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Ficha Técnica

Título original: Aventuras de João Sem Medo


Autor: José Gomes Ferreira
Revisão: Clara Joana Vitorino
Capa: Rui Garrido
Fotografia do autor: Arquivo dos herdeiros
ISBN: 9789722053440

Publicações Dom Quixote


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Dedicatória da 1.ª edição (1963)

Para os meus dois filhos:


Para ti, Raul José, homem há muito – e homem
autêntico –, que aprendeste à tua custa que a verdadeira
coragem é a força do coração...

Para ti, Alexandre, ainda criança, mas já com todas as


tendências para não te tornares num desses falsos adultos
que sujam o mundo e odeiam a Imaginação...

Para os meus dois filhos – o homem e a criança – este


Divertimento escrito por quem sempre sonhou conservar
a Criança bem viva no Homem.
I
O homem sem cabeça

Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-


Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da
Floresta Branca onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam
estalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos.
Apesar de ficar a pouca distância da povoação, ninguém se atrevia a
devassar a floresta. Não só por se encontrar protegida pela altura
descomunal do Muro, mas principalmente porque os choraquelogobebenses
– infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até a noite – mal tinham
força para arrastar o bolor negro das sombras, quanto mais para se
aventurarem a combater bichas de sete bocas, gigantes de cinco braços ou
dragões de duas goelas. Preferiam choramingar, os maricas!, agachados em
casebres sombrios, enquanto lá por fora chovia com persistência implacável
(como se as nuvens estivessem forradas de olhos) e dos milhares e milhares
de chorões – as árvores predilectas dessa gente – pingavam folhas tristes.
Tudo isto incitava os habitantes da aldeia a andarem de monco caído,
sempre constipados por causa da humidade, e a ouvirem com delícia
canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto, ao som de
instrumentos plangentes e monótonos.
O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente e instinto de
refilar, resistia a esta choradeira pegada, era o nosso João que, em virtude
duma contínua ostentação de bravata alegre e teimosa na luta, todos
conheciam por João Sem Medo.
Ora um dia, farto de tanta chorinquice e de tanta miséria que gelava as
casas e cobria os homens de verdete, disse à mãe que, conforme a tradição
local, lacrimejava no seu canto de viúva:
– Mãe: não aturo mais isto. Vou saltar o Muro.
A pobre desatou logo aos berros de súplica que abalaram o Céu e a Terra:
– Ah! não vás, não vás, meu filho! Pois não sabes que essa Floresta
Maltida está povoada de Canibais Mágicos que se alimentam de sangue de
homens? Sim, meu filho, de sangue humano bebido por caveiras. Não vás!
Não vás!
E durante horas não cessou de barregar, histérica:
– Ai que não torno a ver o meu rico filhinho!
Mas as implorações da mãe não impediram que, na manhã seguinte, João
Sem Medo se esgueirasse de Chora-Que-Logo-Bebes e se dirigisse à socapa
para o tal Muro que cercava a floresta e onde alguém escrevera este aviso:

É PROIBIDA A ENTRADA
A QUEM NÃO ANDAR
ESPANTADO DE EXISTIR

Nem leu o palavreado do letreiro até ao fim. Graças ao arrimo de uma


trepadeira providencial e auxiliado pelas sentinelas invisíveis que
guardavam aquela selva misteriosa e pretendiam facilitar-lhe a entrada, não
sei com que intuitos secretos, chegou com agilidade ao topo da muralha.
Uma vez lá em cima, o problema simplificou-se mais ainda. Outra
trepadeira miraculosa e pronto: João Sem Medo desceu a pulso, com os pés
a apoiarem-se aqui e acolá nas junturas das pedras esverdeadas de musgo
escorregadio. E assim conseguiu alcançar o solo da floresta que não tardou
a explorar com lentidão prudente de quem receia ciladas e monstros ocultos
no mato.
Ao princípio nada descobriu. Pela abóbada densa da folhagem
penetravam a custo raríssimos raios de sol que, de espaço a espaço,
acendiam manchas claras no chão fofo de séculos de líquenes, cogumelos
apodrecidos e ramos secos.
Só passado um bom quarto de hora, quando os olhos se habituaram à
meia treva, João Sem Medo deu conta deste espectáculo na verdade
surpreendente: as árvores espreguiçavam-se, enquanto os pássaros, em
lugar de cantarem, abriam os bicos em bocejos melodiosos. Ao mesmo
tempo, alongadas na terra, com as cabecinhas de cores nos travesseiros das
ervas, as flores ressonavam alto perfumes intensos. E as fontes embaladoras
desdobravam o seu vagaroso sussurro de tédio dormente. O próprio João
Sem Medo começou a sentir um torpor de morte provisória a pesar-lhe nas
pálpebras e a tolher-lhe os braços e as pernas. De tal forma que resolveu
acordar-se com dois ou três gritos e insultos que vararam a Floresta
Adormecida:
– Então aqui não vive ninguém? Nem nereidas, nem faunos, nem
gnomos, nem nada? Foi para esta pasmaceira que eu escalei o Muro, digam-
me lá?
E, após quilómetros de marcha sonâmbula aos pontapés às pedras e aos
arbustos para não adormecer, acabou por desembocar numa vasta clareira
batida pelo sol, onde se deteve, os olhos ofuscados pela luz súbita.
Quando os reabriu, verificou com um sorriso de compreensão irónica que
da clareira partiam dois caminhos, os dois caminhos clássicos de todas as
histórias de encantos e prodígios: um asfaltado, cómodo, ladeado de
amendoeiras em flor; o outro, pedregoso e eriçado de espinhos, urtigas e
urzes.
– Bem – pensou. – Cá estão os dois caminhos fatais: o do Bem e o do
Mal. (Como se houvesse caminhos nítidos do Bem e do Mal!) Já esperava
por eles. Agora, para completar a comédia, falta apenas a respectiva fada...
Uma fada a valer, de varinha de condão, que regule o trânsito à laia de
polícia sinaleiro. Lá sem fada é que eu não passo.
E pôs-se de novo aos gritos de troça:
– Eh! Fada dos bosques! Aparece, rica fada da minh’ alma.
Então – ó pasmo dos pasmos! – João Sem Medo viu sair da espessura da
floresta um ser prodigioso que de longe parecia uma mulher jovem e bela,
cabelo loiro até a cintura, três estrelas de prata na testa, varinha na mão
direita, roca na mão esquerda, túnica bordada de rubis e esmeraldas,
chapinsdellatina e tudo o mais que as fadas costumam usar nos bailes de
Entrudo.
No primeiro momento contemplou-a, deslumbrado. Mas, à medida que a
observava mais de perto, o sorriso inicial desfez-se pouco a pouco em
caretas de desconfiança.
– És a Fada dos Dois Caminhos? – inquiriu, duvidoso. – Palavra? Mostra
cá o bilhete de identidade.
– Não acreditas? – protestou, para desviar a conversa, a hipotética fada
com voz aflautada, voz de máscara aos guinchos. – Sim, sou a Fada
Infalível, a Fada Lugar-Comum...
– Acredito, acredito... – concordou o rapaz por zombaria complacente.
E insistiu em examiná-la, com manifesta vontade de rir. E com razão.
Pois a pseudofada parecia... Parecia, não. Era... Era mesmo um homem
vestido de mulher, como se deduzia no desarrumo da cabeleira postiça à
banda, no negror evidente da barba mal disfarçada por várias camadas de
pó-de-arroz, além da maneira canhestra e hirta de andar e da falta daqueles
mil e um ademanes femininos tão difíceis de imitar pelos homens. O jeito
de pentear os cabelos com os dedos, por exemplo.
Embora não desejasse humilhá-lo, João Sem Medo não evitou um
incondescendente riso de chacota.
– Que queres, filho? – explicou a fada falsificada, vexadíssima, a tropeçar
na túnica. – Quando telefonaram para a Repartição da 3.ª Mágica a
requisitar uma funcionária, só me encontrava lá eu, que sou contínuo, e uma
fada já muito velhinha, muito perra, entrevada de reumatismo e com mais
de 50 000 anos de serviço activo, quase na idade da reforma por inteiro,
coitadinha! E então, por uma questão de prestígio, ofereci-me para esta
fantochada. Nem quero pensar no que diria o Mago-Mor se não
mandássemos uma fada válida para os Dois Caminhos. Pregava-nos uma
descompostura tremenda. Foi por isso que me mascarei e vim... Não
julgues, porém, que não percebo de artes mágicas!
E estadeou cheio de soberba vaidosa:
– Aqui, onde me vês, transformo com um piparote homens em ratos. E
até deito flores pela boca. E sapinhos... Queres ver?
– Não, não – interrompeu João Sem Medo. – Acredito. Embora não
entenda porque, sabendo tu tanto de artes mágicas, não te transfiguraste
logo em mulher em vez de recorrer a esses ridículos caracóis postiços.
– Porque, segundo a regra primeira da Constituição Secreta do Mundo, só
as aparências são susceptíveis de mudança e nunca o que existe de mais
profundo nos seres. O sexo, por exemplo. Por mais que isso te espante, ser-
me-ia fácil transformar-te em rato, mas nunca em rata.
– Bem, bem. Deixa-te de lérias – impacientou-se João Sem Medo. – E, já
agora, toma a sério o teu papel de fada e aconselha-me qual dos caminhos
devo seguir: o asfaltado ou o dos pedregulhos?
– Olha, menino – elucidou o contínuo, de roca debaixo do sovaco, a
aconchegar a cabeleira para esconder melhor o luzidio da careca –, o bom
caminho conduz à Felicidade. E o mau, à infelicidade...
– Vou pelo bom caminho, como é costume, claro – resolveu João Sem
Medo, embora desconfiado de tanta facilidade aparente. – O contrário seria
idiota e doentio.
E propunha-se iniciar a caminhada pela estrada das amendoeiras, quando
a fada fingida o reteve com um gesto imperioso:
– Espera. Preciso de prevenir o guarda do Caminho da Felicidade por
causa das formalidades da praxe. É só um minuto.
E, através do microfone de prata que extraiu da algibeira da túnica,
enviou magicamente na língua das fadas, aliás muito parecida com o
silêncio, uma mensagem ao tal guarda, por certo a muitas léguas de
distância.
– Pronto – exclamou, no fim da conversa –, o automóvel vem já aí
buscar-te. Adeus e felicidades.
E o marmanjão, agora de calva à mostra e túnica arregaçada, sumiu-se na
floresta.
Daí a segundos, num fulgir de relâmpago, estacou perto de João Sem
Medo um automóvel de oiro, sem condutor nem passageiros, de onde se
desprenderam dois braços mecânicos que pegaram no rapaz com delicadeza
cuidadosa e o recostaram nas almofadas. Em seguida, fechada a porta com
rapidez automática, o carro despediu (a 3000 quilómetros à hora) e parou
quase no instante da partida diante de uma casa de mármore branco em
forma de cubo.
Janelas, nenhumas. Apenas uma portita ao centro. E na laje em frente da
soleira, um cepo, um machado e uma pesadíssima cadeia de ouro.
– Que significa isto? – perguntou João ao ente misterioso que não guiava
o automóvel mágico.
Mas o auto limitou-se a depô-lo em terra. E desapareceu no horizonte,
mudo e faiscante, a acenar adeusinhos com um dos braços de metal...
Quase ao mesmo tempo assomou à porta do cubo uma figura monstruosa.
Homem? Talvez; mas a quem tivessem decepado a cabeça, aberto dois
olhos redondos no peito e talhado no estômago uma boca de lábios grossos
e carnudos que tentaram sorrir para João Sem Medo enquanto articulavam
esta saudação com voz desentoada de ventríloquo:
– Que a paz e a estupidez sejam contigo. Vens preparado para a operação?
– Que operação? – interrogou João Sem Medo, suspeitoso.
O descabeçado, de cigarrilha na boca do estômago, expôs-lhe então com
paciência burocrática:
– Ninguém pode seguir o caminho asfaltado que leva à Felicidade
Completa sem se sujeitar a este programa bem óbvio. Primeiro: consentir
que lhe cortem a cabeça para não pensar, não ter opinião nem criar piolhos
ou ideias perigosas. Segundo e último: trazer nos pés e nas mãos correntes
de ouro...
João Sem Medo ouriçou-se numa reacção instintiva:
– Nunca! Bem se vê que não tens a cabeça no seu lugar.
– Realizada esta insignificante intervenção cirúrgica – prosseguiu o
monstro imperturbável –, ninguém te impedirá de gozar o resto da vida na
boa da pândega e da abastança. E tudo de graça. Porque quem não tem
cabeça não paga nada.
Esta gracinha parva ainda convenceu mais o nosso herói a obstinar-se na
recusa:
– Não, nunca. Então prefiro o outro caminho.
– Palerma! – lamurinhou o guarda com os olhos do peito marejados de
lágrimas sinceras. Vais passar fome, sofrer dias de terror aflito...
– Deixá-lo. Prefiro tudo a viver sem cabeça. Nem calculas a falta que ela
me faz.
– Não te faz falta nenhuma – contrariou o monstro, que acrescentou este
comentário imbecil: – Pelo contrário: evitas o trabalho de ir ao cabeleireiro
de quinze em quinze dias.
Mas ante uma careta de João Sem Medo apressou-se a afrouxar-lhe a
cólera com esta proposta:
– Ainda tens talvez outra hipótese. Invocar o parágrafo 100 do artigo
4579 do Regulamento Interno e requerer a concessão que todos os Homens
de Representação Pública costumam obter automaticamente em virtude das
exigências estéticas do seu cargo. Isto é: em certos casos especiais, os
cirurgiões, em vez de degolarem os felizardos, sugam-lhes os cérebros por
palhinhas, deixando a casca por fora intacta, para inglês ver... Oh!, espera,
espera! Não te vás embora ainda. Escuta. Também podes requerer a
substituição da cabeça. Por uma melancia, por exemplo. Ou uma bola de
futebol que é o enxerto mais vulgar. Ou uma bolinha de ténis que fica
sempre tão bem nas pessoas finas, elegantes, esbeltas... Espera. Ouve.
Mas João Sem Medo nem lhe respondeu. Já ia longe, passo bem marcado,
orgulhoso de sentir a cabeça nos ombros. E horas depois, quando chegou à
clareira, enveredou, decidido, pelo caminho dos cardos e das árvores
sinistras, a gritar desafiante para a floresta:
– Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as
orelhas, transformar-me em lagarto, em morcego, em aranha, em lacrau!
Mas juro que não hei-de ser infeliz PORQUE NÃO QUERO.
E João Sem Medo continuou a subir o caminho árduo, resoluto na sua
pertinácia de ocultar o medo – a única valentia verdadeira dos homens
verdadeiros.
II
A árvore dos dez braços

Ao fim de breves minutos de percurso, João Sem Medo notou com


assombro que as pedras do Caminho da Infelicidade não se assemelhavam
às inofensivas pedras vulgares mas possuíam bocas enormes com fileiras de
dentes afiados que variavam conforme o tamanho e a configuração daquelas
autênticas feras minerais.
Assim, as maiores, as rochas, ostentavam magníficos dentes de elefante
prontos a investir contra as pernas dos caminhantes distraídos. Os seixos
roíam, infatigáveis, não se sabia bem o quê, com dentinhos de rato. Os
pedregulhos arreganhavam verdadeiras dentuças de leão e quando
apanhavam os pés de João Sem Medo a jeito rasgavam-nos, desapiedados,
para lamberem depois os beiços com regalo, pingantes de musgo e sangue
fresco.
Durante horas o pobre rapaz esteve sujeito àquela tortura fantástica de
marchar sobre um caminho que mordia.
Mas não perdeu o bom humor corajoso:
– Pois sim, ralem-se! – comentava com desdém, a engolir os gemidos
para que ninguém percebesse que sofria. – Antes ficar sem pés do que sem
cabeça.
E com firmeza suportou aquele inferno que, decorrido o período marcado
pelo Regulamento para a prova, as pedras acabaram por ceder, aborrecidas e
fartas:
– Uf!
Liberto por momentos da perseguição, João Sem Medo sentou-se, lasso,
numa pedra a quem recomendou, sorridente: «Agora, vê lá, não me mordas,
pequena.» E ali se refastelou, feliz, sob a copa de uma velha árvore, a lavar
o sangue dos pés na fonte, que corria perto, e a consertar os sapatos
esfacelados.
Este interregno de paz pouco durou, porém. Porque, de repente, quando
pensava em reatar a marcha, sentiu no pescoço a frialdade tenaz de um
círculo de dedos rugosos a comprimirem-lhe os músculos da nuca.
Furioso, e a sacudir-se aos berros, em vão intentou soltar-se daquela mão
terrível, desumana, que o estrangulava com ímpeto.
– Largue-me! Largue-me!
Mas quanto mais esperneava, mais os dedos feriam a carne, impiedosos.
Resolveu então mudar de táctica e extinguir qualquer veleidade de defesa.
Pendeu inerte, convencido de que a passividade levaria a Mão a moderar a
raiva estranguladora – o que de facto sucedeu.
E suspenso, bambo, as pernas a abanarem, olhou finalmente para o seu
agressor: um velho sobreiro com dez troncos em forma de braços humanos
e cinquenta galhos curvos como garras.
– Que vem aqui fazer, meu palerma? – vociferou o monstro, enquanto lhe
aplicava dois safanões bem puxados. – Julgas que podes ser feliz, hem?
Pois já vais ver como elas doem.
E zás! Pegou em João Sem Medo e arremessou-o ao ar, duas, três, quatro,
dez, vinte vezes com destreza de mestre de jogos malabares, enquanto as
plantas em redor aplaudiam – aproveitando o ruído alegre do vento nas
folhas – e as bocas das pedras rompiam às gargalhadas. Até um rochedo
façanhudo, com aspecto grave de avô, que segurava na boca desdentada um
cachimbo de greda, não se conteve que não ganisse o seu contentamento.
Findo o número de malabarismo, a árvore poisou de novo João Sem
Medo e permitiu-lhe que respirasse à vontade alguns minutos, embora sob a
ameaça vigilante dos seus dez troncos.
Mas o rapaz, assim que se pilhou livre da pressão dos ramos na nuca,
executou dois ou três exercícios de ginástica respiratória, deu uma
massagem nos músculos do pescoço, endireitou a espinha e, corajosamente,
bravamente, principiou a cantar (sabe-se lá com que vontade!).
– Ainda te atreves a cantar? – rangeu a árvore, estupefacta. – Porque
cantas, imbecil?
– Porque me sinto feliz, Senhora Árvore, e ninguém tem nada com isso –
mentiu João Sem Medo, petulante. – Engana-se se cuida que neste
momento a minha felicidade, ou infelicidade, depende dos seus caprichos,
ordens ou contra-ordens...
– Ah!, sim? Pois vamos lá ver isso! – ameaçou-o a árvore com voz de
vento sinistro a esganiçar-se nos ramos. – Agora, por exemplo, poderia
fazer aparecer nos meus dez troncos ventosas de polvo para te chuparem o
sangue. Ou desfibrar-me num chicote de dez correias para te retalhar a
pele... Mas não. Prefiro jogar râguebi contigo. Tem mais piada.
E o monstro agarrou outra vez em João Sem Medo, tomou balanço e
lançou-o para as mãos da árvore mais próxima que, por seu turno, o atirou
para outra. E assim sucessivamente...
Durante quilómetros, no meio do entusiasmo do público, das pedras e das
gargalhadas vegetais dos jogadores, o corpo do rapaz passou de árvore a
árvore como uma estranha bola alongada de carne e osso.
A tortura só terminou quando o treinador, escondido no vento, deliberou:
– Por hoje, basta de treino. Deitem a bola fora e toca para o duche.
As árvores obedeceram prontamente, arrojaram o corpo de João Sem
Medo para o chão e despiram as camisolas de casca e as cuecas de cortiça
para se deliciarem com um banho de chuva que as nuvens generosas se
apressuraram a verter no Balneário do Vale.
Enquanto o pobre João Sem Medo, pesado de sono e moído até ao mais
profundo dos ossos, se ajeitava o melhor possível no solo para tentar
dormir, ao mesmo tempo que rabujava contra a cama, tão desconfortável,
feita de picos de silvas e de cardos:
– Pareço um faquir!
Acordou recomposto, mas com uma fome tremenda, a vasculhar o chão e
as nuvens em busca de qualquer coisa que lhe enchesse o estômago.
Apenas viu no céu uma pomba branca que lhe arrulhou com mofa:
– Repara, repara neste corpinho. Dava uma boa canja, não dava? Mas
descansa que não é para o teu dente.
E pôs-se a rir, a parva!
João Sem Medo também achou graça, embora não o mostrasse, com os
olhos inquietos a escarafuncharem por toda a parte, ávidos de comida. Mas
tanto procurou, tanto procurou, que conseguiu desencantar, no outro lado da
Lagoa da Lama Verde, um pomar de laranjas e de tangerinas que de longe
parecia muito extenso.
A distância entre as duas margens não era grande e João Sem Medo
morria de fome. Não hesitou, pois. Despiu-se e com a trouxa da roupa à
cabeça penetrou no líquido esverdinhado de limos, crente de que alcançaria
facilmente a nado o laranjal apetecido.
Mas aconteceu então este fenómeno incrível: à medida que o nadador se
aproximava da outra margem, a água aumentava de volume e a lagoa
dilatava-se. Por mais esforços que despendesse para fincar as mãos na orla
do lago, só encontrava água, água unicamente. A terra afastava-se.
– Bonito! Estou dentro dum lago elástico – descobriu João Sem Medo,
esbaforido.
Mas fiel ao seu sistema de persistência enérgica não renunciou ao
combate.
As margens desviavam-se, mas o rapaz nadava, nadava sempre, com
confiança plena nos seus braços, na força de vontade e no desejo de vencer.
– Eh!, alma do diabo, sofre! – instigou-o por fim uma onda a deitar os
bofes de espuma pela boca fora.
Um peixe insurgiu-se com voz mole:
– Assim não vale! Vê se acabas com isso. Eu e os meus camaradas peixes
queremos dormir em sossego. Vamos, chora!
Uma gaivota baixava de vez em quando para lhe insinuar, baixinho:
– Então? Torna-te infeliz. Soluça. Berra. Chora. Lembra-te de que
seguiste o Caminho da Infelicidade. Não faças essa cara de quem ganhou a
sorte grande.
Por último uma coruja de mitra pequenina na cabeça e venda nos olhos –
para voar de dia e de noite em perpétua escuridão – segredou-lhe ao ouvido:
– Queres laranjinhas? Ouve a minha sugestão: representa a comédia da
dor. Finge que sofres muito, sê hipócrita. Mente. Pede a esmolinha de uma
laranja por amor de Deus. Vá! Não sejas tolo. Chora.
Como única resposta, João Sem Medo repeliu a coruja, fez das tripas
coração e desatou a cantar à sobreposse.
Então, ao som do seu canto, por fora tão vibrante e viril, a fúria das águas
amainou. O rugir das ondas amorteceu lentamente. Um murmúrio de
desistência soprou pela superfície do lago. E João Sem Medo, com algumas
braçadas vigorosas e seguras, logrou pôr o pé em terra perto do laranjal
carregado de pomos de ouro.
Claro, correu logo como um doido para a árvore mais próxima, sôfrego
de engolir meia dúzia de laranjas. Mas, num lance espectacular, os frutos
diminuíram rapidamente de volume até atingirem o tamanho de berlindes e
– zás! – com um estoiro despedaçaram-se no ar.
Humilhado, e a contar com nova surpresa desagradável, abeirou-se de
outra laranjeira. Desta vez, porém, as laranjas transformaram-se em cabeças
de bonecas doiradas e deitaram-lhe a língua de fora.
– A partida anterior teve mais graça! – observou João Sem Medo.
E dirigiu-se para uma tangerineira com a vaga esperança de apanhar uma
tangerina desatenta.
Isso sim. Mal o avistaram, os frutos caíram dos ramos como bolas de
borracha e espalharam-se na paisagem.
Então, numa tentativa suprema, João Sem Medo acercou-se de outra
árvore, sorrateiramente, em bicos de pés.
Tudo inútil. Como se estivessem combinadas, as laranjas e as tangerinas
do pomar desprenderam-se dos troncos, abriram pequeninas asas azuis e
começaram a subir serenamente no céu.
Apesar da fome, João Sem Medo, com os olhos fixos no espectáculo
maravilhoso das bolas de ouro a voarem, não pôde reprimir este clamor de
entusiasmo, braços erguidos para o Ar:
– Parabéns, Mago. Parabéns e obrigado por este instante, o mais belo e
bem vivido da minha vida. Obrigado. Mas agora ouve o que te peço: desiste
de me perseguir. Convence-te de que, para mim, a Felicidade consiste em
resistir com teimosia a todas as infelicidades. E vai maçar outro. Ouviste?
Vai maçar outro.

Palavras não eram ditas, João Sem Medo sentiu de súbito a carne
converter-se numa matéria mais áspera e o sangue a correr de forma
diferente nas veias.
Quis fazer um gesto. Impossível. Baixar as mãos. Não pôde.
Experimentou dar um passo. Em vão. Era como se o prendessem à terra
garras de âncora.
Mas só quando um pardal lhe veio construir o ninho nos braços é que
João Sem Medo compreendeu com espanto que estava metamorfoseado em
árvore.
III
A colina de cristal

O pior é não poder mexer-me – meditava João Sem Medo, fechado


naquela solidão terrível de paralítico em que não conseguia agitar os braços
senão com o auxílio misterioso do vento.
Ainda havia outro facto que o incomodava de modo particular: o estar nu
em pêlo diante do Sol e da chuva.
– Não percebo porque as árvores e as plantas não usam ceroulas, camisas,
colarinhos altos e peitilhos de goma – monologava João Sem Medo para
entreter as infindáveis noites de Inverno. – Não me digam que as azinheiras
não ficariam bem de capas à alentejana. E os sobreiros, de safões de pele de
cabra. Ou os castanheiros de capindós de burel. Quanto aos pinheiros,
fantasio-os sempre de fraque, solenes, hirtos, crepes nos chapéus de coco...
E eu? Oh!, eu...
Suspirou para rematar:
– Eu já me contentaria com uma gabardina por causa das constipações.
Mas o seu desconsolo de viver não provinha apenas desta nudez forçada.
Todos os dias fazia descobertas miserandas.
Assim, certa manhã, ao mirar-se por acaso no espelho sujo de uma poça
de água, verificou que os cabelos, há muito com a aparência de folhas
verdes, tinham crescido de forma desmesurada.
– Preciso de ir ao cabeleireiro cortar as folhas à escovinha – ramalhou,
melancólico. – Com esta cabeleira à poeta estou mesmo uma vergonha.
O pior, porém, foi a comichão que o acometeu e por pouco não o
enlouquecia.
– Provavelmente apanhei sarampo. Ou bexigas – imaginou logo João
Sem Medo, desesperado por não poder coçar-se.
Mas tudo se esclareceu no dia seguinte quando os braços, as pernas, os
olhos, a boca, o nariz, a testa lhe apareceram cobertos de chagas.
Ah!, que remédio senão sofrer com resignação, já que na vizinhança não
existia nenhuma árvore doutora que lhe lavasse as feridas e pusesse pachos
de cortiça em rama, ensopados em seiva quente.
Justamente na ocasião em que esta doença de pele mais o afligia,
aconteceu passar junto de João Sem Medo um casal de namorados.
– Olha que linda árvore! – disseram, arrebatados. – Cheiinha de flores... E
cheiram tão bem!
O que indignou João Sem Medo:
– Então não querem lá ver estes imbecis a gozarem à custa da minha dor,
os miseráveis! Flores, hem? Se apanhassem uma camada de furúnculos
talvez mudassem de opinião.
Mas os noivos, alheios ao sofrimento do rapaz-árvore, sentaram-se à
sombra dos ramos a confidenciarem palavrinhas de comunhão íntima. E
muito ternos, olhos nos olhos, juras de amor infinito nas bocas em êxtase,
gravaram com um canivete nas pernas de João Sem Medo, o testemunho de
dois corações atravessados por setas.
– Agora até me fazem tatuagens – queixou-se, colérico, a sangrar seiva
por todos os poros. – Os pássaros quando me virem assim vão fazer uma
troça pegada. Biltres!
E não refreou a tentação de suplicar ao vento naquela linguagem especial
das árvores, incompreendida pelos homens:
– Senhor Vento: tenha a bondade de me cortar um ramo, dos maiores, que
eu quero partir a cabeça destes patifes.
Mas o Sr. Vento, a voar no seu aeroplano invisível, não lhe ligou
importância. E João Sem Medo para ali quedou sozinho, à beira do laranjal,
nu, de braços no ar e o corpo sangrento de feridas – que os homens
teimavam em chamar flores.
Nessa mesma semana, João Sem Medo viu aproximar-se, aos pulinhos de
salta-pocinhas, uma menina de pele muito branca, olhos verde-doirados e
cabelos cor de mel. Andava às amoras, de cestinho no braço.
– Que bela árvore para um baloiço! – pasmou entusiasmada.
E com leveza de pássaro trepou pelo João Sem Medo acima para lhe atar
duas cordas nas mãos.
Daí a nada, a menina baloiçava, baloiçava, baloiçava, entontecida e
contente, com a boca acre-doce do sangue das amoras.
Ao princípio a árvore-à-força respingou com a brincadeira. As cordas
torciam-lhe os ossos e esfarrapavam-lhe a carne.
Mas pouco a pouco foi-se habituando ao vulto ágil da menina dos cabelos
de sol e prata. De tal sorte que, quando ela não vinha, apetecia-lhe secar de
desgosto.
Assim que a avistava, pedia logo ao pássaro Bisnau: «– Fala-lhe por mim.
Dá-lhe os bons-dias. Diz-lhe que o chapéu verde lhe completa os cabelos.»
Como resposta, o maroto do pássaro Bisnau, em vez de traduzir os
galanteios de João Sem Medo, ria-se à socapa e atirava muitas vezes coisas
indecentes para as abas do chapéu da menina dos cabelos de mel.
Quando chegou o Outono, a pequena desapareceu e João Sem Medo
sentiu-se tão desamparado que lhe caiu o cabelo (isto é: as folhas). Ficou
careca e triste.
E então, convencido de que nunca mais receberia novas da menina dos
cabelos de mel, principiou a servir-se do orvalho matinal para chorar por
ela.
Até que um dia surgiu na sua frente a visão atarracada de um velhinho
ombrudo, gorro vermelho, olhar de fogo e machado às costas que, depois de
examinar com atenção a árvore, pensou em voz alta:
– Não há dúvida. É ele. É o João Sem Medo.
O rapaz quis acenar que «sim», que era o João Sem Medo, mas nessa
altura nem uma brisa correu a ajudá-lo.
– Coitado! Não comunicas connosco senão através do perfume das
flores... – confrangeu-se o velhinho. – Espera que já te arranjo uma boca.
E com o gume cortante do machado talhou com destreza na casca da
árvore uma boca enorme com lábios, gengivas, dentes, língua, tudo.
– Pronto. Agora fala à tua vontade.
Uma guinada de vento brusco fê-lo tremer de alegria por poder romper
aquele pesadelo de silêncio esticado e João Sem Medo moveu pesadamente
os lábios de cortiça, para proferir com voz de árvore:
– Sim. Sou de facto o João Sem Medo encantado pelo Mago-Mor.
– Bem sei. Como sei também que ele não quer que voltes à tua antiga
aparência.
– Nunca mais? – lamuriou o infeliz.
– Nunca mais. A não ser que...
E susteve-se hesitante.
– A não ser que...?
– A não ser que queiras entrar numa combinação comigo... – decidiu-se
por fim.
– Pois claro que quero. Ainda duvidas? – anuiu João Sem Medo no tom
mais persuasivo da sua nova voz vegetal.
E calou-se para escutar a proposta do velhinho do gorro vermelho.
– Sabes quem eu sou, João Sem Medo?
– Não, velhinho do machado às costas.
– Sou o pai da menina dos cabelos de mel.
– Sim? E que foi feito dela? – indagou o rapaz ansioso de ouvir notícias
da Bem-Querida de tantas manhãs de Primavera.
– Está de cama, muito doente, prestes a entrar no Palácio da Colina de
Cristal, esse palácio maldito, onde

quem uma vez lá vai,


nunca mais de lá sai

– respondeu o velho, entristecido.


E, com os olhos de dor em água, explicou:
– Como sabes, todos os homens, mais cedo ou mais tarde, vão para esse
Palácio. Mas a minha filha é tão bela e tão jovem que não consigo
acostumar-me à ideia de perdê-la para sempre.
– Tens razão... Mas que posso eu fazer para evitar essa fatalidade? –
interrogou João Sem Medo, a deixar cair folhas secas no chão (sinal de as
árvores chorarem).
– Que troques o destino com ela e vás para a Colina de Cristal – propôs o
homenzinho do gorro.
João Sem Medo acedeu logo, entusiasmado.
– Estou às tuas ordens, velhinho. Não sei bem o que pretendes de mim,
mas prefiro tudo, tudo à imobilidade deste túmulo em que me sepultaram de
pé. Quero voltar a comer, a dar cambalhotas, a viver, a fazer o pino,
percebes? Conta pois comigo para o que quiseres.
– Obrigado, obrigado... – agradeceu o velhinho com o fogo do olhar mais
atiçado pela gratidão. – E agora, se não te importas, vamos desfazer o
encanto.
– Espera! – tornou João Sem Medo. – Quem mora na Colina?
– O Monstro Branco... – advertiu o pai da moça do baloiço.

Quem uma vez olhar para ele,


deixa lá ficar a pele.

– Bem. Primeiro, tira-me desta forma de árvore. Depois veremos.


E preparou-se para suportar as imprescindíveis torturas do
desencantamento, logo postas em prática pelo velho com dois socos
valentes na boca artificial, que lhe destruíram os dentes, a língua, as
gengivas e os lábios. Seguiram-se-lhe várias séries de golpes furiosos com o
machado que o escacharam de alto a baixo.
Daí a pouco, perto do laranjal existia apenas uma enorme monturada de
cavacos.
Então, o velhinho foi buscar uma carroça puxada por um cavalicoque
sonâmbulo, carregou-a de João Sem Medo em achas e pôs-se a caminho.
Quando chegou a casa ordenou ao criado que transportasse a lenha para a
cozinha e, acachapado à lareira, acendeu um fogo forte na chaminé onde
colocou um assador de castanhas – para utilizar o lume esperto.
E durante horas ali esteve a queimar, um a um, os bocados do nosso
herói, com meticulosidade escrupulosa, não fosse esquecer algum órgão
essencial. Ali arderam sucessivamente os rins, o fígado, os dedos, o baço, o
coração, as tripas, o estômago... (Tudo disfarçado em lenha, claro.)
E, enquanto ele se torcia em chamas, o velhinho jubiloso aquecia as mãos
ao fogo e cantarolava a fórmula mágica:

Tró-ló-ló, tró-ló-lé!
Foge pela chaminé.

Ao princípio, João Sem Medo sofreu muito, sobretudo quando se


lembrava de que estava a assar castanhas. Mas não tardou a gozar uma
agradabilíssima sensação de liberdade nova... de sombra de asas pairantes...
de leveza de nuvem branda...
E compreendeu tudo.
O cerne da árvore, consumido pelas labaredas, dissolvia-se em cinzas;
mas o fumo que se desprendia da lenha era o seu verdadeiro corpo.
Mal esse fumo branco caía da chaminé e contactava com o ar livre,
endurecia e transformava-se em carne humana com músculos, artérias,
nervos, pele...
Desta maneira, João Sem Medo, depois de assar castanhas, conseguiu
regressar à sua primitiva forma.

De posse do velho corpo, ainda se esforçou por deslizar do telhado para a


rua. Debalde, porém. Pesado da fadiga de ser homem, veio-lhe a
necessidade funda de descansar, de dormir, de se alhear do mundo. E
adormeceu profundamente, estendido nas telhas...
Ao acordar, manhãzinha cedo, já de novo habituado ao mau gosto na
boca, aos bocejos e à remela, viu na sua frente um estranho animal,
formado por uma bola revestida de alumínio, com um assento escavado na
parte superior, pescoço de bicho-da-seda, cabeça triangular, rodas em vez
de pés e hélice por cauda.
– Senta-te e vamo-nos embora! – bradou o passaroco, indiferente ao
espanto do João Sem Medo.
– Para onde? – quis saber a ex-árvore.
– Para a Colina de Cristal... Para onde querias que fosse?
Só então João Sem Medo se recordou do contrato com o velhinho do
gorro vermelho e não perdeu tempo com mais perguntas. Acomodou-se o
melhor possível nas costas do bicho mecânico – e ala que se faz tarde!
O passaroco pôs a hélice em movimento, desdobrou as asas de zinco
ondulado e partiu com a velocidade da luz.
Ao cabo dum largo voo sobre cidades, florestas, montanhas, mares
fluidos, ilhas longínquas, geleiras, planícies de neve, a Terra toda, em suma,
poisou por fim, languidamente, nas faldas da Colina de Cristal a
resplandecer ao sol, onde se erguia a fábrica fantástica dum Palácio de
brancura irreal sem portas nem janelas.
– O Monstro mora ali – indicou com a cabeça a ave de alumínio.
– Como se entra? – inquiriu João Sem Medo, preocupado. – Parece-me
difícil escalar esta colina de vidro e entrar numa casa sem portas.
– Sim, na verdade parece muito difícil... – concordou o passarão com
ironia – mas verás como é fácil.
João Sem Medo, apreensivo com o enigma, cogitou durante alguns
segundos na solução do problema. E depois pediu ao esquisito bicho de
metal que lhe arranjasse um espelho.
O animal mecânico bateu com a roda no solo e logo apareceu na algibeira
de João Sem Medo o espelho pedido.
– Agora foge da minha vista – intimou o rapaz.
O passaroco obedeceu e João Sem Medo, determinado a empenhar-se na
decifração do mistério, firmou o pé na encosta escorregadia da Colina de
Cristal para intentar a escalada, embora considerasse essa tentativa vã.
Mas – ó surpresa! – mal tocou na superfície lisa sentiu de súbito que
subia com a mesma rapidez dum objecto a tombar num abismo. E, tonto da
subida, parou diante da fachada principal do Palácio sem portas nem
janelas. Ao mesmo tempo, de uma fenda do telhado irrompeu um
monstruoso braço branco e esguio que se curvou para tomar João Sem
Medo pela cintura e introduzi-lo no Palácio – justamente na desolação
deserta dum vasto anfiteatro lajeado de mármore, também branco, onde
pairava uma espécie de luz de música nascida do silêncio.
Perplexo e intrigado, o rapaz olhou em redor. Ninguém nas bancadas.
Apenas, a alguns metros, um largo portal que se abriu, como por dedos
mágicos, à aproximação de João Sem Medo.
Dava para uma intrincada rede de corredores e meandros onde o
substituto da menina dos cabelos de mel não tardou a perder-se à procura do
dono do Palácio. Mas debalde.
Durante quase meia hora vagueou, de sala em sala, de câmara em câmara,
sem encontrar sinal de fôlego vivo. Ninguém. Sempre ninguém.
E já desanimava, propendente a desistir, quando se lhe deparou no pátio
interior o seguinte letreiro:

CAVALARIÇA SAGRADA

Então, empurrou, com curiosidade lenta, a porta do estábulo onde, ao


fundo do recinto espaçoso, com paredes de platina e chão de cristal, divisou
um corcel negro e possante que relinchava contente por ver tanta palha de
oiro na manjedoura de prata.
Por cima da cabeça do animal, presa a um prego de bronze, alongava-se
uma foice de cabo comprido...
A quem pertenceria aquele cavalo de crinas de fogo negro em fios? Ao
Monstro Branco? E o Monstro quem seria? Algum deus fugido do rubro-
branco dos Infernos?
Uma voz inesperada suspendeu-lhe as reflexões: – Que fazes aqui?
Lembrou-se imediatamente das palavras do velhinho do gorro vermelho
(quem uma vez olhar para ele / deixa lá ficar a pele) e respondeu, de costas
voltadas:
– Sou o João Sem Medo e venho substituir a menina dos cabelos de mel...
... enquanto, com disfarce furtivo, tirava o espelho do bolso para espreitar
o Monstro.
Afinal nada do ser horrendo que esperava.
Pelo contrário: na superfície polida desenhou-se a figura bela e esbelta de
um mancebo coroado de violetas, talvez um deus grego.
– Mas tu não és o Monstro – murmurou surpreendido.
– Não – sorriu o possível deus. – Nem me pareço com ele. O Monstro
prescindiu da pele, dos músculos, do sangue e traz apenas o esqueleto à
mostra, pintado de branco. E é tão vaidoso que até põe pó-de-arroz na
caveira.
– Não posso falar com ele? – insistiu.
– Não. Anda à caça.
– E como se chama?
– Pois não sabes? É a minha velha amiga, a Morte. João Sem Medo
tentou esconder o medo, exagerando espanto:
– Quê? A morte? Estou no Palácio da Morte?
E, com palidez enérgica, começou logo a magicar na
maneira de fugir, antes que ela regressasse da caça.
– Porque não levou o cavalo e a gadanha? – informou-
-se a amadurecer o plano.
– O cavalo? Agora já não liga importância ao cavalo nem à foice. Prefere
o seu avião negro e a metralhadora-fantasma.
– E tu? Moras aqui?
– Oh! não. Estou apenas de visita. De vez em quando a dona do Palácio
convida-me a vir tomar uma caveira de chá de folhas secas de cipreste. Não
é verdade, meu velho cavalo?
E enquanto afagava o pêlo rijo da montada, ia dizendo caricioso:
– Pobre de ti! Já deves ter saudades do sol. Há tantos meses que não sais
da cavalariça.
Então bruscamente aconteceu esta coisa insólita: dum pulo, João Sem
Medo escarranchou-se no lombo do cavalo, crispou a mão esquerda nas
crinas e pôs-se a gritar:
– Retira-te da minha frente. Deixa-me partir.
Tornava-se, porém, visível que o deus, ou lá quem era, de perfil grego,
não pretendia impedir-lhe a passagem. Não hesitou até em exortá-lo à fuga.
– Corre, corre, depressa, antes que ela apareça por aí.
– Quem és tu? – perguntou ainda o rapaz, ao mesmo tempo que arrancava
do prego da parede a gigantesca foice de aço vivo, de um leveza imprevista
(tão fácil de manejar).
Mas o cavalo, num salto prodigioso, rompeu o telhado e João Sem Medo
pouca atenção prestou à resposta. Chegou-lhe apenas aos ouvidos uma
palavra imprecisa terminada em «or»... «Dor» possivelmente... Talvez
«Amor»...
Não percebeu bem.
Entretanto, o corcel, descida a Colina de Cristal, atravessava agora a
galope uma seara imensa entre o desespero dos ceifeiros aos berros:
– O Cavalo da Morte! O Cavalo da Morte!... Qual de nós irá morrer?
Como réplica, João Sem Medo baixou a foice e, para lhes poupar o
trabalho, ceifou o trigo todo.
IV
O gramofone com asas

Enquanto um rumor de júbilo rasgava a planície de mil bocas em grita –


«A Morte ajudou-nos! A Morte ajudou-nos!» – o cavalo enfurecido sacudiu
violentamente João Sem Medo do dorso e abismou-se no solo com duas
patadas, no meio de um estridor tremendo de negrume e labaredas.
Vários ceifeiros acudiram logo a socorrer o rapaz desmaiado e
transportaram-no em andas para a Estalagem onde, depois de lhe verterem
um tarro de água na cabeça, o despiram e enfiaram na cama.
Quando João Sem Medo voltou a si não pôde deixar de se maravilhar.
Na verdade os aldeões, que naquele momento o rodeavam de mimos,
tinham em vez de mãos cinco lâminas de facas.
– Porquê? – quis ele saber ainda meio tonto e dorido do trambolhão.
A estalajadeira, já velhota e cega do olho esquerdo, imediatamente se
prestou a relatar-lhe a razão dessa anomalia, ao mesmo tempo que
descascava uma pêra com o fura-bolos (as lâminas dos outros dedos
apresentavam desmazelados sinais de ferrugem).
Segundo ela contou, a planície que se estendia até à Cordilheira do Vento-
Aos-Coices pertencera em épocas imemoriais ao Devorador das Sete Bocas
que, com crueldade pavorosa, de chicote em riste, obrigava as gentes da
região a trabalhar 16 horas por dia para lhe satisfazer o apetite insaciável.
Como paga, os infelizes recebiam apenas a côdea de broa dos escravos, que
mal se sustinham de pé, sujeitos à mais selvagem vassalagem de que havia
memória. Além disto, todas as noites os Beleguins Sacros do Templo
cortavam as veias a cem vítimas escolhidas à sorte para regarem os campos
de sangue e assim fertilizarem as colheitas de pão, azeite e vinho destinadas
ao bandulho do déspota e seus sequazes.
Resumindo: o abuso atingiu tais limites de execração que a revolta
estoirou por fim, inevitável. O Devorador foi banido da face da Terra e os
camponeses apossaram-se da planície para a cultivarem em proveito
próprio. Mas a paz e a riqueza não advieram automaticamente como todos
supuseram nos primeiros entusiasmos. Novas desgraças se multiplicariam,
agora causadas pelos descendentes do Devorador que não renegaram os
seus direitos de tirania herdada. Durante séculos e séculos tentaram (e
continuavam a tentar) a reconquista do Império perdido, forçando os
campónios a uma resistência constante.
Foi no decurso dessa luta que, por lógica de complexas condições
mágicas, as crianças – hoje uma, outra amanhã – deram em nascer com os
dedos em forma de lâminas, para se defenderem do inimigo que, embora
degenerado, já só com três bocas, recorria a todos os estratagemas e
subterfúgios para a realização do sonho de restabelecer o domínio sobre os
ex-escravos.
– E quer saber como esses assassinos nos atacam agora? – concluiu a
estalajadeira. – Entranhando-se subtilmente nos nossos espíritos,
disfarçados de espectros ou de pensamentos, para nos matarem de dentro
para fora. Só a custo nos livramos dos assaltos desses bandidos.
E a entalar-lhe com muita ternura a roupa da cama (João Sem Medo
sorriu quando reparou que a boa da velha, de pala no olho, tinha espetado
batatinhas nos dedos para não o ferir), despediu-se e abandonou o quarto,
para que o hóspede descansasse em sossego.
Então, com o fardo das saudades da mãe no coração e talvez a formular o
desejo impreciso de voltar para Chora-Que-Logo-Bebes, o fugitivo do
Palácio da Morte adormeceu com serenidade de respiração bem ritmada...
Quando despertou soergueu-se no leito, estarrecido com o objecto que
entrara pela janela do quarto durante o sono e estava ali na sua frente, à
espera. Nada menos nada mais do que um Gramofone com Asas. Um
desses gramofones antigos, composto de uma caixa quadrada de madeira
forrada de pele e a respectiva manivela ao lado. A mais, apenas um par de
asas de papagaio – a ave de cabeça vazia que palra como os homens.
– Que diabo faz isto aqui? – estranhou João Sem Medo, a vestir-se à lufa-
lufa.
Neste meio-tempo a tampa abriu-se, o prato começou a girar, a agulha
rodou pelos sulcos do disco e João Sem Medo ouviu o Gramofone dizer-
lhe:
– Se queres regressar a Chora-Que-Logo-Bebes, senta-te em cima de mim
e ala!
Mas João Sem Medo, a saborear uma fatia de pão barrada de mel que a
velhota cegueta colocara na mesinha-de-cabeceira, considerou, desdenhoso,
aquele veículo tão incómodo:
– Um gramofone! Mandarem-me um gramofone! E com asas! Esta não
lembrava ao Diabo! Então o Mago-Mor, ou lá quem é, não tinha ao menos
um aeroplano para me emprestar?
O Gramofone moveu o disco e respondeu, fanhoso:
– Que queres? Faço parte dos objectos mágicos de invenção recente.
Além de mim existem o Telefone Gago, a Mordaça para Bocas Invisíveis, a
Máquina de Escrever para Fantasmas Analfabetos, o Espartilho de
Espectros Gordos, o Ferro de Engomar Milagroso, etc., etc.
João Sem Medo alçou os ombros:
– Cá por mim não me importa. Mas as avós, coitadinhas! – é que se vão
ver às aranhas quando lhes pedirem a história do Fogareiro de Chapéu de
Coco!
E resignado a correr mais aquela aventura condescendeu:
– Bem... Pára o disco e fecha a tampa para eu me sentar.
Mas o Sr. Gramofone hesitou em obedecer:
– Quero pedir-te um favor, João Sem Medo. – Dize lá o que queres.
– Se não te incomodasse muito, em lugar de partirmos directamente para
Chora-Que-Logo-Bebes, visitaríamos primeiro a minha terra. Queres?
– A tua terra? Pois tu tens pátria? – admirou-se João Sem Medo com a
sensação de que seria indelicado não se admirar.
– Pois tenho. Tenho pátria, tenho pai, tenho mãe e tenho irmãos, dois
gramofonezinhos de colo... – justificou-se, amável.
– Nunca ouvi falar dessa terra – confessou João Sem Medo, vexado da
sua ignorância em Geografia.
Calou-se. Mas segundos depois luziu-lhe o olho, curioso:
– Como é o teu país? Existem lá homens, mulheres, cidades, restaurantes,
tabernas, cabeleireiros?...
– Pois claro... Apenas os homens têm um disco em vez de cabeça. Quanto
ao corpo, é constituído pela caixa de ressonância, apoiada em duas
perninhas de papagaio – a ave sagrada da nossa pátria. E as mulheres usam
saias e lenços de seda nas manivelas...
– E falam?
– Evidentemente. Falam como gramofones que são. Quando desejam
exprimir-se, põem o motor a funcionar, espetam a agulha no sítio que lhes
convém e pronto: não param mais...
– Deve ser giro – sorriu João Sem Medo.
– Vem comigo e verás... – convenceu-o por fim o Gramofone.
E, leve de alegria, fechou a boca (isto é: a tampa) e mal sentiu o peso de
João Sem Medo, agitou as asas de papagaio e disparou pela janela num voo
de longo capricho elegante.

Passado algum tempo aterraram num estranho país de paisagem mecânica


e atmosfera musical, onde nas árvores, ou nas hastes de ferro a que davam
esse nome, balançavam pequeninas placas redondas, a fingirem de folhas,
de que se soltavam ruídos de brisas... No ar, em vez de passarinhos a
cantarem nos ramos, ouviam-se discos com gravações de rouxinóis e de
melros. E pelo solo desses bosques extraordinários alongavam-se
quilómetros e quilómetros de flores em que se destacavam as moitas de
campânulas de gramofones primitivos de inúmeros tamanhos, feitios e
cores. Por toda a parte silvavam roldanas, correias, discos de cera,
manivelas, pratos de metal rutilante...
Na capital, os prédios pareciam enormes caixas forradas de peles que se
diferenciavam conforme a riqueza e o gosto dos proprietários e inquilinos.
Somente os bairros económicos, para discos riscados e em segunda mão,
quebravam a monotonia da arquitectura geral com extensas prateleiras de
armazéns gigantescos.
Mas o que mais impressionou João Sem Medo foi o vaivém palrador dos
habitantes com cabeças de disco, corpos de madeira, braços rematados por
mãos de diafragmas, perninhas de papagaio...
– E tu? – perguntou o rapaz ao seu guia. – Porque não és como os outros?
Como te cresceu esse par de asas?
– Ai de mim! – gemeu o pobre. – Foi uma punição do destino! Quando a
minha mãe me vir neste estado, nunca mais travará o disco das lamúrias.
Então João Sem Medo não resistiu à indiscrição de espiar a vida privada
daqueles seres tão insólitos. E, de orelha à escuta, postou-se à esquina do
largo principal da cidade.
Justamente nessa ocasião um senhor de chapéu de palha equilibrado no
disco e camisa de colarinho aberto encontrou outro com a mesma
indumentária. E a conversa principiou deste teor:
– Como passou? Bem?
– Óptimo, obrigado. E você?
– Esplêndido. Belo tempo, hem?
– Magnífico! Um dia maravilhoso!
– Amanhã provavelmente teremos chuva...
– E possível... Mas hoje o calor é de torresmos... Etc., etc.
Após esta profundíssima troca de pensamentos, apertaram as mãos com
afabilidade e separaram-se a limpar o suor e o pó dos discos com os
lencinhos de flanela da última moda.
Logo a seguir desembestou na praça uma dama de manivela frisada que
por pouco, aliás, não atropelou uma amiga que caminhava em sentido
inverso. Riram muito e demoraram-se um momento a desenferrujar as
agulhas.
– Olá! Há tanto tempo que não te via!
– O teu vestido é um amor!
– Agora usam-se bordados nos diafragmas, como sabes.
– Ah! E as criadas? Cada vez estão piores, não achas?
– Ah! Não me fales das criadas! São uma peste. Etc., etc.
E, terminada esta conversa de tão alto sabor intelectual, levantaram as
agulhas e apartaram-se com imensos adeusinhos de intimidade feliz.
Nessa meia hora de espionagem, o nosso João Sem Medo só ouviu
discutir o tempo, as criadas e as modas, sempre com as mesmas palavras, as
frases infalíveis e os eternos lugares-comuns.
– A maioria das pessoas já nem pensa! – filosofou o rapaz. – Fala. Isto é:
limita-se a pôr o aparelho em acção, a acertar a agulha no sulco respectivo e
a deixar tocar o Disco... Sempre igual, aliás.
Mas receoso de tirar conclusões injustas por prematuras, resolveu
prosseguir nas suas investigações de estudo pela cidade.
– Espera aí que volto já! – gritou ao Gramofone voador. E partiu.
Porém, em toda a parte onde meteu o nariz continuou a ouvir o Disco,
apenas o Disco.
Do alto das tribunas os oradores proclamavam às multidões em chusma:
– A alma da Raça é imperecível! O povo não pode nem deve pagar mais!
Na Universidade, os mestres, nos tronos das cátedras, assistiam ao rolar
solene do Disco perante a sonolência dos alunos que, para não dormirem,
caçavam moscas que voavam em redor também com discozinhos de
zumbidos atados às patas. Os literatos entravam nas livrarias e pediam aos
caixeiros:
– Dê-me o Disco recém-chegado de Paris.
– Temos o Ultra-Irracionalismo-Racional com molho de angústia azul.
– Óptimo!
– E o Infra-Racionalismo-Irracional com molho de esperança roxa.
– Esplêndido!
– E a Escola do Ouvido que preconizava a norma estética de se escrever
de olhos fechados para só se registar o ferver de vozes e sons fantasmas
num mundo sem corpos nem bocas.
– Magnífico!
E abandonavam as lojas com as receitas do génio debaixo do braço.
Nas ruas os mendigos choravam, num repisar de agulha encalhada: «Uma
esmolinha por amor de Deus.» Os amigos, quando se abraçavam nos cafés e
nos átrios dos cinemas, repetiam maquinalmente as geladas frases feitas do
costume:
– Estás género bestial, pá!
Ninguém, em suma, se esforçava por quebrar o Disco ou gravar outro.
Falavam, falavam, durante horas sem fim nem descanso e, quando
pressentiam falta de corda, dirigiam-se ao transeunte mais próximo com
uma vénia cortês:
– Vossa Excelência quer ter a bondade de me dar à manivela? Bastam
duas voltas.
– Ora essa, cavalheiro. Com muito prazer.
O passeante delicado dava-lhe corda, o outro agradecia e pegavam de
conversa:
– Que calor, hem?
– Muito... Mas amanhã provavelmente, chove.
– Talvez não. O céu está tão azul!...
Etc., etc.
E, findo este agradável diálogo, cada qual tomava o seu destino.
Só desmanchavam aquele conjunto idílico alguns gramofones
subversivos que espalhavam, em voz baixa, a existência de países menos
provincianos, em que os habitantes, banida a rústica manivela manual, já
viviam ligados à corrente eléctrica... Mas era talvez boato.
– Despede-te da família e vamo-nos embora! – berrou João Sem Medo
mal avistou o Gramofone com Asas. – Já!
– Imediatamente. Não quero perder nem mais um minuto nesta terra onde
só se ouvem discos de lugares-comuns. É de morrer!
Como resposta o Gramofone colocou a agulha na zona das gargalhadas e
desatou a rir.
– Porque te ris?... – proferiu o rapaz, desconfiado. – Por nada. Salta para
cima de mim e vamo-nos embora.
– Então não vais visitar a família?
– Não tenho família! – confessou o cínico do Gramofone.
– Mas tu disseste-me...
– Tudo falso e inventado pelos Altos Poderes. Não tenho pai, nem mãe,
nem gramofonezinhos de mama, nem nada. Pois não vês que esta terra não
existe?... Não passa duma miragem engendrada de propósito para te
enganar...
– Mas com que intenção? – perguntou o rapaz sem compreender.
– Sei lá! Talvez para te ensinarem qualquer coisa. É esse o Disco das
Fadas. Pregar moral!
Pensativo, João Sem Medo envolveu a cidade num derradeiro olhar
curioso para fixar bem os perfis daqueles tristes entes, entretidos no moer
incessante dos mesmos sentimentos e das mesmas expressões. E comentou:
– De facto, parece Chora-Que-Logo-Bebes vista ao Raio X... Vamos!
Mas antes de se instalar no lombo do Gramofone, perscrutou o céu,
inquieto...
– Creio que vai chover... – disse.
– Não... – contrariou o Gramofone, muito sério. – Não vês como o céu
está azul?
– É verdade... Mas este calor anuncia tempestade... Etc., etc.
E depois de falarem do tempo um bom quarto de hora, João Sem Medo
sentou-se com extremo cuidado na tampa do Gramofone que, lentamente,
abriu as asas de papagaio e ergueu voo na atmosfera azulada.
V
O condão do sacrifício

Era noite escura quando o Gramofone com Asas se aproximou da Terra


em voo planado e largou João Sem Medo no deserto, desagregando-se sem
rasto no silêncio nocturno.
E, a morrer de fome e de fadiga, o rapaz para ali ficou deitado de costas, a
matutar:
– Agora só tenho um caminho a seguir: ver se descubro uma luzinha na
escuridão. É o que fazem todos os heróis dos contos populares nas
circunstâncias em que me encontro, suponho. Toca, pois, a procurar a
luzinha.
Endireitou-se e, com as mãos fincadas na areia, perfurou a sombra com o
olhar em busca da luzinha salvadora. Em vão, porém.
– Mau! – reflectiu ele, despeitado. – Não me digam que aquelas cabeças
de vento se esqueceram da luzinha para me guiar. E agora? Que hei-de fazer
ao raio da vida sem a luzinha?
Muito esmorecido, retomou a posição anterior, condenado a esperar,
paciente, pelo primeiro sol da manhã. Mas, para dormir com mais
comodidade, empreendeu a escavação de uma espécie de cama. Ou melhor:
uma cova larga onde se protegesse do vento e improvisasse uma almofada
de areia para repousar a cabeça.
Deitou mãos à obra. Mas logo no início do trabalho tocou num objecto
comprido e esguio.
Palpou-o devagar e compreendeu pelo tacto que se tratava duma varinha
de cuja ponta, atado por um cordão, pendia um sobrescrito com um papel
dentro. Talvez uma mensagem.
– Com esta escuridão é impossível lê-la! – pensou. – Ah!, se ao menos
houvesse luar!
Este simples desejo bastou para acordar nas trevas uma Lua enorme que
iluminou a noite de lés a lés.
Deslumbrado com aquela Lua Artificial, criada por ter pensado nela, e
que tanto sonho e fluidez entornava no espectáculo da natureza em redor –
todo um deserto lívido de luar e de areia ondulada –, João Sem Medo tirou
a carta do envelope e leu-a, sôfrego:

Meu caro João Sem Medo

Se não quiseres morrer, atravessa o deserto em qualquer direcção,


porque todas irão dar magicamente ao mesmo ponto: o Oásis da
Felicidade Verde. Mas não contes com o nosso auxílio. Arranja-te como
puderes.
Oferecemos-te esta varinha de condão e já não é mau. Com ela poderás
realizar todos os desejos. Basta que a aproximes de qualquer parte do
corpo e digas o que pretendes. Mas perderás para sempre a parte do corpo
em que tocares. Percebeste?

Saudações mágicas do Presidente


do Sindicato Internacional das Fadas
e Artes Negras Correlativas

Ao terminar a leitura, o achador da varinha abanou a cabeça:


– Que estilo!
E acrescentou, abespinhado:
– Não querem lá ver as maçadoras a aproveitarem-se de mim como
cobaia para experiências de exemplos e proveitos! Ah!, como me irrita esta
pretensão de quererem ensinar aos homens o que só os homens entendem: a
vida, o sofrimento, o sacrifício... As parvas ainda não compreenderam que
nós é que podemos dar-lhes lições?
Mas como de costume adaptou-se à realidade com rapidez (A rapidez
lúcida do bom senso). E, de varinha segura ao pescoço pelo cordão (não
fosse cair e enterrar-se na areia), encetou a penosa marcha através do
deserto, à claridade daquela Lua provisória, duas vezes maior do que a Lua
vulgar de todas as noites, que pintava a paisagem de tinta alva e irreal...

Andou quilómetros e quilómetros a fio até rastejar de cansaço.


– Um camelo agora é que me calhava – desabafou por fim, vencido pela
tentação de experimentar as virtudes da varinha. – Que diabo! Um dedo a
menos não faz falta a ninguém. Em vez de o meter no nariz posso trocá-lo
por um camelo forte e possante. Vamos a isto!
Assim o pensou, melhor o fez. Roçou com a varinha no dedo mínimo da
mão esquerda e exigiu:
– Quero um camelo.
O dedo desvaneceu-se por artes de berliques e berloques e na areia surgiu
um belo animal fulvo que o rapaz montou sem hesitação nem delongas. E a
viagem adoçou-se logo de benignidade baloiçada...
Mas ao cabo de meia hora sobreveio-lhe a sensação vazia da fome
acompanhada de dores persistentes no estômago.
– E se eu comesse um bife com batatas? – propôs-se indeciso, a mastigar
em seco. – Mais um dedo, menos um dedo, que importa a quem não toca
viola? Vamos a isto.
Bateu com a vara no segundo dedo da mão e não tardou a lamber os
beiços diante de um esplêndido bife cercado de batatinhas loiras.
– Como é que um bife tão grande cabia num dedo tão pequeno? –
especulou no antegozo espiritual de devorar a própria carne assada pela
grelha.
Mas, reservando a solução desse problema para a sobremesa, dispôs-se a
consumar a delícia antropófaga do bife. Entretanto lembrou-se de que
precisava de um garfo e de uma faca. Além de lhe apetecer queijo, peras,
bananas... Um ror de coisas.
Quer dizer: no final da refeição estava maneta.
– Se continuo a comer-me assim, desapareço nas minhas próprias
entranhas antes de chegar ao Oásis – cismou João Sem Medo com
melancolia. – Preciso de ter juízo e poupar-me.
E jurou que daí em diante não voltaria a usar a varinha com imprudência.
Mas ao entreabrir da manhã sucumbiu à tentação de matar o bicho. E na
altura do pequeno-almoço ingeriu, voraz, um par de torradas, três pastéis de
nata e uma tigela de leite com sopas de pão-de-ló.
Resultado: lá se foi uma boa talhada do braço esquerdo.
Seguidamente, o suplício do calor suscitou-lhe a necessidade de molhar a
boca e de se refrescar, hora a hora, com sorvetes de morango.
Conclusão: ao meio-dia já não tinha o braço esquerdo.
– Assim, com franqueza, nem pareço um homem – indignou-se João Sem
Medo consigo mesmo. – Pareço um talho. Pareço uma mercearia. Pareço
uma loja de gelados...
Mas acalmou a consciência com esta promessa solene: – Juro pela saúde
das fadas que hoje não tornarei a beber mais refrescos.
E cumpriu o juramento.
Na verdade, decorrido um quarto de hora, veio-lhe à boca o sabor da
saudade de um capilé. Mas não cedeu.
O mesmo quanto a um leque para se abanar. Por pouco não o extraiu das
orelhas que, de mais a mais, eram de abanador – como todos diziam.
Mas não transigiu com a sede. Nem com a fome.
E, encavalitado no camelo, sob o sol agudo do deserto, João Sem Medo
prosseguiu na longa marcha monótona em demanda do Oásis da Felicidade
Verde – onde as moças iam encher as bilhas de água fresca nas cisternas
fundas e colher tâmaras de ouro, aos cachos, nas palmeiras.

À tardinha não resistiu mais. E pôs-se a monologar este delírio de


faminto:
– Para que servem as pernas?... Para magoar a barriga do pobre camelo?...
Ná. O melhor é preparar um jantarinho saboroso com a perna direita, antes
que desmaie de fraqueza. Vejamos: com o pé arranja-se um belo prato de
chispe de porco. Com a perna, um naco de carneiro assado no forno,
rodeado de azeitoninhas curtidas em limão. A coxa dá uma pratada de
bacalhau cozido com batatas e grelos. E quanto à rótula, todos dizem que
melão com presunto é de se lhe tirar o chapéu. Vamos a isto.
Dito e feito. Daí a meia hora tinha a perna no bucho. E, repleto como um
odre, estendido à sombra do camelo, dormiu e ressonou broncamente até às
tantas com um peso feliz e estúpido nas pálpebras e no estômago...
Acordou estremunhado com o grito penetrante de um homem de pesadelo
(homem ou visão?) que se arrastava, súplice e escanzelado, na areia do
deserto.
– Salva-me – gemia o mísero. – Dá-me um cavalo para poder chegar
depressa ao Oásis, antes que morra.
– Onde queres tu que eu vá desencantar o cavalo, aqui no meio do
deserto?... – endureceu-se João Sem Medo, a defender com egoísmo o resto
do corpo que sobrava das comezainas.
– Com a tua varinha – implorou o famélico, por certo industriado pelo
Sindicato para aquela comédia da Tentação. – Transforma a perna esquerda
num cavalo.
– A perna esquerda? Estás doido? E logo à noite, à ceia, que queres que
eu coma?... O estômago?
Mas o desgraçado insistiu e João Sem Medo viu-o tão prostrado que não
tardou a dar voltas e reviravoltas ao egoísmo para justificar a Boa Acção
que se lhe condensava devagarinho no espírito:
– No fim de contas, talvez sinta mais prazer em salvar este miserável do
que comer lagosta e beber champanhe logo à noite à luz das estrelas.
E numa resolução súbita (sim, porque não havia de parecer bondoso?)
friccionou ao de leve a varinha na perna esquerda que se transfigurou num
estupendo cavalo árabe.
O pobre diabo, tonto de alegria, nem balbuciou as habituais palavras de
agradecimento. João Sem Medo impediu-o à primeira tentativa:
– Deixa-te disso. Salta para cima da minha perna e põe-te a mexer...
Embora com cautela, sim? Não a magoes com as esporas... Mas antes de
partir, olha bem para mim. Repara no que vai suceder.
Fez menção de chegar a vara ao tronco e, com a naturalidade límpida de
cumprir um destino, comandou:
– Quero um guarda-sol verde.
Acto contínuo João Sem Medo ficou reduzido à expressão mais simples.
Isto é: à cabeça e ao braço direito.
– Para que fizeste isso? – perguntou o homem, atónito de terror ante
aquela miragem fantástica de um braço pegado a uma cabeça.
– Para não comer mais – explicou João Sem Medo, fleumático. –
Confesso que já estava enjoado de mim mesmo, em bifes.
Houve um silêncio curto, apenas cortado pelo ruído das patas do cavalo
infalivelmente fogoso.
– Queres ter a bondade de ajeitar a minha pobre cabeça e o braço em cima
do camelo? E de abrir o guarda-sol? – pediu ainda João Sem Medo.
O homem obedeceu, prestável.
– Agora podes retirar-te! ... Podes ir às fadas!
O homem assim fez. Saltou para a sela do animal e, com um adeus
ligeiro, perdeu-se nos longes da areia amarela...
– Olha, lá vai a minha pobre perna a correr – gracejou João Sem Medo, a
lembrar-se do estilo da velha poesia futurista do Orpheu, tão verdadeira e
tão mágica.
E, a tanger o camelo com o cabo do guarda-sol verde, retomou a
caminhada através das dunas...
Veio a noite e João Sem Medo, ou melhor: a cabeça de João Sem Medo,
equilibrada no dorso do animal e alheia a necessidades prementes, cerrou as
pálpebras e, com a modorra da cadência da marcha, adormeceu.
Despertou, manhã alta, com o céu forrado de metal azul e o sol como
ferro em brasa desfeito em luz. O camelo, fatigado, agachara-se perto dum
montículo de areia e no ar esvaía-se um perfume a Primavera e a ervas
húmidas.
O Oásis da Felicidade Verde devia estar perto.
– Ai!, o desgosto que a minha mãe vai sofrer quando me vir neste estado
– dizia entre si João Sem Medo.
– Deixá-lo! Pensando bem, isto de só possuir cabeça também tem
vantagens. Escuso de gastar dinheiro em fatos, por exemplo. Basta-me um
chapéu para não andar nu... Aliás, em último caso, se o corpo me fizer
muita falta, poderei mandar fabricar um de plástico. Enfim: veremos.
Este fluxo interminável de reflexões optimistas só estancou quando João
Sem Medo descobriu de novo, estendido na areia, a mancha alucinante de
uma mulher aos gritos, trajada de negro.
– Cá temos outra provocação! – pensou, irónico, João Sem Medo.
Mas, em voz alta, enterneceu o tom:
– Que tens, pobre mulher?
– Sede! Tenho sede! Dá-me água! – reclamava a moribunda, torcendo as
mãos de desespero lastimoso.
O rapaz contemplou-a, amiserado, mas não respondeu.
– Dá-me água! Não me deixes morrer de sede! Salva-me! – teimava a
mulher, de joelhos, implorativa.
Mas, numa mutação rápida, tornou a alongar-se na areia com desalento:
– Ah!, tu não compreendes a minha dor. Não podes compreender!
– Ora essa! Porquê! – agastou-se João Sem Medo.
– Porque só tens cabeça. Falta-te o coração. Coitada de mim que não me
resta outro destino senão morrer.
– Não digas disparates – exprobrou-a o rapaz. – O coração não
compreende nada. Bate como uma máquina e nada mais. O verdadeiro
coração existe na cabeça. Trago-o aqui, bem fechado, no cérebro. Queres
que te prove?
A mulher de negro resumiu as suas aspirações nesta palavra renitente:
– Água.
– Água! Queres água! Que espécie de água? De Vidago? Das Pedras
Salgadas? Do Luso? É só pedir por boca – volveu João Sem Medo com
ironia pungente.
E sereno, enquanto aproximava com lentidão a varinha da cabeça,
recomendou à mulher com um sorriso.
– Não te esqueças de mandar analisar a água. Oxalá tenha muito amónio,
muito lítio, muito estrôncio, muita sílica...
E transformou-se em fonte.
VI
A sala sem portas

Enquanto João Sem Medo, desfeito em fonte, corria nas areias do deserto,
as fadas reunidas em Assembleia Geral no Sindicato (em segunda
convocação, claro, com dúzia e meia de presenças) deliberavam e discutiam
o destino a dar ao rapaz.
Uma – a Fada da Má Catadura – não reprimia o desejo de eternizá-lo em
fonte, a jorrar água pelos tempos fora, embora propusesse que o
transferissem para a Aldeia do Vale – Ah! tão poética e tão porca! – cuja
população há anos requeria à Câmara um fontanário público para lavar a
cara.
A Fada Branda, que tomou a palavra em segundo lugar, concordou em
princípio com a ideia da Fonte Perpétua, com a condição, contudo, de que a
água fosse milagrosa.
– Sempre era outro consolo! – dizia.
A Fada do Fogo Apagado abundou nas considerações da oradora
antecedente. E, por fim, a Fada com Lume na Bola, ouvidos mil disparates e
inumeráveis hipóteses absurdas, ergueu-se e perorou assim, de dedo no ar:
– Camaradas: não macemos mais esse desgraçado. Já lhe pregámos moral
em demasia e o sujeitámos a incríveis provas de mau gosto e tormento.
Acabemos com a perseguição, mais inútil do que odiosa, e deixemo-lo para
sempre em paz e às moscas.
Chegou aos lábios o copo de água para marcar bem a pausa e rematou:
– Nesse sentido vou mandar para a mesa a seguinte proposta para que
requeiro dispensa de regimento: 1.º – proponho que a Fonte do Deserto
volte à forma anterior de João Sem Medo com a mesma cabeça, o mesmo
tronco e os mesmos membros; 2.º – que lhe reconheçamos o direito de viver
em liberdade plena, longe da nossa vigilância e das nossas artes mágicas –
bastante cediças, aliás, e necessitadas de reformas urgentes.
Nessa altura, a Assembleia em fúria repeliu com veemência as boas
razões da Fada com Lume na Bola. Aprovou, não obstante o mau humor de
algumas oponentes, a primeira parte da proposta, o regresso à configuração
humana de João Sem Medo. Mas quanto ao resto, reagiu com apupos e
rugidos de cólera discordantes.
– Nascemos para fazer partidas aos mortais. É a nossa profissão. Não
somos nenhumas vadias – conclamaram. – Fora! Fora a traidora! Abaixo as
reformas! Viva a varinha de condão!
Este tumulto de berros, uivos e apartes furiosos, acompanhados de copos
de água bebidos pelas oradoras febris, prolongou-se pela noite dentro. O
acordo conseguiu-se, por cansaço, quase ao raiar do sol, quando, por
maioria sonolenta, votaram de mãos levantadas que se mandasse o rapaz
para a Sala Sem Portas, confiado ao zelo atento da Fada do Sonho.
Esta, uma novata inexperiente recém-saída da Universidade Mágica,
pareceu ficar enervada ante a iminência daquela iniciação de tanta
responsabilidade. E tartamudeou, indecisa:
– Mas que querem que eu lhe faça?
– O que te apetecer, filha – aconselhou uma colega velhota de corneta
acústica sempre na direcção indevida –, contanto que cumpras o
Regulamento. Nunca faltes ao Regulamento...
Mas despontava a manhã e a fada que presidia à Assembleia declarou
encerrada a sessão. Fazia frio e todas, com prazer notório, recolheram aos
palácios respectivos para se ocuparem das tarefas usuais das donas de casa
que nas fadas, como se sabe, consistem em pouca coisa: encerar as varinhas
e guardá-las nos sacos de camurça, puxar o lustre às estrelas dos cabelos e
recostarem-se nos coxins de seda para bordarem, com fios de prata e
agulhas de ouro, longas tapeçarias encantadas...

Uma vez sozinha, a Fada do Sonho estoirou, rabiosa: – Que diabo hei-de
fazer àquele maldito? Nunca senti a imaginação tão seca como hoje.
E, a sacudir-se de mau humor, dirigiu-se ao Armazém dos Bruxedos onde
o João Sem Medo se encontrava partido aos bocados, um dedo ali, um
braço acolá, a perna direita dependurada na trave do tecto, à laia de
presunto, a esquerda num baú roído pelo bicho e a cabeça envolta em liaças
num cesto de vindima.
Com paciência suspirosa reuniu, o melhor que pôde, todos os pedaços do
corpo, transportou-os para a Sala Sem Portas, colou-os muito bem colados,
desenhou no ar duas ou três sinalefas, reaprendidas nervosamente no
Epítome da Perfeita Fada, e inclinou-se sobre o rapaz, à espera, céptica...
Teria executado com o rigor necessário as instruções secretas do
Regulamento?
– Vá, respira, João Sem Medo. Respira.
E manteve-se neste frenesi até que João Sem Medo de facto respirou.
Não havia dúvidas: o peito subia e descia num ritmo doce e certo.
Respirava. Que bom! Palpou-lhe o pulso: o coração também já trabalhava.
(Tró-ló-ló-ló, cantarolou a fada, radiante.)
Segundos depois, o rapaz abria o olho direito. A seguir, o esquerdo. Por
último, espirrou. E daí a minutos estava no centro da sala, lépido e,
venturoso, a levantar e a baixar os braços em exercício de ginástica
respiratória. Ah!, que felicidade ser homem. E respirar. E ouvir bater o
coração... Tró-ló-ló-ló-lá... Tró-ló-ló-ló-ló-lá-lé! ...
No meio desta alegria turbulenta de se saber ressuscitado, não se
esqueceu da fada. Lançou-lhe um olhar de ternura agradecida.
– Foste tu que me soldaste?
– Fui.
– Obrigado, sim?
E finda a ginástica:
– Agora queres ter a gentileza de me indicar a porta desta Sala Sem
Portas? Já sinto saudades da vida.
– A porta da Quarta Dimensão?
– Sim.
– Não posso.
– Como? Não podes? Porquê?
A fada desculpou-se com o Regulamento:
– Bem vês: em conformidade com o artigo 2457, a Assembleia Geral
encarregou-me de te consolar dos maus tratos por que passaste...
– Ah!, sim?... Que enternecedor!... – escarneceu João Sem Medo. – E
quem és tu para me consolares?
– Sou a Fada do Sonho, uma tua criada – apresentou-se a principiante
com o toquezinho mágico do Ritual no sorriso.
E só nesse instante lhe acudiu ao espírito a ideia de aplicar a João Sem
Medo a doutrina prevista no parágrafo 110.º do art.º 2368 que recomenda o
emprego da
sedução como método de dominar os mortais, neste caso concreto
consistente no seguinte: deslumbrar a vítima com a possibilidade de realizar
sonhos à primeira vista irrealizáveis.
– Sim, a Fada do Sonho – repetiu. – Às tuas ordens para tornar real o
mínimo desejo teu.
– O mínimo desejo meu?... Estás a falar a sério? – Sim. Juro.
E o pateta do João Sem Medo caiu na arara com a cabeça a malucar
ambições e anseios mirabolantes:
– Posso pedir tudo?
– Tudo. Com uma condição, claro... Cada desejo realizado não poderá
exceder os cinco minutos legais.
– Cinco minutos? – achou pouco João Sem Medo. – Vá, não sejas foca,
prolonga o prazo.
– Impossível! Não tenho competência para mais. É do Regulamento –
escusou-se a fada.
O rapaz encolheu-se, abatido. Mas depressa reagiu com os olhos a
brilharem de cupidez desabusada:
– Vá, menina. Passa-me um cheque de quatrocentos biliões de libras
multiplicadas por um bilião de biliões.
Rapidamente, um braço invisível entregou-lhe o cheque e, durante cinco
minutos, o Ultramilionário passeou pela Sala Sem Portas a gabar-se: «Não
há ninguém mais rico no mundo. Sou riquíssimo. Sou podre de rico. Cheiro
mal de rico.»
Ao fim de cinco minutos rasgou o cheque em pedacinhos e formulou este
desejo mais modesto:
– Troca-me a orelha direita por uma orelha de burro e a esquerda por uma
asa de andorinha.
A fada assim o fez. E João Sem Medo correu a mirar-se ao espelho
(existem sempre muitos espelhos nas Salas Sem Portas).
– Com uma tromba de elefante talvez ficasse mais giro – propôs depois
de se estudar com atenção.
Ainda mal pronunciara esta frase e já João Sem Medo ostentava, em vez
de nariz, uma trombinha cor-de-rosa.
Mas depressa se enfastiou daquela fantasia idiota e regressou ao estado
normal.
– Agora gostaria de ver a minha figura com uma árvore azul plantada na
cabeça – declarou. – Uma árvore com luas nos ramos.
A fada não estava ali para outra coisa. Ameigou-lhe os cabelos e a árvore
nasceu logo toda coberta de luazinhas de várias cores...
Mas em breve se aborreceu dela. E por desfastio, como quem devaneia ao
acaso, entreteve-se com estas invenções mais ou menos estapafúrdias:
transformou a cabeça em esfera armilar, fez crescer asas de borboletas nas
orelhas, enfeitou os dedos de bandeirinhas, etc., etc.
Por fim suspendeu estes prodígios, preocupado, a monologar:
– Tenho de aproveitar a ocasião para ser tudo. Mas o quê? O quê?
Pensou, repensou e acabou por se fixar neste pedido:
– Proclama-me Rei absoluto.
– Pronto – aquiesceu a fada depois de fazer as gaifonas do Cerimonial
prescritas no Epítome da Perfeita Fada.
– Sou Rei? Garantes que sou o Rei absoluto do Reino de Coisa
Nenhuma?
– Sim, Majestade – assegurou-lhe a fada. – O Rei mais absoluto que se
conhece. Ordenai e os vossos súbditos obedecerão cegamente de joelhos em
terra.
– Bem... – clamou João Sem Medo muito ancho do seu império. – Nós,
João Sem Medo I, Rei absoluto de Coisa Nenhuma, ordenamos que
extraiam as barrigas e os estômagos aos nossos fiéis súbditos e cortesãos.
– Fostes pressurosamente obedecido – comunicou-lhe a fada. – A esta
hora, nos vastos domínios de Vossa Majestade não se encontra nenhum ser
humano com a blasfémia de um estômago. Se algum fosse surpreendido em
flagrante delito de possuir esta miserável víscera, seria enjaulado como réu
de crime de lesa-majestade e alta traição. Mas permiti que vos faça uma
pergunta, Majestade... Porque destes essa ordem genial?
– Para solucionar de uma vez para sempre a crise económica... De hoje
em diante só há uma pessoa que come no meu reino: eu.
Divagou algum tempo pela Sala, imerso em cogitações profundas, e
depois imobilizou-se diante do espelho como que fascinado com os
movimentos da boca a modelar palavras.
– Quantos minutos faltam para terminar o meu reinado? – perguntou.
– Três minutos e vinte segundos, Majestade.
– Bem. Preciso de aproveitar o tempo. Antes de mais nada põe-me uma
coroa na cabeça e mete-me um ceptro na mão. Farda-me de rei.
Num abrir e fechar de olhos, mãos invisíveis enfiaram-lhe nas pernas
meias de seda até aos joelhos e calções de veludo; calçaram-lhe nos pés
sapatos com fivelas de platina; prenderam-lhe nas costas o manto real
constelado de pérolas e rubis, equilibraram-lhe a coroa na cabeça e
introduziram-lhe o ceptro na mão...
E então a voz firme de João Sem Medo legislou:
– Agora manda cortar a cabeça a todos os meus vassalos. O único que
tem direito de pensar, sou eu. Mais ninguém. De hoje em diante os
habitantes do meu Império passam a usar bolas de sabão em cima dos
pescoços. E fica revogada a legislação em contrário.
– Pronto, Real Senhor – anuiu a fada. – Só Vossa Majestade tem cabeça.
Nos minutozinhos que restavam, o tirano-em-sonhos provocou
terremotos, destruiu a Lua com a bomba atómica, ergueu uma cidade em
Marte, criou as Ordens da Cabeça Decepada e do Estômago Desaparecido,
organizou um safari às borboletas com zarabatanas de cristal e declarou
guerra à Rússia. E para gastar os últimos segundos dispunha-se a enviar um
ultimato à América do Norte (ou põem um pele-vermelha na presidência ou
mando escalpar todos os americanos!), quando a fada o susteve, de relógio
em punho:
– Era bom, mas acabou-se. Sumiu-se o Reino. Passaram os cinco
minutos.
– Ainda bem – bufou João Sem Medo, aliviado. – Confesso que já não
sabia o que havia de decretar. Decididamente não nasci com vocação para
Rei. O meu ideal é outro: a santidade. Andar, pobrezinho, de terra em terra,
com sandálias e bordão, a ressuscitar os mortos, a sarar os leprosos, a
multiplicar o pão escasso dos famintos... É possível?
– Ora essa! Não há nada mais fácil.
E com um sopro da Fada do Sonho insuflou em João Sem Medo todas as
virtudes dos taumaturgos.
– E agora?! Que milagre hei-de fazer?... – vacilou, irresoluto.
– Sei lá! Isso é contigo.
Mas João Sem Medo, exausto e sonâmbulo, por mais que estimulasse a
imaginação não conseguia atinar com um milagre que o satisfizesse. Só lhe
vinham à cabeça ideias derisórias, desconexas, imbecis.
Sentia-se fatigado de tanta ilusão morta. Principiava a abominar a Fada
do Sonho que o mantinha ali preso naquela Sala Sem Portas com paredes de
espelho e chão de cinzas – longe da vida, do sol, do céu e das estrelas.
Acabou por fazer um milagre frouxo, um milagre indecente: obrigou a
voar um chapéu de palha com asas de arco-íris...
E quedou-se a olhar para o chapéu, com ar apoucado, mazombo, mãos a
abanar, palerma...
– E agora? – perguntou a fada.
– É verdade: e agora? Francamente não sei – disse João Sem Medo com
aversão mole. – Espera. Dá-me um gato. Mas original, hem? Com vinte
patas e uma pena de avestruz na cauda em forma de ponto de interrogação.
Mas mal o gato-centopeia miou pachorrento, o rapaz pespegou-lhe um
pontapé, entediado. E então engendrou vários bichos fantásticos. Teve um
canário riscado de listas azuis, com barbatanas de goraz, um burro de
chifres com duas mãozinhas nas pontas, um crocodilo de patins, um tigre de
cota de ma lha, um leão de rabo de abanador, um cavalo com cabeça de
alumínio e cinco pernas (uma sobressalente no sítio da cauda), etc., etc.: um
autêntico jardim zoológico engenhado por um louco.
Por fim, quando a Fada do Sonho repetiu a pergunta fatal: «E agora que
mais há-de ser?», João Sem Medo rebentou de indignação torva:
– E agora? Sei lá? Já estou farto de tanto sonho inútil, de tanta invenção
fora da realidade. Estou farto de ser Rei, de ser Santo e de salvar o mundo,
aqui nesta Sala Sem Portas, a olhar para ti... Sabes o que quero? Que me
tires desta prisão, imediatamente. Quero a realidade, o «todos os dias», o
cafezinho com leite, o jornal da manhã, os encontrões no metropolitano, os
calos pisados, as pragas dos homens, a flexibilidade das mulheres, as
multidões aos gritos, as ruas, as fábricas, os escritórios, o jogo do xadrez,
«sua besta, não me mace!» – a vida, em suma.
– Posso dar-te isso tudo, mas só por cinco minutos – replicou-lhe a fada,
imperturbável.
E como João Sem Medo resmungasse recalcitrante, acrescentou com voz
de filosofia barata:
– Sim... Cinco minutos. Que é a vida senão cinco minutos?
Esta frase ainda mais irritou João Sem Medo que se sentou a um canto,
amuado, a mergulhar as mãos lívidas nas cinzas do solo e a espalhá-las
pelos cabelos...
– Então, não te resolves? – instou a fada.
– Foge da minha vista! – encolerizou-se o rapaz desabrido. – Deixa-me
em paz.
– Pois seja feita a tua vontade!... – assentiu a fada com o tal sorriso
tocado de feitiçaria. – Cumpra-se o Regulamento. Queres que me vá
embora? Óptimo. Abre a boca, vá.
– Para quê? – surpreendeu-se João Sem Medo. – Para me retirar... Para ir
para casa.
– E para isso é preciso que eu abra a boca? Estranho costume!... Onde
moras?
A fada sorriu e, com uma vénia à francesa, instruiu-o: – Dentro de ti.
– Dentro de mim? Estás zaruca?
– Sim, dentro de ti. De hoje em diante vou dormir, ressonar, comer, tudo,
dentro de ti... Vá, abre a boca depressa! Senão ver-me-ei coagida a
empregar os meios enérgicos enumerados no Regulamento.
– Quer dizer, então, que nunca mais andarei sozinho durante o resto da
vida?
– Descansa que não te maço – tranquilizou-o a fada. – Só aparecerei
quando chamares por mim.
– Eu? Nunca! – garantiu-lhe João Sem Medo.
– Pois sim. Todos dizem o mesmo. Mas quando chegam a casa tristonhos,
secos, desiludidos, acossados de viver num mundo álgido e inclemente,
chamam logo por nós. Contigo há-de acontecer o mesmo. Ainda hei-de
ajudar-te muitas vezes a ser Rei absoluto, ouviste?... E agora, abre a
boquinha.
– Pois seja – conformou-se João Sem Medo, convencido de que não valia
a pena resistir mais.
E escancarou a boca – num bocejo enorme...
Nesse mesmo instante a fada deu um salto e desapareceu-lhe nas goelas...
... Enquanto João Sem Medo comentava com um motejo tonto:
– Fada do Sonho? Porque não lhe chamaram antes Fada Bicha-Solitária?
VII
A cidade da confusão

À proporção que a Fada do Sonho resvalava pelo esófago até as entranhas


de João Sem Medo, a Sala Sem Portas dissolvia-se no ar. E inopinadamente
o rapaz achou-se cá fora na paisagem das manhãs de erva fresca, lúcia-lima,
cantos de pássaros – e o sol a boiar na corrente de um ribeiro múrmuro.
Por algumas horas João Sem Medo saboreou a alegria de viver em
liberdade não vigiada junto das coisas originárias e simples. Ouviu, ocioso,
a limpidez dos assobios das aves azuis, atirou-se para a relva, contente de se
atufar na frescura das plantas, mordeu com muitas caretas felizes duas ou
três azedas e aturdiu-se de tanto correr aos pulos pela campina...
Então, recostado numa moita de zambujeiros e a embalar-se com o ruído
das águas onde as brisas dançavam com pezinhos doces, adormeceu
brandamente, sem análises nem complicações psicológicas, confundido
com as pedras, os cardos e os bichos rasteiros da Natureza.
Acordou com um homem de lágrimas nas faces e voz soturna, estendido a
seu lado.
– Boas noites – disse ele.
Ainda a esfregar os olhos, piscos do sono e da luz forte da manhã, João
Sem Medo fitou-o arrelampado. «Boas-noites» àquela hora do dia? E...
desejadas por um homem a chorar, de lágrimas em rio na cara?... Ná. Ali
havia história.
Mas por cortesia dominou a tentação de investigar os motivos de tanto
desgosto e desconcerto. E esperou por um pretexto que tornasse normal a
curiosidade. O que não demorou muito, quando por reacção a um
gatimanho cómico de João Sem Medo a espreguiçar-se, o homem, em vez
de rir, chorou de novo com mais aflição.
Não se vexou então de indagar, solícito:
– Aconteceu-lhe alguma desgraça? Tem um ar tão triste!
O homem fixou João Sem Medo com uma expressão que podemos
classificar de «espanto do avesso».
– Eu, triste?... – E com um soluço: – Pelo contrário, estou contentíssimo
de vê-lo por cá. Repare como os meus olhos se enchem de lágrimas, a prova
mais eloquente da minha alegria.
– Ah! – tornou João Sem Medo, meio apatetado, a fingir que percebia. –
Na sua terra a maneira de exprimir a alegria é assim...
– Na minha terra e em toda a parte, presumo eu. Quando estamos
contentes, choramos como perdidos. E nos dias de desgraça...
– Rimo-nos às gargalhadas – rematou João Sem Medo, lógico.
– Exactamente – concedeu o outro com uma lágrima no olho que
significava, com certeza, um sorriso.
– Bonito! – pensou o rapaz. – Vim cair num país às avessas. Isto só me
acontece a mim.
E preparou-se para visitar aquele estranho povo em que, a julgar pela
amostra, a vida devia ser um louquejar constante de imprevistos e
destrambelhos.
Entretanto o homem derretia-se em elogios à sua pátria:
– Não imagina! Andamos sempre carrancudos, graves, pesarosos,
vestidos de preto como gatos-pingados. Isto é: somos o povo mais alegre do
mundo.
Mas João Sem Medo obstinava-se em obter explicações de certos
pormenores que o intrigavam:
– Lá as lágrimas de contentamento... em suma... ainda posso compreender
com algum esforço... mas as «boas-noites» de dia...
– A que outra coisa poderemos aspirar de dia senão a uma boa noite? E
de noite senão a um bom dia?
João Sem Medo, com a cabeça chocalhante de confusão, não contestou, a
examinar com minúcia o seu interlocutor, jovem, baixo, atarracado, de fato
de banho.
– Vai à praia, não? – articulou quase maquinalmente.
– Qual! Nunca vi o mar na minha vida! Porque pergunta isso?
– Por causa do seu fato de banho.
– Do meu fato de banho?... Está doido? Para tomar banho, a andaina
indicada compõe-se de fato-macaco, boné de coiro até às orelhas e o
respectivo par de óculos para proteger os olhos do contacto da água. Este
fato que trago agora usa-o apenas a gente do meu ofício.
– E qual é o seu ofício? – quis saber João Sem Medo, já propenso aos
maiores atordoamentos.
– Sou aviador... – respondeu o homem com a naturalidade de não poder
ser outra coisa.
Seguiu-se um silêncio que João Sem Medo aproveitou para ajeitar as
ideias um pouco emaranhadas: «Decididamente vim ter a uma terra bastante
esquisita onde os homens não obedecem à lógica e ao ritmo comuns. Não
percebo porque os professores de Geografia nunca me falaram deste país.
Ah! Quando voltar para Chora-Que-Logo-Bebes muito terei de ensinar
àquela gente!»
Então, o aviador, sempre com a lágrima simpática ao canto do olho,
convidou-o a ir de avião visitar a cidade.
– Pois sim. Com muito prazer – aceitou João Sem Medo, atarantado.
– Vamos, então.
E imediatamente o aviador pôs as mãos no solo, levantou os pés e, nesta
posição, com um movimento enérgico de braços, meteu mãos a caminho.
– Bravo! O meu amigo é acrobata – riu João Sem Medo, de bom humor.
Ao que o homem, erguendo um pouco a cabeça, redarguiu com voz muito
suave que significava talvez irritação:
– Acrobata é o senhor que anda com os pés no chão e as mãos no ar. Eu
sou normalíssimo.
E continuou a caminhar enquanto o bom do João Sem Medo fechava a
boca para, na linguagem ao contrário do País da Confusão, exprimir o seu
pasmo de boca aberta.
O aparelho, colocado a duzentos metros de distância, não parecia um
avião vulgar. Sem asas, inteiramente vestido de metal, possuía à frente uma
espécie de verruma gigantesca.
– Não percebo como se pode voar nesta geringonça – ruminou João Sem
Medo desanimado.
Mas o aviador não lhe consentiu mais comentários. Abriu a portinhola, na
cauda do aparelho, e tirou de lá um escafandro que ofereceu ao rapaz:
– Enfie isto.
João Sem Medo, posto que habituado a extravagâncias, ainda conseguiu
assombrar-se:
– Apre que é de mais! Quererem obrigar-me a viajar fechado numa gaiola
de aço e, ainda por cima, metido num escafandro. Tudo tem limites, até a
loucura.
Mas calmamente (porventura para exprimir nervosismo) o aviador
ripostou-lhe:
– Então o senhor imagina que conceberam o avião para andar no ar? O
meu amigo não está bom da cachimónia! No ar voam os automóveis, os
eléctricos, os comboios, os trens, os metropolitanos! Os aviões são para
viajar debaixo da terra. Aqui e em toda a parte.
João Sem Medo ouviu e calou-se. Discutir para quê? Aquele cavalheiro
que marchava de mãos no chão e pés no ar nunca o entenderia. O melhor
era não perder tempo com testilhas inúteis.
Resignou-se, pois – «Venha de lá esse escafandro» – e, com o suspiro dos
vencidos, sepultou-se (é o termo exacto) no aparelho.
O aviador imitou-o e, pouco depois, a verruma principiou a furar um
túnel debaixo do solo.
E assim João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.

Os habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar,


usavam gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas
nos pés. Os prédios em que moravam não dispunham de portas nem de
janelas. Entrava-se e saía-se dos andares, através dos telhados, por
intermédio de elevadores montados nas paredes exteriores das fachadas.
Outra particularidade a distinguia das demais cidades: apresentava
diariamente um aspecto panorâmico novo, porque não possuía ruas fixas.
Na verdade a Lei obrigava os donos dos prédios a mudarem-nos todos os
dias de orientação e de rua, segundo um plano de barafunda paranóica
estabelecido por poetas surrealistas reformados. Para esse fim, e
obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas
plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade.
Mercê deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes
impossíveis de ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.
Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam
as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os
professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as
pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela
mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não
pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as
grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os
satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles.
Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los,
sem relutância nem remorsos, das respectivas Academias e Universidades.
Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações
da alma da Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As
Escolas, onde os mestres se seleccionavam não pela ciência demonstrada
mas pela maneira de trajar e de fazer o nó da gravata, incumbiam-se de
torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito
coisas sem significação, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias
cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que,
conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para
simulações de sistemas geniais recentes.
Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa
determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80%
de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas
contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da
Confusão.
Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género:
«Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas,
sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.
No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o
pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao
contágio,
repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.
Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre
de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio?
Porque se reuniam em cabarets fúnebres para chorar em conjunto, ao passo
que riam e contavam anedotas nos velatórios dos enterros? Porque
mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as
praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei),
enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a
bailes de fato de banho? Porquê, quando os orfeões se alinhavam nos
estrados, quem cantava era o público? Finalmente, porque é que os músicos
das orquestras sinfónicas se instalavam nos palcos para escutarem com
atenção religiosa os concertos de tosse dos espectadores, todos formados no
Conservatório Nacional das Constipações Estéticas e Bronquites de Arte
Aplicada?
As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João Sem
Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu
meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da
Confusão.
Mas neste entrementes, ao virar a última esquina antes da estação,
esbarrou com um indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um
homem com os pés no chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em
redor do pescoço, cinto na cintura e sapatos nos pés.
Caíram nos braços um do outro como velhos amigos.
– Até que enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal –
gritou João Sem Medo eufórico. – Já tinha saudades, palavra.
– E eu, então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra – queixou-se
o pobre homem.
– Porquê?
– Porque nesta cidade ninguém me entende... Porque choro quando sofro
e rio quando me alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias»
de manhã. Porque não tomo banho vestido. Porque acendo a luz eléctrica de
noite, etc.
– Isso prova apenas que tens a cabeça no lugar próprio – consolou-o João
Sem Medo.
– Pois é... Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias
publico artigos de propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois
parece que ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui
arranjar cinquenta adeptos da minha doutrina.
– Já não é mau. E andam todos de mãos no ar?
– Isso sim!... Em casa com a família talvez. Mas mal chegam à rua, põem
logo as mãos no chão para não se tornarem suspeitos... Um dia, convoquei
os meus sequazes para uma formidável manifestação de massas. Pois só
apareceram três. E mesmo esses, só ousaram vir para a rua, de gatas...
E o estranho indivíduo lançou os braços ao Céu com desespero:
– As autoridades acusam-me de traidor, calcula. Dizem que quero destruir
as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de propósito para me
refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no chão e pés no ar é
puramente espiritual... Um coice nas estrelas... Um coice para as Alturas...
Não pôde prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens
saltaram dum automóvel aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais
de dominar homens, enfiaram-lhe uma camisa-de-forças, impuseram-lhe
uma mordaça e, a pontamãos (comparáveis em violência aos nossos
pontapés), arrastaram o desgraçado para o carro.
– Pelo que vejo o senhor é estrangeiro! – observava entretanto um dos
assaltantes, dirigindo-se a João Sem Medo.
– E com muito prazer.
– Desculpe o acidente – resmoneou o outro. – Mas o senhor estava a falar
com um doido perigoso, fugido do manicómio.
– Um doido?... Devem estar enganados... Pareceu-me inteiramente
normal... Contou-me que era director dum periódico...
– Mentira! – interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os
olhos cheios de lágrimas de riso. – É um pobre doido com a mania de nos
querer obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!
– É verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a
chorar às gargalhadas.
Então, João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de
caminho-de-ferro mais próxima. Ia tão perturbado, aliás, que só na ocasião
de comprar bilhete reparou que não possuía o dinheiro necessário.
Que fazer, Diabo das Alturas? (Lembrem-se de que continuamos na
Cidade da Confusão.) Estender o pé à caridade? Não. Nunca. (Era tão difícil
colher as moedas com os dedos dos pés!) Trabalhar? Talvez. Mas como e
com quê? A descoberta na cidade de uma Companhia de Circo sugeriu-lhe
a ideia de apresentar o seu aleijão como virtude acrobática, num número
sensacional logo aceite pela empresa e assim anunciado neste cartaz
desanimador:

Não venham ver


JOÃO SEM MEDO
O Fenómeno do Avesso!

O único acrobata que anda de mãos no ar


com a mesma facilidade com que o
respeitável público anda de mãos no chão.
Depois de uma semana de êxito excepcional, delirantemente pateado em
apoteose pelos espectadores, João Sem Medo, com a algibeira quente de
dinheiro, rompeu o contrato, meteu-se num comboio de asas nas rodas e
abandonou para sempre a estranha Cidade da Confusão.
VIII
O príncipe das orelhas de burro

Assim que João Sem Medo entrou no comboio de asas nas rodas, o
condutor-andróide de metal branco, num ranger de gestos mecânicos,
levou-o ao colo até ao respectivo compartimento, em que duas mãos
metálicas, desprendidas do chão, logo o amarraram a uma cadeira, aliás
bastante cómoda e fofa.
E, enquanto seguia no quadrado da televisão o desenrolar do panorama
exterior de nuvens, horizontes e montanhas, mergulhou na meditação
sonolenta dos seus problemas.
Para onde se dirigia o comboio?
No bilhete que segurava na mão lia-se esta palavra: Muro – exactamente
o destino que fornecera à menina da bilheteira depois de esta lhe comunicar
que não existiam ligações ferroviárias directas com Chora-Que-Logo-
Bebes.
– Só temos transportes para as povoações do Parque de Reserva... –
avisou a empregada.
– Então venda-me uma passagem para o sítio mais próximo de Muro, na
direcção de Chora-Que-Logo-Bebes – resignou-se o aventureiro.
A pequena entregou-lhe o bilhete e aí ia ele agora, ansioso de se libertar
do comboio, porventura bom para gente de carne mágica mas péssimo para
um choraquelogobebense de gema, habituado ao convívio intenso e
humano, embora reles, de queixumes e intrigas com os vizinhos. Que diabo
de comboio aquele em que nem sequer havia uma viajante de carne e osso
para a conversa!
– Ainda estarei muito distante do Muro? – suspirou por fim em voz alta,
malsofrido e irrequieto.
Imediatamente na parede da frente, por cima da televisão, entreabriu-se
uma boca de lábios finos que pronunciou com doçura as seguintes palavras:
– Estás longe e estás perto!
A parede voltou ao estado anterior e João Sem Medo calou-se a remoer
aquela frase ambígua.
Mais uns segundos de viagem (segundos? minutos? horas? anos?) e João
Sem Medo tornou a atirar a pergunta para o Ar:
– Ainda estarei muito distante do Muro?
Outra boca, esta agora enorme e de polpa humana, cor de fogo, rasgou o
tecto e bradou num trovão:
– Estás longe e estás perto!
No mesmo instante (talvez para lhe castigarem a curiosidade impaciente)
reapareceram as mãos metálicas que premiram o botão e ejectaram no
espaço a cadeira de João Sem Medo que, na descida, se abriu numa espécie
de pára-quedas formado por mais de cem asinhas de pássaros a ruflarem na
manhã de oiro-vivo.
E assim João Sem Medo foi suavemente depositado no solo verde do
Grão-Principado de Qualquer Coisa coberto de pomares extensos pesados
de flores e de frutos.
Lavou a cara na primeira fonte que ouviu gorgolejar nas pedras e, durante
algumas horas, percorreu quilómetros e quilómetros de trilhos de pó e céu
azul através de aldeias mortas sem que se lhe deparasse um vulto humano.
Mais tarde a natureza mudou de aspecto, visão crespa de plantas rasteiras,
pedregulhos, tapetes de musgo, líquenes, rochas e lagartos que, às súbitas,
cortavam as veredas para se abrigarem nas luras.
Mas homens, nem um.
A solidão era tal que João Sem Medo chegou a lançar a hipótese da fuga
de todos os habitantes da superfície da Terra.
Só quase ao anoitecer lobrigou à beira da estrada, que atravessava a
Floresta Branca, um senhor de sombra carrancuda e melancólica que
descansava no tronco de uma árvore abatida.
– Vem cá que não te faço mal – gesticulou para João Sem Medo, com ar
protector.
– E porque havias de me fazer mal? – reagiu o rapaz chocado com tanta
impertinência.
– Não sabes que dia é hoje?
– Sei. É domingo – respondeu João Sem Medo, a desconfiar das palavras
que proferia.
– Sim, é domingo. E então? Isso não te diz nada? – volveu, enigmático, o
senhor triste.
– Ouve – redarguiu o choraquelogobebense: – previno-te de que não sou
bruxo nem conheço os costumes desta terra, em virtude da minha qualidade
de estrangeiro. Portanto, explica-te.
– Ah!, és estrangeiro? Então não admira que não saibas – apressou-se o
desconhecido a desculpá-lo.
O rumorejo mais impetuoso do vento nos ramos proporcionou uma pausa
breve que João Sem Medo aproveitou para se apoderar do comando
voluptuoso das palavras:
– E tu quem és?
– Eu? Não adivinhas? Não descobres? Não sabes? – Confesso que não.
– Vamos! Puxa pela cabeça. Quando se anda durante horas e horas sem
encontrar ninguém e se avista, por fim, um homem sentado num tronco de
árvore, quem é esse homem?
– Não sei, já disse. – E João Sem Medo encolheu os ombros com
preguiça de perder tempo a decifrar mistérios sem importância que não
tardariam a ser-lhe explicados.
– Sou um príncipe! Quem querias tu que eu fosse senão um príncipe? –
exclamou com a alegria soturna de quem desvela mistérios evidentes.
– Um príncipe?
– Pois claro, um príncipe. O infalível príncipe. O príncipe que foi à caça
e, fatigado de correr atrás das lebres e dos veados, se apeou do corcel, para
se sentar à beira do caminho a reflectir nos negócios do reino.
João Sem Medo examinou-o com atenção. Que se tratava de um príncipe
parecia fora de dúvida. Indicava-o a vestimenta e os pertences tradicionais
desses heróis de contos de fadas: o gorro com a peninha da ordem, calções
de veludo verde, meias de seda, sapatos de fivela de prata, capinha, luvas
com punhos arrendados e punhal na cintura. Divergia apenas um pormenor:
ao invés dos príncipes encantados, ou com outras predestinações mágicas,
em geral elegantes, belos e loiros, aquele infundia pavor. Além de possuir
um focinho horrendamente vermelho e achatado, ostentava duas
compridíssimas orelhas de burro.
– Estimo muito em travar conhecimento com Vossa Alteza – saudava-o
entretanto João Sem Medo a vergar-se todo numa contumélia de hipocrisia
irónica. – E espero que me explique agora o mistério dos domingos...
– Oh!, não tem importância... Referia-me à Lei que proíbe os meus
súbditos de saírem de casa aos domingos.
– Quê? Vossa Alteza obriga-os a trabalhar aos domingos e a passear nos
dias úteis?
– Não. Que ideia!... É que ao domingo costumo ir à caça. E não gosto
nem quero que os meus vassalos me vejam.
– Desculpe, Alteza, mas não compreendo as vantagens dessa sua
resolução – expôs João Sem Medo. – Assim arrisca-se a perder a
popularidade.
O príncipe sorriu com a complacência branda de quem só aceita
conselhos por considerá-los inúteis.
– Talvez tenhas razão. Mas ouve primeiro o que te vou contar e dize-me
depois sinceramente se poderia proceder de outro modo.
João Sem Medo, guloso de histórias, nem esperou por cerimónia que o
príncipe instasse mais. Com uma reverência rápida instalou-se logo no
tronco ao lado de Sua Alteza Orelhuda que, enquanto a penumbra pintava
de pardo o azul do céu, encetou assim a narrativa:
– Como já reparaste, sou muito belo.
– Hã? – E João Sem Medo enrugou-se todo.
– Sim, sou muito belo. Tenho a pele branca como neve humana, o nariz
quase grego, dois olhos onde o céu azul desceu para passear pelo mundo
(como escreveu um dos nossos maiores poetas a meu respeito) e, sobretudo,
um par de orelhas minúsculas, encantadoras, dignas da estátua de Adónis.
Achas esta descrição exagerada?
– Oh! Alteza... – balbuciou João Sem Medo confundido.
– Eu não acho. Quando me admiro ao espelho, caio em êxtase,
deslumbrado comigo mesmo. E todas as manhãs agradeço à Natureza o ter-
me criado assim tão belo, tão perfeito e tão formoso.
O rapaz, sem coragem para o desmentir, embaraçou-se nas palavras:
– Mas... que tem isso... sim... com a proibição... Sim... dos domingos?
– Tem tudo... Não imaginas as perturbações sociais que a minha beleza
causava na população. Mal me viam, as mulheres desmaiavam de prazer
puro. As raparigas corriam apaixonadas atrás de mim a chamarem-me deus
e a coroarem-me de rosas. A minha passagem assinalava-se sempre por um
rasto de discussões febris em que fervilhavam os duelos e as cenas de soco.
Formavam-se partidos. Dum lado, os que proclamavam a suprema beleza
da harmonia das minhas feições; do outro, os idólatras da altivez olímpica
do meu porte. Os estetas afirmavam em uníssono que o meu melhor
bocadinho era o nariz. Já os psicólogos apostavam no queixo que, conforme
garantiam, denotava uma força de carácter sobre-humano. A unanimidade
de louvores incidia apenas num único ponto indiscutível: as orelhas, tidas
por todos como duas autênticas obras-primas ímpares no mundo!
– Não há dúvida – apoiou João Sem Medo com malícia concordante.
– De maneira que, para evitar essas manifestações, não tive outro remédio
senão promulgar, embora com mágoa, essa tal ordenação proibitiva que
logo suscitou um movimento geral de tristeza e protestos no meu reino. Ao
mesmo tempo, para mitigar esse agravo e precaver-me contra qualquer
possível revolução de desespero, mandei construir nas principais cidades do
país várias estátuas a mim mesmo, duas das quais equestres. Escusado será
dizer que em redor desses monumentos formiga uma constante multidão
entusiástica e veemente que continua a desmaiar de dia e de noite. De tal
sorte que o Conselheiro da Higiene instituiu um serviço de ambulâncias
especiais destinadas a transportar os meus fiéis histéricos para os hospitais
de emergência montados nas praças públicas...
Neste momento um melro assobiou numa árvore próxima e o príncipe
interrompeu-se para o escutar deleitado. Mas a breve termo retomou a
narração com a voz cada vez mais grave:
– O extraordinário, como já te disse, é o facto de cada pessoa do meu
reino me ver de maneira diferente. Tive ocasião de confirmar isso quando
resolvi oferecer as tais estátuas de consolação ao meu amado povo. Nessa
altura chamei ao palácio vinte escultores e ordenei-lhes: «Modelem-me.
Copiem para o barro, para o mármore e para o bronze, as estupendas formas
do meu corpo e as minhas feições divinas. Não inventem nem pretendam
tornar-me mais belo do que sou. É impossível, como sabem. Limitem-se
portanto a reproduzir com fidelidade o que os vossos olhos virem e mais
nada.»
– E então? – perguntou o rapaz, contemplando de novo com insistência o
horroroso focinho, os olhos remelados e as tremebundas orelhas de asno do
príncipe.
– Então sucedeu esta coisa incrível: dez dos escultores apresentaram-me
dez estátuas, na verdade belas, mas sem qualquer parecença comigo. Os dez
restantes... nem sei como te conte... ousaram pôr diante dos meus reais
olhos dez figuras monstruosas, indignas, repelentes, falsas... Ao ver aqueles
mostrengos revoltei-me, indignado: – «Pois eu sou assim?» – «É, sim,
Alteza.» – «Estão doidos. Não pode ser. É impossível. Miro-me todos os
dias ao espelho e conheço-me bem. Sou belo. Segundo as últimas
estatísticas provoco 650 000 desmaios por semana. Compreendem? Sou
belo por definição, percebem?»
– E essas estátuas monstruosas assemelhavam-se entre si? – inquiriu João
Sem Medo com curiosidade.
– Isso sim? Todas diferentes. Numa, o nariz lembrava um bico de águia.
Noutra, um pimenteiro. Noutra ainda uma beterraba. E assim
sucessivamente... Uma divergência total. Só as minhas célebres orelhas,
pequeninas, elegantes e minúsculas tinham sido fielmente reproduzidas por
todos os escultores.
– É extraordinário – comentou João Sem Medo, a olhar mais uma vez
para as incontestáveis orelhas de burro do príncipe.
– Sim, é verdadeiramente extraordinário. Tão extraordinário que o Juiz da
Balança Alta do meu Reino (que sou eu, claro) não se coibiu de meter na
cadeia esses mesquinhos escultores acusados da iniquidade inaudita de não
terem olhos na cara para me verem como deviam. E convoquei outros.
– Que acertaram logo, não? – interessou-se muito João Sem Medo.
– Qual! A mesma história. Não conseguiram aproximar-se do meu tipo
divino. Ficaram todos aquém. E a maioria cometeu a audácia de modelar
focinhos de leitão, em lugar de nariz, moncos de peru para substituírem o
queixo, etc. Uma série infinita de crimes de lesa-majestade que foram
imediatamente castigados como mereciam.
– Depois...
– Depois, para solucionar o problema, reuni o ministério e decretei que
todos os meus conselheiros descrevessem, em relatórios circunstanciados,
os dons da minha incomparável beleza. Pois nem assim. Todos discordes. O
das Finanças afiançava que os meus olhos tinham o doirado e a forma das
libras. O da Marinha que eram verdes como o mar. O do Turismo, céus
azuis, etc.
– Perante isso, como procedeu Vossa Alteza?
– Dei a demissão ao Conselho, mas não desisti de buscar a verdade
através de uma nova campanha que intitulei de «Operação Narciso». Dirigi-
me a vários poetas e encomendei-lhes poemas descritivos. Mobilizei os
pintores. Posei para dois mil retratos. E para um milhão de fotos. Organizei
um plebiscito nacional. Tudo em vão. Nenhum retrato coincidia. Todos me
viam com olhos desiguais. Apenas numa particularidade nunca transparecia
a menor discrepância: as orelhas apareciam sempre pequeninas, minúsculas,
elegantes, talhadas com formosura delicada...
E o príncipe acariciou com desvelo as compridíssimas orelhas de burro.
– Já estava quase inclinado a desistir quando me lembrei de procurar a
Bruxa do Grito-Para-Além-Do-Que-Se-Vê, famosa pela sua Ciência Secreta
e Alto Saber. Fui ter com ela e disse-lhe: «Consta que guardas num sítio
vedado aos profanos a Verdade escondida num poço. Podes mostrar-ma?» –
«Posso, Alteza. Mas que lhe deseja?» – interrogou a Bruxa. «Quero
consultá-la a respeito do meu nariz, dos olhos e do queixo. Das orelhas não
é preciso...» – respondi eu. A Bruxa não tugiu nem mugiu. Pegou-me na
mão e conduziu-me, em silêncio, à sua coutada de feitiços na Floresta
Branca. Depois de hora e meia de marcha parou, abriu a porta de uma
carvalha e convidou-me a entrar. Aceitei, desci uma escada íngreme e,
passado algum tempo, encontrava-me no tal recanto enigmático em que
vivia a Verdade nua.
– E viu-a? Falou-lhe? É bonita?
– Ah!, meu amigo! – lamentou-se o príncipe com as orelhas a quebrarem-
se de desalento consternado. – Não imaginas o espectáculo que se me
deparou. Em vez dum poço vi milhões de poços e cisternas.
– Não está a enganar-me?... Milhões de poços?...
– Sim, milhões de poços onde existem milhões de Verdades diferentes.
– Eu, por mim, não sei o que faria numa situação semelhante. Talvez
fugisse, desnorteado.
– Foi essa a minha primeira reacção. Fugir! Mandar a Verdade e a
Mentira para o Diabo. Mas a Bruxa não me deixou. Quis por força que eu
falasse com uma Verdade qualquer dum poço escolhido ao acaso. E eu
acedi ao capricho. Debrucei-me numa cisterna à sorte e berrei: «Ó Verdade,
Verdadinha, vem até cá acima!»
– E ela? Acudiu à chamada?
– Veio logo. Deitou a cabeça de fora, despiu-se dos cabelos, olhou-me
longamente, sorriu e, por fim, disse-me com meiguice: «Tens as orelhas tão
pequeninas, tão minúsculas, tão elegantes, tão mimosas!...» E zás! Caiu no
poço.
– É extraordinário – acentuou mais uma vez João Sem Medo.
– Então, resolvi acabar com discussões desnecessárias. Proclamei-me
definitivamente belo. Decretei a ditadura da minha beleza infalível. Ergui
várias estátuas a mim mesmo, parecidas com quem eu me imaginava.
Ordenei ao povo que continuasse a desmaiar por uma pá velha. E nunca
mais apareci em público para que não me empecessem com dúvidas
absurdas a respeito da correcção do nariz ou do queixo. Não achas que fiz
bem?
E o príncipe calou-se afogado na melancolia da quase-noite esparsa na
terra. Em seguida fixou agudamente João Sem Medo e, a agitar as orelhas,
suspirou numa confidência plena:
– Sabes? Às vezes gostava de ser feio... Há dias em que a minha beleza
superdivina me esmaga como uma carapaça de chumbo. Agora, por
exemplo, dava o meu título, a minha coroa, o meu reino, a minha glória,
tudo, para ser tão feio como tu.
– Como eu? – melindrou-se João Sem Medo.
– Sim, como tu – insistiu o príncipe. – Juro-te que nunca vi ninguém mais
feio na minha vida. Até tens orelhas de burro.
– Eu tenho orelhas de burro? – explodiu o rapaz inquieto, a apalpar com
ternura as suas orelhinhas em forma de concha.
– Sim, orelhas de burro. Estou a vê-las perfeitamente... – garantiu o
príncipe sempre com voz grave.
E depois de se despedir do perplexo João Sem Medo, Sua Alteza Real,
cada vez mais feio e orelhudo, chamou o cavalo com um assobio, montou-o
e diluiu-se na escuridão que invadira totalmente a terra.
IX
A princesa n.º 46 734

O desconcertante diálogo com o Príncipe das Orelhas de Burro não


desviou João Sem Medo do propósito inicial daquela caminhada: alcançar o
Muro perto de Chora-Que-Logo-Bebes, a terra natal que tanto lhe apetecia
agora à distância. Mas em vão galgava colinas e montes e se esforçava por
divisar, dos cumes altos, o maltido Muro. Nada, sempre nada.
– Ainda estarei muito longe? – não resistia a perguntar a si mesmo de
quando em quando.
A resposta vinha logo, fatal, da Boca que o perseguia por vales e brenhas
e ora se rachava nos penedos, ora gritava nos frutos que pendiam dos
ramos, ora entreabria os lábios doirados no próprio Sol:
– Estás longe e estás perto.
Esta sentença acabou por encrespá-lo de furor, embora por outro lado o
incitasse a persistir na intenção de regressar à companhia dos bichos de
carne e osso como ele, onde afinal – reconhecia-o um pouco à sobreposse –
a vida talvez fosse menos estúpida, no seu discorrer de sonho, lágrimas,
rebeldia e trabalho, do que naquele mundo de forças misteriosas mas
monótonas e imbecis.
Andar, andar, ferir os pés nas escarpas, adormecer ao ar livre, sujar-se do
sangue dos medronhos, patinar nos córregos e aborrecer-se tornara-se a
única aventura daqueles dias de tédio completo em que só lhe restava a
Boca Itinerante para o entreter. Mas por último até essa se cansou de
importuná-lo, desde que certa noite, ao recortar-se na casca de um
castanheiro para lhe repetir o cediço: «Estás perto e estás longe»,
embrulhou tudo num bocejo tremendo:
– Ai que grandessíssima maçada!
– Concordo absolutamente – bocejou por seu turno João Sem Medo. –
Francamente as Potências Secretas têm menos imaginação do que os
homens. E quanto a ti, se voltas a aparecer-me, ponho-te um açaime.
Era de noite e João Sem Medo acampara na clareira de um souto prateado
de luar. A brisa ligeira despenteava-lhe os cabelos com o seu fole voador e,
ao longe, ressoava o coaxar das rãs no costumado ensaio do orfeão
nocturno...
– Toca a dormir – aconchegou-se o rapaz no chão macio de musgo.
Antes porém de cerrar as pálpebras, relanceou os olhos para o
firmamento. E, num sobressalto de surpresa, solevantou-se, apoiado nos
cotovelos, para se certificar bem do que via... Nada menos nada mais do
que esta frase, escrita a carvão na Lua Cheia, que soletrou devagar:

ANDAMOS COM POUCA


IMAGINAÇÃO.

– Olá, se andam! – recostou-se de novo João Sem Medo de mãos


cruzadas na nuca, a divertir-se com idiotices para adormecer. – E no entanto
ainda não me honraram com a apresentação de vários entes fantásticos,
como a Bicha de Sete Cabeças, por exemplo. Podiam idealizar uma especial
para mim, com sete cabecinhas de meninas doces e sete laços nas tranças
estrigadas...
E João Sem Medo não arredava os olhos da Lua à espera da resposta aos
seus pensamentos, que não demorou muito:

AS BICHAS DE SETE CABEÇAS


FORAM AO CABELEIREIRO. COMO
CALCULAS LEVAM MUITO TEMPO A
TRATAR DOS PENTEADOS.

– E as princesas? – propôs ele, fascinado com aquela conversa, através da


Lua, com o Mago-Mor dos dedos de carvão. – Já conheci um príncipe, por
sinal com orelhas de burro. Vá! Salta agora uma princesa com asas na
cabeça, se quiserem. Mas uma princesa a valer.
A réplica não demorou, quase simultânea:

SÓ HÁ UMA PRINCESA LIVRE


A N.º 46 734. SERVE?
– Pois que venha a princesa n.º 46 734 – encomendou o João Sem Medo.

PREPARA-TE, ENTÃO.

Com esta última mensagem as letras deliram-se devagarinho e a Lua


cresceu, cresceu, cresceu até quase exceder o triplo da Lua vulgar e inundar
de luz roxa a paisagem que parecia enlouquecida.
Entretanto João Sem Medo especulava sobre o processo de a Princesa n.º
46 734 entrar em cena. Por alguma porta rasgada de imprevisto no musgo
do solo? Ou desceria da Lua Tripla por uma escada de corda e seda?...
Não precisou, porém, de aventar mais hipóteses porque, neste ponto, soou
uma melodia ténue de flauta e numerosos anõezinhos de cabeças de ouriço
de castanhas, barbas de milho, corpos de bugalhos, com quatro ramitos
espetados à laia de braços e de pernas, desataram a dançar num tropel de
bailarino maluco em redor de João Sem Medo.
À flauta juntaram-se depois, em ritmo de duendes, vários instrumentos
indecisos que completaram a orquestra-natural-ambiente de pios de mocho,
ruídos de folhas secas, pingos de água nas pedras, chocalhos longínquos...
Finda a dança, o chefe dos Ouricinhos, de barrete na mão (um barretinho
saloio vermelho), saudou João Sem Medo com muita polidez e especou-se
na frente do rapaz, à espera que este, agora de cócoras para poder
contemplá-lo à vontade, lhe dirigisse a palavra.
– Onde está Sua Alteza a Princesa n.º 46 734? – perguntou então João
Sem Medo com ironia respeitosa, sem desperdiçar tempo com rodeios
hipócritas.
– A Princesa n.º 46 734?... Vossa Excelência refere-se à filha do Rei-do-
Castelo-Onde-Ninguém-Entra-Nem-Entrará?
– Pois claro... – afirmou João Sem Medo com descaramento manifesto de
quem conhecia a Princesa de criança.
O anãozinho mirou-o com os seus olhos de grãos de milho doirado e
condoeu-se:
– Sabe-se lá onde pára a Princesa!... Quem lhe pôs a vista em cima? Vive
há séculos afastada dos homens, sempre jovem e igual, no Castelo da
Perfeição das Nuvens, donde agora – dizem – desapareceu raptada pelos
Dragões... E perderam-lhe o rasto.
João Sem Medo sorriu. Sorriu e pensou: – «Nestas histórias de princesas
o enredo nunca varia. A princesa foge (ou é arrebatada pelos monstros, ou
entristece, ou bebe algum elixir de Morte Provisória), o pai aflige-se,
promete mundos e fundos a quem a desencantar e, no último acto, eis que
irrompe em apoteose o Cavaleiro Eleito que a salva e casa com ela. É
infalível.»
E, agachado e trocista, insistiu:
– O pai da Princesa está mui desgostoso, não? – Dizem que sim.
– Pois claro. E prometeu dá-la em casamento ao herói que conseguisse
trazê-la para o palácio. Não é assim?
– Sim, senhor. Como sabe isso?
– Sei isso e muitas coisas mais porque me chamo João Sem Medo e estou
habituadíssimo a práticas maravilhosas. Principalmente as óbvias. Não sou
nenhum caloiro.
Os Ouricinhos, muito pândegos, fungaram risinhos baixos numa revoada
de vento, enquanto João Sem Medo continuava, agora com certo aprumo
solene:
– Já mil pessoas tentaram em vão encontrá-la, não é verdade?
– Mil? qual! Mais de dez mil! Mais de um milhão, talvez. Têm chegado
cavaleiros das quatro bandas do globo para a buscarem. Mas até hoje
ninguém lhes descobriu o paradeiro.
– E o Rei?
– Ao que consta arrepela os cabelos e as barbas de desgosto. No que é
acompanhado pela grande massa da população que ama a Princesa com
delírio, apesar de só a conhecer de retrato: um desenho, concebido por um
artista abstracto, que existe na maioria das casas e casebres do país.
Coisa singular: João Sem Medo, não obstante saber que a Princesa n.º 46
734 não passava duma invenção para entreter aquela noite de tédio mágico,
principiou a apaixonar-se pela sorte da mísera, talvez imbuído no prazer
(tão ilusório, embora) de se sentir escolhido para herói da Aventura. Aliás,
naquela trama toda, nunca aceitaria outro papel senão o principal. Ou herói
ou ninguém.
Era essa com certeza a missão que iriam atribuir-lhe. Em todo o caso,
para se certificar – tal é a vaidade humana – não lhe repugnou tirar nabos da
púcara do Anãozinho:
– Responde-me francamente: fui indicado pelo destino para livrar a
Princesa?
– Creio que sim. Para a libertar e ainda outra façanha maior: entrar
finalmente no Castelo Perfeito.
– Esse castelo é assim tão inacessível?
– Dizem-no construído nas nuvens. Mal lhe tocam desfaz-se e alui. É
impossível pisá-lo sem o destruir.
– Como queres então que eu entre num castelo onde o chão se esfarrapa
ao mínimo passo?
– Duma única forma: decifrando o enigma de endurecer as nuvens do
castelo sem que percam a beleza de nuvens. Segredo que até hoje ninguém
solucionou... Embora se afirme que certos alquimistas, escondidos em
subterrâneos, possuam uma fórmula secreta salvadora.
– Entretanto, talvez seja melhor procurar primeiro a Princesa?
– E a Princesa existirá?... Já alguém a viu?
Esta indecisão não obstou a que João Sem Medo se dispusesse a armar-se
a si mesmo cavaleiro para a Grande Façanha que, no fim de contas,
ignorava qual fosse. Mas para isso precisava pelo menos de um cavalo.
– Vocês não me arranjam um cavalo? – perguntou para o grupo.
– Um cavalo? – repisou o Ouricinho a coçar os espinhos.
– Espera – disse um deles. – Ali ao pé da cabana do Zé Lenhador está um
cavalo de carroça. Mas tão magro, coitadinho! Parece um esqueleto fugido
do Museu de Zoologia.
– Não faz mal. Serve. Ninguém repara. De noite todos os cavalos são
gordos.
E, à cabeça do cortejo rumoroso dos anões saltarinos, João Sem Medo
atravessou o souto, iluminado pela Lua Bruxa, em direcção à cabana do Zé
Lenhador onde se lhe deparou um triste penco atrelado à carripana de
transportar lenha.
– Donde diabo conheço eu este bicho? – debalde puxou pela memória,
mal o bispou. – Talvez das estampas dum livro.
E alto, para o chefe dos Ouricinhos:
– Como se chama esta pileca?
Mas antes que o minúsculo ser o esclarecesse, o cavalicoque relinchou,
melancólico:
– Não me conheces? Olha bem para estas pernas, magras como palitos. E
para estes ossos cobertos de pele de tambor surrado.
– Que queres? Não me lembro! – rosnou João Sem Medo de mau humor.
– Sou o Rocinante, homem! – apresentou-se o pobre animal com um
relincho suspiroso.
– Quê? O cavalo de Dom Quixote? Como vieste aqui parar?
O cavalo nitriu outro suspiro e, sem se embrulhar em pormenores,
resumiu assim a sua história:
– Que queres? Fatalidades. Quando o meu amo morreu venderam-me a
uns saltimbancos que me passearam pelas feiras como um fenómeno de
magreza. Depois passei de mão em mão até o Zé Lenhador me comprar...
– Mas tens saudades da vida antiga, não? Gostarias de ir outra vez correr
mundo como nos belos tempos do engenhoso Cavaleiro da Triste Figura,
Dom Quixote de La Mancha?
– Oh! Quem me dera!
– Pois então apresta-te para me servires de montada! Vamos acudir à
Princesa n.º 46 734.
A azémola pregou logo uma parelha de coices de satisfação. E enquanto
os Ouricinhos, em azáfama ruidosa, a desatrelavam, foi confessando:
– Ouve cavaleiro: pela Princesa n.º 46 734, sinto-me capaz de todos os
sacrifícios! Até de morrer.
E daí a pouco João Sem Medo, escarranchado no ossudo animal, bradava:
– Deixem passar o Cavaleiro-Do-Ódio-À-Espada que, montado nos
gloriosos ossos do Rocinante, vai por esse mundo fora à procura da formosa
Princesa n.º 46 734 do Reino das Nuvens-Sempre-Nuvens.
O mistério desvendou-se com presteza graças ao concurso da Paisagem
que resolveu auxiliar João Sem Medo.
– Ouve... – interveio um cedro a sacudir o vento das folhas. – Vira à
esquerda perto daquela moita de silvas.
– Por aí não vais bem – piou-lhe mais adiante uma coruja. – Trepa a
colina e quando chegares ao cimo pergunta ao moinho.
– Desce até o vale – aconselhou-o o moinho. – A fonte te indicará o
carreiro a tomar para o rio.
– Caminha ao longo do rio – gemeu a fonte. – E quando avistares três
salgueiros inclinados, pára e chama pela Princesa.
João Sem Medo assim fez. Montado no velho cavalo de Dom Quixote
desceu a margem do rio aos solavancos de sono. Mas só ao acordar lívido
do sol da manhã topou com os três salgueiros.
Então deteve a pileca e esquadrinhou a paisagem com um circunvagar de
olhos demorados. Ninguém. Desmontou sonolento e, a esfregar as mãos
roxas do taró da alvorada, berrou com pouca convicção:
– Princesa!
Debalde. A voz sem ecos de João Sem Medo dissolvia-se no dilúculo
indeciso.
– Princesa! Princesa!
Ninguém lhe respondeu. Nem a cotovia das manhãs.
Amarelento e a bocejar de fadiga, ia mandar a Princesa e o Castelo para o
Diabo, quando o Rocinante chamou por ele com um nitrido assombrado:
– Vem cá, João Sem Medo! Vem depressa e olha para o rio!
João Sem Medo correu. E curvo, num aturdimento incrédulo, viu, trémula
na superfície da água, a imagem límpida de uma mulher com coroa de
princesa.
– Que significa isto? – murmurou desorientado, ao verificar que na
margem só se encontravam ele e o Rocinante. – Onde está a Princesa de
carne e osso que esta imagem reflecte?
– Continua presa pelos Dragões... – soprou uma voz harmoniosa, vinda
do rio, com subtileza de vapor de água.
– És tu que falas, imagem? – conseguiu pronunciar João Sem Medo,
assarapantado.
– Sou... – volveu a imagem na sua vozinha de frio longínquo.
– E nunca mais te apagas? Nunca mais desapareces daí?
– Nunca mais.
Com a luz do sol nascente já a pesar nas folhas altas dos salgueiros, a sua
voz tornou-se mais nítida:
– Estava aqui, na margem deste rio, a pentear os cabelos de ouro com um
pente de prata, quando os Dragões me atacaram. Tentei defender-me, mas
não pude. Então, cheia de piedade dos homens que tanto me querem, olhei
pela última vez para a água. E fi-lo com tanto amor, tanta fé, tanta confiança
que a minha imagem ficou para sempre gravada no rio.
– Mas eu quero salvar-te, Princesa. (A ti, não. À outra.) Dize-me onde te
encontras. (Dize-me onde se encontra.) O teu pai chora de dia e de noite. O
povo cobre os cabelos de cinzas... Quero salvar-te, Princesa n.º 46 734.
Quero solidificar para sempre as nuvens do teu Reino.
– Impossível... – contraveio debilmente a voz do rio. – Sou uma imagem
e nada mais. Vai dizer ao povo que jazo aqui ao pé dos três Salgueiros
Inclinados. A minha presença irreal e inútil talvez o console. Vai e sê feliz.
João Sem Medo ainda mergulhou os dedos no rio, numa tentativa vã de
tocar na imagem e arrancá-la da água. Mas sentiu apenas a frieza aguda da
corrente.
E então, com melancolia mole, içou-se a custo para as costelas do
Rocinante e partiu a prevenir todas as pessoas com quem se cruzava no
caminho:
– A Princesa n.º 46 734 é apenas uma imagem e está deitada no rio ao pé
dos Três Salgueiros Inclinados. A Princesa n.º 46 734 é apenas uma
imagem. É uma imagem, apenas...
E assim marchou durante horas e horas de gritos e sono até que, chegado
à cabana do Zé Lenhador, engatou de novo o Rocinante com um afago
amigo no pescoço.
– Sabes uma coisa? – relinchou-lhe o cavalo por despedida. – Tenho a
impressão de que a Princesa n.º 46 734 era a mesma que o meu amo, o
engenhoso Dom Quixote de la Mancha, procurou durante tanto tempo por
esse mundo.
– Como se chamava ela? – inquiriu João Sem Medo.
– Não sei, nem nunca soube... E o nome que importa?... Mas era a
mesma, tenho a certeza... A Princesa do Reino-que-não-há-meio-de-deixar-
de-ser-nuvem.
– É possível – concordou o rapaz. – Mas o teu amo cometeu um grande
erro, sabes? (Como eu, aliás.) De perseguir uma imagem em vez de porfiar
em matar os Dragões...
E, depois desta sentença, João Sem Medo acolheu-se à sombra de uma
árvore e adormeceu – enquanto o pobre Rocinante recomeçava a faina de
transportar lenha na carroça com toda a força do seu esqueleto heróico.
X
Os três incompetentes triunfantes

João Sem Medo acordou, tarde alta, no fundo de uma cisterna seca com
muitos metros de profundidade. Esta mutação tão imprevista dera-se
durante o sono do ex-Cavaleiro-Do-Ódio-À-Espada, já tão habituado
àquelas andanças de perseguição que se contentou em enroscar-se nas
pedras e aguardar os acontecimentos. Pois não ignorava que, com aquela
fantasia de mago folgazão, Não-Se-Sabe-Quem apenas pretendia frustrar-
lhe o desígnio de alcançar o Muro.
– Ora! e o que me importa a mim! Estou aqui mais abrigadinho... –
resignou-se, fiel à sua receita de felicidade que consistia em aceitar os
infortúnios como se fossem provocados voluntariamente por ele.
E para entreter a sonolência da espera, enrolou-se mais, a moer estes
pensamentos:
– Sempre estou com curiosidade de saber como me tirarão daqui. Por
algum túnel inesperado em ligação com as raízes ocas de um castanheiro
perto? Arrebatado pelo bico da Águia dos Penedos? Oh! Já sei. Talvez o
fundo da cisterna comece a subir, a subir devagar como a plataforma de um
ascensor... Enfim, veremos.
Entretanto, neste entressonhar, julgou ouvir o seu nome articulado por
uma voz roufenha.
Ergueu os olhos e distinguiu, lá muito em cima, três cabeças a
espreitarem pela boca do poço.
– É o Senhor João Sem Medo? – repetiu o mesmo rouquejo agreste.
– Sou. Que me querem?
– Vá, suba.
– Subo como? – esganiçou-se o rapaz a verificar com as mãos a
possibilidade de marinhar por aquelas pedras escorregadias.
– Salte – insistiu a voz rouquenha. – É o suficiente. – Salto? – duvidou
João Sem Medo.
Mas, posto que não confiasse no processo, decidiu experimentar. Dobrou
as pernas, tomou balanço, deu um pulo e – ó estarrecimento infinito! – no
momento em que, na queda, assentou os pés no chão, sentiu-se
transformado em bola de borracha e, num abrir e fechar de olhos, foi
projectado para fora do poço.

Os três homens mal o deixaram respirar. Caíram-lhe aos pés em coro de


choradeira abjecta:
– Salve-nos, meu rico benfeitor. Salve-nos pelas suas ricas alminhas.
E de joelhos, numa bajulice de nojo que João Sem Medo debalde repelia
com acrimónia, agarraram-se-lhe às pernas, aos beijinhos repenicados nas
calças.
O rapaz sacudiu-os, nauseado:
– Que significa isto? Vá, expliquem-se.
Os homens levantaram-se, servis, e um deles, o da voz rouca, dispôs-se a
falar. Era um tipo repelente, grosseiro, de casaco no fio, barba por fazer e
largas botarras de vagabundo.
Escarrou duas ou três vezes, para afinar a garganta, e adiantou-se:
– Senhor João Sem Medo: cá o meco chama-se Zé Porco... Este meu
sócio é o Chico Calado, mudo de nascença... E aquele que tem a alcunha de
«Louro» porque passa a vida a beberricar pelas tabernas, onde improvisa
cada versalhada de se lhe tirar o chapéu.
«Sim, senhor... – pensou João Sem Medo. – Linda colecção!»
– Ora saiba Vosselência – continuou o ascoroso Zé Porco – que não
sabemos ler nem escrever. O Chico Calado só se exprime por gestos e o
«Louro» cheira a vinho que tresanda. A mim também me acusam de feder a
cebola, alho e suor. Mal me toscam chamam-me porcalhão e outros nomes
feios e correm-me à pedrada. Ao Chico Calado, ainda ontem, quando
tentava vender o seu elixir milagroso que extrai os calos e sara as dores de
garganta – porque o Chico Calado, como Vosselência deve saber, é
pantomineiro – aconteceu-lhe o mesmo. O palonço teve de se pôr na pira a
sete pés. Quanto ao «Louro», nem falar nisso é bom. O desinfeliz vende
folhetos de versos de pé quebrado... Mas como bebe de mais, ninguém o
leva a sério. Somos mesmo uns desgraçadinhos.
– E que querem os senhores que eu faça? – rechaçou-os João Sem Medo
com desgosto. – Lamento muito as vossas infelicidades que por certo não
sucederiam se eu governasse o mundo, mas...
– Se Vosselência quiser ter a bondade de escutar – tornou o Zé Porco que
escarrava no solo de trinta em trinta segundos – contar-lhe-ei a razão por
que viemos aqui incomodá-lo. A coisa aconteceu assim: estávamos ontem,
todos os três, debaixo de uma árvore a queixar-nos como de costume da
nossa triste sorte, quando ouvimos uma Voz (provinda duma boca qualquer
do Ar) que nos falou desta maneira: «Quereis ser felizes?» – «Pois claro.
Isso nem se pergunta cá à malta...» – respondemos nós. – «Tu o que desejas,
Zé Porco?» – «Quero que não voltem a fazer-me caretas de repugnância e
nojo quando passo.» – «E tu, Chico Calado?» – E o Chico Calado lá
explicou na sua linguagem de trejeitos que gostaria de poder impingir os
seus elixires sem suportar perseguições nem pedradas.
– E então? – respondeu João Sem Medo que só a muito custo tolerava o
cheiro nauseabundo e a porcaria dos três miseráveis.
– Então a Voz afirmou-nos com solenidade: «Se quereis ser felizes ide à
Cisterna Seca e pedi ao João Sem Medo que meta a mão na algibeira.»
– A mão na algibeira? Para quê? – rezingou João Sem Medo.
Nesta altura o Chico Calado iniciou um discurso faulhento de gestos,
caretas e esgares, mas tão longo que o rapaz acabou por fechar as pálpebras
para não o ouvir. Ao que se lhe seguiu o «Louro» cambaleante, borracho
como um odre, na recitação deste improviso:

O Senhor João Sem Medo


quer queira ou não queira
tem de meter a mão no segredo
da algibeira.

– Meta, meu rico senhor, meta – solicitou o Zé Porco, quase de rastos.


– Meta, meta – acompanhavam-no em coro implorativo os companheiros.
E, com esta intimativa súplice e obstinada, forçaram o João Sem Medo a
meter de mau humor a mão na algibeira – o que coincidiu com o
aparecimento, em fila no céu, de um peru, de um papagaio, e de um pavão,
cada qual com o seu pacote dependurado no bico.
O peru foi o primeiro a largar uma caixa embrulhada em papel de seda
com este letreiro: «Para o Zé Porco.» Seguiu-se o papagaio, que deixou cair
uma encomenda dirigida ao Chico Calado. E, para finalizar, o pavão soltou
do bico o último embrulho que, por sinal, acertou em cheio na cabeça do
«Louro».
Escusado será dizer que os três amigos não descansaram enquanto não
desembrulharam e abriram as caixas onde vinham acomodadas as seguintes
ofertas:
Para o Zé Porco, um fato completo da mais recente moda londrina. Para o
Chico Calado, uma condecoração académica muito vistosa e refulgente
dentro duma escátula forrada de veludo amarelo. E para o «Louro», uma
coroa de louros.
– Que vamos fazer com isto? – exclamaram vagamente desiludidos.
– Uma coisa muito simples! – replicou o João Sem Medo. – O Zé Porco
veste a fatiota. O Chico Calado dependura a condecoração da Ordem do
Papagaio Supremo e o «Louro» enfia a coroa na cabeça. Depois entram na
cidade e pronto!
– Para quê? Para fugirem de mim?... – arrepelou-se gemebundo o Zé
Porco. – Para me injuriarem?
– Qual! Pois não repararam que foram as Três Aves das Aparências
Profundas que trouxeram os objectos mágicos?... Vá! Nada temam. A
vitória é certa.
E os três vagabundos, convencidos por estas palavras de incitação, não
hesitaram mais. O Zé Porco despiu os andrajos e substituiu-os pelo fato de
fazenda subtil e corte impecável (o que não lhe anulou o fedor a azedo, nem
lhe incutiu ódio à cuspideira constante, claro).
Por sua vez, o Chico Calado pregou na lapela a insígnia da Ordem do
Papagaio Supremo e o «Louro» pôs a coroa à banda.
– E agora, a caminho – capitaneou João Sem Medo, à frente da Falange
do Mau Cheiro. – À conquista da Glória!
– Não creio de boa táctica entrarem todos em grupo. Um agora, outro
logo, talvez seja mais assisado. Não concordam?
O Zé Porco, peado pelo fato elegante que mal lhe permitia mover os
braços, anuiu imediatamente.
– Fazemos tudo o que Vosselência mandar. Cá a rapaziada cumpre as
ordens de Vosselência.
– Bem – comandou o João Sem Medo –, então o Zé Porco vai ser o
primeiro a atacar a praça. Os outros dois esperam aqui por mim.
O Chico Calado, envaidecido com a Ordem do Papagaio Supremo, e o
«Louro» de coroa de louros às três pancadas aprovaram de pronto o plano
proposto.
E João Sem Medo (sempre a apertar o nariz com os dedos) entrou na
Cidade em companhia do Zé Porco, porventura mais sórdido e mais ridículo
do que anteriormente.
A primeira pessoa que distinguiram ao longe foi uma rapariga de cântaro
à cabeça, a bambolear-se em direcção ao chafariz.
– Avança para ela – sussurrou o rapaz ao Zé Porco. – Não tenhas medo.
O Zé Porco nem discutiu a ordem. Esgarçou a boca no seu melhor sorriso
de dentes podres, donde se exalava um hálito exicial, e, com dois ou três
passos inseguros, abeirou-se da moça que, mal o fitou, deixou cair o cântaro
em mil pedaços, aos gritos de embevecimento:
– Ai que lindo homem! Nunca vi ninguém tão belo na minha vida. É um
Príncipe, com certeza. É um Príncipe Encantado.
E desatou a correr com visos de alucinada, enquanto as vizinhas acudiam
às janelas atraídas pelo estrondo do escândalo e dos clamores.
– Venham ver o homem mais lindo do mundo. Venham ver o Príncipe.
E daí a pouco o pobre do Zé Porco estava rodeado dum povo exultante de
mulheres que o adorava de joelhos.
– Oh! como ele cheira bem – deliciava-se uma, a aspirar com veneração
aquela horrível fedorentina a bichos putrefactos.
– E que nobre sorriso – suspirava outra, a dar beijinhos de imaginação na
boca de dentes negros do vagabundo.
– É um Príncipe Encantado – ululavam todas.
– E que fino – babava-se outra ainda, de olhos doces em alvo.
Em resumo: a polícia interveio neste desvario público para livrar o pobre
Zé Porco, azoratado, do enlevo furioso das admiradoras.
Mas essa intervenção, em vez de apaziguar o motim, agravou-o mais.
Ouviram-se impropérios subversivos. Protestos. Morras. Ameaças de
barricadas. E ninguém pode adivinhar o que sucederia se a Presidente da
Liga das Mulheres-que-querem-que-existam-príncipes-encantados não
saltasse, enérgica, para cima dum marco postal e falasse às massas
femininas deste jeito:
– Mulheres! Tenho o privilégio de comunicar ao Povo Feminil que a Liga
resolveu proclamar, por unanimidade, o Senhor Zé Porco Príncipe
Encantado e considerá-lo hóspede de honra citadino.
Aplausos, palmas, desmaios, chiliques, vivas, delíquios, flor de laranja...
E João Sem Medo, satisfeito com a eficiência do fato mágico, oferecido
pelas Aves das Aparências Profundas, retirou-se em busca dos outros
malandrins.
O Chico Calado visitou a Cidade em segundo lugar, muito orgulhoso da
sua grã-cruz. E com razão, pois embasbacou toda a gente, a começar por
aquele senhor de barbaças dignas que atravessou de propósito a rua para o
saudar, de chapéu reverente na mão:
– Vossa Excelência é uma sumidade. É o expoente máximo da Raça.
– É o genial orador Chico Calado – apontou, de olhos extáticos, João Sem
Medo.
– Bem sei, bem sei – sorriu o velho, a abanar a cabeça, sabichão. – Quem
não conhece este famoso orador de boca de ouro, condecorado com a grã-
cruz do Papagaio Supremo? Ainda não há muito que li e decorei o seu
célebre discurso filosófico e científico: O Vácuo nunca existiu. É a maior
cerebração da Península.
Resultado: decorrido um quarto de hora, o genial surdo-mudo gesticulava
no meio de uma multidão apaixonada que lhe requeria de lágrimas na voz:
– Fale! Discurse! Pregue! Maravilhe-nos com o seu Verbo! Aliás nem
precisa de palavras. Bastam-lhe os gestos para nos hipnotizar. Suba para a
janela da Câmara Municipal e conceda-nos a dádiva sublime da sua
eloquência.
E o pantomineiro do Chico Calado lá se sujeitou à prova, transportado em
ombros até ao Município.
– Não tenhas receio – animou-o João Sem Medo. – Impinge-lhes os
elixires.
E o Chico Calado, mudo de nascença, assim fez. Executou os sábios
movimentos de braços e de mãos com que costumava elogiar a proficiência
dos tira-calos maravilhosos...
– Que técnica de orador... – cochichavam todos, arrebatados. – Diz com
os gestos o que as palavras calam.
– E que calor humano... – chamejava um dos ouvintes, comovido.
– Fala mesmo ao coração – asseverava outro. Como remate, uma
delegação senatorial da Assembleia dos Antigos veio cumprimentar Sua
Excelência o Chico Calado, grã-cruz do Papagaio Supremo, e convidá-lo a
proferir uma oração na Tribuna de Honra só reservada aos eleitos –
enquanto João Sem Medo, farto de vivório, partia a tratar da recepção ao
«Louro» que ultrapassou em muito a dos seus colegas.
Na verdade, o Cortejo Triunfal da Entrada findou no Palácio Realengo
onde os membros efectivos da Academia das Artes se postaram em duas
alas enfáticas para o receberem. As criancinhas dos colégios também não
faltaram com raminhos de flores nas mãos e o hino Salve, poeta! nos lábios,
ensaiado à pressa em louvor do Hóspede. Por alvitre da respectiva
Associação, o comércio encerrou as portas. Na Gazeta Governamental saiu
o decreto que impunha dois dias de feriado nacional para comemorar a
visita do Génio único. As Universidades nomearam-no doutor honoris
causa. Para compensar, os estudantes atribuíram-lhe o título de Cábula de
Honra. Estamparam-se selos especiais. Os versos de pé quebrado do
«Louro» foram adoptados nas escolas oficiais e implacavelmente
esquartejados em orações pelos professores e alunos. Por fim o povo, num
tumulto de idolatria feroz, içou o Poeta, por meio de um guindaste, para o
pedestal vazio de um monumento, há muito construído para o que desse e
viesse, onde o conservaram durante algumas horas, com a coroa de louros à
banda, a gozar a volúpia das ovações intermináveis.
– Adeus, «Louro» – acenou-lhe cá de baixo João Sem Medo,
divertidíssimo com a figura do bêbedo.
– Adeus, pá – despediu-se o «Louro» do alto do seu pedestal, de chapéu-
de-chuva aberto para manter o equilíbrio. – Dize a essa gente que me dê de
beber. Tenho uma sede danada.
E concluiu assim, com estes transcendentes versos de pé coxinho:

Estou aqui cheio de sede,


João Sem Medo da Cisterna.
Quem me dera que esta coroa
indicasse uma taberna.

– Bravo! – proclamou o povoléu no auge da exaltação. – Que Poeta! Que


epopeia! Que glória nacional! Bis! Bis!
João Sem Medo não quis ouvir mais. Virou as costas à Estátua Viva e
abalou da Cidade em demanda do Muro.
XI
O João Medroso

A certa altura da Floresta Branca que, segundo os cálculos de João Sem


Medo, devia bordejar o almejado Muro, rente a Chora-Que-Logo-Bebes, o
nosso herói enxergou, sentada no pedregulho do carreiro uma menina
debulhada em lágrimas.
– Bem... – sorriu com gozo patente. Cá temos a menina fatal em altos
prantos no meio do caminho, como é de uso nos países dos contos mágicos.
Agora, para não trair a tradição, compete-me acercar-me da pequena e
desenrolar o questionário da praxe: «Porque choras tu, anjinho?... etc.» Ao
que ela me retribuirá com a cantilena dos seus infortúnios...
«Pois bem: NÃO. Recuso-me a colaborar na farsa. Nasci em Chora-Que-
Logo-Bebes, e as lágrimas não me fazem mossa. Chora, chora à vontade,
minha rica.»
E, num desdém empertigado, João Sem Medo marcou a dureza da
indiferença com meia dúzia de passadas firmes.
Esta atitude fora do programa feriu visivelmente a menina que logo, por
instinto de vingança, esganiçou o choro em silvos afiados, mais de perrice
do que de pesar:
– Hi i i i i i i i i i...
– Pois sim, rala-te – monologava o rapaz. – Querias conversa, não?
Porque choras tu, anjinho, hem? Espera por isso.
Mas quando já ia à distância de vinte metros e se julgava a salvo do
calisto episódio sentimental, eis que a miúda, numa resolução expedita,
deitou a correr até o filar.
– Seu descarado! – travou-lhe o braço, zangadíssima. – Então nem sequer
investigas a razão da minha dor, hem? Sou para aqui uma boneca de farelos
ou quê?
E instigou-o, refilona:
– Vá, imbecil!... Cumpre o teu dever e pergunta-me porque choro.
Lembra-te de que vivo sozinha no mundo... Meu pai morreu. Minha mãe,
entrevadinha das pernas, cose o dia inteiro para sustentar a família. E o meu
irmão...
Neste passo (quantas vezes teria ela repetido aquele episódio?) saltaram-
lhe dos olhos lágrimas como continhas de água. E João Sem Medo, apesar
dos propósitos de frieza deliberada, não resistiu ao enternecimento que
pouco a pouco lhe aquecia o coração e apertava o nó de soluços na
garganta:
– Que aconteceu ao teu mano?
– Não sei... – choramingou a menina a enxugar as lágrimas das faces. –
Perdeu-se há dias na Floresta quando andávamos a colher amoras e
framboesas bravas para o almoço... Talvez o devorassem os lobos. Ou pior
ainda: talvez a Bruxa o arrebatasse... A Bruxa da Felicidade-À-Força.
– A Bruxa da Felicidade-À-Força?... Que raio de nome!... Porque
desconfias dela? É assim tão feroz?
– É horrível, dizem. Ou melhor: supõem, pois até hoje ninguém a viu
senão as vítimas. Quanto ao aspecto exterior, as opiniões divergem. Alguns
afirmam que traz arame farpado na cabeça, víboras a pularem-lhe dos olhos,
língua de serra a serrar, braços de ferro em brasa, dedos de correias de
chicote, pernas peludas que terminam em pés de cabra em fogo... E nas
costas, o respectivo par de asas de morcego para as noites de sabat...
– Apre! – cuspiu João Sem Medo enojado. – Que monstro! Precisamos
destruí-lo.
– Espera! – atalhou a menina. – Nem todos a descrevem deste modo tão
repugnante. Outros juram tratar-se de uma mulher de beleza espiritual
envolvente, que mora, não na Caverna Negra de todas as bruxas em
companhia de mochos e esqueletos, mas no Jardim das Pombas Azuis,
iluminado por certo sol especial fabricado pelas flores...
– Mas que pretende ela afinal dos homens?
– Torná-los felizes, afiançam os partidários da Bruxa Revolucionária. Ora
por persuasão branda, ora à força, metendo-os em jaulas de grades fluidas...
– E os adversários que dizem?
– Que escraviza os homens... suga o sangue das mulheres... e regressa
todas as manhãs a casa com duas ou três criancinhas esfoladas no cinto.
A curiosidade de João Sem Medo mantinha-se insaciável:
– E onde costuma aparecer essa bruxa?
– Na Clareira dos Ossos, à meia-noite em ponto.
Houve um silêncio que a menina aproveitou para ensaiar o reatamento
das lamúrias com alguns gemidos surdos.
– Bem... – decidiu João Sem Medo, pouco disposto a assistir a nova
explosão de queixumes e arrepelos. – Vou até à Clareira dos Ossos.
– Tem cuidado com a Bruxa!... – recomendou a miúda com o susto a
boiar nos olhos enormes.
– Descansa... Agora só o teu irmão me interessa. A Bruxa rica para outra
vez... Talvez a convença a crismar-se... A adoptar o nome de-Para-Os-
Parvos.
E como a menina insistisse nas prevenções, já com tremuras de choro
iminente na voz, João Sem Medo despediu-se ligeiro e embrenhou-se na
floresta com a certeza de que chegaria à Clareira dos Ossos sem
necessidade de guia, graças ao sentido de orientação mágica que tinha
adquirido automaticamente mal entrara no Parque de Reserva.
Com efeito, um quarto de hora antes da meia-noite calcava receoso um
vasto espaço vazio de árvores, cercado de pedras e rochas com
configurações de caveiras, que o nosso herói identificou com facilidade.
– A Clareira dos Ossos deve ser esta... – ponderou. – Agora apenas me
resta localizar o rapaz, para o livrar das garras da Bruxa da Felicidade-À-
Força que eu aliás não desgostaria de conhecer para averiguar como ela
penteia os cabelos de arame farpado. Será com um alicate?
Nesta altura (porventura como punição da gracinha) sentiu-se preso por
duas mãos inseguras e ouviu um ruído de dentes a baterem, enquanto uma
vozinha tímida e entrecortada plangia baixo:
– Te... nho... me... do...
A primeira reacção de João Sem Medo, se bem que nenhum imprevisto já
o maravilhasse, foi a de furtar-se ao contacto trémulo do assaltante que o
luar recortava de nitidez lívida. Mas dominou-se de pronto e, em lugar de o
repelir, examinou-o, minucioso.
Era um rapaz, pouco mais ou menos do seu tamanho e igual desenho de
feições, autêntico irmão gémeo que apenas se diferenciava de João Sem
Medo pelos olhos redondos de pavor, os cabelos eriçados, os dentes a
entrechocarem-se num ritmo de castanholas e as mãos em permanente
tremelique...
– Te... nho... me... do... – repetiu.
Para o animar, João Sem Medo exagerou a coragem: – Medo de quê, pá?
– Me... do... de... tu... do... – tiritou o outro. – De... es... tar... a... qui...
so... zi... nho... Das... árvores... da... noite... De... mim... mesmo... Hi ... i... i
... i ... i ... i...
Neste momento a Ventania atravessou a Floresta e obrigou o menino a
aconchegar-se mais a João Sem Medo.
– Não ouves?... É... um... fan... tas... ma... – gemicou.
João Sem Medo desatou a rir com gosto de se ouvir rir:
– Que dizes, meu palerma? Qual fantasma, qual carapuça! Tranquiliza-te
que ninguém te fará mal. Acama os cabelos, baixa as pálpebras arregaladas
e, em vez desse terror diante das árvores, do vento e do luar, imita-me. Ri!
Canta! mesmo que sintas medo... Ouviste? E agora safemo-nos, não vá
surgir por aí alguém que nos queira tornar felizes.
Não obstante a prudência destes conselhos, o outro não sossegou.
– Não posso!... – esclareceu, sem largar a sombra de João Sem Medo. –
Desde o berço que trago os cabelos em pé, e sempre bati os dentes,
aterrado.
– Então não sei o que te faça. És um fenómeno para mostrar nas feiras –
desabafou João Sem Medo enfadado.
O vento voltou a ulular nas folhas das árvores: u-u-u-u-u-u-u-u-u...
– Como te chamas?
– João Medroso.
– É giro! – observou João Sem Medo. – Mas como vieste aqui parar?
– Ah! nem me quero lembrar disso. Foi a maldita Águia dos Penedos que
me pegou pelo fundo das calças e voou comigo por céus e nuvens até me
deixar cair na Clareira.
– E tu que fizeste?
– Nada... Há seis dias e seis noites que estou aqui escondido a tremer com
medo dos lobos, dos morcegos, das bruxas e dos fantasmas, a espera da
minha irmã...
– Pobre pateta – proferiu João Sem Medo com ar protector. – O que tens
sofrido! Pois bem: de hoje em diante acabaram-se-te os tormentos. Ficas
sob a minha guarda. Com meia dúzia de lições não tardarás a seguir o meu
exemplo. Queres? Olha que eu chamo-me João Sem Medo.
– Ah! Quem me dera! – suspirou João Medroso.
– Bem. Agora toca a deitar. Mas vê lá se acabas com essa música de
castanhetas dos dentes, sim? Francamente, agora não me apetece dançar à
espanhola.
E com paciência fraternal João Sem Medo arrastou-o para longe da
clareira, na esperança de encontrar uma moita propícia para recostar a
cabeça e dormir. Por fim, lá se lhe deparou um sítio ideal debaixo de
algumas velhas árvores ramalhudas. Ali se acomodou, enquanto intimava o
camarada:
– Vá! Deita-te também e dorme.
João Medroso obedeceu. Mas bastaram dois ou três minutos de quietação
(aparente) para o obrigarem a soerguer-se aflito, com as unhas cravadas no
braço de João Sem Medo e este grito amordaçado:
– Ai que estamos perdidos!
Debalde João Sem Medo fingiu que ressonava... Rô... rô... rô... rô... rô...
O outro João, amedrontado até ao pânico, persistia na sua aflição, a apontar
para as copas das árvores:
– Não ouves?... Não vês?...
Coagido a simular que acordava, ainda atordoado de sono, João Sem
Medo tranquilizou-o:
– São pássaros a cantar. Por favor não me digas que também tens medo
dos pássaros... Vá! Cala-te e dorme.
E, reinstalado na cama de erva da floresta, decidiu não ligar mais
importância aos guinchos grotescos do medricas.
Mas isso sim! Ainda não havia decorrido meio minuto e já o João
Medroso, outra vez com as mãos fincadas no companheiro, lhe ciciava ao
ouvido:
– Não... são... pássaros... são... homens...
– Dás licença que eu durma ou não? – desvairou João Sem Medo, furioso.
– Amanhã de manhã teremos muito tempo para conversar. Se não me deixas
dormir, fujo e ficas aqui sozinho.
– São homens! São homens! Já te disse... – teimou com pertinácia.
Então para o acalmar, João Sem Medo, dedos na grenha, sentou-se a
espionar os ramos das árvores. E pareceu-lhe, de facto, vislumbrar, aqui e
ali, por entre a folhagem, vários vultos humanos.
– Tens razão, são homens! – aprovou João Sem Medo com admiração
evidente. – São homens que cantam como pássaros. É estranho, mas
amanhã deslindaremos o caso. Por agora, só temos uma coisa decente a
fazer: dormir para não incomodar os vizinhos.
– Dormir? Posso lá dormir! Então tu achas natural que os homens vivam
nas árvores e cantem como aves?
– Eu acho tudo natural... já vi coisas mais extraordinárias. Por exemplo:
papagaios a falarem como homens.
– Sim, sim... Mas o melhor é não dormirmos... – volveu o tremelicante
João Medroso, colado a João Sem Medo. – Podem matar-nos.
– Não te aflijas – serenou-o, recostando a cabeça na moita. – Se eles
rugissem, então sim, poderiam ser perigosos... Mas assim... Não os ouves?
São poetas, talvez. Cantam as estrelas e a Lua. Louvam a vida e o amor.
Vamos, dorme. Abraça-te bem a mim, João Medroso, e não temas a
Natureza nem os homens que imitam os pássaros.
Mas o covardola não se convenceu e continuou a bater os dentes de
medo.
– Ah! se eu ao menos pudesse fechar os olhos para não ver a Lua! –
lamurinhou.
– Não podes fechar os olhos? Porquê?
– Não posso fechar os olhos, não posso deixar de tremer, nem posso
acamar os cabelos sempre em pé – carpiu-se João Medroso com desespero.
– Experimenta um ferro de engomar para os abater...
– troçou o outro João com a voz pastosa do antessono. E num esforço
inútil de se manter desperto:
– Porque tens medo da Lua?
– Porque parece uma caveira... – revelou João Medroso.
Mas João Sem Medo já não o ouviu.
Adormecera confiante na Natureza e no Universo que se abria em estrelas
no céu – velado pela boa lamparina da Lua que ia arder toda a noite no seu
quarto de dormir.

Na manhã seguinte acordou ao som do concerto alegre do passaredo. A


seu lado João Medroso, que não pregara olho, ressonava agora finalmente
apaziguado pela luz matinal e o sussurro metálico dos insectos.
– São horas de visitar os vizinhos de cima... – espreguiçou-se bocejante.
E, com agilidade de macaco, trepou pelo tronco até ao topo da árvore
onde aliás não necessitou de pesquisar muito para descobrir, assente nos
ramos, um ninho enorme e confortável com um homem dentro – «um gorila
ao contrário», pensou ele – seminu, olhos verdes, flores nos cabelos em
popa, nariz de bico de ave, sorriso cândido, boca de assobios de mel...
– Bons dias... – saudou-o João Sem Medo, contente de existir.
– Priu... piu... piu... piu... – chilreou o homem, ao mesmo tempo que, com
muita gentileza, lhe indicava um cantinho fofo no ninho, para se sentar.
– Obrigado... Priu... piu... piu... piu... – retiniu João Sem Medo na
imitação mais convicta de pássaro que pôde encontrar.
– Piu... piu... priu... priu... priu... – repenicou-lhe o habitante do ninho.
– Priu... priu... priu... priu...
– Priu... priu...
E daí a pouco o seu canto atingia tal vibração e limpidez que os
moradores das árvores próximas acudiram a escutá-lo deslumbrados. Ou
estranhariam o sotaque sempre tão sedutor nos estrangeiros?
– Eh João Medroso! – berrou João Sem Medo do alto da árvore,
inchadíssimo do êxito. – Anda cá acima assobiar um bocadinho de melro.
Nem imaginas como isto é divertido. Anda, sobe. Talvez tenhas vocação
para ave... Para mocho, por exemplo... Para meter medo aos outros...
Mas o medricas nem piou.
– Ainda dormes ou receias içar-te até aqui, meu palerma? – obstinou-se
João Sem Medo em acicatá-lo. – Pois olha: eu não quero outra vida.
Decididamente, nasci para ave.
E, sem se inquietar mais com o João Medroso, cantou de galo, cacarejou,
arrulhou, grasnou, assobiou, piou, crocitou, galreou, sempre a ondular os
braços na vaga esperança de que, por feitiçaria, lhe rompessem pernas de
asas na pele. Tudo isto misturado com a alegria gulosa de engolir, de hora a
hora, os manjares esquisitos (alpista e vermes sintéticos) que os homens-
aves lhes ofereciam entre repiupios e gargalhadas.
Por fim anoiteceu. A sombra sepultou a Terra de silêncio negro. Os
homens dos ninhos desejaram boas-
-noites uns aos outros, com gorjeios doces, e recolheram ao conforto
quente dos lares. E João Sem Medo enrolou-se no seu canto para dormir.
Com o advento da noite, porém, os soluços da ventania, o piar da coruja,
os rugidos longínquos das feras mágicas e o negrume tremendo acordaram
de novo João Medroso que, de cabelos em pé, alanceou a sombra com a
angústia de um brado de socorro:
– Ó da guarda! Ó da guarda!
– Que é? – rabujou João Sem Medo meio empardalado. – Irra! Que
maçada! Se tens medo sobe para cima.
– Não... Desce... tu... An... da... ver... Vem... cá... abai... xo... De...
pressa...
Que remédio senão condescender.
– Bem. Aí vou eu.
E com um pulo achou-se no chão. Uf!
– Que há?
– Vamo-nos... em... bora! ... – gaguejou João Medroso com as garras
ferradas nos braços do pobre candidato a ave. – Esta terra está embruxada.
– Porquê?
– Olha como aquela pedra mexe. Ali...
João Sem Medo seguiu com o olhar a direcção indicada pelo dedo
vacilante do companheiro e facilmente reconheceu que uma pedra enorme
se movia com lentidão de peso.
– Vês? – tartamudeou o covarde de cabelos arrepiados à porco-espinho.
– Vejo... – admitiu o outro João muito tranquilo. – E então? Não tens
medo?
– Não... Primeiro, porque sou o João Sem Medo. Segundo, porque jurei
esconder o medo de mim mesmo, para não me desprezar. Terceiro, porque
uma pedra a andar não me desperta medo, mas apenas curiosidade de saber
porque anda.
– Pela tua rica saúde, vamo-nos embora – tremelicava João Medroso.
– Estás doido! Agora não me afasto daqui enquanto não decifrar o
mistério.
E calou-se para analisar com atenção extrema os movimentos da pedra
que – sobre isso não havia dúvidas – se deslocava no solo.
– Evidentemente, trata-se de uma espécie de tampa que cobre a abertura
de um subterrâneo... – raciocinou João Sem Medo em voz alta para o
medrolas. – Movida por um mecanismo qualquer...
Conclusão que se comprovou daí a momentos quando a pedra estacou e
os dois rapazes verificaram a existência insofismável dum buraco aberto na
terra donde, decorrido algum tempo, saíram em fila vários vultos simiescos
que tresandavam a suor e carregavam às costas sacos pesadíssimos.
– Ai! que chegou o Dia do Juízo – segredou sufocado de temor, João
Medroso. – Fujamos, fujamos!
– Cala-te! – ordenou João Sem Medo. – Olha que eles podem ouvir-te.
Mas aqueles pobres seres humanos, espécie de animais-máquinas, nem
atentaram na presença dos dois Joões. Preocupavam-se apenas com a
missão de guindar os sacos para os ninhos das árvores altas, tarefa que
executaram com diligência silenciosa e mecânica.
Ao cabo de cinco minutos desceram, já de sacos esvaziados, buscaram de
novo a abertura do subterrâneo, a pedra girou e...
– Tens razão. Vamo-nos embora – disse João Sem Medo com expressão
assombreada de melancolia.
– Vamos, vamos – aplaudiu João Medroso no seu constante treme-treme.
– Sabes quem são estes homens? – interrogou João Sem Medo
desgostoso.
– Não.
– Escravos que vivem no aviltamento de um trabalho sem sentido para
alimentar a preguiça dos habitantes dos ninhos de penas. Enquanto os
semideuses comem, bebem e passam os dias enfeitados de flores a cantar
louvores ao Sol e à Lua, os outros na escuridão mourejam como máquinas
de pavor negro.
– E no entanto são todos feitos da mesma carne humana, não?
– São, sim. Não achas isto uma grande pouca-vergonha?
E com desconsolo de viver:
– Vamo-nos embora, medricas... Tu em cata da tua irmã... Eu à procura do
Muro.
E João Sem Medo, com o João Medroso muito agarrado a ele – tão
agarrado que o luar lhes desenhava no chão uma única sombra –, pôs-se a
caminho, a acenar para as árvores:
– Adeus, passarões!
XII
O ar envenenado

Perseguidos pelos comentários dos homens-aves, com pios de mochos e


crocitos de corujas, os dois fugitivos vaguearam a noite inteira, desatinados,
pela Floresta. Só ao despontar do sol se acoitaram numa caverna escavada
no sopé da Colina Roxa, mesmo assim entre os protestos do João Medroso
que, de olhos esgazeados, imaginava lagartos vermelhos e serpentes
mosqueadas de platina por toda a parte.
Farto e sonolento, João Sem Medo recorreu então a um método rude que,
por contrário à sua índole, raras vezes aplicava, e consistiu no seguinte:
primeiro, um empurrão acompanhado da competente rasteira que o
estatelou de pernas para o ar na erva. Depois, indiferente ao berreiro do
caguinchas, arrastou-o para dentro de uma gruta, bem seguro pela gola do
casaco, e afocinhou-o aqui e ali, pelos recantos escuros, para o dissuadir de
medos inventados. (Bem bastavam os reais.)
– Vês, vês que não há bichos maus? – E acrescentou com um suspiro de
repouso: – Vamos dormir aqui divinamente.
Mas mal esboçara os preparativos para a deita, estrondeou no antro a
derrocada surda de dezenas de pedras que taparam completamente a
abertura.
– Ai que va... mos... morrer – uivou logo João Medroso num tremor
gemebundo.
Mas João Sem Medo, com a fleuma de herói já há muito experimentado
em façanhas maravilhosas, emudeceu-o com um «psiu» autoritário e, às
apalpadelas, cego da escuridão, esquadrinhou o local até se acostar num
canto de musgo para aguardar, afoito, de coração tranquilo, a sequência da
aventura.
Espera breve, aliás, pois as rochas rangeram de novo e na parede oposta à
entrada, agora obstruída, iluminou-se de repente uma porta com a largura
bastante para a passagem de dois homens.
João Medroso cumpriu imediatamente o seu dever protestativo de berrar.
Tremeu, escabujou, latiu... Mas, ante o ar de virilidade incisiva de João Sem
Medo, resignou-se a ceder e a seguir o companheiro que, entretanto, de
mãos nas algibeiras, transpunha, bocejador, o limiar daquele estranho
palácio construído no seio da colina.
A primeira sala sugeria uma espécie de templo espaçoso forrado de
mármore verde donde se evolava uma luz macia e penetrante que tornava os
corpos e os objectos translúcidos e não projectava sombras no chão. Ao
lado direito, equilibrado no seu soco monumental de ouro-verde, elevava-se
um ídolo monstruoso com vinte braços e vinte pernas.
– É o deus-centopeia – ensinou, divertido, João Sem Medo, que nunca
podia estar calado.
E transitou para o compartimento contíguo, da mesma grandeza do
primeiro mas coberto de pedra vermelha. A estátua, em cima dum altar com
a ara manchada de sangue recente, representava uma mulher de cócoras
com cinquenta cabeças, todas de máscaras diferentes desde o riso ao torpor.
E durante meia hora os dois rapazes atravessaram inúmeros salões e
lugares sagrados de várias cores e dúzias
de sissomos bárbaros em que se misturavam bichos e homens numa
salada infernal. Havia lobos com asas de falcão e bocas humanas, aranhas
com pernas de crianças e olhos de gato, velhorros ferozes com pés nas
orelhas, raparigas com hastes de toiros e garras de tigre à laia de cabelos,
etc., etc. Uma trapalhada!
– Muitos deuses têm os homens inventado para se sentirem menos
sozinhos no mundo – filosofava João Sem Medo no seu andar vagaroso de
apreciador de museus. – Que pena não haver aqui um cicerone para nos
contar a história desta bonecada incrível.
E assim discreteando, desembocaram no último aposento revestido de
granito com um ascensor ao fundo.
– Bem. Já vimos o rés-do-chão. Visitemos agora o 1.º andar.
E o nosso João Sem Medo, com desprezo evidente pelos gritinhos
assustadiços do outro João, introduziu-o à força no elevador que, com
velocidade instantânea (se permitem esta expressão tão imprópria), galgou
os 50 metros até o Patamar Alto, donde se desdobrava o tapete rolante com
duas cómodas cadeiras de recosto para a continuação da viagem no interior
da Colina.
Vencida a costumada resistência do covardola – «Isto nunca mais
acaba!», «Que desgraça a minha!», etc., os dois Joões acabaram por se
deixar transportar nas cadeiras através do interior das rochas, fascinados
com a luz desprendida das pedras que trespassava a pele com macieza de
carícia. Só pararam numa vasta plataforma de cristal azul, quase totalmente
circundada de espelhos, em que João Medroso voltou a invectivar os Fados
como por obrigação burocrática.
– Ai a minha rica mãezinha que nunca mais lhe ponho a vista em cima!
– Cala-te! – admoestou-o João Sem Medo. – Se soubesses a linda figura
que estás a fazer. Olha para o espelho e vê.
Obediente, João Medroso fitou os olhos num espelho ao acaso. E, claro,
repetiu-se a lamúria com o despudor insofrido habitual:
– Ai... que... horror!
– Quê? Até tens medo de ti mesmo?...
– Anda ver!... – convidou-o o tremeliquento, a vedar os olhos com as
mãos.
João Sem Medo não se fez rogado e daí a pouco sorria de troça. Na
verdade, o diabo do espelho mágico, em vez de reflectir o exterior de João
Medroso, reflectia-lhe o esqueleto.
– Mas... eu... sou... assim... por... den... tro?... – taramelava o pusilânime
de cabelos em pé. – Trago esta caveira e estas tíbias dentro de mim?
– Pois claro. Como todos nós... – confirmou João Sem Medo com
paciência risonha.
– É horrível. Tenho medo de mim. Tenho medo de tudo. Tenho medo do
esqueleto que me acompanha sempre. Socorro! Acudam-me! Ó da guarda!
Tirem-me o esqueleto de dentro de mim.
Aborrecido e desejoso de se libertar daquele fardo incómodo, João Sem
Medo dirigiu-se então para a porta de aço gigantesca que existia no topo da
plataforma, premiu o botão ao lado, os batentes afastaram-se e o mancebo
entrou numa quadra fantástica com cerca de 10 metros de pé-direito – com
o João Medroso na cola.
No mesmo instante sentiu-se manietado por dedos duma espessura fora
do comum e compreendeu, com a rapidez e a acuidade dos momentos
excepcionais, que se encontrava em poder de um gigante (com quantos
metros? Três, quatro, cinco?), de longa barba hirsuta e um olho único em
que entalara, com arrogância, um monóculo do tamanho duma roda de
bicicleta.
– Ah! Ah! Ah! – trovejava de riso o monstro, folgazão. – Até que te
apanhei, João Sem Medo, para te tirar as fumaças. Agora é que vais ver
como elas mordem. Porque desta vez é a sério, percebes? Sou um gigante a
valer, o Vingador das Ofensas que ninguém sabe quais são, embora
terríveis, compreendes?
E, alheio ao terror de João Medroso e aos pontapés de João Sem Medo,
arrancou dois pêlos da barba e amarrou os rapazes, enquanto troava com ira
de remoque:
– Sim... Vou vingar-me! ... Não sei bem de quê nem como... Mas vou
vingar-me! ... Fazer de ti o que me der na real gana. Porque o meu poder é
infinito. Queres ver?
E o gigante com um piparote converteu João Medroso num crocodilo de
gula rastejante nos olhos. Seguidamente dividiu-o em centenas de bichos-
de-conta que amassou com as mãos numa grande bola e envolveu na pele
nojenta de um sapo de meio metro. Em resumo: o pobre João Medroso
parecia um Jardim Zoológico.
Por fim com um soco esborrachou o sapo de que ficou apenas uma nódoa
vermelha e alastrante...
– E agora? – interrogou-se, pensativo, a matraquear as lajes dum lado
para o outro. – Ah! Já sei! Vou desfazê-lo em ar.
E de facto, graças a duas sinalefas zombeteiras, João Medroso evaporou-
se na atmosfera. Foi um ar que lhe deu.
– Bem. Este nunca mais aborrece ninguém com os tremeliques –
ribombou o ciclope, em forma de epitáfio. – Agora chegou a vez de V. Ex.ª,
Excelentíssimo Senhor João Sem Medo.
E com ademanes de mil cautelas, para não o esmagar antes de tempo,
soltou-o do pêlo e colocou-o na palma da mão para o examinar, trocista,
através do monóculo.
– Porque é que este tipo usa monóculo? – atreveu-se ainda a pensar João
Sem Medo com a derradeira luzinha de coragem a iluminar um plano de
fuga improvisado ali à última hora, não sabia bem como... Sim. Fugir! E
porque não? Porque não havia de ousar?
E ousou.
Aproveitando o instante propício em que o monstro aproximava o carão
escarninho, João Sem Medo, num arranco, puxou-lhe o monóculo e
arremessou-o para o lajedo, ao mesmo tempo que, com ligeireza de
acrobata, escorregava, subtil, da mão para o casaco, do casaco para as
calças, das calças para as botas... e assim logrou escapulir-se das garras do
gigante que, aturdido e a tactear, meio cego, vomitava insultos sobre
insultos:
– Infame! Filho de infame! Neto de infame!
João Sem Medo por seu turno exultava:
– Afinal o gigante é cegueta. Dêem-lhe uma esmolinha por amor de Deus.
Palavras que só serviam para exacerbar a irritação do Vingador Frustrado
cada vez mais furioso, às patadas ameaçadoras:
– Ah! julgas que me escapas, hem? Pois enganas-te. A vingança é cega.
Mal te toque com os meus dedinhos (os dedinhos do bruto mediam metro e
meio!) passas ao encantador aspecto de caranguejo azul, percebes?
Mas João Sem Medo não se intimidava. Como se jogasse o jará ou o
esconde-esconde, trocava-lhe as voltas em corridinhas ágeis por entre as
pernas...
– Ora! O melhor é eu não me ralar – sentou-se por fim o brutamontes, a
bufar de esfalfado. – Quer queiras ou não, daqui a pouco cais-me no papo.
Dentro de cinco minutos, o máximo, começarás a tremer espavorido. A
choramingar por causa das bruxas... Que vergonha! O João Sem Medo com
medo.
E o gigante rebolou-se de contentamento com voz de tiros de canhão:
– Sabes porque digo isso, meu menino? – E articulava bem as palavras
com satisfação feliz. – Porque estás a respirar o João Medroso,
compreendes? O João Medroso...
E esmiuçou com deleite:
– Como viste, transformei-o em ar. Mudei-lhe os cabelos em oxigénio, os
olhos em azoto, as mãos em vapor de água, os dentes em anidrido
carbónico... Resultado: o João Medroso, disseminado no ar, está a entrar
devagarinho dentro de ti. Olha: há um segundo respiraste um pé. E agora,
um braço. Estás perdido, meu palerma. Não tardarei a ver-te de joelhos a
pedir-me perdão... Sim, perdão, ouviste? De quê?... De existir,
possivelmente... Sei lá! Ah! muito vou eu gozar à tua custa!
A esta revelação, João Sem Medo, talvez para ocultar de si mesmo o
alvoroço de calafrio que o estremeceu até aos ossos, iludiu-se de acção
imaginária com este ultimato mental:
– Ou fujo dentro de dois minutos, ou estou liquidado! Enquanto em voz
alta replicava ao gigante com a lucidez e lógica de sempre:
– Esqueceste-te dum pormenor... Que respiras o mesmo ar que eu... E
corres portanto um risco idêntico.
– Pois não vês que sou maior do que tu, meu estúpido? – rejubilou o
Gigante da Vingança a apalpar-se com a alegria de ocupar tanto espaço no
mundo. – Para ficar envenenado de medo preciso de respirar o João
Medroso pelo menos vinte minutos. Ora, daqui a cinco minutos, quando te
ouvir chamar pela mãezinha, escancaro a janela e pronto... Entra ar novo...
Percebes?
Estabeleceu-se um curto silêncio em que João Sem Medo estudou, com
enervamento contido, a janela a cinco ou seis metros do chão. Ah! se
pudesse escaqueirá-la! Quebrar-lhe os vidros!... Mas com quê! Nenhum
objecto lhe parecia manejável à excepção daquele alfinete de meio metro
que pesava todavia um quilo ou mais. Além disso, o vidro devia ser
inquebrável. Magicamente inquebrável.
– Só faltam dois minutos – preveniu o gigante.
– Não, não há nada a fazer!... – esmoreceu o pobre rapaz, no fundo ainda
a animar-se com a ironia da desgraça. – Que remédio senão conformar-me
com o destino de caranguejo, casar com uma senhora carangueja e rodear-
me de muitos caranguejinhos... Mas o pior não é isso. O pior é o medo. O
espectáculo que vou dar. A vergonha de ter medo. O nojo de...
Interrompeu-se. E pálido dum pressentimento tenebroso levou a mão à
cabeça com a sensação de qualquer coisa de inabitual nos cabelos. E – ó
fúria! ó raiva! ó sorte de cão danado! – verificou perplexo que os cabelos
principiavam a eriçar-se. Devagarinho... mas a eriçar-se.
– Falta minuto e meio – bradou o monstro, implacável.
Os cabelos de João Sem Medo já estavam completamente de pé.
– E eu que tanto escarneci do parvo do João Medroso! – arrependeu-se o
rapaz com sinceridade melancólica. – Quem me diria então que acabaria
como ele de cabelos arrepiados? Oxalá, ao menos, não toque castanholas
com os dentes.
Mas não... Nem a essa prova se eximiu, com grande gáudio do gigante.
– Olha! Olha! Já começaste a tocar a música do medo – comentou,
encantado. – Não calculas como essa valsa é melodiosa. Até apetece
dançar!
E o maluco do trangalhadanças, de patas no ar, pôs-se a bailar sozinho no
meio do quarto...
Entretanto, o triste coitado do João Quase Com Medo transfigurava-se
pouco a pouco em João Medroso. Os olhos arredondavam-se-lhe,
espavoridos, e a angústia da covardia decorava-lhe as entranhas. Dentro em
breve iria talvez implorar misericórdia, de rastos... Que vexame!
– Só faltam vinte segundos – informava o ciclope, a esfregar as mãos com
ferocidade alegre. – Só vinte segundos.
Aconteceu então uma coisa extraordinária.
De súbito João Quase Com Medo não se conteve mais. E de braços
suplicantes, olhos fora das órbitas, dentes a estralejarem, lançou um longo
grito de pânico desesperado que, não sei por que trâmites fabulosos, acabou
por se erguer, numa vozinha longínqua e aguda, das palavras que a minha
mão rabiscava no papel:
– Acuda-me! Socorro! Senhor José Gomes Ferreira, salve-me! Salve-me,
Senhor José Gomes Ferreira! Socorro!
Bem. Eu, José Gomes Ferreira, nascido na Rua das Musas da cidade do
Porto, licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, poeta, ex-cônsul,
ex-figurante de cinema, etc., etc. – tenho a melancolia de declarar que
considerava João Sem Medo vencido desde que o gigante do Monóculo
empregou o miserável estratagema de dissolver o João Medroso na
atmosfera. (O mesmo ar – esclareço – que todos nós respiramos há muito,
apenas em dose menos maciça.) E fiel ao meu lema de cronista imparcial,
propunha-me descrever a derrota de João Sem Medo, embora com o
coração destruído, quando se deu o lance dramático de ouvi-lo increpar-me
– bracinhos hesitantes a saírem do outro lado da tinta das palavras... Apelo
espontâneo, com que não contava – juro! – vindo de lá das profundas do
subconsciente da liberdade com que o criei e convenci a saltar o Muro,
dotado da mais nobre virtude de que um ser vivente se pode orgulhar: a
coragem. A verdadeira coragem. A força do coração.
Para quê não confessar, porém, que esse chamamento me comoveu e
abalou até as raízes das lágrimas? De tal modo que me impeliu a intervir,
sem rebuço, junto das Potências Secretas que pretendiam humilhá-lo. Não,
meninas, lá caranguejo azul não consinto. De maneira nenhuma. Com a
minha complacência não. Pelo menos, sem discutirmos o caso.
E discutimos. Democraticamente. Durante longas horas (que couberam
por milagre numa partícula de segundo). Até chegarmos a acordo (que foi
este, claro, e eu nunca permitiria que fosse outro): o salvamento de João
Sem Medo.
Assim, agora só me resta inventar um processo qualquer absurdo de fazer
evadir o nosso herói do quarto da janela inquebrável e a porta de aço.
Vamos a isso!
Desculpem a interrupção e reatemos a história...

Aconteceu então esta coisa verdadeiramente extraordinária...


De súbito, na parede da frente, duas pequeninas manchas amarelas
feriram a vista de João Sem Medo. Dois botões de metal? Talvez. Mas nem
tentou certificar-se. Reuniu a última energia de teima e carregou ao acaso –
com o coração opresso de expectativa.
E como já estava previsto, surgiu o imprevisto. Rasgou-se uma fenda no
mármore por onde João Sem Medo se esgueirou no momento exacto em
que o gigante anunciava com petulância vitoriosa:
– Pronto. Já...
Não acabou. A brecha voltou a cerrar-se entre os urros jactantes do
encarcerado no auge do furor:
– Maldito! Carregaste nos botões mágicos e agora não posso abrir a porta
nem a janela! Ah!, por minha vontade cozia-te num caldeirão de azeite a
ferver. E tirava-te os olhos para os meus filhos jogarem o berlinde. E
arrancava-te a pele para talhar um par de luvas. E os cabelos, para uma
escova de dentes...
– Pois sim – ripostava-lhe João Sem Medo do outro lado. – Daqui a meia
hora, muito rirei eu diante da tua figura de cabelos em pé e joelhos em terra
a suplicar-me a graça de viver. Que vergonha! Um gigante anão!
O monstro não respondeu, quase possesso de desvairo, aos pontapés à
porta – enquanto João Sem Medo, deitado de costas no solo, esperava
pachorrento pelo início do espectáculo do gigante com alma de João
Medroso.
Dez minutos bastaram aliás para que o Vingador do Monóculo Partido,
transtornado pela covardia esparsa no ar, desatasse a soluçar o seu
monólogo de rugidos tíbios e súplices:
– Não me façam mal!... Tenho medo!... Não me batam!... Ó mãezinha:
esconde-me debaixo das saias.
Mas, pelo sim pelo não, temeroso de qualquer endrómina ou armadilha,
João Sem Medo não se precipitou. Deixou escoar mais alguns minutos
antes de premir o botão para reabrir a brecha.
Pobre gigante! De joelhos, eminhocado a um canto, cabelos electrizados,
pedia perdão de mãos juntas, os dentes a chocalharem como sinos de
marfim, e as pernas trementes... Do olho cegueta caíam lágrimas de pavor.
– Não me mates!... Tenho medo do papão... – implorava o mísero com
voz de trovoada trémula.
– Descansa que não te faço mal – tranquilizou-o João Sem Medo
apiedado. – A falar franco só me metes nojo e pena. Toma, palerma.
E pespegou-lhe um pontapé.
Depois, sereno e desprezador, saiu do quarto do Gigante da Vingança
contente consigo mesmo por não se ter vingado.
XIII
O museu da fábula

De novo perdido nas veredas da noite, João Sem Medo, azoado de ardis e
sono, refugiou-se na primeira toca do caminho e adormeceu como uma
pedra.
Acordou ao alvorecer com o arrepio de se sentir «passeado» por formigas
que, ainda meio tonto da sonolência remelada da manhã, não esmagou por
milagre.
Entretanto uma voz grossa e acatarrada retumbava no buraco, a acautelá-
lo:
– Não te mexas! Vamo-nos retirar em boa ordem. Cuidado, não nos
esmagues.
Já habituado àquele mundo do absurdo mágico, afinal tão enfadonho
como o absurdo natural de Chora-Que-Logo-Bebes, não manifestou a
menor surpresa, porventura ainda grato às formigas que, em vez de o
comerem vivo, apenas pediam aos deuses que não lhes pisassem os calos.
– Não te movas – recomendava a voz grave. – Só falta um batalhão.
Enquanto as formigas deslizavam a duas e duas, o nosso herói, imóvel e
alongado na cova, ia furando a penumbra com os olhos, desejoso de
localizar o orador-comandante. Lá o envesgou por fim, ao fundo. Um
formigão postado diante de um minúsculo microfone que lhe aumentava a
voz transmitida pelo difusor pendurado no tecto.
– Que tens? – acudiu a um ligeiro movimento do rapaz em que adivinhou
talvez espanto reprimido. – Os meus soldados magoaram-te?
– Não. Que ideia!... Os teus soldados são delicadíssimos. Até usam botas
de cócegas...
Riram da gracinha. Mas assim que as gargalhadas amorteceram, João
Sem Medo temeu que fosse de mau gosto não aparentar, por cerimónia, um
leve pasmo hipócrita. E arregalou os olhos o mais que pôde:
– Confesso que nunca me passou pela cabeça ouvir falar formigas e,
muito menos, através de microfones!
– Ora essa! Então não sabias que antigamente os animais falavam?
– Sim... Antigamente... Mas agora...
– Na verdade – admitiu a formiga – a maioria dos animais tornou-se
muda. Que queres? Os homens diziam tantos disparates que, certo dia, os
bichos, para não se confundirem com vocês, votaram a greve geral, a greve
do silêncio que ainda hoje dura... Greve apenas furada pelos papagaios e
outras aves sem categoria...
– É o costume. Não há greve sem «amarelos» – interrompeu João Sem
Medo para não ficar calado.
Mas a formiga emendou com prontidão:
– Nós não lhes chamamos «amarelos». Chamamos-lhes «verdes».
– Ah! – exclamou o rapaz com a adequada admiração cortês.
Ao que se seguiu a pergunta lógica para continuar a conversa:
– Mas vocês não são «verdes», pois não?
– Nós? – tossiu a formiga rouca de catarro indignado. – Nós «verdes»?
De maneira nenhuma. Pelo que ouço, ignoras totalmente as circunstâncias
em que os bichos proclamaram a greve do silêncio... Na mesma ocasião
resolveram instalar num sítio pouco acessível o Museu Vivo da Fábula,
onde continuariam a falar como na Idade de Ouro...
– E eu encontro-me nesse tal museu misterioso?...
– Pois claro... Descobriste por acaso a entrada secreta para o país da
fábula descrito pelos nossos grandes cronistas Esopo, Fedro e La Fontaine...
– É curioso!... – comentou João Sem Medo, mau grado seu, interessado. –
E vocês mantêm a mesma moral das fábulas?
A formiga não se apressou a responder. Reflectiu alguns momentos antes
de adiantar estas palavras cautelosas:
– Bem vês... Os nossos costumes foram evolucionando devagarinho...
– Já reparei. Vocês são civilizadíssimas. Até têm microfones.
– Se medes a civilização por maquinismos e aparelhómetros, ainda não
viste nada... – gabou-se a formiga. – Nem supões como são agora os nossos
formigueiros providos de electricidade, elevadores, radar, camionetas para
transportar os alimentos para o Celeiro Central, máscaras contra o «DDT»,
computadores, etc., etc.
E após o silêncio fatal que corta sempre todos os diálogos, prosseguiu
digna e bem-falante como se repetisse trechos de «sebenta», embora
pegados com cuspe:
– Mas... Bem... Aqui... como em todas... as sociedades... Percebes?...
Bem... Os animais dividem-se mesmo... Estás a ver... Dividem-se em dois
grupos: os que teimam... Sim... os teimosos que respeitam as aparências
mortas... E os criadores de ilusões de novas aparências...
Chegado aqui, respirou profundamente, tomou balanço, e terminou dum
fôlego:
– Nós, como já tiveste ensejo de verificar, pertencemos ao segundo grupo.
João Sem Medo lançou então esta sonda indiscreta:
– E as cigarras? Como despedem vocês agora as cigarras quando essas
mandrionas vêm esmolar comida? Mandam-nas dançar como dantes?
A formiga tropeçou na resposta:
– Bem... Referes-te à sentença clássica de «Ah! cantaste? Pois dança
agora», não?
E mais à vontade, apoiada no sinal de cabeça confirmativo de João Sem
Medo:
– Não te ocultarei que nas últimas décadas vários movimentos
revolucionários das Obreiras, aos gritos de «dêmos de comer às cigarras!»,
«Abaixo La Fontaine!» perturbaram o sossego secular dos formigueiros... E
impuseram até, aqui e além, novos fechos morais à famosa fábula,
condizentes com a política não egoísta das camadas novas, amantes cem
por cento da música concreta das cigarras. Por infelicidade, a experiência
catastrófica de tentar sustentar os pobres musicantes-poetas, com a nossa
alimentação de formigas práticas, desiludiu os idealistas mais inveterados.
Não tardámos a averiguar que as cigarras não toleravam os mantimentos
dos nossos armazéns (temos intrínseca necessidade de comidas diversas) e
morriam na mesma... Umas a dançar, outras a cantar e todas em beleza, pois
constava (elas próprias espalhavam essa lenda) que se alimentavam
metafisicamente com cheiro das ervas e da luz do Sol... Da luz do Sol,
imagina. Em resumo: pouco a pouco acabámos por...
Acanhou-se insegura. Mas com a ajuda do olhar interrogativo de João
Sem Medo desembuchou:
– Acabámos por... comê-las.
– Por... COMÊ-LAS?
– Sim... Comê-las. Cheias de remorsos, mas que remédio? Seria um crime
desaproveitar aquela carninha tão fresca e tão lírica, não achas? As asas
então são uma delícia... Dão-nos uma tal sensação de liberdade...
E como adivinhasse sinais de desaprovação azeda nos gestos de João Sem
Medo, com um hábil desvio estratégico, passou a fervorosa defensora das
cigarras:
– Mas não lhes chames calaceiras, ouviste?... Porque cantar para elas
também é trabalho... E que trabalho! Ainda pior do que o nosso, de ouvi-
las. Uma espécie de serrar música...
E toda formalizada, a tossir a dignidade do seu catarro, a formiga retirou-
se, solene – com João Sem Medo na peugada, ansioso de visitar o Museu ao
Ar Livre da Fábula Viva.
Bastaram-lhe meia dúzia de passos para que, na margem da Lagoa da
Lama Verde, topasse com outro espectáculo desusado: uma rã a inchar perto
de um boi que forcejava penosamente por reduzir o volume do corpanzil.
– Cá temos as personagens da fábula A Rã e o Boi – recordou João Sem
Medo com um sorriso interior. – Minha mãe contou-ma várias vezes... Certa
manhã a Senhora Rã encontrou o Senhor Boi e, invejosa da imponência
física do parceiro, não sei por que bulas arranjou maneira de auto-soprar-se
e inchar, inchar, inchar... E tanto inchou que rebentou... Agora, porém, o
caso muda de figura. A Rã incha, sim, mas o Boi pelo seu lado desincha,
amesquinha-se, diminui de tamanho... Vou meter conversa para apurar do
que se trata.
E abeirou-se, mesureiro:
– Bons dias, mestre Boi.
– Bons dias, mestre Homem – correspondeu o animal com os olhos a
babarem-se de meiguice confiante.
– Então que significa isso?... Quer tornar-se mais pequeno?
– Pois claro – mugiu o Boi já com metade da corpulência habitual. – Não
acha injusto eu ser deste tamanho e a Rã tão pequenina?
– Não me diga que deseja rivalizar com os boizinhos de barro que se
vendem nas feiras...
– Não... – esclareceu mestre Boi. – Nessa não caio eu. Tudo menos sofrer
a sorte do meu irmão que tanto diminuiu, tanto diminuiu, tanto diminuiu
que acabou por ser atropelado por um carrinho de mão.
– Então, não percebo – desistiu João Sem Medo com entono enfastiado
de haver problemas que não mereciam ser problemas.
– É muito fácil... Eu e a Rã, para não termos inveja, combinámos o
seguinte: eu minguar um bocadinho e ela aumentar, até ficarmos iguais!
– Mas – aduziu o rapaz – na fábula de La Fontaine o Senhor Boi
desdenhava ostensivamente das pretensões da Rã.
– Isso era dantes. Hoje tudo evolucionou no país da Fábula – objectou o
paciente ruminante impaciente. – Decidimos ser iguais e ninguém tem nada
com isso.
João Sem Medo abanou a cabeça, discordante. E preparou-se para
abandonar os dois bichos na sua luta pela igualdade. Mas à laia de
despedida foi-lhes dizendo com tacto hábil de pessoa bem-educada:
– Considero a vossa atitude muito louvável, embora, confesso, o método
me pareça um pouco... como direi... Bem... Talvez primário...
– Porquê? – bramiu mestre Boi sempre a babar-se de estupidez suave.
Como resposta, João Sem Medo começou a meter os pés pelas mãos
numa tentativa de atinar com as palavras justas para exprimir o seu
pensamento um pouco tataranha:
– Bem... Porque... Ou me engano muito ou... Bem... não devemos
confundir igualdade com identidade... baralhada muito comum, aliás... Do
ponto de vista exterior vocês serão sempre desiguais.
E bem fincado ao fio do raciocínio, para não se perder:
– Imaginem, por exemplo, que a Senhora Rã, alcançado o tamanho do
mestre Boi, lhe invejava os chifres. Como solucionariam o caso?
– Ora! – falou a Rã pela primeira vez. – Encomendava uns postiços. De
borracha... Ou plástico...
– Está bem. Era uma solução... – aprovou João Sem Medo. – Mas... E se
ao mestre Boi lhe apetecesse coaxar?
João Sem Medo aproveitou o silêncio embaraçado dos dois comparsas
para prosseguir:
– Só se o Senhor Boi engolisse um disco com os coaxos gravados da
Senhora Rã... Não vejo outra forma. Desenganem-se, pois. Façam os
esforços que fizerem, haverá sempre desigualdades externas entre ambos...
que, a bem dizer, não constituem propriamente desigualdades, mas
diferenças...
– E então? – ruminou o Boi com os olhos meigos de quem não percebia
patavina.
– Então, nada. Sigam o meu conselho e voltem ao estado normal... O
Senhor Boi, grandalhão... e a Senhora Rã, pequenota... E se aspiram a ser
iguais conquistem a liberdade de não serem idênticos e de poderem atirar as
desigualdades à cara um do outro... Ou então...
Mas aqui calou-se enrodilhado nas palavras que mal roçavam pela
verdade fugidia... E, envergonhado, lá os deixou (a Rã a aumentar... o Boi a
diminuir...), disposto a não se deter mais durante a travessia do país da
Fábula – farto de filosofices e, sobretudo, com uma fome diabólica.
Mas três metros adiante o vento trouxe-lhe farrapos de um diálogo tão seu
conhecido que lhe espevitou a curiosidade (e o apetite) de espreitar para a
clareira onde, há séculos, a Raposa erguia os olhos de doçura matreira para
o Corvo, empoleirado numa árvore com o queijo (e que queijo!) no bico.
– Ah! compadre, compadre! Você é a ave mais bela do mundo. Do
mundo? Que digo eu? Do Universo... – esforçava-se a falsa por fasciná-lo.
– Que brilho nas penas, compadre! Que brilho no bico! Que brilho na voz!
Oh!, a sua voz! Quando a escuto, desmaio de deleite... Cante uma ária,
compadre! Cante, cante, para eu morrer de gozo, compadre...
Na velha fábula, como sabem, o Corvo apreciava tanto as lisonjas que,
mal a raposa solerte lhe regougava meia dúzia de mentirolas, abria o bico e
o queijinho escorregava pelas goelas da bicha que era um regalo.
Pois desta vez o palavreado de insinuação doce da zorra não seduziu o
Corvo que, funebremente irónico, se limitou a esvoaçar do ramo para uma
grafonola portátil ao lado e a fazer rodar, com um movimento de patas, o
disco onde estava registada esta resposta de sabor cínico:
– Só canto depois de comer o queijo... Só canto depois de comer o
queijo... Só canto depois de comer o queijo...
Não calculam o focinho desalentado da raposa a contemplar o queijo
redondinho e gordo que, lá em cima, pendido do bico, imitava o desenho da
Lua inacessível. E, rabo entre as pernas, cabeça baixa a fariscar outro rasto,
a coitada internou-se no bosque, desdenhada e sorrateira... Ao passo que o
Corvo, enfim sozinho e enfatuado, não resistia a clamar vitória, depois de
largar o queijo:
– Pois claro que canto divinamente, minha palerma. Não preciso que mo
digam. Canto como o sonho de um rouxinol... Mas com franqueza, a tua
perseguição já me irritava... Desta vez, minha rica, cruzes na boca. Quem
come o queijo sou eu.
E com um bater de asas modesto:
– Mas primeiro, a pedido de várias famílias, vou cantar uma cantiguinha
como aperitivo.
E o passaroco, com ademanes de prima-dona, pôs-se a grasnar uma
melodia horrenda – enquanto João Sem Medo, de olhos cobiçosos e feliz
por castigar a vaidade do Corvo, se aproximou com lentidão de pezinhos de
lã, pegou no queijo e fugiu com ele debaixo do braço.
XIV
A menina dos pés ocos

Temeroso de que o Corvo chamasse em seu auxílio a bicharada das


fábulas, João Sem Medo correu a bom correr pelos meandros da floresta até
se alcandorar no Montículo da Nascente, junto do fio de água que borbotava
das rochas. E ali se ocultou, estendido no musgo e exausto de forças e de
genica para saciar a sede na fonte e trincar o queijo. Apenas lhe acudia esta
interrogação quase maquinal dos tempos do desânimo:
– Ah! Muro, Muro, onde estarás?
Ao que, no mesmo instante a brecha horizontal do pedregulho em frente,
humanizada em boca – a estranha Boca Perseguidora e polpuda de que já
andava esquecido –, respondeu com o refrão fatal correspondente:
– Está longe e perto.
Está longe e perto? Irra! E João Sem Medo, de punhos cerrados, ergueu-
se de golpe, increpador:
– Basta, imbecil! Estou farto, farto, farto, farto do «longe» e do «perto».
Cala-te! ... Se não despedaço-te esses dentes a soco. Irra!
Mas a Boca franziu-se naquele esgar a que os homens chamam sorriso:
– Não te zangues, filho. E principalmente não faças tanto banzé... Queres
estragar-me o arranjinho?
E de lábios em assobio súplice rogou-lhe:
– Psiu! As Potências estão a dormir a sesta. Não as acordes... Vem cá,
anda... mas devagarinho...
Não obstante a desconfiança natural pelas Bocas do Outro Mundo, João
Sem Medo submeteu-se ao que lhe soou como puro capricho. (E se a Boca
lhe mordesse ou o babujasse?)
– Aproxima-te mais... Não tenhas medo... – implorou. – Quero fazer-te
uma proposta... Mas de forma que ninguém ouça... Nem a Orelha Fantasma
que tudo escuta, mesmo o que não se disse ainda.
– Uma proposta?
Chegou-se mais, curioso:
– Dize lá.
Então a Boca (com mau hálito, aliás) murmurejou ao ouvido de João Sem
Medo:
– Posso ensinar-te a alcançar a Muralha... Com uma condição, claro.
– Uma condição? Qual?
A Boca humedeceu os beiços com a língua lambareira:
– A de me dares o queijo...
João Sem Medo enxofrou-se:
– Quê? O queijinho que tanto me custou a apanhar ao Corvo?... Todo?
– Sim, meu filho. Inteirinho... Se soubesses as saudades que eu tenho do
queijo com o sabor a leite da Terra dos homens!
E para instigar o João Sem Medo:
– Vá, resolve depressa... Daqui a um minuto será tarde... Dás ou não?
– Pois sim – conformou-se o rapaz com acento de desistência. – Toma o
queijo.
E sentou-se para assistir àquela visão de pesadelo duma boca de rocha
humana a devorar, com volúpia bem salivada, o queijo das vacas fabulosas
dos estábulos de Fedro.
– Que queijinho! – babava-se a Boca com gulodice húmida. – Que
queijinho!
Mas comeu atabalhoadamente, acirrada por João Sem Medo, cada vez
mais frenético e ansioso de conhecer o segredo da Muralha:
– Vá! Avia-te! Avia-te!
– Espera. Temos tempo...
Lambido o último pedacito de casca, a Boca a tresandar a queijo,
sussurrou então ao ouvido de João Sem Medo:
– É muito fácil!... Desces esta vereda até chegares ao Jardim do Palácio
dos Frutos Viventes – a invenção mais recente do Mago-Mor cuja
imaginação, como sabes, nunca vai além de príncipes e de reis... Nesse
Jardim existe um canteiro de girassóis roxos onde encontrarás a entrada e
um túnel que vai ter...
– Ao Muro?
– Sim. Ao Muro. Mas não digas a ninguém... Psiu!
E a porcalhona, à laia de adeus, despediu um ruído prolongado de
digestão satisfeita através de um sorriso gordo:
– Bá! ... Que belo queijo... Que queijão!
E a sorrir, sebosa, voltou à condição anterior de rocha inerte.
Apesar da extenuação e da fome, João Sem Medo, revigorado pela
esperança de regressar ao calor pífio das lágrimas familiares de Chora Que-
Logo Bebes, palmilhou o caminho aconselhado pela Boca, e ao cabo de
algumas centenas de metros avistou o tal Jardim que, pela nobreza do risco
e primor de linhas, pouco se coadunava com a paisagem bravia em redor.
Do ar saía o cetim de mãos invisíveis que acariciavam a pele com brisas de
dedos finos, e as flores dir-se-iam concebidas pela imponderabilidade dos
perfumes. Mas João Sem Medo ia tão fatigado que mal reparou nas delícias
do local que, no entanto, o amoleceram até ao ponto de se olvidar do
subterrâneo dos girassóis roxos.
– Agora só me apeteciam duas coisas... – pensava angustiado de cansaço
vencido. – Comer e dormir.
E meio entorpecido, as pálpebras hirtas de sono, transpôs as portas do
Jardim donde entreviu, no alto da álea principal, um palácio deslumbrante
cercado de árvores azuis.
Perturbado, tentou-se:
– Talvez não fizesse asneira em visitar o dono do palácio... É possível que
me convidasse para jantar...
E arrastava-se irresoluto – Vou? Não vou? Vou? – quando bruscamente,
da primeira ruela transversal, se precipitou uma menina muito bela que lhe
impediu a passagem com um sorriso doce nos lábios de polpa carnuda:
– Bons dias, meu senhor. Para onde vai?
João Sem Medo não ocultou o seu desígnio:
– Estava a pensar em pedir, ao senhor daquele palácio, cama, mesa e
roupa lavada. Há muito tempo que não tomo banho... E além disso tenho
tanta fome, tanta fome que nem vejo. Ah! se a menina me arranjasse
qualquer coisa de comer, para não me apresentar neste estado miserável ao
proprietário... Até sinto vergonha, confesso.
– Comer? Que é isso de comer? – especulou a moça com o espanto
desenhado nos olhos negros como amoras.
João Sem Medo, aborrecido com aquele caçoar evidente, encolheu os
ombros, insofrido:
– Então a menina não sabe o que é comer?... Olhe: é encher o estômago,
rilhar bifes com batatas fritas, engolir arroz.... Manducar, em suma.
O assombro da donzela crescia de intensidade à medida que o rapaz
falava.
– Bifes?... Que palavra tão estranha – murmurou.
– Também não sabes o que é um bife?... Estás a chuchar comigo?
– Não, estrangeiro – garantiu a menina. – Juro-te que é a primeira vez que
ouço pronunciar essas palavras tão esquisitas.
– Ora! Vai para o Outro Mundo! – disparatou João
Sem Medo semidesmaiado de fome. – Vou procurar o dono do palácio.
Deve ser menos estúpido do que tu. A rapariga fixou o rapaz com apreensão
visível:
– Espera.
E em voz discreta soprou-lhe:
– Não vás!
– Porquê?
– Porquê? Então não sabes que a nossa Rainha mora ali?
– Ah! É rainha? Ainda bem!... Nunca vi uma rainha na minha vida e, já
agora, aproveito... Usa coroa por casa?
O desprezo nítido que ressumava das palavras de João Sem Medo não
impressionou a menina que insistiu com a sua boca de morango fresco:
– Não vás. A nossa Rainha odeia os estrangeiros. Foge! Caso contrário
ninguém te valerá. A Dona Bela-Dona IV é inexorável.
– A Dona Bela-Dona IV?
– Sim... A Dona Bela-Dona IV. É assim que se chama a nossa Rainha...
Também cognominada o «Veneno»...
João Sem Medo reflectiu alguns segundos e voltou à carga:
– Só fujo com a condição de me arranjares qualquer coisa de comer...
Sim, de comer... Não percebes? Olha para mim que eu explico-te...
E o rapaz esgotou todos os recursos do esperanto gesticular dos surdos-
mudos para lhe revelar o sentido da palavra «comer». Fez o gesto clássico
de apontar para a boca, mastigou em seco, desenhou a trajectória da comida
no esófago, bateu repetidas pancadinhas no estômago, etc., etc.
Tudo em vão. A menina continuava a olhar para ele como para um
homem que falasse do avesso.
– Mas tu não comes? – vociferou João Sem Medo, envinagrado. – Como
consegues então manter essas boas cores? Como te alimentas? Como vives?
Como te sustentas de pé?
A menina considerou-o, indecisa. Depois, numa resolução de chofre,
empurrou-o para trás duma sebe, forçou-o a sentar-se e, com a sem-
cerimónia insólita da inocência, principiou a desatar-lhe os atacadores dos
sapatos.
– Que diabo te lembraste tu de fazer? – insurgiu-se o rapaz, surpreso.
Mas a menina, indiferente a queixas e invectivas, não desistiu e
descalçou-lhe os sapatos.
– Pronto. Estás satisfeita? – embezerrou João Sem Medo agastado com
aquela tontaria tão extravagante.
– Ainda não – tornou-lhe a pequena, prazenteira. – Agora vou tirar-te as
peúgas.
– Ah! não! Lá as peúgas, desculpa, mas não consinto. Apre que é de
mais!
Mas respingou debalde. A sedução da menina tudo levava de vencida. E
as peúgas não lhe aqueceram os pés durante muito tempo.
– E agora? – perguntou o rapaz descalço, com expectação irónica.
– Agora, deixa ver.
E a pequena pôs-se a examinar-lhe, com atenção pensativa, as plantas dos
pés.
Desta vez João Sem Medo não dominou a indignação:
– Isto só a mim acontece! Chego aqui à míngua e quando peço de comer,
em lugar de me trazerem um bom bife na grelha, descalçam-me os butes e
inspeccionam-me os pés. Diga-me: a menina é a Calista-Mor de Sua Alteza,
a Bela-Dona IV?
Mas a donzela, preocupada com qualquer problema de transcendência
misteriosa, fechou-se mais na sua meditação. E sempre em silêncio tirou os
sapatos e as meias para lhe mostrar, com graça louçã, as plantas dos pés que
– e nessa altura João Sem Medo cumpriu a obrigação de se mostrar
pasmado como devia – eram ocos, imaginem. Sim, a menina tinha os pés
ocos.
– Que significa isso? – indagou com a perplexidade indicada para a
ocasião.
– Nada de anormal. Todos os habitantes deste reino nasceram com os pés
assim.
– Para quê?
– Bem se vê que não passas de um bárbaro!... E a jovem explicou:
– Temos os pés ocos para nos alimentarmos.
– Como? – redarguiu João Sem Medo que não se cansava de aparentar o
assombro indispensável.
– Assim...
E como se praticasse um acto banal enterrou os pés na terra.
– Não percebo! – amofinou-se João Sem Medo agora de facto um tudo-
nada zaranza.
A pequena nem se dignou replicar-lhe e, durante um minuto, manteve-se
naquela posição singular. Parecia obedecer a um rito de cerimonial solene.
Por fim disse, como quem repetia uma alucinação talvez aprendida na
escola:
– Como vês, é a terra que nos alimenta directamente, sem aqueles desvios
de disfarce com que os homens se julgam dominadores da natureza. Todos
os dias fazemos isto: descalçamos os sapatos e enterramos os pés no chão
bem estrumado...
– Estrumado?
– Sim. Estrumado ou adubado, conforme as posses e as idades. E então a
terra verte-nos novas energias no sangue e reacende-nos as forças vitais...
João Sem Medo mirou-a com ódio:
– Quer dizer: enquanto eu morro de fome, tu jantas. Grande patifa!...
Ouve... Eu... Eu... Sim...
Calou-se a gaguejar de inveja. Mas na mesma ocasião chegou-lhe às
narinas um aroma doce e quente, provindo não sabia de onde...
Fungou, deleitado:
– Ou me engano muito ou cheira aqui a fruta... A pêra e a maçã... Ah! se
eu as apanhasse à mão de semear!
E, num farejo de nariz arrebitado, acercou-se mais e mais da menina.
– Já sei. A tua cara cheira a maçã camoesa... – lambeu-se todo, com água
na boca. – Não me digas que és feita de maçã... Ou que metes peros na
gaveta da roupa branca...
E então aconteceu o inverosímil. Num rasgo de loucura, João Sem Medo
avizinhou-se ainda mais da menina, incólume e vulnerável e – zás! –
pregou-lhe uma dentada mesmo na bochecha da cara. Imediatamente a boca
soube-lhe a maçã, enquanto a pobre pequena, com um pedaço de rosto a
menos, soltava gritos de dor.
– Não há dúvida!... – ruminava João Sem Medo a triturar o seu naco de
maçã. – Encontro-me num estranho país onde os homens e as mulheres têm
cara de fruta e se alimentam como as plantas... Esta menina, por exemplo, é
uma autêntica salada. Tem olhos de amora, lábios de morango, faces de
maçã... E os dedos? Deixa-me provar! Só um bocadinho!
Dito e feito. Segurou-lhe a mão e, indiferente aos berros da vítima,
trincou-lhe a cabecinha do «fura-bolos».
– Que bom!... – saboreou com gosto. – Sabe a pêra-lambe-lhe-os-dedos...
E com gula sôfrega de antropófago vegetariano dispunha-se a petiscar-
lhe a ponta do nariz, quando lobrigou dois atalaias do palácio que, alertados
pela gritaria da moça, acorriam em socorro da Devorada Viva... E com que
expressão! Fechada e dura de marmelos rijos.
– Onde fica o canteiro dos girassóis roxos? – perguntou ainda o rapaz por
instinto de salvação.
A menina – verdadeiro coração de mel e rosas tão pouco vingativo! –,
apesar de ferida, apontou com o dedinho mutilado, a sangrar sumo, para um
alegrete perto.
E João Sem Medo, cauteloso e agachado, para se furtar aos olhos dos
guardas, dirigiu-se à triga-triga para o canteiro dos girassóis onde, de
cócoras, se pôs a esgaravatar o chão em busca da entrada do subterrâneo.
XV
O regresso

Com unhas nervosas, João Sem Medo mexeu e remexeu nas ervas,
esperançado de descobrir... sabia lá o quê... Talvez a argola de ferro clássica
de todas as tampas dos subterrâneos. Mas o pânico, causado pela
aproximação dos dois soldados de marmelo, levou-o a renunciar à argola e
a puxar ao acaso todos os caules que lhe vieram às mãos, no frenesi de
acelerar a fuga. Em resumo: tanto esticou e repuxou que acabou por
deslocar uma pedra enorme, presa às raízes dum dos girassóis. E no chão
desenhou-se a abertura do túnel – buraco de trevas pavorosas para onde
espreitou com o coração contraído. Que fazer agora? Descer? E haveria
alguma escada na parede do poço? (As mãos na escuridão só apalpavam
musgo de humidade escorregadia.) Ou deveria confiar no auxílio mágico,
no par de asas salvador, nascido no momento de perigo exacto – e arrojar-se
sem mais delongas no abismo?
Por fortuna não necessitou de especulações extensas, pois, ao inclinar-se
na cisterna, experimentou de súbito o alívio desconsolado de ser sorvido
por uma Gigantesca Boca do Lado de Lá. E com um grunhido surdo
desapareceu nas profundezas da terra – a boa Terra que, depois de lhe
proporcionar uma viagem ao mesmo tempo demorada e repentina pelas
entranhas da Sombra, o arremessou com ímpeto, através de uma galeria,
para a Pedreira da Pedra Sangrenta perto do Muro. Sim, do MURO. O tão
ansiado Muro – aliás uma espécie de falésia descomunal de rocha vermelha
talhada a pique, que se estendia por longos quilómetros inacessíveis até se
perder de vista. E tão lisa, tão polida e espelhada que João Sem Medo nem
por desfastio encarou a hipótese de poder escalá-la. Por mais que a
esmiuçasse não lhe destrinçava a mínima frincha ou anfractuosidade para
abrigar uma abelha sequer. Nada. Ora bolas, boletas!
E, desenganado, sentou-se numa pedra com todo o peso do
esmorecimento.
No mesmo instante estalou uma praga de dor furiosa: – Apre que é bruto!
O rapaz pulou:
– Quem está a falar?
– Sou eu, a pedra. Magoaste-me. Para a outra vez, repara bem onde te
instalas, malandro!
Com um relance de olhos João Sem Medo verificou que, na verdade, se
sentara, descerimoniosamente, nos cabelos de musgo de uma enorme
cabeça de granito com órbitas irregulares, nariz esboroado, barbicha de
líquenes...
– Tem piada. Pareces uma pedra – concluiu o rapaz.
– Pareço e sou... Por dentro, descansa, não me faltam miolos. Poucos,
mas suficientes para cumprir os meus deveres de Guardião do Muro.
– Ah! pertences à Alfândega? Muito prazer em conhecer-te – saudou-o
João Sem Medo num tom que o incomodou por roçar levemente pela
lisonja.
E como reacção resmungou logo:
– Mas que significa essa história de só teres cabeça?... A parte do corpo
que, por acaso, menos falta faz a um guarda?
O que suscitou uma explicação imediata, proferida com frialdade de
pedra:
– Pois enganas-te. Tenho cabeça, tronco e membros como qualquer
criatura que se preza. Mas quando quero descansar, corto-me aos bocados.
Por exemplo: se sinto as pernas esbodegadas, arranco-as e embalo-as até
que adormeçam. Com os braços e com o tronco procedo da mesma maneira.
Compreendes?
– Compreendo. Mas como consegues regressar ao estado – chamemos-lhe
assim – normal?
– Ah! isso não custa nada. Queres ver?
E a cabeça, por bruxedo manifesto, acercou-se aos saltinhos do tronco
adormecido:
– Vamos, acorda, preguiçoso!
E como o dorso parecesse renitente, a cabeça não esteve com meias-
medidas: pregou-lhe uma dentada com toda a fúria, aos berros:
– Acorda, caramba! Parece que tomaste um narcótico.
Graças a este método das dentadas, o Vigilante, transcorridos alguns
minutos, encontrava-se completo, com braços de músculos de pedra, mãos
toscas e pés calosos. E não se demorou a retomar as funções burocráticas
impostas pela presença de João Sem Medo:
– Queres atravessar o Muro, não é verdade? Bem. Então avia-te e mostra-
me o passaporte. Sim, o passaporte... Com os competentes carimbos bem à
vista, claro. Quê? Não tens passaporte? Nem carimbos? Subornaste alguém,
não? O costume... Pois tem paciência, meu filho! Por esta fronteira não
passa ninguém sem a dose legal de carimbos. Volta para trás pelo mesmo
caminho...
Mas João Sem Medo obtemperou-lhe:
– E se eu apelasse?...
– Para o meu bom coração de pedra, não? – inferiu o Guardião hirto. –
Inútil, meu caro. Por aqui não passa ninguém sem apresentar o respectivo
passaporte em regra. Isto é: com os 77 carimbos da praxe bem visíveis.
Aliás custa-me a crer que haja alguém capaz de trocar este éden por...
Donde és tu?...
– De Chora-Que-Logo-Bebes...
O Guardião extraiu da boca dois ou três sons de pedra britada a fingirem
de riso:
– De Chora-Que-Logo-Bebes? A aldeia dos choramingas?... A terra onde
as pessoas de tanto chorarem trazem musgo nos olhos e verdete na boca?...
Que vais fazer para lá?
João Sem Medo encolheu os ombros, hesitante:
– Que sei eu?... A verdade é que nestas minhas andanças descobri que,
tanto no mundo da Imaginação Mágica (este que tu defendes de carimbo em
punho) como em Chora-Que-Logo-Bebes impera a mesma Lei tremenda
que se pode resumir numa destas palavras à escolha do freguês: Maçada,
Repetição, Monotonia, Chatice... Com uma diferença, claro. É que em
Chora-Que-Logo-Bebes sofre-se mais. Ou pior ainda: sofre-se menos.
Porque lá a pseudodor é tão pífia, tão pilha, tão vil, tão rasca que até se
ignora qual a dor verdadeira.
– Que vais fazer então a essa terra, tão seca por dentro e tão húmida por
fora, autêntica fábrica de constipações morais?...
– Bem... Os homens nunca se contentam... E eu, a falar franco, fartei-me
deste Imprevisto-Anárquico do Sonho em que vivi e agora apetece-me
voltar a provar aquilo a que chamamos Realidade... Além disso... Ouve: vou
dizer-te um segredo... mas promete-me que não o revelas a ninguém...
Prometes?... Na verdade, o fito principal do meu regresso talvez seja o de
tentar revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes... endireitar as espinhas dorsais
das pessoas... secar as lamentações covardes dos choraquelogobebenses...
pregar a reorganização viril da vida em novas bases... Mas, a par disto,
porque não hei-de também confessar que me assaltam saudades terríveis
de...
– De quê?...
– De... Não sei se me atreverei a dizer-te...
E gaguejou com pudor envergonhado:
– Saudades terríveis de... Nem calculas de quê... Dessa coisa grosseira
que se chama bacalhau com batatas... Duma boa bacalhauzada com grelos...
Imagina!... Ah! meu amigo! São estas pequenas coisas miseráveis que
suscitam os grandes movimentos espirituais. O da saudade, por exemplo...
Então, tocado porventura pelo acento sincero da argumentação de João
Sem Medo, o Guardador do Muro vacilou, demovido:
– Bem... O máximo que eu posso fazer é ir consultar os meus superiores
sobre o caminho a seguir a teu respeito. Se me permites, vou num
instantinho falar com eles.
– Demoras-te muito?
– Não... Para me deslocar não preciso de me deslocar, como verás. Até já.
E o Guardião partiu. Ou mais concretamente: imobilizou-se, virou os
olhos para dentro e, durante um quarto de hora, não se mexeu, ausente.
Quando regressou (isto é: quando virou de novo os olhos para fora)
parecia satisfeitíssimo com a diligência.
– As Potências com quem discuti o teu problema – declarou –
concordaram em que saísses...
– Oh! ainda bem!... – respirou João Sem Medo.
– ... com a condição de ficares – terminou, charadístico. Ao ouvir isto, o
rapaz indignou-se:
– Irra! Lá estão vocês a brincar às esfinges como de costume. Pois julgas
possível cumprir esse enigma?
– Julgo, sim.
– Mas como? Como, meu cabeça de calhau?
O guarda, pouco seguro da fórmula, decidiu aconselhar-se de novo com
as longínquas autoridades respectivas. – Um momento. Volto já.
E repetiu o jogo. Isto é: pôs os olhos do avesso e, com quietação de
estátua, ausentou-se (sem bulir um músculo como anteriormente).
No regresso aparentava o ar feliz dos subalternos para quem a eficiência
suprema consiste em acomodar-se à imaginação autoritária dos chefes.
– Está tudo resolvido... Vem daí comigo. Temos um largo caminho a
percorrer: sessenta mil quilómetros.
– Sessenta mil quilómetros? A pé? Não sei se aguentarei.
O Vigia reagiu com um sorriso, adivinhado na fala, visto o pobre não
poder exprimir qualquer sentimento com aquele carão de pedra:
– A pé? Ensandeceste? Eu nunca ando a pé. Tenho as pernas pouco
maleáveis. Prefiro outro meio de locomoção... Aquele.
E apontou para uma espécie de botas de mármore translúcido,
enfeitiçadas pela certa, ou melhor, movidas por qualquer energia misteriosa
que os homens do outro lado do Muro não haviam ainda descoberto nem
dominado.
– E tu? Não queres experimentar? – alvitrou o guarda. – Tenho um par
sobressalente.
João Sem Medo acatou logo a ideia e enfiou com presteza os pés nas
botas oferecidas pelo Guardião.
– Pronto... E agora?
– Espera! Deixa-me calçar as minhas. Estão-me um bocadinho apertadas.
E foi relatando as fraquezas secretas da sua carne de granito, entremeando
o monólogo com «uis e ais» angustiosos.
– Os calos magoam-me tanto... Ui!... Mas vale a pena calçá-las, garanto-
te... Deslizam como patins... Ui! ... Porque, conforme não tardarás a
verificar, em vez de nós as levarmos, são elas que nos levam a nós! Ui...
E de facto assim era. Pois bastou que João Sem Medo esboçasse um
movimento de pernas para que as botas voassem com a velocidade da luz. E
num abrir e fechar de pálpebras...
– Pronto. Já chegámos! – clamou o Guardião ansioso de se livrar
daqueles torniquetes implacáveis.
Por sua vez João Sem Medo, azoratado do percurso, guardou silêncio
durante alguns segundos para se recompor. Ao fim do que se afirmou na
paisagem em torno, sem embargo muito semelhante à do local do primeiro
encontro com a Sentinela de Pedra. A mesma Muralha, ou antes: um
alcantil idêntico, impossível de marinhar. De novo, apenas um riacho de
água azul que gargolava a poucos metros com alegria de corrente viva.
Entretanto o Guardião aliviava os pés com ruidosos «Ah! ah! ah!» de
satisfação, sem entremostrar indícios de pressa em revelar a João Sem
Medo o método previsto pelas Altas Forças para a concretização do tal
mistério de partir e ficar.
Até que, por fim, lá se dignou:
– Não achas possível, hem?
– Só se me dividissem em dois... – propôs, à laia de sugestão inaceitável,
João Sem Medo.
– Exactamente. Só se te dividíssemos em dois. Para um deles permanecer
neste lado e o outro no lado de lá. Continuando apenas a ser um, claro.
– Claro!... De modo que o eu-outro formasse um eu-uno absoluto... –
divertiu-se João Sem Medo com propósitos de caricatura metafísica.
– Sim, sim... O tu-ele-uno.
E sem ironia:
– Vejo com agrado que já te vais convertendo à nossa linguagem que tudo
explica.
– Sim... Principalmente o que se complica de propósito para depois se
explicar... Mas ouve: nessa história do eu-ele-uno não existirão diferenças
entre o eu e o ele resultantes da própria unidade perfeita da sombra-luz?
(E riu-se por dentro.)
– Sim, embora levíssimas. Assim, o ele é em geral mais prático e avisado
do que o eu, normalmente um tudo-nada leviano e imprudente... Mas nem
tu os distinguirias... Nem tu saberias dizer qual dos Dois-Só-Um eras tu!
– Que trapalhada!
E o rapaz, para acentuar esta exclamação sorridente, agarrou a cabeça
com as mãos, esparvoado, a suar mistério por todos os poros.
– Aceitas então dividires-te em dois? – tornou o guarda.
E para forçar a decisão com um argumento irrecusável:
– Aliás é a única forma de saíres daqui.
– Falas a sério?
– Falo sempre a sério... Para isso me talharam num bloco de granito...
João Sem Medo vergou-se à fatalidade:
– Bem... Se não existe outra maneira, que remédio!... Mas como? Como?
– É fácil. Espera um bocadinho. Já vais ver.
E o Guardador do Mundo Mágico, muito empinado e rígido, afastou-se
com dureza de passos de pedra. Perto da margem do riacho dobrou-se e,
num ritual de mãos hirtas, passou-as pela água para lhe extrair o espelho da
superfície – um espelho de cristal-fluido-azul que encostou delicadamente
ao Muro.
Em seguida declamou com solenidade majestosa:
– Olha para o espelho.
João Sem Medo nem discutiu a ordem – olhos imediatamente fixos no
Cristal de Água em frente.
– Agora prepara-te para assistires ao acontecimento capital da tua vida –
preveniu-o o Guardião de granito. – A tua imagem vai sair do espelho e
andar, falar, pensar...
– De carne e osso como eu?
– Sim... Como tu, mas outro...
– Continuarei ao menos a não ter medo?... – arfou com desespero de
resignação.
– Sim. Continuarás a fingir que não tens medo.
– Mas isso pode dar azo a confusões tremendas – insistiu preocupado. –
Daqui a pouco ninguém me diferenciará de mim mesmo.
– Que importa se cada um de ti viverá num mundo diferente?
– Mas quem vai para Chora-Que-Logo-Bebes?... Quem vai para o rico
bacalhau? Eu ou o outro?
– Já te repeti mil vezes que tanto faz, pois ambos são um, apenas um, em
alma, em instinto, em paladar...
João Sem Medo decidiu então entregar-se definitivamente ao destino e
fitar o espelho – enquanto a voz fria do Homem de Pedra comandava:
– João Sem Medo n.º 2: salta cá para fora!
Logo de seguida, vinda do fundo do sonho até se transformar em carne e
osso, a imagem do espelho obedeceu e pulou para a terra do mundo.
– Ah! Que bom respirar! – exclamou com volúpia de descobrir o sentido
da vida no ritmo do ar a entrar-lhe no peito.
E estendeu a mão a João Sem Medo n.º 1 que a apertou com gosto de
sentir a própria pele e ouvir a sua voz em boca alheia (como se falasse
sozinho).
Mas o Guardião interveio para entravar a possível cena de família:
– Já é quase noite cerrada. Deixem-se de ternuras e vamos ao que mais
importa: fechem os olhos.
– Para quê? – interrogou o sempre atónito João Sem Medo n.º 1.
– Tenho ordem de os misturar, confundir, baralhar, entontecer... para que
ninguém saiba (nem vocês) quem é o n.º 1 ou o n.º 2. Toca pois a bailar,
rapazes. – Tá-ra-ra-ra-lá-tá-tá... Pam, pam, pam...
E, ao som das palmadas de pedra que martelavam uma dança pesadona de
elefante, o guarda-mor obrigou-os a saracoteios, meneios e reviravoltas tão
ensarilhantes e infernais que os dois Joões Sem Medo acabaram por
cambalear estonteados da vertigem.
– Pronto. Já não sei qual é o n.º 1 o n.º 2... – declarou o guarda, triunfante.
– Chegou o grande momento da Escolha... Tu, por exemplo (e encarou um
deles ao acaso): vais continuar as aventuras do real-irreal da imaginação...
Enquanto tu (e apontou para o outro) voltas para Chora-Que-Logo Bebes...
– E nunca mais poderemos ver-nos? – perguntou João Sem Medo (o n.º 1
ou n.º 2?).
– Pois claro que podem... Até podem fazer a troca, um pelo outro, à
socapa, se for possível, para que ninguém perceba (principalmente vocês).
Mas agora, por favor, não percam tempo. Ouve, amigo – e virou-se para o
João Sem Medo nomeado para a comédia dos torneios contra as Potências
Enigmáticas: – parte, parte depressa para as tuas aventuras. Monta o vento e
parte.
– Seja – recitou o Escolhido com pompa teatral. – Tremei, monstros e
monstras do presente e do futuro! Tremei diante do heróico João Sem
Medo, o Cavaleiro-Que Só-Sabe Combater-Em-Sonhos!
E num salto prodigioso montou uma rabanada de vento, aos gritos de
despedida para o outro que o contemplava com inveja melancólica de ficar:
– Adeus, pá. Qualquer dia virei visitar-te para trocarmos os destinos e
descansarmos um bocadinho, sim? Eu, das aventuras e tu, do bacalhau...
E desfez-se no ar.
Então o Guardião tomou de novo a palavra:
– Bem. Agora é a tua vez. Chegou o momento de regressares a Chora-
Que-Logo-Bebes.
– Com muito gosto. Mas como?
– É fácil. Dirige-te ao Muro e atravessa-o.
– Atravesso-o? Como? Por onde? Não vejo nenhuma porta.
– Nem precisas... Sai pela porta que não há.
E satisfeito com esta frase típica da Sebenta do Enigma, o Homem-
Pedregulho entregou-lhe um passaporte com os inúmeros carimbos
necessários.
– Vá! Atravessa o Muro. Nada receies. – Instigou-o, enquanto aplicava
mais um carimbo – o último – no documento.
João Sem Medo, percebendo então (o que aliás não exigia excepcional
finura de intelecto) que ali havia manigância, despediu-se do guarda e tocou
com o pé no Muro que, a esse contacto, se transformou numa espécie de
nevoeiro de pedra fantasma.
E assim, com a mesma facilidade de quem fura nuvens, João Sem Medo
coou-se como um espectro através da Muralha, a esfarrapá-la com as botas
até alcançar a terra santa de Chora-Que-Logo-Bebes que pisou com
comoção feliz onde se misturava o prazer do obstáculo vencido, a vaidade
próxima de poder enfim contar proezas da viagem aos amigos (e porventura
também, já timidamente esboçado, o arrependimento do regresso).
Anoitecia devagar e o vento trazia de longe ais e plangências. Talvez das
árvores vergastadas de Chora-Que-Logo Bebes... Talvez dos habitantes
arreigados à tradição pungente de que tanto se orgulhavam... Isto é: chorar.
Chorar sempre. Chorar de manhã à noite...
Arrostar essa choradeira – era agora o combate de João Sem Medo.
Vamos! Vamos!
E dirigiu-se, pelos tojais ínvios, rumo à Aldeia.
Mas poucos metros andados ouviu o piar débil dum pássaro no solo.
Curvou-se. Piu, piu, piu... Parecia um pardal. Quase inerme de fome. Pegou
nele com mil cautelas suaves. Pobre bicho! Dos olhos rolavam-lhe lágrimas
azuis. «Que estranho este pássaro chorar lágrimas azuis!» Ou veria mal por
causa da penumbra? – congeminou. – «Aqui tudo morre de fome na terra e
no céu!» (De sede não, porque a água vai direitinha dos olhos à boca.)
E a soprar-lhe as penas (que magro!) compadeceu-se:
– Só me espanto como ainda não te comeram, bichinho!
Depois, com o vago desgosto suspeitoso de já não ser o mesmo João Sem
Medo – embora mantivesse a cabeça altiva e desafiante de outrora –
depositou-o com delicadeza de pô-lo bem à vista no ramo de um
zambujeiro à mercê do primeiro famélico que o fisgasse. E encaminhou-se
para a aldeola onde um povo de vizinhos e amigalhaços o recebeu com altos
prantos de regozijo – a mãe à frente aos beijinhos choramingantes:
– Ai! o meu João que andou lá por esses Brasis e não se esqueceu da sua
mãezinha!... Pois não, queridinho? Se soubesses o que chorei por ti, meu
filho. De dia e de noite. Mas enriqueceste, ao menos? Trazes dinheiro para
me fazeres um enterro decente quando chegar a minha horinha?
– Não, minha mãe. Nem é necessário. Porque a vida da nossa aldeia vai
modificar-se radicalmente.
E com ímpeto de sentir um comício na garganta, galgou até ao cimo de
um penedo e desatou a discursar aos chorincas que o rodeavam:
– Cidadãos! Precisamos de organizar uma conspiração urgente contra as
lágrimas mal choradas. E raspar o musgo das faces. E tirar o verdete das
bocas. Viva a alegria revolucionária!
Mas, pouco a pouco, a um e um, os choraquelogobebenses, apavorados
com estas palavras que perturbavam a vocação geral para mortos e a paz
podre das longas digestões da Fome, começaram a esquivar-se à sorrelfa,
aumentando de propósito o clamor dos soluços para cobrirem de cinzas e
lamentos a voz incitadora de João Sem Medo.
– Ouçam!... Ouçam!... – tentou ainda o pobre rapaz deter, em vão, aquela
chusma covarde.
Mas quem o queria ouvir?... E na sua voz arderia a convicção necessária
para o milagre de transfigurar as palavras de todos os dias em armas de
incêndio?
Este agora, aquela a seguir, todos os choraquelogobebenses se
desvaneceram na noite do bolor. Só quedou a mãe a roê-lo com
chorinquices de desistência:
– Deixa essas ideias, meu filho... Não estragues o nosso rico sossego, a
nossa aprendizagem para cadáveres. E chora, chora, chora como nós.
Derrete-te em lágrimas e desiste.
– Não, não desisto, Mãe – berrou teimoso e temerário (por fora).
Mas ao mesmo tempo (por onde andaria o outro João Sem Medo
aventureiro e quando viria visitá-lo?) foi murmurando à mãe com certa
prudência prática de homem cansado:
– Não desisto, Mãe. Não desisto, percebe?... Mas provisoriamente, para
restaurar as forças, sabe o que me apetecia agora?... Um jantarinho cá dos
nossos... Com grelos, hem? Mas não cuide que desisto da luta. Não!
Jamais!... É só um apetite...
– Sim, meu filho... Sim, meu querido filho... Um apetite...
E a pobre lá foi cozer o bacalhau demolhado em lágrimas.
Então, João Sem Medo, sempre à espera de não sabia bem de quê... talvez
do milagre que um dia o ajudasse a secar aquelas lágrimas da Terra... talvez
esperançado na chegada do outro João Sem Medo que, afinal, apenas o
procurava de noite, durante o sono...
... Então, João Sem Medo, provisoriamente, sempre provisoriamente,
vendo tantos olhos a chorar... montou uma fábrica de lenços e enriqueceu.
(Ah! Mas um dia, um dia!...)
Nota final da 2.ª edição

Concebida e publicada, num jornal de 1933, a primeira versão desta


narrativa (há 40 anos, senhores!) já se escoaram mais de dez depois da
edição em livro das Aventuras de João Sem Medo, escritas, não sei se ousa
rei dizer, por acaso, como quase todos os meus livros de prosa que não me
canso de comparar a restos de naufrágios. Os outros, os romances
sonhados na adolescência, com tanta minúcia de insónias, nunca consegui
crista lizá-los. E os que escrevi (O Mateus, Os Covardes, etc.) sob
influência dos meus mestres desse tempo, Raul Brandão, Dostoievski e
Gorki, ainda bem que os rasguei para não ter mais lixo de Passado
impresso. De certa al tura em diante, porém, justamente quando a vida me
forçou a desprezar sonhos e planos, os livros começaram a aparecer-me
feitos, quase todos rabiscados à pressa diante do público, como O Mundo
dos Outros (na Seara Nova) e este João Sem Medo, esfacelado em
episódios n’O Senhor Doutor.
Tinha eu então trinta e poucos anos e a minha personalidade desse
período ora tomava aquele ar de resignado à poesia dos passarinhos que
«quando morrem caem do céu», tão docemente fixado pelo Fred Kradolfer
no retrato que me pintou de jacto em 1932, ora o aspecto de lobo severo do
quadro da Ofélia Marques para quem posei, mais ou menos na mesma
época, de pijama e barba por fazer (fora essa a nossa combinação).
Pouco antes havia nascido o meu primeiro filho, Raul José (afilhado da
Ofélia e do Bernardo), e eu vivia exclusivamente de traduzir fitas e
escrevinhar para revistas, jornais e jornalecos. Enchia números inteiros da
Imagem com artigos assinados por anónimos pseudónimos vários (Álvaro
Gomes, Alberto Fernandes, Fernando Soares, «Caçador de Imagens», etc.,
etc.), inventava crónicas semanais para o Kino e o Notícias Ilustrado,
intrigas policiais para não sei onde – literatura alimentícia, em suma, hoje
por felicidade esquecida e oxalá ninguém se lembre de ressuscitá-la
amanhã. (Aproveito o ensejo para proibir gravemente essas hipotéticas
exumações em geral efectuadas por mini-eruditos, investigadores de
larachas inúteis.)
Então, já morava no segundo andar do n. º 6 da Calçada dos Caetanos,
com os meus compadres Ofélia e Bernardo Marques que suavam como eu
nos trabalhos forçados de boémia idêntica. Até em muitos casos
coincidentemente nas mesmas revistas e jornais da década. Sobretudo o
Bernardo que, nos intervalos dos cartazes e dos bonecos das campanhas
publicitárias, ilustrava artiguelhos e historietas para a Imagem e o
Girassol (este último semanário dirigido pelo actor Erico Braga e
aflitivamente secretariado pelo poeta Carlos Queiroz) e desenhava
caricaturas para o Diário de Notícias (cargo que abandonou no início da
Guerra Civil Espanhola).
Foi neste ambiente de estúrdia mansa e anseios mutilados que nasceu o
meu João Sem Medo.
Convidado por António Lopes Ribeiro, então nosso companheiro no Kino
e na Imagem, a colaborar n’O Senhor Doutor em formação, corri ao
escritório do proprietário da futura revista infantil, o Senhor Mimon
Anahory, muito luzente de importância e simpatia no seu fraque bem
cheiroso a charuto sempre aceso que prolongava em
fumo o sorriso longo com que adoçava aquela tremenda maçada de
discutir futuros incómodos de pagar artigos e acordar em deveres,
obrigações e preços.
A entrevista não durou um quarto de hora. Se bem me recordo, por 60
escudos semanais comprometi-me a traduzir um folhetim com árabes e
mesquitas e a publicar um conto inédito em todos os números, assinado
pelo meu novo pseudónimo de Avô do Cachimbo.
Saí encantado por aquela deserção momentânea da escravatura
cinematográfica da Imagem onde, por protesto contra a uniformidade
bocejadora do vedetismo imperante, o Eduardo Chianca de Garcia e eu
inventámos por inteiro e sem remorsos as biografias dos artistas em voga,
(da Greta Garbo, da Marlene, de todos!), sem uma única nota verdadeira
para amostra. (Desse ponto de vista a Imagem foi sem dúvida a revista
mais mentirosa e falsa da História.)
Tudo combinado (60 escudos por semana, bem bom!), mal deixei o cheiro
a charuto do Senhor Mimon Anahory, sentei-me no café mais próximo para
desarrincar o primeiro conto a que pus o título de A Aldeia dos
Choramingas. (Choramingas ou Choramigas? Já não me lembro. Talvez
choramigas que eu, por essa altura, preferia por me parecer mais
vernáculo. Hoje voto no popular choramingas.)
No segundo número mudei de rumo e, experimentando um novo caminho,
redigi o Aeroplano Mágico em que tentava atrair a atenção dos leitores
para as fabulosas vitórias técnicas do nosso século que ultrapassavam (e
justificavam) as insistências dos prodígios mágicos tradicionais das
histórias maravilhosas.
Mas, no terceiro número d’O Senhor Doutor, para facilitar o fardo do
conto semanal, decidi inventar um herói de sabor popular que desafiasse as
forças enigmáticas da Floresta Branca (branca, cor convencional da
infância), desmitificasse os gigantes, os Príncipes, as Princesas, as Fadas,
etc., me permitisse criar novos mitos, tornar mágicos os objectos vulgares
da vida diária, e dar contorno às minhas verdades mais profundas numa
linguagem de acção poética que a muitos, até a mim mesmo, só me parecia
possível, quando dirigida a crianças imaginárias (que todos trazemos
escondidas na nossa soberba gravidade de adultos).
Escassos minutos gastei a conceber o meu herói. Apareceu-me logo,
valente e refilão, sem idade determinada nem feições fixas, a fim de cada
um lhe desenhar o perfil e atribuir a idade que lhe desejasse.
O nome sim. O nome é que se me afigurava importante para caracterizar
rapidamente esse inimigo de déspotas e tiranias. Vamos ao nome.
Comecei por lhe chamar José Coragem (mas soou-me mal). Depois,
lembrei-me do João Pequeno, de que tantas peripécias astutas ouvira em
miúdo.
João? Sim, João. Seria João. Mas não arteiro e tolo à Pedro das Malas-
Artes. Antes leal, duro, intransigente, criador constante da própria
liberdade e atirador implacável de nãos contínuos a todas as transigências
e cantos de sereias de poucas-vergonhas.
Sim, seria João. Mas João quê?... Claro, logo irresistivelmente me acudiu
o nome de João Sem Terra, irmão de Ricardo Coração de Leão.
E de posse da partícula sem, instalado ao comprido na Idade Média,
recordei a seguir o Geraldo Sem Pavor, o bandido filho de algo, que
conquistou Évora aos mouros. E não tardei a colar o Sem Pavor ao João:
João Sem Pavor.
João Sem Pavor? Não. Também me veio à ideia o Frei João Sem
Cuidados (outro malandrim de artimanhas); que não tomei em
consideração, claro.
João Sem Receio? (Não.) João Sem Temor? (Talvez.) João Sem Medo?
(Dois saltos de alegria no coração.)
Pronto, achei. Seria João Sem Medo, embora não desconhecesse a
existência de Jean Sans Peur, duque de Borgonha, historiado pelo marquês
de Sade na sua Histoire Secrète de Isabelle de Bavière, Reine de France,
fundamentada, ao que parece, em documentos falsificados.
Mas que tinha a ver o filho de Filipe, «Le Hardi», que mandou assassinar
o duque de Orleães (ciência de Petit Larousse), com o meu João Sem Medo,
fala-barato de imprecações e graçolas populares, desprezador dos tiranetes
e dos poderosos e, sobretudo, cheio de alegria de existir, de respirar, de
acreditar nos bons sentimentos e de inventar monstros para os destruir e
vencer?
Não procurei mais, portanto. Obriguei-o a marinhar o muro proibido e
principiei a narrar (principalmente para a criança que brincava dentro de
mim com a morte e o amor e, por felicidade, ainda hoje continua a brincar)
os sucessos audaciosos desse rapaz «dotado da mais nobre virtude de que
um ser vivente se pode orgulhar: a coragem. A verdadeira coragem. A
força do coração».
Forçado a publicar um episódio por semana, as circunstâncias não me
permitiam esmeros de oficina escrupulosa. Improvisava-os. Muitas vezes
sem tempo para os recopiar. E, em não raras ocasiões, escritos contra-
relógio. «É uma hora da noite. Preciso de terminá-lo antes das duas, para
ir dormir.»
E, a orientar-me pelos ponteiros, iniciava na noite fatigada a minha luta
com o antessono que libertava um certo instinto, por assim dizer, genésico
que ainda hoje sinto acender-se nos momentos mais felizes da minha
criação literária: uma espécie de Razão fulgurante1, sem raízes
aparentemente conscientes, que constrói, delibera, resolve, liga, explica,
entretece, torna lógica uma intriga quase instantaneamente concebida no
acto voluptuoso de escrever.
Assim criei, por exemplo, O Príncipe das Orelhas de Burro, pasmado com
a surpresa final da narrativa – tão ilógica e tão certa.
«Agora, por exemplo, dava o meu título, a minha coroa, o meu reino, a
minha glória, tudo, para ser tão feio como tu.
«– Como eu? – melindrou-se João Sem Medo.
«– Sim, como tu – insistiu o príncipe. – Juro que nunca vi ninguém mais
feio na minha vida. Até tens orelhas de burro.
«– Eu tenho orelhas de burro? – explodiu o rapaz, inquieto, a apalpar
com ternura as orelhinhas em forma de concha», etc.
Já houve, em conversa privada, quem quisesse atribuir a este passo a
seguinte intenção subterrânea: os príncipes e os reis vêem sempre no povo
e nos súbditos burros de carga. As orelhas de asno, criadas tão
imprevistamente pelos olhos mágicos do meu príncipe, não denunciariam
outro propósito.
Ora, eu nessa altura jurei e continuo a jurar, pelo sangue da Verdade e
do Bom Gosto, que seria incapaz, mesmo inconscientemente, de obedecer a
desígnio tão grosseiro.
Preferiria – e prefiro – assacar esse pequenino golpe de nonsense aos
meus habituais caprichos de desconcerto e tendência para obrigar as
palavras e os factos a fazerem o pino, em busca de não sei que
profundidade que aliás sempre se me furta, implacável. E já que estou a
ocupar-me de O Príncipe das Orelhas de Burro consintam que me refira a
certa técnica de narrar que utilizo com frequência nas Aventuras de João
Sem Medo e surge bem visível nesse episódio. Trata-se do processo
clássico de pôr as personagens a contar, cada uma por sua vez, histórias e
proezas passadas – técnica que se me entranhou, em rapazinho, quando li
as Aventuras de Telémaco de Fénelon, traduzidas pelo capitão Manuel de
Sousa e por Filinto Elísio, posteriormente retocadas por José da Fonseca,
em 1837, data da publicação em Paris do livro a cheirar a pó velho, que
encontrei na estante de meu pai.
Sem dúvida alguma, quando escrevi que o meu príncipe se dirigia a João
Sem Medo nestes termos:
«– Talvez tenhas razão. Mas ouve primeiro o que te vou contar e dize-me
depois sinceramente se poderia proceder doutro modo...»
... estava com certeza a modernizar o ritmo da lição do meu velho
Telémaco – aprendida em trechos deste sabor:
«A relação das minhas desgraças é assaz extensa, lhe respondeu
Telémaco. Não, não, lhe replicou Calipso, já estou impaciente por sabê-las;
dá-te pressa em mas contar; e tanto o importunou que ele não pôde
escusar-se, e falou deste modo:», etc.
Esta forma narrativa deparou-se-me depois dezenas de vezes durante a
minha longa história de devorador adolescente de livros inesquecíveis (os
romances filosóficos de Voltaire, as Novelas Exemplares de Cervantes,
etc.). Não admira pois que, quando me lancei na empreitada apaixonante
do João Sem Medo, logo resvalasse, despreconcebido, para esse toque
antigo, actualizando-o embora, para lhe sugerir um estilo oral, tão de
acordo com o tom popular da obra.
Entretanto a minha comadre Ofélia que, a meu rogo, aprazara com o
fraque sorridente do Sr. Anahory não sei que contrato para ilustrar as
façanhas do meu herói, via-se aflita para me apanhar os elementos
necessários para os desenhos.
Nos primeiros dias da semana instava implorativa, mas eu só me deixava
impressionar pelas súplicas quando já não podia adiar mais. Dignava-me
então informá-la, apesar de não saber ainda com segurança o que iria
escrever nessa mesma noite. «Olhe, desenhe um animal com pescoço de
bicho-da-seda, asas de zinco ondulado, rodas em vez de pés e uma
cadeirinha no dorso com o João Sem Medo bem instalado na ave.» Em
suma: a primeira ideia que me vinha à cabeça. E a pobre não tinha outro
remédio senão improvisar sem possibilidade de apuros vagarosos. Tudo a
correr, com agilidade de haver asas na juventude.
Então, para vingar, a Ofélia imaginou esta represália atroz: ignorar a
minha resolução de não atribuir idade definida ao aventureiro de Chora-
Que-Logo-Bebes e desenhar, de propósito para minha arrelia, um menino
burguês de colarinho à bebé, muito fino, muito composto, todo brunido,
com botinas janotas de atacadores bem apertados e peúgas menineiras. Um
anti-herói completo.
E assim, de tropeço em tropeço, de pesadelo em pesadelo, ao fim de dois
anos de alinhar palavras chegámos ao 26.º episódio, justamente quando,
pescado por um navio pirata, João Sem Medo, transformado em peixe, ia
ser cozido num imenso caldeirão de azeite a ferver. Coitado! O que ele se
debatia e protestava para provar que era homem. Debalde! O piratão
esfomeado não se comovia. Quando correram a dar-lhe a notícia
fenomenal de que o peixe falava como uma espécie de papagaio marítimo,
exclamou guloso:
– Eu não sou nenhum ictiólogo. (O pirata sabia palavras difíceis.) Quer
fale ou não fale, come-se. Sou um lobo do mar e tenho fome. Como tudo.
Neste em meio, o Eduardo Chianca de Garcia pediu-me que
acompanhasse o Cotinelli Telmo na filmagem de A Canção de Lisboa.
Aceitei logo, cúmplice – o que me abriu um mundo novo que, aliás para
nada me serviu, pois nunca me iludi em supor que o cinema pudesse
tornar-se uma linguagem possível de expressão pessoal minha e
(in)transmissível. (E bastantes esforços fizeram várias pessoas para me
persuadir a realizar filmes!)
Resultado: interrompi as aventuras do futuro fabricante de lenços e o
pobrezinho lá ficou imobilizado nas páginas d’O Senhor Doutor com os
pulmões substituídos por guelras, graças a uma operação sapientíssima do
Dr. Peixe-Serra, cirurgião do Hospital de Neptuno erguido numa cidade
com Avenidas de Algas e Palácios de Coral no fundo do Oceano.
Durante 30 anos dormiu o seu destino incompleto. Mas não em sossego.
Porque alguns talentos de comércio arteiro, encontrando aquela mina
abandonada e sem dono visível, entraram por ali dentro e rapinaram o que
puderam, sem nojo de si mesmos e de veniagas indignas. Chegaram mesmo
a publicar em folhetos alguns dos episódios sob outros nomes que não o do
venerável Avô do Cachimbo. Autênticos roubos que – porque não hei-de
confessar? – me desvaneceram por sentir que os gatunos pensavam que se
apoderavam de produções populares. Além disso, sempre gostei de que
vivessem à custa da minha imaginação. (Os meus editores é que não
gostam e estão dispostos a reprimir qualquer abuso semelhante.)
Esse sono cataléptico do peixe-papagaio que, conforme a interpretação
da Ofélia, continuava a usar o colarinho à bebé do João Sem Medo, só
findou decorridos trinta anos quando entrou em cena o meu querido
camarada Carlos de Oliveira, a quem já devia o incitamento para a
coordenação das vagabundagens de O Mundo dos Outros. Em certa
ocasião, não me recordo em que circunstância, falei ao grande Poeta dos
meus folhetins d’O Senhor Doutor e ele manifestou interesse em lê-los. Ou
– o que suponho mais possível – impingi-lhos, explorando a sua
benevolência de amigo verdadeiro.
A opinião do Carlos incitou-me a pegar nessa matéria-prima e a
trabalhá-la, esforçando-me por lhe conservar toda a frescura de improviso
dos 30 anos – aquela mistura dos meus dois retratos do Fred e da Ofélia: o
dos «passarinhos» e do «lobo».
Comecei por fazer nascer o João Sem Medo em Chora-Que-Logo-Bebes
que se ajustava à paisagem d’A Aldeia dos Choramingas, o meu primeiro
conto para O Senhor Doutor. Aliás, relendo-o agora, mesmo desatento,
verifico que esse improviso de café não passava de uma biografia resumida
do meu futuro João Sem Medo de 1963 que, farto de viver numa terreola
onde as gentes e as coisas choramingavam de manhã até à noite, resolvera
evadir-se em busca de novas asas com outros horizontes. Afinal, após
várias provas terríveis de desalento e desgosto, o meu não-herói cínico
acabava por regressar à Pátria, e vendo que a choraminguice se mantinha,
infatigável, não esteve com meias-medidas: montou uma fábrica de lenços e
enriqueceu.
Na versão que publiquei do livro no ano de 1963 não aproveitei todos os
episódios de 1933. Mas nada, ou pouco, inventei de novo. Apenas dei um
sentido diferente à criação de João Sem Medo n.º 2. E quando ao desfecho,
ali estava há 30 anos à espera n’A Aldeia dos Choramingas. Embora nem
por um momento duvidasse que se tratava de um livro que só dificilmente
seria aceite no nosso país, pelo seu tom híbrido [todos os meus livros de
prosa são (in)felizmente híbridos].
Mas neste, a ambiguidade excedia a trapalhada difusa habitual. Porque,
além da mescla de romance popular e de panfleto mágico, muitos iriam
considerá-lo uma sátira à casca de certos aspectos do ambiente pátrio,
outros descobrir-lhe-iam talvez acentos menos restritos (como, por
exemplo, a filosofia de que o Tédio, ou mais portuguesmente a Chatice
impera, dominadora e total, na vida do século xx do nosso planeta) e todos
por fim embarcariam na confusão, até certo ponto legítima, de esta história
parecer exclusivamente destinada a crianças (que só lhe poderão entender
a superfície). Visão pitosga, em suma, mas inevitável.
Resumindo: o livro publicou-se e, como de costume, houve quem o
aplaudisse com exagero e quem o desdenhasse como o lixo dos lixos.
Enquanto eu, fiel ao meu velho hábito de espectador aparentemente neutro,
me limitava a assistir à contenda surda, embora tendesse a aceitar as
opiniões restritivas como as mais próximas da verdade.
Mas o que ninguém conseguiu nem conseguirá anular, garanto-vos, é a
alegria encantada com que criei o meu João Sem Medo, afinal um
pequeno-burguês gabarola que se ilude de não parecer covarde. E o
sentimento de liberdade feliz com que senti correr a pena no papel, mesmo
quando a constrangia a não cair no sentimentalismo moralizante. Ou o
prazer com que ainda hoje me recreio com algumas páginas deste
divertimento pícaro, sempre esperançado que o meu gozo, suspeito de
vaidade efémera, contagie os leitores mais relapsos e os convença a lerem
esta saga de contestação mansa, vencendo o preconceito de nela entrarem
gigantes, fadas e bruxas.
Bruxas? Não existem – dirão os senhores peremptórios, naturalistas e
suficientes.
Pois não.
Mas a caça às bruxas, isso afirmo-vos eu que há.
Lisboa – 1973

1 «Para nós a intuição é a inteligência rápida… » António Sérgio – Obras de Antero de Quental –
Sonetos. Edição de 1943 – pág. 68.

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