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Horizontes Antropológicos 

41 | 2014
Antropologia e Políticas Globais
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky (dir.)

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/horizontes/503
ISSN: 1806-9983

Editora
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Edição impressa
Data de publição: 10 junho 2014
ISSN: 0104-7183
 

Refêrencia eletrónica
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky (dir.), Horizontes Antropológicos, 41 | 2014,
« Antropologia e Políticas Globais » [Online], posto online no dia 15 dezembro 2014, consultado o 01
julho 2020. URL : http://journals.openedition.org/horizontes/503

Este documento foi criado de forma automática no dia 1 julho 2020.

© PPGAS
1

SUMÁRIO

Apresentação
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky

Artigos

Antropologia multissituada e a questão da escala


reflexões com base no estudo da cooperação Sul-Sul brasileira
Letícia Cesarino

Culturas morais e políticas de desenvolvimento na Noruega e na União Europeia


Maria Macedo Barroso e Natacha Nicaise

Lições em engenharia social


a lógica da matriz de projeto na cooperação internacional
Catarina Morawska Vianna

O que a perspectiva antropológica tem a dizer sobre a avaliação de projetos sociais apoiados
pela cooperação internacional?
Maria Lúcia de Macedo Cardoso e Delaine Martins Costa

As políticas globais de governança e regulamentação da privacidade na internet


Rebeca Hennemann Vergara de Souza, Fabrício Solagna e Ondina Fachel Leal

O movimento software livre do Brasil


política, trabalho e hacking
Rafael Evangelista

Modernidade seletiva e estado predador


primeira aproximação às revoltas populares em Maputo de 2008 e 2010
Héctor Guerra Hernández

Combinando heterogeneidades em espaços globais de mobilização. Os casos do Fórum Social


Mundial e GlobalSquare
Geraldo Adriano Godoy de Campos, Carminda Mac Lorin e Raphaël Canet

Babaçu livre e queijo serrano


histórias de resistência à legalização da violação a conhecimentos tradicionais
Noemi Miyasaka Porro, Renata Menasche e Joaquim Shiraishi Neto

“Um campo de refugiados sem cercas”


etnografia de um aparato de governo de populações refugiadas
Vanessa Perin

Naturalismos y acumulación por desposesión


paradojas del desarrollo sustentable
Carlos Santos

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Espaço Aberto

“Desdisciplinar a antropologia”
diálogo com Eduardo Restrepo

Rejouer les savoirs anthropologiques


de Durkheim aux Aborigènes
Barbara Glowczewski

Homenagem a Colette Pétonnet


Claudia Fonseca e Claudia Turra Magni

Resenhas

PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil


Flávia Ferreira Pires

ZIMRING, Carl A. Cash for your trash: scrap recycling in America


Antonio de Pádua Bosi

BERT, Jean-François. « Les techniques du corps » de Marcel Mauss. Dossier critique


Carlos Emanuel Sautchuk

TORRE, Renée de la (Org.). El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados


Rodrigo Toniol

ROCHA, Ana Luiza Carvalho; ECKERT, Cornelia. Antropologia da e na cidade:


interpretações sobre as formas da vida urbana
Tania Dauster

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Apresentação
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky

1 Este volume dedicado ao olhar antropológico – ou, a muitos olhares na tradição


etnográfica – sobre políticas globais toma a gravura da capa como iconográfica deste
encounter entre políticas e eventos hegemônicos e realidades locais. Trata-se de um
detalhe pictórico de um dos biombos de Namban atribuído a Kano Domi, da Escola de
Kano do período 1568-1603. Seguindo a concretização do descobrimento por Vasco da
Gama, em 1498, do caminho marítimo para a Índia, os portugueses chegam ao Japão em
1543. Os biombos de Namban ou Namban Jin, em seu formato dobrável de vários painéis
que apresentam cenas em sequência, conformam uma narrativa sobre a chegada dos
europeus, os portugueses, ao Japão. Namban significa os povos bárbaros e Namban Jin,
bárbaros do sul, como foram designados os portugueses naquele contexto, ainda que
economicamente tratava-se de Portugal, uma superpotência. Eram os portugueses que,
nesse período das grandes navegações e da gestação do capitalismo, possuíam o
domínio da técnica e dos meios de transporte marítimo, dos meios de comunicação de
então; enfim, tinham monopólio das rotas e do comércio entre o Oriente e o Ocidente e
a hegemonia da definição das regras pelas quais se dariam as trocas naquele sistema
internacional.
2 Os biombos de Namban, além de exemplares importantes da arte oriental do século
XVI, pela riqueza de seus pormenores descritivos, são tomados hoje como elementos
fundamentais da historiografia daquele período, constituindo-se em uma crônica do
embate entre duas culturas, entre Ocidente e Oriente. Ao escolhermos essa imagem
para inaugurar, ou melhor, envolver este volume, tomamos essa representação gráfica
como uma etnografia, uma narrativa densa sobre o outro e sobre política global,
temporal e espacialmente demarcada. São, portanto, as características retóricas que
especialmente nos chamam atenção nessa discursividade colonial. Essa narrativa sobre
o encontro entre duas culturas e dois lugares de poder é feita a partir de um lugar, do
polo então mais destituído de poder no sistema de comércio global que se inaugurava. É
esse lugar que nos faz um relato preciso e que é tomado hoje como histórico de um
cotidiano da dinâmica cultural e econômica do período. Esse relato feito a partir da
perspectiva japonesa sobre os europeus é caricato e irônico, acentuando as diferenças e
o estranhamento na percepção da alteridade: hierarquias sociais, a aliança entre

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Estado, igreja e comércio; as características físicas dos personagens, grandes narizes e


trajes bufantes, a gradação da cor de pele e o lugar social que a diversidade étnica
ocupava, os produtos tidos como valiosos revelados em sua trivialidade, denunciando
criticamente gostos e mores do conquistador. Tomamos essa narrativa como uma forma
de apropriação local de um processo de globalização recém-instaurado. Trata-se de uma
narrativa plena de ironia que vê o momento da conquista como o palco onde o poder e
suas mesuras e circunstâncias fazem rir. Esse relato, em um jogo de representações do
Oriente a respeito do Ocidente, inexoravelmente também percebe que aquele que
constrói a narrativa a respeito de uma conquista e que ocupa o papel mais vulnerável
naquela relação de trocas, faz parte do mesmo evento, acentuando características
circenses da crônica desse cotidiano e de uma nova cartografia do mundo.
3 A proposta deste número de Horizonte Antropológicos foi a de reunir trabalhos recentes
em torno do tema de políticas globais e constituir uma discussão a partir de uma
perspectiva antropológica ou até mesmo de uma antropologia de atores e agências
internacionais, de diferentes lugares de poder, de lugares de conquista e de espaços
conquistados. Os trabalhos que atenderam a essa demanda foram organizados em torno
de três eixos de discussões.
4 Em primeiro lugar, o objetivo é verificar ou tomar exemplos de como se dá a dinâmica
de cooperação de agências internacionais e multilaterais em projetos que propõem o
desenvolvimento e intervenção social na sociedade do outro. Qual é o papel de agências
ou fundações filantrópicas privadas com atuação internacional? São estas novas formas
de colonialismo? Como se dá essa dinâmica entre diferentes Estados-nações, entre a
perspectiva global e a perspectiva local? Em segundo lugar, o tema abordado é o de uma
economia política global de produção, consumo e troca de informações generalizadas, a
formulação de regimes jurídicos e políticas globais e transnacionais que
contingentemente devem ou acabam por adequar legislações locais a tratados e novos
ordenamentos jurídicos globais. Por exemplo, o caso específico da legislação a respeito
de propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio acaba por estabelecer
um regime global naquilo que diz respeito a alguns espaços virtuais como o uso da
internet e de tecnologia de informação. Ao final, outro eixo de discussão e de trabalhos
etnográficos presentes neste volume são questões relativas, dado esse contexto de
imposição de regramento global, a como e quais são as formas de reação que a isso se
organizam. De que forma novos movimentos sociais e propostas alternativas
acontecem, como suas agendas se estabelecem ou se (re)organizam. Como se organiza a
assim chamada “global civil society”? Exemplos na área de desenvolvimento, saúde e/
ou meio ambiente e respectivas políticas públicas e gestões locais estão presentes em
vários estudos aqui apresentados.
5 O nosso objetivo ao propormos o tema de políticas globais foi o de problematizar os
modos como diferentes organizações enfrentam os dilemas e assimetrias inerentes a
esse campo, e as desigualdades ou dinâmicas expressas em dicotomias tais como
Ocidente e Oriente (para retomarmos a narrativa que é capa deste volume); Norte e Sul;
desenvolvimento e em desenvolvimento; e global e local.
6 A antropologia, portanto, tem se voltado às relações globais e às políticas relacionadas
aos novos aparatos supranacionais. Percebe-se que não é somente o fenômeno
globalização e suas apropriações locais que se tornam objeto de investigação. A própria
internacionalização da antropologia se mostra como processo crescente e, com ela,
surgem diferentes perspectivas e possibilidades de articulação acadêmica. Para

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mencionarmos um caso, a Rede de Antropologias Mundiais (RAM-WAN) – enquanto


parte desses processos – pode ser considerada uma proposta de deslocamento dos
modelos consagrados do eixo Europa-América do Norte de se fazer antropologia,
projeto que conta com pesquisadores de muitas partes do mundo e cuja singularidade
está em não ter uma agenda única definida. Nessa perspectiva, não apenas questões
epistemológicas da antropologia são invocadas à pluralidade, mas aspectos ontológicos
sobre que teorias, políticas e processos sociais produzem o mundo. Nesse cenário, novas
configurações emergem nos lugares. Sem deixar de atentar para a proposta de Latour
(2005) de que todo global ocorre nos lugares, faz-se necessário compreender processos
mundializados e a capacidade de determinados atores construírem conectividades mais
significativas que outros, portanto cabe à antropologia ultrapassar noções comuns de
globalização e perceber as diferenças nas redes, conexões e ligações que são sempre
desiguais para os agentes (Escobar, 2008).
7 Nesse campo de problemas, emergem as etnografias e estudos multissituados sobre
entidades de escopo internacional, organizações multilaterais e ONGs de atuação
transnacional. Uma parte importante dos estudos tem se concentrado em compreender
como noções localizadas se tornam universalmente aceitas, especialmente sob custódia
e força das entidades vinculadas à ONU, tais como a utilização global de índices e
indicadores de desenvolvimento (Ilcan; Phillips, 2010; Merry, 2011), os direitos
humanos e suas distintas formas de aplicação (Asad, 2003), as redes de organizações que
promovem novas modalidades de doação internacional (Mosse, 2005) – especialmente
com o cenário testemunhando o aparecimento de novos países doadores, incluindo o
Brasil –, a renovação das instituições religiosas nesse campo (Rickli, 2012) e o
crescimento dos formatos de cooperações Sul-Sul.
8 A antropologia das políticas globais assume a preocupação de refletir sobre aspectos de
governança (e governamentalidade) que se afirmam para além da esfera dos Estados,
pois, tal como recordado por David Mosse (2005), a política internacional de
desenvolvimento dos últimos anos é guiada por uma convergência de ideias em torno
de democratização, reformas neoliberais e redução de pobreza. Sob o guarda-chuva
geral das noções de ajuda e cooperação, modalidades de poder global se intrometem na
“custódia” ou como receitas de organismos e constelação de entidades sobre países que
desejam resolver “problemas” sociais. Nesse sentido a etnografia parece se renovar ao
articular práticas territorializadas, diferentes escalas de ação política e grandes
projetos ou programas.
9 Se há tentativas de padronização mundial em termos de política, cabe registrar que a
discussão sobre o global, os lugares e suas conexões permitem perceber as diferentes
maneiras de fazer antropologia nesse contexto. Está em jogo a possibilidade de pensar a
partir da multiplicidade e da diferença epistêmica no próprio campo acadêmico. A
pluralização dos termos tem sido recorrente, tais como a discussão sobre ontologias,
relacionalidades, desenvolvimentos, modernidades e, evidentemente, antropologias.
Sinalizando uma relação de poder-resistência nesse cenário mundializado, a noção de
antropologias dissidentes (Restrepo, 2012) provoca aos pesquisadores da área uma
contínua tarefa de reflexão sobre o conhecimento da disciplina, suas tradições e
narrativas regionais e nacionais e a tendência de se multiplicarem as possibilidades
teórico-analíticas.

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10 Os artigos deste dossiê abordam, cada um a seu modo, os aspectos acima mencionados,
em torno da questão central de políticas globais e/ou hegemônicas e realidades
etnograficamente escrutinizadas.
11 O artigo de Letícia Cesarino, que inicia este dossiê, faz uma reflexão epistemológica
sobre como a antropologia em sua tradição etnográfica de estudos locais de pequenas
comunidades pode trabalhar escalas globais. Através do caso empírico da cooperação
brasileira Sul-Sul com o continente africano, entendida como uma produção relacional
de um contexto, aponta para reflexividade entre o ofício do antropólogo e a produção
de um conhecimento que passa a fazer parte do sistema explicativo tanto dos
antropólogos como de seus nativos.
12 A seguir, Maria Macedo Barroso e Natacha Nicaise, tomando o caso de políticas de
desenvolvimento na Noruega e na União Europeia, analisam os processos sociais em
jogo e como estes estruturam a formação dos sentidos sociais do desenvolvimento e a
construção de um discurso moral a respeito de cooperação internacional.
13 Na mesma linha, o estudo de Catarina Morawska Vianna, toma o caso a agência católica
de desenvolvimento internacional da Inglaterra e País de Gales, desvendando princípios
que embasam o trabalho das agências internacionais de desenvolvimento.
14 O trabalho de Maria Lúcia de Macedo Cardoso e Delaine Martins Costa sobre avaliação
de projetos sociais apoiados por agências de desenvolvimento oferece uma reflexão
sobre o papel do antropólogo e da antropologia aplicada, reafirmando o lugar da
etnografia e da teoria antropológica para esse contexto de cooperação internacional.
15 O estudo de Rebeca Hennemann Vergara de Souza, Fabrício Solagna e Ondina Fachel
Leal, partindo do contexto mais geral da produção de políticas globais e acordos a
respeito de propriedade intelectual, acordos que regulam também o fluxo de
informação e a governança de trocas na internet, foca especificamente os casos norte-
americano e brasileiro de regulamentação da rede. O objetivo é desvendar a
racionalidade subjacente a esse sistema de produção de regras que atua sobre a esfera
pública de redes sociais e de comunicação na internet.
16 Rafael Evangelista, a partir de dados etnográficos, discute as características,
contradições e transformações do movimento e da comunidade software livre do Brasil,
apontando para os mecanismos de como se deu a eficácia política desse movimento
social. Apresenta-nos a dinâmica de diferentes grupos nesse cenário responsáveis pela
constituição da assim chamada cultura digital.
17 Héctor Guerra Hernández examina o processo de modernização em Moçambique,
especialmente por meio das revoltas populares em Maputo entre 2008 e 2010,
mostrando como um Estado modernizador é simultaneamente uma forma híbrida entre
um neoliberalismo democrático e um autoritarismo dominador e predador dos
processos que emergem na sociedade.
18 Geraldo Adriano Godoy de Campos, Carminda Mac Lorin e Raphaël Canet analisam, a
partir de uma antropologia da espacialidade, a emergência do que os autores
denominam de espaços globais de mobilização. Comparando o Fórum Social Mundial e o
GlobalSquare, os autores examinam as lógicas presentes em cada contexto, as
mobilizações políticas alternativas à configuração capitalista contemporânea e suas
contradições.
19 O artigo de Noemi Miyasaka Porro, Renata Menasche e Joaquim Shiraishi Neto compara
dois casos em que se entrelaçam os conhecimentos tradicionais e as tentativas de

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implementação dos regimes de propriedade intelectual. Examinando as quebradeiras


de coco de babaçu no Maranhão e produtores de queijo serrano no Rio Grande do Sul,
mostram como as comunidades resistem às formas de apropriação de seus saberes.
20 Vanessa Perin aborda a temática dos refugiados no mundo contemporâneo sob o ângulo
dos aparatos de governo constituídos em torno desses grupos sociais. Tendo realizado
uma etnografia em um programa da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, o Centro de
Acolhida para Refugiados, a autora examina a operação de um mecanismo de governo
que procura produzir e apreender os sujeitos envolvidos nestes processos.
21 Finalizando a seção dos artigos, Carlos Santos aborda a importante temática da
articulação problemática entre os processos de land grabbing e a conservação da
natureza no Uruguai. O autor aborda o problema através de uma etnografia
multissituada sobre a implantação do Parque Nacional Esteros de Farrapos e Islas del
Río Uruguay e do paralelo avanço do agronegócio no departamento de Río Negro,
mostrando os problemas decorrentes para as condições de vida das populações do
entorno da área protegida.
22 A seção Espaço Aberto inicia com uma entrevista de Eduardo Restrepo a professores e
alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul em 2012. Restrepo fornece um panorama histórico sobre a
antropologia na Colômbia e provoca-nos a pensar como “desdisciplinar” a antropologia,
especialmente apontando as novas tessituras conceituais que os novos espaços de
produção antropológica e as redes transnacionais de cooperação em pesquisa e ensino
instituem. Barbara Glowczewski examina criticamente a importância de Emile
Durkheim para os estudos sobre totemismo. Trabalhando com aborígenes australianos
contemporâneos busca deslocar a voz etnográfica para o grupo em estudo que
reconstrói sua identidade como patrimônio imaterial, conforme as regras do sistema
multilateral. Por fim, Claudia Fonseca e Claudia Turra Magni apresentam uma
homenagem a Colette Pétonnet, precursora da etnologia urbana, recuperando sua obra,
suas contribuições para antropologia contemporânea e revivendo momentos em que a
pesquisadora colaborou em projetos e seminários no Brasil.

BIBLIOGRAFIA
ASAD, T. Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford: Stanford University
Press, 2003.

ESCOBAR, A. Territories of difference: place, movements, life, redes. Durham: Duke University Press,
2008.

ILCAN, S.; PHILLIPS, L. Developmentalities and calculative practices: the Millenium Development
Goals. Antipode, v. 42, n. 4, p. 844-874, 2010.

LATOUR, B. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford: Oxford


University Press, 2005.

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8

MERRY, S. E. Measuring the world: indicators, human rights, and global governance. Current
Anthropology, v. 52, suppl. 3, p. s83-s95, 2011.

MOSSE, D. Global governance and the ethnography of international aid. In: MOSSE, D.; LEWIS, D.
(Ed.). The aid effect: giving and governing in international development. London: Pluto Press,
2005. p. 1-33.

RESTREPO, E. Antropologías disidentes. Cuadernos de Antropología Social, Buenos Aires, n. 35,


p. 55-69, 2012.

RICKLI, J. Encounter and engagement: negotiating otherness in the Dutch Protestant


development cooperation network in Brazil. Vibrant, v. 9, p. 599-621, 2012.

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Artigos

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Antropologia multissituada e a
questão da escala
reflexões com base no estudo da cooperação Sul-Sul brasileira

Letícia Cesarino

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 15/06/2013
Aprovado em: 17/12/2013

1 A abordagem etnográfica da cooperação para o desenvolvimento, além de implicar os


desafios comuns envolvidos em estudar “para cima” (Nader, 1972), remete de modo
especialmente contundente à questão da escala, ou do trânsito entre o plano micro da
prática etnográfica e o plano macro de processos mais gerais. Como a antropologia
pode abordar fenômenos de alcance global, dado que seu método e o tipo de
conhecimento construído a partir dele foram originalmente estruturados com base no
estudo da escala local de pequenas comunidades face a face? Nas últimas duas décadas,
inúmeros antropólogos têm se debruçado sobre a questão de como alçar escalas que se
situam além das práticas locais. Respostas bem conhecidas têm apontado na direção de
etnografias multissituadas (Marcus, 1995), redes sociotécnicas (Latour, 2012), processos
de espacialização do Estado (Ferguson; Gupta, 2002), ou diferentes visões sobre a forma
e efeito dos fluxos globais, tais como paisagens (Appadurai, 1996), composições
(assemblages) (Ong; Collier, 2005), fricção (Tsing, 2005), ou saltos (globe-hopping)
(Ferguson, 2006).
2 Este artigo tratará de uma outra via analítica, relativamente pouco explorada, inspirada
na antropologia de Marilyn Strathern. Ela enfatiza o modo como os próprios atores no
campo produzem conhecimento através do acionamento de escalas e contextos, em
articulação com operações do mesmo tipo realizadas pelo antropólogo durante o
processo de escrita etnográfica. Essa perspectiva, além de aberta, é necessariamente
reflexiva: ela reconhece que o antropólogo e seus informantes formam redes de
relações nas quais o primeiro participa enquanto parte igualmente interessada e

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situada (no sentido de Haraway, 1995), e sugere a explicitação dos efeitos dessa
situacionalidade no próprio relato etnográfico.
3 A presente discussão não poderia deixar de derivar, portanto, de um enraizamento
etnográfico específico: meu trabalho de campo multissituado sobre a cooperação Sul-
Sul entre Brasil e África. Em outras ocasiões, teci considerações acerca da cooperação
Sul-Sul à luz de outras questões, prevalentes na antropologia do desenvolvimento
(Cesarino, 2012a, 2012b) e nos estudos pós-coloniais (Cesarino, 2012c). Aqui, eu me
basearei em experiências recentes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) no continente africano para avançar uma discussão (meta)teórica sobre a
questão da escala na antropologia de fenômenos globais como os que se interpenetram
para compor a cooperação Sul-Sul. Sugiro que tal abordagem, mais do que oferecer
respostas definitivas às questões colocadas pela literatura acadêmica, é produtiva por
trazer essas próprias questões para o centro na análise. Pretende-se, com isso, abrir
espaço, na literatura antropológica canônica sobre cooperação, para interações
“diferenciantes” (Venkatesan; Yarrow, 2012) tanto com nossos interlocutores de campo
quanto com outras literaturas mais sensíveis às experiências do chamado sul global,
como os chamados estudos pós-coloniais.
 
A questão da escala na antropologia
4 Embora especialmente saliente no estudo de fenômenos globais e simétricos, a
problemática da escala está no cerne da constituição da disciplina antropológica
enquanto tal. Como colocou Peirano (1995), a antropologia se distingue por ser a um
tempo a mais geral e a mais particular das ciências sociais. Ela nasceu como o estudo do
homem em sua universalidade, mas o tem feito através da observação da diversidade
das práticas humanas na escala mais local: a das pequenas comunidades face a face.
Esse aparente paradoxo emana do seu método, a etnografia – que, não obstante
potencialidades alternativas nos momentos formadores da disciplina, 1 acabou se
consolidando segundo o modelo malinowskiano do antropólogo solitário, que passa um
longo período longe de casa, entre um grupo relativamente circunscrito e coeso de
pessoas muito diferentes do si próprio (e, se quisermos ir mais longe no espírito pós-
anos 1960: homem, branco, europeu, heterossexual, solteiro, sem filhos, parte de uma
elite intelectual e econômica, etc.).
5 Muito já foi dito, durante e em resposta à chamada virada pós-moderna, sobre a
assimetria fundamental entre etnógrafo e informantes sobre a qual se erigiram as
pretensões de conhecimento científico das primeiras gerações da disciplina: o que se
tornou conhecido como o problema da autoridade etnográfica (Clifford; Marcus, 1986).
Essa discussão tem múltiplas avenidas, em termos da diferente luz que esse olhar
reflexivo pode lançar sobre o fazer antropológico (isto é, produção de conhecimento)
em condições de fazer etnográfico (isto é, trabalho de campo) que não refletem o
modelo malinowskiano (cf. Gupta; Ferguson, 1997). Nesta seção, me debruçarei sobre
como transitar entre as escalas local e global, o micro e o macro, na ausência do
mediador universal outrora possibilitado por teorias de ambição científica como o
estrutural-funcionalismo da geração de Malinowski.
6 O estudo de fenômenos como o desenvolvimento internacional implica, quase por
definição, a impossibilidade de reproduzir ipsis literis o modelo malinowskiano.
Etnógrafos que seguem experts, gestores e outros atores nas extensas, heterogêneas e

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por vezes inacessíveis redes que se formam em torno das organizações de cooperação
não raro devem se deslocar com frequência, falar mais de uma língua de campo,
interagir com diversos grupos e nacionalidades e, com a expansão das novas
tecnologias da informação entre antropólogos e seus “nativos”, muitas vezes perfazem
a sequência campo/escrita de modo não linear. Embora tais etnografias tenham se
tornado comuns, não há um modelo teórico-metodológico que tenha ganhado corações
e mentes suficientes a ponto de suceder o modelo clássico no mainstream da disciplina.
7 Um dos modos mais conhecidos de colocar essa problemática foi a discussão de George
Marcus (1995) sobre a etnografia multissituada. Naquela ocasião, ele apontou dois
modos proeminentes de lidar com o trânsito entre as escalas micro e macro na
antropologia de fenômenos globais. A estratégia mais corriqueira envolve explicar a
prática observada localmente através do recurso a “métodos e meios” diferentes do
etnográfico, como macroteorias e pesquisa em arquivos. A segunda estratégia,
encampada por Marcus, implica seguir etnograficamente a “circulação” de atores,
objetos e discursos por múltiplos pontos do globo (precisamente, a etnografia
multissituada). Trabalhos nessa linha incluem abordagens do tipo rede (por exemplo,
Latour, 2012; Mosse, 2006) ou etnografias de processos e fluxos globais (por exemplo,
Appadurai, 1996; Ong; Collier, 2005).
8 Aqui, eu optei por discutir uma terceira via, que tem gravitado em torno do trabalho de
Marilyn Strathern. Nessa perspectiva, um problema com a primeira abordagem
apontada por Marcus seria a assimetria implícita entre as práticas de conhecimento do
antropólogo e de seus nativos. Aqui, tal qual Malinowski, o pesquisador se arroga o
privilégio epistemológico de definir unilateralmente quais escalas e contextos “macro”
são os mais relevantes para enquadrar as práticas observadas no plano “micro”. A
segunda, por sua vez, baseia-se na presunção de uma certa imanência do plano “micro”;
tudo que o antropólogo precisa fazer é registrar e descrever as práticas observadas no
campo. Aqui, o pesquisador, embora se posicione na mesma escala das redes tecidas por
seus informantes, não está situado nelas no sentido forte que Donna Haraway (1995)
atribuiu ao termo – ou seja, não assume a parcialidade da análise, e os interesses e
práticas de conhecimento que movem o próprio etnógrafo. Strathern propõe, pelo
contrário, que nos voltemos para os modos como a própria produção de escalas e
contextos ocorre na prática tanto dos atores no campo quanto dos antropólogos na
academia. Nos termos de Mosse (2006), trata-se de reconhecer que os dois domínios do
ofício do antropólogo em cuja separação se baseia o modelo malinowskiano – field
(trabalho de campo etnográfico) e desk (escrita antropológica, que prefiro traduzir por
“gabinete”) – fazem parte, um última instância, de uma mesma rede de relações sociais.
9 Como Mosse e outros notaram (por exemplo, Cesarino, 2012a; Green, 2009), essas
questões tornam-se especialmente salientes no estudo da cooperação internacional,
mas elas têm implicações mais gerais. Como bem sabe qualquer um que tenha feito
trabalho de campo, as relações entre o etnógrafo e seus informantes são relações sociais
como quaisquer outras. Decerto é mais fácil objetificar um indígena melanésio do que,
digamos, um cooperante brasileiro. Mas isso ocorre não porque o primeiro pertence a
um outro domínio ontológico, mas porque as relações tecidas entre ele e o antropólogo
contam com menos precedentes e costumam ser mais efêmeras – e, com efeito, são
normalmente arrefecidas ou descontinuadas após a conclusão da pesquisa. Como
lembrou Mosse (2006), esta era uma condição para a produção de conhecimento na
gênese da disciplina antropológica: a volta do campo para o gabinete implicava um

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distanciamento (geográfico, temporal, linguístico, hierárquico) e eclipsamento das


relações com os nativos em favor do reavivamento das relações com os pares na
academia. O privilégio explicativo do antropólogo estaria, assim, não numa autoridade
científica desenraizada – o que Haraway (1995) descreveu como o “truque de deus”: ou
seja, um olhar que vê tudo mas que não está, ele mesmo, situado em lugar nenhum.
Estaria, antes, no fato – bem mais mundano – de que aquele que faz o trabalho de
campo e que escreve a etnografia media de modo privilegiado, e por vezes exclusivo,
essas duas redes de relações: a produção do conhecimento academicamente legítimo e
os processos empíricos que esse conhecimento constrói enquanto “objeto”.
10 Todavia, quando o etnógrafo “volta dos trópicos” e passa a estudar simetricamente – ou
seja, quando seus informantes passam a “ter os meios intelectuais necessários a ler,
criticar e contraditar o trabalho produzido, apresentando-lhes questões em pé de
igualdade ou mesmo de superioridade” (Souza Lima, 2010, p. 22) –, esse livre trânsito
entre campo e gabinete torna-se mais problemático. Onde as distâncias relacionais
entre etnógrafo e informantes são relativamente menores, fica mais difícil sustentar o
privilégio epistemológico de definir unilateralmente quais escalas e contextos são
relevantes para enquadrar as práticas destes últimos. E diante dessa impossibilidade de
romper ou ignorar os laços sociais com os informantes ao passar do campo à academia
(como fez Malinowski e tantos outros), o antropólogo pode ser chamado por eles a
explicitar seu posicionamento nas redes que teceu entre campo e academia. Isso tem
consequências importantes para o modo como o conhecimento antropológico é
produzido: em especial, torna-se imperativo que as relações do campo sejam de alguma
forma compostas com as relações acadêmicas, não (apenas) separadamente mas durante
o próprio processo de produção de conhecimento através da escrita etnográfica. O
desafio passa a ser como fazê-lo de modo legítimo e produtivo tanto para o campo
quanto para o gabinete.
11 Embora leve a essas e outras questões fundamentais, a inspiração stratherniana não
oferece uma resposta conceitual padronizada. Na prolífica obra dessa autora, elas têm
sido sempre operacionalizadas através da interação com temas e literaturas específicos,
como feminismo e gênero (Strathern, 2006) ou cultura de auditoria e
interdisciplinaridade (Strathern, no prelo). Embora a própria Strathern não tenha
lidado de modo mais detido com os tipos de fenômenos globais a serem abordados aqui,
outros antropólogos têm se inspirado em sua obra para avançar propostas mais
específicas nessas direções.
12 Cori Hayden (2008), por exemplo, tem se debruçado sobre os paradoxos da repartição
de benefícios e a política da cópia na indústria farmacêutica global. Annelise Riles
(2000) avançou a evocativa noção de “rede ao avesso” para indicar os processos
autorreferidos de confecção de documentos em redes de ONGs transnacionais. Outros
etnógrafos do desenvolvimento como David Mosse (2006) e Maia Green (2009) também
se inspiraram na antropóloga britânica para refletir sobre as práticas de conhecimento
da disciplina e sua “reflexividade quotidiana” (Strathern, 2013). No Brasil, Catarina
Vianna (2014) inspirou-se na perspectiva stratherniana para analisar como
emaranhados organizacionais no campo da cooperação se formam e se sustentam
globalmente.
13 Neste estudo, farei recurso a duas propostas avançadas por essa literatura
contemporânea de inspiração stratherniana. Recentemente, Venkatesan e Yarrow
(2012) propuseram a noção de desenvolvimento diferenciante como alternativa para a

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tensão, historicamente prevalente na antropologia do desenvolvimento, entre


abordagens “aplicadas” versus “críticas”. 2 Essa perspectiva busca fazer jus à
heterogeneidade das interações empíricas do fenômeno do desenvolvimento,
engajando os informantes simetricamente no sentido de nutrir relações que sejam
fecundas para ambos os lados do divisor campo-gabinete. Bill Maurer (2008, p. 2,
tradução minha), por sua vez, propôs a noção de etnografia do emergente para abordar
práticas que se desenrolam na mesma temporalidade da escrita etnográfica, e que
possuem características em comum com as práticas de conhecimento da própria
antropologia: “transbordamento de categorias, hibridismo, autodocumentação ou
reflexividade, e a mudança contínua de perspectiva entre o geral e o particular para
produzir conhecimento”.
14 Com efeito, ambas as orientações se mostraram especialmente produtivas no caso da
minha experiência de pesquisa. Por um lado, a cooperação Sul-Sul contemporânea pode
ser caracterizada um tanto literalmente enquanto fenômeno emergente no mundo do
desenvolvimento internacional: como se verá adiante, a própria configuração
institucional da cooperação brasileira é ainda bastante instável, e sua direção, incerta.
Por outro, há uma simetria excepcional entre os dois lados da partilha campo-gabinete.
Os cooperantes brasileiros, por exemplo, realizam um trabalho intensivo de
autodefinição e autodocumentação que se assemelha muito àquele realizado pelos
pesquisadores acadêmicos que estudam a cooperação Sul-Sul. Na linha de frente dos
projetos, em especial em países com os quais o Brasil tinha histórico limitado de
relações, alguns operadores da cooperação brasileira muitas vezes se portavam como
verdadeiros etnógrafos. Aliado ao fato de a cooperação Sul-Sul ser um fenômeno ainda
pouco estudado pela antropologia, minha interlocução analítica com os atores no
campo muitas vezes se mostrou mais profícua que o diálogo com os próprios pares
acadêmicos. Por essas e outras razões, as relações que vim a estabelecer entre campo e
gabinete parecem ser de fato melhor capturadas pela perspectiva do desenvolvimento
diferenciante do que pelos posicionamentos ético-epistemológicos mais comuns na
antropologia do desenvolvimento, encapsulados na referida dicotomia antropologia
aplicada versus crítica.
15 Mas entre os pontos elencados aqui, é em especial sobre as “manobras de perspectiva e
escala” (Maurer, 2008, p. 4) que quero me debruçar. Na perspectiva stratherniana de
Maurer e outros, a noção de escala tem uma acepção tanto de escala de realidade/
complexidade (comumente entendida em termos do continuum micro-macro) quanto de
escala comparativa (ou seja, denota a perspectiva a partir da qual elementos do real são
colocados em relação). Strathern (1991, p. xiv, tradução minha) propõe que
reconheçamos o modo como a produção de conhecimento opera através de conexões
parciais que implicam mudanças de escala sempre que se muda “de uma perspectiva
sobre um fenômeno para outra”. Mesmo quando não aborda um tipo “radical” de
alteridade como os melanésios, o antropólogo está sempre compreendendo as práticas
observadas no campo em termos de outras – em especial, a prática acadêmica de fazer
teorias que pretendem agregar numa escala macro a multiplicidade das práticas
observadas no plano micro do trabalho de campo.
16 Como notado por Strathern e outros, essas manobras de escala (scaling) costumam
envolver outros modos comuns de colocar-em-relação, tais como analogias,
contextualizações (context-making) e atribuição a domínios (domaining) (Holbraad;
Pedersen, 2009; Huen, 2009; Strathern, 1991, 2006, 2013, no prelo). Nessa perspectiva,

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contextualizar não significa encaixar unilateralmente, e definitivamente, elementos


novos (por exemplo, os “dados” levantados na pesquisa etnográfica) no contexto
correto (normalmente concebido em termos de uma escala macro também “dada” de
antemão na academia, como “globalização”, ou “governamentalidade”), mas olhar para
o modo como os próprios contextos são feitos no campo e no gabinete. Em seus escritos,
Strathern tem enfatizado o modo como esse acionamento de escalas, contextos e
domínios envolve o rearranjo, eclipsamento e realce seletivo de certos elementos, com
base em certas matrizes relacionais bem estabelecidas. Estas últimas são
frequentemente pensadas em termos de binarismos recorrentes como, no caso da
antropologia, natureza versus cultura, indivíduo versus sociedade, dádiva versus
mercadoria (Strathern, 2006) – ou, no meu caso etnográfico, Norte versus Sul, África
versus Brasil, desenvolvido versus subdesenvolvido, ou tropical versus temperado.
17 No que segue, buscarei operacionalizar essa perspectiva em termos do meu estudo das
relações de cooperação recentes entre Brasil e África. Na próxima seção, avanço o
argumento de que a cooperação Sul-Sul brasileira pode ser melhor entendida enquanto
uma composição (assemblage) caracterizada por interfaces emergentes, inclusive no
plano organizacional. Isso explicaria a centralidade que o acionamento de escalas e
contextos tem tido na prática das relações emergentes entre instituições e atores
brasileiros e africanos. As seções seguintes examinam algumas dessas operações, com
base em minhas observações de campo: uma o faz em termos de binarismos
hemisféricos como Norte-Sul e Brasil-África, e a outra, em termos das demonstrações
sobre a experiência agrícola brasileira realizadas durante alguns dos treinamentos
conduzidos pela Embrapa. Na seção conclusiva, volto às questões mais gerais discutidas
acima, para explicitar como as relações que estabeleci entre campo e academia
moldaram meu modo de descrever e enquadrar teoricamente a cooperação Sul-Sul
brasileira.
 
Composição: interfaces emergentes da cooperação
brasileira
18 Um dos primeiros desafios no estudo da cooperação Sul-Sul é como enquadrá-la
teoricamente. A literatura etnográfica sobre os chamados doadores emergentes é ainda
reduzida, pouco desenvolvida teoricamente, e muito concentrada no caso chinês. 3 Na
antropologia do desenvolvimento, a literatura mais teórica tem se baseado quase
inteiramente na experiência empírica de organismos multilaterais e doadores do
chamado norte global. As principais propostas têm ido no sentido de perspectivas
foucaultianas enfatizando noções de discurso, governamentalidade e tecnologias de
governo (por exemplo, Escobar, 2001; Ferguson, 1994; Li, 2007; Silva, 2012), e
abordagens centradas-nos-atores destacando noções de redes, mediadores e projetos
(por exemplo, Bierschenk; Chauveneau; Olivier de Sardan, 2000; Mosse, 2005; Lewis;
Mosse, 2006; Rottenburg, 2009). Essas e outras correntes recortam analiticamente (ou,
como se diz com frequência, reduzem) realidades que sempre parecem mais complexas
quando vistas da escala do trabalho de campo. Esse é um efeito inevitável do modo
como a antropologia faz escalas através de seu método: não é que a complexidade das
relações nas quais o etnógrafo está envolvido durante o campo se reduz (Strathern,
1991); o que ocorre é que, durante a escrita, ela é deslocada do campo para o gabinete.
Aqui, torno explícito (e, espero, mais equilibrado) meu “reducionismo”: busquei ver a

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cooperação Sul-Sul em termos de suas diferenças com relação à cooperação tradicional,


tal qual evocadas por alguns dos meus interlocutores de campo por um lado, e pela
contraposição com parte da literatura teórica sobre cooperação, por outro.
19 Como argumentei anteriormente (Cesarino, 2012a, 2012b), não obstante diferenças
heurísticas importantes entre as distintas correntes teóricas na antropologia do
desenvolvimento, nesse campo como um todo o foco analítico tem sido deitado no
aparato técnico-burocrático e na lógica sistêmica das organizações de cooperação,
entendidas enquanto globais. Sob esse ponto de vista, uma característica marcante da
cooperação para o desenvolvimento é sua autorreferencialidade: mais que remeter ao
desenvolvimento das condições de vida de agricultores camponeses, comunidades
pobres e outros “clientes” do aparato da cooperação, as práticas das agências,
consultores e demais atores remeteriam à sua própria autorreprodução e inércia
organizacional. Os recebedores da cooperação – estes, entendidos como situados na
escala local – são vistos como englobados por essa lógica sistêmica mais ampla, seja
passivamente enquanto subalternos (Escobar, 2001) ou submetidos à tutela de experts
(Li, 2007), ou de modo mais ativo enquanto brokers (Lewis; Mosse, 2006) ou courtiers
(Bierschenk; Chauveneau; Olivier de Sardan, 2000).
20 Como já argumentei (Cesarino, 2012a, 2012b), essas proposições implicam uma
robustez, estabilidade e coerência organizacionais que eu não observei na cooperação
brasileira. Vista em termos da escala privilegiada nessa literatura, a cooperação
brasileira (e de outros doadores emergentes; cf. Mawdsley, 2012) tende a aparecer sob o
signo da falta ou imaturidade: falta-lhe profissionalização, dinheiro, conhecimento
especializado, autonomia institucional (por exemplo, Cabral; Weinstock, 2010). Eu me
propus, por outro lado, a olhar para a cooperação brasileira através dos modos como
seus próprios agentes têm se posicionado diante da cooperação para o desenvolvimento
tradicional. Esse posicionamento, embora quase sempre calcado numa retórica da
diferença, não é monolítico, mas altamente ambivalente e por vezes até contraditório.
Para aqueles envolvidos no mundo do desenvolvimento, por exemplo, enquanto
consultores, a cooperação tradicional pode aparecer como referência normativa e
modelo a ser seguido. Para muitos dos atores ligados a instituições nacionais, por outro
lado, os doadores do Norte aparecem enquanto pares com os quais cooperar
horizontalmente e de forma autônoma. Há, ainda, aqueles que veem a cooperação do
Norte como modelo falho a ser superado ou dominação histórica a ser combatida. Em
outras palavras, por qualquer escala que se olhe (mesmo a dos indivíduos), não há um
modo coerente de definir a cooperação Sul-Sul em contraposição à cooperação
tradicional; essa contraposição é, em si, parte do esforço prático de muitos dos atores
no campo (assim como de seus colegas na academia).
21 Para delinear esse elusivo objeto de estudo, optei por recrutar uma noção corrente na
antropologia de fenômenos globais como o desenvolvimento (por exemplo, Moore,
2005; Ong; Collier, 2005): composição (assemblage). Aqui, parto da versão da teoria do
ator-rede desenvolvida por Latour (2012), que propõe ver o “social” enquanto uma
composição entre agências híbridas que pode alcançar certa estabilidade, mas nunca se
congelar numa estrutura transcendente. Introduzo, porém, a inflexão stratherniana
para marcar o caráter situado e parcial das agências e perspectivas colocadas em
relação nas redes da cooperação, assim como o caráter emergente das suas práticas,
identidades e aparato organizacional.

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22 Minha primeira proposição nesse sentido é que a cooperação Sul-Sul brasileira pode ser
melhor entendida não em termos de um aparato estável, que articula discurso,
estrutura organizacional e prática operacional num modelo alternativo ao da
cooperação tradicional (como quer que se conceba esta última), mas enquanto uma
composição de interfaces relacionais emergentes entre atores e processos preexistentes –
inclusive os do Norte global. Nessa composição, eu identifiquei, através do contraponto
com a literatura sobre cooperação tradicional, três níveis principais, relativamente bem
demarcados em termos tanto organizacionais quanto de socialidade entre os atores: 1)
discurso oficial da cooperação, seara dos diplomatas, centrado na autodefinição formal
da cooperação brasileira em termos de certos princípios e pressupostos; 2) policy, seara
dos gestores e experts em cooperação propriamente dita, onde se realiza o trabalho
burocrático de gestão e avaliação de projetos; e 3) a “linha de frente” da prática
operacional, onde um grupo bastante heterogêneo de agentes executa projetos,
treinamentos e demais atividades de cooperação. No meu universo etnográfico, as
principais instituições representadas em cada nível eram: 1) o Ministério das Relações
Exteriores; 2) a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) (ela mesma, um departamento
do Itamaraty); e 3) a Embrapa.
23 Não apenas a arquitetura organizacional mas a dinâmica entre esses níveis parecia
diferir significativamente do modo descrito pelas etnografias de projetos conduzidos
por instituições multilaterais como o Banco Mundial ou agências bilaterais do Norte
global (Ferguson, 1994; Li, 2007; Mosse, 2005; Rottenburg, 2009; Valente, 2010). Nessa
literatura, o nível burocrático da policy tende a aparecer como se sobrepondo e
sobrecodificando os outros dois, em termos de lógicas sistêmicas concebidas em termos
macro como a “máquina antipolítica” de James Ferguson (1994) ou a “vontade de
melhorar” de Tania Li (2007). Na cooperação brasileira, pelo contrário, sugiro que
maior robustez organizacional relativa era encontrada precisamente nos outros dois
níveis, da execução e da diplomacia (Cesarino, 2012b).
24 De um lado, assim como no caso de outros doadores emergentes (Mawdsley, 2012), o
principal ímpeto da cooperação Sul-Sul brasileira tem emanado não da própria
indústria da cooperação, mas da diplomacia. Em especial, a política externa dos dois
governos Lula impulsionou de modo excepcional a aproximação com regiões de pouca
tradição histórica de relacionamento com o Brasil, como a Ásia ou, no caso da África,
países fora do eixo lusófono. Do outro lado, no nível da execução, situam-se instituições
bem mais robustas que a própria ABC, como a Embrapa ou a Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz).4 Na prática, essas instituições e seus funcionários não se limitam a executar
políticas concebidas noutro lugar; eles mesmos têm realizado boa parte do trabalho de
negociar, desenhar, gerir e avaliar projetos e demais atividades da cooperação
brasileira.
25 Assim, a emergência de novas interfaces organizacionais tem se dado não apenas numa
escala global – entre o Brasil, outros doadores do Norte e do Sul, e os recebedores da
cooperação em África e alhures – mas também domesticamente. Sob a égide do
Itamaraty, foram agregadas instituições brasileiras com pouco precedente de atuação
conjunta, ao menos em termos do tipo de atividade que elas têm sido chamadas a
desempenhar dentro do quadro da cooperação Sul-Sul. Mesmo para a burocracia
brasileira especializada, a ABC, a provisão sistemática de cooperação nos níveis atuais é
inédita. A agência havia sido criada para gerir a ajuda recebida pelo Brasil; seu estatuto
legal, ainda de recebedora, faz com que ela dependa de parcerias com organizações

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internacionais que prestam serviços de mediação burocrática, notadamente o Programa


das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).5 Também é em larga medida novo
seu trabalho conjunto com as dezenas de instituições nacionais que têm sido recrutadas
pelo Itamaraty para executar projetos e outras atividades da cooperação brasileira.
26 Essa configuração se reflete no plano dos indivíduos que atuam na linha de frente dos
projetos. Em sua maioria, eles não se formaram em expertises próprias ao
desenvolvimento internacional, e nem fazem suas carreiras na indústria da cooperação.
Trata-se de profissionais que têm atuado fundamentalmente dentro do Brasil e em
outras áreas, como pesquisa, educação ou transferência de tecnologia. No caso da
Embrapa, a maior parte dos projetos é executada por agrônomos, melhoristas e outros
pesquisadores da empresa, e não por consultores especializados em cooperação –
embora alguns deles eventualmente venham a se tornar consultores para a ABC,
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e outras
organizações. Boa parte do seu repertório prático tem emanado menos de modelos e
metodologias comuns no mundo do desenvolvimento internacional do que de
experiências de pesquisa, treinamentos, transferência de tecnologia, parcerias
científicas e outras atividades realizadas domesticamente.
27 No caso da cooperação Sul-Sul, os “clientes” dessas atividades não são os agricultores,
extensionistas, gestores, políticos e outros atores brasileiros com os quais a Embrapa e
seus pesquisadores têm se engajado rotineiramente. Trata-se, em sua maioria, de
pesquisadores e técnicos afiliados a instituições nacionais equivalentes à Embrapa. Eles
próprios um efeito da disseminação global de modelos ocidentais através do
colonialismo e da Revolução Verde, institutos nacionais de pesquisa agrícola são
comuns no sul global, mesmo nos países mais pobres da África. Mas embora esses
institutos funcionem de modo semelhante à Embrapa em muitos sentidos, façam parte
de redes globais (de pesquisa, cooperação, comércio) compartilhadas historicamente
com o instituto brasileiro, e parte dos projetos de maior fôlego venha seguindo
caminhos relacionais bem conhecidos,6 a cooperação Sul-Sul contemporânea tem
envolvido engajamentos com atores institucionais e individuais com os quais a empresa
e seus funcionários não têm um histórico de relações significativo.
28 Este foi o caso das duas principais iniciativas que acompanhei durante o campo, o
Embrapa Estudos Estratégicos e Capacitação (Cecat) e o Projeto Coton-4 (C-4). O
primeiro envolvia a provisão de capacitações periódicas a técnicos, pesquisadores,
extensionistas e outros parceiros africanos num novo centro dedicado à cooperação
internacional inaugurado em Brasília em 2010. Esses treinamentos eram trilíngues
(português, inglês e francês), e lançavam uma ampla rede sobre o continente africano,
agregando representantes de mais de 20 países de todas as regiões subsaarianas e do
Magrebe. No caso do Projeto C-4, que envolvia transferência de tecnologias agrícolas
para a cotonicultura, com exceção parcial do Benin (ou pelo menos, da sua metade sul)
os países parceiros (Mali, Burkina Fasso e Chade) tinham poucos precedentes de
relações com o Brasil.7 As próprias embaixadas brasileiras em Bamako e Ouagadougou
foram abertas concomitantemente ao projeto.
29 Em ambos os casos, além disso, as iniciativas foram diretamente originadas e
financiadas no nível do governo federal, como efeito direto de sua política externa. O
Cecat foi construído em poucos meses através dos generosos recursos do “PAC da
Embrapa”, e suas capacitações vêm sendo financiadas pela ABC. O Projeto C-4, por sua
vez, nasceu em meados da década de 2000 a partir de uma aliança informal no âmbito

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da Organização Mundial do Comércio (OMC) entre o Brasil e um grupo de quatro países


africanos produtores de algodão, numa disputa contra os generosos subsídios
fornecidos aos cotonicultores estadunidenses. Também financiado pela ABC, tratava-se
do projeto bilateral de maior orçamento sendo executado pela Embrapa no continente
africano na época do meu trabalho de campo (2010-2012).
30 Em ambos os casos, o grosso das equipes brasileiras foi recrutado entre os quadros
regulares da Embrapa, geralmente pesquisadores. Embora muitos deles já houvessem
participado de treinamentos e projetos internacionais, nem todos o fizeram como
provedores de cooperação técnica. A pequena porém dedicada equipe permanente do
Cecat foi originalmente transferida de unidades descentralizadas de pesquisa, com o
acréscimo posterior de novos contratados em áreas mais especializadas como línguas e
pedagogia. No caso dos projetos executados em território africano como o C-4, para
muitos dos operadores da linha de frente era a primeira vez naquele continente, e
poucos falavam francês fluente.
31 Os cooperantes africanos, por sua vez, tendiam a ter experiência extensiva enquanto
beneficiários de projetos internacionais. Muitos deles, em especial os seniores,
formaram-se no exterior (Europa, Estados Unidos ou ex-União Soviética), e parte
importante do financiamento para pesquisa na rotina dos seus institutos vinha de
agências estrangeiras. Mas em vários sentidos, mesmo para eles a interface que vinha
sendo composta com o Brasil também era nova: poucos conheciam o país para além das
referências comuns ao futebol e novelas. Segundo seus relatos, em vários sentidos a
cooperação brasileira de fato se mostrava diferente das cooperações do Norte –
domínios comumente citados incluíam o montante e modo de gestão dos recursos (em
especial financeiros), o tipo de profissional enviado para implementar os projetos
(pesquisadores ao invés de consultores) e o nível de envolvimento do pessoal
diplomático no dia a dia dos projetos. Essas avaliações nem sempre coincidiam com a
autoapresentação da cooperação brasileira, avançada fundamentalmente pelos
diplomatas e outros atores atuando no nível dos princípios e da policy. De fato, uma das
características salientes da composição em questão era uma certa disjunção entre o
discurso oficial, a gestão burocrática e a prática na linha de frente dos projetos.
32 Esse tipo de disjunção entre discurso, políticas e execução tem sido notado pela
literatura sobre cooperação do Norte, mas num sentido bem diferente do que observei.
Enquanto a distância entre o nível burocrático da policy e a prática operacional dos
projetos é descrita – por exemplo, por Mosse (2005), Li (2007) ou Rottenburg (2009) –
como um efeito funcional da própria lógica sistêmica da policy, que sobredetermina a
prática justamente ao garantir uma separação entre aqueles que planejam e aqueles
que executam os projetos, na cooperação brasileira essa distância não apresenta tal
caráter sistemático. Ela está ligada ao fato de que, na prática, a cooperação brasileira se
traduz num conjunto bastante heterogêneo de iniciativas sobre as quais o nível
burocrático da policy tem, pelo contrário, pouco controle. O que as une não vai muito
além dos princípios discursivos propalados pelo Itamaraty. Mesmo a gestão
centralizada na ABC não é organizacionalmente pujante o suficiente para influir na
padronização das ações na linha de frente dos projetos, ou para prover um aparato de
produção de conhecimento especializado sobre os países africanos nos moldes daqueles
encontrados na indústria global da cooperação – o que Cabral et al. (2013) têm chamado
de “política de não ter política”.

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33 Assim, concluo esta seção notando que, numa composição onde há poucos canais
relacionais consolidados, inclusive no plano organizacional, boa parte do trabalho dos
cooperantes brasileiros – diplomatas, gestores e executores, mas especialmente estes
últimos – tem se dado no sentido de fazer um contexto para as relações com seus novos
parceiros ao longo dessas interfaces emergentes. Em outras palavras, na ausência do
aparato sistêmico e sobrecodificador observado na cooperação tradicional, boa parte do
trabalho de converter princípios em prática, produzir conhecimento sobre as
realidades locais e engajar os parceiros africanos nos treinamentos e projetos tem sido
realizada, a seu próprio modo, pelos operadores da linha de frente da cooperação
brasileira. As seções que se seguem trarão um relato de como esse trabalho de produção
de contexto tem se dado no nível mais básico do reconhecimento mútuo, através de
analogias entre os dois lados do Atlântico Sul que envolvem o acionamento seletivo de
diferentes escalas e contextos. A primeira o fará em termos de escalas hemisféricas
como o binarismo Norte-Sul e Brasil-África, e a segunda, em termos do principal
domínio abordado pela cooperação da Embrapa, a agricultura tropical.
 
Escalas hemisféricas: Brasil e África entre o Norte e o
Sul
34 A cooperação para o desenvolvimento é um campo cujo próprio desenvolvimento
histórico assenta-se num distanciamento entre escalas micro e macro, concebido em
termos de binarismos comuns como global-local, ou Primeiro-Terceiro Mundo. Ao fazer
a crítica à assimetria de poder implicada nessas e outras dicotomias (por exemplo,
Escobar, 2001; Ferguson, 1994; Li, 2007; Moore, 2005), a própria literatura antropológica
tem frequentemente respondido através de outros binarismos, como dominação
(sistêmica) versus resistência (local). A cooperação Sul-Sul não escapa a essa tendência:
sua própria autodefinição tem se dado através do binarismo Norte-Sul. Mas embora
essa contraposição ao “Norte” seja de fato constitutiva das visões sobre a cooperação
Sul-Sul, por parte tanto de seus agentes quanto de outros no mundo do
desenvolvimento internacional, o caráter dessa relação não é monolítico, mas
ambivalente e até contraditório. Essas visões podem variar desde um bem-vindo e
“valioso complemento à cooperação Norte-Sul” (OECD, 2005 apud Mawdsley, 2012,
p. 65, tradução minha) até a ameaça de um “mundo mais corrupto, caótico e
autoritário” (Naim, 2007 apud Walz; Ramachandran, 2011, p. 1, tradução minha); de
versão embrionária de uma norma mais bem acabada, encontrada no norte global
(Cabral; Weinstock, 2010), até a busca por um modelo autônomo dentro da hegemonia
existente (Corrêa, 2010).
35 No caso brasileiro, o grupo de atores que tem mostrado mais interesse e esforço em
explicitar a natureza da relação Norte-Sul são aqueles responsáveis por construir o
discurso oficial da cooperação brasileira: os diplomatas. Esse discurso, expresso em
declarações, power points, documentos, panfletos, websites produzidos pelo Itamaraty e
outros, é o aspecto mais visível da produção de contexto para as relações emergentes
entre o Brasil e outras regiões do sul global. Embora não seja perfeitamente
padronizado entre os diferentes atores institucionais e individuais, esse discurso tem
apresentado certas recorrências. No plano mais geral, estão os princípios da cooperação
Sul-Sul, explicitamente compartilhados por outros países do sul global em certos fóruns
formais,8 e que orbitam em torno de noções de solidariedade, horizontalidade, não

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interferência, não condicionalidade, orientação pela demanda, autonomia, etc. Essas


noções são recrutadas enquanto contraponto a uma certa versão da cooperação do
norte global, concebida como intervencionista, vertical e autointeressada. A intenção
horizontalizante do termo Sul-Sul é constituída assim em oposição a uma verticalidade
suposta no padrão Norte-Sul.
36 Essa contraposição Norte versus Sul não é, todavia, capaz de eclipsar inteiramente as
ambivalências e contradições ligadas ao fato de que a própria cooperação Sul-Sul
emergiu de dentro de uma hegemonia já existente, e não como um modelo externo
alternativo à cooperação do Norte. Elas permanecem evidentes, por exemplo, em certos
pressupostos temporais acionados pelo discurso oficial, que enfatiza uma escala de
desenvolvimento periférico comum em termos da qual o Brasil e os países africanos – e
no limite, o sul global como um todo – são alinhados. Não se trata aqui de uma simples
reprodução do pressuposto modernizante clássico (Ferguson, 2006): busca-se marcar
uma diferença estratégica com relação ao Norte através da alegação de que as soluções
desenvolvimentais produzidas pela experiência periférica, como a agricultura tropical
ou o Bolsa Família, seriam melhores do que aquelas oferecidas pelos países situados no
topo da escala da modernização. Esse movimento ecoa um outro, ocorrido meio século
atrás: em seu mítico discurso do Ponto Quatro em 1949, que presumidamente nomeou
pela primeira o desenvolvimento internacional enquanto tal (Escobar, 2001; Sá e Silva,
2009), o presidente Truman convocou os Estados Unidos a colocarem seu “estoque de
conhecimento técnico” a serviço das nações em desenvolvimento. E assim como,
falando logo após Segunda Guerra, ele buscava “distanciar seu projeto do imperialismo
tradicional [Europeu]” (Gardner; Lewis, 1996, p. 6, tradução minha), Brasil e os demais
doadores emergentes buscam hoje diferenciar a cooperação Sul-Sul da ajuda para o
desenvolvimento “tradicional” – dos Estados Unidos e o resto do norte global.
37 Há, além dessas considerações hemisféricas, toda uma retórica especialmente dedicada
a relações Sul-Sul particulares. No caso do continente africano, ela tem se centrado em
noções de afinidade, semelhança, compartilhamento e parentesco (Cabral et al., 2013).
Como argumentei anteriormente (Cesarino, 2012c), esse idioma baseia-se numa
“gramática culturalista” (Saraiva, 1996) bem difundida no Brasil, que encontra forma
paradigmática na obra de um dos mais bem sucedidos ideólogos da nacionalidade
brasileira (e do colonialismo português), Gilberto Freyre. Do ponto de vista
antropológico, a ênfase excepcional do discurso do Itamaraty no domínio da cultura,
bem como sua tenacidade ao longo de mais de meio século mesmo diante dos ataques e
deslocamentos sofridos em especial nos últimos anos (D’Ávila, 2011), estão entre os
pontos mais intrigantes da cooperação brasileira com a África. Dentro do escopo deste
artigo, cabe destacar o papel que esse discurso tem desempenhado na construção de um
contexto para as relações emergentes entre brasileiros e africanos.
38 No caso dos países que vêm sendo trazidos para o campo relacional da cooperação
brasileira através de iniciativas recentes como o Cecat ou o Projeto C-4, um dos
principais efeitos pretendidos do idioma das afinidades culturais parece ser traçar
conexões simbólicas com regiões que muitas vezes contam com poucas experiências de
fato compartilhadas com o Brasil. Assim, a “africanidade” do Brasil – entendida, a partir
do tour de force magistral de Freyre, como descolada do domínio biológico da raça e
constitutiva do caráter nacional brasileiro enquanto cultura (Cesarino, 2012c) – é
estendida à África como um todo, ainda que baseada numa amostra circunscrita de
africanos efetivamente deslocados pelo tráfico de escravos. Isso vem, ainda, suprir uma

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lacuna de conhecimento produzido no Brasil sobre as realidades africanas,


especialmente fora do eixo lusófono.
39 Esse truque metonímico de tomar parte pelo todo, que implica uma homogeneização de
ambos os lados da relação (África e Brasil) em termos de uma escala comum como a
“cultura africana”, não é privilégio da cooperação brasileira. Os indianos, por exemplo,
têm se valido de um idioma muito similar de proximidade cultural e geográfica, porém
partindo do outro lado (leste) do continente africano. Além disso, como venho
argumentando (Cesarino, 2012c), há aqui uma ressonância clara com mecanismos
discursivos mais gerais, como o orientalismo descrito por Edward Said (2008). Mas
nesse caso, as visões sobre o Outro baseiam-se menos em experiências de
expansionismo imperialista (tal qual o empire-building britânico, francês e
estadunidense abordado por Said) do que em preocupações próprias a processos de
construção da nação (ou, sob outro ponto de vista, de colonialismo interno). No caso
das relações Brasil-África, esse “orientalismo de nation-building”, tão centrado no
domínio da cultura e em noções romantizadas de afinidade, reflete experiências e
preocupações domésticas historicamente ligadas aos processos de integração dos
afrodescendentes no corpo político brasileiro. No caso de Freyre (2003), como
explicitado por ele próprio no conhecido prefácio original ao Casa-grande e senzala, em
1933, a ênfase na cultura havia sido sua resposta, alegadamente inspirada em Franz
Boas, ao dilema civilizatório colocado pelas teorias biológicas de degenerescência racial
em voga no Brasil no início do século XX. E assim como, no Brasil, os afrodescendentes
têm sido hegemonicamente vistos como especialmente bem integrados no plano
cultural (em domínios como esportes, música, comida, roupas, linguagem, religião, ou,
de modo mais frouxo, através de um certo “jeito” de ser brasileiro) porém permanecem
largamente subalternizados em domínios mais “duros” (economia, política, etc.), as
afinidades entre Brasil e África também são explicitadas pelo discurso oficial
primariamente em termos de cultura (e como se verá na próxima seção, do domínio não
social da natureza).
40 Mas assim como no orientalismo clássico, noções que são centrais no plano do discurso
nem sempre encontram respaldo na prática; o caso da cooperação brasileira com a
África não é diferente. Nos casos que observei, o interesse dos diplomatas nas supostas
afinidades culturais entre Brasil e África só encontrava equivalente no desinteresse por
questões de cultura (e sua outra face, raça) entre os brasileiros e africanos atuando na
linha de frente da cooperação. Entre os primeiros, por exemplo, eu vi muito pouco dos
dois extremos de romantização por um lado, e racismo por outro. Mais comuns eram
considerações práticas envolvendo recursos, tecnologia ou conhecimento técnico para
as quais os elementos discursivamente atribuídos ao domínio da cultura costumavam
ter pouca relevância.
41 Nesses outros domínios, tendia a prevalecer menos uma relação horizontal (Sul-Sul)
direta do que a ampla mediação de redes hegemônicas, compostas historicamente sob a
égide do norte global. No caso do Projeto C-4, por exemplo, a própria parceria entre o
Brasil e os quatro países oeste-africanos emergiu a partir de negociações globais de
comércio no âmbito da OMC; a transferência e gestão de recursos passava pelo PNUD e
outras redes internacionais; o tipo de conhecimento, técnicas e artefatos empregados
na adaptação das tecnologias brasileiras em solo africano encontrava chão comum na
Revolução Verde e em projetos de desenvolvimento anteriores encabeçados por
doadores do Norte ou organizações globais como a FAO; o germoplasma (material

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genético) que viajava através do Atlântico Sul não raro tinha ancestralidade comum em
plantas melhoradas nos Estados Unidos ou nos institutos coloniais europeus. Essa
preeminência de domínios sociais “moles” como a cultura no discurso sobre as relações
entre Brasil e África guarda afinidades com certas interpretações acadêmicas canônicas
sobre a diáspora africana, como o Atlântico Negro de Paul Gilroy (2002). Mas a
observação da prática sugere que ela reflete movimentos históricos mais gerais, através
dos quais ambas as regiões foram periferalizadas durante a emergência hegemônica do
Ocidente e sua dominância em dimensões como economia (industrial-capitalista),
instituições políticas (liberal-democráticas) e conhecimento (técnico-científico).
42 Os esforços de produção de contexto nas diversas interfaces emergentes promovidas
pela recente intensificação da cooperação Sul-Sul lembram assim o quadro delineado
por Strathern para outros fenômenos como a própria antropologia (Strathern, 1991).
Mas nesse caso, como indiquei aqui e explorei mais a fundo noutra ocasião (Cesarino,
2012c), as ambivalências e contradições que permeiam as múltiplas escalas através das
quais se desenrolam as relações (Norte-)Sul-Sul pedem uma articulação com outras
literaturas, mais sensíveis à densidade histórica particular das relações entre (e dentro
de) diferentes partes do sul global, como estudos históricos (por exemplo, D’Ávila, 2011;
Mamdani, 1996; Saraiva, 1996) ou engajamentos com as diferentes interações da
questão pós-colonial, inclusive internamente aos próprios Estados pós-coloniais (por
exemplo, Santos, 2002; Silva, 2013). A próxima seção introduzirá algumas indicações
nesse sentido, em termos de certos processos de colonialismo interno ligados à
expansão agrícola no Brasil.
 
Demonstrando o desenvolvimento: a agricultura do
cerrado
43 Na última década, a Embrapa tem sido a “face” mais visível da cooperação brasileira,
em África e alhures (Cabral et al., 2013). Suas ações têm variado desde pequenos
projetos de capacitação e pesquisa colaborativa até grandes projetos de transferência
de tecnologia chamados “estruturantes”. Em todos os casos, mas principalmente nos
treinamentos realizados no Cecat em Brasília, tais atividades têm incluído de modo
central uma demonstração situada da experiência de desenvolvimento agrícola do país.
Essas demonstrações são, antes de tudo, um convite aos parceiros africanos para que se
engajem em, e continuem estendendo, os esforços de produção de contexto para as
relações emergentes com seus colegas brasileiros, diferenciando-as segundo seus
próprios interesses e assim as tornando – espera-se – mais robustas.
44 Nessas demonstrações, normalmente conduzidas no formato de palestras e workshops,
os funcionários da Embrapa e seus convidados (burocratas do governo, professores,
pesquisadores e produtores rurais de organizações variadas, geralmente ligadas ao
setor público) privilegiavam menos as dimensões da cultura e história social do que
outras, relativas ao desenvolvimento agrícola entendido em termos tecnológicos,
econômicos, demográficos e de políticas públicas. Nelas, a multiplicidade da agricultura
brasileira tendia a ser contextualizada em termos de duas escalas: uma temporal, ligada
à noção de desenvolvimento nacional, e outra espacial, ligada à região do cerrado.
Ambas eram fundidas na ideia-chave do setor agrícola enquanto “motor do
desenvolvimento nacional”.

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45 Aqui, também, o idioma privilegiado era o das afinidades e paralelismos, num esforço
de aproximar os contextos agrícolas africano e brasileiro através de analogias seletivas.
No primeiro plano estavam paralelismos geológicos e edafoclimáticos com a zona
subsaariana. O tempo e o espaço nos dois lados do Atlântico Sul eram colapsados num
distante passado geológico comum, quando o oeste africano e a costa brasileira
encontravam-se ainda unidos. Essa contiguidade era apresentada, ainda, em termos do
fato de a maior parte das duas regiões se situar hoje dentro da zona tropical,
configurando afinidades em termos de solo, clima, vegetação, ou padrão de chuvas.
Essas semelhanças ambientais eram frequentemente colocadas como fatores
facilitadores da transferência de tecnologia entre as duas regiões – uma vantagem
comparativa da cooperação brasileira com relação aos doadores do norte global, e a
outros doadores emergentes como a Rússia ou a China.
46 Embora o Brasil e partes do continente africano de fato tenham diversos biomas
similares, nas demonstrações a ênfase era quase inteiramente posta nas savanas
tropicais. A razão é evidente: foi no cerrado, a savana brasileira, que se deu o grande
impulso no setor agrícola nos últimos 40 anos. Essa narrativa permitia, entre outras
coisas, destacar o protagonismo da própria Embrapa no processo que “transformou o
maior ‘passivo’ brasileiro, o cerrado, no nosso maior ‘ativo’” (Netto, 2012). Durante
muito tempo considerado ambiente inóspito para a agricultura de alta produtividade
devido à pobreza de seus solos, o cerrado foi transformado pela pesquisa agrícola no
“celeiro do mundo”. Se nos treinamentos no Projeto C-4 esse protagonismo aparecia na
forma de tecnologias específicas como o plantio direto ou cultivares melhoradas, nas
exposições no Cecat o papel da Embrapa era colocado em termos macro, articulado com
outros domínios evocados como concorrendo para a história de sucesso da agricultura
brasileira.
47 Os domínios não tecnológicos destacados nesses treinamentos incluíam, por um lado,
políticas públicas de crédito, seguro rural, apoio ao cooperativismo e outras, descritas
em termos de um binarismo recorrente entre agronegócio e agricultura familiar.
Encastelado institucionalmente nos dois ministérios brasileiros dedicados ao setor
agrícola,9 esse par aparecia não em termos de oposição ou conflito, mas de uma
complementaridade harmônica. Era comum, por exemplo, apresentar a agricultura
familiar e camponesa enquanto parte da agricultura comercial, ou minimizar a
severidade da questão agrária no país através do argumento de que a pressão pela terra
já teria, a essa altura, praticamente subsistido no país.
48 Finalmente, o terceiro vetor do desenvolvimento agrícola brasileiro exposto pelos
cooperantes remetia ao protagonismo dos produtores “gaúchos”. Esse grupo era
destacado pelo seu pioneirismo e espírito de fronteira, concebida em termos tanto
territoriais quanto tecnológicos. Nesse empreendedorismo excepcional estaria o papel
fundamental do setor privado; sem a disposição dos gaúchos para desbravar o cerrado e
transformá-lo em terra produtiva através da ampla adoção dos desenvolvimentos
técnicos produzidos, entre outros, pela Embrapa, de nada adiantaria o aporte estatal de
políticas públicas ou tecnologias. Nessas narrativas, o outro lado da moeda
populacional permanecia completamente eclipsado – ou seja, o que foi feito daqueles
que ocupavam a região do cerrado antes da colonização agrícola inaugurada na Marcha
para o Oeste durante o primeiro governo Vargas, e consolidada durante o regime
militar nos anos 1970.

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49 Esses três eixos narrativos principais (tecnológico, de políticas públicas e demográfico),


assim como a própria ideia-chave da agricultura enquanto motor do desenvolvimento
nacional, representam uma certa visão sobre a agricultura brasileira. Assim como o
Itamaraty e sua ênfase no domínio da cultura, essa perspectiva, talvez dominante mas
decerto não a única dentro da Embrapa, encontra afinidades com o discurso de certos
grupos de interesse domésticos, dominantes junto ao Ministério da Agricultura. A
insistência na centralidade da agricultura como motor do desenvolvimento, por
exemplo, tem sido parte fundamental da influência dos chamados ruralistas junto a
sucessivos governos, bem como da autoapresentação da própria Embrapa junto ao
Estado e à sociedade brasileiros. Já o eclipsamento da questão demográfica, que
envolveu historicamente o deslocamento de populações autóctones e outras para fora
das faixas de colonização agrícola no cerrado (cujo evento paradigmático foi a criação
do Parque do Xingu em 1961), revela uma invisibilidade seletiva mais geral ligada à
questão indígena no Brasil, mas também pode estar ligada à precariedade
especialmente aguda dessa analogia no caso do continente africano.
50 De fato, assim como no caso do discurso sobre as afinidades culturais descrito acima,
essa seletividade na produção de contexto para as relações Brasil-África ligava-se
fundamentalmente a processos domésticos, e muitas vezes produzia disjunções
significativas quando dirigidas aos parceiros africanos. A ênfase na agricultura como
motor do desenvolvimento nacional, por exemplo, caía no vazio para muitos deles, para
quem um setor agrícola forte era uma expectativa não amadurecida historicamente. O
mesmo pode ser dito da suposição de um Estado forte, comprometido com o setor
agrícola através de políticas de apoio à produção e pesquisa – em grande parte da
África, a onda neoliberal que varreu o continente nos anos 1980 e 1990 desmantelou um
já frágil sistema de subsídios e proteções às atividades agrícolas nacionais (Moyo, 2008).
Mas é a questão fundiária-populacional que talvez se mostre mais problemática numa
região cujos processos de colonialismo interno diferem significativamente do brasileiro
(Mamdani, 1996): em praticamente nenhum lugar da África é possível, hoje, realizar um
deslocamento populacional planejado na escala ocorrida no cerrado brasileiro ao longo
do século XX.
51 Essas e outras disjunções, que têm vindo à tona no caso de alguns projetos de maior
escala como o Pró-Savana em Moçambique,10 nem sempre eram explicitadas durante os
treinamentos propriamente ditos. Mas isso não parecia fazer muita diferença na
prática: especialmente no caso do Cecat, mais do que efetivamente transferir
conhecimento técnico e tecnologias, o propósito principal dessas iniciativas era
relacional: ou seja, apresentar-se a, e assim buscar engajar, os parceiros africanos,
construindo gradualmente um contexto para relações que tinham, até então, poucos
precedentes. A responsividade destes últimos ao convite dos colegas brasileiros variava
muito, mas em todos os casos a continuidade da relação sendo composta passava a
depender de canais outros que os próprios treinamentos: oportunidades de estudo no
Brasil, pesquisa conjunta com funcionários da Embrapa e alhures, participação em
outros projetos de maior fôlego. Esse modo de engajamento da cooperação brasileira,
pouco intervencionista e largamente dependente do interesse e compromisso dos
parceiros do sul global, parece ainda não ter mostrado efeitos claros, mesmo no caso
dos projetos de maior escala. Aqui, portanto, a etnografia deve acompanhar a
temporalidade emergente do próprio campo – e assim deve fazer também a teoria: daí,

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a meu ver, a produtividade do instrumental stratherniano para o estudo da cooperação


Sul-Sul em sua faceta contemporânea.
 
Considerações conclusivas: situando escalas entre
campo e gabinete
52 Este estudo abordou algumas das práticas de conhecimento da cooperação brasileira
não enquanto avaliações ingênuas, equivocadas ou produtoras de mitos (Sá e Silva,
2009; Saraiva, 1996), mas como agências no próprio esforço de fazer contextos, acionar
escalas, e tecer relações com os novos parceiros do sul global. Longe de ser um olhar
externo nos moldes do “truque de deus” harawayano, a escrita etnográfica é, em si,
uma dessas agências, e como tal responde a demandas que vêm não apenas na academia
mas do próprio campo. Aqui e em outras ocasiões (por exemplo, Cesarino, 2013), minha
escrita o fez em vários sentidos. Num sentido negativo, como é comum no estudo da
cooperação de modo geral (Cesarino, 2012a), foi preciso empregar estratégias
narrativas para omitir ou diluir certas informações sensíveis, assim como as
identidades de alguns sujeitos (não humanos incluídos, como no caso de cultivares
protegidas). Num sentido mais positivo, as relações com o campo forçaram uma
extensão da análise em certas direções, por exemplo, no sentido de ocupar certos
“vácuos” de conhecimento abertos pelos próprios esforços de produção de contexto
entretidos pelos meus interlocutores de campo. Esses espaços apareceram,
notadamente, onde o discurso e as demonstrações da cooperação brasileira entravam
em disjunção com outros aspectos da sua prática na linha de frente dos projetos, com as
diferentes respostas dos parceiros africanos, ou com as descrições encontradas na
literatura africanista ou histórica. Nesse caso, o bem conhecido “retorno” que o
etnógrafo deve aos seus informantes pelo material utilizado na pesquisa vem sendo
dado não separadamente, mas dentro da própria escrita.
53 Mas talvez de modo mais fundamental, a composição entre campo e gabinete se deu no
sentido de influenciar a própria escolha do instrumental (meta)teórico que embasou a
escrita etnográfica. Normalmente, supõe-se, as teorias que orientam a composição do
material recolhido em campo no formato de uma etnografia seguem demandas que vêm
da academia: congressos científicos, bancas examinadoras, editores e pareceristas de
periódicos, agências financiadoras, agências avaliadoras, futuros empregadores. No
meu caso, optei por um instrumental que respondesse também a expectativas e
preocupações encontradas entre meus interlocutores de campo, em especial seus
esforços no sentido de fazer contextos e tecer relações robustas entre os dois lados do
Atlântico Sul. Isso levou, por exemplo, à necessidade de provincializar certas correntes
dominantes na antropologia do desenvolvimento como a governamentalidade
foucaultiana (Cesarino, 2012b), em favor de uma abordagem que permitisse maior
abertura a interações diferenciantes com o próprio campo e com outras literaturas
como a pós-colonial.
54 A opção por essa abordagem, se emana das condições particulares nas quais realizei
minha pesquisa, também tem, acredito, repercussões éticas e epistemológicas mais
gerais para a academia. Em muitos casos, a escrita etnográfica (por exemplo, em artigos
como este) pode tornar-se um mediador importante entre as redes estabelecidas pelo
etnógrafo no campo e no gabinete. Isso continua sendo verdadeiro ainda que o
posicionamento do antropólogo nessas redes não seja explicitado no texto. O etnógrafo

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nunca está imune de ser eventualmente chamado, por seus interlocutores de campo, a
realizar tal explicitação, especialmente quando os artefatos compostos na academia
acabam voltando ao campo: foi o caso, por exemplo, de acaloradas controvérsias como a
que instigou as reflexões de David Mosse (2006) sobre as relações entre field e desk, ou as
famosas “guerras das ciências” nas quais esteve envolvido, entre outros, Bruno Latour
(2001) (cf. também Strathern, no prelo). Por essas e outras razões, entendo que vale a
pena acolher, e experimentar com, o convite que vem sendo feito por Strathern e
outros para abordar reflexivamente o modo como escalas e contextos são acionados no
fazer etnográfico e na escrita antropológica – com efeito, de aproximar essas duas faces
do ofício do antropólogo que são, em última instância, a mesma.

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NOTAS
1. Anos antes de Malinowski protagonizar a celebrada cena de abertura do Argonautas nas praias
das ilhas Trobriand, pioneiros da disciplina no Reino Unido como Haddon e Rivers haviam
ensaiado um trabalho de campo de outro tipo no estreito de Torres: baseado em métodos de
história natural, foi realizado em inglês pidgin, por uma equipe interdisciplinar de cientistas
sociais e naturais, que se deslocou entre diferentes localidades (Stocking, 1983).
2. Essa dicotomia tem sido notada e discutida de diferentes formas por vários antropólogos (por
exemplo, Escobar, 1991; Li, 2007). Em linhas gerais, a antropologia aplicada (ou, nos termos de
Escobar, development anthropology), praticada por antropólogos que trabalham dentro das
próprias organizações de cooperação, busca encontrar modos de melhorar suas práticas.
Antropólogos da linha crítica (ou anthropologists of development) abordam a cooperação
internacional através de um olhar crítico e exterior, com pouca empatia e interesse pela
melhoria, ou mesmo a própria existência, das práticas observadas durante o trabalho de campo.
3. Cf., por exemplo, o primeiro painel sobre emerging donors na Associação Americana de
Antropologia, que só ocorreu em 2012. No Brasil, o estudo de Silva (2013) abordou o país
enquanto um doador entre outros no Timor Leste.
4. O primeiro relatório oficial sobre a cooperação Sul-Sul brasileira traz uma extensa lista dessas
instituições, majoritariamente públicas e federais (Ipea; ABC, 2010).
5. O programa é parceiro em grande parte dos projetos da ABC, e vários funcionários desta última
também são contratados como consultores via PNUD (cf. Cabral; Weinstock, 2010).
6. É o caso, por exemplo, do projeto Pró-Savana em Moçambique, o maior na modalidade
“estruturante” em andamento na África.

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7. Trata-se de países pobres, de ex-colonização francesa, alta população muçulmana, próximos à


faixa saheliana, sem acesso à costa, com um grande campesinato rural, sem um mercado privado
de terras ou de insumos agrícolas significativo.
8. Por exemplo, o “G-77 mais China” (UNCTAD, 2010, p. 8).
9. Refiro-me aqui ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e ao Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA).
10. Em 2012, por exemplo, associações moçambicanas de agricultores camponeses se
posicionaram firmemente contra o projeto nipônico-brasileiro, categorizando-o como
“açambarcamento de terras” (land grabbing).

RESUMOS
Como a antropologia pode abordar fenômenos transnacionais, dado que seu método e o tipo de
conhecimento construído a partir dele foram originalmente estruturados com base no estudo de
pequenas comunidades locais? O artigo tratará do trânsito entre escalas micro e macro a partir
de uma das vertentes (meta)teóricas que tem sido propostas desde a “virada interpretativa” nos
anos 1980, inspirada na obra de Marilyn Strathern. Essa perspectiva, baseada no primado da
relacionalidade e da reflexividade entre as duas faces do ofício do antropólogo (trabalho de
campo e escrita etnográfica), aborda operações de produção de conhecimento rotineiramente
empregadas tanto pelos antropólogos quanto por seus “nativos”, envolvendo o acionamento de
escalas, contextos, domínios e analogias. O artigo buscará operacionalizar esse instrumental
analítico no caso da cooperação Sul-Sul brasileira com o continente africano, entendida enquanto
composição (assemblage) emergente marcada por esforços de produção de contexto e busca de
robustez relacional.

How can anthropology approach transnational phenomena given that its method, and the kind of
knowledge built through it, were originally based on the study of small local communities? This
article tackles the traffic between micro and macro scales from the perspective of one of the
(meta)theoretical proposals that have been put forth since the postmodern turn, inspired by the
work of Marilyn Strathern. Based on the primacy of relationality and reflexivity across the two
facets of the anthropological profession (fieldwork and ethnographic writing), this perspective
adresses knowledge production operations routinely deployed by both anthropologists and their
“natives”: scaling, context-making, domaining, and analogy-making. The paper puts this
analytics to work through the empirical case of Brazil’s South-South cooperation with the
African continent, understood as an emerging assemblage marked by context-making efforts and
a quest for relational robustness.

ÍNDICE
Keywords: Africa, Brazil, multisited anthropology, South-South cooperation
Palavras-chave: África, antropologia multissituada, Brasil, cooperação Sul-Sul

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AUTOR
LETÍCIA CESARINO
Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil

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Culturas morais e políticas de


desenvolvimento na Noruega e na
União Europeia
Maria Macedo Barroso e Natacha Nicaise

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 30/08/2013
Aprovado em: 19/12/2013

NOTA DO AUTOR
Este artigo se baseia em duas teses e doutorado defendidas no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de
Janeiro: Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a
cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas (Barroso Hoffmann, 2008) e A
construção europeia e os “países em desenvolvimento”. Políticas de comunicação, generosidade e
identidade(s) (Nicaise, 2007).

1 No decorrer de um evento público em 2006, o comissário do Desenvolvimento e Ajuda


Humanitária da União Europeia pronunciou um discurso sobre “A política de
desenvolvimento europeia”. O evento aconteceu numa época em que a localização da
Direção-Geral do Desenvolvimento (DG Dev) estava em discussão dentro das instituições
europeias. A DG Dev sempre se situou longe do “bairro europeu” em Bruxelas, onde
estão sediadas as principais instituições da burocracia europeia (Shore, 2000). Mas uma
mudança estava a caminho, se debatia a respeito da incorporação “física” ou
aproximação geográfica da DG Dev da “Família Relex”, o conjunto de instituições que
tratava das políticas de relações exteriores da UE.1 Essa mudança refletia um debate
mais geral sobre a razão de ser da política de desenvolvimento da UE, algo que se

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repetia ciclicamente desde o processo de unificação, iniciado em 1957. No começo dos


anos 2000 questionava-se a sua autonomia no contexto de um processo de suposta
“harmonização” progressiva das políticas exteriores, econômicas e comerciais, no qual
se discutia a natureza das suas relações com outras políticas nacionais e internacionais.
Algumas passagens do breve discurso do comissário iluminam os sentidos sociais de
categorias como generosidade e altruísmo no universo do desenvolvimento, elementos-
chave das “culturas morais” que procuraremos analisar neste artigo:
Eu não sou um cínico. Mas também não sou um ingênuo. Há anos, nossa “boa
consciência” nos impede de pensar o desenvolvimento em termos econômicos.
Resultado: assistimos a uma escalada de poder da China e do Japão, da Rússia e dos
Estados Unidos no ramo do acesso aos mercados africanos. Apesar de nossa posição
de líder, não conseguimos valorizar melhor a política europeia de desenvolvimento
e obter a influência ou o beneficio que seria de se esperar. […]
2 Para concluir, o comissário declarou:
A política de desenvolvimento é também uma das mais belas expressões da União
Europeia, porque ela traduz concretamente nosso fundo de valores comuns: a
solidariedade, o respeito da dignidade humana, a igualdade, a tolerância, a
liberdade de opinião e de expressão, a fé no homem e nos seus recursos para
construir um futuro melhor. […] O desenvolvimento carrega sua própria finalidade.
Um dever elementar de humanidade e de generosidade deve continuar sendo o
principal motor de nossa ação. (Michel, 2006, tradução nossa).
3 A integração da política de desenvolvimento da DG Dev da UE dentro do âmbito da DG
Relações Exteriores (ou seja: a sua subordinação a macropolíticas econômicas,
comerciais e geoestratégicas) ilustra como a política de desenvolvimento teria se
tornado um “acessório diplomático”, e não mais a expressão do seu mandato original:
transformar em políticas o valor “europeu” da “generosidade”. Os extratos do discurso
do comissário do Desenvolvimento também mostram alguns elementos do universo
moral da cosmologia global do desenvolvimento (no sentido de Dumont, 1992), que não
deixa de conviver com lógicas econômicas variadas. Como mostrado em outro lugar
(Nicaise, 2009, 2012), essa associação entre generosidade e política de desenvolvimento
europeia ocorreu no contexto de reformulação das relações coloniais no imediato pós-
Segunda Guerra Mundial, como veremos ao longo do texto, tendo como atores
principais algumas ex metrópoles, notadamente a França.
4 No outro caso que iremos trabalhar neste artigo, o da cooperação internacional
norueguesa, pretendemos mostrar que esses repertórios morais não se associam apenas
às políticas dos Estados, mas emergem também nos discursos de atores não
governamentais que absorvem hoje uma parcela significativa dos recursos da
cooperação. É o universo desses atores que a análise do caso da Noruega permitirá
iluminar. País europeu sem passado colonial e que não faz parte da UE (recusou-se a
entrar após dois referendos, em 1972 e 1994), evidencia-se nele a pluralidade de valores
morais que o universo da cooperação internacional mobiliza não só no quadro das
burocracias estatais e internacionais, mas também no de grupos sociais específicos,
obedecendo a lógicas diversas.
5 Um exemplo dessa pluralidade na Noruega pode ser visto na grande campanha anual de
arrecadação de fundos para os países em desenvolvimento promovida pela TV estatal, a
NRK innsamlingsaksjoner.2 Conduzida por milhares de voluntários de todas as idades que
dedicam uma dia anualmente para conversar de porta em porta com as pessoas com o
objetivo de levantar recursos, a campanha elege a cada ano uma organização diferente

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como beneficiária. A lista dos contemplados desde que instituída, em 1974, indica
diversas organizações humanitárias, religiosas e sindicais, entre outras. Esse tipo de
campanha, recorrente na vida dos noruegueses, permite entrever a pluralidade de
atores, causas e motivações envolvidas que compõem, do lado dos doadores, o campo
não governamental da cooperação.
6 A partir desses exemplos, podemos verificar que se, por um lado, o desenvolvimento
convive com argumentos morais relacionados à “ajuda” e ao “desinteresse”, colocando
a “doação” (ou a “transferência” de recursos) como um ato de generosidade, seja por
parte do Estado, seja por parte de doadores individuais ou de associações, ele também
está marcado por ações “interessadas”. Antigas polêmicas relacionadas às políticas de
desenvolvimento desde sua invenção no pós-guerra (Cooper; Packard, 1997; Escobar,
1995) permitem perceber isso. Apesar dos debates sobre motivações “altruístas” e
“generosas” versus “interesses” terem assumido feições particulares em cada contexto
nacional e em diversas épocas, o que nos parece estar no centro dessas discussões é
uma das características estruturantes das políticas de desenvolvimento: a coabitação de
práticas de dom (Mauss, 2003), isto é, supostamente voluntárias e não coercitivas,
obedecendo a laços de afinidade e amizade desinteressada, com uma lógica explícita ou
não de trocas interessadas (na maioria das vezes assimétricas ou desiguais) no plano da
economia e da geopolítica. Essa coabitação de “mundos hostis” (Zelizer, 2005), de
esferas que são consideradas como devendo manter-se separadas – de um lado a esfera
dos sentimentos e da generosidade; do outro lado, o cálculo e os interesses econômicos
– produz uma “contaminação moral” (Zelizer, 2005), constitutiva das políticas de
desenvolvimento, e que se manifesta de maneira singular nos vários contextos
nacionais, históricos e sociais nos quais foram elaboradas.
7 Este artigo adota uma perspectiva comparativa voluntariamente assimétrica, pois cada
estudo de caso é baseado em um conjunto de materiais empíricos referidos a diferentes
escalas sociais. O diálogo entre essa heterogeneidade de dados e de perspectivas
permite mostrar ângulos de análise que, justamente, esclarecem (e permitem navegar
entre) escalas de processos sociais, revelando dimensões dos casos apresentados e
multiplicando as possibilidades de comparações para analisar aspectos dessas “culturas
morais” que se manifestam através de categorias como altruísmo, generosidade e
solidariedade nas políticas de desenvolvimento. Essas categorias, dentro de múltiplas
outras que remetem aos sentidos de “doação” e de “ajuda”, formam o que chamamos
aqui de “culturas morais” do desenvolvimento, entendendo o termo “cultura”
enquanto um conjunto de referenciais que permitem aos indivíduos, grupos, coletivos,
pensar e agir no mundo social, como mostraremos ao longo do artigo.
8 Os princípios morais que subjazem a categorias como as de altruísmo, generosidade e
solidariedade estão presentes em todas as escalas analisadas: na vida pública e política
são sistematicamente acionados (ou questionados) quanto se trata de políticas de
desenvolvimento, na legitimação de organizações de todo tipo e grandeza e nas
motivações das pessoas que se dedicam a esse tipo de carreira. A genealogia dessas
categorias permite ver como foram construídas e continuam sendo transmitidas ainda
hoje; a historicidade dos sentidos mostra também a longevidade dos efeitos sociais que
elas têm, apesar das mudanças geopolíticas que ocorreram desde o pós-guerra, o que
leva à impossibilidade de colocar o desenvolvimento unicamente em termos políticos,
econômicos ou burocráticos, mas nos obriga a vê-lo também em termos de saberes,

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valores, sentimentos, imagens, ideias e ideais, e de seus profissionais e carreiras, onde


referências e valores morais são onipresentes.
9 Nosso objetivo é mostrar que para compreender a lógica dessas culturas morais que
constituem e legitimam as políticas de desenvolvimento é preciso compreender a
gênese e alguns dos sentidos dos instrumentos político-administrativos e simbólicos
que têm permitido a atuação dos modernos Estados-nações para além das suas
fronteiras nacionais, com objetivo de promover o “desenvolvimento” das nações
consideradas mais pobres do planeta. Ao mesmo tempo, argumentamos que a
perspectiva comparativa mostra como na compreensão dessas culturas morais elas
devem ser observadas considerando ao mesmo tempo várias escalas de agentes: Estados
nacionais (Noruega) ou supranacionais (a UE), instituições internacionais, as próprias
políticas e, também, é claro, as pessoas que, fazendo parte desse universo no qual se
constroem os sentidos sociais do desenvolvimento, produzem essas políticas. Assim,
trabalharemos em três planos. No plano das pessoas, observaremos as motivações, as
vocações e as histórias de vida de alguns “profissionais do desenvolvimento” da UE,
bem como as razões da adesão da opinião pública às ações de cooperação internacional.
No plano das instituições, abordaremos os modelos político-administrativos utilizados
pela burocracia do desenvolvimento nos dois casos e as lógicas dos diferentes grupos
organizados para disputar seus recursos na Noruega. E, por fim, consideramos também,
nos dois casos, a lógica das políticas nacionais e internacionais sob as quais são
negociadas as intervenções de cooperação internacional (sejam elas bilaterais ou
multilaterais).
10 A adesão da Noruega ao aparato do desenvolvimento no início da década de 1950 foi
marcada pela possibilidade de construir uma identidade nacional vinculada aos países
hegemônicos do bloco capitalista no pós-guerra, deixando para trás uma posição
marginal e periférica no cenário europeu. A criação da primeira política de
desenvolvimento europeu, a “política de associação”, promovida entre 1957 e 1963 pelo
grupo de países que constituiu a Comunidade Econômica Europeia (CEE), por sua vez,
esteve ligada a um processo que se aprofundaria nas décadas seguintes: o de criação de
uma burocracia e de uma identidade transnacional europeia, que buscou estabelecer
pontos comuns entre seus diferentes membros com o objetivo de fomentar a paz no
continente depois de décadas de guerras, promovendo a unificação comercial e política.
11 Nesse sentido, inúmeras especificidades se delineiam nos dois casos em função, antes de
mais nada, dos diferenciais quanto à posição ocupada pelos países envolvidos no
cenário da descolonização. À Noruega, sem passado colonialista, interessada em
penetrar em um mundo de relações econômicas e comerciais do qual estivera até então
excluída pela partilha do mundo entre as potências imperialistas, iremos contrapor
uma associação de países europeus, sob a liderança da França, que impôs a política de
desenvolvimento europeia para converter seus aparelhos de administração colonial,
atualizando, sob novas roupagens político-administrativas, as relações com os países de
“ultramar” (naquela época, basicamente as colônias da África francófona que estavam
em vias de se independentizar).
12 O caso europeu permite mostrar como foram ressignificadas as “relações privilegiadas”
que alguns dos países da CEE tinham com regiões e populações da África por meio de
uma narrativa que acentuava a generosidade. Os primeiros relatórios anuais da
Comissão Europeia (1957-1963) mostram a elaboração e a evolução dessa narrativa, a
eufemização das relações coloniais e a tentativa de reinvenção de relações múltiplas e

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distintas do colonialismo. Esse verdadeiro trabalho de reinvenção foi vivido como a


realização de uma vocação (Weber, 2006) pela primeira geração de funcionários da
política de desenvolvimento, intensamente engajados com a causa do “Terceiro
Mundo”, e querendo contribuir para “virar a página do colonialismo” e “recomeçar
uma nova história”.
13 Observar, nas diversas escalas dos processos sociais estudados aqui, a conturbada vida
social dessa “nova história”, escrita em termos de desenvolvimento, de modernização,
de altruísmo ou de generosidade permite compreender também como se moldam
estruturas cognitivas duráveis para pensar e viver o mundo social. Como evidencia
Ferguson (1999), o mito da modernização (e as leituras do seu colapso, no mundo
acadêmico, mas também no dia a dia dos “profissionais do desenvolvimento”), como
qualquer mito, permite tornar o mundo inteligível, oferece categorias e premissas que
modelam as experiências das pessoas e as interpretações que elas próprias dão às suas
vidas. Nos parece que tanto as múltiplas e complexas visões do “desenvolvimento”
ligadas ao imperativo moral de “ajudar outros” quanto as visões que questionam estas
categorias devem ser levadas a sério, transformadas em objetos de pesquisa para que se
possa compreender a formação e a atuação das várias agentes que compõem o universo
da cooperação internacional, tão fundamental quanto o engajamento dos profissionais,
essas pessoas que se constroem construindo o desenvolvimento.
14 O debate sobre os sentidos e sobre os objetivos das políticas de desenvolvimento invoca
questões fundamentais: do que falam os agentes (as pessoas, os coletivos, as
instituições, as nações, as agências transnacionais) envolvidos nesse universo? Como
esses agentes convivem com os mundos hostis da generosidade e do interesse? Como
transformar os próprios debates sobre a natureza e as finalidades das políticas de
desenvolvimento em objetos de pesquisa?
15 A “ajuda para o desenvolvimento”3 recobre um conjunto de mecanismos que, desde o
final dos anos 1940, tem evoluído e se complexificado de maneiras singulares nos
diferentes contextos nacionais em que foram gestados. O que podemos identificar como
princípios gerais, constantes, são: 1) a cooperação diplomática entre nações,
significando em muitos casos a defesa de interesses geopolíticos específicos; 2) as
múltiplas formas de circulação de dinheiro, bens, serviços e tecnologia; 3) a ideia de
identificar e ajudar segmentos de população, qualificados como “pobres”, “vulneráveis”
e “excluídos”, isto é, grupos-alvo específicos, como mulheres, negros, indígenas,
refugiados, membros de igrejas, etc., fora das próprias fronteiras nacionais; e 4) o uso
da “linguagem do desenvolvimento” como quadro de percepção e de ação de agentes e
de agências de escalas diferentes, embora ele possa estar combinado muitas vezes com
outras linguagens, notadamente aquelas dos direitos (das minorias, ambientais, etc.), da
segurança, da geopolítica e da economia.
16 As ideias que sustentam as instituições burocráticas, as políticas e as trajetórias sociais
das pessoas ligadas ao mundo do desenvolvimento possuem uma história que obriga a
considerar genealogias mais antigas que a do pós-Segunda Guerra. Os seus princípios
podem ser reconhecidos já nos primeiros contatos dos europeus com outras populações
no movimento de descobertas marítimas e de expansão territorial ocorrido a partir do
século XV. No entanto, as políticas de desenvolvimento que emergiram depois da
Segunda Guerra Mundial parecem possuir uma série de singularidades: 1) elas foram
criadas e criaram instituições e mecanismos dotados de uma racionalidade que combina
vários tipos (e motivos) de intervenção que têm outras genealogias além daquelas

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associadas à gestão de territórios e populações por agentes do Estado ou das Igrejas; 4 e


2) elas institucionalizaram uma linguagem suficientemente universal para catalisar e
exprimir diferentes projetos políticos de transformação social, assumidos por uma
variedade de atores, tanto no “Norte” quanto no “Sul”, o que explica inclusive a
formação de comunidades de interesse variadas, para além das fronteiras nacionais,
composta por atores localizados nestes dois polos.5
17 A perspectiva comparativa adotada neste artigo procura oferecer alguns elementos
para uma história sociocultural da “ajuda para o desenvolvimento de outros” que foi
agregando diversos sentidos ao longo do tempo, como o de resolver situações de
emergência, preservar o meio ambiente, defender direitos humanos, promover valores
religiosos, entre outros (Barroso Hoffmann, 2009, 2011), configurando um universo bem
mais complexo do que aquele voltado para a promoção do desenvolvimento econômico
e comercial que inicialmente justificou sua criação. Num outro plano, a comparação
permite iluminar também a construção das marcas centrais dos “outros”, objetos das
políticas de desenvolvimento: as marcas sociais (associadas ao subdesenvolvimento e à
pobreza) e as marcas étnico-raciais, ligadas à invenção do “negro”, no caso da Europa, e
do “índio”, no caso da Noruega, através das relações do povo sami com os movimentos
indígenas no plano internacional.6 No fim do artigo voltaremos a esta última e
importante questão.
 
As políticas de desenvolvimento norueguesas, o
altruísmo e a solidariedade
18 Ainda que os números negassem enfaticamente o “desinteresse” das ações no campo da
cooperação para o desenvolvimento norueguesa, mostrando que boa parte dos recursos
destinados àquelas ações retornavam à Noruega sob a forma de pagamento de salários
de seus experts, de dividendos relativos à transferência de tecnologia ou à venda
simplesmente de produtos e serviços aos países donatários (Eriksen, 1987; Mlama,
1989), a ideia de “altruísmo” e de “fazer o bem” foi um elemento central para legitimar
as ações de desenvolvimento daquele país. Analistas da cooperação norueguesa chegam
mesmo a associá-la à valorização de um “regime de bondade” no país, que seria ao
mesmo tempo um poderoso marcador da identidade norueguesa contemporânea
(Tvedt, 2005).
19 Podemos identificar a gênese desses valores na tradição religiosa pietista, cujo estímulo
às ações práticas voltadas a “fazer o bem” neste mundo como prova de conversão
religiosa foram um elemento central na formação da nação norueguesa no século XIX,
mobilizando um sem-número de pregadores que atravessaram o país criando
“conventículos”, isto é, pequenas agremiações religiosas locais que, segundo alguns
estudiosos, foram as principais responsáveis pela criação e imaginação de um
sentimento de unidade nacional na Noruega (Sørensen, 2001).
20 É possível associar também os sentimentos de “altruísmo” à tradição humanitária, que
remonta à entronização de Fridtjof Nansen, responsável por boa parte das conquistas
polares da Noruega, como herói nacional, à época da consolidação da autonomia
norueguesa frente à Suécia, no início do século XX. Nansen foi um campeão das causas
humanitárias, tendo sido o primeiro diretor do Alto Comissariado para Refugiados da
Liga das Nações, na década de 1920, além de dirigente da Cruz Vermelha, com atuação
decisiva no tratamento dado às populações deslocadas pela Primeira Guerra Mundial,

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muitas das quais tornadas apátridas quando refeito o desenho das fronteiras europeias
após o conflito.
21 O deslocamento do ideário humanitário para fora das fronteiras europeias viria a
ocorrer quando da criação do aparato da cooperação para o desenvolvimento após a
Segunda Guerra Mundial, ao consolidar-se a estruturação de organizações filantrópicas
de origem tanto laica quanto religiosa, que se tornariam com o tempo elementos-chave
no modelo de funcionamento e tomada de decisões da cooperação norueguesa. Com a
experiência adquirida inicialmente junto a populações europeias atingidas pelos dois
conflitos mundiais, essas organizações tornaram-se pouco a pouco verdadeiros experts
em causas humanitárias no “Terceiro Mundo”, tanto daquelas decorrentes de guerras e
conflitos internos nos países da região quanto as decorrentes de catástrofes naturais.
22 A adoção da doutrina do desenvolvimento na Noruega, tal como colocada no Ponto IV
do discurso inaugural do Presidente Harry. S. Truman ao senado americano em 1949,
propondo substituir a “velha exploração imperialista visando o lucro” por conceitos de
negócios “justos e democráticos”, com base em ideais de solidariedade e ajuda,
encontrou assim um terreno fértil naquele país, em que apelos desse tipo encontravam
eco em práticas sociais já existentes, construídas em intervenções de ajuda humanitária
anteriores.
23 Além dessa tradição humanitária, o país contava ainda com um significativo aparato
religioso que também foi incorporado ao universo do desenvolvimento: as organizações
missionárias com experiência de atuação em países africanos e asiáticos desde meados
do século XIX, configurando o único grupo social dentro da Noruega com algum tipo de
conhecimento sobre a realidade de outros continentes.7 Por outro lado, os missionários
haviam sido também um elemento-chave dentro dos mecanismos de “colonialismo
interno” praticados na Noruega sobre a minoria étnica dos sami, localizados na região
ártica do país. Nesse sentido, a percepção da Noruega como um país “sem passado
colonial” deve ser relativizada, reconhecendo-se que muitos dos mecanismos de
subalternização dos sami seriam reproduzidos quando do contato do aparato do
desenvolvimento norueguês com o “Terceiro Mundo”, cujos habitantes também foram
encarados como carentes de valores, condutas e comportamentos que somente os
europeus poderiam suprir adequadamente.
24 A experiência missionária foi percebida como um trunfo precioso no momento de
formalização do aparato do desenvolvimento norueguês, embora sofrendo a oposição
daqueles que consideravam sua participação dentro dele como uma ingerência indevida
de posturas religiosas e civilizadoras em uma instância que deveria ser regida por
valores laicos e de oposição à velha ordem colonial. No contexto da Guerra Fria
instaurado após a Segunda Guerra Mundial, o debate sobre a instalação do aparato
norueguês do desenvolvimento reproduziu assim em grande medida o que ocorria no
plano internacional, fortemente polarizado em torno da defesa dos modelos capitalista
e socialista de desenvolvimento. A opção da Noruega pelo lado capitalista e sua filiação
à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), fez com que prevalecessem nesse
momento inicial de instalação do aparato do desenvolvimento as visões que defendiam
a participação missionária, ainda que se adotando um dispositivo que recomendava a
“neutralidade” religiosa na atuação das missões, como forma de tranquilizar seus
opositores (Dahl, 1986).
25 É interessante observar, assim, como o universo da cooperação para o desenvolvimento
permitiu a junção de perspectivas religiosas, filantrópicas e econômicas, que até então

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não possuíam um vínculo formal. Nesse sentido, o Fundo para a Índia, estabelecido no
início da década de 1950 para financiar um projeto de atividades pesqueiras na
província de Kerala, considerado a primeira ação promovida pelo governo no campo do
desenvolvimento, foi criado a partir de uma intensa campanha de levantamento de
fundos junto à população, que percorreu o país de norte a sul em nome de ideais
humanitários e pedagógicos, marcados pela valorização das habilidades práticas dos
noruegueses oriundas da forte tradição luterana existente no país (Simensen, 2003).
26 A escolha da Índia relacionou-se ao prestígio da figura de Gandhi nos meios políticos
noruegueses, sobretudo pela capacidade daquele líder de fazer dialogar posições
ideológicas antagônicas no cenário da Guerra Fria, algo que também se apresentava
como um problema na Noruega. Além disso, e talvez mais importante do que esse forte
sentido simbólico, o projeto em Kerala se adequava à expertise do país no terreno da
pesca e da construção naval, tornando-se um balão de ensaio para intervenções futuras
e uma ponta de lança da expansão norueguesa para o “Terceiro Mundo” no momento
de reconfiguração da “partilha do mundo” que o final da Segunda Guerra Mundial
instaurou sob a égide da cooperação para o desenvolvimento.
27 A “solidariedade” e o “altruísmo” invocados nesse momento fundador do aparato do
desenvolvimento norueguês implicaram a criação de imagens dos “outros” a quem se
destinariam essas ações, tipificados de várias formas como espelhos invertidos dos
“doadores”, permitindo aos noruegueses a imaginação de si mesmos de um modo novo,
inexistente até então. A imagem que emergiu dessa campanha colocou-os
definitivamente do lado dos países hegemônicos capitalistas, que se atribuiriam
sucessivamente as tarefas de “ajudar”, “assistir” e “cooperar” destinadas aos países
rotulados como “atrasados”, “subdesenvolvidos” e “em desenvolvimento”, dependendo
do período analisado.
28 Aquilo que no contexto dos efeitos da Primeira Guerra Mundial fora visto como uma
tarefa humanitária promovida entre “iguais”, isto é, entre países europeus, passou a ser
visto com um indisfarçável viés de desigualdade no contexto que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial, graças ao efeito produzido pela criação do aparato do
desenvolvimento (instituições, políticas, cursos profissionalizantes, carreiras,
funcionários, vocações, etc.), que instituiu uma divisão clara entre aqueles que podiam
ajudar e aqueles que deviam ser ajudados, a partir de juízos que valoravam uns em
detrimento de outros.
29 A imbricação de motivações e instituições filantrópicas, religiosas, econômicas e
geopolíticas tornar-se-ia ainda mais forte com a institucionalização do aparato da
cooperação norueguesa no início da década de 1960, quando foi criado o Departamento
de Ajuda para o Desenvolvimento, que teve como uma de suas primeiras iniciativas
convocar setores da sociedade, entre os quais organizações missionárias e
humanitárias, para participarem da estrutura do órgão, podendo inclusive receber
recursos do governo para atuarem em ações voltadas ao desenvolvimento. A partir
desse momento, organizações que haviam subsistido exclusivamente até então graças
às contribuições individuais de seus membros e simpatizantes passaram a ser
financiadas em proporção cada vez maior pelo Estado, desde que se comprometessem a
promover projetos de desenvolvimento nos países definidos pelo governo como alvo da
cooperação (Dahl, 1986). Depois da experiência inaugural na Índia na década de 1950, a
cooperação norueguesa ampliou sua atuação na década de 1960 para os países da costa
ocidental da África, como Nigéria, Gana e Costa do Marfim, e, na década de 1970, para o

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sudoeste do continente, atuando no Quênia, Tanzânia, Moçambique, Zâmbia e


Botsuana, além de ter iniciado projetos também na Ásia, no Paquistão, Bangladesh, Sri
Lanka e Índia. Os critérios de escolha dos países parceiros levava em conta aspectos
econômicos e comerciais, bem como interesses geopolíticos, ainda que critérios de
“vulnerabilidade” fossem muitas vezes os mais destacados, havendo a tendência a
escolher os países considerados “mais necessitados”, o que reforçava a associação da
cooperação com os ideais de “fazer o bem”, tão constitutivos, como já apontado, do
ethos nacional norueguês.
30 A integração dessa variedade de organizações ao aparato do desenvolvimento não se
deu sem tensões e conflitos, sobretudo no caso das organizações missionárias. A
incorporação destas últimas foi vista com reservas por parte dos próprios missionários,
pois muitos deles achavam que esse envolvimento poderia afetar os objetivos de
conversão religiosa das missões, subordinando-os às lógicas das relações comerciais e
econômicas entre Estados que pautavam o aparato do desenvolvimento. Com o tempo,
contudo, essas resistências foram superadas, algo que pode ser medido pelo fato de que
em meados da década de 1970, as organizações missionárias captavam a maior parte
dos recursos destinados pelo governo norueguês às organizações voluntárias que
atuavam no aparato de desenvolvimento do país.
31 O financiamento às organizações missionárias seria suplantado na década seguinte pelo
fornecimento de recursos do governo norueguês às grandes organizações humanitárias
do país, que se tornaram verdadeiros “Estados dentro do Estado” no terreno do
desenvolvimento. Isso ocorreu paralelamente à ampliação do escopo de atuação
daquelas organizações para muito além das crises humanitárias, envolvendo também
conflitos políticos e intervenções junto aos diversos grupos legitimados como alvos da
cooperação pelo establishment internacional do desenvolvimento. 8 Entre esses, após um
momento inicial de apoio genérico aos “pobres”, “subdesenvolvidos”, “atrasados”, etc.,
emergiu um tipo de atuação dirigida a grupos mais específicos, como minorias étnicas,
de gênero, idosos, crianças, deficientes físicos, etc. Nesse sentido, a “evolução” das
organizações humanitárias em direção a objetivos mais amplos e ao mesmo tempo com
destinatários mais personalizados acompanhou uma tendência mais geral do aparato
do desenvolvimento, que resultou tanto de seu envolvimento com o estabelecimento de
políticas públicas voltadas a esses grupos nos países donatários quanto dos laços
criados com as agendas dos inúmeros movimentos sociais que passaram a representá-
los, sobretudo a partir dos anos 1980.
32 A essa altura, as motivações do “altruísmo” e do “desinteresse” que haviam mobilizado
as primeiras intervenções, apoiadas em grande medida na arrecadação de recursos da
própria população, haviam dado lugar a intervenções altamente profissionalizadas,
voltadas à obtenção de objetivos políticos e sujeitas às regras burocráticas que se
firmaram naquele campo, ainda que, no discurso dirigido à opinião pública,
continuassem a prevalecer as justificativas associadas ao “regime de bondade”. Um dos
principais veículos responsáveis pela manutenção dessas justificativas ligadas a “fazer o
bem” na Noruega tem sido a campanha anual promovida pela televisão estatal que,
como mencionamos na abertura deste texto, mobiliza milhares de pessoas no país para
a arrecadação de fundos de porta em porta, destinados às organizações escolhidas a
cada ano.
33 Nesse contexto, a atuação de organizações religiosas e humanitárias no campo do
desenvolvimento na Noruega recebeu um forte impulso a partir de meados da década

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de 1980, quando o princípio da “orientação para os donatários” que prevalecera até


então, que pregava a subordinação das ações para o desenvolvimento aos objetivos
estabelecidos pelos países-alvo de sua atuação, sofreu uma profunda inflexão. Com base
em um conjunto de diretrizes afinadas com o ideário neoliberal fixadas pelo governo de
centro-direita naquele período, passou-se a promover a relação direta das organizações
voluntárias norueguesas com organizações não governamentais dos países donatários,
sem a mediação de estruturas governamentais de ambos os lados, como ocorrera até
então.
34 Os efeitos das medidas nessa direção, ainda que não facilmente quantificáveis, foram
perceptíveis sobretudo nos países detentores de estruturas estatais mais frágeis,
notadamente no continente africano, em que miríades de ONGs provenientes dos países
doadores passaram a empreender ações sem qualquer tipo de coordenação ou
centralização de planejamento, contribuindo para cenários de verdadeiro caos quanto à
oferta e prestação de serviços sociais básicos para as camadas mais pobres da
população. Esses efeitos, em muitos casos desastrosos, e sua relação com as decisões
políticas tomadas pelos países doadores no campo da cooperação para o
desenvolvimento, nem sempre ficaram claros para a opinião pública destes últimos,
para a qual o “altruísmo” e a “generosidade” periodicamente evocados no campo do
desenvolvimento parecem nada ter a ver com as tragédias a que assistem de longe na
televisão, sendo entendidos, pelo contrário, como uma das soluções para resolvê-las.
35 Como colocado por um dos principais estudiosos da cooperação norueguesa, o
historiador Terje Tvedt (2005), “fazer o bem” é uma atitude que parece por si só
legitimar a cooperação e colocá-la acima de qualquer discussão. Ele tem destacado o
quanto as perspectivas filantrópicas têm se prestado a encobrir uma série de posturas
tutelares e subalternizadoras produzidas pelo aparato do desenvolvimento, que retiram
sua força e persuasão em grande medida do fato de estarem comprometidas com uma
imagem nacional da Noruega como um país alinhado com os países “ricos”, do “Norte”
e “desenvolvidos”, preocupada exclusivamente em “fazer o bem” de seus “outros”, os
países “pobres” do “Sul” e “subdesenvolvidos”.
36 A forte presença missionária no aparato do desenvolvimento norueguês contribui para
assegurar uma singularidade cara aos noruegueses no que diz respeito a uma inclusão
no mundo dos países capitalistas desenvolvidos que não abre mão de valores nacionais
marcados pelo ethos luterano de valorização de qualidades como a sobriedade, a
eficiência e um envolvimento “desinteressado” em ações de alívio à pobreza. A atuação
das organizações missionárias norueguesas no aparato da cooperação tem funcionado
em grande medida para garantir-lhes uma credibilidade aos olhos da população que
muitas vezes não acompanha as ações da burocracia do desenvolvimento, acusada de
financiar inúmeros “elefantes brancos” no Terceiro Mundo em nome de interesses
econômicos duvidosos, ou de se deixar contaminar pelo estilo de vida luxuoso e
perdulário do establishment internacional do desenvolvimento, inteiramente em
desacordo com os valores de sobriedade e eficiência do protestantismo norueguês
(Simensen, 2003).9
37 O debate entre “altruísmo” e “interesse próprio” dentro do aparato do
desenvolvimento da Noruega não ficou restrito ao nível das consciências individuais,
onde aparece associado a essa autoimagem, marcada por um desejo apresentado como
atávico de “fazer o bem”, mas tornou-se também constitutivo dos projetos políticos de
coletividades variadas, que vão desde os diversos segmentos das burocracias de Estado

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no campo da diplomacia e da cooperação para o desenvolvimento, preocupadas com a


defesa de interesses econômicos, comerciais e geopolíticos do país, até os projetos de
organizações voluntárias de variados perfis e grandezas. Atuar de modo “altruísta” ou
“interessado” é algo que permeia os debates tanto sobre posturas individuais quanto
coletivas no universo norueguês da cooperação para o desenvolvimento, servindo para
construir (ou destruir) reputações e legitimidade dentro dele.
38 É a presença das organizações voluntárias que permite entender o deslocamento
mencionado anteriormente em relação aos destinatários das ações de desenvolvimento,
que deixaram de ser categorizados como “pobres” genéricos e passaram a ser atores
com identidades bem mais precisas, capazes de criar comunidades transnacionais de
interesse entre agentes localizados no “campo doador” e no “campo donatário”, a
partir de mecanismos não mais de oposição e de criação de alteridades, mas de
identificação. Esse processo tem sido acompanhado muitas vezes da transformação das
categorias do “altruísmo” e da “generosidade” em perspectivas de “solidariedade”,
acionadas quando do relacionamento entre organizações não governamentais
norueguesas e organizações dos países donatários identificadas com a defesa comum de
interesses de grupos de gênero, de minorias étnicas, de causas ambientais, etc., que
parecem estabelecer uma relação entre “iguais”.
39 O exemplo envolvendo a atuação do povo sami na cooperação norueguesa junto aos
povos indígenas é particularmente esclarecedor, e permite entender a emergência de
perspectivas que rompem com a dimensão do “altruísmo” em favor da dimensão da
“solidariedade”, remetendo a categorias mais simétricas de relacionamento e abrindo
espaço para a formação de comunidades transnacionais de interesse, fora do enquadre
tradicional que opera no circuito do desenvolvimento, separando países “doadores” e
donatários”, do “Primeiro” e do “Terceiro Mundo”, do “Sul” e do “Norte”, etc.
40 Absorvendo em boa medida o vocabulário da “solidariedade entre os povos” que
marcou os movimentos em favor da descolonização entre as décadas de 1950 e 1970,
sobretudo na África, e bandeira de organizações terceiro-mundistas na Noruega, com
perfil mais à esquerda, responsáveis pelo apoio aos movimentos de libertação de
Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, as organizações do povo sami que passaram a
atuar dentro do aparato do desenvolvimento foram marcadas por uma ação que se
pautou desde o início por uma perspectiva de “cooperação” e não de “ajuda”, ou de
“assistência”,10 vocabulário indicador das perspectivas de assimetria e poder que
marcaram a instituição do aparato do desenvolvimento de um modo geral (Ribeiro,
2005) e também na Noruega, desde sua implantação.
41 Os sami têm sido enfáticos em chamar a atenção para uma diferença qualitativa de
fundo em sua participação no aparato do desenvolvimento norueguês em relação a
outros tipos de organizações voluntárias, notadamente religiosas e humanitárias, no
sentido de sempre terem tentado promover uma relação entre “iguais”, daí o uso do
termo “cooperação” empregado para qualificar suas ações, ao invés dos termos “ajuda”
ou “assistência”, típicos do jargão desenvolvimentista. 11 Os sami reivindicam que suas
intervenções têm se dado exclusivamente junto a povos indígenas de outros
continentes, sempre a partir de demandas provenientes deles, e não a partir de projetos
preconcebidos pelo grupo para serem aplicados junto a eles. É o que tem sido
denominado de “cooperação de povo indígena para povo indígena” (urfolk til urfolk
samarbeid) (Senter for Samiske Studier, 2000).12

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42 A apropriação, a partir sobretudo dos anos 1990, do vocabulário igualitário utilizado


por alguns atores dentro do aparato do desenvolvimento pelo mainstream, representado
pelos bancos multilaterais de desenvolvimento e pelas agências bilaterais de
cooperação, sobretudo a partir da utilização de técnicas “participativas” veiculadas
junto com a valorização retórica do agenciamento político de grupos locais nos países
donatários, tem sido seguidamente denunciada pelos estudos que analisam essas novas
práticas como instituidoras de novos tipos de assimetria, em que pesem os discursos em
direção contrária (Pareschi, 2002; Salviani, 2002).
43 Por outro lado, participações como as dos sami no aparato de cooperação para o
desenvolvimento norueguês têm possibilitado a sua articulação ao campo dos direitos,
que opera dentro de uma lógica muito distinta do “altruísmo” e da “generosidade”.
Assim, ainda que os recursos destinados pela Norwegian Agency for Development
Cooperation – Norad – às organizações do povo sami que atuam em ações de
cooperação internacional sejam insignificantes, sobretudo quando comparadas aos
recursos destinados a outras organizações norueguesas que atuam junto aos povos
indígenas,13 os sami têm tido um papel estratégico no apoio prestado pela Noruega à
criação de fóruns e protocolos internacionais de defesa dos direitos indígenas. Aqui não
se trata mais de forjar apoios calcados no apelo à consciência individual dos “ricos”
para ajudar os “pobres”, mas da construção de direitos que podem ser transformados
em instrumentos de negociação entre minorias étnicas e Estados nacionais, subsidiando
tanto a formação de políticas públicas quanto a construção de agendas de movimentos
sociais (Barroso Hoffmann, 2011).
44 Nesse sentido, cabe destacar o quanto as pautas do aparato internacional do
desenvolvimento têm se tornado parte estratégica da definição de agendas políticas nos
países “donatários”, sobretudo no que diz respeito às dinâmicas dos assim chamados
“novos movimentos sociais” e das respostas governamentais a eles. O exemplo da
questão indígena tem sido fértil para indicar as ambiguidades decorrentes dessa
influência mutuamente constitutiva, responsável pela definição de alguns estudiosos
sobre a perspectiva multiculturalista apoiada pelo aparato de desenvolvimento em
relação aos índios em inúmeros países do Terceiro Mundo como um “multiculturalismo
neoliberal”, isto é, restrito aos limites permitidos pelo horizonte político do
neoliberalismo que dominou o cenário internacional em boa parte das décadas de 1980
e 1990, e que esvaziou muitas vezes as agendas políticas de movimentos sociais em
nome da defesa de agendas “culturais” (Hale, 2002). 14
 
A criação da CEE, a descolonização e a generosidade
45 A política de “cooperação para o desenvolvimento”, atualmente conduzida pela
Direção-Geral do Desenvolvimento para com países da África, do Caribe e do Pacífico
(ACP) tem raízes na política de associação estabelecida entre a Comunidade Econômica
Europeia (CEE) e os Países e Territórios Ultramarinos (PTOM), em 1957, pouco menos de
dez anos após a assinatura do Plano Marshall e da instauração do Cooperative Program
pelo governo americano, voltado à definição de políticas de desenvolvimento. Quando a
CEE se estabeleceu, a Comunidade Europeia reunia seis países: França, Bélgica,
Alemanha, Holanda, Itália e Luxemburgo. Nesse contexto, a política de associação dizia
respeito às colônias francesas e belgas, assim como à Somália, sob tutela italiana, e à
Nova Guiné holandesa.15 A política de associação comportava disposições regulando as

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trocas econômicas, estabelecia a abertura das fronteiras e a eliminação dos direitos


alfandegários (art. 132 e 133), e legislava sobre a extensão das vantagens comerciais já
em vigor entre colônias e metrópoles no conjunto dos Estados membros da CEE (art.
133-136). A contrapartida dessa abertura era a participação do conjunto de países
membros no Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED), que deveria “financiar projetos
de desenvolvimento, projetos de instituições sociais e investimentos econômicos de
interesse geral de maneira a elevar o poder de compra dos habitantes e a fornecer os
recursos complementares aos orçamentos públicos”, além de suprir os “investimentos
demandados para o desenvolvimento progressivo dos Países e Territórios Além-mar
PTOM”.16
46 O projeto inicial da CEE previa o estabelecimento de um mercado comum pela
eliminação progressiva dos obstáculos às trocas intraeuropeias, a instauração de uma
união aduaneira, assim como a criação de uma política comum em matéria agrícola, de
comércio exterior e de transporte. A política de associação foi imposta pela França aos
outros países membros, por ocasião das negociações finais do Tratado de Roma, em
1957. A França se aliou à Bélgica que ainda possuía importantes colônias nesta época (o
Congo Belga e Ruanda-Burundi) e fez da política de associação uma condição para sua
participação na comunidade.
47 Em 1957, as colônias seriam, portanto, “associadas” por cinco anos, apesar do contexto
político na Europa ser extremamente pouco favorável à vontade da França, percebida
como um império em decadência que tinha dificuldades em administrar a guerra de
independência na Argélia (1954-1962). A empresa colonial vinha sendo cada vez mais
contestada pela opinião pública e pelos dirigentes dos outros países membros,
particularmente no caso da Alemanha, cujos protetorados tornaram-se franceses e
belgas após a derrota na Segunda Guerra Mundial. A Alemanha Ocidental, Itália,
Luxemburgo e Holanda iriam se opor, em um primeiro momento, mas não puderam
recusar a política de associação sob pena de ver a França retirar-se do projeto e
paralisar a criação da CEE, como ela fez alguns anos antes, ao bloquear a criação de uma
política comum para a defesa.
48 Esses países temiam verem-se associados à política colonial francesa na Argélia. Eles
não possuíam mais colônias importantes e não viam interesse em se associarem ao
financiamento do desenvolvimento dos países ultramarinos franceses. Enfim, nem
todos partilhavam a ideia de que a ação da Europa devia estar prioritariamente
orientada para a África francófona. A Alemanha, a Holanda e a Itália tinham relações
diplomáticas e comerciais muito mais importantes com a América do Sul e a Ásia. 17 Para
convencer os países membros, a França apresentara dois argumentos que no final
foram recebidos favoravelmente: 1) a África detinha matérias-primas que a Europa não
possuía, ao contrário dos Estados Unidos e da União Soviética; e 2) assegurar o
desenvolvimento desses países permitiria evitar uma aproximação dos Estados
comunistas (Migani, 2005).
49 A esse conflito entre os países fundadores da CEE iriam se juntar tensões importantes
por partes das elites africanas independentistas e anti-imperialistas. Em 1953, por
ocasião de trabalhos preparatórios para a Assembleia de Estrasburgo, Léopold Senghor
(1953 apud Dimier, 2001b, p. 20), figura importante do movimento da Négritude,
declarou em 1953: “Nós concordamos, nesse casamento arranjado, sermos os pajens que
carregam o véu da noiva, mas nós nos recusamos a ser os presentes da boda, assim
como a louça que paga o preço nas disputas de casal, ou as bonecas para distrair os

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futuros filhos.”18 Por causa desse clima de suspeição, foi necessário, literalmente,
inventar uma razão de ser para a política de associação, o que motivou a criação de uma
política de informação dirigida a vários públicos-alvo específicos: os Estados membros,
a Comissão Europeia, os “cidadãos europeus” e as autoridades africanas.
Tínhamos que defender nossa presença lá, era um pouco o equilíbrio do mundo. Se
toda a África aderisse ao campo da China ou da União Soviética, o equilíbrio do
mundo poderia ser rompido e isso poderia levar os americanos a outras
interpretações, etc. Tínhamos que valorizar ao máximo essa associação, sim,
desejada pelas lideranças africanas, notadamente Senghor. A Euráfrica era um
esquema importante que ancorava a Africa à Europa.19
50 Os primeiros relatórios anuais da Comissão Europeia (1957-1963) permitem observar a
aparição de uma nova narrativa buscando dar sentido a uma política amplamente
considerada como anacrônica: a necessidade de continuar “a política generosa de
cooperação que a Europa começou quando esses países eram ainda dependentes”, as
“responsabilidades singulares para com os jovens Estados africanos associados”, a
“importância do dever de entreajuda” no quadro de “uma obra universal de promoção
econômica”.20 O tema do desenvolvimento e essa narrativa generosa vão se sobrepor à
referência à descolonização que exprimem timidamente os primeiros relatórios. Estes
apresentam uma Europa unificada, as relações coloniais se tornam “laços
privilegiados”, “responsabilidades particulares”. A generosidade apaga de fato a
situação colonial, fonte dessa “intimidade” “europeia” com a África e silencia os
conflitos, as relações de forças e compromissos entre Estados membros, os interesses
econômicos e geoestratégicos que motivam a invenção de uma tal política nessa época.
A “linguagem do desenvolvimento” anuncia uma transição de épocas e um
deslocamento de interlocutores. Seu surgimento esteve intimamente ligado à
necessidade de redefinir o estatuto das trocas com as colônias que eram cobiçadas pelos
Estados Unidos e a União Soviética.
51 No decorrer do processo de institucionalização da política de desenvolvimento
(1963-1975), convencer diferentes públicos da pertinência da política de associação
justificara a criação de uma unidade de informação.21 Até os anos 1990, iniciativas de
informação dirigidas à Europa e aos países beneficiários (revistas, publicações,
reportagens de vídeo, emissões de radio, eventos, “tours” na Europa para mostrar os
avanços tecnológicos aos dignitários africanos, convites de estagiários africanos na
comissão, etc.) (Dimier, 2001b) foram realizadas por um pequeno grupo de indivíduos,
segundo eles mesmos relatam, animados por uma grande paixão por seu trabalho. 22
52 Jacques-René Rabier, francês, foi um deles. Formado em ciências políticas, foi chamado
para entrar na função pública europeia em 1952 por Jean Monet, um dos pais
fundadores da construção europeia (Cohen, 2007). Após ter ocupado várias funções
importantes na Comunidade Europeia de Carvão e Aço (Ceca)23 e depois na CEE (onde
inventou o sistema de estatística da UE, o Eurobaromètre), Rabier chegou a ser o
primeiro diretor de Informação da CEE (1953-1973). Dentro desse posto cabia a ele a
responsabilidade pela publicação dos relatórios anuais da Comissão Europeia. Por essa
razão, ele, junto com seus colegas da unidade de informação além-mar, foi um ator
fundamental na reescritura das relações com a África na época da construção da CEE.
Ele foi igualmente importante nas tentativas de criar uma “consciência e uma
identidade europeia” que “permitiria pensar além do quadro nacional” (Rabier, 1965,
tradução nossa). A primeira geração de funcionários da qual Rabier fez parte teve uma
percepção singular da unificação europeia, fortamente marcada, por experiência direta

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ou indireta, pelos nacionalismos agressivos das duas guerras mundiais. Por outro lado,
Rabier tinha “uma missão particularmente cara” para ele: ver os ideais de paz na
Europa aplicados às antigas relações entre as colônias e as metrópoles:
Nos esforçamos por tornar popular a ideia de que a associação da Europa e dos
países ditos em desenvolvimento era uma necessidade política mas também ética.
[…]. Sentíamos que para nós, europeus, que acabávamos de colocar um fim a nossos
conflitos ancestrais, resolver o problema da paz era absolutamente normal e que,
apoiando-nos nas disposições do Tratado [de Roma], viraríamos a página do
colonialismo de nossos pais e avós.
Eu me lembro das viagens que fiz, pessoalmente, enquanto diretor-geral da
Informação. Visitei o Senegal, até fui recebido na mesa do presidente Senghor e fui
duas vezes a Madagascar para participar de uma exposição ou para entrar em
contato com os serviços de informação locais. Sempre fomos bem recebidos no nível
governamental. […]. Fui recebido por um ministro encarregado do plano. Ele,
malgaxe, eu, francês, conversamos sem nenhuma vergonha sobre as sequelas da
colonização e notadamente dos massacres de 1947. Então, uma página estava virada,
a mesma que nós, franceses, tínhamos virado com os alemães, nós nos esforçávamos
para virar, em comum acordo, com os países que tinham sofrido a colonização. 24
53 Hoje em dia, Rabier tem mais de 90 anos, continua acompanhando cotidianamente os
assuntos europeus, e trabalha ainda em uma ONG que ele contribuiu para criar, a ATD
Quarto-Mundo.
Se recebo você aqui, na sede de ATD Quarto-Mundo é porque essa preocupação de
ajudar – e ajudar é uma palavra que deve ser tomada em toda a sua acepção, ajudar
não no sentido caritativo, queixoso, etc., mas ajudar de pessoas a pessoas, os
elementos, as frações mais pobres de nossas sociedades – essa preocupação de
ajudar, acredito que é uma preocupação que todo ser humano normalmente
constituído deveria ter. Que os países ricos ajudem os países pobres me parece uma
necessidade que vai muito além de uma necessidade política.
54 Uma outra figura-chave nesse processo é Pierre Cros, o principal responsável da
Unidade Informação Além-Mar entre 1958 e 1986. Francês como Rabier, ele foi formado
na École de la France d’Outre-Mer. Cros será chamado para a DG Dev em 1958 pelo
comissário Lemaignen (1958-1962), antigo administrador da França Além-Mar. Cros
deixara Dacar, onde fora chefe do escritório de imprensa do alto comissário francês,
após ter passado muitos anos na África. “Não particularmente interessado pela
Europa”, segundo ele, foi seu grande conhecimento da África e seu capital de relações
no mundo colonial que o levaram a trabalhar na Comissão Europeia. No inicio dos anos
1980, com a entrada do Reino Unido na CEE e a consequente adesão dos países do
Commonwealth à política de desenvolvimento, Cros se sentiria, segundo suas próprias
palavras, progressivamente “colocado na geladeira” em razão de suas ideias, invadido
por um sentimento cada vez maior de desajuste com os principais funcionários da DG e
com a comissão, que não compartilhavam suas opiniões. Cros acusou os ingleses e
holandeses de terem “destruído a associação da África com a Europa em nome do
mundialismo”. Segundo seu ponto de vista, essa abertura explicaria a dispersão de sua
política de desenvolvimento e seu fracasso.
55 Cros publicou um romance em 1986, Les dix commandements de l’expert, que o levara a
ganhar uma reputação de “esquerdista”. Depois escreveu Chronicle d’une débacle
annoncée, onde conta a história das relações entre a Comissão Europeia e alguns países
africanos e trata além disso dos vários tipos de socialismo africanos. Segundo Cros, esse
livro não foi publicado pois os editores, nessa época, pensavam que a “África já não
interessava mais a ninguém”.

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56 Até a entrada do Reino Unido na CEE em 1975 e as consequentes mudanças estruturais


que a política de desenvolvimento conheceu com a sua institucionalização, Cros foi uma
figura apaixonada por seu trabalho; ele relata a época em que ia sistematicamente à
missa a cada sábado e domingo para coletar fundos para construir poços de água na
África:
Eu juntei muito dinheiro, era a época das primeiras secas, a gente fez poços que
nosso delegado supervisionava. Mandamos muito dinheiro. Você pode ver até onde
a relação ia, eram relações afetivas que, transportadas ao nosso trabalho, davam um
pouco mais de humanismo do que tinham os escritórios. (Conrad; Legendre, 2003,
tradução nossa).
57 Cros não entrou na função pública europeia por convicções europeianistas, ao contrário
de Rabier. Ele estava pouco informado sobre o projeto europeu. Porém, como Rabier,
fez parte de uma geração de funcionários da CEE, a primeira, que teve uma percepção
singular da unificação europeia. Sua concepção da “paz” e da “união dos povos”
enquanto fundamento da construção europeia foi fortemente marcada por suas
experiências de vida no contexto das duas guerras mundiais. Trabalhar para uma DG,
na época – que por uma razão de ponderação de forças entre a França e a Alemanha,
juntava funcionários das duas nacionalidades25 – foi percebido como um desafio aos
antigos inimigos que deviam se “desfazer das suas antigas roupagens”. A compreensão
mútua que existira na DG era a chave da Europa em construção, segundo Cros:
O primeiro alemão que eu vi, foi quando cheguei de Dacar, em 14 de julho de 1958.
Era um dia quente, a DG Dev tinha ainda uma forma embrionária. O senhor Allard,
diretor-geral da DG Dev (1958-1960), alemão, parecia… tinha a cicatriz dos
estudantes, a mensur, o crânio dele tinha pouco cabelo… parecia um pouco com Eric
von Stalheim.26 Eu o vi aparecer com o uniforme, o boné, e eu desmaiei… Me fizeram
respirar, eu atribuí meu desmaio à viagem. Na realidade, tinha medo, medo, medo,
pois eu saíra dos maquis,27 da frente da Alsácia, da guerra mais atroz pelo ódio, que
ódio… que ódio… Meus 46 camaradas foram fuzilados na fazenda de By, no sul de
Orleans… Então quando vi esse alemão e ele me perguntou o que eu fazia, eu
respondi: “Ich war ein Terrorist”. Fui respeitado imediatamente. E depois, acabou,
nos demos as mãos. […]. Tinha este esquema de compreensão mútua que fazia com
que 14 anos depois a gente pudesse conviver sem segundas intenções […]. Havia
uma consideração recíproca e isso é a chave da Europa em construção. Você se dá
conta? Tínhamos que nos desfazer da velha roupagem […]. Todos carregavam o peso
de uma guerra atroz. (Conrad; Legendre, 2003, p. 5-6, tradução nossa).
58 Cros foi também um ator importante na reescritura das relações coloniais. Segundo ele,
“tinha um diálogo na gestão das ajudas”, fundamento da Associação. “Então a
originalidade da política de associação, o que não era colonial, era que no lugar de dizer
vamos fazer isso, dizíamos o que vocês querem que façamos?”
59 Há funcionários da primeira geração da política de desenvolvimento que seguem
vivendo em Bruxelas, capital da Europa. Alguns continuam a se frequentar e
compartilham ainda os mesmos interesses sobre a política europeia. “Saídos de um
outro mundo”, como eles mesmos se veem, foram atores-testemunha da construção
europeia, contemporâneos de uma configuração de relações internacionais marcada
pelo fim da guerra na Europa, a independência das colônias, a Guerra Fria, a ascensão
dos Estados Unidos e da CEE na arena internacional e a inserção progressiva das
economias nacionais numa economia de mercado globalizada. Todos esses fatores, com
o desaparecimento progressivo da situação colonial, influenciaram diretamente a
aparição de uma política de desenvolvimento comunitária e têm afetado a sua evolução.
Sobreviventes de uma época que já se foi, vários desses primeiros profissionais

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“europeus” do desenvolvimento acompanham de maneira crítica a evolução das


políticas, o desaparecimento das preferências comerciais não recíprocas, a
harmonização progressiva dos acordos comerciais com o sistema multilateral da OMC e
o predomínio das relações que seguem os parâmetros da economia de mercado. Eles
questionam as novas gerações, a chegada de funcionários e escritórios de experts
“desligados das questões com que trabalham”:
A DG Desenvolvimento foi sempre um mundo separado. Eram pessoas que não
fizeram grandes carreiras, mas que eram apaixonadas. Agora, acabou. Atualmente,
na DG Dev, você tem pessoas que trabalham com o desenvolvimento como se fossem
vender ervilhas e que, amanhã, vão cuidar de pesquisas nucleares ou não sei o quê.
Nós, a primeira geração de funcionários, éramos todos esquerdistas, a gente queria
salvar o Terceiro Mundo. Era a época da Nova Ordem Econômica Internacional, o
mundo não era o mesmo. Depois, percebemos que nada era tão simples… 28
60 A relação profissional e afetiva que tinha essa primeira geração de funcionários
franceses da DG Desenvolvimento com a África colonial é ligada ao fato dessa política e
seus primeiros atores terem surgido dos moldes da política colonial francesa no
continente. Esse legado colonial (De L’Estoile, 2008) foi estruturante ao longo da
evolução da política de desenvolvimento europeia. Determinou estruturas burocráticas,
modalidades de classificações de territórios e populações beneficiárias, alguns dos
fatores que explicam a “racialização” da pobreza que podemos observar na política de
desenvolvimento da UE. Apesar da ajuda europeia ser destinada a vários continentes, 29
as políticas de informação sobre as políticas de desenvolvimento sempre foram
dominadas por imagens de negros em situação de sofrimento ou sendo ajudados por
brancos. A qualificação da pobreza e sua gestão cotidiana pelas instituições europeias
são complexas e evoluíram no decorrer do tempo. Dependem das classificações
produzidas pelo Banco Mundial mas também de uma repartição geográfica das relações
exteriores que só a história das instituições e da burocracia europeia pode explicar
(Nicaise, 2012). Mas essas classificações são também o produto de uma associação
histórica entre a ideia de subdesenvolvimento e as antigas colônias de certos países
membros. A imagem predominante de uma África negra, homogênea, foi sempre
construída nas campanhas de informação da UE, não porque aquele continente
compartilhe uma ecologia ou uma experiência histórica comum frente à Europa
imperial (Appiah, 1997), mas porque está apoiada na criação e constante reprodução de
uma associação de ideias que levam a uma representação racial da pobreza, em que o
“negro sofrido” é o arquétipo. O corolário dessa representação comum é a imagem de
uma Europa branca, produzida pelas instituições europeias, que faz do
desenvolvimento, do progresso e da modernidade o centro da sua imagem pública
(Nicaise, 2007).
 
Considerações finais
61 Na Noruega o aparato também foi veículo da homogeneização de diversos países sob
uma mesma imagem de falta e necessidade de atributos que definiam seu contraste com
o “Primeiro Mundo”, embora a pluralidade de atores não governamentais envolvidos
tenha permitido tanto o surgimento de mecanismos de identificação quanto de
diferenciação entre grupos localizados nos polos “doador” e “donatário”. No caso do
componente étnico, vimos emergir uma imagem dos “índios” que acompanhou de perto
as transformações dessa categoria dentro da própria Noruega e o processo de

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construção da identidade contemporânea do povo sami. Assim, ainda que, do mesmo


modo que no caso da União Europeia descrito acima, a imagem dos negros tenha sido
um emblema da construção da ideia de “ajuda”, acionada sobretudo nos momentos
iniciais da cooperação norueguesa, marcados por um cenário colonial que ainda se
sustentava, a imagem dos “índios” aponta para processos de afirmação de identidades
que se consolidaram no cenário da descolonização, em diálogo com ele e portando
visões e mensagens que poderíamos considerar contra-hegemônicas no período inicial
da cooperação norueguesa. Os sami se assumiram como “índios” por se considerarem
objeto dos mesmos processos de colonização enfrentados pelos “índios” das Américas, e
toda a sua atuação sob a égide da cooperação internacional norueguesa a partir da
década de 1980 se pautou pela articulação de uma rede internacional de povos nas
mesmas condições, voltada a garantir seus direitos dentro dos Estados nacionais
contemporâneos.
62 Se a “ajuda”, com o tempo, se tornou “cooperação” para o desenvolvimento, ainda que
tal termo não tenha significado o desaparecimento de relações assimétricas de poder,
sua emergência se associou sem dúvida ao questionamento das imagens do
colonialismo e aos padrões de relacionamento interétnico que ele instaurou, bem como
à possibilidade de reconfigurá-los de maneiras novas.
63 Nesse ensaio de comparação assimétrica, entre “culturas morais” associadas às políticas
de desenvolvimento norueguesa e europeia, esperamos ter deixado clara a necessidade
de analisar o aparato do desenvolvimento como um espaço de construção de
mecanismos que vão muito além dos aspectos econômicos, técnicos ou de reprodução
de desigualdades a partir dos quais ele tem sido analisado pela literatura antropológica.
Propomos assim situá-lo como uma esfera responsável pela emergência de tipos de
governamentalidade associados a processos contemporâneos de globalização nem
sempre congruentes ou unívocos, com genealogias múltiplas, sentidos sociais variados
e tradições diferenciadas ligadas por motivações distintas à ideia de “ajudar, assistir ou
cooperar” com/os “necessitados”. Apontar seu papel como mecanismo contemporâneo
estratégico na construção de identidades étnicas, nacionais e transnacionais, isto é, na
construção de coletividades políticas de diversas grandezas, não se separa da
necessidade de percebê-lo também como uma arena essencial de construção da pessoa,
seja no sentido de despertar a adesão pela via do acionamento de sentimentos
individuais de altruísmo e generosidade daqueles que atendem a seus apelos de
contribuição, seja do ponto de vista daqueles que trabalham em seus organismos a
partir de motivações pessoais que ajudam a entender as respostas individuais aos
processos históricos de formação de identidades coletivas.
64 Compreender que esse universo se forjou tanto a partir de laços herdados diretamente
de situações coloniais, reprodutores de dicotomias e de relações de poder assimétricas,
quanto da emergência de padrões de alianças reunindo elites políticas situadas nos
diferentes polos simbólicos a partir dos quais ele opera (como “Norte” e “Sul”,
“Primeiro” e “Terceiro Mundo”, “doador” e “donatário”, etc.), com capacidade de
propor caminhos alternativos ao status quo ou de reforçá-lo, é uma tarefa que, embora
não seja fácil pelos investimentos de pesquisa que demanda, nos parece fundamental
para desvendar os aspectos ambíguos e as “zonas cinzas” presentes em boa parte das
lógicas políticas contemporâneas.
65 A discussão que propusemos sobre os lugares das “culturas morais” no campo do
desenvolvimento na Noruega e na UE colocou em diálogo escalas de processos sociais

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de diferente natureza. No artigo, exercitamos uma comparação voluntariamente


assimétrica. Essa opção metodológica nos permitiu não só observar as múltiplas vidas
sociais dos valores e das categorias que remetem à ideia de ajudar outros necessitados
em diferentes contextos nacionais/supranacionais e em várias escalas, mas também
esclareceu a historicidade dessas categorias, a multiplicidade de genealogias das quais
elas emergem, agregando e/ou descartando, mudando sentidos, mas que têm em
comum a permanência de uma economia moral que opera sob a lógica do dom, isto é,
subsumindo interesses de diversas espécies – econômicos, políticos, humanitários e
religiosos, entre outros – a ações aparentemente desinteressadas. Em todas as escalas
analisadas, essas práticas remetem a mundos hostis. A conturbada coabitação do dom e
da troca interessada é percebida pelos agentes, justificada, aceita ou negada, mas não
deixa de formar o campo de sentidos complexos que exprimem as culturas “morais”
inerentes à emergência desse tipo de políticas no pós-guerra.

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NOTAS
1. Desde a reforma iniciada em 1999 e a consequente reformulação da gestão das ajudas
exteriores, a DG Dev deixou de administrar sozinha a política de desenvolvimento e passou a
dividir essa responsabilidade com a “Família Relex” (Nicaise, 2007). Até a primeira metade da
década de 2000, a “Família Relex” era composta da DG Desenvolvimento, do Escritório de Ajuda
Humanitária, do Escritório de Cooperação EuropAid, da própria DG Relações Exteriores e da DG
Comércio Exterior. Posteriormente houve outras reformas nessa estrutura (ver Nicaise, 2012).
2. Ações de coleta de fundos da NRK.
3. Ou outras denominações afins, como “assistência para o desenvolvimento”, “cooperação
internacional”, etc., que nos remetem ao conceito de “ajuntamentos globais” de Ong e Collier
(2007), reunindo um conjunto variado de agências e agentes, como veremos no texto.
4. Um exame detalhado dessas diversas genealogias encontra-se no estudo sobre a cooperação
norueguesa de Barroso Hoffmann (2009).
5. Ver em Barroso Hoffmann (2010) um desenvolvimento da hipótese de formação dessas
comunidades transnacionais de interesse aplicada ao contexto da atuação de organizações
ambientalistas no Brasil.
6. Os sami são uma minoria étnica localizada no norte da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia, que
se assumiu como “indígena” a partir da década de 1970, detendo desde então um papel
estratégico na articulação do movimento indígena internacional (Barroso Hoffmann, 2009, 2011).
7. Os noruegueses, como já mencionado, não haviam participado da expansão colonial europeia,
eles próprios tendo tido uma experiência de subordinação política à Dinamarca e à Suécia
durante cerca de cinco séculos. Ao longo do século XIX, contudo, missionários noruegueses
atuaram em colônias francesas, inglesas e dinamarquesas na África e na Ásia.
8. Para uma análise sobre a ascensão do “governo humanitário” na cena política contemporânea,
ver Fassin (2012).
9. Cerca de 80% da população norueguesa se identificam como luteranos e fazem parte da Igreja
de Estado da Noruega.
10. Respectivamente samarbeid, hjelp e bistand em norueguês.
11. A adoção de perspectivas que se apresentam como mais simétricas é reivindicada também por
organizações religiosas, sobretudo missionárias, que atuam no universo da cooperação,
sobretudo através da criação de organizações similares no Terceiro Mundo, que muitas vezes

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desenvolvem um sentido de comunidade entre elas que se torna mais forte que o sentimento de
pertencimento nacional de seus membros.
12. Ao traçar a genealogia do “governo humanitário”, Fassin (2012) já apontava para a dupla
dimensão do sentido de “humanidade” herdado do Iluminismo, significando tanto uma condição
humana universal, que fundaria demandas por direitos, quanto um sentimento afetivo por nossos
semelhantes, que levaria às ações de prover assistência, de ajudar.
13. Os dados estatísticos mais recentes indicam que a cooperação norueguesa destina menos de
2% do total de seus recursos para as questões indígenas, distribuídos entre apoios a ações nos
organismos da ONU voltados às questões indígenas, e a ações de organizações não
governamentais norueguesas junto a povos indígenas localizados em todos os continentes, dentre
as quais as organizações missionárias, ambientalistas e humanitárias têm absorvido a maior
parte, superando largamente os recursos destinados às organizações do povo sami. (Haslie;
Øverland, 2006). Estes últimos têm concentrado sua atuação junto a povos indígenas na América
Central, na África e na Ásia, além das ações desenvolvidas com os povos indígenas da região
ártica, situados na Rússia, Canadá e Escandinávia e nos diversos fóruns da ONU destinados à
discussão das questões indígenas. Para uma apresentação detalhada dessas ações, ver Barroso
Hoffmann (2009).
14. A discussão sobre o significado do cruzamento das esferas da política e da cultura pelos assim
chamados “novos movimentos sociais” tem sido objeto de inúmeros estudos. Um bom exemplo
desses debates no campo da antropologia encontra-se em Alvarez, Dagnino e Escobar (2000), e
seus desdobramentos mais recentes podem ser encontrados em Boccara (2010).
15. A África Ocidental francesa, compreendendo o Senegal, Sudão, Guiné, Costa do Marfim,
Daomé, Mauritânia, Nigéria e Burkina Fasso; a África Equatorial francesa, compreendendo o
Médio Congo, Oubangui-Chari, Chade e Gabão; Saint-Pierre e Miquelon, arquipélago de Comores,
Madagascar e dependências, a costa francesa da Somália, a Nova Caledônia e dependências, os
protetorados franceses da Oceania, os territórios austrais e antárticos, a República Autônoma do
Togo, o território sob tutela de Camarões, administrado pela França, o Congo Belga e Ruanda-
Burundi (Traité instituant la CEE, 2012). A convenção de associação não inclui os departamentos
franceses ultramarinos (Reunião, Guadalupe, Martinica e Guiana), nem a Argélia, partes
integrantes do território metropolitano.
16. Cf. Commission Européenne (1958, p. 114, 1959, p. 138) e IV parte do Tratado de Roma, artigo
132, parágrafo 3 (Traité instituant la CEE, 2012, p. 3).
17. O desejo de uma administração comum, “europeia”, da África é mais antigo do que a
proposição francesa de associação. Essa vontade está presente na ideia de Euráfrica que aparece
na França nos anos 1920, sendo em seguida retomada em 1931 pelo ministro dos Assuntos
Coloniais da Terceira República, e reaparecerá com força em 1945. A França e o Reino Unido
promovem essa ideia, percebida como uma garantia de acesso aos recursos africanos para a
Europa devastada. Esses países formaram uma frente de oposição aos lobbies anticoloniais nas
Nações Unidas e, de maneira mais geral, nos Estados Unidos (Adamthwaite, 2005; Wall, 2005).
18. No original: “Nous voulons bien, dans ce mariage de raison, être les pages qui portent le voile
de la mariée, nous nous refusons d’être des cadeaux de noces, ni la vaisselle qui fait les frais de la
scène de ménage, ni les poupées pour amuser les enfants de demain.”
19. Entrevista com Pierre Cros, responsável da Informação Além-Mar entre 1958 e 1986, feita por
Natacha Nicaise em Bruxelas, 11/01/2006.
20. Cf. Commission Européenne (1960, 1961, 1962, 1963).
21. A política de cooperação da CEE tomara o nome definitivo de “política de desenvolvimento”
em 1975, com a entrada do Reino Unido na CEE e consequentemente a incorporação dos países do
Commonwealth no leque de beneficiarios da política de desenvolvimento (Dimier, 2001a, 2003a,
2003b; Nicaise, 2007).

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22. “Nós recrutávamos pessoas que acreditavam, que pelo menos acreditavam na ideia do
desenvolvimento da Europa e da África. […]. A maior parte dos meus colaboradores eram
apaixonados pelo seu trabalho e eu acho que é muito importante na profissão de informação. A
gente não pode só trabalhar com relatórios, tem que encontrar as pessoas. Nos tínhamos
colocado muita paixão no nosso trabalho e queríamos que continuasse.” (Entrevista com Jean-
Jacques Rabier, , feita por Natacha Nicaise em Bruxelas, 02/12/2006).
23. A Ceca foi criada em 1951 e se fundiu com a CEE no final dos anos 1960.
24. Entrevista com J.-R. Rabier, Bruxelas, 2 de dezembro de 2006.
25. Na prática, porém, dominada por uma maioria de antigos administradores franceses, ver
Dimier (2005).
26. Eric Von Stalheim é uma personagem que é o “mau”, loiro com binóculos, na história em
quadrinhos Biggles, popular nesta época.
27. Maquis era o termo utilizado para designar os grupos de resistentes franceses à ocupação
alemã na Segunda Guerra Mundial.
28. Entrevista com Luc Duschamp (nome fictício), feita por Natacha Nicaise em Bruxelas,
10/01/2006.
29. Segundo as últimas estatísticas disponíveis, em 2004, a distribuição geral do orçamento da
ajuda para países em desenvolvimento era organizada da seguinte maneira: Europa 13%, África
38%, América 8%, Ásia 18%, Oceania 1%, “países em desenvolvimento não especificados” 1% e
ajuda multilateral 6%.

RESUMOS
A partir de um diálogo entre os casos da Noruega e da União Europeia, pretendemos analisar a
combinação de diferentes fatores e escalas de processos sociais (individuais, institucionais e de
unidades políticas nacionais e supranacionais), estruturantes na formação dos sentidos sociais do
desenvolvimento, notadamente das relações entre princípios morais e trocas interessadas,
constitutivas das “culturas morais” dos universos analisados. Na perspectiva dos indivíduos,
observaremos pela lente do caso da UE as motivações, vocações e histórias de vida dos
“profissionais do desenvolvimento”, bem como as razões da adesão da opinião pública às ações de
cooperação internacional. Na escala institucional, abordaremos, nos dois casos, os modelos
político-administrativos utilizados pela burocracia do desenvolvimento, e as lógicas dos
diferentes grupos organizados para disputar seus recursos, no caso da Noruega. Na dimensão dos
Estados, analisaremos a lógica das políticas nacionais e internacionais sob as quais são negociadas
as intervenções de cooperação bilateral e/ou multilaterais tanto na Noruega quanto na UE.

Using the cases of Norway and European Union as a basis, we intend to analyze in this article the
combination of different factors and scales of some social processes (individual, institutional, and
from national and transnational political unities), which play a structuring role in the building of
the social meanings of development and shed light on the relationship between moral principles
and interested exchange, a constitutive part of the “moral cultures” we can map in the universes
analyzed. Under the perspective of the individuals, we will exam, in the case of the EU, the
motivations, vocations and life stories of the “professionals of development”, as well as the
reasons of the adherence of public opinion to the actions of international cooperation. In the
institutional scale, we will deal, in both cases, with the political and bureaucratic models used by

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the development administration and the logic under which the different groups are organized, in
Norway, in order to compete for its resources. At the state level, we will take into account
national and international politics involved in the negotiations to the define bilateral and/or
multilateral interventions of the international cooperation apparatus, in Norway as well as in the
EU.

ÍNDICE
Keywords: European Union, international cooperation, moral cultures, Norway
Palavras-chave: cooperação internacional, culturas morais, Noruega, União Europeia

AUTORES
MARIA MACEDO BARROSO
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil

NATACHA NICAISE
Universidade Estadual de Campinas – Brasil
Em pós-doutoramento

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Lições em engenharia social


a lógica da matriz de projeto na cooperação internacional

Catarina Morawska Vianna

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 20/12/2013

1 Em 2007 a Catholic Agency for Overseas Development (CAFOD), agência católica de


desenvolvimento internacional ligada à Conferência Nacional dos Bispos da Inglaterra e
País de Gales, inaugurava o seu novo sistema de gerenciamento de projetos e
programas, o Programme Cycle Management System (PCM) [Sistema de gerenciamento
de ciclo de programa].1 O sistema PCM era visto como central ao trabalho internacional
da CAFOD, já que operacionalizava a chamada abordagem programática prevista na
política mais geral da organização para o período 2005-2010, anunciada no documento
CAFOD 2010: building communities for change [Construindo comunidades para mudança]
(CAFOD, 2005). Esperava-se que a nova abordagem contribuísse para o aumento do
impacto dos seus programas internacionais por meio da diminuição do número de
projetos mantidos através de parcerias isoladas e do estabelecimento de apenas dois ou
três programas mais amplos por país.2 As equipes de programa da CAFOD, portanto,
estavam em meio a uma grande revisão de todas as suas parcerias, que deveriam ser
mantidas apenas na medida em que se enquadrassem na nova agenda temática da
organização e nos programas estabelecidos em cada país. Estavam às voltas também
com uma série de treinamentos que as familiarizavam com os novos procedimentos
para gerenciar os projetos e programas e, no limite, relacionar-se com parceiros.
2 Este artigo se propõe a realizar uma descrição etnográfica de um dos treinamentos que
a CAFOD oferecia a seus funcionários a respeito dos quatro estágios do novo ciclo PCM –
1) análise; 2) desenho; 3) ação; 4) impacto –, sobretudo no que concerne à elaboração de
documentos. Pretende-se com isso contribuir para as discussões recentes na área da
antropologia da cooperação internacional no Brasil ao enfatizar um dos aspectos

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centrais da vida dos atores envolvidos no mundo da cooperação internacional, qual


seja, a mobilização de saberes técnicos.
3 Etnografias de projetos de desenvolvimento ou de agências de cooperação internacional
são relativamente recentes na antropologia brasileira. O trabalho pioneiro é a
etnografia de Gustavo Lins Ribeiro (1994) sobre a construção da hidrelétrica de
Yacyretá, na Argentina. Ainda que o autor recentemente venha propondo esquemas
analíticos amplos a respeito do que denomina “campo do desenvolvimento” (ver, por
exemplo, Ribeiro, 2008), seu primeiro trabalho é eminentemente etnográfico, com a
descrição dos grupos de interesse envolvidos no projeto de Yacyretá, como grupos
locais, agências governamentais e consultores.3
4 À parte desse trabalho, a literatura mais específica em torno de agências de cooperação
internacional é bem mais recente, e vem explorando temas tão diversos quanto o papel
da cooperação internacional para a formação do Estado timorense (Silva, 2008; Silva;
Simião, 2007); o discurso imagético da cooperação para o desenvolvimento da União
Europeia (Nicaise, 2007); o processo de formação e desenvolvimento dos programas da
cooperação norueguesa junto aos povos indígenas (Barroso Hoffman, 2009); as políticas
para a juventude promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil na década de 1990 (Castro, 2009); a atuação da
Agência de Cooperação Alemã (GTZ) no Brasil (Valente, 2010).
5 Vale apontar que o uso do termo “cooperação internacional” como definidor dessa área
de pesquisa denuncia a maior frequência de estudos sobre relações que envolvem o
Estado. Há, contudo, trabalhos que focam as relações entre organizações não
governamentais internacionais e organizações locais, não referidas pelos atores como
de cooperação, mas parcerias. Exemplos encontram-se em Rickli (2010), com sua
etnografia sobre a atuação das organizações protestantes holandesas KiA (Kerk in Actie)
e Aliança ICCO em projetos no Brasil; e em Morawska Vianna (2010), com trabalho sobre
a parceria entre a já mencionada organização católica CAFOD e organizações populares
em Recife e Olinda.
6 Ainda que nesses estudos haja menções a metodologias de planejamento e
gerenciamento de projetos, como ocorre em Valente (2010, p. 43-48) ao discutir a GTZ,
muito pouca atenção é conferida à elaboração dos documentos em si, em especial à
mobilização de saberes técnicos e aos efeitos que estes operam. Análises desse tipo têm
sido cada vez mais frequentes, como é o caso de algumas coletâneas (Ong; Collier, 2005;
Riles, 2006; Strathern, 2000). Ademais, discussões recentes apontam para a importância
da dimensão estética dos documentos em análises de relações institucionais (Hull, 2012;
Riles, 2001, p. 70-91, 2006). Merece destaque o artigo de Harper (2000) sobre as missões
do Fundo Monetário Internacional (FMI). O autor descreve o processo de criação do
quadro geral de uma “economia nacional” a partir da mobilização de saberes
aritméticos e econométricos em reuniões com representantes de governos, e do
cruzamento dos dados ali produzidos com dados coletados por técnicos do FMI em
outras instâncias. Com isso, confeccionam-se documentos que justificam as decisões da
organização em relação aos Estados com quem estabelece acordos.
7 Argumenta-se aqui que atentar para a elaboração dos documentos na cooperação
internacional permite perceber os princípios da engenharia social que marcam o
trabalho de agências internacionais, em especial a elaboração de composições do social
das quais depende a execução de seus projetos.4 Permite também perceber como as
organizações mantêm as suas agendas atreladas às agendas de organizações

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financiadoras. Em outras palavras: a formulação dos documentos em cada um desses


estágios alinha o trabalho de cada equipe dentro da CAFOD à agenda temática da
organização como um todo e, mais amplamente, à agenda dos financiadores da CAFOD.
8 Isso fica claro ao se analisar a forma como os documentos ligados a projetos e
programas da CAFOD refletem o estabelecido em outros documentos formulados em
níveis hierárquicos superiores ou em outras organizações financiadoras. Em um
primeiro nível, o Programme concept note ( PCN) [Nota de conceito de programa],
formulado no primeiro estágio do PCM, deve estar alinhado ao Country strategy paper
(CSP) [Documento de estratégia para o país], elaborado a cada cinco anos pelo gerente
de programa. Em um segundo nível, o CSP deve seguir as diretivas estabelecidas pela
política geral da organização em vigor, o CAFOD 2010. Se o CAFOD 2010 estabelecia como
setores prioritários economic advocacy [advocacia econômica], sustainable livelihoods
[modos de subsistência sustentáveis], conflict resolution and peace building [resolução de
conflitos e construção da paz] e HIV/Aids (CAFOD, 2005, p. 6), dificilmente seria possível
estabelecer como programa para um país algo que fugisse de um desses temas. Da
mesma forma, em um terceiro nível, a política geral da CAFOD procura estar em
consonância com a de doadores institucionais, como é o caso daquelas instituídas pelos
DFID white papers [diretrizes de políticas da agência britânica de desenvolvimento
internacional]. Estimula-se entre os funcionários que gerenciam projetos e programas a
ligação entre os documentos PCN, CSP, CAFOD 2010 e DFID white papers.
9 Se um olho do engenheiro social recai sobre o mundo dos beneficiários, o outro estará
posto sobre a trilha de documentos (matriz de projetos, PCNs, CSPs, políticas
organizacionais) elaborados em diferentes organizações. É do esforço incessante do
alinhamento de seus documentos às políticas, prioridades estratégicas e ferramentas de
trabalho de outras agências que as equipes da CAFOD criam as condições para que a
organização seja vista como possível parceira por grandes financiadores, desde órgãos
estatais em países em desenvolvimento, órgãos do governo britânico, organismos
multilaterais, instituições privadas de financiamento.
10 A abordagem programática, portanto, era parte da estratégia da CAFOD para aumentar
ao máximo as suas conexões institucionais com agências financiadoras que pudessem
atuar como cofinanciadoras de seus projetos. Na posição de corresponsável pelos
programas, a CAFOD devia garantir que a sua execução e a mensuração de seu impacto
estivessem de acordo com um certo padrão de prestação de contas exigido pelas
cofinanciadoras. Isso demandava ou que as parcerias fossem seladas com organizações
que facilmente mobilizavam saberes técnico-burocráticos (em especial referentes ao
planejamento e à prestação de contas), ou que estas fossem capacitadas para tanto. Daí
se compreende outra iniciativa estabelecida no CAFOD 2010 como prioritária: a capacity
building [capacitação] dos parceiros-chave. Na abordagem programática não havia mais
espaço para o apoio a grupos informais. Como Joseph, funcionário que costumava
trabalhar na extinta seção da Europa do Leste na CAFOD, disse: “Quanto mais
programação, mais a conexão com a base se perderá.”
11 Esse era o caso de um dos parceiros da CAFOD em Recife e Olinda, o Projeto Tarrafa, três
organizações de base que trabalhavam com crianças e adolescentes de seus próprios
bairros desde a década de 1980 e que desde o início das atividades contavam com o
apoio da CAFOD. Com a nova abordagem programática, todos os que faziam parte da
Tarrafa deveriam ser capacitados, desde os funcionários da CAFOD até os educadores e
coordenadores dos grupos em Recife e Olinda. O presente artigo trata dessa

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“capacitação”: o dar a ver um modelo consoante o qual os atores devem operar e


saberes que devem mobilizar.
12 A partir de um relato etnográfico de um treinamento para funcionários da CAFOD, será
apresentado o pensamento lógico da matriz de projeto a partir do qual os técnicos em
sua sede em Londres desenvolvem composições do social que têm como intuito “atacar
a sociedade” e superar a pobreza. A partir dessa perspectiva, o insucesso dos projetos é
em geral atribuído à pouca familiaridade dos parceiros com as ferramentas de aplicação
do pensamento lógico à solução de problemas sociais. Argumenta-se, no entanto, que
esse fracasso crônico decorre da temporalidade subjacente aos projetos, que supõem o
vácuo social e a sucessão de eventos tal como previsto no papel. Assim, para serem
considerados bem-sucedidos, os projetos devem se dar da forma mais similar possível a
si mesmos. Isso nunca ocorre, já que nas organizações parceiras que trabalham
diretamente com os beneficiários as contingências do dia a dia criam um descompasso
entre a composição fixa vislumbrada no projeto e as composições efêmeras que
emergem durante a sua implementação.
 
Sistema de gestão de ciclo de programa (PCM)
13 Como a implementação do PCM era prioridade para a divisão internacional, uma equipe
havia sido contratada para desenhar e implementar o novo sistema. Ela era também
responsável por auxiliar os funcionários de programas a avaliar, monitorar e rever o
apoio da CAFOD a projetos e programas. Para isso, oferecia diversos treinamentos,
como o PCM refresher and update training [treinamento de atualização do PCM],
considerado altamente recomendável para as equipes da divisão internacional que
lidavam diretamente com projetos e parceiros.5
14 Os responsáveis pela oficina eram os três funcionários da equipe do PCM: Philip, PCM
project manager [gerente do projeto PCM], um homem em seus 40 anos vindo do setor
privado; Gilbert, PCM development officer [funcionário de desenvolvimento do PCM], um
jovem em seus 30 anos; e Bart, PCM advisor [consultor do PCM], um holandês também
em seus 40 anos, com larga experiência como facilitador na aplicação de ferramentas de
diagnóstico social utilizadas no trabalho de agências de desenvolvimento, como
PEST(LER) analysis, stakeholder analysis, power analysis, problem tree, risk analysis, 6
ferramentas que um bom engenheiro social deveria dominar.
15 A parte facilitada por Bart, que ocupava metade das 5h30 de atividades, tinha como
intuito estimular a produção de documentos de aprovação de projetos e programas com
qualidade supostamente melhor. Bart iniciou o treinamento com a afirmação:
“Queremos mais clareza nos resultados/efeitos e indicadores.” 7 Todo o ciclo do PCM
revolvia em torno do conceito de outcome, o que ficava claro logo no parágrafo inicial
do manual do PCM:
CAFOD quer que seu trabalho com parceiros, projetos e programas resulte em
mudanças nas vidas das pessoas. Queremos conferir mais ênfase nos outcomes dos
projetos e programas que apoiamos. Para tanto redesenhamos nossos processos de
Gestão de Ciclo de Programa (PCM). (CAFOD, 2007, p. 1, grifo no original).
16 Não tão imediatamente era visível o porquê da maior ênfase nos outcomes dos projetos e
programas. Apenas na metade do treinamento, Bart declara – “CAFOD não inventou
isso” –, e logo a seguir menciona como outcome era usado pela Big Lottery, uma agência
financiadora de projetos ligada à loteria no Reino Unido, a quem a CAFOD

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eventualmente solicita recursos. Perguntei-lhe: quem trabalha com objective e quem


trabalha com outcomes? Big Lottery trabalha com outcome; USAID [agência
estadunidense para o desenvolvimento] com outcome; UE [União Europeia] com objective
e result.8 Em suma: a CAFOD precisava alinhar-se às metodologias utilizadas pelas outras
grandes agências e o treinamento – pensado como uma capacitação das equipes na
CAFOD – nada mais era do que o dar a ver um modelo a partir do qual os funcionários
deveriam operar, e saberes que deveriam mobilizar para aumentar as chances de a
organização estabelecer relações com outras agências financiadoras.
17 Não apenas os parceiros deveriam ser capacitados, mas também os funcionários da
própria organização. Bart, em entrevista, expressou a seguinte opinião sobre uma
gerente de programa da divisão internacional: “Ela é uma boa garota, mas não tem as
competências necessárias.” Isto refletia a sua visão geral sobre os funcionários de
programa:
A CAFOD não tem funcionários treinados nas competências necessárias. Eles sabem
línguas, têm conhecimento em áreas específicas como saúde, mas nenhum
conhecimento em sistemas, nenhuma experiência em apoio de parceiros de
programas. As organizações americanas têm muito mais treinamento nessas
competências… A CRS (Catholic Relief Services) [dos Estados Unidos] é muito mais
técnica. (Bart, entrevista em junho de 2008).
18 Bart acreditava que as agências de desenvolvimento estariam melhor preparadas se
contratassem pessoas advindas da área de administração, cujas ferramentas permitem
uma atuação considerada mais eficiente. Por isso, ao contrário do que fazia com os
development workers [profissionais do desenvolvimento] na CAFOD, Bart exaltava aqueles
vindos do setor privado, como Philip, gerente da equipe PCM: “Ele não é um
profissional da área de desenvolvimento. O setor privado é mais focado em resultados.
As coisas têm que mudar no [setor do] desenvolvimento.”
19 Para Bart, um planejamento feito de maneira competente era a única forma de
efetivamente erradicar a pobreza e fazê-lo através de uma relação genuinamente
igualitária com as organizações parceiras:
O ciclo PCM é feito em conjunto, nós ao lado de nossos parceiros. A CAFOD não pode
ter uma mentalidade de torre de marfim, uma mentalidade de financiador-
beneficiário. Nós precisamos fazer programação horizontal, não o controle de
programas verticais. Se três parceiros trabalham juntos, teremos impacto melhor…
“Não”, as pessoas dizem, “nós temos nossa identidade!”… Mas você não perde sua
identidade, você abre mão de um pouco de autonomia. Nós trabalhamos em
parceria. O PCM não deve ir contra isso de forma alguma. Outcomes e indicators
devem ser acordados na base, numa matriz simplificada. É uma prática orientada
para a base, é simples. Os parceiros a apreciam. Eles sentem que é um reforço
positivo para seu trabalho. A matriz é baseada em pensamento lógico… desde que todos
acreditem nela, ela funciona. (grifo meu).
20 O bom planejamento feito lado a lado com organizações parceiras, na base, garante o
resultado almejado e a eficiência do projeto. Indispensável, todavia, é a crença conjunta
no poder do pensamento lógico, expresso através de uma matriz simplificada,
desenvolvida em oficinas com a presença do indispensável flip-chart. Um objeto como o
flip-chart – espécie de lousa portátil composta por um bloco de papel em branco apoiado
sobre um cavalete, comumente utilizado em oficinas e reuniões – é importante porque
permite inscrever coletivamente no papel uma composição do social, em processo dito
participativo, decisiva para o desenho da intervenção social. O modelo de matriz
utilizado pela CAFOD, sempre em formato de tabela, era o seguinte:

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Tabela 1. Modelo de matriz utilizado pela CAFOD.

Meta do Programa:

Meta do Projeto:

Quais mudanças específicas o


Como você saberá se estas Quais atividades específicas
projeto pretende operar?
mudanças estão acontecendo / serão realizadas para operar
(anticipated outcomes [efeito
aconteceram? (indicadores) esta mudança? (atividades)
antecipado])

21 As habilidades que Bart considerava importantes, aquelas que ele acreditava serem de
fato necessárias para combater a pobreza com eficiência e evitar uma mentalidade de
torre de marfim, iam além da simples capacidade de gerência; e incluíam a do
engenheiro social de traçar rumos futuros de forma estratégica. A ideia subjacente à
suposta falta de competência dos funcionários de programa (os especialistas em
development), e à presumida competência do funcionário focado em resultados (o
profissional do setor privado), era a mesma que instituía como necessária a capacitação
– o dar a ver um modelo consoante o qual se deveria operar, os saberes que se deveriam
mobilizar e, principalmente, a familiarização com uma forma determinada de pensar.
22 Lévi-Strauss (1976, p. 36), no célebre texto em que explora a diferença entre o
pensamento científico e mítico, que considera nada mais do que “dois níveis
estratégicos onde a natureza se deixa atacar pelo conhecimento científico”, afirma que,
ao contrário do bricoleur que deve se arranjar com os meios-limites (um conjunto
restrito de ferramentas, não definido por um projeto), o engenheiro concebe e procura
ferramentas na medida de seu projeto (Lévi-Strauss, 1976, p. 38-39). O sistema PCM
nada mais é do que uma ferramenta elaborada com um projeto como horizonte, que
como explicitado no CAFOD 2010, era a “mudança nas vidas das pessoas”. Note-se: o
projeto não consiste na modificação de estruturas sociais, reorganização do sistema
mundial, extinção da sociedade de classes, ou mesmo no que era antigamente
enunciado na organização – o combate às “estruturas de pecado”. O projeto atual é o de
operar mudanças pontuais na vida das pessoas, não muito diferente do encontrado em
outras grandes agências de desenvolvimento envolvidas em emaranhados institucionais
de combate à pobreza (Morawska Vianna, 2010). As ferramentas concebidas na medida
de tal projeto têm a importante particularidade de se adaptar às especificidades de lutas
localizadas dos mais diversos tipos – indígenas, mulheres portadoras de HIV,
quilombolas, grupos em periferias de cidades. A matriz – segmentada em caixas para
goal, outcomes, indicators, activities – enquadra qualquer tipo de problema, permitindo
que especificidades de cada projeto caibam dentro do horizonte comum de trabalho, na
área de atuação definida como development. Isso permite, por um lado, que organizações
com atuações específicas tenham para si canalizados recursos e se enganchem a
emaranhados institucionais de longo alcance, e, de outro lado, que as organizações
internacionais estendam a sua presença em muitos lugares, conectando-se a parceiros
com lutas extremamente diferentes entre si.
23 Assim, o treinamento sobre como fazer relatórios de boa qualidade revelou-se uma
verdadeira lição em engenharia social – um nível estratégico onde a sociedade se deixa
atacar. Algumas das primeiras lições de Bart no treinamento eram expressas com

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afirmações como: “Metas devem ser realistas. Você começa com outcomes, seis no
máximo. Outcomes são logicamente conectados.” Bart menciona como uma técnica de
planejamento como o problem tree [árvore de problemas] dava melhor entendimento
acerca da conexão lógica entre outcomes. Apesar de apenas mencioná-la no
treinamento, tal técnica era explorada no manual do PCM, e é bastante expressiva do
tipo de procedimento que os especialistas em desenvolvimento colocam em prática com
vistas a traçar planos estratégicos de intervenção social e assim operar “mudanças nas
vidas das pessoas”.
24 A árvore de problemas, idealmente desenvolvida através de método participativo,
contém dois importantes elementos: a visualização de relações causais num diagrama e
o estabelecimento de hierarquia de causa e efeito entre problemas. O exemplo oferecido
no manual é na área de segurança alimentar (Figura 1).
 
Figura 1. Diagrama de problemas (CAFOD, 2007, p. 244).

25 Uma lista de problemas é disposta em quadrados, organizados entre si de forma que se


identifique a causa original do problema maior (efeito final). Por exemplo, uma alta
incidência de desnutrição é causada remotamente pela má manutenção dos sistemas de
irrigação, erosão do solo nas montanhas e conflitos étnicos em distritos vizinhos. Entre
estas causas e o efeito final (a ser combatido), outros problemas são dispostos em
relação de causa e efeito entre si.
26 O mesmo diagrama sofre uma transformação, descrita da seguinte maneira: “A
tradução da situação negativa na árvore de problema em um estado positivo alcançado
(os outcomes), por exemplo ‘baixa produção de arroz’, é convertido em ‘produção de
arroz melhorada’.” O diagrama de causas e efeitos torna-se um diagrama de meios e fins
a partir de um exercício linguístico em que um problema é convertido num estado
positivo alcançado, isto é, um outcome (Figura 2).

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Figura 2. Diagrama de outcomes (resultados) (CAFOD, 2007, p. 245).

27 A composição inscrita no diagrama permite que se desenhe uma estratégia de “ataque à


sociedade”: a solução de um problema baseado num processo lógico, simples, que
segundo Bart os parceiros apreciam como um reforço de seu trabalho. O problema
maior “alta incidência de desnutrição” torna-se a meta “incidência de desnutrição
reduzida”; uma de suas causas, a “diminuição de produção de arroz em terras baixas”
torna-se o outcome “produção de arroz em terras baixas aumentada”. Os outcomes são
então agregados para que caibam dentro da matriz, oferecendo um diagrama intitulado
Clustering of outcomes [Aglomeração de resultados esperados] (Figura 3).
 

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Figura 3. Diagrama de aglomeração de outcomes (CAFOD, 2007, p. 245).

28 Nesse exemplo, são quatro os outcomes que emergem do exercício, relacionados a:


sistema de irrigação; produção agrícola; fertilidade do solo; e imigração. A
transformação de problemas em outcomes e a sua posterior organização em formato de
matriz tem idealmente o intuito de calcar as ações sobre um pensamento lógico, o que
permite traçar estrategicamente os rumos da ação e mensurar o resultado da
intervenção, ou seja, se o estado positivo determinado no desenho do projeto foi de fato
alcançado.
29 Percebe-se assim que a engenharia social envolve em grande medida um procedimento
lógico em torno de formulações linguísticas. Bart não escondia sua irritação com os
outcomes encontrados no WebPromise, a base de dados da CAFOD, que considerava
longos e confusos. Daí seu treinamento consistir sobretudo na aplicação de exercícios
linguísticos.
30 Um deles visava aprimorar alguns dos outcomes encontrados do WebPromise:
 
Tabela 2. Esquema de outcomes definidos e aprimorados.

Outcomes definidos Outcomes aprimorados

Uma coexistência pacífica de


grupos de base religiosa em
Apoiar comunidades e organizações de base, as sanghas Myanmar.
budistas e membros de todas as outras fés, a exercer papel
Ou
ativo no processo de desenvolvimento, para criar uma
sociedade civil saudável em Myanmar. Uma sociedade civil forte em
Myanmar através de comunidades
e organizações de base.

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Apoiar três delegados indígenas à Convenção sobre Alterações Três delegados indígenas
Climáticas da ONU (UNFCCC) em Bali, 3-14 dezembro de 2007, informados para que lidem com
para que possam atender à conferência e receber treinamento alterações climáticas e se engajem
especializado para que no futuro sejam capazes de participar e com órgãos da ONU quanto às
influenciar negociações em alterações climáticas na ONU. alterações climáticas.

Apoio de qualidade a pessoas


Capacitar os funcionários HIV/Aids a gerenciar e prover
vivendo com HIV/Aids e suas
assistência e apoio a pessoas vivendo com HIV e Aids.
famílias.

31 Bart dizia: “Mantenha as frases simples. Evite uma terminologia que soa bem, mas não
diz nada.” A modificação de “capacitar funcionários a gerir e prover apoio a pessoas
vivendo com HIV/Aids” para “apoio de qualidade para pessoas vivendo com HIV/Aids e
suas famílias” evidenciava que “dizer nada” ou “dizer algo” estava menos relacionado
ao conteúdo das frases do que com a precisão da formulação linguística envolvida no
procedimento lógico acima descrito.
32 Como se medem outcomes? “Medimos outcomes com indicadores.” No treinamento, Bart
se utilizava do exemplo de parceiros: “No Brasil, um dos programas conseguiu
financiamento da União Europeia. Você pergunta para eles o que mudou para os jovens
nas favelas com o treinamento em liderança, sua resposta é ‘Eles gostam’ ou ‘Não
sabemos’.” Outro exemplo: “Em Bangladesh, eles são extremamente profissionais,
especialmente em organizações com pessoal mais treinado. Todavia, quando se
pergunta para as pessoas sobre indicadores, elas contam estórias.” Bart insistia na
necessidade de se trabalhar mais sistematicamente, mais objetivamente:
Dez pessoas diferentes lhe dirão dez estórias diferentes. Temos que ser mais
objetivos. Em desenvolvimento as pessoas não gostam de quantificar as coisas, é
uma “palavra feia”. Mesmo seus indicadores qualitativos têm de ser mensurados.
Um indicador não é uma verdade, é só uma indicação do progresso que você faz.
Não significa que você atingiu seu objetivo, é só uma indicação.
33 Sobre os indicadores, alguns conselhos: delegar a alguém a mensuração dos outcomes;
realizar a chamada baseline research [pesquisa de base] no começo do programa;
estabelecer indicadores mensuráveis:
Três ou quatro indicadores por outcome. Você pode se enganar, mas com quatro
você está a salvo. Com mais, é o inferno. O projeto da União Europeia em Ruanda
tinha 36 indicadores. Você torna sua vida um inferno. Faça algo simples. Faça
indicadores que os parceiros também podem medir. Nós não medimos calorias, mas
a perda de peso de crianças é mais fácil. Como medimos violência – com um teste
psicológico complicado ou com quantos casos foram denunciados à polícia? Qual é
mais fácil?
34 Mais uma tabela foi apresentada com indicadores encontrados no WebPromise com
exemplos de como se poderia aprimorá-los:
 
Tabela 3. Esquema de indicadores definidos e aprimorados.

Indicadores definidos Indicadores aprimorados

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No fim da intervenção, veremos um aumento de 50% dos casos


trazidos a público em violações de direitos humanos cometidos
Número de violações em pelas forças rebeldes e governamentais dos distritos A, B e C para as
direitos humanos comissões de direitos humanos (identificadas) e organizações de
direitos humanos (é preciso estabelecer uma informação-base com
isso).

No fim da intervenção veremos uma diminuição em 40% nas três


Redução na incidência de principais doenças evitáveis trazidas às clínicas de saúde primária
doenças evitáveis nas (isto é, malária, diarreia e sarampo) nos distritos A e B por membros
comunidades alvo das comunidades alvo A, B, C… (é preciso estabelecer informação de
referência).

Pessoas vivendo com HIV e No fim da intervenção veremos um aumento em 25% de pessoas
Aids e suas famílias, alvo do vivendo com HIV e Aids frequentando as clínicas de saúde
programa, fazendo uso dos identificadas nos distritos identificados solicitando consultas com
serviços de saúde disponíveis médicos. (de …% agora).

35 O grande desafio, segundo Bart, era tomar para si o crédito da mudança, já que há
muitos outros fatores envolvidos quando da implementação de um projeto, muitas
vezes imprevistos e fora do controle dos funcionários envolvidos. Uma forma de fazê-lo,
mais difícil e trabalhosa, estava contida na seguinte sugestão: “Você deve mapear os
outros fatores”, isto é, realizar risk analysis [análise de risco], stakeholder analysis [análise
de partes interessadas], e assim por diante. A outra forma era simplesmente estabelecer
no desenho do programa metas alcançáveis: “Coloque metas nos seus indicadores – isso
cria accountability [responsabilização], mas não metas inalcançáveis. Se eu estabeleço
metas, sou responsável por elas. O aumento em 30% é seguro, melhor do que dizer 40%,
uma meta que não se pode alcançar.” A medida do sucesso depende também da
elaboração de metas possíveis de serem alcançadas.
36 De acordo com a lógica da engenharia social, um bom planejamento permite não apenas
um projeto estruturado, como também uma maior accountability [responsabilização]. A
matriz torna-se a referência contra a qual se avalia o projeto, e dentro do mundo do
desenvolvimento há vários modelos utilizados. O mais disseminado é a logical framework
[matriz lógica] (ou log-frame), desenvolvida no fim dos anos 1960 para o USAID, e
utilizado desde então por grandes financiadoras governamentais e não governamentais
que trabalham com projetos de desenvolvimento.9 A log-frame é um pouco mais
complexa que a matriz de outcomes da CAFOD, e sua lógica é baseada na ideia de uma
sequência de eventos: inputs [entradas] possibilitam activities [atividades], que
provocam outputs [saídas], que cumprem purposes [propósito] (equivalentes aos
outcomes aqui explorados), que alcançam a goal [meta]. Não cabe aqui explicar em
detalhes a log-frame, apenas mencionar que também ela é desenvolvida a partir do
mecanismo de conversão da relação de causa e efeito em meios e fins (através da árvore
de problemas). Tanto a matriz de outcomes como a log-frame expressam uma sequência
de hipóteses de forma que a informação preponderante é o fim, a meta a ser alcançada.
Isso implica que o futuro (o estado positivo alcançado) é a referência da ação presente.
37 Em 2003, a BOND, uma rede de mais de 270 ONGs de desenvolvimento no Reino Unido,
da qual a CAFOD também faz parte, produziu uma pequena publicação com instruções
gerais sobre como desenvolver uma log-frame, como orientação a seus membros pelo

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fato de ser este o modelo usado pelo DFID [agência britânica de desenvolvimento
internacional]. Nela, lia-se:
O que eu preciso para produzir uma matriz lógica?
– uma quantidade de grandes folhas de papel (preferencialmente folhas de flip-
chart);
– lápis, apagador e notas de “Post-it” ou cartões, para que se possa ajustar e
consertar à medida que se avança;
– um lugar para trabalhar sem distrações;
– idealmente, alguém com quem discutir e trocar ideias sobre a matriz;
– o máximo de informação possível sobre o projeto planejado
– fazer preferencialmente “no campo”. (BOND, 2003, p. 3).
38 As ferramentas sugeridas para o desenho da matriz implicavam um trabalho solitário,
sem distrações, com informações à mão e algum eventual interlocutor, além do flip-
chart, aqui não para uma composição coletiva, mas como forma de visualização do
procedimento lógico e do resultado final em forma de matriz. Essa era de fato a forma
mais comum de produção das matrizes:
A realidade das propostas de financiamento e de completar matrizes lógicas
geralmente implica um funcionário de escritório no Reino Unido tentando resumir
um esboço de projeto para uma solicitação de financiamento. Todavia, se usada
corretamente como uma ferramenta de planejamento, a abordagem de matriz
lógica deve ser desenvolvida primeiro pela, ou trabalhando próximo a, pessoa mais
intimamente envolvida com a implementação do projeto, que mais provavelmente
será o coordenador do projeto ou a organização parceira no exterior […].
Escrever matrizes lógicas no Reino Unido não é tão participativo, o que levou a
críticas à matriz lógica como uma ferramenta de planejamento. Idealmente ela
deveria ser produzida no país para que durante o estágio de planejamento
abordagens participativas possam ser usadas para alimentar o log-frame à medida
que é desenvolvida. Enquanto os beneficiários de projeto podem não se identificar
facilmente com o conceito de abordagem de matriz lógica, eles podem identificar os
fatores que são críticos ao sucesso do projeto, bem como os mais apropriados
indicadores de progresso. (BOND, 2003, p. 3, grifo meu).
39 Admite-se que a “realidade das solicitações de financiamento” – o mundo das agências
de desenvolvimento –, leva a ferramenta de planejamento a ser predominantemente
utilizada por um desk officer [funcionário de escritório] no Reino Unido. Ao mesmo
tempo, há o reconhecimento da importância da participação dos parceiros no processo
de desenvolvimento da matriz, fruto das muitas críticas aos profissionais do
desenvolvimento ao longo dos anos, por ignorarem a perspectiva daqueles para quem
as intervenções são desenhadas. Como conciliar a necessidade de participação dos
beneficiários (e organizações de base) no processo de planejamento com o fato de que
“beneficiários de projetos não se identificam com o conceito de matrizes”?
40 A insistência aqui em explorar as enunciações de Bart (em seu treinamento e
entrevista) se dá porque elas expressam uma apologia aos princípios da engenharia
social, segundo os quais haveria a possibilidade de organizações de base se
identificarem com o conceito de matrizes caso tivessem a facilitação necessária para
tanto. Se a erradicação da pobreza estava condicionada a programas e projetos bem
desenhados, cuja única condição era a aplicação de um pensamento lógico, daí decorria
que era apenas preciso dar oportunidade para os parceiros o fazerem através de
oficinas de capacitação e de planejamento conjunto. Nada que um bom facilitador não
pudesse resolver – daí ele enfatizar em sua entrevista a sua competência como
facilitador e sua crítica à mentalidade da torre de marfim. A matriz era orientada para a

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base porque era simples, direta, lógica, mas para que funcionasse era necessária a
crença comum em seus princípios; era necessária a identificação por todas as partes
envolvidas com o conceito de matrizes.
41 Compreende-se assim que oficinas participativas de planejamento conjunto não
existem como forma de se apreender a perspectiva dos beneficiários ou organizações de
base, mas são instâncias em que se apresenta e exercita uma certa forma de pensar –
um nível estratégico de se atacar a sociedade. Nelas, abre-se a possibilidade aos
parceiros de participarem do trabalho de engenharia social, não apenas contribuindo
com informações a que não se tem acesso a partir dos escritórios no Reino Unido, como
sobretudo utilizando as ferramentas de planejamento em que se baseia o trabalho das
grandes agências de financiamento – os saberes técnico-burocráticos que se mobilizam
para se conectarem a emaranhados institucionais de longo alcance.
42 A afirmação de que beneficiários (e organizações de base) não se identificam com
matrizes – a inscrição no papel do projeto tal qual se passa no cotidiano (em formato de
tabela) –, não está portanto em alguma suposta crença por parte dos engenheiros
sociais de que beneficiários prescindem de pensamento lógico. Por um lado, a
afirmação é baseada em cem estórias contadas por funcionários a partir da experiência
em cem lugares, transformadas em generalizações: “os parceiros não são objetivos,
contam estórias”; “deve-se manter os indicadores simples para que parceiros consigam
medi-los”; “parceiros tendem a focar em atividades”. Por outro lado, a explicação que
um engenheiro social oferece para a não identificação de beneficiários (e organizações
de base) a matrizes está na pouca familiaridade com ferramentas de aplicação de
procedimento lógico à solução de problemas. Arrisco, porém, uma outra explicação
baseada numa lógica diferente da que instaura o próprio problema: a não identificação
às matrizes pode ser compreendida pela temporalidade subjacente ao trabalho de
engenharia social aqui descrito.
 
A lógica das matrizes e seu descompasso com o
mundo dos beneficiários
43 O eixo de referência para as ações de um projeto é o fim de seu ciclo, representado pelo
outcome (estado positivo alcançado). O procedimento que transforma o problema em
um outcome cria uma composição do socius, representada pela matriz, que supõe uma
sequência de eventos, pensadas não em termos de causa e efeito, mas fim e meios, ou
seja, uma meta desejada no presente será alcançada desde que atores A, B e C operem as
ações X, Y, Z. A composição é em si diacrônica, imaginada como uma sequência de
eventos inscritos no tempo, embora haja o reconhecimento de que no mundo dos
beneficiários os eventos não se passam como previsto:
Nenhum projeto de desenvolvimento existe num vácuo social. É importante que a
situação desejada futura seja descrita de tal modo que torna possível verificar num
estágio posterior em que medida o projeto foi bem sucedido em relação a seus
objetivos e os grupos-alvo. (Norad, 1999, p. 7).
44 Nenhum projeto existe num vácuo social, mas a construção da matriz no flip-chart exige
que se isole o objeto da intervenção social de forma que se suponha o vácuo social para
que o projeto se dê da forma como desenhado.

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45 Importante diferenciar composições fixas da matriz de projeto com as composições


móveis que ordenam as ações das organizações de base que lidam diretamente com os
beneficiários.
46 Como já mencionado, considera-se uma composição aquilo que os atores vislumbram
como o campo do possível, definido por elementos (pessoas, coisas, categorias, nomes)
recorrentemente postos em relação dentro de fronteiras de mundo continuamente
delineadas, a cada atualização. As composições, constantemente constituídas no dia a
dia e referência para a ação, são sucessivamente reconfiguradas a partir das conexões
que efetivamente se dão no mundo dos beneficiários. Inscritas na diacronia, elas são
intrinsecamente maleáveis e efêmeras. No caso da composição representada pela
matriz, esta é iterada sucessivamente na forma como projetada, e não redelineada a
cada atualização (a cada atividade realizada). Há o prolongamento no tempo de uma
mesma composição (representada pela matriz) como referência para a ação. Eis a
temporalidade subjacente ao trabalho de engenharia social: uma composição
(representada pela matriz) que carrega em si uma dimensão diacrônica (a sucessão de
eventos) é iterada sucessivamente tendo como suposto o vácuo social (sempre
sincrônico).
47 Ora, isto é diferente do que se passa no dia a dia dos projetos, e aqui nos aproximamos
da explicação de por que os parceiros não se identificam com o conceito de matrizes.
Entre os que implementam os projetos, o trabalho é predominantemente organizado
em torno de um calendário de atividades. Isso provoca, à medida que os eventos se
sucedem, a reconfiguração sucessiva das composições que são referência para a ação
cotidiana; ou seja, as composições estão inscritas na diacronia e consequentemente há
uma constante adaptação aos imprevistos. O trabalho é marcado pela reação às
contingências, o que é tido pelos engenheiros sociais como uma atuação não
estratégica.
48 O olhar estratégico, que baseia as ações numa matriz rígida (iterada sucessivamente da
forma como projetada) apresenta a desvantagem de não permitir a reação a
imprevistos, senão após seu fim, como medida de verificação do sucesso (ou fracasso)
do projeto. Dois são os mecanismos formalmente estabelecidos para que haja uma
adaptação às contingências que emergem. Um deles é a realização de análises para
prever desvios e riscos e assim incorporá-los à matriz. O outro é o ajuste periódico da
matriz a eventuais mudanças, o que geralmente ocorre na revisão anual do
planejamento. Sendo a matriz simultaneamente referência para a ação e medida de
verificação do projeto, quanto mais ela consegue antecipar possíveis riscos (os
imprevistos e desvios a si mesma), melhor ela se torna medida de si, ou seja, mais
provavelmente apontará o seu sucesso, decidido a partir de seus próprios termos.
 
Tabela 4. Project matrix / matriz de projeto.10

Project Title: Projeto Tarrafa - Street Children's Centres in Recife and


Project ID: BRA458
Olinda

Meta do Projeto: Desenvolver um programa em rede, de forma integrada e complementar, que


possa contribuir para a efetivação do sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente
promover a inclusão de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social através de uma
pedagogia participativa e libertadora e da ação complementar junto à família, escola e comunidade.

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Quais mudanças específicas o Quais atividades


Como você saberá se estas mudanças
projeto pretende operar? específicas serão realizadas
estão acontecendo / aconteceram?
(anticipated outcomes [efeito para operar esta mudança?
(indicadores)
antecipado]) (atividades)

1.1. Oficinas para jovens


1.1. Crianças e adolescentes em
sobre cidadania.
situação de risco têm sua
cidadania construída e 1.2. Oficinas para jovens
resgatada. sobre drogas, higiene,
1. Aumento no número de crianças e prevenção de doenças
1.2. Crianças e jovens têm
jovens com sua auto-estima (tuberculose, hanseníase,
crescente consciência crítica,
melhorada e conscientes das leptospirose), meio-
participação e engajamento
questões que afetam sua ambiente, sexualidade e
efetivo na vida comunitária.
comunidade, como saúde e meio- DST.
1.3. Crianças e jovens têm ambiente.
1.3. Visitas regulares a
melhor relacionamento entre
famílias para
os educandos e suas famílias e
aconselhamento e apoio;
mais respeito pela comunidade
encontros regulares para
e por uma cultura da paz.
as famílias nos centros.

2.1. Crianças e adolescentes


reintegrados na sociedade 2.1. Oficinas de leitura,
2. Aumento no número de crianças e
através de iniciativas populares artesanato, teatro,
jovens participando das atividades
em que eles participam na serigrafia, pintura e
do projeto que se sentem mais
elaboração e implementação. treinamento vocacional.
integrados na comunidade e
2.2. Crianças e adolescentes aprenderam habilidades 2.2. Treinamento esportivo
com auto-estima melhorada vocacionais. (futebol, capoeira, dança, e
através de atividades artísticas outros esportes).
e culturais.

3.1. Classes suplementares


3. Crianças e adolescentes para crianças que não
3. Número de oficinas conjuntas com
envolvidos e interessados no estão frequentando a
escolas demonstra o envolvimento
processo educativo como parte escola.
de instituições de ensino locais no
de sua formação e treinamento
trabalho com crianças em situação 3.2. Oficinas de direitos da
através de atividades conjuntas criança e adolescente para
de risco da comunidade.
com escolas locais. professores e funcionários
das escolas.

4. Moradores da comunidade 4. Aumento no número de jovens e 4.1. Participação nos


com maior capacidade de comunidades ativamente Conselhos estaduais e
realizar trabalho para participando em espaços públicos municipais dos direitos da
influenciar políticas públicas trabalhando para achar soluções criança e adolescente.
que busquem melhorar a locais para proteger crianças e 4.2. Eventos conjuntos com
situação das crianças da jovens em situação de risco, e crianças e com unidades
comunidade (saúde, água, também melhorar serviços locais promovendo questões
infra-estrutura). (saúde, água, infra-estrutura). como HIV e alfabetização.

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5.1. Reuniões de
monitoramento e
5.1. Funcionários aperfeiçoam seus planejamento.
sistemas de administração e 5.2. Reuniões de avaliação.
planejamento para assegurar a 5.3. Treinamento
sustentabilidade de projetos pedagógico para
econômicos e políticos. educadores.
5. Os três centros têm maior
5.2. Avaliação produzida e 5.4. Presença em atividades
capacidade de prestar serviços
recomendações implementadas. de articulação
e melhorar seu gerenciamento
institucional. 5.3. 20 educadores treinados em (participação em fóruns,
questões pedagógicas. reuniões de conselhos de
5.4. Quantidade de recursos direitos).
assegurados com a submissão de 5.5. Preparação de
propostas para fundos locais e proposta a ser submetida
agências doadoras. para fundos locais e
agência doadoras.
5.6. Oficinas psicológicas.

49 A matriz do Projeto Tarrafa encontrada no WebPromise (Tabela 4) originalmente


contém um texto em português, redigido pelos parceiros em Recife e Olinda, e outro em
inglês, traduzido pelos técnicos da CAFOD. É interessante perceber como no processo de
tradução da meta (goal) alguns elementos importantes perdem-se:
Project goal: children and young people in the favelas of Recife adopt positive values such
as citizenship and engage with their communities to defend their right to a life free from
violence, poverty and exclusion.
Meta do projeto: desenvolver um programa em rede, de forma integrada e
complementar, que possa contribuir para a efetivação do sistema de garantias de
direitos da criança e do adolescente promover a inclusão de crianças e adolescentes
em situação de risco pessoal e social através de uma pedagogia participativa e
libertadora e da ação complementar junto à família, escola e comunidade.
50 A frase “contribuir para a efetivação do sistema de garantias de direitos da criança e do
adolescente” carrega o vestígio de um Estado atuante; “uma pedagogia participativa e
libertadora” revela a influência de Paulo Freire (que também é comum no mundo do
desenvolvimento); e “ação complementar junto à família, escola e comunidade” denota
a inserção no bairro e a interface com estruturas do Estado. Na versão inglesa, a meta
parece arrancada do contexto, resultando numa formulação que poderia ser utilizada
para qualquer bairro pobre de uma grande cidade no sul (ou mesmo norte) geopolítico:
“Crianças e jovens em ____________ adotam valores positivos como cidadania e
participam da comunidade para defender seu direito a uma vida livre de violência,
pobreza e exclusão.”
51 Como enfatizado, há o enquadramento de uma situação complexa num formato em que
as informações se tornam passíveis de serem geridas e mensuradas. A matriz torna-se
referência para a ação e medida do sucesso do projeto. Compreende-se a transformação
operada na matriz em sua versão inglesa: a efetivação do sistema de garantias dos
direitos das crianças e adolescentes envolve demasiados atores e fatores, para além do
escopo do projeto, e é certamente mais difícil de mensurar do que, por exemplo, o

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aumento em x% na participação de grupos específicos de crianças e adolescentes em


atividades dentro de bairros determinados.
52 Tal meta é alcançada caso se atinjam cinco outcomes. Os dois primeiros estão bastante
ligados às principais atividades em torno das quais revolve o trabalho dos grupos:
visitas às famílias e oficinas oferecidas às crianças e adolescentes, que abordam temas
como cidadania, saúde, leitura, artesanato, teatro, serigrafia, pintura, treinamento
vocacional, esporte. O terceiro outcome relaciona-se à relação dos grupos com as
escolas, e o quarto à sua relação com a comunidade. O quinto outcome refere-se ao
aspecto que se tornou prioritário na relação de parceria com a CAFOD: o fortalecimento
institucional.
53 A matriz supõe uma sucessão de eventos: oficinas de diferentes tipos acarretam
crianças e adolescentes em situação de risco com a cidadania construída e resgatada
(outcomes 1 e 2); aulas suplementares para crianças e adolescentes que não estão
frequentando a escola acarretam crianças e adolescentes envolvidos e interessados no
processo educativo como parte de sua formação e treinamento (outcome 3); eventos
conjuntos com crianças e comunidades que promovem questões como HIV acarretam
moradores da comunidade com maior capacidade de realizar trabalho para influenciar
políticas públicas que busquem melhorar a situação das crianças da comunidade
(outcome 4); reuniões de avaliação levam os três centros a terem maior capacidade de
prestar serviços e melhorar seu gerenciamento institucional (outcome 5).
54 Independentemente da avaliação de um engenheiro social quanto à presença de falácias
nessas formulações, o que importa aqui é perceber o mecanismo que a engenharia
social instaura. Idealmente, a matriz como referência para a ação é iterada
sucessivamente da forma como projetada, tornando-se espécie de composição dura que
se prolonga no tempo. No dia a dia, contingências emergem e mudam o rumo das
atividades, o que as afasta do planejamento inicial (matriz). Na sede da agência
financiadora esse descompasso é ajustado através de dois mecanismos: análises
realizadas na fase do desenho do projeto que prevêem os riscos (e possíveis desvios à
matriz); e ajustes periódicos da matriz, que ocorrem através de monitoramento a cada
12 meses. No entanto, para aqueles que implementam os projetos, 12 meses é um lapso
de tempo longo demais para realizar tal ajuste, pois no dia a dia o projeto se depara
com muitos imprevistos aos quais é preciso reagir para que possa seguir em frente.
55 Compreende-se assim a centralidade conferida pelos grupos da Tarrafa à chamada
avaliação semanal da equipe, em que o planejamento inicial é ajustado à medida que
imprevistos surgem (classificados como “dificuldades”, pois desviantes da matriz do
projeto). Roberta, uma educadora do Galpão, explicou a importância da frequência de
tais reuniões do seguinte modo: “É para não acumular.” O que acumula é justamente o
descompasso entre a composição estabelecida pela matriz (que se cumpre como
previsto apenas no vácuo social) e aquelas impressas pelo mundo dos beneficiários.
56 Com efeito, o dia a dia do trabalho com os meninos está sujeito a muitas eventualidades,
como demonstra a fala de uma outra educadora do Galpão, Margareth, sobre a dinâmica
na sua oficina:
Às vezes o tema nós mesmos trazemos, que são temas que a gente bota no
planejamento anual e mensal de atividades do Galpão, mas também tem hora que os
meninos trazem o tema que está mexendo muito com eles. Daí a gente tem que dar
uma paradinha naquele tema que a gente estava trabalhando para dar mais atenção
ao que eles estão gritando, alarmando, porque a gente não pode dar as costas para

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uma realidade que eles estão trazendo. Acho que o processo anda melhor dessa
forma.
57 Se os meninos trazem algo que é mais alarmante, mais central para eles do que o tema
planejado, este tem de ficar de lado, embora apenas temporariamente, já que o “mundo
dos projetos”, o território da engenharia social, força a atenção e o retorno sucessivo à
matriz de planejamento. Isso porque o mundo da vida opera um descompasso entre a
composição duradoura, fixa (a matriz), e aquelas composições efêmeras, maleáveis, que
se reconfiguram a cada vez que são atualizadas pelos atores à medida que estes reagem
às contingências. Quanto mais as contingências afastam as atividades do planejamento
inicial, ou seja, quanto mais composições efêmeras se deslocam da composição rígida,
fixa, menos a matriz é boa medida de sucesso. Quanto mais contingências emergem e
mudam o rumo das atividades, mais o projeto ruma ao fracasso apenas e tão somente
por se afastar do planejamento inicial. O fracasso ou sucesso não é, evidentemente,
estabelecido por alguma medida absoluta, mas pelo próprio desenho do projeto, e
portanto sucesso significa o desenho do projeto evitar imprevistos ou prever riscos com
acuidade, ou seja, que ele se dê na prática da forma mais similar possível a si mesmo.
58 Numa das reuniões semanais da equipe do Grupo Comunidade, quando foi anunciada a
chegada da carta de aprovação do Projeto Tarrafa para o triênio 2006-2008, Liedson, um
dos educadores, propôs que na reunião seguinte fosse distribuída “uma cópia do Projeto
Tarrafa para cada educador colocar as coisas da proposta nas oficinas, porque tem
muita coisa no projeto que precisa ser feita”. As reuniões semanais e os relatórios
mensais dos educadores garantiriam o ajuste ao planejado. Como o eixo daquele ano era
meio ambiente, Liedson sugeriu que fossem trabalhadas durante o mês de março
atividades que explorassem a semana da água. Dona Valentina, uma das educadoras
mais antigas, respondeu: “Não, agora é enfeite de Páscoa… faltam quatro semanas para
a Páscoa.” De um lado, via-se um educador mais jovem preocupado em seguir o tema-
eixo e adequar as atividades à matriz de planejamento para que o projeto se desse da
forma mais similar possível a si mesmo. De outro lado, percebia-se uma educadora que
dava mais importância a uma temporalidade que também perpassava o grupo, distinta
daquela instaurada pela sucessão de eventos suposta na matriz.
59 Dona Valentina evidentemente não se identificava com a matriz, mas tampouco muitos
dos funcionários da CAFOD. Isso ocorria não simplesmente, como creem os engenheiros
sociais, pela pouca familiaridade com ferramentas de aplicação do procedimento lógico
à solução de problemas, mas sobretudo pela temporalidade subjacente ao trabalho de
engenharia social. Sob o ponto de vista de qualquer organização, seja uma agência
financiadora com 400 funcionários, seja uma organização de base, quanto mais os
emaranhados institucionais estiverem adensados em torno de si, mais as suas ações
serão guiadas pelos princípios da engenharia social, o que implica a tentativa de excluir
ao máximo outras temporalidades que eventualmente perpassam a organização, e a
aproximação a uma forma de pensar que precisa supor o vácuo social para ser bem-
sucedida.

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NOTAS
1. Este artigo é uma versão modificada de um dos capítulos de tese de doutorado defendida no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (Morawska
Vianna, 2010). Trata-se de uma etnografia baseada no deslocamento institucional pela Rede
Tarrafa: 22 semanas de trabalho de campo em três grupos populares que atuam junto a crianças e
adolescentes de seus bairros em Recife e Olinda; e 53 semanas na sua financiadora CAFOD em
Londres (no escritório da equipe responsável pelos projetos no Brasil dentro da seção da América
Latina na sede da CAFOD, e no escritório regional da CAFOD localizado na diocese de
Westminster). Optou-se por manter expressões em língua inglesa no corpo do texto por se tratar
de conceitos correntes entre meus interlocutores de campo. Todas as traduções são minhas.
2. Cf. CAFOD (2005, p. 6-7).
3. Para menção de como o trabalho de Ribeiro se situa em relação a outras etnografias de grandes
projetos de desenvolvimento, ver Herzfeld (2001, p. 152-170). Esforços na antropologia brasileira
de sintetizar o debate da antropologia do desenvolvimento fora do país encontram-se em
Schröder (1997) e Schröder e Naase (2004).
4. Composições do social são aquilo que os atores vislumbram como o seu campo de intervenção,
definido por elementos (pessoas, coisas, categorias, nomes) postos em relação dentro de
fronteiras de mundo delineadas ciclicamente, a cada novo estágio do sistema PCM (cf. Morawska
Vianna, 2010).
5. Esta seção é em grande parte baseada no treinamento realizado em 15 de outubro de 2007.
6. PEST(LER) analysis é uma análise de situação ou contexto que leva em conta fatores (P)olíticos,
(E)conômicos, (S)ociais, (T)ecnológicos, (L)egais, ambi(E)ntais, (R)eligiosos. Stakeholder analysis é
um processo que identifica pessoas ou grupos com interesse num projeto ou programa. Power
analysis é a análise das relações de poder entre grupos de pessoas ou indivíduos. Problem tree, ou
árvore de problema, é uma ferramenta para explicitar causas de problemas específicos. Risk
analysis, ou análise de risco, é um processo de identificação do que pode dar errado num projeto
ou programa, e formas de mitigação dos riscos (cf. CAFOR, 2007, p. 208).
7. Há sutis e importantes diferenças que serão mais adiante exploradas entre a noção de outcome
[estado positivo alcançado] e outras noções como objective [objetivo], result [resultado], goal [fim,
meta].
8. O próprio manual do PCM da CAFOD (2007, p. 231) cita as obras das quais foi tirado, Big Lottery
e Trócaire: Explaining the difference your project makes: A BIG guide to using an approach (Big Lottery

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Fund/Triangle Consulting, May 2006); From the project model to the programmatic approach
(Trócaire, Aug. 2005); Guiding document for new Trócaire Programme Approval System (Trócaire, Oct.
2005).
9. Cf. Norad (1999), citado como fonte de consulta pelo manual do PCM da CAFOD (2007).
10. Dados do WebPromise em julho de 2008. Foi aqui reproduzida apenas a versão da matriz em
português.

RESUMOS
Este artigo explora os princípios da engenharia social que embasam o trabalho das agências
internacionais de desenvolvimento. A partir de um relato etnográfico de um treinamento na
Catholic Agency for Overseas Development, a agência católica de desenvolvimento internacional
da Inglaterra e País de Gales, será apresentado o pensamento lógico da matriz de projeto a partir
do qual os técnicos da organização são incitados a operar. Argumenta-se que o fracasso crônico
dos projetos, em geral atribuído à pouca familiaridade dos parceiros com as ferramentas de
aplicação do pensamento lógico à solução de problemas sociais, decorre da temporalidade
subjacente aos projetos, que supõem o vácuo social e a sucessão de eventos tal como previsto no
papel. Isso nunca ocorre, já que nas organizações parceiras que trabalham diretamente com os
beneficiários as contingências do dia a dia criam um descompasso entre a composição fixa
vislumbrada no projeto e as composições efêmeras que emergem durante a sua implementação.

This paper explores the principles of social engineering that underpin the work of international
development agencies. By presenting an ethnographic account of a training at the London
headquarters of the Catholic Agency for Overseas Development, I will explore the logical thinking
expected from programme officers when designing log-frames for projects. I argue that the
chronic failure of projects, generally attributed to the unfamiliarity of partners with the tools
that apply logical thinking to the solution of social problems, derives in fact from the temporality
that underlie projects. They suppose a social vaccum and a sequence of events that never takes
place as laid down on paper, since contingencies of everyday life experienced by partner
organizations who work directly with beneficiaries create a mismatch between the fixed
composition envisioned in the project and the ephemeral compositions that emerge during its
implementation.

ÍNDICE
Keywords: development, international agencies, projects, social engineering
Palavras-chave: agências internacionais, cooperação internacional, engenharia social, projetos

AUTOR
CATARINA MORAWSKA VIANNA
Universidade Federal de São Carlos – Brasil

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O que a perspectiva antropológica


tem a dizer sobre a avaliação de
projetos sociais apoiados pela
cooperação internacional?
Maria Lúcia de Macedo Cardoso e Delaine Martins Costa

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 17/12/2013

NOTA DO AUTOR
Agradecemos ao parecerista anônimo de Horizontes Antropológicos pelas valiosas
sugestões.
 
Sobre as motivações iniciais
A gente foi longe demais, o projeto ensinou para a
gente e o investimento foi grande. E ele não é de graça,
é pago na medida em que a gente muda de vida.
Mulher, quebradeira de coco babaçu.1
1 As reflexões desenvolvidas neste artigo partem de nossa experiência na avaliação de
projetos sociais nas últimas três décadas, tanto da prática de gestão como da expertise
desenvolvida na realização de avaliações e monitoramentos. Trata-se de projetos
implementados por organizações não governamentais (ONGs), movimentos sociais e

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80

instituições governamentais em parceria com ONGs ou movimentos sociais, no Brasil e


na Bolívia, que receberam financiamento de agências da cooperação internacional. 2
2 Como projeto social referimo-nos a proposta de intervenção em dada situação que visa
produzir mudanças nas relações sociais, em geral, descritas como desiguais e
assimétricas. Tem como ponto de partida uma interpretação da situação, que implica
uma determinada visão de contexto e uma proposta de mudança, a qual pode ser da
perspectiva da organização executora ou da agência de cooperação que está
financiando; ou ainda uma interpretação negociada.
3 As agências da cooperação internacional3 que financiam tais projetos atuam em vasto
campo de interesses e temas; contudo, uma diretriz comum, particularmente nas
últimas duas décadas, é a elaboração de planos de monitoramento e avaliação (PMA)
dos projetos e, como parte deles, a realização de avaliações externas, em geral, em
períodos intermediários e finais dos projetos.
4 Há uma gama de instrumentos de monitoramento utilizados pelas organizações
executoras dos projetos, ou mesmo exigidos pelas agências financiadoras, os quais, por
sua vez, são apropriados e aplicados de forma bastante diferenciada. Os instrumentos
mais comuns são relatórios de atividades, registros de presença em reuniões e eventos,
fotografias, relatórios financeiros. A avaliação interna também é comum, e geralmente
ocorre uma vez por ano. Em organizações mais estruturadas, essas práticas, em geral,
fazem parte da rotina institucional. A avaliação externa, nesses casos, refere-se a
projetos específicos e parte de uma exigência da agência que financia.
5 O consultor, em geral, negocia com a agência o formato da avaliação; pode propor um
plano de trabalho, desde que dentro alguns padrões predefinidos pela agência. O
formato mais comum inclui: a) análise da documentação disponível sobre o projeto,
incluindo relatórios da organização executora; b) visita a campo para conhecer as
intervenções propostas pelo projeto e entrevistar atores envolvidos na execução e/ou
beneficiários, além de outros atores interessados no processo de intervenção, como
políticos, outras organizações, empresas, etc.; c) análise do material; d) elaboração de
relatório preliminar com sugestões; e) apresentação do relatório à equipe executora do
projeto e/ou agência financiadora; f) revisão e elaboração do relatório final. O grau de
autonomia do avaliador externo é bastante relativo e sua performance depende, por um
lado, da relação de confiança que mantém tanto com a agência financiadora como com
a organização executora e, por outro, das exigências da agência em relação aos
parâmetros da avaliação. Tivemos experiências muito variadas nesse sentido; desde
total confiança e autonomia que impunham cuidado para manter certo distanciamento,
até limitação no acesso às informações, tempo extremamente exíguo, contextos
políticos complicados e exigência de seguir estritamente o marco lógico do projeto. 4
Nesses casos, houve pouca flexibilidade para apreender os processos sociais de que
acompanhamos in loco, muitas vezes mais complexos do que se poderia supor e que
corriam o risco de serem simplificados e reduzidos se não aprofundados ou
devidamente registrados na sua amplitude.
6 A disseminação da avaliação de projetos abriu uma nova área de atuação para cientistas
sociais, sobretudo antropólogos, facilitada pelo fato de que esses profissionais já
atuavam junto a movimentos sociais e organizações não governamentais nas últimas
décadas. Passaram a conviver com outras tradições disciplinares, notadamente,
voltadas para a gestão, como é o caso da administração. Mais uma, entre as várias

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possibilidades de atuação de antropólogos para além da academia, tema ainda marginal


de reflexão dentro da própria disciplina5.
7 O pesquisador-avaliador atua como mediador entre as organizações da cooperação
internacional e o grupo que executa o projeto – seja uma comunidade, uma associação
ou uma ONG – e tem, necessariamente, como eixo de sua pesquisa o PMA do projeto.
Nessa prática profissional, o antropólogo depara-se com o desafio de ajustar seu olhar
afinado para a cultura local, as relações sociais, as relações de poder e as desigualdades
sociais à lógica, ao ritmo e ao tempo dos marcos lógicos e planos de monitoramento e
avaliação; de uma interpretação sobre processos e mudanças sociais, para uma análise
de efetividade, eficiência, eficácia e resultados. Sobretudo nas duas últimas décadas
(1990/2000), tanto as agências governamentais quanto não governamentais têm
privilegiado, entre os instrumentos de planejamento, indicadores que demonstrem o
alcance de resultados dos projetos. Diferentes metodologias foram inventadas,
adaptadas e aperfeiçoadas. No Brasil, uma das mais difundidas refere-se ao marco ou
quadro lógico que se constitui numa matriz que sintetiza e associa as principais
dimensões do projeto, quais sejam, os objetivos geral e específicos, as atividades a
serem desenvolvidas, os resultados a serem alcançados e seus respectivos indicadores,
fontes e forma de verificação. Em alguns modelos, o quadro lógico também prevê uma
“linha de base” ou “marco zero”, que fornece uma caracterização da situação inicial do
contexto no qual o projeto irá intervir e que servirá como parâmetro comparativo de
avanço ou sucesso do projeto. A metodologia do marco lógico pressupõe o
conhecimento dos termos utilizados pelo financiador (por exemplo, como concebe a
diferença entre objetivo geral e específico, como conceitua resultados, impactos e
efeitos) e a disposição para pensar o a situação-problema a partir desta lógica.
Caracteriza-se, portanto, na primeira aproximação com a “lógica de pensamento” dos
agentes financiadores, lógica essa estruturante do processo de monitoramento e
avaliação, pois irá se constituir no principal instrumento de acompanhamento do
projeto, uma vez que produz uma visão sintética e direta do que pretende com o
financiamento e apoio pleiteados. De forma bastante simplista, ao avaliador cabe
examinar e responder aos indicadores previstos (se alcançados ou não) e abstrair os
processos sociais e as mudanças como um resultado em si.
8 Que reflexões trazemos dessas experiências? Quais as contribuições de ordem teórica,
metodológica, política e ética para o campo da antropologia? Como proceder uma
pesquisa avaliativa dentro dos parâmetros moldados pela cooperação internacional em
complexos processos sociais de mudança inseridos num mundo cada vez mais
globalizado? Que estratégias metodológicas utilizamos e quais reflexões teóricas são
possíveis? Essas são algumas das questões que nos estimularam a escrever o presente
artigo. Tocamos apenas em algumas delas.
9 Iniciamos situando as agências da cooperação internacional no marco do discurso sobre
o desenvolvimento construído no pós-guerra, fundamentando a análise a partir de uma
abordagem pós-estruturalista, e discutimos o lugar ocupado pela avaliação nesse
contexto. Em seguida, fazemos uma reflexão sobre os limites de uma análise a partir da
visão fragmentada e parcial que marcos lógicos e indicadores apresentam,
considerando que os projetos sociais buscam intervir em contextos sobrepostos de
relações sociais estabelecidas no processo de globalização. Posteriormente, refletimos
sobre o significado do trabalho de campo antropológico na avaliação de projetos,
enquanto espaço de diálogo e ressignificação dos sentidos de mudança social. Ao final,

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discutimos a avaliação de projetos sociais como área de atuação profissional de


antropólogos, entre outras áreas para além da academia.
 
O lugar do monitoramento e da avaliação na pauta da
cooperação internacional
Esto es lo que es desarrollo: es una práctica de vincular
conocimiento y poder desde una racionalidad
completamente distinta a la racionalidad que ha
existido en cada lugar.
Arturo Escobar (2002, p. 13).
10 O termo agência da cooperação internacional compreende uma grande variedade de
instituições que têm como característica principal a atuação em diversos países,
prestando apoio financeiro e/ou técnico a grupos, instituições da sociedade civil ou
governos. Grosso modo, pode-se classificá-las em três grandes grupos: a) organismos
multilaterais de cooperação, vinculados ao sistema da Organização das Nações Unidas
(ONU), ou a blocos de países, como a União Europeia; b) agências nacionais de
cooperação, vinculadas aos governos nacionais; c) organizações não governamentais
internacionais, entre as quais se encontram organizações religiosas, de partidos
políticos, ambientalistas, de combate à pobreza, feministas, fundações de grandes
empresas e fundações privadas, para citar alguns exemplos. Outras classificações são
possíveis, como a apresentada em estudo da Fundação Getúlio Vargas (Mendonça, 2012,
p. 9), que sugere também três categorias: cooperação internacional pública para o
desenvolvimento, cooperação realizada por empresas privadas e cooperação
filantrópico-solidária. Apesar de diferentes recortes, identificamos os mesmos tipos de
organizações e, hoje, já se configura um campo de estudo que aborda a atuação das
agências de cooperação internacional, enfocando seu papel na governança
internacional e dos países, o investimento aportado e, mais recentemente, a
manutenção e a saída dessas instituições dos países da América Latina. Destacam-se, na
antropologia, as pesquisas sobre a relação dessas instituições com as organizações dos
povos indígenas, como o trabalho de Barroso Hoffman (2009).
11 A cooperação internacional tem origem em dois movimentos distintos, mas que
dialogam entre si e remontam ao período pós-Segunda Guerra Mundial: o de
reconstrução dos países atingidos pela guerra, e o de ajuda humanitária a países e
populações que viviam em condições de extrema pobreza, particularmente as ex-
colônias, ambos com fortes marcas ideológicas. A cooperação entre governos tem como
marco o Plano Marshall, criado em 1947 pelo governo dos Estados Unidos para
reconstrução das economias europeias, com evidente finalidade de inserção das
empresas norte-americanas naquele continente e disseminação de seu modelo político-
econômico. Na medida em que as economias europeias se recuperam (em alguns casos,
mesmo antes), grupos vinculados a instituições religiosas e filantrópicas organizam-se
para promover ajuda a populações em situação de pobreza e em desastres, através de
contribuições individuais de cidadãos europeus que se identificavam com as causas
defendidas. Posteriormente, as fundações ligadas a empresas, estimuladas pelos
incentivos fiscais, se expandiram sob a égide da “responsabilidade social”, como parte
de suas estratégias de marketing. Fundações privadas também imprimem suas marcas

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em temas ou causas que consideram importante apoiar, como questões ambientais ou


feministas.
12 A cooperação internacional surge no momento histórico em que se produz o discurso
do desenvolvimento o qual, como analisa Arturo Escobar (2005, p. 19), embora possua
raízes mais profundas na modernidade e no capitalismo, engendrou a concepção de
Terceiro Mundo, referindo-se a países da Ásia, África e América Latina. Um amplo
aparato institucional transformou o discurso do desenvolvimento em uma efetiva força
social, política e econômica, como detalha o autor:
El discurso del desarrollo hizo posible la creación de un vasto aparato institucional
a través del cual se desplegó el discurso; es decir, por medio del cual se convirtió en
una fuerza social real y efectiva transformando la realidad económica, social,
cultural y política de las sociedades en cuestión. Este aparato comprende una
variada gama de organizaciones, desde las instituciones de Bretton Woods (p. ej. el
Banco Mundial y el Fondo Monetario Internacional) y otras organizaciones
internacionales (p. ej. el sistema de la Organización de Naciones Unidas) hasta las
agencias nacionales de planificación y desarrollo, así como proyectos de desarrollo
a escala local. (Escobar, 2005, p. 19).
13 O discurso do desenvolvimento tem operado através de dois mecanismos principais,
como assinala Escobar: a profissionalização de problemas de desenvolvimento, com o
surgimento de conhecimentos especializados, e a institucionalização através de uma
rede de organizações. O conhecimento dos especialistas e a prática das instituições
operam por meio de projetos e intervenções (Escobar, 2005, p. 19).
14 Direta ou indiretamente, independentemente das origens ou vinculações, as agendas
das organizações da cooperação internacional têm como pano de fundo o discurso do
desenvolvimento e, em seus cenários específicos, o contexto econômico, político e
social dos países cooperantes. As agências multilaterais, por sua vez, espelham temas e
estratégias que estão na agenda da governança global, particularmente, aquelas
discutidas nas conferências da ONU. Em outras palavras, o debate sobre o
desenvolvimento – em seus diferenciados significados e disputas conceituais – pauta
com maior ou menor influência a atuação das organizações governamentais e não
governamentais e, por conseguinte, a agenda de financiamento, incluindo-se aí o
monitoramento e a avaliação de projetos.
15 As conferências internacionais da ONU desempenharam um importante papel na
proposição de medidas de cooperação em áreas prioritárias, integrando as esferas
estatal e não estatal, ainda que a atuação dos atores ocorra em arenas distintas
(Mendonça, 2012, p. 8-9). Os objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM), 6 por
exemplo, tornaram-se princípios orientadores para os governos nacionais, definindo
estratégias políticas e direcionando linhas de financiamento. Tais agendas
internacionais impactaram a lógica da cooperação não apenas entre governos nacionais
e organizações internacionais, mas também nas organizações da sociedade civil. Estas,
por sua vez, também pautam novas agendas, na medida em que ganham espaço na
arena política internacional.
16 Ora mais impositivas, ora mais democráticas, o que se observa é que há uma ampla
circulação de agendas entre agências da cooperação internacional, governos,
movimentos sociais, organizações da sociedade civil e empresas privadas. E, pari passu
às agendas, segue uma circulação de conceitos – que ora se cristalizam em valores – os
quais, ainda que com diferentes origens, interpretados e apropriados de formas
diversas, concretizam-se em estratégias de ação comuns. Referimo-nos a conceitos-

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valores como: empoderamento ( empowerment), transparência ou responsabilização


(accountability), parceria, trabalho em rede, igualdade/equidade nas relações de gênero 7
e igualdade/equidade nas relações raciais. Esses conceitos-valores fazem parte do
discurso do desenvolvimento e circulam indiscriminadamente nas esferas acadêmicas,
políticas e da cooperação internacional. Polissêmicos, problematizados ou
naturalizados, formam uma espécie de matriz a partir da qual os projetos de
intervenção são concebidos e julgados.
17 Embora não seja possível aprofundar a temática do monitoramento e avaliação
considerando a intersecção entre a política governamental e a agenda de cooperação
internacional (o que requer outro artigo), é fundamental observar que esses conceitos-
valores também fazem parte do sistema de significado das políticas públicas e merecem
estudo específico para esse campo que origina e consolida uma linguagem recente (a
partir de 1980) no âmbito governamental com práticas profissionais, departamentos e
carreiras que se estruturam para essa finalidade e tendem a ser apropriados por
contextos democráticos de gestão, incluindo assim novos termos na racionalidade
normativa e nos modos de regulação das populações.8 Como analisado por Shore e
Wright (1997, p. 1), “[…] an anthropological approach to policy treats the models and
language of decision-makers as ethnographic data to be analysed rather than as
frameworks for analysis”. O que importa assinalar é que tanto no campo da cooperação
internacional quanto no governamental (e poderíamos arriscar que também no setor
privado que se dedica à gestão de projetos de responsabilidade social) um conjunto de
conceitos-valores estrutura a prática de monitoramento e avaliação que, por sua vez,
cria um corpus de especialistas cujas práticas passam a se consolidar, desdobrar e
multiplicar em disciplinas de cursos, certificações, carreiras e literatura específicas;
mais do que conceitos-valores, estes passam a representar uma técnica a ser aprendida
e aplicada.9
18 Em pesquisa sobre a cooperação internacional no Brasil realizada pela Fundação Getúlio
Vargas, citada anteriormente, considera-se que novos padrões foram estabelecidos
nessas parcerias:
De modo a garantir resultados eficazes e coerentes às metas estabelecidas, novos
padrões mais rigorosos foram desenvolvidos. Estados e organizações da sociedade
civil atendem, hoje, a uma série de critérios que determinam o caráter dessas
parcerias. Diagnósticos, elaboração de projetos e mecanismos de avaliação
tornaram-se condições elementares para o financiamento de projetos. (Mendonça,
2012, p. 9).
19 Mais que um “padrão rigoroso”, como citado na pesquisa, consideramos que a avaliação
é um desses conceitos-valor no discurso do desenvolvimento, coadunada com outros
como: planejamento, monitoramento e avaliação (PMA); efetividade, eficácia e
eficiência; diagnóstico, indicadores e marco lógico.
20 De forma esquemática, podem-se identificar duas origens diferentes para que a
avaliação tenha se tornado uma estratégia indiscutível na cooperação internacional.
Por parte das organizações não governamentais filantrópicas e solidárias, que
dependem da doação de cidadãos que se identificam com as causas que defendem e
projetos que apoiam, a avaliação está estreitamente relacionada com o conceito-valor
de transparência, isto é, avalia-se para demonstrar a seus doadores que os objetivos
propostos no projeto foram atingidos e, portanto, que os recursos foram
adequadamente utilizados; trata-se de uma prestação de contas para os doadores. A
outra origem vem da administração, tanto privada como pública, em que o

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monitoramento e a avaliação visam identificar a relação custo-benefício dos recursos


empregados e os gargalos do desenvolvimento do projeto para uma gestão mais
eficiente.10 Embora com motivações diferentes na sua origem, o papel que a avaliação
desempenha nessas organizações assemelha-se cada vez mais. Está orientada por uma
visão de gestão voltada para resultados, para medir a eficácia, eficiência e efetividade
do projeto, voltada principalmente para uma análise quantitativa, com o objetivo de
prestar contas aos doadores e, mais raramente na prática (embora presente no
discurso), para orientar mudanças na condução do projeto.
21 Há certo consenso no discurso das organizações da cooperação internacional sobre a
necessidade da avaliação dos projetos pelos seguintes motivos: verificar em que medida
os objetivos propostos foram atingidos, compreender como o projeto alcançou ou não
seus objetivos, identificar o quanto o projeto foi eficiente na utilização dos recursos
para desenvolver as atividades, avaliar o quanto o projeto foi significativo e sustentável
para os participantes, e informar os tomadores de decisão sobre como melhorar o
projeto. A avaliação externa, particularmente, isto é, aquela realizada por um consultor
que não atua no projeto ou nas instituições envolvidas – portanto, portador de suposta
neutralidade – contribui para dar legitimidade ao investimento feito no projeto.
22 É de se esperar que haja uma diversidade de modelos e práticas de avaliação, em que
estão em jogo os tipos de instituição, as concepções de gestão, os temas focados e, como
invólucro mais amplo, os discursos de desenvolvimento. Mas, dificilmente, não há como
fugir da proposta de intervenção do projeto, seus objetivos e atividades, e do
diagnóstico inicial a partir do qual o projeto foi concebido. Esse é o ponto de partida da
avaliação.
23 Ocorre, no entanto, que há um pecado original. A tarefa de elaboração de projeto é
considerada uma expertise na cooperação internacional. É detentora de uma linguagem
própria, dominada por poucos, e que tem sotaques diferentes de acordo com a agência
que financia. Elaborar um projeto é um processo criativo que exige, mais que um
domínio da situação que se irá intervir, um domínio da linguagem. Portanto, sustenta-
se também sobre um terreno escorregadio; nas agências que não têm regras – e
controladores das regras – tão estritas, o projeto constitui apenas um documento
formal, necessário para selar uma parceria. Papel semelhante desempenham os planos
de monitoramento e avaliação e seus irmãos, os marcos lógicos. A exigência de plano de
monitoramento e avaliação e de marco lógico torna imperativo pensar o projeto (e sua
ideia principal orientada para um processo de mudança social) esquematizado em
objetivos, atividades, resultados esperados, recursos, indicadores de efetividade,
eficiência e eficácia.
24 O plano de monitoramento e avaliação e muitas vezes o marco lógico (quando exigido)
são tomados como verdade ou como um dos discursos produzidos sobre o projeto e,
portanto, sujeitos à interpretação; na prática, constituem parâmetros a partir dos quais
se procederá à avaliação. Desenhados numa lógica cartesiana e positivista,
caracterizam-se pela fragmentação do processo social, destacando variáveis isoladas,
não permitindo uma visão sistêmica, integrada, contextualizada e processual da
realidade sobre a qual o projeto incide e intervém. Dito de outro modo, o plano de
monitoramento e avaliação torna-se uma metanarrativa sobre o projeto cujos objetivos
para serem alcançados devem ser descritos em indicadores que, passíveis de
monitoramento, resultarão na sua consecução e, por conseguinte, na avaliação de que
os recursos foram apropriadamente gastos para a finalidade e metas propostas.

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Coerente com essa visão de mundo, predominam os indicadores e os instrumentos de


coleta de dados quantitativos. Em geral, o pragmatismo associado ao curto prazo de
tempo para avaliação compromete a pertinência da utilização de métodos
exclusivamente qualitativos e etnográficos, embora haja um esgotamento na crença de
que os indicadores quantitativos sejam suficientes para medir e demonstrar o alcance
dos processos de mudança social dada sua complexidade, especialmente, na sociedade
brasileira marcada por intensa desigualdade econômica e social. Nesse caso, para o
antropólogo, instaura-se um dilema profissional: para empreender a “pesquisa-
avaliativa” nos moldes propostos pela cooperação internacional é necessário limitar a
possibilidade de diálogo com a teoria social. Autores como Minayo (2004), Minayo e
Deslandes (2002) e Minayo et al. (2005) vêm trabalhando a questão, a partir de
pesquisas-avaliativas mais amplas, utilizando a triangulação de métodos, isto é, a
complementação de abordagens qualitativas com quantitativas associadas a uma
interpretação baseada na teoria social.
 
Nos interstícios dos marcos lógicos: a compreensão
do contexto e da mudança em tempos de globalização
A tarefa de uma teoria dos processos sociais consiste no
diagnóstico e na explicação das tendências de longo
prazo e não planejadas. […] A recepção de uma tal
abordagem teórica vem sendo dificultada pela
autocompreensão da sociologia contemporânea como
uma disciplina primordialmente orientada para o
presente, que investiga as transformações e as relações
de curto prazo no interior de sistemas sociais dados.
Essa autocompreensão é uma consequência da divisão
acadêmica entre história e sociologia, mas também da
proximidade crescente da sociologia com a prática, ou
seja, sua inclusão em projetos de planejamento
burocraticamente controlados. Com isso, acaba-se por
não compreender o processo de desenvolvimento não-
planejado e de longo prazo, que produziu as condições
para a prática de planejamento de nossos dias e ao
qual todo desenvolvimento social planejado continua
intrinsicamente ligado.
Norbert Elias (2006, p. 197).
25 O texto de Elias (2006), escrito em 1977, é preciso ao identificar a dificuldade da
Sociologia para compreender os processos sociais não apenas pela sua preocupação com
o presente, mas pela proximidade com a prática, isto é, com “projetos de planejamento
burocraticamente controlados”, ficando fora de seu campo de análise o que não foi
previsto, processos de mudança que ocorrem no longo prazo.
26 Ao se iniciar uma avaliação, a primeira questão que se apresenta ao avaliador é: qual o
contexto social do projeto? Aparentemente, a resposta é simples, mas ao mesmo tempo
complexa: as relações sociais sobre as quais o projeto incide. Identificar as relações
sociais e, particularmente, as relações de poder torna-se uma primeira atividade cujos
limites são impostos, entre outros fatores, pelo tempo e recursos dedicados à condução

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da avaliação e ao escopo do projeto a ser avaliado. Essas relações preexistem ao projeto,


cabendo à própria metodologia empregada na avaliação circunscrever o contexto social
no qual se inserem e analisar o alcance dos efeitos do projeto sobre elas.
27 Complementando o que aponta Elias, o historiador Jacques Revel (1998, p. 27) lembra-
nos que as ciências sociais fazem um uso “cômodo e preguiçoso” da noção de contexto,
identificando três tipos:
Uso retórico: o contexto, em geral apresentado no início do estudo, produz um
efeito de realidade em torno do objeto da pesquisa. Uso argumentativo: o contexto
apresenta as condições gerais nas quais uma realidade particular encontra seu
lugar, mesmo que nem sempre se vá além de uma simples exposição dos dois níveis
de observação. Uso interpretativo, mais raro: extraem-se às vezes do contexto as
razões gerais que permitiriam explicar situações particulares.
28 Afirma, então, que a abordagem micro-histórica recusa a evidência que faz uso do
contexto como unificado e homogêneo e propõe constitui-lo a partir da pluralidade
necessária à compreensão dos comportamentos que são objeto de observação; essa
contextualização múltipla parte do princípio de que cada ator histórico participa, de
maneira próxima ou distante, de processos (e se inscreve em contextos) de dimensões e
de níveis variáveis, do mais local ao mais global, não existindo hiato entre histórica
local e história global (Revel, 1998, p. 27-28).
29 Escobar (2002, p. 10) também nos lembra, citando Giddens, que a modernidade consiste
na descontextualização, em arrancar a vida local de seu contexto, a qual é produzida
cada vez mais pelo translocal; a globalização, para Giddens, é a universalização da
modernidade.
30 A compreensão do contexto de um projeto social, com o objetivo de analisar os efeitos
produzidos pela intervenção proposta, torna-se, portanto, algo complexo, repleto de
matizes objetivos e subjetivos na relação entre o local e o global, ora como parte de
longos processos de mudança social. Facilmente caímos em um dos usos cômodos que
aponta Revel (1998).
31 Lembramo-nos, por exemplo, de uma camponesa aimará, no altiplano boliviano,
preocupada com os efeitos que a fumaça produzida pela queima de poços de petróleo
no Oriente Médio (nos anos 1980) poderia produzir em seu rebanho bovino. O projeto
tratava da melhoria genética do rebanho para aumentar e melhorar a produção de
leite. Não que a análise do contexto devesse incluir o Oriente Médio, mas seria
importante considerar o acesso aos meios de comunicação, a interpretação de suas
informações e a reelaborações simbólicas produzindo ações concretas na vida social.
Nem o uso retórico, argumentativo ou mesmo interpretativo dariam conta desse
contexto. Teríamos que olhar para um processo mais amplo em que circulam
informações e significados, reinterpretados, apropriados de maneiras diversas e que
produzem efeitos nas relações sociais. Caso contrário, como entender o medo dessa
agricultora?
32 Já no caso do movimento de mulheres quebradeiras de coco babaçu, no Norte e
Nordeste do Brasil, a inserção do óleo de babaçu no mercado internacional – também
outro aspecto da globalização – e o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional
para o livre acesso ao babaçu fazem parte, objetivamente, do contexto de qualquer
projeto que envolva esse grupo. Não se podem analisar os efeitos da compra de uma
máquina para produzir óleo de babaçu, sem compreender a inserção do óleo no
mercado internacional; por mais que as cadeias produtivas sigam caminhos diferentes,

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elas se encontram, mesmo que simbolicamente, como argumento para afirmação da


identidade social dessas mulheres, de sua diferença.
33 A questão que fica para o avaliador é: até onde estudar e conhecer o contexto, num
prazo restrito no qual, em geral, estão circunscritas as avaliações?
34 Se entramos no jogo dos marcos lógicos e buscamos observar as mudanças que
ocorreram a partir do projeto, nos deparamos com três grandes limitantes: a ausência
ou precariedade de informações a respeito da situação inicial sobre a qual o projeto
interviu; a fragmentação dos indicadores que apontam como se irá verificar a mudança
provocada pelo projeto; e o necessário isolamento do contexto em que o projeto se
insere. Extrair do processo social exclusivamente aqueles elementos sobre os quais o
projeto incide é extremamente artificial não apenas para a compreensão, mas para os
próprios sujeitos que o vivenciam. Como disse uma agricultora: “O movimento adquiriu
de tudo um pouco dentro do projeto.” Não há limites marcados. Soma-se ainda o fato de
que os grupos sociais que executam tais projetos serem também financiados por outras
agências, com outros projetos. Como diferenciar? Como produzir resultados
mensuráveis para prestar contas às agências financiadoras, para computar em suas
estatísticas, se as intervenções são realizadas pelos mesmos sujeitos, imbricadas nos
mesmos processos sociais?
35 Se, por um lado, isso indica certa contradição nos instrumentos de monitoramento e
avaliação, por outro, abre uma brecha para que nós, cientistas sociais e,
particularmente, antropólogos, ampliemos nossas possibilidades de interpretação.
Vejamos um exemplo. Um dos objetivos de dado projeto é “reduzir a dependência de
intermediários na comercialização de produtos agrícolas” e, como indicador de
resultado está foi descrito “o aumento em 20% os produtos processados pelos
agricultores”. Ora, isso é absolutamente fictício por diversos motivos: não há como
quantificar a “dependência de intermediários”, há uma diversidade de níveis de
dependência entre os próprios agricultores, e o aumento de 20% é totalmente
arbitrário, afinal, como se sabe que esse aumento será um indicativo para se romper
com a dependência ou simplesmente uma margem possível? Se nos limitamos a fazer
uma avaliação com base em parâmetros como esse, será de grande angústia e inócua, do
ponto de vista de uma análise de mudança social. Entretanto, terá cumprido seu papel
de produzir dados concretos, quantitativos e mostrar resultados que apontam um
progresso unidirecional e em base a parâmetros externos (nesse caso, dos
financiadores). A comercialização direta de produtos agrícolas tem de ser analisada
dentro de um contexto amplo de relações sociais em que a dependência de
intermediários é um dos elementos. Ao mesmo tempo, compreender como se constitui
a rede de intermediários e os fatores que configuram a situação de dependência não
necessariamente são aspectos que levarão ao aumento de 20% dos produtos
processados pelos agricultores e vice-versa.
36 Há outro aspecto muito caro a nós, antropólogos: o contexto cultural específico do
grupo que executa o projeto. O desconhecimento por parte do avaliador pode levar a
distorções grosseiras como certo caso que presenciamos. O objetivo principal do projeto
era melhoria da qualidade do leite produzido por um grupo de agricultoras para que
pudessem vender o leite diretamente e não fazer queijos, já que isso significaria um
incremento na renda familiar. Uma das estratégias era a mudança na ração das vacas. A
avaliação externa do projeto foi realizada por consultores estrangeiros que, entre
outras coisas, se dedicaram a medir e contabilizar a produção do vegetal para ração,

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introduzido pelo projeto, e sua relação com o aumento da produção de leite, um


indicador quantitativo. No entanto, uma das consequências do uso da ração é que os
animais produziam fezes de “má qualidade”, segundo os agricultores, já que não
poderiam utilizá-la para queima como combustível por apresentarem um baixo nível de
fibra. O contexto local, objetivamente, tinha outras camadas: o gado não servia apenas
para produzir leite, mas também para produzir combustível. Esse resultado, nefasto
para a comunidade, não foi observado pelos avaliadores, que olhavam o indicador –
aumento da produção de leite – de forma isolada. A mudança introduzida não afetava
apenas um aspecto da economia dessa sociedade, mas diversos outros não
dimensionados, não observados, não avaliados.
37 A análise do contexto deve ser feita de tal modo que permita olhar de forma integrada
para o local, e para as relações entre o local e o global, que, adotando uma perspectiva
pós-estruturalista, permita perceber as mudanças como ressignificações. Isso implica
voltar o olhar para além dos resultados objetivos, para além do próprio escopo de um
projeto. A pergunta passa a ser em que medida o projeto contribuiu para reconhecer o
local e estabelecer novas possibilidades de diálogo de conhecimentos, mudando a
perspectiva na qual os participantes do projeto são considerados apenas como
“receptores” de novos conhecimentos. Nesse sentido, os instrumentos teórico-
metodológicos da antropologia, ainda que não aplicados na sua forma canônica,
permitem penetrar pelos interstícios dos marcos lógicos e desvendar outras camadas
do processo de mudança social sobre o qual o projeto propõe intervir.
 
O trabalho de campo da avaliação: uma breve
etnografia é possível
Foi uma surpresa esse momento aqui, fazer uma
avaliação […], encontrar as pessoas que apoiam a
gente, que são as pessoas que não deixam a gente nem
tímida. Porque tem pessoa que faz a entrevista e a
gente nem sente, faz uma avaliação com a gente, uma
entrevista, que a gente até se sente uma pessoa, assim,
capaz.
Mulher, quebradeira de coco babaçu.
38 A metodologia das avaliações inclui um trabalho de investigação que, em geral, se
limita a visitas ao local onde o projeto foi implementado, associado a entrevistas com
participantes do projeto. Na nossa experiência, esse é o momento em que o exercício do
fazer antropológico tem maior possibilidade de se realizar. O tempo é curto, as visitas
aos grupos são limitadas, mas sempre é possível observar, conversar informalmente e
fazer entrevistas abertas. O diálogo e o encontro acontecem. Rompe-se com o marco
lógico, os indicadores, e parte-se para o diálogo. Um roteiro de entrevistas é
fundamental, mas impossível se limitar a ele.
39 À diferença de um trabalho de campo tradicional, em que o antropólogo respeita o
tempo social necessário para se aproximar, identificar informantes-chave e buscar
mediadores, essa etapa, aqui, é simplesmente suprimida. Pior, entramos em campo
tachados de “avaliador”, que, entre outros significados, está o da pessoa que aprova
financiamento, que vai julgar o projeto e o trabalho daqueles que o executaram. Essa
identificação tem uma margem de interpretação, com matizes de estigma que podem

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provocar reações como medo e insegurança, levando a diálogos nem sempre fluidos. É
nesse momento que as lições da antropologia são fundamentais: estabelecer o diálogo a
partir do Outro e reconhecer que o encontro, em si, produz novos significados. Como
diz a mulher citada na epígrafe acima, “não deixam a gente nem tímida […] a gente até
se sente uma pessoa capaz”. Esse diálogo, permeado por uma relação de poder dada de
antemão, pode ocorrer sobre outras bases. Mas o “nem” e o “até” significam também
que, na maioria das vezes em que ocorrem diálogos similares, a hierarquia e a relação
de poder é o ponto de partida.
40 Em projetos com marcos lógicos frágeis e ausência de diagnósticos iniciais, a exigência
de dados quantitativos se esmorece. Assim, é nesse vácuo que o diálogo com o grupo
envolvido no projeto e com atores sociais-chave no contexto considerado acontece, e
no qual se buscará compreender as percepções de mudança. Um diálogo reflexivo, que
leve o Outro a identificar as diferenças que fizeram a diferença, na definição de Bateson
(1972) de mudança, em que se recorre à memória para compreender a trajetória e os
significados da situação de hoje. É nesse momento, muitas vezes, que se vislumbra a
percepção da mudança, tanto na dimensão individual como coletiva. Esse jogo com a
memória dos sujeitos, que o avaliador propõe que joguem, exige sensibilidade para ler
os silêncios, as inseguranças, as explosões emocionais e as indiferenças como repletos
de significados. Para desenhar cenários imaginários do “antes e do depois”, do “se não
tivesse isso”, ou “do que poderia ser se…”, do que se pode fazer, do que é necessário. O
diálogo se dá em base de vivências ressignificadas pela memória, e pelos elementos que
são evocados no jogo das possibilidades imaginadas. A capacidade de imaginar significa
a capacidade de articular elementos de diversos contextos, de avaliar sua (individual ou
coletiva) condição de fazer diferente apropriando-se do novo em diálogo e recolocando-
se em nova posição de poder. O discurso de uma mulher quebradeira de coco babaçu,
produzido num desses diálogos demonstra a que nos referimos: “Roça orgânica é uma
forma de externar aquilo que já fazemos com o babaçu, é uma forma de avançar o que
já vínhamos [fazendo], é também ser professor para o governo, mostrar que quando a
gente quer, faz.”
41 O exercício da observação também tem sido uma prática nas nossas experiências de
avaliação. Sempre procuramos marcar as entrevistas em momentos que ocorriam
eventos como reuniões ou alguma atividade, de preferência, ainda que não
necessariamente, previstas no plano de trabalho do projeto. Dessa forma, podíamos
exercer uma observação (não camuflada) do grupo, sua forma de atuação, a prática do
projeto. São nesses momentos em que se pode perceber em que medida aquela
atividade é algo muito externo, difícil de ser apropriado pelo grupo e, portanto, de
estabelecer um diálogo entre formas de conhecimento. Um dos casos marcantes foi uma
capacitação dada por um especialista de uma agência multilateral de cooperação a um
grupo de agricultoras, em que ensinava (no sentido de repassar um conhecimento) um
procedimento para utilizar forragem armazenada para o gado em período de seca, que
consistia em molhar a forragem com um produto químico misturado em água. 11
Procedeu, então, à explicação para calcular a quantidade do produto que se deveria
agregar, utilizando fórmulas matemáticas apresentadas em um quadro negro. O público
sequer falava o mesmo idioma do técnico e a grande maioria não frequentou a escola. O
diálogo simplesmente não aconteceu. Um exemplo extremo, mas que ilustra bem
muitas das práticas no campo dos projetos de desenvolvimento.

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42 Para contrabalançar, temos em mente a familiaridade com que uma mulher, líder de
uma comunidade da periferia urbana de uma cidade de Pernambuco, transitava pela
prefeitura e fazia demandas para sua comunidade.12 Poucos anos antes, tal comunidade
sequer existia no mapa da prefeitura. Observar o seu trânsito e acompanhar reuniões
de fóruns municipais dá uma dimensão das novas configurações do contexto sobre o
qual o projeto incidiu. Transitar pelas redes sociais que concretamente articulou seria
dispensável – e muitas vezes o é – em projetos de avaliação. Contudo, a ressalva a ser
feita é que, independentemente do projeto e da agência financiadora, os
microprocessos sociais são, muitas vezes, mais reveladores e indicadores de mudanças
em curso.
 
O antropólogo na avaliação: a reafirmação do trabalho
de campo e da teoria
Nesse mundo, quanto mais crescem os conhecimentos,
a necessidade vem junto. Vêm novos desafios que
precisam de outros conhecimentos que surgem.
Mulher, quebradeira de coco babaçu.
43 Há uma especificidade na atuação de antropólogos, na avaliação de projetos sociais, que
a diferencia de outras práticas “extramuros”, já objeto de reflexão na antropologia
brasileira, como mencionado anteriormente. A mais tradicional, e talvez a que tem sido
mais discutida, é a atuação de antropólogos na elaboração de laudos para demarcação
de terras indígenas e quilombolas (Baines, 2004), ou ainda para atestar o uso tradicional
de recursos da biodiversidade. De uma forma geral, o antropólogo é chamado como um
profissional que já possui um conhecimento anterior daquele grupo social. Tanto que a
Associação Brasileira de Antropologia chegou a criar um convênio com o Ministério
Público para indicar tais profissionais, baseada no critério de possuir um conhecimento
anterior do grupo em questão, conhecimento este construído através de pesquisas
antropológicas dentro da tradição da disciplina (Feldman-Bianco, 2011).
44 Outra atuação é em agências da cooperação internacional, como especialistas no local e
com capacidade de mediação, como reflete Leal (2010, p. 82-90). Também vinculados a
áreas específicas, devido à sua formação e experiência de pesquisas anteriores, esses
profissionais atuam na análise de projetos a serem financiados e em articulações
políticas em temas de sua expertise.
45 Há ainda a atuação de antropólogos em ONGs, nem tão especializados, com um nível de
comprometimento político mais forte, mas em precárias condições de trabalho, como
relata Müller (2010, p. 89-96).
46 Já experimentamos todas essas práticas e consideramos que a avaliação de projetos é
um híbrido de cada uma dessas experiências e, ao mesmo tempo, não é nenhuma delas.
Não é necessário ter expertise no tema ou grupo no qual o projeto atua, nem implica um
compromisso político posterior. Há, supostamente, certa isenção em relação à agência
de cooperação que apoia o projeto, e os limites éticos são bastante evidentes. A equação
ética vem da nossa formação humanista, de uma postura política diante do discurso do
desenvolvimento, de compromisso com a vida e o destino dos sujeitos que
protagonizam o projeto avaliado. Nesse sentido, não deixa de ser uma antropologia da
ação, na acepção dada por Roberto Cardoso de Oliveira (2004, p. 21) , que ressalta o

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caráter de prática social da disciplina, de “agir no mundo real”, de estar


“comprometida não apenas com a busca de conhecimento sobre seu objeto de pesquisa,
mas sobretudo com a vida dos sujeitos submetidos à observação”.
47 Com efeito, o pressuposto da formação humanística não é garantidor da primazia da
avaliação realizada pelo antropólogo em face de outros profissionais e disciplinas,
especialmente, num momento bastante contemporâneo no qual a avaliação per se tende
a tornar-se uma especialidade (assim como o gerenciamento de projetos) descolada de
um contexto e de uma teoria social. Procuramos refletir sobre essa atuação a partir de
uma questão: como fazer uma avaliação de um projeto de mudança social, tendo como
fio condutor e expectativa de análise os parâmetros cartesianos e o predomínio de
indicadores quantitativos de um marco lógico e de resultados esperados, com os
instrumentos teóricos metodológicos da antropologia? Cada vez mais, reafirmamos
nossa convicção de que a experiência de campo (antropológica) e a reflexão teórica
anteriores são fundamentais. Com isso, queremos desencorajar que a avaliação de
projetos seja concebida como uma prática isolada, especializada e até mesmo
burocratizada (no sentido weberiano), integrando, por sua vez, o manual (e a seção
final) do “project manager”.
48 A prática da etnografia e o trabalho de campo afinam nossa sensibilidade. A teoria
expande nosso olhar. A visão crítica ativa a curiosidade. O “estrangeirismo” produz
deslocamentos. Sem essa bagagem, facilmente nos enredamos nas armadilhas do
discurso do desenvolvimento.

BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
1. Os trechos de depoimentos citados no artigo provêm de entrevistas realizadas em algumas
avaliações em que as autoras participaram. Para preservar a identidade dos entrevistados e o
sigilo das avaliações, não foram mencionados os nomes nem as instituições às quais pertencem.
Da mesma forma, os exemplos de situações de projetos, embora baseados em experiências
vivenciadas pelas autoras, também não são identificados para preservar o sigilo das informações
relativas aos trabalhos de avaliação realizados.
2. Maria Lúcia de Macedo Cardoso coordenou a avaliação externa de nove projetos executados
por instituições, desde a década de 1990, como: Servicios Técnicos para la Mujer – Setam
(Bolívia), Ação Educativa (São Paulo), Centro de Cultura Luiz Freire (Pernambuco), Movimento de
Organização Comunitária e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – MOC/MMTR
(Bahia), Centro das Mulheres do Cabo (Pernambuco), Movimento Interestadual de Mulheres
Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB (Nordeste), e Museu do Folclore Edison Carneiro (Rio de
Janeiro); no caso de três projetos, eles envolviam diversas organizações não governamentais de
mulheres, de pré-vestibular para negros e de artesãos. Os projetos foram financiados pelas
seguintes agências de cooperação: Unifem, Fundação Ford, Organização para a Cooperação
Internacional a Projetos de Desenvolvimento – DISOP, ActionAid, Banco Interamericano de
Desenvolvimento/Unesco/Ministério da Educação, War on Want e União Europeia, Ministério da
Cultura e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Além dessas
avaliações, trabalhou em quatro instituições no planejamento, monitoramento e avaliação de
projetos: Servicios Técnicos para la Mujer – Setam (Bolívia), ActionAid Brasil, Centro de Estudos e
Ações Culturais e de Cidadania – CEACC e Associação Cultural de Amigos do Museu do Folclore
Edison Carneiro – Acamufec. Com exceção de duas avaliações vinculadas a órgãos
governamentais, a maioria das experiências refere-se avaliações de projetos locais, realizadas por
um profissional, ou uma pequena equipe, em prazos de um a seis meses, incluindo visita ao local
do projeto e elaboração de relatório final. Delaine Martins Costa integrou oito equipes de
monitoramento e avaliação de projetos governamentais e não governamentais, a partir da década
de 1990, tendo coordenado três deles. Um foi apoiado por instituição canadense e envolveu
quatro organizações feministas com atuação em áreas urbanas e rural, tendo privilegiado o
método qualitativo e o trabalho de campo. Os demais estiveram voltados para análise de políticas
públicas e utilizaram instrumentos quantitativos e qualitativos de pesquisa. Três dos projetos
foram financiados pela cooperação internacional (Fundo para Igualdade de Gênero – FIG/Brasil
da Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional ACDI/CIDA, Catholic Organisation
for Relief and Development Aid – Cordaid e Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID), e
os demais por organismos governamentais (Prefeituras Municipais, Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres — SPM/PR, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e
do Adolescente – SNPDCA/SDH/PR, Agência Brasileira da Inovação – Finep). A maior parte dos
projetos teve escopo nacional, com duração de seis a 12 meses, e contou com equipe
multidisciplinar para sua implementação, tendo a autora participado das fases de elaboração da
metodologia, sistematização e análise dos dados e elaboração dos relatórios finais.
3. O termo agência de cooperação internacional será analisado em seguida.
4. Mais adiante será explicado o que significa o marco lógico nos projetos sociais.
5. A reflexão sobre as áreas de atuação de antropólogos, contudo, tem ganhado espaço na última
década no país, estimulada inclusive pela própria Associação Brasileira de Antropologia (ABA),

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em que se relaciona também o debate sobre ética e sobre o ensino de antropologia. Esses
reflexões encontram-se em publicações recentes como Antropologia e ética (Víctora et al., 2004),
Antropologia extramuros (Silva, 2008) e Experiências de ensino e prática em antropologia no Brasil
(Tavares et al., 2010).
6. São oito objetivos definidos na Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada em 2000 por
191 Estados membros, num esforço de sintetizar os acordos internacionais estabelecidos em
várias cúpulas mundiais ao longo dos anos 1990: 1) erradicar a extrema pobreza e a fome; 2)
atingir o ensino básico universal; 3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das
mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/
Aids, a malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; e 8) estabelecer uma
parceria mundial para o desenvolvimento. A Declaração do Milênio estipula compromissos
concretos a serem alcançados até o ano de 2015, monitorados por indicadores quantitativos.
7. Sobre a questão de gênero nos projetos de desenvolvimento ver os artigos de Costa (1996),
Costa e Neves, G. H. (1996) e os artigos reunidos em Costa e Neves, M da G. R. (1995, 1997).
8. É especialmente notável o fato de 2015 ser dedicado ao Ano Internacional da Avaliação, tal
como explicitado pelo EvalPartners (2013), movimento global para fortalecer as capacidades
nacionais para avaliação. No Brasil, entre outros, existe a Rede Brasileira de Monitoramento e
Avaliação (http://redebrasileirademea.ning.com), que publica a Revista Brasileira de Monitoramento
e Avaliação (2011, 2012, 2013). Na área de gênero, o portal Gender Equality Evaluation Portal da ONU
Mulheres disponibiliza 350 avaliações já realizadas no mundo (http://
genderevaluation.unwomen.org).
9. O artigo de Faria (2005) traça com precisão um mapa das diferentes formas de utilização da
avaliação no âmbito das políticas públicas.
10. No campo semântico da cooperação internacional podemos sintetizar: eficiência refere-se à
capacidade de produzir resultados com dispêndio mínimo de recursos e esforços; eficácia remete
à capacidade de alcançar os objetivos e metas definidos em determinado projeto ou programa; e
efetividade diz respeito aos efeitos dos resultados alcançados do projeto/programa a médio e
longo prazo sobre a população-alvo. As definições apresentam nuanças conforme as agências de
financiamento, se governamentais ou não governamentais. No caso do governo brasileiro, uma
das principais referências encontra-se no Manual de auditoria operacional do TCU (Tribunal de
Contas da União, 2010).
11. O projeto foi desenvolvido na década de 1990, na Bolívia, em uma comunidade rural indígena.
12. Referimo-nos aqui a um projeto de fortalecimento de organização de mulheres, voltado para
o desenvolvimento local da comunidade, sobretudo no acesso a serviços públicos. Foi
desenvolvido por uma organização feminista com apoio de uma agência de cooperação
internacional na primeira década de 2000.

RESUMOS
O artigo propõe refletir sobre a avaliação de projetos sociais apoiados por agências da cooperação
internacional, a partir da perspectiva da antropologia. Situa a cooperação internacional no marco
do discurso do desenvolvimento construído no pós-guerra e discute o lugar ocupado pela
avaliação nessa arena. Analisa, então, a experiência da avaliação a partir da antropologia
seguindo dois eixos: os limites dos padrões institucionalizados pela cooperação internacional
baseado no marco lógico para a compreensão do contexto e da mudança social, considerando que

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os projetos buscam intervir em relações sociais estabelecidas no processo de globalização; e as


possibilidades abertas pelo trabalho de campo na avaliação, como espaço de diálogo e
ressignificação dos sentidos de mudança social. Ao final, faz uma reflexão sobre a atuação
profissional de antropólogos, reafirmando o lugar da etnografia e da teoria como base de
formação.

The present study proposes a reflection, from the viewpoint of Anthropology, on the evaluation
of social projects supported by international cooperation agencies. It situates international
cooperation in the context of the discourse of development built on post-World War II period,
and discusses the role played by projects evaluation in this area. The study then analyses the
experience of evaluation, from the standpoint of Anthropology, following two strategies: the
limits of the institutionalized patters by international cooperation based on logical frameworks
to comprehend the context and social change, considering that the projects aim to intervene in
social relationships established in the process of globalization; and the possibilities opened by
fieldwork in evaluation as a space for dialog and for imparting new meaning to social change.
Last, the study ponders on professional performance of Anthropologists, reaffirming the place of
ethnography and theory as the base of the discipline.

ÍNDICE
Palavras-chave: avaliação, cooperação internacional, projeto social, trabalho de campo
Keywords: evaluation, fieldwork, international cooperation, social project

AUTORES
MARIA LÚCIA DE MACEDO CARDOSO
Fundação Oswaldo Cruz – Brasil

DELAINE MARTINS COSTA


Instituto Brasileiro de Administração Municipal – Brasil

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As políticas globais de governança e


regulamentação da privacidade na
internet
Rebeca Hennemann Vergara de Souza, Fabrício Solagna e Ondina Fachel
Leal

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 26/08/2013
Aprovado em: 20/12/2013
It has now become of a truism that we are functioning
in a world fundamentally characterized by objects in
motion. These objects include ideas and ideologies,
people and goods, images and messages, technologies
and techniques. This is a world of flows. […] They are
in what I have called relations of disjuncture.
Appadurai (2001, p. 5)
 
Políticas globais e seus mecanismos de enforcement
1 Em consonância com os argumentos de Burawoy (2001), em Manufacturing the global,
acerca de sua proposta de cânones para o que poderíamos chamar de uma etnografia
global, este trabalho parte do contexto das políticas globais de propriedade intelectual,
conjunto de acordos e ordenamentos jurídicos que, em grande medida, regulam o fluxo
de informação na internet. Para Burawoy (2001, p. 149, tradução nossa), um dos
aspectos da globalização é sua característica como uma “força inexorável supranacional
que reconfigura, mutila e sobrepõe-se ao local”. Nosso cotidiano está perpassado pela
invisibilidade dessas “forças” ou processos. Seria tarefa de uma “etnografia global”
identificar, desmistificar e desnaturalizar essas forças. O objetivo aqui é fazer uma

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descrição densa de impasses, disputas e estratégias a respeito da regulamentação da


rede, tendo como material empírico de referencia a pesquisa documental a respeito da
regulamentação da internet. Na esteira de uma antropologia da política, busca-se
colocar em evidência o processo político de produção dessas legislações,
regulamentações, normas e estratégias de enforcement que acabam por regular o nosso
acesso cotidiano, individualizado e localizado à internet. As novas tecnologias de
informação são cada vez mais mediadas por um sistema de regras e mecanismos de
enforcement adotados como estratégias de controle da informação, passando a regular
também o sistema social de trocas na rede, a comunicação entre seus usuários e aquilo
que pode ser referido, no sentido de Geertz (1989), como um sistema cultural.
2 Appadurai (2001), também citado na epígrafe que introduz este texto, chama atenção
para o fato de haver uma crescente disjunção entre a globalização do conhecimento e o
conhecimento da globalização, convocando os estudiosos da cultura a debruçarem-se
sobre esses temas. Nessa perspectiva, neste trabalho, busca-se compreender, pelo
menos em parte, como se conforma um arcabouço comum às políticas globais da
privacidade e da governança das trocas na rede, as quais impactam diretamente o uso
que se faz nos e dos meios e tecnologias digitais. Partindo-se da descrição do contexto
mais geral da produção de políticas globais, foca-se especificamente nos casos norte-
americano e brasileiro de regulamentação da internet, para compreender-se a
racionalidade subjacente a esse sistema de produção de regras que atua sobre aquilo
que está sendo aqui tomado como uma esfera pública, a internet. A internet, as bases de
dados interconectadas digitalmente e os fluxos de informação, como aponta Fischer
(2011, p. 59), “estão reposicionando e encapsulando os meios culturais mais antigos
como a oralidade e a escrita, estão reconfigurando a esfera pública pela mudança das
relações de poder […]”.
3 Se um modelo internacional de direitos de propriedade intelectual (DPI), com os
contornos do que conhecemos hoje, delineia-se no pós-guerra, no contexto das uniões e
da política de diretrizes internacionais de governo, é a partir de 1990, com a finalização
da Rodada Uruguai, a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a aprovação
do acordo relativo aos aspectos do direito à propriedade intelectual relacionados com o
comércio (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – TRIPS), que se pode falar
da emergência de um modelo global (supranacional) de regulação de tais direitos. Isso
porque o TRIPS não apenas obriga os Estados-Membros da OMC a aderirem a um
mesmo conjunto de regras, como também estabelece padrões mínimos a serem
implementados. O acordo TRIPS representa a imbricação radical entre direitos de
propriedade intelectual e de comércio e, portanto, a sujeição de seus objetos às
demandas do mercado, a conversão de todos os objetos (materiais e imateriais) em
mercadoria. O advento do TRIPS como um acordo da OMC, com poder de sanção global,
marca uma era sem precedentes de comodificação, mercantilização e globalização no
mundo (Leal; Souza, 2012).
4 A nova tendência de regulação inaugurada pelo TRIPS foi radicalizada nas décadas
seguintes à criação da OMC, ao mesmo tempo em que a internet emergiu e consolidou-
se como um ambiente potencialmente diverso, baseado em tecnologias e padrões
abertos, permitindo fácil compartilhamento e circulação de informação, comunicação e
de bens e serviços. Desde o surgimento da internet, como será desenvolvido mais
adiante neste trabalho, um dos arranjos técnicos e políticos mais caros a ela é o que se
convencionou chamar de neutralidade da rede, ou seja, a não discriminação entre os

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“tipos” de informações trocados entre os seus diversos usuários, o que garantiria a


igualdade de condições para todos os nós da rede sejam igualmente emissores e
receptores.
5 Nosso argumento é que a agenda de escalada de legislações de controle da rede teve
início nos Estados Unidos, em 1998, com o Digital Millennium Copyright Act (DMCA)
(United States, 1998), e expandiu-se, por meio de acordos executivos e iniciativas
multilaterais, para os países da zona de influência da OMC. Mais recentemente, o caso
Wikileaks marcou a emergência de uma nova onda protetiva, com proposições de novas
legislações e acordos que passaram a incidir diretamente sobre os provedores de
serviços de internet, encurtando assim caminhos jurídicos tradicionais. Em ambos os
casos, DMCA e Wikileaks, observa-se ter havido alterações, em diferentes graus, nas
legislações nacionais a fim de atenderem aos parâmetros ditos internacionais de
enforcement.
6 A adoção de mecanismos do TRIPS-plus, desde o final dos anos 1990, os quais envolvem
a ampliação do escopo e/ou do nível de proteção estabelecido no acordo TRIPS, também
é preciso ser considerada como uma das principais características das diferentes
iniciativas envolvendo direitos de propriedade intelectual, sejam aquelas que
demonstram a influência dos interesses corporativos norte-americanos nas agências
multilaterais, sejam aquelas vinculadas a acordos bilaterais. Dito de outra forma,
“Trips-plus são as políticas, estratégias, mecanismos e instrumentos que implicam
compromissos que vão além daqueles patamares mínimos exigidos pelo acordo TRIPS,
que restringem ou anulam suas flexibilidades ou ainda fixam padrões ou disciplinam
questão não abordadas pelo TRIPS” (Basso, 2005, p. 24-25), geralmente impostos por um
ator com mais peso político e econômico envolvido na negociação, via de regra, os
Estados Unidos.
7 Por outro lado, também desde o final dos anos 1990, observa-se a emergência de um
intenso debate na esfera pública sobre direitos e privacidade na internet, os quais se
referem diretamente aos direitos de propriedade intelectual. Esse debate amplia-se, em
termos de atores envolvidos e publicidade, na medida em que a internet e as novas
tecnologias difundem-se pelo tecido social, deixando de ser assunto restrito a círculos
altamente especializados. Um dos primeiros casos de grande repercussão nesse tema
ficou conhecido como Caso Napster, envolvendo essa rede de compartilhamento de
arquivos, a indústria fonográfica e grandes artistas do mainstream da música. Embora
com um público relativamente restrito, o Caso Naspter suscitou o primeiro debate
sobre o alcance dos DPI na internet, no sentido de designação de autores e
autenticidade a bens imateriais em circulação na rede.
8 Em um contexto radicalmente diferente daquele em que se deu o Caso Napster, 1 no
início de 2012, os Estados Unidos presenciaram a primeira manifestação social de
grandes proporções sobre as estratégias de controle da/na rede, o Blackout-day, em que
diversos sites suspenderam, totalmente ou em parte, seus serviços em razão da
discussão, no congresso norte-americano, de leis restritivas ao uso da internet. O
Blackout-day foi parte de uma onda contra-hegemônica, a qual incluiu não apenas ações
diretas da sociedade civil. Diversos países têm aprovado legislações que garantem
direitos mínimos de governança na internet, principalmente no que se refere ao
regramento sobre a trafegabilidade dos dados e a oportunização equânime sobre o
acesso a serviços e informações, ou seja, uma gestão que permita a neutralidade da rede.

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Na América Latina, o Chile foi um dos primeiros países a assegurar uma legislação
específica nesse sentido, seguido pela Colômbia.
9 A neutralidade da rede é um princípio do design técnico da internet, modelo de tráfego
entre os serviços e os usuários, que visa assegurar, como instrumento de
governabilidade da rede, a equidade da competição entre os diversos players, ou
usuários, da rede. Como bem argumentou Lessig (2001) ao analisar o disciplinamento
jurídico do espaço virtual, a arquitetura original do ciberespaço mudou à medida que
governos e os atores corporativos aumentaram sua habilidade de controlar
comportamentos no ciberespaço e que tecnologias foram desenvolvidas para limitar a
liberdade desse espaço. Lessig (2001, p. 141, tradução nossa) chama atenção sobre a
realocação da inovação, de seu lugar em uma internet descentralizada e diversa para
instituições que, antes do advento da internet, policiavam a inovação: “[…] o poder que
está sendo criado aqui é importantemente artificial – produto de direitos legais criados
no ar e defendidos com o rigor das cortes e códigos”.
10 Retomando os argumentos de Lessig, Fischer (2011, p. 61) adverte que:
É crucial continuar os debates na esfera publica sobre valores culturais que se
articulam nos códigos, no mercado e no direito de software para evitar
deslocamentos indesejados da propriedade de informação, barreiras de acesso e
outras decisões relativas à infraestrutura – e ainda acompanhar as normas culturais
em transformação.
11 A neutralidade da rede é um tema transversal, envolvendo desde interesses
corporativos de empresas de telecomunicações sobre o controle dos conteúdos que
circulam nos seus cabos e fibras, empresas de mídia, que dependem da infraestrutura
de rede para o sucesso de seu negócio, e usuários em geral, na medida em que a
neutralidade (ou sua ausência) impacta diretamente a maneira como os serviços de
internet são prestados e cobrados.
12 Cabe questionar, no escopo da presente análise, de que maneira se pode aferir se um
país garante um arcabouço jurídico capaz de regulamentar direitos de cidadania e
privacidade na internet. Sabendo-se que os arranjos institucionais, a partir do sistema
multilateral, são influenciados por sistemas de poder que vão além dos limites do
Estado-nação, propõe-se, aqui, apresentar uma cartografia das legislações de DPI
relacionadas à internet, bem como iniciativas de controle tocantes ao combate àquilo
identificado como “pirataria” digital e os assim chamados cybercrimes. Para tanto, a
proposta deste trabalho é, no contexto de consolidação de políticas globais que regulam
a internet, focar a análise nos casos norte-americano e brasileiro. É preciso apontar
ainda que a noção mesma de enforcement, de amplo uso no campo do direito, da
administração pública e das tecnologias de informação e comunicação em geral,
também no Brasil é empregada no original inglês, como sinônimo e execução de leis,
onde “… se associa à ideia de força da lei […] ao esforço que algumas decisões sejam
cumpridas […] a sanção e coerção” (Nogueira, 2013).
13 Como pano de fundo conceitual, é possível remeter aqui a discussões já clássicas na
antropologia a respeito de sistemas jurídicos, como aquela que Bourdieu (1990) faz
entre regra e estratégia, entre um princípio jurídico, ordenador ideal de condutas
sociais e as estratégias, dando lugar a múltiplos arranjos ditados por contingências do
“senso prático”, do “sentido de jogo dos agentes”. Um paralelo entre os planos global e
local é inevitável para a discussão aqui apresentada. Na dinâmica de produção de
políticas globais, temos o nível prescritivo, o sistema de agências multilaterais, como a

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OMC e a OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), no qual os Estados-


nações são os atores (alguns certamente com posições hegemônicas no modo de
produção política desses regimes jurídicos); já no nível local, temos os Estados
nacionais, que devem criar mecanismos de enforcement e estratégias de efetivação
dessas políticas. Dupas (2007, p. 21) aponta que:
Ajudado pelas novas tecnologias da informação, que oferecem a possibilidade de
encolher os horizontes temporais e abolir distâncias, o poder do capital se amplia
sem enfrentar diretamente as leis nacionais, muitas vezes sem o consentimento
explícito de parlamentos ou governos. O agente econômico global, por ser
transnacional, estende seu poder explorando sistematicamente as brechas entre
diferentes sistemas jurídicos nacionais. Operando nestes interstícios legais, os
grandes grupos vão construindo seu próprio arcabouço legal, incluindo os padrões e
as normas em relação ao trabalho, aos contratos e aos processos de arbitragem
internacional. As antigas soberanias do Estado-nação passam agora a ser
compartilhadas entre Estados e atores econômicos. O poder vai deixando de ser
público e acaba, de fato, ocupando vazios criados pela lógica global e editando as
novas normas do direito internacional.
 
Direito de autor no contexto digital e o modelo made in
USA
14 Como foi dito anteriormente, consideramos a aprovação do DMCA e o caso Wikileaks
como marcos fundamentais na produção de um modelo global de políticas públicas de
enforcement centradas nos DPI.
15 O Digital Millennium Copyright Act é produto de uma agenda em torno dos DPI construída
desde os anos 1980, quando, segundo Castells (2000), tais direitos, considerados como
“ativos”, passaram a progressivamente ampliar seu peso na balança comercial norte-
americana. Aprovado em 1998, no governo Clinton, o DMCA está em vigor desde 2000. 2
Em linhas gerais, a lei criminaliza tanto a infração do direito autoral em si (a exemplo
da cópia não autorizada), ampliando consideravelmente a punição às infrações na
internet, quanto a produção e distribuição de tecnologia que permita driblar as
proteções autorais. Segundo a Eletronic Frontier Foundation (EFF), duas seções do
DMCA são especialmente controversas, a 1201 e a 512.
16 A seção 1201 contempla dispositivos anti-invasão, permitindo a adoção de controles de
acesso e medidas técnicas de proteção, como o DRM,3 e criminalizando tanto o contorno
de bloqueios quanto a criação de ferramentas que permitam tal contorno. Embora os
dispositivos anti-invasão não tenham sido capazes de atingir seu fim explícito (“parar a
pirataria na internet”), mostram-se como um importante instrumento de coação dos
usos justos dos conteúdos protegidos por direitos autorais, da livre expressão e o
desenvolvimento da pesquisa científica ao não diferenciar qualitativamente as cópias.
Além disso, argumenta-se, coloca uma barreira à inovação tecnológica ao coibir a
produção de tecnologias que, mesmo sem terem sido criadas com tal objetivo, possam
ser utilizadas para burlar as travas tecnológicas. Redes de compartilhamento peer-to-
peer (P2P) são um dos melhores exemplos deste caso. Elas permitem que arquivos sejam
compartilhados entre diversos usuários sem um servidor de armazenamento de
arquivos central. Um mesmo usuário pode copiar arquivos de terceiros enquanto
compartilha outros de seu próprio computador sem necessidade de serviços
especializados. Entretanto, as redes P2P são o principal alvo de políticas de enforcement,

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pois seriam o principal canal de compartilhamento conteúdo protegido por direto


autoral (músicas, filmes, livros). Muitos provedores de acesso proíbem ou inibem a
utilização dessas redes, principalmente em redes públicas universitárias e de acesso
público, ainda que não necessariamente a tecnologia tenha qualquer artefato ilegal per
se.
17 A seção 512 do DMCA, por sua vez, estabelece as chamadas disposições de “porto
seguro”, limitando as responsabilidades dos prestadores de serviços online nos casos de
atividades consideradas ilícitas praticadas por seus usuários na rede. Tais disposições
protegem os prestadores de terem de indenizar monetariamente terceiros pelos atos
ilegais praticados através de seu serviço. Para tanto, os prestadores devem atender a
determinadas condições, como adotar procedimentos eficientes de notificação e
retirada de matéria (em inglês, efficient notice and takedown procedures) protegida por DPI
e suspender imediatamente o acesso ao conteúdo quando ocorrer uma denúncia de
violação dos direitos por parte do detentor, independentemente do processo judicial. O
DMCA também prevê um “porto seguro” ao usuário que, diante de uma notificação de
uso de material protegido, alegue que o material não seja de fato ilícito. Seguindo a
tendência do acordo TRIPS, ocorre a inversão da lógica da presunção da inocência,
conferindo ao acusado responsabilidade de prová-la (Basso, 2005). 4
18 O DMCA consolida um modelo convencionado de notice and takedown, 5 em que o
material, produto ou informação, protegido por direito autoral pode ser retirado e
tornado indisponível mediante reclamação do suposto detentor de direitos, com base
em suporte jurídico, sem a necessidade de haver processo de escuta de defesa
precedente. De fato, percebe-se que a prática tem gerado um imenso volume de
pedidos, oriundos de grandes gravadoras e da indústria cinematográfica, enviados
diretamente aos buscadores e servidores de hospedagem, que necessitam montar
departamentos dedicados ao atendimento a tais solicitações. Como o volume de dados é
cada vez maior, sistemas automatizados têm sido utilizados, e a avaliação da
legitimidade do pedido fica a cargo somente do reclamante.
19 Segundo dados do Google transparency report, somente no mês de julho de 2013, a
Recording Industry Association of America (RIAA) somou a solicitação de retirada de 25
milhões de links para supostos materiais (músicas, filmes, textos) protegidos do
buscador Google. A lista de outros reclamantes não é pequena, demostrando que a
tarefa de cumprimento do DMCA é significativa, somando quase 250 milhões de links
para remoção mensalmente.6
20 Em se tratando de entender como se dá a produção de políticas globais, é preciso
apontar para o fato de que a legislação norte-americana tem alcance global, na medida
em que grandes serviços de busca e hospedagem estão nos Estados Unidos, como
exemplifica o fechamento do site MegaUpload, em 2012, pelo FBI. Ainda que o site não
exercesse controle sobre material hospedado, a suspensão do serviço, apesar de ser
regida pela legislação do DMCA, levou milhares de usuários, inclusive não americanos, a
perderem seus arquivos, mesmo aqueles não protegidos por direito autoral ou
voluntário compartilhados pelos autores/proprietários.
 

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O efeito Wikileaks: justificativa para enforcement


global
21 Na esteira do DMCA e da escalada de legislações protetivas, o caso Wikileaks ensejou
novas propostas de ampliação do controle na rede e reacendeu a discussão sobre a
necessidade de haver parâmetros internacionais de enforcement. Em novembro de 2010,
o site Wikileaks vazou milhares de telegramas secretos da embaixada norte-americana,
expondo suas ações militares no Oriente Médio. O site, antes visto com bons olhos pelo
Pentágono, por revelar documentos secretos de diversos países do mundo, desvelou as
estratégias malfadadas das principais guerras em que os Estados Unidos estiveram
envolvidos.
22 De fato, o Wikileaks não estava praticando qualquer ação ilegal, apenas divulgando
material recebido por um informante, assim com um veículo de imprensa o poderia
fazer amparado pela Lei da Imprensa. Ainda assim, uma série de ações foi deflagrada,
baseada não na ilegalidade do site ou do conteúdo distribuído, mas no convencimento
dos fornecedores de tecnologia e na pressão exercida pelas autoridades sobre eles. A
primeira medida adotada foi a suspensão do domínio, obrigando o site do Wikileaks a
mudar de endereço inúmeras vezes. Logo depois, a empresa Amazon, que
disponibilizava os servidores para guarda dos documentos, encerrou o contrato com o
site. Em seguida, o sistema PayPal e as operadoras Visa e MarterCard fecharam as
contas de doações ao site, prejudicando ou até mesmo inviabilizando fundos de
financiamento do Wikileaks.
23 Para Benkler (2011), o cenário protetivo mudou radicalmente após as denúncias,
principalmente com a proposição das leis Stop Online Piracy Act (SOPA) (United States,
2011b) e o Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual
Property Act (PIPA) (United States, 2011a), 7 que tiveram sua votação suspensa depois de
uma onda de protestos e pressão corporativa exercida por diversas empresas do Vale
do Silício, notadamente identificadas com uma economia de novo tipo, para além da
indústria do entretenimento, com poder de influência política em Washington. Ainda
que a disputa tenha seus precedentes, essas empresas conseguiram impor sua agenda,
não por questões meramente ideológicas, mas porque seus ganhos provêm de um
ecossistema econômico baseado no commons da internet (Benkler, 2011). A noção de
commons, na definição de Benkler (2007, p. 12), é fundamental para se entender a
internet, do ponto de vista jurídico, como parte do espaço público:
Commons são um tipo particular de arranjo institucional que governa o uso e a
disposição de recursos. Sua principal característica, que os define de forma distinta
da propriedade, é que nenhuma pessoa tem o controle exclusivo do uso e da
disposição de qualquer recurso particular.
24 Essas disputas evidenciaram uma conjunção de ações, em parte técnicas, em parte de
mobilização política, de amplitude global, que proporcionaram uma capilarização
inédita do debate sobre direitos de propriedade. No campo da estratégia política dessas
novas legislações, o SOPA e o PIPA remetem a importantes acontecimentos. Benkler
(2011) assinala a similaridade entre elas e os esforços, desde o início da década, da
indústria do copyright na tentativa de produzir legislações capazes de remover
completamente sites que possam disponibilizar ou distribuir material protegido. O
“efeito Wikileaks” propiciou a formulação de uma modelagem mais concisa, que
permitiria métodos mais ágeis de notice and take down, aliados agora à possibilidade de

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inviabilização financeira dos “sites suspeitos”, para usarmos os termos das legislações
citadas.
25 Diferentemente do DMCA, o SOPA e o PIPA focavam três pontos cruciais: a)
possibilidade de suspender endereços de internet (domínios ou DNS) dentro dos EUA ou
formar blacklist de sites estrangeiros; b) possibilidade de suspender transferências
financeiras por meio de contas de cartão de crédito ou semelhantes; e c) possibilidade
de cortar os rendimentos de publicidade online proveniente dos sites classificados como
ilegais. Os pressupostos que nortearam tanto o projeto do PIPA como o SOPA ainda
permanecem em debate na nova proposição do chamado Cyber Intelligence Sharing and
Protection Act (CISPA) (United States, 2012a), aprovado em abril de 2012, aguardando
aprovação do senado norte-americano. Seu objetivo é dotar de meios legais o combate à
pirataria nas redes de compartilhamento, mediante cooperação entre os provedores de
acesso e as agências de inteligência do país. O CISPA foi proposto pelo congressista
Michael Rogers e apoiado pela Motion Picture Association of America (MPAA), a Câmara
de Comércio norte-americana, o Screen Actor Guild, a Viacon e entidades ligadas à
indústria cinematográfica. Assim como ocorreu com o SOPA e o PIPA, o CISPA foi
questionado por organizações civis, como a Eletronic Frontier Foundation, o Center for
Democracy and Technology, a American Civil Liberties Union e o Human Rights Watch.
26 De maneira geral, a controvérsia estabelecida circunscreveu-se à garantia de direitos de
privacidade, anonimato e segurança em detrimento de mais controle da circulação de
bens imateriais nas redes digitais. Recentemente, o tema voltou a ocupar as manchetes
quando Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança dos
Estados Unidos (NSA), revelou uma série de mecanismos de vigilância praticada pelas
agências de inteligência norte-americanas e as maiores empresas na área de internet.
Esse é um caso singular, pois desvelou que as práticas de monitoramento e cooperação
institucional e corporativa vão além das regras públicas estabelecidas. Como pano de
fundo, está em jogo a propriedade dos dados e artefatos digitais como bens imateriais.
Entre licenças e “termos de uso”, há uma clara disputa para se definir se o prestador de
serviço também é dono da produção dos utilizadores. Pode-se arbitrariamente usar,
vender ou ceder essas informações? E, em última instância, quem deve ser
responsabilizado pelos possíveis ilícitos dentro da rede?
 
O princípio da neutralidade da rede e a privacidade
regulada
27 Um dos arranjos mais centrais à rede, mobilizado com mais ênfase nesses últimos anos,
é o que se convencionou chamar de neutralidade da rede. O termo tem sua origem na
legislação de telégrafos de 1860 e, em relação à internet, foi consagrado por Tim Wu
(2003, 2004). Em suma, essa neutralidade consiste na capacidade de os pacotes da rede
terem iguais condições de tratamento nos diversos pontos da rede que perpassam. O
arranjo técnico projeta uma não discriminação de tipos de pacotes de dados, o que
garantiria a igualdade de condições de toda a informação da rede circular sem barreiras
preestabelecidas. Pacotes de dados, na linguagem dos usuários experts, é a forma como
as informações são agrupadas e transmitidas na rede. A metáfora liberal clássica a
partir desse condicionamento é imediata, “todos os pacotes são iguais perante a rede”,
e fornece a estética da rede diante da governabilidade da rede.

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28 Para Benkler (2007, p. 18), a liberdade e a inovação tornadas possíveis pela economia
em rede dependem diretamente da construção de uma infraestrutura básica de espaços
de comunicação de uso comum (digital commons), de acesso público, que seja paralela à
estrutura proprietária, isto é, de acesso privado, sendo que ao menos uma parte de cada
camada deve “poder ser utilizada por todos sem a necessidade de ter qualquer
permissão”. A arquitetura da internet, diferentemente de outros meios de
comunicação, permitiu que diversas camadas da rede pudessem ser usadas sem que
fossem necessários intermediários.
Esta infraestrutura de commons deve se estender desde a camada física do ambiente
da informação até as camadas lógicas e de conteúdo. Ela deve ser estendida para
que toda pessoa tenha certo conjunto de recursos primeiros e últimos que lhe
permita fazer e comunicar a informação, o conhecimento e a cultura para todos os
demais. (Benkler, 2007, p. 18).
29 Na prática, o arranjo técnico e institucional da rede proporcionou que houvesse uma
separação entre os provedores de acesso (ISPs) e os provedores de conteúdo, como
fornecedores independentes. A neutralidade da rede corresponde à separação unívoca
dessas duas camadas, para que (pretensamente) não haja arbítrio nem vigilância do
conteúdo que esteja circulando na infraestrutura.
30 Desde 1990, o debate sobre as regras de governabilidade da rede tem se tornado mais
frequente, principalmente devido ao englobamento dos ISPs pelas empresas de
telecomunicação. Benkler (2007) chama atenção para dois efeitos da comunicação de
massa fundamentais para se compreender o processo de cercamento técnico e judicial da
internet. O primeiro, conhecido como o efeito Berlusconi, é definido como “o poder
político desproporcional que a propriedade dos meios de comunicação em massa dá aos
seus proprietários ou aqueles que podem pagar por eles” (Benkler, 2007, p. 16), a
exemplo das estratégias de inclusão de temas privados nas agendas públicas e no
ordenamento jurídico, como os lobbies, grupos de pressão e o mecanismo de “portas
giratórias”.8 O segundo efeito refere-se a “a substituição sistemática do discurso público
pela distribuição de produtos de entretenimento vendidos como mercadorias”
(Benkler, 2007, p. 16). Esse mecanismo permite analisar a progressiva mercantilização
da produção cultural, científica e artística em níveis inéditos por meio dos direitos de
propriedade intelectual como principal estratégia de produção do valor de troca.
Ambos os efeitos radicalizam a ideia de que o acesso a bens e serviços deve ser restrito
aos que possam por eles pagar, independentemente da função social, do bem-estar
coletivo e dos direitos individuais e coletivos. É nesse sentido que, contra a
neutralidade da rede, os porta-vozes das corporações, geralmente da área de
telecomunicações, argumentam que serviços de vídeo e voz deveriam ser priorizados
porque dependem de alto consumo de banda e qualidade de entrega para sua
efetividade.
31 O argumento dos defensores da neutralidade é o de que a rede deve ser tratada como
espaço público, como um bem comum (common resource), e que serviços não devem ser
diferenciados ou priorizados. Diversas iniciativas legislativas nos Estados Unidos têm
tentado regulamentar esses princípios, sendo que, entre as mais significativas, estão o
Network Neutrality Act (United States, 2006), e o Internet Freedom Preservation Act (United
States, 2008).
32 A neutralidade de rede também remete a uma leitura do funcionamento da rede a
partir da sociedade civil F0
2D seus ativistas, entusiastas, hackers e técnicos F0
2D que

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conformam um movimento social específico. Os primeiros manifestos sobre uma


“governabilidade da rede” surgiram em meados da década de 1990. Os dois mais
significativos foram A rape in cyberspace, de Julian Dibbell (1998) e Declaration of the
independence of cyberspace, de John Perry Barlow (1996). Estes atores não eram “nativos”
da rede e não tinham nenhum vínculo com os técnicos fundadores da internet;
entretanto, foram fundamentais para traduzir o que seria um “novo espaço” para um
público não técnico, além de arregimentar uma militância “libertarianista”,
defendendo uma desvinculação de governos sobre a rede (Goldsmith; Wu, 2006). Esse
caráter libertário de uma geração ligada aos primórdios da internet é bastante
abordado por Barbrook e Cameron (1996) no que classificaram de uma fusão da cultura
libertária dos anos 1960 com uma cultura empresarial de alto risco dos anos 1980 que
“promiscuamente combina o espírito desgarrado dos hippies e o zelo empreendedor
dos yuppies”. Coleman (2005), em sua etnografia sobre a constituição da comunidade
Debian, grupo de ativistas técnicos ligados ao movimento de software livre e código
aberto, detalha essa influência política nas comunidades hackers e como os ideais de um
liberalismo radical orientam as práticas de compartilhamento de software. Pode-se
afirmar que os embates em torno da neutralidade de rede, entre o enforcement de
legislações protetivas e o ativismo na rede traduz, em grande medida, o embate entre
modelos políticos da rede, interpretados a partir de modos de organização política e
novas formas de movimentos sociais na contemporaneidade.
33 Desde o advento do TRIPS como um regime global de propriedade intelectual, atores
importantes da assim chamada sociedade civil global têm chamado a atenção para o
processo de cercamento ( enclosure) que ocorre ao domínio público, ou intellectual
commons. Fazendo um paralelo histórico com o processo de cercamento de terras
ocorrido na Inglaterra entre os séculos XV e XIX, terras até então de domínio público, e
a transferência de direitos de propriedade para os nobres, tornando essas áreas
propriedade privada, ambos os termos, commons e cercamento, passam a fazer parte do
discurso a respeito da legislação de propriedade intelectual, em geral, sob uma
perspectiva analítica crítica.9
34 Os anos de 2006 a 2008 constituíram um período de intensa disputa pela neutralidade
da rede, tendo sido de extrema importância o posicionamento da Comissão Federal de
Comunicações dos Estados Unidos (FCC), no emblemático caso da Comcast. Em 2006, o
provedor teria começado a discriminar pacotes de dados de origem de redes peer-to-
peer, (entre eles, por exemplo, o BitTorrent), protocolo usado para compartilhamento
de arquivos entre usuários. O argumento era que a enorme quantidade de dados
utilizados era, na sua grande maioria, oriundos de pirataria e que, portanto, não
deveria degradar “o bom uso da rede”. Em resposta às queixas encaminhadas à FCC pelo
Public Knowledge e pelo Free Press, ambos grupos de defesa do consumidor, e pela
distribuidora de vídeo online Vuze, a comissão manifestou-se contrária à discriminação
dos pacotes. No ano anterior, a FCC publicara uma declaração de política da internet
(United States, 2005), a qual estabelecia quatro princípios que buscavam defender
direitos dos usuários e, por consequência, acabavam apoiando a neutralidade. São esses
direitos: acessar conteúdo legal na internet; rodar aplicativos e usar os serviços de sua
preferência; rodar aparelhos de sua preferência, desde que não prejudiquem a rede; e
beneficiar-se da competição entre operadoras e provedores de conteúdo e de aplicação.
Entretanto, cabe destacar que, em 2009, a Corte de Apelações do Distrito de Colúmbia,

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Estados Unidos, declarou que a FCC não tinha autoridade estatutária para impor
princípios de neutralidade na rede.
35 Casos parecidos foram replicados em diversos outros países. No Brasil, vários estudos
apontaram a técnica de traffic shapping em provedores como a NET e Brasil Telecom
(Evangelista, 2006). Para além da priorização de serviços específicos e do bloqueio de
outros “indesejados”, o princípio da neutralidade delimita a privacidade dos conteúdos
que circulam na rede. Se um serviço é mais priorizado que outro, é necessário que o
“dono do cabo” saiba o que o usuário está transmitindo, mediante técnicas
convencionadas de deep package inspection. Esse é o argumento utilizado, também, para
um “exame” mais acurado de materiais ilícitos na rede, tendo sido implementado como
legislação em diversos países, como forma juridicamente aceita para o combate às
cópias ilegais.
36 Para uma política mais eficiente de controle, uma agenda que dissolva essas camadas
está sendo paulatinamente consolidada, a partir da responsabilização dos ISPs pela
vigilância sobre possíveis delitos cometidos pelos usuários da rede. Essa agenda é
conhecida como “resposta gradual” ou three strikes. Em termos gerais, uma comissão
específica julga casos relatados pelos ISPs ou reclamantes sobre possíveis infrações de
propriedade intelectual. Os usuários são notificados por duas vezes, até serem
desconectados e processados na última notificação reincidente. Como exemplos de
resposta gradual, pode-se citar o mecanismo de enforcement da Hadopi, lei francesa
aprovada em 2009 (France, 2009), e o caso sul-coreano. O primeiro gerou mais de 500
mil primeiras notificações em 2011 e, atualmente, há cerca de 60 casos de usuários em
fase de desconexão e processo. Já na Coreia do Sul, a resposta gradual foi implementada
em 2009, a partir de uma revisão da lei de direito autoral, ampliando o poder desse
ordenamento jurídico para se controlar a circulação de conteúdo online mediante um
sistema de inspeção profunda dos pacotes (cf. Tong-Hyung, 2009).
37 Como mencionado anteriormente, considerando-se os embates verificados em torno da
neutralidade da rede, cabe questionar de que maneira pode-se mensurar se um país
garante um arcabouço jurídico capaz de regulamentar direitos de cidadania e
privacidade na internet. Nossa análise busca evidenciar as diferenças existentes entre
os sistemas regulatórios, em uma perspectiva comparativa. Para tanto, consideramos os
seguintes aspectos: a) existência de legislação nacional específica sobre internet; b)
necessidade de haver ordem judicial para retirada de conteúdo protegido por copyright;
c) existência de legislação ou mecanismo legal de bloqueio de serviço de conexão; e d)
legislação nacional específica sobre privacidade digital.
38 Um dos estudos comparativos comumente utilizados é o relatório Freedom on the Net,
elaborado pela Freedom House, instituição independente sediada nos Estados Unidos
que produz relatórios anuais monitorando a liberdade de expressão e imprensa. Essa
organização se dedicou nos últimos dois anos a produzir um relatório específico sobre a
liberdade na internet, abrangendo mais de 50 países. 10 A metodologia empregada no
estudo concentra-se na análise de três grandes eixos: obstáculos de acesso, no qual são
analisadas as dificuldades econômicas e de infraestrutura; controle de conteúdo,
referindo-se à existência de filtros e bloqueios de sites e outras formas de censura; e
violação de direitos de usuários, relacionando formas de limitação de privacidade,
vigilância na rede e restrição de atividades habituais nas redes digitais. Os três eixos são
desdobrados em 21 questões metodológicas, que avaliam as condições de liberdade da

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internet nos países que compõem a amostra, numa pontuação que varia entre 0 e 100,
entre os países com maior ou menor liberdade, respectivamente.
39 Segundo esse ranking, Brasil e Estados Unidos estariam na faixa de países “livres”, com
uma pontuação abaixo de 33 pontos; porém, o relatório público, nossa referência para
este artigo, não permite acesso aos dados brutos, mas somente ao resultado agregado.
Nesse sentido, os Estados Unidos aparecem com pontuação positiva para “violação de
direitos de usuários” (somando somente cinco pontos), também não havendo registros
de “evidências de vigilância, regulação ou restrição de anonimato”. O Brasil é apontado
como um dos melhores países no ranking da América Latina, apesar de, segundo o
relatório, carecer de uma lei mais específica sobre regulamentação de direitos autorais
de bens imateriais.
40 Em nosso exercício, propomos aqui analisar três eixos transversais ao relatório da
Freedom House, envolvendo especificamente neutralidade da rede, regulamentação
quanto à retirada de conteúdo e mecanismos de inspeção do tráfego de conteúdo. A
partir disso, é nosso objetivo traçar uma cartografia do cenário, nos Estados Unidos e
no Brasil, de iniciativas legislativas, de regulações e pressões multilaterais, sempre no
contexto da produção de políticas globais, com base em casos emblemáticos balizadores
no campo da regulação de direitos na internet. Destacamos a tensão continuada que há
entre o domínio público e o ordenamento jurídico da propriedade intelectual sobre os
bens intangíveis. Reiteramos que não se trata apenas de decisões legais e econômicas
relativas a domínios na rede e governança de fluxos de informação, comunicação e
dados, “mas escolhas, valores e pontos de inflexão culturais que fazem uma certa
diferença nas direções que a vida cultural pode tomar […]” (Fischer, 2011 p. 62).
41 A escolha dos dois países como casos em nossa análise se justifica na medida em que os
EUA têm sido o protagonista de legislações de enforcement na área de propriedade
intelectual e internet, bem como um ator subjacente com poder de influência de
políticas domésticas de diversos países. O Brasil, por protagonizar uma das primeiras
experiências de discussão e construção de lei específica para governança da internet de
forma aberta e colaborativa, através de um website específico, promovido pelo governo
federal. A plataforma do Marco Civil da internet, como ficou conhecido, foi lançado em
2009 e o projeto de lei resultante ainda tramitava no Congresso Nacional quando da
escrita deste artigo.
 
Estados Unidos da América
42 Práticas consideradas censoras da internet adotadas por diferentes países, como China,
Coreia do Norte, Arábia Saudita e Irã, que violam o princípio da neutralidade da rede,
nem sempre se basearam em lei(s) específica(s) sobre e para a regulação da internet. Os
Estados Unidos foi o primeiro país a estabelecer um arcabouço jurídico para regulação
da rede, tanto mediante decisões judiciais pontuais, quanto por meio de legislações
específicas. As primeiras dessas legislações foram relativas ao setor de
telecomunicações, a exemplo do Communications Deceny Act (United States, 1996), o qual
estava incluso na lei de telecomunicações, regulando a vinculação de material
pornográfico na rede.
43 No que se refere à legislação específica para a internet, os Estados Unidos constituíram
um modelo conformado por interesses corporativos transnacionais e por pressões
multilaterais, cabendo avaliar, em cada caso, a maior ou menor capacidade dos atores

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pautarem a agenda a partir desses interesses. A confluência de interesses da indústria


do entretenimento e das telecomunicações com o discurso antiterror pós-11 de
Setembro tem constituído um solo fértil para a produção de legislações reguladoras da
internet, a ponto de o deputado Darrell Issa, em 2012, ter proposto um bloqueio, por
dois anos, de qualquer tentativa de regulamentação da rede, diante do debate público e
especializado do SOPA, PIPA e CISPA.
44 Como abordado anteriormente, o DMCA (2000) foi a primeira experiência de regulação
de direitos de propriedade intelectual no contexto da internet, congregando em uma
única legislação: a) tratamento de propriedade intelectual para bens digitais; b) gestão
de direitos digitais (DRM); c) criminalização da prática de reversão técnica de
dispositivos controladores de gestão de direitos digitais; e d) normalização de pedidos
de retirada de conteúdo sem ordem judicial (notice and takedown). Esse modelo tem sido
exportado especialmente por meio do relatório Special 301, elaborado anualmente pelo
Escritório do Representante do Comércio dos EUA (USTR), que trata de barreiras
comercias colocadas às empresas norte-americanas pelas legislações de propriedade
intelectual. Conforme revelado pelos telegramas vazados pelo Wikileaks, o relatório é
utilizado para forçar governos a alinhar suas legislações com uma proteção “adequada
e eficaz” aos parâmetros norte-americanos.11
45 Especificamente quanto à retirada de conteúdo protegido por copyright, o DMCA provê
instrumentos legais e técnicos para tanto, aplicados diretamente aos provedores de
acesso e provedores de serviço, sem que haja necessidade de os reclamantes
apresentarem ordem judicial. Em todos os grandes serviços de internet, é possível
verificar as cláusulas do DMCA quanto ao conteúdo. De serviços de hospedagem de fotos
e vídeos a redes sociais, o DMCA, assim como o acordo TRIPS, inverte a presunção da
inocência, imputando ao acusado a responsabilidade de provar que não cometeu um
crime. Os pedidos de retirada de conteúdo têm aumentado na mesma medida que têm
se ampliado os canais de distribuição de conteúdos (lícitos ou ilícitos). No que tange a
grandes repositórios e sites de busca, os pedidos têm sido feitos de modo automatizado,
a partir de algoritmos que rasteiam conteúdo que possivelmente infrinja direitos
autorais.
46 O Google é dos sites que tem anunciado a origem e o número de pedidos de retirada de
conteúdo da rede. Em julho de 2013, por exemplo, somente o Google recebeu quase
cinco milhões de pedidos de remoção.12 Entre os dez primeiros colocados na lista de
demandantes, estão entidades antipirataria, geralmente firmas de tecnologia e
escritórios de advocacia especializados em casos de disputa sobre DPI. Também é
possível perceber a presença de gravadoras e da indústria cinematográfica, cujos
pedidos somam mais da metade do total.
47 No caso dos Estados Unidos, não há legislação para bloqueio de serviço de conexão por
infração de propriedade intelectual, como ocorre na França e Espanha, por exemplo,
que incluíram, no ordenamento jurídico, uma metodologia de resposta gradual (three-
strikes) ao procedimento legal doméstico. Como descrito anteriormente, a estratégia
disciplinadora da resposta gradual consiste em monitorar a conexão dos usuários por
meio do provedor de acesso que, suspeitando de download de material protegido por
direito autoral, envia notificações (que podem ocorrer via e-mail ou carta registrada, a
depender do sistema) a fim de alertar o usuário sobre possíveis penas. Se o usuário
continuar fazendo cópias e não apresentar defesa, pode ser multado ou ter sua conexão
suspensa.

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48 Nos Estados Unidos, o modelo implantado consiste no Copyright Alert System (CAS),
implantado em julho de 2011, que não é um dispositivo legal, mas um sistema privado
de alerta que congrega os maiores provedores de internet dos Estados Unidos – AT&T,
Cablevision, Time Warner, Verizon e Comcast –, escritórios de representação da
indústria fonográfica e cinematográfica – RIAA e MPAA – e alianças menores, como
Independent Film and Television Alliance (IFTA) e American Association of
Independent Music (A2IM). Os esforços de monitoramento são coordenados por uma
entidade privada, sem fins lucrativos, chamada Center for Copyright Information, a
qual provê a infraestrutura logística para a realização do monitoramento e dos envios
dos alertas. O foco do sistema “educacional” são as redes públicas P2P e BitTorrent, ou
seja, redes abertas de compartilhamento de arquivos. Segundo os dados divulgados no
site da instituição, o procedimento não é realizado por meio de deep package inspection,
mas pela comparação de semelhança de downloads realizados pelos usuários com
arquivos que notadamente possuam proteção autoral para circulação na rede, ou seja,
há algum tipo de monitoramento do conteúdo consumido pelo usuário para estabelecer
a “presunção da culpa”.
49 Também conhecida como six strikes ou resposta gradual, essa metodologia dita
“educacional” consiste em, primeiramente, avisar o usuário que possivelmente esteja
copiando algum material protegido por e-mail, alertando-o sobre questões legais. No
segundo momento, um novo e-mail ou uma mensagem de voz do provedor é enviada a
fim de que o usuário confirme ter conhecimento sobre as consequências de sua
conduta. Na terceira e quarta fase, é enviado um vídeo educativo contendo questões
sobre propriedade intelectual. O quinto e sexto passo, caso não haja qualquer
manifestação por parte do usuário, interferem diretamente na conexão. O limite de
banda é reduzido ao mínimo, e, a cada intervalo de tempo de navegação, uma página de
alerta é apresentada. A estratégia de enforcement da assim chamada resposta gradual
pretende ser pedagógica e objetiva o disciplinamento do usuário, neste caso, incidindo
nos usuários norte-americanos.
50 Apesar de o monitoramento e recolhimento desses registros não ter força legal de
denúncia, entidades de defesa de direitos digitais advogam que eles podem significar
um valioso trunfo de chantagem. Nos Estados Unidos, é usual o envio de cartas de
conciliação prévia, a partir das grandes associações de gravadoras, por exemplo, em
que multas já são estipuladas, a fim de que o processo por infração de direito autoral
não seja levado aos tribunais. A Eletronic Frontier Foundation chegou a abrir um
processo chamado RIAA versus the people13 em 2008, denunciando o método jurídico
conhecido como John Doe. Reticentes quanto a levar a cabo grandes processos de defesa,
de altos custos judiciais, os usuários preferem o pagamento da multa. Além disso, a
interferência e redução da velocidade da conexão por meio de avisos intermitentes
constituem ingerência sobre a neutralidade da rede. Apesar de não figurar uma
priorização ou depreciação de um tipo de serviço em relação a outro, a metodologia
ataca diretamente as redes de compartilhamento de arquivos, em particular, as redes
BitTorrent. Em sentido estratégico, essa é uma forma de se desestimular a troca de
arquivos, se intervindo tecnicamente em serviços de troca de arquivos, numa aliança
entre provedores e detentores de DPI. Nesses termos, as regras de tratamento
isonômico dos dados trafegados na rede entram em choque com a campanha
“educacional”, já que esta tem impacto direto nas tecnologias e protocolos disponíveis
para uso na rede. Além disso, o uso da rede, suas tecnologias e protocolos são julgados

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independentemente de qualquer processo judicial, tendo os provedores de acesso e


detentores de direitos o arbítrio sobre os casos.
51 Quanto à privacidade digital, nos Estados Unidos, os aspectos relativos ao tratamento
de dados pessoais, mais especificamente, relativos a dados pessoais trafegados em meio
eletrônico, são contemplados de maneira ampla pelo Privacy Act, de 1974 (cf. United
States, 2012b), modificado pelo Computer Matching and Privacy Protection Act, de 1988 (cf.
United States, 2013) e pelo Computer Matching and Privacy Protection Ammendment, de
1990 (cf. United States, 1991). Uma das leis mais significativas sobre e para a
privacidade digital é o USA Patriot Act, aprovado em 2001, como resposta aos ataques
terroristas ocorridos em território norte-americano (United States, 2001). A lei, que
autoriza uma série de procedimentos com o intuito de “combater o terrorismo”, é alvo
de crítica no que tange à privacidade digital, por autorizar escutas telefônicas em
massa.
52 Em março de 2011, o presidente Barack Obama assinou uma reedição do Patriot Act, o
Foreign Intelligence Surveillance Act (cf. Liu, 2011). Em 2013, um extenso programa de
vigilância e interceptação de dados da internet foi revelado pelo ex-funcionário da NSA,
Edward Snowden. Os programas PRISM, XKeyscore e Tempora estariam sendo usados
para inspecionar grandes volumes de dados, oriundos principalmente de provedores de
serviço de e-mail e redes sociais, como Google, Facebook, Microsoft e Skype. Tal
inspeção dispensaria ordem judicial, requerendo, do funcionário responsável, apenas o
preenchimento de formulários de justificativa para a obtenção de dados pessoais de
qualquer usuário dessas redes. Apesar de negar a inspeção massiva, o presidente Obama
admitiu publicamente que pelo menos 1,6% dos dados trafegados nos Estados Unidos
seria interceptado pela NSA.
 
Brasil
53 No Brasil, não existe legislação específica sobre a internet. No entanto, após longo
debate acerca de uma lei sobre crimes digitais e diversas tentativas de se aprovar o
projeto de lei nº 84/1999, de autoria do Deputado Eduardo Azeredo, um projeto
específico sobre crimes ou delitos informáticos foi aprovado no final de 2012, entrando
em vigor em 2013 (Brasil, 2012a).
54 O projeto de lei nº 84/1999, conhecido como AI-5 Digital, fez emergir uma das maiores
mobilizações de especialistas e militantes em defesa de direitos de privacidade no
contexto da internet no cenário doméstico. Nesse sentido, destacam-se duas delas, que
funcionaram como principais iniciativas de contraposições de cunho técnico e político:
a consulta pública digital para a criação de um marco civil para a internet, pautada pelo
Ministério da Justiça, em 2009, e a consulta pública digital acerca da reforma na Lei do
Direito Autoral, realizada pelo Ministério da Cultura, em 2010. Ambas as propostas
tiveram o papel de conformar um ambiente de mediação, deslocando o caráter da
discussão do campo da criminalização e do enforcement para o das responsabilidades e
direitos (Solagna, 2012). A lei nº 12.737/2012 (Brasil, 2012b), também conhecida como
Lei Carolina Dieckmann, foi proposta e aprovada celeremente após a divulgação de
fotos pessoais da atriz homônima na internet, obtidas de seu computador após ela ter
passado seus dados pessoais respondendo a um e-mail contendo técnicas de phishing. 14
Cabe destacar que, neste artigo, essa não é considerada uma legislação específica, na
medida em que está vinculada a uma alteração do Código Civil, não constituindo um

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conjunto autônomo de dispositivos legais. A lei foi proposta pelo deputado Paulo
Teixeira e tipifica três tipos de crimes cibernéticos: a) invasão de computador a fim de
obter, adulterar ou destruir dados ou informações, sem autorização expressa ou tácita
do titular do dispositivo, ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita; b)
interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático
ou de informação de utilidade pública; e c) falsificação de documento ou cartão
bancário.
55 A Lei Carolina Dieckmann foi considerada uma forma de se neutralizar o projeto mais
amplo de tipificação de crimes apresentado pelo deputado Eduardo Azeredo, embora a
avaliação quanto a seu impacto não seja consensual entre os ativistas. A principal
crítica refere-se à aprovação de uma lei criminal antes de ter sido colocado em prática o
Marco Civil da internet. A existência dessa tipificação isolada, num contexto de
demanda por regulação do ambiente digital, pode acarretar o alargamento de sua
interpretação, na ausência de uma regulação mais abrangente, a qual seria fornecida
pelo Marco Civil.
56 Para a retirada de conteúdo online, é necessário haver ordem judicial emitida ao
provedor da hospedagem, porém há alguns casos clássicos de má interpretação jurídica
da estrutura de funcionamento da internet no que se refere a bloqueio de material em
provedores de conteúdos não hospedados em território nacional. Cabe destacar que
muitos sites são hospedados nos Estados Unidos, razão pela qual o usuário brasileiro
vincula-se ao DMCA, mesmo sem saber. Um exemplo nesse sentido foi o bloqueio ao site
YouTube, em 2007, devido a uma ação judicial iniciada por Tato Malzoni, então
namorado da apresentadora de TV Daniela Cicarelli, expedido contra o site por conta de
um vídeo que exibia cenas íntimas do casal. Durante cerca de 24 horas, o YouTube ficou
bloqueado por todos os provedores de acesso no Brasil. Também cabe destacar a
ocorrência de reiteradas denúncias de censura na internet, sem que tenha havido
qualquer ordem judicial para tanto. Por exemplo, durante os protestos ocorridos ao
longo do Brasil, em julho de 2013, abundaram denúncias de retirada de posts no
Facebook relacionados às manifestações, bem como ausência de sinal de celular nas
áreas dos protestos, impedindo o acesso à internet. O projeto Rede Livre, criado nesse
contexto por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, congrega denúncias de ataque
à liberdade de expressão na internet.
57 Diferentemente dos países do Norte, o Brasil não possui qualquer mecanismo de
bloqueio da conexão por infração de direito autoral, a exemplo do método de “resposta
gradual” implementado pelos EUA, França, Espanha e Austrália. O país tem sido alvo da
pressão exercida pela Special 301, que, por várias vezes, indicou a necessidade de haver
aumento do enforcement no que tange à pirataria digital. Como o projeto de lei do
deputado Eduardo Azeredo esteve em discussão por diversos anos, sendo inclusive
citado no relatório, o foco da discussão foi direcionado para leis de tipificação de crimes
cibernéticos.
58 Igualmente, não há uma legislação nacional específica para garantir a privacidade
digital. O Marco Civil da internet é, atualmente, o projeto com melhor desenvolvimento
na área, já que pontua expressamente a responsabilidade dos provedores de acesso e,
principalmente, inibe a prática de rastreamento de serviços web por parte dos
provedores de conexão. Trata com exclusividade da neutralidade de rede, ponto
polêmico que tem travado a votação do projeto na Câmara dos Deputados,
principalmente pela atuação das empresas de telecomunicação, através do

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SindiTelebrasil. Mesmo tramitando em regime de urgência no final de 2013, a pedido do


Executivo, o projeto não obteve consenso e a votação foi adiada para 2014.
 
Considerações finais
59 Os elementos propostos para avaliação do grau de liberdade na internet não podem ser
tomados de forma absoluta, razão pela qual o levantamento aqui descrito constitui a
primeira etapa de uma análise a ser aprofundada posteriormente. A existência de uma
legislação específica sobre internet ou sobre privacidade digital, por exemplo, é pouco
informativa, caso não se considerem o conteúdo e as possibilidades interpretativas da
lei. Ao passo que, no caso norte-americano, o DMCA configura um indicador da
existência de restrições à liberdade na rede, no Brasil, a ausência de legislação
semelhante tem funcionado como garantia da liberdade e neutralidade, em que pesem
as recorrentes críticas e pressões bilaterais (notadamente, dos Estados Unidos mediante
a Special 301) e dos proprietários de DPI ao clima de insegurança jurídica provocado pela
ausência de tal legislação. Já a necessidade de haver ordem judicial para retirada de
conteúdo apresenta-se como um indicador de segurança jurídica para o usuário e uma
forma de coibir práticas abusivas e arbitrárias na gestão do conteúdo na rede por parte
de governos, provedores e corporações. A existência de mecanismos de bloqueio ataca
diretamente o princípio da neutralidade da rede, na medida em que impõe o controle
do tráfego de serviços e informação e a discriminação dos pacotes de informação.
60 A construção de indicadores de liberdade e privacidade na rede apenas em termos
formais pode implicar o reforço do argumento segundo o qual, apesar dos lobbies e
pressões corporativas e governamentais, os países ocidentais mantêm a internet livre,
restringindo-se a ideia de censura apenas aos países asiáticos e árabes nos quais a rede
esteja a cargo dos aparelhos de Estado locais. O entendimento reiteradamente
apresentado por ativistas ligados não apenas aos direitos da internet, mas também aos
direitos civis e do consumidor, é o de que a internet está sob ataque, porque se observa
haver um amplo movimento técnico-jurídico para que as camadas da rede fundam-se
sob um mesmo controle, ou seja, para que as empresas que controlam a infraestrutura
controlem também o fluxo da informação. Essa fusão ataca direta e violentamente o
princípio da neutralidade, garantido exatamente pela separação do controle das
camadas – ou, dito de outra forma, pela garantia do não controle.
61 Neste trabalho, comparando-se o caso norte-americano e o caso brasileiro de sistemas
de legislação e controle da internet, a análise desloca-se dos aspectos mais formais das
dificuldades de acesso e/ou barreiras técnicas para a dinâmica de trocas de informações
na rede, como no caso do relatório da Freedom House, para se compreender o
arcabouço de políticas globais e multilaterais em que estão inseridas as normativas
jurídicas específicas e ações locais de enforcement dessas políticas. Nesse sentido, cabe
questionar e relativizar a posição dos Estados Unidos como uma das nações melhor
colocadas no ranking de países com mais garantias de acesso livre à rede,
principalmente após o governo admitir que mantém monitoramento expressivo, sem
haver ordem judicial, dos principais serviços de comunicação na rede. Esse é um caso
claro no qual mais regulação significa menos direitos.
62 Por sua vez, há um extenso número de países que aprovaram legislações que garantem
juridicamente a manutenção da neutralidade da rede, como Chile, Colômbia, Equador,
México, Peru, Holanda e Bélgica, entre outros. Nada obstante, essas prerrogativas

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estarão garantidas somente na medida em que os grandes provedores de serviço, a


maioria notadamente hospedada nos Estados Unidos, passem a atender às legislações
locais. Nesse cenário, a disputa entre o global e local assume contornos multilaterais em
que as pressões corporativas ditam as principais regras da rede.
63 Para concluir, retomemos o argumento de Bourdieu (1989), ao apontar com veemência
que as práticas e os discursos jurídicos são produto do funcionamento de um campo
cuja lógica está determinada pelas relações de força específicas que lhe conferem
estrutura e orientam os conflitos de competência. E, ainda em termos da análise
bourdiana, poder-se-ia dizer que a constituição do campo jurídico de regulação de
direitos na internet seria o princípio mesmo de constituição da própria rede,
compreendida não apenas como uma infraestrutura técnica, mas como, no sentido dado
ao termo por Geertz (1989), um sistema cultural, no qual estão implicadas certas formas
de pensar e significar o mundo no qual estamos inseridos, seja este “real” ou “virtual”.

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NOTAS
1. As diferenças de contexto referem-se, em primeiro lugar, à capacidade da articulação social via
web (tanto na forma de web protestos quanto na busca por viabilizar ações fora da rede), a qual
era praticamente inexistente à época do Napster e hoje é uma das principais formas de
mobilização política; em segundo, à quantidade e à qualidade dos atores envolvidos. Enquanto o
Caso Napster ficou restrito aos círculos altamente especializados (advogados de patentes, mídia
especializada) e aos envolvidos no processo, o Blackout-day mobilizou milhões de pessoas ao redor
do mundo, em diferentes níveis de engajamento (a mídia corporativa internacional, as mídias
alternativas, grupos de usuários, acadêmicos, atores estatais, etc.). Por fim, enquanto o Caso
Napster praticamente ficou restrito aos EUA, o Blackout-day tornou-se viral e globalizou o debate
sobre as liberdades na internet.
2. A produção de instrumentos jurídicos capazes de impactar o aparato tecnológico em si e a
produção e circulação de pacotes na rede não está restrita aos EUA. Um exemplo é a diretiva
sobre a sociedade da informação da União Europeia, a qual menciona medidas de proteção
técnica à propriedade intelectual (União Europeia, 2001).
3. O DRM, sigla para digital rights management, ou gestão de direitos digitais, em português,
consiste na criação de medidas tecnológicas (“travas”) para proteger os direitos autorais,
impedindo usos não autorizados e, ao mesmo tempo, permitindo o gerenciamento de
informações sobre os direitos.
4. Tal princípio estabelece que a regra em relação às acusações penais é a não culpabilidade,
implicando o tratamento do acusado como inocente durante o processo, cabendo ao acusador o
ônus da prova.
5. Um exemplo da nova dinâmica de relações na rede mediada pelo DMCA são as Diretrizes da
Comunidade, inclusas nos Termos do Serviço do YouTube, com as quais o usuário, ciente ou não,
concorda ao utilizar o canal para upload de conteúdo. Amparado no DMCA, o detentor de direito
autoral (ou seu representante legal) pode notificar o YouTube de suposta infração, por meio de
uma notificação ao representante de direitos autorais da plataforma. Mediante a denúncia, o
conteúdo pode ser retirado do ar sem que haja qualquer ordem ou processo judicial. Caso o
usuário seja qualificado como infrator reincidente, terá seu acesso ao serviço cancelado. O
YouTube não deixa claro quem julga o mérito das infrações, uma vez que o acusador não oferece
provas.

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6. Os dados de remoção de sites podem ser verificados em tempo real no Google transparency report
em http://www.google.com/transparencyreport/removals/copyright/.
7. Essas duas leis foram tratadas em artigo anterior. Ver Souza e Solagna (2012). Para um estudo
mais geral sobre regulamentação na internet, não restrito ao caso americano e brasileiro, aqui
em análise, ver Solagna, Souza e Leal (2011).
8. Do inglês revolving doors, refere-se, no contexto norte-americano, ao movimento de alternância
das mesmas pessoas em cargos públicos, na estrutura legislativa e nas agências reguladoras do
Estado e cargos nas indústrias afetadas por regulações oriundas do Estado.
9. Ver, entre outros: Benkler (2006, 2007); Boyle (2003); Lessig (2001).
10. Para esses dados ver também Kelly, Cook e Troung, (2012).
11. O caso da Espanha é significativo nesse sentido, revelado pelo Wikileaks; ver Anderson (2010).
12. Nos dados do Transparency report do Google, veem-se a origem e o número de pedidos de
retiradas de conteúdo, bem como se constata a impressionante escalada de pedidos e as
principais empresas ou organizações envolvidas. Para esses dados, ver: http://www.google.com/
transparencyreport/.
13. Ver RIAA v. the people (2008).
14. Termo oriundo do inglês (fishing), que quer dizer pescaria, configura um modo de fraude
eletrônica, caracterizada por tentativas de se adquirirem dados pessoais de diversos tipos,
senhas, dados financeiros como número de cartões de crédito e outros dados pessoais. O ato
ocorre quando um fraudador se faz passar por uma pessoa ou empresa confiável, enviando uma
comunicação eletrônica “oficial”.

RESUMOS
Este trabalho tem como pano de fundo o contexto das políticas globais de propriedade
intelectual, conjunto de acordos e ordenamentos jurídicos que, em grande medida, entre outras
coisas, regulam também o fluxo de informação na internet. Através de uma descrição densa de
impasses, disputas e estratégias a respeito da regulamentação da rede, busca-se compreender
como se conforma um arcabouço comum às políticas globais de regulação da privacidade e da
governança das trocas na internet, as quais impactam diretamente o uso que se faz nos e dos
meios e tecnologias digitais. Neste artigo, partindo-se da descrição do contexto mais geral da
produção de políticas globais, foca-se especificamente nos casos norte-americano e brasileiro de
regulamentação da internet, com o objetivo de desvendar a racionalidade subjacente a esse
sistema de produção de regras que atua sobre aquilo que estamos tomando como uma esfera
pública, a internet e/ou as redes sociais digitais.

This paper departs from the context of global intellectual policy, treaties and legal order that
regulate, among other things, the flow of information on the internet. By means of a thick
description of deadlocks, disputes and strategies regarding the web regulation, we try to
understand how the global policy overarching framework that regulates the privacy of internet
exchanges and the network governance works. Such a policy framework has direct impact on the
uses of and within digital means and technologies. Within the more general context of global
policy production, this study focuses specifically on the Brazilian and North American internet
regulation, aiming to grasp the underlying rationality of this system of production of rules that
affects the internet and/or digital social networks, taken here as a public good.

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ÍNDICE
Palavras-chave: internet, políticas globais, propriedade intelectual, tecnologias digitais
Keywords: global policy, informational technologies, intellectual property, internet

AUTORES
REBECA HENNEMANN VERGARA DE SOUZA
Universidade Estadual do Piauí – Brasil

FABRÍCIO SOLAGNA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Mestrando em Sociologia

ONDINA FACHEL LEAL


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

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O movimento software livre do Brasil


política, trabalho e hacking

Rafael Evangelista

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 22/08/2013
Aprovado em: 28/12/2013

NOTA DO AUTOR
Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
2 e 5 de julho de 2012, em São Paulo, Brasil.

1 Desde meados da década de 1990, um grupo de pessoas vem atuando no Brasil no


sentido de propor a adoção e contribuir para o uso do que se convencionou chamar de
softwares livres. Esse grupo, nem sempre homogêneo em seus posicionamentos, intitula-
se “movimento software livre” e reúne técnicos, desenvolvedores, ativistas, usuários,
organizações, empresas, empresários, artistas e intelectuais. Este trabalho é uma
tentativa de aproximação a esse grupo, uma escrita de caráter etnográfico no sentido
de tentar entender o software livre – um movimento que é mundial – a partir de quase
dez anos de anos de experiência de campo junto a militantes brasileiros.
2 Embora tenha nascido nos Estados Unidos, em meio à popularização do uso dos
microcomputadores, o movimento software livre ganhou, no Brasil, especial relevância.
Após menos de dez anos de atuação, teve destaque pelo seu número de integrantes;
pelo tamanho de seus eventos (o Fórum Internacional de Software Livre, realizado
anualmente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, está entre os dois maiores do mundo);
e por sua influência junto a governos municipais, estaduais e federal. Na imprensa
internacional, o Brasil já foi classificado, em matérias de publicações especializadas,
como “o maior e melhor amigo do software livre” (Benson, 2005; Festa, 2001; Kingstone,
2005). O então ministro da Cultura, Gilberto Gil, se disse apoiador da “ética hacker”

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(Gilberto Gil…, 2006) e classificou a si mesmo como um “hacker”, termo utilizado por
integrantes do movimento para, entre outras adjetivações possíveis, qualificar seus
membros mais importantes. No setor da cultura, as políticas e o fomento a grupos
adotados na gestão de Gil são citados como inspiração por ativistas de todo o mundo.
3 A proposta deste trabalho é considerar todo esse amplo grupo como igualmente
relevante para o movimento, e não somente os setores mais técnicos. A literatura sobre
o movimento software livre, que o pensa tanto em sua configuração global como
brasileira, em grande parte tem escolhido como objeto de investigação as empresas ou
os indivíduos envolvidos mais diretamente na produção e melhoria dos softwares
(Apgaua, 2004; Coleman, 2004; Kelty, 2008; Sanchez, 2007; Weber, 2004; entre outros),
muitas vezes referindo-se a eles como “hackers”, para designar o grupo em seu caráter
específico.1 Ao ampliar a lente, entendendo o software livre como um movimento social
mais complexo, procuro atentar para relações que integram cultura, política, ideologia,
trabalho e poder.
 
Free e open, uma divisão histórica
4 É impossível falar do software livre, enquanto movimento, sem falar de suas
ambiguidades, contradições e divisões. Certamente, são elas que permitem que
segmentos sociais diferentes, muitas vezes com interesses opostos – como ativistas
antiglobalização e empresas – encontrem algum tipo de representação a partir da qual
descreverão o adversário e os objetivos do movimento com diferentes matizes
(Coleman, 2004). Tomo como divisão política primeira do software livre o que chamo de
grupos free e open. Esses grupos, a partir de um mesmo conjunto de valores gerais,
mobilizarão argumentos diferentes, seduzindo grupos distintos a participarem do
movimento.
5 Surgido no início dos anos 1980, o movimento software livre passa a apresentar, a partir
do final dos anos 1990, momento que irrompe para a atenção mundial, uma disputa
bastante clara. Formalmente estabelecem-se dois grupos: o free, que afirma ter como
luta fundamental a “liberdade” dos usuários de software e ter como horizonte imediato
o uso exclusivo de softwares livres; e o open, que embora afirme buscar as mesmas
“liberdades” que o free, o faz a partir de outras instituições e com diferentes estratégias
de luta – por exemplo, colocando o modelo livre de licenciamento de software como uma
alternativa a coexistir com o modelo proprietário e argumentando que, acima de tudo,
a abertura do código-fonte oferecida pelas licenças livres favorece o desenvolvimento
de um software de melhor qualidade. Para o grupo free e para o grupo open existem
instituições, organizações distintas,2 às quais indivíduos do movimento software livre
podem mostrar-se ligados com graus variados de intensidade. Apenas alguns poucos
são formalmente ligados a elas, vários colaboram com uma ou outra em campanhas
específicas, sendo que a maioria manifesta apoio e concordância com elas, ou com o
conjunto de ideias que representam, de maneira não direta. A fronteira entre os grupos
é porosa e o comportamento da maioria dos indivíduos dificilmente é completamente
de acordo com os preceitos de cada um dos grupos.
6 Essa distinção entre free e open vai se fundamentar operando no terreno da construção
ideológica, ou seja, trata-se da disputa entre duas correntes políticas que, por meio das
ideias que divulgam, procuram arregimentar aliados que, por sua vez, mobilizarão
trabalho social em benefício do movimento software livre como um todo, mas também

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mais especificamente em benefício de um dos grupos. Ao racionalizar, justificar, a


prática de produção de softwares livres, cada um dos grupos vai apresentar um sentido,
uma motivação geral, um propósito diferente (Wolf, 2001, p. 313). Ambos, contudo, o
farão buscando elementos contidos em um ambiente cultural mais amplo e, assim,
serão informados e sofrerão os efeitos das transformações pelas quais passa a sociedade
capitalista contemporânea.
7 A disputa entre os grupos free e open em torno da construção daquela que será a
ideologia do movimento nos permite discutir ainda como o movimento software livre
origina e se estrutura em um determinado arranjo da produção para o desenvolvimento
de seus softwares. O grupo open faz do elogio às virtudes práticas desse arranjo da
produção o principal argumento para a defesa do software livre. 3
8 Como dito, software livre nasce em meio a mudanças importantes do capitalismo, com
um crescimento acelerado dos lucros das empresas de tecnologia de informação e
comunicação. E colabora para uma mudança no estilo de fazer negócios e de produzir
software dessas empresas, cujo modelo principal, até então, era semelhante ao de uma
empresa manufatureira: produzia-se e vendia-se software como se fosse um bem
material. No software livre, embora também estejam envolvidos em seu processo de
produção trabalhadores contratados diretamente pelas empresas, que vendem sua
força no mercado – formando parte importante do trabalho utilizado para a produção
de softwares livres – o trabalho tido como modelo e simbolicamente ostentado como o
mais característico da produção livre é de tipo voluntário, realizado no tempo “de
folga” do trabalhador e fora dos espaços típicos de trabalho capitalista (não acontece
nem na fábrica nem nos escritórios das empresas). Progressivamente, os softwares
produzidos por esse modelo, e a própria ideia de modelo distribuído de produção, tem
ganhado espaço nas grandes empresas de tecnologia.4
9 Free e open apresentam versões ligeiramente diferentes para o surgimento do
movimento software livre. A Free Software Foundation aponta o ano de 1983, com o
lançamento do projeto GNU (acrônimo para a expressão em inglês “GNU não é Unix”)
por Richard Stallman, como marco inicial do movimento (Free software…, 2004). Já a
Open Source Initiative descreve um percurso histórico mais longo, atribuindo o
nascimento do movimento a uma cultura de compartilhamento de software existente
desde a década de 1960, principalmente entre pesquisadores da Universidade de
Berkeley, na Califórnia, envolvidos no desenvolvimento do sistema operacional Unix e
do BSD (Berkeley Software Distribution). Steven Weber (2004) recupera essa história
mostrando as tensões entre a companhia telefônica AT&T, detentora inicial do código
do Unix, laboratórios de pesquisa e pesquisadores universitários em torno dos direitos
de uso e compartilhamento desses códigos.
10 Enquanto movimento social com princípios e objetivos constituídos, o triênio
1983-1984-1985 parece ser particularmente relevante. A cultura de compartilhamento
de software que Weber localiza especialmente entre os pesquisadores da Califórnia não
era algo exclusivo. Contrariado com a impossibilidade de examinar o código-fonte do
programa controlador de uma impressora devido a novas regras de propriedade sobre
softwares que começavam a se estabelecer, Richard Stallman lança o projeto GNU em
1983. O objetivo era construir um sistema operacional similar ao Unix, mas que
obedecesse a uma licença em que os programadores poderiam fazer tudo com o
software, menos torná-lo proprietário. Entre 1984 e 1985, Stallman evolui essa ideia e
escreve o Manifesto GNU, documento que desenha os princípios do copyleft, 5 que dará

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base para as regras descritas na GPL – a principal licença do software livre, publicada em
1989. O manifesto é um convite para que outros programadores se unam ao esforço da
então recém-fundada Free Software Foundation (FSF) de produzir um sistema
operacional livre. Em 1984, Stallman abandona seu emprego no Massachusetts Institute
of Technology (MIT) para dedicar-se totalmente à causa do software livre. É nesse
período que ele delineia o que chama de princípios éticos, as quatro liberdades que
fundamentam o movimento: o software deve ser livre para ser modificado, executado,
copiado e distribuído. O documento por excelência que marca a luta por essas
liberdades é a GPL, a primeira licença redigida tendo em vista os objetivos do
movimento.6
11 Outro ano importante é 1991, quando Linus Torvalds lança a primeira versão do kernel 7
Linux, que tornou completo o sistema livre projetado pela FSF, o GNU. Embora seja
licenciado nos termos da GPL, o Linux significou, na prática, um forte impulso para uma
nova corrente de poder dentro do movimento, que culminará com o ascensão do open
source, enquanto ideia e grupo político, em 1998. Naquele ano, Eric Raymond (1998)
publica o artigo “Goodbye, ‘free software’; hello, ‘open source’” e funda, com Bruce
Perens, a Open Source Initiative (OSI). Considero aqui a Free Software Foudation como a
instituição mais representativa da visão do grupo free8 e a Open Source Initiative como
instituição que dará suporte inicial às ideias do grupo open.
12 Stallman continua, até hoje, tendo grande influência no movimento. No entanto, a
partir de 1991 ele se vê obrigado a dividir o palco com uma então jovem estrela da
Finlândia, Linus Torvalds. Carismático, empreendedor, e sabendo usar melhor a
internet, ele conseguiu dar solução a um problema a que a FSF se dedicava há anos:
construir um kernel licenciado sob uma licença livre para ser parte integrante de um
sistema operacional livre. A FSF já tinha todo o resto da estrutura do sistema pronta,
fruto de anos de esforços, e trabalhava no desenvolvimento de seu próprio kernel. Linus
foi mais rápido e, usando a GPL como licença, adotou soluções tecnicamente mais
eficientes, criando o Linux, parte essencial do sistema operacional.
13 O método de desenvolvimento adotado por Linus está delineado formalmente em A
catedral e o bazar, livro escrito por Eric Raymond, em 1997. A obra é uma reflexão, elogio
e uma descrição do que seria um modelo aberto de desenvolvimento, chamado “bazar”.
Trata-se, também, de uma alfinetada em Stallman e na FSF, acusados de adotar uma
postura centralizadora na organização do trabalho coletivo do projeto GNU. A crítica de
Raymond aparentemente é voltada ao modelo de desenvolvimento proprietário, mas
também refere-se à FSF ao apontar que, até o trabalho de Torvalds, os códigos eram
como se fossem “catedrais”, monumentos sólidos construídos a partir de um grande
planejamento central. Já o desenvolvimento adotado por Torvalds seria como um bazar,
com uma dinâmica altamente descentralizada. Raymond aponta méritos em Torvalds
não somente pela liderança no projeto Linux, mas por adotar um relacionamento com
seus contribuidores no projeto diferente do até então adotado pelas empresas de
software proprietário e pela própria Free Software Foundation. Diz Raymond (1997,
p. 3):
De fato, eu penso que a engenhosidade do Linus e a maior parte do que desenvolveu
não foram a construção do kernel do Linux em si, mas sim a sua invenção do modelo
de desenvolvimento do Linux.
14 A virtude desse novo método de Torvalds estaria, principalmente, na publicação
frequente e precoce das alterações feitas no código-fonte. Assim, desenvolvedores de

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todo o mundo teriam a possibilidade de ler as alterações no código, realizar testes em


máquinas diferentes e enviar sugestões de modificações a Torvalds. A essa prática
Raymond denominou bazar e aponta suas raízes na cultura universitária dos anos 1960
e 1970.
15 Mas há mais no que diz Raymond com relação ao modelo Linux do que o elogio da
astúcia e da técnica – embora o sucesso desta seja inegável –, há uma disputa de poder
sobre quem representa e o que significa o movimento. Stallman sempre foi uma figura
politicamente muito atuante, não apenas no campo da informática. Mais velho, tendo
vivido toda a experiência da luta pelos direitos civis nos EUA, Stallman carrega em sua
fala críticas não muito ao gosto das empresas, em especial um conjunto de empresas da
Califórnia que está tentando transformar o Linux em negócio. No site pessoal de
Stallman, por exemplo, ao lado de artigos em favor do software livre encontram-se
também ensaios políticos sobre temas como a invasão estadunidense ao Iraque e o
muro de Israel na Palestina. Raymond, por sua vez, é um ardoroso defensor da
liberalização do uso de armas, tema usualmente mais ligado às bandeiras da direita
estadunidense (os conservadores). Já Torvalds, além de ser politicamente bastante
moderado e pragmático, tem uma identidade maior com a então nova geração de
programadores abaixo dos 40 anos, da qual Raymond faz parte. Essa geração, segundo
Sam Willians em Free as in Freedom – livro que mistura notas biográficas de Stallman
com a história do software livre – é mais energética e ambiciosa. Diz Williams (2002,
p. 156, tradução minha):
Com Stallman representando o mais velho, mais experiente contingente de hackers
ITS/Unix [ITS/Unix são sistema utilizados largamente por técnicos até a década de
1980. O GNU/Linux foi construído com uma arquitetura semelhante a desses
sistemas] e Torvalds representando a safra mais jovem, mais energética de hackers
Linux, o pareamento indicava uma demonstração de unidade simbólica que só
poderia ser benéfica, em especial para hackers mais jovens (abaixo dos 40) e
ambiciosos como Raymond.9
16 Stallman representaria a velha geração, o discurso político dos anos 1970, sobrevivente
à era Reagan nos anos 1980. Já Torvalds pôde representar os novos programadores, que
ascenderam com a bolha da internet do final da década de 1990 e com o ápice do
neoliberalismo, e que hoje aspiram por empregos da nova indústria de tecnologia, com
imagem alternativa (mas não anticapitalista) das novas corporações de informação e
comunicação.
17 Desde a popularização do trabalho de Torvalds, boa parte do tempo de Stallman tem
sido gasta em pedidos para que todos se refiram ao sistema operacional, ao conjunto do
software, como GNU/Linux e não apenas Linux. O projeto de Torvalds ganhou tanta
repercussão que o sistema completo é mais conhecido como Linux. Stallman diz apenas
querer que seu trabalho, e de toda FSF, seja reconhecido, já que, sem eles, não teria sido
possível a existência do Linux. Dizer Linux ou GNU/Linux também tornou-se um
marcador de maior afinidade com o grupo free ou com o grupo open.
18 O discurso politizado e o radicalismo de Stallman (que defende que todo software deve
ser livre e que o software proprietário é “antiético”) não são atrativos para a nova
geração de programadores e o são ainda mais indigestos para os empresários, mesmo os
ditos modernos novos empreendedores da internet. Raymond teve um papel decisivo
na criação da alternativa mais ao gosto do paladar corporativo. Como dito em A catedral
e o bazar, ele descreveu um processo de produção inovador e descentralizado, em que as
alterações no software são rapidamente entregues à comunidade. Esta, testando e

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avaliando o produto, estabeleceria uma espécie de seleção natural em que as melhorias


sobrevivem e as soluções falhas são logo identificadas. 10 Esse argumento de Raymond
seduziu executivos da Netscape, dona de um navegador de internet que havia sido
destruído pela ofensiva agressiva – e anticompetitiva, segundo tribunais dos EUA – da
Microsoft com seu Internet Explorer. Em 1998, Raymond foi a peça-chave no processo
de convencimento dos executivos da Netscape para que usassem uma licença livre para
o navegador – então comercialmente morto – de modo que a comunidade continuasse
seu desenvolvimento. O código do Netscape, tornado livre, deu origem ao Mozilla
Firefox, que pouco mais de cinco anos depois passou a rivalizar novamente com o
Internet Explorer da Microsoft. O prestígio adquirido por Raymond (tanto pela
liberação do código da Netscape como pelo livro A catedral e o bazar), somado ao do
carismático Torvalds, foram essenciais para que o grupo open pudesse se estabelecer.
19 A confusão entre livre e grátis, que na língua inglesa têm o sentido referenciado pela
mesma palavra, free, foi a justificativa formal para que surgisse o termo open source.
Frequentemente, Stallman procura, chegando a ser insistente, deixar claro que o free de
free software não significa grátis, mas livre. Não há diferenças substanciais entre o que
os termos free software e open source pretendem definir. Ambos estabelecem
praticamente os mesmos parâmetros que uma licença de software deve conter para ser
considerada livre e aberta. Ambos estabelecem, na prática, que o software deve respeitar
as liberdades básicas que a FSF enunciou (executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e
melhorar o software). Mas os defensores do termo open source afirmam que o termo fez
com que os empresários percebessem que o software livre também pode ser
comercializado. Teriam sido mudanças “pragmáticas” e não “ideológicas”.
 
O surgimento do Fisl: entre movimentos sociais e
partidos de esquerda
20 O Fórum Internacional de Software Livre (Fisl) é um evento que reúne, desde o ano
2000, grande parte do que se convencionou chamar de “comunidade software livre
brasileira”. Dessa comunidade faz parte uma gama complexa de indivíduos que
qualificam a si mesmos principalmente de acordo com suas ocupações: desenvolvedores
(que desenvolvem, modificam o softwares), programadores (que oferecem instruções
para que os softwares funcionem), usuários, funcionários de governo, políticos,
estudantes de computação, jornalistas, ativistas sociais, empresários, etc. Ao longo do
tempo, essa comunidade cresceu, superando principalmente o limite do conhecimento
técnico, envolvendo cada vez mais usuários de nível intermediário e simpatizantes de
algumas das ideias gerais do software livre. Concomitantemente, o movimento software
livre também cresceu internamente, conquistando progressivamente a simpatia e/ou
interesse de profissionais e estudiosos da computação. Um olhar sobre o Fisl é também
um olhar consistente sobre o movimento brasileiro.
21 Ao longo dos anos, o evento consolidou uma determinada estrutura organizativa que
mistura feira de negócios e exposições, congresso científico e fórum político de debates.
Esse formato híbrido pode ser inicialmente explicado pela história do Fisl. Surgido
entre funcionários públicos de tecnologia, ligados a sindicatos e movimentos de
esquerda, o evento buscou sua base de público entre estudantes e profissionais da
computação. Esses profissionais e estudantes convivem, geralmente, com empresas de
todos os tamanhos, de onde retiram seu sustento (como empregados ou patrões) e que

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costumam estar presentes em eventos da área. Some-se a isso o fato de o Fisl ocorrer
em Porto Alegre, cidade que no início do século XXI viveu uma grande efervescência
política como local de realização das primeiras edições do Fórum Social Mundial (entre
2001 e 2003). O que em um primeiro momento pode parecer contraditório (a conjunção
entre setores em certa medida anticapitalistas e o espaço para as empresas) faz sentido
dado o perfil dos setores mobilizados, refletindo conjuntamente o ambiente de eventos
para estudantes, militantes políticos e empresários/trabalhadores. A persistência desse
formato híbrido ao longo dos anos, como veremos, pode ser entendida como resultado
da continuidade de certos debates e divisões políticas, assim como pelo atendimento de
demandas apresentadas pelos diversos públicos-alvo e de financiamento da estrutura
material.
22 Tendo como pergunta principal de pesquisa a influência do movimento software livre no
governo federal, principalmente após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, Aaron Shaw
(2011) oferece uma visão interessante sobre alguns dos personagens que construíram as
fundações do movimento software livre brasileiro e que participaram ativamente dos
primeiros anos da organização do Fisl. Segundo Shaw, parte deles compartilhava uma
história nos movimentos de esquerda do país e, quando o governo Lula atingiu o poder,
levaram à frente um discurso radical, buscando politizar o papel do Estado
desenvolvimentista em uma economia do conhecimento. Os membros do movimento
software livre brasileiro possuiriam características únicas, se comparados a seus pares
internacionais. A principal delas seria a orientação política, uma mistura de
neomarxismo com socialismo.
23 Um dos indivíduos entrevistados por Shaw e que contribuem para que ele forme essa
percepção sobre o movimento brasileiro é Mario Teza, bastante ativo na organização do
Fisl até hoje. Teza é nascido em 1964, em Porto Alegre, e aponta o início de sua
identificação com a esquerda como tendo acontecido no final dos anos 1970, quando das
greves que levaram à formação do Partido dos Trabalhadores. Logo quando inicia em
seu primeiro emprego, na estatal Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro)
da capital gaúcha, Teza entra para o sindicato e torna-se presidente da seção local da
Federação Nacional dos Empregados em Empresas e Órgãos Públicos e Privados de
Processamento de Dados, Serviços de Informática e Similares (Fenadados). Shaw
prossegue escrevendo a história da relação de Teza com o software livre, relatando em
particular a sua articulação com Marcelo Branco, um amigo de Porto Alegre e então
diretor da estatal Companhia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul
(Procergs), que resultou na criação do Fisl, além de outros indivíduos com o mesmo
perfil político e história de vida bastante semelhante: formação técnica em informática,
mesma faixa etária, funcionários de empresas públicas e alguma relação com
movimentos de esquerda e o PT. Nesse sentido, um depoimento de Teza 11 colhido por
Shaw (2011, p. 259) é emblemático do significado que parte dos organizadores
históricos do Fisl dão ao software livre, mostrando que, pelo menos para alguns eles, o
software livre significava uma possível “transcendência do capitalismo” e um meio para
superar as limitações naturais das lutas sindicais:
By 1989, the labor movement was in crisis – it’s still in crisis! But let’s put it this
way, for some people, we weren’t satisfied with the labor movement and beyond
that with the democratization – the unions also entered into a system – a status
quo, let’s say. It didn’t subvert the social order after the creation of democracy, and
for many of the activists at that time this was not enough. We wanted to do more.
And for many of us, software livre has enabled us to do more. We are able to take

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direct action, break paradigms. The labor movement is incapable of this – it raises
salaries, but it’s a whole corporativist thing, its still very out of date. [The union] is
a middle stage between the medieval guilds, the industrial revolution, and some
other little bit of something modern – so-called modern – as well. In reality, it’s
very dated and it doesn’t overcome capitalism. In as much as software livre,
without perceiving it, begins to transcend, at least challenge capitalism, the
ownership society, and intellectual property.
24 A partir de 1999, quando o PT chega ao governo do estado, Mario Teza, Marcelo Branco
e Marcos Mazoni – então presidente da Procergs, Branco torna-se seu vice-presidente
em 2000 –, fortificam ligações entre o PT, sindicatos de Porto Alegre, empresas estatais,
movimentos sociais e setores interessados em informática, a partir de certas ideias do
software livre. Em julho de 1999, Branco, Teza e o técnico da Procergs, Ronaldo Lages,
organizam o primeiro encontro visando discutir o assunto software livre no auditório da
empresa municipal. Fazem-se presentes por volta de 40 pessoas e o grupo passa a se
chamar Projeto Software Livre – Rio Grande do Sul, denominação que será, nos anos
seguintes, copiada por organizações de defesa do software livre no Brasil todo.
25 Esse arranjo inicial contribuiu para dar ao software livre de Porto Alegre um perfil
específico, ligado à esquerda. Já nessa época, os militantes porto-alegrenses procuram
claramente se aproximar do grupo free, vendo nesse grupo, cujo representante mais
saliente é Richard Stallman, maior afinidade de ideias. Ao que parece, essa aproximação
com o free não era acompanhada com a mesma intensidade por outros grupos do resto
do país.
26 Uma das iniciativas importantes no Brasil à época era a Revista do Linux, publicação
editada pela empresa curitibana Conectiva, que comercializava, desde 1997 (Stulzer,
2004), a primeira distribuição brasileira de software livre. Shaw cita a participação de
Teza em entrevista concedida pelo então governador do Rio Grande do Sul, Olívio
Dutra, para o quinto número da Revista do Linux, datada de maio de 2000 (Governador…,
2000). Nessa entrevista, é mencionado o planejamento para o que se tornaria a primeira
edição do Fisl, onde Dutra foi recebido efusivamente pelo público. Na conversa de Dutra
com a Revista do Linux, publicação patrocinada por uma empresa e não partidária de um
posicionamento radical, já se percebe uma divergência sobre como Olívio e a revista
chamam o sistema operacional livre: Olívio fala em GNU/Linux, enquanto a revista, nas
perguntas, refere-se ao sistema como Linux, o que serve como marcador da distinção
entre os grupos free e open. Em seu site pessoal, Teza mantém a transcrição de alguns
depoimentos que deu relatando a história dos Fisl. Em um deles, ao comentar a
participação de um profissional de Campinas no primeiro fórum, ele toca
explicitamente na questão do nome a usar para o sistema operacional, deixando claro
como isso envolve um certo posicionamento. É a transcrição literal de uma fala, sendo
mantidas as retificações que o sujeito faz ao perceber que disse algo impróprio.
Segundo: quem nos ajudou muito, por incrível que pareça, morava em Campinas na
época, o Eduardo Maçan. Então, como a gente debatia pela internet, ele tinha
escrito um texto na Unicamp chamado… na época, ah! ele também chamava de gnu
Linux de Linux, não chamava de gnu. O texto era “Linux na escola, no trabalho e em
casa”. […]. Bom, aí quando a gente fez o debate nesse evento a gente discutiu o
seguinte: Nos 4 anos de governo o que podemos fazer. Resolvemos fazer um
planejamento de como faríamos este projeto numa linha de tempo. Em julho, o que
nós discutimos para vocês entenderem. O Linux, o Gnu Linux [corrige-se] explodiu
no mundo, ele surgiu em 1991, deu um primeiro pique em 1992 e realmente a
explosão foi provavelmente em 1994, fora do Brasil. (Teza, 2004).

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27 Na entrevista para a Revista do Linux, Dutra, além de insistentemente repetir o nome


GNU/Linux a toda menção a Linux feita pelo repórter, dá indícios de como a ligação de
seu governo com o software livre advém de uma ideia de que, por meio dele, é possível
enfrentar questões que vão além à da liberdade dos usuários de software ou da qualidade
do software produzido, como a inserção do país no mercado mundial de tecnologia,
livrar-se da dependência de países estrangeiros e o acesso igualitário à tecnologia e às
riquezas dela advindas.
Revista do Linux – Como foi que o senhor se envolveu com a questão do Linux? Qual
a importância do projeto software livre para o Rio Grande do Sul?
Olívio Dutra – O meu envolvimento começou quando era deputado federal e atuava
na Comissão de Ciência e Tecnologia da CUT. Tínhamos a preocupação de que a
evolução científica e tecnológica proporcionasse melhorias na qualidade de vida
para o conjunto da humanidade, em especial os excluídos, e não que servisse como
mais um instrumento e acumulação de riquezas das elites.
RdL – […] …muitos países tiveram seus caixas dizimados por déficits monstruosos e
o Brasil não foge à regra. Diante do empobrecimento dos Estados, como na América
Latina, o Linux passou a ser uma alternativa possível de informatização do Estado. O
senhor diria que o Linux é mera solução de emergência ou um solucionador de
dependências de terceiros? Uma alternativa para a falta de recursos ou um caminho
de independência tecnológica?
Dutra – O GNU/Linux é um dos sistemas que representa informatização de
qualidade para o Estado, e não se deve confundir a implementação desse produto
nas empresas públicas como uma solução temporal, advinda de uma crise
financeira. Sabemos que a necessidade é a mãe da criatividade, mas esse software
aberto tem uma história recheada de bons resultados, além do que os programas
abertos, livres de fato, proporcionam acesso a métodos de uma elaboração
tecnológica muito rica em experiência, possibilitando utilizarmos todo esse
conhecimento a serviço do Estado e do cidadão, livrando-nos enfim da dependência
tecnológica.
RdL – […] O que muitos estranham é que até políticos como o senhor tenham se
voltado para o assunto, e este é um fenômeno mundial, e que deixa a muitos
perplexos. Porque o Linux hoje é assunto de Estado?
Dutra – Nosso governo tem uma identidade muito grande com esse tipo de projeto,
[…] pelo GNU/Linux. Espero que muito em breve possamos encontrar soluções que
viabilizem o acesso do cidadão aos microcomputadores também de forma gratuita,
para que assim possamos ter uma sociedade em que seus participantes possam
utilizar a tecnologia da informação em condições igualitárias.
RdL – Como o senhor vê este movimento mundial, de cunho solidário, como o Open
Source (código aberto)? Acredita que ele trará quais benefícios à sociedade?
Dutra – Os benefícios são inúmeros, mas gosto sempre de citar que para nós o mais
importante é podermos ter no Brasil o retorno à produção de software, mantendo
no país a inteligência e o controle sobre a tecnologia da informação. Podemos,
finalmente, ter um sistema operacional que respeite as realidades regionais,
operando com base nas idéias das pessoas que com ele trabalham, permitindo que
cada comunidade possa se manter protagonista da sua própria história na evolução
e acumulação do conhecimento científico e tecnológico. (Governador…, 2000).
28 A fala de Dutra deixa clara a ligação com o grupo free, ao insistir no termo GNU/Linux e
ao apontar que os “programas abertos” são também “livres, de fato”. Mas, além disso,
há outras razões para a adoção dos softwares livres, como obstaculizar a “agregação de
riqueza das elites”, o fim da dependência tecnológica por parte do Estado, um acesso
igualitário à tecnologia (dada a gratuidade do software) e o desenvolvimento de soluções
mais adequadas à realidade regional (devido à possibilidade de modificações no código).
Trata-se de um conjunto original de argumentos, com influência do grupo free, mas

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também fruto de uma interpretação específica feita por movimentos sociais de


esquerda, funcionários públicos e políticos que lidam com os problemas de países
pobres.
29 Um exame das páginas publicadas na internet pelos organizadores do Fisl, 12 confirma
que a ideia do software livre como fator de mudança social já estava presente nesses
primeiros anos do evento. Tenta-se combinar o mundo dos negócios com objetivos de
transformação da estrutura da economia. Uma das preocupações dos organizadores era
impulsionar os negócios das empresas de software livre, vistas como portadoras, em si,
de um modelo econômico alternativo. Uma das seções do antigo site do Projeto Software
Livre-RS tinha o título “Negócios livres”. Nela, era possível encontrar o contato de
empresas que trabalhassem com software livre em todo o país.
30 A importância de se estimular os negócios com as empresas de software livre é uma
preocupação que persiste nas diversas edições do Fisl, estando ligada tanto à ideia de
que isso levaria mais pessoas a “viverem de software livre” – “libertando-se” do “mundo
do software proprietário” como à noção de que não é saudável ao “ecossistema do
software livre” estar excessivamente ligado a iniciativas estatais. Desde os primeiros
anos, nota-se a importância da estrutura estatal para a promoção das ideias do software
livre, exemplificada pela clara interconexão entre o Projeto Software Livre-RS,
organizador do Fisl, com o governo do estado do Rio Grande do Sul. As páginas, tanto do
Fisl em suas primeiras edições, como do PSL-RS, funcionava em um domínio
“rs.gov.br”, ou seja, estava endereçada em um registro que pertence exclusivamente à
administração estadual. Essa forte influência do governo estadual e municipal no
evento foi substituída, mais tarde, quando da saída do PT do governo gaúcho e porto-
alegrense, em forte influência do governo federal, a partir do governo Lula. Após 2003,
o governo federal passou a contribuir mais consistentemente com o evento, oferecendo
os patrocínios básicos que garantiram a sua realização em condições mínimas. Além
disso, funcionários públicos, ligados neste segundo momento ao governo federal,
continuaram colaborando com a organização. Contudo, não se trata necessariamente
dos mesmos indivíduos, e estes estão menos ligados à estrutura interna de organização
do Fisl (até por não estarem no Rio Grande do Sul) do que os colaboradores iniciais. Em
2003, a organização do Fisl tornou-se autônoma do PSL-RS, fundando uma ONG
regularmente formalizada (a ASL.org) para gerir a organização do evento. Ao mesmo
tempo, cresceu e diversificou-se o patrocínio oferecido pelas empresas privadas.
 
Hackers, políticos e o público
31 Para melhor descrever o público do evento, vou dividi-lo em quatro categorias. Essa
não é uma divisão nativa – embora use em parte seus termos – nem tampouco implica
em posicionar rigidamente os indivíduos nessas categorias. O objetivo é apenas oferecer
um referencial sobre a origem e a motivação dos presentes. Essa descrição é histórica,
mas também se verifica mais recentemente. O que tem mudado ao longo dos anos é o
tamanho dos grupos e os indivíduos que a eles pertencem.
32 Burocratas: são os funcionários dos governos (municipal, estadual ou federal) ou de
empresas públicas. Profissionalmente, realizam funções técnicas e/ou administrativas.
Apenas uma pequena parte está envolvida diretamente no desenvolvimento de software.
Em sua maioria são gerentes ou administradores de sistemas. Parte está envolvida com
programas de inclusão digital. Normalmente estão no evento com todas as despesas

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pagas pelos seus empregadores, o que implica ficarem parte do tempo no estande de
quem os emprega. Estão presentes mais nas sessões que discutem políticas de adoção de
software livre em âmbito governamental e nos debates sobre a filosofia do software livre,
embora não rejeitem as sessões técnicas. Quando necessário, usam terno ou roupa
social, mas preferem vestir jeans e camiseta. Têm entre 25 e 50 anos.
33 Empresários: são donos ou funcionários de pequenas e médias empresas. Frequentam
quase que exclusivamente as sessões técnicas, embora também tenham interesse em
mesas que debatam políticas governamentais – onde buscam espaço para futuras
prestações de serviço ou apresentam aos burocratas demandas de suas empresas. Têm
bastante conhecimento técnico e estão no evento ou com recursos próprios ou de seus
patrões. Usam terno ou roupa social. Têm entre 20 e 45 anos.
34 Ativistas: em geral têm pouco conhecimento técnico e, se o têm, são autodidatas. Parte
tem formação técnica de nível médio e universitária em ciências humanas. Estão
ligados a projetos de inclusão digital ou que envolvam arte (música, artes gráficas) em
software livre. Usam bermuda e camiseta, também com motivos políticos. Frequentam
as sessões que discutem a filosofia do software livre, novas regras de propriedade
intelectual, inclusão digital e política de governo. Estão no evento com parcos recursos
próprios, hospedados na casa de amigos e tendo viajado de ônibus. Parte tem ou já teve
envolvimento com o movimento estudantil. Têm entre 18 e 30 anos.
35 Nerds: são, em geral, estudantes de computação. Frequentam principalmente as sessões
técnicas. Aceitam as mesas sobre a filosofia do movimento, embora tenham uma visão
bastante estrita sobre o tema. Vestem bermuda e camiseta, em geral com referência a
personagens da cultura pop, piadas envolvendo conhecimento técnico ou projetos de
software livre. Estão no evento com recursos próprios, e muitos vêm em caravanas de
diferentes estados. Viajam e andam pelo Fisl em grupo. Estão interessados em aprender
sobre tecnologia e em contatos profissionais. Têm entre 18 e 25 anos.
36 Essas quatro categorias, grosso modo, podem ser posicionadas em relação aos grupos free
e open. Não significam correspondência direta verificável necessariamente em casos
individuais, mas permitem entender melhor a divisão geral. Nerds e empresários
costumam manifestar maior rejeição à presença de políticos e partidos no Fisl e não
fazem grande esforço de ligar o software livre a outras lutas sociais. Ao contrário, os
nerds frequentemente manifestam sua rejeição aos políticos, enquanto os empresários,
embora tenham contato profissional com os políticos, procuram se manifestar como
apartidários. Já os ativistas e os burocratas ou envolvem-se diretamente em outras lutas
sociais ou não manifestam rejeição à interconexão delas com o software livre. Ambos
têm também rejeição mais fraca à presença de políticos no evento.
37 Muitas vezes essa divisão burocratas/ativistas versus nerds/empresários aparecerá
mascarada na subdivisão entre um público mais ou menos técnico, embora esse
conhecimento mais avançado não seja um fato verificável. Pessoas com maior ou menor
conhecimento técnico se espalham por todas as categorias e, além disso, o que parece
existir mais concretamente é a preferência por determinados softwares ou linguagens de
computador de acordo com os grupos.13
38 Dentro da própria estrutura organizadora do evento essa divisão é operada na
classificação informal dos membros entre “hackers” e “políticos”. De acordo com um
informante, nessa divisão a qualificação de maior prestígio é “hacker”, assim sendo
chamados aqueles que, para o grupo, teriam conhecimentos mais técnicos. Porém, o
que se verifica é que, mais do que conhecimento, é necessário um determinado

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posicionamento público e político para se merecer esse adjetivo de prestígio na


estrutura da organização. Os “hackers” têm uma postura pública austera, até mesmo
reservada, e, quando participam de um debate público – que quase sempre acontece por
meio de e-mails em de listas de discussão – esse debate costuma envolver a discussão de
características técnicas de determinados softwares. O trabalho profissional do “hacker”
(de onde retira seu sustento) quase nunca envolve diretamente governos e sua relação
com ocupantes de cargos oficiais (deputados, vereadores, etc.) é distante. Já os
“políticos” da organização do Fisl são os que conversam e convidam as autoridades
presentes no evento. Articulam o apoio financeiro e ocupam mais fortemente o papel
de porta-vozes do Fisl e do próprio movimento.14 Por isso, os “políticos” são
constantemente criticados, em especial pelos nerds – essas categorias são de uso geral,
não restringem à organização do Fisl –, que apontam uma frequente contradição entre
falar e fazer. Os “políticos” são acusados de falarem muito mas produzirem pouco, pois
nunca estão envolvidos no “codar”, escrever software e participar de grupos de
desenvolvimento de programas. O “hacker” é uma categoria hierarquicamente mais
elevada que o “político”, que é visto sempre com maior desconfiança (por
eventualmente querer “se aproveitar do software livre para outras causas”). Os
“políticos” efetivamente trabalham muito mais na organização (conseguindo apoios,
negociando com o movimento, conversando com a imprensa), mas os “hackers” são
figuras mais respeitadas pela comunidade. Produzir código e ter conhecimento de
programação são fatores muito importantes para se obter prestígio dentro do
movimento de uma maneira geral. Contudo, não é possível fazer uma relação
automática e progressiva (mais unidades de conhecimento não significam mais unidade
de prestígio), trata-se de algo também mediado por uma atitude pública de
distanciamento ou de relação fria com a política partidária tradicional.
39 Para o movimento software livre, a categoria “ hacker” é algo essencial e congrega
qualidades como criatividade, curiosidade, extrair prazer no trabalho e conhecimento
técnico. É a distinção máxima que alguém pode receber dentro de um movimento que
se considera “de hackers”. Ser hacker é parte da identidade do movimento software livre,
é algo que se refere não somente a pessoas mas a uma atitude com relação à vida e ao
mundo. Fora da estrutura contrastiva da organização, no software livre brasileiro de
uma maneira geral, os ditos “políticos” do Fisl podem ser vistos e se declararem “
hackers” – embora, ao se autoidentificarem, sejam recebidos internamente com certo
ceticismo e ironia. Mas na estrutura da organização e do movimento eles são vistos
como “políticos”.
 
Conclusão: unidade, divisão e mudança
40 A distinção entre os grupos free e open oferece a base para que possamos entender os
enfrentamentos, alianças e tomada de posições que acontecem no Fisl. Os símbolos
vestidos e utilizados pelos participantes, por exemplo, originam-se em grande parte de
grupos internacionais, que podem ser posicionados a partir dessa divisão.
41 No entanto, percebe-se que o discurso, em especial do grupo free, ganhou coloração
própria quando reinterpretado por militantes brasileiros. A ideia de cooperação,
colaboração, solidariedade e construção de um conjunto de softwares que fosse uma
alternativa para o enrijecimento das regras de propriedade intelectual ganhou outra
força ao aportar em um país subdesenvolvido de industrialização parcial. Técnicos,

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muitos ligados ao serviço público, e com passado ligado aos movimentos de esquerda,
entenderam o movimento software livre também como uma resposta ao domínio das
grandes empresas de informática e ao saque de riquezas promovido pelos países
desenvolvidos. No horizonte, enxergou-se o software livre até como fator de
transformação e superação da economia capitalista.
42 Foi assim que políticos de alguma forma identificados com a ideia de resistência à
dominação e exploração externa incorporaram o software livre em seu repertório de
propostas, somando-o a planos de independência nacional. Setores discordantes sobre
essa interpretação da origem do subdesenvolvimento brasileiro ou descartaram o
software livre como algo viável, ou mobilizaram argumentos típicos do grupo open,
apontando sua melhor qualidade técnica como derivada do processo aberto de
produção.
43 O movimento software livre, em especial o grupo free, requer de seus membros uma
certa pureza, uma adequação entre defender o software livre com argumentos teóricos e
extirpar da vida cotidiana o software proprietário. O palestrante do Fisl que utiliza
software proprietário em sua apresentação é logo desacreditado pelo público. O membro
do movimento que usa o sistema operacional Windows durante o evento – ou mesmo
apenas o mantém instalado, em um setor separado, no disco de seu computador – é
censurado pelos companheiros. Se a organização do evento utiliza um arquivo de vídeo
em formato proprietário acaba sendo objeto de crítica pelo público. Os participantes
procuram até mesmo retirar o adesivo do sistema Microsoft Windows que vem colado
na maioria dos notebooks, substituindo-o por diversos adesivos alusivos ao software
livre. É por possuir um conjunto até certo ponto estrito de regras de comportamento
que podemos ouvir, nos corredores do Fisl, frases como “esse aí traiu/não traiu o
movimento”. Esse conjunto de restrições e recomendações funcionam de modo a, por
um lado, estabelecer as divisões entre aqueles que pertencem – e dialogam com essas
normas – ao movimento e aqueles que não pertencem. Ao mesmo tempo, o modo como
são interpretadas – se são tidas como “exageradas” ou pertinentes – indica
posicionamentos em relação às diversas subdivisões existentes.
44 Na cerimônia de encerramento do Fisl de 2009 pude acompanhar um episódio
emblemático desse jogo de censura à associação com certas empresas, em que estas são
associadas simbolicamente a determinadas práticas e posturas políticas. O anúncio da
presença da Rede Globo no evento causou forte reação negativa no público. A empresa
de comunicação, por seu histórico, mas também por sua posição dominadora no setor
de comunicações, é associada ao gigante da indústria da informática e empresa inimiga
do movimento, a Microsoft. Porém, não é isso que acontece, num processo que vem se
acentuando nos últimos anos, com outras empresas, ascendentes e com uma imagem
inovadora, como o Google e, então, a finlandesa Nokia (que atualmente vive declínio e
tem se afastado do software livre). Esta, aliada do movimento em causas como a do
padrão livre de arquivos ODF, é recebida com naturalidade, sendo sua presença até
mesmo um sinal de que o evento não é anticapitalista. Não apenas as pessoas são
interpretadas por sua relação favorável ou contrária ao software livre, mas também as
companhias, lidas como sujeitos que escolhem entre o bem e o mal (aqui cabe lembrar o
slogan “Don’t be evil” do Google). 15 Com um histórico associado ao regime autoritário,
distante de práticas de democratização da informação e de transparência, a Rede Globo
é vista como oposta aos ideais do software livre, importando pouco o quanto ela de fato
usa de código livre e com ele contribui. Ao mesmo tempo, um evento visto por muitos

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como radical, como o Fórum Social Mundial, é anunciado no mesmo palco, na mesma
cerimônia, separado apenas por alguns minutos.
45 Embora seja inequívoca a existência de dois grupos no movimento software livre, há
unidade parcial de ideias entre eles. Os membros do movimento, sejam eles do grupo
open ou free, compartilham da ideia de progresso técnico da humanidade e tem, em
geral, visões otimistas sobre o impacto da tecnologia na sociedade. No máximo, o que
há são restrições ao que seria como o tipo errado de tecnologia, fechadas. Porém, as
tecnologias tidas como livres, como o software livre e a internet, seriam
democratizadoras e promotoras de uma evolução qualitativa da humanidade e do
ambiente social.
46 O Fisl, integrando progressivamente free e open, e apresentando uma alternativa
tecnológica cada vez mais pertencente ao capitalismo, tem sua unidade também
alicerçada nessa síntese, na ideia de que é preciso haver foco no desenvolvimento
tecnológico, acelerando-o.
47 Os últimos dez anos foram de forte expansão do software livre, tanto em termos de
práticas e discursos em favor das licenças livres de software e de uma “cultura do
compartilhamento” como no sentido de ter se tornado uma realidade dominante no
mercado de informática. O incremento da velocidade na internet, a maior capacidade
de processamento dos computadores e popularização dos dispositivos móveis de acesso
à rede contribuíram decisivamente para uma mudança no modelo de negócios do
mercado de informática, que progressivamente vem sendo dominado pela
comercialização de serviços agregados em lugar do licenciamento de programas
instalados nos computadores pessoais. Na implantação dessa infraestrutura, os
softwares livres têm particular relevância, formando a base em que funcionam esses
sistemas.16
48 Como fenômeno econômico e de produção descentralizada, o software livre desde logo
atraiu a atenção da comunidade científica. Mais recentemente, surgiram estudos sobre
a dinâmica política e cultural do mesmo. Este trabalho foi construído nessa direção,
investigar o software livre buscando ressaltar seus aspectos culturais, entendendo-os
como força operativa nos embates e disputas políticas inerentes ao movimento.
49 Dessa forma, procurei inicialmente descrever a principal divisão política do software
livre, distinguindo dois grupos majoritários em âmbito internacional, os quais
representam algumas das ambiguidades do movimento. Sob o chapéu genérico da
palavra liberdade constituíram-se os grupos free e open, que em certos momentos
colocam-se como aliados, mas em outros são adversários políticos. Tentei apontar
algumas das aproximações e diferenças dos grupos, atentando para o papel da ideologia
enquanto força atrativa ou repulsora de adeptos free e open. Enquanto o grupo free
reforça argumentos que levam em conta fundamentos morais de uma troca social de
códigos de computador – o que é e o que não é justo, ético, etc. – o grupo open
fundamenta-se no que seria o método de produção de um software de melhor qualidade.
A reboque dessa distinção colocam-se ainda outros fatores, como o maior
distanciamento ou aproximação com as empresas e com o sistema econômico
capitalista tradicional.
50 A partir dessa distinção, procurei entender como o software livre se insere no Brasil, em
um contexto político e social distinto do estadunidense, onde o movimento software
livre se origina. Coleman (2004) aponta o software livre nos Estados Unidos – tanto o
grupo free como o open – como eivado de um “agnosticismo político” e formado a partir

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de tradições liberais que o significam como um tipo de luta pela “liberdade de


expressão”. No Brasil, porém, o software livre ganhou força inicial principalmente entre
sindicalistas e militantes sociais, alguns ligados a partidos políticos, que o significaram
com outros sentidos, sendo entendido como ferramenta de independência e autonomia
nacional, justiça social, arma contra a globalização corporativa e o neoliberalismo,
entre outras bandeiras da esquerda. Assim, o Brasil acabou constituindo um movimento
software livre bastante ativo politicamente – ainda que pouco atuante na produção de
códigos livres. No processo de constituição do software livre no Brasil o grupo free teve
força particular, estabelecendo uma forte interação com movimentos sociais e com
lideranças políticas à esquerda no espectro político e permitindo uma associação
produtiva entre as ideias políticas desses grupos e a ideologia free.
51 Isso, porém, não significou o abandono da polarização entre free e open no Brasil. Ao
contrário, ela parece ter se tornado ainda mais evidentes. O Fórum Internacional de
Software Livre evidencia os conflitos a cada uma de suas edições anuais. Nessa disputa
política que se dá sobre o sentido do movimento, free e open afirmam seus
posicionamentos também em relação ao cenário político tradicional, entre esquerda e
direita. Acho importante ressaltar como os debates sobre o software livre não
acontecem desconectados das ideias políticas que permeiam a sociedade em seu
contexto histórico. Dessa forma, o open, ao posicionar-se diferencialmente ao grupo
free, faz suas aproximações mais à direita, incorporando as visões neoliberais e
traduzindo-as para as brigas internas do movimento. Assim, o grupo open tem
defendido o caráter capitalista do software livre e se posicionado de maneira contrária a
muitos dos esforços feitos pelo Estado na disseminação e promoção dos softwares livres.
A popularização deveria ocorrer “naturalmente”, de acordo com a percepção do
mercado, que os adotaria por serem programas de melhor qualidade.
52 O embate entre free e open, contudo, não se encontra parado no tempo e essa divisão
política e ideológica é ressignificada e reinterpretada continuamente. É preciso
ressaltar o fortalecimento recente das empresas de tecnologia open, que se tornaram
um peso-pesado no ambiente do movimento software livre. Elas têm constituído seu
negócio a partir de software livre e, da mesma forma, incorporam, formulam e
transformam a ideologia do software livre, em especial em contato com o grupo open.
Valores como a transparência, a descentralização da produção, uma postura
aparentemente não gananciosa, as hierarquias flexíveis, a abertura, entre outros,
passam a fazer parte da imagem dessas próprias empresas.
53 Barbrook (1998) ao comentar o que chama de high-tech gift economy, argumenta
apontando o surgimento de uma nova economia, um misto de trocas capitalistas e não
capitalistas no ciberespaço. O mercado, ao financiar o software livre, por exemplo,
estaria patrocinando o anarcocomunismo na rede, a existência de trocas para além do
Estado e das corporações. Ele afirma que o “copyright é protegido e quebrado. Os
capitalistas se beneficiam de um lado e perdem de outro” (Barbrook, 1998, tradução
minha). Naquele texto, escrito originalmente em 1998, ele posiciona o neoliberalismo e
o que ele chama de “ideologia da Califórnia” – a mistura, surgida no primeiro boom da
internet, de tecnoutopias neoliberais dos anos 1990 com uma postura antiautoridade
herdeira da contracultura dos anos 1960 – como defensores das regras de propriedade
intelectual vigentes.
54 Uma década e meia depois, acredito haver uma nova configuração dessas posições. O
ponto não é mais a defesa das regras rígidas de propriedade intelectual, ao contrário, é

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o incentivo ao fluxo, à troca, à criação coletiva. As novas empresas buscam no


movimento software livre códigos para suas operações comerciais e, eventualmente,
funcionários para integrarem seus quadros. Trata-se de uma nova síntese de um
conflito entre free e open, que persiste.
55 A ideologia em torno de cada uma das correntes políticas serve, embora não de modo
exclusivo, como fator de atração para a colaboração e uso de determinados softwares. O
grupo open, por exemplo, ao procurar distanciar-se das ideias políticas associadas
especialmente a Richard Stallman, trouxe para dentro do movimento outros setores
não identificados com a perspectiva política até então propagada pela Free Software
Foundation – empresas e desenvolvedores de software com ideias mais à direita. Ao
fazê-lo, mudou o balanceamento de poder dentro do movimento, poder esse manifesto
não somente pelo apoio público a determinadas visões, mas também pela colaboração
arregimentada em determinados projetos de software. Isso porque o software livre,
possivelmente de maneira única se comparado a outros movimentos sociais, não obtém
sua força política apenas pelo apoio simbólico dos militantes às suas causas, mas
também porque esses militantes muitas vezes produzem softwares, ou seja, constroem
produtivamente condições materiais para que sua causa tenha mais força.
56 Esse é um aspecto importante e diferencial do software livre com relação ao outros
movimentos. O software livre não é um movimento que apenas demanda políticas e/ou
busca por uma nova ordem de relações sociais, ao contrário, ele busca, a partir de um
sistema jurídico já constituído, usar a lógica desse mesmo sistema para construir
alternativas. A força do movimento não está em suas demandas, mas em sua capacidade
de arregimentar trabalho voltado à produção-popularização de softwares que usam as
regras convencionais, de forma inteligente, para garantir certas práticas. É um
movimento que produz softwares e esses softwares se tornam produtos distribuídos no
mercado de informática e que ocupam posições antes ocupadas, ou que poderiam ser
ocupadas, por softwares proprietários. Por isso é especialmente relevante a análise das
correntes políticas e ideológicas do software livre, pois elas se fortalecem em suas
ligações produtivas com certos projetos de software assim como servem a esses projetos
como fatores de atração de trabalho voluntário.
57 A entrada mais forte das corporações open impacta o software livre enquanto
movimento, pois traz a ele militantes/colaboradores de perfil diferenciado, mais
interessados no software livre pelas perspectivas profissionais que lhes são oferecidas. O
perfil da base do movimento está em transformação, agora abarcando jovens
interessados em carreiras mais tradicionais nas grandes empresas, carreiras
semelhantes às dos executivos tradicionais das empresas transnacionais. Essa
transformação pode ser acompanhada, no contexto brasileiro, em eventos como o Fisl.

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NOTAS
1. Aqui, ao contrário, pretendo entender – e discutir – o termo “hacker” como categoria nativa
utilizada como ferramenta de distinção de certos membros, notadamente os de mais prestígio.
2. A Free Software Foundation é a mais representativa do grupo free, enquanto a Open Source
Initiative é a mais representativa do grupo open. Essas são organizações gerais de defesa do
software livre, mas há diversas outras, que defendem pontos específicos, causas correlatas (como a
inclusão digital com software livre) ou têm atuação regional, e que se alinham mais com o grupo
free ou open.
3. O termo utilizado pelo grupo open para se referir ao software livre é open source. Utilizo,
contudo, o termo software livre para me referir ao conjunto amplo dos softwares defendidos pelos
grupos open e free que, fundamentalmente, é o mesmo.
4. O conjunto de servidores que forma a plataforma Google utiliza versões modificadas do Linux e
de outros softwares livres (Jelassi; Enders, 2005). Para o desenho de produtos, diversas empresas
estão criando softwares em que os próprios consumidores colaboram na criação. A prática é
conhecida como crowdsourcing e baseia-se na descentralização da produção do software livre
(Kaufman, 2008).
5. Copyleft é um termo criado por Richard Stallman para se opor ao copyright. Segundo ele, a ideia
veio de um colega que grafou: “Copyleft, all rights reversed”, fazendo um trocadilho com o termo
e com a frase “all rights reserved” que acompanha o copyright. O termo também é interpretado
como uma alusão ao espectro da esquerda na política.
6. Kelty (2008) conta os problemas que Stallman teve ao tentar compartilhar seu programa
EMACS com outros desenvolvedores e sua tentativa de construir em torno do programa uma
comunidade/comuna (Stallman utilizava o termo commune, mas o termo community acabou por se
tornar mais popular ao longo dos anos para se fazer referência a esses grupos de usuários e
desenvolvedores), preservando-o de empresas que desejavam torná-lo um software proprietário.
Segundo Kelty, essas dificuldades serviram de aprendizado para que Stallman desenvolvesse a
licença livre GPL.
7. O kernel é uma parte central do sistema, responsável pela configuração e gerenciamento dos
dispositivos (teclado, mouse, monitor, etc.).

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8. Essa ideia permanece válida até bastante recentemente. Porém, há indícios que o
enfraquecimento do subgrupo free tenha sido tão acentuado que suas ideias estejam perdendo
força até mesmo dentro de sua instituição fundadora, que permanece bastante atuante.
9. No original: “With Stallman representing the older, wiser contingent of ITS/Unix hackers and
Torvalds representing the younger, more energetic crop of Linux hackers, the pairing indicated a
symbolic show of unity that could only be beneficial, especially to ambitious younger (i.e., below
40) hackers such as Raymond.”
10. “Analyzing the success of the Torvalds approach, Raymond issued a quick analysis: using the
Internet as his ‘petri dish’ and the harsh scrutiny of the hacker community as a form of natural
selection, Torvalds had created an evolutionary model free of central planning.” (Williams, 2002,
cap. 11).
11. Essa declaração de Teza foi colhida em 2005 e confirmam declarações com o mesmo tom
colhidas por mim em anos anteriores.
12. Páginas que já não estão mais disponíveis regularmente, mas podem ser acessadas via
serviços de armazenamento histórico da internet.
13. A linguagem Java, por exemplo, criada pela empresa Sun Microsystems, é bastante usada
pelos nerds, além de ser a especialidade do representante da OSI no Brasil. Já o Twiki, software
para construção de páginas web colaborativas, é largamente utilizado por membros do governo
federal e por militantes do Projeto Software Livre Bahia, bastante identificado com outras causas
político-sociais.
14. Murillo (2009) utiliza os termos “téc” e “ativistas” como referência a “hackers” e “políticos”
do modo como trato aqui. Encontrei o uso desses termos em conversas com membros da
organização do Fisl, porém, o “téc” estaria em um nível hierarquicamente inferior ao “hacker”. O
“téc” seria alguém mais jovem, muitas vezes – mas não necessariamente – com menor
conhecimento técnico e mais ativo nos trabalhos gerais da organização do evento. “Ativistas”
parece-me ser uma versão mais atenuada de “políticos”, porém não encontrei seu uso em
específico.
15. A frase “Don’t be evil” é citada frequentemente, em listas de discussão, como slogan
corporativo do Google quando as atitudes da empresa estão em questão. A frase consta no
prefácio do código de conduta da empresa, que pode ser acessado em: http://
investor.google.com/corporate/code-of-conduct.html.
16. A referência aqui é a o que tem sido chamado de “cloud computing”. Ver Barcet (2009).

RESUMOS
A proposta deste trabalho é discutir, a partir de dados etnográficos, as características,
contradições e transformações da comunidade software livre brasileira vividas nos últimos anos.
Entendida como um movimento social, busca-se mostrar como ela inter-relaciona questões que
envolvem política, linguagem, trabalho e identidade. O cenário etnográfico abordado mistura o
online com o offline, ou seja, a pesquisa procurou entender o software livre tanto por meio da
pesquisa de campo tradicional como pela observação de grupos online. O movimento software livre
brasileiro se mostrou, comparado com seus equivalentes internacionais, como de grande eficácia:
articulou-se com partidos e políticos tanto em nível local como nacional, mostrando-se influente
a ponto de ver atendidas certas demandas; alguns de seus membros obtiveram cargos técnicos e
administrativos; e foi possivelmente o grupo mais influente na constituição dos grupos que

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atualmente identificam-se sob o termo guarda-chuva “cultura digital”. A pesquisa que dá base ao
texto já resultou em tese de doutoramento e reúne dados coletados por dez anos de envolvimento
com a comunidade software livre, incluindo interações e participação em eventos offline, sendo o
mais importante deles o Fórum Internacional de Software Livre, realizado anualmente em Porto
Alegre.

This paper’s goal is to discuss (using ethnographic data) the characteristics, contradictions and
changes along time of the Brazilian free software community. The community is understood as a
social movement and I seek to demonstrate how it interconnects politics, language, labor and
identity. The fieldwork relies on both online and offline data. The research tried to comprehend
the free and open source phenomena using from traditional ethnographic work but also
observing the group’s behavior on online discussion groups and mailing lists. The Brazilian free
and open software movement showed to be of great efficiency if compared with other
international FLOSS (Free/Libre/Open Source Software) communities: it became influential on
political parties both locally and nationally; some of its members became part of governments;
and have contributted decisively on the build of the imagination on what is “digital culture”. This
paper is the result of a PhD research effort and relies on ten years involvement with the free
software community including fieldwork with the Free Software International Forum (Fisl).

ÍNDICE
Keywords: cyberculture, free software, politics, social movement
Palavras-chave: cibercultura, movimentos sociais, política, software livre

AUTOR
RAFAEL EVANGELISTA
Universidade Estadual de Campinas – Brasil

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Modernidade seletiva e estado


predador
primeira aproximação às revoltas populares em Maputo de 2008 e 2010

Héctor Guerra Hernández

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 17/07/2013
Aprovado em: 19/12/2013

NOTA DO AUTOR
O uso da palavra “estado” com inicial minúscula é uma decisão de ordem político-
epistemológica. Como se verá ao longo do texto, mesmo entendendo este como uma
entidade específica, sua construção histórica, ou melhor, a maneira como essa entidade
se constitui no contexto histórico, nos obriga a pensá-lo como um sujeito a mais dentro
do universo de relações que se pretende dar conta. Por outro lado, concordando com o
manifestado por Nascimento (2013), não existiriam razões linguísticas suficientes para
a distinção de grafia que esta palavra possui. Dessa forma mantendo a grafia original
das citações, ao menos grafologicamente, neste artigo, desapoderamos o “Estado”
(Nascimento, 2013).

1 Durante a minha pesquisa de doutorado (2006-2011), nos diversos estágios de campo


realizados em Maputo com os magermane,1 talvez um dos aspectos que mais me
chamou a atenção foi que além das instituídas marchas de quarta-feira que eles
protagonizaram, não presenciei quaisquer manifestações de rua organizadas que
demonstrassem qualquer descontentamento da população com a situação política,
social e econômica, excetuando aqueles comícios encenados pelo partido Frelimo 2
durante os períodos de eleições. De alguma forma Maputo era-me apresentada como
uma cidade muito fervilhante, porém aparentemente carente de vida política pública.

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Uma das explicações que ouvi com frequência, que parecia ser uma espécie de axioma
ou condição intrínseca, era que o povo moçambicano seria “pacífico”. Uma crença que
fora contestada veementemente pelos próprios magermane, que preferiram chamar de
passividade, provocada, segundo eles, pela “memória estarrecida” da última guerra, mas
sobretudo pela ação coercitiva proveniente do partido no poder, já desde a época
socialista. Uma passividade que eles entendiam como letargia, inércia e até imobilismo
(“o povo está a dormirem… acordem!!!”3), porém, segundo eles, em nenhum momento
podia ser considerada sinônimo de pacifismo. O argumento da “memória estarrecida”
pareceu-me plausível, se consideramos que o país entre 1964 e 1992 viveu sob o
domínio da guerra (entre 1975 e meados de 1977 houve um tempo de relativa paz).
Estamos falando de um período de 27 anos em que a população moçambicana sofreu os
estragos de dois conflitos bélicos, sem esquecer o violento sistema de dominação
exercido pelos portugueses durante a colônia. Um período de luta armada que, somado,
custou a vida de mais de um milhão e meio e o deslocamento de mais de cinco milhões
de pessoas dos seus lugares de residência e de suas unidades produtivas originárias,
com a consequente desagregação social e familiar.4
2 No entanto, a coerção governamental desde a época socialista parece precisar de uma
reflexão à parte. Precisamente porque o projeto socialista da Frelimo fora aplicado
durante um período de dez anos (1977-1986) enquanto o projeto neoliberal em
Moçambique já cumpre 26 desde sua implementação em 1987, sendo usado também
como modelo de governação pelas agências de cooperação internacionais, para outros
países africanos, principalmente pelo nível de sofisticação alcançado nas instituições
democráticas desenvolvidas após o tratado de paz em 1992. Quais teriam sido então as
marcas deixadas pelo socialismo no imaginário coletivo da população moçambicana?
3 Talvez uma primeira tentativa de resposta seja mencionar o fato de que mesmo que o
partido Frelimo tenha assumido o projeto neoliberal integralmente (desde 1987),
obedecendo às diretrizes emanadas das instituições doadoras (particularmente os
integrantes da ODAmoz5), debilitando o papel subsidiário do estado nas decisões
econômicas, parece ser que esse partido não renunciou totalmente seu imaginário
socialista, sobretudo se observamos que, para além dos nomes das ruas, avenidas e até
bairros periféricos da capital, os quais ainda mantêm seus nomes históricos vinculados
ao socialismo, talvez a única marca visível desse projeto seja a própria estrutura
orgânica do partido governante, a qual continua sendo sustentada pelos princípios do
“centralismo democrático” de origem leninista.6 Essa estrutura orgânica facilitou e
facilita em grande medida a penetração partidária na maioria das esferas da vida social
e política do país. Efetivamente, como pude perceber, mesmo reconhecendo o espírito
republicano que sustenta a democracia moçambicana, que valoriza o estado de direito e
as liberdades civis, nada no mundo social da capital parece escapar da “intervenção
orgânica” do disciplinado partido Frelimo, ao ponto de muitos chamarem este “modelo
de governação” de ditadura. Manito,7 em uma das muitas conversas sobre o tema,
ironizava: “Nosso país é como a China, capitalismo para o partido e socialismo para os
moçambicanos.”
4 Essa afirmação pode ser motivo de discussão, porém é certo que a penetração e controle
que exerce o partido não apenas na esfera estatal (órgãos do estado) e no mundo dos
negócios (os chamados políticos-empresários), mas, sobretudo, nas organizações sociais
mais diversas (sindicatos, ONGs, grupos dinamizadores), 8 através das suas tramas e
redes clientelistas, reforça essa sensação que pessoas como os magermane, organizados

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politicamente, sentem de estar sendo “vigiados” e renova os medos na população em


torno do poder de coação estatal: “Em Moçambique ainda paira o clima de socialismo
em que ninguém deve reclamar e muito menos protestar como aconteceu, apesar da
propalada democracia que só existe no papel”.9 Talvez fora isso a que se referiam os
magermane, quando diziam que a população vive com medo de ser perseguida, e daí
também a sua passividade.
5 Neste ponto, é obrigatório fazer uma espécie de retrospectiva e refletir sobre o projeto
emancipatório levado a cabo pelo partido Frelimo que, começado na década de 1960,
visava, entre muitas coisas, acabar definitivamente com uma desigualdade considerada
estrutural. De acordo com o projeto da Frelimo, essa desigualdade devia ser
transformada, forçando um processo de inserção social que atingisse toda a população
segregada, dessa vez sob a ideia de unidade nacional, 10 abolindo assim a estratificação
racista, construída pelo poder colonial português. Dessa forma, os moçambicanos, já
sob um estatuto cidadão, teriam acesso “ilimitado” aos direitos e serviços que o estado
independente pretendia garantir. Nesse sentido, coincido com o manifestado por Harry
West (2009, p. 232) ao se referir ao projeto frelimista:
Os dirigentes da Frelimo entregaram-se mais intensamente do que os seus
antecessores coloniais alguma vez haviam feito à ideia de modernização, visionando
um país onde as necessidades sociais fossem determinadas e satisfeitas não pelas
forças de mercado mas sim através de uma governação científica.
6 Contudo este percurso, entre o pretendido e o finalmente realizado, foi criando outras
formas de exclusão e estratificação social, as quais até os dias de hoje parecem
continuar se reproduzindo. Parece significativo colocar aqui que, em todo esse
processo, a maneira como esses sistemas de afetação 11 e coerção, desenvolvidos e
aplicados pelo partido governante, nos diversos períodos, e, sobretudo, em um contexto
de continua precarização, produzido, especialmente, pela monetarização do cotidiano,
acabou por desbaratar formas de convívio e reprodução social, subordinando estas a
um ordenamento definido por lealdades de outra ordem às já existentes. Contudo,
voltando a essa imagem de cidade aparentemente carente de vida política pública,
quebrada semanalmente pelas marchas dos próprios magermane, essa percepção só me
acompanharia até o dia 5 de fevereiro de 2008, dia em que teve lugar uma revolta social
de proporções nunca vistas desde o fim da guerra civil. 12 Dois anos depois, entre 1º e 2
de setembro de 2010 outra revolta, das mesmas ou maiores proporções que a de 2008,
assolou novamente a cidade de Maputo.13 Parece que esse medo do poder coercitivo,
incorporado nas gerações que viveram o socialismo e a guerra, estaria aos poucos sendo
contestado pela irrupção na cena citadina das novas gerações.
7 Considerando esses antecedentes, serão dois os aspectos que ocuparão minha atenção
neste artigo. No primeiro, tentarei descrever as duas revoltas, identificando algumas
particularidades. Para isso recorro aos relatos e testemunhos coletados em campo,
algumas explicações ou hipóteses de parte de intelectuais via blogs e discursos oficiais
de parte de alguns representantes do governo e do partido Frelimo, além da cobertura
que a imprensa deu aos acontecimentos. O segundo momento estará focado em refletir
a relação entre estado e população. A perspectiva a partir da qual centrarei a reflexão
concentra-se basicamente em pensar sobre o modo como essa formação histórica do
estado foi criando instituições e estatutos que atingiram a população (individual e
coletivamente) de maneira bastante complexa, provocando, ao mesmo tempo, práticas
novas e/ou readequações nos processos de reprodução social e construção de sua
própria subjetividade. Nesse sentido se rejeita metodologicamente a ideia sociológica

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de um “Estado-medida”, a partir do qual as distintas realidades estatais estariam


próximas ou distantes. Contrariamente, se privilegiará a ideia de um estado que se
define a partir da constituição das suas margens. Essa perspectiva de análise pretende
introduzir os processos de reprodução e mobilidade social – que chamarei
introdutoriamente de “circuitos econômicos de resistência” – como elementos
constitutivos e particulares da produção das margens desse estado. O objetivo é refletir
sobre este “Estado” moçambicano, tal e como ele se manifesta frente à população,
considerando a percepção e experiência concreta dos indivíduos como resposta aos
esforços “unificadores” dessa instituição e, dessa maneira, procurar pelos antecedentes
obliterados das causas e motivações das revoltas.
 
Sobre metáforas encontradas e sociologias
apressadas
8 Os relatos coletados contam que antes de terça-feira, 5 de fevereiro, corriam pelos
celulares uma série de mensagens de textos de origem desconhecida incitando a uma
“greve” para o dia em que as medidas tomadas pelo conselho de ministros, semanas
antes, entrariam em vigor.14 Uma das mensagens que consegui resgatar dizia o
seguinte:
O povo está a sofrer, os filhos de ministros, deputados e outros dignatários não
andam de chapa e os chapas estão caros. No dia 5 ninguém deve apanhar chapa,
ninguém deve trabalhar. Vamos fazer greve e exigir justiça camaradas, envie para
outros, seja unido na luta contra a pobreza. (4 de fevereiro de 2008).
9 Precisamente, entre as medidas tomadas pelo conselho de ministros, vigorava o
aumento do preço do transporte público, os chamados popularmente “chapas”, 15 de
50% para trajetos curtos (de 5 para 7,5 meticais) e de 33,3% (de 7,5 para 10 meticais)
para trajetos longos. Deve-se destacar que para a população maputense em geral,
circular, ou seja, estar em movimento ou movimentar bens e pessoas garante não
apenas a alimentação diária, mas sua própria sobrevivência, portanto, o gasto em
transporte público é considerado um dos mais problemáticos depois dos gastos em
alimentação e educação. O desembolso em transporte público representa, em média,
quase um terço do orçamento familiar de muitos lares que integram até cinco filhos,
que chegam a gastar, por agregado familiar, entre 600 e 1200 meticais por mês só para
ir ao trabalho ou à escola. Nessa altura o salário mínimo oficial era de
aproximadamente 1800 meticais.16 Esse aumento do preço do transporte iria significar
para a maioria da população localizada nas zonas periféricas da capital (que é a maioria
da população urbana da cidade) a quebra do já apertado orçamento familiar, isso sem
falar que os que têm acesso ao salário mínimo são pouquíssimos, tendo a maior parte
que procurar outras formas de desenrascar-se17 para completar o orçamento.
10 Ao mesmo tempo, existe um outro aspecto que me parece significativo mencionar, pois
foi um dos comentários mais recorrentes entre os cidadãos maputenses que usam esse
meio de transporte, sobretudo porque ademais já tinha ouvido constantemente antes
dessa revolta explodir. Esse aspecto é oriundo do mundo dos boatos e muitas vezes foi
usado como argumento explicativo dos abusos dos “chapeiros” (motoristas dos chapas),
por exemplo quando não completavam a rota, obrigando os usuários a pagar uma
segunda passagem para chegar ao seu destino. Muitas vezes me tocou experimentar
essa situação durante os percursos em direção aos diversos lugares que visitei, tentando

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abranger essa enorme espacialidade periférica. Nesses momentos esses usuários


enraivados com a prepotência dos motoristas acusavam os “patrões” destes de
fomentarem essas práticas abusivas. Ao perguntar quem era o “patrão” do “chapeiro”,
as respostas sempre foram as mesmas: “os donos do país”. 18 Durante essa revolta a
população aproveitou para dizer e gritar em uníssono tudo aquilo que até esse
momento fazia parte do mundo subterrâneo e marginal do descontentamento. Talvez
esse descontentamento possa ser reduzido na frase de uma senhora no bairro de
Inhagoia, recuperada pelo sociólogo Carlos Serra (2008a): “As empresas são deles, as
lojas são deles, as padarias são deles, tudo é deles. E nós, que não temos nada?”
11 Nos dias 1º e 2 de setembro de 2010 outra revolta social de grandes proporções teve
lugar novamente em Maputo, motivada dessa vez pela decisão unilateral do governo de
aumentar os preços de consumo de eletricidade, água, pão e outros produtos de
primeira necessidade. O modus operandi foi similar ao da revolta de fevereiro de 2008.
Antes dos dias em que aconteceram os eventos, correu uma série de SMSs chamando
novamente a uma “greve”. Aqui resgato duas mensagens:
Moçambicano, chegou a hora da VIRAGEM dentro de 24 horas. O dia da GREVE
01/09/10 onde vamos reivindicar a subida do custo da energia, água, xapa e pão.
Envia para outros. Despertem irmãos senão é o nosso fim, é hora de VIRAGEM […].
(31 de agosto de 2010).
Moçambicano. Preparar moedas para curtir no grande dia da greve 01/09/10.
Reivindicamos a subida de preços de combustível, água, energia, cimento, pão, etc.
Envia para outros se prepararem. Mostre que a chama da unidade tem valor e junte-
se. Os sul-africanos já começaram. (31 de agosto de 2010).
12 Na mesma revolta, a violência e agitação foi proporcionalmente maior e mais
prolongada do que em fevereiro de 2008, alargando-se a outras cidades no sul (Xai-Xai,
Chókwè, Matola entre outras), no centro (Chimoio) e norte (Tete) do país. Da mesma
maneria esse aumento dos preços do pão, eletricidade e água anunciado pelos
governantes, semanas antes dos distúrbios, além de serem percebidos como injustos,
também vieram associados ao fato de que alguns membros do partido governante são
percebidos como “os donos” desses serviços, particularmente as companhias de água e
eletricidade (por exemplo, Eletricidade de Moçambique – EDM). 19 Contudo, para manter
uma certa ordem do relato, opto por me concentrar primeiramente nas características
da primeira revolta (5 de fevereiro), para logo tentar uma análise interpretativa a partir
das diversas reações que provocou este evento. Assim sendo, tentarei enumerar
algumas das particularidades que acredito servirão para a elaboração de um perfil
inicial e como referência posterior às reações escolhidas nesta análise.
13 Em primeiro lugar, a expressão “revolta” foi escolhida dentre outras, tais como
“motins”, “tumultos”, “sismo social”, “manifestações”, basicamente porque todas essas
expressões anteriores, apesar de conseguirem caracterizar parcialmente os eventos
acontecidos nessa terça-feira de fevereiro de 2008, são elaborações externas ao próprio
evento. Dessa maneira, as duas primeiras expressões parecem colocar o acento no caos
provocado pelos participantes e, como veremos, esse caos parece ser mais o produto da
leitura do analista (Granjo, 2008a, 2008b, 2010) do que do evento propriamente dito. A
terceira expressão foi cunhada pelo sociólogo Carlos Serra (2008c), porém, apesar de
querer explicar o caráter abrupto e radical do evento, um terremoto sempre acarreta
um sem-fim de consequências a longo prazo, situação que também não parece coincidir
com o curso que levou o desfecho dos acontecimentos. A quarta expressão que foi
utilizada pelos membros da Liga de Direitos Humanos de Moçambique (Duma, 2008),

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parece querer ver certo civismo e agência na ação coletiva da população, embora algo
de verdadeiro se perfile dessa designação, parece responder mais a um desejo
republicano, que entre os becos e caminhos terrosos dos bairros populares se torna
mais complexo, mais espesso e diverso.
14 Elísio Macamo (2008) parece ser o representante icônico desse desejo republicano. Sua
pertinente análise, publicada no jornal Notícias no dia 13 de fevereiro, orientava a
reflexão dos eventos do dia 5 para uma crítica das instituições do estado e do sistema
político, buscando responsabilizar os próprios fazedores da política, tanto governo
como intelectuais:
[…] Encoraja, pela sua aparente falta de imaginação na abordagem estrutural destes
problemas que uma vida moderna nos vai criando, a ideia de que, de facto, ele (o
governo) é que é a solução […] Foi a manifestação que foi problema ou a ausência de
outras formas de articulação de protesto é que constitui problema no nosso sistema
político? Existe um quadro substancial de referência que sustente a discussão
política ou dependemos todos da vaga e perniciosa ideia de que o governo resolve
os problemas do povo? […] Que fazer? Pensar, pensar a sério. O campo político
precisa de se tornar mais transparente e aqui não me refiro ao fim da corrupção.
Refiro-me à criação de um quadro de discussão política que envolva o cidadão na
resolução dos seus próprios problemas e na transformação da máquina estatal no
instrumento que cria as condições para que cada indivíduo ganhe a sua liberdade.
(Macamo, 2008).
15 Contudo, essa crítica parece prescindir da própria população, reduzida por sua vez a
uma expressão genérica: “o povo” (“ah, o povo!”20). Seu apelo por uma vida moderna,
sustentada na condição de cidadania promovida pela liberdade do indivíduo junto a um
sistema político inclusivo, parece esquecer deliberadamente as motivações que levaram
a essa heterogênea população a sair nas ruas. Para este autor o “povo” se teria
acostumado a ver o governo “solucionar” seus problemas, portanto dessa vez não podia
ser diferente. Voluntária ou involuntariamente, esse anseio republicano parece impedir
nele uma visão mais abrangente e propriamente inclusiva, caindo em um nefasto
paternalismo, provavelmente o mesmo paternalismo no qual os governantes caíram ao
substituir um regime que supunha atuar nos termos que esse genérico e indiferenciado
“povo” definia, atuando apenas em seu nome.
16 Esclarecida minimamente essa questão, passo aqui a caracterizar as revoltas.
Concentro-me primeiro e propositalmente na de fevereiro, embora a de setembro tenha
assumido os mesmos ou maiores contornos, pois o impacto que teve esta primeira foi
muito mais significativo pelo seu caráter inesperado do que a revolta de setembro que,
aliás, durou dois dias, foi mais abrangente a nível nacional e assumiu maiores
proporções em relação à violência e suas consequências humanas e materiais.
17 Quando indaguei pelos antecedentes, sobretudo se esse tipo de revolta já tinha
acontecido em Moçambique, todos meus interlocutores foram enfáticos ao responder
negativamente. De todas a respostas resgato a seguinte: “Este tipo de revolta não nos é
familiar porque como é sabido o nosso povo é passivo e não pacífico como dizem os
políticos no poder. O povo tem e anda com muito medo da perseguição.” 21 Dessa
primeira revolta destaco o elemento surpresa, sua sincronicidade e sua
horizontalidade.
18 Em relação ao elemento surpresa, a forma como a população se articulou encontrou
toda a classe política desprevenida,22 e não apenas os governantes. A surpresa foi tal
que, durante e depois da revolta, o desfile de discursos governamentais, como os da

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oposição, mais do que atender as causas desse evento, optaram por procurar
explicações muitas vezes de ordem moralista e acusações mútuas, reproduzindo, dessa
maneira, um repertório já conhecido no reduzido universo da “esfera pública”
moçambicana. Efetivamente, a espontaneidade e massividade dessa revolta
surpreendeu toda a classe política do país. De um lado a elite governante acusou seus
inimigos políticos “habituais” de instigar esses acontecimentos. Porém, o grau de
surpresa foi tão extensivo que nem a própria Resistência Nacional Moçambicana
(Renamo) soube inicialmente se posicionar. O partido Frelimo tentou então outra
explicação, denunciando a intromissão de uma ambígua e estranha “mão invisível”
externa na revolta. Edson Macuácuá, porta-voz do partido Frelimo naquele momento,
em entrevista ao jornal Notícias se referiu à revolta como “atípica e com origem numa
mão invisível, que fracassou nos seus intentos de desestabilizar o País”. 23 A tese da
“mão invisível” tem sua origem nos tempos da ocupação portuguesa e principalmente
no tempo da luta anticolonial; esta foi modificando seu objeto, porém manteve até hoje
o sentido dado no imaginário social.
19 Devo salientar que essa tese foi contestada por diversos intelectuais e sob enfoques
também diversos. A maioria das respostas encontradas em relação às declarações do
porta-voz do partido Frelimo, vem do mundo dos blogs, o qual nos últimos dez anos tem
se tornado uma arena política de intercâmbio de opiniões bastante massificada entre
políticos e intelectuais moçambicanos e não moçambicanos. 24 Inclusive os próprios
magermane também a refutaram:
“Mão invisível”, é o termo que os nossos dirigentes encontraram para identificar a
origem dos protestos. Na óptica deles o povo sozinho sem o apoio moral de quem
quer que seja, não seria capaz de ter uma atitude similar. No fundo das coisas, eu
entendo como sendo uma desculpa dos seus fracassos e não só, afinal de contas eles
também saíram do povo e lá tem os seus irmãos, amigos e vizinhos… 25
20 Depois das revoltas de setembro de 2010, apareceram outras interpretações, mais
acadêmicas, as quais também fizeram suas contribuições na compreensão dos
acontecimentos, procurando demonstrar um fio condutor entre uma e outra. Aqui
destaco algumas que, junto com propor uma continuidade entre uma e outra revolta,
pretendem questionar as interpretações ideológicas. Assim, por exemplo, o historiador
e docente da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Carlos Quembo, recorreu à
“teoria da frustração relativa”, a qual consistiria em que:
[…] as pessoas não se revoltam porque são pobres, mas sim porque numa situação
de comparação com outras classes sociais ou dentro da mesma classe, elas se julgam
numa situação ou posição de injustiçados e que merecem mais do que aquilo que
lhes é disponibilizado.26
21 De acordo com o autor, existe hoje uma relação ambivalente entre os indicadores
macroeconômicos e os discursos de luta contra a pobreza absoluta acirrada pela
percepção, na população, de não participar dos benefícios desse propalado crescimento
econômico. Por sua vez, o sociólogo Luca Bussotti (2010), também docente da UEM,
partindo de um enfoque similar ao de Quembo, propõe pensar que uma das causas
dessas revoltas poderia ser “uma débil consciência da gestão de risco” por parte das
instituições públicas. Sobretudo na perspectiva de promover instrumentos de
investigação para se antecipar e prevenir a ocorrência de eventos desse tipo. 27
Finalmente, destaco um debate protagonizado por dois antropólogos portugueses
engajados com Moçambique, os dois partilhando, de alguma maneira, uma visão
contratualista e republicana na interpretação dos eventos, no entanto, cada um

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acentuando, desde lógicas separadas, a especificidade do “caso moçambicano”. Paulo


Granjo (2010) salienta que para fazer a análise desses eventos, deve ser levado em
consideração, primeiro, o fato de Maputo ser um “bastião” do partido governante e,
segundo, que as visões em torno aos “deveres e direitos” de cada um distam muito da
versão de democracia representativa ocidental. Nas suas palavras:
A sua visão do “contrato social” sustenta-se, pelo contrário, em dois pilares
aparentemente contraditórios, mas que deverão estar minimamente equilibrados:
pressupõem, por um lado, que só em casos extremos deverá ser posto em causa o
poder instituído; mas pressupõem, também e em contrapartida, que quem ocupe
esse poder tem a obrigação de salvaguardar um mínimo de bem-estar e de
dignidade das pessoas que governa. Pode (e tem o direito de) “comer mais”, mas não
de “comer sozinho” e à custa da fome dos outros. (Granjo, 2010, grifo meu).
22 Por sua vez, José Teixeira (2010) centra sua análise nas modalidades de representação
política existentes, argumentando que a utopia do partido Frelimo é a de se tornar não
um “partido-estado” e sim um “partido-sociedade” e, para tal, seus esforços estariam
centrados na penetração de todos os âmbitos da vida social, política e econômica do
país. Questiona as críticas moralistas a esse tipo de prática, notando que:
[…] não é um “mal”, trata-se sim do produto de uma específica concepção de poder,
que o coisifica (este torna-se uma “coisa” a ter – e o mais possível – e não uma
relação a dirimir). Isso tem um corolário na prática política, o objectivo de obter o
máximo de “poder” possível, da forma como esse “poder” é entendido. Ou seja, de
adquirir o máximo dos cargos políticos e similares, e de assim potenciar o controle
das modalidades de organização social […] este modo de entender a prática política
e partidária implica duas dimensões interligadas: uma constante insatisfação, pois
há sempre algo mais a controlar e a dirigir, e uma constante mobilização e
vigilância interna, exactamente porque há sempre algo mais a controlar, a dirigir. É
um “modo de vida”, não no sentido (moralista) de apropriação mas sim de
reprodução, de vivificação. (Teixeira, 2010).
23 Em contraposição a todas essas hipóteses uma outra expressão começou, paralela e
espontaneamente, a angariar maior simpatia por parte da população, precisamente
porque ao que parece fora cunhada nas próprias ruas. Essa expressão era “o povo saiu
da garrafa”. De acordo com o antropólogo Paulo Granjo (2008c), essa expressão viria
associada a outra anterior que indica o fato de um homem ter sido “engarrafado” ou
“metido na garrafa”, e significaria:
[…] quando um marido tem um comportamento considerado pouco próprio de um
homem (entregar o salário todo em casa, não se meter em borgas ou com outras
mulheres, deixar a mulher tomar as decisões, ajudar em casa, etc.), a sua família e
vizinhos começam a especular que ele foi “metido na garrafa”. Quer dizer, ele foi
vítima de um feitiço para o submeter amorfamente à esposa, que foi misturado na
comida ou enterrado na latrina dentro de uma garrafa – daí vindo o nome popular
do feitiço e da suposta situação do homem.
24 O interessante dessa expressão radica no fato de não ser ou pretender ser
necessariamente uma explicação das causas dos acontecimentos – como o pretendeu,
no seu momento, a “tese” da “mão invisível” ou a “teoria da frustração relativa” –, mas
de manifestar uma nova disposição de parte da população como consequência dessa
revolta. Nesse sentido, o povo teria “saído da garrafa” onde fora engarrafado através de
um “feitiço” invocado pelo governo. Obviamente nesse caso não se trataria de uma
relação amorosa (embora estivesse tentado a usar essa metáfora), porém, se levamos
em consideração que o suposto “engarrafado” se tornaria por causa do feitiço um
dependente, incapaz de tomar decisões, sua saída da garrafa seria assumida pela

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população como uma espécie de momentâneo empoderamento que, portanto, é


celebrado. A priori, pode-se inferir que o fator surpresa afetou não apenas a classe
política em sua totalidade, mas também uma elite intelectual, a qual, voluntária ou
involuntariamente, deixou manifestada uma preocupante distância com os sujeitos e as
dinâmicas sociais que procurava interpretar.
25 Em relação aos aspectos de sincronicidade e horizontalidade, devo destacar
primeiramente a ausência de uma convocação por parte de alguma organização da
“sociedade civil” ou por alguma organização sindical ou gremial. Se houve um elemento
significativo foi que o evento não foi liderado centralmente e, ademais, na prévia, a
coordenação de seu pelo envio massivo de mensagens de texto através dos celulares
(SMS). De acordo com os relatos, os principais atores foram jovens, mulheres e crianças
e, em menor medida, homens adultos. Os acontecimentos se concentraram
espacialmente nos bairros periféricos da cidade de Maputo, e tiveram maior destaque
nos bairros de Benfica (George Dimitrov), Inhagoia, Zona Verde, Hulene, Magoanine e
Zimpeto. De acordo com os relatos coletados, as pessoas que saíram às ruas se
conheciam pelo fato de viverem no mesmo bairro. Alguns dos entrevistados
argumentaram que os protestos foram levados por setores e por bairros, para evitar o
risco de estar a protestar ao lado de um policial “a paisana” e, por outro lado, para
evitar o risco de ser denunciado no futuro em caso de uma eventual investigação ou
perseguição por parte das autoridades.
26 Sua dinâmica pareceu se repetir em todos esses lugares. Cortes de rua de acesso
importantes à cidade através de barricadas, apedrejamento e incêndio de locais e carros
com emblemas estatais. No Xiquelene e Xipamanine, dois dos maiores mercados
informais da cidade, registraram-se muitos saques às lojas. De destacar é o fato de que
essas lojas, na sua maioria, pertenciam a estrangeiros (particularmente pessoas de
origem “asiática”28 e “nigerianos” 29). Procurando uma explicação do porquê destes
estabelecimentos e não todos terem sido saqueados, a resposta mais recorrente foi que
os estabelecimentos comerciais “destes” estrangeiros teriam sido atacados porque essas
pessoas aparentemente “vivem bem”, “facilmente chegam aos recursos financeiros,
sem muito esforço”. Outro argumento que foi usado pelos magermane era que também,
quando se trata da época das eleições, “têm sido eles a financiar ou apoiar
financeiramente a Frelimo”.
27 O fato de serem revoltas populares sem uma condução partidária ou gremial obriga-me
a pensar nas formas de organização e articulação dessa população e o grau de
coordenação e sincronicidade entre todos/as os/as participantes para conduzi-las. O
uso de celulares como meio de comunicação e coordenação dos protestos é muito
significativo, pois, como tentarei colocar mais adiante, nos remete a práticas anteriores
e que tem no uso do celular seu meio privilegiado. Por outro lado, o fato de que os
chamados “revoltosos” (em sua maioria jovens, mulheres e crianças) se conhecessem
com anterioridade e estivessem relacionados entre si por diversos vínculos (vizinhança,
parentela, etc.) e não qualquer militância partidária (embora não se descarte a
participação de membros dos dois maiores partidos do país), é outro elemento bastante
significativo quando contrastado às análises sociológicas interpretativas dos
acontecimentos. A esse respeito coloco o seguinte depoimento como antecedente para a
análise posterior:
Se conhecem porque vivem no mesmo bairro. Por um lado foi para evitar o risco de
estar a protestar ao lado de um policial a paisana, por outro lado, para evitar o risco
de ser denunciado no futuro em caso de uma eventual investigação ou perseguição

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por parte das autoridades. O que contou é juntar esforços apenas contra o inimigo
comum que é o governo.30
28 A participação majoritária da juventude e particularmente das mulheres e crianças
nessas revoltas pode ser compreendida pela própria forma como o contexto social é
produzido. Aparentemente é esta a “camada” social que está suportando as
consequências das decisões políticas elaboradas alhures dos seus bairros, redes e
circuitos de sociabilidade. Em muitos casos, são elas que inventam ou engenham o uso e
distribuição do escasso orçamento familiar, incluindo as crianças na angariação de
recursos para o sustento diário. São elas as obrigadas a se confrontar com uma
realidade cotidianamente adversa. Uma realidade que significa muitas vezes uma
contínua desagregação social e familiar; uma realidade que as colocou, ou melhor, as
obrigou a posicionar-se de maneira a dar voz a um descontentamento generalizado que
já fazia parte do cotidiano imediato.
29 Em uma leitura preliminar, esse comportamento social parece insinuar um
direcionamento bastante racional da revolta, a qual parece se distinguir do propalado
“caos social” publicado pela imprensa e sustentado pelas fontes oficiais, que veriam
nessas manifestações grupos de “vândalos e arruaceiros” destruindo apenas o
patrimônio e bens particulares. Sem dúvida, muitos particulares foram vítimas das
ações violentas (entre apedrejamentos dos seus carros ou saqueio das suas lojas,
embora ninguém resultasse ferido por essas ações), assim como a própria população,
produto da violenta repressão policial.31 Porém, se ponderamos no sentido de
identificar a destruição material dos bens que foram atingidos, podemos distinguir, a
simples vista, que estes comportam também bens simbólicos (carros com emblemas
estatais, lojas das empresas tidas como estatais, lojas de estrangeiros identificados
como poder, etc.). Bens simbólicos que nessa leitura preliminar podemos assumir como
representativos da situação de desigualdade imperante e percebida pela população
revoltada. Nesse sentido, essas revoltas conseguiram visibilizar alguns aspectos
interessantes. De todos, na seguinte seção me concentrarei em refletir aquele que diz
respeito à imagem que o estado assume frente a essa população revoltada, segundo a
qual essa instituição se apresenta como uma concorrente predadora e invasiva.
 
O estado modernizador moçambicano: uma máquina
produtora de exclusão
30 Inspirado na critica de Veena Das e Deborah Poole (2008, p. 220, tradução minha) que
recusam pensar o estado como “forma administrativa racional de organização política
consolidada”, proponho caracterizar esse estado moçambicano, na atualidade, como
um produto híbrido e autoritário, o qual se manifestaria e reproduziria a partir da
simbiose entre várias formas de dominação/governação. Essa configuração atual,
neoliberal, que eleva o discurso da democracia ao melhor estilo republicano, porém
desde o outro extremo é percebida pela população como despótica, combina de modo
simultâneo e eficiente estatismo, descentralização e clientelismo, contestando de
maneira deliberada qualquer tendência que insista em ver nele uma institucionalidade
“precária”, “frágil” ou “em construção”. Ao contrário, se existe algo que caracteriza
essa instituição, por sobre muitas outras coisas, é sua vitalidade e impressionante
voracidade.

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31 Trata-se de um estado republicano moderno enquanto estrutura e funcionamento, 32


que na sua acepção estatal concentra e reivindica, de maneira insistente, seu monopólio
da propriedade e da violência sobre os corpos dos seus cidadãos. Na sua face
descentralizadora, manifesta uma obediência e disciplina irrepreensível e bastante
eficaz destinada à angariação de financiamento, principalmente estrangeiro, das
organizações e estruturas administrativas espalhadas pelas nove províncias do país. 33
Consequentemente com esta última, na sua acepção clientelar, não oculta o sistema de
prebendas para seus aliados e leais, sejam estas na ordem de promover uma seletiva
mobilidade social dentro do restrito universo que engloba o partido governante, sejam
como proteção e benefícios para seus simpatizantes.
32 Contudo, essa entidade vive divorciada da sua população. Essa constatação claramente
não é nova, porém, contrariamente ao que essa visão consolidada do estado poderia
inferir no sentido de colocar esse fenômeno de divórcio dentro de um processo de perda
de legitimidade de parte do estado frente à sua população, em nosso caso, pretendo
insistir no fato de que se trata menos de uma instituição que perdeu sua legitimidade e
mais de uma instituição construída, desde o inicio, com deliberada autonomia e, o que é
mais importante, constituiu-se historicamente contra a sociedade que enquadra e
governa. Esse aspecto é importante, pois, nos últimos anos, temos assistido a uma
produção incrível de relatórios e publicações, dedicados a discutir precisamente a
evolução desse estado moçambicano, suas instituições e sistema político. Interessante é
que a maioria dessa produção de laudos e relatórios insiste em concentrar seu interesse
na figura desse estado como o sujeito substancial das transformações do país. Dessa
forma são analisadas, de maneira retroativa e crítica, as políticas impostas durante o
período socialista e as transformações sofridas, produto da guerra; a sua relação com as
organizações de cooperação e doadores em geral; as políticas de descentralização e seu
impacto na população, entre as mais recorrentes. Todos esses aspectos descrevendo
uma figura ainda em processo de construção e aperfeiçoamento, “precária”, “não
consolidada”, enfim, como a causa privilegiada para entender os problemas de pobreza,
“subdesenvolvimento” e exclusão social que atinge a grande maioria da população
moçambicana.
33 Esse aspecto parece compreensível, sobretudo se levamos em consideração que esse
estado é o resultado de significativos e violentos conflitos no passado recente. Situação
que de alguma maneira tem derivado numa prática e compreensão da política por parte
dos governantes, lotada dos atavismos oriundos da situação de guerra. 34 Contudo,
tentarei aqui me afastar desse enquadramento analítico “estadocentrista” e procurar
entender a relação entre essa institucionalidade e sua população, a partir de uma
perspectiva mais local, a qual acredito se constituiria nas margens do próprio estado e
que, para o caso especifico, seria o lugar privilegiado para começar a busca pelas
motivações e causas dessas duas revoltas populares.
34 Assim sendo, parto aqui introduzindo a hipótese de trabalho a partir da qual pretendo
elaborar minha reflexão: para a população o estado se manifesta visivelmente como uma
externalidade invasiva e predatória. Como consequência, a sua relação se sustentaria e
reproduziria a partir de uma contradição fundacional retratada na presença e
persistência desse estado contra sua sociedade (Guerra Hernández, 2011, p. 235), e cujo
motor principal seria a produção de sujeitos sem rosto, nem lugar próprio, dividindo
um espaço superlotado e instável (Serra, 2003, p. 17). Um estado que recriaria uma
estrutura social conhecida para a maioria da população. Uma estrutura que parece

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contemporizar com as percepções e representações de tempos passados, entendidos


como superados. Uma estrutura, finalmente, que persiste em ver a população que
governa ainda como súditos passíveis de afetação e enquadramentos arbitrários. Um
estado que se constitui sobre uma matriz forânea, mas cujo elemento subjetivo
continua sendo marcado pela guerra e sua consequente produção de inimigos.
35 Muitos desses conflitos agem na atualidade como promotores contínuos de um receio e
desconfiança por parte de uma população obrigada a “desenrascar-se”, criando não
apenas uma contestação às práticas políticas que emanam dessa institucionalidade, mas
também, e principalmente, obrigando à recorrência a um acervo social e cultural que os
próprios sujeitos teriam desenvolvido nas margens, para fazer frente às dificuldades
derivadas precisamente desses conflitos. Essa expressão foi uma das mais ouvidas em
minhas conversas com as pessoas em Maputo. Trata-se de uma expressão idiomática:
um “moçambicanismo”. Significa aproximadamente “saber arranjar-se”, ou “se virar”.
É usada sempre dentro do contexto econômico para explicar as múltiplas formas de
arranjar dinheiro para o transporte e para a refeição cotidiana, e, em geral, serve como
uma expressão que propõe também um estado de desamparo em relação à situação
econômica e social do indivíduo moçambicano. Trata-se também de certo eufemismo
para fazer referência à “economia informal”.
36 Dessa maneira o estado, ou melhor, as diversas manifestações de poder com que este
tem sido percebido pela população, é representado apenas como uma “máquina
produtora de exclusão”. Essa percepção contribuiu significativamente para a criação de
condições a partir das quais a população começara a desenvolver formas diversificadas
de sobrevivência econômica, que de alguma maneira garantissem uma socialidade
básica a nível local e a própria reprodução social, atingida, nas últimas décadas, pelo
infortúnio e a guerra.35 Efetivamente, essas práticas fomentaram o desenvolvimento de
interessantes modos de articulação e ressignificação entre as formas entendidas por
“tradicionais”, como as relações de parentesco, aliança e herança, e as formas impostas
pelo enquadramento no sistema internacional de produção capitalista ao qual foram
empurrados.
37 Um dos âmbitos onde mais se expressa esse receio e desconfiança, em relação ao estado
por parte da população de Maputo, é o mundo do trabalho. Historicamente, este parece
ter perdido o sentido formador defendido pelos projetos modernizadores pregoados
nas últimas décadas. Projetos cujas políticas integradoras basearam-se num discurso
que colocava o trabalho como o elemento-chave do progresso, emancipador e
civilizatório, mas que quando aplicadas acabaram provocando efeitos desintegradores e
desagregadores das múltiplas subjetividades afetadas. Especificamente, as formas
históricas como foram impostos os regimes laborais na região vieram associadas a uma
série de práticas e políticas compulsórias, tanto no período colonial quanto pós-
colonial. Assim temos que para a população de Maputo (Lourenço Marques durante o
período colonial) o xibalo ou trabalho forçado e as culturas obrigatórias da colônia, da
mesma maneira que as políticas de “reeducação” e a obrigatoriedade do cultivo das
machambas (hortas) comunais, assim como os reassentamentos compulsórios do
período socialista, assumem o mesmo sentido, o uso compulsório da força do trabalho
dos indivíduos para a produção de bens, dos quais não obtiveram benefício nenhum
para si nem para suas famílias.36
38 Atualmente Moçambique deve conviver com uma imagem um tanto “esquizofrênica”
de si próprio. Por um lado é apresentado como um dos países com indicadores

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macroeconômicos muito significativos,37 tornando-se paradoxalmente, nos últimos


anos, o modelo de desenvolvimento que parece conter os “objetivos do milênio”
elaborados pelas agências internacionais de desenvolvimento. Motivo pelo qual as
agências de cooperação e financeiras internacionais continuam injetando quantidades
substanciais de dinheiro no orçamento do estado para, a partir daí, implementar e
aperfeiçoar as instituições do sistema político convencidas que esse é o caminho para
garantir maior inclusão social, além dos projetos econômicos, sob a base de
microfinanciamentos, que garantam o chamado desenvolvimento sustentável. Por
outro lado, esses indicadores convivem com outros menos encorajadores: altos índices
de pobreza, graves desigualdades relacionadas à distribuição de renda, alta
instabilidade laboral e insegurança alimentar, e um déficit da balança comercial que
torna o país ainda mais dependente que na época do socialismo. 38
39 Esse outro Moçambique, esse espaço diverso e “heteróclito” (Serra, 2003, p. 17),
habitado pelos excluídos dos benefícios dessa modernidade moçambicana e que afinal
são a maioria, parece sustentar sua sobrevivência sob a convivência entrelaçada de dois
pilares, aparentemente frouxos e instáveis, porém dinâmicos e inventivos: por um lado,
uma marginalidade social que propõe reinventar local e cotidianamente os vínculos e
redes de sociabilidade e, por outro, uma informalidade econômica altamente
sofisticada, desenvolvendo-se dia a dia entre mercados, becos e barracas. É
precisamente nos interstícios de uma relação, no mínimo, ambígua e contraditória
entre esses dois Moçambiques que, para o caso específico localizado em Maputo, os
sentidos do trabalho, dinheiro e cidadania se negociam e reproduzem. Esses três
aspectos, entendidos como inerentes ao processo de construção das subjetividades de
uma possível cidadania moçambicana, são pensados, aqui, atravessando as situações de
exclusão e informalidade e, ao mesmo tempo, como as referências necessárias para as
diversas significações que os indivíduos lhes outorgam, todas elas localizadas no
interior de um complexo tecido social que combinaria elementos “modernos” com
outros entendidos como fazendo parte de uma “ordem tradicional”. Dessa forma, é
possível entender as percepções em torno da visível destruição do sentido social do
trabalho que assistimos hoje e, como consequência, sua desvalorização em beneficio da
posse de dinheiro a qualquer custo, o qual, por sua vez, parece condição indispensável
para o acesso a uma porção de cidadania. Aqui, o aspecto da circulação de bens e
pessoas é crucial, pois incorpora a mobilidade trabalhista e o consumo e distribuição da
mercadoria numa importante relação de interdependência.
40 Contudo, creio necessário apontar para a complexidade que supõe essa
interdependência, pois a propalada racionalidade econômica individualista, a qual hoje
atua como sustento ideológico do “ser moderno” moçambicano, sob o rótulo de
“empreendedorismo”, muitas vezes se manifesta de modo conflitante com as relações
sociais prevalecentes de ordem comunitária, constatáveis a partir das relações de
desconfiança, disputas e invejas mútuas, aumentando assim a demanda e a valorização
da chamada “magia africana” nos processos de diferenciação social e de resolução de
conflitos. Uma possível hipótese a ser colocada de maneira provocativa nesta reflexão
diz respeito ao interessante fenômeno em torno da regulação e manutenção dos preços
nos circuitos comerciais informais e periféricos, pois parece que esta obedeceria não
apenas a critérios e leis desenvolvidos nas terras da oferta e procura (neo)liberal e
individualista, mas também a critérios que apontariam o controle e regulação do

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“enriquecimento ilícito”, visto muitas vezes como uma manifestação da própria prática
da feitiçaria.
41 Nesse sentido, a circulação tanto de pessoas como de bens ocupa um lugar significativo
no imaginário dessas articulações econômicas. Efetivamente, na atualidade os espaços,
por excelência, onde confrontamos essas formas e sentidos de reprodução social, são os
circuitos comerciais existentes dentro do espaço principalmente periférico da capital.
Agitados e efervescentes espaços de troca, nos quais essas diversificadas formas
econômicas encontrariam seu solo fértil. Todas essas formas, por sua vez, fazendo valer
de maneira simultânea e negociadora seu direito de acesso ao dinheiro. Basicamente,
dentro da lógica racional aprendida, esse acesso ao dinheiro é mediado por relações de
ordem material “quantificáveis”, instaladas em um sistema formal de troca: o mercado.
Essa formalidade também estaria instalada na noção de trabalho e circulação, parceiros
inseparáveis do processo de produção do valor da mercadoria. No entanto, ao
depararmos com a realidade de Maputo, vemos como essas categorias parecem perder
necessariamente o vínculo com esse tipo de lógica, assumindo um caráter menos
mercantil e talvez mais redistributivo, obedecendo a essa chamada “ordem
tradicional”.
42 Essa circulação, por sua vez, não se constitui à margem do mercado. No entanto
precisamos fazer um esclarecimento nesse sentido. A questão à qual me refiro é o fato
de que, apesar de muitas formas de reprodução social se constituírem e desenvolverem
à margem do estado (por exemplo, xitique, fundo solidário, entre outros), estas não
necessariamente se constituem nas margens do mercado. Este último, por sua vez, ao
ser regido apenas dentro da lógica de produção da mercadoria, também produz
invariavelmente suas margens (atividades “não produtivas” como formas de troca,
trabalho comunitário, redes de apoio mútuo, etc.) A diferença está em como o estado da
ideologia mercantil hoje em dia não só tolera, senão que ademais promove o
desenvolvimento de atividades dentro do mercado mal chamado de “informal” e
permite que formas de reprodução econômica “não produtivas”, isto é, que não
produzem lucro, possam atuar e se desenvolver sem prejuízo de serem interditadas. Daí
minha intenção em defini-las, a priori, como “circuitos comerciais de sobrevivência”,
baseados no intercâmbio. Pois essa definição, apenas classificatória, nos possibilita um
ponto de referência inicial.
43 Esse fato não deixa de ser instigante, pois revela que práticas rotuladas de
“tradicionais” para a resolução de conflitos em contextos “modernizantes”, de alguma
forma, constituem aspectos e formas locais necessárias para a sucessão da vida, para a
domesticação do infortúnio (Granjo, 2008e); para a revitalização e manutenção das
alianças, todas elas atuando de forma simultânea e paralela às políticas de estabilização
e reinserção social apregoadas pelo discurso modernizante do estado, além de redigidas
e fundamentadas nas instituições internacionais. Em todas as partes, nos mercados, na
vizinhança, nos chamados “comentários de rua”, encontramos uma multiplicidade de
expressões que parecem não ser apenas uma queixa aflita de pessoas famintas e
moribundas, senão que representam uma diversidade de formas assumidas pela
população para fazer frente a uma persistente condição de profunda exclusão social e
uma complexa situação de instabilidade econômica, a qual parece caminhar e se
desenvolver de maneira paralela ao discurso modernizador não apenas da elite
governante, mas também de uma intelectualidade distante, assentada na segurança que
a cidade de cimento lhe garante.

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44 Na infinidade de relatórios e publicações coletadas e que apelam por um


desenvolvimento sustentável para Moçambique e, em particular, para Maputo, essa
condição de marginalidade, aparece muitas vezes desvinculada da chamada
informalidade econômica. Na atualidade, a maneira de poder regular essa
informalidade econômica parece ter sido entregue à lógica das instituições de
microcrédito. Do mesmo modo, o enquadramento desta polivalente marginalidade
social, produzida durante anos, parece ser território das organizações não
governamentais nacionais (com financiamento estrangeiro) e estrangeiras. Instituições
que, sem opção, ainda defendem a tese sociológica simplista, de pensar o estado
contemporâneo nos países periféricos como instituições dependentes da ajuda
internacional, devido à sua natureza precária. Porém, é essa nomenclatura a que
constitui, basicamente, a criticada fragilidade do estado moçambicano. Precisamente
porque sua presença massiva e condicionante desloca, de maneira abrupta e deliberada,
os interesses que esse estado supostamente “deveria” promover e sustentar, ao situar
sua esfera pública fora dos seus limites territoriais e responder mais às exigências de
uma sociedade civil e comercial estrangeira. Nessas condições a população
moçambicana desaparece do universo de incumbência dessa instituição, tornando-se
ironicamente um obstáculo para essa teleologia do desenvolvimento aplicada no país.
Uma população que aos olhos dos governantes ainda não assumiria sua
responsabilidade como sujeito de transformação, por falta de empreendedorismo.
 
Palavras finais
45 Mais acima, ao caracterizar o estado moçambicano, tentei mostrar como o estatismo, a
descentralização e o clientelismo agiam de maneira combinada em função de angariar
recursos para sua persistência e status no contexto internacional. Nessa lógica, o estado
em relação à sua população apareceria não como um facilitador e sim como um
concorrente a mais e, em muitos casos, como um concorrente desonesto e predador. O
aumento dos preços do combustível – e seu consequente aumento no preço dos chapas –
assim como o aumento dos custos de água, eletricidade e pão, sem prévia consulta à
população, e cujo corolário foram essas revoltas, não nos fala apenas de uma atitude
arrogante de parte dessa institucionalidade a respeito dos que diz representar. Nos fala
muito mais de uma orientação nas políticas estatais que visa responder a exigências
colocadas alhures da periferia maputense, longe das necessidades concretas da maioria
da população.
46 Ao aumentar os preços dos produtos acima mencionados, a condição de não cidadania
dessa população foi manifestada, mas não foi o único estopim das revoltas de fevereiro
de 2008 e setembro de 2010, pois essa não cidadania é vivida cotidianamente e pouco se
espera de um estado que é visto como algo externo aos problemas reais que cada
indivíduo e comunidade experimenta. Vimos a maneira como tudo isso ocorreu, a
explosão dessas revoltas: a partir desse aumento deliberado e unilateral dos preços dos
chapas e nos produtos básicos, a população percebeu como o estado ameaçava sua única
possibilidade de garantir a sua própria circulação, uma circulação que desde décadas
vem acontecendo nas margens de qualquer política integracionista e de qualquer
relatório institucional. Uma circulação que alimenta os circuitos de sobrevivência,
mesmo que de maneira marginal e informalizada, e que consegue minimamente

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redistribuir os poucos recursos com que essa população conta para sua própria
reprodução social, frente ao estado e apesar dele.

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NOTAS
1. “Magermane”, “madgermane”, “madjermane”, “madgermans”, são expressões usadas para
designar os antigos trabalhadores moçambicanos que entre 1979 e 1990 foram enviados para as
fábricas da República Democrática Alemã. Sobre sua história e situação vide Guerra Hernandez
(2011).
2. Frelimo, “Frente de Libertação de Moçambique”, movimento que liderou a luta anticolonial e
que desde 1975 está no poder.
3. Este é um dos gritos que os magermane entoavam durante suas marchas pelas ruas de Maputo.
É esse grito que de alguma forma representa a posição dos magermane frente a essa ideia de
passividade defendida por eles em contraposição ao pacifismo defendido pelo discurso oficial, a
qual, por sua vez, parece substantiva, na medida em que relativiza uma condição assumidamente
“intrínseca” (pacifismo) no etos de uma população atingida de forma continua por processos e
políticas de caráter violento.
4. Joseph Hanlon sentenciou em 1997: “Os dados humanos são ainda mais sombrios. Da população
moçambicana dos meados de 80 estimada entre 13 e 15 milhões, 1 milhão morreu, 1,7 milhões
eram refugiados nos países vizinhos (de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados) e pelo menos 3 milhões eram ‘deslocados’, isto é, tinham fugido para outros locais
dentro de Moçambique, em geral à volta de vilas e cidades onde, regra geral, viviam na pobreza
[…] Muitos dos que permaneceram nas áreas rurais deixaram de ter acesso às aldeias, cantinas e
postos de saúde durante anos. São raras as famílias moçambicanas que, de um modo ou outro,
não foram afectadas pela guerra.” (Hanlon, 1997, p. 14).
5. Base de Dados da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento a Moçambique. Para saber quais são as
instituições integrantes da ODAmoz vide: http://www.odamoz.org.mz/donor_info?locale=es.
6. Para entender os princípios do centralismo democrático, vide Lenin (1975). O estatuto do
partido Frelimo de 2002, no capítulo III, em torno dos princípios organizativos, estipula como
método de trabalho nas suas letras c, d, e, o seguinte: “c) Nos órgãos, as decisões são precedidas
de livre discussão, caracterizada pela abertura e tolerância em relação aos pontos de vista ou
opiniões divergentes manifestadas pelos membros; d) As decisões dos órgãos superiores são
obrigatórias para os órgãos inferiores; e) Os órgãos superiores do Partido deverão auscultar os
órgãos inferiores quando as matérias que exigem a tomada de posição ou decisão sejam de
interesse geral.” (Frelimo, 2002, p. 13-14). Embora nestes estatutos a expressão “centralismo
democrático” não apareça de maneira explícita, os três artigos mencionados aqui ilustram a
estrutura e funcionamento orgânico do partido.
7. Arnaldo Mendes, vice-presidente da associação dos magermane com a qual trabalhei durante
minha pesquisa de campo.
8. Devido aos limites do texto esses aspectos não podem ser aprofundados aqui. No entanto são
inúmeros os exemplos coletados que fazem referência a essa penetração do partido nos diversos
níveis enunciados. Durante a minha pesquisa de pós-doutoramento pretendo dedicar um
subtítulo a essa questão, pois constitui uma condição sine qua non para entender o projeto de
dominação/governação implementado por esse partido.
9. Comunicação pessoal. Os depoimentos usados neste trabalho possuem caráter anônimo para
preservar a integridade dos informantes.
10. Para compreender o projeto frelimista vide Machel (1975).
11. Em relação ao conceito de “afetação” deve-se considerar que o mesmo faz parte de todo um
discurso desenvolvido durante o período socialista. Peter Fry (2003, p. 294) o refletia da seguinte
maneira: “O ‘livre arbítrio’ do liberalismo deu lugar à noção da ‘responsabilidade’ para com o
estado. A vocação foi abolida em nome do termo onipresente ‘afetação’. A partir da quarta série,
os moçambicanos eram ‘afetados’ a profissões específicas, consideradas do interesse do Estado.”

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12. Devo frisar aqui também que é a partir dessa revolta, entre 2008 e 2010, que começarão a
aparecer outras greves, mais setoriais como o caso dos trabalhadores dos caminhos de ferro, os
trabalhadores da empresa de segurança G4S, os desmobilizados de guerra, etc. Antes dessa
primeira revolta só é possível falar de manifestações reivindicativas públicas a partir das
marchas de quarta-feira protagonizadas pelos magermane.
13. É importante esclarecer que as minhas estadias em Maputo aconteceram, a primeira depois
da revolta de fevereiro (novembro de 2008 a março de 2009), e a segunda antes da de setembro
(maio de 2010). Portanto, a reflexões que desenvolvo neste texto seriam o resultado de uma
análise realizada a posteriori, de maneira diacrônica, tentando expor as percepções e
interpretações dos eventos dentro de um contexto mais abrangente, o qual será discutido na
última parte.
14. A manchete publicada pelo jornal Notícias no mesmo dia da revolta anunciava: “Entram hoje
em vigor, nas cidades de Maputo e Matola, os novos preços dos transportes semicolectivos de
passageiros, vulgo ‘chapa’.” Seguidamente explicitava: “Assim, os passageiros que antes pagavam
cinco meticais para percorrerem uma distância de menos de nove quilómetros passam agora a
desembolsar o valor de sete meticais e meio, enquanto os que pagavam sete meticais e meio para
fazer uma distância superior a nove quilómetros passarão a pagar dez meticais. O agravamento
do custo do ‘chapa’ foi decidido semana passada pelo Governo, sob proposta da Federação
Moçambicana das Associações dos Transportadores Rodoviários (FEMATRO), com sustento na
subida dos preços dos combustíveis, e não só […].” (Entram hoje…, 2008).
15. De acordo com o dicionário online de “Moçambicanismos” (Lindegaard, [s.d.]): “chapa (cem)
n. m. ou f. transporte colectivo, semiformal; por extensão, qualquer automóvel que transporte
pessoas a troco de algum dinheiro (de chapa, ‘preço único’, de cem meticais).”
16. Quem realiza as negociações setoriais para fixação do salário mínimo é a Comissão Consultiva
do Trabalho (CCT) de Moçambique, a qual envolve o governo, os sindicatos e os empregadores.
Em 2008 o salário mínimo era em média 1800 meticais ponderados de 10 categorias diferentes.
Em 2010 era de 3600 meticais, calculado a partir de 12 categorias. O custo da cesta básica de um
trabalhador moçambicano é avaliado formalmente em cerca de 1221 meticais por pessoa ao final
do mês. Essa cesta é constituída pelo consumo básico de um cidadão que inclui arroz, feijão,
farinha de milho, amendoim, peixe, vegetais e legumes, pão, óleo, açúcar, carvão vegetal,
petróleo de iluminação, transporte e sabão (excluindo água, luz, telefone, lazer, etc.). Sendo o
agregado familiar médio constituído por cinco pessoas, o custo da cesta básica é de
1221x5=5.229,00 MT (o equivalente a aproximadamente 200 USD) para uma família (Muhate,
2009). Para revisar a evolução do salário mínimo em Moçambique vide Wage Indicator
Foundation (2011).
17. Sob esta expressão – “desenrascar-se” – reúne-se toda uma “engenharia social de
sobrevivência”, sustentada em toda uma lógica de compreensão da realidade enquanto situação
de vida. Uma engenharia cuja dinâmica incorpora relações, mobilidade e circulação como
elementos imprescindíveis para a reprodução social dos sujeitos em situação de precariedade.
18. Em 2006 Yussuf Adam, historiador moçambicano, fazia referência, entre outras coisas, a essa
situação. Segundo Adam (2006, p. 381-382): “[…] a actual estrutura social deriva das opções de
desenvolvimento que conduziram à emergência e consolidação de um novo tipo de classe social
que tem um suporte económico apoiado em três pilares: cunha (redes políticas e de amigos),
candonga (extorsão comercial sem nenhum respeito por custos, impostos, investimento) e chapa-
cem (transporte). O topo da pirâmide social pós-colonial é ocupado pela burguesia CCCC.”
19. Relacionado a esse ponto, não é preciso ir nos bairros periféricos para perceber que essa ideia
dos governantes serem os “donos” dos serviços e das empresas públicas faz parte substancial da
imagem do poder do partido Frelimo no senso comum maputense. As medidas paliativas tomadas
pelo governo para “apaziguar” o descontentamento popular, nas duas oportunidades, foram na
forma de subsídios que o estado deu aos fornecedores dos respectivos serviços, e assim evitar o

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aumento do preço. Essas medidas, no entanto, aparecem no imaginário da população não tanto
como soluções e mais como uma manifestação de como funciona o sistema de prebendas e
favores entre esses “donos”.
20. Ver Macamo (2008).
21. Comunicação pessoal.
22. Cabe destacar que os SMSs chamando à greve eram de conhecimento prévio das autoridades,
portanto deve-se supor que estas devem ter atuado de maneira incrédula, duvidando da
capacidade convocatória que essas mensagens teriam.
23. Cf. Araujo (2008) e Serra (2008b).
24. Essa prática discursiva parece-me um objeto de pesquisa muito interessante, mas não será
abordado neste texto; portanto, me limitarei a indicar as três respostas que considerei mais
relevantes: Paulo Granjo (2008d), Patricio Langa (2008) e, por último, Nelson Livingston (2008).
25. Comunicação pessoal.
26. Esta proposta de análise foi publicada no blog do sociólogo Carlos Serra (2010).
27. Dessa análise destaco o seguinte parágrafo: “[…] Em ausência desses meios de investigação,
torna-se bastante complicado apurar quem é que esteve por detrás das manifestações. Portanto
só vai ser possível fazer algumas, simples ilações. A primeira hipótese é que se trate duma
manifestação verdadeiramente espontânea. Hipótese possível, mas que tem uma lacuna: ou seja
que os que se fizeram à rua, rapazes ou pouco mais, dificilmente têm a capacidade de
protagonizar movimentos populares tão significativos e tão violentos, sobretudo num país como
Moçambique. A segunda é que haja uma mão ‘invisível’, embora, neste caso, tenhamos várias
subordinadas, especialmente duas. Por um lado, pode ter havido uma planificação de entidade
oficialmente organizadas, por exemplo sindicados ou partidos da oposição. Só que, além da
supracitada fraqueza dos uns e dos outros, seria pelo menos estranho que essas forças não
assumissem abertamente a responsabilidade de quanto acontecido, uma vez que o alvo principal
das manifestações foi exactamente o Governo. Por outro lado, temos a hipótese ‘do comploto’,
que foi levantada pela primeira vez pelo Ministro do Interior […]”. (Bussoti, 2010).
28. “Asiáticos”, nesse sentido, se refere aos cidadãos paquistaneses e indianos. Em outro texto
Omar Thomaz (2004) faz referência à desconfiança e sentimentos de suspeita da população
moçambicana em relação a esse grupo social específico.
29. Nas extensas e superpovoadas zonas circundantes à cidade de cimento, a figura do
“nigeriano” é objeto de desconfiança e medo generalizado, tudo isso acirrado por uma serie de
boatos que associa esse grupo ao tráfico de drogas e órgãos humanos. Associação na qual subjaz
um obscuro vínculo com a prática da feitiçaria. Nesse âmbito, recomenda-se a leitura do
ilustrativo relatório elaborado pela Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (2009), em torno ao
tráfico de órgãos humanos: Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. No entanto,
parece presumível pensar que essa associação da feitiçaria com a figura do “nigeriano” tenha
uma origem alhures da própria cidade de Maputo. Muitos dos boatos parecem ter a sua origem na
África do Sul, sendo logo “transportados” para a capital moçambicana através do continuo fluxo
migratório que existe na região.
30. Comunicação pessoal.
31. Em 2008 a Liga de Direitos Humanos de Moçambique fez um balanço das vítimas humanas da
revolta provocadas pela polícia: “Por conta dessa violência, num diagnostico feito pelo Hospital
Central do Maputo, excluindo outros organismos hospitalares que também socorreram as
vítimas, 93 feridos deram entrada no HCM. 58 apresentavam ferimentos provocadas por balas de
fogo no dia 5 de Fevereiro e 26 no dia 6. Houve também 18 vítimas de intoxicação, 17 de agressões
físicas, 15 de queda e 17 não especificados. Em termos de idades, as vítimas tinham entre 5 a 72
anos de idade. Dos casos de baleamentos acontecidos entre dia 5 e 6 de Fevereiro, a Liga dos
Direitos Humanos recebeu 6, sendo que alguns foram devidamente reportados pelo médico
legista do Hospital Central de Maputo.” (Duma, 2008). Em 2010, o balanço foi ainda pior, com o

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resultado de dez vítimas mortais e 443 feridos, segundo um balanço divulgado pelo Ministério da
Saúde de Moçambique. Foram ainda detidas pelo menos 142 pessoas (Caos em Maputo, 2010).
32. Definição entendida na perspectiva que Miliband (1969, p. 49) propôs: “What ‘the state’ stands
for is a number of particular institutions, together, constitute its reality, and which interact as
'parts of what may be called the state, system.”
33. Esse aspecto se menciona, levando em consideração também as críticas oriundas dos próprios
doadores internacionais em torno do “mau desempenho” estatal nesse sentido, e que diz respeito
à incapacidade, por parte do próprio estado, de dar cobertura integral às populações das zonas
rurais e isoladas do país. Essa crítica pode ser resumida como segue: “No entanto, parece-nos que
o discurso do governo moçambicano é pouco convincente, uma vez que, se um verdadeiro esforço
descentralizador estivesse sendo posto em práctica, este deveria alterar também a distribuição
das receitas e as competências tributárias, assim como se esforçar na capacitação dos quadros ao
nível local.” (AfriMAP, 2009, p. 17). Contudo, essa critica nos parece contraditória e insuficiente,
pois se concentra apenas em manifestar um descontentamento de parte das organizações
internacionais, as quais, por sua vez, ao mesmo tempo vêm exigindo processo de desregulação
econômica para incentivar a inversão privada.
34. Para uma reflexão pormenorizada sobre esse assunto vide Guerra Hernández (2011,
p. 103-106).
35. Se levássemos em conta apenas o período entre a luta de libertação (começada em 1964) e o
tratado dos acordos de paz em Roma, em 1992, veremos que o período de entreguerras, com
relativa paz, não passou de dois anos (1975-1976). Por outro lado, aspectos de ordem natural
desempenhariam um papel importante nos processos de mobilidade social na região. Dentro da
literatura, são muitas as referências em torno da ecologia da região sul moçambicana, a qual é
caracterizada como relativamente propensa a temporadas de cheias e secas contínuas de longa
duração. Em 2009 foi publicado um documento de trabalho, apresentado no Defencil como
motivo do V Seminário de Defesa Civil, em São Paulo. Nesse documento foi registrado que
Moçambique sofreu dez grandes secas e 20 cheias entre 1956 e 2008 (em 52 anos, a cada 1,7 anos
acontecia alguma catástrofe natural), somando um total de 102 mil mortos e 25,4 milhões de
afetados. (cf. Matusse; Barros; Barros, 2009). Se pensarmos essa situação como histórica e
culturalmente enraizada no imaginário da população, podemos também situar essa dinâmica de
reprodução social como fazendo parte do desenvolvimento cotidiano dos habitantes do sul.
36. A bibliografia em torno desses temas é profícua. Aqui recomendo apenas algumas que
considero significativas pela sua abrangência e perspectiva de análise. Para o período colonial
vide Penvenne (1993), Covane (2001), Negrão (2005). Para o período socialista pós-colonial, vide:
Cabaço (2010), Adam (2006, 2005), Nunes (2000).
37. O produto interno bruto (PIB) – taxa de crescimento real: 7,1% (2010 est.) 6,3% (2009 est.) 6,8%
(2008 est.). Fonte: The World Bank (2013).
38. Neste ponto deve-se destacar que apesar da dívida externa moçambicana ter-se reduzido de
maneira contínua desde 1987, a política de doações econômicas por parte da ODAmoz tem
tornado o país mais dependente das mesmas doações. Para uma análise pormenorizada desses
aspectos vide Grupo Moçambicano da Dívida (2006).

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RESUMOS
Nos dias 5 de fevereiro de 2008 e 1 e 2 de setembro de 2010 Maputo foi o cenário de duas revoltas
populares de grandes proporções, cada uma delas motivadas pelo descontentamento
generalizado da população frente a reajustes econômicos, impostos pelo governo, que
aumentariam significativamente o custo da vida dos maputenses. Essa situação mobilizou tanto a
elite política como intelectual a desenvolver apressadamente algumas hipóteses que pudessem
explicar esses eventos. Neste texto pretende-se contrastar essas hipóteses para, em seguida,
propor uma análise que possibilite um entendimento mais abrangente a respeito das causas que
teriam levado à população a sair às ruas. Parte-se da constatação que o estado seria o produto
histórico de violentos conflitos, cujas sequelas podem ser percebidas no receio e desconfiança
que a população teria desenvolvido, e a partir da qual o estado seria percebido menos como um
facilitador e mais como um concorrente invasivo e predatório.

In 2008, at February 5th and in 2010, at September 1st and 2nd, Maputo was the scenery of two
popular uprisings of major proportions, each one was motivated by general discontent against
the economic readjustments, the government tax, that would increase significantly the living
costs of maputenses. This situation mobilized the elite, both political and intellectual, to
hurriedly develop some hypotheses that could explain these events. The intention of this paper is
to contrast these hypotheses, thereafter, to propose an analysis that will enable a more omnibus
understanding about the causes that would had led the people to the streets. Therefore, the
departure point is the assertion that the State would be the historical product of violent
conflicts, whose consequences could be perceived on the fear and distrust that the people
developed, and from which the State would be less like a facilitator than a competitor invasive
and predatory.

ÍNDICE
Keywords: informal sector, Mozambique, postcolonial State, social uprising
Palavras-chave: economia informal, estado pós-colonial, Moçambique, protesto social

AUTOR
HÉCTOR GUERRA HERNÁNDEZ
Universidade Federal do Paraná – Brasil

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Combinando heterogeneidades em
espaços globais de mobilização. Os
casos do Fórum Social Mundial e
GlobalSquare
Geraldo Adriano Godoy de Campos, Carminda Mac Lorin e Raphaël Canet

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 20/12/2013
 
Introdução
1 O atual ciclo de proliferação global das lutas de resistência e de indignação convoca a
uma reflexão acerca das dinâmicas políticas em curso. Os processos de mobilização
política são facilmente contextualizados perante questões particulares de cada país, ao
mesmo tempo em que demonstram vários elementos comuns, do ponto de vista das
agendas, das práticas políticas e da conformação dos atores envolvidos. Isso permite
pensar em um processo mais amplo de resistências e de busca por alternativas.
2 Quais os espaços que esses atores encontram atualmente para trocarem experiências,
gerarem articulações e ações políticas conjuntas?
3 O presente artigo1 tem como objetivo a análise transversal de dois espaços globais de
mobilização política, que não somente refletem as dinâmicas e disputas que
ultrapassam as fronteiras nacionais, mas também ajudam a construir a própria noção
de “global” como campo de ação política: Fórum Social Mundial (FSM) e GlobalSquare
(GS).

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4 A dimensão privilegiada para análise é a capacidade de cada espaço potencializar a


heterogeneidade dos atores como elemento cognitivo para a elaboração de ações
políticas comuns.
5 O recorte pretende estabelecer um paralelo entre processos que coexistiram durante a
última edição do Fórum Social Mundial em Túnis (2013), ainda que o interstício entre os
contextos de surgimento das duas iniciativas pareça abrir a possibilidade de um diálogo
entre diferentes momentos e configurações da ação política no âmbito da sociedade
civil mundial (presente no FSM), com novas redes de ativistas oriundas de mobilizações
recentes (como Occupy, 15M, Via22, “primaveras árabes”, YoSoy132, movimentos
estudantis, entre outros).2
6 Convém a ressalva metodológica de que o viés comparativo não ignora que os dois casos
possuem dimensões, dinâmicas internas e longevidade muito distintas. Sendo assim, os
casos escolhidos funcionam como unidades de análise que expressam transformações
significativas, dado que ambos possuem em comum o fato de surgirem em conjunturas
de ascensão das lutas sociais no plano global.
7 A perspectiva metodológica que alimenta este artigo assume intencionalmente uma
proximidade com a complexidade do objeto discutido. Tal opção cria exigências do
ponto de vista da utilização de uma multiplicidade de estratégias e técnicas de pesquisa,
além da aceitação da interdisciplinaridade como ponto de partida. 3 Do ponto de vista
metodológico, o artigo parte de uma pesquisa qualitativa, com elementos etnográficos,
na qual foram utilizadas diferentes técnicas, como acompanhamento das reuniões,
organização de atividades nos espaços analisados, sistematização de informações em
diários pessoais, além de análise documental (de atas e relatórios) e revisão de
literatura pertinente ao tema.
8 Para a análise do GlobalSquare (que, ao contrário do FSM, não possui bibliografia a
respeito), os autores recorreram a documentos (como as atas das reuniões virtuais, 4 que
são elaboradas em editores de texto colaborativos, nos quais várias pessoas podem
simultaneamente fazer anotações) e as observações recolhidas na fase de preparação e
durante a realização das assembleias no FSM 2013 em Túnis.
 
Percurso histórico das mobilizações contra a
mundialização neoliberal
9 A irrupção do atual ciclo de lutas convida a repensar teorias de ação coletiva
(Agrikoliansky; Fillieule; Mayer, 2005; Benski et al., 2013; Gohn, 2012; Sommier, 2003).
Esta não é, no entanto, a pretensão deste artigo. O que se pretende é contribuir para a
compreensão de duas formas específicas de mobilização global, nas quais a noção de
“espaço” adquire importância para a configuração da ação política.
10 Para tanto, é conveniente retornar à história recente de lutas, a fim de melhor
compreender as diferentes mutações e as trajetórias das formas de mobilização em
relação ao uso político do espaço com horizonte de mudança social.
11 As tentativas de explicação das novas formas de mobilização política convocam,
atualmente, a largos debates teóricos, o que não constitui nenhuma novidade. As
ciências sociais evoluíram em função, de um lado, das transformações macrossociais,
mas também das formas históricas dominantes de organização da ação coletiva
(Sawicki; Siméant, 2009). Já nos anos 1960 e 1970, as teses do pós-materialismo e da

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nova cultura política pavimentaram o caminho ao reconhecimento dos novos


movimentos sociais que se distinguiam das formas clássicas do movimento operário
(Clark; Hoffmann-Martinot, 2003; Inglehart, 1993; Ion, 2001; Touraine, 1969).
12 Atualmente, o declínio das formas tradicionais de participação política e de militância
(Croisat; Labbé, 1992; Fillieule, 2005; Ion, 1997; Putnam, 2000; Thomson, 2005) parece
continuar, enquanto se observa, mais uma vez, a emergência de novas mobilizações e
de posturas de engajamento social mais pragmáticas, individualizadas e com
temporalidades próprias (Gaubert; Lechien; Tissot, 2006; Hilton; McKay, 2011; Jossin,
2013; Langman, 2013). Essas mobilizações emergentes se articulam na esfera
transnacional (Bandy; Smith, 2005), funcionam em rede (Castells, 2012; Diani; McAdam,
2003) e tendem a promover o horizontalismo (Sitrin, 2006).
13 Nessa perspectiva, propõe-se uma classificação cronológica de quatro ondas de
mobilização social e política. Vale notar que essas referências temporais pretendem
somente facilitar a visualização das mutações contemporâneas da ação social
contestatória. Cada uma dessas ondas não se limita estritamente ao período histórico
identificado, podendo existir antes e continuar após as datas sugeridas. Os períodos
propostos indicam somente que, naquele momento preciso, o tipo de mobilização
apresentado é preponderante em relação às outras formas de ação voltadas à
transformação social (o que não significa que essas outras formas estejam ausentes). É
por essa razão que foi dada preferência à noção de “ondas”, ao invés de “fases”. Sem ter
começo nem fim, as ondas possuem momentos de forte intensidade e podem reforçar-
se, umas às outras.
 
Primeira onda: as lutas locais setoriais e defensivas (1977-1994)

14 É possível encontrar os primeiros sinais da refutação social ao neoliberalismo nos


países que foram os primeiros impactados pelas reformas promovidas por esse modelo
e que não tinham redes de proteção social para atenuar temporariamente as drásticas
consequências sobre suas populações. Isso ocorre essencialmente nos países do Sul, 5
que foram submetidos no final dos anos 1970 aos programas de ajuste estrutural do
Fundo Monetário Internacional (FMI), impostos como condicionalidades para novos
empréstimos que seriam utilizados para lidar com a crise da dívida pública.
15 Esses primeiros protestos eclodiram por todo o sul global; na África, na Ásia, na
América Latina. Expressaram-se por meio de ações localizadas, contextualizadas, com
demandas muito específicas, direcionadas às áreas ameaçadas diretamente pelas
reformas econômicas impostas a cada país. Eram populações preocupadas em defender
um modelo no qual o Estado lhes pudesse garantir as necessidades básicas. Foi
justamente esse afastamento do Estado em relação às questões sociais, ou pior, seu
alinhamento com as políticas ditadas pelas instituições econômicas internacionais,
somado ao seu poder de coerção contra sua própria população, que provocou as
mobilizações. Esses primeiros levantes apresentaram formatos clássicos de
mobilizações. Eram greves, manifestações, confrontos no espaço público com as forças
da ordem, reivindicações diretas endereçadas ao Estado, em estruturas políticas
marcadas por um horizonte de mudança social interna. O cenário se reproduziu nas
Filipinas, na Bolívia, na Zâmbia, no Quênia, no Senegal, na Costa do Marfim, no Haiti,
entre outros.
 

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Segunda onda: os movimentos globais de oposição (1994-2001)

16 O conjunto das mobilizações da primeira onda permaneceu fragmentado, isolado e


pouco documentado porque ficou preso em um nacionalismo metodológico denunciado
por Ulrich Beck (2003). Se as causas das mobilizações eram exógenas (os programas de
ajuste impostos pelo FMI), as formas de ação seguiam sendo as tradicionais, sobretudo
em um espaço de ação política que era, sobretudo, nacional ou local. A ligação entre as
diferentes lutas nacionais não estava claramente estabelecida e a mundialização, assim
como o neoliberalismo, eram conceitos vagos.
17 Em 1º de janeiro de 1994, a insurreição zapatista no México mudou as coisas. Os povos
autóctones do sudeste mexicano pegaram em armas para denunciar o livre-comércio e
a “barbárie tecnomercadológica” que colocava suas comunidades em perigo (EZLN,
1996). Um pensamento crítico sintético foi sendo elaborado e o desejo de se organizar
superando fronteiras nacionais foi ganhando forma. Um espaço cognitivo global estava
sendo construído, também pelo encontro de intelectuais engajados com ativistas dos
movimentos sociais, facilitando a emergência de um imaginário comum sobre as
consequências sociais do modelo econômico em curso e a articulação das ações de
resistência, oriundas dos encontros internacionais altermundialistas, que perfuravam
os limites do Estado-nação. (Baschet, 2002).
18 Ainda que 1994 seja tomado como ano de início dessa onda, o evento que teve papel
determinante na criação do Fórum Social Mundial, constituindo-se como um
verdadeiro choque para as elites políticas e financeiras que até então não estavam
prestando tanta atenção nessas mobilizações, foi a chamada “Batalha de Seattle”
(Barlow; Clarke, 2002). Foram grandes manifestações que cercaram a Conferência da
Organização Mundial do Comércio (OMC) no estado de Washington, nos Estados Unidos,
em novembro de 1999. Seattle foi um laboratório de experimentação de novas práticas
de ação coletiva (grande uso da rua, performances teatrais, estratégias midiáticas, guerra
de imagens, articulações internas e externas). Esse lento trabalho de informação e
conscientização colheu frutos que acarretaram o bloqueio às negociações da Rodada de
Doha na sequência das conferências da OMC em Cancun (2003) e Hong Kong (2005)
(Audet; Canet; Duchastel, 2006; Canet; Audet, 2005).
19 A maior de todas essas manifestações foi contra o G8 em Gênova (Itália), em julho de
2001. Mais de 300 mil pessoas tomaram parte nas diferentes ações realizadas para
denunciar as fraturas políticas e econômicas globais, evidenciadas naquela reunião.
Gênova fecha, portanto, um ciclo de mobilizações de massa pela construção de um
mundo diferente. Essas vastas mobilizações permitiram uma certa inflexão da
mundialização. A partir de então, não seria mais possível negociar acordos comerciais e
financeiros em segredo, nem impor acordos de livre comércio sem debate público.
 
Terceira onda: o espaço mundial proposicional (2001-2011)

20 A fim de sair dessa lógica de confronto que transformou os espaços públicos das cidades
onde ocorriam esses encontros em grandes campos de batalha, as organizações da
sociedade civil mundial decidiram inovar. Inventado no Sul, em berço brasileiro, o
Fórum Social Mundial (FSM) emergiu como uma nova forma de mobilização
sociopolítica (Cassen, 2003; Leite, 2005; Whitaker, 2006), que passou gradualmente de
uma postura reativa a uma propositiva (Vivas, 2008), da antimundialização

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contestatória para a altermundialização criativa. Isso significou uma mudança no modo


de ação. Não se tratava mais de tomar o espaço público em datas e lugares estabelecidos
pela agenda dos encontros das cúpulas (FMI, OMC, G8, Fórum Econômico Mundial de
Davos) para expressar discordâncias e bloquear as negociações em curso. O objetivo
passou a ser a criação de um espaço de diálogo e de intercâmbio em um ambiente
menos hostil, sem forças da ordem e perímetros de segurança, que permitiriam às
organizações e indivíduos se reunirem para elaborar juntos proposições alternativas
para uma outra mundialização (Beaudet; Canet; Massicotte, 2010). Nessa perspectiva, o
FSM contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento político do espaço cognitivo
global. Ao indicar o slogan “Um outro mundo é possível!”, o FSM tinha como horizonte a
ruptura com o pensamento único (George, 1996) que legitimava a visão neoliberal,
hegemônica, da mundialização.
 
Quarta onda: as lutas experienciais de indignação (2011-?)

21 O ano de 2011 foi marcado por indignação e revolta. Tudo começou na Tunísia, no final
de dezembro de 2010, com a autoimolação de Mohamed Bouazizi. O jovem se tornou o
símbolo de toda uma geração condenada à marginalização social, apesar de sua
formação e diplomas (Badie, 2011). As chamadas “primaveras árabes” nasceram e um
vento de revolta sacudiu as autocracias da região, derrubando alguns ditadores (Ben
Ali, Mubarak, Kadhafi), desestabilizando regimes (Iêmen, Jordânia, Barein, Kuwait) e
forçando vários outros à concessão de reformas (Marrocos, Argélia, Omã, Arábia
Saudita).
22 As imagens dos povos árabes desestabilizando suas oligarquias deram a volta ao mundo.
Em certo ponto, alguns no Norte começaram a ponderar que, se as ditaduras
estabelecidas pela força das armas estavam caindo no mundo árabe, o abismo social
promovido por força dos bancos e dos mercados financeiros poderia ser desafiado. Os
primeiros Indignad@s apareceram na Espanha. Seguidos por uma manifestação de
dezenas de milhares de pessoas organizada em Madri em 15 de maio 2011, decidiram
ocupar o espaço público e se instalaram na praça Puerta Del Sol. Ainda inspirados pelas
ocupações espontâneas dos espaços públicos no mundo árabe, com o peso simbólico da
Praça Tahrir, no Cairo, os Indignad@s pretenderam demonstrar sua determinação em
serem, eles mesmos, os agentes da mudança, rejeitando as elites dirigentes que, a seus
olhos, teriam perdido toda a legitimidade. A iniciativa se multiplicou e as mobilizações
se espalharam pela Europa (Portugal, França, Grécia, Grã-Bretanha, Itália, Bélgica…) e
para outros lugares (como em Israel e na América do Norte). A dimensão planetária
dessa onda de contestação se concretizou em 15 de outubro de 2011, com a jornada
mundial dos Indignad@s, que levou a protestos em mais de 950 cidades em 82 países
(Hopquin, 2011). Na América do Norte, os atores dessas mobilizações inovaram,
principalmente com a iniciativa Occupy Wall Street, que teve início em 17 de setembro
de 2011, em Nova Iorque, para logo em seguida se propagar para mais de 100 cidades
dos Estados Unidos e também no Canadá (Vancouver, Toronto, Ottawa, Montreal).
Turquia e Brasil são dois países que entram um pouco mais tarde nesta onda (em 2013),
com significativas manifestações nas quais várias das características presentes no atual
ciclo global de lutas fizeram-se presentes (Judensnaider et al., 2013; Movimento Passe
Livre São Paulo, 2013; Rolnik, 2013), guardadas, evidentemente, as especificidades de
cada contexto.

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23 Com efeito, a receita propagada pelos ativistas desta última onda reverbera elementos
do discurso político presente no momento de surgimento do FSM, ainda sob o impacto
de Seattle: valorização da abertura, a horizontalidade das relações sociais e a
diversidade constitutiva do movimento; inovações e criatividade espontânea de ações
políticas, rejeição das formas tradicionais de enquadramento das mobilizações sociais
(partidos políticos, sindicatos) e das lideranças, acordo sobre a importância do debate
coletivo e da prática de uma democracia participativa no interior do movimento.
24 É essa proximidade relativa à concepção de mudança social que permite insistir nas
ligações entre os movimentos dos Indignad@s e os altermundialistas. Eles
compartilham uma visão da política que nutre toda uma geração de jovens ativistas
(Pleyers, 2004). Tal reapropriação do espaço público como expressão clara de uma
insatisfação a respeito do sistema existente parece nos remeter à primeira onda de
mobilizações contra a mundialização neoliberal. É apenas uma aparência, porque existe
uma diferença fundamental entre as revoltas sociais dos anos 1980 nos países do Sul e
essa que observamos atualmente ao redor do mundo. Enquanto as primeiras aparecem
como eventos localizados, contextualizados, sem ligação (evidente) entre si, as
segundas, ao contrário, possuem claramente uma dimensão mundial. As chamadas
“primaveras árabes” inspiraram os Indignad@s espanhóis, que inspiraram os
protagonistas de Wall Street, que inspiraram o Occupy Montreal e assim por diante.
 
Problematização teórico-conceitual: uma antropologia
dos espaços políticos
25 No que tange à abordagem teórico-conceitual do presente artigo, a proposta de uma
“antropologia dos espaços políticos globais” convoca a uma reflexão sobre um lugar de
enunciação de um discurso (o “discurso antropológico”) no qual o objeto e o sujeito
encontram-se no mesmo plano epistemológico (Viveiros de Castro; Sztutman, 2008).
Logo, uma antropologia dos espaços de mobilização deve considerar, certamente, as
maneiras pelas quais cada configuração espacial organiza as possibilidades para
manifestação do pensamento e da ação que fazem da alteridade uma fonte de potência
política transformadora.
26 Nas ciências sociais, a noção de espaço esteve atrelada a variadas concepções que
dialogam com autores ligados a distintos campos teóricos e com diferentes horizontes
disciplinares, notadamente a geografia crítica e a sociologia, que se interessaram pela
territorialidade das mobilizações sociais (Auyero, 2005; Sewell Jr., 2001; McAdam;
Tarrow; Tilly, 2001; Routledge, 1993; Soja, 1989).
27 Em uma palestra proferida em 1967 – publicada posteriormente com o título “De outros
espaços” (Foucault, 1986) –, Foucault afirma que se a obsessão do século XIX era a
história (o tempo), a presente época seria, sobretudo, a “época do espaço”. Cientes de
que a espacialidade tem um papel importante no projeto filosófico de Foucault, importa
notar que ele nunca faz referência a uma suposta homogeneidade ou a algo dado, vazio
de significados:
O espaço no qual vivemos, que nos atrai para fora de nós mesmos, no qual a erosão
de nossas vidas, nosso tempo e nossa história ocorre, o espaço que nos rasga e nos
rói é também, em si mesmo, um espaço heterogêneo […] (Foucault, 1986, p. 23, grifo
nosso, tradução nossa).

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28 Em meio a um alargamento semântico do conceito, a definição fornecida por Massey


(2005, p. 9) é oportuna para os objetivos deste trabalho, por chamar a atenção para o
caráter relacional dos espaços e dialogar com a heterogeneidade sugerida por Foucault.
Em sua construção teórica, destacam-se as seguintes dimensões:
Espaço como produto de inter-relações: constituído por interações, da infinidade do global,
ao intimamente pequeno.
Espaço como a esfera da possibilidade da existência da multiplicidade: a esfera na qual muitas
trajetórias coexistem, esfera da heterogeneidade coexistente.
Espaço como sempre em construção [porque é fruto de relações-entre]: não está nunca
terminado, nunca fechado.
29 Nas observações de Massey (2004, 2005), nota-se a ideia de que um espaço não é uma
coisa definida a priori, mas um processo. É a partir da ênfase na dimensão processual
dos espaços que se pode enxergá-los como “esferas da heterogeneidade coexistente”
para a compreensão das sociabilidades que atuam na reconfiguração constante das
relações de poder.
30 Parece evidente na literatura sobre o Fórum Social Mundial e nos textos publicados no
site do GlobalSquare (www.global-square.net) que a noção de espaço (e por extensão, a
vontade de se apropriar dos ‘espaços’ públicos, de discussão, de tomada de palavra, de
midiatização, presenciais ou virtuais…) tem, simultaneamente, um papel simbólico e
normativo: os espaços são construídos a partir de múltiplos olhares, de práticas
empíricas e de limites concretos.
 
O Fórum Social Mundial e a possibilidade de ruptura da (antiga)
dicotomia espaço/movimento

31 Segundo o artigo 1 da Carta de princípios, que constitui a máxima referência de


normatividade do FSM:
O Fórum Social Mundial é um espaço de encontro aberto que visa aprofundar a
reflexão, o debate democrático de ideias, a formulação de propostas, o intercâmbio
livre de experiências, a articulação para ações eficazes de instâncias e movimentos
da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e à dominação do mundo pelo
capital e a todas as formas de imperialismo e que se esforçam para construir uma
sociedade planetária que tem o ser humano como eixo. (Carta de principios…, 2001,
tradução nossa).
32 Dessa definição, pode-se extrair algumas das principais características que nos
permitem compreendê-lo melhor: em primeiro lugar, o fórum é um espaço aberto de
encontros. Ele não é uma associação, nem uma organização e, em hipótese alguma, ele
pode pretender representar a sociedade civil mundial (artigo 5 da Carta de princípios). A
segunda característica é que, como lugar de encontro, o fórum se abre para a discussão,
a reflexão e o intercâmbio em meio à diversidade. Ele não é confessional,
governamental ou partidário (artigo 8). Isso não significa que ele não pode gerar ações
concretas por parte de organizações e movimentos que participam mas, nesse caso, eles
agem em seu próprio nome, ou como uma coalizão de movimentos e não em nome do
fórum (que seria então concebido como uma entidade).
33 Em detrimento das definições apresentadas acima, é curioso notar que nunca houve
consenso sobre o significado preciso da caracterização do FSM como um espaço, entre
os participantes e mesmo entre os organizadores. Tal fato, em si, já é relevante pois,

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segundo sinaliza Massey (2005, p. 99, tradução nossa), “a atenção com conceitualizações
implícitas de espaço é crucial também em práticas de resistência e de construção de
alternativas”.
34 Nesse sentido, a oposição entre espaço e movimento está ligada a questões políticas
bem especificas, como a possibilidade de formulação de estratégias conjuntas de ação,
documentos políticos coletivos, entre outras iniciativas que caibam nos princípios do
FSM (segundo os quais, por exemplo, ninguém fala em nome do fórum, somente como
“participante”).
35 Já em 2002, após a realização do segundo Fórum Social Mundial, Chico Whitaker (2002,
p. 238, grifo nosso), um de seus idealizadores, reforçava a distinção entre o FSM
percebido como movimento ou como espaço: “No fundo, o Fórum não é uma instância,
um movimento. Não pretende ser nenhuma Internacional nova, nem ser uma
organização com uma direção. Pretende ser um espaço.”
36 É interessante notar que a perspectiva do fórum como espaço associa-se à ideia de que
ele é um método, em oposição à compreensão que o enxerga como um movimento (que,
por sua vez, não raramente é associada a uma Internacional). A intenção, ao afirmar o
fórum como espaço caracterizado de tal forma, é de renovar a dinâmica das
transformações sociais rompendo com a lógica vertical e hierarquizada mais tradicional
que implica a definição de uma linha de ação comum definida por uma vanguarda
segundo a qual deveriam se alinhar as estratégias de ação de diferentes movimentos
sociais (Canet, 2010).
37 Mas são muitos os autores que consideram fundamental ultrapassar a dicotomia que
caracteriza a definição do FSM, como Teivanen (2004, p. 18, tradução nossa), que
sustenta a necessidade de “superar a rígida dicotomia movimento/espaço se
pretendemos entender o papel do FSM”. Nessa perspectiva, o fórum poderia, e deveria,
conciliar as duas posições para dar voz a ações concretas, sem que, para tanto, se torne
um movimento tradicional, um partido político ou uma nova Internacional.
38 O próprio Whitaker (2013) retoma a pergunta, nos meses que antecedem a realização do
FSM em Túnis, em um texto cujo próprio título ostenta a indagação: “Fórum Social
Mundial: espaço ou movimento?” Nesse texto, percebe-se uma perspectiva que rompe
com a dicotomia apresentada inicialmente, aceitando a ideia de que o FSM pode ser
visto, simultaneamente, como espaço e movimento, em uma “relação de
complementariedade, em que as partes não se misturam nem se dissolvem uma na
outra”.
[…] continuaríamos a criar (e a multiplicar) “espaços”, como instrumentos
importantes na luta pela superação do neoliberalismo, ao mesmo tempo que
disporíamos de um “movimento” que definiria suas próprias estratégias de luta e
suas ações específicas para que essa superação fosse efetiva. (Whitaker, 2013).
39 Há, por outro lado, argumentos fortes que condicionam a definição da dicotomia
espaço/movimento à conjuntura política global, o que faz muito sentido, pois não parte
de uma identidade definida a priori para uma determinada invenção política, mas
permite que ela vá se adequando às necessidades colocadas pelas lutas em curso (como
foi o caso durante a guerra no Iraque e a ocupação da Palestina, ou durante a crise
econômica de 2008).
40 Sem dúvidas, há uma extensa bibliografia e o tema tem sido objeto de acalorado debate
na última década. Mas o propósito de trazer, parcialmente, o debate à tona relaciona-se
com o atual momento político global que aparenta demandar um certo grau de

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coordenação entre movimentos que compartilham objetivos semelhantes, como


mencionava Vivas (2008, p. 92, tradução nossa) após o FSM de Nairóbi:
Evidentemente, o caráter de espaço de encontro e de convergência segue sendo
esteio do FSM, mas isso agora é insuficiente para os setores mais ativistas com uma
necessidade crescente de coordenação temática, intersetorial e de ação.
41 A relação entre a internacionalização e institucionalização também é um dos vetores
importantes para acompanhar as características políticas desses espaços e as práticas
que os compõem. Analisando a trajetória do FSM, Pleyers (2012) contesta a alegação de
que a internacionalização teria conduzido inevitavelmente à institucionalização. No
que concerne ao FSM, o autor acredita que
embora seja possível identificar um padrão de institucionalização no interior do
FSM, ele tem sido contrabalanceado pela cultura política dos ativistas do FSM – uma
cultura que preza pela horizontalidade, pela democracia interna e pela participação
ativa de atores de base. (Pleyers, 2012, p. 168).
42 Torna-se claro, por outro lado, que o processo de complexificação do FSM põe em risco
a vontade de fazer política de outra forma, o que poderia significar que o fórum torna-
se vítima de seu próprio sucesso. A internacionalização e a diversificação das temáticas
abordadas lhe fazem enfrentar novamente o debate sobre sua institucionalização. A
urgência de agir, de passar da palavra ao ato, segue motivando um grande número de
participantes e de militantes a querer que o fórum deixe de ser somente um espaço de
discussão para se tornar um verdadeiro ator político. Mas o problema que se coloca
então é o desafio da ruptura. Quem vai definir a agenda? Como serão superadas as
clivagens ideológicas?
 
O Fórum Social Mundial e o GlobalSquare como
espaços globais de mobilização
43 Nesta sessão, busca-se traçar alguns aspectos relacionados ao campo de ação política
nos dois espaços, chamando a atenção para as convergências e tensões existentes.
44 O artigo não possui, evidentemente, a pretensão de apresentar um retrato exaustivo de
todas as ligações possíveis entre os espaços de mobilização estudados, dado que eles são
construídos e definidos dinamicamente em meio a várias perspectivas geográficas e
ideológicas de uma pluralidade de atores que formam suas percepções tanto a partir do
interior como do exterior desses espaços.
Como um processo global e fenômeno multifacetado, o Fórum Social Mundial [e
GlobalSquare estão] evoluindo diariamente. [Eles são] caracterizado[s] por uma
grande e contínua criatividade e dinamismo e algum grau de metamorfose que
apresenta múltiplos problemas de representação e análise. (Conway, 2005, p. 426,
tradução nossa).
45 Frezzo e Karides (2007) argumentam que o Fórum Social Mundial, por meio de sua Carta
de princípios, mobiliza dois conceitos importantes, que são vetores que ajudam a
singularizá-los como espaços: as políticas prefigurativas e a subsidiariedade. O princípio
das políticas prefigurativas sustenta que os ativistas devem exercer no presente as
práticas do mundo que querem construir no futuro. O princípio de subsidiariedade
estabelece que as decisões devem ser tomadas no menor nível possível de competência
de autoridade.

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46 É importante considerar que as práticas prefigurativas, por meio da conjunção


temporal que articulam, relacionam-se com outro aspecto relevante dos espaços de
mobilização em questão: a coexistência de diferentes temporalidades. A
heterogeneidade no FSM e no GS contempla também a presença de múltiplas relações
com o tempo político, no que tange às formas de ação dos indivíduos, que se evidencia
principalmente no encontro de distintas tradições e culturas políticas. Logo, um sinal
diacrítico do atual estágio dos espaços globais de articulação política, no que diz
respeito à alteridade, é a capacidade de acolher atores respeitando distintas
temporalidades no que tange à elaboração de imaginários políticos comuns e de ações
de mobilização local.
 
A contribuição de “novos movimentos sociais” para o processo do
Fórum Social Mundial

47 Acompanhando a trajetória do Fórum Social Mundial, é possível notar que ele vem se
reinventando reflexivamente por meio de um esforço profundo de conexão com
temáticas e regiões do planeta identificadas, em cada momento, como centrais para a
luta política e a resistência ao capitalismo. Assim, o fórum apresenta-se como uma das
fontes de legitimidade para determinadas lutas, ao mesmo tempo em que é redefinido
por elas. Não seria diferente com relação às primaveras árabes e os “novos
movimentos”.6
48 Foi assim com a guinada ecoterritorial e as lutas indígenas. A incorporação do enfoque
ecológico, territorial e indígena, como instância discursiva e como campo de ação
política na América Latina, particularmente após o Fórum de Belém, em 2009, que
reuniu mais de 120 mil pessoas, foi decisivo para posicionar o tema do “bem-viver”,
alinhado ao pensamento indígena da cosmovisão andina, que serviu como componente
para uma série de teorizações que problematizam o neodesenvolvimentismo no
continente.
49 Chico Whitaker (2012, tradução nossa), em seu artigo “Novas perspectivas no processo
do Fórum Social Mundial”, explicita algumas aproximações entre o FSM e os chamados
“novos movimentos sociais”, destacando que o desejo de construir uma nova cultura
política, com a correlata necessidade de mudança no interior das práticas, encorajando
horizontalidade, diversidade, cooperação e busca pelo consenso está claramente em
sintonia com os tempos atuais: “[…] são novos tipos de ação mas, de fato, muito
próximas das intuições dos promotores do FSM, como abertura, organização horizontal
e respeito pela diversidade, repúdio das lideranças e aprendizado mútuo”.
50 É possível dizer que há um movimento duplo. De um lado, setores que participam
tradicionalmente do FSM (e que estiveram envolvidos em sua própria concepção), e que
são do Conselho Internacional, buscam uma conexão mais direta com os novos
movimentos. Da mesma forma, há participantes dos novos movimentos que acreditam
que o FSM é um espaço importante e até que pode “ser disputado”.
51 Porém, tal disposição de aproximação não é homogênea e encontra resistências dos
dois lados. Há setores, especialmente ligados aos partidos e movimentos da esquerda
mais tradicional, que criticam a “recusa radical da representação” e a ênfase no papel
das ferramentas tecnológicas no processo de mobilização política. Em uma atividade de
preparação para o Fórum Social Mundial de 2013, realizada em São Paulo, esse debate

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ganhou destaque. Uma participante tradicional do fórum expressava sua desconfiança


em relação à tentativa de maior aproximação com os novos movimentos:
Há uma tendência nos últimos dez anos de romantizar os “novos” movimentos!
Occupy Wall Street é o sabor da vez. Mas o que é, de fato, Occupy? Na África do Sul,
quando tem ocupações são os movimentos tradicionais que levam as pessoas para as
ruas, enquanto os Occupy estão muito ocupados mandando mensagens de texto
pelo celular.7
52 Causa incômodo também a adjetivação dos processos atuais como “novos movimentos”,
o que acaba gerando uma outra dicotomia (novos/velhos).
53 Igualmente, no seio dos novos movimentos, o fórum não é uma referência inequívoca.
Trata-se da emergência de uma nova geração para a qual Seattle está mais distante
como referência. E também porque, para eles, a busca pela horizontalidade é tão
constitutiva de suas práticas que a ruptura do ponto de vista da cultura política
proposta pelo fórum não causa tanto estranhamento como causava para aqueles que
vinham de experiências com partidos e organizações mais verticalizadas.
54 A crítica à representatividade por parte dos novos movimentos também trouxe a
questão: ninguém poderia falar em nome do Occupy, ou do 15M ou das primaveras. Isso
se contrapunha à lógica de legitimação do fórum, que sempre comportou (com críticas)
o principio de representação como algo legítimo (o que se reflete na própria estrutura
do Conselho Internacional).8
55 De modo geral, a contribuição de grupos que se conectam às primaveras árabes, ao
Occupy ou ao 15M/Indignad@s foi muito valorizada no interior do FSM, a tal ponto de
ter sido reservado um tratamento privilegiado ao GlobalSquare, como um dos grupos
que se reivindica como parte desses movimentos. Foi assim que o comitê tunisiano de
organização do fórum propôs um espaço central com uma boa visibilidade na
Universidade de Túnis, onde eles poderiam realizar as assembleias, a possibilidade de
inscrever gratuitamente nove atividades na programação oficial (algo muito raro), o
acesso a materiais e tradutores em quatros idiomas.
56 Além disso, vale dizer que o GS parece abrir a possibilidade de envolvimento efetivo
com a construção de uma cultura política da tecnologia (Juris; Caruso; Mosca, 2008), a
qual o Fórum aspira.
57 Com efeito, essas iniciativas aparecem em uma época onde a vitalidade das tecnologias
da informação e da comunicação, no interior de diferentes redes de mobilização, se
traduzem pela multiplicação de muitos projetos visíveis na net (e especialmente no
Facebook) e nos espaços públicos. Como sugerem Juris, Caruso e Mosca (2008, p. 96,
tradução nossa):
Novas tecnologias da informação e da comunicação não somente facilitaram a ação-
à-distância, elas também mudaram a forma de organização dos movimentos sociais,
favorecendo estruturas descentralizadas, que envolvem uma disseminada “lógica
cultural de networking”.
58 Mesmo que o ponto de partida desse projeto tenha sido explicitamente o evento em
Túnis, as assembleias convocadas durante a fase de organização pela plataforma open
source Mumble e a página web colaborativa ( www.global-square.net), criada
principalmente para facilitar a organização e visando garantir transparência,
ofereceram concretamente a possibilidade de dinamizar um processo interativo e
participativo, para a articulação das ideias daqueles que se envolveram.

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59 Por fim, apesar de não termos condições de explorar a questão com o cuidado que ela
merece, é imprescindível dizer que o debate sobre o tema geracional (o conceito de
“geração” como categoria política) voltou a ganhar força no FSM de 2013. Ficou
evidente o desafio nas tentativas de aproximação com indivíduos ligados aos novos
movimentos, que está relacionado à necessidade de uma “ponte geracional”, nos
marcos da complexidade apontada por Berardi (2007, p. 15, tradução nossa):
O problema da transmissão é enormemente delicado, complicado. Não pode ser
reduzido a um problema de transferência de conteúdos da memória política (a
historia da resistência passada, etc.). Não se pode reduzi-lo a um problema de
transferência intergeracional de “valores”, porque isso é inevitavelmente moralista
e os valores não significam nada fora das condições sociais, técnicas,
antropológicas, dentro das quais se modela o comportamento humano.
60 Para o autor, a “transmissão intergeracional” não está baseada na transferência
mecânica de noções, memórias, mas na processo de “ativar autonomia dentro de um
formato cognitivo transformado”.
 
Lógicas do GlobalSquare

61 Detenhamo-nos agora sobre a emergência recente de um processo que permite


atualizar a reflexão sobre o FSM.
62 GlobalSquare é uma iniciativa que emergiu no final do ano de 2012, na sequência da
convocatória para a participação no FSM 2013, lançada por muitas pessoas envolvidas
no Agora 99 e Firenze 10+10). Os objetivos e a definição desse grupo, que se reuniu dez
vezes antes do FSM em uma plataforma virtual, e que ocupou um espaço muito
importante nas dependências da Universidade de Túnis durante o fórum – não parou de
evoluir durante os cinco intensos meses de sua atividade (como mostram as atas dos
encontros).
63 Por sua própria existência, o GlobalSquare reconhece o FSM como momento e lugar de
aproximação, pelo fortalecimento de diferentes redes. Essa nova iniciativa foi
constituída por uma diversidade de atores, que propuseram um espaço que abarcasse a
heterogeneidade, aberto especialmente àqueles que participaram nos movimentos
sociais pós-2011, uma nova geração política que não possuía um histórico de relações
com o fórum.
64 É possível constatar na retórica daqueles que gravitam ao redor do GS uma certa
constância da noção de “espaço aberto” (que, como já foi destacado, tradicionalmente
associa-se ao FSM):
GlobalSquare é uma série de encontros online e presenciais e assembleias cujos
participantes e organizadores são indivíduos ligados com o 15M, Occupy,
movimentos estudantis, YoSoy132!, Tharek, Idle No More!, VIA22, assim como a
outros movimentos. Nosso objetivo é preparar um espaço aberto para contato
presencial e intercâmbios durante o Fórum Social Mundial que ocorrerá entre 26 e
30 de março de 2013 na Tunísia, onde as chamas da intifada global soltaram suas
primeiras faíscas em janeiro de 2011 […] Reconhecendo seu valor como um tempo e
um lugar para reunir, compartilhar, fortalecer nossas redes pela troca de nossas
experiências e práticas, nós começamos um processo participativo aberto para nos
prepararmos para o Fórum. Por meio de reuniões regulares e uma lista de e-mails
inclusiva, nós desejamos criar um espaço aberto para uma variedade de iniciativas,
especialmente para os participantes dos vários movimentos que emergiram ao

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longo dos últimos dois anos (Tunísia, Egito, Senegal, Marrocos, Espanha, Chile, EUA,
Québec…). (GlobalSquare, 2012, tradução nossa).
65 Nos discursos dos diferentes atores do GlobalSquare, fica claro que a abertura de um
espaço no seio de um outro já reconhecido mundialmente representa, em seu ponto de
vista, uma possibilidade de existir publicamente, desejando compartilhar com os
participantes do FSM as experiências adquiridas, na escala local, nas praças ocupadas
(squares) (Holmes, 2013). GS propõe portanto um lugar de reconhecimento mútuo entre
aqueles que aderiram às lógicas renovadas de ocupação dos espaços:
Nesse sentido, GlobalSquare se tornou para o FSM mais do que um grupo, um
espaço […] Uma praça pública real dentro do campus. Ao mesmo tempo, nós
tínhamos um ponto de referência, onde as pessoas que queriam se envolver conosco
saberiam onde nos encontrar. (Rogers, 2013b, tradução nossa).
66 Vale notar que a utilização da ideia de espaço ganha, nesse contexto, outra conotação.
67 Evidentemente, incorrer-se-ia em imenso equívoco caso se ignorasse que a tática de
ocupação de espaços públicos não começou com os movimentos do século XXI, estando
presente, inclusive, nos movimentos indígenas e camponeses da América Latina há
muito tempo.
68 Mas tal ressalva não impede que se chame a atenção para o fato de que a associação
entre as ideias de “espaço” e “território” passa a ser significativa para esses
movimentos, especialmente como forma de resistência às várias formas de privatização
e militarização do espaço público das últimas décadas. Não implica somente a
percepção do espaço, como encontro das diferenças ou plano de articulações. Sublinha-
se, como dito anteriormente, o fato de que os movimentos da última onda possuem uma
relação crucial com a espacialidade, tanto do ponto de vista de sua formulação
discursiva, como de suas táticas de ação política. Os fenômenos Occupy e Indignad@s
aparecem em um momento no qual lugares públicos estão se tornando cada vez mais
raros e controlados, o que faz com que os lugares sejam, portanto, ao mesmo tempo “o
terreno e os desafios das políticas de contestação” (Auyero, 2005, p. 130, tradução
nossa).
 
Reforçar a cultura política participativa: um desafio metodológico

69 Desde sua criação em 2001, cada edição do FSM inova do ponto de vista da sua
metodologia, a fim de colocar em prática seu ideal de horizontalidade e de estimular a
transformação social pela base. O princípio de autogestão teve como efeito favorecer a
participação mais ativa da parte de diferentes atores presentes que têm,
progressivamente, se apropriado mais do fórum no âmbito da escolha de seus temas, da
gestão de suas oficinas e da expressão de suas conclusões por uma multiplicidade de
propostas. Por mais que um fórum possa propor temáticas “orientadoras” em
determinadas ocasiões, na medida em que as discussões ocorram em atividades auto-
organizadas, o que acaba determinando os assuntos e enfoques é a própria agenda dos
participantes.
70 Contudo, o fato de o próprio processo organizacional do FSM não ser completamente
autogestionado faz com que surjam críticas sobre o caráter democrático e transparente
de sua organização.
71 Os efeitos dessa cultura política participativa podem ser observados em vários aspectos
como, por exemplo, na mudança ocorrida na produção de diagnósticos sobre a situação

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global. Nas primeiras edições do fórum, por exemplo, eram esperadas as palestras dos
intelectuais cosmopolitas que condensariam a conjuntura global para os participantes.
A partir da proliferação das atividades auto-organizadas, é importante notar que as
análises de conjuntura, cruciais para sedimentar terrenos comuns aos processos de
resistência, não deixaram de ser feitas. Elas apenas assumiram uma dinâmica de
produção cognitiva mais coletiva e descentralizada.
72 Um outro espaço crítico que se desenvolveu de alguma maneira à margem do FSM, mas
atrelado a ele, desde suas origens, é o Acampamento Intercontinental da Juventude
(AIJ).
73 Com 2 mil pessoas na primeira edição em 2001, o acampamento cresceu rapidamente.
Durante a edição de 2005, em Porto Alegre, o acampamento, situado no coração do
lugar onde se desenrolaria o fórum, acolheu mais de 35 mil pessoas. O AIJ tem sido um
laboratório de experimentações políticas e de prática dos princípios de autogestão em
uma perspectiva de solidariedade global (Dubois; Gerin, 2010).
74 Uma reflexão mais atenta à dinâmica do acampamento como espaço de mobilização é
importante justamente pela relação de autonomia e relativa exterioridade que manteve
ao longo de sua existência. O acampamento coloca em contato dois pontos
teoricamente relevantes para a discussão: em primeiro lugar, ele reposiciona o plano
geracional como categoria política, ao problematizar o conceito de juventude e ao
recuperar a ideia de “nova geração política” e, em segundo lugar, ele faz do conceito de
espaço um elemento definidor de sua identidade como experiência política (Fischer;
Corrêa; Amaral, 2007, p. 14-15).
[…] Além de possibilitar a participação no FSM, o Acampamento cria uma dinâmica
autônoma e inicia a construção de uma identidade própria, muito vinculada ao
conceito de espaço. Nas atividades formativas, coordenadas pelo COA, a categoria
“espaço” passa a ter preferência nos debates e leituras. […] esse enfoque do espaço
foi determinante para as demais ações da gestão, como reciclagem, comercialização,
circulação, segurança etc. Os estudantes de arquitetura trouxeram uma noção de
espaço para além da ocupação, trabalharam com a idéia de espaço como conceito,
trazendo experiências de bioconstrução para as estruturas físicas do Acampamento,
pensando na dinâmica de ocupação dos espaços das barracas e espaços de
atividades, vias de circulação, infra-estrutura para alimentação, banheiros,
reciclagem de lixo, entre outras práticas.
 
Rumo à horizontalidade reivindicando o ponto de vista do indivíduo

75 É importante sublinhar que, malgrado o interesse expresso pelos organizadores do FSM


de oferecer um local para o GlobalSquare, vários daqueles que tomaram parte na
proposição da iniciativa se posicionaram de forma crítica em relação ao espaço de
acolhida. A exemplo de outros espaços já citados, como o Acampamento
Intercontinental da Juventude durante o FSM no Brasil, ou mesmo o Mumbai Resistance
na Índia, muitos dos organizadores do GS desaprovam as estruturas da sociedade civil
sobre as quais o fórum se baseia, percebendo-as como rígidas e hierárquicas, correndo o
risco de reproduzir lógicas colonialistas e capitalistas contra as quais eles deveriam
agir.
76 Antropologicamente, uma mudança conceitual parece se efetuar, através da
reivindicação do ponto de vista do indivíduo como um ator de pleno direito de uma
sociedade civil alargada (Cleaver, 1999). Como Touraine (2005) sustentou recentemente,
há um novo individualismo9 que se esboça e que permite a cada pessoa retornar a si

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mesma e descobrir-se sujeito, em busca de se constituir como ator livre por meio da luta
por seus direitos:
A organização social […] que chamamos de globalização não pode mais encontrar
em si mesma os meios de sua recuperação. É ‘de baixo’, de um chamado cada vez
mais radical e apaixonado ao indivíduo e não mais à sociedade, que nós
encontraremos a força suscetível de resistir a todas as violências. (Touraine, 2005,
p. 34, tradução nossa).
77 Desse modo, a crítica dirigida ao FSM pelos participantes do GlobalSquare deixa
transparecer uma dicotomização das perspectivas dos atores individuais perante as
instituições (geralmente chamadas “organizações”) e o desafio de coexistência colocado
para ambos, do ponto de vista de sua acomodação no interior dos espaços criados:
Um de nossos primeiros obstáculos era que, para propor atividades no fórum a
pessoa tem que ser parte de um grupo, não somente um indivíduo. Para superar
isso, aqueles envolvidos no Occupy, 15M e movimentos similares decidiram formar
um grupo chamado GlobalSquare. Não é uma organização, simplesmente um nome
para um grupo aberto, criado especificamente para nos permitir participar
plenamente no processo do FSM. (Rogers, 2013a, tradução nossa).
78 Nesse contexto de luta pelo reconhecimento do indivíduo soma-se também a questão da
exigência de horizontalidade (Sitrin, 2006, 2012) e do deslocamento para níveis
decisórios cada vez menores (o já mencionado “principio de subsidiariedade”), ideal
compartilhado pelas duas iniciativas aqui estudadas.
79 A leitura dos relatórios escritos na sequência do FSM 2013 por várias pessoas envolvidas
no GlobalSquare deixa entrever que a horizontalidade ainda representa um desafio, que
está intimamente ligado aos vários espaços de mobilização atuais.
80 Um relato que aparece com frequência nos textos analisados discorre sobre uma
iniciativa que expressa bem os argumentos apresentados. Durante o encontro do
Conselho Internacional (CI) do FSM (que ocorreu logo após o último Fórum em Túnis),
um grupo de pessoas que tinha participado do GlobalSquare realizou um gesto
simbólico eminentemente espacial (vale lembrar que não se trata de um espaço aberto
e participativo, mas apenas reservado aos membros do conselho). O grupo se lançou a
uma ação direta pela redisposição da sala onde ocorria a reunião, apostando na
influência que a organização física dos elementos em um espaço pode ter sobre as
dinâmicas relacionais em questão:
Depois de um primeiro dia de debate hierarquicamente estruturado, no final da
tarde alguns participantes do GlobalSquare […] rearranjaram as cadeiras, de um
formato de seminário, para uma disposição circular. Esse simples ato deu à reunião
do segundo dia um caráter muito mais horizontal. (Rogers, 2013b, tradução nossa).
81 Pode-se dizer que, do ponto de vista analítico, o exemplo diz mais sobre a “percepção
da horizontalidade” por parte dos ativistas do que sobre a horizontalidade em si
mesma. Contudo, esse ato simbólico revelou a presença de uma lógica hierárquica que
muitos membros do CI também abominavam. No entanto, não se pode deixar de dizer
que o desafio da horizontalidade não está resolvido também internamente no
GlobalSquare, com sua busca de consenso para a tomada de decisões (durante a
preparação e no próprio local em Túnis) e na busca por um posicionamento simbólico
comum. Essa dificuldade se traduz nas numerosas horas de encontros dedicados à
discussão sobre o procedimento, como sugere Dani Seco (2013, tradução nossa): “Nas
assembleias e oficinas, havia muita conversa sobre facilitação e questões de linguagem,
não tanto sobre conteúdo real.” Rogers (2013b, tradução nossa) vai na mesma direção:

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“De fato, nosso intercâmbio era mais sobre práticas, experiências e concretamente
organização para o FSM, do que a definição conjunta de objetivos e visões para o
futuro.”
82 Assim, se o FSM sofre críticas, o GlobalSquare também não nasceu livre de problemas e
contradições. Uma dessas contradições diz respeito ao papel ocupado pelos
“facilitadores” em um processo que se proclama radicalmente horizontal.
83 Trata-se de uma ambição de realização de política prefigurativa que eventualmente é
assumida em um exercício de autocrítica feito pelos envolvidos no GlobalSquare, que
admitem que o processo é parte integrante da ação realizada: “Nós nos reunimos
baseados nas experiências das quais somos oriundos e não onde pretendíamos chegar.
Mas isso não é uma crítica, é uma observação.” (Rogers, 2013b, tradução nossa).
84 A retórica presente nos documentos produzidos no GlobalSquare, durante e depois do
FSM 2013, deixam transparecer, de um lado, o desejo de criar coletivamente um espaço
(virtual no início, mas físico durante o FSM) aberto à pluralidade das perspectivas e
horizontal. Mas, por outro lado, observam-se práticas que se desviam da idealização
pensada para o espaço, limitado ainda pela utilização de metodologias experimentais e
pelos ambientes nos quais se opta por investir.
 
Conclusão ou “por uma epistemologia do paradoxo”
85 Um olhar antropológico sobre os processos e espaços políticos de mobilização pode
contribuir enormemente para descortinar múltiplas possibilidades de práticas
prefigurativas e, ao fazê-lo, acompanhar transformações importantes nos modos
contemporâneos de subjetivação política. Além disso, agrega novos elementos
metodológicos para o estudo da esfera global como campo de ação política.
86 No presente artigo, buscou-se identificar traços de duas iniciativas que esboçam
mudanças na forma de perceber a mobilização social.
87 Os desafios que estão colocados para o estágio coevo das articulações internacionais dos
movimentos sociais alimentam a sensação de que seguimos flutuando no que Bensaid
(2013, p. 39) caracterizou (ao falar da retórica altermundialista) como “a
indeterminação do possível”, quando “pressentimos que alguma coisa parece querer
nascer, uma coisa da qual percebemos apenas os contornos e, sobretudo, cujos meios de
atingi-la ignoramos”.
88 Não se trata, portanto, dos movimentos sociais de décadas atrás, que enxergavam os
objetivos com muita clareza e que, a partir disso, definiam seus mecanismos de ação.
Constata-se a presença de fenômenos que se identificam como espaços pela
coexistência da heterogeneidade e pela aprendizagem recíproca. A multiplicação dessas
plataformas pode contribuir para reforçar a articulação entres movimentos e
organizações que lutam contra os efeitos nefastos do capitalismo contemporâneo, na
expectativa da produção de imaginários comuns de resistência à mercantilização
generalizada dos espaços e experiências humanas.
89 A multiplicidade somada à complexidade (Morin, 1994) implica inevitavelmente alguns
paradoxos, que podem se apresentar sob a forma de dicotomias: horizontal/vertical,
heterogeneidade/unidade, espaço/ator, abertura/luta, inclusão/exclusão, que
coexistem no seio do mesmo processo. Quanto mais se aprofunda a observação e análise

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dos casos, mais fácil é perceber que se trata de tensões constitutivas do próprio FSM,
que se fazem presentes também no processo e organização do GlobalSquare.
90 Segundo Conway (2005, p. 427, tradução nossa), se o paradoxo é reconhecido, pode ser o
motor de uma utopia criativa e mobilizadora, tanto para os atores como para os
investigadores desse campo: “É este extraordinário paradoxo – que ao abraçar a
diversidade está produzindo uma ação coordenada em escala global sem precedentes –
que é a chave para o poder generativo do Fórum Social e convida a novas políticas
democráticas globais.”
91 Há, portanto, uma dimensão desse debate que não é secundária e que diz respeito aos
dilemas e desafios que se apresentam no plano da articulação internacional das lutas e
resistências. O momento demanda interlocuções e articulações políticas que não
abandonem sentidos estratégicos. Elas estão acontecendo. Mas ainda não são claros os
contornos dos espaços que serão capazes de acolher e fomentar tais articulações, o que
amplia a necessidade de pensar antropologicamente a produção do “global” como plano
de ação política coletiva.
92 Enquanto algumas categorias analíticas tradicionais perdem força, existem elementos
empíricos suficientes que evidenciam as conexões entre os diversos processos das
primaveras árabes, entre Occupy Wall Street e o 15M, entre as diversas lutas nos países
europeus, entre as organizações dos povos indígenas na América Latina, por exemplo.
Essas conexões não ocorrem somente por meio de técnicas de comunicação virtual, mas
também (algo que merece ser estudado com maior profundidade) pela mobilidade
espacial de ativistas e forte intercâmbio presencial de experiências.
93 A mudança paradigmática (sob uma lógica dos espaços) a que aspiram certos
participantes do FSM e do GS (e por extensão vários outros movimentos, como Occupy e
15M/Indignad@s) também destaca um ponto de inflexão na ambição científica:
A multiplicidade de vozes e de atores, e a diversidade de objetivos por vezes
contrastantes têm […] tornado possível uma nova epistemologia do Sul […] que pode
ser definida como um processo e evento que por sua própria pluralidade e abertura
pretende produzir formas de conhecimento que trabalham contra as monoculturas
da mente e se afastam bastante da lógica científica da modernidade ocidental […].
(Milani; Laniado, 2006, p. 20, tradução nossa).
94 Assim, a preocupação com a coerência identitária entre os atores perde força perante a
aposta em novas modalidades de produção cognitiva e afetiva, que não negam o
conflito como componente de definição da ação política. Nesse aspecto, o sentido dado
ao espaço na nova onda de mobilizações afasta-se daquilo que Habermas define como a
esfera pública burguesa e parece muito mais próximo do “espaço oposicional”
apresentado por Oskar Negt (2007, 2009) como um lugar heterogêneo de tomada de
palavra, pela aproximação de experiências singulares, de exigências não reconhecidas e
de desejos. Nos casos analisados, os espaços de mobilização operam pela tentativa de
fazer com que a diversidade e a abertura funcionem como combustível para uma
reformulação consciente e permanente das dinâmicas metodológicas que orientam a
participação dos atores políticos envolvidos.
95 A alternativa hermenêutica proposta pelo FSM sugere que “não há justiça social sem
justiça cognitiva global” (Santos, 2004, p. 13). Como diria Morin (2000, p. 94, tradução
nossa): “É importante ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do
real, saber que há um possível ainda invisível no real.” Apreender sensivelmente tais

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possibilidades e potencializar processos nos quais a pluralidade fomente alternativas


contra-hegemônicas permanece como um desafio para a política global.

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NOTAS
1. Este texto foi escrito em um programa online, por três pesquisadores em dois países diferentes:
Brasil e Canadá. Agradecemos o apoio de Matthias Braun e Charles-Antoine Guillemette para
escrever o artigo.
2. A noção de “sociedade civil”, geralmente associada às organizações não governamentais sem
fins lucrativos, encontra-se assim alargada por essas novas iniciativas que se posicionam
explicitamente como não institucionais, como afirmou Cleaver (1999).
3. Destaca-se ainda que o próprio processo de produção do artigo, realizado entre três autores,
oriundos de diferentes contextos (inclusive linguísticos) e que não negam a simultaneidade de
seu papel como pesquisadores e ativistas nesses processos, já reflete alguns dos desafios
colocados para a pesquisa-ação na atualidade.
4. Interessante notar que esta possibilidade de novas formas de elaboração colaborativa de atas
não estava colocada há algum tempo e insinua novas possibilidades para análise documental
desses espaços de mobilização.
5. A distinção Norte-Sul destaca uma dicotomia amplamente aceita (principalmente por
instituições como o Banco Mundial) entre os diferentes países do mundo: o norte global é um
termo que se refere aos países ricos e industrializados, localizados majoritariamente no
hemisfério norte, ao passo que o sul global é um termo usado atualmente em substituição ao
conceito de “Terceiro Mundo”, para designar os países em desenvolvimento localizados
principalmente no hemisfério sul (Kegley, 2009, p. 127). Ainda que seja evidente a permanência
de um profundo desequilíbrio econômico entre os países, cada vez mais os autores concordam em
afirmar que na época da mundialização, as fronteiras entre Sul e Norte tendem a se embaralhar e
que a distinção vai se tornando mais difícil de ser apreendida a partir dessas categorias de análise
(pode-se pensar em ilhas de extrema riqueza nos países do Sul coexistindo com nichos de miséria
e subdesenvolvimento nos países do norte global). Portanto, a utilização dessas expressões no
presente texto é feita com ciência dos problemas teóricos a serem enfrentados.
6. Usamos no presente artigo, em alguns momentos, a expressão “novos movimentos”, para fazer
referência aos movimentos que se expressam com maior relevância na última onda descrita no
artigo, cientes de que a adjetivação está sujeita a grandes debates.
7. Anotações pessoais das reuniões do Projeto Cartografias do Futuro, 2013.
8. No FSM 2013, a ausência de representatividade entre os participantes dos novos movimentos
acabou fortalecendo o foco na troca dos aprendizados práticos (sobre, por exemplo, ocupação dos
espaços públicos, lutas contra policiais e forças armadas, estratégias de comunicação, etc.), que
singularizam a experiência de cada ativista.
9. A propósito do tema, há uma produção sociológica considerável, que passa, por exemplo, pelo
trabalho de Anthony Giddens, Zygmunt Bauman, Richard Sennet, assim como de Christopher
Lasch, entre outros.

RESUMOS
O presente artigo propõe desenhar uma antropologia da espacialidade com um olhar crítico para
compreender a emergência de diferentes espaços globais de mobilização que se inscrevem em
uma perspectiva altermundialista. Para tanto, realiza-se inicialmente, um retrato do contexto
histórico que permitiu o surgimento desses espaços. Em seguida, são apresentadas e analisadas

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comparativamente as lógicas inerentes a cada um dos dois casos selecionados, que aparentam ser
particularmente representativos na trajetória dos espaços globais de mobilização (o Fórum Social
Mundial e o GlobalSquare). No final, busca-se trabalhar com a hipótese de uma “epistemologia do
paradoxo”, que seja capaz de reconhecer as contradições básicas próprias aos processos
estudados e que contribua para a compreensão dos processos de mobilização, ampliando seu
alcance e sua força.

This paper seeks to propose an anthropology of spatiality to understand the emergence of


different global mobilization spaces that appear into an alterglobalist perspective. First, we share
a portrait of the historical context that allowed the emergence of these spaces. Then, we present,
analyze and compare the inherent logic in each one of the two selected cases, which appear to be
particularly representative in the trajectory of global spaces of mobilization (the World Social
Forum and the GlobalSquare). In the end, we seek to work with the hypothesis of an
‘epistemology of paradox’, that would be able to recognize the basic contradictions, specific to
the studied processes and contribute to understanding the processes of mobilization, expanding
its reach and strength.

ÍNDICE
Keywords: global politics, GlobalSquare, spaces of mobilization, Word Social Forum
Palavras-chave: espaços de mobilização, Fórum Social Mundial, GlobalSquare, política global

AUTORES
GERALDO ADRIANO GODOY DE CAMPOS
Escola Superior de Propaganda e Marketing – Brasil

CARMINDA MAC LORIN


Université de Montréal – Canadá
Doutoranda em Ciências Humanas Aplicadas

RAPHAËL CANET
Université d’Ottawa – Canadá

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Babaçu livre e queijo serrano


histórias de resistência à legalização da violação a conhecimentos
tradicionais

Noemi Miyasaka Porro, Renata Menasche e Joaquim Shiraishi Neto

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 27/12/2013
 
Introdução
Essa coisa do conhecimento tradicional, né? Como é que uma coisa que é… se é
nossa, está tão assim, tão complicada de entender? A moça falou aí, ontem e hoje, de
PG, de CTA1, é a medida provisória, né? É tanta da lei, cada dia inventam uma nova,
enquanto, no fim, as empresas tão, ó… (Liderança extrativista, membro da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais,
em Seminário promovido pelos Ministérios do Meio Ambiente e do
Desenvolvimento Agrário, em Brasília, 2012).
Quem poderia contestar uma sociedade regida por uma democracia e pelo Estado de
Direito? Na verdade, seria contestar o fato de o Direito ser justo, ou de o mercado
ser eficiente […] Neste livro não nos move o desejo de argumentar contra o Estado
de Direito. [… mas] buscaremos identificar sua estreita associação com outra noção,
aquela de “pilhagem”. (Mattei; Nader, 2013, p. 16-17).
1 Neste artigo, analisaremos experiências que emergem de comunidades tradicionais 2 em
face de iniciativas de implementação de um regime global de propriedade intelectual
(Aoki, 1998; Radomsky, 2010; Shiva, 2001; Stiglitz, 2008). Enfocaremos desafios que esses
atores sociais enfrentam, no campo jurídico, na busca de direitos referentes a seus
conhecimentos tradicionais, no atual estado de direito no Brasil. As quebradeiras de
coco babaçu lutam pela “Lei do Babaçu Livre” (Shiraishi Neto, 2006), afirmando que seu
conhecimento tradicional se funda no livre acesso às palmeiras de babaçu e no trabalho
“liberto de patrão”, segundo seu modo de vida em territórios próprios. Por sua vez, os
produtores de queijo serrano lutam pela valorização e livre circulação de seu produto,

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cerceadas por legislação que não reconhece a qualidade de alimentos tradicionais


produzidos artesanalmente e inseridos em modos de vida específicos. Com relação a
ambos os casos,3 poucos debates referentes a um regime global de propriedade
intelectual tratam as ameaças ao conhecimento tradicional como percebidas e vividas
pelos grupos.4
2 Certamente, desde os debates promovidos pela Organização Mundial do Comércio
(OMC), em meados da década de 1990, no âmbito do acordo TRIPS (Trade-Related Aspects
of Intellectual Property Rights), sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao
comércio, novos atores se inseriram e outras possibilidades se abriram (Araújo, 2002;
Moreira, 2007; Yu, 2007). Não apenas nas esferas governamentais, mas também nas
empresas e instituições de pesquisa, públicas e privadas, os direitos específicos dos
chamados detentores de conhecimentos tradicionais passaram, gradativamente, a ser
objeto de atenção.
3 No âmbito acadêmico, abordagens baseadas principalmente em direitos humanos
(Gana, 1996; Yu, 2007), direitos culturais (Santilli, 2005; Moreira, 2011) e direitos
socioambientais ou ambientais (Leuzinger, 2010; Santilli, 2009) alertaram para a
especificidade de povos e comunidades tradicionais. Ainda, os riscos da
“commoditização” dos conhecimentos tradicionais (Shiraishi Neto, 2008) e a dimensão
política desses processos foram ressaltados (Almeida, 2008a). No entanto, após 20 anos,
registra-se que, na efetivação das leis, os objetivos precípuos, circunscritos à esfera
comercial, permanecem como previamente delimitados por autoridades do campo
econômico, que se impõem, definindo regramentos e titularidades para o acesso ao
conhecimento.
4 Em relação ao foco deste artigo, registra-se, ainda que ambíguo, um avanço formal no
debate sobre a possibilidade de um sistema sui generis, já mencionado no acordo TRIPS
(Muller, 2006), não referido a direitos de propriedade privada ou invenção individual,
mas que considera as especificidades do conhecimento gerado por povos e
comunidades tradicionais (CDB, 2004). Como problematizou Aoki (1998, p. 46, tradução
nossa),
existe uma necessidade paradoxal de simultaneamente colocar rédeas no impulso
maximalista das leis de propriedade intelectual dos países desenvolvidos e imaginar
formas de proteger os recursos culturais e biológicos dos países menos
desenvolvidos e em desenvolvimento. Em particular, existe uma séria questão se a
categoria “propriedade”, ou a noção historicamente contingente e individualista de
propriedade que emergiu no Ocidente, seja sequer apropriada para discutir coisas
como práticas agrícolas, genomas, plasma de sementes e narrativas orais que
“pertencem” a comunidades e não a indivíduos.
5 No contexto das discussões, a ideia de um sistema sui generis apareceu como se fosse
capaz de proteger as especificidades dessas comunidades. Na busca do desenvolvimento
sustentável, políticas e práticas referidas ao conhecimento tradicional foram
examinadas (Subramanian; Pisupati, 2010). Foram propostas estratégias e mecanismos
para garanti-las, desde protocolos comunitários (Bavikatte; Jonas; Von Braun, 2010) até
o tratamento desse conhecimento como segredo comercial (Varadarajan, 2011).
Autoridades internacionais e nacionais e atores da chamada sociedade civil globalizada
seguiram discutindo a proteção do conhecimento tradicional, mas de certa forma
visando ao fortalecimento acrítico de um estado de direito, como se este fosse imune às
desigualdades culturais, dentre outras evidenciadas em dicotomias como Norte e Sul,
desenvolvido e em desenvolvimento, global e local.5

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6 Vemos, porém, que sem a efetiva participação de povos e comunidades tradicionais no


debate público e com escassa pesquisa empírica de tradição etnográfica no debate
acadêmico, até o presente, pouco efetivamente se logrou em problematizar os dilemas e
assimetrias inerentes a esse campo. Pouco se tem refletido sobre o que, de fato, seria
esse estado de direito no Brasil, desejado como pluriétnico. E, ainda que os diversos
dispositivos incorporados venham evidenciando a necessidade de sua função, não se
tratou o direito na perspectiva de justiça. Enquanto países como Equador e Bolívia
vivem processo designado como “descolonização do direito”, 6 pode-se afirmar que o
Brasil o tem absorvido de maneira acrítica.
7 Assim, apesar de aparente progresso nas legislações nacionais, as atuais iniciativas de
regulamentação da Convenção da Diversidade Biológica, de 1992 (Brasil, 2000), cujo
artigo 8j visa à proteção do conhecimento tradicional, continuam ancoradas em noções
e instrumentos afeitos ao direito privado e em critérios vinculados ao mercado,
enfocando mais a forma que o conteúdo (Shiraishi Neto, 2008). Portanto, as
consequências dessa formalização podem antes favorecer a legitimação de pilhagem,
através de regras de mercado e fortalecimento de poderosos atores do setor privado,
em detrimento de comunidades alegadamente prioritárias para essa proteção (Moreira,
2007).7
8 No processo de incorporação das convenções e protocolos internacionais no
ordenamento jurídico nacional, os contextos e relações sociais são desconsiderados,
gerando distorções de poder, que aprofundam as diferenças ao invés de preservá-las,
como mostra o caso das quebradeiras de coco babaçu. Mas não se trata aqui apenas da
mecânica tradução e transferência de normas e códigos alheios àqueles que produzem o
conhecimento tradicional, mas da violação simbólica decorrente de universalização
arbitrária de noções de justiça e pertinência que regem essa produção.
9 Já o caso dos produtores de queijo serrano mostra que as violações não ocorrem apenas
no âmbito de processos de incorporação de convenções internacionais, mas também
são decorrentes de instâncias nacionais que, a pretexto de padronização e de
justificativas cientificistas, universalizam suas ações. Portanto, estudos etnográficos
que trazem à tona dados empíricos e conceitos próprios da antropologia apontam como
perspectiva a consideração do conhecimento tradicional como resultado e como parte
intrínseca de estratégias políticas em relações sociais antagônicas em um estado de
direito assumido como neutro e justo. Aliás, é oportuno seguir as pistas de Ranciere
(1996), que aponta que, no estado de direito, não podemos esquecer que o reino do
direito é o reino de um direito que nem sempre representa os interesses de todos os
grupos da sociedade.
10 Nos estudos de caso aqui trazidos para iluminar a reflexão, evidenciam-se os riscos da
efetivação de um regime global de propriedade intelectual fundada em noções e
instrumentos universalizantes, comumente afeitos ao direito privado, regulamentando
arbitrariamente práticas e bens associados a noções e instrumentos relativos a direitos
coletivos e difusos. A partir de duas noções elaboradas no âmbito da antropologia do
direito – harmonia coerciva (Nader, 1994) e pilhagem no estado de direito (Mattei; Nader,
2013) –, analisamos dados empíricos originados em dois estudos de caso que enfocam
conhecimentos tradicionais,8 contrastando as experiências das quebradeiras de coco
babaçu, no estado do Maranhão, e dos produtores de queijo serrano, no estado do Rio
Grande do Sul. Examinaremos as táticas9 desses grupos em situações geradas pela
efetivação de leis arbitrárias no atual estado de direito, seu rebatimento nas regras

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locais e nas resistências observadas. Em síntese, observamos que apesar de as


autoridades terem promovido a formalização das regras de acesso e apropriação do
conhecimento tradicional numa perspectiva protecionista, os grupos estudados não se
sentem contemplados, pois essas medidas tendem a comprometer sua autonomia.
 
Figura 1. A quebradeira de coco babaçu quebra o fruto da palmeira, com o macete e o machado,
para extrair as amêndoas que serão processadas para fabricação de azeite.

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Figura 2. A produtora de queijo serrano espreme a massa do queijo (acondicionada em forma de


madeira), para que o soro escorra.

11 No caso das quebradeiras de coco babaçu, discutiremos a incorporação dos artigos 8j,
10c e 10d da Convenção da Diversidade Biológica (Brasil, 2000) no ordenamento jurídico
nacional, através da medida provisória nº 2186-16/2001 (Brasil, 2001). Essa convenção
internacional visa, no contexto de uma agenda ambiental, “respeitar, preservar e
manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações
indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização
sustentável da diversidade biológica” (Brasil, 2000, p. 12).
12 No entanto, na prática de formulação do regime jurídico e da execução de políticas
globais e transnacionais relativas a esse conhecimento tradicional, essa agenda
ambiental tem se institucionalizado em forte consonância com as agendas econômico-
financeiras de agências multilaterais, como a OMC, e de atores privados com interesse
em recursos da biodiversidade, como empresas farmacêuticas e de cosméticos. Assim,
no atual estado de direito, que teoricamente deveria proteger os direitos de povos
indígenas e comunidades tradicionais, especialmente aqueles economicamente mais
fragilizados, observarmos que, na medida em que essa proteção se operacionaliza por
meio de contratos, sem tratar-se das fontes de diferenciais de poder, ocorre justamente
o contrário: a legalização do processo de pilhagem.
13 No caso dos produtores de queijo serrano, discutiremos as normas que orientam a
legislação sanitária referente a alimentos tradicionais, em geral, e a queijos produzidos
a partir de leite cru, em particular, e seus efeitos nas dimensões socioculturais da
produção e consumo alimentar. As normas que regulamentam essa produção e
circulação têm sua fundação na lei nº 1.283 de 1950, ainda em vigor, alterada pela lei
nº 7.889 de 1989, e no conjunto de decretos, portarias, resoluções e instruções
normativas que se seguiram.10 A imposição arbitrária de condutas, posturas, obras e

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equipamentos para fins de comercialização do produto, a pretexto de respeito às


normas de higiene e de segurança, viola os direitos de produção e reprodução do
conhecimento tradicional, bem como interfere nas relações tradicionalmente
instituídas. No caso, as leis, editadas sem a participação dos grupos de produtores de
alimentos tradicionais interessados, têm contribuído com a desorganização das
relações, gerando, em muitas situações, disputas e conflitos.
14 Além de coleta de dados secundários, a metodologia das pesquisas realizadas envolveu
coleta de dados qualitativos em diferentes períodos, especialmente entre 2006 e 2013,
em situações de trabalho de campo, de reuniões em grupos de enfoque e aberto, em
espaços privados e públicos, com e sem presença de autoridades, no Vale do Mearim, no
Maranhão, e nos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul. As situações sociais
apreendidas através da observação direta e participante foram registradas
fotograficamente e em forma oral, gravada e escrita.
15 A proposta deste artigo consiste em, através do contraste entre dois estudos de caso,
identificar problemas e conceitos comuns, evidenciando a diversidade de sua expressão
diante de uma regra que se impõe como se fosse de toda a sociedade brasileira e, nesse
sentido, como se fosse de todas as sociedades do mundo globalizado, homogêneas e
monolíticas, ao que Gana (1996, p. 334-335, tradução nossa) contrapõe:
Dada a história do sistema internacional de propriedade intelectual, a noção de que
tanto o pré quanto o pós-sistema multilateral TRIPS é baseado em consenso é um
mito, no que concerne os países em desenvolvimento… Dados os valores refletidos
no atual sistema de propriedade intelectual, valores que podem ser tidos como
“universais”, mesmo que claramente não o sejam, não existem garantias de que o
atual arcabouço beneficiará os países em desenvolvimento em nenhuma forma
significante.
16 Na sequência a esta introdução, o presente artigo está organizado em outras quatro
seções: a descrição dos estudos de casos, seguida de duas seções de discussão conceitual
e finalizado por considerações referentes à análise dos dois casos.
 
Estudos de caso
As quebradeiras de coco babaçu

17 Em um campesinato formado em meio a processos de escravidão, extermínio indígena e


deslocamentos forçados (Almeida; Mourão, 1976), a relação dessas comunidades
tradicionais com a natureza gerou, sobretudo, um conhecimento que possibilitou a
resistência às novas e continuadas ameaças de cativeiro ao patrão, expropriador da
terra e da força de trabalho. Desde antes do fim da escravidão formal, especialmente
com os quilombos e a reorganização de grupos remanescentes de aldeias indígenas,
núcleos autônomos foram se constituindo em interstícios menos vulneráveis aos
setores hegemônicos. Também, já na primeira metade do século passado, famílias
camponesas, impelidas – especialmente no Ceará, Piauí e Paraíba – pelas “terras de
dono”, ocuparam tradicionalmente as terras do Vale do Mearim, juntando-se a
quilombolas e outros ex-escravizados, oriundos das fazendas de algodão.
 

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Figura 3. Casa de quebradeira de coco, em rua de povoado em babaçual.

18 Nessa relação com a natureza, desde tempos coloniais, a palmeira babaçu (Attalea
speciosa), como componente de florestas primárias ombrófilas, expandiu-se em florestas
secundárias oligárquicas, que atingiram um segundo clímax, cobrindo mais de 20
milhões de hectares no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil (Anderson; May;
Balick, 1991; MIC, 1982; Peters et al., 1989). Nesse sentido, a palmeira babaçu, designada
localmente como “a mãe do povo”, tornou-se símbolo de uma tradição de lutas por
liberdade e autonomia, consolidada ao longo de gerações (Porro, 2002).
A gente vai tomando conhecimento com as palmeiras assim de pequeno, não sabe?
Eu conheço cada uma aqui, que eu vinha [para o palmeiral] de pequena com a
minha avó. (Iracema de Zezeca, povoado de Pau Santo, município de Lago do Junco,
2001)
19 No entanto, com a expansão da fronteira do capitalismo sobre essas terras
tradicionalmente ocupadas,11 novas ameaças se impuseram, requerendo outros
conhecimentos. Assim, apesar de sua relevância ecológica, econômica e social, a
palmeira babaçu encontrou-se e ainda se encontra ameaçada por um modelo de
desenvolvimento que a toma por obstáculo.
No começo, a terra era liberta, mas aí apareceu um dono, cobrando renda e
humilhando o povo. […] Quando os mandados do patrão começaram a perseguir, a
gente se botou pra brigar. Depois, não foi só pelas palmeiras, a gente brigou pela
terra também, porque o coco só não dá, tem que ter a roça, que ninguém vai viver
sem a roça. (Sebastiana Cibá, povoado de Centrinho do Acrísio, município de Lago
do Junco, 2002).
20 Homens e mulheres contam como a quebra do coco babaçu permitiu a autonomia
necessária para resistir à proibição do plantio de roças, em episódios de conflitos
agrários que tiveram início na década de 1960, seu auge nos anos 1980 e, em alguns
casos, persistem até hoje. A história do povoado de São José dos Mouras, no município
de Lima Campos, ilustra a luta dessas comunidades contra pecuaristas que tentaram
apropriar-se de terras tradicionalmente ocupadas. Os moradores relatam como as

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lideranças mais intensamente perseguidas por policiais e capangas foram forçadas a


esconder-se na mata por meses, lá permanecendo quebrando coco e caçando. Àqueles
designados pela comunidade para apoiá-los furtivamente com alguma comida,
entregavam as amêndoas, para ainda dar suporte aos familiares, que permaneciam no
povoado. E mesmo quando formalizada a desapropriação, o conflito continuou, como
narra um dos perseguidos:
Nossa terra foi liberta em 21 de maio, desapropriada, mas ainda teve mais duas
tentativas dos pistoleiros, uma foi no 20 de junho e outra no 10 de outubro, ainda
em 87, nessa época nós já estava reconstruindo o povoado, quando aconteceu a
última tentativa e eu só tinha escapado com a vida, todas as minhas coisas tinha se
acabado. (Bento da Silva, povoado de São José dos Moura, município de Lima
Campos, 2002).
21 Neste estado de direito, a liderança relatou que foi somente com o conhecimento que
tinham da terra e da mata que o povoado foi reconstruído, pois o Estado permaneceu
ausente para além da desapropriação. O conhecimento tradicional foi essencial à
reconstituição e manutenção de territórios demarcados pelo trabalho na agricultura
familiar, com a roça de arroz, mandioca, milho e feijão, combinada ao extrativismo do
babaçu. O saber fazer o leite, o óleo das amêndoas e a farinha do mesocarpo do babaçu
sustentou a comunidade nesse tempo de agruras. Incluíam-se, também, nesse
conhecimento, tecnologias sociais específicas, que emergiram desses processos de
reconstrução material e imaterial do que hoje é reconhecido como comunidade
tradicional.
22 Essas tecnologias envolvem uma diversidade de arranjos sociais em relações de
produção e circulação, elaboradas como respostas para superação aos quilombos
queimados e às aldeias destruídas. Tais arranjos referem-se às relações entre homens e
mulheres na divisão do trabalho nas diferentes etapas agrícolas, combinadas ao
calendário extrativista, assim como às relações entre membros de diferentes gerações
na participação conjunta em atividades que integram objetivos econômicos e
educativos. São, portanto, lógicas que buscam, através da divisão por gênero e
somatória por geração, característica do campesinato, consolidar a independência ao
jugo do trabalho patronal e aos circuitos do mercado dominados por seus antagonistas.
Essas tecnologias sociais combinam recursos de uso comum com diferentes formas de
posse e uso privado e coletivo, que conformam a comunidade tradicional como uma
unidade política, sem a figura de um chefe formal.
23 Nessa tradição, comum às comunidades dos babaçuais, não é o patrão que regula o
tempo e a força de trabalho das pessoas. Antes, os donos do tempo são os elementos da
natureza, relacionada ao grupo pelo trabalho: o tempo do coco, o tempo da chuva, o
tempo da lama, o tempo do arroz:
No inverno, eu fico mais em casa, porque chove quase todo dia. Nesse tempo, você
precisa ver minhas coisas, tudo tão limpinho e areado, o povo se vendo nas minhas
panelas. Mas no tempo da colheita, vou pro corte do arroz. Em maio, a gente colhe o
arroz comum, depois disso, a colheita do arroz lajeado. Começa em junho, e termina
em julho… Aí acaba a colheita do arroz e começa o feijão; quando o feijão acaba,
então eu fico um bocadinho em casa, arrumando, quando tudo está limpinho, eu
vou atrás do babaçu. Porque agosto é o tempo do babaçu, é o tempo que o coco cai,
então eu tô no coco, todo dia, todo dia. Em dezembro começa a chover, mas eu
ainda vou. Em dezembro… até fevereiro eu quebro coco. Daí, quando a lama tá
grande, tudo molhado e o mato alteia, eu fico mais em casa, até o tempo de cortar
arroz de novo. (Aparecida, 38 anos, povoado de Pacas, 2002).

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24 Nessa organização dos tempos, ritmados com a chuva que cai e o mato que alteia,
atrelados aos elementos de cada um dos espaços, seja da casa, da roça ou do palmeiral,
forja-se o conhecimento necessário à organização do trabalho, associado a relações
sociais, de gênero e entre gerações, específicas à renovação dessas comunidades
tradicionais. Apesar da coordenação masculina na roça e feminina na quebra do coco
babaçu, a comunidade tradicional expressa seu conhecimento na rejeição à figura do
patrão e atribui à natureza o comando da força de trabalho da unidade familiar de
produção.
25 Assim, o conhecimento tradicional a que nos referimos não é apenas a receita do azeite
de amêndoa ou da farinha de mesocarpo do babaçu, tampouco o conhecimento sobre a
ecologia do babaçu, como representante da biodiversidade amazônica (isolado da
ambientalmente incorreta roça de corte-e-queima). Tratamos aqui de um
conhecimento que combina todos esses elementos num amálgama de lutas por uma
tradição de liberdade, que se expressa em um processo de territorialização específico.
Esse conhecimento é de difícil compreensão por parte das autoridades públicas e das
empresas privadas, na medida em que orientam suas intervenções e ações a partir de
ganhos e perdas decorrentes dos usos da biodiversidade no mercado.
26 No entanto, a dissociação entre o conhecimento tradicional e as maneiras de fazer, criar
e viver dos grupos viola direitos coletivos das quebradeiras de coco, 12 pois para elas não
há separação entre sujeito e objeto, no caso a natureza, representada pela mãe
palmeira. Em contraposição, os operadores das políticas ambientais, condicionadas
pelas convenções e protocolos internacionais, vêm pensando e construindo a natureza
apartada do sujeito e como recurso passível de ser apropriado, através do mercado.
Desse modo, a condição de sua proteção é sua utilidade econômica, enfatizada pelo
bônus ambiental. Devido a essa compreensão, as comunidades são apresentadas ora
como sujeitos de direito (titulares de direitos e, portanto, capazes de dispor de seus
conhecimentos, através de contratos e termos de anuência), ora como objetos,
igualados à natureza e, assim, incapazes de serem sujeitos de suas propostas e ações,
inclusive de pensar as leis referentes a seus próprios conhecimentos.
27 Nesse caso das comunidades tradicionais do Vale do Mearim, essa condição utilitarista
se torna evidente no exemplo emblemático do acesso ao conhecimento tradicional
associado ao patrimônio genético do mesocarpo do babaçu por uma das maiores
empresas de cosméticos do Brasil. Em 2004, a empresa comprou uma amostra de
farinha de mesocarpo de babaçu, produzida pelas quebradeiras de coco babaçu da
Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Município de Esperantinópolis,
Maranhão (Coopaesp). Apesar de ciente das exigências da medida provisória nº 2186-16,
de 2001, somente após resultados satisfatórios em sua bioprospecção, em 2005, a
empresa voltou a contatar a cooperativa. A utilidade, e não o justo direito, é que
determinou a necessidade de regularização, uma vez que o consentimento livre prévio
e fundamentado já havia sido violado, o que, no caso da referida empresa, já se
constituía em vício.
28 Entre 2005 e 2007, a empresa e as comunidades tradicionais – representadas pela
Coopaesp e organizações parceiras, Associação em Áreas de Assentamento no Estado do
Maranhão (Assema) e Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
(MIQCB) – mantiveram negociações, para finalmente assinar um termo de anuência e
um contrato de repartição de benefícios, com o apoio de procuradores do Ministério
Público Federal. Com o valor recebido, as organizações das quebradeiras passaram a

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realizar vários pequenos projetos e seminários, objetivando espaços de discussão e


divulgação de seus direitos específicos, inclusive aqueles veiculados na medida
provisória nº 2.186-16 (Brasil, 2001). Findo o prazo do primeiro contrato, a empresa lhes
propôs um aditivo e entraram em novo processo de negociação, então fortalecidas em
seu entendimento sobre o direito devido. Porém, quando a negociação pareceu
desfavorável à empresa, o processo terminou em impasse.
29 Dessa experiência resultou um aprendizado social que envolveu muitas outras
comunidades tradicionais, universidades, órgãos governamentais e não
governamentais, organizações de base e mesmo o setor privado. Em síntese, como
principais constatações desse aprendizado coletivo, podem ser listadas as que seguem:
30 • Os debates e ações referentes à medida provisória têm girado em torno de questões
econômico-financeiras e na forma de sua aplicação, sem que o conteúdo seja discutido
segundo critérios das próprias comunidades;
• os valores da repartição de benefícios, supostamente resultantes de negociação entre
empresa e comunidades, são de fato delimitados pela margem de lucro da empresa,
definida fora do escopo do acordo entre empresa e comunidade;
• práticas tradicionais, como a participação das crianças na unidade familiar de
produção camponesa, são relegadas a uma espécie de clandestinidade, uma vez que a
produção para empresas acarreta exposição e fiscalização segundo leis trabalhistas que
regem relações de produção de tipo capitalista;
• acessado o conhecimento tradicional, que é difuso, caberia ao grupo designado como
provedor definir a pessoa jurídica a representá-lo, porém a empresa, temendo a
ampliação para outros detentores do conhecimento e revelando a fragilidade da aludida
harmonia, não admitiu esse direito;
• a assimetria de poder entre empresa e comunidade tradicional ficou evidente quando,
ao deparar-se com um impasse na negociação, a empresa alegou o “direito de a
comunidade recusar o acordo”, interrompendo unilateralmente o processo;
• contratos e termos de anuência são, por definição, instrumentos mediadores de
relações entre partes privadas que, teoricamente, seriam livres para dispor de seu bem
ou serviço no mercado e, portanto, não se adéquam à mediação em que uma parte é
sujeito de direitos coletivos e difusos.
31 Assim, apesar de satisfeitas com o processo de aprendizado possibilitado pela
experiência em que se engajaram, participantes do seminário promovido pelo MIQCB
para avaliar o processo entenderam que este serviu mais ao propósito de legalizar o
acesso indevido da empresa do que propriamente para assegurar direitos específicos
das comunidades tradicionais. Os impactos econômicos são ínfimos, se avaliados numa
perspectiva de justa e equitativa repartição, tal como definem a Convenção da
Diversidade Biológica e o Protocolo de Nagoya, e existem riscos à coesão entre as
organizações sociais que participam do movimento.
 
Os produtores de queijo serrano

32 A região dos Campos de Cima da Serra, situada no nordeste do Rio Grande do Sul, teve –
do mesmo modo que a Serra Catarinense, onde também é produzido o queijo serrano –
sua formação social associada à pecuária em sistema de campo nativo 13 e a rotas de
tropeiros.

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33 Como relata Krone (2009), ainda no século XVIII, percorrendo rotas que forneciam gado
bovino e muar à região das minas, no centro do país, e atraídos pela abundância de
gado solto – resultante de dispersão de rebanhos bovinos, ocorrida com a dissolução,
em 1640, das reduções jesuíticas, situadas no noroeste gaúcho –, tropeiros e
bandeirantes – de origem portuguesa, vindos de regiões que hoje correspondem aos
estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo – estabeleceram nos Campos de Cima da
Serra fazendas e povoados, em processo que dizimou as populações indígenas que ali
habitavam. No final do século XIX, uma nova – e minoritária – corrente migratória
traria imigrantes de origem alemã e italiana à região.
34 Também a partir do final do século XIX, dar-se-ia, em âmbito regional, o “tropeirismo
de mulas arreadas”, com tropas formadas por animais de carga, conduzidos por
tropeiros que não tinham aí sua principal atividade: da serra, tropas de mulas partiam
carregadas com charque, couro, crinas, pinhão e queijo, tendo por destino a região
catarinense conhecida como serra abaixo, de onde eram trazidos mantimentos para o
abastecimento das famílias – especialmente farinhas de mandioca e de milho, feijão,
polvilho, sal, açúcar e cachaça –, além de tecidos, ferramentas e o que mais fosse
necessário (Krone, 2009; Menasche; Krone, 2012).
O que eu tenho de lembrança, das conversas que a gente tinha, do meu pai, minha
mãe, que hoje já são mortos… tanto por parte da minha mãe como do meu pai, eles
sempre fizeram o nosso queijo serrano. Naquela época, era muito mais difícil o
comércio. Porque na nossa região, basicamente ia no lombo de cavalo, da mula. E
naquele tempo eles levavam toda a produção que eles faziam para serra abaixo,
como era conhecido, e nós Campos de Cima da Serra, os serranos. A minha geração
é portuguesa, mas que eu tenho recordação foi dos meus avós, mas com certeza
meus bisavós também fizeram. […] E também pra aproveitar as tropas de mulas que
desciam pra serra abaixo, levavam queijo e traziam de lá a mercadoria. Naquele
tempo não era que nem hoje, fracionado em cinco quilos. Era em sacos de 60 quilos.
Se dizia a “partida de queijo”. Com a partida de queijo se trazia o rancho. (Sérgio,
Bom Jesus, 2006).
A gente sempre levava queijo, charque, pinhão, pra vender na serra abaixo. Trocava
pelas outras coisas que não tinha aqui: arroz, farinha de mandioca, açúcar amarelo,
essas coisas, polvilho, cachaça, essas coisas assim. […] Eu tropeei até [19]62, por ali
assim, foram as últimas viagens que eu fiz lá pra serra abaixo, vendendo coisa,
trazendo coisa. Porque não tinha essas bodegas. Então terminava a comida, a gente
descia serra abaixo pra buscar. […] O principal era o açúcar amarelo, arroz, farinha
de mandioca, polvilho e cachaça, era essas coisas. Uma viagem dessas, levava até 15
dias, pra ir e voltar. (Manoel Gaspar, produtor de queijo serrano e ex-tropeiro, Bom
Jesus, 2006).
35 Historicamente, a economia regional é fundada na pecuária de corte extensiva, daí o
queijo serrano ter se constituído como atividade complementar à produção de carne,
decorrente de práticas de manejo de gado rústico, raças de corte. Nas fazendas, o
queijo, em muitos casos, era (e é) produzido por agregados – comumente, pelas
mulheres das famílias agregadas –, sendo a renda advinda de sua comercialização
componente de sua remuneração. Nas propriedades menores, em que o trabalho é mais
comumente realizado por família proprietária, são também geralmente as mulheres
que fazem o queijo. Como no tempo das tropas, essa renda permanece associada ao
abastecimento alimentar das famílias produtoras.
36 A singularidade do produto é decorrente da combinação, no território, de
características edafoclimáticas, práticas de manejo e conhecimento tradicional
específicos.14 A circulação do queijo, alimento simbolicamente valorizado na região,

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presente nas mesas, em pratos e quitutes, nas diferentes refeições, está associada a
formas de sociabilidade locais: o queijo serrano é dádiva, entre vizinhos e parentes. Sua
produção e consumo são parte dos modos de criar, de fazer e de viver, constituintes da
identidade dos produtores.
No levantar, ele [o marido] já sai pra pegar as vacas. Elas estão assim na frente, põe
pra mangueira. Eu fico lá em casa, preparo café. Já no dia antes, eu já deixo
arrumado a vasilha do leite. Antigamente era com barril, hoje em dia já é mais
difícil aquele barril de madeira, então eu uso o tarro de plástico. Tiro o leite, ponho
o pano pra coar o leite. E assim, lá pelas 8h30, a gente terminou a ordenha. Aí ele
fica limpando o galpão, as mangueiras. Em média, a gente tira [leite] de umas
dezoito [vacas]. Mais ou menos de 65 a 70 litros de leite. É muito trabalho. (Regina,
Bom Jesus, 2006).
37 No trecho de depoimento acima reproduzido, há indícios que permitem delinear o
quadro particular em que produto tradicional e modo de vida estão articulados. Com
relação ao montante de leite produzido, temos que a média inferior a quatro litros
diários por vaca é decorrente do emprego de raças rústicas, de gado de corte, não
especializadas na produção leiteira, características da pecuária tradicionalmente
realizada nos Campos de Cima da Serra. O volume de leite produzido na propriedade de
Regina indica que diariamente são fabricados entre seis e sete quilos de queijo, o que
não é pouco se comparado com o que costumam produzir outras famílias visitadas.
38 A fala da interlocutora permite ainda notar que a rotina de produção de queijo é dada a
partir de uma divisão sexual do trabalho que, em linhas gerais, reserva às mulheres as
tarefas mais diretamente relacionadas ao fabrico do queijo e marca o cotidiano dos
homens com aquelas identificadas com a lida campeira, associada a um ethos em nada
compatível com a intensificação dessa produção. Assim é que, como indicou Krone
(2009), nos casos em que, naquele contexto, ocorre a incorporação de raças leiteiras
especializadas, que já não se alimentam quase que exclusivamente de pastagens
nativas, resultando em maiores produção e produtividade e alterando técnicas,
utensílios e procedimentos – vale menção ao fato de o leite daí resultante já não
apresentar o antes característico elevado teor de gordura, sendo por isso classificado
como fraco, e a necessidade de realização de ordenha não mais apenas uma vez ao dia,
mas duas –, os produtores de queijo já não são considerados tradicionais, assim como o
queijo daí resultante já não é tido como verdadeiro queijo serrano.
39 No trecho de depoimento anteriormente reproduzido, há ainda referência à
substituição do barril de madeira por recipiente de plástico, no caso empregado para
colocar o leite a coalhar – vale mencionar que, depois de coado, é acrescido coalho ao
leite, que é então colocado a coalhar, para, na sequência, realizar-se a separação entre
massa e soro e a prensagem da massa, colocada em formas, tudo realizado
manualmente. Nos últimos anos, a substituição de utensílios de madeira por outros
materiais tem se intensificado, seja por restrições à madeira constantes na legislação
sanitária, seja por dificuldade em encontrar novos utensílios em madeira para repor os
antigos ou, ainda, por facilidades encontradas na limpeza de outros materiais. Mas,
como mostrou Meneses (2006, p. 78 apud Santos; Menasche, 2013), em estudo sobre o
Queijo Minas Artesanal, os saberes relativos ao fazer o queijo não se dissociam da
“materialidade da casa, da propriedade, dos insumos da produção, das outras técnicas
rurais, da cozinha e da culinária, dos valores de compadrio, de tolerância, de
vizinhança”.

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É a forma de madeira. A mesa, a queijeira, é de madeira. […] Eu tenho um cincho lá


de inox e um outro… que é de plástico. Ele [o queijo] muda, se nota, dá diferença.
Mesmo fazendo do mesmo jeitinho. Quando furou o meu barril de madeira
[recipiente em que o leite era colocado para coalhar], eu tive que pôr no de plástico.
Eu tive que pôr um abrigo [em torno do recipiente de plástico, é colocado um pano
grosso e quente, para manter a temperatura do leite], porque ele [o leite] esfria. E
com o outro, de madeira, conservava, ele não esfriava. (Regina, Bom Jesus, 2006).
40 Assim, tal como em estudo em que são revelados significados associados às práticas e
utensílios empregados na produção tradicional de farinha de mandioca realizada no
município de Cruzeiro do Sul e região, no Acre (Velthem; Katz, 2012, p. 438), temos que,
na produção de queijo serrano, a prática possui componentes técnicos e simbólicos,
enraizados na formação social de uma região, bem como na sociabilidade no interior da
qual circulam bens e conhecimentos. Desse modo, podemos afirmar, o não
reconhecimento efetivo dessas relações, tecidas ao longo dos tempos, fere os direitos
culturais assegurados na Constituição e compromete a reprodução física e social do
grupo.
 
Figura 4. Vista de ambiente em que se realiza a produção de queijo serrano.

41 Cabe comentar que, nos últimos anos, a paisagem dos Campos de Cima da Serra tem
sido intensamente modificada. Amplas extensões de terra, antes ocupadas por campos
nativos, têm sido transformadas por, entre outros, plantações de batata e projetos de
florestamento. Tais inversões em aquisição ou arrendamento de terras têm pressionado
os preços no mercado de terras local, provocando sua elevação e, com isso, tensionando
os produtores no sentido da migração para atividades de maior rentabilidade que a
pecuária extensiva, base do fabrico do queijo tradicional. Mas não é essa a única ou
principal dificuldade com que se deparam os produtores de queijo serrano.
42 Costumeiramente, produtores e consumidores locais consideram o bom queijo serrano
pronto para o consumo quando está amarelinho, o que se dá entre 15 e 20 dias de
maturação (Cruz, 2012).

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Cada pessoa tem o seu paladar. Tem pessoas que gostam dele bem curado, como se
diz. O bem curado é de 15, 20 dias. Mas já tem pessoas que preferem ele mais
verdinho, mais tenro. Então isso depende de cada gosto. (Sérgio, Bom Jesus, 2006).
43 Como dito por Sérgio, o queijo maturado por 20 dias é considerado bem curado.
Contudo, a legislação brasileira restringe a comercialização de queijos produzidos à
base de leite cru (não pasteurizados) antes de 60 dias de maturação. Esse critério foi
definido na metade do século XX, nos Estados Unidos, e adotado por inúmeros países,
entre os quais o Brasil.15 Mas, como evidenciado por Cruz e Menasche (2011), tal critério
é marcado pela arbitrariedade, uma vez que não encontra fundamentação técnico-
científica suficiente.
44 Desse constrangimento legal – a que se somam regulamentos sanitários sobre-
estimados para a realidade e escala de produção dos queijos artesanais –, resulta que a
comercialização desse produto tradicional é deslocada para a informalidade e seus
produtores ao permanente risco de apreensão de seus queijos.
O negócio do nosso queijo aqui, que o queijo serrano faz muito anos que é lidado… O
pessoal fazia esse queijo, quando eu nasci já lidavam com o queijo. E agora tá tão
proibido esse queijo, que proíbe e coisa e tal… diz que tem bactéria, não sei o que
tem. Mas se tinha bactéria, já tinha morrido, essa gente não se criava. Meu pai
morreu com 84 anos e comendo queijo, velho assim. (Manoel Gaspar, Bom Jesus,
2006).
45 As concepções que orientam as instituições, profissionais e regulamentações vigentes
pertinentes à produção e comercialização de alimentos no Brasil guiam-se pela ideia –
consolidada a partir da realidade e escala de produção de indústrias agroalimentares de
grande porte e absolutamente inadequada à escala artesanal de produção de alimentos
tradicionais – de que a qualidade dos produtos é decorrente de características
higiênico-sanitárias de utensílios, equipamentos e instalações, sendo condicionada
pelas matérias-primas em que são confeccionados e suas dimensões (Santos; Cruz;
Menasche, 2012).
46 Essa visão, imposta pela legislação sanitária e processos de inspeção, mas também
presente, em boa medida, em iniciativas que – a exemplo das indicações geográficas
(IGs)16 – propõem a valorização de produtos artesanais, não apenas age no sentido de
sua padronização – o que por si só afronta a diversidade inerente à artesanalidade –,
mas ainda exige, para sua viabilização financeira, dada a elevação de custos, aumento
da escala de produção.
47 Assim, muitas das mudanças em curso podem ser adotadas não por desejo dos
produtores, mas por processos externos a suas lógicas e vontades. Daí, em algumas
situações, as tradicionais raças rústicas, de corte, passarem a ser misturadas com – ou
mesmo substituídas por – raças especializadas na produção leiteira; no que diz respeito
às instalações, equipamentos e utensílios, a madeira ceder lugar a azulejos, inox e
plástico; e, no que se refere às técnicas, serem também transformadas, a exemplo do
que ocorre com a adesão à ordenhadeira, empregada para processar o maior volume de
leite que passa a ser produzido.
48 Todas essas mudanças não podem ser entendidas como acessórias, se, tal qual nas casas
de farinha em que é produzida, no Acre, a reputada farinha especial de Cruzeiro do Sul,
também nas casas de queijo dos Campos de Cima da Serra for observada a agência dos
objetos.
Os artefatos compreendem seres providos de ação, robustos e eficazes, que
complementam a ação dos corpos humanos […] Os artefatos espelham o referencial

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humano, porque são compreendidos, eles também, como entidades sociais que se
organizam nas casas de farinha. (Velthem, 2007, p. 625-626).
49 Mas tampouco os produtores – os de farinha, de Cruzeiro do Sul, ou os de queijo serrano
ou os de tantos outros alimentos tradicionais – mostram-se passivos diante da difusão
das ditas “boas práticas de fabricação”. Suas táticas (Certeau, 2002), associadas ao
conhecimento tradicional, conduzem-nos a apreciar ou adaptar-se a algumas dessas
inovações, transformar outras, de modo a tornarem-se mais funcionais, e simplesmente
ignorar as que consideram desnecessárias ou prejudiciais (Velthem, 2007, p. 617).
50 Nesse contexto é que podemos entender a manifestação do antigo tropeiro, produtor
tradicional de queijo serrano:
O que mais agrada da vida aqui fora é que eu sou livre. Se eu quiser trabalhar mais
cedo, mais tarde, ou se eu não quiser trabalhar, eu sou dono, sou patrão. Aí eu tenho
mais liberdade. Isso faz diferença para não mudar o sistema, em ter o gado de corte,
tirar o leite do gado de corte. Porque vaca de leite, tem que tirar o leite todos dias,
de manhã e de tarde. Aí tem o rodeio, tem a lida campeira, e aí não posso ir.
Trabalhar com o gado de corte me influi mais, porque eu acho que tirar leite duas
vezes por dia é uma prisão. Essa vaca [leiteira]… eu sempre disse, sempre disse e
continuo dizendo, não me serve esse gado para mim, porque se eu quiser sair na
minha festa, ou agora, como eu precisei sair, eu solto os terneiros, não estou
preocupado. (Manoel Gaspar, Bom Jesus, 2006).
51 Assim como afirmam interlocutores do Vale do Mearim, também nos Campos de Cima
da Serra o conhecimento se realiza na tradição da liberdade e autonomia, na aversão ao
cativeiro do patrão e no ideal do “ser dono de si mesmo”. Portanto, esses modos de vida
tradicionais asseguram a indivisibilidade entre o conhecimento tradicional e as
maneiras de fazer, de criar e de viver, já garantidas na Constituição desde 1988.
52 Porém, se a Magna Carta assim já lhes garante, como essas comunidades tradicionais
percebem-se ameaçadas pela arbitrariedade de leis menores? 17
 
A harmonia coerciva de leis arbitrárias
53 O extermínio de povos indígenas, no Maranhão ou no Rio Grande do Sul, e as violências
sancionadas contra quilombolas em todo Brasil pertencem formalmente a um Estado
pretérito. No entanto, como vimos nas seções anteriores, graves violações materiais e
simbólicas continuam presentes no atual estado de direito. O conceito de harmonia
coerciva, proposto por Nader (1994), auxilia na explicação dessa contradição, uma vez
que as atuais relações com autoridades oficiais e entre pecuaristas e agregados nos
Campos de Cima da Serra, e entre empresários e extrativistas no Vale do Mearim,
aparecem hoje como que apaziguadas pela efetivação da lei, que se apresenta como se
fosse de todos. Os problemas decorrentes dessa universalização sinalizam os interesses
da própria lei.
54 Fora de espaços politizados de debates, entrevistados do Vale do Mearim afirmaram
que “agora tem lei”, para explicar a aparente harmonia que se depreende dessas
situações sociais plenas de antagonismos; ou “agora a gente tem direito”, referindo-se à
manifesta atenção pública que a tradição, o exótico e a afinidade com a natureza têm
despertado. Porém, apesar do reconhecimento da existência dessas leis e direitos
emanados das leis, voltam-se a práticas que se referem a direitos emanados de suas
próprias regras locais, necessárias a seu modo de vida, que, por não se encaixarem nas
leis, são reputadas pelas autoridades como clandestinas. Assim, mesmo nessa harmonia,

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faz-se necessário investigar essas práticas locais, que revelam a coerção da efetivação
de leis arbitrárias.
55 Quer seja pelo apelo ambiental que o babaçu possa trazer ao comércio de produtos
associados à biodiversidade, quer seja pela resposta à ansiedade urbana contemporânea
diante da comida que, tal qual o queijo serrano, alimentos artesanais tradicionais
representam, a utilidade justifica a harmonia coerciva da relação com as autoridades no
campo econômico, conjugada à ausência de confrontos por parte das comunidades.
56 De fato, os termos parceria, colaboração e soluções, em que todos aparentemente saem
ganhando (win-win solution), foram frequentemente usados durante o processo de
negociação entre a empresa e as quebradeiras. No acordo proposto, supunha-se que a
comunidade ganharia e a empresa também ganharia. Se, por um lado, a empresa
buscava a harmonia, ciente da violação cometida contra o consentimento livre prévio e
fundamentado, também a comunidade buscava uma relação comercial sem fricções e
interferências. Porém, antes mesmo de se chegar ao impasse, a coerção velada emergia
em eventos de dissenso, alcançando resultados diversos do que ambas as partes
esperavam.
57 Da mesma maneira, no caso dos constrangimentos à livre circulação comercial do
queijo serrano, as capacitações, treinamentos e mesmo instruções normativas
aparentemente favoráveis aos produtores emanam a ideologia do não confronto, da
busca de soluções harmoniosas. Porém, a cada etapa das negociações e em cada novo
instrumento resultante do diálogo, o disciplinamento e o controle externo mantêm a
coerção atualizada.
58 Na pesquisa comparativa de Nader (1991), a ideologia da harmonia emerge como parte
intrínseca de um processo civilizatório, exemplificado com o caso dos zapotecas, do
México, sob o controle hegemônico da colonização política europeia e da evangelização
cristã. Em estudo de caso sobre os Estados Unidos, a autora (Nader, 1989, 1994) mostra
que, nos anos 1960, em termos de mecanismos, os processos judiciais, que dissecavam o
antagonismo entre as partes, buscavam nas cortes o local para a realização da justiça. Já
na década de 1970 e 1980, inclusive como forma de lidar com o protagonismo dos
movimentos sociais (negro, feminista) por direitos civis, registra-se o redirecionamento
a modelos jurídicos que objetivam a minimização dos conflitos entre pleiteantes, com
vistas à negociação e busca de acordo ou consenso, em meio a processos designados
como de colaboração e cooperação. Na década de 1990, Nader (1995) mostra que esse
modelo jurídico, que objetiva a harmonia, foi exportado dos Estados Unidos para a
arena internacional, em conexão com os objetivos do desenvolvimento. Assim, os
tribunais, que eram tidos como símbolos da evolução civilizatória, são substituídos por
espaços de diálogo e negociação ou mesas de conciliação, assessorados por especialistas
em resolução ou “manejo de conflitos”, fornecidos pelo setor privado, com apoio do
poder público.
Nesse modelo, os pleiteantes civis acabam tornando-se “pacientes” que necessitam
de tratamento – um projeto de pacificação. Quando as massas são vistas como
“pacientes” que precisam de ajuda, a política pública é inventada para o bem do
“paciente”. (Nader, 1994, p. 6).
59 E é exatamente neste período que o TRIPS, sob a bandeira de livre comércio, passa a
expandir seu modelo de proteção à propriedade intelectual. No entanto, regras que
alegadamente deveriam encorajar e proteger a expressão criativa e a inovação
científica passam a disciplinar, coagir e submeter os países do Terceiro Mundo a

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autorizações (Aoki, 1998, p. 20). O produtor pleiteante tem, assim, seu produto
diagnosticado, isolado, pasteurizado e centralizado. E a política pública busca, através
de formas harmônicas, o tratamento do paciente, anti-higiênico, sem jamais
efetivamente considerar que o conhecimento que tem possa ser valioso, a menos que
validado pelo mercado.
60 Nesse sentido, a retórica da justiça é gradativamente substituída pela da harmonia.
Contudo, como afirma Nader (1994, p. 12), “a harmonia coerciva das três últimas
décadas foi uma forma de controle poderoso, exatamente devido à aceitação geral da
harmonia como benigna”. A autora mostra que, historicamente, a determinação de
formas de resolução de disputas harmoniosas é, sobretudo, resultado de conciliações
compulsórias e coercivas, quando há desequilíbrios de poder entre as partes, como
observamos nos casos por nós estudados.
61 Em negociações entre comunidades tradicionais e empresas, os desequilíbrios não se
referem apenas ao poder econômico, mas também ao poder de tomada de decisão sobre
bens coletivos fundamentais, como o conhecimento tradicional. E, nessa situação, o
agravante da ausência do Estado no assegurar justiça, mas sua excessiva presença no
regramento e inspeção, fragiliza ainda mais o direito das comunidades. Assim, na
implementação da lei, quer seja a medida provisória nº 2186-16/2001, quer seja a
legislação que normatiza a produção e circulação dos queijos elaborados a partir de
leite cru, observa-se insidiosa coerção para que os conhecimentos tradicionais sejam
disponibilizados em um mercado em que os grupos não têm livre circulação e o
controle é exercido por agentes alheios aos contextos em que são gerados.
62 Segundo Nader (1994), a ideologia da harmonia está presente tanto em modelos
jurídicos que servem a intuitos de pacificação dos diferentes, pela autoridade, como
também é adotada pelos próprios grupos subordinados, para evitar maiores intrusões
em seu espaço social. A autora caracteriza tal adoção como iniciativa contra-
hegemônica, rejeitando atribuí-la a algo como uma falsa consciência. Podemos ainda
trazer a reflexão de Certeau (2002) para ilustrar essa perspectiva. Ao comentar como,
ante a lei imposta por colonizadores espanhóis, os indígenas “as subverteram, não
rejeitando-as diretamente ou modificando-as, mas pela sua maneira de usá-las para fins
e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podiam fugir” (Certeau,
2002, p. 39), o autor mostra que, no processo, o resultado certamente não foi o que o
colonizador pretendia com a efetivação da lei. Acrescentamos, porém, que tampouco foi
o que seria sem ela.
63 Portanto, identificar e reconhecer as referências estranhas ao sistema seria passo
fundamental no exame da harmonia coerciva. Com a efetivação da lei, a autoridade
busca uma aparentemente harmoniosa e protetora aproximação ao conhecimento
tradicional. Porém, a coerção de sua arbitrariedade rouba dos grupos a autonomia que
sustenta esse conhecimento como referência estranha ao sistema. A harmonia coerciva
tende a destituir a fala dos sujeitos e, pela ausência do conflito, subtrair as relações
políticas com potencial de constituição de direitos almejados. Assim, como alertam os
autores referidos, tanto quanto o conflito precisa ser alvo de estudo, a harmonia
também deve ser escrutinada, pois, na ausência de conflito, pode-se identificar a
coerção que a sustenta, com relevantes implicações no atual estado de direito.
 

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Pilhagem: quando a força da lei é ilegal


64 Muito da harmonia coerciva que se pode observar na implementação da lei é
possibilitada pela prevalência, no senso comum, da ideia de que vivemos em um estado
de direito neutro e justo, cujas regras submetem e protegem a todos igualmente. De
acordo com o lendário constitucionalista Albert V. Dicey, contrapondo-se ao
autoritarismo francês, fundado no direito administrativo, a noção de estado de direito
pode ser considerada expressão definidora da civilização liberal-constitucional inglesa
(Mattei; Nader, 2013, p. 16). Historicamente, a ideia de força da lei emergiu para
contrapor-se à injusta e à absoluta força do monarca: assim surge o estado de direito, em
que a lei – e não o homem – governa soberana, igual para todos. Atualmente, o estado
de direito é um ideal intrinsecamente associado à democracia, tornando-se um
consenso sagrado, globalmente inquestionável (Mattei; Nader, 2013).
65 Os autores questionam essa sacralidade, problematizando sua inextricabilidade com a
democracia e identificando sua associação ao que caracterizam por pilhagem, entendida
como injusta realocação de recursos, realizada por meio de fraude ou força (inclusive a
força da lei) e à custa da parte fragilizada. Em sua análise, o estado de direito existe
onde as instituições, mesmo contra governos, protegem os direitos de propriedade
privada e garantem as obrigações contratuais, constituindo-se, portanto, na “espinha
dorsal institucional da economia de mercado ideal” (Mattei; Nader, 2013, p. 23). Nesse
sentido, os autores explicam que a ausência ou a fragilidade do estado de direito em
países devedores justificou pesados ajustes estruturais para adequação ao mercado,
exigidos pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Igualmente, essa mesma
ausência foi – e tem sido – justificativa para intervenções militares.
66 Contrariando o entendimento hegemônico e tácito sobre os aspectos positivos do
estado de direito, Mattei e Nader (2013) empreendem uma revisão histórica e
comparativa, identificando-o como elemento justificador para a continuidade entre o
colonialismo e a dominação corporativa internacional, que têm na pilhagem o
denominador comum. Mas qual seria a conexão entre o atual estado de direito
brasileiro e a efetivação de um regime global de propriedade intelectual, que afetaria o
conhecimento tradicional de povos e comunidades tradicionais? Quem, afinal, tem se
beneficiado dessa regulamentação?
A propriedade intelectual, do modo como se encontra arraigada em uma concepção
de direito de propriedade essencialmente ocidental, é incompatível com as
modalidades de propriedade existentes e com os valores comunitários
fundamentais de muitas sociedades. (Mattei; Nader, 2013, p. 146).
67 As formas e processos desenvolvidos na efetivação da lei que deveria proteger o
conhecimento tradicional não lograram diferenciar-se dessa concepção de direito de
propriedade intelectual, permanecendo incompatíveis com as aspirações das
comunidades tradicionais. As experiências empiricamente observadas têm
demonstrado que a regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional das
comunidades, a pretexto de proteção, tem servido mais às empresas e indústrias, já que
podem acessá-los com a devida segurança jurídica, fornecida pela implementação da
lei. Assinados os termos e contratos, cujas implicações poucas comunidades têm
efetivamente discutido, já não existem quaisquer entraves ou constrangimentos no
atual estado de direito.
 

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Considerações finais
68 A principal bandeira de luta das quebradeiras de coco babaçu, desde a década de 1980, é
a Lei do Babaçu Livre, em contraposição ao que designam como situação de “coco
preso”, cercado pelo arame farpado do patrão pecuarista. Hoje, os produtores serranos
veem seu “queijo preso” pela implementação de obsoleta legislação, que circunscreve
arbitrariamente as condições de sua produção e circulação. Em ambos os casos, estão
em marcha processos de pacificação através de harmoniosa coerção, na qual a pilhagem
ocorre sob os auspícios do estado de direito. Em ambos os casos, observamos iniciativas
anti-hegemônicas e de contestação ao disciplinamento por parte das comunidades
tradicionais. São histórias de resistência à legalização das violações aos conhecimentos
tradicionais. Em trajetórias em busca da autonomia em espaços geográficos e sociais
historicamente marginalizados, vemos a consolidação da coesão identitária em torno de
seu conhecimento tradicional imbricados em modos de vida específicos.
69 E é nesse sentido que se demanda a aplicação integral e imediata da Convenção OIT 169
e a efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988, para que se
garantam esses modos de vida de forma integral. Hodiernamente, as reflexões sobre a
necessidade de regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional somente têm
sentido para os grupos uma vez garantidos os modos de vida, e especialmente o acesso e
uso de seus territórios, que, nos casos em estudo, incluem as áreas de ocorrência das
palmeiras de babaçu e as de pastagem nativa dos Campos de Cima da Serra. De outra
maneira, não existiria razão para a implantação da Convenção da Diversidade Biológica
e do Protocolo de Nagoya, já que o direito ao território e ao modo de vida são condições
fundamentais para que o conhecimento tradicional seja produzido e reproduzido
segundo percepções de mundo próprias.
70 Vale ter presente o alerta de Aoki (1998, p. 46, tradução nossa), que aponta que
se nós formos incapazes de reconhecer a existência de diferentes percepções de
mundo e concepções da relação entre seres humanos e o mundo natural em nossas
leis de propriedade intelectual, então, desafortunadamente, poderá ser tarde para a
biodiversidade e a esperança de um mundo genuinamente multicultural.
71 Assim como tantos outros, os modos de vida aqui evidenciados foram historicamente
constituídos, sustentados por conhecimento fundado na tradição de liberdade, a
despeito da economia política de um estado de direito que não contempla suas
especificidades. Nesse quadro, a efetivação de um regime global de propriedade
intelectual, de caráter universalizante, fundado no direito privado definido por
critérios da economia política de mercado, apenas legalizará a pilhagem. E como vimos,
a pilhagem não envolve apenas o acesso à receita da farinha do mesocarpo de babaçu
ou o confinamento do queijo serrano à clandestinidade, mas saqueia a liberdade de
imaginar e viver o mundo de outras formas.

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206

Constituição, os arts. 1o, 8o, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre
Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao
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NOTAS
1. As siglas PG e CTA – que significam, respectivamente, patrimônio genético e conhecimento
tradicional associado – têm sido incorporadas aos discursos de atores sociais envolvidos em
processos de anuência ao acesso a conhecimento tradicional. Simbolicamente, expressam a
distinção entre o “conhecimento” que está na lei e o conhecimento tradicionalmente vivido pelas
comunidades.
2. Assumiremos, neste artigo, povos e comunidades tradicionais como “grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição” (Brasil, 2007, art. 3, inc. I).
3. E muitos outros casos poderiam ser lembrados, a exemplo de recente episódio ocorrido na
Colômbia, em que camponeses foram impedidos, por lei, de cultivar as sementes reproduzidas
tradicionalmente através de gerações e cuja circulação é constitutiva de suas redes de
sociabilidade. No contexto do Tratado de Livre Comércio com os EUA, a lei visa assegurar o
acordo TRIPS e obriga o uso de sementes certificadas, colocando os camponeses em situação de
conflito com o Estado (ver: www.youtube.com/watch?v=kZWAqS-El_g#t=1028).
4. A título de exemplo, ver o caso do povo san e seu conhecimento sobre a suculenta hoodia,
narrado por seu advogado, Roger Chennells (2007).
5. Para uma análise crítica dessas dicotomias em uma perspectiva do desenvolvimento
econômico, ver Ruth L. Gana (1996).

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6. A propósito das transformações envolvendo esses países, ver Boventura de Souza Santos
(2010).
7. A medida provisória nº 2186-16, de 23 de agosto de 2001 (Brasil, 2001), regulamentou o acesso
ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. O instrumento utilizado para
viabilizar o acesso é o contrato, uma categoria central do direito privado, pois viabiliza as trocas
mercantis, sem ater-se aos contextos ou às diferenças sociais. O contrato parte das seguintes
premissas: autonomia da vontade e igualdade entre as partes, isto é, cada parte é livre para
dispor do bem ou serviço objeto do contrato e as partes têm igual poder ao contratarem. Essas
premissas não ocorrem efetivamente nos processos de anuência ao acesso a conhecimento
tradicional associado ao patrimônio genético.
8. A noção de conhecimento tradicional é aqui compreendida de forma abrangente, na medida
em que se relaciona com as maneiras de fazer, criar e viver de grupos sociais identificados como
povos e comunidades tradicionais, diferentemente da legislação, que, de forma arbitrária,
distingue e separa patrimônio cultural, patrimônio genético e conhecimento tradicional. A
classificação arbitrária utilizada pelo direito está, pelo visto, relacionada às necessidades do
mercado.
9. No sentido proposto por Certeau (2002, p. 46-47), para quem as táticas são associadas a
performances operacionais que dependem de saberes muito antigos, acionados pelos fracos, que,
ao jogarem com os acontecimentos, buscam tirar partido de forças que lhes são estranhas.
10. Ver Brasil (1950, 1989). Para um panorama da trajetória legislativa no tema, incluindo as
recentes instruções normativas nº 57/2011 e nº 30/2013, ver Ferreira (2013) e Cruz e Santos
(2013).
11. Sobre terras tradicionalmente ocupadas no Brasil, ver Alfredo Wagner Berno de Almeida
(2008b).
12. Para conhecer um pouco mais dos modos de viver e trabalhar das quebradeiras de coco
babaçu, recomendamos o vídeo que pode ser acessado aqui: http://www.slowfoodbrasil.com/
videos/662-video-quebradeiras-de-coco-babacu.
13. São campos de altitude, dada a ocorrência de altitudes superiores a mil metros acima do nível
do mar. Nessa região, os invernos são rigorosos, com temperatura média em torno de 10 ºC, sendo
frequentes temperaturas próximas e abaixo de 0 ºC.
14. Para saber mais a respeito, ver Krone (2009) e Cruz (2012).
15. Ver legislação pertinente no site do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Brasil, 2003). Vale mencionar que, ainda que a instrução normativa nº 57, de 2011, bem como a
instrução normativa nº 30, de 2013, flexibilizem a interdição à comercialização de queijos feitos
de leite cru antes de 60 dias de maturação, são tantas as exigências estabelecidas que, de fato,
essa comercialização é impedida. Para mais detalhes, consultar Cruz e Santos (2013).
16. Instrumento que destaca as qualidades de um produto associadas a um território, atribuindo
singularidade a partir da combinação de características socioculturais e ambientais específicas, as
IGs constituem-se, no Brasil, enquanto modalidade de propriedade industrial (daí seu registro ser
da competência do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – Inpi). Ainda, segundo o artigo
176 da lei nº 9.279/96 (Brasil, 1996), as IGs podem apresentar-se de duas formas: indicação de
procedência (IP) ou denominação de origem (DO).
17. No campo da legalidade, vale lembrar que a adoção de qualquer medida, inclusive jurídica,
que objetive submeter um grupo a condições que impeçam sua reprodução física e cultural se
constitui em crime, previsto na Convenção para a Prevenção e Punição de Crime de Genocídio, de
1948, ratificada pelo Brasil pelo decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952 (Brasil, 1952).

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RESUMOS
Este artigo analisa experiências protagonizadas por comunidades cujos modos de vida geram e se
sustentam em conhecimentos tradicionais em face de tentativas de implementação de um regime
global de propriedade intelectual. Estudos de caso sobre quebradeiras de coco babaçu, no estado
do Maranhão, e produtores de queijo serrano, no Estado do Rio Grande do Sul, revelam
significados da tradição implícita no conhecimento que se pretende proteger. Dados empíricos,
analisados jurídica e antropologicamente, evidenciam, apesar de aparente progresso na
legislação, ameaças a múltiplas dimensões de modos de vida fundados em territórios tradicionais.
Argumenta-se que, sem a imediata e integral aplicação da Convenção OIT 169, invertem-se os
efeitos da incorporação de convenções internacionais no ordenamento jurídico nacional, a
exemplo da Convenção da Diversidade Biológica. Conclui-se que as comunidades tradicionais
resistem à ilegal apropriação de seus conhecimentos, enquanto setores privados neles
interessados utilizam-se do estado de direito para legalizar sua pilhagem.

This article is about experiences carried out by communities whose ways of life generate and
sustain traditional knowledge, in contexts of incorporation of international conventions into the
Brazilian juridical system. Case studies on babaçu breaker women, in the State of Maranhão, and
Serrano Cheese producers, in the State of Rio Grande do Sul, reveal the meanings of the tradition
imbued in the knowledge to be protected. Empirical data analyzed under juridical and
anthropological perspectives elicit, in spite of the apparent progress in the legislation, threats to
multiple dimensions of ways of life grounded on traditional territories. Without effective,
immediate and integral application of the ILO Convention 169, current initiatives of
implementation of conventions and laws related to traditional knowledge may have opposite
results. We conclude that traditional communities resist illegal appropriation of their knowledge,
while interested private sectors search for the support of the rule of law to legitimize plundering.

ÍNDICE
Keywords: global regime for intellectual property, ILO Convention 169, rule of law, traditional
communities
Palavras-chave: comunidades tradicionais, Convenção OIT 169, estado de direito, regime global
de propriedade intelectual

AUTORES
NOEMI MIYASAKA PORRO
Universidade Federal do Pará – Brasil

RENATA MENASCHE
Universidade Federal de Pelotas – Brasil

JOAQUIM SHIRAISHI NETO


Universidade Federal do Maranhão – Brasil
Professor visitante

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“Um campo de refugiados sem


cercas”
etnografia de um aparato de governo de populações refugiadas

Vanessa Perin

NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 18/12/2013
 
Introdução
1 Este artigo baseia-se em uma pesquisa1 mais ampla, que consistiu de modo geral em um
estudo de singularidades do caso brasileiro de acolhida e assistência a grupos
refugiados. Em tal pesquisa procurei etnografar a dinâmica dos atendimentos prestados
a essa população, realizados por um dos programas desenvolvidos pela Cáritas
Arquidiocesana de São Paulo (Casp):2 o Centro de Acolhida para Refugiados (CAR).
2 Nesse sentido, mais do que partir da categoria estanque e fixa de refugiado definida
pela normativa jurídica,3 através da etnografia busquei chegar às múltiplas relações de
poder que iam constituindo esses sujeitos enquanto tais, produzindo-os como um
grupo-alvo de determinados saberes e que deveria, portanto, receber um cuidado e uma
intervenção particular, ou como uma população que precisaria ser gerida 4 por um
aparato institucional.
3 Reconhecido por seus próprios funcionários como um “centro de referência”, o CAR
está organizado enquanto um escritório. Atuando como uma etapa de triagem dos casos
que acessam o aparato institucional responsável por lidar com a população refugiada
que chega ao Brasil, este formado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (Acnur), o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) e por um grande
número de organizações estatais e não governamentais, tal programa de assistência

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pôde se apresentar como entrada para a compreensão dos modos de operação de


tramas mais amplas desse aparato.
4 O trabalho de campo no escritório foi realizado durante quatro meses, no primeiro
semestre de 2012. Busquei etnografar os atendimentos prestados tantos aos refugiados
já reconhecidos pelo governo brasileiro, que continuavam a procurar pelos auxílios
oferecidos pela agência, como aos que ainda passavam pelo processo de solicitação de
refúgio – processo no qual a Casp é um elemento fundamental, como será descrito ao
longo deste artigo. Nas primeiras semanas de pesquisa acompanhei o trabalho do
atendente da recepção. Tudo o que passava para os setores internos ao escritório era
antes triado por esse funcionário, que se empenhava em me explicar como tudo
funcionava, desde as legislações e as formas de assistência oferecidas pela Casp e por
seus parceiros, até assuntos que envolviam o cotidiano dos solicitantes de refúgio e
refugiados fora da instituição. Nos demais setores da organização – Proteção,
Assistência e Integração – eu acompanhava os atendimentos conforme era convidada
pelas funcionárias do programa.5 Pude presenciar entrevistas para pedido de refúgio no
setor de Proteção e atendimentos dos mais diversos nos setores de Assistência e de
Integração. Somente no setor de Saúde Mental (desativado durante um período e que
voltava a se reestruturar no momento da pesquisa) fui impedida de acompanhar os
atendimentos.
5 No começo do segundo mês de pesquisa de campo a coordenação do CAR realizou um
treinamento para voluntários ao qual me juntei. Desde esse momento minha entrada
foi outra, que me permitiu um contato e uma posição mais estabelecida na agência. A
partir daí eu fazia “um pouco de tudo”. Organizava os arquivos, digitava relatórios,
pareceres, distribuía doações, esclarecia dúvidas por telefone, ajudava os solicitantes a
preencherem o questionário de cadastro no CAR, fazia encaminhamentos para
solicitação de documentos, ajudava na organização de atividades em datas
comemorativas, participava de reuniões com outros estudantes interessados no
trabalho do CAR, auxiliava na triagem da recepção, etc. Assim, cada vez mais pude estar
presente em atendimentos ou em conversas que de outra maneira me teriam sido
vetados. A partir de então a minha presença passava a entrar na lógica de
funcionamento e organização do trabalho no escritório.
6 Partindo dessa entrada em campo como voluntária e sendo a proposta deste trabalho a
de compreender como instituições como aquela em que eu estava inserida
estabilizavam concepções e práticas específicas sobre a população à qual ofereciam
determinado cuidado, assistência e, ao mesmo tempo, sobre a qual exerciam um tipo de
controle, assumi a posição em que me era permitido acompanhar, principalmente, o
trabalho dos gestores. Isso não significou, no entanto, que os refugiados que acessavam
o CAR estivessem fora ou alheios à sua configuração. Mas sempre tive em mente que se
tratava exatamente disso: uma perspectiva. Outras coisas poderiam ser vistas de outros
pontos e a partir de outros métodos de pesquisa, mas tratava-se de um imperativo
tático ou condicional (Foucault, 2008): de indicar algumas possíveis linhas de força a se
seguir, um determinado regime de visibilidade e o que se pode ver a partir daí. E uma
das coisas que me foi permitido visualizar, então, foi um mecanismo de governo. 6
 

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O olho do Estado enquanto um mecanismo de governo


das populações
7 Em seu curso de 1978, Michel Foucault procurava compreender como o Estado e as
práticas de governo dos homens passaram a ser pensadas e levadas em consideração
nas práticas destes mesmos homens. Para tanto o autor buscou fazer uma história da
razão governamental e do Estado, não como um Estado-coisa, instituição ou substância,
mas do Estado presente nas práticas dos homens como um mecanismo de poder. Nesse
sentido, o Estado não seria algo que paira acima da sociedade civil, mas antes certa
coisa instituída como “Estado” por uma sociedade governamentalizada. Seria, portanto,
o efeito das práticas de governo, não o contrário.
8 Este trabalho também busca pensar práticas de Estado, ou a produção de efeitos de
Estado, entendidos como o resultado da produção de determinada forma de governo por
organizações, geralmente denominadas state-like institutions, que possuem na maioria
das vezes uma forma burocratizada de atuação. Procurei refletir sobre como esses
efeitos de Estado estão presentes no cotidiano da organização etnografada, definida como
não governamental, através do aparato burocrático e assistencial que ela põe em
funcionamento. Esse empreendimento não visou assinalar um engano de denominação,
ou ainda propor uma nova organização entre o que seriam agências estatais ou não
estatais, mas apontar o que da perspectiva metodológica adotada foi possível ver: o
funcionamento do olho do Estado através desse tipo de organização, enquanto um
mecanismo de governo da população alvo de seu programa de assistência, de sua
burocracia, e no limite de sua gestão.
9 Desse modo, o foco do trabalho não está nos sujeitos refugiados, mas antes no modo
como ao se institucionalizar, definir, normatizar o refúgio como uma problemática
social e política e ao fazer funcionar práticas de cuidado e de controle sobre
determinados sujeitos, esses se tornam visíveis para o Estado e para outras
organizações, tanto como um problema social quanto como sujeitos que precisam ser
governados. Pode-se dizer, portanto, que se trata não de uma etnografia do Estado, mas
de um mecanismo – o olho do Estado – e de como determinadas problemáticas e
determinados sujeitos são feitos visíveis para as práticas de governo.
10 A partir da análise da malha de relações que esses sujeitos têm de estabelecer com as
diversas organizações com as quais entram em contato ao solicitarem refúgio – o
“campo de refugiados sem cercas” – meu objetivo foi o de compreender as formas de
funcionamento desse mecanismo de governo.
 
O aparato transnacional de governo de populações
refugiadas
11 A gestão da problemática dos refugiados no Brasil é frequentemente caracterizada na
literatura especializada como sendo operada por uma estrutura tripartite (Leão, 2003;
Moreira, 2006) no tocante ao acolhimento e assistência a esses sujeitos, formada pelo
Acnur, Conare e por ONGs como a Cáritas. Contudo, as formas de atuação desse aparato
institucional se dariam de modo diferenciado. Ao Acnur caberia principalmente prover
assistência financeira, repassando subsídios à Cáritas. Já o governo brasileiro,
representado pelo Conare, teria sua atuação voltada para medidas de proteção, uma vez

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que delega sobre reconhecer ou não o status de refugiado de um solicitante. O trabalho


da Cáritas é apontado como o mais abrangente, envolvendo, além da assistência e da
proteção, o trabalho de integração dos refugiados na sociedade local.
12 De modo semelhante, a partir da perspectiva que acompanhei etnografando o trabalho
dos funcionários do CAR, essa rede de acolhida, assistência, administração, controle das
populações refugiadas no país aparece perpassando três esferas organizacionais
principais – a agência multilateral da ONU, o governo brasileiro e uma “sociedade civil
organizada” – extremamente inter-relacionadas entre si, mas atuando com peso e
alcance diferenciados quanto ao que é resolvido ou administrado em cada esfera de
atuação institucional específica.
13 Porém, não presumindo uma suposta verticalidade na qual o Estado seria uma entidade
fixa e centralizadora, localizada entre uma esfera internacional e uma sociedade civil
local, procurei analisar a forma de operação dessas agências a partir da ideia de um
mecanismo transnacional de governo, que permitiria ver órgãos governamentais,
organismos multilaterais e organizações não governamentais como contemporâneos e
operando no mesmo nível, através de um aparato de governamentalidade (Ferguson,
2006). Nesse sentido, as relações entre essas organizações conformariam uma malha
transnacional de entes técnico-burocráticos (Vianna, 2010, p. 92) interconectados:
Pensar em tais organizações como entes técnico-burocráticos não significa afirmar
a sua uniformidade enquanto estruturas essencialmente burocráticas – como em
geral se imagina uma repartição pública, por exemplo –, mas apenas reconhecer
que no estabelecimento das relações com outros atores (ONGs, órgãos
governamentais ou agências multilaterais), organizações necessariamente
mobilizam saberes técnico-burocráticos, mesmo que em graus variáveis. Desta
forma, evita-se fixar o caleidoscópio das organizações, sempre móvel, e enfatiza-se
o caráter relacional, do qual depende a atuação das organizações, e os saberes que
elas mobilizam a fim de estabelecerem tais relações. (Vianna, 2010, p. 92).
14 Não se trata, no entanto, de tomar essas organizações como atores com a coerência,
agência e autonomia que o termo ente, por exemplo, poderia presumir. O que procurei
compreender foi como essas instituições em suas inter-relações criam um efeito
estrutural (Mitchell, 2006), ou seja, como são produzidas como entidades aparentemente
separadas e independentes pelos mecanismos de poder que nelas atuam. O próprio
Estado, assim, aparece como um efeito estrutural desse tipo: não como uma estrutura de
fato, mas como um poderoso efeito de práticas que fazem estruturas aparentarem
existir como entidades.
 
A agência multilateral da ONU: o Acnur

15 Segundo Jubilut (2005, p. 97), a cooperação entre a Casp e o Acnur para promover
assistência aos refugiados é fruto de uma dupla tradição: “por parte da Igreja Católica a
tradição de se ocupar da questão dos excluídos, entre os quais a população refugiada, e
por parte do Acnur a tradição de buscar organizações locais para serem suas agências
implementadoras”. Os principais objetivos dessa agência seriam os de providenciar a
proteção aos refugiados e promover a implementação do que determina como soluções
duráveis: repatriamento, integração local e reassentamento.
16 Para realizar tais objetivos o Acnur atua diretamente em situações caracterizadas pela
agência como emergenciais, tais como territórios em guerras civis ou regiões em que
ocorreram desastres naturais. Nas situações consideradas como não emergenciais, em

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alguns territórios de recepção de refugiados, por exemplo, a atuação é feita por meio de
trabalhos de cooperação com as agências e governos locais, recorrendo principalmente
à cooperação com ONGs que estejam mais próximas da realidade local. Estas se tornam
suas agências implementadoras, que por meio da coordenação e do financiamento do
Acnur vão desenvolver seus três programas: proteção, assistência e integração.
17 No cotidiano dos atendimentos aos refugiados e solicitantes de refúgio no CAR a
atuação do Acnur é pouco perceptível. Onde mais se nota sua “presença” é nos cartazes,
pôsteres e quadros de campanhas da agência que decoram todo o escritório. Sua ação
acaba sendo indireta, através dos financiamentos para os projetos: a assistência
humanitária do Acnur chega aos refugiados e solicitantes através do auxilio para
transporte, para a compra de remédios, das cestas básicas, pela manutenção dos
programas de saúde mental e de proteção. No entanto, aos refugiados e solicitantes em
si só é possível apreender a atuação da Casp, que é quem realiza diretamente o trabalho
de assistência a partir do financiamento externo.
18 No que se refere aos funcionários, porém, o relacionamento com o Acnur é sempre
apontado como muito bom e próximo, constituindo uma dimensão importante para o
trabalho que é realizado no CAR. Segundo as advogadas, por exemplo, o Acnur não só é
a agência que paga seus salários, mas é quem faz todo o seu treinamento para o
atendimento e mantém ainda um estreito contato para o esclarecimento de dúvidas
sobre esse atendimento e na elaboração dos pareceres de cada pedido de refúgio.
19 Apesar de umas das funções definidas do Acnur ser a de coordenar os projetos
desenvolvidos pelas agências implementadoras, a relação dessa agência com os
funcionários do CAR acaba sendo próxima daquela que é estabelecida entre este e as
organizações da sociedade civil também atuantes na causa do refúgio: a de parceria.
Isso se deve, principalmente, a certa consonância entre os valores que guiam o trabalho
no CAR e aqueles estabelecidos pelo Acnur em sua atuação. Ambos estão ligados
principalmente à noção de que o trabalho realizado deve ser humanitário. O caráter de
parceria se estabelece por estarem em um mesmo regime de valores.
20 Em seu pronunciamento em comemoração ao dia mundial do refugiado do ano de 2008,
por exemplo, o então alto comissário das Nações Unidas para o Refúgio afirmava que o
trabalho do Acnur estaria focado na proteção dos direitos e bem-estar dos refugiados e
também em assegurar o acesso à segurança, à assistência humanitária, ao apoio em
longo prazo e em soluções duradouras para que estes sujeitos pudessem reconstruir
suas vidas. Ele encerra seu pronunciamento dizendo que garantir que os refugiados
obtenham a proteção que merecem é uma causa nobre porque os direitos dos
refugiados são direitos humanos – direitos que pertencem a todos nós. É possível notar
em sua fala como o trabalho da agência parte da noção de que o trabalho desta deve
atuar na recuperação dos direitos dos refugiados enquanto seres humanos. Perspectiva
que também informa não só o trabalho da Casp enquanto agência implementadora do
Acnur, mas as organizações da “sociedade civil organizada” pela causa do refúgio de
modo geral, conformando um dos pontos fundamentais no referido regime de valores
dessas instituições.
 
O aparato estatal: a Polícia Federal e o Conare

21 A gestão realizada em âmbito estatal se dá, principalmente, em duas instituições: na


Polícia Federal e no Conare. A relação entre os funcionários e essas organizações é

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bastante diferente da que é estabelecida com o Acnur. Nos regimes de valores que estão
em jogo na relação entre essas agências não está mais marcado o “humanitarismo”, mas
principalmente as noções de “segurança nacional” e de “administração”.
22 Na Casp o relacionamento com a Polícia Federal é sempre apontado como instável,
tendo períodos de maior ou menor cooperação entre as instituições:
Tem fases em que a gente faz reuniões com eles, aproxima muito a relação. Fica
fácil. A gente liga, eles respondem, resolvem. Tem fases que não. E tem muita
Policia Federal também no interior, que não conhece a gente e agora começam a
receber solicitantes de refúgio e refugiados. Não sabem o que fazer, porque é um
fato novo lá. E aí é um pouco difícil esse contato. Quando a gente liga [dizem] “Que
é? Uma ONG querendo me dar ordens?” E depois com o tempo, como a gente acaba
ajudando, aí eles entendem que a gente não está querendo nada mais do que as
funções, as obrigações deles. Acaba melhorando com o tempo. Mas com a Polícia
Federal é um pouco complicado. (Advogada do CAR).
23 Nos meses em que realizei o trabalho de campo no CAR a relação estava conturbada
devido a cancelamentos sem aviso prévio de muitas entrevistas para solicitação de
refúgio já agendadas e de denúncias sobre pessoas que estariam ficando retidas por
semanas nos aeroportos, em uma área restrita e com poucos recursos, denominada
pelos funcionários como “conector”. As tentativas da Casp de intermediar situação não
estariam sendo “bem vistas”:
Porque a gente não pode se meter de uma forma direta. Porque não é a nossa
função. A função da Cáritas é, chegou aqui dentro do escritório, a gente presta o
auxílio. Se a pessoa está presa no aeroporto, a Polícia Federal está fazendo um
serviço de investigação sobre aquela pessoa. Se a gente fica insistindo com a Polícia
Federal de que tem que retirar ele de lá, a gente cria um atrito direto com ela.
(Advogada do CAR).
24 Em casos assim é preciso saber manter a relação “diplomaticamente”, diz a
coordenadora do CAR, para que cada um possa realizar suas respectivas funções.
A Polícia Federal tem o seu eixo na segurança pública. Então todo estrangeiro –
imigrante ou refugiado – é supostamente uma pessoa que pode ferir a segurança
nacional. Então eles tomam muitos cuidados. E esse excessivo cuidado, muitas vezes
deixa alguém, que é solicitante de refúgio, lá na Polícia Federal esperando eles
fazerem uma investigação que pode ser demorada. Eles ficam lá às vezes por um
tempo muito longo, até que eles liberem. A gente tem tido um bom relacionamento.
Só que eles alegam isso: “Olha, é questão de segurança. Eu não posso deixar
qualquer pessoa entrar.” E a gente acha isso ruim, porque a gente gostaria que eles
fossem mais ágeis e aqueles que não estão ferindo a segurança nacional, que eles
liberassem com mais rapidez. […] Eles trabalham da maneira deles, alegando a
segurança nacional. E nós preservamos os direitos humanos dos solicitantes de
refúgio.
25 Já em relação ao Conare, o relacionamento é apontado como “profissional”,
“administrativo” ou “burocrático”.
A nossa relação com eles é basicamente administrativa. O contato que eu tive com o
pessoal do Conare foi superprodutivo. Foi bem administrativo mesmo, mas foi
superpositivo. […] A gente tem aí uma boa comunicação de forma geral. Com o
Ministério da Justiça, que é um órgão a que nós estamos de certa forma
subordinados, é a mesma questão administrativa do Conare. Que é um órgão
específico do Ministério da Justiça. (Advogada do CAR).
No que a gente precisa eles dão apoio. Cada um dentro da sua estrutura […]. Só que
tem um número limite de funcionários. Então às vezes uma coisa que você precisa
de urgência não sai na hora. Mas são coisas burocráticas. (Coordenadora do CAR).

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26 Também para os refugiados e solicitantes de refúgio a relação é muito burocratizada e


gera constantes conflitos. “Práticas burocráticas são mecanismos cruciais pelos quais o
efeito deslocador do Estado é produzido e reproduzido” (Sharma; Gupta, 2006, p. 17,
tradução minha), isto é, práticas nas quais o aparato estatal é reificado como algo
externo e superior às práticas cotidianas dos sujeitos. “Brasília” ou a “Federal” se
apresentam como algo distante do cotidiano dos solicitantes de refúgio e dos
refugiados, mas que ao mesmo tempo definem sua legalidade ou não no país, através da
garantia da documentação. Sempre é muito complicado para os solicitantes de refúgio,
principalmente, entenderem que quem autoriza a emissão de seus documentos não é a
Casp, com quem estão lidando cotidianamente, mas sim o Conare, cujo único contato
direto se dá através dos advogados que fazem a entrevista que irá compor o parecer
sobre cada caso.
27 Ter que resolver uma questão com o Conare, e mesmo com o Acnur, é geralmente visto
como um problema, pois pode gerar demora nos atendimentos ou na resolução de
alguma outra atividade cotidiana. Solucionar alguma demanda fora da esfera do CAR
implica certa falta de visibilidade do percurso todo do processo, não só para os
refugiados, mas muitas vezes para os próprios funcionários.
 
A atuação da sociedade civil: as parcerias

28 Uma grande especificidade no caso brasileiro de governo das populações refugiadas em


seu território é a presença marcante de uma “sociedade civil organizada na causa do
refúgio”, como costumam se denominar, no que se refere ao processo de acolhida e
atendimento desses sujeitos.
29 Destacam-se os trabalhos realizados pelas Cáritas Arquidiocesanas de São Paulo, Rio de
Janeiro e Manaus e pelo Instituto Migrações e Direitos Humanos, que compõem centros
de atendimento a estas pessoas, como o CAR. Porém, existe toda uma rede de parcerias
com albergues, associações, ONGs, sem a qual esses centros de atendimento não
conseguiriam manter todo o trabalho de assistência que procuram oferecer. Isso é
muito evidente no caso de São Paulo, na Casp, que possui uma estrutura de escritório,
auxiliando os refugiados com assuntos burocráticos e assistenciais, mas não possui, por
exemplo, uma estrutura de albergamento ou que ofereça alimentação. Para isto contam
com as parcerias.
30 As organizações parceiras constituem uma rede muito ampla, que vai desde institutos
de pesquisa, cooperativas e associações comunitárias, até empresas e agências
internacionais. Dentro do setor de integração do CAR, por exemplo, muito pouco
poderia ser realizado sem as parecerias com o chamado “sistema S” – Sesc, Sesi, Senai,
Senac – para a capacitação profissional e educacional dos refugiados. Da mesma forma,
a assistência com moradia, que é uns dos pontos apontados tanto pelas assistentes
sociais como pelos refugiados como o mais problemático, estaria ainda mais debilitado
sem os albergues parceiros da sociedade civil.
31 Os órgãos estatais ou as agências internacionais não estão alheios ao trabalho de
assistência, mas delegam grande parte do serviço assistencial e mesmo burocrático às
entidades civis. Ações humanitárias, de sensibilização, de solidarização e de
conscientização da população local, assim como do próprio governo brasileiro, são as
principais formas de atuação dessas organizações parceiras. Configuradas enquanto
uma “sociedade civil organizada” pela causa do refúgio, elas são os principais sujeitos

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políticos atuantes não só pelas demandas assistenciais e de integração dessa população


no país, mas também pela causa da recuperação de seus diretos de cidadania.
32 O estatuto do refúgio, desde o início de sua institucionalização e normatização jurídica,
destaca-se como uma problemática que precisaria ser pensada dentro de certa
transnacionalidade, mais do que a partir das inter-relações e transformações entre um
nível local e outro global. Organizações como a Cáritas dificilmente podem ser
enquadradas em um contexto local, nacional, ou mesmo internacional de atuação. Daí a
importância de analisar seu trabalho como parte de um aparato transacional de governo,
no qual uma multiplicidade de determinações são produzidas e articuladas em arranjos
específicos de relações.
33 No entanto, tais arranjos articulados formam compósitos nos quais determinados
discursos e práticas são estabilizadas, sem que sejam redutíveis a uma única lógica de
funcionamento. As organizações, com seu efeito estrutural, são apenas os espaços em que
esse processo de estabilização se dá de forma mais evidente. O caráter transnacional
desse aparato, portanto, se produz em razão de sua capacidade de territorializar e ao
mesmo tempo de deslocar determinados fenômenos através de diversas esferas
organizacionais e situações específicas formando compósitos de relações, mas sem fixá-
los de modo final.
34 Na sessão seguinte, procuro discutir os efeitos da territorialização particular desse
aparato transnacional de governo operada pelo trabalho do CAR, através do mecanismo
que aqui denominei de olho do Estado.
 
A produção do refugiado como um sujeito visível para
o olho do Estado: a esfera burocrático-administrativa
35 Enquanto um “centro de referência” para os refugiados e solicitantes de refúgio, o CAR
funciona como um escritório onde se lida principalmente com assuntos burocráticos –
solicitação de documentos, encaminhamentos, recursos, atendimento jurídico,
legislações, prazos, formulário, relatórios, etc. Tem de lidar com a esfera da
administração burocrática que envolve a entrada e estabelecimento de uma pessoa em
um país que não é o de sua nacionalidade.
36 Desde que entram no país, o contato constante com uma Cáritas torna-se parte
integrante na vida dos solicitantes de refúgio. No cotidiano do CAR é possível perceber
como a Casp é uma intermediária inescapável nas relações entre os refugiados e os
órgãos governamentais, ONGs, empregadores, etc. Para praticamente cada ação dessas
pessoas é necessária uma “declaração” ou um “encaminhamento” vindo da Casp. Ao
entrarem no Brasil os solicitantes de refúgio entram também em uma malha de
relações burocrático-administrativas específicas, que, conjuntamente com o trabalho
assistencial-humanitário oferecido pelos programas do escritório, vai constituir esses
sujeitos enquanto uma população singular, que poderá, então, ser alvo da intervenção
de um mecanismo de governo.
37 A entrada dos solicitantes de refúgio no Brasil tem se dado através de quatro maneiras
principais: ilegalmente, via fronteira terrestre; legalmente (com um visto de turista ou
de estudante), de avião; ilegalmente, de avião; ilegalmente, de navio. O que deveria
acontecer depois da entrada no país de acolhida é que essas pessoas contatassem a
Polícia Federal para solicitar o refúgio. Geralmente, muitos já se informaram em seus

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países sobre como se dá a solicitação de refúgio no Brasil e já entram em contato com


uma Cáritas assim que chegam, por saberem que elas são agências intermediárias nesse
processo. Já para os que chegam ilegalmente nos aeroportos não há escapatória: ficam
retidos no setor de imigração e, se conseguem solicitar refúgio, são encaminhados às
Cáritas.
38 Quando chega à Casp e informa que deseja solicitar refúgio, o “caso novo” tem uma
primeira conversa rápida com uma das advogadas que, tendo identificado um possível
caso de refúgio, pedem que ele preencha uma ficha com informações básicas, para que
possa ser cadastrado no sistema da agência. Essa identificação de um “caso de refúgio”,
no entanto, não é tão simples e imediata:
Toda pessoa que chega aqui na Cáritas e fala “eu quero pedir refúgio”, eu sou
obrigada a deixar a pessoa [solicitar]. É um direito do estrangeiro, pedir refúgio.
Algumas vezes a gente tenta explicar, falar “olha não é caso de refúgio, você pode ir
buscar outros lugares”. A gente indica e às vezes a pessoa [fala] “OK, não é caso, não
vou pedir” e vai embora. Tem gente que bate o pé e fala “eu quero mesmo assim”,
porque eles sabem que vão ficar legais no país por quase um ano […]. Em geral eu só
falo “olha, não é caso” para a pessoa que fala “eu vim para trabalhar”. E pelo
contexto do país realmente é óbvio que não é caso [de refúgio]. Mas mesmo assim se
a pessoa bate o pé e fala “eu quero pedir”, eu sou obrigada a deixar porque é um
direito deles. Então a Cáritas atende todo mundo que pede. Todo mundo que chega
aqui e fala “eu quero pedir refúgio”. (Advogada do CAR).
39 Posteriormente, a secretária do CAR entra em contato com esse solicitante para
informá-lo do dia em que deverá comparecer na Polícia Federal para uma entrevista na
qual precisará “prestar declarações” sobre as razões pelas quais solicita refúgio, as
circunstâncias de sua entrada no Brasil, e para fornecer algumas informações pessoais
Sem o “termo de declarações” feito pela Polícia Federal, o caso não pode ser
encaminhado para o Conare, onde começa o processo de solicitação de refúgio
propriamente dito.
40 No dia da entrevista na Polícia Federal, o solicitante precisa ir antes ao CAR para buscar
um “encaminhamento” feito pelas assistentes sociais. E feito o “termo de declarações”
na Polícia Federal, ele deve voltar ao CAR, agora para preencher um questionário mais
detalhado sobre sua situação para ser enviado ao Conare. Nenhuma orientação sobre
como se portar nessa entrevista com a Polícia Federal pode ser feita pelas assistentes
sociais ou qualquer outro funcionário. Mesmo no questionário que em seguida é
preenchido na CAR, não se pode orientar os solicitantes sobre o que escrever. Nesse
questionário é preciso “aparecer a situação real” da motivação do pedido de refúgio. Na
Polícia Federal é importante que o caso não se apresente como algo que ponha em risco
a “segurança nacional”. Já no CAR ele precisa ser apreendido como passível de ser
categorizado juridicamente como um caso de refúgio.
41 Tendo preenchido o questionário, as assistentes sociais podem dar entrada no pedido
do “protocolo provisório”, que será sua documentação até que seja promulgada a
decisão final sobre seu pedido de refúgio. Quem expede este documento é a Polícia
Federal, mas antes ele deve ser autorizado pelo Conare. É a Casp que entra em contato
com este pedindo tal autorização e é para a Casp que ela é enviada. Com o aumento da
demanda de solicitações de refúgio no período da pesquisa, as autorizações demoravam
até um mês para chegar ao CAR. Se antes as assistentes sociais procuravam entrar em
contato com os solicitantes para avisar da chegada da autorização, com o aumento do
número de pedidos, cada vez mais eles mesmos vinham ao escritório para saber se a

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autorização já havia sido enviada, o que gerava muitos conflitos. Elas diziam que não
adiantava vir ao escritório, pois isso atrasava os demais atendimentos, que era melhor
ligarem ou esperarem que as assistentes sociais entrassem em contato. Eles por sua vez
reclamavam da demora e muitas vezes não compreendiam que “o problema é em
Brasília”, que não era a Casp, mas o governo brasileiro quem emitia a declaração
autorizando a expedição do protocolo.
42 Com o protocolo em mãos é agendado para esse solicitante um horário com a assistente
social do setor de integração, que lhe dá um encaminhamento para que possa fazer a
carteira de trabalho e posteriormente um CPF, nos órgãos responsáveis por essa
documentação. Assim como o protocolo, enquanto documentos provisórios, a carteira
de trabalho precisa ser renovada a cada três meses, até que seja deferido ou negado o
pedido de refúgio. Para cada renovação, o mesmo procedimento: agendar um
atendimento, pegar o encaminhamento, ir ao órgão responsável pela emissão do
documento, voltar ao CAR para o próximo procedimento.
43 Em meio a esse percurso de pessoas e de documentos por entre instituições, os
solicitantes de refúgio, a cada nova documentação que obtêm, vão sendo produzidos
como sujeitos específicos perante o Estado brasileiro: sujeitos passíveis de serem
categorizados e reconhecidos dentro do status jurídico de refugiado. E cada organização
pela qual passa acessa uma parte apenas da composição que conforma esse sujeito
refugiado, por isso precisam trabalhar em interdependência. Sem o encaminhamento do
CAR, a Polícia Federal não compreende esse sujeito como um solicitante de refúgio, mas
genericamente como estrangeiro. Sem o termo de declarações, enviado pela Casp, o
Conare não inicia o processo de solicitação de refúgio, pois tal estrangeiro genérico não
se inclui em sua alçada administrativa específica. E, enfim, sem a autorização do Conare
para a emissão do protocolo provisório, em papel timbrado, carimbado e assinado pela
Casp, a Polícia Federal não emitirá o documento para esse solicitante.
Consequentemente, ele não existirá enquanto refugiado perante o Estado brasileiro e
não poderá receber a assistência humanitária da Casp ou do Acnur.
44 Feita essa primeira documentação provisória e as entrevistas na Polícia Federal e na
Casp, os solicitantes aguardam que um advogado representante do Conare venha à Casp
realizar uma das partes do parecer sobre seu caso. Posteriormente, esse advogado
relata seu parecer a um Grupo de Estudos Prévios (GEP), formado por representantes
dos ministérios que compõem o Conare,7 por um representante do Acnur e um
representante da sociedade civil. As partes do GEP elaboram um parecer sobre o caso e
o apresentam na reunião plenária do Conare.
45 Como me disse um refugiado, “a burocracia não acaba nunca”. O atendente da recepção
do CAR tem uma justificativa para isso: “Essa burocracia toda dá muito trabalho para a
gente, mas é uma forma de ter um controle. Se não eles desaparecem.” Uma voluntária
também fez uma observação interessante sobre a presença constante dos solicitantes
no escritório por conta da documentação e da assistência que este oferece que ajuda a
entender o que caracteriza este mecanismo de governo: “É como se fosse mantido um
campo de refugiados, só que sem as cercas. Só através da burocracia.”
46 Tanto a fala do atendente quanto a da voluntária evidenciam um problema para essas
organizações que lidam com os refugiados: como enxergá-los como uma população
específica em meio à população nacional? Como fazer com que esses sujeitos apareçam,
não só para o programa de assistência da Casp, mas também que sejam legíveis para o
olho do Estado? O efeito produzido por essa malha burocrático-administrativa é criar

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sujeitos legíveis, que sejam mantidos não em um campo de refugiados com cercas, mas
em um campo de visibilidade determinado. Esse é seu mecanismo de governo.
47 Pensando sobre a forma como o Estado acessa a população que busca governar, Scott
(1998) destaca a produção de um mecanismo de legibilidade como a condição
primordial para qualquer intervenção estatal. Tal mecanismo requer a invenção de
unidades que sejam visíveis e padronizáveis. Um documento de identidade ou uma
ficha de cadastro confere essa existência a um sujeito perante o Estado. A burocracia é
uma forma de tornar os sujeitos legíveis em meio a uma realidade complexa que o
aparato estatal por si só não consegue acessar diretamente. Trata-se de um processo de
simplificação da complexidade dessa população, que, no entanto, torna o fenômeno que
está no centro do campo de visão mais acessível e ainda mais suscetível a uma
mensuração cuidadosa. O procedimento burocrático produz um mapa, uma forma de
escalonar e categorizar uma população não por um processo de redução de sua
complexidade, mas recortando-a, estabilizando-a e fixando-a. Tal procedimento
permite que essa população se torne visível.
48 Se aprovado o pedido de refúgio, o solicitante se registra junto à Polícia Federal para
receber seu Registro Nacional de Estrangeiro e assina um “termo de responsabilidade”
vindo do Conare – ele já é legível como “refugiado”. Se o pedido é indeferido o
solicitante tem um mês, desde sua notificação, para sair do país ou para entrar com um
recurso perante o Ministério da Justiça. Uma das advogadas do CAR explica o que
acontece “na prática”, quando um pedido é indeferido:
Aí, dizem que ele não é refugiado. Ele volta aqui e eu o ajudo a preparar um recurso
para ser enviado ao Ministério da Justiça. A palavra final é do ministro da Justiça. Se
também é pelo indeferimento, aí qual é a situação do refugiado? Ele é comunicado
pela Polícia Federal que tem um prazo para deixar o território brasileiro. […] Eles
recebem esse comunicado, “se você não deixar o país, você vai passar por um
processo legal de deportação”. E o que acontece na prática? Na prática essa pessoa
acaba sumindo no território brasileiro, porque o governo não tem verba para fretar
um avião e deportar todo mundo que está numa situação ilegal […]. Essa pessoa fica
aqui em uma situação de limbo jurídico […]. A possibilidade dela é se casar com
brasileiro, ter filho brasileiro. E aí ela entra em um processo de solicitação dos
documentos por causa disso.
49 Ficar no “limbo jurídico” é não ser visto pelo mecanismo do olho do Estado. “Na prática”
esse sujeito desaparece porque a burocracia acionada por esse aparato de governo,
apesar de constituir um determinado mapa de visibilidade, é um mecanismo que
enxerga mal e parcialmente. Não é todo recorte da “prática” que a burocracia consegue
estabilizar e administrar, mantendo a visibilidade de seus elementos organizados. Há
dimensões do “real” como chama Scott, ou da “prática” como diz a advogada, que lhe
escapam o tempo todo. Seu mapa é sempre parcial e representa apenas a parte do real
que interessa à observação estatal (Scott, 1998). A dimensão burocrático-administrativa
precisa de outros mecanismos que operem juntamente a ela para produzir esse sujeito
plenamente visível e, logo, melhor governável.
 
A produção do refugiado como um sujeito de direitos
pleno: a esfera assistencial-humanitária
50 Documentos, relatórios, fichas cadastrais jogam luz e permitem acessar apenas uma
parcela da complexidade que conforma a população específica que procuram

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categorizar e padronizar a partir das simplificações que estabilizam. Outra dimensão


fundamental desse mecanismo de constituição do sujeito refugiado visível elaborada
pelo trabalho do CAR é a esfera assistencial-humanitária.
51 Na Casp a assistência aos refugiados e solicitantes de refúgio é dividida em três setores,
estabelecidos a partir do programa definido pelo Acnur para suas agências
implementadoras locais: proteção, assistência e integração. Como destaca o
representante do Acnur no Brasil, “ao ser reconhecido, o refugiado recebe inicialmente
a proteção expressa de maneira formal em um documento. É o reinício de sua
cidadania.” (Varese, 2006, p. 9). Porém, é no atendimento dentro dos programas
assistenciais do CAR que essa dimensão burocrático-administrativa descrita acima se
cruza e se conecta com os valores da dimensão humanitário-assistencial, constituindo
sujeitos visíveis a partir de outra categorização que não a jurídica apenas (expressa em
uma documentação), mas como sujeitos de direito, considerados passíveis de se
tornarem cidadãos plenos.
 
Proteção

52 O primeiro setor que tais sujeitos acessam é o de Proteção. Basicamente o setor de


assistência jurídica aos refugiados e solicitantes, composto pelas duas advogadas do
CAR. No procedimento de solicitação de refúgio em si, as advogadas do programa são
responsáveis por realizar a entrevista que vai compor o parecer sobre cada caso,
elaborar a parte do parecer que corresponde à avaliação da Casp sobre os casos e
defendê-los no GEP, como descrito acima. Em casos de pareceres negativos as
advogadas auxiliam o solicitante na elaboração de um recurso. Esse é um setor de
atuação marcadamente jurídica, mas do qual as questões assistenciais não estão alheias,
uma vez que são as advogadas que muitas vezes conhecem detalhes da vida pregressa
dos solicitantes de refúgio através das entrevistas que realizam, e esse fator tem peso
para que o atendimento não seja estritamente burocratizado.
53 O setor de Proteção é onde primeiramente as dimensões burocrático-administrativa e
assistencial-humanitária se atravessam, criando em seus encontros um compósito que é
o sujeito refugiado. Esse programa legitima a categoria jurídica de refugiado e confere a
esse sujeito a possibilidade de uma documentação que o identifica e ainda permite que
seja incluído como beneficiário dos demais auxílios oferecidos pela Casp. É a partir do
momento em que esse sujeito é categorizado como refugiado, ou provisoriamente como
solicitante de refúgio, que ele pode ser visto como um alvo da intervenção assistencial e
humanitária do CAR.
 
Assistência

54 Já o setor de Assistência busca auxiliar os refugiados e solicitantes de refúgio a


suprirem principalmente suas necessidades mais imediatas com saúde, moradia e
alimentação. Também distribui as roupas, sapatos e cobertores, fraldas e leite em pó,
comprados com o financiamento vindo de projetos com o Conare e com o Acnur.
55 A Casp oferece ainda um auxilio de subsistência financeira por três meses. Os
beneficiários desse auxílio, ao qual os gestores se referem como “sub”, são pessoas cujo
caso caracteriza-se como de “alta vulnerabilidade”, como mulheres desacompanhadas,
mulheres desacompanhadas que são chefes de família, idosos, portadores de doenças

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crônicas ou em tratamento, famílias cujos pais estão desempregados, grupos como


maior dificuldade de integração. Porém, são as assistentes sociais, em conjunto com as
advogadas, psicóloga e psiquiatra, que determinam os critérios de distribuição do
auxílio, conforme as situações e os casos que se apresentam no momento em que chega
“o dinheiro do projeto”.
A gente tem um recurso, muito pouco, do governo brasileiro para casos de alta,
altíssima vulnerabilidade. […] [Qual] então, o critério que a gente tem pra quem a
gente vai ajudar? A Vanessa que está desempregada e passou por uma cirurgia e
precisa de ajuda, [pois] não está conseguindo emprego, por conta disso? Mas chegou
a Laurette que está em uma gravidez de risco, não pode trabalhar de jeito nenhum,
e aí? Então a gente tem que ter, assim, o critério, do critério, do critério, porque é
muito pouco pra ajudar essas pessoas. […] Então a gente sempre senta com o social,
a saúde mental, também o jurídico, para analisar. Elas apresentam um caso: “A
pessoa me relatou isso, isso, isso.” “Não vamos fazer assim, vamos fazer assado”.
“Vamos pedir aqui, vamos pedir ali.” (Coordenadora do CAR).
56 Outra parte do parecer, no entanto, deve declarar que o beneficiado está, quando
possível, buscando sair da situação de vulnerabilidade em que se encontra. Um grupo
de butaneses que não consegue encontrar trabalho devido a dificuldades com o idioma,
caracterizando um grupo com dificuldades de integração, deve estar cursando aulas de
português. Uma mãe desacompanhada deve matricular seus filhos em um escola para
que possa trabalhar.
57 Devido ao caráter muitas vezes emergencial desses auxílios, os solicitantes de refúgio
são os mais beneficiados por eles. Além dos trâmites que envolvem o pedido do
protocolo provisório (também realizados no setor, apesar de não serem procedimentos
que compõem diretamente o programa de assistência), os solicitantes e refugiados
procuram o setor por três questões principais: saúde, moradia e alimentação.
58 Desde o momento em que recebem seu protocolo provisório, os solicitantes de refúgio
já podem utilizar as Unidades Básicas de Saúde do sistema público. Assim como
hospitais públicos ditos parceiros e serviços de saúde organizados pela sociedade civil,
como o tratamento odontológico oferecido pelo Sesc. A Casp fornece ajuda financeira
para pagarem as passagens de ônibus e metrô necessárias para que cheguem ao local da
consulta e para os remédios que for preciso comprar. O próprio CAR possui uma
psicóloga e uma psiquiatra, ambas contratadas através de convênio firmado com o
Acnur. Porém, para os casos mais graves contam com a parceria com o Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
59 Conseguir moradia para os que acabaram de chegar e não possuem nenhum contato no
Brasil, por outro lado, é a principal dificuldade das assistentes sociais. Isso porque o
CAR não possui uma estrutura de albergamento e nos albergues parceiros as vagas são
pouquíssimas se comparadas ao número de necessitados. Não são raros os casos de
pessoas que passam o dia esperando por uma vaga em um albergue, não conseguem
encontrar e acabam passam a noite na rua. Uma segunda opção é encaminhá-los para o
programa da Tenda Social do Parque Dom Pedro, no centro de São Paulo, onde depois
de uma triagem são encaminhados para albergues públicos. Neste caso, as assistentes
contam que muitas vezes os solicitantes preferem ficar na rua, pois enquanto os
albergues parceiros têm um público específico – migrantes –, os albergues públicos
“têm todo tipo de gente”, dizem, e os solicitantes costumam sentir-se incomodados.
60 Duas são as formas de assistência com alimentação. Se o solicitante ou refugiado morar
longe do centro de São Paulo a Casp pode fornecer-lhe uma cesta básica mensal, a qual

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eles vêm retirar no escritório. A outra opção é fazer um cartão de alimentação do Sesc-
Carmo, localizado a alguns quarteirões da Casp, que possibilita refeições a baixo custo
no restaurante da instituição. Esse último auxílio só é permitido para aqueles que ainda
não possuem o visto que permite a permanência definitiva no Brasil.
61 Proporcionando-lhes moradia, alimentação e saúde, mais do que simplesmente oferecer
um auxílio, o programa do CAR produz este refugiado com um sujeito de direitos
perante o Estado brasileiro. Um efeito do programa de assistência, portanto, é o de
buscar criar sujeitos que possam se tornar cidadãos plenos. No entanto, se o setor de
proteção confere determinados direitos civis a esses sujeitos e o de assistência busca
prover seus direitos sociais, os direitos políticos que conformariam o cidadão pleno de
fato, almejado pelos gestores da Casp, por militantes da sociedade civil e pelo próprio
aparato estatal, só são alcançados depois de anos e do trabalho constante do setor de
Integração para que esse sujeito de direito não volte a “desaparecer”, se tornando
ilegível para o olho do Estado.
 
Integração

62 O programa de integração está focado em duas questões principais: trabalho e


educação. Segundo a assistente social responsável pelo setor, este foi pensado com o
objetivo de “criar e prover a independência do refugiado e do solicitante de refúgio”,
mas o trabalho no setor também consistiria em “trazer a sociedade para junto da
gente”. E isso fica claro quando se observa o principal modo de operação desse
programa: as parcerias. Enquanto os convênios são definidos pela coordenadora do CAR
como “acordos em que rola dinheiro” com órgãos governamentais e com o Acnur, as
parcerias são fechadas em um intenso e constante trabalho de “negociação”,
“conscientização”, “sensibilização” e “solidarização” com os parceiros.
63 Como no setor de Assistência, o setor de Integração não escapa à parte mais burocrática
do trabalho, pois nele é feito o encaminhamento para que o solicitante possa fazer uma
carteira de trabalho e um CPF. Esse programa, no entanto, adiciona mais dois elementos
à composição do refugiado como sujeito de direito pleno, que são suas principais
frentes de atuação: a busca por trabalho (formal) e a formação educacional.
64 Muitas vezes, devido ao problema do idioma, é mais difícil que os solicitantes e
refugiados consigam empregos por conta própria. Por essa razão a assistente social
responsável pelo setor ajuda-os a agendarem entrevista em seleções e projetos
organizados por parceiros. A própria assistente social muitas vezes ajuda-os a elaborar
um currículo, para que possam participar das entrevistas de emprego oferecidas pelas
agências e centros de auxílio ao trabalhador parceiros ou conseguidas por conta
própria.
65 No momento desta pesquisa, a maioria das vagas disponíveis era para serviços de nível
técnico e na construção civil. E quanto maior o grau de formação mais difícil era para
que a pessoa conseguisse um emprego em sua área, por não poder comprovar, muitas
vezes, essa formação. Geralmente passavam por diversas entrevistas até serem
selecionados para alguma vaga e enquanto não conseguiam um emprego formal, muitos
iam “se virando”, como diz o atendente da recepção do CAR, através do comércio
informal. Segundo a assistente social responsável pelo setor, porém, a agência procura
realizar todo um trabalho de conscientização para o trabalho formal:

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Por exemplo, teve um que chegou para mim e falou assim “pela primeira vez na
minha vida eu estou trabalhando”, porque tinha um registro na carteira. Eu falei:
“Não, amigo, no seu país você trabalhava. Só que é diferente.” Aqui nós temos uma
legislação e a obrigatoriedade de um trabalho mais formal. Tem muita
informalidade ainda, que é o que a gente quer quebrar. Porque se ele já vem de lá
para cá, sem nenhum comprovante de trabalho e continua se sujeitando a fazer
bico, ou a trabalhar, sabe… ilegalmente, nunca vai ter uma empresa que chegue
para ele e fale “não, esse daqui eu vou pegar”. E a gente cria essa sensibilização para
o trabalho formal para que ele expanda o trabalho aqui. Se ele tiver um primeiro
registro e der continuidade aos estudos, à formação dele, ele tem a tendência a
crescer.
66 Outro motivo para que a instituição incentive o trabalho formal é que não fiquem “na
rua”, encarada como um espaço perigoso de trabalho para os estrangeiros, mesmo
documentados e com sua situação legal no país regularizada.
67 Desde o primeiro momento em que chegam ao Brasil, a procura por trabalho é uma das
principais motivações para que os solicitantes de refúgio e refugiados procurem o CAR.
A busca por uma documentação que permita que tenham sua situação legalizada está
estreitamente vinculada, para muitos, à questão de quererem trabalhar.
68 Como citado acima, a outra frente de atuação do setor está relacionada à educação. Em
relação a essa questão, o trabalho da assistente social nesse setor consiste
principalmente em encaminhar refugiados e solicitantes aos cursos que lhes
interessem, sendo maior a oferta de cursos técnicos e profissionalizantes. As principais
parcerias que oferecem cursos técnicos aos refugiados, e também educação formal, são
aquelas do chamado “sistema S”. Existe ainda o projeto com universidades públicas
federais que reservam vagas em seus vestibulares para refugiados já reconhecidos.
69 Todos os projetos e programas acima são voltados para os refugiados apenas. Mas em
certo momento, conta a assistente social do setor de Integração, sentiu-se a necessidade
de que algo fosse feito também para os solicitantes. Foram então estabelecidas outras
parcerias com ONGs para que cursos técnicos fossem oferecidos a eles. Através da
parceria Casp/Sesc-Carmo também é oferecido um curso de língua portuguesa de nível
básico.
70 A questão da educação para os refugiados e solicitantes de refúgio, assim como a da
documentação, está estreitamente vinculada à problemática do trabalho. De maneira
geral, a integração dos refugiados gira muito em torno desse fator. A psicóloga do CAR
destaca que fora essa via, a Casp não tem uma estrutura que de fato estimule um
processo de integração.
Eles acabam não formando uma rede social. […] Acho que tem uma preocupação,
claro, que é a preocupação primária, de abrigar essas pessoas. De elas terem o que
comer, o que vestir, mas não existem de fato projetos de integração dessas pessoas
na sociedade, a não ser pela via do trabalho. Mas até que isso aconteça, o que acaba
levando alguns meses, as pessoas ficam meio à deriva.
71 Como me colocou a assistente social responsável pelo programa de integração, o
solicitante de refúgio já pode começar o processo de integração quando já está com a
documentação em dia. O refugiado que já pode ser integrado é aquele que enfim já é
compreendido como um sujeito de direitos, que poderá ser um cidadão pleno, e que é
visível, portanto, ao olho do Estado. O processo de integração também vai tratar de
mantê-lo assim, gerindo o que escapa a esse mecanismo de governo, seus pontos cegos 8 –
o “se virar”, o trabalho informal, a rua, a deriva, a ilegalidade – através de mecanismos

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como a “conscientização”, a formação de uma “rede social”, e a “solidarização” e


“sensibilização” da população local.
72 A busca por recuperar os direitos e a dignidade que teriam sido perdidos por esses
sujeitos é o etos que informa o processo de constituição dos refugiados e dos
solicitantes de refúgio como sujeitos de direito plenos, pela dimensão assistencial-
humanitária apresentada. Este sujeito pleno é aquele que tem um local de moradia,
condições adequadas de alimentação, formação educacional garantida, que trabalha
formalmente e que, portanto, tem seus direitos trabalhistas assegurados. Tal processo
de subjetivação terminaria com a integração na sociedade local, conformando o sujeito
plenamente visível para o olho do Estado.
 
Efeitos de Estado do mecanismo e governo
73 A produção do sujeito de direito visível e que possa vir a ser um cidadão pleno é um dos
efeitos de Estado produzido pelo trabalho da Casp, enquanto um dispositivo de governo.
Mais que delimitar uma entidade Estado como uma realidade institucional autocontida,
tais efeitos de Estado destacam as táticas e efeitos de poder que operam através de toda
formação social, produzindo as fronteiras dos territórios e dos modos como cada coisa
deve ser governada, através dos encontros e negociações das pessoas com as práticas
burocráticas e assistenciais. “A linha entre domínios do Estado e não Estado é
parcialmente desenhada pelas práticas de trabalho cotidianas de burocratas e em seus
encontros.” (Mitchell, 2006, p. 16, tradução minha).
74 Essa forma de operar pode ser percebida, por exemplo, através das categorias de
“limbo” e “sistema” usadas pelos funcionários. Sendo “limbo” o que escapa ao olho do
Estado, ou o que ele vê parcialmente, precisando ser gerido – trazido de volta à curva de
normalidade estabelecida pelo aparato. Refere-se principalmente ao que só se acessa
via burocracia. Já o “sistema” é o campo de visibilidade mais legível para o olho do
Estado, ou o que ele acessa através da burocracia. Os relatórios de prestação de contas
dos auxílios recebidos pela instituição, por exemplo, são uma forma de tornar legível a
esfera assistencial do trabalho, colocando-a na escala do “sistema” burocratizado.
75 Nesse aparato toda a rede de relações entre a Casp e as agências com as quais ela se
conecta são ativadas por papéis, ligações, e-mails, cargos, projetos, formulários,
convênios, encaminhamentos, pastas, fichas, valores, moralidades, códigos de ética,
vontades, etc., que contribuem para a produção do sujeito visível ao olho do Estado,
enquanto um sujeito de direito, que pode vir a ser um cidadão pleno e integrado.
76 Mas como esse sujeito pode permanecer visível, se, como foi apontado, o aparato
burocrático-administrativo que o torna legível, mesmo com a dimensão assistencial-
humanitária operando, possui ainda o que chamei de pontos cegos, isto é, dimensões da
“prática”, que esse mecanismo de governo não consegue acessar? É nesse momento que
o processo de integração vai adquirir características de um dispositivo de gestão
diferencial. Para manter os sujeitos visíveis e legíveis ao “sistema”, para que não fiquem
no “limbo”, os atendimentos no setor de Integração trabalharão para mantê-los
próximo da curva de normalidade determinada para caracterizar o sujeito de direito
pleno e visível que o aparato descrito busca produzir.
77 Portanto, o sujeito passível de integração e, no limite, de gestão, já passou por duas
etapas. Primeiramente passou pelo cadastro burocrático, tornando-se um sujeito

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inteligível ao olho do Estado. Em segundo lugar, passou pela produção do sujeito de


direito pleno, visível como alvo da intervenção de um mecanismo de governo. Com o
fim do processo de integração – entendido como um processo de recuperação de diretos
perdidos – uma gestão diferencial dos casos particulares buscará evitar que estes se
afastem das codificações visíveis ao olho do Estado, gerindo seus pontos cegos.
78 O trabalho de integração vai criar novos vínculos para esse sujeito em conformidade
com a curva de normalidade estabelecida pelo aparato – o sujeito de direito pleno. Ele
deve ser integrado como trabalhador, como alguém que tem moradia, alimentação,
acesso à saúde e educação, e também como uma pessoa documentada. Ao final desse
processo, é o laço da cidadania que lhe poderá ser conferido.
 
Considerações finais
79 A proposta deste trabalho foi a de compreender como opera um mecanismo através do
qual determinados sujeitos se tornam visíveis a um aparato institucional, de modo que
sobre eles se possa exercer um determinado tipo de intervenção – um governo –, seja
assistencial, burocrático, humanitário, administrativo ou de controle. Para tanto,
procurei tratar de um processo de subjetivação singular: aquele que compõe a categoria
refugiado no contexto institucional brasileiro.
80 A cada nova documentação que adquire e a cada novo cadastro em um programa
assistencial, esse sujeito refugiado torna-se visível ao olho do Estado, assim como são
produzidos os efeitos de Estado através dos quais esse aparato transnacional de gestão,
territorializado no trabalho do CAR, cria uma população governável: cujas condutas
poderão ser dirigidas ao serem estabilizadas suas complexidades em processos de
categorização e padronização.
81 Visíveis como problema internacional e codificados a partir de uma definição jurídica,
esses sujeitos podem ser compreendidos como uma população sobre a qual é possível
realizar determinada intervenção. É constituído, então, todo um aparato institucional
encarregado de gerir suas condições de vida, composto por organizações que vão de
agências multilaterais internacionais a aparelhos estatais e organizações locais da
sociedade civil – conformando-se um aparato trasnacional de governo. O que procurei
destacar neste trabalho, a partir do enfoque dado aos atendimentos realizados no CAR,
é que essas organizações não atuam de forma verticalizada e hierárquica apenas, mas
através de conexões nas quais são conformados compósitos de relações. Tais
composições podem ser observadas, por exemplo, nas parcerias entre organizações da
sociedade civil, nos convênios entre o Acnur e governos nacionais, ou nos acordos de
cooperação entre diferentes países.
82 O trabalho realizado no CAR produz um sujeito refugiado constituído como um
compósito específico de inúmeras relações de poder, que o atravessam quando em
contato com o dispositivo burocrático-administrativo e assistencial-humanitário
etnografado. Documentado e assistido, o refugiado torna-se uma categoria legível e
visível ao olho do Estado, que pode então tecer um mapa que estabilize a complexidade
dessa população e permita codificá-la em sua particularidade em meio à população
nacional. O “campo de refugiados sem cercas” conformado por esse aparato
transnacional de gestão, quando visto em seu modo de funcionamento – a estabilização
e codificação das complexidades de uma população em categorias visíveis e legíveis ao
olho do Estado – pode ser compreendida como um modo de operação não apenas das

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state-like institutions, as organizações paraestatais abordadas neste artigo, mas do


aparato estatal de modo geral.
83 Mais do que esperar encontrar a definição que fixaria a fronteira entre as organizações
envolvidas nessa problemática, ou entre níveis locais, nacionais e globais de atuação
dessas agências, como se este fosse um procedimento preliminar para a demonstração
de como uma dimensão é dependente ou autônoma em relação à outra, procurei,
portanto, examinar os processos sempre políticos pelos quais a incerta, mas poderosa
distinção entre Estado, sociedade e comunidade internacional é criada (Ferguson, 2006).
Desse modo tomo essa distinção entre as dimensões organizacionais de operação desse
aparato, não como a fronteira entre entidades distintas e autocontidas, mas como uma
linha desenhada internamente, em uma rede de mecanismos institucionais pelos quais
uma ordem social e política é mantida (Mitchell, 2006).
84 Assim, o que este trabalho busca apresentar é um modo de funcionamento de
organizações que produzem efeitos de Estado em suas práticas, através de um dispositivo
de gestão que não apreende pessoas singulares, mas somente as categorias que ele
mesmo estabelece. Dessa forma, tal mecanismo torna possível a estes gestores o
exercício de uma intervenção sobre determinadas categorias de pessoas, modulando
suas especificidades e produzindo um governo de suas condutas.

BIBLIOGRAFIA
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neoliberal world order. Durham: Duke University Press, 2006. p. 89-122.

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A. S. (Org.). Refugiados. Vila Velha: Nuares, 2005. p. 95-129.

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Cidadania, n. 1, p. 7-12, 2006.

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VIANNA, C. M. Os enleios da tarrafa: etnografia de uma parceria transnacional entre ONGs através
de emaranhados institucionais de combate à pobreza. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

NOTAS
1. Pesquisa financiada pela Fapesp.
2. Organização não governamental (ONG) católica ligada à rede Caritas Internationalis, que
desenvolve e financia projetos de ajuda humanitária e de desenvolvimento social em todo o
mundo. A Casp é atualmente um dos principais organismos responsáveis pelo trabalho de
recepção, assistência e integração dos refugiados e solicitantes de refúgio que chegam ao Brasil.
3. Um refugiado é caracterizado como aquela pessoa que tem de sair de seu país de origem em
razão de um fundado temor por sua vida, segurança ou liberdade, uma vez que tal país não quer
ou não pode mais oferecer-lhe proteção (Moreira, 2006). Conforme a Convenção de 1951 sobre o
Estatuto dos Refugiados da Organização das Nações Unidas (ONU) as causas reconhecidas para a
solicitação de refúgio são baseadas em um fundado temor de perseguição por raça, etnia, religião,
grupo social ou político. A legislação brasileira também reconhece como refugiado aquela pessoa
que devido a contextos de grave e generalizada violação de direitos humanos teve de deixar seu
país de nacionalidade.
4. Partindo de uma perspectiva foucaultiana, compreendo gestão como uma nova forma de
intervenção estatal que vai fazer com que regulamentações necessárias e encaradas como
naturais possam atuar. Gerir consistiria, simultaneamente, em deixar fazer, manipular, facilitar,
suscitar as condutas dos sujeitos no nível da população, modulando os fenômenos desta, para
mantê-los próximos a uma curva de normalidade (Foucault, 2008).
5. O programa possui quatro assistentes sociais, sendo que duas não são funcionárias da Casp,
mas contratadas por um convênio com o Conare e com o Acnur. Possui ainda duas advogadas,
uma psicóloga, uma psiquiatra e uma contadora responsável pelo setor financeiro, além da
coordenadora do programa e de uma secretária.
6. Entendido como um tipo de exercício de poder, uma técnica de direção das condutas, que
incide sobre as populações, possibilitado por um complexo de saberes, instituições, cálculos,
táticas, análises e práticas, ao qual Foucault (2008) define como governamentalidade.
7. O Conare é composto pelos ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, do Trabalho e
Emprego, da Educação e da Saúde. Também participa do comitê o departamento de Polícia
Federal.
8. A noção de ponto cego, no contexto específico deste trabalho, refere-se às dimensões do real
(Scott, 1998) que não são legíveis ao mecanismo de governo descrito, por não poderem ser
mapeadas e estabilizadas por ele. Aproxima-se da noção de “limbo” mobilizada pelos
funcionários do CAR para se referirem às relações que não são apreendidas pelo aparato
burocrático e assistencial que operam, uma vez que não se encaixam nas categorias e normas
particulares que este produz. Nesse caso, portanto, não se trata da mesma mobilização da noção
de ponto cego feita por Vianna (2010, p. 32), que a compreende como a forma pela qual “a relação
oficial entre organizações revela-se, no exame etnográfico, o efeito de alianças firmadas entre
seus fragmentos, que se engancham a emaranhados institucionais de alcance em geral muito
mais longo do que aquela simples relação pode levar a crer”. No contexto desta pesquisa, porém,
a noção de ponto cego descrita por Vianna pode ser percebida no modo como “Brasília” se
apresenta distante e ilegível para os solicitantes de refúgio, que só acessam diretamente
dimensões do trabalho cotidiano realizado no CAR. A organização Conare fica assim eclipsada
pelo CAR, constituindo seu ponto cego nesse trecho do emaranhado institucional de longo alcance
a que se conecta.

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RESUMOS
Através do trabalho etnográfico realizado em um dos programas assistenciais da Cáritas
Arquidiocesana de São Paulo, o Centro de Acolhida para Refugiados (CAR), o presente artigo
procura descrever a malha de relações estabelecidas pelo aparato de governo das populações
refugiadas no Brasil. Conectado a organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados, o Comitê Nacional para Refugiados, dentre outras organizações, o trabalho do CAR é
parte de um dispositivo institucional mais amplo, que envolve, além da assistência humanitária,
ações simultâneas de administração e controle que perpassam essa população. Procuro, assim,
compreender como tal aparato coloca em operação um mecanismo de governo – aqui
denominado olho do Estado – e como este produz um sujeito que lhe seja apreensível, a partir da
análise das relações estabelecidas entre os refugiados e as diversas organizações com as quais
entram em contato ao solicitarem refúgio: o “campo de refugiados sem cercas”.

Through an ethnographic study conducted in one of the assistance programs of Cáritas


Arquidiocesana de São Paulo, the Centro de Acolhida para Refugiados (CAR), this article aims to
describe the network of relations established by the government apparatus of refugee
populations in Brazil. Connected to organizations such as the United Nations High Commissioner
for Refugees, the National Committee for Refugees and among other organizations, the work of
CAR is part of a broader institutional device, which involves beyond humanitarian assistance,
simultaneous actions of management and control pervade this population. Thus, I tried to
understand how this apparatus puts into operation a mechanism of government – here called eye
of the state – and how this produces a subject that will be understandable, from the analysis of
the relationships established between the refugees and the various organizations they contact to
request refuge: the “refugee camp without fences”.

ÍNDICE
Keywords: government apparatus, organizations, refuge, state
Palavras-chave: aparato de governo, Estado, organizações, refúgio

AUTOR
VANESSA PERIN
Fundação Casa de Rui Barbosa – Brasil

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Naturalismos y acumulación por


desposesión
paradojas del desarrollo sustentable

Carlos Santos

NOTA DEL EDITOR


Recebido em: 27/08/2013
Aprovado em: 19/12/2013

NOTA DEL AUTOR


Una versión inicial de este trabajo fue expuesta en el panel Problemas globais e conflitos
locais del Seminario Internacional de Ciencias Sociales-Ciencia Política “Buscando o sul” de la
Unipampa (Universidad Federal do Pampa), Campus de São Borja. Agradezco al Prof.
Daniel Etcheverry y a los colegas participantes por la invitación y los comentarios
recibidos.
 
Introducción: la escala local del acaparamiento de
tierras y el conservacionismo
1 Los albores del siglo XXI han sido acompañados por dos procesos de apariencia
contradictoria: el aumento global de la producción de bienes y la preocupación por la
conservación de los recursos naturales. Sin embargo los efectos de estos procesos se
retroalimentan en detrimento de las condiciones de reproducción social de sectores
subalternos, replegados a zonas que hasta ahora habían sido consideradas ‘marginales’
para el desarrollo de los sistemas productivos.

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2 Los efectos más evidentes de estos procesos son el acaparamiento de tierras por un lado
(conocido en inglés como land grabbing), y el avance de las políticas de conservación de
la naturaleza (como el establecimiento formal de áreas protegidas), por otro. Ambos
son exponentes de lo que Philippe Descola ha denominado “naturalismo”, o sea
expresiones de la relación alienada de la naturaleza propias de las sociedades
occidentales. La primera bajo la forma de un naturalismo “depredador” y la otra bajo
un naturalismo “conservacionista”.
3 En este artículo se analizan los impactos que estos dos procesos de escala global
producen en un espacio en particular. A partir de la implementación del Parque
Nacional Esteros de Farrapos e Islas del Río Uruguay 1 y del análisis del proceso de
expansión del agronegocio2 en el departamento de Río Negro (litoral oeste de Uruguay),
se pudo apreciar el proceso de deterioro en las condiciones de vida de los pescadores,
apicultores, cazadores y productores familiares del entorno de esta área protegida.
 
La preocupación global por la protección de la
naturaleza
4 La expansión de las áreas protegidas en los últimos años puede entenderse como parte
del proceso de globalización; la cuestión ambiental es una de las primeras
preocupaciones necesariamente no locales de la sociedad, los estados y la
institucionalidad internacional lo que ha tenido como contraparte la identificación de
la biodiversidad como uno de los primeros objetos de la preocupación global sobre la
naturaleza.
5 En los últimos cuarenta años a lo largo y ancho de todo el mundo se ha producido una
verdadera explosión de áreas naturales protegidas establecidas formalmente. Mientras
que en la década del sesenta en todo el planeta había poco más de 1.000 áreas
protegidas oficiales, en 2006 el número llegaba a más de 108.000. Esta expansión tuvo su
punto de inflexión en la Convención sobre Biodiversidad de Naciones Unidas (que
formó parte de los acuerdos de la Cumbre de la Tierra). Allí se estableció el acuerdo de
proteger al menos un 10% de la superficie global, habiéndose superado el 12%, más de
30 millones de kilómetros cuadrados (Dowie, 2006).
6 Las áreas protegidas o parques naturales existen en Uruguay desde mediados del siglo
XX, pero su incorporación dentro de un Sistema Nacional de Áreas Protegidas (SNAP),
gestionado desde el Estado central es una novedad de comienzos del siglo XXI.
7 Entendidas como parte de una estrategia de desarrollo sustentable, las áreas naturales
protegidas implican la opción por un determinado modelo de desarrollo. Esta opción es
válida tanto cuando la declaración de área protegida para un territorio determinado es
adoptada por las autoridades ambientales, por las comunidades que viven en el
territorio o en su entorno, o aún en la definición de actores académicos o no
gubernamentales aplicados a la conservación de recursos naturales. Sin embargo tal
opción no siempre es explícita ni manifiesta en el mismo grado para todos los actores
involucrados.
8 Las áreas naturales protegidas tienen implicaciones sociales, entre otras, la aparición
de nociones sobre ambiente y naturaleza, en lugares donde no necesariamente existían
como tales hasta hace muy poco tiempo. Por otra parte, la participación social,
recomendada, reclamada y asumida, muchas veces es vista como un fin en sí misma,

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como una etapa necesaria en la implementación de las áreas protegidas, sin cuestionar
sus procesos, criterios u objetivos.
 
La presión global sobre la tierra
9 El proceso definido como “acaparmiento mundial de tierras” es en términos concretos
el nombre que recibe “la actual explosión de operaciones comerciales (trans)nacionales
de tierras que giran en torno a la producción y venta de alimentos y biocombustibles”
(Borras Jr.; Franco, 2010, p. 2). Este término ha sido acuñado para denunciar los
impactos de este proceso global sobre la vida de los campesinos y agricultores
familiares, quienes sufren en concreto los efectos de esta dinámica global de
concentración.
10 Esta nueva fase de expansión del capital –conducida por el capital financiero a nivel
trasnacional– es una suerte de respuesta o salida a las crisis generadas por la
especulación, a partir de una necesidad de anclar la riqueza en los recursos naturales.
En términos de Borras Jr. y Franco (2010, p. 4) “la confluencia de las diversas crisis ha
desembocado en una revaloración de la tierra, que apunta hacia un incremento
significativo de su valor económico”. Solamente en el período comprendido entre 1990
y 2005, la tierra cultivada de todo el planeta aumentó 2,7 millones de hectáreas al año
(The World Bank, 2010, p. x). El propio Banco Mundial –responsable de las políticas
financieras y de desarrollo que han desencadenado estas dinámicas en las últimas
décadas– ha advertido la disparidad de este aumento en los países del Tercer Mundo:
el deterioro en los países industrializados y de transición (de -0,9 y -2 millones de
hectáreas, respectivamente) fue más que compensado por incrementos de 5,5
millones de hectáreas por año en los países en desarrollo. La expansión de la tierra
cultivable, que habría sido mucho más amplia sin los aumentos en productividad, se
concentró en el África subsahariana, América Latina y el sudeste de Asia. (The
World Bank, 2010, p. x, traducción mía).
11 Los conductores de del acaparamiento de tierras, han sido la producción de aceites
vegetales, la caña de azúcar, el arroz, el maíz y las plantaciones forestales.
Particularmente sobre América Latina, el cultivo de soja desde la década del 90 y más
recientemente los cultivos de árboles han dinamizado una reforma agraria al revés, que
ha conducido a la concentración de la propiedad de la tierra en detrimento de
campesinos y agricultores familiares.
12 El avance sobre las tierras cultivables de los países del Tercer Mundo ha implicado no
solamente una modificación de los rubros de acción del capital financiero, sino un
aprovechamiento diferencial de las capacidades productivas de estos países, en
beneficio de los inversionistas.
13 Es necesario identificar los actores que están detrás de este proceso de acaparamiento
de tierras. Oyhantçabal y Narbondo (2011, p. 113) sostienen que
Los inversores provienen de todas parte del mundo, aunque es cada vez más
relevante el interés de las potencias emergentes asiáticas China e India, que hasta
2009 acumulaba inversiones en Latinoamérica por U$S 22.000 millones en toda su
historia, creció exponencialmente durante 2010 con el anuncio de nueves grandes
operaciones por casi U$S 17.000 millones. Por su parte, de las diecinueve
inversiones chinas en Latinoamerica desde 2005, quince se destinaron a la
producción de materias primas.

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14 En el caso de América del Sur, algunas empresas de origen brasileño han reproducido
está dinámica global de acaparamiento sobre los demás países de la región, lo que
obliga a pensar no solamente en la nacionalidad de los ‘apropiadores’ sino en el papel
que juegan en la cadena global de un agrocomplejo de producción de alimentos y
energía.
 
De lo global a lo local: un área protegida en un enclave
de agronegocio
15 El espacio local donde pretendemos aterrizar estas discusiones (la confluencia de las
políticas de conservación y el acaparamiento de tierras) es el Parque Nacional Esteros
de Farrapos e Islas del Río Uruguay, ubicado en el departamento de Río Negro, en el
litoral oeste de Uruguay. Uno de los principales elementos a tomar en cuenta para la
elección de esta área como objeto de estudio es el hecho de que se trata de una de las
pocas áreas nuevas en el proceso de incorporación al SNAP, ya que la mayoría de las
que se encuentran proyectadas o han ingresado ya contaban con un carácter previo de
conservación o protección (por ejemplo a nivel municipal). Por otra parte, Farrapos es
un área que ingresó al SNAP a fines de 2008 y aún se encuentra en proceso de
implementación. El área se puede caracterizar como un humedal con islas fluviales que
se ubica en ambas márgenes del Río Uruguay. Este humedal se extiende desde la ciudad
de Concepción (en la margen argentina), mientras que a la altura de la localidad de San
Javier el humedal cruza a la margen uruguaya, extendiéndose en ambas márgenes hasta
la altura de la ciudad de Fray Bentos.
16 El área delimitada como protegida abarca una superficie de 6.327 hectáreas, que
actualmente son propiedad del Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y
Medio Ambiente (desde agosto de 2001, mientras que su anterior propietario era el
Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca, a cargo del Instituto Nacional de
Colonización). Como plantea Diegues (2005, p. 39) para el caso de Brasil, el área de
Farrapos fue delimitada estrictamente en base a criterios científicos; “los denominados
‘atributos naturales de los ecosistemas’ definidos por la biología, ecología no humana,
son considerados los únicos criterios ‘científicamente’ válidos para administrar el
espacio y los recursos naturales”.
17 El interés para la conservación de estos esteros es su carácter de representatividad de
los humedales de zonas transicionales entre áreas tropicales y húmedas, su papel en la
regulación hidrológica del río Uruguay y su carácter transfronterizo (con Argentina),
además de una serie de especies particulares de flora y fauna.
 
La producción (global) de un área protegida (local)
18 Siempre los eventos que se suceden en un determinado espacio están afectados por
dinámicas que le trascienden. Pero este escenario de la ruralidad y la conservación
globalizadas plantea ejemplos particulares de cómo la vida cotidiana de un territorio
específico está limitada por eventos transnacionales. Por ejemplo, ¿qué tienen en
común la ciudad iraní de Ramsar, a orillas del Mar Caspio, con la ciudad suiza de
Montreax a orillas del lago del lago Lemán, con los Esteros de Farrapos, a orillas del río
Uruguay? En principio, claro, las tres están ubicadas sobre importantes cursos de agua.

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Pero más allá de esta evidente y rebuscada conexión, algunos de los procesos por los
que ha pasado la zona de Farrapos están directamente vinculados con acontecimientos
que sucedieron en Ramsar y Montreux, como veremos a continuación.
19 En el año 2000, el Ministerio de Vivienda Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente
adquirió un predio de 6.327 hectáreas en el Departamento de Río Negro, que
comprende la zona de los llamados Esteros de Farrapos. Anteriormente el predio
pertenecía al Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca y era gestionado por el
Instituto Nacional de Colonización. El objetivo de este traspaso fue la incorporación de
Farrapos a al Sistema Nacional de Áreas Protegidas que había sido aprobado por ley ese
mismo año.
20 En el año 2004 a iniciativa de la Dirección General de Recursos Naturales Renovables del
Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca (DGRNR), los Esteros de Farrapos y dos
islas del Río Uruguay ubicadas al sur de los Esteros, fueron presentadas como sitio a ser
incluido en la Convención Ramsar, la Convención de Naciones Unidas para la
protección de humedales. Precisamente la DGRNR era en ese entonces el punto focal del
Estado uruguayo para esta Convención.
21 El sitio Ramsar tiene una extensión de 17.496 hectáreas, 6.917 corresponden a islas del
Río Uruguay, 6.972 corresponden al Estero de Farrapos y 3.607 corresponden a la
superficie del espejo de agua del Río Uruguay (DGRNR-MGAP, 2004).
22 Además del propio valor para la conservación que presentan los Esteros de Farrapos,
otra situación incidió en que el Estado uruguayo los postulara para su inclusión en la
Convención Ramsar, y esto tiene que ver con el llamado Registro de Montreax.
23 Este registro es una suerte de lista negra de todos aquellos países que habiendo
ratificado el Convenio e incluido sitios bajo su amparo no han cumplido con las pautas
de conservación establecidas como compromiso.
24 Uruguay ratificó el Convenio de Ramsar en 1971. A fines de la dictadura militar (en
1984) el Estado uruguayo incluyó los Bañados del Este como sitio a ser contemplado
dentro del Convenio. Sin embargo, también como herencia de la dictadura, se permitió
“la existencia de áreas de humedales intervenidas y abocadas a agricultura bajo riego
(arroz)” (DGRNR-MGAP, 2008, p. 29), lo que hizo que en 1990 la Conferencia de las
Partes del Convenio de Ramsar pusiera en marcha este Registro de Montreux y los
Bañados del Este de Uruguay quedaran incluidos en él. La “intervención” que el
gobierno militar permitió sobre los Bañados del Este, afectó a una casi la cuarta parte
del sitio Ramsar (o sea, unas 100.000 hectáreas del sitio total de 400.000). Para salir del
Registro de Montreux, el Estado uruguayo debe incluir sitios por una superficie
equivalente a esas 100.000 hectáreas.
25 La importancia del Registro de Montreaux no tiene que ver solamente con una cuestión
de “imagen” del Estado: quienes están en este registro ven estrictamente limitada su
aspiración a la postulación de fondos internacionales para la conservación de estos
sitios.
26 La “estrategia nacional” para “sacar el Sitio Bañados del Este y Franja Costera del
Registro de Montreux” consiste en “tomar las medidas necesarias para revertir la
situación de la superficie que decidió la ubicación del sitio en el Registro y
paralelamente, compensar esa superficie (aproximadamente 96 mil hectáreas) con la
creación de nuevos sitios” (DGRNR-MGAP, 2008, p. 29).

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27 Dentro de esos nuevos sitios, están los Esteros de Farrapos: un sitio “compensatorio” de
la zona de los Bañados del Este, humedales que fueron incluidos en la Convención pero
cuya conservación no fue debidamente atendida por el Estado (que se había
comprometido a ello al ponerlos al amparo de la Convención).
28 En el año 2008, se realizó la audiencia pública y se incorporó Esteros de Farrapos al
SNAP, bajo la categoría de “Parque Nacional”, constituyéndose en la segunda área en
ingresar al sistema (la primera había sido unos meses antes Quebrada de los Cuervos en
el departamento de Treinta y Tres). El área que se declara como área protegida e
ingresa al SNAP corresponde a los Esteros de Farrapos, la región continental del sitio
Ramsar y no incluye –al menos en esta etapa– las islas del río Uruguay, las que
ingresarían en una etapa posterior. En el año 2009 el SNAP designó un encargado del
área y en 2010 se ha conformado un equipo con tres trabajadores de campo para el área
(guardaparques y guarda-islas) al tiempo que comenzó a funcionar la Comisión Asesora
Específica (CAE) de Esteros de Farrapos e Islas del Río Uruguay (Boletín SNAP, 2010). En
2103 aún continúa en proceso de elaboración el Plan de Manejo del área que establecerá
los límites del área de amortiguación así como las actividades permitidas y su
distribución dentro del parque nacional y su entorno.
 
Sobre intensificación agrícola y desigualdades
sociales
29 Por otro lado, hemos sostenido previamente que la tendencia histórica hacia la
concentración de los medios de producción (particularmente, la tierra) ha afectado las
condiciones de reproducción social de los habitantes del campo. Esto no es una novedad
de los procesos novedosos como el acaparamiento de tierras. Lo novedoso es la
intensidad del fenómeno y el carácter central que ocupa la dimensión ambiental en el
establecimiento de las desigualdades sociales: los excluidos de la tierra son también
ahora perjudicados en las condiciones del entorno al cual fueron marginados para
subsistir.
30 A partir de la intensificación y la transformación de la producción agrícola desde la
década del sesenta ha habido un proceso de concentración de población en los centros
urbanos en detrimento de la zona rural. La población que ha migrado a los centros
urbanos ha transformado sus dinámicas de reproducción social. En muchos casos,
trabajadores rurales provenientes de la ganadería o la agricultura han adaptado sus
dinámicas a la realización de actividades extractivas, como la pesca, la recolección o la
caza, o la especialización en actividades productivas como la apicultura. Las dos
localidades urbanas ubicadas en el entorno del área protegida son San Javier (al norte)
y Nuevo Berlín (al sur) ambas en el departamento de Río Negro. La mayor parte de los
habitantes de estas dos localidades alternan entre sus actividades entre la pesca,
apicultura y caza, de forma complementaria y estacional. La temporada de mayor
concentración de la actividad de pesca se da entre los meses de abril a octubre,
mientras que la apícola se concentra entre los meses de noviembre a marzo. La caza se
realiza a lo largo de todo el año. Sólo en Nuevo Berlín, actualmente unas 300 familias
alternan entre estas actividades, lo que les otorga un carácter fundamental para la
reproducción social.

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31 Particularmente en la zona que tiene como epicentro la localidad de San Javier y se


extiende en la zona norte del Estero, la actividad que se realiza primordialmente es la
cría de ganado, que podemos clasificar en dos modalidades de acuerdo al régimen de
tenencia de la tierra: un grupo está integrado por quienes poseen establecimientos
rurales en la zona y que utilizan el Estero como zona de pastoreo, mientras que el otro
está conformado por ganaderos sin tierra, que realizan otras actividades (asalariados
rurales, empleados) y complementan sus ingresos con la cría de ganado. La situación de
estos productores ganaderos sin tierra es una consecuencia directa del aumento en el
precio de la tierra (en este caso, del arrendamiento) debido al proceso de concentración
conducido por la intensificación de los cultivos de soja y forestales. En el predio de
Esteros de Farrapos existe un número aproximado de 3.000 cabezas de ganado vacuno,
en las condiciones descriptas.
32 La intensificación de la producción agrícola y su impacto en el precio de la tierra (tanto
en la venta como en el arrendamiento) ha tenido una incidencia directa en las formas
de subsistencia de estos amplios sectores de las localidades de Nuevo Berlín y San
Javier, al tiempo que ha implicado profundos cambios en el mundo del trabajo rural.
33 El territorio que actualmente ocupa el área protegida y su área adyacente tiene una
larga historia de usos, que van desde la ocupación estacional para la caza, la pesca y la
recolección en los tiempos anteriores a la conquista, a una creciente intensificación de
la agricultura.
34 También en un lugar muy próximo a esta zona que ahora conocemos como Esteros de
Farrapos, dio inicio el proceso de colonización –a comienzos del siglo XVII– con la
introducción del ganado vacuno, que ocuparía el territorio al norte del Río Negro antes
que los propios colonizadores europeos.
35 Gestionada como una de las vaquerías de las Misiones Jesuíticas, una de las formas
iniciales de apropiación tiene que ver con el reclamo de propiedad privada de estos
territorios, que tuvo lugar a mediados del siglo XVIII. La definición de la propiedad
privada de la tierra ha sido el organizador de la vida social y productiva de Uruguay
desde entonces.
36 Algunos se establecieron como dueños de la tierra y otros como trabajadores de las
grandes estancias ganaderas. A fines del siglo XVIII y comienzos del siglo XIX la zona
comenzó a orientarse hacia la producción agrícola, a partir de la llegada de colonos
europeos pero esta vez procedentes de Alemania o el Cáucaso. A partir de aquí, a lo
largo del siglo XX se daría un proceso de intensificación agrícola en todo el
departamento de Río Negro. A finales del siglo XX y en los primeros años del siglo XXI,
este proceso se intensificaría aún más a partir del auge de la producción forestal y
sobre todo de la producción de soja.
37 Veamos en detalle algunos elementos de los procesos desencadenados en los últimos
años. Macadar y Domínguez (2008, p. 84) sostienen que la consolidación del modelo
productivo agroexportador condujo a la concentración de la población “en el sur y
litoral oeste del país” haciendo que éstas áreas fueran “las más dinámicas por su
continua atracción de capital y mano de obra en detrimento del centro y norte del
país”. A nivel interno del departamento de Río Negro, el proceso de consolidación de
este modelo productivo condujo a la concentración de la propiedad de la tierra y al
desplazamiento de los pequeños productores agropecuarios (en general, de carácter

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familiar, algunos propietarios otros arrendatarios) desde el medio rural a las pequeñas
ciudades.
38 En términos de evolución de la población, en el año 1956 el departamento de Río Negro
tenía una población rural de 14.729 personas, mientras que en 1966 ascendía a 10.640.
En ese mismo período se redujo a la mitad el número de trabajadores rurales, pasando
de un promedio de 6 trabajadores por predio en 1956 a 3,2 trabajadores por predio en
1966 (Nuestra Tierra, 1970).
39 De acuerdo al censo de 1963, la población rural representaba el 34,4% de la población
del departamento, mientras que las localidades de Nuevo Berlín y San Javier tenían una
población de 1.912 (Nuevo Berlín) y 1.178 habitantes (San Javier). En 2004 el peso de la
población rural se redujo a 12,5%, el peso relativo de las localidades de Nuevo Berlín y
San Javier se mantuvo, mientras que el peso de la capital departamental (Fray Bentos)
aumentó de 37,4% en 1963 a 42,8%. En términos de migración interdepartamental,
Macadar y Domínguez (2008) ubican a Río Negro como uno de los departamentos
expulsores de población entre 1996 y 2001.3
 
El protagonismo del agronegocio
40 La zona donde se encuentran los Esteros de Farrapos no ha sido ajena al avance de la
frontera agrícola ni a las recientes transformaciones que ese avance ha implicado, ante
la consolidación del agronegocio como actor fundamental en la producción rural, lo que
Hernández (2009, p. 39) ha denominado “ruralidad globalizada”. El concepto de
agronegocio supone una superación de la visión de la producción agrícola acotada a la
explotación, postulando la integración horizontal y vertical de la producción agrícola e
industrial, para lo cual es necesario superar también la idea de las fronteras nacionales
(Hernández, 2009).
41 Lo que se denomina área de amortiguación (área próxima al área protegida, pero no
incluida dentro de sus límites4) incluye una zona de intensa producción agrícola y
forestal (ya que la ganadería ha ido cediendo paso a estas otras producciones). En este
proceso, la principal transformación ha sido la transnacionalización de la producción
agrícola con la emergencia de empresas que compran tierras (en el caso de la
forestación) o las arriendan (en el caso de la soja) en grandes extensiones, aplicando
paquetes tecnológicos “de diseño”, cuyo ejemplo paradigmático es el de la soja
transgénica rr5 y el glifosato de la mano de la siembra directa, la combinación de una
semilla de laboratorio que es resistente a un herbicida específico, ambos producidos
por la misma empresa transnacional (en este caso la empresa Monsanto, cuya expresión
rioplatense es la empresa Nidera).
42 Trabajando con información relativa a todo el departamento de Río Negro, 6 se puede
ver claramente el aumento de la superficie destinada a la producción forestal
(eucalyptus y pino). Mientras entre 1975 y 1989 la superficie departamental destinada a
esta producción era de 3.494 hectáreas, en 2008 la superficie total forestada llegaba a
104.217 hectáreas.7 En lo que respecta a los actores de este proceso de expansión, dos
empresas concentran la mayor cantidad de superficie: Forestal Oriental (propiedad de
los capitales finlandeses que también son dueños de la Planta de Celulosa de UPM/
Botnia en la ciudad de Fray Bentos, también en el departamento de Río Negro) y
EUFORES (propiedad hasta el año 2009 de la española ENCE, desde entonces ha pasado a

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manos de una asociación entre la chilena Arauco y la sueco-finlandesa Stora Enso, bajo
el nombre de Montes del Plata).
43 En lo que respecta a la producción de soja la superficie cultivada en el departamento de
Río Negro prácticamente se ha triplicado desde la zafra 2003/2004 (55.218 hectáreas) a
la zafra 2009/2010 (151.812 hectáreas).8 En este rubro es más difusa la identificación de
los actores detrás de la expansión del cultivo, pero las empresas que ha tenido una
mayor proyección en la producción sojera en el litoral oeste de Uruguay son las
empresas de capitales argentinos El Tejar y Agronegocios Del Plata (Oyhantçabal;
Narbondo, 2011). En este caso, además del aumento de la superficie cultivada ha sido
significativo el cambio en la relación entre cultivos de invierno y cultivos de verano y
una disminución de la rotación agricultura/ganadería, en favor de una secuencia
agricultura/agricultura, lo que tendencialmente permite preveer una especialización
agrícola de la zona:
El destino inmediato posterior a los cultivos de verano son cultivos de invierno y
barbecho para futuros cultivos de verano en la próxima campaña. […] en 2009 se
cuantificó que el destino inmediato posterior a la cosecha de los cultivos de verano,
fue que el 66% de la superficie se destina a cultivos de invierno 2009/2010 y 30,6% se
destina a barbecho para un próximo cultivo de verano. (Paolino; Lanzilotta; Perera,
2009, p. 25).
44 Se ha procesado un cambio en los actores empresariales, con protagonismo directo de
conglomerados empresariales transnacionales, cambios tecnológicos que a su vez
permiten (o provocan) significativos cambios en la escala de producción. Este proceso a
su vez se refleja en la tenencia y de control de la tierra.
45 En la primera década del siglo XXI un equivalente al 52% de la superficie total del
departamento de Río Negro cambió de dueño, mientras que los arrendamientos
acumulados son equivalentes al 42% de la superficie departamental. Como se puede
apreciar, estos no son apenas cambios productivos, sino que afectan la estructura
agraria del país,9 y profundamente la del departamento de Río Negro (Santos, 2011).
 
Las transformaciones recientes y el impacto
ambiental
46 Empezando por estas últimas situaciones, las transformaciones productivas de la
primera década del siglo XXI han generado un desplazamiento de la mano de obra
tradicionalmente rural (peones de baja calificación) a estas pequeñas localidades,
donde han basado su subsistencia en actividades de caza, pesca y recolección. Esto ha
implicado un claro aumento en la presión sobre los recursos naturales, ya que ha
aumentado la cantidad de personas que subsisten en relación a estas actividades.
47 Al mismo tiempo, como veremos a continuación, esta intensificación de la producción
agrícola ha generado un aumento en el uso de agrotóxicos, lo que ha tenido su
consecuente impacto ambiental, precisamente en relación a las actividades que realizan
estos sectores, básicamente en lo que tiene que ver con la pesca y la apicultura
(incluimos en esta amplia denominación no sólo la producción de miel con destino a la
comercialización, sino a la captura de enjambres, tarea que podría colocarse en el inicio
de la cadena productiva de la apicultura, con la recolección de enjambres silvestres
para destinarlos a la producción).

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48 En Uruguay no existen relevamientos directos de los impactos de la aplicación de


agrotóxicos en la agricultura. Los únicos momentos en que se realizan mediciones en
los niveles de estas sustancias en el ambiente tienen que ver con eventos de
mortandades masivas de animales (peces, abejas y en zonas próximas en el vecino
departamento de Paysandú, incluso de vacas y terneros).
49 Un estudio de la organización Vida Silvestre10 a lo largo del año 2009, detectó “la
presencia de residuos de plaguicidas altamente tóxicos en peces de valor comercial y
consumidos a nivel local” (Vida Silvestre, 2010, p. 6) como tarariras, bagres, sábalos y
bogas. Con respecto a la agricultura, el estudio constató que “los insecticidas utilizados
en los sistemas agrícolas estudiados, tiene un elevado impacto sobre la apicultura,
generando entre otras cosas, una clara disminución de la producción de miel” (Vida
Silvestre, 2010, p. 6).
50 En lo que respecta a los momentos en que se registraron mortandades masiva de peces
y abejas, el estudio permitió constatar “altas concentraciones” de plaguicidas, así como
en “suelos productivos tiempo después de su aplicación (hasta 3 años en suelos de uso
forestal y un año después en suelo de uso sojero) y su presencia en suelos de ambientes
naturales, incluyendo el área protegida” (Vida Silvestre, 2010, p. 6).
 
La acumulación por desposesión vivida desde abajo
51 Los actores locales han vivido desde adentro los diferentes efectos de la intensificación
de la agricultura en la zona. Primero por el aumento en el precio de la tierra y el
desplazamiento de productores rurales (ya sea arrendatarios o pequeños propietarios),
sustituidos por empresas transnacionales, alguna de ellas identificables –como las
forestales, que señalan sus campos con carteles e incluso tienen fundaciones de vínculo
con las comunidades– y otras muy difusas, como las del agronegocio.
52 Una de las primeras dificultades las vivieron los apicultores. Por su sistema productivo,
se puede decir que su producción es trashumante: las colmenas se mueven y se ubican
en diferentes lugares. Por lo general, los apicultores no son dueños de la tierra, por lo
que dependen de conocimiento previo o vínculos de confianza para acceder a los
lugares dónde colocar sus colmenas. En el caso de la forestación, este vínculo se ha
institucionalizado al punto de tener que pagar un arrendamiento (por colmena) para
poder acceder al derecho de colocar las colmenas dentro de las plantaciones forestales.
53 Aquí reside uno de los motivos principales al hecho de porqué los apicultores en
general no han hecho públicas las denuncias de mortandad de abejas que se vienen
registrando desde que se ha intensificado el uso de agrotóxicos en la zona, a través de
las fumigaciones para la agricultura (básicamente, para la soja, sobre todo y en niveles
nunca antes conocidos, desde el 2003). Los apicultores se ven enfrentados al dilema de
no denunciar la mortandad de abejas para no se expulsados del lugar donde les han
permitido instalar sus colmenas o perder el lugar donde se encuentran por un reclamo
de justicia productiva, antes que ambiental. Aquí juega mucho la relación entre los
apicultores y los responsables de los campos o aún de los propietarios que arriendan
para la soja (y a quienes indirectamente perjudicarían, al realizar la denuncia).
54 En el caso de los pescadores, hay una percepción directa del aumento de las
mortandades de peces. Sin embargo no es directa la asociación –o por lo menos, no lo

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era hasta la presentación del estudio sobre impactos de los agrotóxicos en la región–
entre estos fenómenos y la intensificación de la producción agrícola.
55 Por ello, seguramente, el conflicto entre actividades como la pesca o la apicultura y el
agronegocio ha tenido hasta ahora mucho de silencioso, y sólo recientemente –con la
presentación del estudio de Vida Silvestre– se ha hecho público.
56 Algunos de los pescadores de Nuevo Berlín coloca el problema de la contaminación de
los peces en clave de una situación de subsistencia de toda la población local y de la de
su propia familia, “ya no sé para dónde disparar” era una frase recurrente, no sólo en
referencia al lugar sino a la búsqueda de fuentes alimenticias seguras.
57 Por su parte en alguno de los discursos de los apicultores entra en juego la existencia
del área protegida, en un carácter instrumental, que reafirma la defensa de su propio
punto de vista:
La verdad es que la situación es desesperante para los apicultores; se dice que en
Uruguay se ha perdido la mitad de las colmenas, y acá tenemos un área protegida se
da una contradicción por la mortandad masiva de abejas que hemos tenido.
Queremos que el gobierno tome carta en el asunto rápidamente, los apicultores
pensamos y analizamos que si el gobierno no realiza una acción rápida, el sector se
termina en cuatro o cinco años en la zona. No pretendemos que el agro se corte ni
que no se siembre más soja, pero sí que haya un control muy estricto. (Muñoz, 2010,
p. 9).
58 Pero, ¿hasta dónde este es un conflicto redistributivo ambiental? ¿Podemos hablar aquí
de demandas de justicia ambiental o estamos ante un conflicto “productivo”? Más allá
de los argumentos en juego, es claro que hay un grupo de actores (básicamente
pescadores y apicultores, con fundamentos a partir de su vínculo con una organización
ambientalista) que colocan este conflicto en términos de redistribución de la
contaminación poniendo en cuestión los impactos de la utilización incontrolada de
agrotóxicos.
 
Naturaleza, sustentabilidad y conflictos económicos
59 La manera de percibir y representar las relaciones entre la sociedad y la naturaleza es
producto de procesos históricos y sociales y por ello, la manera en que el ser humano se
ha pensado y representado en relación con la naturaleza es diversa a lo largo de la
historia y a través de los diferentes contextos sociales. Cada grupo humano (cada
sociedad, cada cultura) tiene una particular percepción de un entorno inmediato que –
en muchas ocasiones– es definido como “natural” aunque sea producto de
modificaciones antrópicas también históricas y acumulativas. En cierto modo, lo que se
defina por conservación y por producción dependerá del contexto de significación en
que esta idea esté inscripta, o sea, dependerá de cómo se plantee la relación entre
naturaleza y sociedad o entre cultura y ambiente. Es así que debemos enfocarnos en lo
que se define como natural o naturaleza en cada momento histórico y en cada lugar
geográfico para discutir en ese contexto si el hombre está “dentro o fuera” de esa
noción de naturaleza (West; Igoe; Brockington, 2006).
60 La idea de área protegida, heredera de la noción de “parque” implica una posición
externa, una posición de observador, de admirador de una naturaleza que está fuera de
ella. Pero muchas veces esa naturaleza o esos paisajes propios de los parques no son un
producto solamente natural ya que, por ejemplo, la vegetación ha sufrido importantes

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transformaciones producto de la intervención humana. Por otra parte, la idea de


establecer un área que se debe proteger también implica una cierta concepción que
denota el carácter externo del ser humano con respecto a la naturaleza, ya que se
plantea la responsabilidad de los seres humanos como tales de conservar o proteger un
determinado espacio, sin “intervenir” como postulan muchos exponentes del
conservacionismo.
61 En un principio la coexistencia entre conservación y producción se consideraba a partir
de criterios de ordenamiento territorial: era necesario establecer la áreas de exclusión
en las cuáles solamente se iban a realizar actividades de conservación. Un resguardo del
avance de la frontera agrícola, una especie de generación de islas de naturaleza en un
campo de avanzada modificación humana. Pero a partir de la segunda mitad del Siglo
XX, la idea de Parques Naturales como santuarios se fue transformando y
complejizando, tendiendo a una idea que incluye a la conservación como estrategia de
desarrollo sustentable y, al mismo tiempo, a la visualización de determinadas prácticas
productivas (que podríamos llamar de amigables con el ambiente) como otras formas
de conservación. Los datos analizados para el departamento de Río Negro y
particularmente el entorno del área protegida Esteros de Farrapos e Islas del Río
Uruguay claramente cuestionan esta posible coexistencia. El avance de los sistemas
productivos del agronegocio implica el proceso de extracción de riqueza a partir de los
recursos naturales conduciendo al agotamiento de recursos tales como el suelo o a la
degradación de recursos como el agua y el aire a partir del uso de agrotóxicos, que por
otra parte son los medios de vida de la mayor parte de la población.
 
Naturalismos
62 Existen muchos fundamentos para abordar desde las ciencias sociales las políticas,
discursos y prácticas de la “conservación de la naturaleza”. Procederemos aquí a
plantear algunas de ellas. En el plano teórico/epistemológico, las ideas de conservación
de la naturaleza son una de las expresiones centrales del pensamiento moderno en
relación a lo que provisoriamente podemos llamar “lo natural”. Como ha planteado
Philippe Descola (2004, p. 88, traducción mía), la noción de naturaleza es construida
socialmente y su visión dicotómica en relación a lo social es propia de la cosmología
occidental, que ha construido una suerte de fetichización de la naturaleza:
Típico de las cosmologías occidentales desde Platón y Aristóteles, el naturalismo
creó un dominio ontológico específico, un lugar de orden y necesidad, donde nada
sucede sin una razón o una causa, ya estén originadas éstas en Dios […] o sean
inmanentes a la fábrica del mundo (‘las leyes de la naturaleza’). 11
63 Este modo de identificación que Descola (2004, p. 88, traducción mía) reconoce como
“naturalismo” es “la creencia de que la naturaleza simplemente existe, y de que algunas
cosas deben su existencia y desarrollo a un principio ajeno tanto al azar como los
efectos de la voluntad humana” y que actúa como un supuesto que estructura nuestra
epistemología.12
64 Este naturalismo tiene dos expresiones en la relación entre la sociedad y la naturaleza
en la cosmología occidental y moderna. Una es el naturalismo depredador y otra el
naturalismo conservacionista.
En cuanto al naturalismo depredador, es menos un valor que una práctica de la
vieja Europa, nacida en la Edad Media cuando grandes extensiones de bosques

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fueron despejadas para cultivar; una práctica que adquirió legitimidad con la
filosofía cartesiana, y su expresión plena con la mecanización del mundo, tanto en
lo físico como en el sentido técnico de la expresión; una práctica que se
transformaría en el destino histórico de Europa, bajo el nombre de producción,
cuando la sociedad burguesa se las arregló para autoconcebirse como la
encarnación de un orden natural. (Descola, 2004, p. 97, traducción mía). 13
65 En este sentido, la protección de la naturaleza no es más que la contracara de esta
relación de depredación con el entorno:
en los movimientos conservacionistas contemporáneos, la protección de los no
humanos no está desprovista de autogratificación. Se transfiere el dominio
cartesiano y la propiedad de la naturaleza a otro plano, un pequeño enclave en
donde se alivia la culpa y la dominación paternalista eufemísticamente
transmutado en la preservación protectora y la apreciación estética. (Descola, 2004,
p. 91, traducción mía).14
66 Desde este punto de vista, procesos de depredación ambiental y de conservación de la
vida silvestre responden a una misma lógica: una lógica que ubica a la sociedad por
fuera de la naturaleza. Esto es algo que también a advertido Ingold (2002), en relación a
la utilización de los conceptos de naturaleza y ambiente.
La distinción entre ambiente y naturaleza corresponde a la diferencia de
perspectiva entre vernos a nosotros mismos como seres dentro del mundo y como
seres fuera de él. Por otra parte, tendemos a pensar la naturaleza como externa, no
sólo a la humanidad […] sino también externo a la historia, como si el mundo
natural proveyera un telón de fondo permanente para la realización de los asuntos
humanos. (Ingold, 2002, p. 20, traducción mía).15
 
El metabolismo sociedad-naturaleza
67 Un concepto que es útil para trabajar la relación sociedad-naturaleza desde la discusión
en torno a la sustentabilidad es el de metabolismo que aparece en Marx (desarrollado
por Foster, 2000). Esta noción de metabolismo está anclada directamente en la idea de
trabajo, que en el pensamiento de Marx (1987, p. 215) es la mediación entre la sociedad
y la naturaleza:
el trabajo es un proceso entre el hombre y la naturaleza, un proceso en que el
hombre media, regula y controla su metabolismo con la naturaleza. El hombre se
enfrenta a la materia natural misma como un poder natural. Pone en movimiento
las fuerzas naturales que pertenecen a su corporeidad, brazos y piernas, cabeza y
manos, a fin de apoderarse de los materiales de la naturaleza bajo una forma útil
para su propia vida. Al operar por medio de ese movimiento sobre la naturaleza
exterior a él y transformarla, transforma a la vez su propia naturaleza.
68 En el caso de Farrapos, es claro que el acceso a la tierra es uno de los factores
determinantes en el proceso de exclusión de los trabajadores rurales, así como de los
pequeños productores familiares (arrendatarios o propietarios, aunque éstos últimos se
vean en parte beneficiados del proceso). Esta es la contracara del proceso de
concentración de la tierra.
69 Pero la discusión instalada a partir de la afectación de los sistemas productivos que
dependen en mucho mayor grado de la calidad ambiental (la pesca, la apicultura) tiene
que ver con las formas de apropiación/expropiación en relación al bien común que
podemos denominar provisoriamente ambiente.

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70 El acceso al agua y al aire sin contaminación, la posibilidad de que los servicios


ambientales (polinización, el cumplimiento del ciclo reproductivo de peces y abejas, en
este caso) se lleven a cabo son factores críticos, y aunque nadie se apropie directamente
de ellos, si podemos dar cuenta de procesos de acumulación por desposesión, como los
caracteriza Harvey. Dentro de estos procesos se encuentra
La reciente depredación de los bienes ambientales globales (tierra, aire, agua) y la
proliferación de la degradación ambiental, que impide cualquier cosa menos los
modos capital-intensivos de producción agrícola, han resultado de la total
transformación de la naturaleza en mercancía. (Harvey, 2007, p. 114).
71 En cierto sentido podemos pensar, a partir de los planteos de Tilly (2000) hasta dónde
un proceso como la expansión del agronegocio en un territorio concreto no genera una
forma de desigualdad categorial en relación a la posesión o no de un recurso básico para
la reproducción social, como es la tierra. Una visión que incluyera los impactos de este
tipo de sistemas productivas nos obligaría a ampliar esa idea de tierra como recurso a la
tierra como sustento de procesos ecosistémicos, lo que nos llevaría a incluir al agua, el
aire o el hábitat de especies fundamentales para la las dinámicas ecológicas pero al
mismo tiempo fundamentales para la reproducción social. El mecanismo de exclusión
podría operar en relación al criterio básico (acceso o no a la tierra en tanto que recurso)
mientras que el acaparamiento de oportunidades se marca en la imposibilidad de
coexistencia de estos sistemas productivos –en un contexto de escasa regulación– con
otros (como por ejemplo, los que hemos discutido aquí de la pesca o la apicultura). En la
situación de acceso a la tierra, es necesario tomar en cuenta lo novedoso de la
expansión de la soja, en relación a las amplias superficies de tierra que son controladas
no por la vía de la propiedad, sino por la del arrendamiento. Si bien la exclusión
operaría a través del mercado, no pasa necesariamente por la propiedad de la tierra,
sino por la capacidad de tener o captar recursos hacia el pago del arrendamiento de la
tierra. Una nueva modalidad, en el marco de un viejo mecanismo de diferenciación
social en el campo.
 
La escala global de la reproducción social: apuntes
sobre naturaleza y sociedad
72 Los datos que hemos analizado para el departamento de Río Negro y particularmente el
entorno del Área protegida Esteros de Farrapos e Islas del Río Uruguay claramente
confirman la tendencia general de la producción en un marco capitalista, que es,
necesariamente, la degradación de los recursos naturales. El acaparamiento de tierras –a
través del avance del agronegocio– implica el proceso de extracción de riqueza a partir
de los recursos naturales conduciendo –como quizás no había sucedido antes– al
agotamiento de recursos tales como el suelo o a la degradación de recursos como el
agua y el aire a partir del uso de agrotóxicos. Esto ocurre en un espacio que también es
objeto de políticas globales de conservación, como la Convención RAMSAR o la
Convención sobre Diversidad Biológica de Naciones Unidas.
73 En el plano local, los usos de los recursos naturales que los habitantes del área realizan
para su reproducción social nos plantean un debate aún mayor: ¿que pasa si
consideramos esas actividades de subsistencia (caza, pesca, recolección de enjambres
de abejas) como actividades “productivas”? en tanto transformación de la naturaleza
que viabiliza una determinada reproducción social (Narotzky, 2004). En este sentido sí

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podríamos plantear una coexistencia entre conservación y producción, pero


evidentemente estas dinámicas no son las hegemónicas y deben ser evaluadas en su
propio contexto. Las transformaciones en el uso y propiedad de la tierra han
determinado que un número mayor de personas resida en las zonas urbanas,
despojadas de sus habituales medios de producción y reproducción. Por ende, la
presión sobre las actividades de subsistencia también ha aumentado y su carácter no
antagónico con la conservación.
74 Esta situación anula la premisa de Marx acerca del metabolismo de la sociedad con la
naturaleza, según la cual lo que requiere explicación
no es la unidad del ser humano con la naturaleza, esto es parte de la naturaleza
física y química. Lo que requiere explicación es el proceso histórico a través del cual
se separa –se aliena– la existencia humana de las condiciones naturales para
reproducirse. (Foladori, 2001, p. 77).
75 Parece claro entonces que la generación de áreas protegidas de ningún modo supone
límites al avance de la expansión del capitalismo sobre el campo, sobre la naturaleza. La
preocupación que viven los actores locales de las áreas cobran mayor vigencia en este
contexto de discusión: ¿por qué se prohíben actividades extractivas de subsistencia y a
pocos metros de distancia el agronegocio de desarrolla a escalas históricas nunca antes
registradas generando una serie de beneficios que no son distribuidos, por lo menos en
el nivel local?
76 Evidentemente la tensión conservación/producción no será resuelta en el entorno del
Área protegida Esteros de Farrapos e Islas del Río Uruguay. Será necesario que la
implementación de esta política pública de conservación tome en cuenta las dinámicas
propias de las poblaciones afincadas en el espacio que ocupará el área así como los
procesos socioeconómicos que se vienen registrando en la región, para poder
minimizar los conflictos que se producirán a la hora de tratar de acompasar la
protección ambiental con la generación de riqueza a partir de la explotación de los
recursos naturales.
77 En cierto sentido, la idea de naturaleza que orienta la implementación de áreas
protegidas parece tener mucho más en común con la visión desde arriba que tiene el
agronegocio. No es otra cosa que lo que ha planteado Horacio Machado Araóz; una
ecología política de la modernidad debe desentrañar la articulación Ciencia-Estado-
Capital con el fin de desnaturalizar la naturaleza (Machado Araóz, 2009).
78 Las diferentes territorialidades en juego se evidencian en las prácticas de los actores y
en sus discursos, discursos que como se redefinen los conceptos de pertenencia y
ciudadanía en la poscolonialidad. En este marco, también es crítico entender si el
establecimiento de áreas protegidas forma parte de una estrategia de mitigación de los
impactos del desarrollo o de la superación de las limitantes que el avance de las
relaciones capitalistas de producción genera sobre la relación sociedad-naturaleza. En
este sentido, la idea de superación de las nociones tradicionales de desarrollo –aún las
de desarrollo sustentable– debe ser contemplada. Esto es lo que Arturo Escobar (1996)
ha denominado posdesarrollo.
79 Entendida como parte del proceso de globalización, la expansión de las áreas protegidas
es la contracara de la expansión del capitalismo sobre los bienes de la naturaleza. La
institucionalidad ambiental transnacional y multiescalar es el contrapeso de la
consolidación del agronegocio en el campo –en lugar de la producción campesina y de

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la producción familiar– y del avance de industrias extractivas sobre la naturaleza (como


la minería o aún la propia intensificación de procesos de producción agrícola).
80 A pesar del aumento sostenido en la superficie bajo condiciones de protección, de
ninguna manera esto implica la consolidación de contratendencias a la tendencia
general de la producción en un marco capitalista que es, necesariamente, la
degradación de los recursos naturales. Si se alcanzase la meta de asegurar la protección
de el 12% de la superficie del plantea, en el casi 90% restante del planeta las lógicas de
producción capitalista serán las predominantes, las impulsadas por las dinámicas de
avances de la frontera agrícola y de intensificación del sistema industrial de producción
aplicado a la agricultura.

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NOTAS
1. El análisis del proceso de implantación de esta política de conservación surge de la tesis de
maestría del autor (Santos, 2011) en el marco del programa de posgrado en Ciencias Sociales de
UNGS-IDES, Beca “Naturaleza, sociedad y territorio” del Programa Regional de Becas del Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales CLACSO-ASDI 2008 para América Latina y el Caribe).
2. Este análisis tiene como antecedente el trabajo “La expansión del agronegocio agrícola en
Uruguay: impactos, disputas y discursos” en coautoría con Gabriel Oyhantçabal e Ignacio
Narbondo, discutido en el panel “Family farming and agribussines: Territorial disputes and
symbolic struggles” del Latin America Studies Association (LASA) Congress (San Francisco, 2012).

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3. Según los autores, el saldo migratorio negativo que presenta el departamento de Río Negro en
ese período (sobre todo en relación con el vecino departamento de Paysandú) se revierte a partir
del año 2003 cuando empieza el proceso de construcción de la actual fábrica de celulosa de UPM/
Botnia en Fray Bentos (que según diferentes estimaciones, ocupó unas 3.000 personas durante el
proceso de construcción de la planta).
4. Hasta ahora sólo se conoce la delimitación del área protegida y no la del área de amortiguación
o área buffer.
5. RR es la denominación de esta semilla, precisamente por su resistencia al glifosato, o sea
RoundUp–nombre comercial de este producto– Ready.
6. Existen importantes dificultades para analizar procesos de transformación como este que ha
sucedido en el medio rural uruguayo, entre otras cosas por la dificultar de desagregar la
información disponible a la escala de un área protegida o aún de su zona de amortiguación. El
último Censo General Agropecuario fue realizado en el año 2000 y precisamente ha sido en el
período posterior al censo donde se han profundizado estas grandes transformaciones en el agro
uruguayo. La información disponible es relativa a encuestas sectoriales realizadas por el
Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca, cuyos datos no pueden ser desagregados más allá
de la escala departamental (que es precisamente la que usaremos aquí para reconstruir en líneas
generales este proceso).
7. Información estadística de la Dirección Forestal del MGAP (www.mgap.gub.uy).
8. Datos de IICA (2009) y Paolino, Lanzilotta y Perera (2009).
9. Según sostienen Oyhantçabal y Narbondo (2011, p. 63) en Uruguay “los “nuevos agricultores”
pasaron de no existir” en 2000 “a representar el 12% de los productores y controlar el 54% de la
superficie de los cultivos agrícolas” en 2007. Su principal rubro es el cultivo de soja, del cual
controlan la mayor parte de la superficie, de modo que al 2007, de los 800 productores de soja,
cerca del 1% (11 empresas) controlaba el 37% de la superficie.
10. El proyecto llevado adelante por Vida Silvestre contó con financiamiento de la UICN (Unión
Internacional para la Conservación de la Naturaleza) e involucró a equipos de investigadores de
las Facultad de Química y Ciencias de la Universidad de la República y del Instituto Nacional de
Investigaciones Agropecuarias (INIA). Los análisis de las muestras fueron realizados en
laboratorios de Alemania, en virtud de la dificultad de encontrar técnicas de medición ajustadas
en laboratorios de la región.
11. En el original: “Typical of western cosmologies since Plato and Aristotle, naturalism creates a
specific ontological domain, a place of order and necessity where nothing happens without a
reason or a cause, whether originating in God [...] or immanent to the fabric of the world (‘the
laws of nature’).”
12. En el original: “Naturalism is simply the belief that nature does exist, that certain things owe
their existence and development to a principle extraneous both to chance and to the effects of
human will.”
13. En el original: “As for predatory naturalism, it is less a value than an old European practice,
born in the Middle Ages when large tracts of forest where cleared for cultivation; a practice
which acquired its legitimacy with Cartesian philosophy, and its full expression with the
mechanisation of the world—in the physical as well as in the technical sense of the expression; a
practice which then transformed into the historical destiny of Europe, under the name of
production, when bourgeois society managed to conceive itself as the embodiment of a natural
order.”
14. En el original: “in contemporary conservationist movements, the protection of non-humans
is not devoid of selfgratification. It transfers the Cartesian mastery and ownership of nature to
another plane, a small enclave where guilt is alleviated and domination euphemistically
transmuted into patronising preservation and aesthetic entertainment.”

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15. En el original: “Thus the distinction between environment and nature corresponds to the
difference in perspective between seeing ourselves as beings within a world and as beings
without it. Moreover we tend to think of nature as external not only to humanity, as I have
already observed, but also to history, as though the natural world provided an enduring
backdrop to the conduct of human affairs.”

RESÚMENES
Este artículo analiza la manera en que dos procesos globales (el acaparamiento de tierras y las
políticas de conservación de la naturaleza) intervienen en las dinámicas de reproducción social
de los habitantes del entorno de un parque natural en Uruguay. Ambas escalas permiten poner
en juego los diferentes naturalismos categorizados por Descola. La idea de acumulación por
desposesión, de Harvey da cuenta de esta fase de expansión del capitalismo sobre los “bienes
comunes”, cuya característica central es la degradación y depredación de los recursos naturales.
Por su parte la implementación de políticas públicas de conservación en este contexto consolida
paisajes duales (unos dedicados a la preservación de la naturaleza y otros a su explotación
indiscriminada). El análisis permite discutir la insustentabilidad de las relaciones sociales
dominantes, así como las diferentes dimensiones y escalas de análisis complejizan la
comprensión de los efectos locales y combinados de estos dos fenómenos globales.

This paper examines how two global processes (land grabbing and conservation policies) are
involved in the dynamics of social reproduction of the inhabitants of a national park in Uruguay.
Both scales can be brought into play the different naturalisms categorized by Descola. Harvey’s
idea of accumulation by dispossession, realizes this phase of expansion of capitalism on the
“commons” whose central feature is the degradation and natural resource depletion. Meanwhile
the implementation of conservation policies in this context consolidates dual landscapes (some
dedicated to the preservation of nature and others to indiscriminate exploitation). The analysis
allows us to discuss the unsustainability of the dominant social relations, as well as various sizes
and scales of analysis bring complexity of the understanding of local and combined effects of
these two global phenomena.

ÍNDICE
Keywords: accumulation by dispossession, conservation, environmental anthropology,
sustainability
Palabras claves: acumulación por desposesión, antropología ambiental, conservación,
sustentabilidad

AUTOR
CARLOS SANTOS
Universidad de la República – Uruguay

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Espaço Aberto

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“Desdisciplinar a antropologia”
diálogo com Eduardo Restrepo

1 O antropólogo colombiano Eduardo Restrepo vem trilhando uma trajetória político-


intelectual que conjuga o estudo sistemático dos processos coletivos protagonizados
pelas populações negras de seu país com o exercício da crítica radical ao discurso
multiculturalista e ao que ele denomina establishment disciplinar da antropologia. Esta
última dimensão de seu trabalho se vê refletida nos debates coletivos que ele
desencadeou ao lado de Arturo Escobar, Lins Ribeiro, entre outros, em torno da noção
de antropologias do mundo. No contexto do evento “Ensaios, críticas e leituras
antropológicas sobre o neoliberalismo”, organizado pelos estudantes do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS em setembro de 2012, Eduardo
Restrepo discorreu sobre questões relacionadas à sua trajetória de formação
intelectual, à institucionalização da antropologia na Colômbia e às suas reflexões atuais
sobre a emergência e o exercício de “antropologias de outra forma”, antropologias
orientadas não apenas para desestabilização dos sistemas vigentes de dominação, mas
também para o questionamento das práticas acadêmicas e institucionais que
condicionam a própria formação dos antropólogos como sujeitos políticos.
2 Doutor em Antropologia pela Universidade da Carolina do Norte-Chapel Hill, Eduardo
Restrepo é professor associado do Departamento de Estudos Culturais da Universidad
Javeriana de Bogotá, coordenador do grupo de investigação em estudos culturais da
Faculdade de Ciências Sociais e do Instituto Pensar na mesma instituição. Também é
membro do Centro de Pensamento Latino-Americano Raíz-AL e da Rede de
Antropologias do Mundo. Suas áreas de interesse e estudo contemplam a teoria crítica
social e cultural contemporânea, as genealogias da colombianidade, geopolíticas do
conhecimento, as populações afrodescendentes e a região do Pacífico colombiano. É
autor de numerosos artigos. Seus principais livros são: Intervenciones en teoría cultural;
Inflexión decolonial (em coautoria com Axel Rojas), Antropología y estudios culturales;
Teorías de la etnicidad. Stuart Hall y Michel Foucault.
3 Participantes: Ondina Fachel Leal, Patrice Schuch, Denise Fagundes Jardim, Marcela
Velásquez Cuartas, Tomás Guzmán Sánchez, Alex Martins Moraes, Josep Juan Segarra.
4 Tradução: Alex Martins Moraes.

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5 Ondina Leal: Nós achamos que seria muito interessante compartilhar um panorama do
que é a antropologia hoje na Colômbia, utilizando as tuas próprias categorias analíticas.
O que seria aquela antropologia mainstream e o que seria aquela antropologia
dissidente? Isso pode permitir que nós entendêssemos melhor essa questão no contexto
colombiano. Também nos interessa conhecer melhor essa antropologia da Colômbia
porque nós temos tido uma demanda enorme de alunos colombianos que vêm fazer
pós-graduação aqui, tanto mestrado quanto doutorado.
6 Eduardo Restrepo: Bom, institucionalmente, a antropologia na Colômbia surge nos
anos 1940 com a fundação do Instituto Etnológico Nacional, onde um antropólogo
francês, Paul Rivet, tem um papel muito importante. Ele foi para a Colômbia depois da
Segunda Guerra Mundial, convidado pelo então presidente do país, um presidente cujo
sobrenome é Santos, o avô do atual presidente. Rivet cria o Instituto Etnológico
Nacional, com o apoio de um antropólogo colombiano que havia estudado com ele na
França, chamado Gregorio Hernández de Alba. Esse instituto existe até hoje e se chama
Instituto Colombiano de Antropologia e História. Temos, então, uma ancoragem
institucional que vai definindo, digamos, a parte mais institucionalizada da
antropologia colombiana. Em finais dos anos 1960 e princípios dos anos 1970 são
criados quatro departamentos de antropologia na Colômbia. Isso irá marcar uma
diferença da antropologia colombiana com relação a outras antropologias, como a
brasileira, porque se tratava cursos de graduação. Então, desde finais dos anos 1960 na
Universidade Nacional (que é uma universidade pública em Bogotá), na Universidade
dos Andes (que é uma universidade privada em Bogotá), na Universidade de Antioquia e
na Universidade do Cauca, em Popayán, são criados esses quatro departamentos. Uma
das características que marca a antropologia na Colômbia é que, por mais de 30 anos,
foram formados antropólogos a partir dos cursos de graduação, não havia nenhuma
pós-graduação. A formação antropológica da graduação era, portanto, muito
importante. Quando eu estudei antropologia no departamento da Universidade de
Antioquia, eram cinco anos de formação que incluíam um ano de trabalho de campo e
uma tese que devia ser defendida publicamente. Dessa forma, toda a aposta da
formação antropológica estava dada nos departamentos de antropologia e em nível de
graduação. Em finais dos anos 1990 e inícios dos anos 2000 há uma série de
transformações a reboque das mudanças ocorridas desde o início dos anos 1990 na
Colômbia. Tais mudanças têm a ver com uma transformação das concepções das
políticas de ciência e tecnologia e com algumas transformações nas concepções da
prática acadêmica e da prática profissional antropológica e das ciências sociais e
humanas. Essas transformações se manifestam, por exemplo, em que, nos anos 2000, é
criada uma série de programas: cerca de seis programas de graduação e os primeiros
mestrados e doutorados. O primeiro mestrado se organiza na Universidade Nacional.
Depois surgem outros na Universidade dos Andes, na Universidade do Cauca e,
finalmente, na Universidade de Antioquia.
7 Ondina Leal: Em que ano isso ocorreu?
8 Eduardo Restrepo: Em 1999 ou 2000 na Universidade Nacional.
9 Ondina Leal: Muito recente isso…
10 Eduardo Restrepo: É recente. O primeiro doutorado foi organizado na Universidade do
Cauca com apoio da Rede de Antropologias do Mundo. Nos últimos cinco anos foram
criados dois doutorados [em antropologia], um na Universidade dos Andes e outro na
Universidade Nacional, há dois anos. Uma das razões pelas quais os estudantes vêm

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para o Brasil, ao lado de muitas outras razões, é porque a formação de pós-graduações


não está consolidada na Colômbia. Não está consolidada porque a aposta foi em uma
outra concepção de antropologia. Dado que os cursos de graduação são muito bons na
Colômbia, neste momento existe uma tendência de estragá-los, de destruí-los, de
diminuí-los. Então já existe um discurso, nos últimos dez anos, que propõe que, na
graduação, as pessoas já não se formem como antropólogos. Os próprios professores
que se formaram como antropólogos nesses cursos de graduação dizem que as pessoas
já não se formam como antropólogos e toda a aposta está ligada às pós-graduações. No
entanto, isso se insere no marco de uma mudança de concepção da universidade como
entidade de discussão e debate político em direção à universidade corporativa, ou seja,
a universidade como empresa. Tudo isso, por sua vez, produz uma série de mudanças
no que agora significa ser antropólogo, mudanças motivadas pela questão da
estandardização de currículos promovida pelo Colciências, que é uma entidade do
Estado. Trata-se de uma estandardização na maneira de julgar e avaliar a
“produtividade” e a “qualidade” da produção dos antropólogos. Nos últimos dez ou 15
anos, foram criados outros departamentos de antropologia na graduação e os primeiros
programas de pós-graduação, associados à uma transformação na política de ciência e
tecnologia onde a produtividade antropológica foi estandardizada de acordo com certas
modalidades ou certas concepções do que é um produto e de como um produto é de
qualidade ou não. Se o artigo está numa revista indexada e se é uma revista em inglês, é
importante; se não está numa revista indexada e se está em um idioma como o
espanhol, então não é tão importante. Se é uma atividade que tem a ver com certa
visibilidade, ou certa produção de patentes (isso está ligado a todo o debate sobre a
relação entre universidade e empresa), então é algo importante; mas se é um trabalho
com movimentos sociais, ou com um processo organizativo, ou uma intervenção
artística, nem sequer conta. Se é uma consultoria onde se produz uma estreita relação
entre a universidade e as políticas empresariais, é muito importante… Podemos ver
que, em termos da institucionalização da antropologia na Colômbia, ela começa com o
Instituto Etnológico Nacional, depois há departamentos de antropologia e agora existe
uma explosão de vários programas de graduação (seis novos além dos quatro que já
existiam) e algumas pós-graduações. Tudo isso se constituiu a partir de uma concepção
do que é fazer antropologia e do que é importante dentro da antropologia, associado a
esses modelos do que é produtivo, do que é qualidade, etc., etc. Eu diria que esse é o
panorama das antropologias normalizadas. Por outro lado, sempre existiu muitas
práticas na Colômbia com trajetórias dissidentes. Desde o princípio, quando chega Paul
Rivet, ele articula uma concepção da antropologia como ciência. Era a antropologia
como uma ciência cujo trabalho consistia em conhecer grupos e personagens sociais
que estavam desaparecendo. Vocês conhecem esse assunto da etnologia de resgate. Esse
era o modelo de antropologia instalado e defendido por Paul Rivet, modelo
impulsionado na Universidade dos Andes por um dos seus alunos, chamado Gerardo
Reichel Dolmatoff. Por outro lado, Gregorio Hernández de Alba e outras pessoas, como
Antonio García, começam a conformar uma antropologia diferente, a tal ponto que
existe uma série de atritos pessoais onde se produzem rupturas muito fortes e Gregorio
Hernández de Alba decide ir para a Universidade do Cauca. Lá ele começa a gestionar
uma concepção da antropologia fundamentalmente de apoio e de relação com os
processos organizativos indígenas. Gregorio Hernández de Alba escreve, por volta dos
anos 1940, um texto em coautoria, modificando e problematizando as noções e
conhecimentos a respeito do que seria fazer antropologia. Essa dimensão da

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antropologia como ciência neutra que está capturando um conhecimento que vai se
perder porque os “outros” estão desaparecendo é modificada para dar lugar a uma
antropologia que se preocupa pelas pessoas, em termos de quais são suas condições de
vida concretas. Algumas dessas antropologias articularam políticas que levaram à
constituição de ações de Estado, no marco de uma configuração do indigenismo. Outras,
por sua vez, levaram à avalização ou ao estímulo de processos organizativos que, nos
anos 1960 e 1970, originaram uma das organizações mais importantes da Colômbia, o
CRIC, Conselho Regional Indígena do Cauca. Nos anos 1960 e 1970, quando se
constituem os departamentos de antropologia na Colômbia, há uma forte mobilização
que atravessa a universidade e a sociedade colombiana, é o momento do surgimento das
guerrilhas atuais, mas também é o momento do surgimento de uma série de
elaborações de teoria crítica representadas na sociologia, por exemplo, através da
figura de intelectuais como Orlando Fals Borda e tudo o que significa a pesquisa-ação
participativa. Estamos falando de toda uma discussão sobre o que significa a sociologia
e a ciência na sua relação com as pessoas com as quais está trabalhando. Na
antropologia, nesse momento, deram-se muitas articulações, houve publicações
artesanais (havia uma chamada La Rana [a rã]). Uma série de antropólogos começaram a
trabalhar fora do establishment acadêmico, inclusive abandonando a antropologia e se
articulando a processos concretos. Um dos mais conhecidos é Luís Guillermo Vasco, um
antropólogo que, nessa época, começa a trabalhar com os guambianos 1
problematizando, por exemplo, o porquê da escrita. Por que se escreve em
antropologia? Na Colômbia (e não somente na Colômbia, imagino que no Brasil
também), 20 anos antes de que os estadunidenses perguntassem pelas políticas da
representação etnográfica, Guillermo Vasco e outras pessoas estavam fazendo esse
debate. Por isso é preciso ter algumas ferramentas teóricas e ter algumas perguntas que
permitam visibilizar essas antropologias múltiplas, alternativas, antropologias
dissidentes que não são vistas em decorrência dos cânones estabelecidos. Na Colômbia
alguns indagavam sobre o porquê da escrita, começou-se a falar, inclusive, de uma
antropologia do debate, uma antropologia crítica. Muitas perguntas que hoje estamos
voltando a fazer, indagações sobre até que ponto modelos teóricos como o
funcionalismo são relevantes para compreender certas situações; até que ponto é
necessário repensar os modelos teóricos com os quais estamos trabalhando; até que
ponto o marxismo pode nos ajudar a pensar certas coisas, que tipo de marxismo… Nós
não podemos confundir Stalin com Gramsci, se alguém acredita que o marxismo é
Stalin então, obviamente, irá descartar o marxismo por definição. Por outro lado, se é
Gramsci, isso permite abrir outro tipo de questões muito mais densas, muito mais
elaboradas. Deram-se, portanto, muitas discussões que na história da antropologia
colombiana estão na oralidade.
11 Eu teria mais coisas para dizer, mas, passando diretamente ao momento atual: as
antropologias dissidentes na Colômbia se articulam a propósito de uma discussão a
respeito do establishment antropológico, entendido como produtividade e como
profissionalização. O que isso significa? Significa uma série de práticas que colocam em
questão um discurso a partir do qual se propõe a necessidade de internacionalizar a
ciência. Não se trata de uma internacionalização em qualquer direção, mas sim de uma
internacionalização entendida como diálogo em inglês, com alguns autores e um tipo de
antropologia em particular, com um tipo de práticas concretas como publicações em
revistas indexadas, ou seja, uma série de critérios tendentes a definir o que significa e o
que vale na antropologia colombiana. Este é um assunto que está sendo objeto de

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múltiplas práticas de dissidência, algumas reflexivamente articuladas e outras que são


práticas de dissidência nos lugares periféricos e marginais a partir dos quais se estão
elaborando essas outras antropologias. Eu falei para vocês, ontem, de um programa de
antropologia em uma universidade em Quibdó. Quibdó, no departamento do Chocó, é
uma região periférica dentro da periferia, onde 95% da população é negra e há também
uma população indígena em condições assustadoras. Aí está sendo testado um
programa de antropologia que, além do mais, é semipresencial, com pessoas que têm
uma trajetória em termos de formação escolar muito diferente da de outras pessoas.
Aqui eu não estou simplesmente fazendo uma apologia de que isso é bonito. É
importante entender que antropologias dissidentes não são uma apologia, não se
apresentam como melhores ou epistemicamente superiores. Elas são diferentes. Estão
articuladas por relações de poder e isso precisa ser entendido. Como podemos fazer
uma genealogia e uma história diferente da antropologia na Colômbia quando vemos
essas coisas? Ou, como podemos fazer uma genealogia ou uma etnografia da
antropologia na Colômbia quando vemos esse programa [em Quibdó]? Posso falar,
também, de outros programas, como na Universidade de Magdalena, no Caribe
colombiano, em Santa Marta, onde se cria um programa em 2001 que é presencial. Eles
se perguntam, nesse programa, o que é fazer antropologia no Caribe. É uma
antropologia tematicamente distinta, há um locus de enunciação diferencial com
relação à Bogotá, que é um centro com certos recursos, certo tipo de elaborações.
Trata-se de fazer antropologia em um lugar de periferia, caribenho, em um país que
negou sua caribianidade, que negou sua negritude, sua oralidade… Como fazer
antropologia em Santa Marta? Então, a noção de antropologias dissidentes, ou outras
noções que queiramos usar, permitem ver a heterogeneidade, a multiplicidade, os
desritmos e relações de poder que articulam um campo antropológico numa formação
nacional como a colombiana.
12 Eu não cheguei a explicitar os vínculos da antropologia colombiana, primeiro com a
antropologia francesa e depois com a antropologia estadunidense, que foram muito
fortes. Esse modelo de produtividade está fortemente associado com a influência da
antropologia estadunidense na Colômbia. Eu não sei como é aqui, mas na Colômbia o
efeito desse modelo de produtividade, de qualidade, do que é fazer boa antropologia
está muito marcado pela ideia de certo modelo de conhecimento, de certo modelo de
universidade que vem dos Estados Unidos. Inclusive, com as reformas que fizeram na
Europa, os europeus tiveram que enfrentar esse modelo. Quero aproveitar para dizer o
seguinte: não se trata de um problema enfrentado apenas pela antropologia, eu creio
que a noção de antropologias dissidentes é uma categoria heurística que ajuda a pensar
não só a antropologia, mas também muitas outras coisas.
13 Ondina Leal: Em relação ao formato a que tu estás te referindo, há uma conjuntura e
um modelo americano em termos de constituição da formação do Ph.D.… mas em
relação a tradições teóricas, a antropologia brasileira tem um aporte talvez muito
maior em sua constituição da antropologia francesa e mesmo inglesa do que da
antropologia americana. Em termos de constituição teórica, o que seria a antropologia,
hoje, na Colômbia? A outra pergunta tem a ver com o seguinte: eu conheci a Colômbia
através de escritos etnográficos de [Michael] Taussig, Didier Fassin, Marc Augé,
[Michel] Agier. E esses grandes antropólogos (na verdade três deles são franceses e o
Taussig é totalmente dissidente mas, para nós, é mainstream), aqui no Brasil, não são,
portanto, dissidentes. Eu gostaria de entender um pouco isso no contexto da história do

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pensamento, da reflexão, daquilo que vai constituir a antropologia não exatamente


como formato escolar, mas em termos teóricos.
14 Eduardo Restrepo: Em termos teóricos, é possível dizer que a antropologia colombiana
está cindida em duas grandes correntes. Eu falaria de uma antropologia mais
convencional, mais clássica e de uma antropologia mais contemporânea. A
convencional está muito atravessada pelo modelo lévi-straussiano e por certa
concepção da antropologia como indiologia. Ou seja, a antropologia é para estudar
sociedades diferentes da nossa e é uma antropologia que se faz para dar conta de
alguma totalidade, que pode ser a cultura ou a sociedade, dependendo dos modelos
teóricos utilizados. Esta antropologia convencional está mais em diálogo com a
antropologia francesa, com o estruturalismo e com a antropologia inglesa no sentido de
funcionalismo e funcional-estruturalismo. Foi, digamos, uma antropologia dominante,
em termos teóricos, por volta dos anos 1950. Nos anos 1960 se começa a problematizar
com todo esse movimento crítico, que se alimentava mais do marxismo e o fazia não
através de [Maurice] Godelier ou através de [Claude] Meillassoux, mas sim através da
leitura latino-americana do marxismo: [José Carlos] Mariátegui, por exemplo. Bom, mas
as antropologias contemporâneas estão muito atravessadas pelas novas
conceptualizações (e quando digo “novas” é desde os anos 1980) do mundo anglo-saxão,
não somente estadunidense, mas sim do mundo anglo-saxão de uma forma geral. Isso
tem a ver com os estudos da subalternidade, com Joan Rappaport, que é uma
antropóloga que está nos Estados Unidos. Ela poderia ser localizada como expressão
desse tipo de diálogo. Também existe todo o tema da teoria pós-colonial, entendida
como Homi Bhabha; toda a discussão dos ingleses e também dos indianos, [Dipesh]
Chakrabarty, todas essas coisas. Também existe a influência dos estudos culturais. Nos
últimos dez anos, os estudos culturais jogaram um papel muito importante na
Colômbia, no sentido de que introduziram certos debates. Um desses debates é com os
estudos culturais anglo-saxões, com Stuart Hall. Mas há também outra grande linha que
são os estudos culturais como reelaboração e recuperação do pensamento crítico latino-
americano. Essas antropologias contemporâneas são antropologias que se
desindianizaram. As sociedades indígenas não são seus únicos referentes empíricos. Elas
também romperam com os essencialismos, ou com os métodos dessa relação dos
antropólogos com certas sociedades em termos mais clássicos. Agora as temáticas,
discussões e referenciais teóricos passam mais pelo diálogo com o mundo anglo-saxão e
com o pensamento crítico latino-americano do que com o pensamento francês. Isso
ocorre porque existe certo ensimesmamento no pensamento francês e uma espécie de
reelaboração do pensamento lévi-straussiano. Eu quero dizer que na antropologia
francesa eles são muito cautelosos com a influência anglo-saxã, mas às vezes é uma
espécie de chauvinismo. Eu queria agregar um elemento mais. Nos últimos cinco anos
começaram a chegar estudantes que se formaram no Brasil e creio que isso começou a
gerar outro tipo de referenciais teóricos. Por exemplo, o trabalho de Eduardo Viveiros
de Castro, ou certas discussões que são muito importantes aqui, como a tensão entre
fricção interétnica versus perspectivismo.
15 Marcela Velásquez: Existe uma discussão sobre como se posiciona a antropologia em
nosso contexto de 50 anos de conflito armado e social. Como se posiciona a
antropologia, que postura ela teve e tem nesse contexto tão específico que, ao mesmo
tempo, permite estabelecer conexões e diálogos com outros países que também tiveram
esses processos de conflito armado?

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16 Tomás Guzmán: E como se poderia entender a questão da dissidência em um país em


conflito? Como entender uma antropologia que pode ser dissidente em um país no qual
existem muitas dissidências?
17 Eduardo Restrepo: Eu gostaria de começar pela parte empírica mais concreta. A
Colômbia teve um grande auge, em termos de extensão territorial e escalada militar a
partir do avanço da guerra contra os paramilitares.2 A questão dos paramilitares é
difícil de contar. Isso teve um impacto forte na antropologia. Vocês podem ir ao
Amazonas ou podem ir a algum lugar que fica a duas horas daqui quando bem
quiserem. Contudo, a circulação, num país em guerra, é diferente. Isso faz com que
algumas pessoas tenham medo de fazer trabalho de campo, sobretudo quando são
“pessoas de bem”, ou seja, pessoas de classe social alta. Uma das coisas que precisamos
ter em conta é que a antropologia, na Colômbia, sempre foi muito classista e muito
elitista. Foram, portanto, as classes sociais poderosas que conseguiram chegar ao setor
de elite da antropologia colombiana. Isso tem a ver com o custo da educação na
Colômbia e tem a ver com o fato de que, como só havia cursos de graduação, os que
podiam acessar à pós-graduação iam para a França, para os Estados Unidos. É preciso
ter em mente que o conflito armado transformou a maneira de fazer trabalho de campo
na Colômbia e transformou, também, a própria concepção de como se faz trabalho de
campo. Não é a mesma coisa fazer trabalho de campo em um lugar onde tu tens atores
ilegais e atores estatais que se comportam como não deveriam se comportar. Uma
temática a ser trabalhada é o impacto do conflito armado na forma como se veio
fazendo trabalho de campo na antropologia colombiana. Outro elemento é que, como
dizia [Michel] Foucault, o poder não é apenas negatividade, também é produtividade.
Uma das linhas mais originais do trabalho antropológico na Colômbia tem a ver com
toda essa elaboração de como entender a violência – ou as violências – e os conflitos. Há
trabalhos antropológicos muito bons e muito sugestivos para tentar entender o que
significam os conflitos na Colômbia. Existem muitas etnografias valiosíssimas sobre
como, na cotidianidade, os paramilitares operam; como os paramilitares, em um
povoado, definem que uma mulher não pode ter uma tatuagem ou que um homem não
pode ter um brinco, ou como praticam todas as tecnologias do terror concretamente.
Então, a outra dimensão da antropologia do conflito na Colômbia é que se produziram,
etnográfica e antropologicamente, concepções e trabalhos que permitem entender de
uma maneira mais densa o que significa o conflito armado no país. Agora, a terceira
coisa, que tem a ver com aquilo que dizia Tomás, é que na Colômbia a ilusão de fazer
antropologia como se fosse uma ciência neutra, objetiva, de contribuição ao
conhecimento da humanidade, é uma ilusão difícil de sustentar. Se tu estás em Paris e
estás vivendo numa classe, digamos, privilegiada, ou se estás em Nova Iorque e fazes
parte de uma classe privilegiada, então é mais fácil sustentar a ilusão de que a ciência é
um assunto neutro, um assunto de produção de conhecimento, de aporte para o
crescimento da disciplina. Contudo, na Colômbia eu acho que é preciso ter muito
cinismo para não pensar que a antropologia e outros tipos de conhecimento têm a ver
com o político. É preciso ser muito cínico e muito cego para não entender que, na
Colômbia, o assunto da produção de conhecimento antropológico não é abstrato e não é
para a humanidade em geral. Aí me parece que existe uma série de apostas políticas e
há algumas pessoas que entendem que a antropologia deve instrumentalizar-se
diretamente. Por exemplo, o trabalho de Arturo [Escobar]. O trabalho de Arturo é uma
forma visível que utilizo como referente, mas tem muito mais gente que trabalha com
processos organizativos, o que supõe riscos concretos. Para terminar, eu diria que ser

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marxista, por exemplo, ou ser crítico ao Estado nos Estados Unidos é algo que tem um
significado específico é, inclusive, algo que pode incrementar o teu capital simbólico.
No entanto, falar de Marx para os teus estudantes em Santa Marta, quando alguns deles
são paramilitares, é uma questão de posição política. Ou seja, o significado de conceber
certos autores e certas problemáticas em lugares onde ser crítico é o mesmo que ser
guerrilheiro e ser guerrilheiro é ser alguém que merece a morte, implica outra leitura
da prática política a partir da academia.
18 Denise Jardim: Eu queria entender melhor uma questão. Falando de produtivismo, de
efeitos de algumas dinâmicas de poder, gostaria de chamar a atenção para a presença
de Jeffrey Lesser aqui entre nós. Ele disse que na lógica da sua instituição americana
seria absurda uma prática muito comum no Brasil de manter um grupo de pesquisa
onde os alunos estudem a mesma coisa que o orientador. Portanto, eu gostaria que tu
falasses um pouco mais dessa divisão de trabalho na Colômbia, dessa primeira geração
associada ao estabelecimento da antropologia com Paul Rivet. Nós temos uma
experiência com a arqueologia aqui no Brasil onde cada arqueólogo é dono de uma
quadrícula, daí podemos tirar uma autocrítica de que o antropólogo não pode ser o
dono do campo em termos de grupos étnicos, etc. Então, eu não consigo entender tanto
o habitus acadêmico da Colômbia para conceber como operam essas forças do
produtivismo já instalado dentro de dinâmicas muito próprias no meio acadêmico, de
como vicejam as relações e quais são as possibilidades de ruptura. Nesse sentido, eu
pergunto como foi a tua ruptura. Ao mesmo tempo tu tens a tua formação dentro da
Colômbia e em 2008 tu fazes teu doutorado fora, com uma equipe de interlocução muito
potente. Acredito que o Peter Wade esteja dentro dessa grande área, falando sobre o
Pacífico… como é o teu trânsito entre uma formação dentro e uma formação fora, que
tipo de repercussão desorganizou a percepção que tu tinhas a respeito da própria
carreira feita na Colômbia? A segunda questão, que não é exatamente uma pergunta,
tem a ver com esse cenário de produtivismo, onde as coisas são categorizadas como
internacionalizadas, online, o que significa isso em termos de hábitos de leitura? Eu te
“conheci” no Journal of Latin American Studies e passando para a outra prateleira da
livraria, onde estava a Revista Colombiana de Antropología, não te encontrei, mas
encontrei o Sahlins e outros. Nós, no Brasil, não temos uma grande circulação de livros,
mas temos, online, muita coisa escrita. Eu vou a Madri especialmente para ler todas as
publicações sul-americanas, que lá estão na prateleira, completas. Então, quando a
gente fala de outros hábitos de leitura online, será que a telinha está aprisionando os
focos de centro e periferia também?
19 Eduardo Restrepo: Eu me formei em uma universidade de periferia, na Universidade
de Antioquia, em finais dos anos 1980, inícios dos anos 1990. Isto te marca na medida
em que ainda existe a universidade pública em algumas coisas, mas tem um momento
onde, precisamente, a universidade pública está se perdendo. Eu cheguei a trabalhar no
Instituto Colombiano de Antropologia antes de me graduar, com uma antropóloga que é
profundamente irreverente, chamada María Victoria Uribe. Com ela e com outro grupo
de amigos, em meados dos anos 1990, introduzimos uma discussão na antropologia
colombiana que se chama “antropologia na modernidade”. Essa discussão tem a ver
com o que está sendo feito e o que se entende por antropologia nas práticas de
formação nas universidades. Então, antropologia da modernidade ou na modernidade é
fundamentalmente uma inflexão rumo à teoria crítica pós-estruturalista, onde se
começa a entender a antropologia como parte da própria modernidade e se começa a
localizar a antropologia dentro das relações de poder. Nessa ruptura é que eu começo a

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me articular com uma série de pessoas conhecidas, que foram muito importantes para
discussões posteriores. Nesse contexto eu conheço Arturo Escobar, no início dos anos
1990. Arturo estava interessado no Pacífico e nós fizemos trabalho de campo juntos
algumas vezes. Peter Wade também está aí, assim como Anne-Marie Losonczy, que é
uma antropóloga francesa que foi muito importante na antropologia da Colômbia.
Nesse contexto, onde conflui uma série de pessoas, nós começamos a discutir o assunto
da relevância antropológica das populações negras para a antropologia enfocada nos
temas relativos ao desenvolvimento, à modernidade, etc. Foi aí que eu tive a
oportunidade de entrar em interlocução com esses personagens que estão fora da
Colômbia e de ver a antropologia colombiana a partir dos estabelecimentos
estadunidense, francês e inglês. Com Anne-Marie e com Christian Gros, com Peter Wade
e com Arturo, Joan [Rappaport]… uma série de pessoas nos Estados Unidos. Isso mudou
minha leitura da antropologia na Colômbia. Quando estou nos Estados Unidos e vejo
que se ensina arqueologia mexicana sem citar nenhum mexicano sequer e sem nenhum
texto em castelhano, ou quando se ensina uma antropologia na qual a antropologia que
eu conhecia e os antropólogos que eu conhecia não existiam. A antropologia era lida de
uma forma muito particular. É nesse contexto que começo a conversar com Marisol [de
la Cadena], com Arturo [Escobar], com Gustavo [Lins Ribeiro] e começamos a articular
algo que não é novo, que de alguma maneira são preocupações que vêm de outros
lugares e que têm a ver com a geopolítica do conhecimento. Para mim serviu muito
entrar em diálogo com essas redes para ver de outra forma aquilo que nós estávamos
fazendo, na medida em que víamos o que não aparecia em tais níveis de discussão.
Havia autores que me pareciam maravilhosos, com contribuições impressionantes e
alguns deles sequer eram concebidos. Por exemplo, publicar em espanhol era algo que
não tinha maior significado nessas redes das quais estou falando. Minha percepção
seria muito diferente se eu não tivesse entrado nessas redes de conversação,
precisamente pelas ausências que nelas se percebem e pela naturalização de certas
contingências. Se eu não tivesse saído da Colômbia, teria continuado pensando que a
linguística, a antropologia social e a antropologia física eram, por definição,
antropologia. Bom, e é precisamente por esses diálogos que meus textos começam a
aparecer em outros cenários. Esse texto ao qual te referes, do Journal of Latin American
Studies, é uma edição de Peter Wade, onde todos são colombianos e eu escrevo em
castelhano. A segunda pergunta que fizeste é muito valiosa, sobre esses hábitos de
leitura, como vão nos marcando e como vão definindo as coisas. Eu sinto que a falta de
circulação de ideias entre nós é um dos problemas fundamentais, a ele se dirige a noção
de antropologias do Sul, de Esteban Krotz. Nós nos, entre nós, nos conhecemos muito
pouco e conhecemos muito pouco a nossa própria história. Existe uma espécie de
cegueira devido a essa falta de circulação não somente de livros, mas também de ideias.
Por isso eu acho muito valioso esse exercício de vocês de trazerem professores de
diferentes partes da América Latina e dialogar com eles. Essa é uma iniciativa muito
estranha porque, em geral, nós investimos os recursos em trazer professores da França
ou dos Estados Unidos, o que tampouco está mal. Mas fazer somente isso nos leva a
reforçar esse tipo de ato de leitura que posiciona certas pessoas e deixa de posicionar
outras. Então, digamos que na filigrana, na microfísica de como operam as
antropologias hegemônicas, ou dominantes, ou metropolitanas estão presentes esses
atos de leitura, associados a noções de produtividade. Escrevemos para certas revistas,
em certos idiomas, para certas pessoas. Mas o que fazemos com esse tipo de

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antropologia que não leva a um paper e que tem a ver com outro tipo de intervenção, de
elaboração, de discussão?
20 Tomás Guzmán: Eduardo, tu fazes uma distinção entre o que seria fazer antropologia
“de” e antropologia “a partir de”. O que significaria isso, no momento atual, no âmbito
da antropologia colombiana? Fazer uma antropologia “a partir” do Chocó no marco de
um já não tão recente crescimento do interesse antropológico sobre a questão
afrocolombiana.
21 Eduardo Restrepo: Claro… Eu pensava um pouco em termos de antropologias “do”
Caribe e antropologias “a partir” do Caribe. Antropologias “do” Caribe seria quando
este é objeto do trabalho antropológico, do estudo antropológico. Por outro lado, fazer
antropologia “a partir” do Caribe é permitir que o Caribe problematize e atravesse a
prática antropológica, o Caribe como locus de enunciação, como posição política. A
questão, portanto, passa a ser entender esse lugar não apenas como um lugar
geográfico, mas também epistêmico, um lugar político. Uma antropologia “a partir” do
Chocó não poderia ser uma antropologia como se faz em Bogotá. Implicaria um lugar e
implicaria uma série de práticas antropológicas que teriam a ver com essa
especificidade histórica que está associada ao racismo, à marginalização. Isso faz com
que a escrita e a publicação, para voltar ao tema dos atos de leitura, não se deem nos
mesmos termos. Eu não imagino que os egressos do programa de antropologia da
universidade em Quibdó estejam pensando em publicar na Current Anthropology um
paper em inglês sobre a discussão teórica do funcionalismo ou do estruturalismo. Parece
que seus tipos de intervenção, suas formas de fazer antropologia não apontam nesse
sentido. Se alguém o faz, está tudo bem, mas não devemos fazer tudo para que as
pessoas atuem nesse sentido.
22 Tomás Guzmán: Poderíamos entender, também, como foi a trajetória dos estudos afro
na Colômbia? Como tu vês algo que, inclusive antes de eu me graduar na Universidade
Nacional, era sumamente marginal em comparação com os estudos indígenas na
Colômbia? Como se deu essa explosão de interesse?
23 Eduardo Restrepo: Bom, há uma antropóloga colombiana que morreu em 1998
chamada Nina S. de Friedemann. Ela, junto com outro antropólogo que estava na
Universidade Nacional, chamado Jaime Arocha, entenderam, a partir dos anos 1980, que
os estudos feitos sobre populações negras ou grupos negros, como eram chamados
naquele momento, não eram considerados por alguns dos seus colegas como
antropologia. Existem vários artigos de Nina S. de Friedemann onde ela comenta que,
para alguns dos seus colegas, estudar negros não é antropologia. Isso se entende, no
contexto da antropologia colombiana, precisamente pela história que eu narrei para
vocês, onde o outro radical só podia ser encarnado por certa representação de
indianidade, ou seja, não eram todos os índios, mas sim uma noção de indígena hiper-
real. Isso ocorria em finais dos anos 1970 e princípios dos anos 1980. Com as
transformações da antropologia em finais dos anos 1980 e com o surgimento de
“antropologia na modernidade”, essa equação “antropologia igual a ‘outros radicais’”,
ou “antropologia igual a ‘diferença’”, ou “antropologia igual a ‘alteridade’” é
problematizada. Fala-se de uma antropologia da modernidade, ou do desenvolvimento,
ou do Estado. Com isso, problematiza-se essa noção de “antropologia igual ou
equivalente à alteridade radical”. Nesse contexto, o Pacífico colombiano adquire uma
relevância em decorrência de processos históricos que não valeria a pena explicar em
detalhe agora, mas que guardam relações com a questão da biodiversidade e do

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multiculturalismo. Nos anos 1990, a região do Pacífico e a negritude começam a


encarnar ambos os discursos e, a partir de então, conflui uma série de recursos
materiais, uma série de atores da antropologia, da história, da sociologia para procurar
entender isso que não havia sido entendido, que fora invisibilizado dentro do trabalho
antropológico. Então, nos anos 1990, começa a haver uma série de estudos junto ao
movimento social e se articula uma antropologia na qual os estudos afro-colombianos
são centrais. Tem a ver, portanto, com transformações da antropologia em si mesma,
com transformações políticas que conferem certo privilégio e centralidade a uma
região particular do país.
24 Marcela Velásquez: Quero te perguntar, levando em conta o que já nos relataste, quais
são os desafios deste momento para a antropologia colombiana?
25 Eduardo Restrepo: Eu penso que um grande desafio tem a ver com a possibilidade de a
antropologia tornar-se relevante para um momento de pós-conflito na Colômbia. Qual é
o lugar político da antropologia na configuração de uma sociedade na qual o conflito
não esteja projetado, articulado da forma como está? Uma sociedade pós-conflito
realmente é o céu e como o céu não existe, pensemos de que forma a antropologia pode
introduzir uma série de elementos depois dessa guerra específica. Outra questão é a
seguinte: como é possível articular uma imaginação teórica e política mais além do
culturalismo? O culturalismo é um dos problemas mais fortes que nós temos na
Colômbia. Não sei como é aqui, mas a questão é que a cultura despolitiza, a cultura
desmarca, a cultura é um lugar de intervenção do capital, das indústrias ou da gestão
cultural, a cultura é um espaço de governamentalização, de governo das populações.
Como a antropologia pode ajudar a desmontar o monstro que ajudou a criar? Como é
possível que a linguagem antropológica, que hoje é a linguagem da dominação estatal,
possa ser interrompida por uma antropologia capaz de imaginar com outras categorias,
imaginar a partir de outras práticas, diferentes das da cultura? Um terceiro desafio,
para concluir, é como desdisciplinar a própria antropologia para crescer em diálogo
com outros conhecimentos, outras disciplinas, outros espaços não disciplinares nos
quais possa haver descentramentos interessantes e produtivos, não apenas para a
construção de conhecimentos que talvez saiam do formato em que estamos pensando,
mas também para que esses conhecimentos mais convencionais sejam enriquecidos a
partir de leituras e referentes abandonados nestes últimos anos. Como, por exemplo,
podemos repensar o tema da classe social, que, em geral, foi abandonada pelo
culturalismo? Como podemos pensar as modalidades de dominação que estão mais além
do evidente, da coerção? Como entendemos os efeitos estruturantes das subjetividades
associadas a certos tipos de dominação, a certas tecnologias de dominação? Eu acredito
que deveríamos pensar em um processo de desdisciplinação, no sentido de ler outras
pessoas sem muito remorso e conversar com outras pessoas na academia e por fora da
academia sem muitas travas que impossibilitem tais aberturas, tais linhas de
imaginação teórica e de política distinta. Eu diria que são estes os três grandes desafios
da antropologia na Colômbia.
26 Denise Jardim: Seguindo um pouco o teu pessimismo, talvez não parta da própria
antropologia uma abertura para outras disciplinas, mas do fato de que, nesse cenário
liberal, nós temos sido convocados como o antropólogo já estereotipado. Então, na
realidade, talvez não seja um esforço de abandono do conceito de cultura, que está
muito repensado, mas de como lidar com essas imagens que se impõem à carreira
antropológica. Eu acho que é um desafio constante na área de saúde, na área do

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judiciário, na área de educação. Tornar desconfortável esse estereótipo não é um


problema nosso, é um problema também daqueles com quem nos relacionamos.
27 Eduardo Restrepo: Sim, é verdade, não é apenas nosso esse problema. Talvez seja
necessária uma ênfase em nossa prática que saia um pouco do exercício estatal. O
Estado é um espaço importante e as políticas públicas são um espaço importante, mas
como pensar antropologias que não necessariamente passem por aí? Eu não quero dizer
que todo mundo deva abandonar isso, mas me parece que precisamos explorar práticas
antropológicas que ponham em circulação uma série de ferramentas constituídas por
nós através de elaborações disciplinares, desmontando, inclusive, nossa autoridade,
nossa relação com certos atores. Eu penso que a antropologia precisa ser descentrada
também a partir de fora, não apenas de dentro. Na Colômbia os estudos culturais estão
desempenhando, atualmente, uma função desestabilizadora, porque introduzem uma
série de autores e de incomodidades que, dentro das antropologias mais normalizadas,
tinham sido esquecidos ou obturados.
28 Patrice Schuch: Há alguns estudantes aqui da disciplina de Leituras e Escritas
Etnográficas. Um dos desafios da disciplina é justamente provocar reflexões, debates e
práticas sobre essas tarefas de escrever, de ler e de fazer antropologia. Um das questões
que eu gostaria de colocar para ti vai nessa direção de experimentar com outras
práticas em novos contextos, onde a antropologia também é reconfigurada. Tu poderias
abordar um pouco essa questão das novas possibilidades de práticas antropológicas no
método, nas formas e instrumentos de trabalho do antropólogo? Tu falaste que no
departamento do Chocó, onde 95% são negros, as aulas do curso de antropologia
oferecido são semipresenciais. Que tipo de perguntas esses estudantes trazem, o que
essa experiência tão específica traz para podermos pensar em dissidências?
29 Eduardo Restrepo: Sobre a primeira parte, das metodologias, existem várias coisas que
historicamente vêm sendo feitas na antropologia colombiana a partir dessas
antropologias dissidentes. Uma delas é algo que se chama “mapas falantes”, que tem a
ver com cartografias que se fazem para trazer à tona, de forma coletiva, uma tradição
oral. São diagnosticadas problemáticas relevantes para a população e, a partir disso,
podem-se estabelecer intervenções concretas. Essa é uma experiência. Outra é uma
autoridade múltipla nos textos. Eu mencionei Gregorio Hernández de Alba, mas existe
um livro muito mais recente escrito por Luis Guillermo Vasco com dois taitas
guambianos sobre a história de Guambía em termos da lógica e da própria elaboração
do conhecimento guambiano em diálogo com o debate mais antropológico. Outra
estratégia é a desenvolvida por Orlando Fals Borda em Historia doble de la costa, uma
escrita coletiva ao lado de uma narrativa construída a partir de um discurso mais
reconhecível pela academia. Houve, portanto, múltiplas experiências de apropriação/
transformação das ferramentas escriturais, ou das ferramentas de investigação. O que
se conhece por pesquisa-ação participativa, por exemplo, é toda uma oportunidade de
problematizar a noção de observação participante. Já não se trata de alguém
observando os outros, mas sim de um exercício de auto-observação. Há, inclusive,
algumas elaborações antropológicas que não são escritas, mas sim transformadas em
intervenções políticas. Por exemplo, um dos líderes do Processo de Comunidades
Negras se chama Carlos Rosero. Rosero é antropólogo da Universidade Nacional e o que
ele faz como antropologia não é uma antropologia em papers, mas sim uma
antropologia em lutas com o Estado, com as mineradoras. Trata-se de uma antropologia
na prática política de um movimento. Com relação à segunda parte da tua pergunta,

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sobre o curso de antropologia em Quibdó, o que nós fizemos até agora nesse programa
bastante novo, que ainda não tem egressos, é desfolclorizar e desculturalizar a leitura
oficial que circula sobre a cultura das comunidades negras. Os professores estão
oferecendo ferramenta críticas para que as políticas de representação que constituíram
a subjetividade daquelas pessoas que se imaginam como comunidade negra deem
passagem a outras leituras. Leituras que já não se perguntem pela Festa de San Pacho a
partir de uma perspectiva folclórica, mas sim que comecem a entender que a
antropologia, ou as ciências sociais, têm ferramentas de releitura da história, ou de
rearticulação da tradição oral, ou de redefinição da negritude que passam por
problematizar as leituras estatalizadas, as leituras mais dominantes do
multiculturalismo. Até agora o que nós conseguimos é, fundamentalmente, começar a
interpelar o senso comum a partir do qual o multiculturalismo constituiu os estudos
antropológicos com as populações negras. Neste momento, as pessoas estão fazendo
perguntas a si mesmas, mas teremos que ver os resultados concretos dentro de alguns
anos. Já na Universidade de Magdalena existem resultados, porque se trata de um
programa estabelecido há mais tempo, com vários egressos. Em termos de temáticas,
em termos de enfoque, eles fizeram coisas muito heterogêneas e heterodoxas nas quais
a tradição oral é central, coisas que dificilmente entrariam nesse nicho de antropologia
para uma tese na Universidade do Andes, por exemplo.
30 Josep Segarra: Gostaria de fazer uma pergunta mais pessoal. Tu dizias que as
antropologias dissidentes não são nem melhores nem piores, mas, ao mesmo tempo,
também afirmavas que não gostas de certa antropologia hegemônica, do establishment
antropológico. Qual é, então, tua proposta pessoal? Algumas coisas já foram explicadas,
mas, como antropólogo, quais são tuas apostas?
31 Eduardo Restrepo: Eu me imagino como um personagem e representante da
antropologia hegemônica colombiana. Eu sou parte do establishment e o sou
conscientemente, para não deixar aos outros colegas do establishment, que são mais de
direita, ou mais liberais, um cenário tranquilo. Meu lugar no establishment colombiano é
o de incomodar, de desestabilizar, de irritar, de questionar colegas que estão muito
cômodos com seu lugar no establishment. Ontem, Claudia Fonseca perguntava por que
Arturo Escobar, eu e outros escrevíamos em inglês e utilizando a linguagem
hegemônica. Trata-se de uma intervenção política, porque as disputas e os terrenos das
lutas políticas são múltiplos. Acredito que existem certas pessoas que, por sua trajetória
e por sua história, estão num lugar que não é neutro, nem ingênuo, lugar no qual é
necessário produzir determinadas interrupções, determinadas problematizações. Eu me
imagino dentro do establishment e eu estou no establishment antropológico, razão pela
qual os colegas não podem se dar ao luxo de não me ouvir, eles precisam me ouvir,
apesar de que isso os incomode. Essa é uma intervenção política, porque a antropologia
não deve ser deixada para a direita, nem para os liberais. Eu penso que a antropologia
deve ser levada mais além, em direção a um projeto de intervenção e potencialização de
outras formas, de outras modalidades de socialidade, outras formas e outras
modalidades de politicidade, de subjetividade. Parece-me que a antropologia, em si,
consiste num projeto muito crítico, desnaturalizador e desestabilizador. Devemos ser
coerentes com isso. Não consigo imaginar alguém que desnaturalize uma identidade e,
ato contínuo, naturalize sua própria identidade dentro do establishment para exercer
relações de poder frente a certas conjunturas. Da minha parte, não sou ingênuo, eu
estou no establishment, mas não faço apenas isso, porque as pessoas não fazem apenas
uma coisa. Eu estou aí para incomodar. Perguntem para os meus colegas na Colômbia.

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Esse trabalho eu faço com muita efetividade e acho que se trata de um trabalho
necessário. Não penso que todo mundo tenha que fazer isso, tampouco acredito que o
establishment seja o grande cenário da política, mas nós sabemos que os efeitos de
verdade que ele produz são algo que deve ser disputado. Portanto, minha intervenção é,
digamos, um pouco anarquista no establishment. É um oximoro. Eu sou um
anarcoestalinista. Precisamente a questão é não deixar o campo de luta livre para
determinadas pessoas que estão fazendo certas coisas com as quais eu não me identifico
politicamente. Eu não creio que é o único campo de lutas, nem o melhor, mas é um
campo de lutas.
32 Alex Moraes: Eu quero, justamente, retomar um trecho da entrevista que tu deste à
Tinta Crítica3 há alguns meses. Ali tu mencionas a fala de um colega teu, para ele “a
antropologia é sempre comprometida, o que importa é com quem ela está
comprometida”. A questão é: como tu constróis as tuas alianças políticas para ingressar
em uma disputa concreta por esses lugares a partir dos quais é possível produzir efeitos
de verdade no contexto do establishment?
33 Eduardo Restrepo: Minha relação com as redes de conversação mencionadas
anteriormente é uma relação que autoriza bastante. Conversando com certas pessoas,
tendo um doutorado em certo lugar, jogando bem o jogo, posso estabelecer relações
para que esse jogo mude. Esse jogo pode mudar, também, por interpelações que vêm de
fora. São muito importantes as interpelações de fora, mas eu penso que a possibilidade
de interromper o jogo a partir das suas próprias regras é um trabalho político
importante. Minha relação com Marisol de la Cadena, com Arturo Escobar, com
Alejandro Grimson, etc. tem a ver com a constituição de uma possibilidade de falar e de
jogar o jogo para transformar ou, pelo menos, produzir ruídos nesse jogo. Este é,
portanto um dos níveis de ação. Agora, no contexto dessas articulações, os estudos
culturais são uma aliança estratégica, porque consistem em um cenário ainda por ser
definido na Colômbia. É um cenário que está sendo inventado, um cenário que
incomoda. Tudo o que incomoda é algo que tem a possibilidade de desestabilizar, de
dessedimentar. Eu adoro incomodar os meus colegas, me deixa feliz que alguns colegas
se desestabilizem ou não possam seguir operando tão tranquilamente diante de certos
cenários. Daí eu tiro alguma felicidade, mas minha razão política de ser tem a ver com
práticas e relações com o mundo e com projetos políticos que podem ser muito radicais,
que passam, inclusive, por cenários não legais e incluem, também, trabalhos com
processos organizativos de reivindicação de direitos, como o das comunidades negras. A
hermenêutica da felicidade, para mim, passa por desestabilizar práticas que me
parecem autoritárias e também se conecta, como não poderia deixar de ser, com coisas
no mundo, em meu país.

NOTAS
1. Os misak, também conhecidos como guambianos, constituem uma etnia indígena do
departamento do Cauca, localizado no sudoeste colombiano (N. de T.).

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2. Os grupos paramilitares são atores armados que atuam junto à instituição militar e ao mesmo
tempo exercem uma ação irregular, desviada das práticas militares. Na Colômbia esses grupos,
que manifestam ideologias de extrema-direita, foram apoiados, de maneira oficiosa, por
sucessivos governos nacionais, instituindo verdadeiras zonas de exceção nas localidades onde
operam (N. de T.).
3. A Tinta Crítica é o informativo bimestral do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (N. de
T.).

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Rejouer les savoirs


anthropologiques
de Durkheim aux Aborigènes

Barbara Glowczewski

NOTE DE L’ÉDITEUR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 17/12/2013

NOTE DE L'AUTEUR
Une version courte de ce texte a été présentée au Colloque « Les formes élémentaires de la
vie religieuse de Durkheim. Perspectives pour l’anthropologie », (6-8 juin 2012) célébrant
le centenaire du livre, à la session d'ouverture « Ethnographie et théorie », École
Normale Supérieure (Ulm), organisé par Perig Pitrou et Frédéric Keck, en collaboration
avec le musée du quai Branly et le Collège de France.
The Elementary Forms was created in an effort to
answer Spencer and Gillen, and to glue society and
religion together again. In the process, it often
misrepresented their account, yet without amounting
to a total falsification of their ethnography. It is
instead an imaginative re-construction, which
involved its author in developing a whole new seminal
theory of his own. The work is both a transfiguration of
Spencer and Gillen’s Australia and a transfiguration of
the old Durkheimian Australia.
(Watts Miller, 2012)

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1 Durkheim est-il bon à penser pour les Aborigènes d’aujourd’hui? La question est à la
fois théorique, pragmatique et politique. En effet, si les Aborigènes furent « bon à
penser » les sciences sociales depuis leur création, celles-ci furent secouées ces trente
dernières années par l’introduction de l’histoire dans la théorie anthropologique,
particulièrement celle des populations considérées jusque là « sans histoire », alors que
leur histoire est non seulement orale mais aussi constituée d’une multitude d’archives
visuelles et matérielles précoloniales. La question interroge ainsi d’une part le statut de
Durkheim comme un des « mythes » fondateurs des sciences sociales et d’autre part le
statut de la prise de parole des populations étudiées au regard de l’histoire de
l’anthropologie et des observations ethnographiques contemporaines.
2 Les données sur les peuples premiers d’Australie ont contribué aux fondements des
sciences sociales, depuis Durkheim et Mauss à Lévi-Strauss, en passant par Freud
(1975). Or la prise de parole et les activités aborigènes des dernières décennies– telles
les innovations rituelles, les luttes pour la reconnaissance de leurs sites sacrés et les
peintures totémiques sur toile – remettent en question certains des paradigmes fondés
sur les anciennes interprétations du totémisme. Face à la colonisation, les Aborigènes
se sont battus pour acquérir des droits à la citoyenneté australienne, mais, qu’ils vivent
dans des communautés reculées du désert, des rivières et des côtes du nord, ou bien en
ville, la majorité continue de résister aux nouvelles formes d’assimilation forcée, ou de
rejet stigmatisant, en insistant sur leurs particularités culturelles et ontologiques,
même si beaucoup sont métissés depuis des générations. L’histoire particulière de
l’Australie qui, sous prétexte de métissage et de politique de « blanchiment », a séparé
entre 1905 et les années 1970 un enfant sur cinq de leurs parents, pour les éloigner de
leur milieu aborigène, a créé ce paradoxe : la souffrance du déni colonial des origines a
suscité un mouvement de revendication de telles origines et un refus de reconnaissance
du métissage. Nommer les degrés de métissage est considéré comme une démarche
coloniale dénigrante de l’intégrité des personnes qui choisissent de s’identifier comme
Aborigènes et Black, « noires », quelle que soit leur couleur de peau. L’Aboriginalité
concerne tous les descendants : en ce sens elle n’est pas essentialiste mais construite
par diverses expériences d’héritage tant culturel qu’historique, qui impliquent souvent
un partage de souffrance, de rejet, de résistance et de créativité.
3 Nous allons voir que les « éléments » aborigènes qui insistent sur leur spécificité et
persistent dans leurs modes d’existence actuels comme traits de leur singularité ne
semblent pas correspondre aux « formes élémentaires » dégagées par Durkheim. A ce
titre, je ne pense pas que ses interprétations des Aborigènes puissent nous aider à
comprendre leur singularité ou les questions que les religions posent aujourd’hui; je
doute même qu’elles éclairent le système spirituel et la société aborigène de la fin du
XIXe siècle. En revanche, j’ai pour hypothèse que certains agencements qui
caractérisent la spiritualité aborigène contemporaine – y compris la manière dont ils
rejettent ou absorbent la christianisme – nous aident à comprendre quelque chose de
leur perception que j’appelle « réticulaire » et qui, malgré les aléas de la colonisation,
continue à mettre en lien toutes les dimensions de la vie. Des formes transversales à
l’humanité se dégagent de bien des études des peuples autochtones d’Australie mais
aussi d’ailleurs, qui déplacent les questions de Durkheim, en sortant l’humanité de ses
catégories exclusives – culture/nature, individu/société, corps/esprit, imaginaire/réel
– pour appréhender l’humain dans un projet écosophique, où se nouent, au sens de
Félix Guattari, ce qu’il appelait trois écologies : environnementale (à la fois nature et

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technique), sociale et mentale, un nouveau paradigme à la fois esthétique, éthique et


politique (Guattari, 1989; Guattari; Rolnik, 1986).
 
Totémisme ou Dreamings : des classifications aux
réseaux
La réinterprétation des cultures traditionnelles par elles-mêmes n’est pas nouvelle :
pour beaucoup de peuples vivant de chasse et de cueillette, elle a été le propre
même de la survie, consistant, par exemple, à toujours redonner du sens aux
pratiques quotidiennes et aux événements ponctuant les vies individuelles et
collectives. La nouveauté vient de la confrontation souvent violente avec l’Occident
qui, ayant voulu les assimiler en détruisant leur spécificité, produit maintenant un
discours qui cherche à assimiler leurs productions artistiques et musicales dans
l’histoire de l’art universel tout en leur déniant l’authenticité de leur être social.
Les voix des peuples autochtones sont éditées ici et là […] Mais le discours des
autochtones sur eux-mêmes n’a pas droit de cité partout. (Glowczewski, 2004, p. 22).
4 Les Aborigènes se sont adaptés aux moyens de leur époque – les radios, les journaux,
l’art, la vidéo, le cinéma, l’internet, et la politique – afin de mettre en scène leurs
valeurs et aussi diffuser leurs critiques épistémologiques de la manière dont ils sont
stéréotypés et souvent discriminés. Ces stéréotypes, qui s’appuient sur des archétypes
évolutionnistes au fondement de nos disciplines, ne relèvent pas que du passé colonial :
ils guident encore les gouvernements, les médias et certains de nos collègues. Malgré le
scepticisme des nostalgiques de l’authenticité supposée perdue des sauvages, bien des
communautés aborigènes– en créant des coopératives d’art dans les années 1970 et
1980 – ont réussi à faire reconnaître la singularité culturelle de mouvements artistiques
locaux qui, depuis trente ans, renouvellent régulièrement le marché mondial de l’art
contemporain avec des œuvres qui ne finissent pas d’étonner. Initié par des artistes de
Papunya (Myers, 2002), l’art des peintures dites « à points » (dot paintings) réalisées sur
des toiles avec des couleurs à l’acrylique, démontre la manière cartographique dont les
Aborigènes du désert vivent encore ce que les anthropologues ont appelé le totémisme
et que le monde de l’art appelle « Dreamings », Rêves, ou plutôt comme l’indique la
forme progressive en anglais : « ce qui est en train de rêver ».
5 Le terme « Dreaming » est une traduction, qui fut proposée par Spencer et Gillen, de
concepts cosmologiques des Arrernte (Aranda, Arunta) et de leur voisins qui désignent
par ce terme à la fois des êtres totémiques, les récits mythiques qui racontent leurs
voyages et les itinéraires géographiques qui relient les sites sacrés qu’ils ont marqués
sur leur passage. Dreaming désigne aussi le temps de référence de ces actions
ancestrales que j’ai proposé de traduire par « espace-temps du Rêve » plutôt que
« temps du Rêve », afin d’insister sur le lien des totems non seulement avec un temps
supposé mythique mais aussi un espace à la fois physique et virtuel, en devenir dans
toutes ses manifestations d’existence, y compris les hommes (Glowczewski, 1991).
L’usage de Dreaming a rencontré un succès mondial qui a créé autant de malentendus
que le terme « totem » emprunté aux Algonkins d’Amérique. Mais il reste que l’aspect
totémique des Dreamings aborigènes le plus revendiqué aujourd’hui – celui de liens
spirituels avec des sites sacrés –, bien qu’évoqué par Spencer et Gillen, fut à peine
commenté par Durkheim. Il remarqua dans une note que les totems pouvaient être des
lieux mais sans mesurer l’importance de ces processus d’identification entre des lieux
différents et des personnes, hommes ou femmes, qui sont reconnus come les

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manifestations en devenir de plusieurs sites totémiques reliés par des itinéraires, et à


ce titre dotés à la fois de responsabilités rituelles et de droits fonciers qui les lient à
d’autre dans des réseaux complexes et non pas des clans fermés.
6 J’ai pour hypothèse que le contexte de pensée de l’époque ne lui permettait pas –
comme à beaucoup d’autres – de percevoir l’importance sociale, politique et
existentielle de ces liens fonciers ni même de visualiser le modèle réticulaire dans
lequel ils s’expriment. En effet, c’est l’enjeu politique de la lutte pour leur
autodétermination qui a permis aux Aborigènes de surligner l’importance de leurs liens
à la terre en tant qu’autochtones et donc propriétaires légitimes de terres dont ils
avaient été spoliés par la colonisation. Mais c’est aussi un changement de paradigme
occidental qui nous a permis de voir et symboliser l’ethnographie australienne
autrement, dès lors que la réticularité de la projection des totems dans l’espace est
devenue intuitivement plus perceptible, notamment parce que depuis l’internet, nous
avons une pratique quotidienne des réseaux (Glowczewski, 2004, 2005, 2007).
7 La lecture faite par Durkheim, et d’autres après lui, des données aborigènes disponibles,
réduisit les descriptions minutieuses de Spencer et Gillen, ainsi que de quelques autres
observateurs de terrain, à des questions de classification et de religion, qui relevaient
du paradigme classificatoire et dualiste de leur époque, opposant individu et société,
nature et culture, corps et âme, etc. En témoigne notamment les débats sur les
« esprits-enfants » aborigènes (totems dits de conception) dont l’interprétation était
biaisée par la théologie de l’immaculée conception : le dualisme du corps et de l’esprit
semblaient empêcher des théoriciens de l’époque (et même encore certains
aujourd’hui) de concevoir que les Aborigènes puissent reconnaître le rôle de l’acte
sexuel dans la reproduction tout en affirmant que la conception d’un enfant nécessite
qu’un esprit-enfant se choisisse une mère et un père, et annonce sa conception dans un
rêve que font soit les parents, soit des membres de la parentèle. La psychanalyse nous a
habitués à relativiser ce dualisme du corps et de l’esprit : de multiples facteurs peuvent
entrer en jeu pour faire un enfant, le rapport sexuel ne suffit pas. Un des enjeux des
rêves d’annonciation de conception – qui s’énoncent en termes de désirs et parfois de
conflit comme une pulsion de rêve- est de reconnaître une autonomie à l’enfant,
exprimée par son totem dit de conception, à la fois un nom totémique, un prénom (vers
de chant condensé) et un lieu. Ce totem de conception (ou Dreaming de conception, les
Walrpiri disent kurruwalpa) entre dans une constellation d’autres identifications
totémiques (images forces kuruwarri) qui constituent le territoire existentiel particulier
d’une personne dont les agencements cartographiques se recomposent au cours de sa
vie et de ses interactions avec d’autres : processus exemplaire de la microsociologie de
Tarde, souligné par Deleuze (1986) :
Tarde disait ceci : un courant d’imitation ou de propagation ne va pas d’un individu
à un autre individu. Il va d’où à où? Il va d’un état de croyance à un état de croyance
ou d’un état de désir à un état de désir. […] Ça devient une très grande idée qui n’a
rien à voir avec de la psychologie, mais qui a bien à voir avec de la microsociologie.
Les croyances et les désirs sont les corpuscules sociaux. Vous voyez la force de la
critique contre Durkheim : Durkheim en reste aux représentations, il ne voit pas ce
qu’il y a sous la représentation. Ce qu’il y a sous la représentation… La
représentation est un grand ensemble, c’est une instance molaire. Sous les
représentations, il y a les corpuscules de croyance et de désir et les corpuscules de
croyance et de désir sont inséparables d’ondes de propagation et l’onde de
propagation de la croyance et du désir, c’est l’imitation […] l’imitation et l’invention
chez Tarde correspondent tout à fait – vous ne pouvez comprendre ce que je veux

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dire que un peu plus tard – correspondent tout à fait à ce que Foucault appelle des
rapports de force.
8 Deleuze (1986) ajoute qu’il y eu un débat similaire entre Claude Lévi-Strauss et Edmund
Leach, le premier fabriquant une macrosociologie des échanges avec des structures
molaires et le second, lui opposant des pratiques effectives, un réseau latéral,
transversal, en perpétuel instabilité. Le débat qui opposa en 1903 Durkheim à Tarde
témoigne de l’arbitraire classificatoire et du primat du symbolique (représentations
collectives) qui s’est imposé en France dans une certaine filiation dominante des
théories en sciences sociales. En écoutant sur le net leur débat rejoué mot pour mot par
les philosophes Bruno Karsenti et Bruno Latour dans un séminaire aux USA, 1 on peut
s’étonner que les étudiants du début du XX siècle devaient étudier et discuter leurs
arguments opposés à cette époque, alors que l’histoire de nos disciplines a ensuite,
pendant des décennies, préféré enterrer Tarde. Or les travaux de Gilbert Simondon
(1964), Deleuze et Guattari (1980), puis Bruno Latour (2002) ou Maurizio Lazaratto
(1999, 2002) ont montré à quel point la vision en flux de Tarde permet de mieux
appréhender les phénomènes sociaux et économiques de notre temps, en sortant
notamment de l’opposition entre individu et société. Selon Tarde, lors de ce débat qui
l’opposa à Durkheim en 1903, des variétés individuelles, des innovations et des lois de
l’invention se dégage « une résultante collective presque constante qui donne lieu à
l’illusion ontologique de Monsieur Durkheim » du « fait social » qui substitue « milieu
fantôme » aux relations toujours fluctuantes.
9 Bien que Durkheim ait gagné contre Tarde dans l’histoire patrimonialisée de la
sociologie, Tarde revient en force, comme le montre les travaux de Latour (2012, p. 13),
critiquant Durkheim :
Chose surprenante dans un livre qui annonce le passage des formes élémentaires
évoluant, du moins le suppose-t-on, vers des formes plus évoluées, aucune
transformation historique ne vient marquer la position faite à l’individu : les
Aborigènes sont supposés bénéficier exactement du même appareillage
psychologique que le révolutionnaire en bonnet phrygien de 1789 ou le sujet
contemporain. Cette absence d’historicité prouve à quel point l’ouvrage est animé
par un problème que les données ethnographiques ne sauraient aucunement
éclairer.
10 Les données ethnographiques anciennes – tordues par les débats du XIXe siècle et du
XXe- résonnent autrement avec l’ethnographie plus récente et le monde d’aujourd’hui
qui, notamment depuis l’avènement d’internet, se pense en flux et réseaux
dynamiques. Mais il reste que si Tarde mettait en avant l’invention morale et la
sociabilité, sans partager la vision quasi messianique d’une supposée amélioration du
monde par la science – comme recherche de preuves pour éprouver des faits selon
Durkheim –, il était un homme de son époque modelé par la tendance quasi générale
des humanistes à n’avoir guère de recul sur la colonisation qui invoquait la nécessité de
dépasser la supposée « arriération » des peuples colonisés au nom du progrès. Dès 1885,
Clemenceau s’’était lui élevé contre Le discours sur les « droits et devoirs des races
supérieures » à « civiliser les races inférieures » de Jules Ferry. 2
11 Le dernier siècle, et particulièrement le tournant de ce millénaire, a démontré l’échec
partiel de la course en avant du progrès, les limites supposées civilisatrices de
l’Occident, et la redécouverte de certains savoirs et pratiques des cultures anciennes
comme valeurs contemporaines, non seulement à préserver au nom du patrimoine
mondial, mais aussi à exploiter pour résoudre des problèmes contemporains. En

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témoigne, par exemple, les savoirs sur les plantes médicinales et certaines techniques
chamaniques popularisées par les thérapeutes contemporains. D’une manière générale,
cette reconnaissance de perspectives non occidentales nous invite à décoloniser la
pensée et nos disciplines (Glowczewski, 2012).3
 
Terrains et cartographies aborigènes
12 Je suis partie sur le terrain australien en 1979 nourrie d’une approche
poststructuraliste telle qu’enseignée au département d’ethnologie de Robert Jaulin,
avec Michel De Certeau ou Jean-Toussaint Desanti à Paris 7-Jussieu, et par Deleuze, les
cinéastes expérimentaux ou encore les féministes à Paris 8-Vincennes. La participation
quasi quotidienne pendant cinq mois de danses, chants et peintures corporelles – mis
en œuvre dans des rituels souvent séparés pour les femmes et les hommes mais qui
célébraient les mêmes héros totémiques-, me permit de découvrir une manière d’être
collective en constante performativité. Le totémisme n’était pas une simple affaire de
classification mais un processus en devenir dans son actualisation rituelle sans cesse
rejouée à travers un jeu de rôles où chacun était maître (boss) de certains totems/Rêves
et assistant (worker/manager) d’autres : maître (kirda) de totems/Rêves qu’il ou elle
appelait à la fois « père » et « frère/soeur » et assistant (kurdungurlu) de totems/rêves
appelées soit mère soit « conjoint ».
13 Ces rôles rituels étaient déterminés par la parenté dite de « classes » ou à 8 sous-
sections appelées « noms de peau » (skin names) par les Warlpiri et leurs voisins du
désert, tels les Aranda (Arrernte). De multiples équivalences et torsions étaient sans
cesse en jeu afin de permettre aux gens de se situer les uns par rapport aux autres
même s’ils n’étaient pas de la même famille ou alliés : toutes les relations se
traduisaient en règles idéales de parenté que, bien sur, on transgressait souvent mais
dont la logique systémique (porté par un cube ou groupe diédrique) assurait une
certaine codification des rôles au regard des différentes choses nommées dans la nature
et la culture qui couvraient l’ensemble du réseau totémique et du territoire tribal. Ce
système était dynamique et semblait se substituer à l’émergence de chefs. Les « boss »
rituels changeaient selon les totems célébrés. Les maîtres d’un totem donné ne
pouvaient rien faire sans des assistants rituels qui détenaient la loi et certains savoirs.
Cette relation s’inversait selon les totems et terres associés célébrées. Les maîtres d’une
cérémonie devenaient les assistants des maîtres d’autres totems et terres lorsque ceux-
ci célébraient leur rituel.
14 Il en allait de même entre les hommes et les femmes : les secrets et rituels des uns
étaient complémentaires des secrets et rituels des autres. L’exclusion rituelle de chaque
genre travaillait à produire une androgynie symbolique : ce que j’ai appelé des
« hyperfemmes » et des « hyperhommes », le modèle d’identification des femmes aux
diverses femmes-hommes mythiques n’étant pas la même chose que celui des hommes
aux hommes-femmes mythiques (Glowczewski, 1991). Les modèles mythiques étant ici
ces êtres totémiques de « rêve », pistes en devenir rejouées à chaque rituel.
15 Le territoire tribal – dont hommes et femmes avaient le gardiennage rituel – se
déployait comme un réseau de lignes qui s’entrecroisaient en distribuant à tous des
droits et des obligations rituelles spécifiques sur des séries de lieux reliés en fonction
des identifications multiples de chacun –collectives et individuelles, tel l’esprit
totémique de conception ou les totems hérités du groupe paternel, par adoption ou

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d’autres occasions. Un Warlpiri disait par exemple qu’il ou elle EST à la fois Opossum,
Prune et Graine d’acacia, et aussi qu’il EST tel ou tel lieu, source ou rocher, où les êtres
Opossum, Prune ou Graine ont laissé soit leur empreinte soit une partie ou une
excrétion métamorphosée de leur corps. Chaque naissance appelait de nouvelles
interprétations des liens anciens alors que les tabous funéraires obligeaient à ne plus
énoncer certaines associations totémiques entre les lieux. Si certains rituels devenaient
tabous le temps du deuil, de nouveaux émergeaient avec la révélation onirique de
chants et peintures corporelles pensés comme des remémorations. Ces rêves
réactualisaient dans les rituels les liens entre les Dreamings/totems et les sites, créant
ainsi une cartographie dynamique : les séquences de récits chantés qui relient en ligne
des centaines de lieux totémiques nommés se sont ainsi renouvelées au cours du temps
au rythme des morts, des naissances et de l’interprétation des rêves.
16 Lorsque Félix Guattari lut ma thèse de 3e cycle soutenue en 1982 après deux séjours de 5
mois en Australie, il remarqua que mes données et l’analyse que j’en proposais lui
évoquaient Tarde plutôt que Durkheim, et il trouva là un exemple d’agencements
collectifs et de production de territoires existentiels, et d’affects a-signifiants
s’articulant dans les cartographies schizoanalytiques qu’il élaborait à l’époque
(Glowczewski, 2011b ; Guattari, 1992 ; Guattari ; Glowczewski, 1987). J’étais partie en
Australie, après une maîtrise sur les cinq sens et des films expérimentaux à la
recherche d’une perception sensorielle qui ne passe pas par la représentation. J’avais lu
que les veuves aborigènes (endeuillées dès le plus jeune âge en raison du mariage des
petites filles à des hommes jusque trente ans plus âgées qu’elles) étaient soumises à un
tabou de silence pendant au moins deux ans en vivant ensemble dans un camp qui leur
était réservé, et j’avais postulé qu’elles devaient avoir développé une forme de
communication et des pratiques propres à leur genre. Je ne fus pas déçue en arrivant à
Lajamanu : les femmes étaient en pleine activité rituelle pour un cycle initiatique sacré
Kajirri décrit vingt ans plus tôt comme réservé aux hommes (Meggitt, 1966) : en fait les
deux sexes travaillaient rituellement de manière séparée mais explicitement
complémentaire en se concertant régulièrement sur les rituels à faire. Dans un autre
rituel intertribal et secret, que j’ai décrit comme « manifestation symbolique d’une
transition économique » ou encore « culte du cargo » ou « culte historique »
(Glowczewski, 2002, 2004), les femmes avaient les mêmes rôles que les hommes : et les
deux sexes étaient initiés ensemble. En 1984, je retrouvais la même effervescence
rituelle des femmes et des hommes. L’apprentissage de la langue warlpiri me permit
d’enregistrer près de 90 heures de récits mythiques et de chants rituels correspondants
et de révélations oniriques, tout en photographiant les peintures et danses associées à
ces mêmes parcours mythiques de site en site totémique. L’analyse des chants et des
peintures me révéla la spécificité de chaque univers totémique et leur logique de liens
dans une cosmologie extrêmement complexe et dynamique faite de singularités
entrecroisées.
17 Pour comprendre ce que j’avais partagé avec les Warlpiri sur le terrain, j’ai d’abord
cherché à modéliser avec une figure topologique – l’hypercube – leur manière de se
situer dans un réseau classificatoire à huit pôles. Les 8 sous-sections des noms dits de
« peau » (skin names) qui sont énoncés comme un modèle de l’organisation sociale et
de la vie rituelle sont démultipliées en une multitude d’agencements, que les Warlpiri
(et leurs voisins du désert) cartographient eux-mêmes dans la géographie physique du
désert et de ses sites sacrés. A cette géographie correspond une géographie spirituelle
des récits mythiques des êtres totémiques et des chants rituels qui relient ces sites

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comme des balises. Ces balises à toponymes fonctionnent comme des empreintes,
engrammes d’une mémoire vivante, à la fois passé idéalisé et virtualité en potentiel de
nouveaux événements (naissances, morts, alliances, conflits, phénomènes climatiques,
etc.), notamment par l’interprétation de certains rêves, révélés tant aux femmes qu’aux
hommes, pour continuer à relier les sites par des récits, des chants et des peintures
rituelles correspondantes et localiser les référents totémiques de chaque nouveau-né.
18 Dans cette approche cartographique d’expériences matérielles et immatérielles,
actuelles et virtuelles, les explications aborigènes des rites, des mythes et des rites
étaient indispensables : il s’agissait pour moi de montrer comment les Aborigènes du
désert fabriquent du lien social et spirituel entre les hommes, avec les sites et les héros
totémiques de ce réseau. Leurs explications et la traque systématique dans la littérature
australienne, alors très abondante, des divers tabous rencontrés me permirent de
dresser une sorte de matrice croisée sur les contextes et les domaines de leur
applications : d’une part les tabous étaient langagiers, spatiaux, sexuels ou relatifs aux
biens, notamment alimentaires : d’autre part ils s’appliquaient presque toujours à
l’occasion de quatre types de rituels différents : totémiques, de deuil, d’initiation ou de
règlement de conflit entre alliés.
19 Autrement dit, si quelque chose de normatif – tabous et prescriptions totémiques des
noms de peau – permettait la reproduction du « système », ce que les Aborigènes du
désert appellent la Loi, ce n’était qu’à la condition que tous les hommes et femmes du
groupe linguistique continuent de faire des rituels en les « réinterprétant », c’est-à-dire
en rêvant des révélations qui nourrissent cette reproduction. Ces révélations – perçues
comme des virtualités de l’espace-temps du rêve remémorisées par le rêveur, se
présentaient sous forme d’innovations individuelles transposées dans des formes pour
nous artistiques (peintures, chants, danses) dans lesquelles le groupe se « reconnaît ».
Durkheim aurait peut-être trouvé là une confirmation de sa thèse sur l’idéal collectif et
le statut du groupe mais Tarde aussi sur l’imitation et l’innovation comme ondes de
propagation qui traversent les individus, créant des territoires existentiels dont les
agencements se recomposent sans cesse (Guattari, 1992 ; Guattari ; Glowczewski, 1987).
Deleuze (1993, p. 83 citant en note Glowczewski, 1991) a reconnu ce processus de
gestion collective des rêves ancrés dans les parcours géographiques qui fabriquent des
cartes à la fois imaginaires et réelles :
C’est pourquoi l’imaginaire et le réel doivent être plutôt comme deux parties
juxtaposables ou superposables d’une même trajectoire, deux faces qui ne cessent
de s’échanger, miroir mobile. Ainsi les aborigènes d’Australie joignent des
itinéraires nomades et des voyages en rêve qui composent ensemble un
« entremaillage de parcours » « dans une immense découpe de l’espace et du temps
qu’il faut lire comme une carte ».
 
Histoire et anthropologie : patrimonialisation vs
réappropriations autochtones
20 En 1991, un nouveau terrain sur la côte nord-ouest de l’Australie, me fit découvrir des
groupes en recomposition constante entre descendants d’Aborigènes reconnus
gardiens des lieux et d’autres exilés de leurs terres d’origine. Il devaient sans cesse
prouver leur légitimité face aux injonctions gouvernementales qui, après des décennies
de déplacements forcés de leurs parents ou grands-parents dans les missions et
réserves, exigeaient pour la reconnaissance de leurs droits qu’ils démontrent une

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continuité culturelle comme si ces aléas de l’histoire n’avaient pas existé. Les
Aborigènes semblaient eux ne tenir que par l'alternance d'alliances et de conflits qui
les opposaient dans le cadre même de l’Etat australien. Il n’y avait plus de société
aborigène palpable et pourtant, si ceux qui se disaient aborigènes, métis compris,
vivaient en apparence comme les Blancs, ils valorisaient aussi leurs différences comme
un « système » qui aurait sa place souveraine au sein de la nation australienne alors
même qu’ils étaient rejetés pour d’autres différences interprétées comme un «
système » inconciliable avec les impératifs universalistes énoncés par l’Etat.
21 Depuis la fin des colonisations officielles, la planète ne semble plus autoriser l’existence
de sociétés coupées du reste du monde, mais les cultures issues de ces sociétés
cherchent à se mémorialiser dans des formes créatives de patrimonialisation. Les Etats
occidentaux encouragent ce processus à condition que la culture s’en tienne à la
« représentation » de son passé et d’un espace clos restreint à la famille, au voisinage
(si pas trop communautariste) ou au spectacle. Or pour les acteurs concernés, la culture
n’a de sens que si elle devient le socle même des échanges sociaux et politiques. Les
Aborigènes du désert ont pensé réussir cet « échange » avec leur mouvement de
peintures à l’acrylique sur toile (transposant leurs réseaux territorialisés de mythes et
itinéraires totémiques) qui sont entrés en force sur le marché de l’art contemporain.
Trente ans plus tard, les collections de leurs oeuvres ont acquis une grande valeur en
bourse, mais la souveraineté aborigène sur leurs terres est écrasée au jour le jour et les
résistants aux injustices sociales souvent muselés (Glowczewski, 2012). Partout en
Australie des courants de peinture ont émergé avec quelques artistes qui ont atteint
une renommée mondiale : la plupart de ceux qui proviennent des communautés
appuient leur art sur des références totémiques et territoriales comme une affirmation
existentielle, une ontologie qui relie les humains à tout ce qu’ils ont nommés.
22 Il reste donc qu’en l’absence de « sociétés » aborigènes bien des individus ou collectifs
aborigènes s’attachent à certaines formes autrefois décrites comme du “totémisme”
(esprit-enfant, lien spirituel à une terre, etc.) : s’agit-il de formes élémentaires de la vie
religieuse? Pour beaucoup cette spiritualité se marie avec l’une ou l’autre des églises
chrétiennes, et pour d’autres, elle se conjugue avec leurs convictions laïques ou
musulmanes. En ce sens, ces singularités existentielles aborigènes plutôt que de fonder
des prémisses religieux apparaissent comme des formes élémentaires de ce que
Guattari (1989, 1992) a appelé l’écosophie (nouage de trois écologies : mentale, sociale
et environnementale), un paradigme esthétique qui est à la fois éthique et politique, un
ancrage nomade de survie.
23 Un récent colloque consacré à « 1913. La recomposition de la science de l’homme »
rendait compte d’un projet ANR de patrimonialisation des « savoirs ethnographiques ».
Lors d’une discussion, alors que j’avais questionné la pertinence d’interpréter les
débats anciens sur le totémisme sans prendre en compte la parole des Aborigènes qui
se sont exprimés depuis, l’un des intervenants me répondit que les Aborigènes
d’aujourd’hui n’ont (je cite) « rien à dire sur ce qui se disait d’eux à l’époque car ce ne
sont plus les ‘mêmes’ ». Vieille rengaine de l’authenticité et de la légitimité du lieu
d’énonciation d’un savoir. Je racontais alors qu’en 2001, le musée du Victoria à
Melbourne a intégré aux côtés d’objets d’Australie centrale collectés par Gillen et
présentés dans l’exposition permanente, une installation sur deux écrans intitulée The
dialogue : d’un côté un acteur joue le rôle de l’anthropologue Baldwin Spencer (Spencer;
Gillen, 1899) qui, avec les arguments et préjugés de son époque, dialogue avec un acteur

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aborigène qui, sur l’autre écran, interprète Irrapmwe, son principal informateur
arrernte. Mais ce dernier remet en question ou précise un certain nombre
d’affirmations de Spencer en utilisant des arguments éthiques de ces dernières
décennies, fondés sur la prise de parole et les droits autochtones de propriété collective
et inaliénable de leurs terres et de la propriété intellectuelle de leur savoirs
traditionnels (Morton, 2004). Frédérico Rosa (2012) me répondit alors « vraiment ces
Australiens sont trop politiquement corrects! ».
24 Ce court-circuitage d’un siècle utilisé à des fins pédagogiques dans un musée peut
apparaître comme un effet de style facile mais il pointe une question essentielle : le
rapport politique à l’histoire des idées. En effet à l’époque de Durkheim qui utilisa les
écrits quasi contemporains de Spencer et Gillen pour rédiger Les formes élémentaires de la
vie religieuse certains faits ethnographiques qu’ils ont relevés sont restés sans
commentaire car le paradigme occidental d’alors ne permettait pas de les comprendre.
Il a fallu que nous changions de perception et de paradigme pour voir et comprendre
autrement les données : particulièrement, en ce qui concerne le rapport spirituel à la
terre pensé comme un réseau de lieux inter-reliés, en devenirs mouvants dans un
espace-temps qui se rapproche plus des théories de la physique quantique et du
cyberespace que des spéculations religieuses à l’origine de nos disciplines écartelées
dans les oppositions entre individu et société ou nature et culture (Descola, 2005).
25 Certes du point de vue de l’épistémologie des sciences, les savoirs ethnographiques sont
à préserver mais il serait étrange de patrimonialiser l’anthropologie – même française –
sans prendre en compte les savoirs tels qu’exprimés par les populations concernées par
ces études depuis la fondation de la discipline et particulièrement avec l’indépendance
et les revendications territoriales et de souveraineté de ces peuples qui furent colonisés
et abondamment ethnologisés (Langton, 2011; Toussaint, 2006). En l’occurrence le fait
que Durkheim a projeté la notion de moitiés totémiques dans une fausse division de
l’espace territorial en deux est-il encore un « savoir »? Pris dans le dualisme de son
époque, il ne pouvait sans doute visualiser la territorialité aborigène dans un espace
réticulaire.4 Or, les Aborigènes ont élaboré leur totémisme rhizomique à l’image des
rhizomes d’ignames qui parcourent le désert; soit un de leur modèle à penser qui –
comme je l’ai souligné ailleurs – n’est devenu un savoir visible pour l’Occident qu’à
partir du moment où nous nous sommes familiarisés avec des théories de flux et de
rhizomes telles celles développées par Tarde, puis Simondon, Deleuze et Guattari, et qui
ont trouvé écho dans le développement réticulaire de l’internet des années 1990
(Glowczewski, 2007).
26 Penser le totémisme australien comme une cartographie rhizomique ou réticulaire
d’intersubjectivation des humains et de tout ce qui est nommé déplace la discussion
telle que posée dans le texte co-écrit par Durkheim et Mauss (1903) « De quelques
formes primitives de classification ». Ce texte, qui préfigurait Les formes élémentaires de
la vie religieuse, interrogeait l’essence et la hiérarchie entre les différents totems
auxquels une personne dit s’identifier. Or plutôt que de classer et sous-classer, il s’agit
de comprendre les formes de devenir (en warlpiri exprimé par le postfixe jarri) qui lient
les humains (hommes et femmes) aux différents totems dont ils portent le nom, en
interaction avec les responsabilités rituelles et leurs rôles de gardiens fonciers qui
varient selon les contextes. Les formes de devenir totémiques sont ainsi fluctuantes, à
la fois spirituelles dans les rites et tangibles dans les corps, les animaux, les plantes, la
terre, l’eau, le vent, etc. sous forme de traces, d’empreintes, de forces vitales.

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Empreintes comme des « gènes » disent certains Aborigènes aujourd’hui (en Warlpiri
« kuruwarri ») sans entendre la transmission des « gènes » au sens d’une filiation
exclusive, endogame ou raciale. Au contraire, quand un Aborigène dit « je suis »
Opossum, Prune et Graine mais aussi tel ou tel site, la qualité commune n’est pas tant
une essence qu’une empreinte, combinable avec d’autres empreintes, et qui porte une
virtualité de devenir commun nouant le possible des humains avec tout le reste. Par
définition, on reproduit un totem en se mariant avec quelqu’un qui incarne une
constellation de totems autres que les siens. L’exogamie totémique pose ainsi l’altérité
comme condition de la filiation qui reproduit un système dynamique d’alliances.
27 J’avais commencé ma communication orale au colloque du centenaire Durkheim en
retraçant au feutre le dessin réalisé dans le sable par Wanta Steven Patrick Jampijinpa,
ancien instituteur warlpiri à Lajamanu, concepteur du festival Milpirri, qui est depuis
2012 chercheur honoraire dans un programme de recherche sur les chants warlpiri à
Canberra. J’invite les lecteurs à voir par eux-mêmes sur YouTube (Jampijinpa, 2006), le
clip de Wanta qui commente son dessin tout en le traçant avec un bâton sur le sable,
puis reprenant dans une classe d’école, en montrant sur une peinture colorée un autre
réseau correspondant au découpage en quatre ensembles totémiques.
28 Le dessin de Wanta est une manière warlpiri de répondre à la divergence entre
Durkheim et Spencer et Gillen tel qu’analysé par William Watts Miller (2012) au
colloque parisien du centenaire des Formes : ces derniers séparaient totémisme et
organisation sociale alors que Durkheim les réassociait mais en séparant sacré et
profane. Wanta, le Warlpiri, ne se situe pas dans le dualisme ou la dualité de telles
catégories. Son cadre de référence est un réseau qui relie entre eux ce qu’il désigne en
anglais comme cinq pillars, « piliers » : 1) ngurra la terre comme camp, site, « chez soi »,
2) kurruwari, le dreaming qui est et fait la Loi de tous les devenirs, 3) jardiwanpa, etc.…
toutes les différentes cérémonies dont les rituels, chants, danses, peintures
réactualisent les liens,; 4) la langue warlpiri; 5) walja, les relations de parenté, qui
associent les gens deux à deux dans un jeu de relations correspondant à un groupe
diédrique (le cube : modèle logique du fameux système dit à « classes » qui a fait couler
tant d’encre chez les anthropologues comme chez les mathématiciens.
29 Les relations de ce cube ont érigé les Aborigènes comme le modèle exemplaire du
structures élémentaires de la parenté, mais les recherches de Fred Myers auprès des
« Pintupi » qui ne pratiquaient pas ce système classificatoire jusqu’aux années 1930, lui
a fait dire que les Pintupi seraient phénoménologiques, là où les Warlpiri seraient
structuralistes. Certes, il y a des aspects fort différents dans l’organisation des modes
d’existence des Warlpiri et des Pintupi, mais aussi diverses formes d’interactions
(l’adoption du système des sous-sections par le Pintupi dans les années 30 et divers
échanges rituels, intermariage, etc.) qui réactualisent leurs singularités respectives au-
delà de l’opposition phénoménologique/structurale. L’avènement des peintures sur
toile sur le marché de l’art contemporain initié par les Pintupi, les opposa dans un
débat d’experts rituels avec les Warlpiri. Le conflit s’est d’une certaine manière résolu
en faisant changer de pratique les uns et les autres : Les Warlpiri s’opposaient à ce que
soient peints pour le publics le motifs totémiques sacrés – dont les Pintupi, Warlpiri et
autres groupes du désert partagent les itinéraires des Dreamings. Pour tous, ces motifs
relèvent d’un processus d’initiation interne (bien que commun et objet d’échange entre
la plupart des groupes du désert et au-delà entre initiés, hommes ou femmes). Les
Pintupi ont accepté de changer la manière dont ils avaient commencé à peindre afin de

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rendre les motifs moins explicitement rituels, en systématisant sur les fonds des toiles
des textures de points (qui renvoient par ailleurs aux kuruwarri, et duvet ou coton
sauvage des peintures corporelles masculines) et en supprimant les références
figuratives aux objets sacrés et aux personnes (Myers, 2002). Les Warlpiri, qui avaient
été choqués par l’exposition des premières peinture sur toile pintupi qu’ils avaient vu à
Paris en 1983, se sentirent ainsi encouragés à peindre à leur tour – sans risquer un
sacrilège – (Glowczewski, 2004).
30 Lorsqu’en 2005 YouTube a permis de poster des images sur le WEB gratuitement, les
Aborigènes se sont lancés avec enthousiasme; Wanta a alors aussi conçu un festival,
Milpirri, où les enfants dansent du hip hop à côté des anciens qui chantent et dansent
les voyages mythiques des héros totémiques, les images-forces kuruwarri : c’était sa
réponse au suicide des jeunes.5 Les adultes et les enfants portent des vêtements soient
jaune, soit bleu, soit rouge soit vert, codes de couleur servant à répartir les différents
kuruwarri, les totems avec leurs lieux et rituels associés, selon les quatre paires de
« classes » (sous-sections) que tous les Aborigènes du désert et du nord appellent en
anglais des skin names, « noms de peau ». Le réseau des quatre couleurs et cinq piliers
de Wanta n’est ni structuraliste, ni phénoménologique, il est plutôt une « invention »
au sens tardien, traduisant une micropolitique devenue écosophique (Guattari 1989,
1992) : celle d’un Aborigène qui, de colonisé par naissance, s’est singularisé dans une
ligne de fuite, en fabriquant une innovation collective, en cristallisant les diverses
transformations et difficultés que son peuple a subies depuis la sédentarisation forcée
en réserve dans les années 1950 jusqu’à l’intervention en 2007 de l’Etat qui a
interrompu le principe d’autogestion instauré par les Warlpiri qui avaient gagné en
1978 leur revendication territoriale sur leurs terres spoliées.
31 Les savoirs des sociétés d’Orient à « érudits » dont les paroles ont été fixées par écrit se
sont fait une place dans le champ universel des sciences, mais il encore de bon ton dans
certains milieux de rejeter les savoirs d’autres peuples sous prétexte qu’ayant été
« sans écriture » avant leur colonisation, ils auraient été jusque là « sans histoire » et
seraient condamnés à ne pas changer – ni s’autoriser à interpréter leur histoire et la
cosmologie de leurs sociétés - sauf à perdre non seulement leur authenticité, mais leur
simple droit d’exister comme différent et singulier. Or, les manières actuelles dont des
membres de ces peuples s’expriment et interprètent leurs savoirs sont en train de
défier à la fois le sens de l’anthropologie et la légitimité supposée des savoirs
occidentaux.
 
Devenirs
32 Durkheim (2013, p. 3) écrivait dans Les formes élémentaires de la vie religieuse :
Les rites les plus barbares ou les plus bizarres, les mythes les plus étranges
traduisent quelque besoin humain, quelque aspect de la vie soit individuelle soit
sociale. Les raisons que le fidèle se donne à lui-même pour les justifier peuvent être,
et sont même le plus souvent, erronées; les raisons vraies ne laissent pas d’exister;
c’est affaire à la science de les découvrir.
33 L’enjeu pour Durkheim étant de trouver des lois qui puissent s’appliquer à toutes les
sociétés au-delà des spécificités locales, mais est-ce à dire que les producteurs de ces
rites et mythes ne peuvent pas aussi contribuer à cette quête supposée réservée à la
science?

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34 Depuis une trentaine d’années, la prise de parole des peuples autochtones et la


valorisation plus récente des systèmes de savoir indigènes (notamment avec la promotion
du patrimoine immatériel à l’ONU) semblent rendre inactuelle la question de l’erroné
et du vrai telle que posée par Durkheim à son époque. En effet, l’enjeu contemporain
des sciences sociales – je dirais même leur priorité – plutôt que de découvrir « les
raisons vraies » des rites et des mythes est plutôt de comprendre la cohérence de ce
qui, selon les autochtones fait « système de savoir ». Système n’est pas entendu ici au
sens d’une reproductibilité atemporelle, mais, de ce qui, tout en se référant à des
savoirs hérités d’une tradition (y compris la scientifique), résiste comme agencement
dynamique permettant aux acteurs collectifs de « tenir » une singularité.
35 Celle-ci peut souvent ne tenir qu’à se reconstruire régulièrement, ou selon les
contextes, par-delà les contingences historiques et la violence des transformations
sociales (économiques, politiques, environnementales, et aussi psychiques, religieuses)
que les groupes concernés (ethniques ou chercheurs de telle ou telle école) ont subi
avec la colonisation jusqu’aux flux constants de la globalisation actuelle. Face à cet
impératif, ethnographier les réponses les plus singulières ne nous voue pas au
relativisme culturel mais au contraire à tenter de comprendre des formes transversales
à l’espace et au temps à l’œuvre dans ce qui non seulement maintient ces singularités
culturelles mais encore en fait émerger de nouvelles.
36 Les sciences sociales – et particulièrement l’anthropologie – sont face à une impasse si
elles continuent à se patrimonialiser par la seule voix de ceux qui se légitiment de la
“filiation” de l’histoire de nos disciplines en intégrant les transformations de la pensée
occidentale dans une continuité fictive qui ne reconnaît pas l’apport de la
performativité des “étudiés” et les changements de paradigme qu’ils ont induits
(Glowczewski, 2012). Je laisse le dernier mot à un jeune artiste aborigène du sud de
l’Australie mondialement acclamé, Brook Andrew (2013, p. 246) :
Arguably, evolutionary theory is a backward invention fraught with confusion
made into an absolute rule on how the ‘other’ is seen. Therefore this means nothing
to me or my family apart from the fact that we still cannot own our grandmothers
traditional lands due to invasion/colonization. The idea of the primitive is no more
than a European fantasy – my ancestors were ‘mere uncivilized creatures who had
no real human meaning in life’. This objectification is an insult to all humanity. This
type of theory is redundant and never had any real truth other than a Western
European ego and power over those who were not a mirror image of Emile
Durkheim.

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1. http://www.bruno-latour.fr/fr/node/435 : d’après des recherches originales d’Eduardo Vlana
Varga et de Louise Salmon, mise en scène de F. Ait-Touati, film de Martin Pavloff; http://anthem-
group.net/tag/bruno-karsenti/.
2. « Je répète qu’il y a pour les races supérieures un droit, parce qu’il y a un devoir pour elles.
Elles ont le devoir de civiliser les races inférieures.  » dit Jules Ferry en 1885 : « Je ne comprends
pas que nous n’ayons pas été unanimes ici à nous lever d’un seul bond pour protester violemment
contre vos paroles. Non, il n’y a pas de droit des nations dites supérieures contre les nations
inférieures », lui répondit alors le député Clémenceau.
3. Voir à ce propos un échange filmé avec Eduardo Viveiros de Castro : Glowczewski B. (12 juillet
2011) : « Décoloniser l’anthropologie : agencements et réseaux existentiels des peuples
autochtones. »,  Décolonisations de la pensée. Anthropologie, philosophie et politique. (2) leçons deleuzo-
guatariennes », Journées Erraphis-Europhilosophie, Université de Toulouse : http://
choplair.com.free.fr/Europhilosophie/FIPS_videos/player.php?
id=2011_12juil_glowczewski&auto=1. Voir aussi, deux autres conférences filmées de Glowczewski
B. (26 avril 2013) : « Décoloniser l'anthropologie : exemples australiens et français » (traduction
en portugais par Claudia Fonseca), Porto Alegre, PPGAS/UFRGS Department seminar : https://

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vimeo.com/65924766; (12 août 2013), « Ethics of anthropological archives : academic heritage and
Indigenous priorities », Canberra, AIATSIS : http://vimeo.com/73112943.
4. Dans une note des Formes élémentaires, Durkheim signale que les totems peuvent parfois être
des lieux, sans mesurer le sens des descriptions totémiques de Spencer et Gillen (1899) qui eux-
mêmes n’ont pas mesuré l’importance du fait que chez les peuples du désert et du nord tous les
totems – animaux, plantes, vent, pluie, mais aussi lance, objets, etc. – sont dans un certain
rapport d’identification avec plusieurs lieux reliés par leurs mythes respectifs.
5. http://www.documentaryaustralia.com.au/films/details/1551/milpirri-winds-of-change.

RÉSUMÉS
Les formes élémentaires de la vie religieuse de Durkheim (2013) s’appuient essentiellement sur les
observations et analyses de Spencer et Gillen (1899) des rituels d’Australie centrale. Découlant de
35 ans de recherches en Australie, l’article montre que le paradigme du XXe siècle a empêché
Durkheim de voir l’importance du rapport à la terre dans la cosmologie et les pratiques rituelles
des Aborigènes. Il a aussi ignoré le dynamisme réticulaire de leurs cartographies totémiques que,
depuis la colonisation, ils continuent à réactualiser par l’art et les luttes sociales. La
réappropriation indigène par la parole et d'autres expressions de leurs propres systèmes de
savoir pose la question de la légitimité contemporaine des interprétations anciennes.
Patrimonialisés, Durkheim et d’autres deviennent des mythes fondateurs des sciences sociales
qui s’opposent parfois à la reconnaissance des peuples concernés. L’anthropologie est ainsi
confrontée à un problème à la fois éthique et politique.

The elementary forms of religious life by Durkheim (2013) largely draw on Spencer and Gillen’s
observations and analysis of Central Australian rituals. Stemming from 35 years of research
across Australia, this article shows that the paradigm of the XXe century has prevented
Durkheim to see the importance of the relation to land in the cosmology and ritual practices of
Aboriginal people. This paradigm also ignored the reticular dynamism of their totemic
cartographies that since colonization Indigenous Australians have been reactualizing through art
and social struggles. The Indigenous empowerment through speech and other expressions of
their systems of knowledge questions the contemporary legitimacy of ancient interpretations.
While Durkheim and others are “patrimonialized” into Western heritage, they become
foundation myths of social sciences which are sometimes opposed to the recognition of the
people they studied. Consequently anthropology is confronted to an ethical and political
problem.

INDEX
Mots-clés : Australie, cartographies totémiques, patrimonialisation, réappropriations
autochtones
Keywords : Australia, indigenous empowerment, patrimonialization, totemic cartographies

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AUTEUR
BARBARA GLOWCZEWSKI
Laboratoire d’Anthropologie sociale (CNRS/EHESS/Collège de France) – France

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Homenagem a Colette Pétonnet


Claudia Fonseca e Claudia Turra Magni

 
Apresentação
1 O seminário “Pistas da etnologia urbana, com Colette Petonnet” (“Les sentiers de
l’ethnologie urbaine, avec Colette Pétonnet”), realizado entre 3 e 4 de outubro de 2013,
no Muséum National d’Histoire Naturelle – Paris, reuniu diversos pesquisadores para
uma homenagem póstuma a esta precursora da etnologia em meio urbano, fundadora,
com Jacques Gutwirth, do Laboratoire d’Anthropologie Urbaine do Centre National de
Recherche Scientifique (LAU/CNRS). Este artigo é uma tradução do paper enviado por
Claudia Fonseca, ex-orientanda da homenageada, apresentado na ocasião em forma de
vídeo, produzido em conjunto com Claudia Turra Magni e Mauro Bruschi, sob o título
Colette Pétonnet au Brésil: les effets pédagogiques d’un exercice ethnographique. Aqui, as
autoras delineiam as marcas e repercussões dos ensinamentos de Colette, a partir de
sua estada no Brasil, na última década do século passado.
2 É com um misto de tristeza e satisfação que escrevemos estas poucas palavras sobre o
impacto da Colette Pétonnet na antropologia brasileira. Tristeza por causa da inevitável
condição humana – a finitude da vida. Satisfação graças ao sentido de filiação
intelectual que sentimos em relação a esta grande dama da antropologia, Colette
Pétonnet. Mais do que um objeto de interesse dos antropólogos, o parentesco e a
genealogia parecem ser uma maneira de estruturar nossas ciências humanas.
3 Em outubro de 1992, Colette e sua amiga psicanalista, Monique Touron, desembarcaram
no Brasil para passar um mês numa capital no sul do país, Porto Alegre. Essa viagem foi
resultado de vários movimentos de uma rede que começou com a recomendação de
Françoise Zonabend para que certa antropóloga brasileira realizasse seu doutorado sob
a orientação de Colette. Essa etnóloga – Claudia Fonseca, atual professora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – estava começando seu trabalho de
campo entre (o que era chamado na época) os “subproletários” de favelas brasileiras e,
ao consultar as obras de Colette, encontrou nelas uma enorme inspiração. Colette, com
seu habitual espírito de aventura, acolheu a aspirante em sua equipe, abrindo a porta
para intercâmbios que não cessariam de se aprofundar nas próximas décadas.

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4 Na época, com Jacques Gutwirth, Colette fundava o Laboratoire d’Anthropologie


Urbaine do Centre National de Recherche Scientifique (LAU/CNRS). Jacques, exilado
durante a Segunda Guerra Mundial, passara parte de sua juventude no Brasil, e o
português estava dentre as muitas línguas que falava fluentemente. Assim, instigados
pela possibilidade de financiamento bilateral, propusemos um programa de
intercâmbio sistemático entre etnólogos no Brasil e na França, o que nos conduziu ao
par perfeito – Colette e Jacques. O projeto de intercâmbio permitiu que o Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, em Porto Alegre, se enriquecesse com
a vinda de uma série de importantes pesquisadores franceses – Carmen Bernand,
Claude Rivière, Jean-Marie Gibbal (entre outros) e, claro, por diversas vezes, Jacques.
Finalmente, Colette foi convencida a vir também. Durante um mês, ela enfrentou um
regime de atividades intensas – orientação do trabalho de vários estudantes que
desenvolviam pesquisas sobre grupos populares no Brasil, conferências públicas (a do
cemitério Père Lachaise cativou, especialmente, seu público) e ainda um curso de 30
horas sobre “Estudos da vida urbana: história e etnologia”.
5 Foi durante esse curso que os alunos tomaram contato com um modo próprio de Colette
de pensar a cidade. Foi lá também que eles aperfeiçoaram um estilo de trabalho de
campo que se tornaria emblemático de certa linhagem da antropologia urbana no
Brasil. Evidentemente, já existia antropologia urbana no país. O Museu Nacional do Rio
de Janeiro recebera o grande sociólogo do interacionismo americano, Howard Becker,
dando origem a uma antropologia brasileira de sociedades complexas. Ruben Oliven,
fundador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, em Porto
Alegre, já havia lançado seu clássico Antropologia de grupos urbanos. Mas Colette, com um
olhar que ia sempre em direção às “profundezas”, introduzia um elemento
completamente novo nas discussões.
6 Enquanto professora, começou com as profundezas históricas, tomando sempre Paris
como exemplo por excelência do desenho das cidades modernas. Mas levou seus alunos
para as profundezas em um sentido mais literal, insistindo que não devíamos ser
enganados pelas aparências das superfícies. Sem atentar para elementos normalmente
despercebidos (os animais, os jardins) e os subterrâneos (os esgotos, os dejetos), o
pesquisador não compreenderia as complexidades dinâmicas da vida urbana. Sem
dúvida, havia sempre a suspeita de outras profundidades – a empurrar-nos para a
reflexão sobre a dimensão simbólica do que estávamos observando. Mas havia uma
grande sutileza na forma como Colette nos comunicava esse desafio, e um método que
não passava por longas explicações teóricas.
7 Para Colette, formada no Centre de Formation à la Recherche Ethnologique (CFRE) por
professores como Leroi-Gourhan e Roger Bastide, não poderíamos ficar nas abstrações.
Era necessário que os alunos colocassem “a mão na massa”. Ela nos fez sentir filiados à
linhagem do CFRE e a um estilo de aprendizagem em que se trabalha ao lado do mestre,
tal qual os aprendizes de outrora, para adquirir as sutilezas do ofício. Para o exercício
etnográfico em Porto Alegre, Colette procurou um campo simples, acessível, mas rico
em vida. Sua escolha recaiu sobre um pequeno circo instalado à beira do estuário que
margeia a cidade. Com uma dúzia de estudantes, Colette passou a frequentar, sob o
escaldante sol brasileiro, todas as atividades do pequeno grupo. Com a astúcia de um
estrategista militar, ela desembarcou com suas tropas. Delegava uma equipe para
estudar os gestos, o savoir-faire, os mecanismos e materiais necessários para montar o
grande toldo; outra, para descobrir o que é preciso para deslocar, cuidar e treinar os

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animais (ainda autorizados naquela época). Um estudante devia realizar entrevistas


com o “dono” sobre as estratégias logísticas desse negócio comercial: a administração
financeira, as licenças municipais, o marketing… Finalmente – e, é claro, aquilo que os
alunos mais esperavam – era necessário aproximar-se dos artistas, ouvir suas histórias,
traçar, a partir das observações de suas ações e palavras, o entrelaçamento das
trajetórias pessoais, profissionais, das alegrias e inquietudes quotidianas. Em uma fase
posterior, os diários de campo seriam relidos e discutidos para ajudar a distanciarmo-
nos da cena e a encaixar as peças desse quebra-cabeça. Foi através desse exercício
prático de observação flutuante que os alunos aprenderam a experimentar le voyage par
le détour, ou seja, o olhar distanciado sobre os ambientes urbanos nos quais vivemos.
8 Os resultados desse pequeno exercício etnográfico nunca foram publicados. 1 No
entanto, inscrita no folclore oral do programa, essa aventura marcou profundamente os
“modos de fazer” de uma geração de jovens etnólogos da UFRGS. Continuando a
tradição etnológica legada por Colette, vários deles foram para a França fazer seu
doutorado sob a orientação de professores treinados no CFRE ou ligados ao Laboratoire
d’Anthropologie Urbaine. Munidos de novas ferramentas intelectuais, esses
pesquisadores rumaram, por sua vez, para diferentes universidades brasileiras onde
perpetuaram esse estilo etnográfico. Assim, os textos de Colette tornaram-se leitura
obrigatória em cursos de método. Cornelia Eckert (professora da UFRGS, com sua tese
orientada por Jacques Gutwirth) faria da “observação flutuante” um pilar metodológico
de toda uma escola de antropologia urbana, denominada “etnografia na rua”. Miriam
Grossi (ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia) e Carmen Rial (atual
presidente), ambas oriundas da UFRGS e professores da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), atribuem a Colette um lugar de grande importância no panthéon de
antepassados dos alunos.
9 Um olhar mais detalhado da experiência de Claudia Turra Magni, uma das estudantes
de Colette, em Porto Alegre, ajuda-nos a entender o processo de transmissão dessa
herança intelectual.
Lembro-me de como, em Porto Alegre, Colette me acompanhou debaixo de pontes
habitadas por bandos errantes. Ela trouxe luz e legitimidade à pesquisa
etnoarqueológica que eu iniciava junto aos nômades urbanos. Depois, ao longo de
todo o meu doutoramento na École des Hautes Études en Siences Sociales, entre
1997-2002, em continuidade a este estudo, quando pesquisei no universo associativo
parisiense, a acolhida do Laboratoire d’Anthropologie Urbaine foi uma
oportunidade extraordinária para retomar contato com Colette. Ela ajudou-me
também a construir relações acadêmicas para aprofundar reflexões sobre minha
pesquisa, especialmente com o Groupe de Recherche sur la Pauvreté (GREP),
constituído por investigadores experientes, como Patrick Gaboriau, Daniel Terrolle,
e outros estudantes, como eu. Quando fiz uma apresentação sobre a etnografia
realizada no Brasil, Patrick Williams, diretor do LAU à época, comentou sobre
minha evidente filiação com uma tradição de estudar os grupos desfavorecidos –
uma tradição que tinha começado na geração anterior com a aliança entre a Colette
e Claudia Fonseca, e que teve continuidade nesta geração com os meus próprios
estudos sob a direção desta última. Não se tratava mais de “subproletários”, mas de
“nômades urbanos” – uma mudança de classificação que refletia as novas condições
socioeconômicas, políticas e epistemológicas. Mas houve uma sensibilidade
etnográfica no olhar – nem pessimista, nem romântico – o que certamente tinha a
marca de Colette.
De volta ao Brasil, como professora da Universidade Federal de Pelotas, no extremo
sul do país, tento propagar os fundamentos apresentados nestas experiências de
pesquisa, junto aos alunos de arqueologia e antropologia – especialmente aqueles

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interessados em antropologia da imagem e do som ou em etnologia urbana.


Posso citar um exemplo concreto da presença viva de Colette entre nós. É quando
proponho aos alunos um exercício de observação flutuante – por exemplo, na rede
dos cemitérios da cidade, cuja morfologia carrega a marca de diferentes religiões.
Devido à carência de obras de Colette traduzidas ao português, eu mostro ainda às
novas gerações as páginas amareladas das notas de aula que redigi durante o curso
que ela deu em Porto Alegre, há duas décadas. Estou convencida de que essas
páginas, com as recordações de minhas experiências, são uma dádiva que eu tenho a
obrigação de fazer circular entre os jovens pesquisadores da nova geração.
10 Nos últimos anos, o grupo de pesquisadores do LeMetro (UFRJ), sob a coordenação do
professor Marco Antônio Mello, aproximou-se de Colette, ajudando a preencher as
lacunas no que diz respeito à tradução para o português de sua obra. 2 Os membros
dessa equipe, com longa experiência de pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro,
encontraram grande inspiração na obra da etnóloga francesa. Não apenas os livros de
Colette, mas também suas fotografias serviram para alimentar as comparações entre a
morfologia das cidades e da vida quotidiana nos bairros populares dos dois países. 3
Tendo se tornado amigas de Colette, bem como parceiras intelectuais, duas jovens
investigadoras do LeMetro (Letícia de Luna Freire e Soraya Silveira Simões)
conseguiram persuadi-la a vir novamente ao Brasil, para um simpósio internacional, em
2010.4 Durante a conferência de encerramento, em linguagem clara e poética que
caracteriza toda a sua obra, Colette retomou as principais etapas de sua trajetória, bem
como os elementos-chave de seu método.5
11 Ao que tudo indica, os “descendentes” brasileiros de Colette continuam a se
multiplicar, e sentimo-nos orgulhosos de fazer parte daqueles que tentam perpetuar o
seu olhar particular sobre as vidas e as cidades que nos cercam.

BIBLIOGRAFIA
FOURMAUX, F. (Ed.). Les lieux du cirque. Paris: Editions Le Manuscrit, 2008.

PÉTONNET, C. A observação flutuante: exemplo de um cemitério parisiense. Traduzido por Soraya


Silveira Simões. Antropolítica, n. 25, p. 99-111, 2008.

PÉTONNET, C. Posfácio: itinerário de uma antropóloga em meio operário. In: MELLO, M. A. da S. et


al. (Org.). Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. p. 475-490.

VEIGA, F. B. Favelas em imagens: Babilônia, Chapéu Mangueira, Santa Marta, Manguinhos, Maré
(Rio), Créteil, Orly, Villeneuve-le-Roi (Paris): da pesquisa etnográfica à poesia urbana. In: MELLO,
M. A. da S. et al. (Org.). Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. p. 491-516.

NOTAS
1. Anos mais tarde, Francine Fourmaux (2008) organizou Les lieux du cirque, com artigos
produzidos a partir do Laboratoire d’Anthropologie Urbaine – o que evidencia a aproximação de
interesses temáticos e metodológicos que Colette inspirava em ambos os lados do Atlântico.

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2. Ver, por exemplo, “A observação flutuante: exemplo de um cemitério parisiense” (Pétonnet,


2008).
3. Ver, por exemplo, o material fotográfico reunido por Felipe Berocan Veiga (2012).
4. “Aspectos humanos da favela no Rio de Janeiro: ontem e hoje” (IFCS – UFRJ, 19-21 de maio de
2010).
5. Publicada no livro Favelas cariocas: ontem e hoje como posfácio (Pétonnet, 2012).

RESUMOS
O seminário “Les sentiers de l’ethnologie urbaine, avec Colette Pétonnet” (“Pistas da etnologia
urbana, com Colette Petonnet”), realizado entre 3 e 4 de outubro de 2013, no Muséum National
d’Histoire Naturelle – Paris, reuniu diversos pesquisadores para uma homenagem póstuma a esta
precursora da etnologia em meio urbano, fundadora, com Jacques Gutwirth, do Laboratoire
d’Anthropologie Urbaine do Centre National de Recherche Scientifique (LAU/CNRS). Este artigo é
uma tradução do paper enviado por Claudia Fonseca, ex-orientanda da homenageada,
apresentado, na ocasião, em forma de um vídeo, produzido em conjunto com Claudia Turra
Magni e Mauro Bruschi, sob o título Colette Pétonnet au Brésil: les effets pédagogiques d’un exercice
ethnographique. Aqui, as autoras evocam as marcas e repercussões dos ensinamentos da mestra, a
partir de sua estada no Brasil, na última década do século passado.

The seminar “Les sentiers de l’ethnologie urbaine, avec Colette Pétonnet” (Pathways of urban
ethnology, with Colette Petonnet), held on October 3-4, 2013 at the Muséum National d’Histoire
Naturelle in Paris, brought together diverse researchers in a posthumous homage to this
precursor of ethnology in urban settings and founder – together with Jacques Gutwirth – of the
Laboratoire d’Anthropologie Urbaine do Centre National de Recherche Scientifique (LAU/CNRS).
This article is inspired in the contribution solicited from Claudia Fonseca (one of Colette’s former
students), presented at the seminar in the form of a video produced in co-authorship with
Claudia Turra Magni and Mauro Bruschi, entitled Colette Pétonnet au Brésil: les effets
pédagogiques d’un exercice ethnographique. Here, the authors outline the repercussions of the
teachings of Colette, starting with her sojourn in Porto Alegre during the early 1990s.

ÍNDICE
Keywords: Colette Pétonnet, ethnographic method, history of anthropology, urban ethnology
Palavras-chave: Colette Pétonnet, etnologia urbana, história da antropologia, método
etnográfico

AUTORES
CLAUDIA FONSECA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

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CLAUDIA TURRA MAGNI


Universidade Federal de Pelotas – Brasil

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Resenhas

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PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e


cidade: corpo e alma do Brasil
Flávia Ferreira Pires

REFERÊNCIA
PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil. Porto Alegre: Medianiz,
2011. 208 p.
 
O Brasil das “confusões intemperantes”
1 As ideias do livro Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil foram refinadas ao longo de
quase 30 anos de dedicação à pesquisa em história, antropologia e sociologia. O livro
tem a vantagem de unir uma série de textos já publicados em um único volume, dando
ao leitor a oportunidade de apreciar o desenvolvimento dos argumentos da autora,
professora Léa Freitas Perez. Seu argumento central é que festa, religião e cidade são
“rochas sobre as quais fo(i) e est(á) erigid(o)” (Mauss, 1974, p. 42) o Brasil. Em outras
palavras, são os pilares sobre os quais a sociedade brasileira se fez e se refaz
continuamente. O prólogo de Roberto Motta anuncia o empreendimento de monta do
livro: interpretar o Brasil. Em direção convergente às pesquisas de uma das referências
primordiais do livro, Roberto DaMatta, a pergunta central é: “O que faz o brasil, Brasil?”
2 Para respondê-la a autora lança mão ao longo do livro do conceito de “double-bind”, o
duplo-vínculo de Gregory Bateson, conceito difundido no Brasil a partir dos textos de
Otávio Velho e que poderia ser entendido como uma “série de experiências insolúveis”, 1
“injunções paradoxais [aporéticas], dupla postulação” (p. 23). No entanto, o conceito de
duplo-vínculo acionado referencia-se sobretudo a Derrida, no sentido de
“indecidibilidade”: “que remete ao senso mesmo da diferença e da inderterminação”
em relação “à solução e ao fechamento de uma questão de pensamento” (p. 23). A festa,
a cidade, o Brasil são “duplo-vinculantes”, isso quer dizer, impossíveis de serem
apreendidos em uma mirada cartesiana baseada na lógica da exclusão “ou isso ou

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aquilo”. O princípio de organização social que impera aqui é o da plasticidade e do


movimento. O Brasil, tal qual Dona Flor, no romance de Jorge Amado, escolhe não
escolher entre seus dois maridos,2 acionando a lógica da complementariedade e da
simultaneidade. O mesmo vale para a religião e para a festa. De um lado a religião
brasileira é sincrética: não escolhe entre orixás e santos católicos, mas os combina. De
outro a festa é o reino das ambiguidades, pobres e ricos, reis e plebeus produzindo
sociedade, com toda a graça, pompa e êxtase que lhe é de direito.
3 “[O] encontro da estrutura carnavalizadora com a estrutura do poder” (p. 113) operada
pela festa é um exemplo da sua natureza duplo-vinculante. Ao mesmo tempo,
simultaneamente (que o leitor perdoe a redundância) a festa é da ordem e da desordem,
enfatiza, mas também revê e questiona as estruturas políticas. É um momento que
promove a “mística do dom”, segundo Mauss (p. 116), “um modo particular de
existência”, segundo Bakhtine (p. 117), e que ancorou nas terras brasileiras,
encontrando solo fértil.
4 Se Marcel Mauss é referência que permeia todo o livro, Pierre Sanchis – importante
pesquisador das religiões no Brasil – está presente da dedicatória ao tema da festa,
religião e cidade tratados como intrinsecamente relacionados. Gilberto Freyre, que
como ninguém escreveu sobre a religiosidade doméstica, festiva e profana do Brasil
colonial, também é presença constante no livro.
5 O livro é composto de cinco capítulos, além de uma “Nota introdutória”.
6 O capítulo “Por uma póetica do sincretismo tropical” apela para a necessidade de
ultrapassar o debate sobre a modernidade inacabada, muitas vezes acionada pelos
“mais realistas que o rei” (Velho, 2007) para se compreender o Brasil. Lançando mão da
ideia de que plasticidade e paradoxo aqui têm base sólida. Ela diz: “[o] Brasil é um
problema para a lógica cartesiana” e opera da mesma forma que o pensamento
religioso “pelas confusões intemperantes”, mas não ilógicas, para citar Durkheim nas
Formas elementares da vida religiosa (p. 44). Essa sociedade que convive com os contrastes
enquanto questões que suscitam reflexão e não enquanto problemas é também a
sociedade da festa.
7 O capítulo “Para além do bem e do mal: um novo mundo nos trópicos” reconcilia o
Brasil a Portugal, deixando de lado o discurso que culpa nosso passado colonial pelas
mazelas que enfrentamos. “A colonização do Brasil foi uma obra de grande
envergadura” (p. 53), “tributária da modernidade ocidental e de seu projeto
civilizador”, todavia “orientada pela ética da aventura e por uma concepção espaciosa e
otimista do mundo” (p. 62), cujo objetivo era obter com poucos custos riqueza e títulos
sociais.
8 O capítulo “A constituição da rede urbana brasileira nos quadros da formação do
mundo ocidental moderno” discorre sobre como a colonização portuguesa com a
empresa da cana-de-açúcar estava ligada a um mercado europeu urbano; de modo que a
colonização brasileira desde o início esteve ligada à cidade e não ao campo. Léa Perez
fala da centralidade das festas na vida das vilas, arraiais e cidades brasileiras, e como a
cidade/urbano é o lugar, por excelência, da festa, em contraposição ao que é próprio da
zona rural.
9 Sobre o desenvolvimento urbano do Brasil a autora argumenta que se trata de um
modelo híbrido. Portugal aplicou o esquema clássico inspirado na cidade ocidental, mas
o modelo foi transformado pelas condições locais e pela colonização. Vale lembrar,

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como faz Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala, que os portugueses eram eles
mesmos “mestiços”, vindos de oito séculos de ocupação moura na Península Ibérica.
10 “Dionísio nos trópicos” destaca o deus Dionísio e sua propensão ao excesso, ao vinho, ao
prazer, a festa, enfim. O barroco é aqui pensando como estilo de vida tropical, que une
elementos a princípio contraditórios, “um operador de ligações entre diferenças
incontornáveis” (p. 102) e uma “expressão do princípio dionisíaco em sua implantação
tropical” (p. 119). O barroco tropical é essencialmente duplo-vinculante.
11 “Breves notas sobre a religiosidade brasileira” é o último capítulo. Nele, Léa Perez
afirma que a religiosidade brasileira é “não moderna” e “[v]ivida teatralmente, pública
e coletivamente” (p. 122). A religião ocupa lugar central na vida coletiva brasileira, que
desde os períodos colonial e imperial desenrolava-se na igreja (p. 143). A despeito dos
esforços modernizantes de uma elite anticlerical e secular a população mostra-se ao
longo da história fervorosamente religiosa e contradiz a ideia moderna e secular da
religião como coisa do foro íntimo. “A religiosidade brasileira, compósita,
essencialmente festiva e carnal, é uma das melhores demonstrações do caráter mestiço
de nossa sociedade e de sua maneira de operar através de hibridação de códigos e de
pessoas.”
12 O livro – que foi organizado e reescrito durante a estadia da autora em Lisboa durante o
ano de 2010, como pesquisadora visitante no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) –,
termina com um posfácio que traça a trajetória das ideias desenvolvidas ao longo dos
capítulos, através dos cursos ministrados na Universidade Federal de Minas Gerias,
projetos de pesquisa coordenados e eventos onde foram debatidas.
13 O leitor deve ficar atento para não cair na armadilha fácil da crítica rápida aos
conceitos de mestiçagem e sincretismo. A autora faz suas ressalvas quanto ao uso dos
mesmos, principalmente em função das acepções ligeiras de que foram objeto e diz-se
mais inclinada hoje em dia a trabalhar com o conceito de “duplo-vínculo” (p. 43-44).
Sincretismo e mestiçagem não implicam uma confusão indistinta de elementos
díspares, mas “um modo de operar que é da ordem da simultaneidade” (p. 43), um
duplo-vínculo.
14 Ao mesmo tempo em que são simples, as ideias propostas no livro são inovadoras e
funcionam como sopro de vida para os ouvidos acostumados a ouvir falar da festa
apenas como reflexo da sociedade. A autora propõe pensar a festa como produtora da
sociedade brasileira, como ato de produção da vida. Nesse sentido a festa não reflete o
social, mas o funda. É preciso entender que a autora não afirma que a festa acontece em
um vazio contextual e histórico, mas que a relação da festa com a sociedade é mais
complexa que o simples reflexo. É uma obviedade socioantropológica afirmar que
sociedades diferentes produzem festas diferentes. Não é essa a questão aqui em jogo.
Muito mais, interessa à autora pensar as festas como “comunhão de sentimentos”,
produção de vínculo social, na esteira da escola sociológica francesa, para responder a
questão: o que nos liga, o que faz a sociedade?3 Por tudo isso mesmo, para entender a
proposta do livro que “não [é] só sociológica, não [é] só antropológica, mas
metassociológica e meta-antropológica”4 (p. 11) é fundamental uma leitura inteligente
e criativa.
15 Liberada por Roger Bastide quando afirmou que para compreender o Brasil é preciso
moldar-se em poeta (p. 47), gostaria de terminar parafraseando Chico Buarque citado

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poeticamente pela autora na sua “Nota introdutória”: o livro é bonito, pá, fiquei
contente!

BIBLIOGRAFIA
BATESON, G. et al. Toward a theory of schizophrenia. Behavioral Science, v. 1, n. 4, p. 251-264, 1956.

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M.
Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. v. 2, p. 37-184.

PEREZ, L. F.; AMARAL, L.; MESQUITA, W. (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de
Janeiro: Garamond, 2012.

VELHO, O. Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2007.

NOTAS
1. Do original “unresolvable sequences of experiences” (Bateson et al., 1956, p. 253).
2. Ideia retomada por Roberto DaMatta na conferência “The world of Jorge Amado” na British
Library, em Londres, durante o mês de junho de 2012.
3. Para um aprofundamento do debate entre “festa-fato” e “festa-questão”, ou a “festa em
perspectiva” e a “festa como perspectiva”, remeto o leitor ao recém-lançado Festa como
perspectiva e em perspectiva (Perez; Amaral; Mesquita, 2012).
4. Roberto Motta, do “Prólogo”.

AUTORES
FLÁVIA FERREIRA PIRES
Universidade Federal da Paraíba – Brasil

Horizontes Antropológicos, 41 | 2014


294

ZIMRING, Carl A. Cash for your trash:


scrap recycling in America
Antonio de Pádua Bosi

REFERÊNCIA
ZIMRING, Carl A. Cash for your trash: scrap recycling in America. New Brunswick:
Rutgers University Press, 2009. 221 p.

1 Cash for your trash foi originalmente escrito como tese de doutorado na área de história
na Carnegie Mellon University (EUA), em 2002. Embora seja um dos primeiros estudos
especializados sobre a reciclagem de sucata nos Estados Unidos, seu alcance abriga
fontes e reflexões que possibilitam rastrear algumas mudanças nas práticas sociais,
desde o século XIX, relacionadas ao desperdício e à reutilização de todo tipo de
materiais descartados. Este último aspecto é sua característica mais relevante.
2 Inicialmente, Zimring propõe um difícil problema: qual é o significado da reciclagem?
Por meio de uma rudimentar escala histórica o autor afirma que essa atividade é
bastante antiga, e encontra registros desde os séculos VIII e VII a.C., quando Isaías e
Miqueias profetizaram que Deus converteria os povos de tal modo que “das suas
espadas forjariam relhas de arados, e das suas lanças, foices” (p. 13, tradução minha).
Sua evidência seguinte aponta para a Europa medieval do século XII e para técnicas de
produção de papel a partir de restos de pano. Desse ponto ele se aproxima rapidamente
dos séculos XVIII e XIX, e identifica a presença de um incipiente mercado para a
compra e venda de trapos e ferro-velho, cujos desdobramentos causaram forte impacto
econômico e social no século XX, tornando-se um lucrativo e monopolizado
empreendimento:
Lidar com o lixo tornou-se um grande negócio na década de 1990. Diversas cidades
privatizaram seus sistemas de recolhimento e processamento de lixo, estabelecendo
contratos com empresas gigantes que passaram a dar um destino para o desperdício
da sociedade. Firmas privadas estabeleceram contratos com cidades durante
décadas, mas onde operavam dez ou vinte mil companhias tornou-se lugar para

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apenas quatro corporações nacionais que agora dominam esse mercado. (p. 155,
tradução minha).
3 Para o autor, a sobrevivência humana a partir do lixo surgiu como uma alternativa para
pessoas pobres e sem repertório para alugarem-se no mercado de trabalho. Apoiado no
estudo de Stewart Perry (1998), sua caracterização acerca dessa atividade indicou um
tipo de trabalho “sujo, perigoso e de baixo status”. Tratou-se, no início, de uma
atividade restrita a imigrantes europeus pobres, principalmente italianos sem domínio
da língua inglesa. A desconfiança contra tais imigrantes esteve aliada a uma percepção
negativa sobre lidar com o lixo dos outros, produzindo uma sensibilidade generalizada
de que essa atividade era suja e repulsiva – a razão fundamental da falta de prestígio
que marcou trabalhadores que se ocuparam com esse trabalho. Mesmo quando a sucata
tornou-se mercadoria encarada como um vantajoso negócio, o status daqueles que
viviam desse comércio não mudou.
4 Zimring confirma que desde o século XIX diversos materiais foram recolhidos e
negociados sistematicamente em muitas cidades. Borracha, panos velhos, garrafas,
estanho, ferro, aço e até ossos (transformados em fertilizantes) constituíram a renda de
muitos trabalhadores que, a serviço de negociantes (que atuavam como atacadistas
dessas mercadorias), cruzavam grandes centros urbanos em carroças coletando ou
comprando essas sobras. Contudo, sobre isso, suas reflexões e as fontes pesquisadas não
ultrapassaram a contribuição de Susan Strasser (2000) acerca da realidade das pessoas
que sobreviveram dessa atividade até a primeira metade do século XX.
5 A atenção de Zimring mostrou-se maior relativamente ao comércio de materiais
descartados e à sensibilidade frente ao desperdício. Na segunda metade do século XIX, o
crescimento das transações envolvendo sucata nos Estados Unidos (especialmente
restos de ferro e aço) foi bastante visível. Se em 1884 registrou-se a importação de 733
mil toneladas de ferro e aço, em 1887 o volume importado saltou para quase dois
milhões de toneladas. Tal crescimento foi facilitado pelo Estado, que taxou esse tipo de
importação e arbitrou um sistema de classificação para estipular a qualidade do
material negociado. Entretanto, o aumento do comércio de recicláveis não foi motivado
por qualquer preocupação centrada no desperdício ou na higiene.
6 Para Zimring, a preocupação com a preservação do meio ambiente no início do século
XX esteve associada à estratégia de negócios da National Association of Waste Material
Dealers (NAWMD). A utilização do sentimento preservacionista para legitimar o negócio
de materiais recicláveis tornou-se uma prática publicitária recorrente e um poderoso
argumento político para reconhecer e valorizar a função social dos empresários desse
setor. Zimring identifica como esses empresários começaram a expressar
sistematicamente essa visão desde 1913, ano da criação da NAWMD, quando o
presidente da entidade tentou afirmar a função social de seus pares e associados
dizendo que “os negociantes de resíduos são os verdadeiros preservacionistas. Eles têm
conseguido retirar milhões de dólares do lixo.” (p. 73, tradução minha). Embora a
referência ao sentimento preservacionista fosse clara por parte dos negociantes de
sucata, o mesmo não acontecia com a população e com o Estado. Os programas públicos
que estimularam a reciclagem só apareceram na década de 1940, voltados para fornecer
metal e borracha à indústria num contexto de guerra. O principal slogan do governo
repercutia os efeitos de Pearl Harbor, e não uma preocupação ambientalista: “Recolher
sucata para explodir os japoneses!”

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7 De qualquer modo, a disseminação da prática da reciclagem parece ter sido estimulada


pelo Estado, e certamente fortaleceu os negociantes de sucata. Mas isso foi feito
inicialmente sem recorrer a argumentos ambientalistas. A primeira grande intervenção
estatal aconteceu devido ao esforço de guerra que envolveu a reutilização de materiais
empregados na indústria bélica. Sobre isso, Zimring identificou o surgimento de
sistemática propaganda governamental que buscava mobilizar a população para
recolher itens como metais e borracha. Contudo, foi um esforço nitidamente datado,
pois o final da Segunda Guerra encerrou também a cruzada moral da reciclagem. O
Estado só voltaria a promover a reciclagem uma década depois, pressionado pelo
resultado de um consumismo sem antecedentes nos Estados Unidos. O rápido descarte
de mercadorias envelhecidas “precocemente” era um fenômeno social novo que
surpreendia. Apenas no ano de 1951 aproximadamente 25 mil automóveis rejeitados
estavam espalhados em diversos “cemitérios” pelo país. Esse número cresceria para
oito milhões na década de 1960. Tal quadro parece ter justificado um novo esforço
dirigido para o recolhimento e reaproveitamento dessa sucata, apelando para uma
visão higienista centrada na limpeza e estetização de margens de estradas e terrenos
urbanos que assustavam pela quantidade de entulhos, principalmente as carcaças de
automóveis.
8 Zimring aponta que seguidos governos investiram nesse sentido ao longo das décadas
de 1960 e 1970, desenvolvendo um aparato institucional que buscou regulamentar as
áreas para o depósito de sucata sem, contudo, garantir ou facilitar meios para a
reutilização desse material. As inovações tecnológicas que possibilitavam a separação e
transformação do ferro, aço, borracha e plástico, por exemplo, apresentaram outros
ritmos, e o seu emprego dependia de mostrar-se mais barato que a produção de tais
itens in natura.
9 O livro se torna mais interessante à medida que se aproxima do tempo presente e passa
a abordar a articulação entre reciclagem e ambientalismo (datando e explicando o
surgimento dessas duas éticas), mostrando de que modo isso favoreceu a constituição
de uma poderosa indústria da reciclagem. Mas é também a parte mais curta e menos
explorada do livro, permanecendo como um desafio para futuros estudos. Sua visão
sobre a generalização da percepção de “reciclar é ecologicamente correto” é pouco
precisa. Por um lado, tal inexatidão deve-se ao fato de que essa é uma questão recente
com desdobramentos ainda inacabados. Por outro lado, a sondagem do autor acerca
desse problema é pouco profunda porque, em grande medida, maneja um volume
tímido de fontes primárias e secundárias. Mas não se deve considerar isto como um
defeito do livro, pois, como observei, o capítulo final sugere importantes desafios para a
pesquisa histórica e, também por esse motivo, merece ser lido.

BIBLIOGRAFIA
PERRY, S. E. Collecting garbage: dirty work, clean jobs, proud people. New Brunswick: Transaction
Publishers, 1998.

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297

STRASSER, S. Waste and want: a social history of trash. New York: Metropolitan Books, 2000.

AUTORES
ANTONIO DE PÁDUA BOSI
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Brasil

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BERT, Jean-François. « Les techniques


du corps » de Marcel Mauss. Dossier
critique
Carlos Emanuel Sautchuk

REFERÊNCIA
BERT, Jean-François. « Les techniques du corps » de Marcel Mauss. Dossier critique. Paris:
Publications de La Sorbonne, 2012. 168 p.

1 O historiador e sociólogo Jean-François Bert escreveu e organizou recentemente


diversas publicações em torno da gênese e do caráter multifacetado do pensamento
maussiano e seus desdobramentos, a partir de pesquisa em arquivos (cf. Bert, 2012).
Parte do projeto mais amplo, esse livro apresenta amostras das obras de dez autores
influenciados pela ideia das técnicas do corpo, com textos publicados entre 1936 e 1984,
todos antecedidos por breves preâmbulos do editor. Apesar de arrematar a sequência
de artigos com um comentário bibliográfico (bastante sumário) acerca dos impactos
contemporâneos dessa noção, seu objetivo está longe de ser apresentar um panorama
dos estudos sobre o corpo. Também não se trata de uma exegese do escrito maussiano.
Ao invés disso, ele toma um caminho que pode parecer de início menos atrativo: reunir
textos acerca da recepção mais imediata da obra maussiana no espaço e no tempo, isto
é, que expressam as influências diretas de sua palestra na França no período
subsequente à publicação do texto, em 1936. Mas isso de modo algum limita o valor
dessa coletânea ao mero registro historiográfico. Entender o contexto de produção e de
recepção de As técnicas do corpo remete diretamente a uma nova compreensão do
potencial heurístico das proposições maussianas. Como estabelece na introdução ao
volume, para Bert ler as técnicas do corpo significa reler Mauss.
2 É justamente a proposta arqueológica desse livro, sua busca pelos vestígios do
pensamento francês em torno do tema, a responsável por seu interesse contemporâneo.
Em primeiro lugar, porque aponta para uma abordagem do escrito de Mauss que não

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coincide exatamente com aquela mais disseminada atualmente, que o toma como texto
fundador da antropologia do corpo, muitas vezes posicionando-o numa conexão
demasiado linear com Durkheim ou abusivamente próxima do culturalismo. Ainda que
esse tipo de interpretação esteja presente também no hexágono (vide o texto de
Vigarello), desenvolveu-se ali uma apropriação desse escrito pela chave da técnica,
elegendo-o como fundador de uma corrente da antropologia francesa menos difundida
no exterior – que fica representada no livro através dos textos de seus maiores
expoentes, Leroi-Gourhan e Haudricourt. Desse modo, Bert se junta a Nathan Schlanger
(2006), que republicou recentemente As técnicas do corpo juntamente com diversos
outros escritos sobre técnica e tecnologia, no esforço de reacessar essa quadra menos
frequentada do pensamento maussiano, sobretudo fora da Europa continental.
3 Mas restaurar uma compreensão desse texto clássico a partir dos interesses maussianos
acerca da técnica não é tarefa banal, já que, como nota Bert, “nous ne parlons plus la
langue de Mauss” (p. 7). Antes de tudo, os textos ali reunidos submetem o leitor a um
vocabulário e um estilo algo longínquos, como é o interesse fortemente descritivo e
classificatório de alguns autores, a exemplo de Geoffroy. Por outro lado, uma
perspectiva talvez inesperada sobre o papel das vivências pessoais na formulação do
problema envolvido nas técnicas do corpo é trazida por Condominas, a propósito do
impulso de Mauss à pesquisa etnográfica na França. Outro aspecto que pode soar
heterodoxo é o seu caráter francamente interdisciplinar, não apenas com relação aos
psicólogos, que compuseram a plateia de sua palestra em 1934, conforme nos detalham
os fac-símiles de documentos anexados ao volume (correspondência com Meyerson,
além do manuscrito do texto corrigido por Mauss e de notas de curso de alunos).
Também fica demonstrado o diálogo com a geografia, na proposta de uma
tecnomorfologia, ressaltada pelo vínculo entre técnica e solo feita por Leroi-Gourhan.
Cohen, por outro lado, trata a linguagem como técnica de relação; já Koechlin busca
uma associação entre o gestual, a expressividade e o significado por meio de uma
observação fina das ações. O interesse minucioso pelos movimentos, posturas e
propriedades do corpo ressalta também em Pelosse e Garine. Essa ideia de compreender
a técnica numa perspectiva dinâmica e eminentemente humana, através da ênfase nos
gestos enquanto fato social, assume elaboração metodológica mais refinada e
sistemática em Haudricourt. Por fim, o livro deixa claro que, para além da inspiração
temática, a comunicação de Mauss é parte de uma proposição teórica sobre a técnica,
como demonstra a apreciação conceitual de Gurvitch.
4 Ainda que na introdução o editor não avance muito na análise deste ponto, o conjunto
dos textos em si mesmo leva o leitor a concordar com sua opinião, de que a dimensão
antropológica fundamental das técnicas do corpo só pode ser de fato acessada quando
se tem uma noção do cenário em que ocorrera a reflexão de Mauss. Assim, é possível
aceitar que ele teve “l’intuition d’un modèle dynamique des pratiques et des gestes”
(p. 29), que o diferencia de outras tendências dos estudos em cultura material.
5 Ao abordar a situação-limite da “técnica pura”, sem uso de instrumentos, Mauss abre a
possibilidade de considerar a técnica como um conjunto de relações intrínsecas ao
humano, algo que viria a ser amplamente explorado na obra de Leroi-Gourhan. Para
Bert,
l’actualité de la communication de Mauss doit se comprendre aussi par sa manière
de définir les techniques qui, antérieurment, chez les sociologues du moins, ne
désignaient le seul usage d’instruments. En ouvrant la voie à l’etablissement du fons
gestuel dont chaque population est pourvue, Mauss va profondément renouveler les

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études technologiques, mettant un point final aux méfaits du diffusionisme qui


avait conduit la technologie comparée dans une impasse. (p. 30).
6 Certamente o fantasma do difusionismo não assombra mais, porém a dicotomia entre
técnica e sociedade (ou humanidade) ainda persiste como um dilema e um pressuposto
que a antropologia tem buscado repensar. A releitura de Mauss e das influências de seu
pensamento sobre a relação intrínseca entre técnica e corpo, que Bert nos propõe, pode
reavivar o brilho de antigas e empoeiradas inspirações no âmbito de um debate
absolutamente atual.

BIBLIOGRAFIA
BERT, J.-F. L’atelier de Marcel Mauss: un anthropologue paradoxal. Paris: CNRS, 2012.

SCHLANGER, N. (Ed.). Marcel Mauss. Techniques, technology, civilisation. Introduction by Nathan


Schlanger. New York: Durkheim Press; Oxford: Berghahn Books, 2006.

AUTORES
CARLOS EMANUEL SAUTCHUK
Universidade de Brasília – Brasil

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TORRE, Renée de la (Org.). El don de


la ubicuidad: rituales étnicos
multisituados
Rodrigo Toniol

REFERÊNCIA
TORRE, Renée de la (Org.). El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados.
Guadalajara: CIESAS, 2012. 380 p.

1 No final da década de 1990 a relação entre as ciências sociais da religião e processos de


globalização, numa acepção lato sensu do conceito, animou inúmeros debates teóricos e
conduziu os interessados no tema a apresentarem suas expectativas sobre o que
poderíamos esperar da religião e das pesquisas sobre o assunto no novo século que se
aproximava. Em uma publicação que marcou as discussões daquele momento (Oro;
Steil, 1997), Enzo Pace afirmou o necessário reconhecimento da implicação mútua entre
o processo mais amplo de globalização e as transformações nos regimes do crer – que
vinha sendo afirmada por diferentes pesquisadores (Amaral, 2000; Carozzi, 1999;
Magnani, 1999; Russo, 1993, entre outros) – e, por conseguinte, a necessidade de
acompanhar e analisar os “efeitos do desaparecimento de fronteiras simbólicas rígidas
entre diferentes campos religiosos, entre o campo religioso e o campo mágico e
esotérico, entre a religião e as novas crenças seculares ou para-religiosas” (Pace, 1997,
p. 33). A sugestão, em síntese, permitia situar o horizonte das ciências sociais da
religião além do “propriamente religioso”. Nesse caso, do reconhecimento da
articulação entre práticas religiosas com outras dimensões da vida social vinha também
a possibilidade de elaboração de pesquisas que escapassem da reificação do conceito de
religião (Steil; Toniol, 2013). Publicado quinze anos depois do texto de Enzo Pace, o livro
El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados, organizado por Renée de la Torre,
atinge em cheio as expectativas de ampliação das perspectivas teórico-metodológicas,

Horizontes Antropológicos, 41 | 2014


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bem como dos próprios universos de interesse empírico das ciências sociais da religião
sugeridas pelo antropólogo italiano.
2 A partir de uma proposta comparativa, em El don de la ubicuidad: rituales étnicos
multisituados, pesquisadores do México, Brasil, Argentina e França dirigem seus esforços
para a análise de rituais que se articulam, se replicam ou se desdobram em distintos
contextos nacionais. Assim, os textos do livro se relacionam a partir de três eixos
centrais, as danças rituais conchero-aztecas, os rituais dedicados à Yémojá/Yemanyá/
Iemanjá nas religiosidades afro-americanas, e os rituais da etnia wixaritari em suas
apropriações nova era. A diversidade de textos reunidos na obra, bem como dos
contextos empíricos de investigação, não tira a organicidade do livro, mas, pelo
contrário, à medida que o leitor avança na leitura dos capítulos sua proposta teórico-
metodológica torna-se mais evidente. Atentos às constantes afirmações sobre a fluidez
dos pertencimentos e as articulações transnacionais de instituições e grupos religiosos,
os autores problematizam os localismos implicados em conceitos como o de campo
religioso. Com isso não deixam de reconhecer a importância dos processos locais na
análise dos fenômenos religiosos, mas buscam evitar a circunscrição de práticas e
signos locais à localidade.
3 Tão eficaz para a composição do argumento mais geral do livro quanto a convergência
da perspectiva analítica de seus 11 autores é sua proposta editorial. Os textos são
sumariamente etnográficos e a cada um deles se soma uma narrativa visual feita a
partir de fotografias. Ao mesmo tempo em que essas duas narrativas – textual e visual –
se articulam, cada uma delas também tem sua própria autonomia. Desse modo, os
capítulos se articulam tanto a partir de textos introdutórios a cada um dos três eixos
citados, como também por meio de uma composição, no início de cada novo capítulo,
que dispõe fotografias relativas aos textos anteriores e aos seguintes, deixando ao leitor
a possibilidade de elaborar suas próprias conexões. Nas palavras da organizadora do
livro:
A fotografia é valorizada neste livro não como uma arte, nem por sua
potencialidade ilustrativa, mas por sua capacidade de captar situações particulares,
fatos únicos, captadas em um mesmo contexto, mas que, conectadas com outros
cenários, nos permitiriam armar um discurso complexo de sequências e contrates
entre distintas imagens e no entrecruzamento das distintas sequências rituais. Uma
espécie de quebra-cabeças que vai armando realidades multilocalizadas. (p. 13,
tradução minha).
4 O primeiro eixo articulador do livro, intitulado Danzantes y tranlocalización, reúne textos
dos antropólogos mexicanos Renée de la Torre, Santiago Bastos, Alejandra Aguilar Ros e
Cristina Gutiérrez Zuñiga. As danças em questão são parte de rituais de longa duração
realizados pelas populações pré-hispânicas que povoavam o território mexicano. No
período colonial, tais rituais experimentaram a acusação de paganismo para,
posteriormente, articularem-se com as festividades católicas devotadas aos santos
padroeiros nacionais. Ao longo da primeira metade do século XX as danças rituais
adquiriram nova visibilidade, tendo sido convertidas em “prática asteca” foi
reconhecida como parte do folclore nacional e da identidade mexicana. A valorização
de tais danças foi central para o surgimento de inúmeros movimentos interessados em
“recuperar a mexicanidade” a partir da retomada de práticas das populações
mesoamericanas antes da colonização espanhola. “Este movimento [pela mexicanidade]
pretende uma reindianização, ainda que astequizada, da cultura nacional, rechaçando
elementos sincréticos, a cultura ocidental e o catolicismo nas danças” (p. 26, tradução

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minha). Já na segunda metade do século, em paralelo aos movimentos pela


mexicanidade, emergiram os movimentos de neomexicanidade. Formados nos grandes
centros urbanos, este último tipo de movimento ancora as danças rituais em um
contexto de espiritualidades nova era. Com isso, as danças são apresentadas não
somente como um modo de retomar tradições indígenas, como também de acessar, a
partir dessas tradições, energias, sabedorias e forças espirituais importantes na nova era
que se anuncia.
5 Ambos os movimentos – da mexicanidade e da neomexicanidade – têm passado por
processos de transnacionalização que, embora distintos nas redes que acionam e nos
sujeitos que articulam, são comuns nas suas direções: do sul para o norte, do México
para Estados Unidos e Europa.1 A partir da ideia de translocalização, os textos que
compõem essa sessão apresentam as diversas articulações que as danças produzem em
cada um dos contextos em que são praticadas. Assim, na Espanha, por exemplo, a dança
foi incorporada em uma rede de espiritualidade alternativa, por vezes associada aos
peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela, que reivindicava a relação daqueles
rituais com a “cultura ibérica”. No México, por sua vez, as danças ocorrem em
contextos bastante diversos, como nas festividades da semana santa asteca, durante as
cerimônias dedicadas a Cuauhtécmoc – o último rei asteca –, ou ainda entre populações
indígenas, como é o caso da etnia mezcala. Já nos Estados Unidos, sobretudo na
Califórnia, as danças rituais, realizadas a partir de diversos grupos, têm estado
associadas aos movimentos de afirmação da identidade “chicana”, constituindo-se
ainda como momentos para a expressão de pleitos políticos dos trabalhadores
mexicanos.2
6 O segundo eixo articulador dos capítulos do livro, Yémojá/Yemanyá/Iemanjá: rutas
transnacionales y avatares relocalizados, é formado por textos de Nahayeilli Juárez,
Stefania Capone, Ari Pedro Oro, Alejandro Frigerio e Kali Argyriadis. Tendo como fio
condutor a descrição e análise de rituais dedicados – mais ou menos explicitamente – à
Yémojá/Yemanyá/Iemanjá no Brasil, Argentina, Uruguai, Cuba e Estados Unidos, os
pesquisadores apresentam não somente a diversidade de práticas em torno do orixá nas
religiões afro-americanas, como também discorrem sobre os distintos regimes de
visibilidade e de legitimidade de que esses rituais gozam em cada contexto nacional.
7 O reconhecimento do orixá como o elemento comum aos capítulos é problematizado
logo nas primeiras fotografias e narrativas apresentadas aos leitores. A diversidade da
imagética de Yémojá/Yemanyá/Iemanjá, assim como os distintos modos pelos quais o
orixá é mobilizado na umbanda, batuque e candomblé, nos fazem ponderar a ideia de
que estamos diante de replicações do mesmo. Também não são comuns os regimes de
visibilidade – na relação com o Estado e com a sociedade civil – que tais rituais
experimentam. Assim, se, em Porto Alegre, o maior ritual dedicado ao orixá – a
procissão de 2 de fevereiro, dia de Nossa Senhora dos Navegantes/Iemanjá – tornou-se
bem cultural imaterial da cidade, em Buenos Aires as celebrações dedicadas a Iemanjá em
espaços públicos receberam, apenas recentemente, autorização para serem realizadas.
Ainda sobre o contexto do Cone Sul, os textos permitem aos leitores reconhecer os
fluxos de deslocamento que conectam Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires a partir
da circulação de pais, filhos de santo e objetos entre essas cidades. Já nos Estados
Unidos, os rituais foram realizados com a ida de cubanos exilados para cidades como
Nova Iorque. Naquele contexto, os principais festejos ocorrem sob a insígnia de uma

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“reunião ecumênica”, capaz de congregar pessoas de diferentes origens e modalidades


religiosas numa única “religião dos orishas”.
8 Por fim, a última sessão do livro, intitulada Huicholes en contextos heterogéneos, apresenta
textos de Rodrigo de la Mora, Alejandra Aguilar Ros, Renée de la Torre e Jorge Luis
Marín. Trata-se de trabalhos dedicados aos rituais dos wixaritari, um grupo étnico que
habita a parte norte do estado de Jalisco, México. Seus rituais se realizam, sobretudo, no
interior das diversas comunidades rurais em que vivem ou ainda durante as
peregrinações que realizam em direção a espaços sagrados, situados fora de suas
comunidades, dispersos em cinco estados mexicanos. Nas últimas décadas, no entanto,
diferentes grupos nova era, da neomexicanidade, bem como certos agentes culturais,
têm buscado incorporar rituais wixaritari em suas próprias práticas.
9 O uso tradicional do peiote, a figura do xamã e os rituais de celebração do equinócio
foram alguns dos elementos que despertaram o interesse, por parte de grupos urbanos,
para os Wixaritari. É nesse contexto, por exemplo, que o mara’akame 3 Pablo Taizán
tornou-se uma figura de referência entre os grupos nova era e da neomexicanidade. Nos
rituais de equinócio, que no México chegam a reunir dois milhões pessoas, os wixaritari
também têm sido presença constante, resultado não somente do crescente interesse
público por suas práticas, como também por conta das redes que alguns mara’akame
estabeleceram com grupos místicos e esotéricos dedicados a realizar vivências
espirituais e “preparar xamãs” em contextos urbanos.
10 El don de la ubicuidad: Rituales étnicos multisituados é preciso em provocar reflexões sobre
a importância da análise de práticas rituais para a compreensão dos contextos
investigados. As narrativas textuais e fotográficas que apresenta fazem do conjunto de
etnografias individuais uma espécie texto colaborativo, em que os capítulos se
complexificam na medida em que se articulam. Paradoxalmente, o desafio de produzir
reflexões sobre rituais étnicos multissituados foi enfrentado pelos autores por meio da
produção de descrições minuciosas dos contextos locais. É assim que somente
compreendemos o dom da ubiquidade a partir da complexidade das conjunturas locais.

BIBLIOGRAFIA
AMARAL, L. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo nova era. Petrópolis: Vozes,
2000.

ARGYRIADIS, K. et al. En sentido contrario: transnacionalización de religiones africanas y


latinoamericas. México: CIESAS, 2012.

CAROZZI, M. J. (Org.). A nova era no Mercosul. Petrópolis: Vozes, 1999.

MAGNANI, J. G. C. Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na


metrópole. São Paulo: Studio Nobel, 1999.

PACE, E. Religião e globalização. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis:
Vozes, 1997. p. 25-39.

Horizontes Antropológicos, 41 | 2014


305

ORO, A. P.; STEIL, C. A. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997.

STEIL, C. A.; TONIOL, R. A crise do conceito de religião e sua incidência sobre a antropologia. In:
GIUMBELLI, E.; BÉLIVEAU; V. G. (Org.). Religión, cultura y política en las sociedades del siglo XXI.
Buenos Aires: Biblos, 2013. p. 137-158.

RUSSO, J. A. O corpo contra a palavra: as terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993.

TORRE, R. de la; ZUÑIGA, C. G. Transnacionalización de las danzas aztecas y relocalización de las


fronteras México / Estados Unidos. Debates do NER, Porto Alegre, n. 21, p. 11-50, 2012.

NOTAS
1. Diferentes pesquisadores têm se dedicado a investigar processos de transnacionalização
religiosa que obedecem ao sentido sul-norte – refiro-me, evidentemente, menos às referências
geográficas e mais às configurações políticas do globo. Entre as diversas publicações mais
recentes sobre o tema, destaca-se o livro En sentido contrario. Transnacionalización de religiones
africanas y latinoamericas (Argyriadis et al., 2012).
2. Para uma discussão aprofundada sobre o tema ver o debate realizado a partir do texto de Torre
e Zuñiga (2012).
3. “Especialista religioso que dirige as cerimônias rituais dos wixaritari.” (p. 373, tradução
minha).

AUTORES
RODRIGO TONIOL
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Doutorando em Antropologia Social

Horizontes Antropológicos, 41 | 2014


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ROCHA, Ana Luiza Carvalho;


ECKERT, Cornelia. Antropologia da e
na cidade: interpretações sobre as
formas da vida urbana
Tania Dauster

REFERÊNCIA
ROCHA, Ana Luiza Carvalho; ECKERT, Cornelia. Antropologia da e na cidade:
interpretações sobre as formas da vida urbana. Porto Alegre: Marcavisual, 2013. 296 p.

1 Antropologia da e na cidade: interpretações sobre as formas da vida urbana, das autoras Ana
Luiza Rocha e Cornelia Eckert, expressa um percurso de investigação e uma linhagem
que tem como fonte a antropologia urbana em inter-relações com a antropologia da
imagem.
2 O livro é um feixe de oito artigos anteriormente publicados em periódicos científicos,
oriundos de estudos antropológicos e práticas etnográficas em cidades brasileiras, com
foco privilegiado em Porto Alegre. Trata-se de uma obra dedicada in memoriam ao
antropólogo Gilberto Velho, falecido em 2012. A produção reunida neste livro é, nas
palavras das autoras, “relacionada à linha de pesquisa fundada no Brasil pelo professor
Gilberto Velho” (p. 10). De forma análoga, as pesquisadoras declaram filiar-se a uma
“comunidade interpretativa, da qual participam antropólogos brasileiros como Eunice
Durham, Ruth Cardoso e seus orientados, Ruben Oliven e seus orientados, entre tantos
outros” (p. 9).
3 Este livro encerra e expressa vários significados. Como legado inspirado em Gilberto
Velho, aqui perduram suas lições de antropologia urbana, inventam-se outras, pois o
entrelaçamento com a antropologia da imagem representa uma feição inovadora e
atual, característica da identidade e do modo de vida acadêmico e investigativo das

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etnógrafas. A obra espelha, segundo os termos de Gilberto Velho (1994), as relações


entre carreira, memória e projeto nos trajetos das pesquisadoras. No caso em pauta, o
termo memória, por exemplo, é tanto um conceito com o qual as autoras lidam como o
cerne do próprio livro. Isso se explica, tendo em vista que o mesmo contém um acervo
de trabalhos que fixam as trajetórias das autoras, mostrando seus métodos de
estruturação do conhecimento. Nele encontram-se, também, narrativas sobre as formas
de convivência urbanas a partir de fotos, “uma escrita de imagens”, eu diria, uma
construção da memória da cidade porto-alegrense. Ademais, de maneira densa e
detalhada, são narrados os caminhos pelos quais a antropologia urbana desenrolou-se
no Brasil.
4 As autoras são intérpretes do urbano a partir do ponto de vista e nos termos dos
moradores e de suas imagens captadas nas fotos. Nas reconstruções que são feitas dos
dados etnográficos, as pesquisadoras e discípulos “estranham o familiar” (Velho, 1978)
e vão expondo aos leitores histórias de Porto Alegre e de seus habitantes, que
pertencem a diversas gerações e camadas sociais. Eles são personagens e protagonistas,
cujas versões de acontecimentos cotidianos se fazem memória enquanto construção
social.
5 Este livro, uma obra de antropologia urbana, uma antropologia da imagem/paisagem e
uma antropologia da memória, transcende seu próprio conteúdo e constitui-se como
“um objeto-memória” pelas razões anteriormente expostas. São desveladas práticas e
representações, continuidades e rupturas e formas de interpretar o urbano, seja
teoricamente falando ou através dos métodos de pesquisa etnográficos usados.
6 Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert com maestria interpretam, instituem e
constroem memória ao ultrapassarem as margens da antropologia e transitarem por
outras faixas disciplinares. Dialogam com autores em distintos campos do
conhecimento. Bachelard lhes dá o alimento filosófico para elaborar a categoria tempo e
adotar epistemologicamente a perspectiva da duração. Um ponto alto, entre outros, de
suas representações e práticas reside na discussão teórica da categoria paisagem, que
tem na filosofia de Simmel um manancial inspirador, assim como abre as veredas para a
sua operacionalização no encontro etnográfico.
7 Tentarei, a seguir, levantar alguns aspectos significativos de cada capítulo, sem a
pretensão de esgotá-los.
8 No primeiro, intitulado “Nas trilhas de uma antropologia da e na cidade no Brasil”,
encontram-se as bases da disciplina fora do Brasil na herança da Escola de Chicago, na
marca da sociologia de Simmel e na influência da Escola de Manchester com especial
atenção à fluidez entre as fronteiras simbólicas e nos usos de redes sociais como
método investigativo.
9 Gilberto Freyre é lembrado pelo exame que faz da noção de cidade, a partir da cena
recifense. Eunice Durham e Ruth Cardoso focam a cidade como locus de pesquisa e
desenvolvem os usos da etnografia com essa finalidade.
10 Nos idos de 1980, consolidam-se os programas de pós-graduação em antropologia e
ciências sociais, ao mesmo tempo em que há uma politização de temas da antropologia
e a intensificação de pesquisas no meio urbano. Nesse contexto a linha de pesquisa de
Gilberto Velho, assim como de seus orientandos, é citada pela síntese que promove
entre diferentes tradições. O texto “Observando o familiar”, de Gilberto Velho (1978), é
um clássico na discussão sobre o estranhamento do familiar e os desafios da alteridade

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próxima. São comentados, entre tantos outros pontos relevantes, os desdobramentos


do impacto dos estudos antropológicos de Gilberto Velho, ao lado de outras questões
tais como a antropologia das sociedades complexas e dos grupos urbanos e a
reverberação do ideário individualista na pesquisa etnográfica na cidade.
11 No capítulo 2, “Etnografia da e na cidade, saberes e práticas”, as autoras contribuem
com uma apresentação da perspectiva etnográfica, seu ensino e sua aprendizagem
tendo em vista ser ela o diferencial da construção epistemológica no campo
antropológico. Esse texto, embora inicialmente direcionado à graduação em
antropologia, representa uma contribuição para seu uso em outras áreas de
conhecimento, já que esse legado da antropologia é apropriado por outros campos do
saber nem sempre de forma feliz. Assim, são discutidos os meandros da elaboração de
um projeto antropológico, procedimentos na observação direta, a fabricação do objeto
de pesquisa através de questões que incidem sobre a construção da realidade social e as
interações durante o trabalho de campo que, como se sabe, é o emblema do fazer
antropológico. Não nos esqueçamos, entretanto, que não existem fórmulas prontas,
sendo fundamental a leitura e intimidade com as boas etnografias. Vale a pena, ainda,
frisar os usos das novas tecnologias eletrônicas e digitais na produção de outras
escritas.
12 O capítulo 3, como expressa o título, é dedicado a “Narrativas imagéticas”. Esse capítulo
reúne trabalhos de discípulos das autoras, no âmbito do mestrado e do doutorado. São
narrativas visuais que falam de bairros da cidade e de suas transformações, sempre
acompanhados de uma sinopse. As ruas, as casas e seus interiores assim como as
sociabilidades de seus habitantes são linguagem e contam histórias.
13 Nos capítulos 4 e 5, respectivamente intitulados “‘A cidade com qualidade’: estudo de
memória e esquecimento sobre medo e crise na cidade de Porto Alegre” e “Cidade
sitiada, o medo como intriga”, as antropólogas tratam das mudanças sociais e da
vivência de insegurança e medo vividas no cotidiano. Nesses capítulos o leitor pode
aproximar-se da chamada “cultura do medo”. Fotos e episódios narram estratégias
usadas para proteção contra a violência, revelando o que as autoras chamam, com
muita acuidade, de “estética de segurança” ou “estética do medo” (p. 109).
14 Nos capítulos 6 e 7, respectivamente intitulados “As variações ‘paisageiras’ na cidade e
os jogos de memória” e “A fabricação das paisagens, os jogos de memória e os trabalhos
da imaginação criadora”, as pesquisadoras discutem densamente a formação da
categoria paisagem como conceito, assim como a sua operacionalização em projetos que
englobam tanto as etnografias escritas como, ainda, a realização de vídeos e coleções
fotográficas. São textos complexos tecidos com as teias da memória, da política e da
imagem.
15 No capítulo 8, “A irracionalidade do belo e a estética urbana no Brasil”, Ana Luiza
Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert encerram o livro com uma reflexão que tem na
formação da cidade de Porto Alegre um manancial de símbolos, memórias e histórias
para pensar tanto a sua própria estética urbana como, num voo mais abrangente,
refletir sobre a estética urbana brasileira.

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BIBLIOGRAFIA
VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. (Org.). A aventura sociológica: objetividade,
paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 36-47.

VELHO, G. Memória, identidade e projeto In: VELHO, G. Projeto e metamorfose: antropologia das
sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p. 97-113.

AUTORES
TANIA DAUSTER
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Brasil

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