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É PROIBIDA A ENTRADA
A QUEM NÃO ANDAR
ESPANTADO DE EXISTIR
Palavras não eram ditas, João Sem Medo sentiu de súbito a carne
converter-se numa matéria mais áspera e o sangue a correr de forma
diferente nas veias.
Quis fazer um gesto. Impossível. Baixar as mãos. Não pôde.
Experimentou dar um passo. Em vão. Era como se o prendessem à terra
garras de âncora.
Mas só quando um pardal lhe veio construir o ninho nos braços é que
João Sem Medo compreendeu com espanto que estava metamorfoseado em
árvore.
III
A colina de cristal
Tró-ló-ló, tró-ló-lé!
Foge pela chaminé.
CAVALARIÇA SAGRADA
Enquanto João Sem Medo, desfeito em fonte, corria nas areias do deserto,
as fadas reunidas em Assembleia Geral no Sindicato (em segunda
convocação, claro, com dúzia e meia de presenças) deliberavam e discutiam
o destino a dar ao rapaz.
Uma – a Fada da Má Catadura – não reprimia o desejo de eternizá-lo em
fonte, a jorrar água pelos tempos fora, embora propusesse que o
transferissem para a Aldeia do Vale – Ah! tão poética e tão porca! – cuja
população há anos requeria à Câmara um fontanário público para lavar a
cara.
A Fada Branda, que tomou a palavra em segundo lugar, concordou em
princípio com a ideia da Fonte Perpétua, com a condição, contudo, de que a
água fosse milagrosa.
– Sempre era outro consolo! – dizia.
A Fada do Fogo Apagado abundou nas considerações da oradora
antecedente. E, por fim, a Fada com Lume na Bola, ouvidos mil disparates e
inumeráveis hipóteses absurdas, ergueu-se e perorou assim, de dedo no ar:
– Camaradas: não macemos mais esse desgraçado. Já lhe pregámos moral
em demasia e o sujeitámos a incríveis provas de mau gosto e tormento.
Acabemos com a perseguição, mais inútil do que odiosa, e deixemo-lo para
sempre em paz e às moscas.
Chegou aos lábios o copo de água para marcar bem a pausa e rematou:
– Nesse sentido vou mandar para a mesa a seguinte proposta para que
requeiro dispensa de regimento: 1.º – proponho que a Fonte do Deserto
volte à forma anterior de João Sem Medo com a mesma cabeça, o mesmo
tronco e os mesmos membros; 2.º – que lhe reconheçamos o direito de viver
em liberdade plena, longe da nossa vigilância e das nossas artes mágicas –
bastante cediças, aliás, e necessitadas de reformas urgentes.
Nessa altura, a Assembleia em fúria repeliu com veemência as boas
razões da Fada com Lume na Bola. Aprovou, não obstante o mau humor de
algumas oponentes, a primeira parte da proposta, o regresso à configuração
humana de João Sem Medo. Mas quanto ao resto, reagiu com apupos e
rugidos de cólera discordantes.
– Nascemos para fazer partidas aos mortais. É a nossa profissão. Não
somos nenhumas vadias – conclamaram. – Fora! Fora a traidora! Abaixo as
reformas! Viva a varinha de condão!
Este tumulto de berros, uivos e apartes furiosos, acompanhados de copos
de água bebidos pelas oradoras febris, prolongou-se pela noite dentro. O
acordo conseguiu-se, por cansaço, quase ao raiar do sol, quando, por
maioria sonolenta, votaram de mãos levantadas que se mandasse o rapaz
para a Sala Sem Portas, confiado ao zelo atento da Fada do Sonho.
Esta, uma novata inexperiente recém-saída da Universidade Mágica,
pareceu ficar enervada ante a iminência daquela iniciação de tanta
responsabilidade. E tartamudeou, indecisa:
– Mas que querem que eu lhe faça?
– O que te apetecer, filha – aconselhou uma colega velhota de corneta
acústica sempre na direcção indevida –, contanto que cumpras o
Regulamento. Nunca faltes ao Regulamento...
Mas despontava a manhã e a fada que presidia à Assembleia declarou
encerrada a sessão. Fazia frio e todas, com prazer notório, recolheram aos
palácios respectivos para se ocuparem das tarefas usuais das donas de casa
que nas fadas, como se sabe, consistem em pouca coisa: encerar as varinhas
e guardá-las nos sacos de camurça, puxar o lustre às estrelas dos cabelos e
recostarem-se nos coxins de seda para bordarem, com fios de prata e
agulhas de ouro, longas tapeçarias encantadas...
Uma vez sozinha, a Fada do Sonho estoirou, rabiosa: – Que diabo hei-de
fazer àquele maldito? Nunca senti a imaginação tão seca como hoje.
E, a sacudir-se de mau humor, dirigiu-se ao Armazém dos Bruxedos onde
o João Sem Medo se encontrava partido aos bocados, um dedo ali, um
braço acolá, a perna direita dependurada na trave do tecto, à laia de
presunto, a esquerda num baú roído pelo bicho e a cabeça envolta em liaças
num cesto de vindima.
Com paciência suspirosa reuniu, o melhor que pôde, todos os pedaços do
corpo, transportou-os para a Sala Sem Portas, colou-os muito bem colados,
desenhou no ar duas ou três sinalefas, reaprendidas nervosamente no
Epítome da Perfeita Fada, e inclinou-se sobre o rapaz, à espera, céptica...
Teria executado com o rigor necessário as instruções secretas do
Regulamento?
– Vá, respira, João Sem Medo. Respira.
E manteve-se neste frenesi até que João Sem Medo de facto respirou.
Não havia dúvidas: o peito subia e descia num ritmo doce e certo.
Respirava. Que bom! Palpou-lhe o pulso: o coração também já trabalhava.
(Tró-ló-ló-ló, cantarolou a fada, radiante.)
Segundos depois, o rapaz abria o olho direito. A seguir, o esquerdo. Por
último, espirrou. E daí a minutos estava no centro da sala, lépido e,
venturoso, a levantar e a baixar os braços em exercício de ginástica
respiratória. Ah!, que felicidade ser homem. E respirar. E ouvir bater o
coração... Tró-ló-ló-ló-lá... Tró-ló-ló-ló-ló-lá-lé! ...
No meio desta alegria turbulenta de se saber ressuscitado, não se
esqueceu da fada. Lançou-lhe um olhar de ternura agradecida.
– Foste tu que me soldaste?
– Fui.
– Obrigado, sim?
E finda a ginástica:
– Agora queres ter a gentileza de me indicar a porta desta Sala Sem
Portas? Já sinto saudades da vida.
– A porta da Quarta Dimensão?
– Sim.
– Não posso.
– Como? Não podes? Porquê?
A fada desculpou-se com o Regulamento:
– Bem vês: em conformidade com o artigo 2457, a Assembleia Geral
encarregou-me de te consolar dos maus tratos por que passaste...
– Ah!, sim?... Que enternecedor!... – escarneceu João Sem Medo. – E
quem és tu para me consolares?
– Sou a Fada do Sonho, uma tua criada – apresentou-se a principiante
com o toquezinho mágico do Ritual no sorriso.
E só nesse instante lhe acudiu ao espírito a ideia de aplicar a João Sem
Medo a doutrina prevista no parágrafo 110.º do art.º 2368 que recomenda o
emprego da
sedução como método de dominar os mortais, neste caso concreto
consistente no seguinte: deslumbrar a vítima com a possibilidade de realizar
sonhos à primeira vista irrealizáveis.
– Sim, a Fada do Sonho – repetiu. – Às tuas ordens para tornar real o
mínimo desejo teu.
– O mínimo desejo meu?... Estás a falar a sério? – Sim. Juro.
E o pateta do João Sem Medo caiu na arara com a cabeça a malucar
ambições e anseios mirabolantes:
– Posso pedir tudo?
– Tudo. Com uma condição, claro... Cada desejo realizado não poderá
exceder os cinco minutos legais.
– Cinco minutos? – achou pouco João Sem Medo. – Vá, não sejas foca,
prolonga o prazo.
– Impossível! Não tenho competência para mais. É do Regulamento –
escusou-se a fada.
O rapaz encolheu-se, abatido. Mas depressa reagiu com os olhos a
brilharem de cupidez desabusada:
– Vá, menina. Passa-me um cheque de quatrocentos biliões de libras
multiplicadas por um bilião de biliões.
Rapidamente, um braço invisível entregou-lhe o cheque e, durante cinco
minutos, o Ultramilionário passeou pela Sala Sem Portas a gabar-se: «Não
há ninguém mais rico no mundo. Sou riquíssimo. Sou podre de rico. Cheiro
mal de rico.»
Ao fim de cinco minutos rasgou o cheque em pedacinhos e formulou este
desejo mais modesto:
– Troca-me a orelha direita por uma orelha de burro e a esquerda por uma
asa de andorinha.
A fada assim o fez. E João Sem Medo correu a mirar-se ao espelho
(existem sempre muitos espelhos nas Salas Sem Portas).
– Com uma tromba de elefante talvez ficasse mais giro – propôs depois
de se estudar com atenção.
Ainda mal pronunciara esta frase e já João Sem Medo ostentava, em vez
de nariz, uma trombinha cor-de-rosa.
Mas depressa se enfastiou daquela fantasia idiota e regressou ao estado
normal.
– Agora gostaria de ver a minha figura com uma árvore azul plantada na
cabeça – declarou. – Uma árvore com luas nos ramos.
A fada não estava ali para outra coisa. Ameigou-lhe os cabelos e a árvore
nasceu logo toda coberta de luazinhas de várias cores...
Mas em breve se aborreceu dela. E por desfastio, como quem devaneia ao
acaso, entreteve-se com estas invenções mais ou menos estapafúrdias:
transformou a cabeça em esfera armilar, fez crescer asas de borboletas nas
orelhas, enfeitou os dedos de bandeirinhas, etc., etc.
Por fim suspendeu estes prodígios, preocupado, a monologar:
– Tenho de aproveitar a ocasião para ser tudo. Mas o quê? O quê?
Pensou, repensou e acabou por se fixar neste pedido:
– Proclama-me Rei absoluto.
– Pronto – aquiesceu a fada depois de fazer as gaifonas do Cerimonial
prescritas no Epítome da Perfeita Fada.
– Sou Rei? Garantes que sou o Rei absoluto do Reino de Coisa
Nenhuma?
– Sim, Majestade – assegurou-lhe a fada. – O Rei mais absoluto que se
conhece. Ordenai e os vossos súbditos obedecerão cegamente de joelhos em
terra.
– Bem... – clamou João Sem Medo muito ancho do seu império. – Nós,
João Sem Medo I, Rei absoluto de Coisa Nenhuma, ordenamos que
extraiam as barrigas e os estômagos aos nossos fiéis súbditos e cortesãos.
– Fostes pressurosamente obedecido – comunicou-lhe a fada. – A esta
hora, nos vastos domínios de Vossa Majestade não se encontra nenhum ser
humano com a blasfémia de um estômago. Se algum fosse surpreendido em
flagrante delito de possuir esta miserável víscera, seria enjaulado como réu
de crime de lesa-majestade e alta traição. Mas permiti que vos faça uma
pergunta, Majestade... Porque destes essa ordem genial?
– Para solucionar de uma vez para sempre a crise económica... De hoje
em diante só há uma pessoa que come no meu reino: eu.
Divagou algum tempo pela Sala, imerso em cogitações profundas, e
depois imobilizou-se diante do espelho como que fascinado com os
movimentos da boca a modelar palavras.
– Quantos minutos faltam para terminar o meu reinado? – perguntou.
– Três minutos e vinte segundos, Majestade.
– Bem. Preciso de aproveitar o tempo. Antes de mais nada põe-me uma
coroa na cabeça e mete-me um ceptro na mão. Farda-me de rei.
Num abrir e fechar de olhos, mãos invisíveis enfiaram-lhe nas pernas
meias de seda até aos joelhos e calções de veludo; calçaram-lhe nos pés
sapatos com fivelas de platina; prenderam-lhe nas costas o manto real
constelado de pérolas e rubis, equilibraram-lhe a coroa na cabeça e
introduziram-lhe o ceptro na mão...
E então a voz firme de João Sem Medo legislou:
– Agora manda cortar a cabeça a todos os meus vassalos. O único que
tem direito de pensar, sou eu. Mais ninguém. De hoje em diante os
habitantes do meu Império passam a usar bolas de sabão em cima dos
pescoços. E fica revogada a legislação em contrário.
– Pronto, Real Senhor – anuiu a fada. – Só Vossa Majestade tem cabeça.
Nos minutozinhos que restavam, o tirano-em-sonhos provocou
terremotos, destruiu a Lua com a bomba atómica, ergueu uma cidade em
Marte, criou as Ordens da Cabeça Decepada e do Estômago Desaparecido,
organizou um safari às borboletas com zarabatanas de cristal e declarou
guerra à Rússia. E para gastar os últimos segundos dispunha-se a enviar um
ultimato à América do Norte (ou põem um pele-vermelha na presidência ou
mando escalpar todos os americanos!), quando a fada o susteve, de relógio
em punho:
– Era bom, mas acabou-se. Sumiu-se o Reino. Passaram os cinco
minutos.
– Ainda bem – bufou João Sem Medo, aliviado. – Confesso que já não
sabia o que havia de decretar. Decididamente não nasci com vocação para
Rei. O meu ideal é outro: a santidade. Andar, pobrezinho, de terra em terra,
com sandálias e bordão, a ressuscitar os mortos, a sarar os leprosos, a
multiplicar o pão escasso dos famintos... É possível?
– Ora essa! Não há nada mais fácil.
E com um sopro da Fada do Sonho insuflou em João Sem Medo todas as
virtudes dos taumaturgos.
– E agora?! Que milagre hei-de fazer?... – vacilou, irresoluto.
– Sei lá! Isso é contigo.
Mas João Sem Medo, exausto e sonâmbulo, por mais que estimulasse a
imaginação não conseguia atinar com um milagre que o satisfizesse. Só lhe
vinham à cabeça ideias derisórias, desconexas, imbecis.
Sentia-se fatigado de tanta ilusão morta. Principiava a abominar a Fada
do Sonho que o mantinha ali preso naquela Sala Sem Portas com paredes de
espelho e chão de cinzas – longe da vida, do sol, do céu e das estrelas.
Acabou por fazer um milagre frouxo, um milagre indecente: obrigou a
voar um chapéu de palha com asas de arco-íris...
E quedou-se a olhar para o chapéu, com ar apoucado, mazombo, mãos a
abanar, palerma...
– E agora? – perguntou a fada.
– É verdade: e agora? Francamente não sei – disse João Sem Medo com
aversão mole. – Espera. Dá-me um gato. Mas original, hem? Com vinte
patas e uma pena de avestruz na cauda em forma de ponto de interrogação.
Mas mal o gato-centopeia miou pachorrento, o rapaz pespegou-lhe um
pontapé, entediado. E então engendrou vários bichos fantásticos. Teve um
canário riscado de listas azuis, com barbatanas de goraz, um burro de
chifres com duas mãozinhas nas pontas, um crocodilo de patins, um tigre de
cota de ma lha, um leão de rabo de abanador, um cavalo com cabeça de
alumínio e cinco pernas (uma sobressalente no sítio da cauda), etc., etc.: um
autêntico jardim zoológico engenhado por um louco.
Por fim, quando a Fada do Sonho repetiu a pergunta fatal: «E agora que
mais há-de ser?», João Sem Medo rebentou de indignação torva:
– E agora? Sei lá? Já estou farto de tanto sonho inútil, de tanta invenção
fora da realidade. Estou farto de ser Rei, de ser Santo e de salvar o mundo,
aqui nesta Sala Sem Portas, a olhar para ti... Sabes o que quero? Que me
tires desta prisão, imediatamente. Quero a realidade, o «todos os dias», o
cafezinho com leite, o jornal da manhã, os encontrões no metropolitano, os
calos pisados, as pragas dos homens, a flexibilidade das mulheres, as
multidões aos gritos, as ruas, as fábricas, os escritórios, o jogo do xadrez,
«sua besta, não me mace!» – a vida, em suma.
– Posso dar-te isso tudo, mas só por cinco minutos – replicou-lhe a fada,
imperturbável.
E como João Sem Medo resmungasse recalcitrante, acrescentou com voz
de filosofia barata:
– Sim... Cinco minutos. Que é a vida senão cinco minutos?
Esta frase ainda mais irritou João Sem Medo que se sentou a um canto,
amuado, a mergulhar as mãos lívidas nas cinzas do solo e a espalhá-las
pelos cabelos...
– Então, não te resolves? – instou a fada.
– Foge da minha vista! – encolerizou-se o rapaz desabrido. – Deixa-me
em paz.
– Pois seja feita a tua vontade!... – assentiu a fada com o tal sorriso
tocado de feitiçaria. – Cumpra-se o Regulamento. Queres que me vá
embora? Óptimo. Abre a boca, vá.
– Para quê? – surpreendeu-se João Sem Medo. – Para me retirar... Para ir
para casa.
– E para isso é preciso que eu abra a boca? Estranho costume!... Onde
moras?
A fada sorriu e, com uma vénia à francesa, instruiu-o: – Dentro de ti.
– Dentro de mim? Estás zaruca?
– Sim, dentro de ti. De hoje em diante vou dormir, ressonar, comer, tudo,
dentro de ti... Vá, abre a boca depressa! Senão ver-me-ei coagida a
empregar os meios enérgicos enumerados no Regulamento.
– Quer dizer, então, que nunca mais andarei sozinho durante o resto da
vida?
– Descansa que não te maço – tranquilizou-o a fada. – Só aparecerei
quando chamares por mim.
– Eu? Nunca! – garantiu-lhe João Sem Medo.
– Pois sim. Todos dizem o mesmo. Mas quando chegam a casa tristonhos,
secos, desiludidos, acossados de viver num mundo álgido e inclemente,
chamam logo por nós. Contigo há-de acontecer o mesmo. Ainda hei-de
ajudar-te muitas vezes a ser Rei absoluto, ouviste?... E agora, abre a
boquinha.
– Pois seja – conformou-se João Sem Medo, convencido de que não valia
a pena resistir mais.
E escancarou a boca – num bocejo enorme...
Nesse mesmo instante a fada deu um salto e desapareceu-lhe nas goelas...
... Enquanto João Sem Medo comentava com um motejo tonto:
– Fada do Sonho? Porque não lhe chamaram antes Fada Bicha-Solitária?
VII
A cidade da confusão
Assim que João Sem Medo entrou no comboio de asas nas rodas, o
condutor-andróide de metal branco, num ranger de gestos mecânicos,
levou-o ao colo até ao respectivo compartimento, em que duas mãos
metálicas, desprendidas do chão, logo o amarraram a uma cadeira, aliás
bastante cómoda e fofa.
E, enquanto seguia no quadrado da televisão o desenrolar do panorama
exterior de nuvens, horizontes e montanhas, mergulhou na meditação
sonolenta dos seus problemas.
Para onde se dirigia o comboio?
No bilhete que segurava na mão lia-se esta palavra: Muro – exactamente
o destino que fornecera à menina da bilheteira depois de esta lhe comunicar
que não existiam ligações ferroviárias directas com Chora-Que-Logo-
Bebes.
– Só temos transportes para as povoações do Parque de Reserva... –
avisou a empregada.
– Então venda-me uma passagem para o sítio mais próximo de Muro, na
direcção de Chora-Que-Logo-Bebes – resignou-se o aventureiro.
A pequena entregou-lhe o bilhete e aí ia ele agora, ansioso de se libertar
do comboio, porventura bom para gente de carne mágica mas péssimo para
um choraquelogobebense de gema, habituado ao convívio intenso e
humano, embora reles, de queixumes e intrigas com os vizinhos. Que diabo
de comboio aquele em que nem sequer havia uma viajante de carne e osso
para a conversa!
– Ainda estarei muito distante do Muro? – suspirou por fim em voz alta,
malsofrido e irrequieto.
Imediatamente na parede da frente, por cima da televisão, entreabriu-se
uma boca de lábios finos que pronunciou com doçura as seguintes palavras:
– Estás longe e estás perto!
A parede voltou ao estado anterior e João Sem Medo calou-se a remoer
aquela frase ambígua.
Mais uns segundos de viagem (segundos? minutos? horas? anos?) e João
Sem Medo tornou a atirar a pergunta para o Ar:
– Ainda estarei muito distante do Muro?
Outra boca, esta agora enorme e de polpa humana, cor de fogo, rasgou o
tecto e bradou num trovão:
– Estás longe e estás perto!
No mesmo instante (talvez para lhe castigarem a curiosidade impaciente)
reapareceram as mãos metálicas que premiram o botão e ejectaram no
espaço a cadeira de João Sem Medo que, na descida, se abriu numa espécie
de pára-quedas formado por mais de cem asinhas de pássaros a ruflarem na
manhã de oiro-vivo.
E assim João Sem Medo foi suavemente depositado no solo verde do
Grão-Principado de Qualquer Coisa coberto de pomares extensos pesados
de flores e de frutos.
Lavou a cara na primeira fonte que ouviu gorgolejar nas pedras e, durante
algumas horas, percorreu quilómetros e quilómetros de trilhos de pó e céu
azul através de aldeias mortas sem que se lhe deparasse um vulto humano.
Mais tarde a natureza mudou de aspecto, visão crespa de plantas rasteiras,
pedregulhos, tapetes de musgo, líquenes, rochas e lagartos que, às súbitas,
cortavam as veredas para se abrigarem nas luras.
Mas homens, nem um.
A solidão era tal que João Sem Medo chegou a lançar a hipótese da fuga
de todos os habitantes da superfície da Terra.
Só quase ao anoitecer lobrigou à beira da estrada, que atravessava a
Floresta Branca, um senhor de sombra carrancuda e melancólica que
descansava no tronco de uma árvore abatida.
– Vem cá que não te faço mal – gesticulou para João Sem Medo, com ar
protector.
– E porque havias de me fazer mal? – reagiu o rapaz chocado com tanta
impertinência.
– Não sabes que dia é hoje?
– Sei. É domingo – respondeu João Sem Medo, a desconfiar das palavras
que proferia.
– Sim, é domingo. E então? Isso não te diz nada? – volveu, enigmático, o
senhor triste.
– Ouve – redarguiu o choraquelogobebense: – previno-te de que não sou
bruxo nem conheço os costumes desta terra, em virtude da minha qualidade
de estrangeiro. Portanto, explica-te.
– Ah!, és estrangeiro? Então não admira que não saibas – apressou-se o
desconhecido a desculpá-lo.
O rumorejo mais impetuoso do vento nos ramos proporcionou uma pausa
breve que João Sem Medo aproveitou para se apoderar do comando
voluptuoso das palavras:
– E tu quem és?
– Eu? Não adivinhas? Não descobres? Não sabes? – Confesso que não.
– Vamos! Puxa pela cabeça. Quando se anda durante horas e horas sem
encontrar ninguém e se avista, por fim, um homem sentado num tronco de
árvore, quem é esse homem?
– Não sei, já disse. – E João Sem Medo encolheu os ombros com
preguiça de perder tempo a decifrar mistérios sem importância que não
tardariam a ser-lhe explicados.
– Sou um príncipe! Quem querias tu que eu fosse senão um príncipe? –
exclamou com a alegria soturna de quem desvela mistérios evidentes.
– Um príncipe?
– Pois claro, um príncipe. O infalível príncipe. O príncipe que foi à caça
e, fatigado de correr atrás das lebres e dos veados, se apeou do corcel, para
se sentar à beira do caminho a reflectir nos negócios do reino.
João Sem Medo examinou-o com atenção. Que se tratava de um príncipe
parecia fora de dúvida. Indicava-o a vestimenta e os pertences tradicionais
desses heróis de contos de fadas: o gorro com a peninha da ordem, calções
de veludo verde, meias de seda, sapatos de fivela de prata, capinha, luvas
com punhos arrendados e punhal na cintura. Divergia apenas um pormenor:
ao invés dos príncipes encantados, ou com outras predestinações mágicas,
em geral elegantes, belos e loiros, aquele infundia pavor. Além de possuir
um focinho horrendamente vermelho e achatado, ostentava duas
compridíssimas orelhas de burro.
– Estimo muito em travar conhecimento com Vossa Alteza – saudava-o
entretanto João Sem Medo a vergar-se todo numa contumélia de hipocrisia
irónica. – E espero que me explique agora o mistério dos domingos...
– Oh!, não tem importância... Referia-me à Lei que proíbe os meus
súbditos de saírem de casa aos domingos.
– Quê? Vossa Alteza obriga-os a trabalhar aos domingos e a passear nos
dias úteis?
– Não. Que ideia!... É que ao domingo costumo ir à caça. E não gosto
nem quero que os meus vassalos me vejam.
– Desculpe, Alteza, mas não compreendo as vantagens dessa sua
resolução – expôs João Sem Medo. – Assim arrisca-se a perder a
popularidade.
O príncipe sorriu com a complacência branda de quem só aceita
conselhos por considerá-los inúteis.
– Talvez tenhas razão. Mas ouve primeiro o que te vou contar e dize-me
depois sinceramente se poderia proceder de outro modo.
João Sem Medo, guloso de histórias, nem esperou por cerimónia que o
príncipe instasse mais. Com uma reverência rápida instalou-se logo no
tronco ao lado de Sua Alteza Orelhuda que, enquanto a penumbra pintava
de pardo o azul do céu, encetou assim a narrativa:
– Como já reparaste, sou muito belo.
– Hã? – E João Sem Medo enrugou-se todo.
– Sim, sou muito belo. Tenho a pele branca como neve humana, o nariz
quase grego, dois olhos onde o céu azul desceu para passear pelo mundo
(como escreveu um dos nossos maiores poetas a meu respeito) e, sobretudo,
um par de orelhas minúsculas, encantadoras, dignas da estátua de Adónis.
Achas esta descrição exagerada?
– Oh! Alteza... – balbuciou João Sem Medo confundido.
– Eu não acho. Quando me admiro ao espelho, caio em êxtase,
deslumbrado comigo mesmo. E todas as manhãs agradeço à Natureza o ter-
me criado assim tão belo, tão perfeito e tão formoso.
O rapaz, sem coragem para o desmentir, embaraçou-se nas palavras:
– Mas... que tem isso... sim... com a proibição... Sim... dos domingos?
– Tem tudo... Não imaginas as perturbações sociais que a minha beleza
causava na população. Mal me viam, as mulheres desmaiavam de prazer
puro. As raparigas corriam apaixonadas atrás de mim a chamarem-me deus
e a coroarem-me de rosas. A minha passagem assinalava-se sempre por um
rasto de discussões febris em que fervilhavam os duelos e as cenas de soco.
Formavam-se partidos. Dum lado, os que proclamavam a suprema beleza
da harmonia das minhas feições; do outro, os idólatras da altivez olímpica
do meu porte. Os estetas afirmavam em uníssono que o meu melhor
bocadinho era o nariz. Já os psicólogos apostavam no queixo que, conforme
garantiam, denotava uma força de carácter sobre-humano. A unanimidade
de louvores incidia apenas num único ponto indiscutível: as orelhas, tidas
por todos como duas autênticas obras-primas ímpares no mundo!
– Não há dúvida – apoiou João Sem Medo com malícia concordante.
– De maneira que, para evitar essas manifestações, não tive outro remédio
senão promulgar, embora com mágoa, essa tal ordenação proibitiva que
logo suscitou um movimento geral de tristeza e protestos no meu reino. Ao
mesmo tempo, para mitigar esse agravo e precaver-me contra qualquer
possível revolução de desespero, mandei construir nas principais cidades do
país várias estátuas a mim mesmo, duas das quais equestres. Escusado será
dizer que em redor desses monumentos formiga uma constante multidão
entusiástica e veemente que continua a desmaiar de dia e de noite. De tal
sorte que o Conselheiro da Higiene instituiu um serviço de ambulâncias
especiais destinadas a transportar os meus fiéis histéricos para os hospitais
de emergência montados nas praças públicas...
Neste momento um melro assobiou numa árvore próxima e o príncipe
interrompeu-se para o escutar deleitado. Mas a breve termo retomou a
narração com a voz cada vez mais grave:
– O extraordinário, como já te disse, é o facto de cada pessoa do meu
reino me ver de maneira diferente. Tive ocasião de confirmar isso quando
resolvi oferecer as tais estátuas de consolação ao meu amado povo. Nessa
altura chamei ao palácio vinte escultores e ordenei-lhes: «Modelem-me.
Copiem para o barro, para o mármore e para o bronze, as estupendas formas
do meu corpo e as minhas feições divinas. Não inventem nem pretendam
tornar-me mais belo do que sou. É impossível, como sabem. Limitem-se
portanto a reproduzir com fidelidade o que os vossos olhos virem e mais
nada.»
– E então? – perguntou o rapaz, contemplando de novo com insistência o
horroroso focinho, os olhos remelados e as tremebundas orelhas de asno do
príncipe.
– Então sucedeu esta coisa incrível: dez dos escultores apresentaram-me
dez estátuas, na verdade belas, mas sem qualquer parecença comigo. Os dez
restantes... nem sei como te conte... ousaram pôr diante dos meus reais
olhos dez figuras monstruosas, indignas, repelentes, falsas... Ao ver aqueles
mostrengos revoltei-me, indignado: – «Pois eu sou assim?» – «É, sim,
Alteza.» – «Estão doidos. Não pode ser. É impossível. Miro-me todos os
dias ao espelho e conheço-me bem. Sou belo. Segundo as últimas
estatísticas provoco 650 000 desmaios por semana. Compreendem? Sou
belo por definição, percebem?»
– E essas estátuas monstruosas assemelhavam-se entre si? – inquiriu João
Sem Medo com curiosidade.
– Isso sim? Todas diferentes. Numa, o nariz lembrava um bico de águia.
Noutra, um pimenteiro. Noutra ainda uma beterraba. E assim
sucessivamente... Uma divergência total. Só as minhas célebres orelhas,
pequeninas, elegantes e minúsculas tinham sido fielmente reproduzidas por
todos os escultores.
– É extraordinário – comentou João Sem Medo, a olhar mais uma vez
para as incontestáveis orelhas de burro do príncipe.
– Sim, é verdadeiramente extraordinário. Tão extraordinário que o Juiz da
Balança Alta do meu Reino (que sou eu, claro) não se coibiu de meter na
cadeia esses mesquinhos escultores acusados da iniquidade inaudita de não
terem olhos na cara para me verem como deviam. E convoquei outros.
– Que acertaram logo, não? – interessou-se muito João Sem Medo.
– Qual! A mesma história. Não conseguiram aproximar-se do meu tipo
divino. Ficaram todos aquém. E a maioria cometeu a audácia de modelar
focinhos de leitão, em lugar de nariz, moncos de peru para substituírem o
queixo, etc. Uma série infinita de crimes de lesa-majestade que foram
imediatamente castigados como mereciam.
– Depois...
– Depois, para solucionar o problema, reuni o ministério e decretei que
todos os meus conselheiros descrevessem, em relatórios circunstanciados,
os dons da minha incomparável beleza. Pois nem assim. Todos discordes. O
das Finanças afiançava que os meus olhos tinham o doirado e a forma das
libras. O da Marinha que eram verdes como o mar. O do Turismo, céus
azuis, etc.
– Perante isso, como procedeu Vossa Alteza?
– Dei a demissão ao Conselho, mas não desisti de buscar a verdade
através de uma nova campanha que intitulei de «Operação Narciso». Dirigi-
me a vários poetas e encomendei-lhes poemas descritivos. Mobilizei os
pintores. Posei para dois mil retratos. E para um milhão de fotos. Organizei
um plebiscito nacional. Tudo em vão. Nenhum retrato coincidia. Todos me
viam com olhos desiguais. Apenas numa particularidade nunca transparecia
a menor discrepância: as orelhas apareciam sempre pequeninas, minúsculas,
elegantes, talhadas com formosura delicada...
E o príncipe acariciou com desvelo as compridíssimas orelhas de burro.
– Já estava quase inclinado a desistir quando me lembrei de procurar a
Bruxa do Grito-Para-Além-Do-Que-Se-Vê, famosa pela sua Ciência Secreta
e Alto Saber. Fui ter com ela e disse-lhe: «Consta que guardas num sítio
vedado aos profanos a Verdade escondida num poço. Podes mostrar-ma?» –
«Posso, Alteza. Mas que lhe deseja?» – interrogou a Bruxa. «Quero
consultá-la a respeito do meu nariz, dos olhos e do queixo. Das orelhas não
é preciso...» – respondi eu. A Bruxa não tugiu nem mugiu. Pegou-me na
mão e conduziu-me, em silêncio, à sua coutada de feitiços na Floresta
Branca. Depois de hora e meia de marcha parou, abriu a porta de uma
carvalha e convidou-me a entrar. Aceitei, desci uma escada íngreme e,
passado algum tempo, encontrava-me no tal recanto enigmático em que
vivia a Verdade nua.
– E viu-a? Falou-lhe? É bonita?
– Ah!, meu amigo! – lamentou-se o príncipe com as orelhas a quebrarem-
se de desalento consternado. – Não imaginas o espectáculo que se me
deparou. Em vez dum poço vi milhões de poços e cisternas.
– Não está a enganar-me?... Milhões de poços?...
– Sim, milhões de poços onde existem milhões de Verdades diferentes.
– Eu, por mim, não sei o que faria numa situação semelhante. Talvez
fugisse, desnorteado.
– Foi essa a minha primeira reacção. Fugir! Mandar a Verdade e a
Mentira para o Diabo. Mas a Bruxa não me deixou. Quis por força que eu
falasse com uma Verdade qualquer dum poço escolhido ao acaso. E eu
acedi ao capricho. Debrucei-me numa cisterna à sorte e berrei: «Ó Verdade,
Verdadinha, vem até cá acima!»
– E ela? Acudiu à chamada?
– Veio logo. Deitou a cabeça de fora, despiu-se dos cabelos, olhou-me
longamente, sorriu e, por fim, disse-me com meiguice: «Tens as orelhas tão
pequeninas, tão minúsculas, tão elegantes, tão mimosas!...» E zás! Caiu no
poço.
– É extraordinário – acentuou mais uma vez João Sem Medo.
– Então, resolvi acabar com discussões desnecessárias. Proclamei-me
definitivamente belo. Decretei a ditadura da minha beleza infalível. Ergui
várias estátuas a mim mesmo, parecidas com quem eu me imaginava.
Ordenei ao povo que continuasse a desmaiar por uma pá velha. E nunca
mais apareci em público para que não me empecessem com dúvidas
absurdas a respeito da correcção do nariz ou do queixo. Não achas que fiz
bem?
E o príncipe calou-se afogado na melancolia da quase-noite esparsa na
terra. Em seguida fixou agudamente João Sem Medo e, a agitar as orelhas,
suspirou numa confidência plena:
– Sabes? Às vezes gostava de ser feio... Há dias em que a minha beleza
superdivina me esmaga como uma carapaça de chumbo. Agora, por
exemplo, dava o meu título, a minha coroa, o meu reino, a minha glória,
tudo, para ser tão feio como tu.
– Como eu? – melindrou-se João Sem Medo.
– Sim, como tu – insistiu o príncipe. – Juro-te que nunca vi ninguém mais
feio na minha vida. Até tens orelhas de burro.
– Eu tenho orelhas de burro? – explodiu o rapaz inquieto, a apalpar com
ternura as suas orelhinhas em forma de concha.
– Sim, orelhas de burro. Estou a vê-las perfeitamente... – garantiu o
príncipe sempre com voz grave.
E depois de se despedir do perplexo João Sem Medo, Sua Alteza Real,
cada vez mais feio e orelhudo, chamou o cavalo com um assobio, montou-o
e diluiu-se na escuridão que invadira totalmente a terra.
IX
A princesa n.º 46 734
PREPARA-TE, ENTÃO.
João Sem Medo acordou, tarde alta, no fundo de uma cisterna seca com
muitos metros de profundidade. Esta mutação tão imprevista dera-se
durante o sono do ex-Cavaleiro-Do-Ódio-À-Espada, já tão habituado
àquelas andanças de perseguição que se contentou em enroscar-se nas
pedras e aguardar os acontecimentos. Pois não ignorava que, com aquela
fantasia de mago folgazão, Não-Se-Sabe-Quem apenas pretendia frustrar-
lhe o desígnio de alcançar o Muro.
– Ora! e o que me importa a mim! Estou aqui mais abrigadinho... –
resignou-se, fiel à sua receita de felicidade que consistia em aceitar os
infortúnios como se fossem provocados voluntariamente por ele.
E para entreter a sonolência da espera, enrolou-se mais, a moer estes
pensamentos:
– Sempre estou com curiosidade de saber como me tirarão daqui. Por
algum túnel inesperado em ligação com as raízes ocas de um castanheiro
perto? Arrebatado pelo bico da Águia dos Penedos? Oh! Já sei. Talvez o
fundo da cisterna comece a subir, a subir devagar como a plataforma de um
ascensor... Enfim, veremos.
Entretanto, neste entressonhar, julgou ouvir o seu nome articulado por
uma voz roufenha.
Ergueu os olhos e distinguiu, lá muito em cima, três cabeças a
espreitarem pela boca do poço.
– É o Senhor João Sem Medo? – repetiu o mesmo rouquejo agreste.
– Sou. Que me querem?
– Vá, suba.
– Subo como? – esganiçou-se o rapaz a verificar com as mãos a
possibilidade de marinhar por aquelas pedras escorregadias.
– Salte – insistiu a voz rouquenha. – É o suficiente. – Salto? – duvidou
João Sem Medo.
Mas, posto que não confiasse no processo, decidiu experimentar. Dobrou
as pernas, tomou balanço, deu um pulo e – ó estarrecimento infinito! – no
momento em que, na queda, assentou os pés no chão, sentiu-se
transformado em bola de borracha e, num abrir e fechar de olhos, foi
projectado para fora do poço.
De novo perdido nas veredas da noite, João Sem Medo, azoado de ardis e
sono, refugiou-se na primeira toca do caminho e adormeceu como uma
pedra.
Acordou ao alvorecer com o arrepio de se sentir «passeado» por formigas
que, ainda meio tonto da sonolência remelada da manhã, não esmagou por
milagre.
Entretanto uma voz grossa e acatarrada retumbava no buraco, a acautelá-
lo:
– Não te mexas! Vamo-nos retirar em boa ordem. Cuidado, não nos
esmagues.
Já habituado àquele mundo do absurdo mágico, afinal tão enfadonho
como o absurdo natural de Chora-Que-Logo-Bebes, não manifestou a
menor surpresa, porventura ainda grato às formigas que, em vez de o
comerem vivo, apenas pediam aos deuses que não lhes pisassem os calos.
– Não te movas – recomendava a voz grave. – Só falta um batalhão.
Enquanto as formigas deslizavam a duas e duas, o nosso herói, imóvel e
alongado na cova, ia furando a penumbra com os olhos, desejoso de
localizar o orador-comandante. Lá o envesgou por fim, ao fundo. Um
formigão postado diante de um minúsculo microfone que lhe aumentava a
voz transmitida pelo difusor pendurado no tecto.
– Que tens? – acudiu a um ligeiro movimento do rapaz em que adivinhou
talvez espanto reprimido. – Os meus soldados magoaram-te?
– Não. Que ideia!... Os teus soldados são delicadíssimos. Até usam botas
de cócegas...
Riram da gracinha. Mas assim que as gargalhadas amorteceram, João
Sem Medo temeu que fosse de mau gosto não aparentar, por cerimónia, um
leve pasmo hipócrita. E arregalou os olhos o mais que pôde:
– Confesso que nunca me passou pela cabeça ouvir falar formigas e,
muito menos, através de microfones!
– Ora essa! Então não sabias que antigamente os animais falavam?
– Sim... Antigamente... Mas agora...
– Na verdade – admitiu a formiga – a maioria dos animais tornou-se
muda. Que queres? Os homens diziam tantos disparates que, certo dia, os
bichos, para não se confundirem com vocês, votaram a greve geral, a greve
do silêncio que ainda hoje dura... Greve apenas furada pelos papagaios e
outras aves sem categoria...
– É o costume. Não há greve sem «amarelos» – interrompeu João Sem
Medo para não ficar calado.
Mas a formiga emendou com prontidão:
– Nós não lhes chamamos «amarelos». Chamamos-lhes «verdes».
– Ah! – exclamou o rapaz com a adequada admiração cortês.
Ao que se seguiu a pergunta lógica para continuar a conversa:
– Mas vocês não são «verdes», pois não?
– Nós? – tossiu a formiga rouca de catarro indignado. – Nós «verdes»?
De maneira nenhuma. Pelo que ouço, ignoras totalmente as circunstâncias
em que os bichos proclamaram a greve do silêncio... Na mesma ocasião
resolveram instalar num sítio pouco acessível o Museu Vivo da Fábula,
onde continuariam a falar como na Idade de Ouro...
– E eu encontro-me nesse tal museu misterioso?...
– Pois claro... Descobriste por acaso a entrada secreta para o país da
fábula descrito pelos nossos grandes cronistas Esopo, Fedro e La Fontaine...
– É curioso!... – comentou João Sem Medo, mau grado seu, interessado. –
E vocês mantêm a mesma moral das fábulas?
A formiga não se apressou a responder. Reflectiu alguns momentos antes
de adiantar estas palavras cautelosas:
– Bem vês... Os nossos costumes foram evolucionando devagarinho...
– Já reparei. Vocês são civilizadíssimas. Até têm microfones.
– Se medes a civilização por maquinismos e aparelhómetros, ainda não
viste nada... – gabou-se a formiga. – Nem supões como são agora os nossos
formigueiros providos de electricidade, elevadores, radar, camionetas para
transportar os alimentos para o Celeiro Central, máscaras contra o «DDT»,
computadores, etc., etc.
E após o silêncio fatal que corta sempre todos os diálogos, prosseguiu
digna e bem-falante como se repetisse trechos de «sebenta», embora
pegados com cuspe:
– Mas... Bem... Aqui... como em todas... as sociedades... Percebes?...
Bem... Os animais dividem-se mesmo... Estás a ver... Dividem-se em dois
grupos: os que teimam... Sim... os teimosos que respeitam as aparências
mortas... E os criadores de ilusões de novas aparências...
Chegado aqui, respirou profundamente, tomou balanço, e terminou dum
fôlego:
– Nós, como já tiveste ensejo de verificar, pertencemos ao segundo grupo.
João Sem Medo lançou então esta sonda indiscreta:
– E as cigarras? Como despedem vocês agora as cigarras quando essas
mandrionas vêm esmolar comida? Mandam-nas dançar como dantes?
A formiga tropeçou na resposta:
– Bem... Referes-te à sentença clássica de «Ah! cantaste? Pois dança
agora», não?
E mais à vontade, apoiada no sinal de cabeça confirmativo de João Sem
Medo:
– Não te ocultarei que nas últimas décadas vários movimentos
revolucionários das Obreiras, aos gritos de «dêmos de comer às cigarras!»,
«Abaixo La Fontaine!» perturbaram o sossego secular dos formigueiros... E
impuseram até, aqui e além, novos fechos morais à famosa fábula,
condizentes com a política não egoísta das camadas novas, amantes cem
por cento da música concreta das cigarras. Por infelicidade, a experiência
catastrófica de tentar sustentar os pobres musicantes-poetas, com a nossa
alimentação de formigas práticas, desiludiu os idealistas mais inveterados.
Não tardámos a averiguar que as cigarras não toleravam os mantimentos
dos nossos armazéns (temos intrínseca necessidade de comidas diversas) e
morriam na mesma... Umas a dançar, outras a cantar e todas em beleza, pois
constava (elas próprias espalhavam essa lenda) que se alimentavam
metafisicamente com cheiro das ervas e da luz do Sol... Da luz do Sol,
imagina. Em resumo: pouco a pouco acabámos por...
Acanhou-se insegura. Mas com a ajuda do olhar interrogativo de João
Sem Medo desembuchou:
– Acabámos por... comê-las.
– Por... COMÊ-LAS?
– Sim... Comê-las. Cheias de remorsos, mas que remédio? Seria um crime
desaproveitar aquela carninha tão fresca e tão lírica, não achas? As asas
então são uma delícia... Dão-nos uma tal sensação de liberdade...
E como adivinhasse sinais de desaprovação azeda nos gestos de João Sem
Medo, com um hábil desvio estratégico, passou a fervorosa defensora das
cigarras:
– Mas não lhes chames calaceiras, ouviste?... Porque cantar para elas
também é trabalho... E que trabalho! Ainda pior do que o nosso, de ouvi-
las. Uma espécie de serrar música...
E toda formalizada, a tossir a dignidade do seu catarro, a formiga retirou-
se, solene – com João Sem Medo na peugada, ansioso de visitar o Museu ao
Ar Livre da Fábula Viva.
Bastaram-lhe meia dúzia de passos para que, na margem da Lagoa da
Lama Verde, topasse com outro espectáculo desusado: uma rã a inchar perto
de um boi que forcejava penosamente por reduzir o volume do corpanzil.
– Cá temos as personagens da fábula A Rã e o Boi – recordou João Sem
Medo com um sorriso interior. – Minha mãe contou-ma várias vezes... Certa
manhã a Senhora Rã encontrou o Senhor Boi e, invejosa da imponência
física do parceiro, não sei por que bulas arranjou maneira de auto-soprar-se
e inchar, inchar, inchar... E tanto inchou que rebentou... Agora, porém, o
caso muda de figura. A Rã incha, sim, mas o Boi pelo seu lado desincha,
amesquinha-se, diminui de tamanho... Vou meter conversa para apurar do
que se trata.
E abeirou-se, mesureiro:
– Bons dias, mestre Boi.
– Bons dias, mestre Homem – correspondeu o animal com os olhos a
babarem-se de meiguice confiante.
– Então que significa isso?... Quer tornar-se mais pequeno?
– Pois claro – mugiu o Boi já com metade da corpulência habitual. – Não
acha injusto eu ser deste tamanho e a Rã tão pequenina?
– Não me diga que deseja rivalizar com os boizinhos de barro que se
vendem nas feiras...
– Não... – esclareceu mestre Boi. – Nessa não caio eu. Tudo menos sofrer
a sorte do meu irmão que tanto diminuiu, tanto diminuiu, tanto diminuiu
que acabou por ser atropelado por um carrinho de mão.
– Então, não percebo – desistiu João Sem Medo com entono enfastiado
de haver problemas que não mereciam ser problemas.
– É muito fácil... Eu e a Rã, para não termos inveja, combinámos o
seguinte: eu minguar um bocadinho e ela aumentar, até ficarmos iguais!
– Mas – aduziu o rapaz – na fábula de La Fontaine o Senhor Boi
desdenhava ostensivamente das pretensões da Rã.
– Isso era dantes. Hoje tudo evolucionou no país da Fábula – objectou o
paciente ruminante impaciente. – Decidimos ser iguais e ninguém tem nada
com isso.
João Sem Medo abanou a cabeça, discordante. E preparou-se para
abandonar os dois bichos na sua luta pela igualdade. Mas à laia de
despedida foi-lhes dizendo com tacto hábil de pessoa bem-educada:
– Considero a vossa atitude muito louvável, embora, confesso, o método
me pareça um pouco... como direi... Bem... Talvez primário...
– Porquê? – bramiu mestre Boi sempre a babar-se de estupidez suave.
Como resposta, João Sem Medo começou a meter os pés pelas mãos
numa tentativa de atinar com as palavras justas para exprimir o seu
pensamento um pouco tataranha:
– Bem... Porque... Ou me engano muito ou... Bem... não devemos
confundir igualdade com identidade... baralhada muito comum, aliás... Do
ponto de vista exterior vocês serão sempre desiguais.
E bem fincado ao fio do raciocínio, para não se perder:
– Imaginem, por exemplo, que a Senhora Rã, alcançado o tamanho do
mestre Boi, lhe invejava os chifres. Como solucionariam o caso?
– Ora! – falou a Rã pela primeira vez. – Encomendava uns postiços. De
borracha... Ou plástico...
– Está bem. Era uma solução... – aprovou João Sem Medo. – Mas... E se
ao mestre Boi lhe apetecesse coaxar?
João Sem Medo aproveitou o silêncio embaraçado dos dois comparsas
para prosseguir:
– Só se o Senhor Boi engolisse um disco com os coaxos gravados da
Senhora Rã... Não vejo outra forma. Desenganem-se, pois. Façam os
esforços que fizerem, haverá sempre desigualdades externas entre ambos...
que, a bem dizer, não constituem propriamente desigualdades, mas
diferenças...
– E então? – ruminou o Boi com os olhos meigos de quem não percebia
patavina.
– Então, nada. Sigam o meu conselho e voltem ao estado normal... O
Senhor Boi, grandalhão... e a Senhora Rã, pequenota... E se aspiram a ser
iguais conquistem a liberdade de não serem idênticos e de poderem atirar as
desigualdades à cara um do outro... Ou então...
Mas aqui calou-se enrodilhado nas palavras que mal roçavam pela
verdade fugidia... E, envergonhado, lá os deixou (a Rã a aumentar... o Boi a
diminuir...), disposto a não se deter mais durante a travessia do país da
Fábula – farto de filosofices e, sobretudo, com uma fome diabólica.
Mas três metros adiante o vento trouxe-lhe farrapos de um diálogo tão seu
conhecido que lhe espevitou a curiosidade (e o apetite) de espreitar para a
clareira onde, há séculos, a Raposa erguia os olhos de doçura matreira para
o Corvo, empoleirado numa árvore com o queijo (e que queijo!) no bico.
– Ah! compadre, compadre! Você é a ave mais bela do mundo. Do
mundo? Que digo eu? Do Universo... – esforçava-se a falsa por fasciná-lo.
– Que brilho nas penas, compadre! Que brilho no bico! Que brilho na voz!
Oh!, a sua voz! Quando a escuto, desmaio de deleite... Cante uma ária,
compadre! Cante, cante, para eu morrer de gozo, compadre...
Na velha fábula, como sabem, o Corvo apreciava tanto as lisonjas que,
mal a raposa solerte lhe regougava meia dúzia de mentirolas, abria o bico e
o queijinho escorregava pelas goelas da bicha que era um regalo.
Pois desta vez o palavreado de insinuação doce da zorra não seduziu o
Corvo que, funebremente irónico, se limitou a esvoaçar do ramo para uma
grafonola portátil ao lado e a fazer rodar, com um movimento de patas, o
disco onde estava registada esta resposta de sabor cínico:
– Só canto depois de comer o queijo... Só canto depois de comer o
queijo... Só canto depois de comer o queijo...
Não calculam o focinho desalentado da raposa a contemplar o queijo
redondinho e gordo que, lá em cima, pendido do bico, imitava o desenho da
Lua inacessível. E, rabo entre as pernas, cabeça baixa a fariscar outro rasto,
a coitada internou-se no bosque, desdenhada e sorrateira... Ao passo que o
Corvo, enfim sozinho e enfatuado, não resistia a clamar vitória, depois de
largar o queijo:
– Pois claro que canto divinamente, minha palerma. Não preciso que mo
digam. Canto como o sonho de um rouxinol... Mas com franqueza, a tua
perseguição já me irritava... Desta vez, minha rica, cruzes na boca. Quem
come o queijo sou eu.
E com um bater de asas modesto:
– Mas primeiro, a pedido de várias famílias, vou cantar uma cantiguinha
como aperitivo.
E o passaroco, com ademanes de prima-dona, pôs-se a grasnar uma
melodia horrenda – enquanto João Sem Medo, de olhos cobiçosos e feliz
por castigar a vaidade do Corvo, se aproximou com lentidão de pezinhos de
lã, pegou no queijo e fugiu com ele debaixo do braço.
XIV
A menina dos pés ocos
Com unhas nervosas, João Sem Medo mexeu e remexeu nas ervas,
esperançado de descobrir... sabia lá o quê... Talvez a argola de ferro clássica
de todas as tampas dos subterrâneos. Mas o pânico, causado pela
aproximação dos dois soldados de marmelo, levou-o a renunciar à argola e
a puxar ao acaso todos os caules que lhe vieram às mãos, no frenesi de
acelerar a fuga. Em resumo: tanto esticou e repuxou que acabou por
deslocar uma pedra enorme, presa às raízes dum dos girassóis. E no chão
desenhou-se a abertura do túnel – buraco de trevas pavorosas para onde
espreitou com o coração contraído. Que fazer agora? Descer? E haveria
alguma escada na parede do poço? (As mãos na escuridão só apalpavam
musgo de humidade escorregadia.) Ou deveria confiar no auxílio mágico,
no par de asas salvador, nascido no momento de perigo exacto – e arrojar-se
sem mais delongas no abismo?
Por fortuna não necessitou de especulações extensas, pois, ao inclinar-se
na cisterna, experimentou de súbito o alívio desconsolado de ser sorvido
por uma Gigantesca Boca do Lado de Lá. E com um grunhido surdo
desapareceu nas profundezas da terra – a boa Terra que, depois de lhe
proporcionar uma viagem ao mesmo tempo demorada e repentina pelas
entranhas da Sombra, o arremessou com ímpeto, através de uma galeria,
para a Pedreira da Pedra Sangrenta perto do Muro. Sim, do MURO. O tão
ansiado Muro – aliás uma espécie de falésia descomunal de rocha vermelha
talhada a pique, que se estendia por longos quilómetros inacessíveis até se
perder de vista. E tão lisa, tão polida e espelhada que João Sem Medo nem
por desfastio encarou a hipótese de poder escalá-la. Por mais que a
esmiuçasse não lhe destrinçava a mínima frincha ou anfractuosidade para
abrigar uma abelha sequer. Nada. Ora bolas, boletas!
E, desenganado, sentou-se numa pedra com todo o peso do
esmorecimento.
No mesmo instante estalou uma praga de dor furiosa: – Apre que é bruto!
O rapaz pulou:
– Quem está a falar?
– Sou eu, a pedra. Magoaste-me. Para a outra vez, repara bem onde te
instalas, malandro!
Com um relance de olhos João Sem Medo verificou que, na verdade, se
sentara, descerimoniosamente, nos cabelos de musgo de uma enorme
cabeça de granito com órbitas irregulares, nariz esboroado, barbicha de
líquenes...
– Tem piada. Pareces uma pedra – concluiu o rapaz.
– Pareço e sou... Por dentro, descansa, não me faltam miolos. Poucos,
mas suficientes para cumprir os meus deveres de Guardião do Muro.
– Ah! pertences à Alfândega? Muito prazer em conhecer-te – saudou-o
João Sem Medo num tom que o incomodou por roçar levemente pela
lisonja.
E como reacção resmungou logo:
– Mas que significa essa história de só teres cabeça?... A parte do corpo
que, por acaso, menos falta faz a um guarda?
O que suscitou uma explicação imediata, proferida com frialdade de
pedra:
– Pois enganas-te. Tenho cabeça, tronco e membros como qualquer
criatura que se preza. Mas quando quero descansar, corto-me aos bocados.
Por exemplo: se sinto as pernas esbodegadas, arranco-as e embalo-as até
que adormeçam. Com os braços e com o tronco procedo da mesma maneira.
Compreendes?
– Compreendo. Mas como consegues regressar ao estado – chamemos-lhe
assim – normal?
– Ah! isso não custa nada. Queres ver?
E a cabeça, por bruxedo manifesto, acercou-se aos saltinhos do tronco
adormecido:
– Vamos, acorda, preguiçoso!
E como o dorso parecesse renitente, a cabeça não esteve com meias-
medidas: pregou-lhe uma dentada com toda a fúria, aos berros:
– Acorda, caramba! Parece que tomaste um narcótico.
Graças a este método das dentadas, o Vigilante, transcorridos alguns
minutos, encontrava-se completo, com braços de músculos de pedra, mãos
toscas e pés calosos. E não se demorou a retomar as funções burocráticas
impostas pela presença de João Sem Medo:
– Queres atravessar o Muro, não é verdade? Bem. Então avia-te e mostra-
me o passaporte. Sim, o passaporte... Com os competentes carimbos bem à
vista, claro. Quê? Não tens passaporte? Nem carimbos? Subornaste alguém,
não? O costume... Pois tem paciência, meu filho! Por esta fronteira não
passa ninguém sem a dose legal de carimbos. Volta para trás pelo mesmo
caminho...
Mas João Sem Medo obtemperou-lhe:
– E se eu apelasse?...
– Para o meu bom coração de pedra, não? – inferiu o Guardião hirto. –
Inútil, meu caro. Por aqui não passa ninguém sem apresentar o respectivo
passaporte em regra. Isto é: com os 77 carimbos da praxe bem visíveis.
Aliás custa-me a crer que haja alguém capaz de trocar este éden por...
Donde és tu?...
– De Chora-Que-Logo-Bebes...
O Guardião extraiu da boca dois ou três sons de pedra britada a fingirem
de riso:
– De Chora-Que-Logo-Bebes? A aldeia dos choramingas?... A terra onde
as pessoas de tanto chorarem trazem musgo nos olhos e verdete na boca?...
Que vais fazer para lá?
João Sem Medo encolheu os ombros, hesitante:
– Que sei eu?... A verdade é que nestas minhas andanças descobri que,
tanto no mundo da Imaginação Mágica (este que tu defendes de carimbo em
punho) como em Chora-Que-Logo-Bebes impera a mesma Lei tremenda
que se pode resumir numa destas palavras à escolha do freguês: Maçada,
Repetição, Monotonia, Chatice... Com uma diferença, claro. É que em
Chora-Que-Logo-Bebes sofre-se mais. Ou pior ainda: sofre-se menos.
Porque lá a pseudodor é tão pífia, tão pilha, tão vil, tão rasca que até se
ignora qual a dor verdadeira.
– Que vais fazer então a essa terra, tão seca por dentro e tão húmida por
fora, autêntica fábrica de constipações morais?...
– Bem... Os homens nunca se contentam... E eu, a falar franco, fartei-me
deste Imprevisto-Anárquico do Sonho em que vivi e agora apetece-me
voltar a provar aquilo a que chamamos Realidade... Além disso... Ouve: vou
dizer-te um segredo... mas promete-me que não o revelas a ninguém...
Prometes?... Na verdade, o fito principal do meu regresso talvez seja o de
tentar revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes... endireitar as espinhas dorsais
das pessoas... secar as lamentações covardes dos choraquelogobebenses...
pregar a reorganização viril da vida em novas bases... Mas, a par disto,
porque não hei-de também confessar que me assaltam saudades terríveis
de...
– De quê?...
– De... Não sei se me atreverei a dizer-te...
E gaguejou com pudor envergonhado:
– Saudades terríveis de... Nem calculas de quê... Dessa coisa grosseira
que se chama bacalhau com batatas... Duma boa bacalhauzada com grelos...
Imagina!... Ah! meu amigo! São estas pequenas coisas miseráveis que
suscitam os grandes movimentos espirituais. O da saudade, por exemplo...
Então, tocado porventura pelo acento sincero da argumentação de João
Sem Medo, o Guardador do Muro vacilou, demovido:
– Bem... O máximo que eu posso fazer é ir consultar os meus superiores
sobre o caminho a seguir a teu respeito. Se me permites, vou num
instantinho falar com eles.
– Demoras-te muito?
– Não... Para me deslocar não preciso de me deslocar, como verás. Até já.
E o Guardião partiu. Ou mais concretamente: imobilizou-se, virou os
olhos para dentro e, durante um quarto de hora, não se mexeu, ausente.
Quando regressou (isto é: quando virou de novo os olhos para fora)
parecia satisfeitíssimo com a diligência.
– As Potências com quem discuti o teu problema – declarou –
concordaram em que saísses...
– Oh! ainda bem!... – respirou João Sem Medo.
– ... com a condição de ficares – terminou, charadístico. Ao ouvir isto, o
rapaz indignou-se:
– Irra! Lá estão vocês a brincar às esfinges como de costume. Pois julgas
possível cumprir esse enigma?
– Julgo, sim.
– Mas como? Como, meu cabeça de calhau?
O guarda, pouco seguro da fórmula, decidiu aconselhar-se de novo com
as longínquas autoridades respectivas. – Um momento. Volto já.
E repetiu o jogo. Isto é: pôs os olhos do avesso e, com quietação de
estátua, ausentou-se (sem bulir um músculo como anteriormente).
No regresso aparentava o ar feliz dos subalternos para quem a eficiência
suprema consiste em acomodar-se à imaginação autoritária dos chefes.
– Está tudo resolvido... Vem daí comigo. Temos um largo caminho a
percorrer: sessenta mil quilómetros.
– Sessenta mil quilómetros? A pé? Não sei se aguentarei.
O Vigia reagiu com um sorriso, adivinhado na fala, visto o pobre não
poder exprimir qualquer sentimento com aquele carão de pedra:
– A pé? Ensandeceste? Eu nunca ando a pé. Tenho as pernas pouco
maleáveis. Prefiro outro meio de locomoção... Aquele.
E apontou para uma espécie de botas de mármore translúcido,
enfeitiçadas pela certa, ou melhor, movidas por qualquer energia misteriosa
que os homens do outro lado do Muro não haviam ainda descoberto nem
dominado.
– E tu? Não queres experimentar? – alvitrou o guarda. – Tenho um par
sobressalente.
João Sem Medo acatou logo a ideia e enfiou com presteza os pés nas
botas oferecidas pelo Guardião.
– Pronto... E agora?
– Espera! Deixa-me calçar as minhas. Estão-me um bocadinho apertadas.
E foi relatando as fraquezas secretas da sua carne de granito, entremeando
o monólogo com «uis e ais» angustiosos.
– Os calos magoam-me tanto... Ui!... Mas vale a pena calçá-las, garanto-
te... Deslizam como patins... Ui! ... Porque, conforme não tardarás a
verificar, em vez de nós as levarmos, são elas que nos levam a nós! Ui...
E de facto assim era. Pois bastou que João Sem Medo esboçasse um
movimento de pernas para que as botas voassem com a velocidade da luz. E
num abrir e fechar de pálpebras...
– Pronto. Já chegámos! – clamou o Guardião ansioso de se livrar
daqueles torniquetes implacáveis.
Por sua vez João Sem Medo, azoratado do percurso, guardou silêncio
durante alguns segundos para se recompor. Ao fim do que se afirmou na
paisagem em torno, sem embargo muito semelhante à do local do primeiro
encontro com a Sentinela de Pedra. A mesma Muralha, ou antes: um
alcantil idêntico, impossível de marinhar. De novo, apenas um riacho de
água azul que gargolava a poucos metros com alegria de corrente viva.
Entretanto o Guardião aliviava os pés com ruidosos «Ah! ah! ah!» de
satisfação, sem entremostrar indícios de pressa em revelar a João Sem
Medo o método previsto pelas Altas Forças para a concretização do tal
mistério de partir e ficar.
Até que, por fim, lá se dignou:
– Não achas possível, hem?
– Só se me dividissem em dois... – propôs, à laia de sugestão inaceitável,
João Sem Medo.
– Exactamente. Só se te dividíssemos em dois. Para um deles permanecer
neste lado e o outro no lado de lá. Continuando apenas a ser um, claro.
– Claro!... De modo que o eu-outro formasse um eu-uno absoluto... –
divertiu-se João Sem Medo com propósitos de caricatura metafísica.
– Sim, sim... O tu-ele-uno.
E sem ironia:
– Vejo com agrado que já te vais convertendo à nossa linguagem que tudo
explica.
– Sim... Principalmente o que se complica de propósito para depois se
explicar... Mas ouve: nessa história do eu-ele-uno não existirão diferenças
entre o eu e o ele resultantes da própria unidade perfeita da sombra-luz?
(E riu-se por dentro.)
– Sim, embora levíssimas. Assim, o ele é em geral mais prático e avisado
do que o eu, normalmente um tudo-nada leviano e imprudente... Mas nem
tu os distinguirias... Nem tu saberias dizer qual dos Dois-Só-Um eras tu!
– Que trapalhada!
E o rapaz, para acentuar esta exclamação sorridente, agarrou a cabeça
com as mãos, esparvoado, a suar mistério por todos os poros.
– Aceitas então dividires-te em dois? – tornou o guarda.
E para forçar a decisão com um argumento irrecusável:
– Aliás é a única forma de saíres daqui.
– Falas a sério?
– Falo sempre a sério... Para isso me talharam num bloco de granito...
João Sem Medo vergou-se à fatalidade:
– Bem... Se não existe outra maneira, que remédio!... Mas como? Como?
– É fácil. Espera um bocadinho. Já vais ver.
E o Guardador do Mundo Mágico, muito empinado e rígido, afastou-se
com dureza de passos de pedra. Perto da margem do riacho dobrou-se e,
num ritual de mãos hirtas, passou-as pela água para lhe extrair o espelho da
superfície – um espelho de cristal-fluido-azul que encostou delicadamente
ao Muro.
Em seguida declamou com solenidade majestosa:
– Olha para o espelho.
João Sem Medo nem discutiu a ordem – olhos imediatamente fixos no
Cristal de Água em frente.
– Agora prepara-te para assistires ao acontecimento capital da tua vida –
preveniu-o o Guardião de granito. – A tua imagem vai sair do espelho e
andar, falar, pensar...
– De carne e osso como eu?
– Sim... Como tu, mas outro...
– Continuarei ao menos a não ter medo?... – arfou com desespero de
resignação.
– Sim. Continuarás a fingir que não tens medo.
– Mas isso pode dar azo a confusões tremendas – insistiu preocupado. –
Daqui a pouco ninguém me diferenciará de mim mesmo.
– Que importa se cada um de ti viverá num mundo diferente?
– Mas quem vai para Chora-Que-Logo-Bebes?... Quem vai para o rico
bacalhau? Eu ou o outro?
– Já te repeti mil vezes que tanto faz, pois ambos são um, apenas um, em
alma, em instinto, em paladar...
João Sem Medo decidiu então entregar-se definitivamente ao destino e
fitar o espelho – enquanto a voz fria do Homem de Pedra comandava:
– João Sem Medo n.º 2: salta cá para fora!
Logo de seguida, vinda do fundo do sonho até se transformar em carne e
osso, a imagem do espelho obedeceu e pulou para a terra do mundo.
– Ah! Que bom respirar! – exclamou com volúpia de descobrir o sentido
da vida no ritmo do ar a entrar-lhe no peito.
E estendeu a mão a João Sem Medo n.º 1 que a apertou com gosto de
sentir a própria pele e ouvir a sua voz em boca alheia (como se falasse
sozinho).
Mas o Guardião interveio para entravar a possível cena de família:
– Já é quase noite cerrada. Deixem-se de ternuras e vamos ao que mais
importa: fechem os olhos.
– Para quê? – interrogou o sempre atónito João Sem Medo n.º 1.
– Tenho ordem de os misturar, confundir, baralhar, entontecer... para que
ninguém saiba (nem vocês) quem é o n.º 1 ou o n.º 2. Toca pois a bailar,
rapazes. – Tá-ra-ra-ra-lá-tá-tá... Pam, pam, pam...
E, ao som das palmadas de pedra que martelavam uma dança pesadona de
elefante, o guarda-mor obrigou-os a saracoteios, meneios e reviravoltas tão
ensarilhantes e infernais que os dois Joões Sem Medo acabaram por
cambalear estonteados da vertigem.
– Pronto. Já não sei qual é o n.º 1 o n.º 2... – declarou o guarda, triunfante.
– Chegou o grande momento da Escolha... Tu, por exemplo (e encarou um
deles ao acaso): vais continuar as aventuras do real-irreal da imaginação...
Enquanto tu (e apontou para o outro) voltas para Chora-Que-Logo Bebes...
– E nunca mais poderemos ver-nos? – perguntou João Sem Medo (o n.º 1
ou n.º 2?).
– Pois claro que podem... Até podem fazer a troca, um pelo outro, à
socapa, se for possível, para que ninguém perceba (principalmente vocês).
Mas agora, por favor, não percam tempo. Ouve, amigo – e virou-se para o
João Sem Medo nomeado para a comédia dos torneios contra as Potências
Enigmáticas: – parte, parte depressa para as tuas aventuras. Monta o vento e
parte.
– Seja – recitou o Escolhido com pompa teatral. – Tremei, monstros e
monstras do presente e do futuro! Tremei diante do heróico João Sem
Medo, o Cavaleiro-Que Só-Sabe Combater-Em-Sonhos!
E num salto prodigioso montou uma rabanada de vento, aos gritos de
despedida para o outro que o contemplava com inveja melancólica de ficar:
– Adeus, pá. Qualquer dia virei visitar-te para trocarmos os destinos e
descansarmos um bocadinho, sim? Eu, das aventuras e tu, do bacalhau...
E desfez-se no ar.
Então o Guardião tomou de novo a palavra:
– Bem. Agora é a tua vez. Chegou o momento de regressares a Chora-
Que-Logo-Bebes.
– Com muito gosto. Mas como?
– É fácil. Dirige-te ao Muro e atravessa-o.
– Atravesso-o? Como? Por onde? Não vejo nenhuma porta.
– Nem precisas... Sai pela porta que não há.
E satisfeito com esta frase típica da Sebenta do Enigma, o Homem-
Pedregulho entregou-lhe um passaporte com os inúmeros carimbos
necessários.
– Vá! Atravessa o Muro. Nada receies. – Instigou-o, enquanto aplicava
mais um carimbo – o último – no documento.
João Sem Medo, percebendo então (o que aliás não exigia excepcional
finura de intelecto) que ali havia manigância, despediu-se do guarda e tocou
com o pé no Muro que, a esse contacto, se transformou numa espécie de
nevoeiro de pedra fantasma.
E assim, com a mesma facilidade de quem fura nuvens, João Sem Medo
coou-se como um espectro através da Muralha, a esfarrapá-la com as botas
até alcançar a terra santa de Chora-Que-Logo-Bebes que pisou com
comoção feliz onde se misturava o prazer do obstáculo vencido, a vaidade
próxima de poder enfim contar proezas da viagem aos amigos (e porventura
também, já timidamente esboçado, o arrependimento do regresso).
Anoitecia devagar e o vento trazia de longe ais e plangências. Talvez das
árvores vergastadas de Chora-Que-Logo Bebes... Talvez dos habitantes
arreigados à tradição pungente de que tanto se orgulhavam... Isto é: chorar.
Chorar sempre. Chorar de manhã à noite...
Arrostar essa choradeira – era agora o combate de João Sem Medo.
Vamos! Vamos!
E dirigiu-se, pelos tojais ínvios, rumo à Aldeia.
Mas poucos metros andados ouviu o piar débil dum pássaro no solo.
Curvou-se. Piu, piu, piu... Parecia um pardal. Quase inerme de fome. Pegou
nele com mil cautelas suaves. Pobre bicho! Dos olhos rolavam-lhe lágrimas
azuis. «Que estranho este pássaro chorar lágrimas azuis!» Ou veria mal por
causa da penumbra? – congeminou. – «Aqui tudo morre de fome na terra e
no céu!» (De sede não, porque a água vai direitinha dos olhos à boca.)
E a soprar-lhe as penas (que magro!) compadeceu-se:
– Só me espanto como ainda não te comeram, bichinho!
Depois, com o vago desgosto suspeitoso de já não ser o mesmo João Sem
Medo – embora mantivesse a cabeça altiva e desafiante de outrora –
depositou-o com delicadeza de pô-lo bem à vista no ramo de um
zambujeiro à mercê do primeiro famélico que o fisgasse. E encaminhou-se
para a aldeola onde um povo de vizinhos e amigalhaços o recebeu com altos
prantos de regozijo – a mãe à frente aos beijinhos choramingantes:
– Ai! o meu João que andou lá por esses Brasis e não se esqueceu da sua
mãezinha!... Pois não, queridinho? Se soubesses o que chorei por ti, meu
filho. De dia e de noite. Mas enriqueceste, ao menos? Trazes dinheiro para
me fazeres um enterro decente quando chegar a minha horinha?
– Não, minha mãe. Nem é necessário. Porque a vida da nossa aldeia vai
modificar-se radicalmente.
E com ímpeto de sentir um comício na garganta, galgou até ao cimo de
um penedo e desatou a discursar aos chorincas que o rodeavam:
– Cidadãos! Precisamos de organizar uma conspiração urgente contra as
lágrimas mal choradas. E raspar o musgo das faces. E tirar o verdete das
bocas. Viva a alegria revolucionária!
Mas, pouco a pouco, a um e um, os choraquelogobebenses, apavorados
com estas palavras que perturbavam a vocação geral para mortos e a paz
podre das longas digestões da Fome, começaram a esquivar-se à sorrelfa,
aumentando de propósito o clamor dos soluços para cobrirem de cinzas e
lamentos a voz incitadora de João Sem Medo.
– Ouçam!... Ouçam!... – tentou ainda o pobre rapaz deter, em vão, aquela
chusma covarde.
Mas quem o queria ouvir?... E na sua voz arderia a convicção necessária
para o milagre de transfigurar as palavras de todos os dias em armas de
incêndio?
Este agora, aquela a seguir, todos os choraquelogobebenses se
desvaneceram na noite do bolor. Só quedou a mãe a roê-lo com
chorinquices de desistência:
– Deixa essas ideias, meu filho... Não estragues o nosso rico sossego, a
nossa aprendizagem para cadáveres. E chora, chora, chora como nós.
Derrete-te em lágrimas e desiste.
– Não, não desisto, Mãe – berrou teimoso e temerário (por fora).
Mas ao mesmo tempo (por onde andaria o outro João Sem Medo
aventureiro e quando viria visitá-lo?) foi murmurando à mãe com certa
prudência prática de homem cansado:
– Não desisto, Mãe. Não desisto, percebe?... Mas provisoriamente, para
restaurar as forças, sabe o que me apetecia agora?... Um jantarinho cá dos
nossos... Com grelos, hem? Mas não cuide que desisto da luta. Não!
Jamais!... É só um apetite...
– Sim, meu filho... Sim, meu querido filho... Um apetite...
E a pobre lá foi cozer o bacalhau demolhado em lágrimas.
Então, João Sem Medo, sempre à espera de não sabia bem de quê... talvez
do milagre que um dia o ajudasse a secar aquelas lágrimas da Terra... talvez
esperançado na chegada do outro João Sem Medo que, afinal, apenas o
procurava de noite, durante o sono...
... Então, João Sem Medo, provisoriamente, sempre provisoriamente,
vendo tantos olhos a chorar... montou uma fábrica de lenços e enriqueceu.
(Ah! Mas um dia, um dia!...)
Nota final da 2.ª edição
1 «Para nós a intuição é a inteligência rápida… » António Sérgio – Obras de Antero de Quental –
Sonetos. Edição de 1943 – pág. 68.