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Revista Estudos Feministas

ISSN: 0104-026X
ref@cfh.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil

Ghiorzi, Alessandra
A política de gênero, do pessoal ao global. Gênero: uma perspectiva global. CONNELL,
Raewyn; PEARSE, Rebecca. Tradução da 3.ed. e revisão técnica de Marília
Moschkovich. São Paulo: nVersos, 2015.
Revista Estudos Feministas, vol. 24, núm. 3, septiembre-diciembre, 2016, pp. 1007-1010
Universidade Federal de Santa Catarina
Santa Catarina, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38146902021

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http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p1007
Resenhas

A política de gênero, do pessoal ao global


Gênero: uma perspectiva global. autoras ressaltam que essas distinções formam
padrões e são parte de arranjos mais gerais do
CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. gênero, que nomeiam “ordem de gênero”.
Connel e Pearse definem gênero como “a
Tradução da 3.ed. e revisão técnica de estrutura de relações sociais que se centra sobre
Marília Moschkovich. São Paulo: nVersos, a arena reprodutiva e o conjunto de práticas que
2015. trazem as distinções reprodutivas sobre os corpos
para o seio dos processos sociais” (Raewyn
CONNELL; Rebecca PEARSE, 2015, p. 48).
No capítulo 2, as autoras discutem cinco
A primeira edição de Gênero: uma exemplos de pesquisas, de diferentes lugares do
perspectiva global publicada no Brasil é resultado mundo, para mostrar como questões mais amplas
da tradução da terceira edição do livro, de gênero são abordadas em investigações
publicada em inglês em 2014. Raewyn Connell específicas. Para as autoras, esses estudos
lançou a primeira versão do texto em 2002, a revelam a diversidade das dinâmicas de gênero,
qual foi ampliada e revisada nas edições sua complexidade e poder. Gênero refere-se,
seguintes. Nesta mais recente, recebeu a portanto, a relações, práticas e identidades
colaboração de Rebecca Pearse e o acréscimo ativamente criadas e negociadas em processos
de um capítulo sobre ecofeminismo, justiça sociais, frequentemente contraditórias, historica-
ambiental e sustentabilidade, além de mente situadas, limitadas por forças econômicas
atualizações das teorias e pesquisas citadas. O e políticas e sujeitas a mudanças e lutas. O capítulo
livro analisa o impacto da ordem de gênero, do ilustra também o jogo constante entre gênero e
âmbito pessoal ao global, a partir da discussão sexualidade, os amplos sentidos culturais do
de pesquisas e teorias sobre gênero, com ênfase gênero e como conformam a experiência
na política. individual.
Raewyn Connell é uma socióloga transexual O terceiro capítulo aborda a relação entre
australiana, consagrada internacionalmente por corpo e sociedade, refutando concepções da
suas pesquisas e teorizações nos campos de diferença natural como base para padrões
gênero e sexualidades, especialmente por seus sociais de gênero. Connell e Pearse chamam de
estudos sobre masculinidades. Professora emérita corporificação social o processo histórico no qual
da Universidade de Sydney, trabalhou em “as práticas em que corpos são envolvidos
universidades da Austrália e dos Estados Unidos. formam estruturas sociais e trajetórias pessoais, o
Rebecca Pearse é pesquisadora associada na que, por sua vez, fornece condições para novas
Universidade de Sydney, onde tem estudado as práticas nas quais os corpos são envolvidos”
dinâmicas globais da produção de (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 112). Gênero é uma
conhecimento nos campos de pesquisa sobre forma específica de corporificação social que
mudanças climáticas, HIV/AIDS e relações de se refere a estruturas corporais e processos ligados
gênero. à reprodução humana. Mas essa não é uma
O primeiro capítulo de Gênero: uma concepção essencialista, pois as autoras
perspectiva global descreve desigualdades e enfatizam que a reprodução sexual não causa
diferenciações entre mulheres e homens, por as práticas de gênero, nem mesmo fornece
meio de exemplos cotidianos, nos diversos modelos para elas. A arena reprodutiva está
âmbitos, como política, família e trabalho. As constantemente sendo reformulada por lutas

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sociais e não engloba tudo o que o gênero de gênero, dividindo-a em quatro dimensões:
significa. Em referência às teorias que enfatizam poder, produção, vínculos emocionais e
a fluidez do gênero, as autoras apontam que simbolismo, sublinhando que essas dimensões são
corpos têm uma realidade irredutível, não se ferramentas analíticas e não instituições
transformam em signos ou posições de discurso. separadas. Na “vida real”, as diferentes dimensões
Corpos têm agência e, ao mesmo tempo, são do gênero se entrelaçam e se condicionam
construídos socialmente. umas às outras. Além disso, as estruturas de gênero
No capítulo 4, as autoras discutem a estão entrelaçadas com outras estruturas sociais
construção das teorias de gênero. Connell e e é dessas interações que emergem muitas das
Pearse assinalam o impacto dos movimentos forças de transformação. Pressões externas,
feminista e gay das décadas de 1960 e 1970, como novas tecnologias ou a vida urbana,
tanto no campo das práticas sociais quanto na podem alterar padrões de gênero, mas as
produção de conhecimento sobre gênero. As relações de gênero também têm tendências de
pesquisadoras não constroem uma história transformação, ou seja, contradições internas em
eurocêntrica, linear, seguindo a tradicional suas dimensões, que minam os padrões correntes
categorização do feminismo por ondas. Fazem e forçam mudanças na estrutura. As
uma contextualização que valoriza a produção pesquisadoras analisam os movimentos que
teórica de várias partes do mundo. Como atuam na política de gênero, seja para mudar a
exemplo dessa perspectiva, apresentam como ordem de gênero ou para resistir a alterações.
um grande avanço teórico do feminismo o livro O sexto capítulo discute o gênero na vida
de Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de pessoal e as políticas da identidade. Tratando da
classes (1976), publicado pela primeira vez em aquisição do gênero, as autoras assinalam que
1969. Analisando a construção da categoria as pessoas aprendem a adotar certa identidade
gênero, as autoras argumentam que grande de gênero, ou a se distanciar dela, ou seja, como
parte da teoria na metrópole se tornou “fazer o gênero” e lidar com as ordens de gênero.
contemplativa ou se focou inteiramente na Assim, as/os aprendizes são ativas/os. Connell e
subversão cultural, lidando com sexualidade, Pearse afirmam que com a proeminência das
identidade, representação, linguagem e teorias performativas houve aumento do interesse
diferença. Afirmam que as referências para esse nas variações de gênero e nas violações das
tipo de teorização foram desenvolvimentos normas. Nesse contexto, apontam o surgimento
intelectuais de homens, como Foucault, Derrida, do movimento transgênero, influenciado pela
Deleuze, que não se preocupavam com gênero. teoria queer, focado na dimensão simbólica e
Tratam ainda do reexame das categorias procurando quebrar ou confundir as categorias
fundantes do feminismo, em especial, pela de gênero. A este, as estudiosas contrapõem os
abordagem mais influente, a teoria queer, que projetos de transição entre posições na ordem
enfatiza a fragilidade das categorias identitárias de gênero de transexuais. Enquanto as histórias
e a fluidez do gênero. As autoras apontam uma de transgêneras/os enfatizam, em geral, a fluidez
reação contra o foco nas identidades e na cultura do gênero, as trajetórias de transexuais destacam,
dessas perspectivas por outras que lidam com sobretudo, a estabilidade do gênero, pois suas
questões mais materiais (como pobreza, AIDS, vidas são marcadas por contradições pessoais e
violência) que têm sido preocupações do enfrentamentos sociais. As autoras argumentam
feminismo do Sul Global. Nesse sentido, considero que o projeto de gênero é consistente ao longo
que uma das maiores contribuições das autoras do tempo, mesmo quando destoa da
é enfatizar a dimensão material e estrutural do corporificação social convencional, como no
gênero, diferentemente de abordagens que caso de transexuais: “o gênero é intransigente,
priorizam o discursivo. tanto como uma estrutura da sociedade quanto
O quinto capítulo apresenta o gênero uma estrutura da vida pessoal” (CONNELL; PEARSE,
como estrutura social, explorando suas diferentes 2015, p. 216). As pesquisadoras defendem que
dimensões e os processos de mudanças as experiências da vida “real” de mulheres e
históricas. As autoras definem a “ordem de homens transexuais acabam por ser apagadas
gênero” de uma sociedade como sendo os pela teoria queer, pois a transexualidade é melhor
padrões maiores, nos quais se inserem os regimes compreendida não como uma posição
de gênero, ou seja, os padrões nos arranjos de discursiva, mas como um conjunto de trajetórias
gênero de uma instituição e que formatam as perpassadas por contradições na “corporifica-
práticas de gênero. Para tanto, construíram um ção social”. Connell e Pearse enfatizam que as
modelo para mapear a estrutura das relações experiências de transexuais demonstram as

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possibilidades de mudanças nos processos exemplo, na dimensão internacional do gênero
tradicionais de corporificação social do gênero na pandemia de HIV/AIDS. Ao mesmo tempo, há
e enriquecem o projeto de justiça de gênero do uma mobilização global em torno dos interesses
feminismo. das mulheres. O imperialismo e a globalização
O capítulo 7 trata da relação entre o gênero colocaram sociedades muito diversas, e suas
e as mudanças ambientais que, segundo as ordens de gênero, em contato umas com as
autoras, não têm precedentes, o que se expressa outras. Instituições de âmbito mundial criam, assim,
na destruição de recursos naturais em uma novas arenas para a formação das dinâmicas
proporção insustentável. Os impactos da de gênero.
mudança ambiental são altamente desiguais e Connell e Pearse ressaltam que o gênero é
intensamente generificados, pois as mulheres inerentemente político, pois seus arranjos são
representam maior número entre aquelas/es que fontes de prazer, de reconhecimento e de
vivem na pobreza e exercem o papel social de identidade, mas, ao mesmo tempo, de injustiça
cuidadoras e provedoras de alimentos, além de e danos. Uma característica atraente da política
seu trabalho na produção agrícola. Connell e queer é demonstrar os prazeres de atuar o
Pearse apresentam o ecofeminismo como uma gênero, na inventividade erótica, em corporifi-
variedade de perspectivas sobre gênero e meio cações alternativas. Por outro lado, há o que as
ambiente que têm em comum a concepção autoras chamam de “vertigem de gênero”
de que há conexões importantes entre como se (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 272), ou seja,
tratam mulheres, pessoas de cor e as classes momentos em que a integridade de um projeto
subalternas, de um lado, e como se trata o de gênero é perdida e que podem ser extrema-
ambiente natural e não humano, de outro. mente estressantes. As autoras afirmam que o
Feministas ambientalistas do Sul Global, em gênero não implica necessariamente desigualda-
especial, preocupadas com o mau desenvol- de, o que demonstra a existência de ordens de
vimento e com o colonialismo, revelaram cone- gênero diversas. Aqui se encontra um diferencial
xões entre gênero, capitalismo e imperialismo das autoras que, diversamente de muitas
na geração de problemas ambientais. Ao feministas – como Monique Wittig (2006) que
fazerem isso, estão desafiando estruturas de propõe uma sociedade sem sexos – se
gênero em múltiplos aspectos. As autoras posicionam contrariamente a um projeto de
afirmam que há um gerenciamento masculiniza- desgenerificação para o feminismo. Dessa
do dos problemas ambientais. Contudo, os forma, propõem não abolir o gênero, mas
agentes de desenvolvimento têm feito algum democratizá-lo. Essa estratégia tem a vantagem
progresso rumo a políticas ambientais sensíveis de preservar a parte boa do gênero – os prazeres,
ao gênero. as riquezas culturais, as identidades – que as
O último capítulo discute as relações de pessoas valorizam. Para alcançar a democratiza-
gênero na sociedade global contemporânea, ção da ordem de gênero, Connell e Pearse
bem como os movimentos que buscam sugerem que é preciso buscar a igualdade de
transformações nesse campo. Para tanto, analisa participação, poder, recursos e respeito. Elas
empresas, Estados e a economia global, afirmam que a solução para a democratização
explicando política de gênero em larga escala. virá das teorizações sobre gênero do Sul Global,
Para Connell e Pearse, empresas são instituições ou, como dizem, do “mundo da maioria”
generificadas. Afirmam que a maioria dos (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 285), e dos
administradores públicos são homens e a maior movimentos sociais dos quais tratam.
parte dos Estados depende de empresas Essa sugestão expressa um dos pontos fortes
multinacionais que operam em um ambiente do livro: a democratização também das teorias
econômico dominado por homens ricos e de gênero, pois as autoras valorizam a produção
poderosos. Mas, em vários lugares do mundo, as teórica dos países periféricos. Democrática ainda
mulheres se tornaram líderes notórias de é sua proposta política, pois sugerem
empresas, na política e chefes de governo. transformações duplamente realistas, no sentido
Apontam que, a partir da década de 1990, o de serem viáveis e por considerarem a realidade
gender mainstreaming (tornar o gênero uma concreta da maioria de pessoas que não
questão dominante) tornou-se uma estratégia desejam, ou talvez não consigam, realizar
influente sobre as políticas públicas, graças, em grandes subversões da ordem de gênero. Em
grande parte, à mobilização feminista. De acordo parte, o livro objetiva ser um facilitador para
com as autoras, há uma ordem de gênero aquelas/es que iniciam os estudos de gênero.
mundial emergindo, que se expressa, por Oferece diversos exemplos que refletem o

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cotidiano das pessoas e apresenta muitas Referências
pesquisas que trabalham com o conceito de CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero:
gênero, sintetizando o pensamento de uma uma perspectiva global. Tradução da 3.ed
ampla área do conhecimento. A escrita das e revisão técnica de Marília Moschkovich.
autoras é acessível, mas mantém a sofisticação São Paulo: nVersos, 2015.
teórica. Dessa forma, é útil como introdução aos SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de
estudos de gênero e também para quem já classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes,
pesquisa o tema, oferecendo uma abordagem 1976.
integrada que conecta uma variedade de WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual
tópicos, do campo pessoal ao global. O livro y otros ensayos. Madrid: Egales, 2006.
tem o potencial de disseminar uma compre-
ensão abrangente sobre as relações de gênero, [Recebida em 08/04/2016
contribuindo, assim, para a democratização e aceita para publicação em 25/04/2016]
dessas relações.
Adélia de Souza Procópio
Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

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