You are on page 1of 104

DIREITO COMERCIAL I

Curso de Direito Comercial


José Manuel Coutinho de Abreu | 12ª edição, Vol. I

GABRIELA SOUSA
2021/2022

Página 2 de 104

CAPÍTULO I

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO MERCANTIL

1. CONCEÇÕES DE DIREITO COMERCIAL

Um direito comercial em sentido próprio, enquanto corpo ou sistema normativo autónomo tendo por função
regular a atividade mercantil, terá surgido somente na época medieval em cidades italianas. Era uma época de fraco
poder político central e de forte ressurgimento do comércio. Os grandes comerciantes, organizados em corporações,
passaram a constituir a classe económica e politicamente dominante.
Fontes desse direito eram os costumes mercantis (originados nas práticas contratuais dos comerciantes, cedo
foram reduzidos a escrito, tendo sido depois retomados e desenvolvidos nos estatutos corporativos), os estatutos das
corporações dos mercadores (continham não apenas costumes e princípios jurisprudenciais consolidados, mas
também o programa do mandato dos comerciantes eleitos cônsules das corporações, as deliberações do conselho dos
comerciantes mais antigos e das assembleias gerais) e a jurisprudência dos tribunais “consulares”.
Assim surgiram regras, institutos e princípios jurídicos como a liberdade de forma na conclusão de contratos, o
reforço do crédito mercantil, a licitude da venda de bens alheios quando feita por comerciante, os auxiliares de
comércio (gerentes, caixeiros, agentes, comissários), o estabelecimento comercial e sinais distintivos, a escrituração
mercantil, as letras de câmbio, os seguros marítimos, a sociedade em comandita e a sociedade em nome coletivo.
Foi, portanto, o medievo direito comercial italiano um “direito de classe”, um ius mercatorum: um direito criado
pelos mercadores para regular as suas atividades profissionais e por eles aplicado. Dizendo de outro modo, foi um
direito de cariz “subjetivo”, pois disciplinava os comerciantes e os atos destes relativos ao seu comércio.

Relativamente a Portugal, não foram muitas e nem muito significativas as normas jurídicas especialmente
destinadas ao comércio. O comércio era regulado por costumes (quase sempre locais), forais (também locais), parcas
disposições do código visigótico e de direito canónico.
Contudo, deve ser realçado o papel do Portugal medieval no desenvolvimento dos seguros marítimos (as
primeiras bolsas de seguros marítimas lusas terão sido organizadas pelo rei D. Fernando entre 1375 e 1380).
Em Portugal, o grande desenvolvimento do comércio externo provocado pelas descobertas marítimas e
ultramarinas não foi acompanhado por significativo movimento legislativo-comercial, pois os modelos estrangeiros
das companhias coloniais foram aqui adotados desde a primeira metade de seiscentos.

O Code de Commerce de 1807 marca o início da etapa contemporânea na evolução do direito comercial. Os
princípios da liberdade e da igualdade (perante a lei), inspiradores da Revolução Francesa (1789), eram incompatíveis
com a manutenção de um direito dos comerciantes, enquanto classe corporativa. Daí que o código qualifique

Página 3 de 104

simplesmente como comerciantes os que fazem da prática de atos do comércio profissão (artigo 1.º) e como
comerciais uma série de atos que não têm de ser praticados por comerciantes (artigos 631.º/3, 632.º e 633.º).

2. NOÇÃO DE DIREITO COMERCIAL PORTUGUÊS

Não existe um conceito unitário de direito mercantil com valia universal. Ora, circunscrevendo-nos ao quadro
jurídico-positivo nacional, podemos definir o direito comercial como o sistema jurídico-normativo que disciplina de
modo especial os atos de comércio e os comerciantes.
Nas noções de direito comercial aparece habitualmente a nota de ser ele um ramo do direito privado.
Regulando este a organização dos sujeitos (singulares e coletivos) privados e as relações estabelecidas entre eles ou
entre eles e entidades públicas atuando como particulares, é inquestionável que o direito mercantil é
fundamentalmente direito privado. Não obstante, as leis comerciais contêm também disposições de direito público –
basta pensar naquelas que consagram deveres jurídico-públicos dos comerciantes.

Dentro do direito privado e em face do direito civil, o direito comercial é globalmente considerado especial, pois
é um ramo jurídico com regras diferentes das do direito comum, aplicável somente a certos sujeitos, objetos ou
relações (mas sem excluir a aplicabilidade do direito civil enquanto direito comum e subsidiário).

O Direito Comercial disciplina atos de comércio e comerciantes, mas os conceitos de comércio em sentido
jurídico e de atos jurídico-comerciais não coincidem com os correspondentes conceitos económicos.

É hoje vulgar falar-se de três setores da atividade económica:


– Primário: compreendendo a agricultura (que, num sentido amplo, também abrange a pecuária e a
silvicultura), a pesca e a caça;
– Secundário: indústria;
– Terciário: serviços (compreendendo estes, residualmente, tudo quanto não cabe nos dois primeiros
setores: comércio, transportes, fornecimento de água, gás, eletricidade, atividades seguradoras, bancárias,
liberais, etc.).

Ora, o comércio em sentido jurídico abarca não apenas o comércio em sentido económico (usualmente definido
como atividade de interposição na circulação dos bens ou de interposição nas trocas), mas também outras indústrias
e serviços; e os atos jurídico-mercantis não se situam somente nos domínios do comércio economicamente entendido
– p. ex., os artigos 230.º, 366.º e ss., 394.º e ss., 397.º e ss., etc.

Por outro lado, também não se pode dizer que o direito comercial disciplina todas as atividades económicas,
pois este quase não entra, por exemplo, nas indústrias extrativas, na agricultura, nas indústrias e serviços artesanais e
nos serviços profissionais liberais.

Página 4 de 104

Assim, em vez de direito dos atos de comércio e dos comerciantes, não será preferível definir o direito comercial
como o direito das empresas (comerciais) ou à volta das empresas (comerciais)?

O empresarialismo “estrito” (o direito comercial como simples direito das empresas) foi perdendo força e entrou
em crise evidente a partir dos anos cinquenta, sobretudo porque essa conceção tendeu a restringir em demasia o
espaço do direito mercantil – excluiu atos isolados de comércio, o direito cambiário e das falências, o direito dos
seguros e do tráfico marítimo e aéreo.
Ora, quer um empresarialismo mais ou menos estrito, mais que “das empresas”, o direito mercantil será “à volta
das empresas”, pois não exclui certos atos ocasionais de comércio.

O direito comercial português atual, além de admitir comerciantes não empresários, regula atos de comércio
esporádicos ou ocasionais que não têm que ver com empresas mercantis e cuja disciplina não poderá dizer-se
determinada por interesses ligados à empresarialidade.

3. FONTES DO DIREITO COMERCIAL PORTUGUÊS

3.1. FONTES EXTERNAS E FONTES INTERNAS

Nas fontes do direito mercantil – nos modos ou formas por que se constitui e manifesta o direito
especificamente aplicável à matéria mercantil (atos e objetos comerciais, comerciantes) – convém distinguir entre
fontes externas e internas.

® FONTES EXTERNAS

Entre as fontes externas, cuja importância se tem vindo a acentuar, destacamos as convenções internacionais e
os regulamentos e diretivas da Comunidade Europeia (artigos 288.º TFUE e 8.º/3 CRP).
Embora de valor infraconstitucional, as normas da generalidade das convenções internacionais e as citadas
normas de “direito supranacional” prevalecem sobre a lei ordinária interna (anterior ou posterior).

® FONTES INTERNAS

Entre as fontes internas avultam as leis (comerciais), amplamente entendidas, de modo a abarcarem atos
legislativos (leis constitucionais, leis, decretos-leis, decretos legislativos regionais) e regulamentos.
Também a Constituição da República Portuguesa (CRP) contém algumas regras atinentes ao direito comercial,
como é o caso dos artigos 61.º, 81.º, al. f), 82.º, 85.º, 86.º, 99.º, 100.º e 293.º.

Página 5 de 104

Contudo, as principais fontes do direito comercial são as leis ordinárias (as leis propriamente ditas, da
Assembleia da República, e os decretos-leis do Governo).
Também a jurisprudência e a doutrina são fontes do direito comercial. Com efeito, as decisões judiciais
participam na criação ou constituição do direito e, destas decisões concretas, vão-se inferindo normas e princípios
normativo-jurídicos e até mesmo institutos jurídicos, enquanto explicitações dogmáticas das intenções normativas
que as informam,
Os usos (práticas sociais estabilizadas) e os costumes (práticas sociais estabilizadas seguidas com a convicção
de serem juridicamente obrigatórias) mercantis, apesar de hoje serem menos significativos, também considerar-se-ão
fontes do direito comercial, apesar de estes primeiros não constarem do artigo 3.º do CCom.

3.2. APLICAÇÃO DA LEI CIVIL A MATÉRIA MERCANTIL

A lei civil é aplicável a questões comerciais. Di-lo logo o artigo 3.º do CCom. e, deste preceito, se poderia concluir
ser a legislação civil fonte de direito comercial. No entanto, esta conclusão não seria correta pois, sendo o direito
comercial um direito privado especial, lógico é que o direito civil, enquanto direito privado comum, intervenha na
disciplina de matérias mercantis quando o normativo especial se revele insuficiente. Ora, a lei civil, quando
subsidiariamente se aplica a questões comerciais, intervém porque é lei comum e a esse título.
O direito comercial apresenta-se como um ordenamento especial e fragmentário, aberto ao recurso direto ao
direito comum na disciplina das situações e relações mercantis. Assim sendo, nem todas as omissões de
regulamentação legal-mercantil significam verdadeiras lacunas, não servindo o direito civil apenas para integrar
lacunas da lei comercial não integráveis por normas mercantis regulamentadoras de casos análogos.

4. PLANO DO CURSO

Como já vimos anteriormente, o direito comercial define-se por ser um sistema jurídico-normativo dos atos de
comércio e comerciantes. Por sua vez, os mais significativos comerciantes e empresários são as sociedades comerciais.
Eis, pois, os grandes grupos temáticos deste curso: atos de comércio, comerciantes, empresas e sociedades.

Página 6 de 104

CAPÍTULO II

DOS ATOS DE COMÉRCIO EM GERAL

1. INTRODUÇÃO

Os atos de comércio são parte essencial da matéria mercantil e, em regra, nas obrigações comerciais (obrigações
resultantes de atos mercantis) os coobrigados são solidários (artigo 100.º do CCom.); as dívidas dos comerciantes
casados derivadas de atos mercantis presumem-se contraídas no exercício dos respetivos comércios; e o artigo 102.º
estabelece um regime com uma ou outra particularidade para os juros relacionados com atos comerciais – os juros
comerciais legais são devidos nos casos previstos no Código Comercial ou em outras leis, desde que estejam em causa
atos comerciais.

2. NOÇÃO DE ATOS DE COMÉRCIO

“Serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código e,
além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o
contrário do próprio ato não resultar” (artigo 2.º do CCom.).

Deste enunciado resultará a impossibilidade de um conceito unitário, homogéneo ou genérico de ato de


comércio. Todavia, têm sido defendidos conceitos unitários de ato de comércio. Para isso, tem-se lançado mão de três
critérios: finalidade especulativa (é comercial o ato praticado com escopo lucrativo), interposição nas trocas ou na
circulação das riquezas e existência de uma empresa (são comerciais os atos praticados por uma empresa e/ou no
quadro de uma empresa).

Ora, nenhum destes critérios (isolada ou conjugadamente) possibilita um conceito unitário de ato de comércio:
• Existem atividades normalmente exercidas com intuito especulativo ou lucrativo e nem por isso qualificadas
como atos comerciais – recorde-se o caso da agricultura, da maioria das indústrias extrativas, do artesanato, da atividade
dos profissionais liberais, etc. Por outro lado, os atos e atividades mercantis, não têm de ser realizados com fins lucrativos
(embora o escopo lucrativo esteja presente na maioria dos casos), podendo o Estado praticar atos de comércio sem tais
finalidades.
• Por sua vez, o critério da interposição nas trocas é insuficiente também, pois o Código Comercial considera
comerciais certos atos que não têm de realizar ou facilitar interposições nas trocas.
• Finalmente, a existência de uma empresa e a empresarialidade não são critérios servíveis para a construção de
um conceito unitário de ato de comércio. Por várias razões: a comercialidade de diversos atos esporádicos ou ocasionais
prescinde da existência da empresa; a empresarialidade não é algo unívoco, captável através de um critério único; há
empresas civis, tendo obviamente também que ver com a empresarialidade.

Página 7 de 104

Os atos de comércio são sobretudo contratos e, além de negócios jurídicos bilaterais, podem ser atos mercantis
negócios jurídicos unilaterais, como é o caso dos negócios cambiários e dos negócios constituintes das sociedades
comerciais unipessoais, por exemplo.
Fora dos domínios dos negócios, é possível encontrar simples atos jurídicos como atos comerciais, como é o
caso das interpelações e avisos efetuados por sociedades mercantis a sócios remissos.
Os próprios factos jurídicos ilícitos não estão excluídos da qualificação, em certos casos, como atos comerciais.
Desde logo quando estejam previstos na lei mercantil, como a abalroação culposa de navios (artigos 665.º e ss. do
CCom.).
Já os factos jurídicos não voluntários ou naturais parecem não qualificáveis como atos de comércio –
dificilmente se concebem atos que não sejam factos voluntários de sujeitos de direito.

Dito isto, podemos afirmar que são atos de comércio os factos jurídicos voluntários especialmente regulados
em lei comercial e os que, realizados por comerciantes, respeitem as condições previstas no final do artigo 2.º do
CCom.

3. ATOS DE COMÉRCIO OBJETIVOS E SUBJETIVOS

São atos de comércio objetivos todos aqueles que se acharem especialmente regulados no Código Comercial.
Por outro lado, são atos de comércio subjetivos todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de
natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar.

3.1. ATOS DE COMÉRCIO OBJETIVOS (interpretação do artigo 2.º do CCom., 1ª parte)

A primeira parte do enunciado normativo do artigo 2.º é uma definição de atos de comércio objetivos por
enumeração ou catálogo – por enumeração implícita, mais precisamente (o preceito não explicita os atos, remetendo
antes para outras disposições normativas) – são quatro os modos de manifestação da comercialidade jurídica objetiva,
nomeadamente (1°) enumeração implícita; (2°) interpretação extensiva; (3°) artigo 230.º; (4°) analogia.

O Código Comercial prevê variados atos: fiança (artigo 101.º), empresas (artigo 230.º), mandato (artigos 231.º
e ss.), conta corrente (artigos 344.º e ss.), operações de banco (artigos 362.º e ss.), transporte (artigos 366.º e ss.),
empréstimo (artigos 394.º e ss.), penhor (artigos 397.º e ss.), depósito (artigos 403.º e ss.), depósito de géneros e
mercadorias nos armazéns gerais (artigos 408.º e ss.), compra e venda (artigos 463.º e ss.), reporte (artigos 477.º e
ss.), escambo ou troca (artigo 480.º), aluguer (artigos 481.º e 482.º), transmissão e reforma de título de crédito
mercantil (artigos 483.º e 484.º) e atos relativos ao comércio marítimo (livro III).

Página 8 de 104

Os atos de comércio são aqueles que, por se acharem especialmente regulados neste Código, são
concretamente caracterizados pelas notas caracterizadoras ou requisitos previstos no CCom. Assim sendo, mesmo os
atos comerciais para os quais o Código não estabelece disciplina específica ficam sujeitos às regras especiais comuns
aos atos de comércio em geral.
Contudo, os atos de comércio objetivos não são apenas aqueles especialmente regulados no Código Comercial.
Posto isto, a expressão “neste código” deve ser interpretada extensivamente de modo a abarcar outras leis comerciais
– uma lei será qualificada como comercial quando atender a três requisitos:
• A lei substitui normas do CCom.: “toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria contida no
Código Comercial será considerada como fazendo parte dele e inserida no lugar próprio, quer seja por meio de
substituição de artigos alterados (...)” – artigo 4.º da Carta de Lei de 28 de junho de 1888.
• A lei qualifica (direta ou indiretamente) atos como comerciais: devem considerar-se atos objetivos de
comércio, porque especialmente regulados em lei comercial, a locação e o trespasse de estabelecimentos
comerciais.
• Nenhuma destas hipóteses se qualifica: na maioria dos casos, as leis não se auto qualificam
explicitamente (de modo direto ou indireto) como comerciais, civis, etc. Assim sendo, para sabermos se estamos
perante uma lei mercantil, que preveja de algum modo atos (objetivos) de comércio, parece necessário ver se
elas disciplinam matéria análoga à disciplinada no CCom. ou em outras leis classificadas como comerciais.

3.1.1. SIGNIFICADO DO ARTIGO 230.º DO CCOM. NO QUADRO DOS ATOS DE COMÉRCIO

O artigo 230.º dispõe que “haver-se-ão por comerciais as empresas, singulares ou coletivas, que se propuserem:
(1°) a transformar, por meio de fábricas ou manufaturas, matérias-primas, empregando para isso, ou só operários, ou
operários e máquinas; (2°) fornecer, em épocas diferentes, géneros, quer a particulares, quer ao Estado, mediante
preço convencionado; (3°) agenciar negócios ou leilões por conta de outrem em escritório aberto ao público, e
mediante salário estipulado; (4°) explorar quaisquer espetáculos públicos; (5°) editar, publicar ou vender obras
científicas, literárias ou artísticas; (6°) edificar ou construir casas para outrem com materiais subministrados pelo
empresário; (7°) transportar, regular e permanentemente, por água ou por terra, quaisquer pessoas, animais, alfaias
ou mercadorias de outrem”.

Uma corrente doutrinária entende que as “empresas” aí previstas significam o mesmo que “empresários” ou,
mais concretamente, “comerciantes”. As empresas seriam as pessoas, singulares ou coletivas, que se propusessem
praticar os atos de comércio enumerados no artigo.
Para uma outra corrente, tais empresas não são mais que séries ou complexos de atos comerciais (objetivos).
Enquanto outros atos regulados no Código são considerados isoladamente (são mercantis mesmo que praticados
ocasionalmente), os previstos no artigo 230.º são comerciais porque praticados em série, em “repetição orgânica”.

Página 9 de 104

Nós inclinamo-nos a ver as empresas do artigo 230.º como conjuntos ou séries de atos (atividades)
objetivamente comerciais enquadrados organizatoriamente (atos praticados no quadro de organizações de meios
pessoais e/ou reais).
Estes atos objetivos serão tão-só os contratos em que o exercício da empresa tipicamente se traduz, pois são
eles que patentemente se revelam nos vários números do artigo. Os restantes atos (p. ex., compras de instrumentos
e objetos de trabalho, contratos de trabalho e de prestação de serviços) serão subjetivamente comerciais, nos termos
da 2ª parte do artigo 2.º do CCom.

3.1.2. QUALIFICAÇÃO DE ATOS DE COMÉRCIO POR ANALOGIA

A enumeração implícita dos atos de comércio constante da 1ª parte do artigo 2º do CCom. é exemplificativa ou
taxativa? Atos não regulados legislativamente, ou previstos em leis cujo caráter (comercial ou neutro) não é declarado
(direta ou indiretamente) podem ser qualificados comerciais por analogia com atos previstos em lei mercantil?

Este problema não se resolve recorrendo ao artigo 3.º do CCom., pois esta norma admite o recurso à analogia
para regular atos já qualificados como comerciais, enquanto a nossa questão diz respeito a lacunas de qualificação.

Os defensores da tese da inadmissibilidade da qualificação de atos mercantis por analogia invocam três
argumentos principais:
• Letra da lei: “serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente
regulados neste Código”, ou seja, é um enunciado que, além dos atos subjetivos de comércio, apenas permitiria
como atos comerciais os especialmente regulados em lei mercantil;
• Razão histórica: a 1ª parte do nosso artigo 2.º foi inspirada no 2° parágrafo do artigo 2.º do Código de
Comércio espanhol de 1885 e a parte final deste parágrafo foi deliberadamente afastada da nossa lei. Por outro
lado, vão no mesmo sentido o relatório ministerial que precedeu a proposta da lei para a aprovação do CCom.
e a discussão nas câmaras dos deputados e dos pares sobre o projeto do CCom.
• Certeza e segurança jurídicas: dado o regime especial e as implicações dos atos de comércio, seria
atentar contra o valor jurídico da segurança permitir a analogia na determinação de atos mercantis.

No entanto, trata-se de uma argumentação insubsistente. Primeiro porque a letra do artigo 2.° não é
concludente (não diz que, além dos subjetivos, são atos de comércio apenas os especialmente regulados em lei
comercial). Segundo, porque está perimida desde há muito a conceção subjetivista-histórica da interpretação das leis.
E, por último, porque o argumento da certeza jurídica já pesou muito mais do que agora e, doutro lado, porque o valor
da justiça ou razoabilidade há de sobrelevar.

Página 10 de 104

Na perspetiva que adotamos, a admissibilidade do recurso à analogia legis (disciplina dos casos omissos através
da aplicação de princípios gerais obtidos através de induções lógico-generalizadoras de uma série de normas legais)
não levantará grandes dúvidas. Já o mesmo não se dirá quanto à analogia juris.
Ora, quem defenda a existência de um conceito unitário de ato de comércio, coerentemente defenderá o
recurso à analogia juris (extraído do sistema normativo mercantil o “princípio geral”, conceito unitário de ato de
comércio, há que aplica-los aos casos omissos). No entanto, vimos atrás a irrealidade do conceito unitário de ato de
comércio, sendo compreensível que alguns se oponham à analogia juris.
Contudo, rejeitando embora um conceito unitário de ato comercial, não será possível extrair vários princípios
gerais de vários grupos de normas qualificadoras (por razões idênticas ou similares) de diversos atos como atos de
comércio, possibilitando, pois, o recurso à analogia juris? Coutinho de Abreu pensa que sim.

Vamos às concretizações destas ideias:


ß

® O artigo 230.º/6 refere-se às empresas de construção, somente, de “casas”. Não são então
comerciais as empresas construtoras de edifícios no mais amplo sentido, bem como de outras obras? Não há razões
substanciais para se lhes negar tal qualidade. Logo, a norma deve ser estendida analogicamente (analogia legis)
àquelas outras empresas de construção.

® O objeto dos agrupamentos complementares de empresas tanto pode ser comercial como civil, pelo
que não pode dizer-se serem estes diplomas leis comerciais (eles regulam unitariamente os ACE com objeto civil e os ACE com
objeto mercantil). Todavia, sendo os ACE entidades análogas aos AEIE, deve o contrato constituinte de um ACE com objeto

comercial ser considerado ato objetivo de comércio por extensão analógica (analogia legis) do artigo 3.º/1 do decreto-
lei 148/90, de 9 de maio.

® Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à
outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta e que o locatário
poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples
aplicação dos critérios nele fixados. Pois bem, a locação financeira é um contrato em que se associam essencialmente
prestações próprias da compra e venda e da locação. Ora, a compra de coisas móveis feita pelo locador financeiro
para as alugar e, eventualmente, as revender é ato de comércio objetivo (artigo 463.º/1 do CCom.); a venda dessas
coisas é também, nos termos do n.° 3 do citado artigo, um ato comercial; e o aluguer de tais coisas é igualmente
mercantil (artigo 481.º do CCom.). Assim sendo, afigura-se razoável estender analogicamente a norma do artigo 481.º
à locação de imóveis no leasing. Portanto, o contrato de locação financeira, globalmente considerado, é um ato de
comércio objetivo.

® O artigo 230.º/2 do CCom. trata das empresas que fornecem, em épocas diferentes, géneros, quer a
particulares, quer ao Estado, mediante preço convencionado. Ora, esta norma tem sido a mais fértil fonte para, através

Página 11 de 104

de interpretação extensiva ou de integração por analogia legis, se reconhecer a comercialidade de ume série de
espécies empresariais – tem-se entendido, com base em interpretação extensiva, serem comerciais as empresas fornecedoras de água, gás
ou eletricidade, empresas hoteleiras, de publicidade, de informações comerciais, de gestão de bens, de tratamentos de beleza, de reparação de

automóveis, lavandarias, etc. Devem ser abrangidas por aquela disposição todas as empresas que, apesar de não serem de

fornecimento de géneros, se traduzam no exercício de uma atividade económica desenvolvida dentro do


condicionalismo referido.

® Como qualificar então as empresas de prestação de serviços que têm crescido consideravelmente
nos últimos decénios, mas que não são análogas às previstas no n.° 2 do artigo 230.º, nem às incluíveis noutras normas
do CCom., nem às consideradas comerciais em diplomas posteriores? Ora, se aquelas empresas de serviços não podem
ser qualificadas de comerciais pelo recurso à analogia legis, já podem sê-lo pelo recurso à teleologia imanente ao
sistema legal mercantil, ao seu espírito, à analogia juris portanto – o facto de a lei (quer no CCom., quer em diplomas ulteriores),
considerar comerciais muito variadas empresas de serviços conduz-nos a esta conclusão.

– Assim, devem ser qualificados como comerciais os “empreendimentos turísticos”: os


estabelecimentos que se destinam a prestar serviços de alojamento, mediante remuneração,
dispondo, para o seu funcionamento, de um adequado conjunto de estruturas, equipamentos e
serviços complementares (artigo 2.º/1), que podem ser estabelecimentos hoteleiros, aldeamentos
turísticos, apartamentos turísticos, conjuntos turísticos, bem como os estabelecimentos de
alojamento local.

® O trespasse e a locação de estabelecimento comercial são atos de comércio objetivos e, recorrendo


mais uma vez à analogia juris, diremos que os negócios sobre empresas comerciais são atos objetivamente comerciais.

® “Agência” é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a
celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo-lhe ser atribuída certa zona
ou determinado círculo de clientes. Antigamente, a comercialidade destes contratos era afirmada nos casos em que o
contrato é concluído no âmbito de uma empresa (artigo 230.º/3 do CCom.), mas, atualmente, por virtude da analogia
legis, a sua comercialidade é também afirmada quando fosse concluído fora do quadro de uma empresa dedicada a
agenciar negócios (artigos 231.º e 266.º do CCom.) – o contrato de agência e os atos que por virtude dele o agente
pratica são atos de comércio objetivos.

® “Concessão comercial” é o contrato de caráter duradouro pelo qual o concedente se obriga a vender,
sucessivamente, bens por si produzidos ou distribuídos ao concessionário, obrigando-se este a comprá-los e a
promover, nas condições acordadas e em nome e por conta própria, a respetiva revenda. É claro que as vendas dos
concedentes são comerciais, tal como são comerciais as compras efetuadas pelos concessionários, porém, o contrato
de concessão comercial, uma vez que consubstancia um ato de interposição nas trocas, se deve qualificar, recorrendo
à analogia juris, como ato de comércio.

Posto isto, atos de comércio objetivos serão os factos jurídicos voluntários previstos em lei comercial e análogos.

Página 12 de 104

3.2. ATOS DE COMÉRCIO SUBJETIVOS

Os atos de comércio subjetivos são todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de
natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar (artigo 2.º, 2ª parte, do CCom.).

Ora, vamos desconstruir esta “fórmula” em três partes:

• Contratos e obrigações dos comerciantes: segundo o artigo 13.º do CCom., são comerciantes as
pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão e as sociedades comerciais. No
entanto, o preceito refere-se a “contratos e obrigações” dos comerciantes quando, na verdade, seria mais coerente
referir-se o enunciado normativo a “todos os atos dos comerciantes”.
• Não serem “de natureza exclusivamente civil”: segundo o entendimento tradicional, são de natureza
exclusivamente civil os atos apenas regulados na lei civil. No entanto, o preceito refere-se a atos de natureza
exclusivamente civil e não a atos regulados apenas em lei civil. Ora, em consonância com a autorizada doutrina italiana
que se ocupou do artigo 4.º do Codice di Commercio, entendemos pois serem atos (e obrigações) de natureza civil os
que, por sua natureza ou essência, não são conexionáveis com o exercício do comércio, não se concebendo
(juridicamente) nem dirigidos a auxiliar, promover ou levar a cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem
– são, portanto, os atos de caráter extrapatrimonial como o casamento, a perfilhação, a designação de tutor pelos pais, etc.

o As gratificações a empregados, bem como as doações feitas pelos comerciantes com fins reclamísticos
não são atos de natureza exclusivamente civil, são atos com causa mercantil, conexionáveis com o comércio e
promotores do exercício do comércio (artigo 15.º do CCom.).
o O mesmo acontece com as rendas perpétuas ou vitalícias (artigos 1231.º e ss. do CC), as quais não são
atos essencialmente civis – p. ex., um comerciante que adquire a um particular uma pintura valiosa, obrigando-
se a pagar a quantia em dinheiro por tempo ilimitado (renda perpétua) ou durante a vida de um filho do alienante
(renda vitalícia).
o Também os factos jurídicos ilícitos, geradores de responsabilidade civil extracontratual, têm conexão
com o comércio e podem considerar-se atos subjetivamente mercantis – p. ex., um comerciante dedicado ao
transporte de mercadorias que causa, negligentemente, com o seu camião, um acidente de que resultam
ferimentos num peão ou danos numa moradia.

• “O contrário do próprio ato não resultar”: isto significa que, do próprio ato, não pode resultar a não
ligação ou conexão com o comércio (do comerciante autor do ato ou, acrescentemos, sujeito de certa obrigação).
Assim, se do próprio ato resulta a ligação com o comércio, o ato é comercial (p. ex., um merceeiro compra uma furgoneta a um
agricultor, declarando destinar-se a mesma ao transporte de mercadorias de e para a sua mercearia); se do próprio ato não resulta a
não ligação com o comércio, o ato é igualmente comercial (p. ex., o merceeiro compra a furgoneta ao seu conhecido agricultor sem
nada declarar acerca do destino da viatura); se do próprio ato resulta a não conexão com o comércio, o ato não é mercantil
(p. ex., o nosso merceeiro, ao comprar a furgoneta, declara que a utilizará como caravana nas férias).

o “Próprio ato” significa não apenas o facto jurídico em si, mas também as circunstâncias
concomitantes que auxiliem na sua compreensão – p. ex., o merceeiro convida o agricultor a fazer-lhe uma

Página 13 de 104

proposta de venda da furgoneta e propõe que o contrato de compra e venda se realize através de escrito particular (artigo
223.º/1 CC) e o agricultor aceita. Aquando da conclusão do negócio, o merceeiro comunica necessitar do veículo para o
utilizar como caravana, mas do escrito não consta qualquer declaração relativa à projetada utilização da viatura. Se
atendêssemos simplesmente ao ato negocial e às declarações negociais das partes que o constituem, concluiríamos tratar-
se de um ato mercantil (dele não resulta uma não conexão com o comércio). Todavia, porque devemos atender às

circunstâncias concomitantes, o ato há de ser qualificado de civil.

A 2ª parte do artigo 2.º contém uma presunção legal?


ß
Segundo alguns autores, a norma revela uma presunção (os atos dos comerciantes presumem-se comerciais),
apresentando-se como uma presunção juris tantum, para uns, e juris et de jure, para outros. E é uma norma imperativa.
Para o Dr. Coutinho de Abreu, trata-se de uma presunção juris et de jure (que não admite prova em contrário).
Ora, do facto de se saber que determinado sujeito é comerciante, não se conclui que os atos praticados por ele são
comerciais, e aquela norma estabelece a comercialidade de atos (e obrigações) que respeitem três requisitos: serem
de comerciantes, não serem de natureza exclusivamente civil, nem deles resultar não estarem conexionados com o
comércio dos respetivos comerciantes.

Posto isto, aqui fica uma definição de atos de comércio subjetivos: os factos jurídicos (voluntários) dos
comerciantes conexionáveis com o comércio em geral e de que não resulta não estarem conexionados com o comércio
dos seus sujeitos.

4. ATOS DE COMÉRCIO AUTÓNOMOS E ATOS DE COMÉRCIO ACESSÓRIOS

São atos de comércio autónomos os qualificados de mercantis por si mesmos, independentemente de ligação a
outros atos ou atividades comerciais.
São atos de comércio acessórios os que devem a sua comercialidade ao facto de se ligarem ou conexionarem a
atos mercantis.

O Código Comercial prevê alguns atos acessórios: é o caso da fiança (artigo 101.º), do mandato (artigo 231.º),
do empréstimo (artigo 394.º), do penhor (artigo 397.º) e o depósito (artigo 403.º).
Estes atos tanto podem ser acessórios de atos de comércio objetivos e autónomos (p. ex., mandato para a compra de
uma mercadoria destinada a revenda), como de atos de comércio objetivos, mas acessórios (p. ex., mandato para o depósito de
mercadorias que o mandante comprou para serem revendidas), como de atos subjetivamente comerciais (p. ex., mandato para compra

de caixas-registadoras destinadas ao supermercado do mandante).

Quanto aos atos de não comerciantes, não especialmente regulados na lei mercantil, mas acessórios de atos
objetivamente comerciais, a doutrina dominante nega a sua qualificação como ato de natureza comercial, ou porque

Página 14 de 104

se considera inadmissível o recurso à analogia, ou porque se admite tal recurso, mas de modo restrito – p. ex., uma pessoa
comprou dez arrobas de queijo da serra para revender e, para transportar os queijos, compra caixas de madeira e utiliza uma viatura dada em
aluguer por um agricultor. A compra das caixas e o aluguer da viatura são qualificáveis como atos de comércio pelo facto de serem acessórios

de um ato mercantil.

Há quem qualifique tais atos como atos de natureza comercial de acordo com a teoria do acessório, através da
qual todo o ato de um não comerciante efetivamente conexionado com ato objetivamente mercantil é ato de
comércio. No entanto, esta teoria não deve ser acolhida entre nós, pois não parece legítimo afirmar um “princípio
geral” segundo o qual todo e qualquer ato de não comerciantes seria mercantil quando conexionado com atos
objetivos de comércio (não há aqui lugar, portanto, para a analogia juris).

Não obstante, já nos parece legítimo qualificar de comerciais certos atos de não comerciantes por serem
análogos a atos acessórios de comércio previstos na lei (analogia legis).

5. ATOS FORMALMENTE COMERCIAIS (E ATOS SUBSTANCIALMENTE COMERCIAIS)

Os atos formalmente comerciais (a que se contrapõem os substancialmente comerciais) são os esquemas


negociais que, utilizáveis (por comerciantes ou não comerciantes) quer para a realização de operações mercantis, quer
para a realização de operações económicas que não são atos de comércio nem se inserem na atividade comercial,
estão, contudo, especialmente regulados na lei mercantil, merecendo, portanto, a qualificação de atos de comércio.
Protótipos destes atos são os negócios cambiários (relativos às letras de câmbio) – suponha-se que A, não comerciante,
vende o seu automóvel a B, também não comerciante, destinando-se a viatura ao uso do comprador (compra e venda não comercial). Suponha-
se ainda que o preço não é logo pago e as partes convencionam a emissão de uma letra de câmbio – sacada por A e aceite por B. Estes negócios
cambiários (o saque e o aceite), porque previstos em lei mercantil (a LULL), são atos de comércio (apesar de a sua comercialidade ser “formal”,

uma vez que a causa deles pode nada ter a ver com o comércio ou atos de comércio, como é o caso).

6. ATOS BILATERALMENTE COMERCIAIS E ATOS UNILATERALMENTE COMERCIAIS

Os atos bilateralmente comerciais são atos cuja comercialidade se verifica em relação a ambas as partes – p. ex.,
A, produtora de automóveis, vende, no quadro de um contrato de concessão comercial, x automóveis ao seu concessionário B (a venda é ato de
comércio – objetivo ou subjetivo, consoante a perspetiva que se adote –, e a compra é também comercial, por força do artigo 463.º/1); A celebra
com C, seguradora, um contrato de seguro relativo aos seus estabelecimentos mercantis (tanto pelo lado de A, como pelo lado de C, o ato é

objetivamente comercial).

São atos unilateralmente comerciais os atos cuja comercialidade se verifica só em relação a uma das partes – p.
ex., E, professor, compra a B um automóvel para seu uso e da sua família (a venda é objetivamente comercial e a compra é civil); E segura o seu

automóvel junto de C (o contrato é mercantil com respeito a C, não com respeito a E).

O regime jurídico dos atos unilateralmente comerciais é dado pelo artigo 99.º do CCom. e estes estão, em regra,
sujeitos à disciplina mercantil. Excetuam-se, porém, as disposições da lei comercial que só forem aplicáveis àquele ou

Página 15 de 104

àqueles por cujo respeito o ato é mercantil. Este é especialmente o caso do artigo 100.º do CCom., pelo que esta
disposição não é extensiva aos não comerciantes quanto aos contratos que, em relação a estes, não constituírem atos
comerciais. A solidariedade de devedores só se verifica, por conseguinte, relativamente àqueles “por cujo respeito o
ato é mercantil” – suponha-se que dois comerciantes, num único contrato, compram y peças de artesanato a dois artesãos. O ato é
unilateralmente comercial (a compra é mercantil e a venda é civil – artigos 463.º/1 e 464.º/3) e, portanto, o ato fica sujeito à disciplina jurídico-

comercial, mas os artesãos não são devedores solidários quanto à entrega das peças.

Deve, contudo, acrescentar-se uma categoria mais geral de exceções à aplicação das disposições da lei
comercial. Quanto o ato unilateralmente comercial seja contrato de consumo, aplicam-se a ambos os contratantes as
regras especiais das relações de consumo.

Página 16 de 104

CAPÍTULO III

DOS COMERCIANTES

1. INTRODUÇÃO

Já sabemos que os sujeitos dos atos de comércio e das relações jurídico-mercantis podem ser comerciantes e
não comerciantes.
Os sujeitos (singulares ou coletivos) com capacidade civil de exercício possuem igualmente capacidade
comercial de exercício e podem praticar atos de comércio (artigo 7.º do CCom.). Porém, os atores determinantes do
direito mercantil são os comerciantes. Dessa forma, tem alguma importância saber quem é comerciante, pois estes
possuem um estatuto próprio, que se traduz principalmente no seguinte:

• Os atos dos comerciantes são considerados subjetivamente comerciais, nos termos da 2ª parte do
artigo 2.º do CCom.;

• As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no exercício dos respetivos
comércios (artigo 15.º do CCom.) e tais dívidas são, em princípio, da responsabilidade dos comerciantes e seus
cônjuges (artigo 1691.º/1, al. d) do CC);

• A prova de certos factos em que intervêm comerciantes é facilitada – “o empréstimo mercantil entre
comerciantes admite, seja qual for o seu valor, todo o género de prova” (artigo 396.º do CCom.); “para que o penhor mercantil entre
comerciantes por quantia excedente a duzentos mil réis (cerca de 1€) produza efeitos com relação a terceiros baste que se prove por

escrito” (artigo 400.º do CCom.);

• Prescrevem no prazo de dois anos “os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não
seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam
profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou
gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efetuado, a menos que a prestação se destine ao
exercício industrial do devedor” (artigo 317.º, al. b) do CC).

• Nos termos do artigo 18.º do CCom., os comerciantes estão obrigados a adotar uma firma, a ter
escrituração mercantil, a fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos, a dar balanço e a prestar
contas.

Página 17 de 104

2. SUJEITOS QUALIFICÁVEIS COMO COMERCIANTES

2.1. PESSOAS SINGULARES

Nos termos do n.° 1 do artigo 13.º do CCom., são comerciantes “as pessoas que, tendo capacidade para praticar
atos de comércio, fazem deste profissão”.
Segundo este enunciado normativo, as pessoas, para serem comerciantes, têm de ter “capacidade para praticar
atos de comércio”. A doutrina tradicional entende que esta capacidade referida é a capacidade de exercício (aptidão
para atuar juridicamente, por ato próprio ou mediante procurador). Sendo assim, os menores (não emancipados) e os
maiores acompanhados não poderiam nunca ser comerciantes – no entanto, o requisito da capacidade previsto no
artigo 13.º tem de ser compreendido com algumas restrições.

A alínea c) do artigo 1889.º/1 do CC permite aos pais, enquanto representantes do filho, e desde que
autorizados pelo Ministério Público, adquirir estabelecimento comercial ou industrial ou continuar a exploração do
que o filho haja recebido por sucessão ou doação. O mesmo é permitido, havendo autorização do MP, ao tutor ou ao
administrador de bens de menor. Bem como ao “acompanhante” com poderes de representação legal ou de
administração de bens maior.
Ora, os menores e maiores acompanhados que exerçam o comércio por intermédio de representantes
devidamente autorizados pelo Ministério Público devem ser considerados comerciantes, pois têm o estatuto de
comerciantes (apesar de não terem capacidade para a prática de atos de comércio).
Por conseguinte, eles não têm o estatuto de comerciantes quando exerçam o comércio apenas por si, quando
o comércio seja exercido em nome deles por quem não é representante legítimo ou quando os representantes
exerçam o comércio em nome deles sem autorização do MP.

Para serem comerciantes, as pessoas com capacidade para praticar atos comerciais têm de fazer do comércio
profissão, isto é, fazer do comércio um exercício habitual de atividade económica como meio de vida.
Ora, o comércio referido no artigo 13.º/1 significa “atividade”, qualificada por lei (direta ou indiretamente)
como comercial. E atividade que se traduz em atos, entre os quais se encontram, muitas vezes de forma determinante,
atos de comércio propriamente ditos.
Todavia, não é a prática, ainda que habitual ou sistemática, de quaisquer atos de comércio, que faz do respetivo
sujeito comerciante. Posto isto, para serem comerciantes, as pessoas têm de exercer uma atividade comercial ou
praticar atos de comércio com profissionalidade, isto é, de modo habitual ou sistemático (não é comerciante quem
pratique esporadicamente atos mercantis). Não se exige, no entanto, que a profissão comercial seja a única exercida
pelo sujeito, nem que seja a principal. Nem se exige, para que haja profissão comercial, que a respetiva atividade seja
exercida de modo contínuo ou ininterrupto.

Página 18 de 104

Deve acrescentar-se que as pessoas só são comerciantes quando exercem profissionalmente uma atividade
comercial em nome próprio (pessoalmente ou através de representante). São, portanto, comerciantes os menores e
maiores acompanhados e não os seus representantes, os empresários mercantis e não os seus mandatários ou
representantes.

É correto dizer-se que os comerciantes são, afinal, as pessoas singulares que exploram (a título de propriedade,
locação, usufruto, etc.) empresas comerciais (os empresários comerciais)?
ß
É tendencialmente correto. A larga maioria dos comerciantes explora empresas comerciais (empresas com
objeto mercantil), mas não todos.
Em tese geral, as pessoas singulares só adquirem a qualidade de comerciantes depois da prática do ato ou dos
atos reveladores do propósito e possibilidade de certo sujeito se dedicar ao exercício habitual de uma atividade
comercial, pelo que os vendedores ambulantes, os agentes e outros profissionais intermediários comerciais não
comerciantes, os especuladores que compram e revendem participações sociais na Bolsa ou fora dela são
comerciantes, mas não exploram empresas – uma pessoa pode/deve ser considerada comerciante mesmo antes de
ter constituído empresa. Assim, por exemplo, um sujeito não empresário que celebra pela primeira vez um contrato
de agência passa desde então a ser considerado profissional do agenciamento comercial e comerciante, apesar de não
ter ainda promovido a celebração de qualquer contrato por conta do “principal”.

E no caso de comerciantes-empresários?
ß
Tem-se entendido, sobretudo com apoio no artigo 95.º do CCom., que uma pessoa passa a ser comerciante logo
que abre um estabelecimento pronto a funcionar. No entanto, deve-se ir mais longe.
O Dr. Coutinho de Abreu entende que uma série de atos concatenados com vista à organização e exploração de
uma empresa é suficiente para o respetivo sujeito adquirir a qualidade de empresário, pois, se alguém compra uma
empresa comercial (p. ex., manda construir um edifício apropriado, compra máquinas e mobiliário, contrata trabalhadores), esses atos
indiciam que ele irá explorá-la, tornando-se, por isso, comerciante, apesar de ainda nem sequer existir empresa
propriamente dita.

2.2. PESSOAS COLETIVAS

2.2.1. SOCIEDADES COMERCIAIS

O artigo 13.º prevê que são comerciantes as sociedades comerciais (n.° 2). Nos termos do artigo 1.º/2 do CSC,
“são sociedades comerciais aquelas que tenham por objeto a prática de atos de comércio e adotem o tipo de sociedade

Página 19 de 104

em nome coletivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de
sociedade em comandita por ações”.
As sociedades de que tratamos adquirem a qualidade de comerciantes pelo menos a partir do momento em
que adquirem personalidade jurídica (artigo 5.º do CSC), não sendo necessário que pratiquem primeiro quaisquer atos
de comércio compreendidos no seu objeto.

O artigo 1.º/4 do CSC permite que as sociedades que tenham exclusivamente por objeto a prática de atos não
comerciais adotem um dos tipos ou formas das sociedades comerciais. As sociedades civis de tipo ou forma comercial,
porque lhes falta um dos requisitos das sociedades comerciais (não têm objeto comercial, não se propõem exercer
nem exercem atividade mercantil), não são sociedades comerciais. Logo, não são comerciantes.

3. SUJEITOS NÃO QUALIFICÁVEIS COMO COMERCIANTES

Não são comerciantes os que exercem atividades não mercantis – sendo estas atividades as não qualificadas
legalmente de comerciais e as não análogas às comerciais, certo sendo ainda que a lei, por vezes, exclui expressamente
certos setores da atividade económica do campo da comercialidade.

Assim, não são comerciantes as pessoas (singulares ou coletivas) que exercem atividade agrícola – vale aqui um
conceito amplo que compreende a atividade agrícola em sentido estrito e tradicional (cultivo da terra para obtenção
de colheitas), a silvicultura, a pecuária e ainda a cultura de plantas e a criação de animais sem terra ou em que esta
apresenta caráter acessório. Com efeito, a lei exclui a agricultura (e atividades acessórias) dos domínios do comércio.

Também não são comerciantes os artesãos, isto é, os produtores qualificados que, podendo embora servir-se
de máquinas, utilizam predominantemente o seu trabalho manual e, como instrumentos, ferramentas.
Na verdade, o Código Comercial, nos artigos 230.º e 464.º/3, exclui do comércio a atividade artesanal industrial-
transformadora exercida diretamente pelos artesãos (oleiros, ferreiros, latoeiros, sapateiros, alfaiates, costureiras,
cesteiros etc.).
Por sua vez, as atividades artesanais de outro tipo, quando exercidas diretamente pelos artesãos
(eletromecânicos, estucadores, cabeleireiros, esteticistas, etc.) também não são comerciais – já por não se acharem
especialmente reguladas na lei mercantil e por serem análogas às previstas no artigo 230.º/1.
Muitas vezes, o artesanato é exercido de modo não empresarial, mas ainda assim existem empresas artesanais.
Mesmo nestes casos, os artesãos-empresários que exerçam diretamente a respetiva atividade não são comerciantes
(a atividade artesanal assim exercida continua, nos termos da lei, fora do comércio).

Os profissionais liberais (pessoas singulares que exercem de modo habitual e autónomo atividades
primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprios, bem como os sujeitos coletivos cujo
objeto consista numa atividade profissional liberal) também não são comerciantes.

Página 20 de 104

Próximos dos profissionais liberais, temos uma série de trabalhadores autónomos igualmente não comerciantes
– é o caso, por exemplo, dos escultores, pintores, escritores, cientistas, músicos, etc.
Vale relembrar que, nem todos os que exercem atividades comerciais haver-se-ão tidos por comerciantes. Ora,
tal como dispõe o artigo 17.º do CCom., “o Estado, o distrito, o município e a paróquia não podem ser comerciantes,
mas podem, nos limites das suas atribuições, praticar atos de comércio, e quanto a estes ficam sujeitos às disposições
deste Código”.
Quer isto dizer que, as pessoas coletivas públicas territoriais – o Estado, as regiões autónomas e as autarquias
locais (freguesias e municípios) – podem praticar atos de comércio até de forma habitual e sistemática, podem
explorar direta e imediatamente empresas comerciais, mas nem por isso adquirem a qualidade de comerciantes.

Segundo a norma em apreço, o Estado não pode ser comerciante. E no caso das pessoas coletivas públicas de
tipo institucional (institutos públicos – serviços personalizados, fundações públicas, estabelecimentos públicos, EPEs) e de tipo
associativo (ordens e câmaras profissionais), excetuadas as EPE atrás referidas, todas essas entidades também não podem
ser comerciantes, mesmo quando pratiquem habitualmente atos de comércio.
Posto isto, o “Estado” mencionado no artigo 17.º deve ser interpretado extensivamente, de maneira a abarcar
estas pessoas coletivas públicas que prosseguem uma administração estadual indireta ou uma administração
autónoma.

Acrescenta o artigo 17.º que “a mesma disposição é aplicada às misericórdias, asilos, mais institutos de
beneficência”. Isto é, as associações e fundações de direito privado com fim desinteressado ou altruístico podem, nos
limites das suas atribuições, praticar atos de comércio, mas não podem adquirir a qualidade de comerciantes, mesmo
quando exerçam o comércio de forma sistemática – p. ex., uma misericórdia que explore uma empresa hospitalar não
é comerciante.

4. SUJEITOS LEGALMENTE INIBIDOS DA PROFISSÃO DE COMÉRCIO

4.1. ENTIDADES COLETIVAS

Diz o artigo 14.º do CCom.: “É proibida a profissão de comércio às associações ou corporações que não tenham
por objetos interesses materiais” (1°).
O intuito deste preceito parece ser o de vedar o estatuto de comerciante às citadas associações, pois, ainda que
exerçam o comércio, ele não deverá ser exercido a título de profissão, como “modo de vida” delas.

As associações de fim desinteressado ou altruístico não podem ser comerciantes, pois não têm “por objeto
interesses materiais”.

Página 21 de 104

As associações de fim interessado ou egoístico, mas ideal (associações recreativas, culturais, desportivas, etc.)
também não têm por objeto interesses materiais, mas podem praticar atos comerciais e exercer comércio – suponha-se
que uma associação recreativa que, entre outras coisas, explora um negócio de bar; ou de uma associação promotora de cultura teatral e
cinematográfica que gere um cineteatro: em ambos os casos é o exercício do comércio um meio para a prossecução dos fins de natureza ideal

caracterizadores das associações. Em rigor, portanto, estas entidades não fazem do comércio profissão.

Das associações de fim interessado ou egoístico de cariz económico não lucrativo (associações mutualistas,
sindicais, de empregadores, etc.) já não pode dizer-se não terem “por objeto interesses materiais”. Estas associações
não fazem propriamente profissão (modo de vida) do comércio. As atividades comerciais por elas desenvolvidas são
acessórias e/ou instrumentais das atividades e finalidades principais – de caráter não mercantil – por elas
prosseguidas.

Ora, mesmo que uma associação de alguns destes tipos passe a dedicar-se exclusivamente ao exercício de uma
atividade mercantil e faça do comércio profissão, ainda assim não adquire a qualidade de comerciante. A atividade de
uma tal associação está fora da sua capacidade jurídica (artigo 160.º/1 do CC), pelo que são nulos os respetivos atos.
Dessa forma, a associação deve ser judicialmente extinta, a pedido do Ministério Público ou de qualquer
interessado (artigos 182.º/2, al. b) e 183.º/2 do CC) e não adquirirá a qualidade de comerciante antes da extinção –
essa qualidade não poderá fundar-se na prática sistemática de atos nulos.

4.2. PESSOAS SINGULARES

4.2.1. ALGUNS CASOS DE INCOMPATIBILIDADES

Diz ainda o artigo 14.º do CCom. que é proibida a profissão do comércio aos que por lei ou disposições especiais
não possam comerciar (2°).

A legislação comercial estabelece algumas incompatibilidades (impossibilidade legal do exercício de comércio


por sujeito que desempenhe certas funções ou se encontre em determinada situação jurídica). Vejamos alguns
exemplos:
• “Nenhum gerente poderá negociar por conta própria, nem tomar interesse debaixo do seu nome ou
alheio em negociação do mesmo género ou espécie da de que se acha incumbido, salvo com expressa
autorização do proponente” (artigo 253.º do Ccom.);
• “Nenhum sócio – de sociedade em nome coletivo – pode exercer, por conta própria ou alheia,
atividade concorrente com a da sociedade, salvo expresso consentimento de todos os outros sócios” (artigo
180.º/1 do CSC);
• “Os gerentes – de sociedades por quotas – não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por
conta própria ou alheia, atividade concorrente com a da sociedade” (artigo 254.º/1 do CSC);

Página 22 de 104

• Os administradores de sociedades anónimas não podem, sem autorização (da assembleia geral ou do
conselho geral e de supervisão), exercer por conta própria ou alheia atividade concorrente da sociedade (artigos
398.º/3 e 428.º do CSC);
• “Os sócios comanditados – de sociedade em comandita simples – são obrigados a não fazer
concorrência à sociedade, nos termos prescritos para os sócios de sociedades em nome coletivo” (artigo 477.º
do CSC);

Como se vê, estas incompatibilidades (de direito privado) são todas relativas, isto é, removíveis mediante
autorização de certos sujeitos ou órgãos, e parciais (apenas proíbe-se a atividade comercial concorrente – proibições
legais de concorrência).

Existem também diversas incompatibilidades de direito público, como por exemplo:


• “Os magistrados judiciais em exercício não podem desempenhar qualquer outra função pública ou
privada de natureza profissional, salvo as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica,
não remuneradas, e ainda funções diretivas em organizações sindicais da magistratura judicial”;
• “É incompatível com o desempenho do cargo de magistrado no Ministério Público o exercício de
qualquer outra função pública ou privada de índole profissional, salvo funções docentes ou de investigação
científica de natureza jurídica ou funções diretivas em organizações representativas da magistratura do
Ministério Público”;
• “O militar na efetividade de serviço ou nas situações de licença com perda de vencimento, em
comissão especial ou inatividade temporária não pode, por si ou por interposta pessoa, exercer quaisquer
atividades privadas relacionadas com as suas funções militares ou com o equipamento, o armamento, a
infraestrutura e a reparação de materiais destinados às forças armadas”;
• A titularidade de órgãos de soberania, de outros cargos políticos e de altos cargos públicos ou
equiparados é, salvaguardadas algumas exceções, “incompatível com quaisquer outras funções, remuneradas
ou não”.

As incompatibilidades de direito público são, dominantemente, absolutas (não relativas) e gerais (não parciais).

Uma pessoa proibida por lei de comerciar, mas que viole a proibição, exercendo profissionalmente o comércio, é
comerciante?
ß
Há uma certa divergência doutrinal, tendendo o Dr. Coutinho de Abreu para uma resposta positiva. Desde logo,
porque as pessoas em questão têm capacidade para praticar atos de comércio e fazem deste profissão (cumprem-se
os requisitos do artigo 13.º/1). Além disso, porque não são nulos, anuláveis ou ineficazes os atos ou atividades
comerciais de tais pessoas.

Página 23 de 104

As referidas incompatibilidades visam possibilitar ou potenciar o desempenho efetivo e eficiente de certos


cargos ou funções. Por isso as sanções cominadas para a violação das proibições legais não afetam a validade e eficácia
do exercício do comércio.
São de outra ordem: responsabilidade civil (artigo 253.º do CCom. e 180.º/2, 254.º/5, 398.º/5, 428.º e 477.º do
CSC), destituição com justa causa (artigos 254.º/5, 398.º/5 e 428.º do CSC), penas disciplinares, perda de mandato,
demissão, destituição judicial, etc.

4.2.2. EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA

Normalmente, a declaração judicial de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus
administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais
passam a competir ao administrador da insolvência (artigo 81.º/1 do CIRE).
A massa insolvente é constituída, em regra, por todo o património do devedor à data da declaração da
insolvência e pelos bens que ele adquira na pendência do processo (artigo 46.º/1). No entanto, os bens isentos de
penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade
não for absoluta (artigo 46.º/2).
Cabe ao administrador da insolvência administrar e dispor dos bens da massa (sob pena de ineficácia absoluta,
caso seja o insolvente a dispor dos bens) insolvente e compete-lhe, designadamente, obter dinheiro através da
alienação de bens da massa ou/e continuar a atividade empresarial que o insolvente vinha desenvolvendo (artigo
55.º/1).

Dado que o ato de disposição efetuado pelo insolvente não vincula a massa, esta responderá pela restituição
do que lhe houver sido prestado pela contraparte do insolvente apenas segundo as regras do enriquecimento sem
causa (artigo 81.º/6 do CIRE e artigos 473.º e ss. do CC).
Contudo, é possível que o ato do insolvente se revele benéfico para a massa (para os credores), caso esse em
que será lícito o administrador da insolvência ratificar o ato (integrando-se os respetivos direitos e obrigações na massa
insolvente).

Na sentença de declaração da insolvência ou em momento posterior pode o juiz declarar aberto o incidente de
qualificação da insolvência (artigos 36.º/1, al. i), 188.º/1 e 36.º/4), a fim de se apurar se ela é culposa ou fortuita
(artigos 185.º e 189.º/1).

• A insolvência será culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da
atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos
anteriores ao início do processo de insolvência (artigo 186.º/1). Segundo o n.° 2 do referido artigo, certos
comportamentos fazem presumir inilidivelmente que a insolvência é culposa; e o n.° 3 estatui para certos outros
comportamentos presunção ilidível de culpa grave.

Página 24 de 104

o Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, deve o juiz, entre outras coisas (artigo
189.º/2): identificar as pessoas afetadas pela qualificação (al. a)); condenar as pessoas afetadas a
indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até
às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados (al. e));
declarar as pessoas afetadas pela qualificação – “inibidas para o exercício do comércio durante um período
de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial
ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa” (al. c)).

o Só ficam proibidos de exercer o comércio as pessoas singulares (não apenas os insolventes,


também os administradores e outros sujeitos) afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.

o Deve, pois, a inibição de comerciar ser qualificada também como incompatibilidade (absoluta)
– impossibilidade legal do exercício de comércio por pessoa afetada pela qualificação da insolvência como
culposa. Se a pessoa proibida de comerciar violar a proibição, ainda assim não se torna comerciante, por
razões de tutela do crédito e do comércio.

5. ESTATUTO DOS COMERCIANTES

O estatuto dos comerciantes tem como pontos principais os direitos e deveres e as vantagens e desvantagens
jurídicas dos comerciantes.

5.1. FIRMAS E DENOMINAÇÕES

5.1.1. NOÇÃO

Diz-se habitualmente que a firma é o nome comercial dos comerciantes, o sinal que os individualiza ou
identifica. No entanto, é uma noção insuficiente.
Com efeito, a firma, além de identificar os comerciantes, individualiza alguns não-comerciantes, como é o caso
das sociedades civis de tipo comercial e os ACE com objeto civil (têm firma quer os ACE comerciantes quer os ACE não
comerciantes) e pode ainda individualizar empresários individuais não comerciantes.

Por outro lado, alguns comerciantes são identificados, não por uma firma, mas por uma denominação –
designava as sociedades anónimas, sendo composta por expressões indicando essencialmente o respetivo objeto
social. O artigo 19.º do CCom., na redação originária, contrapunha a firma à denominação. Entretanto, o Decreto
19638, de 21 de abril de 1931, alterou os artigos 19.º e 23.º do CCom., fazendo equivaler firma e denominação.

Página 25 de 104

O RRNPC, diploma que contém o atual regime geral das firmas e denominações, retoma a distinção, mas em
moldes diversos. “Firma” é o vocábulo preferido para designar o signo individualizador de comerciantes e
“denominação” designa preferencialmente o sinal identificador de não comerciantes e pode, nalguns casos, ser
composta por nomes de pessoas.

Todos os comerciantes devem adotar firma ou denominação (artigo 18.º/1 do CCom.). É das firmas e
denominações dos comerciantes, dos sinais distintivos dos comerciantes que trataremos.

5.1.2. COMPOSIÇÃO

FIRMAS DOS COMERCIANTES INDIVIDUAIS

A firma de comerciante individual (pessoa singular) tem de ser composta pelo seu nome – completo ou
abreviado, conforme seja necessário para identificação da pessoa, não podendo, em regra, a abreviação reduzir-
se a um só vocábulo (artigo 38.º/1 e 3 do RRNPC).
Tratando-se de titular de um estabelecimento individual de responsabilidade limitada, a firma adotada pelo
comerciante na exploração do mesmo será igualmente constituída pelo seu nome, completo ou abreviado,
acrescido ou não de referência ao objeto do comércio nele exercido, e pelo aditamento “Estabelecimento
Individual de Responsabilidade Limitada” ou “E.I.R.L” (artigo 40.º/1 e 2 RRNPC).

FIRMAS DAS SOCIEDADES COMERCIAIS

De acordo com o artigo 177.º/1 CSC, a firma das sociedades em nome coletivo deve ser composta, ou pelo
nome (completo ou abreviado) ou firma de todos os sócios, ou pelo nome (completo ou abreviado) ou firma de
um deles, com o aditamento, abreviado ou por extenso, “e Companhia” ou qualquer outro que indique a existência
de outros sócios (p. ex., “e Irmão” ou “e Filhos”).
Além destes elementos, a firma destas “sociedades de pessoas” pode ainda conter (apesar de não o dizer)
expressão alusiva ao objeto social – por analogia com o artigo 38.º/1 RRNPC –, bem como siglas, iniciais,
expressões de fantasia ou composições – por analogia com o artigo 42.º/1 RRNPC.

FIRMAS DAS SOCIEDADES POR QUOTAS

Segundo o artigo 200.º/1 CSC, a firma das sociedades por quotas deve ser formada, com ou sem sigla, ou pelo
nome (completo ou abreviado) ou firma de todos, algum ou alguns sócios (firma-nome), ou por uma denominação
particular (firma-denominação), ou pela reunião de ambos estes elementos (firma mista). Em qualquer caso, a
firma conterá o aditamento “Limitada” ou “L.da”.

Página 26 de 104

FIRMAS DAS SOCIEDADES ANÓNIMAS

O que dissemos acerca da firma das sociedades por quotas vale quase integralmente para a firma das
sociedades anónimas. O artigo 275.º/1 CSC diz-nos que “a firma destas sociedades será formada, com ou sem
sigla, pelo nome ou firma de um ou alguns dos sócios ou por uma denominação particular, ou pela reunião de
ambos esses elementos, mas em qualquer caso concluirá pela expressão “Sociedade Anónima” ou “S.A.”.

FIRMAS DAS SOCIEDADES EM COMANDITA

A firma das sociedades em comandita deve ser composta pelo nome (completo ou abreviado) ou firma de
um, alguns ou todos os sócios comanditados (sócios de responsabilidade ilimitada) e o aditamento “em
Comandita” ou “& Comandita” (nas sociedades em comandita simples), “em Comandita por Ações” ou “&
Comandita por Ações” (nas sociedades em comandita por ações) – artigo 467.º/1.
Além do nome ou firma de sócios comanditados, pode (mas não deve) figurar na firma destas sociedades o
nome ou firma de sócios comanditários e de não-sócios que em tal consintam expressamente (artigo 467.º/2 e 3);
concretizando-se esta possibilidade, tais sócios comanditários e não-sócios ficam sujeitos às gravosas
consequências estabelecidas nos números 3 e 4 do citado artigo.
Junto dos nomes e/ou firmas referidos, a firma pode ainda integrar expressões alusivas ao objeto social (pode,
mas não tem de o fazer), bem como siglas, expressões de fantasia, etc.

DENOMINAÇÕES DE OUTRAS ENTIDADES COLETIVAS

A denominação das entidades públicas empresariais deve integrar a expressão “entidade pública
empresarial” ou as iniciais “E.P.E” (artigo 57.º do RSPE).

A denominação das cooperativas deve ser sempre seguida das expressões “cooperativa”, “união de
cooperativas” e ainda de “responsabilidade limitada” ou “responsabilidade ilimitada” ou das respetivas
abreviaturas (artigo 15.º/1 CCoop.).

A denominação dos agrupamentos europeus de interesse económico deve incluir como aditamento
“Agrupamento Europeu de Interesse Económico” ou a abreviatura “AEIE” (artigo 5.º, al. a) do Regulamento
2137/85 e 4.º do Decreto-lei 148/90).

A firma-denominação e a firma mista dos ACE, bem como a denominação das EPE, das cooperativas e dos
AEIE não têm hoje de dar a conhecer o objeto das respetivas entidades. Estas firmas e denominações podem ser
“de objeto”, de objeto e de fantasia ou tão somente de fantasia.

Página 27 de 104

FIRMAS DOS AGRUPAMENTOS COMPLEMENTARES DE EMPRESAS

A firma dos ACE poderá consistir numa denominação particular ou ser formada pelos nomes (completos ou
abreviados) ou firmas de todos os seus membros ou de, pelo menos, um deles ou, ainda, pela reunião de ambos
esses elementos.
Em qualquer caso, a firma deve conter o aditamento “Agrupamento Complementar de Empresas” ou as
iniciais “A.C.E”.

5.1.3. TRANSMISSÃO

Sendo as firmas sinais distintivos de sujeitos, poderia pensar-se serem intransmissíveis. Não é, todavia, assim.
Atendendo ao facto de a firma ter considerável valor económico e de se ligar também à empresa, tem sido
permitida a transmissão daquela juntamente com esta.

O n.° 1 do artigo 44.º do RRNPC, diz-nos que “o adquirente, por qualquer título entre vivos, de um
estabelecimento comercial pode aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular
do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito”. E o n.° 4: “é proibida a aquisição de uma firma sem a do
estabelecimento a que se achar ligada”.

A transmissão entre vivos de firma obedece, portanto, a três requisitos:

® A transmissão de uma firma tem de fazer-se com a de um estabelecimento comercial a que esteja
ligada. Devendo entender-se que a transmissão do estabelecimento (e da firma) tanto pode ser feita a título definitivo
(trespasse) como a título temporário (como a locação e o usufruto, por exemplo).

® É necessário o acordo das partes – devendo o consentimento do transmitente da firma ser dado por
escrito. Quando o transmitente seja uma sociedade (ou, por interpretação extensiva, um ACE) cuja firma contenha
nome de sócio (ou associado), além da autorização daquele, é ainda indispensável a do titular do nome (artigo 44.º/2).

® O adquirente deve aditar à sua própria firma menção de sucessão e a firma adquirida (artigo 38.º/2).

A transmissão da firma de comerciante individual pode dar-se também mortis causa (artigo 44.º/3 RRNPC). O
mencionado artigo refere-se apenas à transmissão de firma. No entanto, não existem razões para que semelhante
regime se não aplique à transmissão de denominações de entes coletivos comerciantes (e não-comerciantes).
Também neste sentido aponta o n.° 1 do artigo 43.º.

Página 28 de 104

5.2. ESCRITURAÇÃO E PRESTAÇÃO DE CONTAS

5.2.1. NOÇÃO DE ESCRITURAÇÃO MERCANTIL

Consiste a escrituração comercial no registo ordenado e sistemático em livros e documentos de factos


(normalmente, mas não necessariamente jurídicos) relativos à atividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista
a informação deles e de outros sujeitos.

Sendo embora muito importante, a contabilidade (registo em unidades monetárias de factos, operações e
situações patrimonial-contabilizáveis) não esgota a escrituração. Esta compreende ainda, designadamente, a
documentação de correspondência expedida pelo comerciante e as atas de reuniões de órgãos (plurais, em regra) de
sociedades e outras entidades coletivas.
Segundo o artigo 29.º do CCom., “todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efetuada de
acordo com a lei”.

5.3. PRESTAÇÃO DE CONTAS

O n.° 4 do artigo 18.º do CCom. continua a dizer que os comerciantes são obrigados a “dar balanço e a prestar
contas”.
O balanço é o documento onde se compara o ativo com o passivo para revelar o valor do capital próprio ou
situação líquida (o valor do ativo aparece igual ao valor do passivo somado com o do capital próprio). É geralmente
um dos principais documentos de prestação (anual) de contas – juntamente com a “demonstração dos resultados por
naturezas”, a “demonstração das alterações no capital próprio”, a “demonstração dos fluxos de caixa pelo método
direto” e o “anexo” (e todos estes documentos são de escrituração mercantil).

Apesar do que é dito nos artigos 18.º e 62.º do CCom., nem todos os comerciantes têm o dever de prestar
anualmente contas, nomeadamente através de balanço. Alguns (pequenos) comerciantes individuais não têm de
cumprir o SNC.
A prestação de contas é relevante sobretudo no domínio das sociedades comerciais (e civis de tipo comercial).
Os membros do órgão de administração devem elaborar e submeter anualmente aos órgãos competentes da
sociedade (a coletividade dos sócios, normalmente) o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos
de prestação de contas previstos na lei – artigos 65.º e ss., 189.º/3, 246.º/1, al. e), 263.º/2, 376.º/1, al. a), 454.º, 474.º,
478.º, 508.º e ss.
Se os documentos de prestação de contas não forem apresentados atempadamente, pode qualquer sócio
requerer ao tribunal que se proceda a inquérito (artigo 67.º/1 CSC) – segundo o que resulta do artigo 1048.º/3 do CPC,
os termos a seguir no processo de inquérito judicial são os previstos no citado artigo 67.º.

Página 29 de 104

5.4. INSCRIÇÕES NO REGISTO COMERCIAL

O registo comercial publicita certos factos respeitantes a determinados sujeitos, tendo em vista a segurança do
tráfico ou comércio jurídico (artigo 1.º CRCom).
Os factos e entidades sujeitos a registo são os previstos na lei (princípio da tipicidade), destacando-se os
previstos nos artigos 1.º a 10.º. Nos termos do artigo 18.º/3 do CCom., devem os comerciantes fazer inscrever no
registo comercial os atos a ele sujeitos. No entanto, tal também incumbe a sujeitos que não são ou podem não ser
comerciantes, designadamente as sociedades civis sob forma comercial, cooperativas, EPEs, ACEs e AEIE sem objeto
comercial.

Todavia, nem todos os factos previstos naquelas normas do CRCom. têm de ser registados. Sujeitos a registo
obrigatório são os mencionados no artigo 15.º, o qual também enuncia que os factos relativos a comerciantes
individuais (artigo 2.º) estão sujeitos a registo facultativo. Contudo, certos factos dos processos de insolvência
relacionados com comerciantes individuais devem obrigatoriamente ser registados (artigos 9.º, als. i) e ss. CRCom. e
38.º/2, al. b) CIRE).

Existem duas formas de registo:


• Registo por transcrição (ou por extrato): consiste na extractação dos elementos que definem a
situação jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados (artigo 53.º -A/2).
• Registo por depósito: consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a
registo (artigo 53.º -A/3).

Em regra, o registo efetua-se a pedido do interessado (princípio da instância), exceto nos casos de oficiosidade
previstos na lei (artigo 28.º/1 CRCom.) – “interessado”, para este efeito, são aqueles dispostos no artigo 29.º e ss.,
com remissão para o artigo 47.º (princípio da legalidade).

O caráter público do registo revela-se no facto de “qualquer pessoa” poder pedir certidões dos atos de registo
e dos documentos arquivados, bem como obter informações verbais ou escritas sobre o conteúdo de uns e outros
(artigo 73.º/1).
Por outro lado, alguns atos de registo são obrigatoriamente publicados (artigo 70.º e ss.). As publicações devem
ser feitas em sítio na Internet de acesso público, regulado por portaria do Ministério da Justiça, no qual a informação
objeto de publicidade possa ser acedida, designadamente, por ordem cronológica (artigo 70.º/2 CRCom.).

Página 30 de 104

QUAIS OS EFEITOS DO REGISTO?


ß

“O registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos
em que é definida” (artigo 11.º CRCom.). As presunções de exatidão derivadas do registo são, em regra, ilidíveis (artigo
350.º CC).

Efeito central do registo é ele ser requisito de eficácia dos factos em relação a terceiros – é, portanto,
declarativo. Em regra, os factos sujeitos a registo, mas não registados, apenas são eficazes entre as partes ou seus
herdeiros (artigo 13.º/1 CRCom.), não o sendo perante terceiros.
Quer isto dizer que os factos sujeitos a registo registados e os factos sujeitos a registo e publicação obrigatória
registados e publicados são oponíveis a terceiros depois da data do registo ou da publicação, respetivamente (artigo
14.º/1 e 2).

Para efeitos de registo comercial, terceiro é todo aquele que não seja parte no facto sujeito a registo, seu
herdeiro ou representante (artigos 13.º/1 e 14.º/3 CRCom.)

Contudo, há casos em que o registo não é meramente declarativo, mas sim constitutivo, sendo requisito de
eficácia absoluta (os factos não registados não produzem efeitos quer em relação a terceiros quer em relação às
próprias partes) – artigo 13.º/2 CRCom. e artigos 5.º, 112.º 120.º, 160.º/2 CSC, entre outros.

Página 31 de 104

CAPÍTULO IV

DAS EMPRESAS

1. CONCEÇÕES JURÍDICAS DE EMPRESA

1.1. TERMINOLOGIA

“Estabelecimento” denota dominantemente algo objetivo (um instrumento ou estrutura produtiva de um


sujeito, e objeto de relações jurídicas), mas também “empresa” pode significar o mesmo. No entanto, esta última
nomenclatura vem sendo empregue em grande escala para significar sujeito.
Posto isto, nada se opõe à equivalência empresa – estabelecimento, ainda que “empresa” seja um vocábulo
com significação mais ampla – empresa ou (em sinonímia) estabelecimento designam desde logo realidades várias, de
harmonia com os diversos contextos problemáticos, sistemático-funcionais e local-temporais.

1.2. PRINCIPAIS ACEÇÕES DE EMPRESA

No direito, as empresas revelam-se hoje em duas aceções principais: em sentido subjetivo e em sentido
objetivo.

– Em sentido subjetivo:

Empresas como sujeitos jurídicos que exercem uma atividade económica; estas evidenciam-se principalmente
no direito (de defesa) da concorrência, onde são empresas, primordialmente, os sujeitos jurídicos que exercem uma
atividade económica. Assim sendo, as empresas em sentido subjetivo aparecem como sujeitos de direitos e deveres
(apenas os sujeitos jurídicos se comprometem a “práticas concertadas”, celebram acordos, contratos e são passíveis
de sanções). Podem ser pessoas singulares ou coletivas, bem como sociedades, associações ou outras entidades sem
personalidade jurídica.
Estes sujeitos jurídicos, para serem considerados empresas, têm de exercer uma atividade económica. Todavia,
tal atividade não tem necessariamente de ser dirigida à obtenção de lucros, nem tem de ser suportada por uma
organização de trabalho dependente e/ou outros fatores produtivos (não se exige uma organização de meios
autonomizável em face do sujeito, a atividade pode depender tão-só da pessoa do sujeito) – é possível serem
considerados empresas inventores que comercializem as respetivas invenções, artistas que explorem comercialmente
as suas prestações artísticas, profissionais liberais.
O oferente não tem de visar o lucro, mas não pode, porém, em “mercado” proporcionar todos os bens
gratuitamente.

Página 32 de 104

A noção de empresa vigente no direito comunitário da concorrência influenciou bastante a noção portuguesa
de empresa.
O legislador prescreve, no artigo 2.º da Lei de 2003 e no artigo 3.º da Lei de 2012, uma noção de “empresa”:
“considera-se empresa, para efeitos da presente lei, qualquer entidade que exerça uma atividade económica que
consista na oferta de bens ou serviços num determinado mercado, independentemente do seu estatuto jurídico e do
seu modo de financiamento” (artigo 3.º/1 da Lei 19/2012).

Por conseguinte, não exercem atividade económica caracterizadora de empresa os consumidores privados, o
Estado ou outros entes públicos que adquirem bens para satisfação de necessidades próprias sem intenção de os
reintroduzir no mercado; o Estado ou outros entes públicos atuando (somente) no exercício de prerrogativas de
autoridade ou poder público; os trabalhadores dependentes; as entidades que exercem atividades exclusivamente
“sociais”, baseadas no princípio da solidariedade, sem fins lucrativos, recebendo os beneficiários prestações gratuitas
ou mediante contraprestações não proporcionais aos custos daquelas.

A qualificação das entidades como empresas não depende do respetivo estatuto jurídico (artigo 3.º/1). Com
efeito, as empresas podem situar-se nos “setores privado, público e cooperativo” (artigo 2.º/1).

Por outro lado, as empresas podem apresentar formas diversas, sujeitas a regimes diferenciados. Assim:
• As empresas do setor privado podem ser entidades coletivas, com ou sem personalidade jurídica e
pessoas humanas ou singulares. Estas incluem os comerciantes, agricultores, artesãos, profissionais liberais, cientistas
que comercializem as suas invenções, artistas que explorem as suas prestações artísticas, etc. Vale relembrar que
algumas destas pessoas (“empresas”) não exploram empresas em sentido objetivo, sendo essencialmente pessoais as
atividades que desenvolvem e estas atividades não são suportadas por organizações de trabalho dependente e/ou de
outros fatores produtivos.
• No setor público, integra-se, principalmente, as empresas públicas estaduais, regionais e locais, de
caráter societário ou institucional (como as EPE, entidades públicas empresariais).
• No (sub) setor cooperativo, relevam as cooperativas de primeiro grau e algumas cooperativas de grau
superior (sobretudo, união de cooperativas).

O artigo 3.º/2 considera como uma única empresa o conjunto de empresas juridicamente distintas, mas que
constituem uma unidade económica ou mantêm laços de interdependência decorrentes nomeadamente, de situações
previstas nas quatro alíneas do preceito.
Existirá unidade económica nas sociedades em relação de grupo (artigo 488.º CSC) e nos conjuntos de empresas
em que, apesar de não haver relação de grupo, uma delas (sociedade ou não) domina totalmente, ou quase, de modo
direto ou indireto, uma ou mais sociedades, não gozando esta(s) de real autonomia na determinação dos seus
comportamentos no mercado.

Página 33 de 104

Por sua vez, os laços de interdependência decorrem do facto de a empresa ter as características previstas nas
alíneas a), b), c) e d).

– Em sentido objetivo:

Empresas como instrumentos ou estruturas produtivo-económicos objetos de direitos e de negócios.

2. AS EMPRESAS EM SENTIDO OBJETIVO

2.1. ESPÉCIES EMPRESARIAIS QUANTO AO OBJETO

2.1.1. EMPRESAS COMERCIAIS

Depois de sabermos o significado do comércio em sentido jurídico não é difícil concluir que são comerciais as
empresas através das quais são exercidas atividades de interposição nas trocas – compras de coisas para revenda e
vendas de coisas adquiridas para revender (artigo 463.º do CCom.) –, atividades industrial-transformadoras (artigo
230.º/1), de serviços, etc.
Em suma, são comerciais as empresas cujo objeto se traduza na realização de atos (ou atividades) objetivamente
mercantis.

EM QUE CONSISTE A EMPRESA MERCANTIL?


ß
Diversos negócios (compra e venda, locação, troca, doação, comodato, constituição de usufruto, etc.) incidindo
sobre o estabelecimento comercial são reconhecidos pelas ordens jurídicas hodiernas.

Da diversificada praxis jurídico-negocial colhe-se um conjunto de indicações que constitui autêntica pré
definição do estabelecimento. Assim, além de negociável, o estabelecimento é um valor ou bem económico ou
patrimonial, transpessoal (cindível ou isolável da pessoa que o criou, ou da pessoa a quem pertença em dado
momento), duradouro (“não só transferível e assumível, mas retrotransferível e reassumível”), reconhecível e
irredutível (algo que contradistingue os negócios como negócios sobre o estabelecimento, e que não se confunde com
outros bens – a ele ou não ligados).

Como distinguível bem jurídico nos aparece o estabelecimento, feito de vários bens ou elementos, os quais
variam consoante os tipos ou formas de estabelecimento, variam de empresa para empresa, dentro dum mesmo
grupo tipológico, variam num e mesmo estabelecimento, consoante as fases por que passe.

Página 34 de 104

Em termos gerais, podemos, no entanto, apontar alguns destes elementos: coisas corpóreas (prédios, máquinas,
ferramentas, mobiliários, matérias-primas, mercadoras), coisas incorpóreas (invenções patenteadas, modelos de utilidade, desenhos ou
modelos, marcas logótipos), bens não coisificáveis (jurídico-realmente), como as prestações de trabalho e de serviços e certas

situações de facto com valor económico.

Os bens de que o estabelecimento é feito ou, mais restritamente, os seus fatores produtivos não são
meramente agregados ou somados, não se encontram numa simples relação de intermutabilidade ou comutatividade.
O estabelecimento é uma organização/sistema, isto é, um complexo de elementos em interação, uma unidade
complexa, global e original, um todo que é mais que a soma das suas partes, com propriedades novas ou emergentes.
Além disso, o estabelecimento descobre-se-nos como sistema “aberto”, em intercâmbio com o exterior, com o
“mercado”; nele se cruzam fluxos entrando (objetos e instrumentos de trabalho) e saindo (produtos); é um centro de
trocas sistemáticas.

O estabelecimento manifesta-se ainda como sistema autossuficiente (capaz de se bastar com os resultados das
suas trocas) e autónomo – um ente com identidade própria, como tal reconhecido no mundo macroeconómico.

“ESTABELECIMENTOS” QUE AINDA NÃO TENHAM ENTRADO EM FUNCIONAMENTO:


ß
Percorramos agora algumas zonas da fronteira do estabelecimento com o não estabelecimento. Para começar,
é estabelecimento a organização produtiva apta a funcionar, mas que ainda não entrou em funcionamento. Ora, uma
vez que o estabelecimento comercial é identificado com a clientela ou com o “direito à clientela”, a resposta mais
natural seria a de considerar que ele não existe antes de a organização ter funcionado, isto é, antes da abertura ao
público.
No entanto, resposta diversa é dada pela doutrina portuguesa e, com razão. Embora não funcionando ainda,
um complexo de bens de produção organizados pode ser considerado estabelecimento comercial. Sê-lo-á se, à partida
(em abstrato), já se revelar (minimamente) apto para realizar um fim económico-produtivo jurídico-comercialmente
qualificado – apto para garantir clientela que lhe permita “viver”, reproduzir os respetivos processos produtivos.
Em suma, não é necessária a existência de uma clientela efetiva e, quando esta exista, depois de a empresa
entrar em funcionamento, a clientela é apenas uma das manifestações do aviamento (dizer que o estabelecimento está
aviado significa que este já está preparado ou disposto para o caminho) do estabelecimento.

Quanto a saber se a clientela é ou não elemento da empresa, as opiniões dividem-se, sendo que Coutinho de
Abreu entende que a clientela não é, em rigor, elemento da empresa. Não tanto por não ser objeto de um direito real
ou absoluto, nem objeto autónomo de tutela jurídica, mas por não ser um meio ou instrumento estrutural-
funcionalmente inserido na organização produtiva que a empresa é.

Página 35 de 104

É POSSÍVEL CONSIDERAR ESTABELECIMENTO COMERCIAL, COMO TAL NEGOCIÁVEL, UM COMPLEXO DE BENS


PRODUTIVOS QUE AINDA NÃO ENTROU EM FUNCIONAMENTO E QUE CARECE, PARA ISSO, DE UM OU MAIS
ELEMENTOS?

Antes de funcionar, um complexo daquele tipo não possui ainda “valores de exploração”, pois não foi tecida de
clientes, fornecedores e financiadores. Por outro lado, faltam-lhe bens sem os quais não funcionará. Assim sendo, dir-
se-á que não existe ainda estabelecimento, pois este está “em formação”, não está formado.

Por exemplo:
Há um pavilhão industrial, devidamente dividido, com posto de transformação elétrica, quadro elétrico geral e respetivas
derivações, e com instalações de água; veem-se máquinas já instaladas. Sabe-se ainda que o dono do complexo (já com a firma registada)
contratou alguns empregados, e estabeleceu contactos com eventuais fornecedores e clientes (tendo enviado a estes últimos catálogos
contendo a descrição técnica das alcatifas a produzir).
Neste caso, não estamos perante um estabelecimento comercial – apesar de algumas matérias-primas ainda não estarem
disponíveis, ou faltar uma (necessária) máquina de cortas alcatifas, ou não estarem contratados todos os indispensáveis trabalhadores?

Muitos continuarão a dizer que não há estabelecimento, mas nós dizemos que já existe. Embora não se verifique ainda a completude
do complexo, pois esta ainda não está apta para entrar em funcionamento (embora se possa afirmar que muito pouco falta), já estamos
perante um conjunto de bens heterogéneos e complementares devidamente organizados com vista à consecução de determinado fim.
Estes elementos organizados já conseguem projetar no público a imagem de um bem novo, de algo que não se reduz a um mero
somatório de bens singulares e/ou de grupos diversos de bens. Bem novo a qualificar como estabelecimento comercial.
Como tal, poderá o nosso complexo ser objeto, por exemplo, de locação (artigo 1109.º CC).

No entanto, qual será o critério para se reconhecer o “salto qualitativo” do conjunto-agregado de bens não
individualizável (sem identidade jurídico-mercantil) para o estabelecimento?
Não é possível enumerar em abstrato os elementos do “âmbito mínimo” do estabelecimento enquanto objeto
negociável. Pode é dizer-se, em termos gerais, que esse âmbito há de envolver os bens que, combinados, projetem no
público a imagem de uma nova organização-unidade com potencial para atuar autonomamente no mundo da
produção para a troca.

ESTABELECIMENTOS QUE TENHAM JÁ ENTRADO EM FUNCIONAMENTO:


ß

Tratam-se de “empresas” com valores de exploração, relacionadas com clientes, fornecedores e financiadores,
e com projeção e reputação (maior ou menor, melhor ou pior) entre o público em geral.
Pois bem, existem muitos casos de negociação de bens qualificados como estabelecimentos pelas partes –
vendem-se restaurantes sem mesas, cadeiras, máquinas de café e de sumos, vendem-se empresas fabris sem algumas
máquinas, etc.

Página 36 de 104

A própria lei admite expressamente a transmissão de estabelecimentos desfalcados de um ou outro elemento.


Apesar de desfalcado, ainda que impossibilitado de reentrar em funcionamento logo após o negócio, o conjunto dos
bens transmitidos pode ser suficiente para inculcar continuar-se em presença da organização produtiva publicamente
identificada como sendo a empresa x – porque já funcionou, porque possui já valores de exploração, a empresa
depende agora menos dos seus elementos, dos “valores ostensivos” (quanto mais um estabelecimento comercial funciona, de
menor número de valores ostensivos necessita para se afirmar como valor de posição no mercado).

Ora, para ser transmitida, a empresa que já funcionou depende menos dos seus elementos, mas continua a
depender deles, pelo que o “âmbito mínimo de entrega” não pode ser postergado, não podem ser excluídos os bens
necessários para exprimir a permanência do sistema-todo diferente da soma das partes – Forchielli afirma que o
estabelecimento existe ainda quando o valor do que falta resulte acessório, isto é, nitidamente inferior ao valor do
complexo subsistente (este é um critério a não desprezar, mas não decisivo).

Por exemplo, suponha-se que há um incêndio que provoca a destruição total dos elementos materiais de um
estabelecimento. Este subsiste?
Apesar de a atividade empresarial ter ficado temporariamente suspensa, os bens que restam servirão para exprimir a
permanência (em estado mais ou menos latente) de uma concreta organização produtiva qualificável como estabelecimento. Os
elementos restantes continuam (ou podem continuar) na esfera patrimonial do sujeito – podem restar, por exemplo, patentes,
marcas, a firma, contratos de trabalho, o saber-fazer, etc.

Acrescentemos outra ideia: Orlando de Carvalho entende que um estabelecimento é uma organização concreta
de fatores produtivos enquanto valor de posição de mercado – este é o elemento/critério definidor do
estabelecimento. Organizações há muitas, mas a organização é um valor de posição de mercado.
Eu posso ter uma desgraça que destrua tudo ou posso decidir renovar as instalações, mas a empresa é a mesma,
porque o valor de posição de mercado permanece e prevalece.

SECÇÕES E SUCURSAIS:

Um estabelecimento comercial pode integrar várias secções, mais ou menos individualizadas – o armazém onde
é guardada a farinha da padaria, o local de venda ao público integrado na empresa têxtil, etc. São secções
componentes de empresas, divisões ou repartições necessárias ou úteis para a realização da atividade empresarial.

Entre a simples secção e o estabelecimento está a sucursal (ou agência ou delegação), caracterizada, por um
lado, pela dependência em relação à empresa de que é parte e, por outro lado, por uma certa independência.
É dependente, porque nela se efetuam apenas negócios integrantes do objeto da empresa e está sujeita à
direção geral da empresa (quem está à frente da sucursal tem de cumprir os regulamentos e diretivas estabelecidos
por quem dirige superiormente toda a empresa).

Página 37 de 104

Goza de certa independência, porque, além de separada espacialmente do estabelecimento principal


(geralmente tem localidade diferente), possui contabilidade relativamente separada e (quando integrada em
sociedade ou pessoa coletiva) personalidade judiciária (artigo 13.º CPC). Além disso, quem está à frente da sucursal
tem certa liberdade de gestão e competência para celebrar os negócios em que o objeto da empresa se traduz.
Porque a sucursal goza da apontada relativa autonomia, não é difícil conceber a possibilidade de ela deixar de
se identificar com o todo empresarial de que faz parte, de se transformar em autónomo estabelecimento comercial,
sobretudo quando seja alienada separadamente.

É OU NÃO O ESTABELECIMENTO COMERCIAL UMA UNIDADE JURÍDICA, UM BEM JURÍDICO A SE STANTE?


ß
Os autores portugueses têm sustentado ser um estabelecimento comercial uma unidade jurídica, e têm sido
indicadas em apoio da tese várias normas legais.
Intimamente ligado à questão da unidade jurídica está o problema de saber se o estabelecimento comercial é
uma coisa e, nomeadamente, uma coisa que possa ser objeto do direito de propriedade (e de outros direitos reais).

Em coerência com o facto de o estabelecimento ser uma unidade jurídica objetiva, e dado ser “coisa tudo aquilo
que pode ser objeto de relações jurídicas” (artigo 202.º CC), o estabelecimento é uma coisa (coisa móvel – artigo
205.º).
No entanto, nos termos do artigo 1302.º do CC, “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto
do direito de propriedade regulado neste código”. Posto isto, para quem considere o estabelecimento uma coisa
corpórea, o problema fica logo resolvido. Todavia, parece mais correto considera-lo uma coisa imaterial (não pura).

Há que refletir o seguinte: o estabelecimento, integre ou não bens materiais, não é igual à soma dos seus
elementos. É, antes, uma organização ou um sistema, algo diferente dessa soma, que não constituirá maquinação
especialmente engenhosa conceber, juridicamente, esse distinto ente como coisa incorpórea.
Além de não estar vedada a hipótese de, no próprio contexto do Código Civil, certas coisas incorpóreas serem
objeto de propriedade, o certo é que diversas normas supõem, ou afirmam mesmo poder o estabelecimento ser
objeto de direito de propriedade.

Apesar do que ficou dito não ser ainda bastante para cabal compreensão de empresa comercial, convém deixar
já aqui uma definição da mesma: para Coutinho de Abreu, empresa ou estabelecimento comercial, em sentido
objetivo, é uma unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício
relativamente estável e autónomo de uma atividade comercial. Para Orlando de Carvalho, é uma organização concreta
de fatores produtivos como ou enquanto valor de posição de mercado – ou seja, o estabelecimento não é só o lastro
ostensivo, mas também o seu valor de posição de mercado.

Página 38 de 104

O DONO PODE SER PROPRIETÁRIO DO ESTABELECIMENTO (p. ex., restaurante) E NÃO SER PROPRIETÁRIO DE
NENHUM DOS ELEMENTOS (imóveis, toalhas, talheres, etc.)? COMO RELACIONO A TITULARIDADE JURÍDICA SOBRE
CADA UM DOS ELEMENTOS?

Sim.
Esta questão, nalguns ordenamentos jurídicos é muito discutível, pois há ordenamentos jurídicos que só
consideram que se pode ser proprietário de coisas corpóreas. Mas no ordenamento jurídico português este
constrangimento não existe, porque pode existir propriedade sobre coisa incorpórea – o dono do restaurante pode
ter arrendado o espaço, pode ter feito contrato de leasing sobre equipamento da cozinha, pode ter aluguer de toalhas;
pode ter uma diversidade de títulos jurídicos para cada um dos elementos inscritos na organização.

Contudo, há um constrangimento: para haver propriedade tem de haver coisa, objeto. E qual é o objeto? É
discutido, mas parece que a melhor qualificação é que entende o objeto como coisa composta funcional (Orlando de
Carvalho).

O que é essencial para o titular do estabelecimento não é o título em si mesmo; para o estabelecimento
enquanto valor, enquanto bem, é irrelevante se o imóvel é propriedade, se é locação, se é arrendamento, se é
comodato. O que é essencial para a organização é que o titular tenha possibilidade de usar imóvel na organização.

2.1.2. O E.I.R.L., ESTABELECIMENTO COMERCIAL ESPECIAL

Os bens de um “normal” estabelecimento comercial pertencente a (e explorado por) uma pessoa singular
respondem quer pelas dívidas contraídas na exploração desse estabelecimento quer por quaisquer outras do respetivo
titular; por sua vez, pelas dívidas resultantes da exploração dessa empresa tanto respondem os bens a ela afetados
como outros bens do empresário.

Pois bem, para possibilitar que as coisas não tenham de ser assim, criou o legislador, através do Decreto-lei
248/86, de 25 de agosto, um novo instituto: o estabelecimento individual de responsabilidade limitada (e.i.r.l.).
Na verdade, o e.i.r.l. é um património autónomo ou separado (do restante património do comerciante
individual): em regra, os bens afetados ao estabelecimento respondem apenas pelas dívidas contraídas no
desenvolvimento das atividades de que ele é instrumento (artigo 10.º/1); por outro lado, por estas dívidas respondem
somente aqueles bens (artigo 11.º/1).

O facto de o e.i.r.l. ser um património autónomo ou separado implica que ele não deva ser considerado um
verdadeiro estabelecimento comercial. No entanto, um e.i.r.l. é constituído para o exercício de uma atividade
comercial (artigos 1.º/1 e 10.º/1). Quer isto dizer que, em regra, o património separado tende a consubstanciar-se no

Página 39 de 104

estabelecimento, sendo o e.i.r.l. um estabelecimento comercial propriamente dito, com a especificidade de estar
“separado” do restante património do titular.

2.1.3. EMPRESAS NÃO COMERCIAIS

Tem-se questionado serem ou não comerciais as empresas da indústria extrativa, designadamente as de


exploração dos recursos geológicos (depósitos e massas minerais, hidrocarbonetos, recursos hidrominerais e
geotérmicos, águas de nascente) – nem o artigo 230.º nem qualquer outra norma do CCom. faz menção a estas empresas (para incluir
ou excluir do domínio mercantil) e também não podem ser qualificadas desse modo por analogia com empresas que precisas disposições legais
consideram mercantis.

No caso das empresas agrícolas, diz-nos o artigo 230.º/1 que “não se haverá como compreendido no n.° 1
(empresas comerciais transformadoras) o proprietário ou o explorador rural que apenas fabrica ou manufatura os
produtos do terreno que agriculta acessoriamente à sua exploração agrícola”.
Quer dizer, uma organização industrial-transformadora (fábrica ou manufatura) de um produtor agrícola não é
empresa comercial quando, possuindo embora relativa autonomia (técnico-produtiva), se destina exclusivamente à
transformação de produtos de terras por aquele agricultadas, e essa transformação é “acessória” da respetiva
produção agrícola. Nestes casos, empresa é a empresa agrícola – nela se integrando (como “secção”) a organização
industrial-transformadora.
E estas empresas agrícolas não são comerciais. Resulta isso, em geral, do facto de na legislação mercantil elas
não “se acharem especialmente reguladas” e, em especial, não apenas do artigo 230.º/1 (a “comercialidade” da
transformação não contagia o agrícola, pelo contrário), mas também do n.° 2 do mesmo artigo (“não se haverá como
compreendido no n.° 2 o proprietário ou explorador rural que fizer fornecimento de produtos da respetiva
propriedade”), do artigo 464.º/2 (não são consideradas comerciais as vendas que o proprietário ou explorador rural
faça dos produtos de propriedade sua ou por ele explorada).

Diz ainda o n.° 1 do artigo 230.º que “não se haverá como compreendido no n.° 1 o artista, industrial, mestre
ou oficial de ofício mecânico que exerce diretamente a sua arte, indústria ou ofício, embora empregue para isso, ou
só operários, ou operários e máquinas”. A terminologia empregada para designar as personagens é de sabor medievo
– “artista”, “mestre”, “oficial” e “industrial” devem ser considerados sinonimamente, significando o mesmo que artífice ou artesão por conta

própria; como equivalente devem também ser tidos “arte”, “ofício” e “indústria”.

Nos termos do n.° 1 do artigo 230.º, as empresas só não são comerciais quando os artífices seus proprietários
ou exploradores exerçam diretamente a respetiva atividade. Se tal não suceder, resulta da conjugação deste com o
n.° 1 (interpretado extensivamente) deverem elas ser consideradas comerciais (e comerciantes os seus proprietários
ou exploradores).
Posto isto, as empresas de serviços serão geralmente mercantis, mas não o serão, porém, as empresas
artesanais de serviços exploradas diretamente pelos respetivos artesãos (por analogia com o disposto naquela norma).

Página 40 de 104

Pode dizer-se que as profissões liberais se traduzem no exercício habitual e autónomo (juridicamente não
subordinado) de atividades primordialmente intelectuais, suscetíveis de regulamentação e controlo próprios. São,
pois, profissionais liberais os advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, economistas, revisores oficiais de contas,
etc.
Entendemos que, em regra, os escritórios, consultórios e estúdios dos profissionais liberais não constituem
empresas (o que aí avulta é a pessoa dos profissionais e não um complexo produtivo objetivo), mas podem constituir:
pense-se, por exemplo, nos médicos radiologistas que executam nos seus consultórios um ou mais tipos de
radiografias. Nestes casos, é notória a “despersonalização” da atividade liberal.
Verifica-se uma relativa despersonalização das atividades liberais quando elas são exercidas no quadro de
sociedades de profissionais liberais.

2.2. CONCEITO GERAL DE EMPRESA EM SENTIDO OBJETIVO

Empresa em sentido objetivo é a unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um
instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma atividade de produção para a troca – o conceito
apresentado não faz qualquer menção ao lucro ou ao escopo lucrativo, mas isso porque é inegável que as empresas
são, normalmente, instrumentos para a consecução de lucros, mas já ficou provado que o referido escopo não é
essencial à definição de diversas espécies empresariais, como as empresas públicas, as cooperativas, as associações e
fundações que explorem empresas, etc.

2.3. NEGÓCIOS SOBRE AS EMPRESAS

2.3.1. TRESPASSE

NOÇÃO E FORMA

Embora o emprego da palavra “trespasse” seja muito antigo na legislação, verificando-se em diversos atos
legislativos atuais – como o CC (artigo 1112.º), o CSC (artigo 152.º/2, al. d)), o CDA (artigos 100.º/1 e 2 e 145.º) e o
CRCSPSS (artigo 209.º/2) – nenhuma destas leis define o trespasse, nem se colhe nelas um regime global do mesmo.

Contudo, dos preceitos assinalados é possível retirar já algumas conclusões:


• Objeto de trespasse é um estabelecimento, mas que não tem de ser comercial (em sentido jurídico);
• O trespasse traduz uma transmissão com caráter definitivo, é transmissão de propriedade de
estabelecimento – tal transmissão pode ser efetuada através de negócios variados, tais como a compra e venda,
amistosa ou executiva, a troca, a dação em cumprimento, a realização de entrada social, etc;

Página 41 de 104

• Para alguns efeitos, o trespasse traduz-se em negócios necessariamente onerosos – é assim para efeitos
do direito de preferência do senhorio (artigo 1112.º/4 CC) e da liquidação de sociedade (artigo 152.º/2, al. d)
CSC);
• O trespasse aparece em todos os preceitos acima assinalados significando negócios inter vivos.

Em suma, o trespasse é definível como transmissão de propriedade de um estabelecimento por negócio entre
vivos. Este conceito é suficientemente clássico e preciso para representar o trespasse como conjunto de figuras
negociais diversas e, simultaneamente, para exprimir as notas essenciais e comuns que, para lá das diferenças,
congregam as diversas figuras negociais sob uma mesma designação.

Durante muito tempo, a forma exigida para o trespasse foi a escritura pública, mas depois do ano 2000, passou
a exigir-se simples escrito.
O n.° 3 do artigo 1112.º do CC (“a transmissão deve ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio”) refere-
se literalmente à transmissão da posição de arrendatário, mas, porque sucedeu ao homólogo n.° 3 do artigo 115.º do
RAU (“o trespasse deve ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade”), porque o atual artigo 1112.º abrange
também a transmissão da posição de arrendatário para continuação do exercício de profissão liberal, e porque há que
atender a outras normas do sistema, deve o preceito do n.° 3 do artigo 1112.º ser interpretado (extensivamente) no
sentido da exigência de escrito para o trespasse.
– A transmissão de firma – que não pode ser feita sem a transmissão do estabelecimento – exige escrito
(artigo 44.º/1 e 4 do RRNPC);
– A transmissão de marca ou de logótipo – envolvida naturalmente na transmissão do estabelecimento
– exige escrito (artigos 30.º/4, 256.º/2 e 295.º/2 do CPI);

Por outro lado, a transmissão da posição de arrendatário do trespassante deve ser comunicada ao senhorio.
Esta comunicação precisará normalmente de ser acompanhada de cópia ou exemplar do contrato de trespasse.

ÂMBITOS DE ENTREGA

Num concreto negócio de trespasse, gozam as partes de liberdade para excluírem da transmissão alguns
elementos do estabelecimento. Todavia, tal exclusão não pode abranger os bens necessários ou essenciais para
identificar ou exprimir a empresa objeto do negócio.
Fazem parte do âmbito natural de entrega os elementos que se transmitem naturalmente com o
estabelecimento trespassado, isto é, os meios transmitidos ex silentio, independentemente de estipulação ad hoc.
Tais bens, não havendo cláusulas a excluí-los, entram na esfera jurídica do trespassário.

Página 42 de 104

Distinguimos três âmbitos de entrega, nomeadamente:

• Âmbito imperativo ou máximo: Orlando de Carvalho entende que os direitos reais sobre imóveis
estão inseridos neste âmbito, pois, para que se transmita, é necessária uma vontade ad hoc – há que levar uma
vontade mais, que não tem de ser expressa.
• Âmbito convencional: os elementos só passam se houver vontade de transmitir aquele elemento, isto
é, só se transmitem quando haja acordo das partes, quando haja convenção específica – o acordo pode ser expresso
ou tácito.
• Âmbito natural: são aqueles elementos relativamente aos quais o acordo das partes inclui
naturalmente a transmissão desses elementos – estes elementos, porém, podem ser excluídos; se as partes não os
excluírem, acompanha naturalmente a negociação do estabelecimento.

Com maior ou menor segurança, é possível enumerar diversos elementos que integram normalmente este
âmbito de entrega. Vejamos primeiro os meios empresariais cuja propriedade pertença ao trespassante:
® Por força de lei supletiva, incluem-se no âmbito natural os logótipos e marcas (artigos 295.º e 256.º/2
do CPI) – com ressalva prevista no artigo 30.º/3 (se no logótipo ou marca figurar o nome, firma ou denominação do titular).
® Quanto a outros elementos, o mais razoável será, portanto, que aqueles elementos sobre que pesa o
silêncio se transmitam naturalmente; trespassado o estabelecimento, fica o trespassante obrigado a entregar o
complexo de bens que o compõem. Entre estes bens contam-se, por exemplo, máquinas, utensílios, mobiliário,
matérias-primas, mercadorias, inventos patenteados, modelos de utilidade, desenhos ou modelos, etc.
– E quanto aos prédios? A jurisprudência entendia tradicionalmente que, na falta de estipulação específica, o
trespasse não implica a transmissão do prédio do trespassante, onde o estabelecimento funciona. Na doutrina, a pertinência dos imóveis
ao âmbito natural é afirmada por uns e negada por outros. Coutinho de Abreu não vê razões que validem um tratamento diferenciado do
prédio em face de bens que, tal como ele, fazem parte do estabelecimento e são seus elementos. Por conseguinte, quando num contrato
de trespasse se não faça menção à transmissão do prédio e não se conclua, por interpretação do negócio, que ele foi excluído, deve

concluir-se que a propriedade do mesmo foi transmitida.

– O trespasse coenvolve naturalmente a transmissão da propriedade de todos os elementos que a esse título
pertenciam ao trespassante – podendo, todavia, nalguns casos, um ou mais desses elementos não se transmitir, ou seja, nos casos em
que a exclusão resulta de uma disposição legal, ou é consequência mediata de uma cláusula negocial, ou corresponde à vontade real e
concordante das partes (apesar de não ter correspondência no texto do respetivo documento).

Vejamos agora os elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título obrigacional (o


trespassante tem o gozo desses bens por ser titular de direitos de crédito):
® Por força da lei, as prestações laborais a que os trabalhadores subordinados se haviam obrigado
perante o trespassante continuam em princípio a contar-se entre os elementos do estabelecimento trespassado
(artigos 285.º/1 CT – “Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, estabelecimento ou ainda de parte
da empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos

contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores”).

Página 43 de 104

® Por sua vez, o artigo 1112.º/2 tem o seguinte teor: é permitida transmissão por ato entre vivos da
posição do arrendatário sem dependência da autorização do senhorio, no caso de trespasse de estabelecimento
comercial ou industrial.
– A menos que o prédio pertença ao âmbito mínimo, o trespasse não implica necessariamente a transferência

do prédio por via de transmissão da posição do arrendatário ou por outra via de tipo obrigacional.

– Envolverá naturalmente o trespasse a transmissão da posição do arrendatário.

® Diz-se no artigo 11.º/1 do Decreto-lei 149/95 que “tratando-se de bens de equipamento, é permitida
a transmissão entre vivos da posição do locatário nas condições previstas pelo artigo 115.º do Decreto-lei 321-
B/90”.
® Resulta de outras normas a não inclusão no âmbito natural (nem no âmbito convencional) de outros
elementos empresariais a que o trespassante tem direito por título obrigacional.
– É o que sucede, por exemplo, com as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e marcas objeto
de licença de exploração (artigo 32.º/1 e 8) – “salvo estipulação em contrário, o direito obtido por meio de licença de exploração não

pode ser alienado sem consentimento escrito do titular do direito”.

– E o mesmo acontece com as máquinas, móveis e veículos alugados ou emprestados (artigo 1059.º/2) – “a
cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424.º e ss.”: é pois exigida a autorização do locador; e artigo

1135.º, “é obrigação do comodatário não proporcionar a terceiro o uso da coisa, exceto se o comodante o autorizar”.

– Dissemos que certas situações de facto com valor económico, como o saber-fazer, podem ser elementos de
uma empresa. Pois bem, apesar de o saber-fazer não dever ser considerado uma coisa objeto do direito de propriedade ou de outros
direitos reais, ele deve ser comunicado-transmitido pelo trespassante ao trespassário, sendo tal um efeito natural do negócio de

trespasse.

No âmbito convencional de entrega incluem-se os elementos empresariais que apenas se transmitem por mor
de estipulação ou convenção, expressa ou tácita, entre trespassante e trespassário.
® Nele se integram a firma (artigo 44.º/1 RRNPC – “o adquirente, por qualquer título entre vivos, de um
estabelecimento comercial pode aditar à sua própria firma a menção e haver sucedido na firma do anterior
titular do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito”), o logótipo e a marca quando neles figurem
nome individual, firma ou denominação do titular do estabelecimento (artigo 31.º/5 CPI).
® Os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa, mas cujos objetos não sejam meios de
estabelecimento não devem considerar-se elementos ou meios empresariais. Todavia, podem ser transmitidos
juntamento com o estabelecimento desde que o trespassante e o trespassário nisso concordem – farão parte
do âmbito convencional de entrega (artigos 577.º e ss. do CC).
– Segundo Orlando de Carvalho, depende se são puros ou impuros: os créditos impuros inserem-se no âmbito
de relação mais abrangente, os quais vão surgindo ao longo do desenvolvimento de uma relação contratual que se mantém. Uma coisa
é vender X e ficar com o crédito, outra coisa é um contrato de assistência técnica ou fornecimento, e ao longo do desenvolvimento vão
surgindo créditos e débitos. No caso dos créditos puros, integrariam o âmbito convencional, enquanto os créditos impuros pertenceriam

ao âmbito natural.

Página 44 de 104

® Os contratos (posições contratuais do trespassante) ligados à exploração da empresa, mas cujos


objetos imediatos não sejam elementos do estabelecimento, bem como os débitos resultantes da exploração
de estabelecimento, também não devem ser considerados elementos ou meios empresariais. Todavia, podem
ser transmitidos com o estabelecimento trespassado. Contudo, tais posições contratuais e débitos não fazem
parte, em regra, de qualquer dos âmbitos de entrega; nem sequer do âmbito convencional, pois, em regra, a
respetiva transmissão exige a intervenção de terceiros.

Em relação às posições contratuais do trespassante:

• Coutinho de Abreu: para os contratos (posições contratuais do trespassante), e ressalvadas as hipóteses previstas na lei, valem as
regras dos artigos 424.º e ss.

• Orlando de Carvalho: entende que são duas coisas diferentes. Portanto, para este, as posições contratuais pertencem ao âmbito
natural.
Portanto: houve transmissão? Se houve, houve consentimento? Existem algumas normas que se referem a este problema, como é
o caso do artigo 1112.º. Mas e nos casos em que não existam?

Há duas respostas doutrinas:


– Aplica-se o artigo 424.º: é necessário o consentimento, tirando os casos excecionais (como o artigo 1112.º);
– Aplica-se o artigo 1112.º por analogia, porque constitui a consagração de um princípio geral. Para proteger o valor deste
bem, dispensa-se o consentimento.

Para a generalidade da doutrina, este artigo 1112.º é uma exceção. Para outros, é a consagração de um princípio geral aplicável a
outros casos.
O regime do artigo 1112.º dispensa o consentimento de uma parte, a parte civil, em homenagem aos interesses do estabelecimento
comercial. É para a tutela do direito comercial que se desprotege a parte civil, o senhorio. O regime desde artigo é uma tutela do
estabelecimento comercial em desvalor de uma outra parte, que é o proprietário do imóvel.

OBRIGAÇÃO IMPLÍCITA DE NÃO CONCORRÊNCIA

O trespassante de estabelecimento fica em princípio obrigado a, num certo espaço e durante certo tempo, não
concorrer com o trespassário (e sucessivos adquirentes) – nomeadamente, fica vinculado a não iniciar atividade similar à
exercida através do estabelecimento trespassado, pois a concorrência por ele exercida seria particularmente perigosa uma vez
que conhece as características organizativas da empresa e mantinha relações pessoais com financiadores, fornecedores e clientes.

Esta obrigação tem alguns fundamentos, nomeadamente o princípio da boa fé na execução dos contratos, o
princípio da equidade, usos do comércio, concorrência leal, garantia contra evicção, dever de o alienante entregar a
coisa alienada e assegurar o gozo pacífico dela – este último fundamento é preferível entre nós.
A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios incluíveis no conceito de
trespasse: na venda (voluntária, executiva e falencial), na troca, realização de entrada social, dação em cumprimento,
doação, etc.

Página 45 de 104

Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não concorrência. É o
caso do cônjuge do trespassante (pois este beneficia dos conhecimentos relativos à organização, clientes,
fornecedores, etc., do estabelecimento trespassado), dos filhos do trespassante, quando com ele tenham colaborado
na exploração da empresa transmitida e, nos casos em que o trespassante é uma sociedade, ficam vinculados pela
obrigação implícita de não concorrência, além dela, alguns sócios (nomeadamente aqueles que possuem os
conhecimentos relativos à empresa trespassada indispensáveis a uma concorrência qualificada).
Entre os sujeitos ativos ou credores da obrigação implícita de não concorrência conta-se não apenas o primeiro
trespassário, mas também os eventuais sucessivos trespassários (cada um deles será credor do primeiro sujeito
passivo da obrigação, bem como de outros trespassários-trespassantes, enquanto for proprietário do estabelecimento
transmitido).
Esta obrigação conhece limites, claramente. Ela justifica-se apenas na medida em que seja necessária para uma
entrega efetiva do estabelecimento trespassado. Tem de ter, por conseguinte, limites objetivos, espaciais e temporais,
pois, de contrário, haveria violação do princípio da liberdade de iniciativa económica (artigo 61.º CRP) e das regras de
defesa da concorrência.

Os sujeitos passivos da obrigação não ficam evidentemente proibidos de exercer qualquer atividade económica.
Não podem é reiniciar o exercício de uma atividade concorrente com a exercida através da empresa trespassada, de
uma atividade económica no todo ou em parte igual ou sucedânea. Todavia, estes sujeitos não ficam impedidos tão-
somente de adquirir estabelecimento com objeto similar ao do alienado.

Depois, a obrigação implícita de não concorrência tem limites espaciais e temporais: vale apenas nos lugares
delimitados pelo raio de ação do estabelecimento trespassado, e durante o tempo suficiente para se consolidarem os
valores de organização e/ou de exploração da empresa transmitida na esfera de um adquirente-empresário
razoavelmente diligente.

Se os obrigados a não concorrer violarem a obrigação, pode o trespassário exercer os direitos previstos nas
normas respeitantes ao não cumprimento das obrigações. Assim, pode designadamente exigir indemnização por
perdas e danos (artigo 798.º CC), ou resolver o contrato de trespasse (artigo 801.º/2), ou intentar ação de
cumprimento (artigo 817.º) e requerer sanção pecuniária compulsória (artigo 829.º-A), ou exigir que o novo
estabelecimento do obrigado seja encerrado (artigo 829.º/1).
• Coutinho de Abreu autonomiza a ação de encerramento em relação à ação de cumprimento;
• Soveral Martins não vê onde é que realmente se pode fundar uma diferença, porque na ação de
cumprimento (não concorrer) o que se pede é que não concorra – a ação de cumprimento teria de ser com
fundamento no artigo 817.º. No entanto, vejamos que a ação de cumprimento é de cumprimento de obrigação
de não concorrer e, portanto, é uma obrigação de fechar o estabelecimento. Soveral Martins tem dificuldades
em ver porque é que Coutinho autonomiza as duas possibilidades, pois se é uma ação de cumprimento, é

Página 46 de 104

cumprimento de uma obrigação de não concorrer, o que pressupõe que o estabelecimento feche. Então, o
cumprimento será o cumprimento de uma obrigação de não concorrer.

Note-se, por último, que a obrigação implícita de não concorrência pode ser afastada por estipulação contratual
(o sujeito dos interesses patrimoniais tutelados pela obrigação é o trespassário, que deles pode dispor livremente).

TRESPASSE DE ESTABELECIMENTO INSTALADO EM PRÉDIO ARRENDADO (ARTIGO 1112.º CC)

Em caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o trespassante-


arrendatário pode ceder a sua posição de arrendatário ao trespassário sem necessidade de autorização do senhorio –
é uma norma expressiva da tutela ou defesa da circulação negocial dos estabelecimento e, eventualmente, da própria
manutenção deles (se protege o interesse dos trespassantes em transmitirem, sem entraves dos senhorios,
estabelecimentos integrando direito de arrendamento, bem como o interesse dos trespassários em adquirirem
empresas o mais possível valiosas e funcionais, e ainda o interesse económico-geral na continuidade e
desenvolvimento das empresas).

Interpretando à letra a alínea a) do artigo 1112.º, concluir-se-ia que o trespasse de um estabelecimento exige a
transferência de todos os seus elementos, bastando a falta de um deles para que de trespasse não pudesse falar-se.
Inexistindo trespasse, a cessão da posição de arrendatário seria ilícita sem o consentimento do senhorio e fundamento
de resolução do contrato de arrendamento.
– Há autores que assumem uma posição radical, assumindo uma interpretação à letra desta alínea,
defendendo que o legislador entendeu que para este efeito é necessária a transferência de todos os elementos
e portanto desconsidera-se o âmbito mínimo: todos os elementos têm de ser transferidos.
– Esta posição é rejeitada pela doutrina maioritária (Orlando de Carvalho, Coutinho de Abreu, Soveral
Martins).

Ora, para que o artigo 1112.º/1 não tenha aplicação, não é suficiente que o senhorio prove não ter sido
transmitido um ou mais elementos componentes do estabelecimento, tendo de provar que sem esses elementos não
subsiste o concreto estabelecimento, que o mesmo não pode ter sido efetivamente negociado, tendo havido antes
simulação de trespasse (dissimulando a cessão da posição de arrendatário).
Para Soveral Martins, não tem necessariamente que existir uma simulação, pois para que esta tenha lugar, é
necessário existir acordo entre declarante e declaratário acompanhado de uma intenção de prejudicar terceiros; e,
muitas vezes, as partes não têm esta intenção, mas simplesmente não conhecem os regimes jurídicos e julgam que,
ao excluir aqueles elementos, ainda estão a celebrar um trepasse. O que pode haver, na verdade, é um erro.
Para efeitos da alínea b), considera-se não haver trespasse quando, no momento do negócio, havia intenção de
dar outro destino ao prédio; o cessionário da posição de arrendatário tinha em vista, não a continuação do mesmo
estabelecimento, mas sim a constituição, no mesmo prédio, de estabelecimento novo ou a aplicação do imóvel a fins

Página 47 de 104

não comerciais ou industriais (p. ex., habitação). Esta é a posição de Coutinho de Abreu, que exige apenas a intenção
de mudança do adquirente.
A intenção de mudança de destino pode ser revelada logo por declarações constantes no escrito do negócio de
trespasse ou por declarações externas, mas concomitantes. Mais provável, porém, é ela ser revelada por factos
posteriores – p. ex.: A declara vender e B declara comprar um bar que funciona no prédio de C. Dois meses depois, B reabre o prédio,
verificando-se que nele passou a funcionar somente um restaurante. C não terá especiais dificuldades em resolver o contrato, com base em
inexistência de trespasse e de consentimento seu para a cessão da posição de arrendatário, provando que a mudança de destino do prédio

revela que B pretendeu adquirir não propriamente um estabelecimento-bar, mas antes, essencialmente, posição de arrendatária.

Soveral Martins e Pedro Maia entendem, pelo contrário, que “visar” pressupõe um intuito comum do
trespassante e trespassado, tanto mais que a lei fala em “transmissão que vise”, e quem irá transmitir é o trespassante.

O artigo 1112.º termina com um enunciado normativo perturbador. Nos termos do n.° 5, “quando, após a
transmissão, seja dado outro destino ao prédio, o senhorio pode resolver o contrato”.
Defendeu-se já que esta norma não cria uma causa autónoma de resolução e/ou seria indispensável:
– Se a mudança de destino significa que não houve trespasse, a situação está já prevista na alínea b) do
n.° 2;
– Se, apesar da mudança, houve trespasse, não há fundamento de resolução (alínea a) do n.° 1), salvo
se o contrato de arrendamento não permitia destinar o prédio a outro fim – caso em que o fundamento de
resolução se encontra já no artigo 1083.º/2, al. c).

Também Coutinho de Abreu considera que a norma é criticável, mas entende que ela cria fundamento
autónomo de resolução e não é prejudicada pela norma da alínea b) do n.° 2 (os campos de aplicação não coincidem
necessariamente). O alcance prático desta fica, isso sim, diminuído.

Por outro lado, há diferenças de regime consoante se aplique uma e outra norma. Recorde-se o exemplo
apresentado há momentos:
• A transformação do bar revelou não ter havido trespasse (artigo 1112.º, als. a) e b)). O senhorio C
pode resolver o contrato de arrendamento com fundamento no artigo 1083.º/2, al. e) (cessão ilícita), mas pode fazê-
lo também com fundamento no n.° 5.
• Apesar da transformação do bar em restaurante, houve trespasse (A e B negociaram objetivamente o
estabelecimento-bar, B no momento do negócio não tinha em vista exercer no prédio outro ramo de comércio
jurídico).
o Dir-se-ia que, se o concreto contrato de arrendamento comportasse outros fins comerciais
(incluindo restauração) – artigos 1027.º, 1028.º e 1067.º – B (tal como A anteriormente), enquanto proprietário,
podia perfeitamente converter o estabelecimento adquirido em outro estabelecimento; era assim (e bem) no

Página 48 de 104

direito pregresso. Mas é para casos destes que o novo n.° 5 (não o artigo 1083.º/2, al. c)) oferece ao senhorio
fundamento próprio para a resolução.
o A ratio da norma será: a lei concede ao trespassante e ao trespassário o benefício consagrado
no artigo 1112.º/1, al. a) a fim de facilitar a transmissão negocial do estabelecimento; se este estabelecimento,
cuja circulação se promoveu, não se mantiver, deverá então o senhorio poder interferir na relação arredatícia,
resolvendo o contrato.

• Com base em inexistência de trespasse e de autorização para a cedência da posição de arrendatário,


C pode não só resolver o contrato de arrendamento, mas também responsabilizar civilmente A e/ou B quando os atos
ilícitos e culposos destes (na cessão não autorizada da posição arredatícia) lhe causem danos.
o Existindo trespasse e subsequente mudança de destino, pode C resolver o contrato de
arrendamento (n.° 5), mas não terá direito a indemnização.

O artigo 1112.º/3 repete que a transmissão da posição do arrendatário, sem dependência de autorização do
senhorio, deve ser comunicada a este.
Sendo ineficaz relativamente ao senhorio a cedência da posição de arrendatário não comunicada
atempadamente, aquele, se não tiver reconhecido o cessionário como tal (artigo 1049.º), pode resolver o contrato de
arrendamento, de acordo com o previsto no artigo 1083.º/2, al. a) (cessão ineficaz).

Mas, normalmente, a resolução não será decretada pelo tribunal (artigo 1084.º/1), pelo simples facto de a
comunicação não ter ocorrido no prazo de 15 dias. É necessário, como se diz no artigo 1083.º/2, que o incumprimento
“pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.

Interessa, evidentemente, ao senhorio que lhe seja comunicada a cessão da posição de arrendatário: tem o
direito de saber quem aparece como novo inquilino e de verificar se houve ou não trespasse válido que lhe imponha
novo inquilino.

Contudo, havendo trespasse válido, o senhorio não tem poderes para recusar o trespassário como arrendatário,
pelo que, para conduzir à resolução, não será em geral suficiente uma pequena ultrapassagem do prazo de 15 dias.
Será suficiente, por exemplo, um atraso de vários meses que tenham impedido o senhorio de, bem mais cedo,
denunciar o contrato de arrendamento.

Página 49 de 104

2.3.2. LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO

NOÇÃO E ALGUM REGIME

A locação de estabelecimento (comercial ou não comercial) é definível como o contrato pelo qual uma das
partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento, mediante retribuição.
Esta noção ajusta-se perfeitamente à noção de locação em geral (artigo 1022.º CC) e pretendemos com isso
sublinhar três pontos: os estabelecimentos podem ser locados; a locação de estabelecimento é um contrato nominado
(tanto na doutrina como na lei); e tal contrato também é típico, isto é, está regulado na lei.

Nos termos do artigo 1110.º/1 do CC, “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos
contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na
falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação, sem prejuízo do disposto no presente artigo
e no seguinte” – ou seja, as partes estipulam livremente a duração do contrato (prazo certo ou duração indeterminada). Contudo, se as partes
nada estipularem, considera-se o contrato celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos (n.° 5).

O contrato celebrado por prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de
igual duração ou de cinco anos se ela for inferior, mas salvo estipulação diferente (n.° 3). No entanto, se o prazo for
inferior a cinco anos, o locador de estabelecimento não pode opor-se à renovação ou renovações sucessivas até que
a duração do contrato perfaça os cinco anos (n.° 4).

Quando o contrato de locação de estabelecimento seja celebrado com prazo certo, na falta de regime
convencional para a denúncia, vale o artigo 1098.º/3 a 6 (por remissão do artigo 1110.º/1), exceto se o prazo for
supletivo (cinco anos), caso em que o locatário não pode denunciar o contrato com antecedência inferior a um ano
(artigo 1110.º/2).
Se o contrato for celebrado por duração indeterminada, o regime supletivo da denúncia pelo locatário de
estabelecimento é o constante do artigo 1100.º; por sua vez, o locador de estabelecimento apenas poderá denunciar
o contrato mediante comunicação ao locatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que
pretenda a cessação (artigo 1110.º-A/1, remetendo para o artigo 1101.º, al. c)).

O n.° 2 do artigo 1112.º, adaptado, tem também alguma utilidade – por exemplo, pertencendo ao locador do
estabelecimento o prédio onde ele funciona, não há locação de estabelecimento se não forem incluídos no negócio elementos do âmbito mínimo
da empresa (al. a) do n.° 2) ou se as partes visarem “o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de modo geral, a sua
afetação a outro destino” (al. b) do n.° 2) – havendo sim contrato de arrendamento; pertencendo o prédio a terceiro (senhorio), também não
há locação de estabelecimento se se verificarem aquelas condições – havendo agora subarrendamento, que será ilícito sem autorização do

senhorio.

Quanto à forma do contrato de locação de estabelecimento, é aplicável a primeira parte do n.° 3 do artigo
1112.º: sob pena de nulidade, deve o contrato ser celebrado por escrito.

Página 50 de 104

Por último, é aplicável o artigo 1113.º. A locação de estabelecimento não caduca por morte do locatário,
podendo embora os sucessores renunciar à transmissão.

Há alguma aplicabilidade (com adaptações) à locação de estabelecimento de preceitos fora da subsecção VIII
da secção VII. Indiquemos, sumariamente, mais alguns: artigos 1031.º (obrigações do locador), 1032.º a 1035.º (vícios
do estabelecimento locado e outros vícios), 1036.º (reparações ou outras despesas urgentes), 1037.º (atos que
impedem ou diminuem o gozo do estabelecimento), 1038.º (obrigações do locatário), 1039.º a 1042.º (retribuição a
pagar pelo locatário), 1043.º a 1046.º/1 (restituição do estabelecimento locado e benfeitorias), 1047.º a 1050.º
(resolução do contrato), 1051.º e 1052.º (caducidade do contrato), 1057.º, 1058.º e 1059.º/2 (transmissão da posição
contratual).

ÂMBITOS DE ENTREGA

Tal como nos casos de trespasse, a locação de estabelecimento não pode prescindir dos elementos necessários
ou essenciais para a identificação da empresa objeto do negócio – o âmbito mínimo tem de ser respeitado.
Salvo quando outra coisa resulte da lei ou do contrato, é de entender que os elementos empresariais se
transferem naturalmente para o locatário. Assim, integra-se no âmbito natural de entrega a generalidade dos meios
empresariais pertencentes em propriedade ao locador – matérias-primas, prédios, máquinas, ferramentas, mobiliário,
mercadorias, inventos patenteados, modelos de utilidade, desenhos ou modelos, recompensas e também os logótipos
e marcas.

A posição de empregador decorrente dos contratos de trabalho para o locador transmite-se, pelo período da
locação, para o locatário (artigo 285.º/2 CT) – quando o estabelecimento funciona em prédio arrendado, há de
entender-se que se transmite naturalmente para o locatário da empresa o gozo do prédio.

Coisa semelhante deve valer para os bens empresariais detidos pelo locador de estabelecimento a título de
locação financeira ou de simples aluguer (o cedente de exploração da empresa continua locatário dos bens e o gozo
destes transfere-se temporariamente para o cessionário da empresa, sem necessidade de convenção das partes nem
de autorização do locador dos referidos bens).

E coisa semelhante deve ainda valer para as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e marcas
objeto de licença de exploração (o direito obtido por meio de licença não é alienado para o locatário do
estabelecimento, não exigindo, portanto, o consentimento escrito do licenciante – artigo 31.º/8 CPI).

Tal como no trespasse, as situações de facto com valor económico elementos da empresa (nomeadamente o
saber-fazer) incluem-se normalmente no âmbito natural de entrega.

Página 51 de 104

Em face do artigo 44.º/1 do RRNPC, há de entender-se que a firma integra-se no âmbito convencional de
entrega.

Deve entender-se que, salvo estipulação em contrário, a propriedade dos meios empresariais fica com o locador,
não se transmitindo para o locatário. O negócio da locação incide sobre o estabelecimento unidade jurídica-coisa, não
sobre singulares elementos seus; o direito locatício sobre o todo com que fica o locatário não pode logicamente
implicar direitos de propriedade sobre as partes. Por outro lado, a propósito de uma dos elementos da empresa, o
artigo 1109.º/1 do CC não parece dar azo a hesitações ao falar de transferência temporária do gozo do mesmo.

Com que direito, então, o locatário transforma e/ou aliena bens constituintes do capital circulante e aliena bens
do capital fixo que é necessário substituir?
¯
Este poder ou direito de disposição sobre os meios empresariais não se funda no direito de propriedade, mas
sim no poder-dever de exploração de estabelecimento.
Na verdade, o locatário tem não apenas o direito de explorar-gozar o estabelecimento, mas também o dever de
o fazer – sob pena de a empresa sofrer diminuição no seu valor económico ou mesmo extinguir-se.
Se o locatário arbitrariamente encerrar, total ou parcialmente, temporária ou definitivamente a empresa, ele
viola o contrato de locação e o locador pode requerer a resolução (artigo 1047.º). Pois bem, o exercício de tal poder-
dever implica necessariamente os referidos consumo e alienação de elementos empresariais.

OBRIGAÇÕES DE NÃO CONCORRÊNCIA

Enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador (e, eventualmente, outras pessoas) está obrigado a
não concorrer num determinado espaço com o locatário – está obrigado a não iniciar atividade igual ou semelhante à
exercida através do estabelecimento locado.
Tal obrigação não é implícita, pois ela resulta de expressas disposições legais (artigos 1031.º, al. b) e 1037.º): é
obrigação do locador assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destina, não lhe sendo permitido praticar
atos que impeçam ou diminuam esse gozo.

E pode o locatário, na vigência do contrato de locação, iniciar o exercício de uma atividade concorrente com a
exercida através da empresa locada e no espaço delimitado pelo raio de ação desta sem o consentimento do locador?
A resposta deverá ser negativa. Tal comportamento provocaria uma diminuição do valor do estabelecimento
locado e significa a violação do dever de manutenção e restituição da coisa a cargo do locatário (artigo 1043.º).

Página 52 de 104

Terminado o contrato e na ausência de um possível pacto de não concorrência, fica o ex-locatário obrigado a
não concorrer com o ex-locador? As respostas têm sido diversas.
ß
O princípio é o da liberdade de iniciativa económica e de concorrência.
É certo que o ex-locatário pode aproveitar o conhecimento sobre a clientela e a organização empresariais
adquiridos durante a locação, mas compete ao locador tomar em devida conta esse risco.
Também os simples assalariados de um empresário podem, extinta a relação laboral, aproveitar-se igualmente
de tais conhecimentos para se estabelecerem – sendo pacífico que eles gozam, salvo estipulação em contrário, de
liberdade de trabalho (artigo 136.º CT).
Depois, os citados conhecimentos, além de terem sido adquiridos pelo locatário no decurso de uma exploração
pela qual ele pagou ao locador, eram também pertença deste ou estavam ao seu alcance (artigo 1038.º, al. b)) e
podem continuar a ser usados na exploração de arrendamento restituído.

LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO E ARRENDAMENTO

A locação de estabelecimento, mesmo quando envolve prédios, não é um contrato de arrendamento (artigo
1023.º), apesar de o artigo 1109.º afirmar que ela se rege pelas regras da subsecção VIII – o mesmo artigo acrescenta,
“com as necessárias adaptações”. E verificamos serem aplicáveis em maior número as normas da locação não
específicas dos arrendamentos prediais.

Também não é um contrato misto, associando o arrendamento de prédio ou fração e o aluguer de


estabelecimento ou dos móveis componentes do estabelecimento. O enunciado do n.° 1 do artigo 1109.º sugere em
alguma medida essa perspetiva.
Não obstante, a locação de estabelecimento prevista no artigo 1109.º é um negócio unitário com objeto
(mediato) também unitário: o estabelecimento, feito embora de vários elementos. O gozo do prédio-elemento do
estabelecimento é transferido para o locatário a título não autónomo, não há específico negócio incidindo no prédio;
o prédio não é dado em arrendamento nem subarrendado – o locador de estabelecimento e proprietário do imóvel
não passa a senhorio, o locador de estabelecimento e arrendatário do imóvel não cede a sua posição arrendatícia nem
subarrendada.

Questão muitas vezes discutida nos tribunais e nos papéis de doutrina era a necessidade, ou não, de o senhorio
autorizar a cedência de gozo do prédio arrendado aquando da locação de estabelecimento nele instalado.
Paulatinamente, foi-se tornando dominante a tese da desnecessidade de autorização do senhorio.
Andou bem o NRAU ao consagrar no artigo 1109.º/2 a desnecessidade de autorizar a cedência do gozo do
prédio, apesar de o ter feito sem rigor linguístico: o que “não carece de autorização do senhorio” não é “a transferência
temporária e onerosa de estabelecimento instalado em local arrendado”, e sim a transferência do gozo do prédio
integrado no estabelecimento.

Página 53 de 104

Até ao NRAU havia alguma divergência na jurisprudência e doutrina sobre se era obrigação do arrendatário de
prédio e locador de estabelecimento comunicar ao senhorio a cedência de gozo do prédio integrado na locação da
empresa.

Também aqui o artigo 1109.º/2 consagrou a solução mais acertada: a transferência do gozo do prédio deve ser
comunicada ao senhorio no prazo de um mês.
Faltando a comunicação no prazo referido, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio. Que
poderá, por isso (salvo se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal – artigo 1049.º), resolver o contrato
de arrendamento (artigo 1083.º/2, al. e)). Contudo, como dissemos a propósito do trespasse, a falta de comunicação
tem de, pela sua gravidade, tornar inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.

3. RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS POR VIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS

Atualmente, as leis preveem especificamente para a recuperação de empresas (e/ou respetivos empresários)
dois processos judiciais:
• O processo insolvencial com plano de insolvência (artigos 192.º e ss. CIRE);
• O processo especial de revitalização (PER) – artigos 17.º-A e ss. CIRE.

• Além destes, temos um processo extrajudicial, nomeadamente o Regime Extrajudicial de Recuperação


de Empresas (RERE).

O plano de insolvência é aplicável a devedores (entidades coletivas e patrimónios autónomos com ou sem
empresas, e pessoas singulares com empresas não pequenas – artigos 2.º, 249.º e 250.º) em situação de insolvência
ou equiparada (isto é, em situação de insolvência iminente) – este plano é uma possibilidade que surge para se recuperar a empresa,
e só se pode chegar a um plano de insolvência depois de declarada a insolvência do devedor (no entanto, o plano de insolvência não tem de ser

necessariamente um plano de recuperação, podendo também existir planos de insolvência que são planos de liquidação).

O PER é aplicável, agora, não a qualquer devedor, mas somente a “empresa” que esteja em situação económica
difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.
Por sua vez, o RERE aplica-se a pessoas singulares, entidades coletivas (com ou sem personalidade jurídica) e
patrimónios autónomos que tenham ou explorem ou sejam empresas e que estejam em situação económica difícil ou
em situação de insolvência iminente.

Tendencialmente consegue-se perceber que são tempos de prosperidade económica e é mais frequente termos legislações sobre
insolvência e recuperação de empresas com um cunho mais liberal, enquanto em tempos de maiores apertos económicos, a tendência é para
termos legislações mais preocupadas com a manutenção das empresas e dos postos de trabalho.

Página 54 de 104

Isso tem uma explicação fácil: quando falamos em períodos de prosperidade, em que toda a gente está a fazer dinheiro, se há uma
empresa que não faz dinheiro, a tendência é a de dizer que a culpada é a própria empresa. Neste caso, é preciso eliminar rapidamente esta
empresa e permitir que os ativos que aquele empresário/aquela empresa sejam agora utilizados de forma mais eficiente por aqueles que estão
a fazer dinheiro – neste caso teremos legislações de cunho mais liberal, isto é, há uma tendência forte para entregar as decisões finais aos
próprios credores.
Em períodos de escassez mais ou menos generalizada (como aquele em que vivemos em 2007/2008 e que foi até 2013/2014) o que nós
verificamos foi que até mesmo grandes empresas acabaram por ceder. Quando isto começa a generalizar-se em vários ramos da economia,
neste caso é necessário outro tipo de intervenções, porque agora se aquela empresa fecha e manda para o desemprego os seus trabalhadores,
estes trabalhadores já não têm onde encontrar postos de trabalho, pois isto não é só algo que afeta aquela exclusiva empresa, mas sim que
afeta milhares de empresas em todo o país.
Isto ajuda a explicar o caminho que seguiu o nosso CIRE: é um código de 2004 e que, quando surgiu na sua versão inicial, tinha uma
vertente liberal muito mais forte do que o que tem hoje, pois surgiu em tempos de alguma expansão da economia. Logo, o que iremos ver no
CIRE é apenas uma alternativa para a recuperação das empresas – elas só poderão ser recuperadas após a declaração de insolvência ou
envolvendo a declaração de insolvência (não havia mecanismos de recuperação que afastassem a declaração de insolvência).

3.1. PLANO DE INSOLVÊNCIA

O CIRE, logo no artigo 1.º, à propósito do plano de insolvência, refere-se à “recuperação da empresa
compreendida na massa insolvente”. Convém, no entanto, chamar a atenção para alguns pontos:

® O “plano de insolvência”, mesmo quando aplicado a empresários, não tem de visar a recuperação
de empresa. Embora o desígnio recuperativo do plano deva ser considerado primordial, é certo que aquele
instrumento pode ser utilizado com objetivos que não passam pela recuperação empresarial, podendo até regular
uma liquidação mais ou menos atomística da empresa;
– Por exemplo, podemos ter ainda um plano de insolvência misto: pode-se chegar à conclusão que aquele
devedor que tem uma empresa, é um devedor que tem elementos no seu ativo e que integram a massa insolvente, que não interessam para
nada. Neste caso, os credores podem entender que é preferível, ao mesmo tempo que se recupera a empresa, alienar estes bens da massa
insolvente – e o plano de insolvência pode regular a recuperação da empresa e a liquidação dos outros bens que não integram sequer a empresa
do devedor (em suma, as modalidades adotadas pelo plano de insolvência são, portanto, recuperação, liquidação ou misto; e ainda há quem
autonomize o saneamento por transmissão).

® A “recuperação” de empresa que o CIRE trata deve ser entendida em sentido amplo. Em sentido
estrito, uma empresa (em sentido objetivo) é ou pode ser objeto de medidas de recuperação se não está em
condições de gerar lucros ou, ao menos, receitas suficientes para cobrir os respetivos custos de produção. Ora, é
possível que o plano de insolvência preveja tão-só a continuidade ou manutenção da empresa, na titularidade do
insolvente ou de terceiro (artigos 195.º/2, als. b) e c) e 199.º).

® Mesmo na via geral da liquidação do património do insolvente está possibilitada e potenciada a


recuperação-manutenção de empresa, mas já não, naturalmente, na esfera jurídica do insolvente. Diz, com efeito, o

Página 55 de 104

artigo 162.º/1 CIRE: “a empresa compreendida na massa insolvente é alienada como um todo, a não ser que não
haja proposta satisfatória ou se reconheça vantagem na liquidação ou alienação separada de certas partes”.
– O plano de insolvência pode também prever a transmissão de empresa para terceiro, caso esse em que o
terceiro adquirente que mais releva é a sociedade constituída e organizada nos termos indicados no plano – é o chamado
“saneamento por transmissão” (artigo 199.º CIRE): consiste na alienação de um ou mais estabelecimentos do devedor, a favor de
uma ou mais sociedades que são constituídas para adquirirem esse ou esses estabelecimentos (constitui-se uma nova sociedade).

Essa alternativa do saneamento por transmissão acaba por, na prática, ser uma operação de liquidação do património do insolvente.

® À via da liquidação nos termos do CIRE e à via do plano de insolvência não correspondem duas formas
especiais de processo. Há, unicamente, o processo de insolvência (artigo 1.º/1 CIRE). Por outro lado, o CIRE não dá
prevalência a qualquer daquelas vias, nem prefere, portanto, a recuperação de empresa à liquidação; confere aos
credores o poder de decidir.

O artigo 1.º/1 CIRE é um artigo enganoso, pois dá a ideia de que um processo de insolvência terá sempre um plano de
insolvência, e que será ou um plano de recuperação ou um plano de liquidação – esta ideia está errada, pois não passa de uma
merda indicação de princípios.
Na verdade, o CIRE consagra um regime em que a liquidação da massa insolvente é, na verdade, a regra (porque se nada
se decidir em contrário, o destino da massa insolvente é ser liquidada) – e, para que se decida algo em contrário, teremos de ver
apresentada uma proposta de um plano de insolvência, e nada no CIRE obriga a que essa proposta apareça (inclusive há casos em
que sequer é possível apresentar proposta).
Depois de apresentada, a proposta por ser aceite ou recusada pelos credores (e nada indica que, uma vez recusada, sejam
apresentadas propostas até serem aprovadas); mesmo que seja aprovada pelos credores, ainda há a possibilidade de o juiz recusar
a homologação.

O plano de insolvência é um instrumento de natureza jurídico-negocial utilizável pelos credores que contém
(em documento particular) primordialmente medidas de recuperação de empresa do devedor insolvente – se este
continuar a explorar a empresa, os credores esperam satisfazer-se basicamente com os resultados empresariais.
No caso de a empresa ser transmitida, satisfazem-se os credores principalmente com parte do produto da venda
e/ou a aquisição de participações em nova sociedade por troca de créditos sobre o insolvente.

Podem apresentar proposta de plano o devedor (quando se apresenta à insolvência ou posteriormente – artigo
24.º/3), o administrador da insolvência (disso encarregado por deliberação da assembleia de credores que aprecia o
relatório dele – artigos 36.º, al. n); 155.º/1, al. c); e 156.º/3 e 4 – ou por sua própria iniciativa), um credor ou grupo
de credores com créditos correspondentes pelo menos a um quinto do total dos créditos não subordinados e qualquer
responsável legal pelas dívidas da insolvência (artigo 193.º).

Se o juiz admitir a proposta de plano de insolvência (artigo 207.º), notificará as entidades mencionadas no artigo
208.º para, querendo, emitirem parecer sobre ela. E convocará a assembleia de credores para discutir e votar a

Página 56 de 104

proposta de plano (artigo 209.º/1). Porém, a assembleia não poderá realizar-se antes de transitada em julgado a
sentença de declaração de insolvência, de esgotado o prazo para a impugnação da lista de credores reconhecidos
(artigo 130.º/1) e da realização da assembleia de apreciação do relatório (artigo 36.º, al. n)).

Antes da declaração de insolvência, pode o juiz ordenar medidas cautelares, designadamente nomear um
administrador judicial provisório para administrar o património do devedor ou assistir este na administração (artigos
31.º e 33.º).
Na assembleia de credores, presidida pelo juiz (artigo 74.º), têm direito de participar os credores (com ou sem
direito de voto), bem como outras pessoas (sem direito de voto, naturalmente) – artigo 72.º.

O plano de insolvência aprovado pelos credores necessita, para que seja plenamente eficaz, de ser homologado
por sentença judicial (artigo 217.º). Segundo o artigo 215.º, o juiz recusa oficiosamente a homologação em certos
casos: ter havido “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo
(conteúdo do plano)”.
• Vício de procedimento não negligenciável existirá, por exemplo, quando um credor sem direito de voto tenha sido admitido
à votação e os seus votos se revelem decisivos para a obtenção de alguma das maiorias exigidas no artigo 212.º/1; ou quando um credor

tenha vendido os seus votos (artigo 194.º/3).

• Quando aos vícios de conteúdo relevantes, importa ressaltar a violação de normas legais impondo determinados
consentimentos. Assim, por exemplo, é ilegal o plano segundo o qual o devedor pessoa singular deva continuar a exploração da empresa
sem que ele tenha declarado por escrito disponibilidade para o efeito (artigos 202.º/1 e 224.º).
o Há casos em que a lei dispensa o consentimento (artigo 203.º/1): não carece de consentimento dos
respetivos titulares a conversão de créditos comuns ou subordinados em participações sociais referentes à sociedade

insolvente ou a nova sociedade quando tais participações sejam ações livremente transmissíveis.

O juiz também recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência quando, no prazo razoável que
estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos que devem preceder
a homologação (artigo 201.º/1 e 2).

O juiz recusa ainda a homologação do plano por solicitação de interessados (devedor não proponente do plano,
credor, sócio, associado ou membro do devedor) que haja manifestado nos autos a sua oposição antes da aprovação
do plano, quando o requerente demonstre em termos plausíveis que a sua situação ficará pior com o plano do que
sem ele, ou que o plano proporciona a algum credor um valor patrimonial superior ao montante nominal dos seus
créditos sobre a insolvência, acrescido do valor de eventuais contribuições a que fique obrigado (artigo 216.º/1).

Página 57 de 104

3.2. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA

O processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, visa satisfazer conjuntamente os credores
de um devedor. Dispõem os credores de duas vias principais para aproveitarem as forças patrimoniais do devedor: ou
vão pela liquidação dos bens integrantes da massa insolvente e consequente repartição dos resultados distribuíveis
ou se decidem por um plano de insolvência onde regulam autonomamente o modo por que serão satisfeitos os seus
interesses.

Na formulação originária do artigo 1.º CIRE, estas duas vias principais apareciam como alternativas sem ordem
de precedência, competindo livremente aos credores decidir qual delas seguir. Agora, segundo a formulação do artigo
1.º introduzida pelo Decreto-lei n.° 16/2012, de 20 de abril, deixou de ser assim.
Diz agora o n.° 1 do artigo 1.º CIRE: “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem
como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na
recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do
património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” – esta redação já deu azo a
equívocos.

® 1°: o processo de insolvência exige sempre plano de insolvência (quer para a recuperação, quer para
a liquidação). No entanto, não existe plano de insolvência para as pessoas singulares não empresárias ou titulares de
pequenas empresas (artigos 249.º e 250.º); os sujeitos legitimados para apresentar plano de insolvência não têm, em
geral, o dever de apresentá-lo (artigo 193.º); só há plano de insolvência se ele for aprovado pelos credores (artigo
209.º e ss.); a liquidação da massa insolvente processa-se nos termos previstos na lei (artigos 156.º e ss.), salvo se
existir plano de insolvência regulando essa liquidação (artigo 192.º/1).
– Para que o plano de insolvência possa ser aprovado é necessário que seja votado favoravelmente pelos

credores (a regra na contagem dos votos é 1€ = 1 voto, ou seja, é atribuído um voto por cada euro de crédito).

– Ora, no caso dos chamados “pequenos empresários pessoas singulares” (é possível termos uma pessoa
singular que é considerada um pequeno empresário, o qual é definido em função das características que o próprio CIRE
exige – o pequeno empresário é aquele que o CIRE diz que é). Estes critérios estão estabelecidos nos artigos 249.º e ss.
ß
Os critérios para o pequeno empresário são difíceis de aceitar, mas é o que está na lei – é muito fácil
ultrapassar estes limites e deixar de ser considerado pequeno empresário.
O artigo 250.º diz que aos processos de insolvência abrangidos pelo capítulo relativo aos não empresários
ou pequenos empresários, não são aplicáveis as disposições relativas a planos de insolvência, isto é, o pequeno empresário
abrangido por estes artigos não pode recorrer ao plano de insolvência e, consequentemente, não pode recorrer ao plano
de recuperação. Isso porque a alternativa prevista é diferente: o que ele pode fazer é utilizar o plano de pagamento, mas
se ele quiser optar pelo plano de pagamento, ele tem de o apresentar aos seus credores para estes o aprovarem. Uma vez
aprovado, está sujeito a homologação pelo juiz (artigo 259.º) e, após o trânsito em julgado, declara a insolvência do
devedor – se o pequeno empresário optar por esta via, será declarado insolvente.
A diferença entre o plano de pagamento e o plano de insolvência de recuperação, é que no 1° teremos a
aprovação do plano de pagamento, a homologação do plano de pagamento e depois a declaração de insolvência, enquanto

Página 58 de 104

no plano de insolvência de recuperação (2°), este plano de insolvência só é aprovado e homologado depois da declaração
de insolvência – por exemplo, imagine que A é pequeno empresário nos termos do artigo 249.º: então, neste caso, este só
pode optar pelo plano de pagamento; das duas uma: ou ele se apresenta à insolvência ou a insolvência é requerida contra
ele – se ele se apresenta à insolvência, o artigo 251.º diz que, se ele quer utilizar o plano de pagamento, tem de apresenta-
lo na petição inicial; se, pelo contrário, a insolvência é pedida por outrem, então o devedor será citado para fazer uma de
duas coisas: ou apresenta a contestação ou apresenta o plano de pagamento, a qual seguir-se-á a discussão desse plano
com os credores. Após a aprovação por parte dos credores é que o juiz irá decidir se homologa ou não o plano de
pagamento. Depois de transitada em julgado a sentença de homologação, o juiz declara a insolvência daquele devedor.
No plano de insolvência, o que nós temos é um instrumento/plano que só será aprovado e, eventualmente
homologado, depois da declaração de insolvência.

® A recuperação de empresa compreendida na massa insolvente, quando possível, tem primazia sobre
a liquidação. Mas ainda agora vimos que não tem de haver plano de insolvência/recuperação; mesmo que a
recuperação de empresa seja (objetivamente) viável, nada na lei obriga os credores a aprovarem o plano de
recuperação – eles continuam livres de optar pela liquidação (com ou sem plano de insolvência).

3.3. QUEM ESTÁ SUJEITO A DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA?

Desde logo, quaisquer pessoas singulares ou coletivas (artigo 2.º/1, al. a)) – enquanto pessoas coletivas podem
ser declarados insolventes associações, fundações, sociedades comerciais, sociedades civis de tipo comercial,
sociedades civis simples personalizadas (como as de advogados), cooperativas, agrupamentos, complementares de
empresas (ACE), agrupamentos europeus de interesse económico (AEIE).
O segundo grupo reúne entidades ou sujeitos de natureza coletiva mas não personalizados – por exemplo,
associações sem personalidade jurídica e comissões especiais (artigo 2.º/1, al. c)), sociedades civis simples (artigo
2.º/1, al. d)), sociedades comerciais e sociedades civis de tipo comercial antes do registo definitivo do ato pelo qual
são constituídas (artigo 2.º/1, al. e)), cooperativas antes do registo da constituição (artigo 2.º/1, al. f)).
No terceiro grupo temos a herança jacente (artigo 2.º/1, al. b) CIRE), o estabelecimento individual de
responsabilidade limitada (“e.i.r.l.” – artigo 2.º/1, al. g)) e quaisquer outros patrimónios autónomos (artigo 2.º/1, al.
h)).

Pressuposto objetivo para alguém (ou algo) ser declarado insolvente é a situação de insolvência ou situação
equiparada. Em geral, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir
as suas obrigações vencidas (artigo 3.º/1 CIRE) – esta impossibilidade de cumprimento há de assentar essencialmente
na falta de meios de pagamento ou bens de liquidez (p. ex., dinheiro em caixa e depósitos bancários, créditos bancários vencidos,
produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro).

A impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas, bastando o


incumprimento de uma ou algumas que, pelo seu montante (valor absoluto e valor relativo ao da totalidade das
dívidas) ou pelas circunstâncias do incumprimento (tempo da mora, dificuldade ou impossibilidade de acesso ao

Página 59 de 104

crédito, caráter progressivo do endividamento), revelem uma relação deficitária e não passageira entre o valor dos
meios de liquidez e o valor de todas as obrigações vencidas.

Acrescenta o artigo 3.º/4: “Equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso
de apresentação pelo devedor à insolvência”.
A insolvência atual consiste na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas – trata-se de verificar se
existe ou não a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas.
O Dr. Soveral Martins tem uma posição diferente da conceção do Dr. Coutinho de Abreu. O 1° defende que
poderá bastar que se prove diretamente a impossibilidade de cumprir uma ou algumas obrigações vencidas que
permitam, por presunção judicial (meio de prova), extrair a conclusão de que também fica impossibilitado, pela
dimensão ou por outras circunstâncias que envolvem estas alegações, de cumprir as demais obrigações vencidas.
Na prática, a prova dessa impossibilidade far-se-á mediante presunção judicial, que é também um meio de
prova, uma ilação que o julgador retira de um facto conhecido, para afirmar um facto desconhecido. Não se consegue
fazer prova direta de que há impossibilidade de cumprir todas as obrigações vencidas, mas se consegue fazer prova
direita de que há impossibilidade de cumprir uma ou algumas das obrigações vencidas.

Em suma, o Dr. Coutinho não chega a exigir a prova da impossibilidade de cumprimento de todas as obrigações
vencidas, mas o Dr. Soveral entende que é necessária a prova, que pode ser feita por presunção judicial (não precisa
ser uma prova direta).

No entanto, o preceito não define a situação de insolvência iminente, mas diremos que existe essa situação
quando se antevê como provável que o devedor não terá meios para cumprir a generalidade das suas obrigações já
existentes no momento em que se vençam – esta equiparação feita pelo n.° 3 apenas legitima o devedor para
apresentar o pedido de declaração de insolvência (os credores não tê, segundo essa norma, possibilidade de requerer
tal pedido com base no mero risco de insolvência).

O artigo 3.º não nos diz o que é a insolvência iminente – para o Dr. Coutinho de Abreu, a insolvência iminente é quando é possível
concluir que é provável que o devedor não venha a ter meios para cumprir as suas obrigações quando elas se vencerem.
O Dr. Soveral Martins tem uma conceção um pouco diferente: os alemães exigem que se possa dizer que é mais provável que venha a
encontrar-se numa situação de insolvência atual do que a hipótese contrária. O que se faz é um juízo de probabilidades olhando para o que é
mais ou menos provável – o que nós temos que ver é se neste juízo de prognose que estamos a realizar se é mais provável que se encontre
numa situação de insolvência atual ou se é mais provável que não se encontre numa situação de insolvência atual e, se concluirmos pela primeira
hipótese, há insolvência iminente.
Não é necessário que se trate de insolvência atual na perspetiva da impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, isto é, no juízo
sobre o que é mais provável que aconteça, conta não apenas a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, mas também para os
devedores do artigo 3.º/2, também conta a maior probabilidade de o passivo se tornar manifestamente superior ao ativo.
No estado atual da ciência, a longo prazo estaremos todos mortos. E todas as empresas e devedores, mais tarde ou mais cedo, correm
o risco de se encontrar numa situação de se encontrar em insolvência atual, mas qual o horizonte para fazer este juízo prospetivo? Há quem fale
em seis meses, um ano, dois anos, etc. O Dr. Soveral Martins entende que, enquanto não tivermos lei, terá de ser um aspeto avaliado de caso

Página 60 de 104

para caso, em função dos ciclos de progressão de cada devedor em causa – ver ciclos de liquidez, ciclos de progressão, quanto tempo é que no
passado demorou a produzir, a faturar, a cobrar as suas faturas, etc.
Na prática, isto tem pouco relevo, porque como já vimos, a insolvência iminente para efeitos de um processo de insolvência, só pode ser
invocada pelo próprio devedor. Se o devedor se apresenta à insolvência (e só ele pode invocar a insolvência iminente no processo de insolvência),
a consequência disto está consagrada no artigo 28.º do CIRE: em regra, se a petição é bem feita, mesmo que se apresente à insolvência um caso
de insolvência atual, a insolvência é declarada num prazo de 3 dias úteis.
Muitas vezes os devedores que se apresentam à insolvência jogam pelo seguro – apresentam-se à insolvência já com um estudo feito à

propósito do período que deve ser tido em consideração.

Não obstante, importa assinalar que o Código atribui legitimidade aos credores e outras entidades para
requererem a declaração de insolvência nalguns casos em que não há ainda a situação de insolvência, tal como
definida no artigo 3.º/1, havendo antes tão-só risco de insolvência iminente (artigo 20.º/1, als. d), h), etc.).
O CIRE considera ainda uma outra situação como de insolvência (não de equiparação à insolvência), embora
não aplicável à generalidade dos devedores. Diz o artigo 3.º/2: “As pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por
cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, são também
considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas
contabilísticas aplicáveis”. A norma é, pois, aplicável designadamente às sociedades por quotas e anónimas e
sociedades em nome coletivo e em comandita em que, respetivamente, todos os sócios ou os sócios comanditados
(que respondem pelas dívidas sociais) sejam pessoas coletivas de responsabilidade limitada, às cooperativas sem
cooperadores de responsabilidade ilimitada, aos e.i.r.l., aos ACE e AEIE cujos membros sejam somente pessoas
coletivas de responsabilidade limitada – este critério não vale em abstrato, tendo de ser feito valer perante as
circunstâncias de cada caso (“critério case sensitive”).
• P. ex., a sociedade em nome coletivo fica sujeita a este critério, porque não tem pessoas singulares a responderem pelas
suas dívidas, isto é, quem responde pelas suas dívidas são as sociedades por quotas do nível intermédio que são sociedades de
responsabilidade limitada.
• Imagine uma sociedade em nome coletivo que tem como sócios pessoas humanas: neste caso, já temos sócios a
responderem de forma pessoal e ilimitada pelas dívidas na sociedade, pelo que, neste caso, o critério não se aplica, mesmo sendo ambas
sociedades em nome coletivo.

Se o critério se aplica, o que ele vem dizer é que há situação de insolvência atual se há uma manifesta
superioridade no passivo em relação ao ativo – “manifesto” é o que salta aos olhos.
Imagine que se trata de uma sociedade por quotas que tem um passivo de €1.000.000 e um ativo de €500.000 – neste caso
o passivo é manifestamente superior ao ativo; por outro lado, se tiver um passivo de €1.000.001 e um ativo de €1.000.000, o Dr.
Soveral Martins não entende que haja aqui uma manifesta superioridade.

O passivo e o ativo devem ser avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis. No entanto, o n.° 3 do
artigo 3.º permite que se utilizem critérios de avaliação, a fim de ser feita prova de que o ativo (inferior ao passivo por
aplicação das normas contabilísticas comuns) é afinal superior ao passivo.

Página 61 de 104

Vamos supor que as normas contabilísticas aplicáveis não obrigavam a incluir no ativo um determinado
elemento patrimonial e, agora, por aplicação do n.° 3, al. a) do artigo 3.º, o ativo que era inferior ao passivo, torna-se
superior.

Segundo a alínea a), “consideram-se no ativo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não
constantes do balanço, pelo seu justo valor”. Logo, concluir-se-á que:
• São consideráveis não só os elementos identificados no balanço, mas também os identificáveis,
designadamente intangíveis como o direito de arrendamento, marca, patente, alvará que por qualquer razão não
foram atendidos no balanço;
• Afora os casos em que, por força da natureza das coisas ou da lei, o valor atribuído a certos elementos
é em princípio inalterável – p. ex., nos meios de pagamento em causa ou em depósitos bancários e nas obrigações pecuniárias de que é
devedor ou credor o titular do património –, o “justo valor” dos elementos corresponderá ao valor de troca ou de mercado,
ao preço que resultaria da sua negociação em comércio livre.

Acrescenta a alínea b) que, “quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa
perspetiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso, com
exclusão da rubrica de trespasse”.
É razoável uma prognose de continuidade da empresa quando esta se mostre com viabilidade económica,
quando apareça como provável que ela gerará receitas suficientes para ir mantendo em funcionamento. Quando assim
seja, o “justo valor” será o valor de liquidação ao preço conseguível através da alienação dos singulares elementos
patrimoniais – este valor pode ser superior aos registados no balanço.

Por último, prescreve a alínea c) que “não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa
de fundos distribuíveis ou do ativo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do
devedor”.
Parece estarem em causa principalmente as dívidas correspondentes a prestações suplementares dos sócios
(artigo 213.º/1 e 3 CSC), a suprimentos e a outros créditos subordinados (artigos 245.º/3, al. a) CSC e 48.º CIRE).

! Um dos efeitos mais importantes da declaração de insolvência está previsto no artigo 88.º CIRE: este artigo
diz-nos que “a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências
requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens da massa insolvente; obsta à instauração ou ao
prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores do insolvente”. Isso representa para os
devedores uma proteção de maior importante, pois lhes vai dar um porto seguro.
Suponha-se uma sociedade por quotas que tem como capital social de €5.000 (a metade deste capital social é de €2.500). O ativo é de
€10.000, mas o passivo é de €20.000 – o passivo é manifestamente superior ao ativo. Neste caso, o património social líquido dessa sociedade é

Página 62 de 104

de - €10.000 (ativo – passivo) – significa isto que o capital próprio está 10.000 abaixo de 0, pelo que há perda grave de capital social, pois está

muito abaixo de metade do capital social.

Numa situação destas, temos uma insolvência atual (artigo 3.º/2), passivo manifestamente superior ao ativo, perda grave de capital
social. A sociedade pode apresentar-se à insolvência, mas por outro lado também temos o artigo 35.º a dizer que se está perdido metade do
capital social, então os membros do órgão de administração ou convocam Assembleia Geral ou requerem a convocação da assembleia – apesar
do disposto no artigo 35.º, mesmo que se verifiquem os pressupostos para aplicabilidade deste artigo, têm poderes de representação para fazer

o pedido de declaração de insolvência.

Vamos supor que quem requer a declaração de insolvência é um dos sujeitos do artigo 20.º do CIRE: o que a lei
diz é que o devedor contra quem foi pedida a declaração de insolvência é citado para, querendo, deduzir a sua
oposição.
O artigo 30.º/1 do CIRE completa dizendo que, se deduz oposição a tempo, o que se segue é uma eventual
produção de prova, se houver lugar à mesma antes da audiência de discussão e julgamento, e depois temos a audiência
prevista no artigo 35.º. Por último, em função das provas produzidas, o juiz poderá ou não declarar a insolvência.
Se é um dos legitimados pelo artigo 20.º que requer a declaração de insolvência, então o artigo 30.º/5 também
estabelece que, se não é apresentada a oposição, são dados como provados os factos e tem lugar a declaração de
insolvência.

NOTAS e CONCLUSÕES:

Em termos processuais, há muitas diferenças quando é o devedor a apresentar-se à insolvência:

® Há casos em que o devedor tem o dever de se apresentar à insolvência: desde logo, não vale para qualquer
devedor (o artigo 18.º afasta o dever de apresentação à insolvência quanto a pessoas singulares que não sejam titulares de
empresas). Por outro lado, o dever de apresentação à insolvência não vale para todas as situações de insolvência (o artigo
18.º/1 diz que vale apenas para os casos de declaração de insolvência tal como escrita no n.° 1 do artigo 3.º - “impossibilidade
de cumprir as obrigações vencidas”).
– O incumprimento do dever de apresentação tem consequências extremamente onerosas para
o devedor (artigo 186.º/3 CIRE) – gera uma presunção de culpa grave, o que é perigoso no âmbito do incidente
de qualificação da insolvência (torna-se mais fácil provar que a insolvência é culposa).

® Quem pode ser declarado insolvente? O artigo 2.º trata disso (sujeitos passíveis da declaração de
insolvência) – há sujeitos e patrimónios autónomos que podem ser declarados insolventes (p. ex., uma herança jacente é um
património autónomo e não um sujeito). Por outro lado, podemos ter pessoas coletivas com personalidade jurídica ou pessoas
singulares, e outras entidades coletivas sem personalidade jurídica, como as associações sem personalidade jurídica.

® Como chegamos a declaração de insolvência? Tudo depende, pois na verdade há uma grande diferença
entre os casos em que a insolvência é requerida por algum dos sujeitos do artigo 20.º (pessoas que sejam legalmente
responsáveis pelas dívidas do devedor, qualquer credor ou o MP nos casos em que tem legitimidade para o efeito) e quando
é o próprio devedor a apresentar-se à insolvência (o que leva a um efeito de aceleração por força do artigo 28.º).

Página 63 de 104

Durante o período excecional que vivemos em virtude da pandemia Covid-19, surgiu a Lei n.° 1-A/2020, de 6 de
abril, que veio suspender o dever de apresentação à insolvência enquanto vigorar esse regime legal excecional e
provisório.

3.4. O CONTEÚDO DO PLANO DE INSOLVÊNCIA

As providências ou medidas de recuperação de empresa que é possível estatuir num plano de insolvência são
muito variadas, dependendo fundamentalmente da imaginação e vontade dos credores.
O legislador indicou numerosas providências de recuperação. Quase todas as providências com incidência no
passivo do devedor exemplificadas no artigo 196.º/1 CIRE eram adotáveis em concordata e/ou reestruturação
financeira. Aí se fala de perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, com ou sem cláusula “salvo
regresso de melhor fortuna”; condicionamento do reembolso de todos ou parte dos créditos às disponibilidades do
devedor; modificação dos prazos de vencimento (pactuando-se moratórias, designadamente) ou das taxas de juro dos
créditos; constituição de garantias; cessão de bens aos credores.

3.5. O INCUMPRIMENTO DO PLANO DE INSOLVÊNCIA

O n.° 1 do artigo 218.º vem retirar efeito a duas medidas que eventualmente poderiam estar previstas no plano
de insolvência.
Este incumprimento do plano de insolvência vai também implicar a perda de efeito dessas outras medidas, por
analogia, ou devemos permitir algo semelhante à resolução dos negócios jurídicos em caso de incumprimento? A
hipótese mais simples é a de aplicar por analogia o artigo 218.º/1, al. a) nos casos de incumprimento.

Quanto ao conteúdo do plano de insolvência, já vimos que esse plano pode adotar uma de várias modalidades:
recuperação, misto e liquidação, e ainda há quem autonomize o plano de saneamento por transmissão (artigo 199.º
CIRE).
Quando se trate da liquidação de um devedor sem plano de insolvência, isso não afasta a eventual possibilidade
de recuperação da empresa do devedor. Temos de distinguir duas hipóteses:
® Recuperação do devedor;
® Recuperação da empresa do devedor: pode estar prevista uma ideia de recuperação da empresa do
devedor numa simples liquidação sem plano de insolvência.

O artigo 157.º prevê a possibilidade de o administrador da insolvência encerrar o estabelecimento antes mesmo
da assembleia de apreciação do relatório. O que depois se discute é se esse encerramento antecipado é já um
encerramento definitivo ou se é apenas provisório e que depois dependerá de deliberação definitiva da assembleia
de credores.

Página 64 de 104

Há quem entende que isso já é um encerramento definitivo. O Dr. Soveral Martins, por sua vez, defende que
não. Isto tem muita importância prática designadamente no âmbito do Direito do Trabalho e no âmbito do exercício
do direito perante a segurança social – se há encerramento definitivo, os contratos de trabalho caducam; já tal não
acontece se se entender que este encerramento é apenas provisório.
No âmbito do plano de insolvência, o plano que mais nos interessa é o plano de recuperação. O CIRE prevê um
conjunto variado de medidas que podem ser adotadas no plano de insolvência. Logo no artigo 196.º se faz expressa
referência a uma série de providências com incidência no passivo do devedor. Há que distinguir as medidas que digam
respeito ao devedor e às medidas que digam respeito apenas a empresa. Muitas das medidas previstas visam, em
primeira linha, o devedor e, por essa via, visam recuperar também a empresa. Isto é, algumas delas não tem direta
influência na empresa – podemos ter um devedor com várias empresas.

Tratando-se de sociedades comerciais, encontramos no artigo 198.º uma lista muito extensa de medidas que
muitas vezes têm um caráter estrutural e que serão decididas apenas pelos credores.
É razoável o disposto no n.° 1 (o plano de insolvência pode ser condicionado à adoção e execução, pelos órgãos
sociais competentes, de certas medidas – p. ex., um aumento de capital deliberado pelos sócios); já o disposto no n.°
2 parece afigurar-se desajustado. Aí se diz que pode ser adotado “pelo próprio plano de insolvência” – pelos credores
da sociedade insolvente, sem qualquer intervenção (decisiva) dos órgãos sociais (do sócio único ou da coletividade
dos sócios, nomeadamente) – o seguinte:

® Redução do capital social para cobertura de prejuízos, incluindo a redução a zero ou a montante
inferior ao mínimo legal se, neste caso, for acompanhada de aumento do capital para montante igual ou superior
àquele mínimo; porém, a redução a zero só é admissível se for de presumir que, em liquidação integral do património
da sociedade, não subsistiria qualquer remanescente a distribuir pelos sócios (n.° 3).

® Aumento do capital social a subscrever por terceiros ou por credores (designadamente mediante a
conversão de créditos sobre a insolvência em participações sociais), com ou sem respeito pelo direito de preferência
dos sócios previsto legal (artigos 266.º e 458.º CSC) ou estatutariamente. Porém, a supressão do direito de preferência
só é lícita se o capital social for previamente reduzido a zero, ou se ela não acarretar desvalorização das participações
que os sócios conservem (n.° 4).

® Outras alterações dos estatutos da sociedade (além dos aumentos e reduções do capital);
transformação da sociedade (adoção de um tipo diferente); “alteração dos órgãos sociais” (mudança de titulares dos
órgãos de administração e de fiscalização, parece) – als. c), d) e e) do n.° 2. Porém, a adoção destas medidas depende
geralmente da estatuição no plano de um aumento de capital que proporcione a credores e/ou terceiros maioria de
votos (maioria qualificada pelo menos com referência às als. c) e d)) – n.° 5.

® Exclusão de todos os sócios de sociedade em nome coletivo ou em comandita simples ou dos sócios
comanditados de sociedade em comandita por ações (acompanhada de redução do capital a zero), recebendo os

Página 65 de 104

sócios excluídos “contrapartida adequada, caso as partes sociais não sejam destituídas de qualquer valor” (als. f) e g)
do n.° 2 e n.° 6). Exclusão de todos os sócios de responsabilidade ilimitada, gerentes ou não, com ou sem influência na
criação ou agravamento de situação de insolvência, seja ou não culposa a insolvência! E exclusão até dos sócios
comanditários de sociedade em comandita simples!
É notável tantas medidas poderem ser impostas pelos credores da sociedade. É estranho que o Código não se
baste com permitir aos credores disporem do património da sociedade ou condicionarem a continuação dela à adoção
de medidas pelos órgãos respetivos (artigo 198.º/1) e lhes permita ainda infundirem alterações tão drásticas na
organização pessoal da sociedade.

Contudo, quando a insolvente seja uma sociedade anónima, há ainda um problema adicional: nos casos de
aumento e redução de capital social no âmbito do plano de insolvência, parece que a chamada diretiva do capital (que
era a segunda diretiva sobre sociedades) já impunha a necessidade de que o aumento ou redução do capital social
obrigassem a contar com deliberação dos sócios. Agora, foi substituída pela Diretiva n.° 2017/1132 (Diretiva de
consolidação – veio reunir várias outras diretivas numa só).

O artigo 197.º vem dispor sobre o que é que acontece em relação a várias matérias, quando não há disposição
no plano de insolvência.
¯
Os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afetados pelo plano. Assim sendo,
para os credores que beneficiavam de garantia reais e de privilégios creditórios isso é bom, pois as garantias mantêm-
se. No entanto, tal não se verifica relativamente aos créditos subordinados, pois se nada constar do plano de
insolvência em relação a estes, consideram-se objetos de perdão total, isto é, uma vez cumprido tudo o que consta do
plano de insolvência, se havia ainda outras dívidas da insolvência que não estavam tratadas no referido plano,
considera-se então o devedor exonerado do seu cumprimento (al. c)) – uma vez encerrado o processo de insolvência,
o devedor não pode amanhã ser executado.

O artigo 233.º trata dos efeitos do encerramento. Na al. c) do n.° 1 do artigo 233.º, o que se diz é que os
credores da insolvência poderão exercer agora os seus direitos sobre o devedor sem outras restrições que não as
constantes do eventual plano da insolvência. Isto é, não havendo plano de insolvência, uma vez encerrado o processo,
os credores que não foram pagos podem eventualmente voltar a executar o devedor, pressupondo que o devedor não
se extinguiu – se for uma pessoa coletiva, pode eventualmente o processo de insolvência ter conduzido à extinção do
devedor.

O regime do artigo 217.º/4 é muito importante na prática. O que se diz é que o facto de se estabelecerem
determinadas providências no plano de insolvência relativamente ao devedor (um perdão ou moratória, por exemplo),
não afeta os direitos que os credores tenham em relação a codevedores e em relação a garantes da obrigação. Ou

Página 66 de 104

seja, em regra, o conteúdo do plano de insolvência que seja favorável ao devedor, não vai beneficiar nem os
codevedores nem os garantes do devedor.

As providencias previstas no plano de insolvência, com incidência no passivo devedor (um perdão, uma redução
do valor dos créditos, uma redução dos juros, uma moratória, etc.) não afetam a existência nem o montante do direito
dos credores da insolvência contra os codevedores ou aos terceiros garantes da obrigação – regime regra.
Por exemplo, há uma perdão da dívida. No entanto, havia um fiador. Nesse caso, não se afeta o montante da
dívida relativamente ao fiador.

Discute-se o que é que acontece se a medida no plano que beneficia o devedor insolvente não afeta nem a
existência nem o montante dos direitos dos credores
¯
Por exemplo, uma moratória. Esta não afeta o montante nem a existência do plano de insolvência, apenas tem
de se pagar mais tarde.
Numa interpretação mais restritiva, há quem entenda que a moratória não beneficia os codevedores nem
beneficia os garantes. Do ponto de vista do Dr. Soveral Martins, relativamente aos garantes, sendo fixada apenas uma
moratória que não afeta nem o montante e nem a existência dos direitos de crédito em causa, isso deveria beneficiar
os garantes da obrigação quando a garantia seja meramente em benefício da acessoriedade (ideia de acessoriedade
das garantias).
Obviamente os credores podem vincular-se no plano de insolvência relativamente aos credores e aos garantes
da obrigação, dependendo sempre da negociação que se faz quanto ao conteúdo do plano de insolvência.

Este regime mostra a importância de se dar especial atenção ao que fica a constar do plano de insolvência e a
eventual negociação dos credores em relação aos codevedores e aos garantes da obrigação.
Este é um tema muito importante na jurisprudência na medida em que os garantes podem ser arrastados pela
insolvência.

Temos de ter em atenção dois aspetos: em primeiro lugar, que todo este regime da insolvência e recuperação
de empresas tem sido objeto de atenção do legislador nos tempos mais recentes, desde logo por causa da pandemia
que estamos a viver.
A Lei n.° 75/2020 não teve especial relevo para o plano de insolvência, mas consta desta uma norma importante
(artigo 4.º) que vem estabelecer a possibilidade de verificar-se certos pressupostos e ser concedido um prazo adicional
na assembleia de credores que está a apreciar o plano para reformular este plano de insolvência e adaptar a proposta
do plano ao contexto pandémico que vivemos atualmente. Prevê-se um adiamento dos efeitos do incumprimento do
plano de insolvência – o prazo do artigo 218.º/1, al. a) só começa a contar após o termo de vigência da presente lei.
O que se está a dizer é que o prazo de 15 dias só começa a contar no termo da vigência da Lei n.° 75/2020 – inicialmente,

Página 67 de 104

vigorava até 31 de dezembro de 2021, mas por força do Decreto-Lei n.° 92/2021, de 8 de novembro, prorroga-se a vigência até
30 de junho de 2023.

A Diretiva n.° 2019/1023 (sobre a reestruturação preventiva do processo de insolvência), por causa futura
dissolução da Assembleia da República e devido a uma série de propostas, houve aqui um efeito de aceleração, ou
seja, havia uma proposta de lei para a transposição da diretiva, proposta essa que, com algumas alterações, foi
aprovada na sua versão final.
A maior parte das alterações dizem respeito ao PER e ao PEPAP – não trataremos deste último (222.º-A e ss.
CIRE), pois é para não empresários

4. OS PER

É o Processo Especial de Revitalização. Existem dois processos especiais de revitalização, nomeadamente o PER
regulado nos artigos 17.º-A a 17.º-H CIRE e há ainda o PER regulado no artigo 17.º-I e que tem uma creditação
diferente do primeiro.

A grande diferença é que este último trata-se de um processo especial que se inicia já com a apresentação de
um plano de recuperação do devedor que foi alcançado antes deste processo. O artigo 17.º-I consagra um processo
especial de revitalização que se inicia já com a apresentação de um plano que foi obtido antes do início do próprio
processo, isto é, um plano que resultou de um acordo, acordo esse que foi celebrado entre a empresa e credores que
representem as maiorias de votos que seriam necessários caso tivesse ocorrido a votação no processo.
Enquanto o PER dos artigos 17.º-A a 17.º-H pressupõe que o plano seja votado e aprovado já na pendência do
processo especial (que é um processo judicial) e como uma fase do processo, no PER do artigo 17.º-I, o plano foi objeto
de um acordo anterior ao início do processo e, portanto, é um acordo extrajudicial (tudo tem de se passar fora do
tribunal, têm de ser contactados credores que representam créditos que dão votos que permitiram aprovar o plano
se houvesse uma votação, e pedir que assinem).

O PER do artigo 17.º-I serve para impedir ao tribunal que homologue aquele acordo que foi obtido fora do
tribunal. E se o tribunal homologar aquele acordo, este passa a produzir efeitos não só em relação aos credores que
subscreveram o acordo, mas também em relação aos restantes créditos. Ao PER do artigo 17.º-I vai aplicar-se o n.° 10
do artigo 17.º, al. f) – é o que manda fazer o n.° 6 do artigo 17.º-I.
O PER do artigo 17.º-I trata-se de um processo de natureza híbrida, pois o essencial foi obtido antes do início
do processo, fora do tribunal.
No caso do PER dos artigos 17.º-A a 17.º-H é diferente, pois inicia-se com requerimento apresentado pela
empresa devedora. No entanto, não basta esse requerimento da empresa (artigo 17.º-C), pois esta vai ter de requerer
a abertura desse processo, fazendo-o acompanhar-se de uma declaração assinada pelos credores não relacionados
com a empresa, que sejam titulares de pelo menos 10% de créditos não subordinados.

Página 68 de 104

O que se pretende é dar alguma seriedade ao processo, isto é, dar a entender que, na realidade, esta iniciativa
da empresa é uma iniciativa que já tem alguma base de sustentação.
A empresa só pode avançar com o pedido de abertura do PER se se encontrar em situação de insolvência
iminente (artigo 17.º-A/1) ou em situação económica difícil (artigo 17.º-B).

Segundo o Dr. Soveral Martins, a distinção entre ambas as situações assenta num único critério: se a dificuldade
em cumprir as suas obrigações indica que é maior a probabilidade de se vir a encontrar em situação de insolvência
atual do que a hipótese contrária, já há insolvência iminente. Por outro lado, se esta dificuldade em cumprir as suas
obrigações não indica que é maior a probabilidade de se encontrar em insolvência atual do que a hipótese contrária,
apenas estamos perante uma situação económica difícil.
O Dr. Coutinho apenas se refere à probabilidade. No entanto, se olharmos apenas à probabilidade, não
conseguimos fazer a distinção entre insolvência iminente ou situação económica difícil.

O n.° 4 do artigo 17.º-C faz referência ao momento da nomeação do administrador judicial provisório. Trata-
se de um momento decisivo, pois estabelece-se o que se chama de um “porto seguro” (artigo 17.º-E/1), pois as coisas
ficam mais tranquilas enquanto se procede às negociações. Visa estabelecer-se um momento de tranquilidade para
que as negociações possam decorrer com mais tranquilidade, para se tentar chegar a um plano de recuperação que
agrade também aos credores.
O regime do artigo 17.º-E/7 vem dizer que a decisão em causa determina a suspensão dos prazos de prescrição
e caducidade oponíveis pela empresa, durante o tempo que perdurarem as negociações.

O n.° 5 do artigo 17.º-D vem também consagrar que, com a nomeação do administrador judicial provisório,
começa a correr um prazo para os credores reclamarem créditos (só assim terão direito de voto), ou seja, dispõem de
um prazo de dois meses para as negociações. Eventualmente, poderá ser prorrogado por um mês. No entanto, tudo
isto poderá ser alterado por uma nova lei da Assembleia da República que entrará em vigor muito provavelmente.
A negociação destina-se a encontrar um plano que seja suscetível de aprovação pelos credores. No entanto,
quando a empresa apresenta um requerimento para abertura do PER, um dos documentos que tem logo de apresentar
(artigo 17.º-C/3, al. c)) é uma proposta do plano de recuperação.

O administrador judicial provisório, quando não for possível alcançar um acordo ou se a própria empresa vier
por termo às negociações, vai elaborar um parecer. Se o parecer é no sentido de que não há situação de insolvência
atual, o PER encerra-se; se, por outro lado, o parecer é no sentido de que a empresa está em situação de insolvência
atual, tudo se complica, porque no regime atualmente em vigor o administrador judicial provisório tem de requerer a
declaração de insolvência da empresa e o juiz teria de declarar a insolvência no prazo de três dias úteis (artigo 17.º-
G/3).

Página 69 de 104

O Dr. Soveral Martins defende que o regime do PER foi introduzido no código posteriormente e que parecia
consagrar uma solução inconstitucional, pois viola o direito ao processo devido, os direitos de defesa das partes no
processo judicial e, portanto, violava o disposto no artigo 20.º CRP.

Na realidade, o que se passa no regime que está agora em vigor, o AJP vai requerer a declaração de insolvência
da empresa, e a empresa não tem possibilidade de apresentar oposição a este requerimento. Logo, isto é claramente
uma violação dos direitos de defesa das partes.
Isso foi declarado inconstitucional. A alteração que vem agora a sair da Assembleia da República vem dizer que
das duas uma: ou a empresa concorda com o parecer apresentado pelo AJP ou a empresa pode deduzir oposição num
prazo de cinco dias. Se a empresa não deduzir oposição, a declaração de insolvência tem lugar; se a empresa deduzir
oposição, o juiz determina o encerramento e arquivamento do processo, com extinção de todos os seus efeitos. Se
isto for publicado e entrar efetivamente em vigor, é uma alteração justa e importante.

5. O RERE

O Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE) consta da Lei n.° 8/2018 e trata-se de atos que vão
ser praticados fora do processo judicial. Neste regime, temos um regime jurídico para atos, e não um processo judicial
(ao contrário do PEVE e do PER).
O RERE trata de dois temas fundamentais: negociações e acordo que eventualmente seja alcançado para
reestruturação (o chamado “acordo de reestruturação”) – tudo isso fora do tribunal/processo judicial, obviamente.

Este regime vem dizer que as partes que desejem iniciar negociações poderão, se o devedor em causa é uma
empresa, sujeitar estas negociações em extra regime jurídico. Também podem optar por fazer negociações que não
estejam sujeitas a este regime jurídico, mas, verificados certos pressupostos estabelecidos pela lei, a empresa pode
resolver sujeitar as negociações ao regime que estamos a tratar.

Para que estas negociações fiquem sujeitas ao RERE, é necessário que a empresa e os credores com os quais vai
negociar celebrem um protocolo de negociações. De seguida, é ainda necessário depositar na conservatória do
registo comercial este mesmo protocolo. Tratam-se de requisitos para a aplicabilidade deste regime.
Temos ainda o acordo de reestruturação, onde as partes (empresa e credores) podem celebrar um qualquer
acordo de reestruturação e não o sujeitar ao RERE, ou celebrá-lo e sujeitar ao RERE, desde que este acordo seja
depositado no registo comercial.

Por outro lado, a empresa e os credores que quer envolver nestas negociações ou neste acordo de
reestruturação, podem resolver sujeitar só a fase das negociações ao RERE e, eventualmente, celebram o acordo de
reestruturação sem sujeitá-lo ao RERE; podem ainda fazer negociações que não ficam sujeitas ao RERE e depois sujeitar

Página 70 de 104

a este apenas o acordo de reestruturação; ou podem ainda sujeitar as negociações e o acordo de reestruturação ao
RERE.

Para que as negociações fiquem sujeitas ao RERE, é necessário que a empresa celebre com os credores o
protocolo de negociação, o qual, por sua vez, também tem de ser negociado. Quanto às negociações do protocolo de
negociações, essas negociações não vêm reguladas RERE. O que vem regulado no RERE é o conteúdo do protocolo de
negociação em relação a algumas matérias.
O artigo 7.º da Lei n.° 8/2018 trata do referido protocolo, dizendo que o conteúdo deste é estabelecido
livremente pelas partes. No entanto, deverá conter alguns elementos, que estão elencados no referido artigo.

Ora, diz-se no artigo 3.º/1 que é necessário, para aplicabilidade do RERE, que a empresa devedora esteja em
situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente. No entanto, apenas após o depósito do acordo de
reestruturação é que será exigida uma declaração de um ROC neste sentido, com o intuito de se fazer um controlo da
situação da empresa que se quer sujeitar ao RERE.
Esta declaração não é exigida para o protocolo de negociação.

A lei, no entanto, não diz qual deverá ser o conteúdo de um acordo de reestruturação, apenas estabelece
mínimos. Há alguns efeitos que estão previstos na lei, mas que só se verificam se o acordo de reestruturação tiver um
certo conteúdo. Isto importa porque vai condicionar a possibilidade de recuperação da empresa.
No artigo 27.º há uma série de benefícios fiscais que podem ser aproveitados, desde logo, por credores que
participam no acordo de reestruturação. Mas diz também que o acordo de reestruturação apenas concede estes
benefícios, desde que compreenda a reestruturação de créditos correspondentes a, pelo menos, 30% do passivo não
subordinado – tem de ser comprovado pela declaração de um ROC (n.° 3 do artigo 27.º).

O artigo 28.º vem dizer que, em determinados casos, há algumas matérias reguladas no acordo de
reestruturação que ficam protegidas se eventualmente o devedor for declarado insolvente e o administrador da
insolvência quiser resolver negócios em benefício da massa, ou seja, se eventualmente o devedor que celebrou o
acordo de reestruturação vier a ser declarado insolvente, e se o administrador da insolvência neste processo de
insolvência, quiser resolver em benefício da massa negócios anteriores, há forma de proteger negócios desse acordo
de reestruturação perante essa resolução.
No entanto, para essa proteção existir, é necessário que o acordo de reestruturação tenha um certo conteúdo.

Quer o protocolo de negociação, quer o acordo de reestruturação têm uma série de efeitos associados quando
ficam sujeitos ao RERE, mas são apenas efeitos para aqueles que são parte do acordo.
Se, eventualmente, for alcançado um acordo de reestruturação, este acordo depositado poderá eventualmente
ser utilizado para se iniciar um PERE do artigo 17.º-I. Isto é importante porque o acordo de reestruturação só vai
produzir efeitos entre as partes, mas se for utilizado para iniciar um PERE ao abrigo do artigo 17.º-I, esse acordo de

Página 71 de 104

reestruturação, se for homologado pelo juiz ao abrigo do referido artigo, depois irá produzir efeitos relativamente a
outros credores também, inclusiva relativamente àqueles que não assinaram o acordo.

Isso mostra-nos a importância de, no acordo de reestruturação, quando se queira utilizar o artigo 17.º-I, há que
se ter cuidado por antecipação com o que pode levar a recusa da homologação – isto é, se quando estamos a negociar
o acordo de reestruturação, já estamos a pensar na possível utilização desse acordo para recorrer ao artigo 17.º-I e,
dessa forma, obter a homologação desse acordo judicial e consequentemente alargar a eficácia do acordo mesmo
relativamente a quem não o assinou, então ao negociar o conteúdo do acordo de reestruturação, tem de se eliminar
as causas de eventual recusa de homologação, ao abrigo dos artigos 215.º e 216.º CIRE.

Discute-se se, no entanto, se é ou não possível recorrer ao RERE, quando se tratem de pessoas singulares
não empresário:
¯
Ora, segundo o artigo 3.º/1, al. a) da Lei n.° 8/2018, diz-se expressamente que estas não podem recorrer ao
RERE. Para os outros devedores, a referida lei não diz que têm de ser empresários; no entanto, também não diz que
podem ser não empresários.
O Dr. Soveral Martins durante muito tempo entendeu que poderiam ser também não empresários. No entanto,
hoje entende que o devedor que não é pessoa singular, tem de ser empresário. Isso por causa do que dispõe o n.° 2
do artigo 2.º. Não faz sentido andar com negociações e com acordos de reestruturação que não têm o objeto que a
lei pressupõe (servem para fazer a empresa sobreviver). Assim sendo, se o acordo de reestruturação é um acordo
previsto com o objetivo de fazer com que a empresa sobreviva, está pressuposto que dever-se-á tratar de um devedor
empresário.
Em suma, do ponto de vista do Doutor, quer o regime das negociações, quer o acordo de reestruturação, só
fazem sentido quando o devedor é empresário (artigo 2.º/2).

6. O PEVE

A Lei n.° 75/2020 vem alterar os regimes do RERE e do PER para este período de pandemia. Importa destacar o
facto de ter aprovado um novo processo, nomeadamente o processo extraordinário de viabilização de empresas
(processo judicial), o qual é muito semelhante ao PER do artigo 17.º-I, mas distingue-se sobretudo no sentido de que
vai permitir o recurso ao mesmo não só a empresas em situação de insolvência iminente, mas também inclusivamente
a empresas em situação de insolvência atual (artigo 6.º) – em virtude da pandemia da Covid-19, as empresas poderão
recorrer ao PEVE.
Trata-se de um processo para obter-se a homologação de um acordo.

Página 72 de 104

Como meio que o legislador encontrou para que as empresas possam provar que, devido à pandemia, ficaram
em situação de insolvência atual, têm de provar que a 31 de dezembro de 2019 a empresa tinha um ativo superior ao
passivo – podendo-se aceitar que foi por causa da pandemia que ficou em situação de insolvência atual.
Esta lei também trouxe algumas alterações ao regime do PER, nomeadamente ao que diz respeito ao artigo
17.º-H, o qual vem proteger algumas garantias que sejam testadas no âmbito do PER, relativamente ao regime de
resolução em benefício da massa (artigo 17.º-H/1) e, por outro lado, vem conferir a credores que financiem a empresa
no decurso do processo um privilégio creditório mobiliário geral (passam a considerar-se credos privilegiados e, se
houver declaração de insolvência, estes serão pagos com preferência face aos demais credores).
O artigo 3.º da referida lei vem dizer que esse privilégio vai estender-se a sócios acionistas, outras pessoas
especialmente relacionadas com a empresa que financiem a empresa no decurso do PER.

Esta alteração surgiu por uma razão muito simples: em situações difíceis como as que muitas empresas se viram
envolvidas neste tempo de pandemia, verificou-se que os únicos que poderiam arriscar pôr dinheiro nas empresas
eram nomeadamente os sócios acionistas e outras pessoas especialmente relacionadas com a empresa.
Se assim não fosse, estes credores e pessoas especialmente relacionadas, o que teriam eram créditos
subordinados, sendo que por esta via, passam a titulares de créditos privilegiados.

7. PLANO DE PAGAMENTOS PARA PESSOAS SINGULARES PEQUENOS EMPRESÁRIOS E A TRAMITAÇÃO DO


PROCESSO DE INSOLVÊNCIA E DO INCIDENTE DE APROVAÇÃO DO PLANO DE PAGAMENTOS

O regime do plano de pagamentos pode ser utilizado também por pessoas singulares pequenos empresários
(artigos 251.º a 263.º e 249.º e 250.º CIRE). Através do plano de pagamento podemos, eventualmente, conseguir a
reparação da empresa do pequeno empresário pessoa singular.

Esse devedor (pessoa singular pequeno empresário) pode logo apresentar-se à insolvência e com a petição
inicial apresentar o plano de pagamento (artigo 251.º). Contudo, pode dar-se o caso de o pedido de insolvência ser
apresentado por um dos legitimados do artigo 20.º, mas o artigo 253.º vem dizer que então esse devedor pode
apresentar o plano de pagamento em alternativa à contestação.
Se apresenta o plano de pagamentos quando se apresenta à insolvência (artigo 251.º), ele reconhece a sua
situação de insolvência e esta é declarada no prazo de três dias úteis (artigo 28.º). Por outro lado, se a insolvência é
requerida por um dos legitimados do artigo 20.º, então para colocarmos esse processo que conduz ao plano de
pagamentos em paralelo com aquele que resulta da apresentação à insolvência, o que a lei diz é que ou apresenta
contestação ou apresenta plano de pagamentos – se não apresenta contestação, o juiz considera provados os factos
constantes da petição apresentada por um dos legitimados do artigo 20.º – nomeadamente os credores – se
preencherem os requisitos de alguma das suas alíneas e a insolvência é declarada.

Página 73 de 104

Há, no entanto, uma diferença nos casos em que há apresentação de plano de pagamentos: vai ser impossível,
na prática, aplicar o artigo 28.º quando há apresentação à insolvência, como também será impossível ao juiz declarar
logo a insolvência apesar de não haver oposição.
Isto é assim por causa do regime do artigo 255.º, o qual estabelece duas alternativas.

O artigo 259.º diz-nos que, se houve aprovação do plano de pagamentos, o juiz terá de apreciá-lo e, se entender
que o deve aprovar, aprova; se entender que o deve homologar, irá elaborar uma sentença de homologação do plano
de pagamentos que, se transitar em julgado, o juiz irá declarar a insolvência do devedor – a insolvência é declarada já
com um plano de pagamentos aprovado. Eventualmente, este plano de pagamento pode ser suficiente para recuperar
a empresa do devedor pessoa singular pequeno empresário, tanto mais que a declaração de insolvência vai ter um
conteúdo muito limitado, isto é, só irá conter as alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 36.º.

8. DIRETIVA N.° 2019/1023 E A SUA TRANSPOSIÇÃO

Não foi lecionado.

9. O REGULAMENTO 2015/848 E AS INSOLVÊNCIAS TRANSFRONTEIRIÇAS

Não foi lecionado.

Página 74 de 104

CAPÍTULO V

SINAIS DISTINTIVOS DE EMPRESAS E DE PRODUTOS

1. INTRODUÇÃO

Estudaremos agora de modo sistemático sinais distintivos de empresas (logótipos e recompensas,


normalmente) e de produtos (marcas, denominações de origem e indicações geográficas).
Tradicionalmente, as marcas (bem como as firmas e os velhos nomes e insígnias de estabelecimentos), são
agrupados sob a designação genérica “sinais distintivos de comércio”. Todavia, não são sinais privativos do comércio
(em sentido jurídico ou extrajurídico), não individualizam somente empresas mercantis e produtos da mercancia; e
não são atos de comércio objetivos, nem são utilizáveis apenas por comerciantes.

2. MARCAS – atualmente têm grande interesse prático

2.1. NOÇÃO E IMPORTÂNCIA: ENQUADRAMENTO JURÍDICO

As marcas são signos (ou sinais) suscetíveis de representação objetiva, clara e autónoma destinados sobretudo
a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins.

2.2. ESPÉCIES: AS MARCAS NÃO TRADICIONAIS

Tendo em conta a natureza das atividades a que se ligam, fala-se de marcas:


• De indústria: assinalam produtos da indústria transformadora e extrativa;
• De comércio: assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas;
• De agricultura: assinalam os produtos da agricultura em sentido amplo;
• De serviços: assinalam atividades do chamado setor terciário.

Atendendo aos elementos componentes, pode falar-se de marcas nominativas (constituídas por nomes ou
palavras), figurativas (formadas por figuras ou desenhos), marcas constituídas por letras, números ou cores, marcas
mistas (juntam elementos nominativos e figurativos, ou letras e números, etc.), sonoras ou auditivas (constituídas por
sons representáveis), tridimensionais ou de forma (com três dimensões – comprimento, largura e altura – ou volume),
simples (constituídas por um só elemento, nominativo ou figurativo, etc.) e complexas (compostas por vários
elementos, do mesmo género ou não) – artigos 208.º e 209.º/1, al. b).

Página 75 de 104

As marcas tanto podem pertencer a empresários (sujeitos de empresas em sentido objetivo) como a não
empresários.

Em Portugal, o n.° 4 do artigo 76.º do CPI de 1940 atribuía já o direito de usar marcas aos “artífices” assalariados
(não empresários, portanto). A possibilidade de não empresários obterem o registo de marcas ficou alargada depois
do Decreto-Lei n.° 40/87, que alterou aquele artigo 76.º.
Atualmente, o artigo 211.º do CPI começa por afirmar que “o direito ao registo da marca cabe a quem nisso
tenha legítimo interesse, designadamente (...)”.

Ao lado das chamadas marcas individuais é costume colocar as marcas coletivas. Não significa isto, porém, que
a propriedade destas marcas seja coletiva ou de uma pluralidade de sujeitos. O atual CPI divide as marcas
tradicionalmente chamadas coletivas em:
• Marcas coletivas: pertencem a associações de pessoas singulares e/ou coletivas e são ou podem ser
usadas pelos associados respetivos;
• Marcas de certificação ou de garantia: pertencem a pessoas singulares ou coletivas que controlam os
produtos ou estabelecem normas a que eles ficam sujeitos.

Portanto, cada marca dessa pertence a um só sujeito (normalmente, coletivo).

2.3. FUNÇÕES

As marcas têm por função primordial distinguir produtos. Segundo a conceção tradicional e dominante, a função
distintiva das marcas equivale essencialmente ou sobretudo a uma função de indicação de origem ou proveniência
dos produtos – as marcas indicam que determinados bens provêm de determinada origem (constante).
“Origem” por alguns autores entendida de forma estrita – uma empresa (a marca garante que os respetivos
produtos provêm de uma mesma e única empresa) – e de modo alargado por outros, atendendo aos fenómenos das
marcas coletivas, de grupo e das cedidas em licença (não exclusiva).
¯
Todavia, cedo se ergueram vozes pondo em causa a função de indicação de origem das marcas (não
necessariamente para nega-la, mas para negar o caráter essencial ou fundamental de tal função). E disse-se que a
marca é muitas vezes um sinal “anónimo”, sem qualquer menção ao titular ou à empresa, que uma mesma marca
pode ser usada por diferentes empresas de um grupo, por diversas empresas a título de licença, etc.

Posto isto, dizemos que a função distintiva das marcas não se confunde ou identifica com a de indicação de
origem ou proveniência. Embora deva continuar a ser reconhecida, esta é apenas parte – e nem sempre presente –
daquela.

Página 76 de 104

Por outro lado, as marcas destinam-se a distinguir os produtos através de outras mensagens. Como qualquer
signo, as marcas comunicam ideias por intermédio de mensagens. O titular e/ou os utentes legítimos da marca (os
emissores) comunicam por ela ao público (recetor) algo respeitante a produtos.

Embora haja uma certa divergência doutrinal neste sentido, defendemos que as marcas têm também uma
função de garantia de qualidade direta e autonomamente tutelada pelo direito. Por um lado, não se vê como possa
negar-se uma autónoma função de garantia relativamente às marcas de certificação ou de garantia (artigos 215.º e
216.º/1, al. a)). Por outro lado, agora quanto às marcas “individuais”, há que ter em conta a al. b) do n.° 2 do artigo
268.º - o registo caduca se, após a data em que o registo foi efetuado, “a marca se tornar suscetível de induzir o público
em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no
seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços
para que foi registada”.

2.4. PRINCÍPIOS INFORMADORES DA CONSTITUIÇÃO DE MARCAS

® CAPACIDADE DISTINTIVA

Os sinais, para serem marcas, hão de ser capazes de individualizar e distinguir produtos (artigos 208.º e 209.º/1,
al. a) CPI).
Por falta de capacidade distintiva, não podem ser marcas “os sinais constituídos, exclusivamente, por indicações
que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência
geográfica, a época ou meio de produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras características dos
mesmos” (artigo 209.º/1, al. c) CPI). Em suma, não são marcas os sinais exclusivamente específicos, descritivos e
genéricos.

– Específicos são os singos que designam ou denotam a “espécie” dos produtos – nomes comuns dos
produtos ou figuras que o exprimem, ou seja, a palavra “ovo” ou o retrato de um ovo não podem ser marcas
de ovos;

– Os sinais descritivos referem-se diretamente a características ou propriedades dos produtos.


Referem-se, por exemplo, à qualidade (“pura lã” para vestuário, desenho de cinco estrelas para o azeite), à
quantidade (“1kg” para pedaços de presunto, “1L” para vinho), ao destino (“Cabedais” para pomadas), ao
valor (“Pechincha”), à época de produção do produto ou da prestação do serviço (“A toda a hora”, para os
serviços de uma clínica), à proveniência geográfica (“Coimbra” para louças fabricadas nesta cidade).

– Os signos genéricos designam um género ou categoria de produtos onde se incluem os produtos que
se pretende marcar com um desses sinais (como “Refresco” para laranjadas).

Página 77 de 104

Por outro lado, as denominações específicas, descritivas, genéricas e de uso comum estrangeiras podem valer
como marcas?
¯
Se elas forem conhecidas do público português ou dos círculos de clientes interessados, a resposta é negativa.
Caso contrário, há que distinguir duas possibilidades:
• Se as denominações pertencerem a uma das línguas comunitário-europeias, parece que a regra deve
ser a da inadmissibilidade das mesmas como marcas
o Portugal faz parte do mercado único onde circulam livremente pessoas e produtos. Não é
lícito, pois, ficarem os titulares de marcas registadas no nosso país beneficiados em face de produtores
nacionais.
• Se as denominações pertencerem a línguas exóticas ou mortas e muito pouco conhecidas, então já
poderão ser marcas – tais denominações aparecem não como específicas, descritivas ou genéricas, mas sim
como de fantasia.

Contudo, excecionalmente, são registáveis marcas constituídas exclusivamente por sinais específicos,
descritivos, genéricos ou de uso comum quando estes, antes do registo e depois do uso e publicidade que deles foi
feito, tenham adquirido caráter ou capacidade distintiva (artigos 3.º/3 e 231.º/2 CPI). Acolheu-se, portanto, a doutrina
do secondary meaning: um signo sem significado originário distintivo (enquanto marca) adquire através de certo uso
um segundo ou “secundário” sentido, passando a distinguir em termos de marca determinados produtos.

São possíveis as marcas tridimensionais, que podem ser constituídas, designadamente, pela “forma do produto
ou da respetiva embalagem” (artigo 208.º). Mas nem todas as formas dos produtos ou das embalagens são suscetíveis
de constituir marcas: não são marcas as formas natural, funcional ou esteticamente necessárias (artigo 209.º/1, al. b)
CPI):
® Formas naturalmente necessárias: forma normal ou usual de que se revestem os bens a cujo género ou
espécie pertence o produto;
® Forma funcionalmente necessária: forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico;
® Forma esteticamente necessária: forma que cujo caráter estético ou ornamental influi decisivamente
no valor comercial dos produtos.

Por conseguinte, só as formas “arbitrárias” ou não “necessárias” podem ser marcas – p. ex., a forma de uma
garrafa oval para aguardentes velhas, a forma invulgar de frascos para perfumes.

Ainda por falta de capacidade distintiva, uma única cor não pode ser marca. É possível, porém, constituir uma
marca com duas ou mais cores, quando “forem combinadas entre si ou com gráficos, dizeres ou outros elementos por
forma peculiar e distintiva” (artigo 223.º/1, al. e)). Hoje, o CPI de 2018 admite que uma cor isolada constitua uma
marca (artigos 208.º e 222.º/1, al. f)), mas só muito excecionalmente isso será viável.

Página 78 de 104

® VERDADE

Também a propósito das marcas não tem o princípio da verdade “manifestações positivas necessárias” (o sinal
pode ser de mera fantasia); a marca é verdadeira se não for decetiva ou enganosa.
O artigo 231.º/3, al. d) CPI estatui a irregistabilidade das marcas que, em todos ou alguns dos seus elementos,
contenham “sinais que sejam suscetíveis de induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades,
utilidade ou proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina”.

® LICITUDE (RESIDUAL)

De acordo com o artigo 231.º, é recusado o registo de marca que contenha:


• Certos símbolos, brasões, emblemas ou distinções, salvo autorização (artigo 231.º/3, als. a) e b));
• Expressões ou figuras contrárias às lei, moral, ordem pública e bons costumes (n.° 3, al. c));
• Tão-só a Bandeira Nacional ou alguns dos seus elementos (n.° 4);
• Entre outros componentes, a Bandeira Nacional, quando tal seja suscetível de provocar desrespeito ou
desprestígio dela ou de algum dos seus elementos (artigo 5.º, al. c)).

Outros fundamentos de recusa do registo de marca aparecem no artigo 232.º:


• A reprodução ou imitação, total ou parcial (em marca), de logótipo anteriormente registado pertencente
a sujeito que produz bens idênticos ou afins àqueles a que a marca se destina, se for suscetível de induzir
em erro ou em confusão o consumidor quando não haja “dupla identidade” entre logótipo e marca por
um lado e entre produtos por outro (n.° 1, als. c) e d));
• A reprodução de nomes ou retratos de pessoas sem autorização ou, ainda que obtida, se causar o
desrespeito ou desprestígio dessas pessoas (n.° 1, al. g));
• A reprodução ou imitação, total ou parcial, de firma ou denominação que não pertençam ao requerente
de marca não autorizado, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão (n.° 2, al. a));

® NOVIDADE E ESPECIALIDADE

As marcas têm de ser novas, distintas ou inconfundíveis, caso contrário, o seu registo será recusado (artigo
232.º/1, als. a) e b) CPI). No entanto, tal novidade apenas tem de se afirmar no âmbito de produtos idênticos ou afins
– também aqui vigora o princípio da especialidade.

É possível traçar o seguinte quadro dos casos em que o registo de marca deve ser recusado:
• A marca cujo registo se requer é idêntica à marca anteriormente registada e os produtos respetivos são
também idênticos;

Página 79 de 104

• Ambas as marcas são idênticas e os produtos afins, existindo, consequentemente, um risco de erro ou
confusão para os consumidores (ou utilizadores);
• As marcas são semelhantes e os produtos idênticos, com o risco de erro ou confusão para os
consumidores;
• Tanto as marcas como os produtos são semelhantes ou afins, derivando daí a possibilidade de os
consumidores serem induzidos em erro ou confusão.

Mais problemático é saber quando é que existe afinidade entre os produtos, semelhança entre as marcas (ou
imitação de uma por outra) e risco de confusão.

São afins ou semelhantes os produtos com natureza ou características próprias e finalidades idênticas ou
similares (p. ex., vinho maduro e vinho verde). Deve também entender-se que são afins os produtos de natureza
marcadamente diversa, mas com finalidades idênticas ou semelhantes (p. ex., fios de linho e fios de seda). Em ambos
os casos, trata-se de bens “concorrentes”, intermutáveis ou substituíveis (satisfazem necessidades idênticas).
Devem ainda considerar-se afins os bens não intermutáveis ou substituíveis que o público destinatário crê
razoavelmente terem a mesma origem, por serem economicamente complementares (p. ex., artigos de couro e
pomadas para tratar e conservar couro) ou por outras razões (p. ex., automóveis ligeiros e tratores agrícolas).

As semelhanças ou parecenças entre as marcas podem ser, principalmente, de natureza gráfica, figurativa,
fonética ou ideográfica (artigo 238.º/1, al. c) CPI).
No juízo sobre a similitude, devem as marcas ser apreciadas globalmente, ou seja, o exame deverá recair sobre
as marcas na sua totalidade e não sobre as suas partes.

Para que uma marca seja considerada não nova e insuscetível de registo, não basta ser idêntica ou semelhante
a marca anteriormente registada por outrem para produtos afins ou idênticos. É ainda necessário que tal identidade
ou semelhança possa induzir em confusão o consumidor. Não existe risco de confusão sem que exista identidade ou
semelhança entre os sinais e simultânea afinidade ou identidade entre os produtos. Mas estas correspondências entre
marcas e produtos não implicam, necessariamente, risco de confusão.

O risco de confusão deve ser atendido em sentido lato, de modo a abarcar tanto o risco de confusão em sentido
estrito, como o risco de associação:
® Risco de confusão em sentido estrito/próprio: quando os consumidores podem ser induzidos a tomar
uma marca por outra e, consequentemente, um produto por outro (os consumidores creem
erroneamente tratar-se da mesma marca e do mesmo produtor);
® Risco de associação: os consumidores, embora distinguindo os sinais, ligam um ao outro e, em
consequência, um produto ao outro (creem erroneamente tratar-se de marcas e produtos imputáveis
a sujeitos com relações de coligação ou licença).

Página 80 de 104

Ora, o risco de confusão depende de vários fatores:


– Tipo de consumidores: os consumidores a considerar são, em primeiro lugar, aqueles a quem os
produtos assinalados com as marcas em causa se destinam. Depois, entre os consumidores destinatários, há de
atender-se ao consumidor “médio” (o consumidor de normal capacidade, informação e atenção). Por outro
lado, deve ver-se o consumidor médio a ser sensibilizado atualmente por certo sinal e, ao mesmo tempo, a
recordar (mais ou menos imprecisamente) a marca registada cuja imitação se questiona.
– Grau de semelhança entre as marcas e entre os produtos assinalados: o risco de confusão é tanto maior
quanto maior for a semelhança entre os sinais e entre os produtos. E estas semelhanças hão de ser
correlacionadas – a afinidade entre os produtos pode ser tanto maior quanto maior for a semelhança entre os
sinais e vice-versa.
– Grau da força e notoriedade da marca registada: o risco de confusão é maior quando a marca registada
é uma marca forte ou muito conhecida. Quando está em causa uma marca forte, a marca que se pretende
registar tem de apresentar maiores dissemelhanças a fim de não induzir o público em erro. Isto porque, uma
marca forte, tendo maior capacidade distintiva, desperta maior atenção no público e perdura mais na sua
memória. Daí que leves semelhanças ou imitações sejam suscetíveis de provocar trocas ou associações entre a
marca de que se guarda memória e o sinal que se pretende registar.

2.5. REGISTO

Para que se constitua um direito de propriedade sobre uma marca é preciso que a mesma seja registada (no
INPI) – artigo 210.º CPI. O processo normal de registo é regulado pelos artigos 222.º e ss.

Certos sujeitos têm prioridade para constituírem registo sobre uma marca, nomeadamente:
• Quem tiver apresentado regularmente em qualquer país da União de Paris ou da OMC, ou em
qualquer organismo intragovernamental com competência para registar marcas que produzam efeitos em
Portugal, um pedido de registo gozará, para apresentar o mesmo pedido em Portugal, do direito de prioridade
durante seis meses, a contar da data do primeiro pedido (artigos 13.º CPI e 4.º CUP).
• Aquele que usar em Portugal marca livre ou não registada por prazo não superior a seus meses
tem, durante esse prazo, direito de prioridade para efetuar o registo, podendo reclamar contra o que for
requerido por outrem (artigo 213.º/1 CPI).

Os direitos conferidos pelo registo de marca no nosso país são eficazes em território nacional (artigo 4.º/1). O
titular de marca registada no INPI que pretenda a proteção do sinal como marca noutros países requererá o registo
nesses Estados. Contudo, não terá de o fazer em relação aos Estados partes no Acordo de Madrid relativo ao Registo
Internacional de Marcas ou do Protocolo relativo a esse acordo. Relativamente a esses países, o requerente ou titular
de um registo de marca em Portugal, quando seja de nacionalidade portuguesa ou esteja domiciliado ou estabelecido

Página 81 de 104

no nosso país, pode requerer, por intermédio do INPI, o registo dessa marca na Secretaria Internacional da
Organização Mundial da Propriedade Intelectual.

2.6. A PROTEÇÃO DAS MARCAS DE FACTO, LIVRES OU NÃO REGISTADAS

Quanto ao regime de proteção, há que distinguir as marcas registadas (artigo 210.º/1) das marcas não
registadas, de facto ou livres – devendo ainda acrescentar-se que as marcas notórias e as de prestígio, mesmo quando
não registadas, gozam de proteção especial (artigos 234.º e 235.º).

Olhando-se para o artigo 235.º, vemos uma proteção alargada das marcas de prestígio. Está em causa a tutela
direta e autónoma da função atrativa ou publicitária excecional (ou função evocativa de excelência) das marcas de
prestígio. Embora radicadas em determinados produtos, estas marcas ganham asas e libertam-se em grande medida
da função distintiva, aparecendo como símbolos de excelência.
Para serem de prestígio, as marcas, além de notórias, hão de ter boa reputação – assente na boa qualidade dos
produtos respetivos e, eventualmente, na singularidade e originalidade dos signos.

Ora, a proteção especial de marca de prestígio é concedida “sempre que o uso da marca posterior procure tirar
partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca, ou possa prejudicá-los” (artigo 235.º). Não haverá
aproveitamento ilícito (“tirar partido indevido”), impeditivo do registo e uso da “marca posterior”, quando,
designadamente, o titular da marca de prestígio nisso consinta.
O uso da marca posterior tirará partido “do caráter distintivo” da marca prestigiada quando, nomeadamente,
faça supor erradamente que os produtos assinalados por uma e outra marca provêm da mesma entidade ou de
entidades diversas, mas negocialmente relacionadas. E tirará partido “do prestígio da marca” reputada quando se
verifique “transferência de imagem” de qualidade e de acreditamento no mercado desta marca para aquela.

As marcas de facto, além de beneficiarem do já referido direito de prioridade para o registo, nos termos do
artigo 213.º CPI, podem ser também protegidas por efeito do disposto nos artigos 231.º/6, 259.º/1 e 232.º/1, al. h) –
deve ser recusado o registo de marca idêntica ou confundível com marca de facto quando se reconheça que o
requerente “pretende fazer concorrência desleal ou que esta é possível independentemente da sua intenção” (artigo
311.º, al. a)).

De proteção especial gozam as marcas “notoriamente conhecidas” (artigo 234.º/1, als. a) e b)). A recusa do
registo de marca que seja reprodução de marca anterior notoriamente conhecida em Portugal, se for destinada a
produtos idênticos ou (com risco de confusão) afins, ou que seja imitação ou tradução (total ou parcial) de marca
anterior notoriamente conhecida em Portugal, se for destinada a produtos idênticos ou afins e houver risco de
confusão.

Página 82 de 104

Acrescenta o n.° 2 que “os interessados na recusa dos registos das marcas a que se refere o número anterior só
podem intervir no respetivo processo depois de terem efetuado o pedido de registo da marca que dá origem e
fundamenta o seu interesse”.
¯
Estas marcas hão de ser notoriamente conhecidas em Portugal. Quer dizer, o conhecimento deve verificar-se
no nosso país (não basta o eventual conhecimento notório noutro ou noutros países). O conhecimento notório deve
também verificar-se nos meios interessados, nos círculos de consumidores ou utilizadores dos produtos em causa.
Tal conhecimento, que pode resultar do uso das marcas e/ou da publicidade feita às mesmas, há de ser notório,
isto é, uma clara maioria dos referidos consumidores conhece essas marcas.

Além de o INPI não dever registar marca que reproduza, imite ou traduza marca notoriamente conhecida (artigo
234.º/1 CPI), o titular de uma marca destas tem o direito de reclamar contra o requerimento daquele registo depois
de ter efetuado o pedido de registo da marca notória (artigo 234.º/2 CPI). Se, indevidamente, o INPI proceder àquele
registo, pode o titular da marca notoriamente conhecida pedir a anulação do mesmo (artigo 260.º/1 e 2 CPI). Mesmo
antes do registo da marca notoriamente conhecida (mas depois do respetivo pedido), o terceiro que a use, contrafaça
ou imite está sujeito a responsabilidade criminal (artigos 320.º, al. g) e 321.º CPI).

Proteção semelhante à das marcas notoriamente conhecidas não registadas é concedida às marcas de prestígio
não registadas (artigos 235.º, 260.º/1 e 2, 320.º, al h) e 321.º CPI).

Relativamente à norma constante do artigo 249.º/1, al. c), surgem algumas dúvidas. Embora se possa dizer que
já foi registada a marca de prestígio, o preceito não é claro de forma a se poder dizer que estão excluídas as marcas
de prestígio não registadas em Portugal.
A proteção conferida às marcas de prestígio nos artigos 260.º/2 e 320.º, al. h) não exige que o registo já tenha
sido efetuado. Por isso é que o regime das marcas de prestígio também permite dizer que, pelo menos, alguma tutela
é conferida a estas marcas ainda antes de serem registadas no nosso país – ainda que o pressuposto é que se faça o
registo.

2.7. TRANSMISSÕES E LICENÇAS

2.7.1. TRANSMISSÕES

O sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas independentemente da transmissão das


respetivas empresas. Tal como nos CPI anteriores, também na lei atual se consagra esse sistema, embora com algumas
limitações.

Página 83 de 104

A propriedade da marca registada (bem como os direitos emergentes do pedido de registo) é transmissível,
total ou parcialmente (quanto a parte dos produtos para que haja sido registada), a título gratuito ou oneroso,
autonomamente (sem necessidade de ser acompanhada pela transmissão do estabelecimento a que possa estar
ligadas) – artigos 30.º/1 e 2 e 256.º/1 e 3.

A transmissão inter vivos das marcas, quando não integrada em negócio sobre estabelecimento exigindo escrito,
“deve ser provada por documento escrito” (artigo 30.º/4). Em qualquer caso, a transmissão só produz efeitos em
relação a terceiros depois do respetivo averbamento no INPI (artigo 29.º/1, al. a) e n.° 2).

As marcas de facto, por não serem objeto de direito de propriedade, não são transmissíveis autonomamente.
Mas, enquanto elementos de empresas, podem com estas ser transmitidas.

2.7.2. LICENÇAS

Atendendo à função de indicação de origem das marcas, defendeu-se entre nós que, na falta de norma legal
específica, eram ilícitos os contratos de licença de exploração das marcas.
O problema encontrou solução legal no Decreto-Lei n.° 27/84, de 18 de janeiro, que deu nova redação ao artigo
119.º CPI de 1940. Atualmente, as licenças de exploração de marcas estão especialmente previstas nos artigos 31.º e
258.º CPI.

Através de contrato (oneroso ou gratuito) pode o titular de marca registada cedê-la a terceiro em licença de uso
ou exploração. A licença pode ser total ou parcial (para todos ou parte dos produtos para os quais a marca foi
registada), destinada a certa zona ou a todo o território nacional, vigente por todo o tempo do registo ou por prazo
inferior, exclusiva (obrigando-se o licenciante a não conceder outras licenças para a zona acordada enquanto aquela
vigorar) ou não exclusiva (ou simples) – artigo 32.º/1, 5, 6 e 7.

O contrato de licença está sujeito a forma escrita (artigo 31.º/3) e só produz efeitos em relação a terceiros
depois de averbado no INPI (artigo 29.º/1, al. b) e n.° 2).

“Salvo estipulação expressa em contrário, o licenciado goza, para todos os efeitos legais, das faculdades
conferidas ao titular do direito objeto da licença” (artigo 31.º/4). Todavia, salvo estipulação em contrário, o licenciado
não pode ceder a sua posição contratual nem conceder sublicenças sem consentimento escrito do licenciante (artigo
31.º/8 e 9).

Não prevê a lei o poder-dever de o licenciante controlar a qualidade dos produtos com a sua marca assinalados
pelo licenciado; nem prevê o dever de o licenciado respeitar os critérios de qualidade respeitados pelo licenciante

Página 84 de 104

e/ou outros licenciados. Contudo, sempre se poderá recorrer ao regime da caducidade previsto no artigo 268.º/2, al.
b).
O que a lei prevê (artigo 258.º/1) é que, prevendo o contrato de licença algo sobre a qualidade dos produtos
fabricados ou dos serviços prestados pelo licenciado (bem como outros aspetos relativos ao uso da marca), o
licenciante pode invocar contra o licenciado que infrinja essa cláusula – além do regime geral do incumprimento dos
contratos – os direitos conferidos pelo registo (artigo 249.º).

Aparentado com o contrato de licença é o contrato de merchandising de marca, através do qual o titular de
marca registada de prestígio concede a outrem o direito de usar o signo para distinguir produtos não idênticos nem
afins dos produtos para que ela foi registada. Apesar de não tipificado legalmente, deve este contrato ser considerado
lícito.

2.8. EXTINÇÃO DO REGISTO DAS MARCAS OU DE DIREITOS DELE DERIVADOS

2.8.1. NULIDADE

Segundo o artigo 259.º/1 CPI, o registo de marca é nulo nos casos previstos no artigo 32.º/1, e quando na sua
concessão tenha sido desrespeitado o disposto no artigo 231.º/1, 3, 4, 5 e 6.
A nulidade é invocável a todo o tempo (artigo 32.º/2) por qualquer interessado. A declaração de nulidade deve
ser pedida ao INPI que decide, salvo se for antes pedida em reconvenção no âmbito de uma ação judicial (artigos
34.º/2, 262.º/1 e 4 e 266.º).
Se o registo for declarado nulo, “considera-se que o mesmo não produziu, desde o seu início, os efeitos previstos
no presente código, sem prejuízo do disposto no artigo 35.º.

2.8.2. ANULAÇÃO

É anulável o registo de marca quando na sua concessão tenha sido infringido o previsto nos artigos 232.º (com
exceção da al. h) do n.° 1) a 235.º - assim determina o artigo 260.º/1.
O pedido de anulação deve ser feito no prazo de cinco anos a contar do despacho de concessão do registo
(artigo 34.º/7) pelo titular de um dos direitos mencionados nos artigos 232.º a 235.º (al. b) do n.° 2 do artigo 262.º),
também junto do INPI, que decide, salvo se for antes apresentado em reconvenção no âmbito de uma ação judicial
(artigos 34.º/2, 262.º/1 e 4 e 266.º).
Sobre os efeitos da anulação, é igualmente aplicável o citado no artigo 265.º.

Página 85 de 104

2.8.3. CADUCIDADE

O registo de marca caduca independentemente da invocação da causa (artigo 36.º/1):


• Quando tiver expirado o seu prazo de duração (al. a));
• Por falta de pagamento de taxas (al. b)).

E caduca se as respetivas causas forem invocadas por interessado e houver a correspondente declaração pelo
INPI (artigos 36.º/2 e 269.º):
• Se a marca não tiver sido objeto de uso sério durante cinco anos consecutivos sem justo motivo
(artigo 268.º/1): o uso de marca é sério quando ela assinala produtos colocados no mercado de modo estável
ou não esporádico e em quantidades significativas ou não irrisórias, quando a utilização não é meramente
“simbólica”. Mas o uso sério poderá bastar-se com a utilização da marca em campanhas publicitárias
preparatórias da introdução dos bens no mercado. Além de mais, há justo motivo para o não uso de marca
quando existam circunstâncias independentes da vontade do titular que tal imponham (p. ex., casos de força
maior e medidas de autoridades públicas proibindo a produção ou a comercialização dos respetivos produtos).

• Se a marca se tiver transformado na designação usual no comércio do produto para que foi
registada, em consequência de atividade ou inatividade do titular (artigo 268.º/2, al. a));
• Se a marca se tiver tornado decetiva (artigo 268.º/2, al. b)).

De todo o modo, o registo não caduca por falta de uso injustificado da marca durante cinco anos consecutivos
“se, antes de requerida a declaração de caducidade, já tiver sido iniciado ou reatado o uso sério da marca” (artigo
268.º/4). Contudo, “o início ou o reatamento do uso sério nos três meses imediatamente anteriores à apresentação
de um pedido de declaração de caducidade, contados a partir do fim do período ininterrupto de cinco anos de não
uso, não é tomado em consideração se as diligências para o início ou o reatamento do uso só ocorrerem depois de o
titular tomar conhecimento de que pode vir a ser efetuado esse pedido de declaração de caducidade” (artigos 268.º/4
e 267.º/4).

O registo da marca é passível de caducidade quando ela se transforma na designação comercial usual do produto
para que foi registada, quando se converte no nome comum ou signo “específico” do produto – a marca deixa de
aparecer como sinal distintivo de bens com certo nome, aparecendo como denominação comum, como o próprio
nome desses bens.
Esta conversão pode realizar-se por iniciativa do titular ou explorador da marca, dos concorrentes, dos
distribuidores ou comerciantes e dos consumidores. Todavia, não basta o uso generalizado de uma marca como
denominação específica de produto para que o registo possa ser declarado caduco. A lei não perfilhou a tese “objetiva”
da caducidade por vulgarização, mas sim a “subjetiva”, isto é, a caducidade só pode ser declarada quando a
vulgarização da marca seja consequência da atividade, ou inatividade, do titular – resulta da atividade do titular

Página 86 de 104

quando é ele que inicia ou promove a utilização da marca como nome comum do produto; resulta da inatividade do
titular quando são outros que iniciam ou promovem essa utilização sem que ele reaja, sem se opor a tal emprego.

2.8.4. RENÚNCIA

Por declaração unilateral recetícea (dirigida ao INPI), pode o titular de marca renunciar (total ou parcialmente)
ao direito de propriedade sobre ela (artigo 37.º/1 e 2). Porém, “a renúncia não prejudica os direitos derivados que
estejam averbados, desde que os seus titulares, devidamente notificados, se substituam ao titular do direito principal,
na medida necessária à salvaguarda desses direitos” (artigo 37.º/5).

Página 87 de 104

CAPÍTULO VI

I – TÍTULOS DE CRÉDITO

Os títulos de crédito, hoje já não têm a importância que tiveram há muitos anos atrás, mas ainda continuam a
ser muito utilizados, especialmente nas relações business to business e, em particular, nas relações com bancos, caso
esse onde mesmo onde os consumidores (pessoas singulares não empresárias) são confrontados com a necessidade
de utilizarem títulos de créditos – p. ex., quem vá pedir um empréstimo ao banco, poderá ser confrontado com a exigência de assinar
uma letra ou emitir uma livrança como autor da promessa constante desse título.

A lei portuguesa não estabelece uma noção de título de crédito. Não existe sequer, entre nós, um regime geral
dos títulos de crédito. De facto, não há um regime unitário que deva aplicar-se a todos os documentos qualificados
como títulos de crédito. Há, somente, algumas normas de caráter geral.

1. NOÇÃO DE TÍTULO DE CRÉDITO

Em Portugal, um título de crédito é, essencialmente, o que Vivante (importante jurista italiano, que tem uma famosa
teoria sobre os títulos de crédito) já dizia ser – acolhemos a sua conceção: é um documento necessário para o exercício

do direito representado nesse documento; e esse direito representado no referido documento é um direito literal e
autónomo – em suma, trata-se de um documento necessário para o exercício do direito, literal e autónomo, nele
mencionado.
Ora, desta noção retira-se que o título de crédito é um documento necessário para o exercício do direito nele
mencionado; o direito mencionado no título de crédito é literal e é autónomo.

2. O TÍTULO DE CRÉDITO COMO DOCUMENTO NECESSÁRIO PARA O DIREITO NELE MENCIONADO

Se o documento surge como necessário para o exercício do direito nele mencionado, então aquele documento
desempenha uma função de legitimação: o sujeito legitimado para o exercício do direito é aquele que detém e exibe
o respetivo título.
O direito está, portanto, incorporado/integrado/assimilado no título, e esta incorporação traduz-se na assunção
de uma função de legitimação pelo título de crédito, já que ele não se limita a ser o meio que permite o exercício do
direito, sendo ainda o meio que sustenta a tutela da posição do sujeito legitimado pelo título para esse exercício. Desta
sua dupla capacidade resulta a função de legitimação do título de crédito, porquanto o sujeito detentor do título de
crédito é o único legitimado para o exercício do direito, estando a sua posição devidamente tutelada.
Isto facilita a negociação do título, pois o adquirente não se preocupará em verificar como é que o título foi
parar às mãos do transmitente; ele sabe que, a partir do momento em que é portador do título, é a seu favor que a

Página 88 de 104

prestação deverá ser realizada. Noutro prisma, este regime favorece ainda o devedor, que assim sabe, a todo o
momento, a quem deve pagar (se pagar a quem tem o título, sabe que está a pagar bem).

3. A LITERALIDADE DO DIREITO MENCIONADO NO DOCUMENTO

Quando falamos de “direito literal e autónomo” estamos a pensar numa determinada literalidade e autonomia,
que não são absolutas. Isto é, é uma certa literalidade e uma certa autonomia que resulta do regime jurídico que é
aplicável aos documentos (letras, cheques e livranças).

As letras, livranças e cheques são documentos que têm um regime jurídico próprio.
® No caso das letras e livranças, o seu regime consta da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças
(LULL), a qual consta de um anexo a uma convenção pela qual Portugal está vinculado. Há uma outra convenção em
matéria de letras e livranças que resolve problemas de conflitos espaciais de leis (contém normas de conflito) e ainda
uma terceira convenção referente à matéria de imposto do selo (IS).
® Quanto ao cheque, este também tem a sua própria Lei Uniforme Relativa ao Cheque (LUC), a qual
foi aprovada por uma outra convenção que vincula Portugal.

Estes três títulos de créditos que referimos enquadram-se num grupo de títulos de crédito que dão direito a
receber uma prestação em dinheiro, o que individualiza estes títulos de crédito de outros é efetivamente o facto de
representarem um direito a uma prestação em dinheiro.
¯
Ora, de acordo com o princípio ou característica da literalidade, a letra do título é decisiva para a determinação
do conteúdo, limites e modalidades do direito. Portanto, o teor verbal do documento é determinante do direito que
nele é mencionado. Por exemplo:
® O conhecimento de carga (representa mercadorias carregadas a bordo de um navio) suscita
problemas hoje em dia no que tange às cadeias de abastecimento – este conhecimento de carga tem um regime
jurídico próprio constante da Convenção de Bruxelas de 1924 que contém as regras de Haia (regras de Haia) e depois
há também um regime interno para o contrato de transporte marítimo de mercadorias, em regime de conhecimento
de carga.

Há também outros documentos que representam mercadorias referidos no próprio CCom.


® Nos artigos 366.º e ss. temos o regime do contrato de transporte. No artigo 369.º aparece a
referência à “guia do transporte”, que pode ser um documento à ordem ou ao portador e tem o seu conteúdo definido
na lei;
® O artigo 372.º CCom., diz-nos que todas as questões acerca do transporte se decidirão pela guia do
transporte.

Página 89 de 104

® O artigo 374.º diz-nos ainda que, se a guia for à ordem ou ao portador, o endosso ou a tradição dela
transferirá a propriedade dos objetos transportados (regime típico) – tipicamente, a transmissão da guia pelas formas
de circulação previstas (endosso ou tradição – artigo 374.º – sendo que se for uma guia à ordem, transmite-se pelo
endosso; e se for uma guia ao portador, transmite-se pela entrega) vai incorporar com o direito de propriedade.
¯
Ora, temos aqui a literalidade, isto é, cada um dos regimes jurídicos terá uma certa literalidade associada ao
documento. É o regime jurídico de cada um dos títulos de crédito que vai dizer qual a proteção concedida a esse
portador mediato em relação ao que não está no título.
No caso das letras, por exemplo, é o artigo 17.º da lei uniforme relativa às letras e livranças que nos permite
falar de uma certa literalidade, literalidade essa com os limites estabelecidos pela lei.

4. AUTONOMIA DO DIREITO MENCIONADO NO DOCUMENTO

A autonomia do direito consiste no facto de se dever considerar que ele surge como que de novo na esfera do
possuidor de boa fé – vai dar uma certa proteção ao que possa ter afetado os direitos de anteriores possuidores do
título. De outro modo: o direito incorporado nos títulos de crédito é autónomo porque é adquirido de modo originário
pelo possuidor de boa fé, isto é, independentemente da titularidade do seu antecessor e dos possíveis vícios dessa
titularidade.
Assim, a autonomia do direito mencionado no documento remete-nos fundamentalmente para a posição do
adquirente em relação a anteriores titulares: o direito por ele adquirido é independente do direito dos anteriores
titulares, sendo adquirido originariamente.

Por exemplo, o artigo 387.º também estabelece que, tipicamente, o transportador tem de entregar a quem lhe
apresenta o documento que exige a entrega da mercadoria, e o transportador não tem de investigar – temos aqui
uma certa autonomia em relação ao que aconteceu antes de o documento chegar à posse daquele transportador.

5. CIRCULABILIDADE

Da noção de títulos de crédito dada por Vivante (documento necessário para o exercício do direito, literal e
autónomo, nele mencionado), nós adicionamos a nota da circulabilidade. Ora, os títulos de crédito têm aptidão para
circular de acordo com regras próprias – relativamente à sua circulabilidade, uns são por endosso, outros por entrega,
outros nominativos, etc., mas todos eles tendem para a circulação).
Entendemos, porém, que esta nota caracterizadora acaba por estar pressuposta nas demais referidas; a
literalidade e a autonomia só adquirem sentido se o título de crédito circular; nas relações imediatas, elas não têm
razão de ser.

Página 90 de 104

6. ESPECIAIS FUNÇÕES DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

Os títulos de crédito ganharam existência devido à necessidade de tornar mais fácil e segura a circulação dos
créditos, por comparação ao regime da respetiva cessão. Para que a circulação dos créditos não houvesse que
obedecer a regras tão rigorosas com as da cessão de créditos, mas pudesse efetuar-se, ainda assim, com segurança,
entendeu-se ser necessário instituir um instrumento que permitisse às regras a que se encontram sujeitas as coisas
móveis.

Neste contexto, pode reconhecer-se aos títulos de crédito as seguintes funções:


® Função de transmissão do direito: a transmissão do título de crédito de acordo com as respetivas regras
de circulação acarreta também a transmissão do direito nele referido;
® Função de legitimação – duas componentes:
– Legitimação ativa: o portador do título que o tenha recebido de acordo com as regras de
circulação do mesmo, tem legitimidade para exercer o direito mencionado no documento –
presume-se que o portador do título é seu titular.
– Legitimação passiva: o sujeito obrigado a realizar a prestação mencionada no título, cumpre
essa prestação se a realizar a favor do portador.

7. CLASSIFICAÇÕES DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

7.1. CLASSIFICAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO FUNDADA NO DIREITO INCORPORADO

Quando falamos no direito incorporado/direito representado no título, estamos a enfrentar uma dimensão
destes títulos de crédito que permite distinguir e classificar diversos grupos de títulos de crédito. Em função desse
direito incorporado no título podemos falar de títulos de crédito que conferem o direito a uma prestação em dinheiro
ou títulos de crédito que conferem um direito relativo a bens diferentes de dinheiro (em particular, mercadorias).
Tipicamente, estes títulos de crédito conferem ao portador do documento um direito de propriedade sobre a
mercadoria. No entanto, esta não é a regra. Em casos excecionais, não é um direito de propriedade que está a ser
representado.

O conteúdo da prestação incorporada nos títulos de crédito pode ser de natureza muito diversa, podendo
classificar-se esses títulos de acordo com a natureza dos direitos que eles mencionam:
® Títulos de crédito que conferem ao seu portador o direito a uma prestação em dinheiro: letras,
livranças e cheques;
® Títulos de crédito que conferem ao seu portador um direito de natureza real sobre coisas: guias de
transporte, conhecimentos de carga ou de depósito e cautelas de penhor;

Página 91 de 104

® Títulos de crédito que representam uma participação numa determinada pessoa coletiva – em
regra, uma sociedade: títulos de ação relativos a uma sociedade anónima, títulos de ação dos sócios
comanditários numa sociedade em comandita por ações.

Não parecem ser títulos de crédito os meros títulos de legitimação. Estes são emitidos com caráter pessoal, isto
é, para serem utilizados apenas por aquela pessoa a favor de quem são emitidos e, por isso, sem função de
transmissão.

7.2. CLASSIFICAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO FUNDADA NO MODO NORMAL OU TÍPICO DE


CIRCULAÇÃO DO TÍTULO

De acordo com o regime normal de circulação, os títulos de crédito classificam-se em títulos ao portador, à
ordem e nominativos:
® Títulos ao portador: transmitem-se pela simples entrega do título (p. ex., a guia de transporte), não
revelando, por isso, no respetivo texto quem é o seu titular.
® Títulos à ordem: transmitem-se por endosso, ficando a constar do título um comprovativo da
transmissão (p. ex., o conhecimento de depósito e a cautela de penhor) – estes títulos identificam o seu primeiro
titular, o que torna possível estabelecer uma cadeia de endossos.
® Títulos nominativos: é um título de ação, isto é, exigem, para a sua transmissão, a intervenção do
emitente, que pode ter lugar, por exemplo, realizando um registo a favor do adquirente, contendo o documento
a identificação do seu titular (p. ex., títulos nominativos de ações).

Existem títulos que podem ser emitidos como qualquer uma destas modalidades, como é o caso do título do
conhecimento de carga.

8. TÍTULOS DE CRÉDITO DESMATERIALIZADOS? AS AÇÕES ESCRITURAIS E OS CONHECIMENTOS DE CARGA


ELETRÓNICOS

Os títulos de ação têm sido encarados por grande parte da doutrina como títulos de crédito. Contudo, o Código
dos Valores mobiliários (CVM) torna possível a representação de ações através de registos em conta (ações
escriturais). Estes registos em conta carecem de um suporte, o qual poderá ser em papel ou informático – sublinhe-
se, o registo não se confunde com o respetivo suporte.

Dessa forma, pergunta-se se as ações escriturais, os registos em conta ou os suportes desses registos são títulos
de crédito. O Dr. Soveral Martins entende que não.

Página 92 de 104

Em primeiro lugar, as ações escriturais são o próprio valor transmitido, não sendo, portanto, um título de
crédito. Depois, tanto o registo em conta como o seu suporte são “documentos”, mas eles não se transmitem
verdadeiramente, já que para cada novo titular é efetuado novo registo, o qual terá novo suporte – estes não circulam;
os títulos de crédito circulam, pois é o mesmo documento que é transmitido. Logo, não se transmite o registo nem o
suporte (visto que é feito um novo registo). Consequentemente, também eles não são títulos de crédito, uma vez que
não se transmitem.

De qualquer maneira, os desafios continuam a verificar-se, porque hoje já há a possibilidade da emissão de tokens, através
de aplicação, algoritmo, etc. Ora, um token pode ser considerado um título de crédito? Em Portugal ainda não há um regime
jurídico para tal, sendo que não é possível dizermos, para já, se poder-se-á ou não considerar o token como um título de crédito.

9. A UTILIDADE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO NO COMÉRCIO INTERNACIONAL DE MARCADORES

Na prática do comércio internacional, os títulos de crédito têm muita importância, sobretudo no caso do
conhecimento de carga – imagine que um vendedor de mercadorias no Brasil tem um comprador em Portugal; neste
caso, pode verificar-se uma situação onde o comprador não tem disponibilidade financeira para realizar o pagamento
a pronto ao vendedor da mercadoria, mas contrata com o seu banco para que este (situado em Portugal) contacte um
banco correspondente ou a sua filial no Brasil, que vai receber o conhecimento de carga que o vendedor apresenta
comprovando que a mercadoria foi embarcada. Assim sendo, o banco faz o pagamento ao vendedor.
O banco concede ao seu cliente, créditos (disponibilizar uma verba para pagar ao vendedor da mercadoria).

Página 93 de 104

II – A LETRA

1. BREVE APONTAMENTO HISTÓRICO

Na Idade Média, a Europa conheceu alguns surtos de significativo desenvolvimento económico. Esse
desenvolvimento foi causa e consequência do crescimento das trocas comerciais. Para a realização dessas trocas, a
circulação de valores assumia particular relevo. Porém, as comunicações não eram fáceis nem seguras. Foi então que,
para superar este obstáculo, surgiu o cambium per litteras, que permitia efetuar pagamento de um local para outro,
sem deslocação real do numerário (valor em moeda). A letra primitiva tinha, portanto, semelhanças com o cheque
atual. Inicialmente, o documento que estará na origem da letra tinha como função a troca de moedas de diferentes
praças e não circulava à ordem. Hoje em dia, o regime da letra de câmbio é muito distinto. A letra transmite-se por
endosso e é, por isso, um título à ordem.
O regime desta figura é atualmente regulado na Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL).

2. NOÇÃO

O título de crédito que é designado por “letra” é um documento em papel que contém uma ordem de
pagamento (=saque) de uma quantia determinada, dada pelo sacador ao sacado, à ordem do tomador.

Em face do que foi dito, devemos caracterizar as pessoas envolvidas:


– Sacador: credor de obrigação pecuniária de quantia certa;
– Sacado: devedor da obrigação pecuniária de quantia certa;
– Tomador: terceiro a quem o devedor deverá pagar a quantia certa em dívida.

Tipicamente, cada um desses sujeitos é diferente dos restantes. No entanto, nem sempre isto é assim: o saque
também pode ser feito à ordem do próprio sacador (credor) que, assim, será simultaneamente sacador e tomador,
podendo dar a ordem de pagamento para que a letra seja paga a si próprio (artigo 3.º LULL). O saque à ordem do
sacador justifica-se quando este não saiba ainda se quer colocar a letra à movimentação endossando-a a um tomador
ou se pretende conservá-la em carteira até à data de vencimento.

Ora, uma vez recebida a ordem de pagamento dada pelo sacador ao sacado, este último, só por receber tal
ordem, não se torna obrigado a pagar a quantia aposta da letra. O sacado só se torna obrigado cambiário com um
aceite – enquanto não aceitar, o sacado não está obrigado. Com o aceite, tornar-se-á um aceitante e,

Página 94 de 104

consequentemente, um obrigado cambiário (só quando aceita é que o sacado se torna obrigado cambiário; enquanto
não aceitar, é apenas o sacado).

Ora, é crucial distinguir a letra de figuras afins ou semelhantes:


® Letra: documento emitido por um credor (sacador) que ordena que o devedor (sacado) pague uma
quantia a um terceiro (tomador) ou à sua ordem. Apresenta as seguintes características:
– Ordem de pagamento;
– Tomador pode ser terceiro ou o próprio sacador/credor;
– Sacado é pura e simplesmente devedor do sacador.
® Livrança: documento emitido por um devedor (subscritor) que promete pagar uma quantia ao credor
(beneficiário) ou à sua ordem. Em comum com a letra, tem o facto de o beneficiário ser o próprio credor;
contudo, não é uma ordem de pagamento, mas sim uma promessa de pagamento.
® Cheque: documento que contém uma ordem de pagamento dada pelo credor (sacador) sobre um
banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção segundo a qual o
sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque. Em comum apresenta o facto de ser uma
ordem de pagamento. No entanto, o cheque tem de ser sacado sobre um banqueiro e o sacado tem de ter
fundos à disposição do sacador da letra de câmbio.

Em regra, a emissão de uma letra ocorre porque existe uma relação entre o sacador e o sacado, e uma relação
entre o sacador e o tomador, as quais justificam aquela emissão – se o sacado é devedor do sacador e este, por sua
vez, é devedor do tomador, então mais fácil será que o sacado pague a dívida diretamente ao tomador.

As épocas de pagamento são apenas aquelas previstas no artigo 33.º LULL, nomeadamente:
• À vista;
• A certo termo de vista (artigo 34.º LULL);
• A certo termo de data (é um prazo a contar dessa data);
• Através de data fixada.

3. REQUISITOS EXTERNOS DA LETRA

A letra deve conter:


® A palavra “letra” inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redação
desse título: esta obrigatoriedade resulta da necessidade de alertar qualquer subscritor para a importância do
ato que está a realizar;
® O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada (= ordem de pagamento): constitui o
saque em si mesmo, isto é, a declaração por intermédio da qual o sacador dá a ordem de pagamento.

Página 95 de 104

® O nome daquele que deve pagar (sacado);


® A época de pagamento: à vista, a termo de vista, a termo de data ou através de data fixada;
® A indicação do lugar em que se deve efetuar o pagamento (artigos 1.º e 2.º LULL);
® O nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga (tomador);
® A indicação da data em que, e do lugar onde a letra é passada: a indicação da data em que a letra é
passada ajudará a determinar se o sacador tinha ou não capacidade no momento em que efetuou o saque e,
ainda, permitirá calcular os prazos para apresentação a pagamento das letras à vista e a certo termo de data, e
para a apresentação ao aceite das letras e termo de vista; isso consta das exigências do n.° 7 do artigo 1.º.
® A assinatura de quem passa a letra ao sacado (sacador).

4. A FALTA DOS REQUISITOS EXTERNOS

Em princípio, a falta dos requisitos referidos no artigo 1.º LULL tem como consequência que o documento não
produzirá efeitos como letra (artigo 2.º LULL). Justifica-se, por isso, dizer que a letra é um título rigorosamente formal.
No entanto, estabelece-se três exceções a esta consequência:
• Não indicação da época de pagamento: a letra é considerada pagável à vista;
• Não indicação do lugar do pagamento: vale como lugar do pagamento o que tenha sido designado ao
lado do nome do sacado (será o domicílio do sacado);
• Não indicação do lugar onde a letra foi passada: considera-se a letra passada no lugar designado ao lado
do nome do sacador.

Se estes lugares, designados ao lado do nome do sacado e do sacador, também não constarem da letra, então
o documento não produzirá efeitos enquanto tal.

5. A LETRA EM BRANCO E A LETRA INCOMPLETA – ACORDOS DE PREENCHIMENTO E O PREENCHIMENTO


ABUSIVO

Embora a lei enumere uma série de requisitos externos da letra, alguns desses requisitos não têm
necessariamente de constar do título, porque a própria lei se encarrega de suprir a sua falta. Podemos então distinguir:
® Requisitos essenciais: requisitos externos da letra cuja não falta não pode ser suprida nos termos da lei;
® Requisitos não essenciais: requisitos externos da letra podem ter a sua falta suprida nos termos
definidos no artigo 2.º LULL.

Já vimos que, no caso de faltarem requisitos não essenciais da letra, a regra é a não produção de efeitos do
documento como letra. Todavia, não será em todos os casos de falta de requisitos essenciais que a letra não produzirá
efeitos, variando a resposta consoante haja ou não acordo de preenchimento.

Página 96 de 104

Podemos ter casos onde há o chamado “acordo de preenchimento”, o qual é feito no sentido de definir em que
termos devem ser preenchidos os requisitos em falta – enquanto não há preenchimento, não há letra; mas isto
permite-nos distinguir entre:
– Letra em branco: poderão faltar elementos que deviam constar da letra, mas há um acordo de
preenchimento (desde que esteja designado o documento com a palavra “letra” e, na opinião do Dr.
Soveral Martins, que contenha também a assinatura do sacador);
– Letra incompleta: temos uma letra incompleta quando não há acordo de preenchimento e,
consequentemente, a letra não virá a produzir efeitos.

O artigo 10.º LULL diz-nos que admite-se a celebração de acordos de preenchimento, mas havendo um acordo
de preenchimento, estamos em face de uma “letra em branco”, cuja incompletude se considera temporária ou
passageira, e que, por isso, produzirá efeitos quando preenchida.

Neste contexto, questiona-se se não haverá elementos que não podem ser deixados para preenchimento
posterior, isto é, que têm de constar desde o início da letra, mesmo havendo acordo de preenchimento. Na opinião
de Soveral Martins, a letra em branco, para ser considerada como tal, terá de conter, necessariamente, a palavra
“letra” e a assinatura do sacador. Esta assinatura deverá ter sido colocada com a intenção, por parte do subscritor, de
se obrigar cambiariamente.

De notar ainda que, nos termos do artigo 10.º LULL, o acordo de preenchimento é, em princípio, oponível
apenas nas relações imediatas. Portanto, a violação do acordo de preenchimento não pode ser oposta ao portador
mediato. Esta oposição ao portador mediato só pode ter lugar quando esse portador “tiver adquirido a letra de má fé
ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave” (os conceitos de “má fé” e de “falta grave” devem ser entendidos
nos termos em que são considerados no artigo 16.º LULL). A este respeito é de referir ainda que se entende que o
portador de boa fé protegido por este artigo 10.º LULL é apenas o portador mediato que adquiriu a letra quando ela
já estava completa. É que até ao preenchimento da letra com os elementos essenciais ela não produz efeitos enquanto
tal.

6. NEGÓCIOS CAMBIÁRIOS

6.1. O SAQUE: A RESPONSABILIDADE DO SACADOR

O saque é a ordem de pagamento que o sacador dá ao sacado e trata-se de um negócio cambiário unilateral
que cria a letra – é com o saque que nós temos letra. O artigo 3.º LULL apresenta-nos as modalidades do saque. Esta
ordem deve ser pura e simples, não lhe podendo ser apostas quaisquer condições.

Página 97 de 104

O sacador, nessa medida, é o obrigado inicial (antes de haver saque, não há letra; não havendo letra, não há
obrigados cambiários).
A ordem de pagamento em que o saque se traduz deverá dizer respeito a uma quantia determinada. Não basta,
então, que ela seja determinável, por remissão para factos exteriores ao título. Até porque, mais uma vez, não parece
razoável impor ao portador mediato o ónus de averiguar qual a quantia devida.

Normalmente, a letra é sacada pelo sacador sobre o sacado a favor do tomador ou à sua ordem. Não obstante,
a letra poderá ser sacada sobre o próprio sacador ou a favor do sacador. Nada proíbe, ao que parece, que o saque seja
feito sobre o sacador a favor do sacador.

Com o saque, o sacador pode afastar a garantia da aceitação, pois se nada constar da letra, o sacador é
responsável quer pela falta da aceitação, quer pela falta do pagamento (artigo 9.º LULL) – dizendo “eu só garanto o
pagamento”; para não ter de pagar se o sacado não aceitar. A responsabilidade do sacador (enquanto garante) é
solidária com a do aceitante, com a do avalista ou com a do endossante. Note-se, porém, que o sacador pode exonerar-
se da garantia da aceitação (de ser garante do aceite). Só não poderá exonerar-se, em caso algum, da garantia do
pagamento (de ser garante do pagamento).

6.2. O ACEITE

É um negócio cambiário unilateral que consiste na declaração por parte do sacado na qual este se obriga a pagar
a letra à data do seu vencimento, isto é, este aceita a ordem de pagamento que é dada.
Se o sacado não aceitar a letra, não fica obrigado. Pode é dar-se o caso de se ter comprometido antes a aceitar
a letra, sendo que nessa eventualidade, não aceitando, ficará instituído na obrigação de indemnizar a pessoa perante
a qual se obrigou (em regra, o sacador)

Como o aceitante se obriga a pagar a letra na data do seu vencimento, ele é considerado o obrigado principal
– na data do vencimento, a letra deve primeiro ser apresentada a pagamento ao aceitante. Também em virtude do
conteúdo da obrigação que impende sobre o aceitante, é compreensível que a letra só possa ser apresentada ao aceite
até à data do vencimento da letra. Após o vencimento, aquela apresentação já não poderá ter lugar; poderá, no
máximo, apresentar-se a letra ao sacado para pagamento.
O sacador é garante do pagamento, ou seja, se o aceitante não pagar, exige-se o pagamento ao garante.

A apresentação ao aceite pode ser efetuada pelo portador da letra ou por um simples detentor. Quando o
sacado pretenda realizar alguma averiguação, pode exigir segunda apresentação ao aceite para o dia seguinte. É no
domicílio do sacado que a letra deve ser apresentada ao aceite. Se na letra esse domicílio não está expressamente
indicado, considera-se como tal o lugar indicado ao lado do nome do sacado (artigo 2.º LULL).

Página 98 de 104

Em regra, a apresentação do aceite não é obrigatória. Contudo, o sacador pode estipular o “dever de
apresentação ao aceite” (artigo 22.º/1 LULL). Além disso, na letra sacada a certo termo de vista, o vencimento
determina-se ou pela data do aceite ou pela data do protesto. Por isso que a letra a certo termo de vista deve ser
apresentada ao aceite no prazo de um ano (artigo 23.º LULL).

A recusa do aceite, a ter lugar, deve ser comprovada por um protesto, para que o sacado possa daí retirar as
inerentes vantagens.

6.2.1. A RECUSA DO ACEITE

Como referido, o sacado apenas se torna obrigado cambiário através do aceite. Se, ao ser-lhe apresentada a
letra para o aceite, ele o recusar, o portador deve fazer o protesto por falta de aceite (ato formal que atesta essa
recusa) – artigo 44.º LULL. Uma vez que a recusa do aceite implica a antecipação do vencimento da letra, o portador
pode, antes do vencimento, exercer os seus direitos de ação contra os endossantes, sacador e outros coobrigados
(artigo 43.º LULL).

6.3. O ENDOSSO

A letra de câmbio é um documento à ordem, sendo o seu modo normal de transmissão o endosso (artigo 11.º/1
LULL). Com o endosso, são transmitidos todos os direitos emergentes da letra (artigo 14.º LULL). O endosso transmite
a letra e os direitos que dela decorrem, com as consequências resultantes do regime cambiário.

Com o endosso, é dada ao sacado uma nova ordem de pagamento: é-lhe dada a ordem para pagar ao endossado
(e já não ao endossante). Por isso se diz que o endosso é, ao fim e ao cabo, um novo saque.
O endosso pode ser feito a favor do sacado, seja ou não aceitante, ou a favor do sacador ou de qualquer outro
obrigado cambiário, podendo qualquer um deles reendossar (artigo 16.º LULL).

O endossante é o portador legítimo da letra e que o emite e, através do endosso, transmite a letra e os direitos
representados na mesma (nomeadamente os direitos à prestação em dinheiro que dela consta). É, portanto, o negócio
cambiário que é constituído por uma declaração de transmissão da letra.

Ao contrário do aceite, o endosso não pode ser parcial. O endossante, quando endossa a letra, também está a
tornar-se responsável/obrigado cambiário (artigo 15.º LULL).

Importa ainda referir que o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por
uma série ininterrupta de endossos (artigo 16.º LULL). Significa isto que o portador da letra só será considerado

Página 99 de 104

legítimo portador se a sua posição decorre de uma cadeia de endossos sem interrupções. Nesta linda, o devedor que
paga a este portador legítimo, fica desonerado – a sua obrigação tem-se como definitivamente cumprida (artigo 40.º
LULL).

Do que foi dito decorrem as três principais funções que podem ser apontadas ao endosso:
® Função de transmissão: é um meio de transmissão dos direitos emergentes das letras;
® Função de garantia: instituição do endossante como garante da letra;
® Função de legitimação: forma de prova da legitimidade do portador da letra.

7. ENDOSSO EM BRANCO

O endosso em branco pode ser (artigo 13.º LULL): aquele que tem lugar com a declaração de endosso assinada
mas sem indicação de quem é o endossado ou aquele que é realizado apenas com a assinatura do endossante escrita
no verso da letra ou folha anexa.

Além disso, o “endosso ao portador” vale como endosso em branco (artigo 12.º LULL).
Ora, aquele que recebe a letra através de endosso em branco é considerado portador legítimo da letra. E se o
endosso em branco é seguido de outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a letra pelo endosso em
branco. Portanto, o endosso em branco não afeta a regularidade da cadeia de endossos (artigo 16.º LULL).

8. A CLÁUSULA “NÃO À ORDEM”

Eventualmente, pode ser inserida uma cláusula não à ordem para proibir novos endossos (artigo 15.º LULL) –
imagine que houve endosso do A para o B e o A emite esta cláusula a proibir o endosso (proíbe, portanto, que o B
endosse ao C); caso o B endosse a C, neste caso, A não garante o pagamento às pessoas a quem a letra foi endossada.

9. O AVAL

O aval é um negócio cambiário que pode definir-se da seguinte forma (artigo 30.º e ss. LULL): “negócio pelo qual
o sujeito que emite a declaração garante o pagamento da letra, no todo ou em parte, nas mesmas condições que o
avalizado”. O avalista pode ser um sujeito que não teve até aí qualquer intervenção no título de crédito, ou pode ser
alguém que é já signatário da letra. Nesta última hipótese, o aval só terá razão de ser se agravar a responsabilidade
do signatário.

O artigo 30.º LULL diz-nos que pagamento de uma letra pode ser, no todo ou em parte, garantido por aval.
Logo, o aval pode ser parcial – o aceite e o aval podem ser parciais; o endosso não pode sê-lo.

Página 100 de 104


O aval deverá indicar a pessoa por quem o avalista o dá, indicação esta que deve ser expressa. Se essa indicação
não for dada, entende-se que o aval é dado pelo sacador (artigo 31.º LULL) – devemos atentar ao facto de que, se falta
o protesto do artigo 53.º e se o aval é considerado dado pelo sacador, esta obrigação de garantia também se extingue.

10. A RESPONSABILIDADE DO AVALISTA

O avalista é um obrigado de garantia e a responsabilidade do avalista está prevista no artigo 32.º LULL. O avalista
responde nos mesmos termos em que responde aquele por quem é dado o aval – se o avalista dá o seu aval pelo
aceitante, responde nos mesmos termos que o aceitante, e continuará a responder mesmo que o protesto não seja
feito a tempo. Deste modo, a responsabilidade do avalista dependerá da pessoa pela qual ele deu o aval – se é o
sacador, se é um endossante, se é o aceitante. Quanto a esta última hipótese, isto significa que o avalista do aceitante
continua a responder nos mesmos termos que este último ainda quando o portador, por aplicação do disposto no
artigo 53.º LULL, perdeu os direitos de ação contra endossantes, sacador e outros coobrigados.

Ora, se formos ver o artigo 53.º LULL, vemos que este trata de um aspeto muito importante que é o dos efeitos
da falta de realização de protestos dentro do prazo – se o sacado não aceita ou se o aceitante não paga, deve ser
feito um protesto, seja um protesto por falta de aceite ou seja um protesto por falta de pagamento.
Logo, temos fundamento neste artigo para sustentar que o avalista do aceitante continua a responder mesmo
que se deixe passar os prazos para realizar o protesto, seja o processo por falta de aceite, seja o protesto por falta de
pagamento.

Sublinhe-se que o avalista não é um fiador (apesar do teor literal do artigo 32.º LULL):
® Avalista: assume uma obrigação cambiária e responde ainda quando a obrigação que garantiu é nula
(salvo em caso de vício de forma). É responsável nos mesmos termos que o avalizado.
® Fiador: assume uma obrigação civil e não responde quando a obrigação principal é inválida. É
responsável acessoriamente.

Isto tudo é importante por causa do regime do artigo 47.º LULL: “os sacadores, aceitantes, endossantes ou
avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador”. Trata-se de uma solidariedade
imperfeita, porque na realidade não se divide a responsabilidade entre eles, mesmo nas relações internas – ao
contrário do regime geral da solidariedade. Mas isto mostra que a totalidade da quantia colocada na letra pode ser
exigida a qualquer um destes obrigados.
Esta responsabilidade solidária tem de ser necessariamente articulada com o que resulta do artigo 53.º e com
a necessidade de se fazer esse protesto.

Página 101 de 104


11. ABSTRAÇÃO DA OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA

A obrigação cambiária caracteriza-se por ser abstrata – ela é independente/abstrai-se da sua causa. A causa que
subjaz à obrigação cambiária é-lhe indiferente, podendo ela servir qualquer causa.
Porque assim o é, o devedor cambiário não pode invocar, perante o portador mediato do título, exceções
fundadas nas relações causais estabelecidas com anteriores portadores ou com o sacador (artigo 17.º LULL).

A “causa” para estes efeitos, pode ser entendida em duas aceções:


• Relação fundamental/causa remota: relação entre os sujeitos, exterior à letra, que determinou o
negócio cambiário (p. ex., compra e venda, mútuo, etc.);
• Convenção executiva: pacto que se destina a regular ou reforçar, através de uma letra, uma
obrigação já constituída (que decorrerá da relação fundamental).

P. ex., A compra a B um automóvel. Uma vez que A não dispõe do montante total correspondente ao preço, acordam que
A ficará a dever parte desse valor – relação jurídica fundamental ou subjacente. Nesta linha, acordam que B sacará uma letra à
sua própria ordem, que A aceitará, do qual consta o montante da dívida. Mais tarde, B acaba por endossar a letra a C, que por sua
vez faz o mesmo a D. Este último vem exigir o pagamento a A na data do vencimento. A recusa-se, contudo, a efetuar o pagamento,
alegando que o automóvel que comprou a B sofre de vários defeitos. Ora, A não pode invocar uma exceção fundada nas relações
pessoais com o sacador (B), uma vez que D é portador de boa fé. Essa relação entre A e B é exterior ao negócio cambiário de que
resultou a obrigação cambiária, sendo esta independente dessa relação e, consequentemente, abstrata – abstrai-se dos eventuais
vícios da sua causa.

Logicamente o que temos vindo a dizer só tem aplicação quando a pessoa que vem invocar o vício é o portador
imediato. Neste caso, ele já poderá invocar contra o sacado as exceções causais resultantes da relação pessoal com
ele estabelecida e que esteve subjacente ao surgimento da obrigação cambiária.

O artigo 17.º LULL, ao prescrever esta abstração da obrigação cambiária, fixa, todavia, uma condição: o portador
mediato (chamamos “portador mediato”, porque ele não é parte nestas relações pessoais; não tem intervenção no
acordo/convenção) só poderá invocar a abstração da obrigação cambiária (obstando a que o obrigado lhe oponha
vícios da relação subjacente ao surgimento da obrigação cambiária como meio de se desonerar do pagamento) se
estiver de boa fé. Aí prescreve-se que o portador mediato não estará de boa fé quando, ao adquirir a letra, procedeu
conscientemente em detrimento do devedor. Ora, neste contexto, suscita-se a questão de saber quando é que o
portador mediato “procedeu conscientemente em detrimento do devedor”. Quanto a este aspeto, temos três
interpretações possíveis:
– Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato que conhece um vício
anterior à aquisição da letra, mesmo não sabendo que esse vício podia ser invocado perante o
endossante;

Página 102 de 104


– Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato que sabe que podiam ser
opostas exceções pelo devedor ao seu endossante – neste sentido: Gonçalves Dias e Ferrer Correia.
– Atua conscientemente em detrimento do devedor aquele portador mediato que adquiriu a letra com
intenção de prejudicar o devedor – neste sentido: Vaz Serra e Cassiano dos Santos.

Aquela segunda interpretação compreende-se uma vez que atuar conscientemente em detrimento de alguém
não significa, necessariamente, que exista a intenção de prejudicar. Todavia, não nos parece ser esse o melhor
entendimento.
Se propugnássemos esse entendimento das coisas, bastaria a consciência de que se estava a causar prejuízo ao
devedor. E esse prejuízo decorre logo do facto de ele não poder opor ao adquirente as exceções oponíveis a anteriores
possuidores. Ora, este é um efeito normal da letra, que decorre da sua própria natureza independente e abstrata.

Consequentemente, qualquer portador teria consciência de atuar em detrimento do devedor, pois sabe que,
existindo uma qualquer exceção que este possa invocar contra um anterior possuidor da letra, essa exceção nunca
poderá ser invocada contra ele próprio (portador mediato). Acabar-se-ia, então, por subverter o intuito do preceito,
admitindo-se como regra o afastamento do artigo 17.º LULL. Em ordem a não se culminar numa situação como esta,
haverá que seguir esta última interpretação.

De notar ainda que, caso um portador intermédio se encontre de boa fé, tal facto torna irrelevante a má fé de
um posterior portador da letra. Isto porque nesses casos a má fé do portador posterior não causa qualquer tipo de
prejuízo ao devedor, pois ele já teria que pagar ao portador mediato anterior que estava de boa fé (pelo que estaria
tutelado pelo artigo 17.º LULL).

12. O DIREITO LITERAL

O obrigado cambiário tem que respeitar o direito do portador nos termos em que tal direito é definido pelo
texto da letra de câmbio. Nesta linha, ao portador mediato de boa fé não podem ser opostas exceções que se baseiem
em acordos, celebrados entre anteriores sujeitos cambiários, que não tenham manifestação no texto da letra (artigo
17.º LULL).
Ademais, relembre-se que a literalidade anda a par do formalismo, no que diz respeito aos negócios cambiários:
a lei impõe requisitos formais rigorosos (p. ex., a letra tem que conter a palavra “letra”) sem os quais o obrigado
cambiário não está obrigado.

Página 103 de 104


13. O DIREITO AUTÓNOMO

O legítimo possuidor da letra (aquele que justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos) tem um
direito sobre o título que é autónomo relativamente aos direitos dos anteriores possuidores. Nesse sentido, o direito
do legítimo possuidor da letra não é afetado por vícios dos direitos sobre a letra de anteriores possuidores (artigo 16.º
LULL). Trata-se da autonomia de um direito sobre o documento.
Dispõe, contudo, que este regime já não será aplicável se o portador da letra, no momento da sua aquisição,
estava de má fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave. No entanto, o que se deverá entender por “má fé” e
“falta grave”?
• Má-fé do portador: o portador sabe que o endossante não tem uma posse regular, mesmo ignorando
que essa irregularidade é consequência de um anterior desapossamento;
• Falta grave do portador: o portador, ao adquirir a letra, ignora a posse irregular do endossante mas,
atendendo às circunstâncias, atuou com falta grave, pois era-lhe exigido esse conhecimento (ele não atou com
a diligência mínima exigível) – p. ex., o sujeito que furtou a letra com endosso em branco é um traficante de drogas que
vive ao ar livre e não tem qualquer património que se conheça; de repente, aparece a endossar uma letra de milhares de
euros a um outro sujeito que o conhece – se tudo isso se prova, aquele portador mediato da letra, mesmo que tenha
desconhecido tudo o que se passou antes, muito provavelmente seria considerado um portador mediato que ao receber
aquela letra cometeu falta grave.

O que releva é a relação do portador com o seu endossante. Ora, face a este regime, importa saber qual o
tratamento a dar aos casos em que o portador está de má fé ou cometeu falta grave, mas em que se prova que um
portador intermédio estava de boa fé.

A proteção do portador intermédio implica que a sua boa fé como que se “estenda” ao portador atual, em
termos de não se exigir deste último a restituição da letra. De facto, como se compreende, ao exigir-se ao portador
atual a devolução da letra, estar-se-ia a prejudicar o portador intermédio, que com a entrega da letra cumpriu uma
dívida e que, em virtude da sua devolução, volta a estar em dívida.

Página 104 de 104

You might also like