A vadia
que você foi atrás?” O semblante de meu pai se modificou, e ele jurou
nunca ter tido outra mulher e que foi para a cidade por nossa causa.
Convivia há tanto tempo com meu pai que sabia, por seu tom de voz e
expressões do rosto, quando não falava a verdade.
Saí do quarto e Zazau carregou o menino para fora. Deixamos os dois,
pai e mãe a sós. Talvez precisassem daquele momento para poder acertar as
diferenças e refazer o que parecia desfeito entre eles. Talvez meu pai
percebesse a fraqueza da mulher e, se ela continuasse definhando na cama,
sendo devorada pelo desânimo, iria embora mais rápido do que
pensávamos. Ele não podia abandonar a mãe de seus filhos, deixar a casa, a
tarefa de terra e a família ao deus-dará. Eu me sentei num toco de árvore na
porta de casa e Zazau se sentou em outro toco na extremidade. Corria a
brisa, não agitava os coqueiros nem as árvores que nos abençoavam com
suas sombras para tornar o calor do vale do Paraguaçu suportável. Olhei
para a criança como acho que talvez não tivesse olhado nenhuma outra vez
desde o nascimento. Era um menino mirrado, magro, mas com os olhos
espertos e movimentos inquietos. Não chorava. Parecia conformado com a
mãe que o rejeitou, mesmo que não tivesse discernimento para
compreender. Ele sente, minha irmã refutaria se pudesse ler meus
pensamentos. Mas eu experimentei de novo alguma coisa no meu peito,
alguma coisa que não sabia dizer o que era. Olhei muitas vezes,
disfarçando, enquanto minha irmã o distraía fazendo sons com a boca para
fazê-lo sorrir, sem que o menino de olhos atentos fosse capaz de
corresponder. Senti paz em meio à revolta ao ver o menino ali ao meu lado,
bem cuidado, e que de alguma maneira sua chegada poderia ajudar a reunir
meu pai e minha mãe de novo. Minha mãe precisava, não soube superar o
afastamento de meu pai, e definhava, sem que tivéssemos mais a esperança
de vê-la despertar da doença, da tristeza sem fim, mais uma vez.
E o tempo me diria: a emoção sem nome era algo forte que eu tornaria a
sentir.
14

Minha mãe morreu no dia de são José, no mesmo dia em que meu pai
plantava na tarefa de terra o milho a ser colhido em junho. Não se queixou
de dor, não ouvimos nenhum lamento nem mesmo desespero. Se foi em
silêncio, um pássaro caindo do ninho quando o coração perde o fôlego.
Minha mãe estava leve e magra e o caixão se tornou grande demais, uma
caixa sem renda e flores que dessem conta de preencher o vazio deixado por
seu corpo mirrado. Parecia uma criança e cheguei a propor à minha irmã,
numa lamúria sem fim, se não seria melhor trocar a urna grande por uma
menor. Pagaríamos prestações menores e ela estaria mais bem acomodada.
Eu mesma fui buscar meu pai no roçado. “Ela não se levantou e está
fria”, disse em meio à terra preparada para receber as sementes de milho.
Ele deixou tudo por lá e nem passou por sua cabeça que poderiam levar as
sementes do plantio, como descobrimos mais tarde que eram capazes de
fazer. Quando chegamos em casa, Zazau estava sentada na cama e chorava
sem conseguir olhar para nossa mãe. As lágrimas vieram como um rio e eu
dei por fé de que não poderia mais contar com minha mãe. Quando minha
irmã Zazau se casasse, quando o pai se fosse para junto da mãe, eu estaria
só. Meus irmãos já tinham caído no mundo e não davam sinal de querer
retornar. Quem vai querer se casar com uma aleijada, não foi o que pensei
naquela exata hora, mas era o que passava por meus pensamentos desde que
a corcova tinha despontado em minhas costas e a aceitei como meu fardo.
O menino se aproximou e segurou os meus joelhos. Ele começou a dar
os primeiros passos havia um mês. Era uma criança atenta e olhava para
nossos rostos; mas, incapaz de perceber algo diferente, continuou a brincar
com o carro de madeira. Eu senti conforto com aquele toque e me
penitenciei por não ser tão generosa como minha mãe tinha sido com os
filhos. Mas agora era tarde e Inês é morta, era o ditado que nos dizia quando
se deparava com algo que não poderia mais desfazer. Sem minha mãe era
mais difícil contornar toda a mentira que compartilhamos de que o menino
era seu filho, que era meu irmão e de Zazau. Aquela história tinha sido
inventada por nós e precisaríamos sustentar o que dissemos até o fim. Não
era só meu pai que havia sido enganado; a Tapera havia sido enganada e os
padres da igreja também. Deixe que Deus nos castigue assim, aos poucos,
pelo que fizemos. O que aconteceu à minha mãe era a prova de Sua ira. Mas
acertar as contas com Deus era menos complicado do que acertar com a
Tapera e com meu pai, que se sentiria traído não só pela mulher, mas pelas
filhas que ainda estavam ao seu lado, vivas. Não haveria como perdoar
tamanha mentira. Minha mãe poderia ser perdoada, afinal as razões dela
eram aceitáveis. Nas suas rezas era assim que deveria se acertar com Deus,
que tudo tinha sido por um motivo importante.
Em meio à sentinela, Zazau foi para o único telefone público da Tapera
tentar se comunicar com os que estavam longe. Joaquim já havia sido
avisado por seu Valter. Chegaria pela madrugada a tempo de se despedir.
Minha irmã não conseguiu falar com Humberto, que tinha partido havia
anos para a Amazônia, onde trabalhava nos seringais. Talvez algum dia lhe
chegassem notícias sobre nossa mãe. Raimundo, que morava para os lados
de São Paulo, lamentou, falou muito em Deus, mas era isto, mais não
poderia fazer. Por último, Zazau conseguiu falar com o telefone da fazenda
onde morava Mariinha, e nossa irmã, aturdida, prometeu viajar sem, no
entanto, conseguir chegar.
Antes de Zazau sair carregando pedaços de papel velhos com os
números, as carpideiras chegaram para velar minha mãe na sala de casa. As
beatas cumpriram a vocação de chorar pelos que se foram. Não recebiam
dinheiro das famílias porque, exceto Mãozinha e Chico da Colmeia, o povo
da Tapera não tinha onde cair morto. Até os caixões eram comprados a
muitas prestações. Elas eram tidas em alta conta pelos padres, e por isso
encorajadas a chorar pelos mortos, sem se importar se foram bons ou maus,
compadres ou desafetos. Se tratava das mesmas fofoqueiras que
apregoavam mentiras no dia a dia da aldeia, que insuflaram a maledicência
na Tapera e fizeram a desgraça desabar sobre nossa casa.
Naquele dia de aflição, ainda pude me perguntar se esse não seria meu
destino também. Talvez, se eu ganhasse alguma função na Tapera que me
libertasse da mácula com que me marcaram, pudesse ser deixada em paz.
Unida às beatas, me restaria apenas rezar e falar mal da vida alheia. Seria
como elas, rezando pelas almas com a boca luminosa e pregando a
discórdia com a alma obscura. Seria perdoada pelo passado e ao mesmo
tempo me penitenciaria por meus pecados. Sem que o corpo tivesse
esfriado, lá estavam elas entre rezas e lágrimas, dizendo que minha mãe
tinha deixado um menino pequeno, que tinha partido para a casa do Pai
ainda nova, e que sina a das filhas, duas moças; qual das duas cuidaria do
irmãozinho?, ou Mundinho se casaria de novo?, cochichavam entre elas,
apostando como velhas viciadas em jogo do bicho. Não havia por que ter
raiva, mágoa, esse era o jeito do povo da Tapera.
Depois da missa de sétimo dia, Zazau me disse que o padre havia lhe
perguntado se ela não poderia lavar a roupa do mosteiro; a antiga lavadeira
já não podia com a erisipela lhe comendo as pernas, como a melancolia
devorou a alma de minha mãe. Zazau disse que ia conversar em casa, afinal
ela cuidava do menino. Era um sinal de importância lavar as toalhas, as
cortinas, as estolas da igreja. Os padres poderiam convidar qualquer mulher
da Tapera, mas, compadecidos de termos perdido nossa mãe, fizeram um
gesto generoso à minha irmã. Ter consciência desse prestígio me fez ter
vontade de saber mais. Foi quando eu perguntei se eles pagavam alguma
coisa. “Pagam, sim, só não perguntei quanto”, ela me disse. “Então se você
não quiser… eu quero”, completei. Cuidaria da casa de Deus e dos homens
santos e assim pagaria minhas penitências, disse a mim mesma. Quiçá
acolhida pelos padres, servindo a Deus como uma boa lavadeira,
conseguisse fazer com que os vizinhos me olhassem com mais respeito e,
por fim, esquecessem do que me acusavam.
Assim, me apresentei a dom Tomás num dia de forte chuva. Com medo
de perder a vaga de trabalho andei e depois corri debaixo de um aguaceiro.
Cheguei molhada à igreja. Como eles custaram a abrir a porta antiga,
pesada, rangendo mais do que a porta de são Pedro, os entendidos diriam!
Mas olhando bem era tudo simples e tomei a bênção nas mãos de dom
Tomás, um estrangeiro vivendo no mosteiro havia muitos anos, incapaz de
falar de forma que eu pudesse compreendê-lo. Ainda bem que não seria ele
a dizer do que precisava; então logo me encaminhou para um padre jovem
de cabelo vermelho. Fui entendendo do que precisavam: as roupas de cama
estariam separadas no dia certo, era tarefa dos padres no começo da manhã
de quinta-feira recolher os lençóis usados e trocá-los por outros limpos e
passados. Na sacristia, na sala do abade e no refeitório, poderia entrar e
efetuar as trocas de toalhas, cortinas, estolas e outras peças. Levaria tudo
para lavar no rio, e depois engomaria em casa. Devolveria lavado, alvejado
e bem passado. Naquele tempo não sabia dizer se o pagamento era bom ou
não, mas era suficiente para nossas despesas.
Havia um empecilho: a quizila de meu pai com a Igreja por causa da
cobrança do imposto. Eu imaginava como contornar sua resistência dizendo
que minha mãe gostaria de me ver zelando pela casa de Deus. Ele pareceu
não se opor, sabia que eu lavava a trouxa da igreja. Eram coisas distintas na
cabeça de meu pai, ele não dizia, mas eu intuía. O dinheiro aliviava as
contas do armazém, ajudava na compra das pequenas coisas que não
produzíamos, e ainda salvava a todos nós do tormento da cobrança do
imposto, embora eu fizesse o pagamento escondido para não contrariar meu
pai.
Lavar roupa deixava minhas costas doloridas. Muito jovem estava eu
encurvada sobre o monte de roupa para esfregar e quarar, carregar de um
lado a outro e depois passar com o velho ferro de carvão. Ao mesmo tempo
fui conquistando meu lugar na Tapera. Já não vivia mais escondida nem
com medo de ser insultada e acusada de praticar magia pelos mais velhos,
pelo menos não a olhos vistos. Agora, eram as crianças a ouvirem as
maledicências em suas casas e as repetirem contra mim. Tocavam minha
corcunda e faziam um pedido, repetindo crenças tolas. Me ofendiam, mas
as ofensas não me provocavam o mesmo pavor das pessoas mais velhas,
que poderiam ser perversas se quisessem. Ser a lavadeira da igreja também
era sinal de algum respeito, e qualquer maldade contra mim teria o repúdio
dos padres.
Ali, no espelho d’água do Paraguaçu, vivi por longo tempo cercada da
brancura dos tecidos. O rio refletia o branco e muitas vezes a luz me cegava
por breves instantes. Eu procurava um lugar bom para limpar as roupas.
Batia os lençóis nas pedras, esfregava o tecido encardido e amarelado entre
os nós dos dedos. Aquele rio, e isso não saía de minha cabeça, era o rio
onde muitas fizeram o mesmo antes de mim. Águas que não lavaram apenas
a roupa da Tapera, dos donos das terras e dos padres. Lavaram nossas
mágoas e renovaram nossos sonhos. Limparam nossos corpos das aflições
que nos consumiam e carregaram segredos que não podiam ser contados.
Foi ali que o menino nasceu e eu, por mais que não soubesse como dizer,
pedia que ele crescesse forte e bem-aventurado. Com meus pés nas águas,
eu já não era apenas uma corcunda, um cabelo crespo e trançado e a pele de
mãos que afinavam de tanto usar barrela para deixar tudo mais branco.
Entre as águas e os sentimentos, meu corpo era a própria correnteza.
15

E o tempo passou entre as chuvas, os camboeiros, certeiros, entre o sol e o


mormaço de todos os tempos. E o vento correu os vales, a baía, o
Paraguaçu, o vento correu as casas e trouxe boas novas e também
atribulação. Levantou a poeira e derrubou o caju no chão. O vento carregou
as folhas das amendoeiras, carregou ofensas e cuidados, desgastou a terra
batida, o calçamento das ruas onde pisávamos. As águas subiram do leito e
inundaram as margens em anos de aguaceiros sem fim. Depois baixaram
para o lugar de sempre e o mato cresceu muitas vezes generoso no rastro da
chuva. Cavalos e jegues perambulavam soltos, comendo com paciência o
verde que havia se tornado praga.
E meu corpo foi mudando junto com tudo à minha volta: ora era rio, ora
era vento, ora era mato e tudo junto crescendo nos descampados. Minha
trança foi se tornando grisalha e ninguém mais acreditava que sob a casca
usada, doente e antiga, habitava uma mulher-moça. As costas me pesavam
ainda mais do que as trouxas e só me restava me apegar ao meu Bom Deus
e aos santos, ouvintes dos meus lamentos, que nada diziam sobre a tristeza
mas que pelo menos não faziam intriga com a gente mexeriqueira da
Tapera. Lavava as roupas às quintas-feiras quando as recolhia da igreja e
dos aposentos do mosteiro. Era como se eu, diferente das outras mulheres,
tivesse as chaves da casa de Deus, mesmo que isso não fosse de verdade.
Precisava bater nas portas, olhava para o chão por quase todo o tempo, era
invisível aos olhos dos padres. Fazia com todos os panos uma grande trouxa
que equilibrava na cabeça. Era tratada com confiança, como filha de Deus e
Nossa Senhora, e não iria triscar em nada que não estivesse sob meus
cuidados. Abençoada pelo Divino, não corria mais o risco de ser acusada
dos azares e das derrotas da Tapera, muito menos de bruxaria e de pacto
com o Diabo.
Zazau rumou para longe no ano seguinte, às vésperas da festa de são
Pedro, quando tínhamos cumprido o luto pela morte de nossa mãe. Foi
quando chegou um caixeiro, vendedor de panelas, que viveu por meses
entre nossa gente vendendo toda sorte de quinquilharias. Levantou barraca e
a fez de venda, ajudou o povo a assinar com os dedos sujos de tinta
promissórias que custava a pagar. Era agradável e cortejava as moças com
sua lábia contida sem ser desrespeitoso. Encontrou minha irmã pelos
caminhos e ela percebeu ter chegado o seu momento de partir, assim como
ocorreu com todos os outros. Foi preparando o terreno da nossa convivência
com vagar, insinuando a partida, falando bem de Belmiro e que em
nenhuma hipótese ele era como o zé-ninguém que havia levado Mariinha
para longe, muito menos como o homem que tinha me desonrado. “E o
menino?”, perguntei. “Ele está tão acostumado com você.” “Eu também”,
minha irmã me disse, “mas o pai gosta dele, é ‘filho’, Luzia, como vou
explicar que vou levar o menino?”, me devolveu a pergunta. “Mas não há
maneira de você ficar por aqui, Zazau? Convence Belmiro de que você
precisa estar perto do pai.” “Difícil, Luzia, ele juntou o que precisava e vai
comprar casa e roça na terra onde nasceu, não quer passar a vida como
caixeiro. Você sabe que aqui não tem futuro, não tem terra, não dá para
comprar e dizer que é nosso, é tudo da Igreja. Ficar aqui é se submeter ao
que Mãozinha e Chico da Colmeia querem. Contando dinheiro de imposto
com aquela mãozinha”, disse rindo, mas sem tirar descontração de minhas
expressões.
Um dia ela se foi numa Brasília onde tinha um espaço no fundo para
amontoar as panelas não vendidas. Ela afagou a cabeça do menino muitas
vezes, e nesse dia ele pareceu indócil, arisco, tudo que encontrava pela
frente atirava sobre Zazau. Ela pediu: “Pare, pare, Moisés”, sem conseguir
fazer com que o menino obedecesse, e ele persistiu com a malcriação.
Quando percebeu que ela iria embora, se agarrou às suas pernas e abriu o
berreiro. Ela tentava falar: “Calma, vou voltar, não demora, você vai ficar
com a mãe”, e corrigiu assustada, “com a irmã Luzia”, mas o menino
chorava e esperneava. O pai chegou da tarefa de terra e deu a bênção a
Zazau e Belmiro. Pediu: “Cuide de minha filha”, e o menino berrava mais
alto. O pai disse: “Vá-se embora, Zazau, o menino é muito dengoso, depois
se acostuma”. Ela me disse no ouvido: “Cuida dele, Luzia, tenha paciência,
o que você tinha de tristeza e raiva já passou, vocês vão se dar bem”. E, se
tentou olhar por trás da poeira seca que o carro levantou, deve ter me visto
segurando os dois braços do menino, incontrolável, eu tentando fazer com
que ele ficasse de pé. Recebi chutes, mordida na mão, tão genioso desde
cedo e eu nem tinha ainda absorvido tudo por completo, de ser a última
filha e a que não iria embora, a que aguentaria a bebedeira e os maus
humores do pai e ainda por cima teria que cuidar da criança com quem não
conseguia ter afinidade. Um menino que continuaria a ser um estranho por
muitos anos. Senti vontade de chorar e fazer o que ele fazia, chutar o que
havia pela frente e gritar e perguntar: “Volte, Zazau, volte, como vou
aguentar a Tapera sozinha?”. Mas me contive e, como não havia nada que
fizesse o menino se acalmar, recorri à educação das mulheres da Tapera, dei
dois tapas nas pernas dele e senti remorso por ter feito isso, mas era como
se minha mãe soprasse em meu ouvido: tome as rédeas senão ele vai te
fazer de gato-sapato. Os tapas não o fizeram parar com o escândalo, mas
passou a temer por mais e se sentou soluçando, cansado. Quando dormiu,
derrotado de tudo, eu o pus na rede e o cobri com o manto de Zazau. Desde
o seu nascimento, era a primeira vez que ficávamos a sós. Não poderia ter
sido pior, porque eu sequer o chamei pelo nome e nem mesmo pedi com
paciência que se comportasse.
Depois o menino foi se acostumando à nova vida e Zazau se tornou uma
lembrança distante. Eu lhe dava banho e punha a refeição no prato, limpava
a roupa e as sujeiras e lhe dei um lugar especial nas minhas rezas, dia após
dia. De pequeno eu torcia o pepino, e o menino passou a acatar minhas
ordens, sem deixar nenhum espaço para que reclamasse. Seguia comigo
para a igreja, para o pomar, para a terra de quando em quando, porque eu
não tinha com quem o deixar. Na igreja, se tornou conhecido dos padres e
assim pôde entrar na escola quando pedi por seus estudos. O menino vez ou
outra me contrariava, amolava os padres e me dava dor de cabeça. Eu o
castigava para que não repetisse o malfeito.
Foi assim que cresceu e se tornou rapaz, inquieto, bravo feito um bicho
da mata, com a língua ferina de quem não leva desaforo para casa. Se
perdia entre as crianças e trepava no cruzeiro da igreja e lá vinha
reclamação dos padres. Toda a minha contenção, a privação que passei para
ser livre e digna para o povo da Tapera, despontou sem rédeas no menino.
Mexia em tudo, queria saber de tudo, perguntava dia sim outro também pelo
próprio nascimento, como se me implorasse a verdade. Às vezes se perdia
quieto, nos poucos momentos em que parecia ter alguma paz, olhando
barcos e jangadas deslizando no Paraguaçu. Me dizia enquanto eu lavava as
roupas na beira das águas: “Ali na boca do rio, na saída onde nossa visão
não alcança, está o caminho para a cidade e eu vou embora”. Eu o
incentivava, dizendo: “Então estude e não fique desperdiçando seu tempo
com confusão na escola”. Não dizia mais nada, não dizia que sim nem que
não, mas pensava, sim, você deve ir mesmo, Menino, a vida na Tapera é
vida de fraqueza e de necessidade sem fim, então estude e tome seu rumo
para não acabar como eu, lavando roupa, ou como Zazau, dependente de
marido, ou como Joaquim, que não consegue dinheiro nem para vir aqui
mais vezes, ou como Mariinha e Humberto e Raimundo que caíram na
estrada e nunca mais voltaram. Bem de vida não ficaram e eu tinha perdido
a fé de que algum dia voltassem.
Nos meus dias de mais nervoso, de mais desalento, e quando não
conseguia de nenhuma maneira fazer com que parasse de me aborrecer, e se
meu pai não estivesse por perto, eu repetia para ele uma mentira; de todas
era a que mais tinha jeito de verdade: “A mãe morreu de desgosto depois de
você nascer. Teve melancolia, foi parto difícil, você era desse jeito desde a
barriga, inquieto, ficou atravessado e ela já não era nova e não aguentou”.
Ele me olhava com ar envergonhado, imaginava mil coisas, e contra aquela
história não havia como pedir perdão. Eu o olhava, com a mente e o
coração perdidos em algum lugar além da janela, sem sentir remorso. Sofria
com ele, os dois juntos, mas não me arrependia do dito: depois de tudo, eu
havia morrido de alguma maneira, porque nunca mais fui a mesma.
16

Quando ele já era um moleque, lia bem e andava com um livro para cima e
para baixo, e cumpria ofício como coroinha na missa para minha graça e
satisfação, e eu achava que tudo caminhava, aos trancos e barrancos, ele me
contou um segredo. Um segredo que eu preferia não saber. Minha reação à
revelação não foi a correta, hoje eu sei; mas foi a única reação possível para
tentar salvar a mim e a ele.
O que ele me contou sobre o padre era grave, meu Deus, e como eu iria
reagir àquela história? Primeiro é que era um menino, e meninos mentem.
Depois é que eu não tinha onde cair morta se perdesse o pagamento do meu
trabalho como lavadeira. Mas não só: o que a gente da Tapera diria sobre
mim? O Menino tinha a boca queimada de mentiras, atacava a santidade da
Igreja, portanto dessa vez o povo da Tapera não iria me perdoar. Iam dizer
que eu havia plantado aquela invenção para destruir a aldeia ou que eu tinha
enfeitiçado a criança para desviar o padre. Esqueça, Menino, esqueça tudo o
que se passa na sua cabeça, você está sonhando, nada disso é verdade.
Ponha uma verdade na sua cachola: há coisas mais importantes na vida.
Conclua seus estudos na escola para conseguir um trabalho e viver sua vida
longe da Tapera.
Eram palavras inquietas tecidas em meus pensamentos e coração, mas
não foi bem assim que chegou aos ouvidos do menino. Chegou com
palavras fortes: “Mentira, demônio, você ouviu isso onde?”, perguntei.
“Está aprendendo essas coisas com aqueles pivetes que sempre aprontam
comigo e com você. Não levante falso testemunho, Deus vai nos fulminar
com um castigo! Você deve estar vendo essa depravação nas revistas
daqueles moleques, não é?” E sentei a mão na cabeça do menino, sentei
mais outra e mais outra vez e ele pediu: “Para, Luzia, para, para”. O
enfrentei com o cipó e ele lutou o arrancando de minhas mãos. Eu estava
furiosa, perdida, como proteger o nosso mundo cheio de defeitos para não
se despedaçar de uma vez? Os meus olhos e os do povo da Tapera não
tinham presenciado aquele relato. Esqueça, Menino, não se deve prestar
atenção em tudo. “Esqueça essa mentira, onde já se viu falar de padre?
Nunca mais torne a repetir o que você me contou.”
Achava que com minha raiva, pancadas, com minhas palavras, eu iria
apagar o que havia escutado. Achei que batendo na cabeça do menino iria
fazê-lo esquecer o que, porventura, se entranhou nos seus pensamentos.
Mas não, o que eu fiz foi o encher de mais revolta, de mais mágoa, e
quando dei por mim ele tinha partido. Encontrei a porta sem a volta do
trinco e sem a barra de madeira escorando. Olhei para a rede e lá não estava
o menino, e abri as janelas para enxergar a escuridão da madrugada. Até
que minhas ideias se iluminaram e eu corri para o meu colchão e pus a mão
no forro. Não, não, meu castigo estava dado; o menino havia levado o
dinheiro e talvez tivesse se ido embora para sempre.
Se passou outro dia e outra noite e quando dei por mim era a alvorada.
Eu me vi sozinha. Meu pai estava emborcado na rede de dormir, o que
sentiria quando lhe contasse que o menino tinha caído no mundo, como
todos os outros? Me engasguei, não consegui controlar a tristeza crescendo
como um bolo de saliva na minha garganta, e os olhos lavaram meu
fracasso em ser mãe. Eu o maltratei desde o dia em que veio ao mundo.
Não, não presto, não valho nada, sou ruim, por isso a Tapera cismou
comigo, por isso o pai do menino não quis mais a mim depois de me
desonrar. Lamentei e depois se seguiu uma sensação de alívio: não vou mais
maltratar o Menino, ele não vai mais esperar por um afago meu, agora ele
cresceu, vai ser do mundo, vai aprender com a vida e ficar mais forte. Na
Tapera, o futuro não reservava nada de bom, então, aonde for viverá melhor.
Os dias se sucederam e o tempo não se importou comigo. Esperava que
se importasse com o Menino e fizesse dele um bom homem, e lhe desse as
coisas que eu não pude dar. Eu retornava à igreja e percorria os corredores e
aposentos do mosteiro para recolher as peças de roupa. Depois as
embrulhava em trouxas e equilibrava uma na cabeça e a outra levava
encangada entre o braço e o corpo. Dom Tomás me perguntou pelo menino,
e eu disse que ele tinha ido para a cidade, cansou da Tapera, foi tentar
trabalho. O abade parecia decepcionado, disse que era sempre assim. “São
uns ingratos”, lamentou por ele não ter esperado o fim do ano para concluir
o ensino. “Depois ele volta, dona Luzia”, me disse, “sempre dá errado. Uma
pessoa da aldeia não tem educação para viver na cidade, leem e escrevem
parcamente, ninguém vai querer um roceiro para trabalhar numa loja ou
supermercado”, riu com desdém. Nem passou por minha cabeça contar o
segredo, contar o que ele me fez escutar, até porque eu o havia impedido de
dizer o nome, não sabia quem era o padre. Eu não iria arriscar a paz que
tanto havia me custado, restando a mim guardar aquela história como um
delírio. Só me restava me esforçar para esquecer.
Mas aquela ausência foi crescendo, crescendo, eu não o vi mais, não tive
notícias dele. Deve ter subido em algum saveiro ou ônibus e partiu para
bem longe. Só Deus sabe para onde. Um mês depois chegou notícia de
Joaquim: o Menino tinha pousado na casa de meu irmão e procurava
trabalho. Tinha prometido se matricular para concluir os estudos no começo
do ano. Meu coração se aquietou e voltei à vida da Tapera, cuidando das
tarefas de casa, recolhendo os copos de cachaça e a sujeira de meu pai, indo
de vez em quando à tarefa de terra para ver se havia cultivo, se tudo estava
em ordem. A lavoura estava minguada, já não havia a fartura de antes. O
vício comprometia o zelo de meu pai.
Por essas coincidências da vida, comecei a sentir outra dor de dente.
Sem médico, eu consegui o mesmo frasco de remédio que Zazau conseguiu
da primeira vez para curar minha dor, enquanto esperava o menino. Como
da outra vez, não deu nem para o gasto e lá estava o dente latejando de
novo. Foi então que decidi voltar à velha árvore, a árvore para onde um dia
minha velha mãe me levou. Armada de facão retornei ao Loco, vivo,
majestoso, como o conheci. Iria me curar da dor que irradiava da boca para
o fundo do meu corpo. Tentei recordar como foi que minha mãe se
aproximou para transformar em remédio o leite da árvore. Dessa vez pulei
etapas e não acendi cigarro para a Caipora, por não saber como fumar. Não
amarrei o ojá no tronco e pensei comigo mesma ser tudo crendice,
importava apenas o leite da raiz.
No meu desespero não havia tempo a perder e mesmo a ave-maria e o
pai-nosso não saíram direito de minha boca porque a dor me comia o juízo
e não conseguia mais pensar. O padre que me deu o remédio me disse:
“Reze, dona Luzia, e amanhã vá à cidade procurar um dentista”. Mas eu
não podia ir à cidade, faltava dinheiro, o Menino tinha levado tudo. Quando
chegasse o tempo do imposto, não haveria como pagar, e apenas essa
lembrança era capaz de consumir meu juízo toda vez que surgia.
Dei uns golpes desconjuntados de facão e quase cortei a raiz inteira.
Golpeei na mesma intensidade da minha dor e, diferentemente da última
vez, era como se a árvore fosse uma inimiga e estivesse sendo violada,
atravessada pela dor. Vi o leite brotar e era tanto que encharcou o pedaço de
chão. Retirei com pressa o algodão do mato e o embebi no líquido e o pus
na boca. O leite escorreu pela boca, dente a dente, tudo adormeceu. Fui
atravessada pela lembrança de minha mãe dizendo: “Não engole, Luzia”.
Obedeci a alguns preceitos, os demais eram superstições dos antigos e eu
era filha de Deus.
Daquela vez eu não repousei em paz, como fiz com minha mãe aos pés
da árvore. Fui-me embora, não agradeci, e o leite continuava a minar da raiz
partida. Cuspi o que escorria de minha boca e quando retirei o algodão
estava tudo dormente. O alívio me alcançou de novo e segui olhando para o
alto e, já que a boca não se mexia, elevei meus pensamentos ao Bom Deus
para agradecer o remédio da mata por ter me curado da dor que me
endoidecia.
Quando a dormência passou, eu ainda caminhava para casa. A boca
voltou a se mexer e a língua tateou à volta encontrando os dentes da frente.
Dois bons caíram de minha boca e encontraram a terra. Parei, arregalei os
olhos, valha-me Deus, e me perguntei o que eu tinha feito. Depois os
dentes, um a um, deixaram minha boca e caíram no chão. Parei diante das
águas do Paraguaçu e me percebi desdentada. Imaginei: o sorriso que não
dei estava guardado para um dia de liberdade. Uma mulher como eu,
marcada pela Tapera, não poderia sorrir sem estar cedendo à tentação do
Mal. Agora não tinha mais os dentes e minha nova condição me faria quase
sempre levar minha mão à boca quando encontrasse alguém.
Tudo para não morrer mais uma vez de vergonha.
17

Um ano antes de encontrarem meu pai ferido no canavial, foi ano de


eleição. Tempo de político aparecer na Tapera e prometer aos pobres
mundos e fundos. Às vezes chegavam antes do dia da votação; outras vezes
mandavam sua gente no dia mesmo para dar um dinheirinho ou uma cesta
de comida. Carregavam o povo no pau de arara e levavam para votar na
cidade. Dessa vez, a promessa parecia boa: consertar os dentes de quem
precisava. Fui conferir a caridade que corria de boca em boca.
A hostilidade do povo da Tapera tinha recomeçado e mesmo assim
resolvi ir até a associação. Amarrei meu cabelo, vesti a roupa guardada, sem
uso, para as missas de domingo — que não existiam mais. Pus um pano
sobre os ombros para cobrir minhas costas. Cheguei de mansinho, como se
aquele lugar não fosse o meu destino. Não queria chamar a atenção. Pensei
que teria de esperar um dia inteiro e me sentar na cadeira de um dentista
para fazer o molde da minha boca. Se eu tivesse sorte, antes da eleição eu
receberia a peça com os dentes.
Mas para minha surpresa não tinha dentista nem cadeira e o que eu vi
nem pensava que poderia existir, coisa de outro mundo. Duas bacias
grandes e cheias d’água no chão: uma com peças de dentes de todo tamanho
e outra somente com água. O povo retirava a peça, a gengiva rosa, os dentes
de todo tamanho, e lavava na bacia ao lado, para depois experimentar na
boca nua até encontrar a que melhor se encaixava. Claro que a que melhor
se encaixava dançava na boca quando o afortunado falava. Mulheres
pararam na porta e riram, fizeram caretas, não tinham coragem de se
aproximar. Outros experimentavam como se provassem uma roupa no
alfaiate. Achei que iria golfar na frente de todo mundo porque o café ralo da
manhã veio até a boca do estômago. Pus a mão no rosto para segurar o
enjoo e clamei por misericórdia, para depois sair de fininho e retornar a
casa.
No meio do caminho uma cambada de meninos se aproximou. Queriam
tocar na minha corcunda, fazer pedidos em voz alta, me humilhar, rir da
situação. Eu movimentava os braços, olhava para trás, tentava de todo jeito
me libertar daquele martírio. “Maldita a hora que saí de casa para ver
aquela imundice”, praguejei, e retirei o pano das costas golpeando o ar para
tentar afastá-los. Pediram para eu sumir ou virar lobisomem ou uma
caipora. “Vão amolar suas mães, demônios, me deixem em paz!”, gritei.
Um deles atirou uma amêndoa encontrada caída, úmida, que se estourou
com força em minhas costas. Os outros se animaram na mesma medida e
começaram a catar a fruta e atirar. Apressava meus passos quando ouvi a
voz de uma mulher gritar e amaldiçoar os moleques, perguntando se eles
não tinham o que fazer. Que fossem estudar, gritava, e um deles respondeu:
“Agora não temos mais escola”. “Vão lá na associação e peçam aos
políticos”, ela retrucou, demonstrando domínio para afugentar as pestes.
Não me interessei em saber quem era, mas achei estranho que uma das
mulheres estivesse me defendendo das regras da própria Tapera.
Ela também apressou os passos, se aproximou de mim e perguntou se eu
precisava de alguma coisa. Respondi que não carecia de nada. Agradeci,
mas seca, só para não ser tida como mal-educada. Ela insistiu: “Vou
acompanhar a senhora até sua casa, estou a caminho das bandas de lá
mesmo”. Respondi de novo que não precisava e pensei com meus botões:
era só o que me faltava, andar com uma protetora. Parei e olhei melhor para
seu rosto. Fiquei surpresa: era a perdida, a rapariga, agora mais velha, como
eu, e mais parecida ainda com uma cafetina. Tinha o cabelo pintado de
preto, mas as raízes grisalhas mostravam que não era mais a mesma mulher
de encantos que havia feito os homens da Tapera se perderem.
Ela se pôs ao meu lado e eu diminuí os passos, e perguntou se eu era
filha de Mundinho. “Sou Zoraide”, ela disse, “andava aqui quase todos os
anos, mas depois a vida foi tomando um rumo diferente.” Achei que queria
saber de meu pai e estava dando voltas, então disse com rispidez: “Ele está
bebendo e deve estar lá na roça, no tabuleiro, se a senhora quiser falar com
ele”.
Ela pareceu não se importar com meu mau humor e continuou a
caminhar ao meu lado. Falava pelos cotovelos, como se fosse contar a vida
inteira na tripa de caminho que separava a casa da associação. “Sabe…
como a senhora se chama?”, perguntou. “Sabe, dona Luzia, eu moro na
capital, e se eu passar um mês aqui na casa dos parentes, quando eu volto
para lá acho tudo diferente. Mas esse lugar não muda uma filigrana e estaria
do mesmo jeito, se não fosse a igreja queimada. Parece maldição porque os
mais velhos contam que essa igreja já queimou num incêndio há duzentos
anos” — cada um aumentava um ponto —, “não sei, mais ou menos isso,
alguns diziam ter sido há cem anos, e agora ela queimou de novo.”
“Vontade de Deus”, cortei a conversa, “vá ver tem planos melhores para
Sua casa.” E ela explodiu numa gargalhada que me fez parar, assustada.
Olhei ao redor para ver se tinha alguém nos observando. “A senhora acha
mesmo”, ela me perguntou, “que Ele iria queimar a igreja para depois fazer
tudo de novo?”
“Deus sabe o que faz”, respondi.
Conversa demais para um caminho pequeno e lá estava eu na porta de
casa agradecendo a companhia. Mas ela não se deu por cansada nem se
importou com minha despedida, nem demonstrou interesse em tomar seu
rumo, seguir seu próprio dia, continuou a tagarelar na porta e eu não tive
escolha senão mandar entrar e se sentar na cadeira quebrada. “Não cai não,
está bem escorada”, informei. A vadia estava velha e nem de longe tinha a
beleza de outros tempos. Atentei que minha mãe estava ali, no retrato,
olhando para a mulher responsável por sua desgraça e, decerto, nada feliz
com a visita.
Zoraide suava feito cuscuz e me pediu um copo d’água. Olhei para suas
pernas escuras, a roupa era de pouco pano, deixando a fartura de carne à
mostra. Não teria coragem de me vestir daquele jeito, ah, isso não. Mas ela
parecia não se preocupar, queria apenas falar, pôr para fora o que a
atormentava. Me falou dos anos sem vir à Tapera quando esteve casada e
trabalhando. O marido era ciumento, afastou ela da família. “Trabalhei de
tanta coisa, dona Luzia, vendi comida na rua, trabalhei em casa de família,
em quitanda, armarinho. Sei fazer conta como ninguém”, me explicou.
“Criei três meninos. Estão encaminhados na vida. O marido? Caiu no
mundo, foi atrás de uma vagabunda mais nova.” Não conseguia interromper
o falatório, era como se estivesse num confessionário e só me restava ouvir.
O tempo passou e parecia que não tínhamos mais nada a dizer. Peguei
minha sacola de costura e comecei a fazer fuxicos. Ela arfava e falava de
novo, dizendo que os fuxicos eram mesmo bonitos. Depois falava consigo
mesma e eu comecei a rezar em pensamento para que fosse embora. Entre
um gesto e outro tentava encontrar na minha memória a Zoraide fagueira,
rindo entre os homens, parecendo livre de tudo e sem se importar com os
outros.
“Que crianças mal-educadas, dona Luzia, a senhora não pode deixar
fazerem isso não. Quando for à rua, carregue um pedaço de pau e o levante
assim”, ergueu o braço e eu vi a carne, antes rija, balançar. “Não precisa
atirar neles, só o gesto afugenta. Onde já se viu desrespeitarem uma
senhora?” “A Tapera não gosta de mim”, retruquei, e ela quis saber o
porquê. “Quem sabe, dona Zoraide?…” “Não, por favor, dona Luzia, não
me chame de dona, temos idade para sermos irmãs.”
Bom, minhas irmãs eram distintas, mas isso não vinha ao caso, e me
senti no direito de também pedir que retirasse o “dona”.
“Essa gente de interior é assim, quanto menor o lugar, mais gostam de
falar da vida alheia” — Zoraide continuou. “As mulheres daqui também
não gostavam de mim, eu sei. Me chamavam de puta pela frente e pelas
costas com ciúme de seus homens. Que culpa eu tinha? Elas poderiam ter
aprendido a fazer o mesmo. Esses homens da Tapera nunca me disseram o
que fazer.”
“Mas seu marido ciumento te prendeu. Pimenta nos olhos dos outros…”,
deixei escapar. Zoraide arregalou os olhos. Pronto!, agora ela iria me
esculhambar. Mas sua reação foi uma gargalhada que mais parecia um
estrondo, e eu levei a mão à boca para poder rir.
“Oh, Luzia, a senhora é tão bonita. Pena que não conheceu homem”, me
disse. Fiquei em silêncio. Depois meus olhos se encheram e senti vontade
de chorar, não pelos homens que Zoraide lamentou, não acreditava que
tivessem nada a me oferecer. Os olhos marejaram pelo “bonita” que ela me
destinou, talvez dissesse por piedade. “Veja seus olhos”, continuou dizendo,
“olhos de mulher trabalhadora, Luzia. Eu vejo que a senhora, desculpe, vejo
que você passou por muita dor, mas nem mesmo essa dor quebrantou seu
encanto. Me dê sua mão”, me disse num repente. “Mão?” “Sim, sua mão”, e
estendeu a própria para que eu pusesse a minha sobre ela. Pus a minha com
a palma voltada para baixo e vi minha pele manchada de sabão. Ela também
viu, mas fingiu ver mais além e acariciou minha mão. “Mãos fortes, Luzia”,
ela disse olhando para mim, e depois a virou para ler a sorte como as
ciganas fazem.
“Essa linha é como o Paraguaçu, Luzia, e você vai ter uma vida muito
longa.” Eu não conseguia olhar para ela enquanto percorria com os dedos e
olhos a minha mão cheia de nós. “Ah, tem tormenta ainda para acontecer,
mas tem bondade, tem visita e é mais de uma pessoa. Visita de gente que
você queria ver há muito tempo. Está vendo esse traço aqui, tudo mudou de
rumo. Luzia assumiu as rédeas da vida daqui para a frente. Se prepare, tem
surpresas.”
“Que surpresas”, quis saber, “boas ou ruins?”
Ela levantou os olhos da minha mão e segurou meu queixo como se
quisesse confortar meu medo. Soltou uma risada, fechou minha mão, pôs a
outra mão sobre as nossas e as fechou nesse gesto. “Não digo”, me
respondeu com um meio-sorriso, “os caminhos a Deus pertencem. Mas
tenha fé, será um tempo novo.”
Se levantou e me disse: “Como meu amigo Mundinho não chegou, eu
vou indo, porque está ficando tarde. Tenha paciência com ele, Luzia, não é
fácil aguentar o vício dos outros. Mas quando é nosso pai, nossa mãe,
nossos filhos, que jeito temos a dar? Entregue a Deus e à Nossa Senhora,
aos orixás, e há de passar”. Se despediu e ela mesma parecia andar mais
leve depois de me dizer todas aquelas coisas. Parou frente ao retrato pintado
de meu pai e minha mãe e afirmou comovida como a mãe era bonita. “Acho
que me lembro de ver dona Alzira por aqui, se foi tão cedo”, lamentou.
Desceu da soleira devagar, os joelhos pareciam lhe incomodar. Tomaria o
rumo para a casa onde se hospedava. Mas antes se voltou para mim e pediu:
“Diga a Mundinho que a velha amiga Zoraide esteve aqui, ele sabe onde me
encontrar”.
Eu fiquei na porta por um tempo, um bom tempo, e senti a brisa e o rio,
e o ar se deslocou sem força, balançando as folhas sem direção. Um pássaro
pousou na beira do telhado. Eu desci a soleira para observar. O mesmo
pássaro preto que cantou para mim quando estive arriada no chão depois da
desonra. Pássaro cada vez mais raro, ninguém mais o via como nos tempos
antigos. Não conseguia me lembrar do seu nome. Aos poucos as palavras
foram chegando, atravessaram meu corpo. Seu nome exato eu não
conseguia recordar, mas sabia que misturava olho, renda e fogo.
18

A má sorte de meu pai trouxe as visitas que tanto esperávamos. Sinais dos
anos, do envelhecer, do sentir que já não há tanto tempo. Não fui ensinada a
falar sobre o que precisava, e por isso jamais me manifestei sobre a vontade
de rever o Menino, Zazau e Joaquim. Queria encontrar mais ainda os irmãos
que viviam distante. O Menino agora era um homem-feito. Eu conseguia
ver os primeiros fios brancos despontarem de sua cabeleira. Estava frente
ao meu pai, o avô que o acolheu como um filho temporão. Bom, existia a
memória de minha mãe contando a história do nascimento há tanto tempo,
mas meu pai nunca esteve convencido do fato de que o Menino era seu
filho. Depois da morte de minha mãe e da viagem de Zazau sem levar a
criança, ele compreendeu que era minha. Um dia, enquanto eu cozinhava e
Moisés brincava distraído no chão, ele se aproximou e gritou que eu era
mentirosa. Levantou a mão para me bater e a deixou suspensa no ar, sem
que me tocasse. Senti seus olhos fixos em mim, esbugalhados, ferido estava
pela mentira. Eu apenas olhava para o chão, sem contestar, e a criança nos
observava com curiosidade, sem compreender de fato o que ocorria.
Entendi que meu pai havia juntado os pontos soltos e se deu conta de que eu
havia caído em desgraça. Mas, diferente do que eu pensava e de todas as
suas promessas de nos castigar por qualquer desonra, meu pai não tocou
mais no assunto e fez descer sobre a certeza o silêncio, sua forma de me
proteger da aldeia e de me estender o perdão.
Zazau conversava num canto da enfermaria com o médico, enquanto eu
segurava a pequena sacola com a roupa suja. Trouxe algumas limpas, mas o
corpo de meu pai estava recoberto por faixas e lençóis encardidos do
hospital, não poderia usar o que eu tinha trazido. As mãos duras e calejadas,
as mãos enrugadas do meu pai, estavam salvas das queimaduras e
encontraram as mãos de Moisés. Conversavam sem mágoa, e o Menino
parecia desconfiado com tanta mudança, cabreiro por ter passado tanto
tempo fora e distante de todos nós. Ele demonstrava atenção e sua mão não
deixou a de meu pai. Eu ainda pude ouvir ele o chamar de filho, e filho era
um jeito mais largo de chamar a todos os descendentes, não só os desta
família, mas os da família dos filhos da Tapera.
Alguém percorreu o corredor apressado, passando por salas e parando
nas portas para ver se encontrava quem procurava. Os passos não me eram
estranhos, conhecia aquele jeito de arrastar os pés ligeiros no chão. Pena
que minha visão já não fosse a mesma, tinha percebido meus olhos fracos
enquanto costurava. Além dos dentes precisarei de óculos, pus na “nota” de
minha mente para o dia em que me restasse algum dinheiro. Quando se
aproximou, reconheci meu irmão Joaquim, mais pesado do que a última
vez, e cumprindo a promessa feita quando avisado sobre o acidente.
Joaquim se aproximou da cama, e me senti mais à vontade para estar por
perto, já que o Menino e meu pai não estavam mais a sós. Os olhos brancos
das cataratas de Mundinho estavam alertas. Olhar em volta e perceber que
uma parte de seus filhos espalhados pela terra estava ali por ele, fraco e
ferido sobre uma cama enferrujada, deve ter mexido com velhos
sentimentos demonstrados à sua maneira. Joaquim ria dos olhos marejados
do pai. Eles tinham uma cumplicidade diferente da dos outros. Era o caçula
dos homens e foi o último a deixar a casa. Haviam compartilhado um tempo
de vida na capital, mesmo que não morassem juntos. Se compreendiam,
entendiam suas necessidades, muito diferentes das minhas e das de minhas
irmãs. Naquele instante um sorriso competiu com os olhos emocionados no
rosto de meu pai. Estávamos atentos aos pedaços de família se juntando.
Relutava em pensar, mas era capaz que o reencontro ficasse entre nós. Não
tínhamos notícias de Raimundo e Humberto. Nem sabíamos mesmo se
Raimundo estava vivo, muito era o tempo sem notícias suas. Humberto
vivia nos seringais e eu não conseguia imaginar como seria um lugar assim,
nem mesmo a distância que se encontrava da Tapera. Sabia apenas que
estava a muitas léguas e talvez não se chegasse por lá nem com os ônibus
que cortavam a estrada.
Faltava também minha irmã Mariinha. Tinha prometido vir no recado
que recebi. Mas já tinha prometido outras vezes sem cumprir, e minha
esperança estava abalada. A desculpa era a mesma e não a contestávamos.
Sabíamos o que era não ter meios para se deslocar por esse mundão de
terra. Minha irmã mal tinha casa, vivia de galho em galho com o marido,
procurando trabalho e abrigo. Depois de muito andar foi que pousou num
canto e dali talvez não precisasse sair. Não iria esperar por sua chegada,
não, havia feito isso outras vezes e sofri quando não aconteceu.
Um rio de histórias correu por minha vida e a vida da Tapera e eu já não
me martirizava pelo calvário de viver naquela terra. Não sei o que se
passava no coração de Mariinha, o tanto de mágoa, revolta e vergonha que a
entranhavam, que lhe devoravam o juízo. Às vezes me perguntava, em
silêncio, se era por causa somente do dinheiro que não aparecia. Dinheiro
faltava a todos nós. Passava por minha cabeça se a vergonha ou outro
sentimento a assombrava por não ter estado ao meu lado quando do que nos
aconteceu há tanto tempo. Se eu pudesse encontrar minha irmã, lhe diria
que não havia o que temer, nada do que me aconteceu tinha sido sua culpa.
Perdemos tempo demais acreditando em tudo que o povo da Tapera dizia.
De uns tempos para cá passei a desconfiar que o Mal não vinha do
coração daquela gente. O Mal foi plantado pelos senhores de terra. Tinha
sido regado pelos padres que habitavam o mosteiro de Santo Antônio. Não
saía mais da minha cabeça que nos dividiram para nos enfraquecer. Tudo se
iluminava na mesma medida em que me assombrava. Não tive estudo como
o Menino, mal sabia ler ou escrever e guardava um missal como amuleto,
feito as beatas carpideiras. Mas os anos me ensinaram que não há nada que
não se possa conhecer quando criamos atenção para o mundo, quando
deixamos o tempo contar as histórias do seu jeito. Só assim nós somos
capazes de perceber o que existe no coração dos outros.
Despertei do remoer de vida quando Zazau me chamou num canto para
contar que os médicos queriam transferir nosso pai para a capital, onde
havia mais recursos para tratar das queimaduras. Fiquei irrequieta: “Ele está
lúcido”, ponderei, “não vai aceitar ficar tão longe. Quem da família vai
poder dar assistência a ele lá?”, quis saber. “Joaquim e Moisés moram lá”,
Zazau disse, “eu posso ficar por um tempo, depois pode ser você, e tudo se
arranja.”
“Mas não vamos dizer agora”, pedi, “vamos falar aos poucos para ele se
convencer da necessidade de mudar de hospital.”
“Não há muito tempo, Luzia, o médico deve pedir a transferência
amanhã”, ela disse.
“Então, vamos aguardar até amanhã e pensamos como vamos fazer.”
Por meia hora ficamos os quatro ao redor da cama. Os remédios eram
fortes, a enfermeira tinha dito, e meu pai parecia não sentir dor. Estava de
lado, com as costas amparadas por travesseiros. A queimadura maior era a
das costas, eu vi quando o puseram sobre a cama de casa, e a do rosto que
havia deixado a pele rosa. Meus pensamentos se encheram dos anos ao lado
de meu velho pai, o pai que nunca tomou um rumo certo e vivia como se
não tivesse sido feito para a vida de família. Que gostava mesmo de estar
entre os amigos, rindo, ouvindo música, jogando dominó ou palito. Que
achava injusto trabalhar o dia todo para não ter nenhum patrimônio. Então
pregava trabalhar apenas o suficiente para ter o alimento, para dar de comer
aos seus. Quando achou ser a Tapera um horizonte estreito, sem chance de
ter mais tarefa de terra e prosperar, ele seguiu no saveiro de seu Valter pelo
Paraguaçu até a capital. Voltou depois e nunca mais quis deixar a aldeia.
Nada dizia, mas a culpa que sentia pela partida de minha mãe pesava nos
seus pensamentos. Assim como parecia ter consciência de que as dores do
mundo e das pessoas não se resolviam apenas por sua vontade.
De todos nós, talvez fosse o que melhor conhecesse os próprios limites e
não se desafiava a ser diferente. A bebida lhe deu algum prazer e o fez
esquecer as frustrações da falta de paz semeada entre nós por disputas
provocadas pelos vizinhos, quando mudavam as cercas avançando para o
terreno ao lado, quando soltavam os animais na lavoura alheia e tudo era
tragado. Foi assim que o Mal cresceu entre nós.
Zazau tocou meu braço. Era hora de partir. Joaquim ficaria o resto do
tempo ao lado do pai e no dia seguinte um de nós retornaria para render
meu irmão até tudo se resolver. Meus pensamentos agora não paravam
mais. Rumavam mais ligeiro do que o transporte e freavam de supetão nas
lombadas da estrada. O céu tinha uma cor viva e o sol indicava sua partida.
O Menino desembarcou por último. Quando estava com os pés no chão da
Tapera, seus olhos se fixaram surpresos na torre queimada. Ele perguntou a
mim e a Zazau quando havia ocorrido o incêndio.
No dia seguinte, enquanto Zazau coava o café e eu lançava milho às
galinhas, o Menino se aproximou e perguntou se alguém cuidava da ruína
da igreja. Contei que todos haviam ido embora. Ele passou a me contar as
lembranças que tinha dos espaços do jardim, dos cômodos que eram os
dormitórios dos padres e onde ele não podia entrar, além da escola. Quis
saber se eu parei de lavar roupa por causa do incêndio. “Deixei de lavar um
pouco antes, porque já não dava mais conta do cansaço”, desconversei.
“Tinha um porão lá, não é, Luzia?”, me perguntou.
“Porão? Acho que não”, respondi.
“Tinha, sim, um lugar escuro e sujo de onde se via o rio e a água entrava
nas cheias da maré.” Ele se abaixou para espiar as galinhas mais de perto.
E perguntou sem olhar para mim: “Lembra, uma vez eu me perdi e você
me encontrou por lá?”.
19

Durante anos e anos meus passos se dirigiram à igreja, ao jardim do pátio


interno, ao cruzeiro, aos quartos do mosteiro, lugares por onde andei além
da nossa casa. Muitas vezes, me senti protegida por estar na igreja e ao
mesmo tempo ganhei sustento como a lavadeira dos padres. Me sentia filha
de Deus e gozava do agrado que os vivos esperam. Esfregava a roupa da
igreja com os nós dos dedos, com sabão e barrela, na beira do rio, até a
última trouxa. Batia, quarava e esperava o vento e o sol cuidarem do resto.
Pus barra de sabão atravessada por um pregador na janela e pedi a santa
Clara para clarear, que a chuva não fosse excessiva a ponto de atrapalhar
meu ganha-pão, vai chuva, vem sol, nem de menos para prejudicar o cultivo
do povo, vai sol, vem chuva. Antes de ter luz elétrica em casa, passei os
tecidos fio a fio, costura a costura, nas brasas do carvão que acendia antes
de o sol subir ao céu. O fogo me acompanhava, as coisas queimavam e o
povo da Tapera o temia. Ele cozinhava o alimento e era ao mesmo tempo
luz e pavor, mas me permitiu ser a mais zelosa das lavadeiras que o
mosteiro poderia ter.
Foi na igreja que encontrei reparação para o mal que me acometeu e me
fez rejeitar Menino antes mesmo de ele nascer. Quando chegou à idade de
aprender a ler e a escrever, pedi a dom Tomás para ele estudar na escola.
Foi na igreja, aos domingos e dias santos, que expiei meus pecados, pedi
perdão pela raiva desmedida do mundo e mesmo da Tapera. Pedi a Deus:
“Toque meu coração com a gratidão, pelas coisas que temos: a comida, a
saúde, o teto sobre nossas cabeças. Guie cada um dos meus irmãos por
caminhos justos e de proteção. Cuide do Menino, ele mesmo Seu filho”.
Elevava minhas preces ao céu, o mesmo céu de onde caía a chuva, a
fuligem das queimadas, por onde corria a brisa e os pássaros. Então nos
chegavam notícias quando nos visitavam ou telefonavam ou mandavam
recado por alguém. Era a certeza de que estavam vivos. E se estavam vivos,
poderiam estar bem. Mesmo o Menino que deixou a Tapera cheio de
revolta, mesmo o Menino a quem eu não soube educar com bondade, com
cuidado, só com gritos, mau humor e rudeza, quando Joaquim nos dizia que
o tinha avistado trabalhando ou num ponto de ônibus, meu coração
encontrava a paz. Nem sempre era possível ter notícias, e quando eu
perguntava outra vez ao meu irmão, ele respondia: “Não vi mais, Luzia” ou
“A cidade não é como a Tapera onde todo mundo se conhece e se vê a toda
hora”. Como os irmãos de quem nunca mais tivemos notícias, e por não
sabermos de suas vidas, não sabíamos de suas mortes. Rezávamos para que
não tivessem sido queimados num abrigo de ônibus ou mortos numa disputa
por terra.
Então a igreja foi meu abrigo e eu segui com a alma cheia do sentido de
dever. A feiticeira, a menina que tem parte com o Mal, a mocinha
maltratada pela Tapera era a lavadeira dos padres e cuidava das roupas
brancas da casa de Deus. Foi pelos anos que o Menino tem de idade que
caminhei por vielas e veredas equilibrando uma trouxa na cabeça, da igreja
à casa, da casa ao rio. Vivi e envelheci protegida por essa função. Foi com o
Menino que andei por lá muitas vezes, para não o deixar em casa sozinho.
Desconfiava que ele mexia com fogo, assim como eu gostava de olhar as
labaredas do fogão a lenha ou as chamas subindo do monte de mato varrido
e queimado. Gostava de espreitar as piras cozinhando as louças das
mulheres, panelas e travessas mudando de cor quando o barro escurecia.
Gostava de admirar as fogueiras das viúvas. Amava e temia o fogo, e um
dia o Menino põe fogo nesta casa, meu instinto dizia.
O Menino me seguia. Eu pedia que ficasse por perto, mas depois ele
vagava com seus pensamentos, com a abelhudice que atravessava seu
caminho, os insetos, o piso antigo do mosteiro, a curiosidade de saber o que
estava além dos lugares onde poderia entrar. Quando achava que estava ao
meu lado já o via noutro, distante, recebendo carambola e cajus das mãos
dos padres ou correndo atrás de um bicho que lhe despertava a curiosidade.
E um dia, um dia de nuvens carregadas de chuva, um dia que prometia não
ser diferente de todos os demais, eu me desencontrei do Menino e tive medo
de que ele criasse alguma confusão com seu sumiço. Não queria ser
repreendida pelos padres se ele estivesse contrariando as regras e entrasse
em lugar proibido. Então o procurei em cada lugar e fingi que pegava as
mesmas roupas para fazer a trouxa. Chamava baixo: “Moisés, Moisés, ô
menino, apareça, peste!”, e fazia breves ameaças: “Além de apanhar, você
vai ficar de castigo”, mas o silêncio continuava. Fiz o sinal da cruz, pedi
perdão a Deus por minha vida, por meus pensamentos, por tudo o que
sentia, e continuei a procurar. Depois de percorrer os cômodos e de não ter
mais aonde ir, de procurar no cruzeiro e no horizonte do rio, vi uma velha
porta entreaberta, a porta carcomida de cupim. Não me lembrava de ver
gente atravessar a porta em direção ao vão de paredes úmidas e fedor de
mofo. Um lugar arruinado, vazio, sem nenhuma serventia. Só não
derrubavam as paredes porque a construção era uma relíquia, dessas coisas
que eu não compreendia, tudo que é velho essa gente estrangeira, ilustrada e
recitando livros como se reza ladainha considera tesouro. E o povo da
Tapera não falava do vão, era como se aquele lugar não existisse.
Deve ser o salão que dá para o rio, pensei. Todos que atravessam nos
saveiros e nas canoas o Paraguaçu veem a ruína. Só me restava procurar
pelo Menino nesse canto do mosteiro. Na entrada me deparei com uma
chaminé velha e suja. Parecia estar prestes a desmoronar. Dentro havia um
ninho de urubu. Os filhotes aparentavam ter poucos dias, tinham os olhos
esbugalhados, não voavam e estavam recobertos por uma penugem clara.
Me aproximei para espiar o ninho e quando os bichos viram meu rosto,
vomitaram a carniça que comeram antes. Pus a mão na boca para não pôr
para fora o que me revirava no estômago ao ver a papa viscosa deixar os
bicos das aves.
Atravessei um corredor escuro e estreito mudando de direção, uma,
duas, três vezes, até que me vi naquela imensidão decrépita, ruína e
umidade, onde a correnteza e o vento faziam ecos. Olhei para o alto e o
espaço era recoberto de céu, sol e nuvens. Samambaias e mato cresciam por
toda parte: entre as rachaduras das paredes, no alto do que parecia ter sido
um teto. Arrebentavam do chão. Desci uma escada e encontrei o piso de
terra, tijolo e pedaços de correntes escuras enferrujadas, desfeitas pela água
e pelo tempo.
Foi então que vi o Menino num dos vãos por onde a água do rio entrava
quando a maré subia. Naquele instante a maré estava baixa e ele estava
sentado justo na passagem. Olhava o rio sem atinar para o perigo, e talvez
não recordasse minhas ameaças de castigo. Chamei por seu nome, mas
minha voz se perdia na imensidão, como se o som virasse vento e seguisse
por rumo desconhecido. Avancei para tentar chegar até a passagem, mas o
ar estava pesado e por mais que eu caminhasse não conseguia me
aproximar. Como ele chegou até lá?, me perguntei, se meus pés andam e
andam e quase não saem do lugar? Cansada, caí de joelhos no chão. Então
me percebi em outro mundo, como se o meu corpo estivesse transbordando
e se espalhando por toda parte.
Pus a cabeça entre as mãos e me recolhi. O Menino vivia em meu ventre
e eu no de minha mãe, que por sua vez estava no ventre da minha avó e de
todas as outras que vieram antes de nós. Havia gritos e urros de morte.
Cheiro de corpos doentes e gordura de peixe queimando nas paredes. Não
havia sombra de Deus, nem de santo. Não havia graça nem paz. Estávamos
sozinhos e contávamos apenas com a boa vontade das águas para que não
fossem tantas a ponto de nos afogar. Não daquela vez. Meu corpo não se
movia porque estava sob o peso das correntes e da tristeza e da fúria e das
lágrimas dos que estavam presos. Não muito longe surgiu uma baleia e seus
caçadores gritavam do alto do tumbeiro e a água foi se tornando rubra feito
sangue. Sobre o teto se formou um longo caminho por onde corriam
guerreiros vestidos de mantos de penas carregando flechas afiadas e
incandescentes.
O fogo era promessa e vida. Um grito, outro grito e o zunido das flechas
atravessou o ar.
E então tudo desapareceu: o peso da água, os sons, o sangue e o rio
vermelho. Abri os olhos e ergui minha cabeça para tentar entender onde me
encontrava. O Menino me olhava assustado, sacudia de leve meu ombro.
“Vamos embora, Luzia, você está doente”, me disse como se fosse o
responsável por mim. “Não, não estou doente”, falei enquanto me levantava
do chão, limpando os restos de grama e carrapichos presos à roupa.
“Então acho que você estava sonhando”, ele me disse segurando minha
mão e me guiando para fora do salão.
Manaíba
1

Quando o ônibus se aproximou da plataforma de embarque, o medo


percorreu seu corpo. Um leve arrepio antecipando a sensação de liberdade.
Era a primeira vez que viajaria sozinha, sem o marido determinando o que
fazer e sem nenhum dos filhos para vigiá-la. Era a primeira vez que subiria
num ônibus com poltronas acolchoadas, porque antes correu meio mundo
de terra em pau de arara à procura de trabalho e morada. Tinha acontecido
há tanto tempo, mas o frescor daquela memória a fazia se sentir como se
tivesse sido ontem. Ela não conseguia imaginar quais seriam seus
sentimentos ao avistar de novo a estrada, os campos cultivados e as
pequenas cidades surgindo pelo caminho de mato crescido em tempo de
chuva. Viajou àquela terra agora sob seus pés com a família havia um bom
par de anos, e dali não tinha saído. Tentaram, é verdade, afugentá-los como
pássaros que devoram a lavoura. O novo senhor tomou posse da fazenda e
deixou entrever sua preferência por vê-los longe dali, afinal tinha outros
planos para a propriedade. Ele quis que carregassem seus pertences e
deixassem a propriedade da mesma maneira que haviam chegado. Se
sentiram malquistos, é verdade, mas até aí nada de novo. Por isso
resistiram, mato bravo, tiririca crescendo mesmo quando cortada, a sina dos
desassistidos. Mesmo com sangue derramado, não recuaram. Mas tudo era
parte do passado. Pouco a pouco eles ganharam confiança para se apossar
da terra, construir casa de alvenaria, distante das ameaças.
Ela voltou seu olhar para os dois filhos ao seu lado, que pareciam
receosos. A mãe não saía de casa sozinha, mas agora viajaria para encontrar
o próprio pai, o avô que nunca conheceram. O pensamento dessa senhora
estava nesses jovens e quase não acreditou que seriam eles a cuidar da casa
e do roçado. Crescidos, dois homens bem-criados, e por um instante
considerou que ter todos os filhos vivos, os netos, quando muitas crianças
haviam morrido de fome e doença, era quase um milagre. “Deus teve
piedade de mim”, disse em segredo, enquanto tomava para si os embrulhos
que eles carregavam. Ali, fez as recomendações repetidas desde o dia
anterior: que alimentassem as galinhas, armazenassem água da chuva — se
chovesse — e cuidassem da terra como se cuida do corpo. Era preciso
limpar os campos das pragas, além de regar o quintal — para os pés de
tudo, as ervas, o mato, viverem sempre verdes. Eram os gêneros para
abastecer a casa e a barraca onde trabalhavam na feira.
Pediu para cuidarem sobretudo de si mesmos e de seus irmãos.
Não houve abraço nem beijo porque não existiam cumprimentos como
esses entre eles. Eram hábitos que agora viam nas telenovelas, embora ela
achasse bonito uma mãe beijar o filho. Mas não sabia como demonstrar
afetos diante da rudeza com que tinha conhecido a vida. Quem sofreu o
tanto que sofremos, constatava, não dá tanta importância a essas frescuras.
Afeto era roupa lavada, comida na mesa e união contra as tormentas.
Resistir como família era a maior prova de bem-querer. Com olhos e gestos
deu tudo de si antes de entrar no ônibus, abençoando-os quando pediram.
Subiu os degraus e repassou os detalhes das intermináveis recomendações
e, por fim, imaginou os mesmos conselhos a acompanhando por toda a
viagem. No alto da escada enquanto passava próximo à cabine do motorista,
percebeu suas pernas tremerem, e só por isso fez o sinal da cruz.
Pediu a Deus para acompanhar sua jornada de volta à Tapera do
Paraguaçu.
Pouco tempo tinha vivido naquela terra, mas era como se a Tapera não
fosse um lugar qualquer encravado nas margens do rio. Antes era a terra
que se carrega por dentro. O tempo distante daquele chão começou com a
jornada dos pais em busca de trabalho nas fazendas do Recôncavo, de Santo
Amaro a Maragogipe, até a notícia da morte do velho avô que havia criado
pai Mundinho. Ele era herdeiro, tinha a preferência para retornar e ocupar a
casa e a terra onde nasceram e se criaram. Seu pai contou tudo isso ao
preparar a família para o regresso, sem surpreendê-los porque o retorno era
esperado. Teriam a casa antiga onde o pai havia crescido, a terra para
cultivar, o rio para pescar e a areia de suas margens para mariscar.
Subiram na boleia de um caminhão e voltaram com trouxas, latas e uma
enxada velha.
O motor do veículo atendeu partida, fez ruído e soltou fumaça na
atmosfera, e ela levantou a mão direita para fazer um aceno discreto aos
filhos ainda de pé na plataforma. Passou a mão no cabelo grisalho e sentiu a
falta do lenço que o recobria sempre. Se sentia com o coração partido por
todos que ficavam e por estar privada de sua companhia. Partido porque
sentiria falta de sua casa nova. Partido também pela roça que estava farta
naquela temporada, o que sempre lhe dava muito gosto. Partido e aflito pelo
que a esperava na aldeia.
Havia mais de trinta anos não punha os pés na Tapera. Temia pelo que
encontraria na terra de sua gente. Mais ainda por seu pai de idade avançada
e queimaduras graves, segundo tinha contado a filha de dona Mira. “Quase
você não tinha o recado”, disse Bibiana logo depois, “ligaram para o
orelhão na frente da escola à procura de uma tal Mariinha.” “Não, não há
nenhuma Mariinha por aqui”, disse, precisando retornar à sala de aula, mas
quem estava do outro lado da linha insistiu e disse que poderia ser Maria de
Aparecido, o nome do marido. “Dona Maria Cabocla?”, perguntou Bibiana.
Mariinha e Maria Cabocla, os nomes de suas duas vidas. Mariinha era o
nome da vida de antes, ao lado dos pais e dos irmãos, enquanto peregrinava
de fazenda em fazenda até se estabelecer por pouco tempo na Tapera. Maria
Cabocla era seu outro nome, pertencia à mulher que se tornou ao lado do
companheiro, adentrando cada vez mais as terras de preto, mesmo antes de
levantar morada em Água Negra. Se lhe perguntassem àquela altura qual
nome era o de sua preferência, não hesitaria em dizer: “Maria Cabocla”.
Não apenas pelo tempo que o carregava, mas por ser um nome de
“batismo” sem padrinhos e água. Foi nome forjado na secura do sertão,
percorrendo campos e desejando vida. Era também um nome a carregar a
memória dos seus, a Tapera dos caboclos e negros às margens do rio.
Paraguaçu, rio negro nascido das águas escuras, soube muito depois, de um
minadouro nas rochas da mesma Chapada onde levantou morada. No seu
percurso se tornava corrente de águas claras, como o sonho de sua mãe para
a própria descendência. Se o rio corria para o mar, Maria Cabocla havia
corrido para sua origem de água escura. Na Tapera, a caminho da baía, o
Paraguaçu não era mais negro. Era largo, caudaloso, se preparando para
enfim se tornar oceano.
Mas não deixou de ser Mariinha por escolha, apenas seguiu o curso dos
dias sem perguntas. O nome da sua breve infância carregou até pouco
depois de se unir a Aparecido, trabalhador do último canavial onde tinha
vivido. Homem que tinha uma força de se admirar e se tornou seu marido
ainda naqueles tempos. Por isso viajou até a Tapera para pedir a permissão
de Mundinho para levá-la embora. Uma menina, mal haviam despontado os
seios, os ossos ainda se esticavam. Homem jovem, sentia desejo, encanto,
não sabia nomear os sentimentos, mas queria estar ao lado de Mariinha.
Ninguém estranhou, nem lhe disseram ser muito nova para se juntar a
homem. O destino das meninas era o de serem levadas de suas famílias para
cuidarem de homem e de casa, antes mesmo de se tornarem mulheres.
Maria Cabocla sabia do grande desgosto que seria para sua mãe Alzira,
porque Aparecido era homem preto, sem terra nem casa, sem pouso nem
família, e decerto desgraçaria a vida da filha por não ter nada de melhor a
lhe oferecer. Mas ninguém tiraria da cabeça de Mundinho a decisão de que
não era cedo para dar permissão à filha para se unir a alguém. Para gente
pobre não havia cedo, sempre era tempo de se aprender a dar valor à vida.
Para se unir bastava estar crescida, a filha já se aproximava dos quinze. Se
não fosse um homem direito e trabalhador, como Aparecido, poderia ser um
desocupado e malandro, ponderava. As mulheres de antes conheceram
homens do mesmo jeito.
“Talvez tenha me feito mal”, era a certeza de Maria Cabocla depois de
tudo o que passou.
Se não fosse viúva era provável que não pudesse viajar para reencontrar
o pai, assim como o marido não permitiu a viagem para visitar sua mãe
doente. Antes não havia dinheiro, é verdade, mas a primeira justificativa de
Aparecido foi de que sozinha “mulher minha jamais viajaria”. E se levasse
o maior dos filhos?, Maria Cabocla quis saber. “Quem cuidaria dos
outros?”, ele devolveu. “Eu trabalho feito um animal, mulher”, gritou.
“Você não tem nada na cabeça, não?” Ela insistiu que iria se pudesse viajar
sem pagar. A mão aberta de Aparecido golpeou seu ouvido esquerdo, a
deixou quase surda e pôs fim à conversa. Não pôde se despedir da mãe e
não se perdoou por sua fraqueza.
Um homem na poltrona ao lado a empurrava cada vez mais para o canto
ao abrir as pernas. Ela se encolheu contrafeita. “Que diabo esse homem tem
no meio das pernas que não pode fechar?” Estabeleceu um limite
imaginário entre os dois, fincando os pés no piso do ônibus. Apertou a bolsa
de fuxico, costurada para um momento importante, carregando as parcas
economias. Não poderia se dar ao luxo de perder por distração a miséria
que transportava. Segurava a bolsa desconfiando da própria atenção.
Durante a viagem, entre o passado e o que estava por vir, corria o risco de
esquecer a própria história, quanto mais perder as economias.
O céu feito breu pontilhado de luzes distantes, a estrada pontilhada de
luzes vez ou outra lançadas pelos faróis dos carros. Maria Cabocla
carregava vidas e histórias incontáveis. Se dependesse dos fios da memória
refletiria sobre a estrada percorrida desde seu nascimento durante a viagem.
Mas na distância dos anos prevaleceu o cansaço a inundar sua mente,
um lago parado e recoberto de lodo. Um sono antigo dividido pelos ruídos
da noite e repleto de sonhos que jamais conseguiria decifrar.
2

Maria Cabocla despertava a cada meia hora e num desses momentos


encontrou o passageiro ao lado dormindo, um peso apoiado sobre seu
ombro. Quem os visse consideraria a existência de alguma intimidade entre
eles. Por isso não temeu que o homem despertasse quando inclinou o corpo
para a frente, retirando o ombro onde ele se apoiava. Deveria estar bêbado
ou cansado, o que não tornava tudo menos constrangedor. Mas logo ela
voltaria a cochilar.
Sonhou com as irmãs Luzia e Zazau. Eram meninas, dançavam ao redor
de uma fogueira, riam e se divertiam. Despertou perturbada, o coração
acelerado, o rosto iluminado pelos raros faróis. Dormiu de novo e a cada
hora alguém diferente aparecia nos seus sonhos desconexos. Frações de
vida sem significado aparente, a não ser para Maria Cabocla reconhecer o
lugar de cada um em seu espírito. Planejou rezar durante a viagem e assim
permaneceria alerta para qualquer imprevisto. Mas se rendeu ao balanço do
ônibus, feito a rede onde havia passado a dormir de novo, para não ter que
se deitar na cama onde passou as noites ao lado do marido até o dia de sua
morte.
O sol despontava no céu, um sinal de que estava próxima de seu destino.
O ônibus parava vez ou outra para desembarcar e embarcar passageiros.
Rita, filha de dona Mira, tinha avisado que seria preciso descer na
rodoviária da cidade e embarcar numa van até a Tapera. Quando menina,
aquele percurso era feito a cavalo e carroça. “Ninguém anda mais em lombo
de animal”, Maria Cabocla se deu conta durante a viagem. Jegues e burros
vagaram abandonados e foram substituídos por motocicletas. Tornaram-se
pragas responsáveis por acidentes na estrada. Teve prefeito de cidade do
interior pagando por animal abatido. Mas Maria Cabocla achava injusto
com os animais. “Até mesmo Jesus, Nosso Senhor, montou um burrinho”,
ela pensou. “Não merecem esse fim.”
O passageiro bocejou e mexeu as pernas com impaciência. Parecia
ansioso para desembarcar. Maria Cabocla observava a margem da rodovia
pela janela sentindo os cheiros de toda a vida: da capoeira queimada, do
curral e do café coado. Ela pediu ao filho que comprasse um bilhete
próximo à janela para que pudesse ver a estrada e os campos. Por vezes
tinha viajado sentada em tábua de madeira improvisada como banco na
carroceria de caminhão apinhado de gente. Queria chegar à Tapera como
uma senhora digna e por isso queria se sentar à janela. Após uma vida de
privações, não via nesse gesto extravagância alguma. Pena não poder
comprar a poltrona ao lado, do contrário teria viajado deitada, sem disputar
espaço com um abusado qualquer.
Antes que o ônibus estacionasse na plataforma, o homem já estava de pé
e pronto para descer. Ela pensou em se levantar, estava agoniada para deixar
seu assento, mas decidiu deixar o homem desembarcar sozinho. “Vou
levantar quando o ônibus parar”, decidiu, “senão é capaz de o homem achar
que estou atrás dele.” Ajeitou o cabelo embaraçado pelo vento, recompôs o
casaco que usou para se proteger do sereno da madrugada e passou a mão
para aliviar o amassado do vestido. Recolheu seus embrulhos, a bolsa que
não saiu de seu colo, a pequena mala de tecido, e perguntou onde poderia
encontrar uma van para a Tapera. Se espantou com os gritos dos cobradores
ofertando viagens para os mais diversos lugares, alguns nomes conhecidos,
e outros, com certeza, novos. Esperou anunciarem o nome da sua aldeia.
Demorou um tanto até aparecer um carro velho, o banco do carona vago. Se
surpreendeu com o preço da passagem, mas teve vergonha de expressar sua
inconformidade. O cobrador a olhou de cima a baixo, avisando que ela só
embarcaria com o pagamento antecipado.
Maria Cabocla remexeu na bolsa à procura do dinheiro. “Deve estar
aqui”, disse, arrependida por carregar tanta coisa: uma cabeça de alho, noz-
moscada, galho de arruda, figa de guiné, um terço, uma imagem de papel de
Senhor dos Passos, um lenço perfumado, a fotografia dos filhos, o
documento de identidade e a certidão de nascimento. Depois de retirar item
a item, sacudiu a bolsa sem acreditar. “Mas estava bem aqui”, conferiu um
par de vezes antes de embarcar. Tentou a todo custo explicar ao cobrador
que dispunha do dinheiro e precisava de mais alguns minutos para
encontrar, sem que ele lhe desse ouvidos e assim seguisse com a lotação
esgotada. Ao se perceber sem as economias, a boca e o olho direito se
puseram a tremer. Tentou ainda encontrar entre os passageiros algum
vizinho do tempo em que tinha vivido na Tapera, mas eram rostos
desconhecidos de um lugar agora estranho.
Vagou sem destino como os animais abandonados. O fato de ter passado
tanto tempo reclusa, vivendo a vida da fazenda, cuidando de filhos e
marido, tinha prejudicado sua capacidade de resolver os próprios
problemas. Eram eventos e ações que não faziam parte do seu cotidiano.
Primeiro, se ocupou de imaginar o que teria acontecido ao dinheiro que
carregava. “Só pode ter sido aquele infeliz, abusado, fingindo dormir sobre
mim.” Sentiu rancor, para depois pedir perdão a Deus se estivesse acusando
o pobre infeliz sem provas. Conferiu a bolsa na plataforma, na frente dos
filhos, e viu as cédulas embrulhadas num papel com anotações. Não estava
louca e voltou a acusar o homem: “Vagabundo! Se fingindo de cansado para
surrupiar uma mulher sozinha. Se fosse um homem ao lado dele, duvido
que faria o mesmo”. E se fosse Aparecido com o facão de sempre na bainha
o bandido estaria retalhado. Depois veio a indignação: homem pobre, como
ela, origem feito a sua. “Pobre nunca deveria roubar outro pobre.”
O nariz de Maria Cabocla se ressentiu da umidade do ar, desacostumado
estava, e a deixou com vontade de espirrar. Retirou o casaco, o dia se
esticava quente e as pessoas subiam e desciam dos ônibus na plataforma.
Ainda tinha esperança de encontrar alguém da Tapera, embora depois de
uma hora achasse improvável. Era capaz de não reconhecer a própria
família se aparecessem zanzando naquela rodoviária.
O cheiro de comida se misturou aos seus problemas. Recordações da
fome, a memória mais dolorida de Maria Cabocla. Já fazia muito tempo que
não se sentia assim. Nos últimos anos, quase sempre teve comida à
disposição, a não ser quando a estiagem ou a cheia levavam o plantio.
Agora ela recebia o benefício do marido morto e já não dançava com a
fome. As comadres juravam que a mulher tinha ganhado “carne” e já não
estava magra como nos tempos de sofrimento. Mas o cheiro da comida na
rua a fez lembrar de que a última refeição tinha sido no começo da noite.
Atravessou a estrada esburacada no balanço do ônibus e não contava perder
o dinheiro bem guardado e permanecer vagando sem poder chegar à Tapera.
Se seu destino não estivesse distante, poderia arriscar ir a pé. O mundo
não era o mesmo e não era recomendável se lançar sozinha na estrada para
caminhar até a aldeia. Se num ônibus repleto de passageiros um infeliz
havia roubado seu dinheiro, numa estrada poderia acontecer coisa pior.
Melhor não.
O dia correu depressa sem que Maria Cabocla notasse. Era tarde e ela
estava quase deitada num banco da rodoviária, atitude justificada pelo
cansaço. Se sentia envergonhada pelo dinheiro perdido, com vontade de
retornar para casa e reencontrar seus filhos. Decidiu perguntar a alguém
mais disposto a responder qual caminho deveria seguir para lá, porque sabia
que a Tapera ainda existia.
Uma criança se sentou ao seu lado segurando um pastel na companhia
de uma mulher mais velha. O cheiro da comida agravou ainda mais sua
fome. Pensou que se a velha não estivesse ao lado, ela pediria um pedaço.
Era a fome, justificaria, um animal a lhe roer por dentro. Mas aquelas horas
sem comer não eram nada perto dos dias passados se alimentando de fruta
pêca caída dos pés.
Maria Cabocla se levantou de súbito para afastar os maus pensamentos e
se viu tomada por uma tontura, velha conhecida, e desabou no chão.
Toda vez que isso acontecia, caía à espera de que fosse a última vez.
3

Uma brisa leve soprou contra seu rosto, afastando o cabelo da testa suada.
A face de uma mulher de cabelo à moda das religiosas foi sua primeira
visão depois do mal-estar. Ela movimentava um livreto com energia para
restituir seu fôlego. Outras pessoas observavam curiosas, enquanto um
senhor abria passagem trazendo um copo com água. Maria Cabocla se viu
às voltas com a fraqueza velha conhecida, que se pôs de novo à sua frente.
Se recompôs, ainda que transpirasse muito. Procurou pelos pertences antes
mesmo de querer saber o que havia ocorrido e encontrou tudo ao seu lado.
A mulher cuidava dela com atenção e perguntou se se sentia melhor. Com a
afirmativa, ela agradeceu: “Graças a Jeová Deus”.
As pessoas paradas ao redor, curiosas ou solidárias, voltaram aos seus
caminhos sem grandes preocupações. Maria Cabocla ficou com a mão da
senhora de rosto redondo feito a lua apoiada em suas costas. Era uma
mulher com o semblante das imagens dos santos, observados sempre que
possível com particular interesse. As imagens das igrejas lhe transmitiam
conforto. Então a mulher perguntou com interesse se ela iria a algum lugar,
se morava na cidade, e se havia algum telefone para avisar à família que
pudesse ir encontrá-la. Ela disse sim e a respiração voltou a acelerar.
Finalmente Deus e seus encantados enviaram alguém para lhe ajudar.
Porém, depois de procurar pelo número do telefone para recado na sua
bolsa, se deu conta de que o papel onde estava anotado era o embrulho do
dinheiro perdido.
“Acho que perdi o papel com o telefone, junto com o dinheiro que
trouxe comigo”, disse, esperando que a mulher acreditasse na sua história.
“Por isso não consegui pegar a condução até a Tapera.”
“Ah, não se preocupe, a senhora não vai ficar sozinha”, a senhora disse
com uma expressão firme, tentando confortar. “Meu nome é Alzira”, pôs a
mão nas costas de Maria Cabocla, “acho que o último carro para Tapera do
Paraguaçu já saiu, então o próximo só pela manhã. Eu vim da reunião e
deixei minha irmã na condução para Coqueiros”, disse, tentando contornar
o estranhamento. “Mas a senhora pode vir comigo para casa. É lugar
pequeno, humilde, não repare. A senhora não precisa passar a noite aqui.
Amanhã eu mesma te trago para que possa encontrar sua família.”
Maria Cabocla não era mulher de grande fé, embora se interessasse
pelos mistérios tidos como sagrados. Desde sempre escutou e ouviu sobre
milagres por onde passou, durante a infância, e por todos os lugares onde
esteve na vida adulta, sem se deixar intrigar. Mas o fato de o nome da
mulher que a amparava ser Alzira, feito sua mãe, foi recebido como um
sinal. Ela perguntou se era certeza de que não incomodaria, e Alzira
respondeu: “De modo algum. Como é seu nome, minha filha?”. “Maria”,
respondeu enquanto se levantava. Caminharam pelas ruas calçadas de pedra
até a casa.
Alzira se esforçava para falar com calma, transmitindo o conforto de que
Maria Cabocla precisava. Ela carregava uma Bíblia e Maria Cabocla se
recordou que havia algum tempo foi levada por uma vizinha para uma das
novas Igrejas na cidade. Fora criada como católica, criança e mesmo mais
velha. Cochilava nas missas, é verdade, sem entender o porquê de tanta
conversa. Mas achou aquela nova Igreja por demais barulhenta. O senhor de
paletó não discursava, berrava, e no final da cerimônia muitas pessoas
dançavam e falavam coisas que ela não conseguia entender. Retornou para
casa com dor de cabeça, confusa, mas não disse nada à vizinha para não a
magoar. De qualquer modo prometeu a si mesma que lá não voltaria. Não
tinha mais interesse nas festas de santo, nem em romarias ou procissões. Se
contentava em conversar com Deus no quintal, ao acender a vela, ao colher
ou semear o milho da lavoura, quando se deitava à noite e se levantava ao
amanhecer.
Agora, esperava que aquela senhora não tentasse convertê-la. Não se
importava que falassem de Deus, e até gostava de ouvir seus muitos nomes.
Gostava de sentir a afeição das pessoas pelo sagrado, sentimento que não
tinha mais.
“A senhora é crente?”, quis saber. Alzira confirmou.
“E a senhora?”, Alzira perguntou.
“Sou batizada e crismada na Igreja”, Maria Cabocla disse, esperando a
tentativa de conversão, mas Alzira a olhou com certa dose de compaixão.
“Se algum dia a senhora desejar, podemos estudar a Bíblia”, disse,
levantando o livro.
A casa era limpa e conservava o cheiro da água doce do rio correndo em
frente. “É o Paraguaçu?”, Maria Cabocla perguntou quando avistou a
correnteza no horizonte. “É, sim, o rio. Passa lá na sua terra também.”
Mesmo sem se aproximar, viu fileiras de casas e ruas inertes na margem
onde se encontrava e tudo o mais na margem oposta. Não recordava se
havia estado naquelas ruas algum dia. Era possível ter passado por ali com
os pais e os irmãos, quando peregrinavam de um lado a outro em busca de
trabalho.
Alzira pôs café fresco e pão na mesa. Pediu que ela não se acanhasse,
comesse bem, o mal-estar era por causa da fome. E comer, de fato, restituiu
seu vigor e as preocupações que lhe rondavam desde que havia decidido
viajar à Tapera. Quando se sentiu mais à vontade, contou a história do
dinheiro perdido. Contou também que estava a caminho da Tapera por conta
do acidente do pai. “Que coisa mais triste, dona Maria!”, Alzira de novo
pôs os muitos nomes de Deus entre as duas para pedir que tivesse fé e tudo
se resolveria.
As horas se passaram e Maria Cabocla não lamentou por um tempo sua
má sorte e toda a confusão da viagem à Tapera. Pensou não estar de todo
desamparada, tinha encontrado uma boa alma para lhe acolher, alimentar e
dar abrigo até poder retornar à rodoviária no outro dia e seguir viagem. Na
casa, conheceu o marido de Alzira e os filhos crescidos. Contou-lhes dos
seus e já sentia o aperto da distância. Garantiu que estavam todos bem-
criados. No dia seguinte, antes de levá-la ao terminal, Alzira lhe deu um
discreto rolinho com uma única cédula para que pudesse retornar. “Não se
preocupe”, Maria Cabocla disse, “vou voltar para pagar a senhora.”
Enquanto se acomodava na van foi tomada por uma dúvida: se o brilho
que viu despontar dos olhos de Alzira era feito da mesma umidade dos seus
prestes a transbordar por tudo e todos naquele instante.
4

A emoção persistiu ao longo do caminho. Tanto pelos eventos ocorridos


durante a viagem como pelo que a esperava entre os seus. Quase tudo
naquelas paragens havia mudado. Não existia uma árvore, um morro ou um
rosto que pudesse ser reconhecível nas imagens guardadas em sua memória.
Somente o rio, largo volume de água, caminho das embarcações e morada
dos peixes, o mesmo de toda a vida a lhe conduzir pelos meandros de sua
história. E o rio, perene, encantado, ancestral, surgia e desaparecia ao longo
da estrada esburacada por onde trafegava. Àquela altura, Maria Cabocla se
encontrava a curta distância da antiga casa de seus pais.
Mas se não reconhecia as construções e a paisagem do seu passado, na
Tapera tudo parecia imutável e embolorado, a começar pela igreja marcada
pelo incêndio. Não se recordava de Zazau ter contado sobre o incidente,
mas constatava ser assustador o edifício despontar com sua torre arruinada
além dos telhados das casas. Agora a igreja e o mosteiro não passavam de
um monte de entulho mal-assombrado e povoado de morcegos, símbolos de
um tempo para sempre desaparecido. Maria Cabocla fez o sinal da cruz, não
por medo, mas por respeito a Deus, que não merecia ter sua casa queimada.
Os dias não andavam muito bem na Tapera para um lugar santo queimar
sem que pudesse ser salvo.
As ruas calçadas com mistura de rocha e areia, ruelas estreitas que se
bifurcavam em becos e emaranhados de outras ruas onde não passava
sequer um automóvel, se revelavam um desafio a suas recordações.
Enquanto uma motocicleta ultrapassava a carroça puxada a burro, Maria
Cabocla se perguntou se reconhecia aquelas veredas e se poderia encontrar
a casa onde morava havia tanto tempo, a que deixou para se aventurar por
terras distantes com seu companheiro.
Aparecido veio inteiro às lembranças enquanto ela tentava se situar no
emaranhado de vielas. Chegou como um homem quebrantado pela vida
para se tornar seu algoz por todo o sofrimento que a havia feito passar.
Anos depois deixaria o mundo feito uma criança indefesa, sem a valentia
que fez sua história, e dependente da mulher maltratada por toda a vida.
Maria Cabocla não desejava estar ao seu lado nos seus instantes finais. Quis
antes ter coragem para deixar a casa com os filhos mais novos e voltar de
qualquer jeito para a Tapera. Certa vez se considerou livre do seu jugo
quando percorreu sem destino léguas, com o corpo alquebrado de pancadas.
Quando a fome, a sede e o cansaço a desorientaram diante dos filhos
impacientes com a escassez, ela retornou para casa e assim continuou a
viver.
Mas quando o marido caiu doente, ela pressentiu que não haveria
remédio para seus males. Então agradeceu a Deus por poder estar ao seu
lado, na mesma casa, e por poder fazer algo por ele nos seus derradeiros
meses. Como se aquela união tivesse como único propósito vivenciar esse
momento. Se repreendia quando pensava que, se fosse preciso, faria tudo
outra vez. Seria gratidão pelos filhos nascidos da união ou alguma nesga de
afeto perdida pela violência. Sabia não haver paz a lhe curar dos maus-
tratos, da mesma maneira que não haveria liberdade enquanto o pai de seus
filhos fosse prisioneiro de si mesmo.
De leste a oeste, Maria Cabocla percorreu a Tapera beirando o rio em
busca da casa onde viveu. Haveria de encontrar sozinha a morada da
família, sem necessitar de ajuda, mas precisava entrever antes o que deveria
existir em si da vida do Paraguaçu. Foi com a bolsa de fuxico violada, a
mala de tecido e os embrulhos com a colheita de aipim que se pôs a andar
entre ruas e pessoas sem saber se a reconheciam. Não ousou olhar para os
lados, não naquele momento de desamparo por tanta estranheza.
As histórias precisavam decantar de novo em seu espírito. Aquela gente,
sabia, a cercou quando menina e julgaram Luzia sem compaixão por fatos
que não puderam ser explicados. O tempo passou, e Maria Cabocla viu
aquele evento ser eclipsado por outras adversidades. Remoeu sobre o
assunto poucas vezes e evitou recordar o que não tinha remédio. Nem
mesmo na sua memória as cenas se ordenavam completas. Eram antes
frações de fotografias, desprovidas de sons e cores, não identificáveis,
soterradas pela urgência do agora. Por isso, voltar à Tapera era estar de
novo envolta em luz e sombra, passado e presente, condenação e salvação.
Não era mais possível se desenredar de suas reminiscências.
Ao viajar para amparar seu pai, Maria Cabocla sabia o estar fazendo
também pela mãe morta e pelos irmãos e irmãs apartados pelo destino. Ela,
Luzia e Zazau, as meninas, corriam para o pai quando o viam retornar do
trabalho, a enxada no ombro e o chapéu por vezes nas mãos. No fim de
tarde, o sol descia complacente e o chapéu já não tinha a serventia de antes.
Pelo contrário, “abafava o juízo”, o pai dizia, e elas o encontravam e o
retiravam de suas mãos, como faziam com o bocapiú ou a penca de bananas
que porventura carregasse, desejando aliviar seu fardo. Nas disputas
próprias da infância, Maria Cabocla fazia perguntas ingênuas e era
inevitável que as irmãs a ouvissem. “Pai, eu sou bonita, pai?”, perguntava,
esperando um afago, enquanto seus olhos observavam o entorno,
aguardando a reação de Luzia e Zazau. O pai não cansava de repetir, sem se
voltar às outras filhas, que também não ousavam perguntar para não
competir com a irmã mais nova carente de afeição. Ela perguntava para que
soubessem que ela, a mais nova, a cabocla de cabeleira lisa — “Cabelo
bom”, a mãe não cansava de repetir —, tinha um lugar especial na vida do
pai. Junto ao irmão Humberto, era a herdeira da gente índia, a linhagem de
seu pai, os nativos salvos do cativeiro pelos jesuítas e arrancados da terra
pela sanha desmedida dos forasteiros. Era a gente comparada à murta pelos
jesuítas; podada, ganhava a forma que se queria, mas bastava o tempo para
lhes recordar quem eram e torná-los de novo um arbusto selvagem. Luzia,
Zazau e os outros refletiam a ascendência da mãe, os viajantes dos
tumbeiros. Mas suas aparências eram apenas o invólucro, porque nas veias
corria o sangue daqueles — inclusive os forasteiros brancos — que se
encontraram nessa terra. Alzira sonhava em libertar os netos e os bisnetos,
não pelo que eram, mas pelo que poderiam ser se tivessem outra pele. Quis
o destino que fosse um homem preto, o “zé-ninguém” do Aparecido, a levar
Mariinha, a filha a meio caminho de encontrar a redenção.
Aparecido veio, e Maria Cabocla não pensou duas vezes antes de dizer
que sim, iria embora com ele. Estaria livre da penúria de viver com uma
família numerosa e sem terra suficiente para trabalhar. Estaria livre da
Tapera e da histeria que tinha marcado Luzia para sempre como uma
criatura maligna. Tudo seria diferente. Aparecido era trabalhador e tinha
coragem para desbravar o mundo e encontrar um lugar onde pudessem
viver juntos. No começo a tratava com zelo e adoração. Maria Cabocla
interrompeu o projeto de redenção — dito nas sombras por medo e
vergonha — de sua mãe, e seguiu sua própria natureza. Sentia mais que
refletia, sonhava mais que vivia, e dessa forma andou de terra em terra.
Ainda andava à procura da casa, enquanto o silêncio persistente a
envolvia em pensamentos que não sabia de onde brotavam. A Tapera não
era mais o lugar para onde quis retornar como se todos os seus problemas
pudessem desaparecer com o regresso. Passado tanto tempo, esqueceu das
motivações que a fizeram partir. Todo lugar por onde havia passado estava
muito aquém da sua aldeia, da terra prometida. Sonhou retornar para
cultivar as roças da Igreja, a terra onde seus bisavós deixaram a saúde e a
mocidade para que os sucessores pudessem dela usufruir.
Quando parou para respirar mais fundo diante do rio que refletia faíscas
da luz do sol, sem nenhum saveiro singrando suas águas, Maria Cabocla
ouviu o trinado de um pássaro. O som estava próximo, e o pássaro parecia
se comunicar com outros que adentravam a mata. Ela se voltou para a
árvore que sombreava justamente o quinhão de terra onde seu corpo cabia
inteiro. Viu um olho-de-fogo-rendado lançando sons através do espaço,
preenchendo o dia de memórias. Pássaro raro, ela sabia. Veio recebê-la na
sua chegada. Os olhos vermelhos, minúsculos, infinitos, e o corpo recoberto
de penas negras, encontrando os olhos de Maria Cabocla cansados de tanta
luz. Naquele instante ela esqueceu por um tempo ínfimo seus propósitos,
suas dores e suas culpas, agora sabia, porque as carregaria para onde fosse.
Se sentia um animal como qualquer outro, respirando todo o ar que cabia
em seu peito, agarrando, sem ceder, tudo que pudesse fazê-la se sentir viva.
O céu escureceu com nuvens carregadas e ela despertou de seus sentidos
para ultrapassar a árvore de onde o pássaro se levantou. A casa se revelou
repleta de detalhes, peças atravessando seu peito. Pequena, telhas nem
velhas nem novas, paredes gastas, caiadas, como era há muito, muito
tempo. Não havia número ou marca para distingui-la das outras ou para
contar que havia sido a casa dos seus antepassados. Sobre o solo onde a
construção se erguia pisaram também os mais remotos ancestrais, os da
terra e os do mar, os violados e os violadores.
Uma chuva leve se precipitou, mas Maria Cabocla não arredou de onde
estava. Se pudesse passaria a mão pelas paredes, cheiraria a madeira da
porta e da janela, comeria um punhado de barro do terreno bem cuidado em
volta, com canteiros de flores delicadas lhe conferindo alguma dignidade.
Se pudesse, mas a vizinhança trafegando por ali a censuraria por agir como
os loucos. Então ela fixou por longo tempo seu olhar na casa de janela e
porta cerradas. Não havia ninguém por ali. Era capaz de a família estar no
hospital cuidando do pai. “Ah, meu pai”, suspirou. “Não lhe tenho mágoa
por não ter impedido que eu seguisse com Aparecido para cuidar de família
ainda tão nova. Quero segurar sua mão, meu pai, pedir a bênção, carregar
seu chapéu até nossa casa e me desculpar por tanto tempo longe.”
“Mariinha?”
Maria Cabocla olhou para trás porque cultivava a esperança de ser
encontrada.
5

“Luzia!”
A face pálida de Maria Cabocla refletia a gravidade do chamado.
Primeiro, um duradouro silêncio. Depois, uma sequência de gritos seus e de
Luzia irrompeu no campo da infância, revelando o perigo.
Pouco antes ouviram a voz da mãe ecoar na beira da mata, onde tinham
se entocado para brincar. Chamava por elas, ameaçando com castigo caso
não retornassem de imediato. As folhas secas quebravam sob os pés de
Alzira, a velocidade de suas pisadas e o teor dos sons as advertiam do
castigo por vir. Mariinha abafava o riso enquanto olhava para Luzia. Era
capaz de ouvir o coração da irmã, quase à boca, retumbando através das
árvores e arbustos sempre verdes por causa da chuva sem trégua. Corriam,
enquanto a mãe se aproximava cada vez mais, não queriam retornar para a
estalagem onde dormiam os trabalhadores da fazenda. Passariam vergonha
com os castigos que receberiam diante das outras crianças e de todo o
barracão habitado por homens bêbados, mulheres exaustas e mal-
humoradas, onde o som mais comum era o de choro de criança e o ar vivia
impregnado de odores de doença. Na mata, eram apenas meninas e
brincavam de viver na casa que um dia teriam. Casa de verdade, não as
estalagens ou os barracos improvisados onde passavam meses, o tempo em
que seus pais trabalhavam na colheita. No lar da imaginação de Mariinha,
Luzia e Zazau — às vezes Joaquim, o mais novo, também se juntava a elas
— havia quarto para as crianças, comida na mesa e patrões dando ordens a
trabalhadores invisíveis. Assim tinham visto desde sempre. Naquelas
fantasias não havia escola nem livro nem se escrevia. Os irmãos mais
velhos trabalhavam, tinha passado o tempo da brincadeira. A família desde
cedo andou por fazendas à procura de trabalho, e os pais não puderam
aprender a ler e a escrever, nem esperavam que os filhos tivessem destino
diferente. Quem sabe os filhos dos nossos filhos, divagavam sem um fio
concreto de esperança.
Brincadeira de menina era casa, marido, filhos. Às vezes também a
morte dava as caras e eram os sabugos feito gente (ou apenas a imaginação)
que morriam dos males que as benzedeiras não conseguiam curar. Quando
não eram crianças feitas de sabugo, eram imagens etéreas, vistas com os
olhos da alma, porque nem sempre havia milho para ser transformado em
bonecas nas brincadeiras. Às vezes brincavam de cultivar roça de cana, de
fumo, de mamona. Ou eram pastoras de vacas e cabras a serem levadas aos
campos. E no meio da itinerância em que viviam só contavam com a
imaginação para lhes recordar que ainda eram crianças e, portanto,
poderiam esperar por uma vida diferente.
Trabalhavam dia após dia ajudando a mãe a colher o que fosse preciso e
por isso as mãos nunca andavam limpas. Banhavam-se nos rios, mas o
ranço do trabalho por muitas vezes impregnava a pele e deixava as unhas
entranhadas de terra. Por quantas fazendas passaram durante aqueles anos?
Maria Cabocla não saberia dizer, e por muitas outras ela precisou passar até
chegar à derradeira, onde os pés criaram raízes com Aparecido e os filhos.
Ainda que trabalhassem quando sequer tinham idade para cuidar de si
próprios, uma força inquebrantável, inocente, emanava das horas de
diversão que ainda não haviam lhes confiscado. Qualquer intervalo entre a
lida e o descanso era tempo de se distrair, retirando de si a possibilidade do
prazer. Mas daquela vez o jogo era outro, não era brincadeira de casa nem
família, era se sentir livre, descobrindo insetos e plantas e o que mais
estivesse pela frente. Se afastaram da estalagem e penetraram a mata, sem
permissão. Por isso não atenderam a mãe, sabiam que se o fizessem
poderiam ser castigadas com o cipó guardado para as transgressões.
Foi assim que Maria Cabocla se viu diante de um ninho de cascavel. As
serpentes se enrolavam vivas numa coreografia hipnotizante. Aquele
momento foi de silêncio, sabiam pelos contos dos mais velhos que não
deveriam provocar a ira das serpentes. Ela arregalou os olhos, esperou que a
atenção de Luzia se voltasse para a armadilha e que juntas pensassem numa
maneira de escapar do perigo. Era preciso deixar o lugar o quanto antes
para não serem picadas. Qualquer movimento poderia assustar as víboras e
provocar um ataque.
Luzia permaneceu inerte, se locomovendo a passos medidos, encantada
com os movimentos das serpentes. As observava com atenção, como se
naquela fração de terra somente elas importassem. Ao contrário de Maria
Cabocla, seu medo não havia saltado à superfície, permanecia adormecido,
latente, pronto para ser despertado. E, enquanto o medo não vinha, se
entregou ao tempo e disse num tom quase inaudível à irmã: “Fique quieta”.
Continuou a se aproximar do ninho, em direção ao círculo formado pelas
serpentes que deslizavam no entorno da irmã. Por um momento era como se
tivessem decidido abraçá-la. Então Maria Cabocla se deixou levar pela
experiência de observar Luzia, como se estivesse envolta em algum
encanto. As cobras continuavam a se movimentar, mas desviavam dos
corpos das irmãs, como se ao redor deles existisse um campo magnético a
impedir o avanço. Nenhuma ergueu o corpo, nem mesmo chocalhou a ponta
da cauda. Deslizavam enfeitiçadas e traiçoeiras sobre o terreno, enquanto as
meninas permaneciam imóveis.
Foi quando Maria Cabocla percebeu que dos olhos de Luzia emanavam
as cores e o brilho do fogo. Talvez fosse a luz do fim de tarde refletindo o
céu avermelhado de abril. Naqueles olhos dançavam chamas, duas
labaredas crepitando prontas para devorar o entorno, caso fosse preciso.
Uma imagem que Maria Cabocla guardaria para sempre como um segredo.
A luz do crepúsculo se modificava com rapidez e quando as irmãs
olharam ao redor perceberam que as serpentes tinham seguido o caminho da
mata. O grito de pavor abafado pela necessidade de se preservarem
atravessou as copas das árvores em direção à estalagem. Gritaram despertas
do breve silêncio evocado pelo instinto de sobrevivência.
Por mais que tivessem se afastado da estalagem, elas conheciam a trilha
percorrida e conseguiram deixar a mata. Maria Cabocla correu enquanto o
cabelo grudava em seu rosto úmido de choro. Luzia saltava como se ela
própria estivesse no ninho das serpentes, agitando os braços para afastar a
presença de animais imaginários. Alzira esperava as duas com o cipó na
mão, pronta para o castigo que julgava merecido, mas desistiu quando
contaram do ninho de cascavel. A mãe se abaixou para inspecionar as duas
com desespero; braços e pernas à procura de algum ferimento. Zazau e
Joaquim foram ao encontro das irmãs e observavam tudo atônitos. “Hoje
vocês escaparam de apanhar, mas amanhã vocês me pagam”, disse a mãe,
tentando disfarçar a própria agonia. Também não contou de imediato a
Mundinho, preferiu deixar tudo se acalmar para poder narrar a história com
a devida ênfase para castigar as duas.
Naquela noite, enquanto dividiam uma rede de dormir, recordaram as
recomendações do pai quando percebia os filhos brincando inquietos. “Não
se deve abrir a porta de noite, se não estiver esperando ninguém”,
Mundinho dizia, era certeza corrente nas roças por onde passava, “pode ser
uma cascavel, o rabo é um chocalho e a gente pensa que é uma batida na
porta. Deixa que os mais velhos atendem.” Tudo isso para dizer que as
crianças não deveriam assobiar, para as cobras não atenderem ao silvo
como a um chamado. Luzia adormeceu cansada de chorar, abalada com o
fim da brincadeira. Maria Cabocla demorou a pegar no sono, ainda que
estivesse exausta da tensão. Com seus olhos fechados ou abertos,
continuava a recordar os de Luzia feito duas labaredas, ainda mais vivos na
escuridão onde se encontravam.
6

Embora o tempo tivesse atravessado seus corpos de maneira implacável,


eles permaneciam os mesmos. Estavam todos reunidos na porta da pequena
casa e pareciam quase não acreditar que Maria Cabocla, a Mariinha que
povoara sonhos e sentimentos por todos esses anos, tivesse retornado à
beira do Paraguaçu. Uma longa espera, e o que agora sentiam ao se verem
não podia ser descrito. Zazau foi a primeira a se atirar nos braços da irmã,
pois os gestos de afeto, sempre contidos, afloraram. Chorou com grande
sentimento, e Maria Cabocla apenas a confortou apertada contra seu
pequeno corpo. Joaquim se aproximou e seus braços reproduziram a rudeza
dos homens quando precisam expressar emoções. Maria Cabocla o afastou
depois de um abraço e segurou seu rosto, constatando que o irmão, visto
pela última vez ainda adolescente, era agora um homem de meia-idade. Os
olhos de Joaquim estavam úmidos, mas ele tentava disfarçar desviando o
rosto para o alto. Bem provável que já tenha neto, pensou a irmã, da mesma
maneira que ela tinha os seus.
Moisés se aproximou. Não se conheciam e se viam agora pela primeira
vez. Tudo o que Moisés sabia sobre Mariinha eram histórias contadas por
Luzia e Zazau durante sua infância. Quando pediu sua bênção, ela não o
identificou de imediato, mas logo deduziu quem ele era. Um homem com a
pele e o cabelo feito os seus poderia ser seu filho também. Segurou seu
ombro e o chamou de rapaz forte, e ele se pôs a carregar os pertences
encostados na parede, como uma criança se esquiva de um elogio, seguindo
para o interior da casa.
Luzia estava atrás de todos, observava o reencontro da família cada vez
menor. Pelo menos esse núcleo, do qual nem mesmo Moisés fazia parte a
princípio, agora estava reunido. Maria Cabocla estendeu a mão e de
maneira inevitável Luzia, a rude Luzia do Paraguaçu, enxugou os olhos.
Estava de cabeça baixa, parecia ter medo de olhar para a irmã e de que o
resto de força habitando seu corpo escapasse sem nenhuma chance de
retorno. Ficaram assim, de mãos dadas, frente à casa, de onde Zazau
espreitava as silhuetas adornando a paisagem, o rio e seu fluxo correndo
através do horizonte.
“E meu pai? Vocês vieram do hospital? Ele está melhor?”
Zazau se aproximou das duas e segurou os ombros de Maria Cabocla.
Joaquim retornou à porta e pediu que entrassem. Depois de breve estiagem,
a chuva se aproximava com as nuvens cada vez mais escuras a ocupar o céu
da Tapera. Elas entraram, mas o semblante de Maria Cabocla era de
expectativa. O pai, precisava ver o pai, seria possível retornar ao hospital no
dia seguinte, era uma de suas muitas perguntas.
“Meu pai se foi, Mariinha. Chegamos agora do cemitério”, Joaquim
tentou imprimir consolo à voz, como se ele próprio fosse um pai a confortar
a filha.
O vento correu mais forte, sinal de que a chuva viria pesada. Foi esse
mesmo ar em movimento que preencheu a sala da pequena casa de frescor,
e por sua vez o espaço entre uns e outros. Maria Cabocla estava perplexa,
derrotada mais uma vez pela vida. Não contaria naquele momento aos
irmãos que deveria ter desembarcado na Tapera no dia anterior. Se
envergonhava da própria estupidez, e por causa de quem era não tinha visto
seu velho pai ainda vivo, nem estivera presente no velório e no
sepultamento. Não fosse sua falta de desenvoltura com a vida, não teria
perdido o dinheiro, nem mesmo dormiria ao lado de um desconhecido que
surrupiaria suas economias. Para tudo havia remédio, até para as
desventuras da viagem, menos para a morte. Havia chegado à Tapera viva,
reconhecia que viajar não era nada de outro mundo. Mas não se perdoaria
por ter adiado o regresso muitas vezes. Por falta de recursos, verdade, mas
também por não ter permissão do marido — e por não o desafiar. Esse era
seu arrependimento. Era por não se sentir pronta para viajar sozinha e por
tantas coisas que, agora percebia, eram transponíveis. Mas a vida a
paralisara.
Moisés trouxe um copo de água, mas Maria Cabocla não triscou.
Sentou-se na cadeira velha encostada à parede enquanto Zazau e Joaquim
contavam sobre os últimos dias. Zazau fazia esforço para suavizar os fatos
enquanto a voz embargava. Engolia as vibrações que poderiam dar um tom
por demais sentimental ao que contava, mesmo quando fosse inevitável.
Havia tempos não via a irmã Mariinha, e ela tinha chegado justo nesse dia.
Zazau contou sobre o martírio da internação e como era penoso. “Ele estava
muito idoso, Mariinha, teria muitas sequelas”, disse, enquanto Joaquim
emendava com notas sobre as dificuldades para conseguir uma vaga num
hospital da capital para cuidar de pessoas queimadas.
“Ele descansou”, Luzia interrompeu, “sofreu muito esse tempo todo.
Quando iam fazer o curativo, retiravam a pele queimada.” Ela não poupou
os detalhes e sem querer confortava a todos sendo direta. “Ele estava
inchado, Mariinha, os rins não funcionavam mais, foi o que o médico
disse”, completou. Havia mentiras demais naquela casa e promessas não
cumpridas. Ela própria havia mentido a Moisés sobre suas origens e mentira
ainda mais para sobreviver às adversidades. Mas não havia mais tempo para
enganos. Então que se dissesse a verdade, mesmo que ela ferisse. Depois
cicatriza, Luzia aprendeu, fica a marca, mas nos acostumamos. “Olha este
peso que se elevou de minhas costas, Mariinha”, foi o que quase disse.
Maria Cabocla não chorava, mas tentava administrar a própria decepção
consigo mesma. Os olhos estavam secos porque foram moldados no barro,
na terra seca do deserto da vida, na terra seca do sertão onde tinha se
abrigado. “Daqui correram rios”, diria a si mesma em silêncio, “não há mais
o que chorar, a fonte secou.” Quando soube da morte da mãe, desabou aos
pés do telefone. Horas depois chorou outro tanto com o golpe de Aparecido
em seu rosto, que a levou a perder a audição do ouvido esquerdo. Chorou
ao ver os filhos com fome e chorou todas as vezes que viu Belonísia lhe
acudir. Quando viu Aparecido morto na cama depois de definhar por meses,
sem remédio nem encanto para o que sentia, com as mãos frias e a pele
negra cada vez mais acinzentada, chorou porque ninguém choraria pelo
homem. “Sabe Deus o que andava dentro dele”, disse aos filhos, “não
tenham mágoa, a vida não foi leve para seu pai. Sem pai, nem mãe.
Desterrado, trabalhando desde menino para dono de fazenda.” Castigos e
mais castigos. Contados numa roda de vizinhos achariam que era uma
história dos tempos da escravidão.
“Meus olhos secaram”, constatou espantada. Os rios não morriam,
achava, mas os vizinhos juravam que o Utinga tinha sido perene, profundo,
e o garimpo havia jogado toneladas de areia nas águas o deixando quase
morto. Seus olhos eram o Utinga. Restava se desculpar com os irmãos por
sua indigência, pela calmaria aterradora, e por não conseguir pôr para fora o
que não mais existia.
“Amanhã vou ao cemitério.” O que dizer, se perguntava, enquanto se
olhavam entre as paredes descoradas de casa. “E a roça, Joaquim, o pai
ainda ia à roça?” “Sim”, disse o irmão, “foi no caminho da lavoura que
ocorreu o acidente.” “Eu quero ver a roça”, pediu Maria Cabocla. Mas a
chuva começou a cair forte, ecoando entre eles e fazendo o telhado
estremecer sob a força de sua torrente.
“Amanhã”, Luzia sugeriu. “Se a chuva melhorar, amanhã iremos à roça
onde ele plantava.”
A chuva não cessou e desabou sem trégua durante dias. Nesse intervalo
Maria Cabocla viu um a um deixar a casa por conta das suas rotinas:
Moisés precisava resolver a própria vida no emprego. Uma semana na
Tapera do Paraguaçu tinha sido tempo demais, ainda que a justificativa
fosse a gravidade do evento e a morte de Mundinho. Prometeu voltar mais
vezes para visitar Luzia. A promessa deu a Luzia a certeza de que durante
as visitas ao hospital o pai havia firmado com Moisés algum pacto, uma
promessa de perdão pelo passado. Joaquim também deixou a casa no
mesmo dia, seguiram juntos para a capital. Era um pequeno comerciante e
não tinha empregados para cuidar do armazém.
Por pouco tempo, restaram as três mulheres na casa. Zazau alegou
motivos semelhantes para seguir e cuidar da própria vida, afinal a família
dependia dela. “Ficam perdidos quando eu não estou”, desabafou para as
irmãs. Antes, pôs a conversa em dia. Depois de tudo, se sentia em paz entre
os irmãos, ainda que houvesse os que não retornaram de suas jornadas. Via
Luzia com relativa frequência ao longo dos anos, mas não Mariinha. A
imagem que tinha da irmã estava no passado, embora se falassem por
telefone todos os anos. Falaram dos mortos e nascidos, dos anos de sufoco e
de dádiva. Recordaram os últimos dias de melancolia da mãe e a suspeita de
traição do pai. Falaram sem mágoa, como se escrevessem uma história para
ser contada sem julgamentos. Comeram as raízes ofertadas por Maria
Cabocla e suspiraram dizendo como tudo era bom — “Que terra boa essa
onde tu vive!”, exclamaram. “Para dar esse aipim que derrete na boca.”
Até que Zazau, inquieta, não pôde mais esperar. Abriu o guarda-chuva e
se foi ainda sob o temporal para encontrar a família. “Eu volto”, prometeu,
“no tempo de são-joão.”
Dias depois o céu se abriu em luzes e sons suaves. Maria Cabocla
perguntou a Luzia se o cemitério estava distante, se ainda continuava no
mesmo canto. “Sim”, a irmã disse.
“Você lembra onde fica? Vamos até lá.”
7

Antes colheram perpétuas e bem-me-queres no canteiro. As flores se


desenvolveram com força após dias de chuva abundante. O sol das
primeiras horas fez a água evaporar da superfície das folhas e da terra que
as sustentava. Tanto Luzia como Maria Cabocla estenderam suas redes de
dormir no varal do quintal para aliviar o cheiro de mofo, e abriram a janela
e as portas para arejar o interior da casa. Comeram as sobras do aipim e se
puseram a caminho da cova do pai.
Luzia evitou caminhar por lugares de maior movimento. Levou a irmã,
atrapalhada com tanta novidade, por becos e vielas longe do centro da
aldeia. Ainda não conseguia pensar sobre o que seria de sua vida sem o pai
por perto. O pior só não tinha acontecido porque, de alguma maneira, a
presença dele a protegia do ponto-final para onde progredia a hostilidade
dos moradores da Tapera. No dia do sepultamento, estiveram presentes para
confortá-los Rita de Mira, Zoraide, que parecia ter cada vez mais
dificuldades para se locomover, as duas últimas carpideiras vivas e alguns
homens que conviveram com Mundinho. Joaquim deixou a cova pronta, e
as mulheres entoaram orações e ladainhas sem as bênçãos de nenhum
sacerdote. Seguiram os próprios ritos para velar e enterrar o corpo.
Maria Cabocla queria saber dos detalhes, uma forma de compensar sua
ausência. Perguntava a Luzia se tinham vestido no corpo uma roupa
decente, e se o pai estava ao lado da mãe no cemitério. “Não, Mariinha”,
Luzia contou, sem querer decepcionar a irmã. O cemitério não era grande,
explicou, e de tempos em tempos retiravam os ossos de quem não tinha
jazigo perpétuo para enterrá-los numa vala comum. Assim abriam vagas
para os novos mortos. Maria Cabocla se calou ao saber do destino da mãe.
Onde morava as covas costumavam ser invioláveis.
“Até que tentaram no passado impedir que enterrássemos a gente da
fazenda, faz um bom par de anos. Hoje temos a chave e ninguém toca nos
mortos”, contou.
Juntas, concluíram que os pobres não tinham direito sequer à própria
cova. A terra jamais seria dos pobres, nem mesmo depois de mortos.
Decorrido certo tempo, eram despejados como os fazendeiros faziam com
os trabalhadores imprestáveis, ou como na cidade, escutavam, com quem
não conseguia pagar os aluguéis.
“Então eu não vou conseguir rezar no túmulo de minha mãe”, Maria
Cabocla constatou. Luzia sugeriu que ela fizesse uma reverência quando
rezasse na cova do pai. “Faça de conta que ela está ali”, aconselhou, “o que
importa é a intenção.”
“Verdade, Luzia. O que importa é o que está aqui”, disse, levando a mão
ao peito, tentando se dar algum conforto diante da descoberta.
Enquanto caminhavam, Maria Cabocla observou mulheres mariscando
na margem do rio. As latas de antes tinham sido substituídas por baldes
plásticos, mas ainda carregavam suas colheres para cavar a areia e encontrar
o sururu e o chumbinho.
“Podíamos vir catar marisco para comer, Luzia”, Maria Cabocla propôs.
“Deus me livre, Mariinha. Só se não tiver jeito”, a irmã respondeu,
esticando a blusa puída para recobrir o corpo murcho. “Nunca gostei desse
trabalho de mariscar, e graças a Deus eu pude lavar a roupa da igreja, ter
algum dinheiro. Além do mais, eu não me misturo com a gente da Tapera,
quero distância”, disse sem se prolongar. “Mas você pode ir, claro, se achar
graça, ficar acocorada para catar uns marisquinhos. Nem que eu quisesse,
minha coluna não deixa.”
Maria Cabocla não queria falar por enquanto sobre a deformidade de
Luzia. Notou a corcova crescida nas suas costas, mas se cercava de cuidado
para falar sem cutucar sua vaidade já ferida. Esperaria que a irmã contasse
sobre as coisas que a afetavam para então saber o que poderia ser feito. A
corcova de Luzia era como o fardo da sua convivência com Aparecido. Se
pôs em seu lugar e constatou que não gostaria de que lhe perguntassem
sobre sua decisão de permanecer ao lado do companheiro, em especial
depois que ele ficou doente. As mulheres da fazenda não perguntavam nem
estranharam ao ver Maria Cabocla cuidar de Aparecido até o momento
derradeiro. Os dois filhos mais velhos remoíam mágoas e pediam à mãe que
desse apenas o mínimo. Ela achou que nunca seria capaz de cuidar de
Aparecido numa circunstância como aquela. Nos momentos de sofrimento,
quando era agredida de todo jeito, previu que estaria longe quando ele
precisasse. Profetizou que o marido estaria sozinho.
Durante muito tempo Maria Cabocla se afligiu sem trégua e o corpo
secou como uma haste de bambu. Mas, ao perceber Aparecido doente, o
corpo e o espírito da mulher se iluminaram como se alguém tivesse nascido
na casa. Pressentiu que não haveria salvação para sua enfermidade. Ela
remoçou e parecia sempre disposta a dar toda a atenção de que ele
precisava. Ele estava fragilizado e queria a mulher ao seu lado, a todo
momento, como uma cria demanda cuidados de sua mãe. Parecia ter
aceitado o próprio destino, vivendo cada ato como se precisasse ser
perdoado pela mulher. Então ela viu crescer um afeto diferente por tudo o
que enfrentava e isso tornou o peso das mágoas mais leve. Não que tivesse
se esquecido da violência que havia sofrido, tudo permanecia vivo em sua
memória. A amargura retornaria com força quando tudo tivesse terminado e
aquela dimensão altruísta tivesse se dissipado. A raiva dos homens estaria
no mesmo lugar de sua consciência quando despertasse dos mistérios que a
envolveram durante aqueles meses. Mas enquanto esteve ao seu lado
desconheceu aflições e medos. Se esqueceu do desespero constante e da
vontade de fugir e retornar à Tapera. Quando Aparecido se foi, Maria
Cabocla chorou com pesar. Vestiu-o com as próprias mãos. Beijou sua testa
enquanto afastava as moscas com um abanador de palha de buriti e rezou
por sua alma com sincera devoção.
Contou a Luzia o sucedido enquanto caminhavam, na língua com que se
compreendiam melhor e sem adentrar nos detalhes dos sentimentos que não
sabia nomear. Nunca havia contado a Zazau ou a Luzia que apanhava do
marido. Não queria que as irmãs soubessem. Quando se nasce em meio à
miséria, não se deve alimentar o desespero de sua gente com mais histórias
de desgraças. Falaram durante anos sobre a dureza do trabalho, sobre a
estiagem ou como a chuva excessiva era uma praga de igual inclemência
para a vida na roça. Falaram sobre a necessidade de Maria Cabocla e
Aparecido se mudarem constantemente, repetindo a vida errante da
infância, até que o pai pudesse retornar à Tapera e viver na casa dos avós.
Mas nunca das pancadas, da bebida em excesso, da fome que às vezes
devastava seu corpo e o do companheiro. Quando havia alimento, era
dirigido antes aos meninos, por último, Maria Cabocla e Aparecido. Nos
tempos de escassez só se alimentavam quando a parca comida estava
dividida entre os filhos. Quando a roça se infestava de praga ou Aparecido
não trabalhava com o vigor de antes por causa da bebedeira sem fim, era
Belô que lhe ofertava o que tinha cultivado e colhido por suas mãos na roça
do rio Santo Antônio. Ela não sabia, mas o rio desaguava no imenso
Paraguaçu e atravessava sua aldeia a léguas e léguas de distância.
Quando chegaram ao cemitério, caminharam em meio às cruzes de
madeira, algumas tortas, outras pintadas de azul e branco. Havia também
flores plásticas desbotadas pelo sol, e poucas espécies vivas cultivadas
como se estivessem num canteiro. Luzia apontou para a cova, e a terra que
a recobria estava úmida da chuva. Era possível ver linhas parecidas com os
rastros dos insetos, por onde a água da chuva escorrera durante os últimos
dias. Maria Cabocla se agachou, pôs a mão sobre a terra e rezou em
silêncio. Luzia permaneceu de pé e com o coração apertado enquanto
observava a irmã. O incômodo na garganta parecia não ter fim. De cima, via
o cabelo grisalho de Maria Cabocla e sentia algo quente percorrer seu
interior quando constatava admirada que sim, “ela está aqui, veio de longe e
está entre nós”.
Ela é o que fomos e o que somos, talvez pensasse, e estaria ao seu lado,
ainda que por pouco tempo.
Depois do sinal da cruz declarando o fim de suas preces, Maria Cabocla
abriu pequenos buracos com os dedos e plantou as flores, que aguentaram
mesmo sob o forte sol da caminhada, luz que descia inteira sobre a aldeia.
Quando as flores estavam plantadas e firmes, um rasgo de emoção fez
Maria Cabocla chorar. Soluçava por todas as coisas guardadas e sobre as
quais não houve tempo para lamentar. Deixou que encontrassem o caminho
do mundo enquanto brotavam de seus olhos, seguindo por corpo e chão.
Luzia escutava quieta os soluços e fechou os olhos e rezou mais uma vez
pelo pai, pela mãe, pelos que andavam pelo mundo e dos quais não tinha
notícias.
Maria Cabocla se sentia como que plantada no solo e Luzia recordou
que até a vigília pelos mortos tinha um tempo definido. Não se pode
prantear para sempre, senão os mortos não têm sossego, vagam sem paz
pelo mundo para consolar os vivos. Tocou o ombro da irmã para que se
levantasse. Maria Cabocla enxugou o rosto, se levantou de onde estava
ajoelhada e limpou as pernas da terra grudada.
Deixaram o cemitério e durante um tempo caminharam como se fossem
voltar para casa. Até que Maria Cabocla perguntou a Luzia: “E a roça?
Quero ver o que o pai ainda cultivava.” Luzia não se sentia disposta para
caminhar até a roça do pai, mas precisava compensar a irmã por tantos
desencontros. Deixaram o caminho de casa e subiram uma ladeira que dava
num tabuleiro. Enquanto caminhavam, passava um ou outro homem de
motocicleta carregando enxada, cesto e outras ferramentas. Maria Cabocla
estava admirada de o pai, mesmo velho, andar por aquele caminho íngreme.
Luzia disse que ele fazia o percurso mais devagar, a saúde estava abalada
porque bebia uma ou duas doses de aguardente no café da manhã. Ele
afirmava que a bebida lhe daria coragem e disposição para trabalhar.
Afirmação enganosa, mas Luzia não retrucava. Não mudaria o velho
teimoso que nunca dera ouvidos para a família.
Tinha arame e estacas novas cercando a área cultivada por Mundinho.
Luzia se surpreendeu com as mudanças porque o pai não tinha comprado
arame para fazer cerca. Havia tempo não andava por aquele lado e de
repente tudo parecia diferente. Só a terra tinha a cor vermelha de sempre.
Dois homens a remexiam com suas enxadas e o rosto de Luzia estava feito
brasa com aquela visão.
“Era aqui?”, Maria Cabocla perguntou à irmã, que não lhe deu atenção e
apressou os passos em direção aos homens. Segurando a cerca de arame
farpado, perguntou:
“O que vocês estão fazendo aqui?”
Eles se entreolharam e riram. Continuaram a revolver a terra com suas
enxadas como se tivessem sido interrompidos por um inseto zumbindo de
maneira incômoda próximo à orelha. Luzia quis atravessar a cerca entre um
fio de arame e outro, mas percebeu que seu corpo não cabia entre o vão sem
nenhum machucado.
“Podem deixar tudo aí”, Luzia gritou. Maria Cabocla olhava para o
embate preocupada. Apressou os passos e se pôs ao lado da irmã. “Podem
deixar tudo aí. Essa tarefa de terra é de meu pai”, disse mais alto enquanto
os olhos, injetados de fúria, encontravam os dos desconhecidos.
“Essa terra não é de seu pai, não, senhora. Essa terra tem dono.”
Maria Cabocla segurou o braço de Luzia enquanto era tomada por
arrepios. Já havia experimentado a humilhação dos despossuídos outras
vezes e tinha a impressão de que, se não controlasse a irmã, as coisas não
acabariam bem.
8

Aparecido tremeu de ódio e Maria Cabocla não ousou segurar seu braço
para não receber um empurrão seguido dos gritos habituais: “Deixe que isso
eu resolvo, mulher!”. Ele tinha arado a terra e separado as sementes para o
plantio a ser feito no chão de onde esperava retirar o sustento da família.
Depois da chuva, que caiu com regularidade em dias alternados, ele lançaria
os grãos no solo revolvido. Isso se não descobrisse antes dois homens
trabalhando o pedaço de terra que lhe foi prometido. Ainda não tinha
completado um mês desde a chegada da família à fazenda, a meio caminho
do sertão, a meio estirão de Água Negra. Não houve tempo para levantar
casa e por isso se abrigaram num galpão em ruína, onde os trabalhadores
armazenavam de sementes à sucata. Quando chovia, a construção
improvisada parecia descoberta, tanta era a água a entrar pelo telhado mal-
ajambrado.
Então disseram a Aparecido que ele havia compreendido errado. O
terreno onde poderia plantar estava na extremidade da fazenda, próximo à
cerca. Ele não estava louco, sabia, jurava ser aquele o lugar a que o
administrador o conduzira para mostrar e dizer: “É aqui”. Seu corpo foi
atravessado por uma eletricidade perturbadora, como os loucos dizem sentir
nos momentos de maior desespero. Ele pediu sem paciência para lhe
mostrarem de novo onde poderia trabalhar. Ao mesmo tempo, percebia o
prazer do administrador e um leve desdém de sua parte enquanto caminhava
até o lugar permitido, cuja superfície se encontrava recoberta de pequenas
pedras.
Maria Cabocla não o seguiu. Por isso também não pôde ver a crescente
humilhação a que estava sujeito enquanto caminhava por considerável
distância até o limite da propriedade. Quando, por fim, Aparecido viu a
terra que lhe havia sido destinada, engoliu a saliva que tinha na boca quase
seca. Ele também não quis ver o sorriso do administrador reluzindo em sua
face cínica, esculpida, como a sua, pela sobrevivência. Sabia do escárnio,
estava lá o sorriso e o deboche. Sabia, e se olhasse não resistiria à tentação
de ameaçar o homem com o facão que levava à cintura. O administrador era
um sobrevivente da seara do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Ninguém deveria ser julgado por ter vontade de viver, mesmo que para
alguns isso significasse afligir os mais fracos. Mas não era preciso mirar a
face do outro para alimentar o ódio crescente. Foi quando disse: “Se é aqui,
é aqui que eu planto!”.
As mãos ásperas seguraram a enxada e desceram à terra, chispando fogo
junto a seu corpo humilhado. Se daquele chão não brotava urtiga nem
capim-navalha, muito menos nasceria batata, inhame e aipim para alimentar
a família. Mas precisava trabalhar com sofreguidão, com raiva, com ódio,
afinal era a terra o animal a lhe devorar os anos, e a cada golpe ele devolvia
o recebido. Para aquele homem sem futuro, a terra era tão rara quanto o
ouro que diziam existir a caminho da serra. Era ainda pior: o ouro não se
via em todo canto; o metal não habitava o mundo de uma maneira tão
ostensiva quanto a terra. Para a certeza da desgraça de sua gente, a terra não
apenas estava em todo canto, em todo lugar; a terra era o canto, era o lugar,
e sem este chão não haveria vida para ninguém. Dos pássaros às árvores.
Dos ricos aos pobres. Nem mesmo os montes se sustentariam em pé, e os
rios morreriam antes mesmo de correr.
Aparecido blasfemou aos Céus por conhecer um mundo imenso e
dividido entre pouca gente. Maria Cabocla não ousou intervir e dizer: “É
assim porque Deus quis” ou ainda: “Essa gente trabalhou e comprou com o
próprio esforço”. Sabia bem que suas respostas não satisfaziam nem a si
própria, quanto mais ao marido. Foi sozinha que lamentou sua sina. “A mãe
tinha razão”, foi o que muitas vezes considerou ao recordar a decepção com
a sua partida e com a decisão dela de viver com um “zé-ninguém”. A má
vontade da mãe se devia à pobreza e à má sorte de ver a derradeira, moça,
peregrinando de fazenda em fazenda à procura de morada como eles tinham
feito até retornar à Tapera. Se devia também à crença pessoal de que, para
se redimir da crueldade da vida e ter alguma sorte, era preciso ser como a
gente abastada que conheciam das andanças de um lado a outro. Ser como
os estrangeiros que habitavam o mosteiro, rezavam as missas e culpavam as
pessoas da aldeia por toda a desgraça que lhes acontecia. À gente mestiça,
índia e negra, restavam as sobras, era o que a mãe dizia, por mais que
pensasse ser essa a sentença de uma mulher amargurada. “Com ele, tu vai
caminhar para trás”, vaticinou. Anos depois a rudeza da vida fez Maria
Cabocla concordar com a mãe. Não pelos mesmos motivos, achava
inclusive um despautério a ideia de se ter uma descendência clara,
perseguida pela mãe com tanto afinco. Concordava que teria tido destino
melhor se seguisse o Paraguaçu à frente, a caminho do mar, e não para trás,
para o olho-d’água onde o rio surgia.
Do chão destroçado nada nasceu e Aparecido se levantou com as mãos
feridas para percorrer a estrada. Tirou os filhos e a mulher daquela terra e
partiu para um lugar qualquer onde pudesse encontrar dignidade. Era a
história dentro da história e Maria Cabocla cumpria o destino de seu pai e
de sua mãe, repetindo os passos errantes na esperança de um dia regressar
em definitivo para sua terra. Algum dia voltaria à aldeia abandonada,
arrodeada de mata e de ruínas antigas do mosteiro ditando como seria a vida
de todos? Era o que se perguntava todas as noites, antes de dormir, e
quando a fome parecia roer o estômago. O pai e a mãe descansaram dos
passos vagantes pelas margens e margens do Paraguaçu, porque o dia de
regressar para a casa da família tinha chegado. Poderia ocorrer com ela, não
por esperar que os pais se fossem para assumir o seu minguado quinhão,
mas porque talvez as regras de ontem não fossem as de hoje. Seria mais
fácil levantar qualquer barraco na Tapera e não precisar viver errante
pedindo morada. Seria mais fácil, se a Igreja não controlasse a vida da
aldeia com as mãos da tirania, sem ceder um palmo do chão em volta para
construir uma tapera.
Quando tudo parecia estar em paz — a paz enviesada e precária dos
sobreviventes —, acontecia algo. Era a violência dos matadores vingando
seus mortos ou eliminando os obstáculos que impediam a prosperidade de
outrem. Era a barragem a inundar o solo para o sepultar sob água e fúria.
Era a transação cordial dos homens de posse que vendem e compram sem
pensar por que o fazem. A terra era a riqueza que não se carrega para onde
se vai. Se não a podemos levar conosco, assim como as casas, que pelo
menos retiremos os dejetos que se encontram nela, nos livrando das tralhas
vivas que lá se encontram para nos recordar a feiura do mundo. Maria
Cabocla só não correu do fogo porque não chegaram a incendiar seu
galinheiro, como fizeram com o dos vizinhos, nem as choupanas onde
habitava. Mas tinha notícias de gente que correu das chamas. Fossem
acidentais, provocadas pela má sorte, ou causadas pela cobiça dos que
limpam suas terras da capoeira velha. Queimar os arbustos e a erva daninha
era desculpa aceitável, afinal não podiam queimar bicho e gente. Mas nada
mau se a raposa que mata o galinheiro aparece esturricada ou se o fogo
espantasse a gente teimosa que fazia de sua a propriedade alheia.
O tempo pode ser um adversário implacável, mas também ajuda a criar
couraça nos resilientes. Quando tentaram fazer o mesmo no último chão —
esperava com a fé dos vivos —, Maria Cabocla e Aparecido deixaram de
lado as diferenças e se juntaram aos vizinhos para enfrentar os desmandos
sem fim dos que podiam tudo. Não levantaram armas, nem incendiaram a
mata, mas se puseram juntos, lado a lado, como as hastes finas e flexíveis
dos bambus, as que vergam, rangem, mas jamais se quebram. O bambuzal
resistiu aos ventos fortes. Mas a vida na Tapera era diferente e solitária,
desagregada, cada um, na impossibilidade de salvar o todo, se esforçava
apenas por salvar a si mesmo.
Por isso não saía da cabeça de Maria Cabocla, e talvez da de Luzia, que
as cinzas que quase não se viam e se misturavam à terra úmida não eram
vestígios do acidente que vitimara o pai, mas de um crime. Não eram cinzas
das queimadas da cana, a lavoura destinada a esse cultivo não estava
próxima. O fogo espalhou uma fina poeira sobre a aldeia, desordenado, e
serviu para confundir um velho bêbado, estorvo para a prosperidade de
outro. Terra malcuidada onde nada mais se desenvolvia e estava nas mãos
de um incapaz, só porque tinha sido assim desde sempre. Não havia mais
igreja para ditar regras, embora os cobradores de foro lá estivessem para
azucrinar a vida. Não era Mãozinha, muito menos Chico da Colmeia,
velhos e sem voz. Eram homens de quem não se tinha notícia, apoiados
pelos que não se importavam com vivalma na aldeia.
Viram no dinheiro esperança e promessa que já não viam na terra de
antes.
9

Luzia não perguntou sobre o tal “dono”. Não queria saber o que tinham a
dizer os desconhecidos sem antes procurar pelos cobradores do foro, ou por
quem pudesse explicar com alguma propriedade o que estava acontecendo
na Tapera. Engoliria a seco a raiva sentida por todos, mas precisava saber
sobre seu destino. Cada vez mais isolada de sua comunidade, e em
definitivo após o incêndio do mosteiro, ela não sabia que depois da partida
dos monges — até que o mosteiro pudesse ser recuperado — os cobradores
passaram a vender lotes de terra para comerciantes, funcionários públicos e
fazendeiros desejosos de ampliar as propriedades vizinhas. Aproveitavam-
se das famílias desagregadas, da gente que partia todos os dias para a
capital em busca de sorte ou dos idosos que viram seus descendentes
deixarem a aldeia em busca de oportunidade.
A falta de conhecimento de Luzia não lhe permitiria compreender que a
tarefa de terra trabalhada por seus bisavós e herdada por seu pai, e que
pertencia à Igreja sabe-se lá desde quando, não tinha nenhum documento
para certificá-la como propriedade da família. Para ela, estaria tudo
resolvido quando retirasse do colchão velho os recibos mal escritos e
manchados pelo tempo. Não pagaram os últimos anos, é verdade, não
contava mais com o trabalho de lavadeira da igreja. Mas tudo estaria
resolvido quando mostrasse os papéis àqueles homens, dizendo: “Meus
senhores, vejam, é um engano, essa tarefa de terra é da minha família”.
Foi o que fez no dia seguinte ao retornar ao local com uma sacola
plástica cheia de papéis, alguns roídos por traças e outros indecifráveis pelo
mofo que grassava na estação das chuvas. Um dos homens foi até a cerca,
estendeu a mão suja de trabalho para ler o que havia no papel, contudo sem
se deter. Disse, olhando nos olhos de Luzia: “Isso não é o documento da
terra, senhora. O dono tem a escritura”. Mas Luzia não era de se render às
explicações fáceis. Não disse não saber o que era uma escritura, nem
mesmo que não sabia ler satisfatoriamente, nem mesmo que Maria Cabocla,
a irmã a lhe fazer companhia nessa busca por explicação sobre o que estava
acontecendo, não sabia também. Ela disse então querer ver o tal documento
do senhor. Os homens riram e disseram que ela precisaria pedir ao “dono”.
“Pois digam quem é o tal dono”, ordenou sem paciência enquanto seu corpo
tremia. Maria Cabocla sentiu o desconforto na garganta ao ver a tensão da
conversa. Os homens riram de novo e um deles respondeu: “Ele mora na
cidade”.
A cidade era maior do que a aldeia e a resposta era para fazer, decerto,
Luzia desistir de reaver o terreno. Ela não se deu por vencida e quis saber o
endereço exato. “Numa rua”, o outro homem informou enquanto ria e
colocava mudas nas pequenas covas abertas, sem dar atenção às duas. Eram
mudas de mamona, Luzia tinha observado, e apertou os lábios murchos pela
ausência dos dentes. “Que rua?”, ela quis saber, e eles fingiram não ouvir.
“Que rua?”, gritou mais alto e eles riram com mais vigor.
Maria Cabocla quis proteger Luzia. Puxou a manga da camisa que a
irmã vestia e pediu: “Vamos sair daqui, pelo amor de Deus”.
Luzia estava determinada e puxou o braço para que a irmã largasse a
manga de sua roupa. Se abaixou e colheu uma fruta pêca no chão e a jogou
na direção onde os homens trabalhavam. Eles fingiram não ver e riram. O
que será que diziam? Foi a primeira pergunta de Maria Cabocla. Será que a
chamavam de feiticeira, como os moradores da Tapera? Será que riam da
boca sem dentes ou do cabelo solto e grisalho feito a copa de uma árvore?
Ou punham-se a gargalhar do desespero de uma mulher ao descobrir que o
canto trabalhado por seu pai nunca fora de fato dele? Sentia raiva por ver
Luzia humilhada, e por ver o trabalho do pai destroçado, mas precisava
preservar algum equilíbrio para ampará-la. Logo ela, que havia sofrido
aflições iguais por toda a vida, estava de novo diante do menosprezo que
sua gente sofria. Viu o pai e a mãe com os filhos passando por humilhações
sem fim. Viu o vizinho caído morto por questionar o pertencimento do chão
onde sua família e a dos vizinhos nasceram. Viu outros tantos morrerem
adoecidos, com os nervos abalados por disputas desiguais.
Mas Luzia não se dava por vencida. Se apropriou de outra fruta pêca
para lançar na direção dos homens. Quando Maria Cabocla gritou: “Pare,
Luzia!”, o fruto ressecado já tinha estalado nas costas de um deles. Ele se
voltou para trás, tirou o chapéu e correu até a cerca. Segurou no braço de
Luzia com força, mas ela não se mexeu. Olhavam-se com raiva mútua e
Maria Cabocla se enfureceu, ordenando que ele largasse o punho da irmã. A
mão direita do homem, a mesma a segurar a enxada agora caída no chão,
apertava o corpo de Luzia. Era tanta força percorrendo o corpo negro
reconhecível dos filhos da terra — “É um de nós”, qualquer pessoa
constataria — que o punho parecia próximo a se esfarelar sob a mão calosa
de trabalho. Sem baixar a cabeça e engolindo a seco a dor de seu braço
comprimido, Luzia repetiu quase sem abrir a boca e de maneira pausada:
“Que rua?”. E ele disse entre os dentes: “Perto da igreja matriz”.
O homem soltou o braço de Luzia, e Maria Cabocla se pôs ao seu lado
enquanto estava ameaçada. “Não se bate num homem”, ele disse, “a
senhora deveria temer o que pode lhe acontecer. Muito menos se bate num
homem armado”, completou com os olhos injetados de cólera.
“O senhor está na terra do meu pai e não é só porque sou mulher que vai
me tirar daqui”, Luzia devolveu. “Pode até me tirar”, continuou,
reconhecendo que sua resiliência tinha limite, “mas vai ser morta.”
O outro homem segurou o braço do companheiro, pedindo que deixasse
a “doida” sozinha, antes de se afastarem da cerca.
Luzia estava plantada no mesmo lugar. Não sentia medo algum do
presente, dos homens e suas ameaças. Temia o futuro, o porvir, o
desconhecido, não eles. Gritou de novo: “O nome! O nome do que diz ser
‘dono’. Eu procuro por quem?”.
“Estêvão”, o homem gritou, levantando o braço num gesto de desdém
enquanto caminhava em direção à enxada largada no chão. Maria Cabocla
sentiu o coração desacelerar e viu um longo suspiro deixar as narinas da
irmã. Luzia tremia, nervosa, enquanto se afastava do local.
Seguiram o caminho para casa. As duas permaneceram em silêncio
enquanto andavam. Talvez ruminassem sobre a tensão e se aquilo
significava uma declaração de guerra. Maria Cabocla pensava, sobretudo,
no desprezo com que Luzia sempre tratava a roça, dizendo preferir lavar a
roupa da igreja a ter que cuidar da terra. Repetia o desdém a Zazau, que por
sua vez contava a Maria Cabocla nos telefonemas. Agora a irmã estava ali,
como se ferida, mas era provável que não fosse pelas razões mais aparentes.
A princípio, a disputa pela terra destinada aos seus antepassados era mais
uma questão de honra que de sobrevivência. Ou talvez Luzia percebesse
agora que, em sua iminente velhice, fosse precisar retirar o sustento da
terra, já que não havia as roupas da igreja para serem lavadas, nem o
dinheiro do pai para prover a casa. Em pouco tempo, quando Maria Cabocla
retornasse à própria casa, Luzia se tornaria a última remanescente da
família na Tapera. Só poderia contar consigo mesma e teria que encontrar
meios para tocar a vida.
Maria Cabocla rompeu o silêncio e perguntou se não seria melhor
falarem com Joaquim. Luzia nada disse, mas passou por seus pensamentos
não envolver o irmão. Não poderia contar com ele por toda a vida. Agora
seria ela a resolver os problemas que a afetavam. Em algum momento
Joaquim seria informado. Da mesma maneira contaria a Zazau. Mas sabia
que, se não agisse por conta própria, seria engolida pela aldeia que
definhava.
Quando chegaram em casa, Luzia permaneceu calada, sentada na cadeira
escorada na parede. Trocou de lugar com a irmã, sentada em choque, ainda
emudecida pela notícia da morte do pai. Não havia brisa e o ar estava
impregnado de um mormaço adentrando a casa e a paisagem. Do seu rosto
minavam gotas de suor que ao longe recordavam o orvalho sobre as
superfícies nas manhãs de maio. Maria Cabocla colheu cidreira no quintal,
fez uma boa quantidade de chá e serviu num copo de vidro.
“Beba”, disse. “vai te fazer bem.”
O silêncio de Luzia advinha da preocupação sobre o que seria de sua
vida sem a terra. O que Maria Cabocla poderia fazer pela irmã? Só lhe
restava aguardar por mais informações sobre a transação envolvendo o lote.
No dia seguinte, quando o sol ainda se levantava, Maria Cabocla
despertou do sono leve, mas não viu Luzia dormindo nem na cama nem na
rede. Temeu que pudesse ter retornado à tarefa de terra e saiu do quarto
num sobressalto. Mas Luzia estava à porta, pronta para deixar a casa. Ela
levantou os olhos para a irmã e a convocou:
“Vamos procurar o tal Estêvão.”
10

Pouco mais de uma semana antes, Maria Cabocla estava desamparada na


mesma cidade para onde se deslocaram. Se não fosse Alzira, a senhora
cristã que prometeu catequizá-la, talvez ainda estivesse perdida por lá.
Quando chegaram à igreja de Nossa Senhora do Rosário, puseram-se a
observar o entorno intuindo onde poderia morar o tal Estêvão. Não estavam
à vontade transitando por ruas e calçadas e se sentiam estrangeiras naquela
paisagem nada familiar. Se chocavam com pessoas apressadas, cães vadios
e tabuleiros vendendo de tudo um pouco. Até decidirem quem abordariam
primeiro, para saber sobre o invasor, se passou um bom tempo. Estavam
fatigadas pelo calor e pela indiferença das pessoas. Foi Maria Cabocla que
rompeu o silêncio e dirigiu a pergunta ao senhor com o tabuleiro de araçás e
jambus. Perguntaram também à mulher que vendia cocadas, aos homens
jogando dominó na porta de um boteco e ao amolador de facas e tesouras,
com sua gaita estridente desestabilizando ainda mais o juízo das duas, que
buscavam por respostas. Ninguém sabia.
Passava do meio-dia e sem mais esperança de que o mistério se
resolvesse, encontraram uma senhora regando pequenos vasos dispostos na
janela. Pediram um copo de água e a mulher empurrou a filha com má
vontade para o interior da casa, dizendo: “Água não se nega”.
Ao dispor os dois copos ordinários — guardados para matar a sede dos
indigentes —, a mulher perguntou o que elas faziam ali. Tinha observado as
duas caminhando pelas mesmas ruas desde cedo por mais de uma vez.
Procuravam por alguém? “Um senhor de nome Estêvão”, disse Maria
Cabocla, enquanto a irmã limpava a boca com a barra da camisa. “Estêvão,
Estêvão…”, a mulher pousou os olhos além das mulheres e ajeitou os
óculos como se seu gesto fosse ativar a memória. “Não, senhora, não
lembro”, disse, “talvez o povo do Mercado Municipal saiba dizer.”
Enquanto Luzia e Maria Cabocla se recompunham da jornada e
atravessavam a rua em direção ao lado oposto para continuar suas buscas, a
mulher gritou: “Ei, senhoras!”. Elas retornaram à janela. “Se não me
engano, esse Estêvão é dono daquela casa ali, fechada”, disse, apontando
para o imóvel no final da rua. “A casa amarela. Mas ele já não vive lá há
muito tempo. Vez ou outra alguém de sua confiança aparece, abre a casa,
limpa e vai embora”, disse, enquanto se pôs mais próxima, para completar:
“Não sei se é verdade, mas dizem que a casa de material de construção
perto da ponte é dele, e que as bancas de jogo do bicho também”.
Maria Cabocla agradeceu e seguiu com Luzia à procura da ponte.
Atravessaram as ruas calçadas com pedras antigas, irregulares, gastas pelo
trânsito e que exigiam equilíbrio. Ladeando o rio Paraguaçu, neste canto
sujo e tomado por uma vegetação daninha crescendo sem controle nas
margens, avistaram a ponte, caminho do trem. A armação em ferro se
destacava, e por ali passavam veículos, vagões e pessoas, num vaivém
interminável. O comércio de material de construção deveria estar nas
imediações e elas precisavam encontrá-lo e, para tanto, contavam que os
comércios dessa natureza próximo à ponte não fossem muitos.
Luzia parecia ser a mais cansada. Seu corpo carregava uma corcova e
uma presumível má nutrição, tornando evidentes suas limitações. Caminhar
sob o sol forte e o calor permanente, além da fome que as alcançava
ultrapassado o meio-dia, a debilitava ainda mais. Maria Cabocla comentou
sobre a ausência de uma sombra onde pudessem repousar do cansaço.
Seguiram e pararam em um, dois, três imóveis comerciais que poderiam ser
chamados de casas de material de construção até que, depois de muitas
negativas, um homem perguntou:
“Mas o que as senhoras querem com seu Estêvão?”
Era a certeza de que ali era o lugar que tanto procuravam. Dessa vez foi
Luzia a explicar que era uma mulher, uma filha da Tapera do Paraguaçu, ali
nascida e criada por quase todo o tempo. Lugar esquecido por Deus,
embora a vida de todos girasse ao redor do mosteiro. E aquela era sua irmã,
Mariinha, mas não contou que vivia longe. Omitiu também os períodos em
que a família precisou trabalhar fora da aldeia para não dar margem à falsa
interpretação. Seu pai, seu velho pai — “Que Deus o tenha” —, lavrador
desde menino, havia herdado a roça dos avós e cuidava dela há quase
quarenta anos. Suas mãos carregavam os documentos carcomidos pelo
tempo e embrulhados numa sacola plástica. Eram os recibos dos
pagamentos feitos todos os anos aos cobradores da Igreja, com conhecido
sacrifício. Luzia não contou os detalhes: da recusa do pai em pagar o foro
por se considerar herdeiro; nem ser ela a responsável por quitar e guardar os
recibos no colchão de palha até pouco tempo antes.
Maria Cabocla a interrompeu e começou a contar que a família fora
surpreendida com o cercamento e a ocupação do lote por desconhecidos
dizendo ser da parte de seu Estêvão. Que a informação era de que o suposto
proprietário morava na cidade, perto da igreja matriz. E assim chegaram ao
comércio onde esperavam encontrá-lo para saber o que estava acontecendo.
“Ele quase não aparece por aqui, donas. Mora na capital.”
Não havia um telefone, um familiar, alguém que pudesse explicar a nova
posse, já que aquela terra nunca foi posta à venda, e nem mesmo alguém da
família o faria sem consultar os demais. Luzia não revelou ser a última de
uma numerosa família a habitar a casa, a aldeia de Tapera do Paraguaçu e o
rio sem fim a se entranhar em cada palmo do mundo que conhecia. Se
soubessem que a frágil mulher era a derradeira da família Silva a viver
naquelas paragens, era provável que dessem um jeito de retirá-la dali sem
mais delongas.
“Sinto muito, dona, não podemos informar o telefone de seu Estêvão.
Mas não se preocupe que quando ele aparecer direi… — como se chama?
— que a senhora esteve aqui.”
O cansaço de Luzia pareceu se dissipar com a resposta evasiva do
homem de meia-idade, atrás do balcão com uma balança onde se pesavam
pregos e parafusos, e estantes com toda sorte de quinquilharias ao fundo: de
tubos plásticos a solventes; de massa corrida a lixas de todos os números.
Aqueles objetos dispostos de maneira caótica, o ambiente escuro e o cheiro
de produtos químicos lhe deram náuseas. A fome e o tempo abafado, o vale
do Paraguaçu onde não corria vento, a bexiga cheia da água tomada
minutos antes, a deixaram com vertigem. Sentindo que poderia cair a
qualquer momento, perguntou se havia um banheiro onde pudesse se
esvaziar e molhar o rosto para se recuperar. O homem indicou o caminho.
Maria Cabocla perguntou se ela queria companhia, Luzia negou. “Volto
logo”, disse, “me espere aqui.” Sentada no vaso manchado — de quê?, se
perguntou —, sentiu a urina quente deixar seu corpo. Não sabia muito bem
por quê, mas se recordou do Menino deixando seu corpo e a persistente
vontade de urinar que a acompanhou pelos últimos dias de gravidez. “Que
sina, meu Deus!”, disse alto, admirada pela persistente batalha que tinha
sido sua vida. Não encontrou papel para se limpar, então fez um movimento
sobre o vaso para deixar qualquer resquício de seus fluidos. Abriu a torneira
plástica e agradeceu pela água a refrescar seu rosto e sua nuca. Não
resolveria seus problemas, mas aliviaria a sensação de desmaio que a
acometeu antes.
“Mas quando ele aparecer por aqui, daremos o recado, dona, não se
preocupe”, disse o homem no intuito de se ver livre das duas e poder
atender os poucos clientes à espera.
“Pois diga mesmo”, Maria Cabocla reforçou sem disfarçar seu
sentimento de revolta. “Se ele comprou sem saber e foi enganado por
alguém, isso precisa ser resolvido”, completou se apoiando na irmã.
“Do contrário ele vai ficar no prejuízo”, Luzia emendou.
11

Os dias seguintes foram de perguntas e silêncio, palpitações e vazio. Luzia


não se deu por vencida e ficou entocada em casa pensando no que fazer
para reaver a terra. Logo ela que sempre desejou estar longe da Tapera e
sonhava com sua travessia pelo Paraguaçu, desembocando na baía. Ela que
jamais quis lavrar a roça e só o fez quando assumiu as funções do pai,
durante a temporada em que ele viveu na capital. Trabalhou porque Zazau
cuidava do menino, e por mais que tivesse feito algum esforço não
conseguia assumir os cuidados que a criança precisava naquele primeiro
ano. O criou entre a irritação e o cuidado, até ele partir para a cidade
levando suas minguadas economias. Imersa naquele profundo silêncio,
talvez buscasse coragem para encarar os vizinhos. Quantos já tinham
deixado a aldeia e quantos teriam que deixar? Precisava saber. Quem estava
comprando as terras e por quê, se durante anos prevaleceram os códigos da
Igreja e da comunidade?
A ausência de diálogo se impôs. Maria Cabocla se manteve calada entre
as paredes da casa. Já conhecia as agruras dos despossuídos. Vagou sem
destino com o marido e os filhos por caminhos que não gostaria de recordar.
Pernoitou dias ali, outros acolá. Trocou o trabalho de seus braços por saco
de farinha tornado papa salgada para saciar o vazio do estômago das
crianças. Naqueles dias, mais que em todos os outros, a memória regressou
abundante, fazendo alarido, em contraste com o ambiente imerso em
silêncio à sua volta. Talvez Luzia intuísse, mas não sabia da sua jornada
inteira. Não julgava que a vida de Maria Cabocla fosse fácil, muito pelo
contrário; conhecia a dureza que acompanhou a família e o povo da Tapera.
Quando as chuvas regressaram após breve intervalo, a mudez se afastou.
Depois, o aguaceiro deu uma pequena trégua, e Maria Cabocla a seguiu em
busca de pessoas que pudessem explicar a nova posse da tarefa de terra.
Venderam? Invadiram? A primeira inquirida foi Rita de Mira, que disse
nada saber mas prometeu se inteirar junto à família. Falou com certo
distanciamento, como se desejasse não se envolver naquela quizila. Se
exprimiu em poucas palavras, guardando a mesma reserva de sempre. Luzia
não lamentou e contou a Maria Cabocla o quanto Rita tinha sido prestativa
durante os dias da enfermidade do pai. Ela própria deu a notícia à irmã.
Ligou à procura de “Mariinha” e por pouco não pôde avisá-la. “Mas a vida
toda foi assim”, Luzia contrapôs. “Apesar de nossas mães serem comadres,
não se dirigia a mim com atenção nem mesmo quando eu lavava as roupas
da igreja”, completou, alimentando a ilusão de que a função de lavadeira
dos padres havia lhe dado alguma imunidade. Portanto, não eram surpresa
suas poucas palavras e adivinhou que dali não viria resposta. Mesmo que
soubesse, a vizinha não iria se envolver.
Numa tarde de vento carregado de umidade, elas deixaram de novo a
casa. Dessa vez em busca de Zoraide. Maria Cabocla perguntou com
discrição se a mulher tinha sido mesmo pareceira do pai. “Era o que o povo
da Tapera dizia naquele tempo. Mas eles também me acusavam de feitiçaria
e de ter parte com o cão”, Luzia respondeu. O vento sibilou entre as duas e
levantou as folhas secas adormecidas no chão, como a confirmar o
desabafo. Desde a chegada de Maria Cabocla, era a primeira vez que o véu
sobre o interdito com que eram tratados os males de Luzia se erguia. Ela
sentiu uma pontada no peito e percebeu a boca seca. A origem dos males
remontava a eventos que recordava com vivacidade incomum. Não foram
poucas as vezes que acordou no meio da noite aflita por imagens e angústia
a evocarem os dias de terror. Eram gritos, espanto, dores e a sanha de uma
comunidade contra uma menina que não conseguia compreender o que lhe
acontecia. Passados tantos anos, Maria Cabocla ora recordava de tudo com
detalhes, ora era assolada por uma sucessão de fatos desconexos plantando
a dúvida sobre o que de fato ocorreu. Às vezes se perguntava se tudo não
teria sido um pesadelo ou fruto de sua imaginação. Sabia da
responsabilidade do seu receio, do seu silêncio, sobre a confusão com que
os fatos se sucederam. Mas era a estranha intensidade do medo de perder
Luzia — de que a castigassem e por fim “dessem cabo de sua vida” — que
vinha como uma correnteza a levar tudo.
Uma âncora dos saveiros no leito do Paraguaçu a fincá-la em definitivo
nas areias do instante.
Luzia bateu na porta da casa onde Zoraide se instalava sempre que
voltava à Tapera. Um postigo se abriu e uma senhora idosa, talvez uma das
irmãs ou primas de Zoraide, apareceu na abertura para depois fechar e gritar
com firmeza: “Não tem pão, não!”.
“Ela me viu”, Luzia disse sem precisar explicar o óbvio, “mas não quer
falar.”
Quando não a queriam insultar, fingiam que não a conheciam. A mulher
estava velha, disse, os olhos embaçados de catarata. O que não mudava era
o apego, como acontecia com todas as outras, às convicções do passado, aos
dogmas da Igreja e à sombra a recair sobre o pouco discernimento da gente
da aldeia. Nos últimos anos se somou à lista dos males de Luzia o incêndio
do mosteiro. Quando se tratava de fogo, era ela a primeira suspeita.
Maria Cabocla não considerou que a irmã, comedida nas confissões
desde sua volta, fosse contar algo sobre seu calvário. Não imaginava
também que creditassem o incêndio aos “poderes” de Luzia. “Enquanto a
igreja esteve aberta, e eu lavava a roupa dos padres, o povo da Tapera me
deixou um pouco em paz. No dia em que entreguei a última trouxa de
roupas, comuniquei que não as lavaria mais.”
Maria Cabocla não se conteve e perguntou o porquê. “Meu espírito
pedia que eu deixasse aquele trabalho”, tentou explicar sem adentrar nos
detalhes. Não se sentia pronta para avançar. “Tinha algo errado naquelas
roupas. Elas não ficavam mais brancas e consumiam as minhas mãos”,
disse, parando próxima ao meio-fio e se certificando de que estavam sós
para prosseguir. “A água do rio se pintava de sangue toda vez que eu lavava
a roupa, Mariinha.”
“Misericórdia”, Maria Cabocla elevou a voz sem perceber. “Mas por que
isso, Luzia? Estavam sujas de sangue?”
Luzia olhou nos olhos da irmã. “Não sei. Não foi sempre assim. Tinha
acontecido poucas vezes antes. A primeira foi quando eu me perdi do
Menino dentro do mosteiro e o procurei aflita, sem encontrar. Ele estava
num vão abandonado que se enche de água quando a maré está alta.”
“Credo! Não sabia desse lugar.”
“O Menino me contou depois que os padres chamavam de salão do mar.
Você sabe que ele estudou na escola da igreja?”, perguntou à irmã, que
confirmou mesmo não lembrando de imediato; era provável que Zazau
tivesse contado e ela esquecido, mas fingiu saber para que a conversa
avançasse. “O galpão onde a escola funcionava está inteiro ainda. Acho que
não queimou por não estar rente ao edifício antigo. Quando passarmos por
lá, eu te mostro. Uma boa escola”, afirmou. “Os padres e uns poucos
professores ensinavam as crianças. O Menino aprendeu a ler e escrever.
Sabia muita coisa. Coisa até demais. Eu estava satisfeita porque ele estava
crescendo. Teria um destino diferente do nosso.”
“E o sangue, Luzia, de onde vinha o sangue?”, Maria Cabocla
aproveitou a disposição da irmã para falar.
“De muita coisa errada, Mariinha. Muita coisa errada acontecia ali. Um
dia você vai saber”, disse se esquivando da confissão.
Avançaram pelas ruas e se afastaram da aldeia em direção ao
descampado. Luzia parecia querer encontrar algo, mas nada disse. Enquanto
isso, falaram sobre os pés de araçás-mirins cada vez mais raros, os tapetes
lilases da florada do jambeiro e dos carcarás que voavam em pares,
inatingíveis. Falaram sobre como os caminhos para as lavouras ficavam
intransitáveis com qualquer chuva. Luzia contava que nem animal era capaz
de transpor os obstáculos, quanto mais carro de passeio e boa parte dos
veículos, à exceção do trator. Quando estavam mais afastadas das casas e
tudo que viam eram lavoura e descampado, Luzia se aproximou de uma
cerca e viu ramas de folhas de mandioca caídas no chão. Tinham colhido as
raízes e deixado o resto para queimar, limpar depois ou fazer mudas.
“Acho que ninguém vai se importar se eu pegar uns caules e aproveitar a
manaíba”, disse, procurando por uma passagem entre a cerca para poder
colher.
“Ave Maria, Luzia! Não é perigoso entrar e pegar o que é dos outros?”
Luzia não respondeu à irmã. Avançou para os restos de colheita em
busca dos caules caídos. Quebrou-os com as próprias mãos, com uma
habilidade que ela considerava não ter mais. Formou feixes, e Maria
Cabocla os amarrou com fibra da própria vegetação encontrada nas porções
sem roçados. Enquanto caminhavam para casa, Maria Cabocla comentou:
“Mas é muita manaíba, Luzia. Você vai plantar isso tudo no quintal?”
“Não. Vou plantar no lote do pai”, disse, seguindo em frente.
12

Foi no alvorecer que Luzia deixou a casa rumo à porção de terra trabalhada
pela família Silva desde sempre. Andou quase na ponta dos pés pela casa,
com toda a dificuldade que a deformidade em suas costas infligia, para não
despertar o sono leve da irmã. Apanhou os feixes no chão do quintal e saiu
carregando a enxada velha. No caminho, pensou nas histórias escutadas nos
galpões, acampamentos, nas boleias dos paus de arara transportando a
família de um lugar a outro. O pai, quando menino, ajudou o avô a cultivar
aquele mesmo lote. Essa foi a primeira e única escola que teve, e seu
aprendizado lhe permitiu sobreviver por longo tempo.
A relação de Mundinho com o quinhão de terra não era isenta de
conflitos. Amaldiçoava, maldizia as pragas, o tempo, o solo empobrecido à
exaustão. Foi capaz de deixá-lo sem trabalho no período em que se retirou
para a capital. Mas retornou, se conformou com o destino e viveu
remexendo cada palmo como se aquele ato confirmasse a sua posse. Viu
pulgões, gafanhotos, insetos desconhecidos e se arriscou até a usar o veneno
que os cobradores traziam da cidade e juravam resolver os males e que
abandonou de imediato quando teve urticária, falta de ar e encontrou tatus e
teiús mortos.
Envelheceu subindo o tabuleiro, se equilibrando no cascalho que calçava
o caminho, medindo os passos atrapalhados pela cachaça. Luzia se irritava
com a bebedeira do pai. Se pudesse, despejaria a garrafa no mato. Mas nada
dizia, o pai era a autoridade, e no fim da vida ela não se importava mais de
vê-lo beber. Restava-lhe se entorpecer diante das dificuldades sem fim, da
saudade de Alzira e dos filhos ausentes. Enquanto caminhava, Luzia pensou
que não havia semana que ele não falasse de Mariinha, a filha que partiu
sem voltar. Talvez não passasse por sua cabeça morrer sem vê-los, nem que
os anos fossem tantos a indicar que estava a caminho do fim.
Os feixes de manaíba estavam num cesto de palha acomodado sobre
uma rodilha de tecido sobre a cabeça de Luzia, à moda das trouxas de
roupa. Quem a visse caminhar tão cedo se admiraria da sua força para levar
a enxada pesada e do equilíbrio com que carregava o balaio na cabeça. O
corpo estava mais encurvado, acentuado pela força dos anos. Era o começo
do declínio. Mas, se lhe perguntassem se o fardo era grande — o fardo de
manaíba e da enxada, não o fardo de uma vida —, ela diria que não, que lhe
caía leve. Havia uma energia diferente a atravessando de ponta a ponta,
vibrando como nos anos de juventude. Como quando sentiu seus cheiros e
desejou o homem, que por fim desgraçou sua vida. Mas nada parecia
importar com a mesma intensidade do passado. Nada mais era capaz de lhe
tirar o sono nem amargurar seu espírito.
Se resignou com sua guerra cotidiana e sua vitalidade emergia com uma
força incomum. “Não vou dar a terra de mão beijada aos invasores”, e fez
daquela raiva uma âncora poderosa para o controle de que precisava. Como
será que seus avós tinham chegado àquele lote? Herdaram dos
antepassados? Foi benesse da carola abastada, que depois doou tudo à
Igreja? Como saber, se a memória se apaga, se as pessoas se esquecem com
a mesma urgência com que recordam ser preciso viver? Os que vieram
antes, muito antes dos que aqui estavam, foram embora de que maneira?
Jamais saberia a história dessa terra, dos seus, jamais poderia contar com o
sentido de uma história antiga, remota, para justificar a vida presente. Luzia
compreendia o hoje e um pouco mais além, mas não era capaz de avançar o
suficiente para saber de que era feito seu espírito. Se sua história se resumia
às lembranças de sua família, em seu sangue, mal sabia, corria um rio
imemorial.
Quando alcançou a porção que considerava terra da família, estava ainda
mais disposta para trabalhar. Se achou que não suportaria, que sucumbiria
ao cansaço, deve ter se surpreendido com o vigor esbanjado naquela manhã.
Muitos passos atrás dela estava Maria Cabocla, despertando da rede e
estranhando a ausência do cheiro de café coado. Por um instante imaginou
ser a escassez batendo à porta. Não poderia se oferecer para comprar, mas
poderiam fazer algo para conseguir o café. Se levantou com vontade de
chamar de novo Luzia para mariscar no mangue. Poderiam vender os
mariscos e depois comprar o que precisavam. Mas não encontrou a irmã e
de imediato não se preocupou. Abriu a lata de café e viu que tinha pó.
Aproveitou o fogo aceso e pôs a água para ferver. Não encontrou o coador
de tecido — se sentia perdida, não era a sua casa, onde sabia o lugar de
tudo, mas havia achado um cartão telefônico enquanto procurava o coador,
e deixou o líquido decantar. Tomou sua caneca matinal pensando nos filhos,
se estavam bem, se precisavam de algo. Nunca havia estado longe deles e
aquelas quase três semanas era tempo demais para seu costume. Faria uma
chamada para o telefone público frente à escola, pediria que chamassem
Paixão, o terceiro, para saber se tudo estava no mesmo lugar.
Maria Cabocla se aproximou do quintal para lavar a caneca e deu por
falta dos feixes de manaíba deixados no canto da casa no dia anterior.
Primeiro considerou a possibilidade de a irmã os ter armazenado em outro
lugar. Até que se recordou da promessa do dia anterior. Se pôs pensativa,
fez cálculos sobre a probabilidade de Luzia ter ido sozinha ao lote onde o
pai trabalhava. Não pôde mais esperar: subiria o tabuleiro para evitar um
conflito maior. Enquanto dava seus primeiros passos fora de casa para
alcançar os da irmã, Luzia atravessava o arame farpado que passou a
delimitar o lote de terra. Lançou os feixes de manaíba para dentro. Escorou
com um galho uma das linhas de arame para deixá-la erguida. Colocou as
mãos pequenas entre as farpas pontiagudas e pressionou a linha inferior da
cerca. Foi assim que passou o corpo com poucos danos na pele e nas vestes.
Olhou à sua volta e viu quase metade da área com o cultivo de mamona. A
outra metade estava pronta para ser semeada.
Luzia decidiu plantar a manaíba na parte sem mudas. Depois resolveria
o que fazer com o cultivo de mamona. Destruiria? Deixaria crescer?
Devolveria aos homens para que fizessem o que bem entendessem? Agora
só queria demarcar sua posse naquele pedacinho de mundo, como se
faltasse o rito para entenderem que aquele chão era seu por direito e
ancestralidade. Houvera ritual também para que seu pai se apossasse
daquele lote, quando seu bisavô tinha morrido de saudade da bisavó que
Luzia e Maria Cabocla não conheceram? Quando avisaram da morte do
velho Leandro, seu pai se desesperou em busca de transporte que levasse a
família e as mudas de roupa, trapos carregados de um lugar a outro, de volta
à Tapera do Paraguaçu. Bem sabia que se demorasse um pouco mais outro
seria posto no lugar. Foi assim que do dia para a noite entraram na aldeia
num carro de boi, depois de percorrer grande parte do caminho num pau de
arara. A estrada final ainda não era de rodagem e foram no carro de boi de
um conhecido da família.
Algumas poucas ruínas de engenho de açúcar despontavam na paisagem,
mas o que ficou como memória da viagem foram duas imagens: a pequena
igreja caiada de branco num descampado a perder de vista — “Ali o dono
do engenho mandava batizar os filhos e também a gente cativa!”, disse o
condutor do carro, que desapareceu anos depois sem que Luzia soubesse de
que jeito; e, ao entrar na Tapera, o pináculo da torre da igreja visto muito
antes dos telhados das casas. A família se apossou da casa e dos poucos
móveis velhos. As roupas puídas dos mortos foram dadas a um passante.
Mas o rito, a transmissão do lote para seu pai, disso Luzia não tinha
lembrança alguma. Foram os homens da aldeia e um dos cobradores que
cumpriram, em respeito, o desejo do avô. Tempo em que a palavra valia
algo. Mas só se tornou de fato de seu pai quando conferiu à terra o usufruto
pelo trabalho. Foi quando ele lançou a enxada e plantou a manaíba que
virou aipim, depois farinha e beiju para alimentar sua gente. Da mesma
maneira Luzia tomaria posse do lote que havia alimentado sua família.
“O que você está fazendo aí?”
Luzia não escutava nem temia. Era Maria Cabocla próxima à cerca,
suada, armada até a alma para proteger a irmã.
“O que você está fazendo aí?”, gritou um dos homens, o mesmo que
apertou o braço de Luzia a ponto de imaginar que poderia fazê-la
desaparecer em suas mãos.
13

Luzia não olhou para trás e continuou a abrir a cova com a enxada. Lançava
uma estaca de manaíba para dentro e depois fechava. Estava em paz
consigo mesma, apesar do conflito iminente. Maria Cabocla atravessou a
cerca junto ao mesmo homem que a havia ameaçado, observando como ele
fazia para passar no pequeno espaço entre as linhas de arame farpado. A
irmã estava de pernas abertas, equilibrada sobre o chão, e a enxada quase
escandia palavras, o som do instrumento ecoando ao encontrar o solo
argiloso, úmido e vermelho. O sol começava a aquecer o ar, e a luz caía
sobre seu corpo acentuando ainda mais a cor terrosa de sua pele.
O homem repetia que o lote tinha dono e que ela precisava sair dali, do
contrário tudo iria acabar mal. Maria Cabocla o seguia, repetia que não,
aquele lote pertencia ao pai, à família, que elas procuraram pelo tal Estêvão
para resolver a situação, mas não o encontraram. Passaram um dia na
cidade andando de um lado a outro. O corpo do pai sequer havia esfriado
sob a terra, disse com um nó na garganta, e já haviam se apossado de seu
quinhão, sendo que ele tinha herdeiros — falou no plural, para que não
soubesse que se tratava apenas da irmã. O homem repetia o que tinha
ouvido, que aquela terra não pertencia à Igreja, diferente da aldeia no
entorno do mosteiro, mas que o verdadeiro proprietário estava vendendo
lotes. Maria Cabocla nem se estendeu nas suas justificativas, sabia que
aquela confusão por terra era igual em todo lugar e, por mais que
explicasse, não surtiria efeito. Precisava proteger Luzia do ódio explodindo
nos olhos do homem, pronto para pará-la de uma vez por todas.
Luzia continuava impassível, concentrada no trabalho pelo qual não
tinha estima alguma. Sonhou em viver na cidade, trabalhar em qualquer
lugar onde não precisasse sujar o corpo e as mãos, suar, ou ver o alimento
comido pelas pragas ou pelo tempo. Em lugar, pensava com ingenuidade,
onde não precisasse se dobrar ao tempo e aos vizinhos. Mas os anos se
passaram e ela não esperava muito mais da vida. Moisés havia partido e era
provável que não regressasse. Nada o unia a Luzia, as mágoas eram feridas
abertas, e o pai já não vivia para justificar seus retornos eventuais. Zazau
espaçava suas visitas, tinha uma numerosa família que a consumia. Joaquim
era comerciante do bairro na capital, tinha vida própria e não voltaria à
aldeia uma vez por ano, como fazia com regularidade. Humberto e
Raimundo estavam no mundo, não sabia se vivos ou mortos. Mariinha
retornaria para os filhos, para a terra conquistada com dificuldades, não se
arriscaria a regressar à aldeia e viver em meio a conflitos, com pessoas
hostis à irmã. A decisão de lavrar a terra tinha sido tomada de um dia para
outro, depois de muito remoer sobre o passado e o futuro. Era arriscada,
mas algo precisava ser feito. Não esperaria que lhe tomassem os restos e se
pôs na linha de frente para reivindicar o que considerava legítimo. Se não
fizesse algo por si, estava fadada a desaparecer como tantos outros
desejaram.
Resignada, lançava a manaíba na cova aberta, e fechava, paciente,
ignorando tudo mais à sua volta. O homem gesticulava com os braços,
Maria Cabocla falava cada vez mais alto. Então, ele ordenou que ela
parasse a irmã, do contrário ele não responderia por si. O outro homem se
aproximou e começou a insultar as duas. Mandou que procurassem o que
fazer, que eles precisavam trabalhar para levar comida para casa. Duas
mulheres velhas… deveriam estar em casa cuidando da família — se
exasperou. A medida do tempo eram as cabeleiras grisalhas, os fios
brancos. Eram as rugas e a pele começando a se tornar flácida. Era a
deformidade nas costas de Luzia, que parecia ter diminuído mas ainda
demarcava seu corpo como um espaço indissociável do mundo onde se
encontrava. Era a aparente fragilidade da magreza de Maria Cabocla.
Percebendo que Luzia não parava, o homem passou a abrir as covas
onde ela lançava a manaíba. Procurou pela primeira, abriu com a enxada,
jogou o toco para o lado. Abriu outra e outra, jogava o toco para cima com
uma porção de terra úmida. Maria Cabocla o seguia para evitar uma
tragédia, não saía de sua cabeça que ele poderia parar a irmã com a pá que
carregava. Um golpe e ela estaria aniquilada. Ela se pôs alerta, com os
braços soltos mas firmes para agarrá-lo caso tentasse agredir Luzia. Ele
seguia abrindo as covas e lançando no ar terra e toco de mandioca. Uma
dessas porções parou sobre o cabelo de Maria Cabocla, que limpou a boca e
os olhos com a mão. Até que ela não suportou mais o medo à espreita, já
tinha visto a morte por causa de cerca e de terra, por causa de briga de
vizinho e por ganância de fazendeiro. Gritou para Luzia parar.
“Deixe disso, Luzia, vamos! Esse homem vai te fazer uma desgraça.”
A princípio ela não respondeu. Cavava, tirava um toco do cesto que
empurrava com o pé direito, lançava-o no buraco, fechado logo após com a
enxada. Mas o homem tentava ser mais rápido, tinha força e juventude, e se
aproximava cada vez mais de Luzia, que por muito que estivesse disposta
era mais lenta. Quanto mais ele se aproximava, mais Maria Cabocla gritava,
repetindo a sentença como uma ladainha. Pedia que Luzia deixasse tudo ali,
tentariam resolver de outra maneira. Luzia trabalhava como se estivesse em
transe, atravessada pela vida, pela necessidade, por indignação e raiva. O
homem arrancou o último toco do chão antes que ela plantasse o seguinte.
Parecia ter vencido a guerra.
“Luzia, Luzia, pelo amor de Deus, deixe o diabo dessa manaíba aí!
Estou vendo a hora de esse homem te matar.”
Luzia parou, levantou o rosto suado e coberto de terra. Ela estava suja
porque ele se aproximava arrancando os tocos e os fragmentos de terra e
mato recaíam sobre seu corpo. Agora uma lama grossa feita de barro e suor
descia de sua face. Mas ela não guardava nenhuma expressão de desgosto
ou desânimo em seu semblante. Ignorou o homem e a ameaça. Olhou para
Maria Cabocla com um ar de insubmissa satisfação.
“Não paro, Mariinha.”
“Mas ele vai fazer uma desgraça”, Maria Cabocla disse, olhando com
firmeza para o homem que respirava ofegante e tinha o ódio incendiando
suas expressões.
“Pois que faça! Se ele me matar, vai matar uma mulher honesta e que
está trabalhando. Não posso mais ter medo.”
Prosseguiu com o plantio. A irmã a cercou com um galho retirado do
chão para protegê-la. O homem continuava a retirar os tocos de manaíba e
dizendo palavrões aos quatro cantos. Até que, no momento seguinte, Maria
Cabocla puxou com força a enxada das mãos de Luzia. No início a irmã
resistiu, achou que ela havia se deixado vencer pelo pavor da violência. A
mulher que trabalhava concentrada, conciliando urgência e paciência,
resistiu, gritou, mas já tinha perdido o instrumento. Mas quando a outra
estava com a enxada nas mãos, se pôs a abrir as covas com mais rapidez.
“Coloque as manaíbas. Eu abro o buraco”, ordenou Maria Cabocla.
As palavras agressivas se tornaram mais abundantes, mas elas agora
estavam juntas. Não havia ninguém da Tapera por perto e eles poderiam
golpeá-las sem que houvesse chance de defesa. O homem continuou a
retirar os tocos com violência e a terra pesada de umidade voava recaindo
sobre os corpos das irmãs. Elas sabiam que o trabalho estava perdido, mas
enviavam uma mensagem de que não seria tão fácil afastá-las. O homem as
humilhava com palavras e ações. Contudo, elas não engoliam o desaforo e
reagiam trabalhando antes de serem vencidas pelo cansaço.
Quando o último toco de mandioca foi jogado na cova, elas se olharam
satisfeitas com o trabalho e a energia despendida. Luzia agora estava sem
fôlego, curvada, o rosto era feito de lama. Maria Cabocla pôs as mãos nas
cadeiras, mirava o campo como se as mudas estivessem no lugar correto
para crescerem fortes. Ignoraram os homens. Luzia pôs o balaio debaixo do
braço, a rodilha de tecido estava aberta no seu interior. Elas começaram a
caminhar juntas para atravessar a cerca.
Passariam pelas farpas do arame, lanhariam a pele, rasgariam um pouco
mais as vestes. Mas não se sentiam derrotadas. Pelo contrário: sem que
dissessem palavra, experimentaram a força sem nome que só os que se
consideram vivos conseguem sentir.
14

Ao avistar a margem do Paraguaçu, Luzia apressou os passos, enquanto


Maria Cabocla tentava acompanhar sem que o corpo, ainda trêmulo,
respondesse às suas vontades. Foi assim que a primeira se agachou sem
dificuldades, o corpo ainda sob o instinto de sobrevivência. Mirou seu rosto
nas águas encontrando a areia e o viu recoberto de terra e suor. Permaneceu
quieta por um tempo antes de levar as mãos em concha ao rio e logo depois
ao rosto, lavando-se dos restos de sua batalha. O cabelo permanecia sujo.
Maria Cabocla a observava enquanto apoiava as mãos sobre os próprios
joelhos, o corpo encurvado se esforçando por não desabar no chão.
Em casa, o silêncio se fez presente enquanto as duas, sentadas,
recuperavam as forças. Até que Luzia olhou para a irmã para informar que
seu cabelo estava repleto de barro.
“O seu também”, disse Maria Cabocla com ar sério. “Parece que você
estava enterrada no cemitério.”
Luzia começou a rir e cobriu a boca com as mãos para esconder a falta
de dentes. A irmã se deixou contagiar pela reação inesperada e logo as duas
riram, como se fosse um ato contínuo e necessário para lhes devolver a
energia deixada no embate com os homens de quem sequer sabiam os
nomes.
Maria Cabocla se aproximou de Luzia, retirou sua mão do rosto para que
pudesse sorrir, livre, sem vergonha. Ela não resistiu e apenas disse que
estava sem os dentes. Maria Cabocla escancarou a própria boca para
mostrar os que lhe faltavam, e dizer que entre elas não era preciso se
esconderem. Luzia contou do candidato político que levou uma bacia
repleta de dentaduras para as pessoas experimentarem ao mesmo tempo e
como tudo aquilo lhe provocou enorme repulsa. A irmã parecia não
acreditar — “Jura? Mas como pode? Não sabemos onde puseram a boca
antes…” —, e de repente o riso se tornou incontrolável. As duas quase
foram ao chão entre lágrimas enquanto imaginavam as pessoas escolhendo
a prótese que se ajustava melhor à boca.
Aproveitaram a descontração e falaram mal dos políticos. Diziam que
nenhum prestava, só apareciam quando precisavam de votos.
“No mais a vida continua a mesma, nada mudou para a gente que vive
na beira deste rio velho”, Luzia refletiu controlando o riso que vinha de vez
em quando como a réplica de um tremor. “Eles parecem ter nojo da gente”,
continuou, enquanto a irmã enxugava as lágrimas.
“Não vê como abraçam as pessoas? Como comem a nossa comida?”,
perguntou Maria Cabocla. “É tudo mentira, nada daquilo é verdadeiro.”
Então disse que a aldeia ainda tinha sorte, porque onde morava os
candidatos nem apareciam.
“Não estão perdendo nada”, Luzia disse antes que a irmã concluísse:
“Talvez seja um livramento”.
Maria Cabocla foi ao fogão aceso e pôs batatas-doces para cozinhar.
“Enquanto cozinham, vamos lavar os cabelos.” Luzia se apoiou numa tora
de madeira feita de assento no quintal enquanto Maria Cabocla carregava
algumas panelas com água do tonel. Ela pediu que Luzia inclinasse a
cabeça para não se molhar.
“Não tem importância. Vou tomar banho e trocar a roupa depois”, disse
Luzia, procurando pela barra de sabão de coco.
Demoraram-se naquele gesto. O sabão, a água fria do sereno da
madrugada, as pontas dos dedos de Maria Cabocla encontrando o couro
cabeludo da irmã para aliviá-la dos desânimos. Era como se o tempo não
tivesse passado para as duas e agora fossem as meninas recém-chegadas à
aldeia carregando esperança porque teriam uma casa e o pai trabalharia a
própria roça. Luzia não disse, mas evocava o significado daquele regresso
para justificar o porquê de não renunciar ao lote da família. Enquanto água
e sabão escorriam de seu cabelo, falaram do passado e também das coisas
boas que tinham vivido.
Recordaram momentos de genuína felicidade. Como quando o circo se
instalou numa cidade próxima a uma das fazendas por onde o pai passou.
Não tinham dinheiro para pagar o ingresso, mas espiaram com Zazau
através dos furos na lona, enquanto os pais andavam sem rumo pela cidade
com preocupações que não gostariam de compartilhar com os filhos.
Depois voltaram ao presente e riram da cara do homem quando percebeu
que as duas mulheres desarmadas o desafiavam. Repetiam: “Você viu a cara
dele?” ou: “Ele estava prestes a nos matar”, fazendo troça de si mesmas
diante da hostilidade com que foram tratadas. Mesmo sabendo que dos
tocos de manaíba não nasceria um pé de mandioca — “O desgraçado
arrancou tudo” —, consideravam-se vitoriosas por tê-lo enfrentado. E riram
com o mesmo desembaraço do começo.
Ficaram ao sol para secar os cabelos e comeram as batatas com a
urgência da fome rugindo em seus corpos. Tinham destinado muita energia
ao embate. Durante aquelas horas não pensaram no que fariam, nem nos
seus destinos diante das mudanças. Não quiseram saber sobre o que o futuro
lhes reservava: nem Luzia sobre o que faria sozinha na aldeia; nem Maria
Cabocla sobre o retorno a sua casa. Sobretudo não pensaram como seria a
vida dali por diante. Viveram aquelas horas com intimidade, como se anos e
lugares não as tivessem separado. Era como estar juntas desde a infância, e
em breve saberiam o que se passou entre um tempo e outro, apenas
rememorando algo que se encontrava embotado em meio às lembranças.
Depois Luzia quis que Maria Cabocla falasse dos sobrinhos. Queria
saber detalhes sobre cada um, as características, se eles se pareciam com os
familiares conhecidos. Quem tinha se saído teimoso como a tia Luzia ou
determinado como tio Joaquim. Quem tinha saído gracioso como Maria
Cabocla. Quem tinha saído aos avós e aos tios sobre os quais não tinham
notícias. A irmã foi contando, sobre um a um, e sem pressa. Nenhum
nasceu na fazenda onde ela morava, mas todos em lugares diferentes por
onde passaram. Analice e Maria das Dores já haviam deixado a casa com
seus companheiros. Tinham filhos e voltavam uma vez ao ano para visitar a
mãe. Gildásio, a quem chamava de Paixão — o sobrenome de Aparecido
—, era o que assumiu algumas funções do pai na sua ausência. Depois
vieram Noel, Joseval e Raimundo, que ainda viviam sob suas asas. “Sinto a
falta deles. Nunca nos separamos”, disse com os olhos fechados e o rosto
voltado para o sol enquanto se secava.
“E o Menino?”, perguntou pelo segredo contado por Zazau, sem temer
que a irmã se desviasse da afinidade instaurada entre elas.
“O Menino é um homem, Mariinha”, Luzia disse de olhos também
fechados, porque talvez fosse mais fácil falar assim. “Mas me pareceu bem
quando esteve aqui. Não nos víamos há muitos anos.”
Continuou, sem pressa: quando ele deixou a Tapera não sabia que era
filho da “irmã”. Maria Cabocla quis saber por que esconderam as suas
origens durante tanto tempo. Luzia confessou que tudo começou com o
medo da mãe sobre o que as pessoas da aldeia diriam sobre ela. Já se
encontrava marcada como o demônio, talvez tenha achado que, além da
filha, o Menino estaria em risco. Depois Alzira criou a história de que era a
mãe do Menino. Já se encontrava doente, e desesperada para manter
Mundinho por perto e esperando assim que ele não voltasse à capital. Mas o
pai não era bobo, e a história se desfez para ele depois da morte da mãe,
depois que Zazau se foi deixando a criança. Mesmo mantendo o segredo
para todos da Tapera, e por consequência para Moisés, com o único intuito
de escapar da moral da Igreja. “Minha cabeça não estava muito boa,
Mariinha”, Luzia disse com o rosto já quente da luz do sol. Não sabia o que
fazer com a criança. O parto ocorreu dentro do rio por desespero. Por pouco
a criança não seguiu com a correnteza, não fosse Zazau convocando a irmã
de volta à vida, e ela a amparando na camisola, “coando” a criança. Foi a
irmã, Zazau, quem cuidou do menino por mais de um ano, porque embora
Alzira desejasse criá-lo, não era capaz de cuidar de si própria, quanto mais
de uma criança. Luzia contou como foi tomada de aversão, uma
necessidade de o impelir para longe, sem nunca conseguir explicar seu
sentimento de forma coerente. Achava que se ficasse só com a criança nos
primeiros meses seria capaz de afogá-la no tonel.
Maria Cabocla ouvia a irmã sem julgar, queria que continuasse a se
exprimir com franqueza e contasse mais sobre o que a sufocava. Luzia
prosseguiu: essa tristeza fez nascer a corcunda surgida de um dia para outro.
Enquanto crescia a barriga à frente, crescia o fardo ao fundo. Mesmo depois
da morte da mãe, manteve a mentira da maternidade por continuar sem
saber o que fazer. Como reagir, como educá-lo, como amar alguém que não
foi desejado? Alguém que enquanto esteve em seu ventre cresceu como o
Mal de que os vizinhos a acusavam? Mantiveram a história do filho
derradeiro, do caçula, e o pai, mesmo nos dias de bebedeira, não ousava
falar a verdade sobre o neto em respeito à memória de Alzira. Guardaram
tudo como um segredo a ser contado quando fosse o tempo, embora o
tempo tenha transpassado a todos.
“E o pai do menino?”, Maria Cabocla quis saber. “Nunca se fala nesse
homem.”
“Ele me desgraçou”, Luzia disse conformada, sem que parecesse um
lamento. Contou que ele não era da Tapera, aparecia de vez em quando e
usava as moças a bel-prazer. Era um homem claro, bem-vestido, andava a
cavalo como se fosse gente de posse. Deveria ser das fazendas da
redondeza, mas nunca souberam ao certo. Iludiu Alzira com os bons modos
e com tudo o que ela projetava em pessoas como ele, afinal seus sonhos
estavam se cumprindo. Ele era tolerado pelo povo da Tapera. Deve ter
concebido muita criança que se desfez antes de nascer com os chás das
mulheres mais velhas. Mas o pior ela nunca havia contado: nem à mãe, nem
à irmã Zazau, tampouco quando se confessava na igreja. Ele a tinha
violado, sem que ela pudesse se defender. Foi surpreendida com a história
do bilhete e quando deu por si estava perdida. Levou meses para
compreender o que lhe aconteceu. Talvez por isso a tormenta tenha se
instalado em seu espírito, o estado de torpor em que seu corpo esteve sem
se reconhecer durante a gravidez, a repulsa pelo filho. Não se lembrava do
nome de seu malfeitor. Nunca mais ele voltou à Tapera.
“Vamos entrar”, disse se levantando e interrompendo a conversa. “O sol
está comendo meu juízo.”
15

Maria Cabocla lembrou do cartão telefônico encontrado quando procurava


o coador de café e supôs que deveria ter algum crédito para anunciarem aos
irmãos os fatos dos últimos dias. Ela falaria a Joaquim para que viesse à
Tapera na primeira oportunidade; o lote de trabalho do pai estava ocupado
por desconhecidos e era preciso conversar sobre o destino de Luzia —
ainda que a irmã não soubesse ser esse um dos motivos do contato.
Joaquim repassaria as preocupações a Zazau. Maria Cabocla não sabia
se a notícia chegaria a Moisés, mas prometeu a si mesma o procurar assim
que possível. Esperava ter todos reunidos mais uma vez na aldeia antes de
sua partida. Só ficaria em paz se percebesse a vida de Luzia encaminhada,
quando tivesse a certeza de que a irmã não estaria mais em perigo.
Enquanto a família não chegava, não tornaram ao lote, embora
continuassem a buscar notícias sobre o tal “dono”. Talvez Joaquim
conseguisse informações das pessoas pelo simples fato de ser homem e, por
isso, dispor de alguma autoridade.
Nas caminhadas que faziam pelos becos da Tapera, Luzia seguia de
cabeça erguida, cabeleira solta, diferente da rigidez de sua aparência
anterior. A cada vez que saíam, se davam conta de que a aldeia estava
esvaziada. Casas estavam fechadas há algum tempo e esse movimento não
parecia ser provisório. Luzia constatou: a mudança não ocorreu do dia para
a noite. Era possível que o êxodo tivesse se sucedido aos poucos. Talvez
tivesse aumentado depois do incêndio da igreja, quando as pessoas se
sentiram desprotegidas, além de cansadas de viver num ermo onde nada
acontecia nem evoluía. Ou então que, sem a onipresença dos religiosos, os
pequenos agricultores tivessem vendido suas posses por quase nada e
partido para não voltar, antes que os monges retornassem, e com eles as
restrições de antes. Por sobrevivência não se interessaram por saber qual
seria o destino de suas posses. Venderam a comerciantes e desconhecidos.
Venderam a quem apareceu com dinheiro vivo para cobrir a oferta
insignificante. Os compradores quase nunca poriam os pés na terra, mas
reuniriam os lotes antes pertencentes às famílias para formar propriedades
maiores.
Aquela constatação consumiu o pensamento de Luzia sobre o que de
fato teria acontecido ao pai. Ele contestava o foro e talvez tivesse recusado
sucessivas ofertas de terceiros por sua posse. O dinheiro não enchia os
olhos do velho, ela sabia. Era cioso, sim, de justiça. Recusava pagar o foro
não por avareza, mas por achá-lo injusto. A herança de seus avós não iria
parar por qualquer preço nas mãos de desconhecidos. Naquela terra tinha
trabalho, suor, raiva, desesperança, mas também afeto e dádiva. Retirou dali
o sustento para os filhos. Era uma fração pequena, não permitia grande
plantação, mas tinha sido daquelas medidas de braços que retirou o
alimento da família. Na terra, a fome não prosperou, diferentemente dos
campos onde viveram trabalhando para outrem, bem diverso do ocorrido
com os que deixaram a Tapera por falta de trabalho. A fome visitou a filha
Maria Cabocla e os filhos Raimundo e Humberto. Todos haviam
experimentado mais de uma vez a carência nas suas andanças.
Enquanto Joaquim não chegava, as irmãs recontavam suas histórias
entre os afazeres dos dias. Naquelas poucas semanas revisitaram passagens
de toda a vida. Algumas impressões eram compartilhadas pela primeira vez.
Outras eram apenas rememoradas para pontuar situações e sentimentos,
fazendo analogias com o tempo presente. Ou apenas para aplacar a saudade
do que não voltaria mais. Maria Cabocla contou como cada filho tinha
nascido, se em tempo de chuva ou estiagem, quem havia sido a parteira e
como surgiram os nomes. Contou sobre o que considerava sorte: a
construção da escola justo quando chegou à fazenda onde morava.
Diferentemente dela, os filhos puderam aprender a ler, escrever e seguir
com suas vidas. Ela só hesitava falar da vida de violência junto a
Aparecido. Não contava dos maus-tratos, da bebedeira sem fim e dos seus
últimos dias. Embora o sofrimento habitasse sua memória e jamais fosse
deixá-la, não queria compartilhar suas mágoas. Considerava que o marido
tinha sido atormentado pela vida mais do que poderia suportar e revidava
todo o seu martírio aos que estavam à sua volta. Nos seus meses
derradeiros, ele demonstrou ter consciência dos malfeitos e lançou a Maria
Cabocla e aos filhos gestos de arrependimento.
Remoer os pesares de Aparecido a fez voltar aos seus próprios
sentimentos. Alguns a acompanhavam desde a infância. “Eu me sinto
culpada por tudo que aconteceu a você, Luzia”, Maria Cabocla começou a
falar enquanto dobrava as roupas secas retiradas do varal. Luzia parecia não
ter despertado para a conversa, continuava a varrer, seguindo o ritual de
contar e escutar instalado na casa que o rio prometia, num dia de grande
cheia, devorar.
“Você sabe do que eu falo”, Maria Cabocla disse para chamar a sua
atenção.
Por um instante Luzia parou de varrer o chão. Segurou a vassoura como
um pastor seguraria o seu cajado e evitou olhar para a irmã. “Não, por
favor, agora não, Mariinha. Foram dias pesados demais, não precisamos
falar sobre isso agora.”
A intervenção de Luzia restaurou o silêncio. Maria Cabocla nada mais
disse naquela manhã, mas estava disposta a recuperar a história. Quando,
Deus?, perguntou a si mesma. Quando voltarei para a Tapera de novo?
Quando iria poder olhar Luzia para falar sobre os sonhos recorrentes, os
gritos, sobre a lembrança esgarçada como um véu antigo recobrindo sua
vida? Precisava recuperar os acontecimentos, exorcizar os fantasmas e
iluminar as sombras para se sentir em paz em definitivo com a irmã. Suas
recordações estavam entremeadas de dor, desvios, histeria, uma turba
pronta para transformar Luzia na encarnação do mal pregada pelos
religiosos em seus sermões. Mas essas mesmas lembranças já não eram
críveis nem mesmo íntegras. Não conseguia separar verdade e imaginação
porque a história do povo da aldeia ecoava soberana e inconteste. Havia
sido inscrita em sua mente com gritos enquanto erguiam paus e pedras,
enquanto crianças choravam e seus pais tentavam defendê-las. Precisava
falar com Luzia e atar de uma vez os fios do dito e do não dito.
Depois de uma longa caminhada por ruas e casas cada vez mais
abandonadas, se pôs a contar como estavam os filhos na velha morada.
Contou que a mesma chuva irrompida ali também desabou por lá. Envolveu
Luzia como se envolve uma criança em segurança. A irmã quis saber mais
sobre a terra, os rios, sobre as pessoas que viviam naquele lugar mágico das
histórias de Maria Cabocla. “É um lugar bom de se viver”, Maria Cabocla
garantiu. “Não é perfeito. Tem de tudo, como aqui. Há gente que não se une
como os dedos das mãos.” “Aqui os dedos se foram”, Luzia disse, mas
permanecia com o mesmo interesse de antes para escutá-la. Por fim, Maria
Cabocla abriu a sacola e mostrou as folhas de babosa brilhantes que tinha
encontrado.
“Estavam num terreno abandonado. Vou cuidar de seu cabelo”, disse
com os olhos iluminados.
Eram os gestos a substituírem as palavras de um vocabulário onde
verbos como “amar” inexistiam. Maria Cabocla untou os cabelos revoltos
de Luzia com a polpa gelatinosa, enquanto a pele e as extremidades
serrilhadas da planta ficavam ao lado. A irmã permaneceu de olhos
fechados, uma manta gasta e desfiada sobre os ombros impedia que a seiva
pintasse de nódoas a roupa puída. Ela também fechou os olhos e as poucas
palavras que a deixaram evocavam a infância, a liberdade dos que demoram
a identificar os cativeiros do mundo, as investidas mata adentro.
Estavam as duas e Zazau percorrendo o chão descalças, as solas dos pés
engrossando espessas e rachadas sobre a terra. Além delas havia uma
menina reunida às irmãs participando das explorações e brincadeiras. Tudo
isso se deu quando voltaram à Tapera, e Luzia começou a viver de uma
maneira diferente. A aldeia era um mundo à parte: gente habitando casas,
roçando seus lotes, se embrenhando na mata e navegando o Paraguaçu; era
povoada de pessoas e histórias, e ninguém parecia mais notar. As árvores
andavam, os pássaros falavam e o fogo dançava, mas os olhos cansados das
pelejas já não conseguiam ver. Luzia via, escutava, contemplava. Quis
dividir com as irmãs sua descoberta de que tudo estava vivo. Elas riram,
disseram ser mentira, zombaram da menina e continuaram suas vidas.
Apenas Edite, a menina a quem havia se unido, quis saber mais. Logo se
tornou mais próxima, se fez companheira e confidente, estava ao seu lado a
todo instante. Eram quase moças, cuidavam dos afazeres da casa e dos
irmãos menores. Seguravam os restos do dia com seus dedos pequenos para
que não escapassem, como se as horas de liberdade fossem as mais sagradas
de todas, as mais preciosas a que tinham direito. Se encontravam à tarde ao
pé de uma árvore, “sagrada”, diziam os invisíveis, e dali só saíam quando
contavam sobre as coisas que não podiam ser vistas.
Seguiu-se o tempo de desvendar, de imaginar e de moldar o mundo com
o que tinham em si. Mas algo maculou para sempre os dias, culminando em
acusações e ódio, mudando para sempre os cursos de suas vidas.
“Ainda penso em Edite”, Luzia disse, enquanto as mãos de Maria
Cabocla se afastavam de sua cabeça.
16

Era um verão mais quente que o habitual, e o ar estava carregado de


eletricidade. Faíscas, à deriva, atravessavam o espaço em meio a um
ambiente cada vez mais seco. O fogo grassava em terrenos abandonados e
campos de cultivo, ressequidos pela escassez de água. Não havia
recordação de estiagem tão prolongada na Tapera. Naquele lugar assolado
por uma intempérie atípica, Luzia desenvolveu os sentidos e os viu se
tornarem aguçados: sonhava com os mortos, compreendia a língua dos
animais, sentia em cada fibra as oscilações do mundo natural. Seu corpo se
modificava a cada dia, se preparando para uma tormenta própria da estação:
os seios arrebentavam o peito magro, a pele do rosto se tornava mais oleosa
e parecia pontilhada de borbulhas. O cabelo tinha se tornado ainda mais
crespo e os odores do corpo eram intensos, uma flor aberta a atrair insetos.
Ela costumava buscar por seu próprio cheiro, era assim que entendia mais
sobre seu corpo. Porém, de tudo o que a cercava, era o fogo a lhe chamar
com força para que descobrisse mais sobre si mesma.
O fogo não corria, tampouco escorria ou se tornava um bloco compacto.
Não ocupava um lugar, nem podia ser aprisionado. Tentou guardá-lo numa
caixa, mas percebeu que se extinguia quando encerrado. Tentou apresar
uma ínfima chama sob um copo de vidro, desaparecida quando não pôde
mais respirar. Foi a sua primeira lição: o fogo só existe livre. Por assim ser,
só poderia ser observado e sentido, admirado e respeitado, reverenciado e
temido. Quando se deu conta de sua descoberta, passou a observar com
atenção as chamas crepitando nas lenhas do fogão de casa. Mas, se não
fosse para ajudar, a mãe a espantava da contemplação sem propósito:
cozinha é lugar de trabalho. Então se pôs a admirar a fogueira das
ceramistas da aldeia onde queimavam as louças cruas. Eram pilhas de
madeira levantadas às margens do rio com uma gruta para armazenar
pratos, travessas e moringas de barro em seu interior. O fogo crescia e se
alimentava da morte da madeira. Naquele mesmo mês, pôde contemplar
mais fogueiras, as das viúvas, instaladas nas portas das casas das enlutadas.
Escutou com interesse o som emitido pela pilha de lenha que queimava.
Reproduziu o canto delicado e voraz do fogo com seus sons, sonhos, com
sua vontade de experimentar.
Guardava seus segredos e sentia vontade de compartilhá-los com quem
tivesse interesse. O fez com as irmãs, mas apenas Edite deu importância às
suas histórias. Quando se encontravam juntas antes do meio-dia, Luzia
dizia: “Espiem”, e então apontava para um lugar qualquer carregado de uma
energia que apenas ela sentia. Aguardavam inquietas à espera da flama e,
quando surgia depois de um tempo, olhavam para Luzia, que sorria
satisfeita. “Foi você quem fez o fogo?”, uma delas quis saber.
Luzia não se voltou a quem perguntou, continuava a contemplar a
combustão.
Na maior parte das vezes a chama se extinguia com o facho tal como
começou. Mas, se saísse de controle, homens e mulheres corriam para
apagar. Nesse caso, as meninas se afastavam para não serem
responsabilizadas. Sabiam dos castigos que lhes seriam destinados se
fossem pegas nessa brincadeira. Com o tempo, elas próprias aprenderam a
domar os focos onde surgiam, abafando a queimada com folhas de
bananeira verde crescidas na margem ou com água do rio carregada em
latas. Faziam isso antes que os adultos chegassem guiados pela fumaça e
percebessem a relação entre suas presenças e o fogo. E seguiam com suas
brincadeiras como se nada tivesse acontecido.
A estiagem se acentuou e os pequenos incêndios se tornaram mais
frequentes. Se alastravam e era comum ter reservatórios de água
improvisados para afastá-los das casas e das roças. Os sermões de dom
Tomás se tornaram repetitivos. Tapera do Paraguaçu estava queimando pelo
persistente pecado de seu povo que continuava a cultuar “demônios” e a
praticar magia. Pagavam o preço da desobediência contumaz dos pagãos.
Era preciso censurar e repreender os culpados. Dom Tomás recontava
histórias sobre as pragas do Egito, alertando que a ira de Deus seria
implacável. Se persistissem, logo veriam a fome grassar na aldeia pela falta
de chuva.
Os mais castigados pela agitação, ao assistirem às missas, passaram a
conspirar. Era preciso acabar com os maus hábitos, as práticas de magia,
abandoná-los de uma vez. A salvação estava na Igreja, em Deus, na reza do
rosário, na recepção do sacramento da Eucaristia, na penitência, no pão de
Cristo.
Luzia estava no limiar entre a infância e a puberdade, ainda não
conseguia dar a devida importância às preocupações dos adultos.
Permanecia convivendo entre as almas que se foram e os que ali estavam.
Admirava as línguas de fogo deixando os fachos secos e encontrando o ar,
porque contemplar a beleza das labaredas não parecia fazer parte do rol de
pecados de dom Tomás. Mas, sem observar grandes melhoras com as
advertências do abade, os moradores da Tapera se convenceram de que o
Diabo estava entre eles espalhando infortúnios. As pessoas ainda deviam
estar praticando magia. Formaram brigadas para vigiar o Mal e logo os
moradores da aldeia passaram a inquirir as crianças.
Surpreendidas por um desses agrupamentos formados pelos cobradores
de impostos, enquanto admiravam um varal de roupa incendiado, Maria
Cabocla e Edite começaram a chorar e disseram que apenas observavam,
não tinham provocado as chamas. Dispostos a encontrar os culpados pelo
fogo a se alastrar sem explicação, passaram a perguntar às meninas o que
sabiam sobre o fenômeno, quais os espíritos invocados para iniciar a
combustão. Disseram que ainda poderiam salvar suas almas se entregassem
quem sabia da magia. Enquanto chorava assustada com o inquisitório, Edite
contou que Luzia sabia quando o fogo iria começar. Diversas vezes a
menina tinha previsto onde as chamas surgiriam. Maria Cabocla tentou
correr para casa, mas foi contida por duas mulheres que a sacudiam,
perguntando se era verdade o que a outra contava.
“Fale antes que os demônios te levem para o inferno”, as mulheres
pediram com os olhos arregalados pelo desespero que havia tomado a
aldeia.
“É verdade?”, os homens interrogavam mais alto.
Maria Cabocla consentiu com a cabeça. Chorava de forma tão agitada
que nem percebeu para onde era levada, e quando se deu conta, estava na
porta de casa acompanhada de Edite e da pequena turba de moradores.
Alzira os atendeu, escutou e depois os acusou de proferir mentiras. As
pessoas berravam ainda mais, convocavam a “irmã” a reconhecer a
maldição da filha. Luzia surgiu à porta ao lado da mãe. Os olhos pousaram
candentes sobre Mariinha e Edite sem esboçar tristeza, a não ser uma ponta
de decepção pela fraqueza das duas. Os filhos foram chamar Mundinho na
tarefa onde trabalhava tentando diminuir os danos da estiagem. Os vizinhos
mais uma vez relataram a descoberta. Quando contaram a razão do
desespero, ele riu nervoso e chamou tudo aquilo de histeria, além de dizer
que a Igreja estava acabando com o resto de juízo que as pessoas tinham.
Depois convidou-os a se retirar da porta de sua casa, pedindo que
cuidassem de suas vidas.
Dali seguiram por becos levando Edite até a família. Os embates
continuaram na casa da menina para desespero da mãe, recém-viúva. Sem
ter como contestar, prometeu redobrar a vigilância sobre a filha, além de
aplicar castigos e de determinar a proibição de sua saída.
Mas a chuva não tardou a chegar. Por um tempo os incêndios cessaram e
os ânimos exaltados arrefeceram. A vida parecia ter retomado a rotina
habitual e talvez em algumas semanas já não recordassem daquela história.
Até que Edite desapareceu da casa onde estava sendo vigiada, acusada de
ser uma das incendiárias da aldeia. Passaram dias à sua procura, e até
mesmo os responsáveis por seu castigo se integraram às buscas.
Perguntaram nas estradas, nos saveiros que partiam para a capital,
adentraram as matas sem nenhum êxito.
Luzia, agora liberta de seu cativeiro, se pôs a caminhar e procurar por
evidências de que a amiga havia apenas fugido, não suportava mais a
clausura em que foi encerrada. Ao passar pelos campos queimados
rebrotando verde-vivos, encontrou restos de um vestido queimado.
Era o vestido de Edite para os dias de missa.
Com os olhos marejados, Luzia apanhou os trapos e correu para avisar a
aldeia do seu achado. Mas pela estrada esbarrou com as mesmas pessoas
envenenadas que não lhe permitiram sequer explicar onde tinha encontrado
o que agora segurava. Arrancaram os restos de tecido de suas mãos para em
seguida a condenarem para sempre como uma alma maligna.
17

Joaquim chegou à Tapera e em seguida se dirigiu ao lote de terra do pai.


Pediu a Luzia e Maria Cabocla que permanecessem em casa, tentaria
resolver o assunto de maneira pacífica. Depois do pedido, pairou sobre
Luzia a dúvida: o irmão de fato reclamaria a terra do pai ou, descrente da
sua capacidade para continuar trabalhando, tentaria conciliar os interesses
dos invasores? Era uma possibilidade diante do abandono em que a aldeia
se encontrava. Então esperaram pacientes, enquanto Maria Cabocla se
movimentava preparando o regresso a Água Negra.
Dias antes tinham voltado à cidade para Maria Cabocla receber no banco
a pensão, com o documento de identidade que tinha permanecido na bolsa.
Era com esse recurso que viajaria para casa. Com o dinheiro guardado nos
recantos inacessíveis do corpo, por medo de roubo, caminharam por um
bom tempo. Se deixaram guiar pelo horizonte do rio até encontrarem a casa
de dona Alzira. Palmas no portão e a senhora de vestes recatadas saiu
ajeitando os óculos para depois recordar da mulher a quem estendeu a mão
semanas antes. Pareceu animada por revê-la acompanhada da irmã e por
saber que quase tudo — exceto se despedir do pai ainda vivo — tinha dado
certo. Maria Cabocla retirou a cédula escondida na cintura, entremeada a
sua roupa, e a pôs na mão de Alzira, agradecendo o empréstimo de grande
valia.
“Se não fosse a senhora”, disse, “minha aflição seria ainda maior.”
E se despediram com um “Jeová Deus lhe acompanhe”.
Viver era percorrer o tempo e o espaço retribuindo as dádivas ofertadas,
Maria Cabocla tentou dizer o mesmo com histórias e palavras conhecidas.
Luzia aquiesceu, conformada com a partida da irmã. Caminhava
equilibrando o corpo cada vez mais instável nas ruas de pedras gastas. Não
se lamentou do que seria dela, estava disposta a prosseguir na aldeia até o
último dia.
Joaquim regressou do encontro e contou que os homens não foram
hostis, e que o escutaram quando revelou que o lote de trabalho era posse da
família há gerações. Alegaram não ter mais informações sobre o tal
Estêvão, a não ser um número de telefone, e que agora vivia na capital.
Ficou acertado que ele o procuraria para tratar da situação. Luzia não
deveria se preocupar, não estaria desamparada. Antes de voltar, tentou fazer
com que a irmã prometesse deixá-lo tratar do assunto, que não iria se
indispor com os trabalhadores, nem mesmo desafiá-los como havia feito.
Ela não concordou, continuou esbravejando que não ficaria assim, que
encontrassem logo o tal comprador para poder esclarecer de uma vez por
todas o engano.
O irmão se foi e deixou uma pequena quantia sobre a mesa. Luzia
recolheu o dinheiro e continuou a regar as plantas do quintal. Viveria do
mesmo jeito e faria o que lhe desse na cabeça. Maria Cabocla estava
preocupada e considerou ser melhor a irmã fechar a casa por um tempo.
Poderiam viajar juntas até sua morada. Conheceria os sobrinhos, pousaria
os pés e a cabeça num lugar novo e arejaria as ideias. Luzia agradeceu,
disse que gostaria de visitar a morada da irmã, mas não seria logo.
“Qualquer dia eu apareço por lá”, disse, “mas agora eu preciso ficar
aqui. É capaz de me tomarem a casa também se a encontrarem fechada.”
“Mas você pode continuar por lá, comigo, se quiser. Você sempre quis
deixar a aldeia e morar em outro canto.”
“A vida mudou, Mariinha. As vontades também”, disse sem completar o
que talvez só não contasse porque a achariam louca. Luzia não se
considerava alguém distante desse rio largo, dessa comunidade hostil,
distante da mata, do Loco e dos pássaros de toda sorte. Ali estava sua
história, suas referências, a memória dos pais, dos irmãos e do filho.
Desejou ver a mesma aldeia habitada pelos que lá se encontravam e pelos
que se foram, como aconteceu quando era apenas uma menina se tornando
moça e observava o mundo à sua volta com olhos e consciência ampliados,
sem fronteiras entre seu corpo e o meio. Aquele estado de vida plena e
consciente perdurou até a violência que havia gerado o menino. Mas
mesmo agora, quando já não via sua terra com a alma de antes, e depois de
toda a perseguição sofrida ao longo dos anos, das crianças que lhe lançavam
pedras às pessoas a estigmatizando como feiticeira, não se via mais longe
da Tapera. Deixar aquele chão àquela altura da vida seria apagar sua própria
história. Sem a aldeia, Luzia seria apenas um corpo oco e sem vida.
Era Luzia do Paraguaçu, Maria Cabocla a reconheceria assim e para
sempre. Da mesma maneira, ela já não se considerava alguém longe do
lugar que lhe permitiu renunciar à vida peregrina, errante, sem terra para
trabalho e morada. Luzia não existia sem o rio, sem a aldeia, sem o percurso
de sobrevivência desenhado com seu fôlego. Naquela fração do mundo
estava a narrativa de sua gente, diziam seus pais num tempo já remoto,
embora o povo não mais recordasse. Pisaram e guerrearam sobre o solo, sob
os mantos encarnados de penas das aves. Naquele chão se abrigaram os
sobreviventes da travessia do oceano, o grande rio, adentrando a foz do
Paraguaçu como presas engolidas e depois regurgitadas por uma fera. Em
algum momento pessoas de histórias distintas tinham se reconhecido na dor
e se unido para resistir às aflições que lhes eram infligidas.
Assim continuaria a ser até que o último morador habitasse a aldeia.
Talvez fosse Luzia, um rio correndo, transpondo os obstáculos, impossível
de ser represado. Se a constatação deixava Maria Cabocla apreensiva com o
futuro da irmã, ela também lhe dava em alguma medida a certeza de que só
sobrevivem os que têm um propósito. Essa era a intenção de Luzia:
permanecer na aldeia, semeando sua própria vida e o que considerava ser
justo.
Então não houve choro nem lamento quando chegou o dia de sua
partida. As duas se despediram como se fossem se encontrar na semana
seguinte. Nos dias anteriores cuidaram uma da outra. Maria Cabocla se
sentiu confortada com os cachos brilhantes e grisalhos que despontaram na
cabeça da irmã. Satisfeita, Luzia brincou que ela poderia fazer do cuidar do
cabelo das pessoas um trabalho, afinal levava jeito. Riram e recordaram
detalhes de um tempo que carregavam apenas consigo.
Maria Cabocla recebeu da irmã, quase incrédula, um convite para
mariscar na beira do Paraguaçu. Ali reviveram anos idos e falaram com
afeto dos que já não viviam entre elas. Com as hortaliças crescidas no
quintal, prepararam uma moqueca e se fartaram como havia tempo não
faziam. Luzia não lamentou não ter cultivos na terra para compartilhar. Do
pomar fértil e cada vez mais livre do mosteiro abandonado, ela colheu
frutas e ofertou um generoso farnel para Maria Cabocla levar na viagem.
Eram tantas que poderia compartilhar com os filhos e vizinhos quando
chegasse.
Quando a van deixou a Tapera rumo à rodoviária da cidade, Maria
Cabocla agradeceu à vida o seu retorno à casa dos pais e o encontro com os
irmãos. Agradeceu e pediu por Luzia. Já não temia a viagem e fez planos
para regressar quando possível. Pensou nos filhos, no trabalho por fazer
quando estivesse em casa. Retirou o lenço da bolsa e o perfume ia longe.
Levou-o ao rosto. Sentia falta de Belonísia e decidiu que a visitaria assim
que chegasse, para levar uma parte das frutas maduras do mosteiro.
Prometeu a si mesma fazer aquela viagem vigilante para não ser
surpreendida por nenhum contratempo. Conseguiu permanecer assim
durante a primeira hora, admirando a paisagem, as luzes arrebentando a
escuridão, revisitando as últimas semanas na aldeia. Mas depois foi tomada
por um bem-estar incontrolável e dormiu, com a agitação do ônibus pela
estrada, embalada pelo cansaço, como se repousasse em sua rede.
A alma selvagem
1

Uma labareda caminha pela aldeia deserta. Percorre as ruas tomadas pelo
silêncio e chamusca as pedras do calçamento sob seus pés. Não teme a ira
de sua gente. Os olhos ardem e o peito inteiro é uma flâmula oscilando no
ritmo da própria batida. A labareda atravessa o que restou do mosteiro, os
vãos escuros impregnados do fedor do incêndio. Percorre os espaços entre o
rio e a igreja, mas também o passado e o presente, a memória e o
esquecimento. Constata que o salão do mar continua ali, de pé.
Seu interior não é apenas um vazio, embora entre as velhas paredes não
haja móveis e o telhado tenha sido reduzido a cacos. Restam fragmentos de
objetos e a vegetação que cresce nas frinchas do edifício. Como no passado,
o fogo poupou a ruína do salão, seja pela permanente umidade das águas do
rio se entranhando nas paredes, seja por algum mistério impossível de
explicar.
É mais que a curiosidade habitual a convocar Luzia para o recanto
secreto da aldeia. Naquele espaço ocupado pelas águas da maré alta
recobrindo o chão de terra, há pedaços de correntes de ferro corroídas pela
ferrugem, ripas de madeira escuras e podres, paredes molhadas ao relento
resistindo ao tempo. Nas entranhas do mosteiro vive a história da aldeia.
Tendo penetrado a construção no dia em que procurou pelo menino perdido,
experimentando a amplidão dos próprios sentidos, Luzia esperou muitos
anos para retornar àquele lugar. Somente depois do incêndio — a
construção desabitada —, ela se dirige com regularidade aos restos do
mosteiro.
Luzia deixa a casa antes de o sol se levantar. Ultrapassa os escombros e
empurra a grande porta emperrada, a única que foi poupada pelas chamas,
pondo os olhos sobre a chaminé onde existem ninhos de diferentes
pássaros. Antes de descer ao vão, admira a vastidão do espaço. E basta pôr
os pés no recinto para os sussurros, as vozes, os lamentos, os gritos
preencherem seus sentidos. O vento traz os sons — de onde? — e o rio
penetra as passagens devagar, formando no chão um espelho d’água.
Embora não seja capaz de compreender o desenrolar da história da
aldeia, Luzia sente o aportar das embarcações de outros tempos na margem
do Paraguaçu. Divisa através do espelho formado pela maré alta o
desembarque de homens brancos vestidos de uma maneira que não se vê
mais. Inala o forte odor que trazem nos corpos pelas longas distâncias em
meio à imundice dos navios onde viajam acompanhados de mais homens de
hábitos escuros. Estes juram ter o poder de conversar com os deuses e
decidir sobre a vida e a morte de qualquer pessoa.
No começo, o povo acredita serem os visitantes os xamãs da terra sem
males andando por cima das águas.
Por isso se põem a escutar com atenção ao redor da cruz erguida, mesmo
sem entender sua língua. Riem dos olhares de espanto quando eles se
mostram surpresos por tudo o que admiram: o corpo forte, as penas
coloridas, o conhecimento dos caminhos para chegar às fontes da vida. Mas
não se sentem confiantes nem mesmo seguros na presença dos visitantes e
os vigiam tentando compreender aonde querem chegar.
Percebem então que, embora os homens brancos dominem o fogo e
disponham de tacapes que lançam chamas, não podem ser xamãs, por
sempre demonstrarem medo diante do desconhecido. Mas logo em seguida
a teoria de que são xamãs se fortalece por carregarem os males para o povo
da aldeia, que começa a adoecer. Luzia é mais um dos da terra e sente,
como eles, a fraqueza os tomar de assalto. O conhecimento dos pajés não é
suficiente para curá-los.
Antes que todos que aqui estavam desapareçam, alguém marca os
homens brancos como inimigos e conclama para que os mortos sejam
vingados.
Decidem então que serão devorados, como aqueles cuja punição é
irrevogável. Mas para tanto precisam se tornar humanos. É quando raspam
seus pelos porque são parecidos com os uacaris, e cortam seus cabelos
como os dos homens da aldeia. Depois pintam seus corpos e se sentam para
comer e beber cauim por muitos dias, vivendo juntos como se fossem da
família.
Todos dançam sem suspeitar que a morte está à espreita.
Os homens brancos acreditam que se tornaram, cada um, um deles,
mesmo que seus pensamentos estejam em busca de rotas e meios de fuga.
Antes de reclamar a si a nova condição de homens da terra, são mortos —
com bordunas —, cozidos e devorados. Quando os demais sabem do
sucedido, fogem acossados pelo medo.
A vida se esvai como água escorrendo entre os dedos.
Os que ficam passam a repetir os gestos e a história dos homens brancos.
Agora vivem entre eles os filhos dos estrangeiros, paridos pelas maués. Não
se passa muito tempo até que novos homens brancos retornem com os
xamãs deles em embarcações maiores carregadas de tijolos e cativos
trazidos de além-mar. Erguem dia e noite uma grande maloca de pedra onde
todos irão trabalhar e morar com os deuses. Alguns cativos morrem de
exaustão por trabalharem sem descanso até nas noites de lua cheia. A
persistência dos homens brancos faz um grupo da aldeia se render, seduzido
pelos deuses alheios. Outros morrem doentes. A maior parte abandona a
terra e viaja por léguas, enquanto os homens brancos espalham dor e morte.
Quando a grande maloca está pronta, os cativos sobreviventes
continuam a trabalhar para os xamãs dos homens brancos. O rio traz mais e
mais cativos desterrados à comunidade. Alguns se unem às mulheres da
aldeia nas cerimônias dos padres, para não ter que viver na terra dos males.
Continuam a trabalhar no canavial sem fim ao redor da maloca.
A grande maloca é chamada de igreja, e mais trabalhadores
desembarcados dos tumbeiros são transportados por oceano e rio até a
aldeia.
Luzia deixa o salão do mar e segue pelos caminhos da Tapera. Passa as
horas reverberando os ecos de sua experiência. Quando se sente preparada,
retorna às ruínas do mosteiro. Penetra na umidade do salão, os pés fincados
no charco da maré baixa enquanto os sons invadem os sentidos e projetam
imagens desconexas em seu espírito. Ela reúne os fios da história como se
dispusesse de um tear e urdisse um cobertor para estender sobre a Tapera.
A terra e o céu, as paredes carcomidas pelo fogo e pelo tempo, as ervas
crescendo nos campos abandonados, as cheias e as vazantes do rio e da
maré, os ventos ora mansos ora violentos, contam a história de vida e morte
de sua gente.
Quando a água para de oscilar no chão, Luzia vê imagens sobrepostas ao
céu e ao seu rosto murcho refletidos na poça. Um cativo passa por ela e
grita, desafiando o feitor que segura um vergalho. É dia de serviço de
enxada, corte da safra de cana no engenho ao redor da igreja. Outro cativo
se dirige furioso ao padre. Diz que não vai limpar os pés de cana porque era
trabalho feito. Resmunga, amaldiçoa a vida no engenho. O padre promete
castigo e ordena que o feitor e outro prisioneiro o levem para o salão do
mar.
Quando deixam o canavial, o trabalho é paralisado. Um clamor irrompe
em meio às folhas verdes das hastes de cana e encontra o céu. A súplica é
carregada pelo vento, atravessa os anos e encontra Luzia em seu tempo.
Ela fecha os olhos quando não se sente capaz de assistir ao sofrimento.
Aquela dor também é sua e percorre seu corpo cada vez mais vulnerável.
Luzia precisa proteger a mente e o coração. Quer manter intocável algum
ponto de seu espírito. Mas escuta os gritos de uma mulher cativa quando o
tacho da garapa fervente é entornado sobre ela. Não se sente capaz de olhar
a pele se desfazendo ao ser queimada.
Luzia vê o homem castigado pelo vergalho ser preso por correntes à
parede do salão do mar. Ao seu lado uma mulher esquálida, pele e osso, e
um prato de comida coberto de moscas que parece não ter sido tocado. Ela
o distrai contando que não é ladra nem revoltada, mas que está presa para
não comer mais terra. Por um momento ele esquece a agitação e se põe a
ouvir a mulher. Ela fita os olhos do revoltado com os seus, amarelos, e
conta: sem poder cavar a própria cova, ela se enterra por dentro na
esperança de um dia concluir seu próprio sepultamento.
Luzia se sente tonta, sacode a cabeça, a respiração acelera. Se recorda
quando os lençóis da igreja tingiram de vermelho as águas do Paraguaçu.
Ela levantava as mãos e as cheirava. Olhava o tecido sem acreditar no que
via, erguendo-o contra a luz. Precisava saber se havia mancha capaz de
tingir a água daquela maneira. Rezava pai-nossos e ave-marias e dizia a si
que era o Mal a desafiá-la. De tanto a gente da aldeia dizer que Luzia era o
Mal, ela havia se tornado parte dele. Depois achou ser um sinal de Cristo, as
chagas de seu suplício. Mas quem acreditaria na feiticeira? Não podia
confessar a dom Tomás suas visões, era capaz de ser impedida de lavar as
roupas, pondo um fim ao seu sustento.
Seus olhos pousam de novo sobre a poça d’água.
Um grupo de cativos para de trabalhar e se dirige ao local para onde o
rebelde foi levado. Pedirão o indulto do irmão, do vizinho, do camarada.
São os cativos da religião servindo a Deus e à ordem. Eles retiram o chapéu
diante do sacerdote e pedem misericórdia pelo rebelde. Dizem que estão
dispostos a limpar juntos os pés de cana. Mas dom Lucas está possesso,
vocifera inclemente, considera insubordinação o pedido de perdão. Decide
que todos serão castigados e lançados à míngua no salão. O padre olha para
trás à procura do feitor e de seus ajudantes, mas não os encontra. É preciso
castigá-los para o descontentamento não se tornar uma rebelião.
Um dos cativos ergue a enxada e golpeia a cabeça de dom Lucas. Foices,
enxadas e barras de madeira destroçam seu corpo.
Luzia abandona a ruína com passos ligeiros. Contudo, a história não a
abandona nem durante o sono. Ela sente ser imperioso voltar até não ter
mais nada a conhecer. Regressa, atravessa as paredes erguidas por seus
antepassados e penetra o portal até o núcleo do salão. Encontra a poça seca,
não poderá mais ver. Mas os sons, os sussurros, os gritos, começam a
invadir o vão. Luzia ouve os homens se aproximando do canavial. A
calmaria se faz quando os instrumentos cessam de trabalhar. Alguém grita
aos que ficaram:
“Matamos o Diabo. Está estirado na porta da igreja.”
Algumas mulheres choram e fazem menção de ir em direção à igreja e
os homens obstruem a passagem. Antes que todos possam prosseguir, uma
coluna de fumaça se ergue em direção ao céu. O dia se torna noite no
passado, e agora o corpo de Luzia estremece. Uma mão pousa sobre seu
ombro.
É o Menino.
“Era desse lugar que eu falava.”
2

Nos dias que seguem seu retorno da Tapera após o sepultamento do pai,
Moisés não tem notícias de dom Tomás. Continua a servir às mesas, e
esquadrinha cômodos e corredores do antigo casarão colonial nos horários
de maior movimento. Observa os eventuais noviços que surgem para a
refeição. Não consegue se lembrar dos jovens que haviam acompanhado o
abade nas vezes em que esteve no restaurante. Refaz os dias em sua mente,
mas não é capaz de recordar, da mesma maneira que o rosto de dom Tomás
continua a ter traços indefinidos em sua memória.
Não irá prosseguir com seu interesse de saber o que se passava na mente
do abade para fazer o que fez. Não esqueceu da violência, mas tampouco
desejou um acerto de contas. Se deixou levar pelas urgências. Era preciso
sobreviver à cidade e, mais ainda, contornar os desafios mais imediatos: a
fome para matar, um teto para se abrigar e um trabalho para se sustentar. O
ressentimento foi ultrapassado pelas necessidades, embora descobrisse que
o desejo de reparação poderia ser uma semente adormecida pronta para
brotar em meio ao deserto da existência.
Quando se dirigiu à Tapera para visitar o pai, temeu encontrar Luzia. A
imaginava cheia de mágoa por sua fuga, por ter interrompido o sonho de
vê-lo formado na escola do mosteiro, por ter subtraído o dinheiro que ela
havia economizado às custas de privações. Temeu os próprios sentimentos,
afinal se ofendeu com as dúvidas que ela devolveu à sua confissão sobre os
abusos que sofreu. Deixou a aldeia carregado de mágoa por todos os maus-
tratos recebidos e pelo que Luzia não conseguia expressar.
Remoeu inclusive a ausência de notícias sobre sua busca. Luzia e pai
Mundinho pareciam ter desistido dele. Enquanto esteve na casa de Joaquim,
não teve informação de que o procuravam, nem mesmo de que quisessem
saber onde vivia. Ao deixar a casa de Joaquim, escutou de Jandira, num
rompante de humilhação, que ele não era irmão do marido, mas o filho
rejeitado de Luzia. Conhecia a história do seu nascimento, de como Alzira o
coou com a própria roupa para que não morresse afogado no Paraguaçu.
Não imaginava que a indisposição de Jandira com ele fosse grande a ponto
de ela inventar uma mentira tão grande para o ferir. Num primeiro
momento, pensou em tirar a prova da história junto a Joaquim — Luzia era
sua mãe? —, mas o orgulho o impediu de buscar uma explicação, restando-
lhe ecoar as palavras implacáveis em sua consciência.
O regresso ao Paraguaçu lhe devolveu um mundo perdido. Não sentiu
vontade de evocar as ausências, nem de se lamentar ou obter reparação.
Pai Mundinho se mostrava fraco e o hálito guardava a gravidade de seu
estado. Talvez por isso estivesse afetuoso como raras vezes tinha sido.
Riram sem jeito da inaptidão que Moisés demonstrava para o trabalho na
terra por estar com a cabeça nos livros e os sonhos navegando o rio.
Naqueles instantes a tristeza dos anos habitava o passado e não provocava o
mal-estar de antes. Ainda assim, Mundinho desejou o perdão por ser
incapaz de compreender que aqueles eram valores criados por outrem. Se o
mundo poderia ser diferente, talvez fossem necessários outros sentimentos
para substituir os consagrados. Se rendeu às velhas emoções por prever que
sua hora se aproximava. Não queria fechar os olhos sem levar consigo os
males que porventura tivesse infligido aos seus.
Moisés pousou os olhos em Luzia e naquele instante não quis que sua
mágoa continuasse a ter o lugar que um dia teve. Foi além: no corpo frágil
da mulher que começava a envelhecer, a mulher que não havia desejado ser
mãe e que talvez tivesse motivos para tê-lo rejeitado, continuava a
despontar o espírito irrequieto e magnético, jamais sufocado, nem mesmo
nos anos de medo e perseguição. Descobriu sentir falta de sua presença
inflexível demonstrando uma força difícil de definir, sempre exigindo o
melhor para que ele aprendesse a sobreviver. A imagem de Luzia
equilibrando a trouxa na cabeça, resistindo às zombarias, suportando o
fardo da vida nas costas e sem nunca deixar de se levantar quando levada ao
chão, era a única a perdurar.
Por isso mesmo voltou da aldeia, talvez desconsiderando revirar o
passado. Por mais que reconhecesse o sofrimento a que tinha sido
submetido, e mesmo o impacto da sua decisão de se retirar da Tapera do
Paraguaçu quando era pouco mais que um menino, lembrar seria reviver, e
não estava disposto a atravessar tudo outra vez.
Seria assim, não fosse o despertar da alma selvagem atravessando seu
corpo depois de percorrer os séculos.
A intuição o levou a descobrir que a incapacidade de perdoar ou
esquecer tudo que o mortificava era também a necessidade de recriar a
memória. Um monumento a ser narrado ao tempo, celebrando a devoção
em oposição ao esquecimento, a transformação em contraponto à
constância. Era preciso preparar o inimigo a ser devorado pela história.
A consciência remota, inscrita nos rios que percorriam seu corpo, o fez
parar na porta do mosteiro da cidade, mais suntuoso do que o que havia sido
queimado na aldeia, quando se dirigia à praça onde a condução o levaria
para sua residência. Com a voz baixa e os olhos domados por uma falsa
consternação, se apresentou como um ex-aluno muito grato por tudo que
recebeu de dom Tomás. Ouviu que o abade estava cada vez mais debilitado
e não recebia visitas. Mostrou os olhos úmidos, a voz embargada e uma
vulgar compreensão da fragilidade de seu estado.
Sem se dar por vencido, retornou outras vezes, com frutas frescas e
depois com um livro roubado, anos antes, da mesa da diretoria da escola do
mosteiro. Fez questão que lhe entregassem com um bilhete assinado por ele,
com palavras de preocupação com o preceptor. Esse livro, o bilhete eivado
de pieguice, e a descrição do homem que retornava com regularidade à
portaria do mosteiro na esperança de ter a oportunidade de reverenciar o
velho mestre, tornaram o encontro possível.
Moisés caminhou pelos longos corredores do mosteiro com incontida
admiração: as paredes ostentando pinturas antigas, o assoalho de madeira
nobre rangendo com seus passos, os monges — como os que atormentavam
a vida da Tapera — andando em silêncio e conjurando os próximos atos da
guerra moral a serem incutidos no pensamento do rebanho. Matar a imagem
— Moisés profanava em sua mente a linhagem de prelados exposta na
parede — e prosseguir em direção ao ato derradeiro.
Quando transpôs a porta do quarto de dom Tomás, observou o ambiente
abastado de madeira negra, cortinas pesadas e lençóis de linho, como os
lavados por Luzia. A compaixão pelo trabalho exaustivo dela, desgastando
as mãos nos tecidos encardidos do mosteiro, alimentava ainda mais o
desprezo pela religião. “Então é assim que vivem?” — fingir surpresa a si
mesmo, fogo aquecendo o metal onde o inimigo seria cozido. Dom Tomás
não era o mesmo, à exceção da respiração ruidosa preenchendo o ambiente.
Um monge havia deixado o recinto sob a ordem da mão trêmula de seu
superior e fechado a porta.
De um lado havia a expectativa do perdão. Do outro, o compromisso
com a vingança. Sem preâmbulos, dom Tomás quer saber as razões para
Moisés insistir em encontrá-lo.
“O senhor sabia desde o encontro no restaurante quem eu era, embora
fingisse não saber”, diz de maneira direta.
Nesse ponto dom Tomás silencia e depois tosse, encurvando o corpo
para ressaltar a própria debilidade. Diz ter necessitado de tempo para
refletir, se aconselhar com Deus e decidir como pedir perdão. Tenta travestir
seus atos com o manto da inocência ao tratar seus sentimentos como
genuínos e por vezes mal interpretados. Insiste em chamar Moisés de “meu
filho”, antes de ser advertido para o chamar pelo nome.
“Por que o senhor agiu daquela forma? Eu era apenas uma criança” —
Moisés procura os olhos do abade, que não se desviam.
“Eu queria cuidar de você. É verdadeiro que era meu preferido, o filho
que Deus havia mandado para mim.”
“Um filho para servir aos próprios propósitos de quem o concebe” —
Moisés diz algo pior.
“Não!”, dom Tomás reage. “Desejei o melhor para você.”
Se Moisés pudesse olhar para trás, muito além do que viveu ou do que
seus pais, avós e bisavós viveram, talvez, entre os tupinambás, é provável
que pudesse conhecer a contenda entre o matador e o cativo a ser devorado,
antes do ato de morte. Todo o drama, debate e sacrifício, e a discussão
calorosa girando em torno da honra do guerreiro.
“Veja como você anda. Olhe seus trajes”, disse dom Tomás. “Enquanto
se educava, eu sonhava com você como professor, engenheiro, diferente dos
miseráveis moradores ao redor do mosteiro. Mas você foi trabalhar num
restaurante como um serviçal…”
Moisés considera não prosseguir. A crueldade do discurso enfraquece
sua determinação e deixa seus olhos marejados com a lembrança da
tormenta, dos pesadelos, da enurese que deteriorava ainda mais a relação
dele com Luzia. Mas uma flecha atravessa seu peito para despertá-lo dos
desenganos a guiarem o debate.
“A vida não acabou para mim e só estou aqui diante do senhor para que
eu mesmo consiga prosseguir”, diz com um tom de voz mais alto.
“Abra aquela gaveta, meu filho”, dom Tomás diz, reproduzindo o
mesmo gesto de antes com a mão que se encontrava livre, a mão sempre
disposta a dar ordens aos subalternos. “Traga a caixa que está logo à
frente.”
Moisés cogita não se levantar, temendo romper o encanto da reparação,
mas é movido por curiosidade, a necessidade de escrutinar tudo. Abre a
gaveta arrumada com esmero e retira uma caixa polida. Deixa-a próxima às
mãos do abade.
Dom Tomás retira um envelope, e dele cédulas de dinheiro. Põe tudo
sobre a mesa e empurra o volume devagar em direção a Moisés, que não se
cobre de vergonha, nem de indignação. Apenas se concentra para não
perder o controle da situação.
“É para você se arrumar na vida”, diz dom Tomás antes de suspirar
visivelmente cansado. “Para mostrar minha preocupação.”
Moisés continua a observar o abade e cita o nome das crianças que
atravessaram a porta da sala da diretoria. O velho sacode a cabeça como se
não quisesse escutar, mas confessa que sim, que não quis macular, mas
iluminar a vida das crianças conforme os desígnios de Deus. Ele recorda
que cada toque era desonra, mancha que não se apaga com o tempo. As
vozes travam um crescente duelo até que dom Tomás baixa a cabeça.
“O senhor se sente pronto para morrer?”
“Eu estou velho, mas ainda tenho tempo. Por que deveria estar pronto
para morrer?” Parece aterrorizado.
“Porque seu corpo fede, dom Tomás. É como se já estivesse morto.
Viver atormentado pela culpa é morrer um pouco a cada dia. Seu tempo
acabou.”
3

Ao notar a projeção de uma sombra extensa, Luzia se aproxima da janela.


Ela observa uma coluna de fumaça em movimento encobrindo o sol. A
corrente negra se ondula e atravessa o céu sobre o telhado, forma uma ponte
ao percorrer o ar ligando as margens do Paraguaçu. O cheiro da queima
invade a atmosfera, enquanto vozes se acumulam pelos becos formando
uma algazarra sem fim.
Um arrepio percorre o corpo de Luzia. Por mais que guarde o encanto
pela dança e pelo crepitar do fogo, sabe que, no fim, o dedo será apontado
na sua direção. Ainda assim deixa a casa e segue em busca do foco que
originou o incêndio. Se mantém à distância, observando homens e mulheres
unidos tentando apagar o fogo. Percebe a formação de uma corrente de
moradores ao redor da construção para conter a destruição. Não guarda
lembrança de algo parecido ter acontecido antes. Só houve união na Tapera
quando formaram uma pequena turba após a morte de Edite para acusá-la e
exigir sua punição. Agora, de mão em mão, passavam os recipientes mais
diversos — panelas, baldes, outros objetos em reúso — carregando a água
do Paraguaçu para debelar o fogo.
Luzia então sente a visão turva e as pernas se enfraquecem a ponto de
seu corpo quase desabar. Seus olhos estão fixos no mosteiro ardendo em
chamas.
Ela se apoia na parede de um casebre abandonado e as pessoas não
parecem notar sua presença. Mulheres correm aflitas e colaboram com os
homens na tentativa de extinguir a chama. Há os que contemplam a tudo
perplexos, e ainda os que esperam pelo porvir, agradecendo secretamente o
prenúncio da vida sem a Igreja. Mas Luzia não mantém contato com
nenhum desses grupos. Sua carne e seu sangue são trespassados por
perturbações de outra ordem. Pela manhã, percorreu as vielas carregando a
trouxa de roupa. Não parecia resignada como de outras vezes. O corpo
estava em brasa, estalando, alimentado pela ira, e a trouxa pesava, uma
âncora, o que a fez demorar mais tempo que de costume até o destino.
Pesava como se naquele fardo estivessem todos os lençóis lavados nos
últimos trinta anos, além das transgressões e da crueldade que habitavam o
mosteiro.

Mais cedo, enquanto caminhava com a trouxa, Luzia foi assaltada por
muitas imagens. Uma delas era a do recanto do rio onde lavava a roupa
tingido de sangue. Por um tempo acreditou ser culpa dos males que
carregava, sem cogitar outra motivação. Tentou afastar o mal rezando com
mais frequência, pedindo a Deus que mantivesse longe de sua vida aquela
aparição. Sem resposta, começou a considerar que o sangue vertia de
estigmas que não conseguia ver. O rio, as árvores derrubadas para ampliar o
plantio de cana, os pássaros aprisionados pelos alçapões dos homens e
meninos que os vendiam na estrada, os peixes anunciando o desaparecer.
Talvez fosse a chaga do mundo, e Luzia era incapaz de estancar a ferida.
Conformada, não contou a ninguém sobre o que via. Prosseguiu com a
lavação e frequentando as missas. Se benzia quando dobravam os sinos e a
ave-maria tocava no rádio da cozinha. Precisava do dinheiro do trabalho, e
qualquer deslize identificado em sua confissão faria a revelação se voltar
contra ela mesma.
Foi assim que ela prosseguiu com a labuta. Para os lençóis mais
encardidos usava barrela. Fervia os tecidos num caldeirão alimentado por
uma fogueira no quintal; deixava para quarar à espera do branco imaculado
exigido pelos monges. Não conseguia deixar de pensar em sua mãe à espera
da graça de uma descendência cada vez mais clara para se redimirem da
miséria. Pudesse embranquecer os filhos como se alveja um tecido, ela teria
feito. Se antes Luzia considerava um desatino o delírio que a levou à
desonra, diante das dificuldades acentuadas pelos anos passou a considerar
os sonhos da mãe sintoma da crueldade de seu tempo.
A mãe elevava as mãos ao céu à espera da graça, sem nunca a alcançar.
Remoendo o passado, Luzia tremeu no jardim do mosteiro esperando
pelo pagamento. Ensaiava em silêncio o comunicado a ser feito sobre sua
decisão de não lavar mais a roupa do mosteiro e lhe veio a imagem das
roupas de criança no cômodo usado pelo abade. Observou aquele achado
com estranhamento. Depois se agitou com o vaivém de meninos a caminho
da sala do abade. “Provável que fosse sempre assim. São demônios e já não
se interessam pela escola.” Mas as acusações do Menino retornaram,
semeando a dúvida.
Antes que viessem até sua presença, e Luzia pudesse dizer, controlando
a indignação, que não lavaria mais a roupa, ela se ocupa de evocar os fatos
da última semana. Se sentia indisposta, não gozava da mesma energia do
passado, embora a necessidade de trabalho permanecesse. As mãos doíam
nas manhãs de inverno depois de encontrar a água fria do Paraguaçu. As
mesmas mãos empunhavam o pesado ferro de passar para livrar os tecidos
dos vincos e amassados. Mas Luzia não guardava o interesse de antes pelas
coisas do mosteiro. Entrou e saiu distraída dos cômodos, com a certeza de
que havia se tornado invisível.
Enquanto recolhia as peças que seriam lavadas, percebeu a porta da sala
do abade entreaberta. Se certificou de que estava vazia. Provável que fosse
a hora das preleções aos monges e ela aproveitou para recolher o que podia
antes do fim do dia. Em meio à distração, os pensamentos percorrendo
veredas incontáveis, ela abriu a porta do banheiro para retirar as toalhas.
O abade esfregava as costas de um menino durante o banho e voltou o
rosto para trás, enquanto Luzia fechava a porta tomada pela surpresa.
Num primeiro momento, Luzia sentiu vergonha de ter invadido o espaço
por aparente desatenção e deixou a sala sem as peças recolhidas. Mesmo
com o andar lento, ela conseguiu avançar até o cômodo seguinte. Quando
dom Tomás surgiu no corredor para se certificar sobre quem havia deixado
o recinto — uma corrente de ar fechara a porta esquecida entreaberta? —,
Luzia se encontrava num ambiente abafado, ofegante, desejando abrir a
janela, mas sem coragem para emitir ruído algum. Aos poucos a vergonha
ficou em segundo plano. As confissões de Moisés voltaram precisas, plenas
de sentido, enquanto sua incapacidade de perceber o que ele dizia e o fato
de ainda o acusar de mentira deixaram seu corpo mais encurvado e abatido.
Restou a certeza de que havia falhado de maneira desprezível. As
lembranças da impaciência, da violência dos castigos, das mentiras
sustentadas até sua partida para que ele não conhecesse sua exata origem
retornaram intactas. E veio mais: os pesadelos que o atormentaram, os
lençóis empapados de urina, o desinteresse pelo estudo. A vergonha não
tinha mais o mesmo sentido de minutos antes, mas era agora uma flecha a
atravessar seu peito. Luzia foi incapaz de tratar a revelação de Moisés sobre
sua desonra como uma dúvida. Pelo contrário: lançou sobre ele a certeza da
mentira — sem hesitar por um instante —, tão confiante se sentia nas
virtudes da Igreja.
Na manhã antes do incêndio, Luzia continuou a remoer a revelação que
a havia atormentado durante os últimos dias. Por fim, quando dom Tomás
se aproximou, ela se cobriu de coragem para fazer o anúncio:
“Eu não vou mais lavar a roupa do mosteiro.”
Ele quis saber por quê. “Não posso mais”, Luzia respondeu, “já não
tenho a saúde de antes” — e inexistia inverdade na sua resposta. Só não
conseguia dizer o que a sufocava. Na correlação de forças com a Igreja
sabia estar fadada à derrota. O abade tinha a aldeia nas mãos e poderia
fomentar a perseguição de Luzia, como havia ocorrido em anos idos, e seu
pai poderia ser privado de trabalhar a terra.
Dom Tomás não insistiu. Talvez já esperasse que a lavadeira abdicasse
de seu posto. A lavação de Luzia não tinha o mesmo esmero de outrora.
Pediu então que esperasse pelo pagamento. Ela permaneceu de pé
observando o mosteiro à sua volta. Anos percorrendo o edifício à exaustão
sem receber nenhuma palavra de gratidão. Se tratava de sua obrigação,
afinal era paga para tanto, e não havia por que os monges agradecerem por
um trabalho contratado. Desnorteada, caminhou pelos corredores à procura
do salão onde tinha encontrado o Menino depois de tê-lo perdido de vista.
Mas, em vez de encontrar o salão, Luzia subiu a escada e terminou por
entrar num dos cômodos. O calor era grande, e quase sem ar, abriu a única
janela do ambiente. O voal da cortina envolveu seu corpo e uma revoada de
maritacas emitiu sons estridentes. Enquanto as seguia com olhos e sentidos,
notou sobre o parapeito da janela um olho-de-fogo-rendado. Luzia ficou
paralisada pela raridade do pássaro, segurando a respiração para não o
espantar. O animal inclinou a cabeça em busca de um ângulo, devolvendo o
olhar curioso, como quem tivesse descoberto uma espécie nova.

Enquanto o fogo se alastra sem controle, um pequeno grupo de moradores a


cerca. É quando têm início as acusações, os insultos, e ela, percebendo o
perigo, começa a se afastar apressando os passos.
“A feiticeira que queimou a igreja!”, uma mulher grita, passando a
perseguir Luzia acompanhada de uma turba sedenta de vingança pelo que
perdiam. Gritos, palavras de ordem, uma pedra, outra, outra, uma saraivada
atravessa o ar e duas atingem sua corcunda.
Luzia cai abatida, certa de que chegou a sua hora.
4

Maria Cabocla encontra Luzia encolhida no chão enquanto os agitadores


vociferam acusações contra a irmã. Não nota que ela está agarrada ao
vestido de Edite, que encontrou durante a caminhada. Os olhos estão
úmidos e brilham dominados pelo medo. A boca se abre, seca, e o corpo se
sacode como se estivesse em pleno transe. Observa que a irmã tem um corte
na testa, além de um ferimento no joelho. Provável que tenha se
desequilibrado tentando fugir da perseguição. Maria Cabocla sente que
precisa ajudar Luzia a voltar para casa, mas está paralisada pelo ódio que
transborda da face do povo da aldeia.
Percebe o pavor comedido nos olhos de Luzia e corre para buscar o pai,
a mãe, os irmãos, alguém que ajude no resgate. Ao ver Maria Cabocla
correr sem nada dizer, Luzia se sente abandonada e começa a gritar em
pânico, não por estar diante do ódio, mas por estar diante dele sem alguém
em quem confiar.

“Tá pensando na morte da bezerra, mãinha?”, Noel pergunta interrompendo


Maria Cabocla, que parece dispersa. Ela permanece inerte diante da mesa,
os grãos de feijão na mão direita, a boca contraída, os olhos fixos num
ponto indistinto, transpondo as paredes da casa de alvenaria. Desperta,
despeja os grãos na panela e se volta para o filho, abandonando os próprios
pensamentos:
“Já vai trabalhar?”
Ele assente com um gesto e pede a bênção antes de sair. É o último a
deixar a casa naquela manhã, e Maria Cabocla compreende que qualquer
dia eles a deixarão em definitivo. “Deus lhe abençoe”, diz antes de retornar
à separação do feijão dos restos de palha da casca e pedriscos que se
juntaram durante a batida no terreiro. Os pensamentos flutuam e avançam
feito aragem adentrando janelas e portas, da primeira à derradeira.
Maria Cabocla decidiu economizar o botijão de gás porque o cozimento
do feijão leva tempo demais. Separa uma parte da lenha empilhada no canto
do quintal e acende o fogo para assegurar o cozimento. Nos últimos meses,
retornava ao evento da infância com relativa frequência. Antes não havia
tempo para se deter em tais fatos. Os problemas se avolumaram com os
anos, sendo que os novos soterravam os de antes. Viúva, e com os filhos
cuidando dos próprios destinos, os dias passaram a se estender e vez ou
outra o passado invadia o agora. Mãe, pai, irmãos, anos incontáveis e sem
nenhum protesto de sua parte. Hora de se acertar com o tempo, e ela avança
em busca dos detalhes que permitirão compreender o que precisa ser
entendido.
Desde sua partida da margem do Paraguaçu com Aparecido, Maria
Cabocla não tornou a encontrar Luzia, embora estivesse nos seus planos —
porque ainda cultiva a esperança. De alguma maneira rever a irmã significa
voltar ao episódio do desaparecimento de Edite. Para entender o que se
passou, Maria Cabocla precisa assimilar também as implicações do
ocorrido na vida da família. Intenta revelar a confissão da desaparecida —
“Será que ela contou a Luzia?” — sobre a qual havia silenciado, assolada
pelo medo de piorar o que já era intolerável.
Enquanto o reencontro não ocorre, volta a rememorar a roupa de Edite
para os dias de missa. O vestido que um dia desejou e que da última vez que
viu tinha se tornado um farrapo. O tecido estava rasgado e queimado onde
antes despontavam flores de diferentes cores. O corpo leve de Edite andava
desajeitado sob o tecido, mas transmitia a graça que Mariinha e Luzia
cobiçavam. Ver o objeto destruído transformou o desejo em repulsa. Depois
sempre recordaria das vestes como uma mortalha, o presságio de que a
morte se mantém numa espera velada para prevalecer sobre a vida.
Quando a chama começa a crepitar no fogão a lenha, o fogo se
transmuta em amuleto, criando um campo de ilusão responsável por levá-la
ao dia em que muitos destinos foram decididos.
Eis que diante da família ocorre algo que se pode chamar de julgamento.
Mundinho se levanta indignado com as acusações, as responde com rudeza,
amparado por Alzira e pelos filhos. Antes caminham todos, a família e a
gente ensandecida da Tapera, para o local onde o vestido foi encontrado. As
irmãs seguem próximas e, apesar da idade, Luzia marcha resignada em
direção à vereda onde ela, Zazau, Edite e os antepassados comuns, os da
terra, os cativos, os estrangeiros, caíram em desgraça. Alguns dos presentes
alimentavam a esperança de encontrar a menina. Outros vaticinavam a
tragédia. Não encontram nada senão rastros de animais e de pés pequenos
— crianças? —, além das marcas do fogo na roupa confirmando a tese de
maldição.
Luzia está perplexa e não responde ao inquisitório, não se sabe se por
incapacidade, se por protesto. Parece obstinada a nada entregar, não porque
saiba o que de fato aconteceu, mas por não poder explicar o que sente sem
ser incriminada pela ignorância alheia. Sua resiliência é malvista e encarada
como atrevimento de menina sem educação. Por isso, Maria Cabocla se
sente desencorajada a falar. Tudo o que os pais dizem é refutado com mais
Deus, mais religião, mais explicações mágicas. Ela teme que seja verdade
— Edite está morta? — e se retrai ainda mais no segredo. Não há corpo
nem restos mortais, então ela ainda pode ser encontrada, é a tese que
prevalece. Poderiam ter sequestrado a menina, ou mesmo um animal feroz
poderia tê-la levado para longe não fossem as marcas de fogo no vestido de
flores berrantes.
Em meio ao suor, ao choro e ao ranger de dentes da mãe de Edite, e sem
que ninguém se prontifique a convidar o abade para arbitrar o que fazer, o
povo marca Luzia para sempre como a encarnação do Mal. Dão corpo ao
inimigo para manter vivos os mistérios que são incapazes de explicar. Se
Deus está na cruz, nas imagens dos santos na igreja, na contrição dos
monges, o Mal precisa ter um corpo. Ninguém melhor do que a menina
caminhando para a vida adulta, com sentidos para prever o fogo — não
apenas o fogo, mas também a chuva, as cheias e as marés. Enquanto não lhe
ensinavam, reconhecia sua habilidade como uma brincadeira, que era um
pouco magia, porque fora assim que acontecera com os que caminharam
naquela terra antes e carregaram o que poderiam chamar de sensibilidade.
O que está aprisionado no peito de Maria Cabocla, lá mesmo fica, não
há remédio para a condenação. Anos depois, ela leva a amargura do que
passa a considerar fraqueza por não ter pelo menos tentado dizer o que
sabia, ainda que não acreditassem. Como contar que um jovem, cria dos
poderosos, e que andava a cavalo por aquelas paragens, poderia estar
envolvido no desaparecimento? A comunidade o conhecia e o aceitava
entre suas meninas por ser quase branco e ter parte com os que mandam no
mundo. Esse jovem exerceu fascínio sobre Edite e a atraiu com
quinquilharias, sem que a aldeia, encorajada a vigiar o Mal sem corpo e sem
rosto, percebesse o perigo atocaiado.
Edite mostrava as ofertas a Maria Cabocla e Luzia e as escondia na mata
para não ter que dizer à mãe de quem as recebia. As meninas riam,
brincavam, sem, contudo, compreenderem as intenções por trás daqueles
gestos de aparente generosidade. Luzia havia conhecido o jovem naquele
momento e mais tarde se recordaria de sua presença sem que nenhuma
dúvida sobre sua participação no destino de Edite fosse aventada. Sua
presença não durou mais que umas semanas, mas foi suficiente para
contribuir com a devastação de muitas vidas.
“O que aconteceu a Edite?”, foi a pergunta reproduzida à exaustão.
Talvez o jovem a tivesse levado para longe para que cuidasse de sua
casa, de sua família. Todos escutavam histórias de meninas tomadas de sua
gente para satisfazer o desejo dos homens. Mas o mais provável era que
Edite estivesse morta, porque seu corpo, nunca encontrado, guardava um
segredo. Talvez estivesse sob a terra numa cova rasa em meio à mata, e
dessa prisão jamais seria resgatada. O vestido foi queimado para não deixar
rastros do crime e confundir os que se deixavam guiar pela cegueira das
pregações.
Mas o povo da aldeia preferiu acreditar que ela vagou pelos campos
como uma tocha humana sem queimar nada pelo caminho. Da combustão
restou o vestido reduzido a trapo. Acreditavam que quem transformou a
menina em fogo foi outra criança. Por um breve tempo, Luzia, a menina,
encarnou o conhecimento dos antigos e desafiou o antes e o agora.

Maria Cabocla afastava a imagem da menina rodando, correndo em


chamas, acontecimento sem testemunhas mas que por ser contado à
exaustão se tornou recordação coletiva cravada no imaginário da aldeia.
História transmutada em sonhos recorrentes que a acordavam repleta de
angústia, rezando preces para afastar os maus espíritos e para que Edite
encontrasse o sossego onde estivesse.
Mas, ao despertar, voltava à imagem do jovem e de sua presença
estranha. Recordava-se de detalhes: o olhar de desejo que também sugeria
agressão; o jeito presunçoso; os gestos pouco confiáveis anunciando a
tempestade que se sucederia. Após aquela temporada, Maria Cabocla não o
viu de novo. Poucos anos mais tarde, ele retornaria sem que ela soubesse.
Cortejaria as virgens da aldeia e levaria algumas ao chão, dentre elas Luzia,
que não o reconheceu, marcando sua vida para sempre.
5

Luzia ergue o rosto da terra para onde estava voltado e retira uma porção de
barro da boca. Tem o corpo fatigado de trabalho e ressentido pelas pedras
que se chocaram contra suas costas, e mesmo assim encontra forças para se
levantar. Um pequeno grupo à sua volta brada orações e maldições. Mas ela
está resignada, afinal se prepara há anos para o acerto de contas. Nesse
exato momento seu pai deve estar desolado no campo, embriagado,
retirando ervas daninhas crescidas onde não há cultivo ou deitado sob a
sombra do jequitibá à procura de forças para voltar para casa. Passa pelos
pensamentos de Luzia que, antes do retorno do pai, darão cabo de sua vida
e não restará mais nada para contar a história.
“Não quero morrer sem ver Mariinha”, é o pedido que a atravessa com
angústia enquanto se levanta. Ao mesmo tempo deseja boa sorte ao Menino,
onde quer que ele esteja, sem conseguir se perdoar pela injustiça de sua
descrença quando ele confessou a violência que sofreu. A facção carrega
paus e pedras e brada furiosa. Quanto mais fragilidade Luzia aparenta, mais
determinados parecem para o juízo final. Percebe que a queda ou as mãos
que a encontraram rasgaram sua roupa, deixando um dos seios à mostra, o
que a faz se encolher na tentativa de recobrir sua nudez.
Luzia tenta, mas não encontra meios de deixar o centro do círculo
formado à sua volta. Sob seus pés está a terra, a mesma terra por onde
andaram viajantes de muitos caminhos, a mesma terra de onde retiravam os
alimentos e onde recolhiam seus mortos. Ela observa seus pés desnudos
sem encontrar as sandálias, que devem ter se perdido enquanto fugia da
perseguição. Do barro vermelho, teve a impressão de ver olhos
aterrorizados brotando feito cogumelos depois da chuva, os olhos de Maria
Cabocla quando a viu cercada pelas mesmas pessoas no dia em que o
vestido de Edite foi encontrado.
Enquanto ergue o corpo, imagina uma coruja se levantando do chão para
percorrer a noite. Ave de mau agouro — a aldeia diria —, e por trás da
repulsa existe também admiração. Toda vez que observa uma coruja se
levantar para encontrar o céu, Luzia se benze, e, no entanto, não descansa
os olhos até perdê-la de vista na escuridão. Há dias Luzia retorna a uma das
muitas histórias contadas por sua avó Didita, depois por seu pai, e que diz
respeito às crenças dos pioneiros. Os antigos guerreiros se recobriam com
um manto de penas das aves da mata que circunda a aldeia. Araras,
carcarás, canários-da-terra, sabiás, galos-da-serra, guarás, maritacas, corujas
e o olho-de-fogo-rendado, emprestando seus ornamentos para vestir os
eleitos. Nos rituais de dança se tornavam grandes pássaros a alçarem voo.
Se por dentro Luzia é uma candeia que aos poucos se torna uma
fogueira, por fora ela quer se cobrir com o manto imaginário. Sem ter como
escapar da emboscada, só lhe resta encarnar a salvação e se libertar da fúria
do povo da Tapera. Quando se põe de pé, recebe outra pedra no ombro. Não
se curva à dor nem à morte, e levanta os braços como as aves erguem as
asas quando se preparam para cruzar o espaço. Tem que assustá-los, e para
tanto é preciso fazer com que temam o desconhecido. Os seios estão
descobertos e quando percebe ri sem controle. Quem pudesse ver Luzia
admiraria a efígie libertária. Gira o corpo o mais rápido que pode, agita os
braços e parte para cima do rebanho formado por homens, mulheres e
crianças. Grita, e o som penetrante clamado por vozes de todos os tempos
paralisa a algazarra, mobilizada por preceitos difundidos através dos
séculos. Alguns parecem despertar do transe, embora não se redimam da
perseguição implacável. Recuam porque despertaram “o Mal” e se sentem
desafiados por um espírito perigoso. Alguns correm para longe, outros se
afastam devagar, atordoados, e o agrupamento se desfaz.
Após retirar a terra da roupa e de fazer um inventário dos ferimentos
deixados em seu corpo, Luzia se afasta sem olhar para trás, enquanto as
labaredas que consomem o edifício vão escalando o céu. Horas depois, o
som da sirene do carro de bombeiro anuncia o socorro à Tapera, mas aí já é
tarde demais: o mosteiro e a igreja estão destruídos.
Nos dias seguintes Luzia não pensa no incêndio, nem na pequena
multidão prestes a castigá-la sem julgamento. Se deixa invadir por algo a
ser compreendido como um regresso ao começo, a um tempo primordial,
sem memória ou narrativa. Passa a vagar pelas margens do rio, por matas e
estradas, por vielas, de cabeça erguida e sem o temor de antes. Mundinho
estranha a mudança de comportamento da filha, mas não a considera má.
Sem nada dizer, sente agora Luzia liberta da religião, assim como ele
poderá estar desobrigado de atender os cobradores de impostos.
Nesse vagar Luzia recolhe plumas e penachos, penas de toda sorte
encontradas nos quatro cantos da terra que conhece. Guarda tudo num
grande saco de aniagem e o deixa escondido longe dos olhos do pai e de
quem mais chegar à casa. Sem rezas e lamentos, sem missas e procissões,
Luzia pode olhar para dentro para encontrar seu âmago. Depois da morte do
pai, do retorno dos irmãos e, por fim, de suas partidas, ela retira o fardo de
penas guardado sob a cama e as espalha pela casa, imaginando como coser
o manto.
Luzia pretende se vestir da história e decide refazê-lo.
Não há fotografias ou ilustrações para guiá-la em seu intento, então lhe
resta a imaginação. No manto pensava quando viu Maria Cabocla se
emaranhar num ninho de cascavel no meio da mata. Os sonhos iniciais
permaneceram ao largo, e a religião se entranhou profundamente na sua
vida. Os sermões dos padres a envolveram e a tragaram, um mundo
perigoso dividido entre o bem e o mal, e estar ao lado da Igreja era estar ao
lado dos bons. Não havia meio-termo nessa teologia do medo. Mas os
segredos guardados entre as paredes do mosteiro, as injustiças reveladas
com o cair do véu da farsa, lhe deram a oportunidade de examinar a vida
para poder decidir para onde prosseguir. Habitando o desterro do mundo, e
em meio às penas espalhadas pelos quatro cantos da casa, Luzia decide
preparar o manto.
É depois da decisão que passa a encantar abelhas selvagens para colher
sua cera. Encera o cordão de algodão. Trança uma tela à moda jereré das
malhas dos pescadores da Tapera. Pena a pena, a peça ganha forma e cores
num trabalho delicado de inteira entrega que suspende o tempo na aldeia.

Enquanto Luzia se ocupa da feitura do manto, Maria Cabocla retira uma


peça de tecido do cesto de palha de buriti em sua casa em Água Negra. Não
recorda quando o adquiriu, mas deduz ter sido há pouco tempo. É um tecido
florido com estampas semelhantes às do vestido de Edite. Se a polícia não
tivesse levado a roupa para a perícia, talvez a tivesse escondido para si sem
que ninguém soubesse. Contudo, a única herança daquele acontecimento é a
memória, e nela se apoia para poder refazer o que a assombra.
Transfere as linhas do desenho para um papel de embrulho e o recorta
com uma tesoura nova, comprada ao receber a pensão do último mês. É um
vestido simples, sem detalhes, e por isso fácil de ser costurado. Maria
Cabocla dispõe de linha, agulha, e das mãos para o trabalho. Alinhava com
suavidade para depois coser pequenos pontos definitivos, deixando o
vestido próximo à perfeição.
Enquanto conclui a costura, Analice surge acompanhada do marido e das
filhas. Maria Cabocla interrompe o trabalho para contar sobre a viagem à
Tapera e sem perceber uma das netas se aproxima e pergunta: “É para mim,
minha vó?”. Maria Cabocla ri sem jeito, explica que aquele é um presente
para outra criança. A menina esboça um beicinho de decepção. A avó
promete escolher um tecido e costurar dois vestidos novos ainda mais
bonitos para as netas. Depois torna a costurar enquanto conta sobre o
encontro com a família. Com os olhos embotados de nostalgia, fura a ponta
do dedo na agulha. Uma gota de sangue mancha o vestido e ela interrompe
a conversa, desapontada por seu descuido.
Luzia leva o polegar esquerdo à boca e suga o dedo machucado pela
agulha de tucum. Interrompe o trabalho e observa o manto emplumado
enquanto a poucos passos de casa o rio segue em direção ao oceano. Há
meses se dedica à feitura da peça, ocupando seus dias de maneira
inabalável. De vez em quando pensa em Joaquim e na tarefa de terra da
família, se perguntando se algum dia reconhecerão ser ela a herdeira do
chão trabalhado pelo pai. Mas ainda não é hora de retornar ao lote, se
preserva por não saber qual será sua reação diante da recusa dos homens em
deixá-lo.
Ao concluir a peça, Luzia passa os dias admirando a composição
suspensa num pequeno mastro de madeira. A avó Didita contava que
somente caciques e guerreiros vestiam o manto emplumado; às mulheres
cabia a arte de costurar as penas. Mas ela é inquieta e o deseja, sem pensar
nas limitações impostas pelos homens. Aprecia com vaidade sua realização.
Na Chapada Velha, Maria Cabocla corta o último ponto da costura rente
ao tecido. Ergue o vestido, e as flores de tons claros lhe parecem mais
graciosas do que as do passado. Ela se dirige ao espelho repleto de manchas
escuras e estende o vestido contra o corpo. Não esboça sorriso nem sinal
algum de contentamento, apenas aprecia sua obra, como se ainda fosse a
criança que um dia a cobiçou.
6

Uma mão pousa sobre o ombro de Luzia sem causar desconforto pela
proximidade. Moisés regressou, como havia prometido. Ela faz um
movimento para se reerguer e o acompanhar para fora do mosteiro. Sente
que precisa protegê-lo daquele lugar e se apoia no seu braço para se
levantar. Os dois caminham juntos para longe da ruína.
Ela poderia falar muito sobre tudo que ainda não foi dito, mas ainda
assim prefere se abster de qualquer manifestação. É minha natureza, reflete.
Parece conformada ao perceber que o Menino, diferentemente do que
ocorria no passado, não espera por um afeto. Moisés cresceu e a criança que
um dia foi permaneceu em algum lugar do passado. O tempo seguiu seu
caminho e a ansiedade de se sentir amado se tornou noutros quereres.
Enquanto esteve distante, retribuiu à vida a rudeza e o sofrimento que lhe
foram dispensados. Agora, prefere a recompensar pelos cuidados de antes
com sua presença na Tapera.
Ele não deixa de notar a sutil transformação de Luzia. O semblante
permanece sereno, livre da tensão que a acompanhou durante boa parte da
vida. A corcunda não lhe parece maior nem menor, e nem mesmo sente
motivos para vergonha e piedade. Os vincos na sua face lhe conferem um ar
de mulher mais velha, embora ainda esteja na meia-idade. A trança deu
lugar a uma cabeleira vasta, cacheada e grisalha, inspirando uma aparência
de descuido, mas também de liberdade.
Luzia se mostra curiosa e quer saber sobre o trabalho de Moisés. Ele
aproveita o súbito interesse e conta que foi despedido — sem detalhes —,
mas que tem uma entrevista para um novo emprego assim que voltar à
cidade. Ela insiste em saber mais, pergunta se o novo trabalho renderá
dinheiro. Ele se evade a uma resposta ao perceber que se encontram diante
do rio Paraguaçu. Saveiros, jangadas e canoas navegam à distância. As
poucas embarcações da aldeia restam abandonadas.
Moisés pergunta pela terra de trabalho e Luzia relata o conflito ocorrido
depois de sua partida há poucos meses. Conta pormenores do
enfrentamento, confessando não ter retornado ao lote enquanto espera por
notícias de Joaquim sobre o tal comprador. Luzia está confiante ao lado de
Moisés e mais à vontade para contar até os fatos vividos por seus bisavós.
Se mostra determinada a reaver a terra, e seu argumento simples —
“Sempre foi nossa” — é suficiente para dissipar qualquer dúvida sobre a
legitimidade de sua reivindicação.
Ele quer saber se deve ir até a roça, se identificando como da família e
conhecedor dos direitos, para convencer os invasores de que a terra é posse
deles. Luzia permanece em silêncio e sente uma ponta de emoção ao
perceber a preocupação de Moisés com os assuntos da casa. Depois,
promete pensar, e reitera a confiança em que Joaquim trará enfim boas
notícias. De qualquer sorte nada impede que eles caminhem nos próximos
dias para o tabuleiro.
Ao entrar na sala de casa, ele se depara com o manto de penas cobrindo
uma estaca de madeira. Se aproxima da peça, curioso para saber como e por
que Luzia fez. “Parece fantasia de Carnaval”, ele diz sorrindo, e Luzia conta
ter recolhido as penas durante meses para ter a quantidade necessária para
compor o manto. Não o fez com nenhum propósito, mas talvez quisesse
recordar a bisavó, o pai e as histórias que ouviu na infância. “Era roupa dos
índios”, diz, e explica que se ocupou da costura para o tempo passar mais
depressa.
Então, ela colhe raízes no quintal e prepara uma refeição para os dois. E
deseja que o Menino “se sinta em casa, como nos velhos tempos”, enquanto
capricha nos cuidados. O cheiro de café coado e a luz da manhã envolvem
Moisés no espaço que nunca abandonou por completo. Ele senta na soleira
da porta e o olhar avança além da casa. Enumera as lutas travadas nos
últimos anos e se sente aliviado como um soldado que regressa da batalha
mais sangrenta de uma guerra.
Ao se levantar na manhã seguinte, Luzia não encontra Moisés. Se põe a
lavar a louça, tenta recordar os sonhos da noite. A rede de dormir está no
mesmo lugar. Ao abrir a janela, ela o observa nadando no rio e só naquele
momento tem a certeza de que sua presença na Tapera não era mais um
devaneio. Sente o mesmo alívio que sentia ao encontrá-lo todas as vezes
que precisava saber onde estava — isso é ser mãe? Estava além de sua
razão saber o que a fez rejeitar a criança ao nascer. Era um mistério jamais
desvendado. Um impulso incontrolável que nasceu dentro de seu corpo
abrigando outro corpo que não foi querido, e precisava mantê-lo à distância
para sobreviver. Um corpo crescendo no seu sem qualquer perspectiva de
que ela conseguisse cuidar de alguém, esmagada que estava por toda a vida.
Mesmo assim, de alguma maneira insondável até mesmo para ela, Luzia era
mãe. Lavar, cozinhar, pôr na cama, rezar pela sorte, exigir que estudasse,
castigar quando preciso, ensinar o que considerava justo e bom. Em seu
juízo isso era ser mãe. Ainda que se sentisse incompleta nesse papel por
motivos que não poderia enumerar. Fez o que era possível, sente um certo
dever cumprido, mas não se perdoa por não ter acreditado no Menino
quando contou sobre a violação, e por isso suportaria a culpa até o fim dos
seus dias. E enquanto vivesse faria o que estivesse ao seu alcance para se
redimir.
E pôde se redimir muitas vezes. O procurou desesperada pelo mosteiro
quando se perdeu, até o encontrar no salão do mar. Vigiou com cuidado e
responsabilidade todas as vezes que ele adoeceu. Defendeu e protegeu
quando ele foi atingido por uma pedra dirigida a ela. Desejou sempre o
melhor, tanto que mal pôde esperar para pedir por uma vaga na escola da
igreja. Não eram poucos os sinais de dedicação destinados ao Menino.
E havia também outro sinal guardado em segredo por todos esses anos.
Para ela, aquela era a marca mais especial do seu afeto. Quando o recém-
nascido atravessou a noite, inquieto e sem conseguir sugar o mingau
preparado por Zazau deitada exausta na rede ao seu lado, Luzia o carregou
sem que a irmã percebesse para o cômodo ao lado. Alzira estava na cama,
os olhos se abriram, mas sem reagir, tamanha a melancolia. Ou talvez
confiasse que o momento deveria ser apenas de Luzia e da criança.
Ela deixou a alça do vestido cair e ofereceu o seio esquerdo ao menino.
Ele continuava com dificuldades para sugar, mas ela estava mais paciente
que o habitual e persistiu na oferta. Luzia acreditava que seu rancor era
grande e era muito provável que o leite tivesse secado. Feito a água que
mina de um olho-d’água depois da chuva, o leite ralo pingou e o menino
mamou com tanta avidez que tirou um sorriso desajeitado de Luzia. É o
mesmo sorriso sem jeito — murcho, envelhecido, desdentado — desse
instante em que observa Moisés homem-feito se banhando no rio.
O leite — maná da vida — trouxe em definitivo o menino ao mundo.
Foi seu batismo.
Nos dias que se seguem, Moisés aproveita que Luzia está na beira do
fogão enquanto abana a brasa para queimar a madeira, e diz que precisa lhe
dar algo. Ela para e escuta com atenção. Ele começa a falar, fazendo muitos
rodeios, buscando encontrar a melhor maneira de realizar o que tanto
queria, mas sem saber como.
“Luzia, quando fui embora eu levei todo o seu dinheiro.” Ri, achando
um tanto óbvio falar dessa maneira, como se ela não soubesse o que ele
tinha feito. “Mas eu não esqueci do empréstimo.” E os olhos de Luzia se
movem contestando a palavra “empréstimo”. “Trabalhei e consegui juntar
algo para te devolver.”
“Não, não, não…”, Luzia protesta e dá as costas para Moisés.
“Sim, Luzia. Aceite. Pode comprar qualquer coisa de que precisa.”
“Não precisa. Estou bem”, replica demonstrando certo orgulho.
“Aceite, Luzia, vai.”
Ela não olha para Moisés por reserva, mas sente nele a expectativa de
que aceite a oferta. Recusar pode decepcioná-lo, e isso é tudo que não
gostaria de ver acontecer. Luzia estende a mão e recebe o envelope. O
guarda no bolso da saia, e continua a abanar o fogão até que o crepitar das
chamas lhe dê a certeza de que o fogo se assenhorou da madeira.
Quando está sozinha conta o maço de notas e decide sem pestanejar o
destino do dinheiro. Dali a uns dias estará no consultório do único protético
da cidade para orçar o custo de uma dentadura. Vai abrir a boca o suficiente
para a impressão do molde de sua arcada. Vai realizar o desejo de ter dentes
de novo para mastigar e falar sem as limitações que a ausência lhe impõe —
a língua a encontrar os dentes incisivos quando pronunciar “pe-dra”, “mun-
do”, “la-ba-re-da”.
Ele lhe dará um pequeno espelho para que veja o resultado. Luzia
escancarará a boca, verá os dentes iluminando onde antes era breu.
Aproveitará a distração do protético enquanto recolhe os instrumentos, e,
com o espelho nas mãos, se sentirá livre para esboçar um sorriso outra vez.
O primeiro, ao fim de tantos anos.
7

A mochila de Moisés está encostada na parede do quarto. Dali a algumas


horas embarcará na sucata que transporta moradores da Tapera para a
rodoviária de Cachoeira. Mas permanece estendido na rede à espera do
momento de deixar a casa, pensando se deveria prolongar sua estadia, ao
mesmo tempo que é atravessado por pensamentos que refluem feito a maré.
Sente um bem-estar duradouro quando Luzia permite entrever, com
discrição, os dentes novos. Só por isso não se arrepende de ter recolhido o
dinheiro ofertado por dom Tomás na visita ao mosteiro. Verdade que, a
princípio, quis recusar, ofendido se sentia pela ousadia do abade de
imaginar que o perdão poderia ser comprado. Ao mesmo tempo encontrou a
resposta à pergunta feita a Luzia anos antes: “O que Deus faz com todo o
dinheiro do imposto que os cobradores recolhem?”. Levar o dinheiro
consigo — não o maço minguado, mas tudo o que existia — era um ato de
justiça.
Nada repararia o mal sofrido, e aquele montante muito menos. Moisés
não tinha pretensões de obter vantagens e, se tivesse alguma crença, era
capaz de considerar aquele dinheiro amaldiçoado. No entanto, percebeu
serem as economias do abade importantes para ele, tamanho o zelo — a
segurança, as chaves que abriam e fechavam caixas e gavetas. O dinheiro
era um sinal do poder que o velho homem julgava ter. Percebendo o apego,
Moisés regressou outras vezes para subtrair mais e mais. Aos poucos, em
meio às exigências, às ameaças, em meio à lembrança dos abusos narrados
com a precisão da história de horror que era, dom Tomás entrou em
colapso. A presença permanente de Moisés exigindo mais levou o religioso
ao desespero. Assim ele foi entregando tudo o que tinha — dinheiro, anéis,
ouro — até jurar não ter mais nada de valor.
Dom Tomás foi despido de todo poder pelo medo e pela culpa,
destituído da riqueza acumulada ao longo de anos de injustiças e
abominações. Se tornou alguém comum, alguém como a gente da
comunidade desprezada. Ao se tornar um igual, estava pronto para ser
aniquilado. Moisés era da estirpe dos tupinambás, os devoradores de
inimigos — nativos ou estrangeiros —, que tocavam o sagrado com seus
rituais de vingança. Transformavam o outro num humano — um
semelhante — para depois o roer com a voracidade do que consideravam
ser justo. Da última vez que encontrou dom Tomás, Moisés avistou apenas
um corpo oco, sem viço e lume nos olhos, destituído do fôlego que pudesse
chamar de alma. Toda a razão tinha sido tragada pelo embate com os
próprios atos, a tentativa de se justificar, expiar, sem um arrependimento
genuíno. Almejava se salvar do escândalo, mas se tornou um morto em
vida. Sua sina havia se cumprido.
O manto no canto da sala irradia o brilho natural das penas, lançando
faíscas na meia-luz da casa.

A sombra dos anos ronda a casa e Luzia termina por juntar as folhas do
quintal com um rastelo enferrujado quase imprestável. Quando põe fogo no
monturinho é tomada por imagens que combinam sonhos, revelações do
salão do mar e o que viveu nos últimos anos. É certo que o mosteiro foi
queimado muito antes pelas mãos dos cativos. Foram eles que se rebelaram
contra a religião e puseram fim ao tempo de terror. As histórias foram
sopradas pelo vento a Luzia, projetadas por luz e sombra no resto das águas
do Paraguaçu empoçadas no chão. O que ela não sabia era que eles viveram
em liberdade, afastados da aldeia e sem a tirania dos religiosos enquanto
eram caçados pelo regime. Depois, privados da terra com o avanço dos
falsificadores de títulos, se tornaram desterrados e voltaram pouco a pouco
para trabalhar nas fazendas da região do mosteiro. Sobreviveram como
puderam e continuaram a se unir à gente que habitava a Tapera.
Luzia não sabia, mas intuía. Uma torrente de sangue corre em seu corpo
e nela viajam memórias antigas de um tempo duro e impenetrável. A
epopeia ancestral navega o rio da vida e promove o despertar de sua
existência selvagem. Não a transporta para o passado, mas conduz o que há
de valioso neste tempo até o presente.
Depois de comunicar que não mais lavaria a roupa da igreja, Luzia
aguarda o abade fazer o pagamento por seu trabalho. Ela é tomada por uma
disposição estranha de percorrer os corredores do mosteiro. Quer chegar ao
salão onde encontrou o menino perdido e esteve envolta em vozes e visões.
Talvez seja a última vez que possa experimentar o que viveu com liberdade.
Mas Luzia está inquieta e caminha para o andar superior. Naquele dia de
calor e rupturas quase se sufoca, a respiração se acelera refletindo a
ansiedade que a atravessa. Entra num cômodo e abre a janela. O tecido leve
e branco de uma das camadas da cortina foi lavado por ela em algum
momento daquele ano. O voal se ergue com o vento e envolve seu corpo.
Luzia gira o corpo e levanta os braços para se desvencilhar da armadilha.
Os trinados dos pássaros ecoam convocando os pensamentos para uma
aterrissagem, mas os olhos de Luzia encontram os olhos do fogo e sua mão
quase toca sua penugem negra. O pássaro inclina a cabeça para admirar a
espécie rara que encontrou: Luzia prestes a se tornar senhora da vida e do
mundo por onde caminha.
Ao sair do cômodo, esbarra na mesa de canto, derruba o castiçal, as
velas apagadas rolam pelo chão e o tecido da cortina se alonga ao vento,
fazendo de Luzia algo próximo a uma aparição. Enquanto se encurva, ela
tateia o piso à procura das velas caídas. As devolve de qualquer jeito ao
castiçal e avança para o ponto de partida, onde dom Tomás a espera para
repreendê-la — “O que a senhora fazia lá em cima?”. Ainda assim, ela
sairia liberta e vivendo o mundo de uma maneira diferente.
Quando o monge jovem que habita o cômodo acende a vela, não se dá
conta do vento por chegar. O ar é calmaria e ele adormece de leve na
cadeira de balanço com o rosário na mão. É assim que a brisa avança e no
segundo seguinte é vendaval. O lume da vela oscila, é o fogo que dança e
finge desaparecer para logo depois ressurgir, ondulante e feroz. O tecido
imaculado da cortina se encanta e parece enfeitiçado pelo lume, invocando
que se aproxime. É uma língua em movimento lambendo as franjas do
tecido e sussurrando a palavra “desolação”. A chama se reproduz voraz,
alimentada pelo sopro que vem da direção do rio.
O monge desperta envolto na fumaça e por muito pouco não permanece
preso à incandescência, que pode ser um dos muitos nomes do fogo. Os
religiosos se evadem do edifício com agilidade — os mais novos
empurrando os mais velhos —, e a visão que resta é de uma grande fogueira
consumindo a matéria que um dia foi árvore, foi terra, que um dia foi vida,
até que reste apenas a ruína.
Luzia volta seu olhar para a casa quando o monturinho se torna um
punhado de cinzas varrido para a terra.
Do seu interior, Moisés pergunta se Luzia quer falar com Maria Cabocla
antes que ele se vá. Caminham juntos para uma área descoberta onde o
telefone pode funcionar. “É como um rádio que precisa ter uma boa
antena”, ele diz, e Luzia espera, arrancando alpiste do chão para lançar aos
pássaros. Alguém atende do outro lado o telefone público — lá não há sinal
para telefones como o de Moisés — e depois de alguma espera dizem que
Mariinha não está em casa. Luzia estranha a irmã não estar — “Ela vive pra
casa” — mas parece não se preocupar excessivamente — “Notícia ruim
avoa”.

Maria Cabocla percorre a trilha em direção ao rio Santo Antônio — “Sabe


que esse rio corre para o Paraguaçu?”, Noel perguntou um dia à mãe para
afirmar que se educou —, mas antes decide se desfazer de algo importante.
É o vestido costurado com cuidado num tempo anterior, um exercício
pessoal para compreender a própria história. Ela coseu, passou e guardou
antes de viajar à Tapera para tentar rever o pai moribundo.
O fiar — pontos, nós, corte —, a mão e o tecido entremeados
alinhavavam o mundo estranho e por vir: e não é assim que se tecem os dias
passados e os dias à frente? Costurar o vestido enquanto tinha em mente os
seus, Luzia, Zazau, Joaquim, os irmãos mais velhos, o pai e a mãe. Edite.
Nessa recordação, o que mais a entristece é o inexistir de rastros da menina
— para onde ela teria ido? Por quem teria sido carregada? Quem teria
violado seu corpo? Quem a teria estrangulado ou afogado? Quem a reduziu
a uma mera lembrança incorpórea dos que permaneceram na terra? —, e
quando não há, imagina o desfecho mesmo sabendo dos riscos de incorrer
em erros e injustiças. Para Maria Cabocla o ponto-final é o vestido florido
que Luzia encontrou queimado. Alguém tentou eliminar todos os vestígios
do que ela foi, sem conseguir.
Por isso ela o retira dentre os guardados para colocar na sacola de palha.
Segue por veredas e matas em busca de um lugar adequado para seu último
ritual. Pensa em enterrar a roupa que costurou e rezar o que lhe vier à
cabeça, mas ao se aproximar de uma pequena clareira, ao se agachar e
inspecionar a terra, descobre que não deseja encerrar sua história sob um
punhado de barro. Então caminha mais um pouco, arrancando do chão as
ervas que crescem a esmo nas trilhas, avançando, uma fera que reconhece o
viver.
Diante do rio, Maria Cabocla retira o vestido da sacola de palha sem
olhar de forma detida — “Se olhar muito, vá que desista” — e o estende na
direção da correnteza. A peça se inclina, o vento carrega por curta distância,
pluma, e repousa na superfície das águas. Depois corre, oscila, o
redemoinho a engole para sempre.
Está feito. Talvez encontre o leito e por lá se desfaça.
Quando se volta para retomar o caminho de casa escuta um ronco alto.
“Qual bicho?”, pergunta, e aguarda por outro som. “É ronco de gente”,
percebe, e anda com vagar para não assustar quem dorme.
Não muito distante alguém estendeu uma esteira de palha, onde uma
mulher de lenço encarnado recobrindo o cabelo e vestindo a roupa surrada
de seu velho pai dorme. Um chapéu, que Maria Cabocla reconhece,
descansa ao lado, onde se encontra também uma vara de pescar e um
pequeno cesto de vime. Ela então dá a volta e observa a face da outra.
É Belonísia envolta num sono profundo — a boca, uma pequena
abertura revelando a escuridão que a habita. “Vou chamar Belô”, decide.
“Onde já se viu ficar abandonada na beira das águas correndo risco de ser
mordida por gente ou bicho?” Ela se aproxima mais e se agacha, mas
constata um sono tão quieto que desiste de chamá-la em seguida. Apenas
senta para lhe fazer companhia. Tomada por especial ternura, se deita ao seu
lado e sobre as folhas mortas, enquanto a luz do céu rasga as frestas das
copas se refletindo nas águas do rio à frente.

Antes de o sol se levantar, Luzia põe fim à espera. Decide subir o tabuleiro
e retornar à roça do pai. Há dias de calmaria — e nesses dias espera
controlando a impaciência —, mas há outros de grande fúria, e nesses é
melhor medir os passos, avançar e recuar conforme a necessidade. Ela se
veste, e sob o manto de penas a corcunda desaparece. Luzia não pode evitar
a risada ao imaginar a loucura que será quando a olharem naquele traje.
Ao levantar os braços, se tornará um grande pássaro vindo do mundo
dos mortos, e seus olhos refletirão o fogo que é vida e a habita desde
sempre.
Está consciente dos riscos que corre, mas é tomada por um sentimento
mais forte que não lhe permite voltar atrás. Se sente disposta a enfrentar o
mundo — seria capaz de enfrentar tudo? —, e por isso se põe a caminhar
até a terra de trabalho.
Seu nome é coragem, e já não teme a morte.
Agradecimentos

À minha querida mestre Maria Rosário de Carvalho, que um dia me


apresentou aos pressupostos da vingança tupinambá.
A Vital Jonas pela prece a são Vicente, que eu desconhecia.
A Glicéria Tupinambá, que, movida pela paixão de recuperar a história
de seu povo, refez o manto dos ancestrais a partir de um modelo do século
XVI exposto no Museu do Quai Branly, em Paris.
Renato Parada

Vencedor dos prêmios Leya, Oceanos e Jabuti, Itamar Vieira Junior


nasceu em Salvador, na Bahia, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos
étnicos e africanos pela UFBA. Seu romance Torto arado é um dos maiores
sucessos — de público e crítica — da literatura brasileira nas últimas
décadas, tendo sido traduzido em mais de vinte países, adaptado para o
audiovisual.
© Itamar Vieira Júnior, 2023
Publicado mediante acordo com MTS Agência.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Esta é uma obra de ficção. Embora inspirada na vida real, qualquer


semelhança com nomes, pessoas ou fatos terá sido mera coincidência.

capa
Elisa v. Randow
ilustração de capa
Aline Bispo
preparação
Márcia Copola
revisão
Ana Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Vieira Junior, Itamar (1979-)


Salvar o fogo / Itamar Vieira Junior. — 1. ed. — São Paulo : Todavia, 2023.

ISBN 978-65-5692-416-8

1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título.

CDD B869.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira : Romance B869.3

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
Despertar os leões
Gundar-Goshen, Ayelet
9786580309979
368 páginas

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O neurocirurgião Eitan Green parece ter a vida perfeita. Ele ama a esposa,
Liat, uma policial. Ele adora seus dois meninos. Transferido com relutância
de Tel Aviv para a poeirenta Beer Sheva, à beira do deserto, o médico
compra um carro novo — um utilitário — para transitar pelas estradas
tomadas pela areia. Certa ocasião, no entanto, quando retornava de seu
cansativo turno no hospital, ele atropela alguém e foge do local. A vítima é
um imigrante africano que, como muitos, está buscando uma nova vida em
Israel. Quando a viúva da vítima bate à porta de Eitan no dia seguinte,
portando sua carteira e afirmando saber tudo o que aconteceu, o médico
descobre que o preço dela pelo silêncio não é dinheiro. É algo totalmente
diferente e aterrador. Algo que irá solapar a sua existência segura e o
conduzirá a um mundo de segredos e mentiras que ele nunca poderia ter
imaginado. Enquanto a investigação acerca do atropelamento é confiada à
sua própria esposa, o médico é arrastado para a voragem de uma vida dupla,
num contexto de tráfico, violência e desejos vergonhosos. Mas também
passa a conhecer um outro lado de seu país: a existência de toda uma
população de imigrantes da África que chega a Israel com a esperança de
encontrar um novo capítulo para suas vidas depois de enfrentarem a fome, a
guerra e o preconceito. Um dos nomes mais importantes da literatura
israelense contemporânea, Ayelet Gundar-Goshen constrói um suspense
humanitário sobre dilemas morais que faz o leitor mergulhar em um mundo
desconhecido e palpitante.

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Correspondência anotada
Andrade, Mário de
9786556924236
528 páginas

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As cerca de trezentas cartas trocadas entre Mário de Andrade e Rodrigo M.


F. de Andrade narram uma viagem epistolar histórica. Reunidas pela
primeira vez, testemunham um compromisso apaixonado com o Brasil e
com a preservação de seu patrimônio cultural. Para além das repartições
públicas, uma amizade fiel anima a força de trabalho da dupla.
A edição é enriquecida por apresentação de Clara de Andrade Alvim e
ensaios fotográficos que documentam esse legado.

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Torto arado
Vieira Jr., Itamar
9786580309320
264 páginas

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Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela, para além de sua
trama, um poderoso elemento de insubordinação social.

Nas profundezas do sertão baiano, as irmãs Bibiana e Belonísia encontram


uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre
então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas — a ponto de
uma precisar ser a voz da outra. Numa trama conduzida com maestria e
com uma prosa melodiosa, o romance conta uma história de vida e morte,
de combate e redenção.

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Nosso universo
Dunkley, Jo
9786556924182
296 páginas

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Jo Dunkley, renomada astrofísica e professora universitária, é a nossa guia


nessa viagem fascinante através dos séculos de estudo da astronomia, nos
apresentando ao trabalho de amadores e pesquisadores, com especial
enfoque na participação das mulheres nesse campo, como Williamina
Fleming, Vera C. Rubin e Jocelyn Bell Burnell. Com linguagem acessível e
se valendo de exemplos diversos, é um livro indispensável para
compreender melhor o funcionamento do cosmo.

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Ponto-final
Nobre, Marcos
9786556920146
80 páginas

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Uma análise sóbria, cristalina e quente do terremoto político que tomou


conta do Brasil. Nos últimos anos, Marcos Nobre se consolidou como um
dos analistas políticos mais agudos do país. Seus artigos e entrevistas,
publicados de forma regular em diversos veículos da imprensa, iluminam a
realidade brasileira com doses generosas de clareza e complexidade. Neste
livro, essas qualidades saltam à vista. A pandemia, segundo o autor,
acentuou o traço decisivo do governo Bolsonaro: a política de guerra, em
que o adversário político se torna um inimigo a ser exterminado. Em sua
cruzada autoritária, o atual governante visa nada menos que a destruição da
democracia. Como foi possível a eleição de um líder assim? Que tipo de
governo ele conduziu até a chegada da Covid-19? O que a pandemia
significou para a maneira de fazer política que ele instaurou? Com lucidez e
sobriedade, Nobre responde a essas e outras questões. Seu texto é um
chamado ao diálogo. "A raiva desmensurada que desperta o escárnio
presidencial pela vida precisa encontrar a sua devida canalização
institucional democrática", lembra o autor. É preciso encontrar um modo de
sair do impasse. Insistir na intolerância contra seus apoiadores é aceitar o
desejo de morte que fundamenta o discurso do presidente. E isso apenas
fortalece a cultura bolsonarista.

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