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Horizontes 503
Horizontes 503
41 | 2014
Antropologia e Políticas Globais
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky (dir.)
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/horizontes/503
ISSN: 1806-9983
Editora
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Edição impressa
Data de publição: 10 junho 2014
ISSN: 0104-7183
Refêrencia eletrónica
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky (dir.), Horizontes Antropológicos, 41 | 2014,
« Antropologia e Políticas Globais » [Online], posto online no dia 15 dezembro 2014, consultado o 01
julho 2020. URL : http://journals.openedition.org/horizontes/503
© PPGAS
1
SUMÁRIO
Apresentação
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky
Artigos
O que a perspectiva antropológica tem a dizer sobre a avaliação de projetos sociais apoiados
pela cooperação internacional?
Maria Lúcia de Macedo Cardoso e Delaine Martins Costa
Espaço Aberto
“Desdisciplinar a antropologia”
diálogo com Eduardo Restrepo
Resenhas
Apresentação
Ondina Fachel Leal e Guilherme Waterloo Radomsky
10 Os artigos deste dossiê abordam, cada um a seu modo, os aspectos acima mencionados,
em torno da questão central de políticas globais e/ou hegemônicas e realidades
etnograficamente escrutinizadas.
11 O artigo de Letícia Cesarino, que inicia este dossiê, faz uma reflexão epistemológica
sobre como a antropologia em sua tradição etnográfica de estudos locais de pequenas
comunidades pode trabalhar escalas globais. Através do caso empírico da cooperação
brasileira Sul-Sul com o continente africano, entendida como uma produção relacional
de um contexto, aponta para reflexividade entre o ofício do antropólogo e a produção
de um conhecimento que passa a fazer parte do sistema explicativo tanto dos
antropólogos como de seus nativos.
12 A seguir, Maria Macedo Barroso e Natacha Nicaise, tomando o caso de políticas de
desenvolvimento na Noruega e na União Europeia, analisam os processos sociais em
jogo e como estes estruturam a formação dos sentidos sociais do desenvolvimento e a
construção de um discurso moral a respeito de cooperação internacional.
13 Na mesma linha, o estudo de Catarina Morawska Vianna, toma o caso a agência católica
de desenvolvimento internacional da Inglaterra e País de Gales, desvendando princípios
que embasam o trabalho das agências internacionais de desenvolvimento.
14 O trabalho de Maria Lúcia de Macedo Cardoso e Delaine Martins Costa sobre avaliação
de projetos sociais apoiados por agências de desenvolvimento oferece uma reflexão
sobre o papel do antropólogo e da antropologia aplicada, reafirmando o lugar da
etnografia e da teoria antropológica para esse contexto de cooperação internacional.
15 O estudo de Rebeca Hennemann Vergara de Souza, Fabrício Solagna e Ondina Fachel
Leal, partindo do contexto mais geral da produção de políticas globais e acordos a
respeito de propriedade intelectual, acordos que regulam também o fluxo de
informação e a governança de trocas na internet, foca especificamente os casos norte-
americano e brasileiro de regulamentação da rede. O objetivo é desvendar a
racionalidade subjacente a esse sistema de produção de regras que atua sobre a esfera
pública de redes sociais e de comunicação na internet.
16 Rafael Evangelista, a partir de dados etnográficos, discute as características,
contradições e transformações do movimento e da comunidade software livre do Brasil,
apontando para os mecanismos de como se deu a eficácia política desse movimento
social. Apresenta-nos a dinâmica de diferentes grupos nesse cenário responsáveis pela
constituição da assim chamada cultura digital.
17 Héctor Guerra Hernández examina o processo de modernização em Moçambique,
especialmente por meio das revoltas populares em Maputo entre 2008 e 2010,
mostrando como um Estado modernizador é simultaneamente uma forma híbrida entre
um neoliberalismo democrático e um autoritarismo dominador e predador dos
processos que emergem na sociedade.
18 Geraldo Adriano Godoy de Campos, Carminda Mac Lorin e Raphaël Canet analisam, a
partir de uma antropologia da espacialidade, a emergência do que os autores
denominam de espaços globais de mobilização. Comparando o Fórum Social Mundial e o
GlobalSquare, os autores examinam as lógicas presentes em cada contexto, as
mobilizações políticas alternativas à configuração capitalista contemporânea e suas
contradições.
19 O artigo de Noemi Miyasaka Porro, Renata Menasche e Joaquim Shiraishi Neto compara
dois casos em que se entrelaçam os conhecimentos tradicionais e as tentativas de
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Artigos
Antropologia multissituada e a
questão da escala
reflexões com base no estudo da cooperação Sul-Sul brasileira
Letícia Cesarino
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 15/06/2013
Aprovado em: 17/12/2013
situada (no sentido de Haraway, 1995), e sugere a explicitação dos efeitos dessa
situacionalidade no próprio relato etnográfico.
3 A presente discussão não poderia deixar de derivar, portanto, de um enraizamento
etnográfico específico: meu trabalho de campo multissituado sobre a cooperação Sul-
Sul entre Brasil e África. Em outras ocasiões, teci considerações acerca da cooperação
Sul-Sul à luz de outras questões, prevalentes na antropologia do desenvolvimento
(Cesarino, 2012a, 2012b) e nos estudos pós-coloniais (Cesarino, 2012c). Aqui, eu me
basearei em experiências recentes da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) no continente africano para avançar uma discussão (meta)teórica sobre a
questão da escala na antropologia de fenômenos globais como os que se interpenetram
para compor a cooperação Sul-Sul. Sugiro que tal abordagem, mais do que oferecer
respostas definitivas às questões colocadas pela literatura acadêmica, é produtiva por
trazer essas próprias questões para o centro na análise. Pretende-se, com isso, abrir
espaço, na literatura antropológica canônica sobre cooperação, para interações
“diferenciantes” (Venkatesan; Yarrow, 2012) tanto com nossos interlocutores de campo
quanto com outras literaturas mais sensíveis às experiências do chamado sul global,
como os chamados estudos pós-coloniais.
A questão da escala na antropologia
4 Embora especialmente saliente no estudo de fenômenos globais e simétricos, a
problemática da escala está no cerne da constituição da disciplina antropológica
enquanto tal. Como colocou Peirano (1995), a antropologia se distingue por ser a um
tempo a mais geral e a mais particular das ciências sociais. Ela nasceu como o estudo do
homem em sua universalidade, mas o tem feito através da observação da diversidade
das práticas humanas na escala mais local: a das pequenas comunidades face a face.
Esse aparente paradoxo emana do seu método, a etnografia – que, não obstante
potencialidades alternativas nos momentos formadores da disciplina, 1 acabou se
consolidando segundo o modelo malinowskiano do antropólogo solitário, que passa um
longo período longe de casa, entre um grupo relativamente circunscrito e coeso de
pessoas muito diferentes do si próprio (e, se quisermos ir mais longe no espírito pós-
anos 1960: homem, branco, europeu, heterossexual, solteiro, sem filhos, parte de uma
elite intelectual e econômica, etc.).
5 Muito já foi dito, durante e em resposta à chamada virada pós-moderna, sobre a
assimetria fundamental entre etnógrafo e informantes sobre a qual se erigiram as
pretensões de conhecimento científico das primeiras gerações da disciplina: o que se
tornou conhecido como o problema da autoridade etnográfica (Clifford; Marcus, 1986).
Essa discussão tem múltiplas avenidas, em termos da diferente luz que esse olhar
reflexivo pode lançar sobre o fazer antropológico (isto é, produção de conhecimento)
em condições de fazer etnográfico (isto é, trabalho de campo) que não refletem o
modelo malinowskiano (cf. Gupta; Ferguson, 1997). Nesta seção, me debruçarei sobre
como transitar entre as escalas local e global, o micro e o macro, na ausência do
mediador universal outrora possibilitado por teorias de ambição científica como o
estrutural-funcionalismo da geração de Malinowski.
6 O estudo de fenômenos como o desenvolvimento internacional implica, quase por
definição, a impossibilidade de reproduzir ipsis literis o modelo malinowskiano.
Etnógrafos que seguem experts, gestores e outros atores nas extensas, heterogêneas e
por vezes inacessíveis redes que se formam em torno das organizações de cooperação
não raro devem se deslocar com frequência, falar mais de uma língua de campo,
interagir com diversos grupos e nacionalidades e, com a expansão das novas
tecnologias da informação entre antropólogos e seus “nativos”, muitas vezes perfazem
a sequência campo/escrita de modo não linear. Embora tais etnografias tenham se
tornado comuns, não há um modelo teórico-metodológico que tenha ganhado corações
e mentes suficientes a ponto de suceder o modelo clássico no mainstream da disciplina.
7 Um dos modos mais conhecidos de colocar essa problemática foi a discussão de George
Marcus (1995) sobre a etnografia multissituada. Naquela ocasião, ele apontou dois
modos proeminentes de lidar com o trânsito entre as escalas micro e macro na
antropologia de fenômenos globais. A estratégia mais corriqueira envolve explicar a
prática observada localmente através do recurso a “métodos e meios” diferentes do
etnográfico, como macroteorias e pesquisa em arquivos. A segunda estratégia,
encampada por Marcus, implica seguir etnograficamente a “circulação” de atores,
objetos e discursos por múltiplos pontos do globo (precisamente, a etnografia
multissituada). Trabalhos nessa linha incluem abordagens do tipo rede (por exemplo,
Latour, 2012; Mosse, 2006) ou etnografias de processos e fluxos globais (por exemplo,
Appadurai, 1996; Ong; Collier, 2005).
8 Aqui, eu optei por discutir uma terceira via, que tem gravitado em torno do trabalho de
Marilyn Strathern. Nessa perspectiva, um problema com a primeira abordagem
apontada por Marcus seria a assimetria implícita entre as práticas de conhecimento do
antropólogo e de seus nativos. Aqui, tal qual Malinowski, o pesquisador se arroga o
privilégio epistemológico de definir unilateralmente quais escalas e contextos “macro”
são os mais relevantes para enquadrar as práticas observadas no plano “micro”. A
segunda, por sua vez, baseia-se na presunção de uma certa imanência do plano “micro”;
tudo que o antropólogo precisa fazer é registrar e descrever as práticas observadas no
campo. Aqui, o pesquisador, embora se posicione na mesma escala das redes tecidas por
seus informantes, não está situado nelas no sentido forte que Donna Haraway (1995)
atribuiu ao termo – ou seja, não assume a parcialidade da análise, e os interesses e
práticas de conhecimento que movem o próprio etnógrafo. Strathern propõe, pelo
contrário, que nos voltemos para os modos como a própria produção de escalas e
contextos ocorre na prática tanto dos atores no campo quanto dos antropólogos na
academia. Nos termos de Mosse (2006), trata-se de reconhecer que os dois domínios do
ofício do antropólogo em cuja separação se baseia o modelo malinowskiano – field
(trabalho de campo etnográfico) e desk (escrita antropológica, que prefiro traduzir por
“gabinete”) – fazem parte, um última instância, de uma mesma rede de relações sociais.
9 Como Mosse e outros notaram (por exemplo, Cesarino, 2012a; Green, 2009), essas
questões tornam-se especialmente salientes no estudo da cooperação internacional,
mas elas têm implicações mais gerais. Como bem sabe qualquer um que tenha feito
trabalho de campo, as relações entre o etnógrafo e seus informantes são relações sociais
como quaisquer outras. Decerto é mais fácil objetificar um indígena melanésio do que,
digamos, um cooperante brasileiro. Mas isso ocorre não porque o primeiro pertence a
um outro domínio ontológico, mas porque as relações tecidas entre ele e o antropólogo
contam com menos precedentes e costumam ser mais efêmeras – e, com efeito, são
normalmente arrefecidas ou descontinuadas após a conclusão da pesquisa. Como
lembrou Mosse (2006), esta era uma condição para a produção de conhecimento na
gênese da disciplina antropológica: a volta do campo para o gabinete implicava um
22 Minha primeira proposição nesse sentido é que a cooperação Sul-Sul brasileira pode ser
melhor entendida não em termos de um aparato estável, que articula discurso,
estrutura organizacional e prática operacional num modelo alternativo ao da
cooperação tradicional (como quer que se conceba esta última), mas enquanto uma
composição de interfaces relacionais emergentes entre atores e processos preexistentes –
inclusive os do Norte global. Nessa composição, eu identifiquei, através do contraponto
com a literatura sobre cooperação tradicional, três níveis principais, relativamente bem
demarcados em termos tanto organizacionais quanto de socialidade entre os atores: 1)
discurso oficial da cooperação, seara dos diplomatas, centrado na autodefinição formal
da cooperação brasileira em termos de certos princípios e pressupostos; 2) policy, seara
dos gestores e experts em cooperação propriamente dita, onde se realiza o trabalho
burocrático de gestão e avaliação de projetos; e 3) a “linha de frente” da prática
operacional, onde um grupo bastante heterogêneo de agentes executa projetos,
treinamentos e demais atividades de cooperação. No meu universo etnográfico, as
principais instituições representadas em cada nível eram: 1) o Ministério das Relações
Exteriores; 2) a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) (ela mesma, um departamento
do Itamaraty); e 3) a Embrapa.
23 Não apenas a arquitetura organizacional mas a dinâmica entre esses níveis parecia
diferir significativamente do modo descrito pelas etnografias de projetos conduzidos
por instituições multilaterais como o Banco Mundial ou agências bilaterais do Norte
global (Ferguson, 1994; Li, 2007; Mosse, 2005; Rottenburg, 2009; Valente, 2010). Nessa
literatura, o nível burocrático da policy tende a aparecer como se sobrepondo e
sobrecodificando os outros dois, em termos de lógicas sistêmicas concebidas em termos
macro como a “máquina antipolítica” de James Ferguson (1994) ou a “vontade de
melhorar” de Tania Li (2007). Na cooperação brasileira, pelo contrário, sugiro que
maior robustez organizacional relativa era encontrada precisamente nos outros dois
níveis, da execução e da diplomacia (Cesarino, 2012b).
24 De um lado, assim como no caso de outros doadores emergentes (Mawdsley, 2012), o
principal ímpeto da cooperação Sul-Sul brasileira tem emanado não da própria
indústria da cooperação, mas da diplomacia. Em especial, a política externa dos dois
governos Lula impulsionou de modo excepcional a aproximação com regiões de pouca
tradição histórica de relacionamento com o Brasil, como a Ásia ou, no caso da África,
países fora do eixo lusófono. Do outro lado, no nível da execução, situam-se instituições
bem mais robustas que a própria ABC, como a Embrapa ou a Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz).4 Na prática, essas instituições e seus funcionários não se limitam a executar
políticas concebidas noutro lugar; eles mesmos têm realizado boa parte do trabalho de
negociar, desenhar, gerir e avaliar projetos e demais atividades da cooperação
brasileira.
25 Assim, a emergência de novas interfaces organizacionais tem se dado não apenas numa
escala global – entre o Brasil, outros doadores do Norte e do Sul, e os recebedores da
cooperação em África e alhures – mas também domesticamente. Sob a égide do
Itamaraty, foram agregadas instituições brasileiras com pouco precedente de atuação
conjunta, ao menos em termos do tipo de atividade que elas têm sido chamadas a
desempenhar dentro do quadro da cooperação Sul-Sul. Mesmo para a burocracia
brasileira especializada, a ABC, a provisão sistemática de cooperação nos níveis atuais é
inédita. A agência havia sido criada para gerir a ajuda recebida pelo Brasil; seu estatuto
legal, ainda de recebedora, faz com que ela dependa de parcerias com organizações
33 Assim, concluo esta seção notando que, numa composição onde há poucos canais
relacionais consolidados, inclusive no plano organizacional, boa parte do trabalho dos
cooperantes brasileiros – diplomatas, gestores e executores, mas especialmente estes
últimos – tem se dado no sentido de fazer um contexto para as relações com seus novos
parceiros ao longo dessas interfaces emergentes. Em outras palavras, na ausência do
aparato sistêmico e sobrecodificador observado na cooperação tradicional, boa parte do
trabalho de converter princípios em prática, produzir conhecimento sobre as
realidades locais e engajar os parceiros africanos nos treinamentos e projetos tem sido
realizada, a seu próprio modo, pelos operadores da linha de frente da cooperação
brasileira. As seções que se seguem trarão um relato de como esse trabalho de produção
de contexto tem se dado no nível mais básico do reconhecimento mútuo, através de
analogias entre os dois lados do Atlântico Sul que envolvem o acionamento seletivo de
diferentes escalas e contextos. A primeira o fará em termos de escalas hemisféricas
como o binarismo Norte-Sul e Brasil-África, e a segunda, em termos do principal
domínio abordado pela cooperação da Embrapa, a agricultura tropical.
Escalas hemisféricas: Brasil e África entre o Norte e o
Sul
34 A cooperação para o desenvolvimento é um campo cujo próprio desenvolvimento
histórico assenta-se num distanciamento entre escalas micro e macro, concebido em
termos de binarismos comuns como global-local, ou Primeiro-Terceiro Mundo. Ao fazer
a crítica à assimetria de poder implicada nessas e outras dicotomias (por exemplo,
Escobar, 2001; Ferguson, 1994; Li, 2007; Moore, 2005), a própria literatura antropológica
tem frequentemente respondido através de outros binarismos, como dominação
(sistêmica) versus resistência (local). A cooperação Sul-Sul não escapa a essa tendência:
sua própria autodefinição tem se dado através do binarismo Norte-Sul. Mas embora
essa contraposição ao “Norte” seja de fato constitutiva das visões sobre a cooperação
Sul-Sul, por parte tanto de seus agentes quanto de outros no mundo do
desenvolvimento internacional, o caráter dessa relação não é monolítico, mas
ambivalente e até contraditório. Essas visões podem variar desde um bem-vindo e
“valioso complemento à cooperação Norte-Sul” (OECD, 2005 apud Mawdsley, 2012,
p. 65, tradução minha) até a ameaça de um “mundo mais corrupto, caótico e
autoritário” (Naim, 2007 apud Walz; Ramachandran, 2011, p. 1, tradução minha); de
versão embrionária de uma norma mais bem acabada, encontrada no norte global
(Cabral; Weinstock, 2010), até a busca por um modelo autônomo dentro da hegemonia
existente (Corrêa, 2010).
35 No caso brasileiro, o grupo de atores que tem mostrado mais interesse e esforço em
explicitar a natureza da relação Norte-Sul são aqueles responsáveis por construir o
discurso oficial da cooperação brasileira: os diplomatas. Esse discurso, expresso em
declarações, power points, documentos, panfletos, websites produzidos pelo Itamaraty e
outros, é o aspecto mais visível da produção de contexto para as relações emergentes
entre o Brasil e outras regiões do sul global. Embora não seja perfeitamente
padronizado entre os diferentes atores institucionais e individuais, esse discurso tem
apresentado certas recorrências. No plano mais geral, estão os princípios da cooperação
Sul-Sul, explicitamente compartilhados por outros países do sul global em certos fóruns
formais,8 e que orbitam em torno de noções de solidariedade, horizontalidade, não
genético) que viajava através do Atlântico Sul não raro tinha ancestralidade comum em
plantas melhoradas nos Estados Unidos ou nos institutos coloniais europeus. Essa
preeminência de domínios sociais “moles” como a cultura no discurso sobre as relações
entre Brasil e África guarda afinidades com certas interpretações acadêmicas canônicas
sobre a diáspora africana, como o Atlântico Negro de Paul Gilroy (2002). Mas a
observação da prática sugere que ela reflete movimentos históricos mais gerais, através
dos quais ambas as regiões foram periferalizadas durante a emergência hegemônica do
Ocidente e sua dominância em dimensões como economia (industrial-capitalista),
instituições políticas (liberal-democráticas) e conhecimento (técnico-científico).
42 Os esforços de produção de contexto nas diversas interfaces emergentes promovidas
pela recente intensificação da cooperação Sul-Sul lembram assim o quadro delineado
por Strathern para outros fenômenos como a própria antropologia (Strathern, 1991).
Mas nesse caso, como indiquei aqui e explorei mais a fundo noutra ocasião (Cesarino,
2012c), as ambivalências e contradições que permeiam as múltiplas escalas através das
quais se desenrolam as relações (Norte-)Sul-Sul pedem uma articulação com outras
literaturas, mais sensíveis à densidade histórica particular das relações entre (e dentro
de) diferentes partes do sul global, como estudos históricos (por exemplo, D’Ávila, 2011;
Mamdani, 1996; Saraiva, 1996) ou engajamentos com as diferentes interações da
questão pós-colonial, inclusive internamente aos próprios Estados pós-coloniais (por
exemplo, Santos, 2002; Silva, 2013). A próxima seção introduzirá algumas indicações
nesse sentido, em termos de certos processos de colonialismo interno ligados à
expansão agrícola no Brasil.
Demonstrando o desenvolvimento: a agricultura do
cerrado
43 Na última década, a Embrapa tem sido a “face” mais visível da cooperação brasileira,
em África e alhures (Cabral et al., 2013). Suas ações têm variado desde pequenos
projetos de capacitação e pesquisa colaborativa até grandes projetos de transferência
de tecnologia chamados “estruturantes”. Em todos os casos, mas principalmente nos
treinamentos realizados no Cecat em Brasília, tais atividades têm incluído de modo
central uma demonstração situada da experiência de desenvolvimento agrícola do país.
Essas demonstrações são, antes de tudo, um convite aos parceiros africanos para que se
engajem em, e continuem estendendo, os esforços de produção de contexto para as
relações emergentes com seus colegas brasileiros, diferenciando-as segundo seus
próprios interesses e assim as tornando – espera-se – mais robustas.
44 Nessas demonstrações, normalmente conduzidas no formato de palestras e workshops,
os funcionários da Embrapa e seus convidados (burocratas do governo, professores,
pesquisadores e produtores rurais de organizações variadas, geralmente ligadas ao
setor público) privilegiavam menos as dimensões da cultura e história social do que
outras, relativas ao desenvolvimento agrícola entendido em termos tecnológicos,
econômicos, demográficos e de políticas públicas. Nelas, a multiplicidade da agricultura
brasileira tendia a ser contextualizada em termos de duas escalas: uma temporal, ligada
à noção de desenvolvimento nacional, e outra espacial, ligada à região do cerrado.
Ambas eram fundidas na ideia-chave do setor agrícola enquanto “motor do
desenvolvimento nacional”.
45 Aqui, também, o idioma privilegiado era o das afinidades e paralelismos, num esforço
de aproximar os contextos agrícolas africano e brasileiro através de analogias seletivas.
No primeiro plano estavam paralelismos geológicos e edafoclimáticos com a zona
subsaariana. O tempo e o espaço nos dois lados do Atlântico Sul eram colapsados num
distante passado geológico comum, quando o oeste africano e a costa brasileira
encontravam-se ainda unidos. Essa contiguidade era apresentada, ainda, em termos do
fato de a maior parte das duas regiões se situar hoje dentro da zona tropical,
configurando afinidades em termos de solo, clima, vegetação, ou padrão de chuvas.
Essas semelhanças ambientais eram frequentemente colocadas como fatores
facilitadores da transferência de tecnologia entre as duas regiões – uma vantagem
comparativa da cooperação brasileira com relação aos doadores do norte global, e a
outros doadores emergentes como a Rússia ou a China.
46 Embora o Brasil e partes do continente africano de fato tenham diversos biomas
similares, nas demonstrações a ênfase era quase inteiramente posta nas savanas
tropicais. A razão é evidente: foi no cerrado, a savana brasileira, que se deu o grande
impulso no setor agrícola nos últimos 40 anos. Essa narrativa permitia, entre outras
coisas, destacar o protagonismo da própria Embrapa no processo que “transformou o
maior ‘passivo’ brasileiro, o cerrado, no nosso maior ‘ativo’” (Netto, 2012). Durante
muito tempo considerado ambiente inóspito para a agricultura de alta produtividade
devido à pobreza de seus solos, o cerrado foi transformado pela pesquisa agrícola no
“celeiro do mundo”. Se nos treinamentos no Projeto C-4 esse protagonismo aparecia na
forma de tecnologias específicas como o plantio direto ou cultivares melhoradas, nas
exposições no Cecat o papel da Embrapa era colocado em termos macro, articulado com
outros domínios evocados como concorrendo para a história de sucesso da agricultura
brasileira.
47 Os domínios não tecnológicos destacados nesses treinamentos incluíam, por um lado,
políticas públicas de crédito, seguro rural, apoio ao cooperativismo e outras, descritas
em termos de um binarismo recorrente entre agronegócio e agricultura familiar.
Encastelado institucionalmente nos dois ministérios brasileiros dedicados ao setor
agrícola,9 esse par aparecia não em termos de oposição ou conflito, mas de uma
complementaridade harmônica. Era comum, por exemplo, apresentar a agricultura
familiar e camponesa enquanto parte da agricultura comercial, ou minimizar a
severidade da questão agrária no país através do argumento de que a pressão pela terra
já teria, a essa altura, praticamente subsistido no país.
48 Finalmente, o terceiro vetor do desenvolvimento agrícola brasileiro exposto pelos
cooperantes remetia ao protagonismo dos produtores “gaúchos”. Esse grupo era
destacado pelo seu pioneirismo e espírito de fronteira, concebida em termos tanto
territoriais quanto tecnológicos. Nesse empreendedorismo excepcional estaria o papel
fundamental do setor privado; sem a disposição dos gaúchos para desbravar o cerrado e
transformá-lo em terra produtiva através da ampla adoção dos desenvolvimentos
técnicos produzidos, entre outros, pela Embrapa, de nada adiantaria o aporte estatal de
políticas públicas ou tecnologias. Nessas narrativas, o outro lado da moeda
populacional permanecia completamente eclipsado – ou seja, o que foi feito daqueles
que ocupavam a região do cerrado antes da colonização agrícola inaugurada na Marcha
para o Oeste durante o primeiro governo Vargas, e consolidada durante o regime
militar nos anos 1970.
nunca está imune de ser eventualmente chamado, por seus interlocutores de campo, a
realizar tal explicitação, especialmente quando os artefatos compostos na academia
acabam voltando ao campo: foi o caso, por exemplo, de acaloradas controvérsias como a
que instigou as reflexões de David Mosse (2006) sobre as relações entre field e desk, ou as
famosas “guerras das ciências” nas quais esteve envolvido, entre outros, Bruno Latour
(2001) (cf. também Strathern, no prelo). Por essas e outras razões, entendo que vale a
pena acolher, e experimentar com, o convite que vem sendo feito por Strathern e
outros para abordar reflexivamente o modo como escalas e contextos são acionados no
fazer etnográfico e na escrita antropológica – com efeito, de aproximar essas duas faces
do ofício do antropólogo que são, em última instância, a mesma.
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NOTAS
1. Anos antes de Malinowski protagonizar a celebrada cena de abertura do Argonautas nas praias
das ilhas Trobriand, pioneiros da disciplina no Reino Unido como Haddon e Rivers haviam
ensaiado um trabalho de campo de outro tipo no estreito de Torres: baseado em métodos de
história natural, foi realizado em inglês pidgin, por uma equipe interdisciplinar de cientistas
sociais e naturais, que se deslocou entre diferentes localidades (Stocking, 1983).
2. Essa dicotomia tem sido notada e discutida de diferentes formas por vários antropólogos (por
exemplo, Escobar, 1991; Li, 2007). Em linhas gerais, a antropologia aplicada (ou, nos termos de
Escobar, development anthropology), praticada por antropólogos que trabalham dentro das
próprias organizações de cooperação, busca encontrar modos de melhorar suas práticas.
Antropólogos da linha crítica (ou anthropologists of development) abordam a cooperação
internacional através de um olhar crítico e exterior, com pouca empatia e interesse pela
melhoria, ou mesmo a própria existência, das práticas observadas durante o trabalho de campo.
3. Cf., por exemplo, o primeiro painel sobre emerging donors na Associação Americana de
Antropologia, que só ocorreu em 2012. No Brasil, o estudo de Silva (2013) abordou o país
enquanto um doador entre outros no Timor Leste.
4. O primeiro relatório oficial sobre a cooperação Sul-Sul brasileira traz uma extensa lista dessas
instituições, majoritariamente públicas e federais (Ipea; ABC, 2010).
5. O programa é parceiro em grande parte dos projetos da ABC, e vários funcionários desta última
também são contratados como consultores via PNUD (cf. Cabral; Weinstock, 2010).
6. É o caso, por exemplo, do projeto Pró-Savana em Moçambique, o maior na modalidade
“estruturante” em andamento na África.
RESUMOS
Como a antropologia pode abordar fenômenos transnacionais, dado que seu método e o tipo de
conhecimento construído a partir dele foram originalmente estruturados com base no estudo de
pequenas comunidades locais? O artigo tratará do trânsito entre escalas micro e macro a partir
de uma das vertentes (meta)teóricas que tem sido propostas desde a “virada interpretativa” nos
anos 1980, inspirada na obra de Marilyn Strathern. Essa perspectiva, baseada no primado da
relacionalidade e da reflexividade entre as duas faces do ofício do antropólogo (trabalho de
campo e escrita etnográfica), aborda operações de produção de conhecimento rotineiramente
empregadas tanto pelos antropólogos quanto por seus “nativos”, envolvendo o acionamento de
escalas, contextos, domínios e analogias. O artigo buscará operacionalizar esse instrumental
analítico no caso da cooperação Sul-Sul brasileira com o continente africano, entendida enquanto
composição (assemblage) emergente marcada por esforços de produção de contexto e busca de
robustez relacional.
How can anthropology approach transnational phenomena given that its method, and the kind of
knowledge built through it, were originally based on the study of small local communities? This
article tackles the traffic between micro and macro scales from the perspective of one of the
(meta)theoretical proposals that have been put forth since the postmodern turn, inspired by the
work of Marilyn Strathern. Based on the primacy of relationality and reflexivity across the two
facets of the anthropological profession (fieldwork and ethnographic writing), this perspective
adresses knowledge production operations routinely deployed by both anthropologists and their
“natives”: scaling, context-making, domaining, and analogy-making. The paper puts this
analytics to work through the empirical case of Brazil’s South-South cooperation with the
African continent, understood as an emerging assemblage marked by context-making efforts and
a quest for relational robustness.
ÍNDICE
Keywords: Africa, Brazil, multisited anthropology, South-South cooperation
Palavras-chave: África, antropologia multissituada, Brasil, cooperação Sul-Sul
AUTOR
LETÍCIA CESARINO
Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 30/08/2013
Aprovado em: 19/12/2013
NOTA DO AUTOR
Este artigo se baseia em duas teses e doutorado defendidas no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de
Janeiro: Fronteiras étnicas, fronteiras de Estado e imaginação da nação: um estudo sobre a
cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas (Barroso Hoffmann, 2008) e A
construção europeia e os “países em desenvolvimento”. Políticas de comunicação, generosidade e
identidade(s) (Nicaise, 2007).
como beneficiária. A lista dos contemplados desde que instituída, em 1974, indica
diversas organizações humanitárias, religiosas e sindicais, entre outras. Esse tipo de
campanha, recorrente na vida dos noruegueses, permite entrever a pluralidade de
atores, causas e motivações envolvidas que compõem, do lado dos doadores, o campo
não governamental da cooperação.
6 A partir desses exemplos, podemos verificar que se, por um lado, o desenvolvimento
convive com argumentos morais relacionados à “ajuda” e ao “desinteresse”, colocando
a “doação” (ou a “transferência” de recursos) como um ato de generosidade, seja por
parte do Estado, seja por parte de doadores individuais ou de associações, ele também
está marcado por ações “interessadas”. Antigas polêmicas relacionadas às políticas de
desenvolvimento desde sua invenção no pós-guerra (Cooper; Packard, 1997; Escobar,
1995) permitem perceber isso. Apesar dos debates sobre motivações “altruístas” e
“generosas” versus “interesses” terem assumido feições particulares em cada contexto
nacional e em diversas épocas, o que nos parece estar no centro dessas discussões é
uma das características estruturantes das políticas de desenvolvimento: a coabitação de
práticas de dom (Mauss, 2003), isto é, supostamente voluntárias e não coercitivas,
obedecendo a laços de afinidade e amizade desinteressada, com uma lógica explícita ou
não de trocas interessadas (na maioria das vezes assimétricas ou desiguais) no plano da
economia e da geopolítica. Essa coabitação de “mundos hostis” (Zelizer, 2005), de
esferas que são consideradas como devendo manter-se separadas – de um lado a esfera
dos sentimentos e da generosidade; do outro lado, o cálculo e os interesses econômicos
– produz uma “contaminação moral” (Zelizer, 2005), constitutiva das políticas de
desenvolvimento, e que se manifesta de maneira singular nos vários contextos
nacionais, históricos e sociais nos quais foram elaboradas.
7 Este artigo adota uma perspectiva comparativa voluntariamente assimétrica, pois cada
estudo de caso é baseado em um conjunto de materiais empíricos referidos a diferentes
escalas sociais. O diálogo entre essa heterogeneidade de dados e de perspectivas
permite mostrar ângulos de análise que, justamente, esclarecem (e permitem navegar
entre) escalas de processos sociais, revelando dimensões dos casos apresentados e
multiplicando as possibilidades de comparações para analisar aspectos dessas “culturas
morais” que se manifestam através de categorias como altruísmo, generosidade e
solidariedade nas políticas de desenvolvimento. Essas categorias, dentro de múltiplas
outras que remetem aos sentidos de “doação” e de “ajuda”, formam o que chamamos
aqui de “culturas morais” do desenvolvimento, entendendo o termo “cultura”
enquanto um conjunto de referenciais que permitem aos indivíduos, grupos, coletivos,
pensar e agir no mundo social, como mostraremos ao longo do artigo.
8 Os princípios morais que subjazem a categorias como as de altruísmo, generosidade e
solidariedade estão presentes em todas as escalas analisadas: na vida pública e política
são sistematicamente acionados (ou questionados) quanto se trata de políticas de
desenvolvimento, na legitimação de organizações de todo tipo e grandeza e nas
motivações das pessoas que se dedicam a esse tipo de carreira. A genealogia dessas
categorias permite ver como foram construídas e continuam sendo transmitidas ainda
hoje; a historicidade dos sentidos mostra também a longevidade dos efeitos sociais que
elas têm, apesar das mudanças geopolíticas que ocorreram desde o pós-guerra, o que
leva à impossibilidade de colocar o desenvolvimento unicamente em termos políticos,
econômicos ou burocráticos, mas nos obriga a vê-lo também em termos de saberes,
muitas das quais tornadas apátridas quando refeito o desenho das fronteiras europeias
após o conflito.
21 O deslocamento do ideário humanitário para fora das fronteiras europeias viria a
ocorrer quando da criação do aparato da cooperação para o desenvolvimento após a
Segunda Guerra Mundial, ao consolidar-se a estruturação de organizações filantrópicas
de origem tanto laica quanto religiosa, que se tornariam com o tempo elementos-chave
no modelo de funcionamento e tomada de decisões da cooperação norueguesa. Com a
experiência adquirida inicialmente junto a populações europeias atingidas pelos dois
conflitos mundiais, essas organizações tornaram-se pouco a pouco verdadeiros experts
em causas humanitárias no “Terceiro Mundo”, tanto daquelas decorrentes de guerras e
conflitos internos nos países da região quanto as decorrentes de catástrofes naturais.
22 A adoção da doutrina do desenvolvimento na Noruega, tal como colocada no Ponto IV
do discurso inaugural do Presidente Harry. S. Truman ao senado americano em 1949,
propondo substituir a “velha exploração imperialista visando o lucro” por conceitos de
negócios “justos e democráticos”, com base em ideais de solidariedade e ajuda,
encontrou assim um terreno fértil naquele país, em que apelos desse tipo encontravam
eco em práticas sociais já existentes, construídas em intervenções de ajuda humanitária
anteriores.
23 Além dessa tradição humanitária, o país contava ainda com um significativo aparato
religioso que também foi incorporado ao universo do desenvolvimento: as organizações
missionárias com experiência de atuação em países africanos e asiáticos desde meados
do século XIX, configurando o único grupo social dentro da Noruega com algum tipo de
conhecimento sobre a realidade de outros continentes.7 Por outro lado, os missionários
haviam sido também um elemento-chave dentro dos mecanismos de “colonialismo
interno” praticados na Noruega sobre a minoria étnica dos sami, localizados na região
ártica do país. Nesse sentido, a percepção da Noruega como um país “sem passado
colonial” deve ser relativizada, reconhecendo-se que muitos dos mecanismos de
subalternização dos sami seriam reproduzidos quando do contato do aparato do
desenvolvimento norueguês com o “Terceiro Mundo”, cujos habitantes também foram
encarados como carentes de valores, condutas e comportamentos que somente os
europeus poderiam suprir adequadamente.
24 A experiência missionária foi percebida como um trunfo precioso no momento de
formalização do aparato do desenvolvimento norueguês, embora sofrendo a oposição
daqueles que consideravam sua participação dentro dele como uma ingerência indevida
de posturas religiosas e civilizadoras em uma instância que deveria ser regida por
valores laicos e de oposição à velha ordem colonial. No contexto da Guerra Fria
instaurado após a Segunda Guerra Mundial, o debate sobre a instalação do aparato
norueguês do desenvolvimento reproduziu assim em grande medida o que ocorria no
plano internacional, fortemente polarizado em torno da defesa dos modelos capitalista
e socialista de desenvolvimento. A opção da Noruega pelo lado capitalista e sua filiação
à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), fez com que prevalecessem nesse
momento inicial de instalação do aparato do desenvolvimento as visões que defendiam
a participação missionária, ainda que se adotando um dispositivo que recomendava a
“neutralidade” religiosa na atuação das missões, como forma de tranquilizar seus
opositores (Dahl, 1986).
25 É interessante observar, assim, como o universo da cooperação para o desenvolvimento
permitiu a junção de perspectivas religiosas, filantrópicas e econômicas, que até então
não possuíam um vínculo formal. Nesse sentido, o Fundo para a Índia, estabelecido no
início da década de 1950 para financiar um projeto de atividades pesqueiras na
província de Kerala, considerado a primeira ação promovida pelo governo no campo do
desenvolvimento, foi criado a partir de uma intensa campanha de levantamento de
fundos junto à população, que percorreu o país de norte a sul em nome de ideais
humanitários e pedagógicos, marcados pela valorização das habilidades práticas dos
noruegueses oriundas da forte tradição luterana existente no país (Simensen, 2003).
26 A escolha da Índia relacionou-se ao prestígio da figura de Gandhi nos meios políticos
noruegueses, sobretudo pela capacidade daquele líder de fazer dialogar posições
ideológicas antagônicas no cenário da Guerra Fria, algo que também se apresentava
como um problema na Noruega. Além disso, e talvez mais importante do que esse forte
sentido simbólico, o projeto em Kerala se adequava à expertise do país no terreno da
pesca e da construção naval, tornando-se um balão de ensaio para intervenções futuras
e uma ponta de lança da expansão norueguesa para o “Terceiro Mundo” no momento
de reconfiguração da “partilha do mundo” que o final da Segunda Guerra Mundial
instaurou sob a égide da cooperação para o desenvolvimento.
27 A “solidariedade” e o “altruísmo” invocados nesse momento fundador do aparato do
desenvolvimento norueguês implicaram a criação de imagens dos “outros” a quem se
destinariam essas ações, tipificados de várias formas como espelhos invertidos dos
“doadores”, permitindo aos noruegueses a imaginação de si mesmos de um modo novo,
inexistente até então. A imagem que emergiu dessa campanha colocou-os
definitivamente do lado dos países hegemônicos capitalistas, que se atribuiriam
sucessivamente as tarefas de “ajudar”, “assistir” e “cooperar” destinadas aos países
rotulados como “atrasados”, “subdesenvolvidos” e “em desenvolvimento”, dependendo
do período analisado.
28 Aquilo que no contexto dos efeitos da Primeira Guerra Mundial fora visto como uma
tarefa humanitária promovida entre “iguais”, isto é, entre países europeus, passou a ser
visto com um indisfarçável viés de desigualdade no contexto que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial, graças ao efeito produzido pela criação do aparato do
desenvolvimento (instituições, políticas, cursos profissionalizantes, carreiras,
funcionários, vocações, etc.), que instituiu uma divisão clara entre aqueles que podiam
ajudar e aqueles que deviam ser ajudados, a partir de juízos que valoravam uns em
detrimento de outros.
29 A imbricação de motivações e instituições filantrópicas, religiosas, econômicas e
geopolíticas tornar-se-ia ainda mais forte com a institucionalização do aparato da
cooperação norueguesa no início da década de 1960, quando foi criado o Departamento
de Ajuda para o Desenvolvimento, que teve como uma de suas primeiras iniciativas
convocar setores da sociedade, entre os quais organizações missionárias e
humanitárias, para participarem da estrutura do órgão, podendo inclusive receber
recursos do governo para atuarem em ações voltadas ao desenvolvimento. A partir
desse momento, organizações que haviam subsistido exclusivamente até então graças
às contribuições individuais de seus membros e simpatizantes passaram a ser
financiadas em proporção cada vez maior pelo Estado, desde que se comprometessem a
promover projetos de desenvolvimento nos países definidos pelo governo como alvo da
cooperação (Dahl, 1986). Depois da experiência inaugural na Índia na década de 1950, a
cooperação norueguesa ampliou sua atuação na década de 1960 para os países da costa
ocidental da África, como Nigéria, Gana e Costa do Marfim, e, na década de 1970, para o
futuros filhos.”18 Por causa desse clima de suspeição, foi necessário, literalmente,
inventar uma razão de ser para a política de associação, o que motivou a criação de uma
política de informação dirigida a vários públicos-alvo específicos: os Estados membros,
a Comissão Europeia, os “cidadãos europeus” e as autoridades africanas.
Tínhamos que defender nossa presença lá, era um pouco o equilíbrio do mundo. Se
toda a África aderisse ao campo da China ou da União Soviética, o equilíbrio do
mundo poderia ser rompido e isso poderia levar os americanos a outras
interpretações, etc. Tínhamos que valorizar ao máximo essa associação, sim,
desejada pelas lideranças africanas, notadamente Senghor. A Euráfrica era um
esquema importante que ancorava a Africa à Europa.19
50 Os primeiros relatórios anuais da Comissão Europeia (1957-1963) permitem observar a
aparição de uma nova narrativa buscando dar sentido a uma política amplamente
considerada como anacrônica: a necessidade de continuar “a política generosa de
cooperação que a Europa começou quando esses países eram ainda dependentes”, as
“responsabilidades singulares para com os jovens Estados africanos associados”, a
“importância do dever de entreajuda” no quadro de “uma obra universal de promoção
econômica”.20 O tema do desenvolvimento e essa narrativa generosa vão se sobrepor à
referência à descolonização que exprimem timidamente os primeiros relatórios. Estes
apresentam uma Europa unificada, as relações coloniais se tornam “laços
privilegiados”, “responsabilidades particulares”. A generosidade apaga de fato a
situação colonial, fonte dessa “intimidade” “europeia” com a África e silencia os
conflitos, as relações de forças e compromissos entre Estados membros, os interesses
econômicos e geoestratégicos que motivam a invenção de uma tal política nessa época.
A “linguagem do desenvolvimento” anuncia uma transição de épocas e um
deslocamento de interlocutores. Seu surgimento esteve intimamente ligado à
necessidade de redefinir o estatuto das trocas com as colônias que eram cobiçadas pelos
Estados Unidos e a União Soviética.
51 No decorrer do processo de institucionalização da política de desenvolvimento
(1963-1975), convencer diferentes públicos da pertinência da política de associação
justificara a criação de uma unidade de informação.21 Até os anos 1990, iniciativas de
informação dirigidas à Europa e aos países beneficiários (revistas, publicações,
reportagens de vídeo, emissões de radio, eventos, “tours” na Europa para mostrar os
avanços tecnológicos aos dignitários africanos, convites de estagiários africanos na
comissão, etc.) (Dimier, 2001b) foram realizadas por um pequeno grupo de indivíduos,
segundo eles mesmos relatam, animados por uma grande paixão por seu trabalho. 22
52 Jacques-René Rabier, francês, foi um deles. Formado em ciências políticas, foi chamado
para entrar na função pública europeia em 1952 por Jean Monet, um dos pais
fundadores da construção europeia (Cohen, 2007). Após ter ocupado várias funções
importantes na Comunidade Europeia de Carvão e Aço (Ceca)23 e depois na CEE (onde
inventou o sistema de estatística da UE, o Eurobaromètre), Rabier chegou a ser o
primeiro diretor de Informação da CEE (1953-1973). Dentro desse posto cabia a ele a
responsabilidade pela publicação dos relatórios anuais da Comissão Europeia. Por essa
razão, ele, junto com seus colegas da unidade de informação além-mar, foi um ator
fundamental na reescritura das relações com a África na época da construção da CEE.
Ele foi igualmente importante nas tentativas de criar uma “consciência e uma
identidade europeia” que “permitiria pensar além do quadro nacional” (Rabier, 1965,
tradução nossa). A primeira geração de funcionários da qual Rabier fez parte teve uma
percepção singular da unificação europeia, fortamente marcada, por experiência direta
ou indireta, pelos nacionalismos agressivos das duas guerras mundiais. Por outro lado,
Rabier tinha “uma missão particularmente cara” para ele: ver os ideais de paz na
Europa aplicados às antigas relações entre as colônias e as metrópoles:
Nos esforçamos por tornar popular a ideia de que a associação da Europa e dos
países ditos em desenvolvimento era uma necessidade política mas também ética.
[…]. Sentíamos que para nós, europeus, que acabávamos de colocar um fim a nossos
conflitos ancestrais, resolver o problema da paz era absolutamente normal e que,
apoiando-nos nas disposições do Tratado [de Roma], viraríamos a página do
colonialismo de nossos pais e avós.
Eu me lembro das viagens que fiz, pessoalmente, enquanto diretor-geral da
Informação. Visitei o Senegal, até fui recebido na mesa do presidente Senghor e fui
duas vezes a Madagascar para participar de uma exposição ou para entrar em
contato com os serviços de informação locais. Sempre fomos bem recebidos no nível
governamental. […]. Fui recebido por um ministro encarregado do plano. Ele,
malgaxe, eu, francês, conversamos sem nenhuma vergonha sobre as sequelas da
colonização e notadamente dos massacres de 1947. Então, uma página estava virada,
a mesma que nós, franceses, tínhamos virado com os alemães, nós nos esforçávamos
para virar, em comum acordo, com os países que tinham sofrido a colonização. 24
53 Hoje em dia, Rabier tem mais de 90 anos, continua acompanhando cotidianamente os
assuntos europeus, e trabalha ainda em uma ONG que ele contribuiu para criar, a ATD
Quarto-Mundo.
Se recebo você aqui, na sede de ATD Quarto-Mundo é porque essa preocupação de
ajudar – e ajudar é uma palavra que deve ser tomada em toda a sua acepção, ajudar
não no sentido caritativo, queixoso, etc., mas ajudar de pessoas a pessoas, os
elementos, as frações mais pobres de nossas sociedades – essa preocupação de
ajudar, acredito que é uma preocupação que todo ser humano normalmente
constituído deveria ter. Que os países ricos ajudem os países pobres me parece uma
necessidade que vai muito além de uma necessidade política.
54 Uma outra figura-chave nesse processo é Pierre Cros, o principal responsável da
Unidade Informação Além-Mar entre 1958 e 1986. Francês como Rabier, ele foi formado
na École de la France d’Outre-Mer. Cros será chamado para a DG Dev em 1958 pelo
comissário Lemaignen (1958-1962), antigo administrador da França Além-Mar. Cros
deixara Dacar, onde fora chefe do escritório de imprensa do alto comissário francês,
após ter passado muitos anos na África. “Não particularmente interessado pela
Europa”, segundo ele, foi seu grande conhecimento da África e seu capital de relações
no mundo colonial que o levaram a trabalhar na Comissão Europeia. No inicio dos anos
1980, com a entrada do Reino Unido na CEE e a consequente adesão dos países do
Commonwealth à política de desenvolvimento, Cros se sentiria, segundo suas próprias
palavras, progressivamente “colocado na geladeira” em razão de suas ideias, invadido
por um sentimento cada vez maior de desajuste com os principais funcionários da DG e
com a comissão, que não compartilhavam suas opiniões. Cros acusou os ingleses e
holandeses de terem “destruído a associação da África com a Europa em nome do
mundialismo”. Segundo seu ponto de vista, essa abertura explicaria a dispersão de sua
política de desenvolvimento e seu fracasso.
55 Cros publicou um romance em 1986, Les dix commandements de l’expert, que o levara a
ganhar uma reputação de “esquerdista”. Depois escreveu Chronicle d’une débacle
annoncée, onde conta a história das relações entre a Comissão Europeia e alguns países
africanos e trata além disso dos vários tipos de socialismo africanos. Segundo Cros, esse
livro não foi publicado pois os editores, nessa época, pensavam que a “África já não
interessava mais a ninguém”.
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NOTAS
1. Desde a reforma iniciada em 1999 e a consequente reformulação da gestão das ajudas
exteriores, a DG Dev deixou de administrar sozinha a política de desenvolvimento e passou a
dividir essa responsabilidade com a “Família Relex” (Nicaise, 2007). Até a primeira metade da
década de 2000, a “Família Relex” era composta da DG Desenvolvimento, do Escritório de Ajuda
Humanitária, do Escritório de Cooperação EuropAid, da própria DG Relações Exteriores e da DG
Comércio Exterior. Posteriormente houve outras reformas nessa estrutura (ver Nicaise, 2012).
2. Ações de coleta de fundos da NRK.
3. Ou outras denominações afins, como “assistência para o desenvolvimento”, “cooperação
internacional”, etc., que nos remetem ao conceito de “ajuntamentos globais” de Ong e Collier
(2007), reunindo um conjunto variado de agências e agentes, como veremos no texto.
4. Um exame detalhado dessas diversas genealogias encontra-se no estudo sobre a cooperação
norueguesa de Barroso Hoffmann (2009).
5. Ver em Barroso Hoffmann (2010) um desenvolvimento da hipótese de formação dessas
comunidades transnacionais de interesse aplicada ao contexto da atuação de organizações
ambientalistas no Brasil.
6. Os sami são uma minoria étnica localizada no norte da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia, que
se assumiu como “indígena” a partir da década de 1970, detendo desde então um papel
estratégico na articulação do movimento indígena internacional (Barroso Hoffmann, 2009, 2011).
7. Os noruegueses, como já mencionado, não haviam participado da expansão colonial europeia,
eles próprios tendo tido uma experiência de subordinação política à Dinamarca e à Suécia
durante cerca de cinco séculos. Ao longo do século XIX, contudo, missionários noruegueses
atuaram em colônias francesas, inglesas e dinamarquesas na África e na Ásia.
8. Para uma análise sobre a ascensão do “governo humanitário” na cena política contemporânea,
ver Fassin (2012).
9. Cerca de 80% da população norueguesa se identificam como luteranos e fazem parte da Igreja
de Estado da Noruega.
10. Respectivamente samarbeid, hjelp e bistand em norueguês.
11. A adoção de perspectivas que se apresentam como mais simétricas é reivindicada também por
organizações religiosas, sobretudo missionárias, que atuam no universo da cooperação,
sobretudo através da criação de organizações similares no Terceiro Mundo, que muitas vezes
desenvolvem um sentido de comunidade entre elas que se torna mais forte que o sentimento de
pertencimento nacional de seus membros.
12. Ao traçar a genealogia do “governo humanitário”, Fassin (2012) já apontava para a dupla
dimensão do sentido de “humanidade” herdado do Iluminismo, significando tanto uma condição
humana universal, que fundaria demandas por direitos, quanto um sentimento afetivo por nossos
semelhantes, que levaria às ações de prover assistência, de ajudar.
13. Os dados estatísticos mais recentes indicam que a cooperação norueguesa destina menos de
2% do total de seus recursos para as questões indígenas, distribuídos entre apoios a ações nos
organismos da ONU voltados às questões indígenas, e a ações de organizações não
governamentais norueguesas junto a povos indígenas localizados em todos os continentes, dentre
as quais as organizações missionárias, ambientalistas e humanitárias têm absorvido a maior
parte, superando largamente os recursos destinados às organizações do povo sami. (Haslie;
Øverland, 2006). Estes últimos têm concentrado sua atuação junto a povos indígenas na América
Central, na África e na Ásia, além das ações desenvolvidas com os povos indígenas da região
ártica, situados na Rússia, Canadá e Escandinávia e nos diversos fóruns da ONU destinados à
discussão das questões indígenas. Para uma apresentação detalhada dessas ações, ver Barroso
Hoffmann (2009).
14. A discussão sobre o significado do cruzamento das esferas da política e da cultura pelos assim
chamados “novos movimentos sociais” tem sido objeto de inúmeros estudos. Um bom exemplo
desses debates no campo da antropologia encontra-se em Alvarez, Dagnino e Escobar (2000), e
seus desdobramentos mais recentes podem ser encontrados em Boccara (2010).
15. A África Ocidental francesa, compreendendo o Senegal, Sudão, Guiné, Costa do Marfim,
Daomé, Mauritânia, Nigéria e Burkina Fasso; a África Equatorial francesa, compreendendo o
Médio Congo, Oubangui-Chari, Chade e Gabão; Saint-Pierre e Miquelon, arquipélago de Comores,
Madagascar e dependências, a costa francesa da Somália, a Nova Caledônia e dependências, os
protetorados franceses da Oceania, os territórios austrais e antárticos, a República Autônoma do
Togo, o território sob tutela de Camarões, administrado pela França, o Congo Belga e Ruanda-
Burundi (Traité instituant la CEE, 2012). A convenção de associação não inclui os departamentos
franceses ultramarinos (Reunião, Guadalupe, Martinica e Guiana), nem a Argélia, partes
integrantes do território metropolitano.
16. Cf. Commission Européenne (1958, p. 114, 1959, p. 138) e IV parte do Tratado de Roma, artigo
132, parágrafo 3 (Traité instituant la CEE, 2012, p. 3).
17. O desejo de uma administração comum, “europeia”, da África é mais antigo do que a
proposição francesa de associação. Essa vontade está presente na ideia de Euráfrica que aparece
na França nos anos 1920, sendo em seguida retomada em 1931 pelo ministro dos Assuntos
Coloniais da Terceira República, e reaparecerá com força em 1945. A França e o Reino Unido
promovem essa ideia, percebida como uma garantia de acesso aos recursos africanos para a
Europa devastada. Esses países formaram uma frente de oposição aos lobbies anticoloniais nas
Nações Unidas e, de maneira mais geral, nos Estados Unidos (Adamthwaite, 2005; Wall, 2005).
18. No original: “Nous voulons bien, dans ce mariage de raison, être les pages qui portent le voile
de la mariée, nous nous refusons d’être des cadeaux de noces, ni la vaisselle qui fait les frais de la
scène de ménage, ni les poupées pour amuser les enfants de demain.”
19. Entrevista com Pierre Cros, responsável da Informação Além-Mar entre 1958 e 1986, feita por
Natacha Nicaise em Bruxelas, 11/01/2006.
20. Cf. Commission Européenne (1960, 1961, 1962, 1963).
21. A política de cooperação da CEE tomara o nome definitivo de “política de desenvolvimento”
em 1975, com a entrada do Reino Unido na CEE e consequentemente a incorporação dos países do
Commonwealth no leque de beneficiarios da política de desenvolvimento (Dimier, 2001a, 2003a,
2003b; Nicaise, 2007).
22. “Nós recrutávamos pessoas que acreditavam, que pelo menos acreditavam na ideia do
desenvolvimento da Europa e da África. […]. A maior parte dos meus colaboradores eram
apaixonados pelo seu trabalho e eu acho que é muito importante na profissão de informação. A
gente não pode só trabalhar com relatórios, tem que encontrar as pessoas. Nos tínhamos
colocado muita paixão no nosso trabalho e queríamos que continuasse.” (Entrevista com Jean-
Jacques Rabier, , feita por Natacha Nicaise em Bruxelas, 02/12/2006).
23. A Ceca foi criada em 1951 e se fundiu com a CEE no final dos anos 1960.
24. Entrevista com J.-R. Rabier, Bruxelas, 2 de dezembro de 2006.
25. Na prática, porém, dominada por uma maioria de antigos administradores franceses, ver
Dimier (2005).
26. Eric Von Stalheim é uma personagem que é o “mau”, loiro com binóculos, na história em
quadrinhos Biggles, popular nesta época.
27. Maquis era o termo utilizado para designar os grupos de resistentes franceses à ocupação
alemã na Segunda Guerra Mundial.
28. Entrevista com Luc Duschamp (nome fictício), feita por Natacha Nicaise em Bruxelas,
10/01/2006.
29. Segundo as últimas estatísticas disponíveis, em 2004, a distribuição geral do orçamento da
ajuda para países em desenvolvimento era organizada da seguinte maneira: Europa 13%, África
38%, América 8%, Ásia 18%, Oceania 1%, “países em desenvolvimento não especificados” 1% e
ajuda multilateral 6%.
RESUMOS
A partir de um diálogo entre os casos da Noruega e da União Europeia, pretendemos analisar a
combinação de diferentes fatores e escalas de processos sociais (individuais, institucionais e de
unidades políticas nacionais e supranacionais), estruturantes na formação dos sentidos sociais do
desenvolvimento, notadamente das relações entre princípios morais e trocas interessadas,
constitutivas das “culturas morais” dos universos analisados. Na perspectiva dos indivíduos,
observaremos pela lente do caso da UE as motivações, vocações e histórias de vida dos
“profissionais do desenvolvimento”, bem como as razões da adesão da opinião pública às ações de
cooperação internacional. Na escala institucional, abordaremos, nos dois casos, os modelos
político-administrativos utilizados pela burocracia do desenvolvimento, e as lógicas dos
diferentes grupos organizados para disputar seus recursos, no caso da Noruega. Na dimensão dos
Estados, analisaremos a lógica das políticas nacionais e internacionais sob as quais são negociadas
as intervenções de cooperação bilateral e/ou multilaterais tanto na Noruega quanto na UE.
Using the cases of Norway and European Union as a basis, we intend to analyze in this article the
combination of different factors and scales of some social processes (individual, institutional, and
from national and transnational political unities), which play a structuring role in the building of
the social meanings of development and shed light on the relationship between moral principles
and interested exchange, a constitutive part of the “moral cultures” we can map in the universes
analyzed. Under the perspective of the individuals, we will exam, in the case of the EU, the
motivations, vocations and life stories of the “professionals of development”, as well as the
reasons of the adherence of public opinion to the actions of international cooperation. In the
institutional scale, we will deal, in both cases, with the political and bureaucratic models used by
the development administration and the logic under which the different groups are organized, in
Norway, in order to compete for its resources. At the state level, we will take into account
national and international politics involved in the negotiations to the define bilateral and/or
multilateral interventions of the international cooperation apparatus, in Norway as well as in the
EU.
ÍNDICE
Keywords: European Union, international cooperation, moral cultures, Norway
Palavras-chave: cooperação internacional, culturas morais, Noruega, União Europeia
AUTORES
MARIA MACEDO BARROSO
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil
NATACHA NICAISE
Universidade Estadual de Campinas – Brasil
Em pós-doutoramento
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 20/12/2013
Tabela 1. Modelo de matriz utilizado pela CAFOD.
Meta do Programa:
Meta do Projeto:
21 As habilidades que Bart considerava importantes, aquelas que ele acreditava serem de
fato necessárias para combater a pobreza com eficiência e evitar uma mentalidade de
torre de marfim, iam além da simples capacidade de gerência; e incluíam a do
engenheiro social de traçar rumos futuros de forma estratégica. A ideia subjacente à
suposta falta de competência dos funcionários de programa (os especialistas em
development), e à presumida competência do funcionário focado em resultados (o
profissional do setor privado), era a mesma que instituía como necessária a capacitação
– o dar a ver um modelo consoante o qual se deveria operar, os saberes que se deveriam
mobilizar e, principalmente, a familiarização com uma forma determinada de pensar.
22 Lévi-Strauss (1976, p. 36), no célebre texto em que explora a diferença entre o
pensamento científico e mítico, que considera nada mais do que “dois níveis
estratégicos onde a natureza se deixa atacar pelo conhecimento científico”, afirma que,
ao contrário do bricoleur que deve se arranjar com os meios-limites (um conjunto
restrito de ferramentas, não definido por um projeto), o engenheiro concebe e procura
ferramentas na medida de seu projeto (Lévi-Strauss, 1976, p. 38-39). O sistema PCM
nada mais é do que uma ferramenta elaborada com um projeto como horizonte, que
como explicitado no CAFOD 2010, era a “mudança nas vidas das pessoas”. Note-se: o
projeto não consiste na modificação de estruturas sociais, reorganização do sistema
mundial, extinção da sociedade de classes, ou mesmo no que era antigamente
enunciado na organização – o combate às “estruturas de pecado”. O projeto atual é o de
operar mudanças pontuais na vida das pessoas, não muito diferente do encontrado em
outras grandes agências de desenvolvimento envolvidas em emaranhados institucionais
de combate à pobreza (Morawska Vianna, 2010). As ferramentas concebidas na medida
de tal projeto têm a importante particularidade de se adaptar às especificidades de lutas
localizadas dos mais diversos tipos – indígenas, mulheres portadoras de HIV,
quilombolas, grupos em periferias de cidades. A matriz – segmentada em caixas para
goal, outcomes, indicators, activities – enquadra qualquer tipo de problema, permitindo
que especificidades de cada projeto caibam dentro do horizonte comum de trabalho, na
área de atuação definida como development. Isso permite, por um lado, que organizações
com atuações específicas tenham para si canalizados recursos e se enganchem a
emaranhados institucionais de longo alcance, e, de outro lado, que as organizações
internacionais estendam a sua presença em muitos lugares, conectando-se a parceiros
com lutas extremamente diferentes entre si.
23 Assim, o treinamento sobre como fazer relatórios de boa qualidade revelou-se uma
verdadeira lição em engenharia social – um nível estratégico onde a sociedade se deixa
atacar. Algumas das primeiras lições de Bart no treinamento eram expressas com
afirmações como: “Metas devem ser realistas. Você começa com outcomes, seis no
máximo. Outcomes são logicamente conectados.” Bart menciona como uma técnica de
planejamento como o problem tree [árvore de problemas] dava melhor entendimento
acerca da conexão lógica entre outcomes. Apesar de apenas mencioná-la no
treinamento, tal técnica era explorada no manual do PCM, e é bastante expressiva do
tipo de procedimento que os especialistas em desenvolvimento colocam em prática com
vistas a traçar planos estratégicos de intervenção social e assim operar “mudanças nas
vidas das pessoas”.
24 A árvore de problemas, idealmente desenvolvida através de método participativo,
contém dois importantes elementos: a visualização de relações causais num diagrama e
o estabelecimento de hierarquia de causa e efeito entre problemas. O exemplo oferecido
no manual é na área de segurança alimentar (Figura 1).
Figura 1. Diagrama de problemas (CAFOD, 2007, p. 244).
Figura 2. Diagrama de outcomes (resultados) (CAFOD, 2007, p. 245).
Apoiar três delegados indígenas à Convenção sobre Alterações Três delegados indígenas
Climáticas da ONU (UNFCCC) em Bali, 3-14 dezembro de 2007, informados para que lidem com
para que possam atender à conferência e receber treinamento alterações climáticas e se engajem
especializado para que no futuro sejam capazes de participar e com órgãos da ONU quanto às
influenciar negociações em alterações climáticas na ONU. alterações climáticas.
31 Bart dizia: “Mantenha as frases simples. Evite uma terminologia que soa bem, mas não
diz nada.” A modificação de “capacitar funcionários a gerir e prover apoio a pessoas
vivendo com HIV/Aids” para “apoio de qualidade para pessoas vivendo com HIV/Aids e
suas famílias” evidenciava que “dizer nada” ou “dizer algo” estava menos relacionado
ao conteúdo das frases do que com a precisão da formulação linguística envolvida no
procedimento lógico acima descrito.
32 Como se medem outcomes? “Medimos outcomes com indicadores.” No treinamento, Bart
se utilizava do exemplo de parceiros: “No Brasil, um dos programas conseguiu
financiamento da União Europeia. Você pergunta para eles o que mudou para os jovens
nas favelas com o treinamento em liderança, sua resposta é ‘Eles gostam’ ou ‘Não
sabemos’.” Outro exemplo: “Em Bangladesh, eles são extremamente profissionais,
especialmente em organizações com pessoal mais treinado. Todavia, quando se
pergunta para as pessoas sobre indicadores, elas contam estórias.” Bart insistia na
necessidade de se trabalhar mais sistematicamente, mais objetivamente:
Dez pessoas diferentes lhe dirão dez estórias diferentes. Temos que ser mais
objetivos. Em desenvolvimento as pessoas não gostam de quantificar as coisas, é
uma “palavra feia”. Mesmo seus indicadores qualitativos têm de ser mensurados.
Um indicador não é uma verdade, é só uma indicação do progresso que você faz.
Não significa que você atingiu seu objetivo, é só uma indicação.
33 Sobre os indicadores, alguns conselhos: delegar a alguém a mensuração dos outcomes;
realizar a chamada baseline research [pesquisa de base] no começo do programa;
estabelecer indicadores mensuráveis:
Três ou quatro indicadores por outcome. Você pode se enganar, mas com quatro
você está a salvo. Com mais, é o inferno. O projeto da União Europeia em Ruanda
tinha 36 indicadores. Você torna sua vida um inferno. Faça algo simples. Faça
indicadores que os parceiros também podem medir. Nós não medimos calorias, mas
a perda de peso de crianças é mais fácil. Como medimos violência – com um teste
psicológico complicado ou com quantos casos foram denunciados à polícia? Qual é
mais fácil?
34 Mais uma tabela foi apresentada com indicadores encontrados no WebPromise com
exemplos de como se poderia aprimorá-los:
Tabela 3. Esquema de indicadores definidos e aprimorados.
Pessoas vivendo com HIV e No fim da intervenção veremos um aumento em 25% de pessoas
Aids e suas famílias, alvo do vivendo com HIV e Aids frequentando as clínicas de saúde
programa, fazendo uso dos identificadas nos distritos identificados solicitando consultas com
serviços de saúde disponíveis médicos. (de …% agora).
35 O grande desafio, segundo Bart, era tomar para si o crédito da mudança, já que há
muitos outros fatores envolvidos quando da implementação de um projeto, muitas
vezes imprevistos e fora do controle dos funcionários envolvidos. Uma forma de fazê-lo,
mais difícil e trabalhosa, estava contida na seguinte sugestão: “Você deve mapear os
outros fatores”, isto é, realizar risk analysis [análise de risco], stakeholder analysis [análise
de partes interessadas], e assim por diante. A outra forma era simplesmente estabelecer
no desenho do programa metas alcançáveis: “Coloque metas nos seus indicadores – isso
cria accountability [responsabilização], mas não metas inalcançáveis. Se eu estabeleço
metas, sou responsável por elas. O aumento em 30% é seguro, melhor do que dizer 40%,
uma meta que não se pode alcançar.” A medida do sucesso depende também da
elaboração de metas possíveis de serem alcançadas.
36 De acordo com a lógica da engenharia social, um bom planejamento permite não apenas
um projeto estruturado, como também uma maior accountability [responsabilização]. A
matriz torna-se a referência contra a qual se avalia o projeto, e dentro do mundo do
desenvolvimento há vários modelos utilizados. O mais disseminado é a logical framework
[matriz lógica] (ou log-frame), desenvolvida no fim dos anos 1960 para o USAID, e
utilizado desde então por grandes financiadoras governamentais e não governamentais
que trabalham com projetos de desenvolvimento.9 A log-frame é um pouco mais
complexa que a matriz de outcomes da CAFOD, e sua lógica é baseada na ideia de uma
sequência de eventos: inputs [entradas] possibilitam activities [atividades], que
provocam outputs [saídas], que cumprem purposes [propósito] (equivalentes aos
outcomes aqui explorados), que alcançam a goal [meta]. Não cabe aqui explicar em
detalhes a log-frame, apenas mencionar que também ela é desenvolvida a partir do
mecanismo de conversão da relação de causa e efeito em meios e fins (através da árvore
de problemas). Tanto a matriz de outcomes como a log-frame expressam uma sequência
de hipóteses de forma que a informação preponderante é o fim, a meta a ser alcançada.
Isso implica que o futuro (o estado positivo alcançado) é a referência da ação presente.
37 Em 2003, a BOND, uma rede de mais de 270 ONGs de desenvolvimento no Reino Unido,
da qual a CAFOD também faz parte, produziu uma pequena publicação com instruções
gerais sobre como desenvolver uma log-frame, como orientação a seus membros pelo
fato de ser este o modelo usado pelo DFID [agência britânica de desenvolvimento
internacional]. Nela, lia-se:
O que eu preciso para produzir uma matriz lógica?
– uma quantidade de grandes folhas de papel (preferencialmente folhas de flip-
chart);
– lápis, apagador e notas de “Post-it” ou cartões, para que se possa ajustar e
consertar à medida que se avança;
– um lugar para trabalhar sem distrações;
– idealmente, alguém com quem discutir e trocar ideias sobre a matriz;
– o máximo de informação possível sobre o projeto planejado
– fazer preferencialmente “no campo”. (BOND, 2003, p. 3).
38 As ferramentas sugeridas para o desenho da matriz implicavam um trabalho solitário,
sem distrações, com informações à mão e algum eventual interlocutor, além do flip-
chart, aqui não para uma composição coletiva, mas como forma de visualização do
procedimento lógico e do resultado final em forma de matriz. Essa era de fato a forma
mais comum de produção das matrizes:
A realidade das propostas de financiamento e de completar matrizes lógicas
geralmente implica um funcionário de escritório no Reino Unido tentando resumir
um esboço de projeto para uma solicitação de financiamento. Todavia, se usada
corretamente como uma ferramenta de planejamento, a abordagem de matriz
lógica deve ser desenvolvida primeiro pela, ou trabalhando próximo a, pessoa mais
intimamente envolvida com a implementação do projeto, que mais provavelmente
será o coordenador do projeto ou a organização parceira no exterior […].
Escrever matrizes lógicas no Reino Unido não é tão participativo, o que levou a
críticas à matriz lógica como uma ferramenta de planejamento. Idealmente ela
deveria ser produzida no país para que durante o estágio de planejamento
abordagens participativas possam ser usadas para alimentar o log-frame à medida
que é desenvolvida. Enquanto os beneficiários de projeto podem não se identificar
facilmente com o conceito de abordagem de matriz lógica, eles podem identificar os
fatores que são críticos ao sucesso do projeto, bem como os mais apropriados
indicadores de progresso. (BOND, 2003, p. 3, grifo meu).
39 Admite-se que a “realidade das solicitações de financiamento” – o mundo das agências
de desenvolvimento –, leva a ferramenta de planejamento a ser predominantemente
utilizada por um desk officer [funcionário de escritório] no Reino Unido. Ao mesmo
tempo, há o reconhecimento da importância da participação dos parceiros no processo
de desenvolvimento da matriz, fruto das muitas críticas aos profissionais do
desenvolvimento ao longo dos anos, por ignorarem a perspectiva daqueles para quem
as intervenções são desenhadas. Como conciliar a necessidade de participação dos
beneficiários (e organizações de base) no processo de planejamento com o fato de que
“beneficiários de projetos não se identificam com o conceito de matrizes”?
40 A insistência aqui em explorar as enunciações de Bart (em seu treinamento e
entrevista) se dá porque elas expressam uma apologia aos princípios da engenharia
social, segundo os quais haveria a possibilidade de organizações de base se
identificarem com o conceito de matrizes caso tivessem a facilitação necessária para
tanto. Se a erradicação da pobreza estava condicionada a programas e projetos bem
desenhados, cuja única condição era a aplicação de um pensamento lógico, daí decorria
que era apenas preciso dar oportunidade para os parceiros o fazerem através de
oficinas de capacitação e de planejamento conjunto. Nada que um bom facilitador não
pudesse resolver – daí ele enfatizar em sua entrevista a sua competência como
facilitador e sua crítica à mentalidade da torre de marfim. A matriz era orientada para a
base porque era simples, direta, lógica, mas para que funcionasse era necessária a
crença comum em seus princípios; era necessária a identificação por todas as partes
envolvidas com o conceito de matrizes.
41 Compreende-se assim que oficinas participativas de planejamento conjunto não
existem como forma de se apreender a perspectiva dos beneficiários ou organizações de
base, mas são instâncias em que se apresenta e exercita uma certa forma de pensar –
um nível estratégico de se atacar a sociedade. Nelas, abre-se a possibilidade aos
parceiros de participarem do trabalho de engenharia social, não apenas contribuindo
com informações a que não se tem acesso a partir dos escritórios no Reino Unido, como
sobretudo utilizando as ferramentas de planejamento em que se baseia o trabalho das
grandes agências de financiamento – os saberes técnico-burocráticos que se mobilizam
para se conectarem a emaranhados institucionais de longo alcance.
42 A afirmação de que beneficiários (e organizações de base) não se identificam com
matrizes – a inscrição no papel do projeto tal qual se passa no cotidiano (em formato de
tabela) –, não está portanto em alguma suposta crença por parte dos engenheiros
sociais de que beneficiários prescindem de pensamento lógico. Por um lado, a
afirmação é baseada em cem estórias contadas por funcionários a partir da experiência
em cem lugares, transformadas em generalizações: “os parceiros não são objetivos,
contam estórias”; “deve-se manter os indicadores simples para que parceiros consigam
medi-los”; “parceiros tendem a focar em atividades”. Por outro lado, a explicação que
um engenheiro social oferece para a não identificação de beneficiários (e organizações
de base) a matrizes está na pouca familiaridade com ferramentas de aplicação de
procedimento lógico à solução de problemas. Arrisco, porém, uma outra explicação
baseada numa lógica diferente da que instaura o próprio problema: a não identificação
às matrizes pode ser compreendida pela temporalidade subjacente ao trabalho de
engenharia social aqui descrito.
A lógica das matrizes e seu descompasso com o
mundo dos beneficiários
43 O eixo de referência para as ações de um projeto é o fim de seu ciclo, representado pelo
outcome (estado positivo alcançado). O procedimento que transforma o problema em
um outcome cria uma composição do socius, representada pela matriz, que supõe uma
sequência de eventos, pensadas não em termos de causa e efeito, mas fim e meios, ou
seja, uma meta desejada no presente será alcançada desde que atores A, B e C operem as
ações X, Y, Z. A composição é em si diacrônica, imaginada como uma sequência de
eventos inscritos no tempo, embora haja o reconhecimento de que no mundo dos
beneficiários os eventos não se passam como previsto:
Nenhum projeto de desenvolvimento existe num vácuo social. É importante que a
situação desejada futura seja descrita de tal modo que torna possível verificar num
estágio posterior em que medida o projeto foi bem sucedido em relação a seus
objetivos e os grupos-alvo. (Norad, 1999, p. 7).
44 Nenhum projeto existe num vácuo social, mas a construção da matriz no flip-chart exige
que se isole o objeto da intervenção social de forma que se suponha o vácuo social para
que o projeto se dê da forma como desenhado.
5.1. Reuniões de
monitoramento e
5.1. Funcionários aperfeiçoam seus planejamento.
sistemas de administração e 5.2. Reuniões de avaliação.
planejamento para assegurar a 5.3. Treinamento
sustentabilidade de projetos pedagógico para
econômicos e políticos. educadores.
5. Os três centros têm maior
5.2. Avaliação produzida e 5.4. Presença em atividades
capacidade de prestar serviços
recomendações implementadas. de articulação
e melhorar seu gerenciamento
institucional. 5.3. 20 educadores treinados em (participação em fóruns,
questões pedagógicas. reuniões de conselhos de
5.4. Quantidade de recursos direitos).
assegurados com a submissão de 5.5. Preparação de
propostas para fundos locais e proposta a ser submetida
agências doadoras. para fundos locais e
agência doadoras.
5.6. Oficinas psicológicas.
uma realidade que eles estão trazendo. Acho que o processo anda melhor dessa
forma.
57 Se os meninos trazem algo que é mais alarmante, mais central para eles do que o tema
planejado, este tem de ficar de lado, embora apenas temporariamente, já que o “mundo
dos projetos”, o território da engenharia social, força a atenção e o retorno sucessivo à
matriz de planejamento. Isso porque o mundo da vida opera um descompasso entre a
composição duradoura, fixa (a matriz), e aquelas composições efêmeras, maleáveis, que
se reconfiguram a cada vez que são atualizadas pelos atores à medida que estes reagem
às contingências. Quanto mais as contingências afastam as atividades do planejamento
inicial, ou seja, quanto mais composições efêmeras se deslocam da composição rígida,
fixa, menos a matriz é boa medida de sucesso. Quanto mais contingências emergem e
mudam o rumo das atividades, mais o projeto ruma ao fracasso apenas e tão somente
por se afastar do planejamento inicial. O fracasso ou sucesso não é, evidentemente,
estabelecido por alguma medida absoluta, mas pelo próprio desenho do projeto, e
portanto sucesso significa o desenho do projeto evitar imprevistos ou prever riscos com
acuidade, ou seja, que ele se dê na prática da forma mais similar possível a si mesmo.
58 Numa das reuniões semanais da equipe do Grupo Comunidade, quando foi anunciada a
chegada da carta de aprovação do Projeto Tarrafa para o triênio 2006-2008, Liedson, um
dos educadores, propôs que na reunião seguinte fosse distribuída “uma cópia do Projeto
Tarrafa para cada educador colocar as coisas da proposta nas oficinas, porque tem
muita coisa no projeto que precisa ser feita”. As reuniões semanais e os relatórios
mensais dos educadores garantiriam o ajuste ao planejado. Como o eixo daquele ano era
meio ambiente, Liedson sugeriu que fossem trabalhadas durante o mês de março
atividades que explorassem a semana da água. Dona Valentina, uma das educadoras
mais antigas, respondeu: “Não, agora é enfeite de Páscoa… faltam quatro semanas para
a Páscoa.” De um lado, via-se um educador mais jovem preocupado em seguir o tema-
eixo e adequar as atividades à matriz de planejamento para que o projeto se desse da
forma mais similar possível a si mesmo. De outro lado, percebia-se uma educadora que
dava mais importância a uma temporalidade que também perpassava o grupo, distinta
daquela instaurada pela sucessão de eventos suposta na matriz.
59 Dona Valentina evidentemente não se identificava com a matriz, mas tampouco muitos
dos funcionários da CAFOD. Isso ocorria não simplesmente, como creem os engenheiros
sociais, pela pouca familiaridade com ferramentas de aplicação do procedimento lógico
à solução de problemas, mas sobretudo pela temporalidade subjacente ao trabalho de
engenharia social. Sob o ponto de vista de qualquer organização, seja uma agência
financiadora com 400 funcionários, seja uma organização de base, quanto mais os
emaranhados institucionais estiverem adensados em torno de si, mais as suas ações
serão guiadas pelos princípios da engenharia social, o que implica a tentativa de excluir
ao máximo outras temporalidades que eventualmente perpassam a organização, e a
aproximação a uma forma de pensar que precisa supor o vácuo social para ser bem-
sucedida.
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NOTAS
1. Este artigo é uma versão modificada de um dos capítulos de tese de doutorado defendida no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (Morawska
Vianna, 2010). Trata-se de uma etnografia baseada no deslocamento institucional pela Rede
Tarrafa: 22 semanas de trabalho de campo em três grupos populares que atuam junto a crianças e
adolescentes de seus bairros em Recife e Olinda; e 53 semanas na sua financiadora CAFOD em
Londres (no escritório da equipe responsável pelos projetos no Brasil dentro da seção da América
Latina na sede da CAFOD, e no escritório regional da CAFOD localizado na diocese de
Westminster). Optou-se por manter expressões em língua inglesa no corpo do texto por se tratar
de conceitos correntes entre meus interlocutores de campo. Todas as traduções são minhas.
2. Cf. CAFOD (2005, p. 6-7).
3. Para menção de como o trabalho de Ribeiro se situa em relação a outras etnografias de grandes
projetos de desenvolvimento, ver Herzfeld (2001, p. 152-170). Esforços na antropologia brasileira
de sintetizar o debate da antropologia do desenvolvimento fora do país encontram-se em
Schröder (1997) e Schröder e Naase (2004).
4. Composições do social são aquilo que os atores vislumbram como o seu campo de intervenção,
definido por elementos (pessoas, coisas, categorias, nomes) postos em relação dentro de
fronteiras de mundo delineadas ciclicamente, a cada novo estágio do sistema PCM (cf. Morawska
Vianna, 2010).
5. Esta seção é em grande parte baseada no treinamento realizado em 15 de outubro de 2007.
6. PEST(LER) analysis é uma análise de situação ou contexto que leva em conta fatores (P)olíticos,
(E)conômicos, (S)ociais, (T)ecnológicos, (L)egais, ambi(E)ntais, (R)eligiosos. Stakeholder analysis é
um processo que identifica pessoas ou grupos com interesse num projeto ou programa. Power
analysis é a análise das relações de poder entre grupos de pessoas ou indivíduos. Problem tree, ou
árvore de problema, é uma ferramenta para explicitar causas de problemas específicos. Risk
analysis, ou análise de risco, é um processo de identificação do que pode dar errado num projeto
ou programa, e formas de mitigação dos riscos (cf. CAFOR, 2007, p. 208).
7. Há sutis e importantes diferenças que serão mais adiante exploradas entre a noção de outcome
[estado positivo alcançado] e outras noções como objective [objetivo], result [resultado], goal [fim,
meta].
8. O próprio manual do PCM da CAFOD (2007, p. 231) cita as obras das quais foi tirado, Big Lottery
e Trócaire: Explaining the difference your project makes: A BIG guide to using an approach (Big Lottery
Fund/Triangle Consulting, May 2006); From the project model to the programmatic approach
(Trócaire, Aug. 2005); Guiding document for new Trócaire Programme Approval System (Trócaire, Oct.
2005).
9. Cf. Norad (1999), citado como fonte de consulta pelo manual do PCM da CAFOD (2007).
10. Dados do WebPromise em julho de 2008. Foi aqui reproduzida apenas a versão da matriz em
português.
RESUMOS
Este artigo explora os princípios da engenharia social que embasam o trabalho das agências
internacionais de desenvolvimento. A partir de um relato etnográfico de um treinamento na
Catholic Agency for Overseas Development, a agência católica de desenvolvimento internacional
da Inglaterra e País de Gales, será apresentado o pensamento lógico da matriz de projeto a partir
do qual os técnicos da organização são incitados a operar. Argumenta-se que o fracasso crônico
dos projetos, em geral atribuído à pouca familiaridade dos parceiros com as ferramentas de
aplicação do pensamento lógico à solução de problemas sociais, decorre da temporalidade
subjacente aos projetos, que supõem o vácuo social e a sucessão de eventos tal como previsto no
papel. Isso nunca ocorre, já que nas organizações parceiras que trabalham diretamente com os
beneficiários as contingências do dia a dia criam um descompasso entre a composição fixa
vislumbrada no projeto e as composições efêmeras que emergem durante a sua implementação.
This paper explores the principles of social engineering that underpin the work of international
development agencies. By presenting an ethnographic account of a training at the London
headquarters of the Catholic Agency for Overseas Development, I will explore the logical thinking
expected from programme officers when designing log-frames for projects. I argue that the
chronic failure of projects, generally attributed to the unfamiliarity of partners with the tools
that apply logical thinking to the solution of social problems, derives in fact from the temporality
that underlie projects. They suppose a social vaccum and a sequence of events that never takes
place as laid down on paper, since contingencies of everyday life experienced by partner
organizations who work directly with beneficiaries create a mismatch between the fixed
composition envisioned in the project and the ephemeral compositions that emerge during its
implementation.
ÍNDICE
Keywords: development, international agencies, projects, social engineering
Palavras-chave: agências internacionais, cooperação internacional, engenharia social, projetos
AUTOR
CATARINA MORAWSKA VIANNA
Universidade Federal de São Carlos – Brasil
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 17/12/2013
NOTA DO AUTOR
Agradecemos ao parecerista anônimo de Horizontes Antropológicos pelas valiosas
sugestões.
Sobre as motivações iniciais
A gente foi longe demais, o projeto ensinou para a
gente e o investimento foi grande. E ele não é de graça,
é pago na medida em que a gente muda de vida.
Mulher, quebradeira de coco babaçu.1
1 As reflexões desenvolvidas neste artigo partem de nossa experiência na avaliação de
projetos sociais nas últimas três décadas, tanto da prática de gestão como da expertise
desenvolvida na realização de avaliações e monitoramentos. Trata-se de projetos
implementados por organizações não governamentais (ONGs), movimentos sociais e
provocar reações como medo e insegurança, levando a diálogos nem sempre fluidos. É
nesse momento que as lições da antropologia são fundamentais: estabelecer o diálogo a
partir do Outro e reconhecer que o encontro, em si, produz novos significados. Como
diz a mulher citada na epígrafe acima, “não deixam a gente nem tímida […] a gente até
se sente uma pessoa capaz”. Esse diálogo, permeado por uma relação de poder dada de
antemão, pode ocorrer sobre outras bases. Mas o “nem” e o “até” significam também
que, na maioria das vezes em que ocorrem diálogos similares, a hierarquia e a relação
de poder é o ponto de partida.
40 Em projetos com marcos lógicos frágeis e ausência de diagnósticos iniciais, a exigência
de dados quantitativos se esmorece. Assim, é nesse vácuo que o diálogo com o grupo
envolvido no projeto e com atores sociais-chave no contexto considerado acontece, e
no qual se buscará compreender as percepções de mudança. Um diálogo reflexivo, que
leve o Outro a identificar as diferenças que fizeram a diferença, na definição de Bateson
(1972) de mudança, em que se recorre à memória para compreender a trajetória e os
significados da situação de hoje. É nesse momento, muitas vezes, que se vislumbra a
percepção da mudança, tanto na dimensão individual como coletiva. Esse jogo com a
memória dos sujeitos, que o avaliador propõe que joguem, exige sensibilidade para ler
os silêncios, as inseguranças, as explosões emocionais e as indiferenças como repletos
de significados. Para desenhar cenários imaginários do “antes e do depois”, do “se não
tivesse isso”, ou “do que poderia ser se…”, do que se pode fazer, do que é necessário. O
diálogo se dá em base de vivências ressignificadas pela memória, e pelos elementos que
são evocados no jogo das possibilidades imaginadas. A capacidade de imaginar significa
a capacidade de articular elementos de diversos contextos, de avaliar sua (individual ou
coletiva) condição de fazer diferente apropriando-se do novo em diálogo e recolocando-
se em nova posição de poder. O discurso de uma mulher quebradeira de coco babaçu,
produzido num desses diálogos demonstra a que nos referimos: “Roça orgânica é uma
forma de externar aquilo que já fazemos com o babaçu, é uma forma de avançar o que
já vínhamos [fazendo], é também ser professor para o governo, mostrar que quando a
gente quer, faz.”
41 O exercício da observação também tem sido uma prática nas nossas experiências de
avaliação. Sempre procuramos marcar as entrevistas em momentos que ocorriam
eventos como reuniões ou alguma atividade, de preferência, ainda que não
necessariamente, previstas no plano de trabalho do projeto. Dessa forma, podíamos
exercer uma observação (não camuflada) do grupo, sua forma de atuação, a prática do
projeto. São nesses momentos em que se pode perceber em que medida aquela
atividade é algo muito externo, difícil de ser apropriado pelo grupo e, portanto, de
estabelecer um diálogo entre formas de conhecimento. Um dos casos marcantes foi uma
capacitação dada por um especialista de uma agência multilateral de cooperação a um
grupo de agricultoras, em que ensinava (no sentido de repassar um conhecimento) um
procedimento para utilizar forragem armazenada para o gado em período de seca, que
consistia em molhar a forragem com um produto químico misturado em água. 11
Procedeu, então, à explicação para calcular a quantidade do produto que se deveria
agregar, utilizando fórmulas matemáticas apresentadas em um quadro negro. O público
sequer falava o mesmo idioma do técnico e a grande maioria não frequentou a escola. O
diálogo simplesmente não aconteceu. Um exemplo extremo, mas que ilustra bem
muitas das práticas no campo dos projetos de desenvolvimento.
42 Para contrabalançar, temos em mente a familiaridade com que uma mulher, líder de
uma comunidade da periferia urbana de uma cidade de Pernambuco, transitava pela
prefeitura e fazia demandas para sua comunidade.12 Poucos anos antes, tal comunidade
sequer existia no mapa da prefeitura. Observar o seu trânsito e acompanhar reuniões
de fóruns municipais dá uma dimensão das novas configurações do contexto sobre o
qual o projeto incidiu. Transitar pelas redes sociais que concretamente articulou seria
dispensável – e muitas vezes o é – em projetos de avaliação. Contudo, a ressalva a ser
feita é que, independentemente do projeto e da agência financiadora, os
microprocessos sociais são, muitas vezes, mais reveladores e indicadores de mudanças
em curso.
O antropólogo na avaliação: a reafirmação do trabalho
de campo e da teoria
Nesse mundo, quanto mais crescem os conhecimentos,
a necessidade vem junto. Vêm novos desafios que
precisam de outros conhecimentos que surgem.
Mulher, quebradeira de coco babaçu.
43 Há uma especificidade na atuação de antropólogos, na avaliação de projetos sociais, que
a diferencia de outras práticas “extramuros”, já objeto de reflexão na antropologia
brasileira, como mencionado anteriormente. A mais tradicional, e talvez a que tem sido
mais discutida, é a atuação de antropólogos na elaboração de laudos para demarcação
de terras indígenas e quilombolas (Baines, 2004), ou ainda para atestar o uso tradicional
de recursos da biodiversidade. De uma forma geral, o antropólogo é chamado como um
profissional que já possui um conhecimento anterior daquele grupo social. Tanto que a
Associação Brasileira de Antropologia chegou a criar um convênio com o Ministério
Público para indicar tais profissionais, baseada no critério de possuir um conhecimento
anterior do grupo em questão, conhecimento este construído através de pesquisas
antropológicas dentro da tradição da disciplina (Feldman-Bianco, 2011).
44 Outra atuação é em agências da cooperação internacional, como especialistas no local e
com capacidade de mediação, como reflete Leal (2010, p. 82-90). Também vinculados a
áreas específicas, devido à sua formação e experiência de pesquisas anteriores, esses
profissionais atuam na análise de projetos a serem financiados e em articulações
políticas em temas de sua expertise.
45 Há ainda a atuação de antropólogos em ONGs, nem tão especializados, com um nível de
comprometimento político mais forte, mas em precárias condições de trabalho, como
relata Müller (2010, p. 89-96).
46 Já experimentamos todas essas práticas e consideramos que a avaliação de projetos é
um híbrido de cada uma dessas experiências e, ao mesmo tempo, não é nenhuma delas.
Não é necessário ter expertise no tema ou grupo no qual o projeto atua, nem implica um
compromisso político posterior. Há, supostamente, certa isenção em relação à agência
de cooperação que apoia o projeto, e os limites éticos são bastante evidentes. A equação
ética vem da nossa formação humanista, de uma postura política diante do discurso do
desenvolvimento, de compromisso com a vida e o destino dos sujeitos que
protagonizam o projeto avaliado. Nesse sentido, não deixa de ser uma antropologia da
ação, na acepção dada por Roberto Cardoso de Oliveira (2004, p. 21) , que ressalta o
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NOTAS
1. Os trechos de depoimentos citados no artigo provêm de entrevistas realizadas em algumas
avaliações em que as autoras participaram. Para preservar a identidade dos entrevistados e o
sigilo das avaliações, não foram mencionados os nomes nem as instituições às quais pertencem.
Da mesma forma, os exemplos de situações de projetos, embora baseados em experiências
vivenciadas pelas autoras, também não são identificados para preservar o sigilo das informações
relativas aos trabalhos de avaliação realizados.
2. Maria Lúcia de Macedo Cardoso coordenou a avaliação externa de nove projetos executados
por instituições, desde a década de 1990, como: Servicios Técnicos para la Mujer – Setam
(Bolívia), Ação Educativa (São Paulo), Centro de Cultura Luiz Freire (Pernambuco), Movimento de
Organização Comunitária e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – MOC/MMTR
(Bahia), Centro das Mulheres do Cabo (Pernambuco), Movimento Interestadual de Mulheres
Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB (Nordeste), e Museu do Folclore Edison Carneiro (Rio de
Janeiro); no caso de três projetos, eles envolviam diversas organizações não governamentais de
mulheres, de pré-vestibular para negros e de artesãos. Os projetos foram financiados pelas
seguintes agências de cooperação: Unifem, Fundação Ford, Organização para a Cooperação
Internacional a Projetos de Desenvolvimento – DISOP, ActionAid, Banco Interamericano de
Desenvolvimento/Unesco/Ministério da Educação, War on Want e União Europeia, Ministério da
Cultura e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Além dessas
avaliações, trabalhou em quatro instituições no planejamento, monitoramento e avaliação de
projetos: Servicios Técnicos para la Mujer – Setam (Bolívia), ActionAid Brasil, Centro de Estudos e
Ações Culturais e de Cidadania – CEACC e Associação Cultural de Amigos do Museu do Folclore
Edison Carneiro – Acamufec. Com exceção de duas avaliações vinculadas a órgãos
governamentais, a maioria das experiências refere-se avaliações de projetos locais, realizadas por
um profissional, ou uma pequena equipe, em prazos de um a seis meses, incluindo visita ao local
do projeto e elaboração de relatório final. Delaine Martins Costa integrou oito equipes de
monitoramento e avaliação de projetos governamentais e não governamentais, a partir da década
de 1990, tendo coordenado três deles. Um foi apoiado por instituição canadense e envolveu
quatro organizações feministas com atuação em áreas urbanas e rural, tendo privilegiado o
método qualitativo e o trabalho de campo. Os demais estiveram voltados para análise de políticas
públicas e utilizaram instrumentos quantitativos e qualitativos de pesquisa. Três dos projetos
foram financiados pela cooperação internacional (Fundo para Igualdade de Gênero – FIG/Brasil
da Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional ACDI/CIDA, Catholic Organisation
for Relief and Development Aid – Cordaid e Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID), e
os demais por organismos governamentais (Prefeituras Municipais, Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres — SPM/PR, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e
do Adolescente – SNPDCA/SDH/PR, Agência Brasileira da Inovação – Finep). A maior parte dos
projetos teve escopo nacional, com duração de seis a 12 meses, e contou com equipe
multidisciplinar para sua implementação, tendo a autora participado das fases de elaboração da
metodologia, sistematização e análise dos dados e elaboração dos relatórios finais.
3. O termo agência de cooperação internacional será analisado em seguida.
4. Mais adiante será explicado o que significa o marco lógico nos projetos sociais.
5. A reflexão sobre as áreas de atuação de antropólogos, contudo, tem ganhado espaço na última
década no país, estimulada inclusive pela própria Associação Brasileira de Antropologia (ABA),
em que se relaciona também o debate sobre ética e sobre o ensino de antropologia. Esses
reflexões encontram-se em publicações recentes como Antropologia e ética (Víctora et al., 2004),
Antropologia extramuros (Silva, 2008) e Experiências de ensino e prática em antropologia no Brasil
(Tavares et al., 2010).
6. São oito objetivos definidos na Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada em 2000 por
191 Estados membros, num esforço de sintetizar os acordos internacionais estabelecidos em
várias cúpulas mundiais ao longo dos anos 1990: 1) erradicar a extrema pobreza e a fome; 2)
atingir o ensino básico universal; 3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das
mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/
Aids, a malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; e 8) estabelecer uma
parceria mundial para o desenvolvimento. A Declaração do Milênio estipula compromissos
concretos a serem alcançados até o ano de 2015, monitorados por indicadores quantitativos.
7. Sobre a questão de gênero nos projetos de desenvolvimento ver os artigos de Costa (1996),
Costa e Neves, G. H. (1996) e os artigos reunidos em Costa e Neves, M da G. R. (1995, 1997).
8. É especialmente notável o fato de 2015 ser dedicado ao Ano Internacional da Avaliação, tal
como explicitado pelo EvalPartners (2013), movimento global para fortalecer as capacidades
nacionais para avaliação. No Brasil, entre outros, existe a Rede Brasileira de Monitoramento e
Avaliação (http://redebrasileirademea.ning.com), que publica a Revista Brasileira de Monitoramento
e Avaliação (2011, 2012, 2013). Na área de gênero, o portal Gender Equality Evaluation Portal da ONU
Mulheres disponibiliza 350 avaliações já realizadas no mundo (http://
genderevaluation.unwomen.org).
9. O artigo de Faria (2005) traça com precisão um mapa das diferentes formas de utilização da
avaliação no âmbito das políticas públicas.
10. No campo semântico da cooperação internacional podemos sintetizar: eficiência refere-se à
capacidade de produzir resultados com dispêndio mínimo de recursos e esforços; eficácia remete
à capacidade de alcançar os objetivos e metas definidos em determinado projeto ou programa; e
efetividade diz respeito aos efeitos dos resultados alcançados do projeto/programa a médio e
longo prazo sobre a população-alvo. As definições apresentam nuanças conforme as agências de
financiamento, se governamentais ou não governamentais. No caso do governo brasileiro, uma
das principais referências encontra-se no Manual de auditoria operacional do TCU (Tribunal de
Contas da União, 2010).
11. O projeto foi desenvolvido na década de 1990, na Bolívia, em uma comunidade rural indígena.
12. Referimo-nos aqui a um projeto de fortalecimento de organização de mulheres, voltado para
o desenvolvimento local da comunidade, sobretudo no acesso a serviços públicos. Foi
desenvolvido por uma organização feminista com apoio de uma agência de cooperação
internacional na primeira década de 2000.
RESUMOS
O artigo propõe refletir sobre a avaliação de projetos sociais apoiados por agências da cooperação
internacional, a partir da perspectiva da antropologia. Situa a cooperação internacional no marco
do discurso do desenvolvimento construído no pós-guerra e discute o lugar ocupado pela
avaliação nessa arena. Analisa, então, a experiência da avaliação a partir da antropologia
seguindo dois eixos: os limites dos padrões institucionalizados pela cooperação internacional
baseado no marco lógico para a compreensão do contexto e da mudança social, considerando que
The present study proposes a reflection, from the viewpoint of Anthropology, on the evaluation
of social projects supported by international cooperation agencies. It situates international
cooperation in the context of the discourse of development built on post-World War II period,
and discusses the role played by projects evaluation in this area. The study then analyses the
experience of evaluation, from the standpoint of Anthropology, following two strategies: the
limits of the institutionalized patters by international cooperation based on logical frameworks
to comprehend the context and social change, considering that the projects aim to intervene in
social relationships established in the process of globalization; and the possibilities opened by
fieldwork in evaluation as a space for dialog and for imparting new meaning to social change.
Last, the study ponders on professional performance of Anthropologists, reaffirming the place of
ethnography and theory as the base of the discipline.
ÍNDICE
Palavras-chave: avaliação, cooperação internacional, projeto social, trabalho de campo
Keywords: evaluation, fieldwork, international cooperation, social project
AUTORES
MARIA LÚCIA DE MACEDO CARDOSO
Fundação Oswaldo Cruz – Brasil
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 26/08/2013
Aprovado em: 20/12/2013
It has now become of a truism that we are functioning
in a world fundamentally characterized by objects in
motion. These objects include ideas and ideologies,
people and goods, images and messages, technologies
and techniques. This is a world of flows. […] They are
in what I have called relations of disjuncture.
Appadurai (2001, p. 5)
Políticas globais e seus mecanismos de enforcement
1 Em consonância com os argumentos de Burawoy (2001), em Manufacturing the global,
acerca de sua proposta de cânones para o que poderíamos chamar de uma etnografia
global, este trabalho parte do contexto das políticas globais de propriedade intelectual,
conjunto de acordos e ordenamentos jurídicos que, em grande medida, regulam o fluxo
de informação na internet. Para Burawoy (2001, p. 149, tradução nossa), um dos
aspectos da globalização é sua característica como uma “força inexorável supranacional
que reconfigura, mutila e sobrepõe-se ao local”. Nosso cotidiano está perpassado pela
invisibilidade dessas “forças” ou processos. Seria tarefa de uma “etnografia global”
identificar, desmistificar e desnaturalizar essas forças. O objetivo aqui é fazer uma
Na América Latina, o Chile foi um dos primeiros países a assegurar uma legislação
específica nesse sentido, seguido pela Colômbia.
9 A neutralidade da rede é um princípio do design técnico da internet, modelo de tráfego
entre os serviços e os usuários, que visa assegurar, como instrumento de
governabilidade da rede, a equidade da competição entre os diversos players, ou
usuários, da rede. Como bem argumentou Lessig (2001) ao analisar o disciplinamento
jurídico do espaço virtual, a arquitetura original do ciberespaço mudou à medida que
governos e os atores corporativos aumentaram sua habilidade de controlar
comportamentos no ciberespaço e que tecnologias foram desenvolvidas para limitar a
liberdade desse espaço. Lessig (2001, p. 141, tradução nossa) chama atenção sobre a
realocação da inovação, de seu lugar em uma internet descentralizada e diversa para
instituições que, antes do advento da internet, policiavam a inovação: “[…] o poder que
está sendo criado aqui é importantemente artificial – produto de direitos legais criados
no ar e defendidos com o rigor das cortes e códigos”.
10 Retomando os argumentos de Lessig, Fischer (2011, p. 61) adverte que:
É crucial continuar os debates na esfera publica sobre valores culturais que se
articulam nos códigos, no mercado e no direito de software para evitar
deslocamentos indesejados da propriedade de informação, barreiras de acesso e
outras decisões relativas à infraestrutura – e ainda acompanhar as normas culturais
em transformação.
11 A neutralidade da rede é um tema transversal, envolvendo desde interesses
corporativos de empresas de telecomunicações sobre o controle dos conteúdos que
circulam nos seus cabos e fibras, empresas de mídia, que dependem da infraestrutura
de rede para o sucesso de seu negócio, e usuários em geral, na medida em que a
neutralidade (ou sua ausência) impacta diretamente a maneira como os serviços de
internet são prestados e cobrados.
12 Cabe questionar, no escopo da presente análise, de que maneira se pode aferir se um
país garante um arcabouço jurídico capaz de regulamentar direitos de cidadania e
privacidade na internet. Sabendo-se que os arranjos institucionais, a partir do sistema
multilateral, são influenciados por sistemas de poder que vão além dos limites do
Estado-nação, propõe-se, aqui, apresentar uma cartografia das legislações de DPI
relacionadas à internet, bem como iniciativas de controle tocantes ao combate àquilo
identificado como “pirataria” digital e os assim chamados cybercrimes. Para tanto, a
proposta deste trabalho é, no contexto de consolidação de políticas globais que regulam
a internet, focar a análise nos casos norte-americano e brasileiro. É preciso apontar
ainda que a noção mesma de enforcement, de amplo uso no campo do direito, da
administração pública e das tecnologias de informação e comunicação em geral,
também no Brasil é empregada no original inglês, como sinônimo e execução de leis,
onde “… se associa à ideia de força da lei […] ao esforço que algumas decisões sejam
cumpridas […] a sanção e coerção” (Nogueira, 2013).
13 Como pano de fundo conceitual, é possível remeter aqui a discussões já clássicas na
antropologia a respeito de sistemas jurídicos, como aquela que Bourdieu (1990) faz
entre regra e estratégia, entre um princípio jurídico, ordenador ideal de condutas
sociais e as estratégias, dando lugar a múltiplos arranjos ditados por contingências do
“senso prático”, do “sentido de jogo dos agentes”. Um paralelo entre os planos global e
local é inevitável para a discussão aqui apresentada. Na dinâmica de produção de
políticas globais, temos o nível prescritivo, o sistema de agências multilaterais, como a
inviabilização financeira dos “sites suspeitos”, para usarmos os termos das legislações
citadas.
25 Diferentemente do DMCA, o SOPA e o PIPA focavam três pontos cruciais: a)
possibilidade de suspender endereços de internet (domínios ou DNS) dentro dos EUA ou
formar blacklist de sites estrangeiros; b) possibilidade de suspender transferências
financeiras por meio de contas de cartão de crédito ou semelhantes; e c) possibilidade
de cortar os rendimentos de publicidade online proveniente dos sites classificados como
ilegais. Os pressupostos que nortearam tanto o projeto do PIPA como o SOPA ainda
permanecem em debate na nova proposição do chamado Cyber Intelligence Sharing and
Protection Act (CISPA) (United States, 2012a), aprovado em abril de 2012, aguardando
aprovação do senado norte-americano. Seu objetivo é dotar de meios legais o combate à
pirataria nas redes de compartilhamento, mediante cooperação entre os provedores de
acesso e as agências de inteligência do país. O CISPA foi proposto pelo congressista
Michael Rogers e apoiado pela Motion Picture Association of America (MPAA), a Câmara
de Comércio norte-americana, o Screen Actor Guild, a Viacon e entidades ligadas à
indústria cinematográfica. Assim como ocorreu com o SOPA e o PIPA, o CISPA foi
questionado por organizações civis, como a Eletronic Frontier Foundation, o Center for
Democracy and Technology, a American Civil Liberties Union e o Human Rights Watch.
26 De maneira geral, a controvérsia estabelecida circunscreveu-se à garantia de direitos de
privacidade, anonimato e segurança em detrimento de mais controle da circulação de
bens imateriais nas redes digitais. Recentemente, o tema voltou a ocupar as manchetes
quando Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança dos
Estados Unidos (NSA), revelou uma série de mecanismos de vigilância praticada pelas
agências de inteligência norte-americanas e as maiores empresas na área de internet.
Esse é um caso singular, pois desvelou que as práticas de monitoramento e cooperação
institucional e corporativa vão além das regras públicas estabelecidas. Como pano de
fundo, está em jogo a propriedade dos dados e artefatos digitais como bens imateriais.
Entre licenças e “termos de uso”, há uma clara disputa para se definir se o prestador de
serviço também é dono da produção dos utilizadores. Pode-se arbitrariamente usar,
vender ou ceder essas informações? E, em última instância, quem deve ser
responsabilizado pelos possíveis ilícitos dentro da rede?
O princípio da neutralidade da rede e a privacidade
regulada
27 Um dos arranjos mais centrais à rede, mobilizado com mais ênfase nesses últimos anos,
é o que se convencionou chamar de neutralidade da rede. O termo tem sua origem na
legislação de telégrafos de 1860 e, em relação à internet, foi consagrado por Tim Wu
(2003, 2004). Em suma, essa neutralidade consiste na capacidade de os pacotes da rede
terem iguais condições de tratamento nos diversos pontos da rede que perpassam. O
arranjo técnico projeta uma não discriminação de tipos de pacotes de dados, o que
garantiria a igualdade de condições de toda a informação da rede circular sem barreiras
preestabelecidas. Pacotes de dados, na linguagem dos usuários experts, é a forma como
as informações são agrupadas e transmitidas na rede. A metáfora liberal clássica a
partir desse condicionamento é imediata, “todos os pacotes são iguais perante a rede”,
e fornece a estética da rede diante da governabilidade da rede.
28 Para Benkler (2007, p. 18), a liberdade e a inovação tornadas possíveis pela economia
em rede dependem diretamente da construção de uma infraestrutura básica de espaços
de comunicação de uso comum (digital commons), de acesso público, que seja paralela à
estrutura proprietária, isto é, de acesso privado, sendo que ao menos uma parte de cada
camada deve “poder ser utilizada por todos sem a necessidade de ter qualquer
permissão”. A arquitetura da internet, diferentemente de outros meios de
comunicação, permitiu que diversas camadas da rede pudessem ser usadas sem que
fossem necessários intermediários.
Esta infraestrutura de commons deve se estender desde a camada física do ambiente
da informação até as camadas lógicas e de conteúdo. Ela deve ser estendida para
que toda pessoa tenha certo conjunto de recursos primeiros e últimos que lhe
permita fazer e comunicar a informação, o conhecimento e a cultura para todos os
demais. (Benkler, 2007, p. 18).
29 Na prática, o arranjo técnico e institucional da rede proporcionou que houvesse uma
separação entre os provedores de acesso (ISPs) e os provedores de conteúdo, como
fornecedores independentes. A neutralidade da rede corresponde à separação unívoca
dessas duas camadas, para que (pretensamente) não haja arbítrio nem vigilância do
conteúdo que esteja circulando na infraestrutura.
30 Desde 1990, o debate sobre as regras de governabilidade da rede tem se tornado mais
frequente, principalmente devido ao englobamento dos ISPs pelas empresas de
telecomunicação. Benkler (2007) chama atenção para dois efeitos da comunicação de
massa fundamentais para se compreender o processo de cercamento técnico e judicial da
internet. O primeiro, conhecido como o efeito Berlusconi, é definido como “o poder
político desproporcional que a propriedade dos meios de comunicação em massa dá aos
seus proprietários ou aqueles que podem pagar por eles” (Benkler, 2007, p. 16), a
exemplo das estratégias de inclusão de temas privados nas agendas públicas e no
ordenamento jurídico, como os lobbies, grupos de pressão e o mecanismo de “portas
giratórias”.8 O segundo efeito refere-se a “a substituição sistemática do discurso público
pela distribuição de produtos de entretenimento vendidos como mercadorias”
(Benkler, 2007, p. 16). Esse mecanismo permite analisar a progressiva mercantilização
da produção cultural, científica e artística em níveis inéditos por meio dos direitos de
propriedade intelectual como principal estratégia de produção do valor de troca.
Ambos os efeitos radicalizam a ideia de que o acesso a bens e serviços deve ser restrito
aos que possam por eles pagar, independentemente da função social, do bem-estar
coletivo e dos direitos individuais e coletivos. É nesse sentido que, contra a
neutralidade da rede, os porta-vozes das corporações, geralmente da área de
telecomunicações, argumentam que serviços de vídeo e voz deveriam ser priorizados
porque dependem de alto consumo de banda e qualidade de entrega para sua
efetividade.
31 O argumento dos defensores da neutralidade é o de que a rede deve ser tratada como
espaço público, como um bem comum (common resource), e que serviços não devem ser
diferenciados ou priorizados. Diversas iniciativas legislativas nos Estados Unidos têm
tentado regulamentar esses princípios, sendo que, entre as mais significativas, estão o
Network Neutrality Act (United States, 2006), e o Internet Freedom Preservation Act (United
States, 2008).
32 A neutralidade de rede também remete a uma leitura do funcionamento da rede a
partir da sociedade civil F0
2D seus ativistas, entusiastas, hackers e técnicos F0
2D que
Estados Unidos, declarou que a FCC não tinha autoridade estatutária para impor
princípios de neutralidade na rede.
35 Casos parecidos foram replicados em diversos outros países. No Brasil, vários estudos
apontaram a técnica de traffic shapping em provedores como a NET e Brasil Telecom
(Evangelista, 2006). Para além da priorização de serviços específicos e do bloqueio de
outros “indesejados”, o princípio da neutralidade delimita a privacidade dos conteúdos
que circulam na rede. Se um serviço é mais priorizado que outro, é necessário que o
“dono do cabo” saiba o que o usuário está transmitindo, mediante técnicas
convencionadas de deep package inspection. Esse é o argumento utilizado, também, para
um “exame” mais acurado de materiais ilícitos na rede, tendo sido implementado como
legislação em diversos países, como forma juridicamente aceita para o combate às
cópias ilegais.
36 Para uma política mais eficiente de controle, uma agenda que dissolva essas camadas
está sendo paulatinamente consolidada, a partir da responsabilização dos ISPs pela
vigilância sobre possíveis delitos cometidos pelos usuários da rede. Essa agenda é
conhecida como “resposta gradual” ou three strikes. Em termos gerais, uma comissão
específica julga casos relatados pelos ISPs ou reclamantes sobre possíveis infrações de
propriedade intelectual. Os usuários são notificados por duas vezes, até serem
desconectados e processados na última notificação reincidente. Como exemplos de
resposta gradual, pode-se citar o mecanismo de enforcement da Hadopi, lei francesa
aprovada em 2009 (France, 2009), e o caso sul-coreano. O primeiro gerou mais de 500
mil primeiras notificações em 2011 e, atualmente, há cerca de 60 casos de usuários em
fase de desconexão e processo. Já na Coreia do Sul, a resposta gradual foi implementada
em 2009, a partir de uma revisão da lei de direito autoral, ampliando o poder desse
ordenamento jurídico para se controlar a circulação de conteúdo online mediante um
sistema de inspeção profunda dos pacotes (cf. Tong-Hyung, 2009).
37 Como mencionado anteriormente, considerando-se os embates verificados em torno da
neutralidade da rede, cabe questionar de que maneira pode-se mensurar se um país
garante um arcabouço jurídico capaz de regulamentar direitos de cidadania e
privacidade na internet. Nossa análise busca evidenciar as diferenças existentes entre
os sistemas regulatórios, em uma perspectiva comparativa. Para tanto, consideramos os
seguintes aspectos: a) existência de legislação nacional específica sobre internet; b)
necessidade de haver ordem judicial para retirada de conteúdo protegido por copyright;
c) existência de legislação ou mecanismo legal de bloqueio de serviço de conexão; e d)
legislação nacional específica sobre privacidade digital.
38 Um dos estudos comparativos comumente utilizados é o relatório Freedom on the Net,
elaborado pela Freedom House, instituição independente sediada nos Estados Unidos
que produz relatórios anuais monitorando a liberdade de expressão e imprensa. Essa
organização se dedicou nos últimos dois anos a produzir um relatório específico sobre a
liberdade na internet, abrangendo mais de 50 países. 10 A metodologia empregada no
estudo concentra-se na análise de três grandes eixos: obstáculos de acesso, no qual são
analisadas as dificuldades econômicas e de infraestrutura; controle de conteúdo,
referindo-se à existência de filtros e bloqueios de sites e outras formas de censura; e
violação de direitos de usuários, relacionando formas de limitação de privacidade,
vigilância na rede e restrição de atividades habituais nas redes digitais. Os três eixos são
desdobrados em 21 questões metodológicas, que avaliam as condições de liberdade da
internet nos países que compõem a amostra, numa pontuação que varia entre 0 e 100,
entre os países com maior ou menor liberdade, respectivamente.
39 Segundo esse ranking, Brasil e Estados Unidos estariam na faixa de países “livres”, com
uma pontuação abaixo de 33 pontos; porém, o relatório público, nossa referência para
este artigo, não permite acesso aos dados brutos, mas somente ao resultado agregado.
Nesse sentido, os Estados Unidos aparecem com pontuação positiva para “violação de
direitos de usuários” (somando somente cinco pontos), também não havendo registros
de “evidências de vigilância, regulação ou restrição de anonimato”. O Brasil é apontado
como um dos melhores países no ranking da América Latina, apesar de, segundo o
relatório, carecer de uma lei mais específica sobre regulamentação de direitos autorais
de bens imateriais.
40 Em nosso exercício, propomos aqui analisar três eixos transversais ao relatório da
Freedom House, envolvendo especificamente neutralidade da rede, regulamentação
quanto à retirada de conteúdo e mecanismos de inspeção do tráfego de conteúdo. A
partir disso, é nosso objetivo traçar uma cartografia do cenário, nos Estados Unidos e
no Brasil, de iniciativas legislativas, de regulações e pressões multilaterais, sempre no
contexto da produção de políticas globais, com base em casos emblemáticos balizadores
no campo da regulação de direitos na internet. Destacamos a tensão continuada que há
entre o domínio público e o ordenamento jurídico da propriedade intelectual sobre os
bens intangíveis. Reiteramos que não se trata apenas de decisões legais e econômicas
relativas a domínios na rede e governança de fluxos de informação, comunicação e
dados, “mas escolhas, valores e pontos de inflexão culturais que fazem uma certa
diferença nas direções que a vida cultural pode tomar […]” (Fischer, 2011 p. 62).
41 A escolha dos dois países como casos em nossa análise se justifica na medida em que os
EUA têm sido o protagonista de legislações de enforcement na área de propriedade
intelectual e internet, bem como um ator subjacente com poder de influência de
políticas domésticas de diversos países. O Brasil, por protagonizar uma das primeiras
experiências de discussão e construção de lei específica para governança da internet de
forma aberta e colaborativa, através de um website específico, promovido pelo governo
federal. A plataforma do Marco Civil da internet, como ficou conhecido, foi lançado em
2009 e o projeto de lei resultante ainda tramitava no Congresso Nacional quando da
escrita deste artigo.
Estados Unidos da América
42 Práticas consideradas censoras da internet adotadas por diferentes países, como China,
Coreia do Norte, Arábia Saudita e Irã, que violam o princípio da neutralidade da rede,
nem sempre se basearam em lei(s) específica(s) sobre e para a regulação da internet. Os
Estados Unidos foi o primeiro país a estabelecer um arcabouço jurídico para regulação
da rede, tanto mediante decisões judiciais pontuais, quanto por meio de legislações
específicas. As primeiras dessas legislações foram relativas ao setor de
telecomunicações, a exemplo do Communications Deceny Act (United States, 1996), o qual
estava incluso na lei de telecomunicações, regulando a vinculação de material
pornográfico na rede.
43 No que se refere à legislação específica para a internet, os Estados Unidos constituíram
um modelo conformado por interesses corporativos transnacionais e por pressões
multilaterais, cabendo avaliar, em cada caso, a maior ou menor capacidade dos atores
48 Nos Estados Unidos, o modelo implantado consiste no Copyright Alert System (CAS),
implantado em julho de 2011, que não é um dispositivo legal, mas um sistema privado
de alerta que congrega os maiores provedores de internet dos Estados Unidos – AT&T,
Cablevision, Time Warner, Verizon e Comcast –, escritórios de representação da
indústria fonográfica e cinematográfica – RIAA e MPAA – e alianças menores, como
Independent Film and Television Alliance (IFTA) e American Association of
Independent Music (A2IM). Os esforços de monitoramento são coordenados por uma
entidade privada, sem fins lucrativos, chamada Center for Copyright Information, a
qual provê a infraestrutura logística para a realização do monitoramento e dos envios
dos alertas. O foco do sistema “educacional” são as redes públicas P2P e BitTorrent, ou
seja, redes abertas de compartilhamento de arquivos. Segundo os dados divulgados no
site da instituição, o procedimento não é realizado por meio de deep package inspection,
mas pela comparação de semelhança de downloads realizados pelos usuários com
arquivos que notadamente possuam proteção autoral para circulação na rede, ou seja,
há algum tipo de monitoramento do conteúdo consumido pelo usuário para estabelecer
a “presunção da culpa”.
49 Também conhecida como six strikes ou resposta gradual, essa metodologia dita
“educacional” consiste em, primeiramente, avisar o usuário que possivelmente esteja
copiando algum material protegido por e-mail, alertando-o sobre questões legais. No
segundo momento, um novo e-mail ou uma mensagem de voz do provedor é enviada a
fim de que o usuário confirme ter conhecimento sobre as consequências de sua
conduta. Na terceira e quarta fase, é enviado um vídeo educativo contendo questões
sobre propriedade intelectual. O quinto e sexto passo, caso não haja qualquer
manifestação por parte do usuário, interferem diretamente na conexão. O limite de
banda é reduzido ao mínimo, e, a cada intervalo de tempo de navegação, uma página de
alerta é apresentada. A estratégia de enforcement da assim chamada resposta gradual
pretende ser pedagógica e objetiva o disciplinamento do usuário, neste caso, incidindo
nos usuários norte-americanos.
50 Apesar de o monitoramento e recolhimento desses registros não ter força legal de
denúncia, entidades de defesa de direitos digitais advogam que eles podem significar
um valioso trunfo de chantagem. Nos Estados Unidos, é usual o envio de cartas de
conciliação prévia, a partir das grandes associações de gravadoras, por exemplo, em
que multas já são estipuladas, a fim de que o processo por infração de direito autoral
não seja levado aos tribunais. A Eletronic Frontier Foundation chegou a abrir um
processo chamado RIAA versus the people13 em 2008, denunciando o método jurídico
conhecido como John Doe. Reticentes quanto a levar a cabo grandes processos de defesa,
de altos custos judiciais, os usuários preferem o pagamento da multa. Além disso, a
interferência e redução da velocidade da conexão por meio de avisos intermitentes
constituem ingerência sobre a neutralidade da rede. Apesar de não figurar uma
priorização ou depreciação de um tipo de serviço em relação a outro, a metodologia
ataca diretamente as redes de compartilhamento de arquivos, em particular, as redes
BitTorrent. Em sentido estratégico, essa é uma forma de se desestimular a troca de
arquivos, se intervindo tecnicamente em serviços de troca de arquivos, numa aliança
entre provedores e detentores de DPI. Nesses termos, as regras de tratamento
isonômico dos dados trafegados na rede entram em choque com a campanha
“educacional”, já que esta tem impacto direto nas tecnologias e protocolos disponíveis
para uso na rede. Além disso, o uso da rede, suas tecnologias e protocolos são julgados
conjunto autônomo de dispositivos legais. A lei foi proposta pelo deputado Paulo
Teixeira e tipifica três tipos de crimes cibernéticos: a) invasão de computador a fim de
obter, adulterar ou destruir dados ou informações, sem autorização expressa ou tácita
do titular do dispositivo, ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita; b)
interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático
ou de informação de utilidade pública; e c) falsificação de documento ou cartão
bancário.
55 A Lei Carolina Dieckmann foi considerada uma forma de se neutralizar o projeto mais
amplo de tipificação de crimes apresentado pelo deputado Eduardo Azeredo, embora a
avaliação quanto a seu impacto não seja consensual entre os ativistas. A principal
crítica refere-se à aprovação de uma lei criminal antes de ter sido colocado em prática o
Marco Civil da internet. A existência dessa tipificação isolada, num contexto de
demanda por regulação do ambiente digital, pode acarretar o alargamento de sua
interpretação, na ausência de uma regulação mais abrangente, a qual seria fornecida
pelo Marco Civil.
56 Para a retirada de conteúdo online, é necessário haver ordem judicial emitida ao
provedor da hospedagem, porém há alguns casos clássicos de má interpretação jurídica
da estrutura de funcionamento da internet no que se refere a bloqueio de material em
provedores de conteúdos não hospedados em território nacional. Cabe destacar que
muitos sites são hospedados nos Estados Unidos, razão pela qual o usuário brasileiro
vincula-se ao DMCA, mesmo sem saber. Um exemplo nesse sentido foi o bloqueio ao site
YouTube, em 2007, devido a uma ação judicial iniciada por Tato Malzoni, então
namorado da apresentadora de TV Daniela Cicarelli, expedido contra o site por conta de
um vídeo que exibia cenas íntimas do casal. Durante cerca de 24 horas, o YouTube ficou
bloqueado por todos os provedores de acesso no Brasil. Também cabe destacar a
ocorrência de reiteradas denúncias de censura na internet, sem que tenha havido
qualquer ordem judicial para tanto. Por exemplo, durante os protestos ocorridos ao
longo do Brasil, em julho de 2013, abundaram denúncias de retirada de posts no
Facebook relacionados às manifestações, bem como ausência de sinal de celular nas
áreas dos protestos, impedindo o acesso à internet. O projeto Rede Livre, criado nesse
contexto por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, congrega denúncias de ataque
à liberdade de expressão na internet.
57 Diferentemente dos países do Norte, o Brasil não possui qualquer mecanismo de
bloqueio da conexão por infração de direito autoral, a exemplo do método de “resposta
gradual” implementado pelos EUA, França, Espanha e Austrália. O país tem sido alvo da
pressão exercida pela Special 301, que, por várias vezes, indicou a necessidade de haver
aumento do enforcement no que tange à pirataria digital. Como o projeto de lei do
deputado Eduardo Azeredo esteve em discussão por diversos anos, sendo inclusive
citado no relatório, o foco da discussão foi direcionado para leis de tipificação de crimes
cibernéticos.
58 Igualmente, não há uma legislação nacional específica para garantir a privacidade
digital. O Marco Civil da internet é, atualmente, o projeto com melhor desenvolvimento
na área, já que pontua expressamente a responsabilidade dos provedores de acesso e,
principalmente, inibe a prática de rastreamento de serviços web por parte dos
provedores de conexão. Trata com exclusividade da neutralidade de rede, ponto
polêmico que tem travado a votação do projeto na Câmara dos Deputados,
principalmente pela atuação das empresas de telecomunicação, através do
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WU, T. Copyrights communications policy. Michigan Law Review, v. 103, p. 278-366, 2004.
NOTAS
1. As diferenças de contexto referem-se, em primeiro lugar, à capacidade da articulação social via
web (tanto na forma de web protestos quanto na busca por viabilizar ações fora da rede), a qual
era praticamente inexistente à época do Napster e hoje é uma das principais formas de
mobilização política; em segundo, à quantidade e à qualidade dos atores envolvidos. Enquanto o
Caso Napster ficou restrito aos círculos altamente especializados (advogados de patentes, mídia
especializada) e aos envolvidos no processo, o Blackout-day mobilizou milhões de pessoas ao redor
do mundo, em diferentes níveis de engajamento (a mídia corporativa internacional, as mídias
alternativas, grupos de usuários, acadêmicos, atores estatais, etc.). Por fim, enquanto o Caso
Napster praticamente ficou restrito aos EUA, o Blackout-day tornou-se viral e globalizou o debate
sobre as liberdades na internet.
2. A produção de instrumentos jurídicos capazes de impactar o aparato tecnológico em si e a
produção e circulação de pacotes na rede não está restrita aos EUA. Um exemplo é a diretiva
sobre a sociedade da informação da União Europeia, a qual menciona medidas de proteção
técnica à propriedade intelectual (União Europeia, 2001).
3. O DRM, sigla para digital rights management, ou gestão de direitos digitais, em português,
consiste na criação de medidas tecnológicas (“travas”) para proteger os direitos autorais,
impedindo usos não autorizados e, ao mesmo tempo, permitindo o gerenciamento de
informações sobre os direitos.
4. Tal princípio estabelece que a regra em relação às acusações penais é a não culpabilidade,
implicando o tratamento do acusado como inocente durante o processo, cabendo ao acusador o
ônus da prova.
5. Um exemplo da nova dinâmica de relações na rede mediada pelo DMCA são as Diretrizes da
Comunidade, inclusas nos Termos do Serviço do YouTube, com as quais o usuário, ciente ou não,
concorda ao utilizar o canal para upload de conteúdo. Amparado no DMCA, o detentor de direito
autoral (ou seu representante legal) pode notificar o YouTube de suposta infração, por meio de
uma notificação ao representante de direitos autorais da plataforma. Mediante a denúncia, o
conteúdo pode ser retirado do ar sem que haja qualquer ordem ou processo judicial. Caso o
usuário seja qualificado como infrator reincidente, terá seu acesso ao serviço cancelado. O
YouTube não deixa claro quem julga o mérito das infrações, uma vez que o acusador não oferece
provas.
6. Os dados de remoção de sites podem ser verificados em tempo real no Google transparency report
em http://www.google.com/transparencyreport/removals/copyright/.
7. Essas duas leis foram tratadas em artigo anterior. Ver Souza e Solagna (2012). Para um estudo
mais geral sobre regulamentação na internet, não restrito ao caso americano e brasileiro, aqui
em análise, ver Solagna, Souza e Leal (2011).
8. Do inglês revolving doors, refere-se, no contexto norte-americano, ao movimento de alternância
das mesmas pessoas em cargos públicos, na estrutura legislativa e nas agências reguladoras do
Estado e cargos nas indústrias afetadas por regulações oriundas do Estado.
9. Ver, entre outros: Benkler (2006, 2007); Boyle (2003); Lessig (2001).
10. Para esses dados ver também Kelly, Cook e Troung, (2012).
11. O caso da Espanha é significativo nesse sentido, revelado pelo Wikileaks; ver Anderson (2010).
12. Nos dados do Transparency report do Google, veem-se a origem e o número de pedidos de
retiradas de conteúdo, bem como se constata a impressionante escalada de pedidos e as
principais empresas ou organizações envolvidas. Para esses dados, ver: http://www.google.com/
transparencyreport/.
13. Ver RIAA v. the people (2008).
14. Termo oriundo do inglês (fishing), que quer dizer pescaria, configura um modo de fraude
eletrônica, caracterizada por tentativas de se adquirirem dados pessoais de diversos tipos,
senhas, dados financeiros como número de cartões de crédito e outros dados pessoais. O ato
ocorre quando um fraudador se faz passar por uma pessoa ou empresa confiável, enviando uma
comunicação eletrônica “oficial”.
RESUMOS
Este trabalho tem como pano de fundo o contexto das políticas globais de propriedade
intelectual, conjunto de acordos e ordenamentos jurídicos que, em grande medida, entre outras
coisas, regulam também o fluxo de informação na internet. Através de uma descrição densa de
impasses, disputas e estratégias a respeito da regulamentação da rede, busca-se compreender
como se conforma um arcabouço comum às políticas globais de regulação da privacidade e da
governança das trocas na internet, as quais impactam diretamente o uso que se faz nos e dos
meios e tecnologias digitais. Neste artigo, partindo-se da descrição do contexto mais geral da
produção de políticas globais, foca-se especificamente nos casos norte-americano e brasileiro de
regulamentação da internet, com o objetivo de desvendar a racionalidade subjacente a esse
sistema de produção de regras que atua sobre aquilo que estamos tomando como uma esfera
pública, a internet e/ou as redes sociais digitais.
This paper departs from the context of global intellectual policy, treaties and legal order that
regulate, among other things, the flow of information on the internet. By means of a thick
description of deadlocks, disputes and strategies regarding the web regulation, we try to
understand how the global policy overarching framework that regulates the privacy of internet
exchanges and the network governance works. Such a policy framework has direct impact on the
uses of and within digital means and technologies. Within the more general context of global
policy production, this study focuses specifically on the Brazilian and North American internet
regulation, aiming to grasp the underlying rationality of this system of production of rules that
affects the internet and/or digital social networks, taken here as a public good.
ÍNDICE
Palavras-chave: internet, políticas globais, propriedade intelectual, tecnologias digitais
Keywords: global policy, informational technologies, intellectual property, internet
AUTORES
REBECA HENNEMANN VERGARA DE SOUZA
Universidade Estadual do Piauí – Brasil
FABRÍCIO SOLAGNA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Mestrando em Sociologia
Rafael Evangelista
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 22/08/2013
Aprovado em: 28/12/2013
NOTA DO AUTOR
Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias
2 e 5 de julho de 2012, em São Paulo, Brasil.
(Gilberto Gil…, 2006) e classificou a si mesmo como um “hacker”, termo utilizado por
integrantes do movimento para, entre outras adjetivações possíveis, qualificar seus
membros mais importantes. No setor da cultura, as políticas e o fomento a grupos
adotados na gestão de Gil são citados como inspiração por ativistas de todo o mundo.
3 A proposta deste trabalho é considerar todo esse amplo grupo como igualmente
relevante para o movimento, e não somente os setores mais técnicos. A literatura sobre
o movimento software livre, que o pensa tanto em sua configuração global como
brasileira, em grande parte tem escolhido como objeto de investigação as empresas ou
os indivíduos envolvidos mais diretamente na produção e melhoria dos softwares
(Apgaua, 2004; Coleman, 2004; Kelty, 2008; Sanchez, 2007; Weber, 2004; entre outros),
muitas vezes referindo-se a eles como “hackers”, para designar o grupo em seu caráter
específico.1 Ao ampliar a lente, entendendo o software livre como um movimento social
mais complexo, procuro atentar para relações que integram cultura, política, ideologia,
trabalho e poder.
Free e open, uma divisão histórica
4 É impossível falar do software livre, enquanto movimento, sem falar de suas
ambiguidades, contradições e divisões. Certamente, são elas que permitem que
segmentos sociais diferentes, muitas vezes com interesses opostos – como ativistas
antiglobalização e empresas – encontrem algum tipo de representação a partir da qual
descreverão o adversário e os objetivos do movimento com diferentes matizes
(Coleman, 2004). Tomo como divisão política primeira do software livre o que chamo de
grupos free e open. Esses grupos, a partir de um mesmo conjunto de valores gerais,
mobilizarão argumentos diferentes, seduzindo grupos distintos a participarem do
movimento.
5 Surgido no início dos anos 1980, o movimento software livre passa a apresentar, a partir
do final dos anos 1990, momento que irrompe para a atenção mundial, uma disputa
bastante clara. Formalmente estabelecem-se dois grupos: o free, que afirma ter como
luta fundamental a “liberdade” dos usuários de software e ter como horizonte imediato
o uso exclusivo de softwares livres; e o open, que embora afirme buscar as mesmas
“liberdades” que o free, o faz a partir de outras instituições e com diferentes estratégias
de luta – por exemplo, colocando o modelo livre de licenciamento de software como uma
alternativa a coexistir com o modelo proprietário e argumentando que, acima de tudo,
a abertura do código-fonte oferecida pelas licenças livres favorece o desenvolvimento
de um software de melhor qualidade. Para o grupo free e para o grupo open existem
instituições, organizações distintas,2 às quais indivíduos do movimento software livre
podem mostrar-se ligados com graus variados de intensidade. Apenas alguns poucos
são formalmente ligados a elas, vários colaboram com uma ou outra em campanhas
específicas, sendo que a maioria manifesta apoio e concordância com elas, ou com o
conjunto de ideias que representam, de maneira não direta. A fronteira entre os grupos
é porosa e o comportamento da maioria dos indivíduos dificilmente é completamente
de acordo com os preceitos de cada um dos grupos.
6 Essa distinção entre free e open vai se fundamentar operando no terreno da construção
ideológica, ou seja, trata-se da disputa entre duas correntes políticas que, por meio das
ideias que divulgam, procuram arregimentar aliados que, por sua vez, mobilizarão
trabalho social em benefício do movimento software livre como um todo, mas também
base para as regras descritas na GPL – a principal licença do software livre, publicada em
1989. O manifesto é um convite para que outros programadores se unam ao esforço da
então recém-fundada Free Software Foundation (FSF) de produzir um sistema
operacional livre. Em 1984, Stallman abandona seu emprego no Massachusetts Institute
of Technology (MIT) para dedicar-se totalmente à causa do software livre. É nesse
período que ele delineia o que chama de princípios éticos, as quatro liberdades que
fundamentam o movimento: o software deve ser livre para ser modificado, executado,
copiado e distribuído. O documento por excelência que marca a luta por essas
liberdades é a GPL, a primeira licença redigida tendo em vista os objetivos do
movimento.6
11 Outro ano importante é 1991, quando Linus Torvalds lança a primeira versão do kernel 7
Linux, que tornou completo o sistema livre projetado pela FSF, o GNU. Embora seja
licenciado nos termos da GPL, o Linux significou, na prática, um forte impulso para uma
nova corrente de poder dentro do movimento, que culminará com o ascensão do open
source, enquanto ideia e grupo político, em 1998. Naquele ano, Eric Raymond (1998)
publica o artigo “Goodbye, ‘free software’; hello, ‘open source’” e funda, com Bruce
Perens, a Open Source Initiative (OSI). Considero aqui a Free Software Foudation como a
instituição mais representativa da visão do grupo free8 e a Open Source Initiative como
instituição que dará suporte inicial às ideias do grupo open.
12 Stallman continua, até hoje, tendo grande influência no movimento. No entanto, a
partir de 1991 ele se vê obrigado a dividir o palco com uma então jovem estrela da
Finlândia, Linus Torvalds. Carismático, empreendedor, e sabendo usar melhor a
internet, ele conseguiu dar solução a um problema a que a FSF se dedicava há anos:
construir um kernel licenciado sob uma licença livre para ser parte integrante de um
sistema operacional livre. A FSF já tinha todo o resto da estrutura do sistema pronta,
fruto de anos de esforços, e trabalhava no desenvolvimento de seu próprio kernel. Linus
foi mais rápido e, usando a GPL como licença, adotou soluções tecnicamente mais
eficientes, criando o Linux, parte essencial do sistema operacional.
13 O método de desenvolvimento adotado por Linus está delineado formalmente em A
catedral e o bazar, livro escrito por Eric Raymond, em 1997. A obra é uma reflexão, elogio
e uma descrição do que seria um modelo aberto de desenvolvimento, chamado “bazar”.
Trata-se, também, de uma alfinetada em Stallman e na FSF, acusados de adotar uma
postura centralizadora na organização do trabalho coletivo do projeto GNU. A crítica de
Raymond aparentemente é voltada ao modelo de desenvolvimento proprietário, mas
também refere-se à FSF ao apontar que, até o trabalho de Torvalds, os códigos eram
como se fossem “catedrais”, monumentos sólidos construídos a partir de um grande
planejamento central. Já o desenvolvimento adotado por Torvalds seria como um bazar,
com uma dinâmica altamente descentralizada. Raymond aponta méritos em Torvalds
não somente pela liderança no projeto Linux, mas por adotar um relacionamento com
seus contribuidores no projeto diferente do até então adotado pelas empresas de
software proprietário e pela própria Free Software Foundation. Diz Raymond (1997,
p. 3):
De fato, eu penso que a engenhosidade do Linus e a maior parte do que desenvolveu
não foram a construção do kernel do Linux em si, mas sim a sua invenção do modelo
de desenvolvimento do Linux.
14 A virtude desse novo método de Torvalds estaria, principalmente, na publicação
frequente e precoce das alterações feitas no código-fonte. Assim, desenvolvedores de
costumam estar presentes em eventos da área. Some-se a isso o fato de o Fisl ocorrer
em Porto Alegre, cidade que no início do século XXI viveu uma grande efervescência
política como local de realização das primeiras edições do Fórum Social Mundial (entre
2001 e 2003). O que em um primeiro momento pode parecer contraditório (a conjunção
entre setores em certa medida anticapitalistas e o espaço para as empresas) faz sentido
dado o perfil dos setores mobilizados, refletindo conjuntamente o ambiente de eventos
para estudantes, militantes políticos e empresários/trabalhadores. A persistência desse
formato híbrido ao longo dos anos, como veremos, pode ser entendida como resultado
da continuidade de certos debates e divisões políticas, assim como pelo atendimento de
demandas apresentadas pelos diversos públicos-alvo e de financiamento da estrutura
material.
22 Tendo como pergunta principal de pesquisa a influência do movimento software livre no
governo federal, principalmente após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, Aaron Shaw
(2011) oferece uma visão interessante sobre alguns dos personagens que construíram as
fundações do movimento software livre brasileiro e que participaram ativamente dos
primeiros anos da organização do Fisl. Segundo Shaw, parte deles compartilhava uma
história nos movimentos de esquerda do país e, quando o governo Lula atingiu o poder,
levaram à frente um discurso radical, buscando politizar o papel do Estado
desenvolvimentista em uma economia do conhecimento. Os membros do movimento
software livre brasileiro possuiriam características únicas, se comparados a seus pares
internacionais. A principal delas seria a orientação política, uma mistura de
neomarxismo com socialismo.
23 Um dos indivíduos entrevistados por Shaw e que contribuem para que ele forme essa
percepção sobre o movimento brasileiro é Mario Teza, bastante ativo na organização do
Fisl até hoje. Teza é nascido em 1964, em Porto Alegre, e aponta o início de sua
identificação com a esquerda como tendo acontecido no final dos anos 1970, quando das
greves que levaram à formação do Partido dos Trabalhadores. Logo quando inicia em
seu primeiro emprego, na estatal Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro)
da capital gaúcha, Teza entra para o sindicato e torna-se presidente da seção local da
Federação Nacional dos Empregados em Empresas e Órgãos Públicos e Privados de
Processamento de Dados, Serviços de Informática e Similares (Fenadados). Shaw
prossegue escrevendo a história da relação de Teza com o software livre, relatando em
particular a sua articulação com Marcelo Branco, um amigo de Porto Alegre e então
diretor da estatal Companhia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul
(Procergs), que resultou na criação do Fisl, além de outros indivíduos com o mesmo
perfil político e história de vida bastante semelhante: formação técnica em informática,
mesma faixa etária, funcionários de empresas públicas e alguma relação com
movimentos de esquerda e o PT. Nesse sentido, um depoimento de Teza 11 colhido por
Shaw (2011, p. 259) é emblemático do significado que parte dos organizadores
históricos do Fisl dão ao software livre, mostrando que, pelo menos para alguns eles, o
software livre significava uma possível “transcendência do capitalismo” e um meio para
superar as limitações naturais das lutas sindicais:
By 1989, the labor movement was in crisis – it’s still in crisis! But let’s put it this
way, for some people, we weren’t satisfied with the labor movement and beyond
that with the democratization – the unions also entered into a system – a status
quo, let’s say. It didn’t subvert the social order after the creation of democracy, and
for many of the activists at that time this was not enough. We wanted to do more.
And for many of us, software livre has enabled us to do more. We are able to take
direct action, break paradigms. The labor movement is incapable of this – it raises
salaries, but it’s a whole corporativist thing, its still very out of date. [The union] is
a middle stage between the medieval guilds, the industrial revolution, and some
other little bit of something modern – so-called modern – as well. In reality, it’s
very dated and it doesn’t overcome capitalism. In as much as software livre,
without perceiving it, begins to transcend, at least challenge capitalism, the
ownership society, and intellectual property.
24 A partir de 1999, quando o PT chega ao governo do estado, Mario Teza, Marcelo Branco
e Marcos Mazoni – então presidente da Procergs, Branco torna-se seu vice-presidente
em 2000 –, fortificam ligações entre o PT, sindicatos de Porto Alegre, empresas estatais,
movimentos sociais e setores interessados em informática, a partir de certas ideias do
software livre. Em julho de 1999, Branco, Teza e o técnico da Procergs, Ronaldo Lages,
organizam o primeiro encontro visando discutir o assunto software livre no auditório da
empresa municipal. Fazem-se presentes por volta de 40 pessoas e o grupo passa a se
chamar Projeto Software Livre – Rio Grande do Sul, denominação que será, nos anos
seguintes, copiada por organizações de defesa do software livre no Brasil todo.
25 Esse arranjo inicial contribuiu para dar ao software livre de Porto Alegre um perfil
específico, ligado à esquerda. Já nessa época, os militantes porto-alegrenses procuram
claramente se aproximar do grupo free, vendo nesse grupo, cujo representante mais
saliente é Richard Stallman, maior afinidade de ideias. Ao que parece, essa aproximação
com o free não era acompanhada com a mesma intensidade por outros grupos do resto
do país.
26 Uma das iniciativas importantes no Brasil à época era a Revista do Linux, publicação
editada pela empresa curitibana Conectiva, que comercializava, desde 1997 (Stulzer,
2004), a primeira distribuição brasileira de software livre. Shaw cita a participação de
Teza em entrevista concedida pelo então governador do Rio Grande do Sul, Olívio
Dutra, para o quinto número da Revista do Linux, datada de maio de 2000 (Governador…,
2000). Nessa entrevista, é mencionado o planejamento para o que se tornaria a primeira
edição do Fisl, onde Dutra foi recebido efusivamente pelo público. Na conversa de Dutra
com a Revista do Linux, publicação patrocinada por uma empresa e não partidária de um
posicionamento radical, já se percebe uma divergência sobre como Olívio e a revista
chamam o sistema operacional livre: Olívio fala em GNU/Linux, enquanto a revista, nas
perguntas, refere-se ao sistema como Linux, o que serve como marcador da distinção
entre os grupos free e open. Em seu site pessoal, Teza mantém a transcrição de alguns
depoimentos que deu relatando a história dos Fisl. Em um deles, ao comentar a
participação de um profissional de Campinas no primeiro fórum, ele toca
explicitamente na questão do nome a usar para o sistema operacional, deixando claro
como isso envolve um certo posicionamento. É a transcrição literal de uma fala, sendo
mantidas as retificações que o sujeito faz ao perceber que disse algo impróprio.
Segundo: quem nos ajudou muito, por incrível que pareça, morava em Campinas na
época, o Eduardo Maçan. Então, como a gente debatia pela internet, ele tinha
escrito um texto na Unicamp chamado… na época, ah! ele também chamava de gnu
Linux de Linux, não chamava de gnu. O texto era “Linux na escola, no trabalho e em
casa”. […]. Bom, aí quando a gente fez o debate nesse evento a gente discutiu o
seguinte: Nos 4 anos de governo o que podemos fazer. Resolvemos fazer um
planejamento de como faríamos este projeto numa linha de tempo. Em julho, o que
nós discutimos para vocês entenderem. O Linux, o Gnu Linux [corrige-se] explodiu
no mundo, ele surgiu em 1991, deu um primeiro pique em 1992 e realmente a
explosão foi provavelmente em 1994, fora do Brasil. (Teza, 2004).
pagas pelos seus empregadores, o que implica ficarem parte do tempo no estande de
quem os emprega. Estão presentes mais nas sessões que discutem políticas de adoção de
software livre em âmbito governamental e nos debates sobre a filosofia do software livre,
embora não rejeitem as sessões técnicas. Quando necessário, usam terno ou roupa
social, mas preferem vestir jeans e camiseta. Têm entre 25 e 50 anos.
33 Empresários: são donos ou funcionários de pequenas e médias empresas. Frequentam
quase que exclusivamente as sessões técnicas, embora também tenham interesse em
mesas que debatam políticas governamentais – onde buscam espaço para futuras
prestações de serviço ou apresentam aos burocratas demandas de suas empresas. Têm
bastante conhecimento técnico e estão no evento ou com recursos próprios ou de seus
patrões. Usam terno ou roupa social. Têm entre 20 e 45 anos.
34 Ativistas: em geral têm pouco conhecimento técnico e, se o têm, são autodidatas. Parte
tem formação técnica de nível médio e universitária em ciências humanas. Estão
ligados a projetos de inclusão digital ou que envolvam arte (música, artes gráficas) em
software livre. Usam bermuda e camiseta, também com motivos políticos. Frequentam
as sessões que discutem a filosofia do software livre, novas regras de propriedade
intelectual, inclusão digital e política de governo. Estão no evento com parcos recursos
próprios, hospedados na casa de amigos e tendo viajado de ônibus. Parte tem ou já teve
envolvimento com o movimento estudantil. Têm entre 18 e 30 anos.
35 Nerds: são, em geral, estudantes de computação. Frequentam principalmente as sessões
técnicas. Aceitam as mesas sobre a filosofia do movimento, embora tenham uma visão
bastante estrita sobre o tema. Vestem bermuda e camiseta, em geral com referência a
personagens da cultura pop, piadas envolvendo conhecimento técnico ou projetos de
software livre. Estão no evento com recursos próprios, e muitos vêm em caravanas de
diferentes estados. Viajam e andam pelo Fisl em grupo. Estão interessados em aprender
sobre tecnologia e em contatos profissionais. Têm entre 18 e 25 anos.
36 Essas quatro categorias, grosso modo, podem ser posicionadas em relação aos grupos free
e open. Não significam correspondência direta verificável necessariamente em casos
individuais, mas permitem entender melhor a divisão geral. Nerds e empresários
costumam manifestar maior rejeição à presença de políticos e partidos no Fisl e não
fazem grande esforço de ligar o software livre a outras lutas sociais. Ao contrário, os
nerds frequentemente manifestam sua rejeição aos políticos, enquanto os empresários,
embora tenham contato profissional com os políticos, procuram se manifestar como
apartidários. Já os ativistas e os burocratas ou envolvem-se diretamente em outras lutas
sociais ou não manifestam rejeição à interconexão delas com o software livre. Ambos
têm também rejeição mais fraca à presença de políticos no evento.
37 Muitas vezes essa divisão burocratas/ativistas versus nerds/empresários aparecerá
mascarada na subdivisão entre um público mais ou menos técnico, embora esse
conhecimento mais avançado não seja um fato verificável. Pessoas com maior ou menor
conhecimento técnico se espalham por todas as categorias e, além disso, o que parece
existir mais concretamente é a preferência por determinados softwares ou linguagens de
computador de acordo com os grupos.13
38 Dentro da própria estrutura organizadora do evento essa divisão é operada na
classificação informal dos membros entre “hackers” e “políticos”. De acordo com um
informante, nessa divisão a qualificação de maior prestígio é “hacker”, assim sendo
chamados aqueles que, para o grupo, teriam conhecimentos mais técnicos. Porém, o
que se verifica é que, mais do que conhecimento, é necessário um determinado
muitos ligados ao serviço público, e com passado ligado aos movimentos de esquerda,
entenderam o movimento software livre também como uma resposta ao domínio das
grandes empresas de informática e ao saque de riquezas promovido pelos países
desenvolvidos. No horizonte, enxergou-se o software livre até como fator de
transformação e superação da economia capitalista.
42 Foi assim que políticos de alguma forma identificados com a ideia de resistência à
dominação e exploração externa incorporaram o software livre em seu repertório de
propostas, somando-o a planos de independência nacional. Setores discordantes sobre
essa interpretação da origem do subdesenvolvimento brasileiro ou descartaram o
software livre como algo viável, ou mobilizaram argumentos típicos do grupo open,
apontando sua melhor qualidade técnica como derivada do processo aberto de
produção.
43 O movimento software livre, em especial o grupo free, requer de seus membros uma
certa pureza, uma adequação entre defender o software livre com argumentos teóricos e
extirpar da vida cotidiana o software proprietário. O palestrante do Fisl que utiliza
software proprietário em sua apresentação é logo desacreditado pelo público. O membro
do movimento que usa o sistema operacional Windows durante o evento – ou mesmo
apenas o mantém instalado, em um setor separado, no disco de seu computador – é
censurado pelos companheiros. Se a organização do evento utiliza um arquivo de vídeo
em formato proprietário acaba sendo objeto de crítica pelo público. Os participantes
procuram até mesmo retirar o adesivo do sistema Microsoft Windows que vem colado
na maioria dos notebooks, substituindo-o por diversos adesivos alusivos ao software
livre. É por possuir um conjunto até certo ponto estrito de regras de comportamento
que podemos ouvir, nos corredores do Fisl, frases como “esse aí traiu/não traiu o
movimento”. Esse conjunto de restrições e recomendações funcionam de modo a, por
um lado, estabelecer as divisões entre aqueles que pertencem – e dialogam com essas
normas – ao movimento e aqueles que não pertencem. Ao mesmo tempo, o modo como
são interpretadas – se são tidas como “exageradas” ou pertinentes – indica
posicionamentos em relação às diversas subdivisões existentes.
44 Na cerimônia de encerramento do Fisl de 2009 pude acompanhar um episódio
emblemático desse jogo de censura à associação com certas empresas, em que estas são
associadas simbolicamente a determinadas práticas e posturas políticas. O anúncio da
presença da Rede Globo no evento causou forte reação negativa no público. A empresa
de comunicação, por seu histórico, mas também por sua posição dominadora no setor
de comunicações, é associada ao gigante da indústria da informática e empresa inimiga
do movimento, a Microsoft. Porém, não é isso que acontece, num processo que vem se
acentuando nos últimos anos, com outras empresas, ascendentes e com uma imagem
inovadora, como o Google e, então, a finlandesa Nokia (que atualmente vive declínio e
tem se afastado do software livre). Esta, aliada do movimento em causas como a do
padrão livre de arquivos ODF, é recebida com naturalidade, sendo sua presença até
mesmo um sinal de que o evento não é anticapitalista. Não apenas as pessoas são
interpretadas por sua relação favorável ou contrária ao software livre, mas também as
companhias, lidas como sujeitos que escolhem entre o bem e o mal (aqui cabe lembrar o
slogan “Don’t be evil” do Google). 15 Com um histórico associado ao regime autoritário,
distante de práticas de democratização da informação e de transparência, a Rede Globo
é vista como oposta aos ideais do software livre, importando pouco o quanto ela de fato
usa de código livre e com ele contribui. Ao mesmo tempo, um evento visto por muitos
como radical, como o Fórum Social Mundial, é anunciado no mesmo palco, na mesma
cerimônia, separado apenas por alguns minutos.
45 Embora seja inequívoca a existência de dois grupos no movimento software livre, há
unidade parcial de ideias entre eles. Os membros do movimento, sejam eles do grupo
open ou free, compartilham da ideia de progresso técnico da humanidade e tem, em
geral, visões otimistas sobre o impacto da tecnologia na sociedade. No máximo, o que
há são restrições ao que seria como o tipo errado de tecnologia, fechadas. Porém, as
tecnologias tidas como livres, como o software livre e a internet, seriam
democratizadoras e promotoras de uma evolução qualitativa da humanidade e do
ambiente social.
46 O Fisl, integrando progressivamente free e open, e apresentando uma alternativa
tecnológica cada vez mais pertencente ao capitalismo, tem sua unidade também
alicerçada nessa síntese, na ideia de que é preciso haver foco no desenvolvimento
tecnológico, acelerando-o.
47 Os últimos dez anos foram de forte expansão do software livre, tanto em termos de
práticas e discursos em favor das licenças livres de software e de uma “cultura do
compartilhamento” como no sentido de ter se tornado uma realidade dominante no
mercado de informática. O incremento da velocidade na internet, a maior capacidade
de processamento dos computadores e popularização dos dispositivos móveis de acesso
à rede contribuíram decisivamente para uma mudança no modelo de negócios do
mercado de informática, que progressivamente vem sendo dominado pela
comercialização de serviços agregados em lugar do licenciamento de programas
instalados nos computadores pessoais. Na implantação dessa infraestrutura, os
softwares livres têm particular relevância, formando a base em que funcionam esses
sistemas.16
48 Como fenômeno econômico e de produção descentralizada, o software livre desde logo
atraiu a atenção da comunidade científica. Mais recentemente, surgiram estudos sobre
a dinâmica política e cultural do mesmo. Este trabalho foi construído nessa direção,
investigar o software livre buscando ressaltar seus aspectos culturais, entendendo-os
como força operativa nos embates e disputas políticas inerentes ao movimento.
49 Dessa forma, procurei inicialmente descrever a principal divisão política do software
livre, distinguindo dois grupos majoritários em âmbito internacional, os quais
representam algumas das ambiguidades do movimento. Sob o chapéu genérico da
palavra liberdade constituíram-se os grupos free e open, que em certos momentos
colocam-se como aliados, mas em outros são adversários políticos. Tentei apontar
algumas das aproximações e diferenças dos grupos, atentando para o papel da ideologia
enquanto força atrativa ou repulsora de adeptos free e open. Enquanto o grupo free
reforça argumentos que levam em conta fundamentos morais de uma troca social de
códigos de computador – o que é e o que não é justo, ético, etc. – o grupo open
fundamenta-se no que seria o método de produção de um software de melhor qualidade.
A reboque dessa distinção colocam-se ainda outros fatores, como o maior
distanciamento ou aproximação com as empresas e com o sistema econômico
capitalista tradicional.
50 A partir dessa distinção, procurei entender como o software livre se insere no Brasil, em
um contexto político e social distinto do estadunidense, onde o movimento software
livre se origina. Coleman (2004) aponta o software livre nos Estados Unidos – tanto o
grupo free como o open – como eivado de um “agnosticismo político” e formado a partir
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NOTAS
1. Aqui, ao contrário, pretendo entender – e discutir – o termo “hacker” como categoria nativa
utilizada como ferramenta de distinção de certos membros, notadamente os de mais prestígio.
2. A Free Software Foundation é a mais representativa do grupo free, enquanto a Open Source
Initiative é a mais representativa do grupo open. Essas são organizações gerais de defesa do
software livre, mas há diversas outras, que defendem pontos específicos, causas correlatas (como a
inclusão digital com software livre) ou têm atuação regional, e que se alinham mais com o grupo
free ou open.
3. O termo utilizado pelo grupo open para se referir ao software livre é open source. Utilizo,
contudo, o termo software livre para me referir ao conjunto amplo dos softwares defendidos pelos
grupos open e free que, fundamentalmente, é o mesmo.
4. O conjunto de servidores que forma a plataforma Google utiliza versões modificadas do Linux e
de outros softwares livres (Jelassi; Enders, 2005). Para o desenho de produtos, diversas empresas
estão criando softwares em que os próprios consumidores colaboram na criação. A prática é
conhecida como crowdsourcing e baseia-se na descentralização da produção do software livre
(Kaufman, 2008).
5. Copyleft é um termo criado por Richard Stallman para se opor ao copyright. Segundo ele, a ideia
veio de um colega que grafou: “Copyleft, all rights reversed”, fazendo um trocadilho com o termo
e com a frase “all rights reserved” que acompanha o copyright. O termo também é interpretado
como uma alusão ao espectro da esquerda na política.
6. Kelty (2008) conta os problemas que Stallman teve ao tentar compartilhar seu programa
EMACS com outros desenvolvedores e sua tentativa de construir em torno do programa uma
comunidade/comuna (Stallman utilizava o termo commune, mas o termo community acabou por se
tornar mais popular ao longo dos anos para se fazer referência a esses grupos de usuários e
desenvolvedores), preservando-o de empresas que desejavam torná-lo um software proprietário.
Segundo Kelty, essas dificuldades serviram de aprendizado para que Stallman desenvolvesse a
licença livre GPL.
7. O kernel é uma parte central do sistema, responsável pela configuração e gerenciamento dos
dispositivos (teclado, mouse, monitor, etc.).
8. Essa ideia permanece válida até bastante recentemente. Porém, há indícios que o
enfraquecimento do subgrupo free tenha sido tão acentuado que suas ideias estejam perdendo
força até mesmo dentro de sua instituição fundadora, que permanece bastante atuante.
9. No original: “With Stallman representing the older, wiser contingent of ITS/Unix hackers and
Torvalds representing the younger, more energetic crop of Linux hackers, the pairing indicated a
symbolic show of unity that could only be beneficial, especially to ambitious younger (i.e., below
40) hackers such as Raymond.”
10. “Analyzing the success of the Torvalds approach, Raymond issued a quick analysis: using the
Internet as his ‘petri dish’ and the harsh scrutiny of the hacker community as a form of natural
selection, Torvalds had created an evolutionary model free of central planning.” (Williams, 2002,
cap. 11).
11. Essa declaração de Teza foi colhida em 2005 e confirmam declarações com o mesmo tom
colhidas por mim em anos anteriores.
12. Páginas que já não estão mais disponíveis regularmente, mas podem ser acessadas via
serviços de armazenamento histórico da internet.
13. A linguagem Java, por exemplo, criada pela empresa Sun Microsystems, é bastante usada
pelos nerds, além de ser a especialidade do representante da OSI no Brasil. Já o Twiki, software
para construção de páginas web colaborativas, é largamente utilizado por membros do governo
federal e por militantes do Projeto Software Livre Bahia, bastante identificado com outras causas
político-sociais.
14. Murillo (2009) utiliza os termos “téc” e “ativistas” como referência a “hackers” e “políticos”
do modo como trato aqui. Encontrei o uso desses termos em conversas com membros da
organização do Fisl, porém, o “téc” estaria em um nível hierarquicamente inferior ao “hacker”. O
“téc” seria alguém mais jovem, muitas vezes – mas não necessariamente – com menor
conhecimento técnico e mais ativo nos trabalhos gerais da organização do evento. “Ativistas”
parece-me ser uma versão mais atenuada de “políticos”, porém não encontrei seu uso em
específico.
15. A frase “Don’t be evil” é citada frequentemente, em listas de discussão, como slogan
corporativo do Google quando as atitudes da empresa estão em questão. A frase consta no
prefácio do código de conduta da empresa, que pode ser acessado em: http://
investor.google.com/corporate/code-of-conduct.html.
16. A referência aqui é a o que tem sido chamado de “cloud computing”. Ver Barcet (2009).
RESUMOS
A proposta deste trabalho é discutir, a partir de dados etnográficos, as características,
contradições e transformações da comunidade software livre brasileira vividas nos últimos anos.
Entendida como um movimento social, busca-se mostrar como ela inter-relaciona questões que
envolvem política, linguagem, trabalho e identidade. O cenário etnográfico abordado mistura o
online com o offline, ou seja, a pesquisa procurou entender o software livre tanto por meio da
pesquisa de campo tradicional como pela observação de grupos online. O movimento software livre
brasileiro se mostrou, comparado com seus equivalentes internacionais, como de grande eficácia:
articulou-se com partidos e políticos tanto em nível local como nacional, mostrando-se influente
a ponto de ver atendidas certas demandas; alguns de seus membros obtiveram cargos técnicos e
administrativos; e foi possivelmente o grupo mais influente na constituição dos grupos que
atualmente identificam-se sob o termo guarda-chuva “cultura digital”. A pesquisa que dá base ao
texto já resultou em tese de doutoramento e reúne dados coletados por dez anos de envolvimento
com a comunidade software livre, incluindo interações e participação em eventos offline, sendo o
mais importante deles o Fórum Internacional de Software Livre, realizado anualmente em Porto
Alegre.
This paper’s goal is to discuss (using ethnographic data) the characteristics, contradictions and
changes along time of the Brazilian free software community. The community is understood as a
social movement and I seek to demonstrate how it interconnects politics, language, labor and
identity. The fieldwork relies on both online and offline data. The research tried to comprehend
the free and open source phenomena using from traditional ethnographic work but also
observing the group’s behavior on online discussion groups and mailing lists. The Brazilian free
and open software movement showed to be of great efficiency if compared with other
international FLOSS (Free/Libre/Open Source Software) communities: it became influential on
political parties both locally and nationally; some of its members became part of governments;
and have contributted decisively on the build of the imagination on what is “digital culture”. This
paper is the result of a PhD research effort and relies on ten years involvement with the free
software community including fieldwork with the Free Software International Forum (Fisl).
ÍNDICE
Keywords: cyberculture, free software, politics, social movement
Palavras-chave: cibercultura, movimentos sociais, política, software livre
AUTOR
RAFAEL EVANGELISTA
Universidade Estadual de Campinas – Brasil
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 17/07/2013
Aprovado em: 19/12/2013
NOTA DO AUTOR
O uso da palavra “estado” com inicial minúscula é uma decisão de ordem político-
epistemológica. Como se verá ao longo do texto, mesmo entendendo este como uma
entidade específica, sua construção histórica, ou melhor, a maneira como essa entidade
se constitui no contexto histórico, nos obriga a pensá-lo como um sujeito a mais dentro
do universo de relações que se pretende dar conta. Por outro lado, concordando com o
manifestado por Nascimento (2013), não existiriam razões linguísticas suficientes para
a distinção de grafia que esta palavra possui. Dessa forma mantendo a grafia original
das citações, ao menos grafologicamente, neste artigo, desapoderamos o “Estado”
(Nascimento, 2013).
Uma das explicações que ouvi com frequência, que parecia ser uma espécie de axioma
ou condição intrínseca, era que o povo moçambicano seria “pacífico”. Uma crença que
fora contestada veementemente pelos próprios magermane, que preferiram chamar de
passividade, provocada, segundo eles, pela “memória estarrecida” da última guerra, mas
sobretudo pela ação coercitiva proveniente do partido no poder, já desde a época
socialista. Uma passividade que eles entendiam como letargia, inércia e até imobilismo
(“o povo está a dormirem… acordem!!!”3), porém, segundo eles, em nenhum momento
podia ser considerada sinônimo de pacifismo. O argumento da “memória estarrecida”
pareceu-me plausível, se consideramos que o país entre 1964 e 1992 viveu sob o
domínio da guerra (entre 1975 e meados de 1977 houve um tempo de relativa paz).
Estamos falando de um período de 27 anos em que a população moçambicana sofreu os
estragos de dois conflitos bélicos, sem esquecer o violento sistema de dominação
exercido pelos portugueses durante a colônia. Um período de luta armada que, somado,
custou a vida de mais de um milhão e meio e o deslocamento de mais de cinco milhões
de pessoas dos seus lugares de residência e de suas unidades produtivas originárias,
com a consequente desagregação social e familiar.4
2 No entanto, a coerção governamental desde a época socialista parece precisar de uma
reflexão à parte. Precisamente porque o projeto socialista da Frelimo fora aplicado
durante um período de dez anos (1977-1986) enquanto o projeto neoliberal em
Moçambique já cumpre 26 desde sua implementação em 1987, sendo usado também
como modelo de governação pelas agências de cooperação internacionais, para outros
países africanos, principalmente pelo nível de sofisticação alcançado nas instituições
democráticas desenvolvidas após o tratado de paz em 1992. Quais teriam sido então as
marcas deixadas pelo socialismo no imaginário coletivo da população moçambicana?
3 Talvez uma primeira tentativa de resposta seja mencionar o fato de que mesmo que o
partido Frelimo tenha assumido o projeto neoliberal integralmente (desde 1987),
obedecendo às diretrizes emanadas das instituições doadoras (particularmente os
integrantes da ODAmoz5), debilitando o papel subsidiário do estado nas decisões
econômicas, parece ser que esse partido não renunciou totalmente seu imaginário
socialista, sobretudo se observamos que, para além dos nomes das ruas, avenidas e até
bairros periféricos da capital, os quais ainda mantêm seus nomes históricos vinculados
ao socialismo, talvez a única marca visível desse projeto seja a própria estrutura
orgânica do partido governante, a qual continua sendo sustentada pelos princípios do
“centralismo democrático” de origem leninista.6 Essa estrutura orgânica facilitou e
facilita em grande medida a penetração partidária na maioria das esferas da vida social
e política do país. Efetivamente, como pude perceber, mesmo reconhecendo o espírito
republicano que sustenta a democracia moçambicana, que valoriza o estado de direito e
as liberdades civis, nada no mundo social da capital parece escapar da “intervenção
orgânica” do disciplinado partido Frelimo, ao ponto de muitos chamarem este “modelo
de governação” de ditadura. Manito,7 em uma das muitas conversas sobre o tema,
ironizava: “Nosso país é como a China, capitalismo para o partido e socialismo para os
moçambicanos.”
4 Essa afirmação pode ser motivo de discussão, porém é certo que a penetração e controle
que exerce o partido não apenas na esfera estatal (órgãos do estado) e no mundo dos
negócios (os chamados políticos-empresários), mas, sobretudo, nas organizações sociais
mais diversas (sindicatos, ONGs, grupos dinamizadores), 8 através das suas tramas e
redes clientelistas, reforça essa sensação que pessoas como os magermane, organizados
parece querer ver certo civismo e agência na ação coletiva da população, embora algo
de verdadeiro se perfile dessa designação, parece responder mais a um desejo
republicano, que entre os becos e caminhos terrosos dos bairros populares se torna
mais complexo, mais espesso e diverso.
14 Elísio Macamo (2008) parece ser o representante icônico desse desejo republicano. Sua
pertinente análise, publicada no jornal Notícias no dia 13 de fevereiro, orientava a
reflexão dos eventos do dia 5 para uma crítica das instituições do estado e do sistema
político, buscando responsabilizar os próprios fazedores da política, tanto governo
como intelectuais:
[…] Encoraja, pela sua aparente falta de imaginação na abordagem estrutural destes
problemas que uma vida moderna nos vai criando, a ideia de que, de facto, ele (o
governo) é que é a solução […] Foi a manifestação que foi problema ou a ausência de
outras formas de articulação de protesto é que constitui problema no nosso sistema
político? Existe um quadro substancial de referência que sustente a discussão
política ou dependemos todos da vaga e perniciosa ideia de que o governo resolve
os problemas do povo? […] Que fazer? Pensar, pensar a sério. O campo político
precisa de se tornar mais transparente e aqui não me refiro ao fim da corrupção.
Refiro-me à criação de um quadro de discussão política que envolva o cidadão na
resolução dos seus próprios problemas e na transformação da máquina estatal no
instrumento que cria as condições para que cada indivíduo ganhe a sua liberdade.
(Macamo, 2008).
15 Contudo, essa crítica parece prescindir da própria população, reduzida por sua vez a
uma expressão genérica: “o povo” (“ah, o povo!”20). Seu apelo por uma vida moderna,
sustentada na condição de cidadania promovida pela liberdade do indivíduo junto a um
sistema político inclusivo, parece esquecer deliberadamente as motivações que levaram
a essa heterogênea população a sair nas ruas. Para este autor o “povo” se teria
acostumado a ver o governo “solucionar” seus problemas, portanto dessa vez não podia
ser diferente. Voluntária ou involuntariamente, esse anseio republicano parece impedir
nele uma visão mais abrangente e propriamente inclusiva, caindo em um nefasto
paternalismo, provavelmente o mesmo paternalismo no qual os governantes caíram ao
substituir um regime que supunha atuar nos termos que esse genérico e indiferenciado
“povo” definia, atuando apenas em seu nome.
16 Esclarecida minimamente essa questão, passo aqui a caracterizar as revoltas.
Concentro-me primeiro e propositalmente na de fevereiro, embora a de setembro tenha
assumido os mesmos ou maiores contornos, pois o impacto que teve esta primeira foi
muito mais significativo pelo seu caráter inesperado do que a revolta de setembro que,
aliás, durou dois dias, foi mais abrangente a nível nacional e assumiu maiores
proporções em relação à violência e suas consequências humanas e materiais.
17 Quando indaguei pelos antecedentes, sobretudo se esse tipo de revolta já tinha
acontecido em Moçambique, todos meus interlocutores foram enfáticos ao responder
negativamente. De todas a respostas resgato a seguinte: “Este tipo de revolta não nos é
familiar porque como é sabido o nosso povo é passivo e não pacífico como dizem os
políticos no poder. O povo tem e anda com muito medo da perseguição.” 21 Dessa
primeira revolta destaco o elemento surpresa, sua sincronicidade e sua
horizontalidade.
18 Em relação ao elemento surpresa, a forma como a população se articulou encontrou
toda a classe política desprevenida,22 e não apenas os governantes. A surpresa foi tal
que, durante e depois da revolta, o desfile de discursos governamentais, como os da
oposição, mais do que atender as causas desse evento, optaram por procurar
explicações muitas vezes de ordem moralista e acusações mútuas, reproduzindo, dessa
maneira, um repertório já conhecido no reduzido universo da “esfera pública”
moçambicana. Efetivamente, a espontaneidade e massividade dessa revolta
surpreendeu toda a classe política do país. De um lado a elite governante acusou seus
inimigos políticos “habituais” de instigar esses acontecimentos. Porém, o grau de
surpresa foi tão extensivo que nem a própria Resistência Nacional Moçambicana
(Renamo) soube inicialmente se posicionar. O partido Frelimo tentou então outra
explicação, denunciando a intromissão de uma ambígua e estranha “mão invisível”
externa na revolta. Edson Macuácuá, porta-voz do partido Frelimo naquele momento,
em entrevista ao jornal Notícias se referiu à revolta como “atípica e com origem numa
mão invisível, que fracassou nos seus intentos de desestabilizar o País”. 23 A tese da
“mão invisível” tem sua origem nos tempos da ocupação portuguesa e principalmente
no tempo da luta anticolonial; esta foi modificando seu objeto, porém manteve até hoje
o sentido dado no imaginário social.
19 Devo salientar que essa tese foi contestada por diversos intelectuais e sob enfoques
também diversos. A maioria das respostas encontradas em relação às declarações do
porta-voz do partido Frelimo, vem do mundo dos blogs, o qual nos últimos dez anos tem
se tornado uma arena política de intercâmbio de opiniões bastante massificada entre
políticos e intelectuais moçambicanos e não moçambicanos. 24 Inclusive os próprios
magermane também a refutaram:
“Mão invisível”, é o termo que os nossos dirigentes encontraram para identificar a
origem dos protestos. Na óptica deles o povo sozinho sem o apoio moral de quem
quer que seja, não seria capaz de ter uma atitude similar. No fundo das coisas, eu
entendo como sendo uma desculpa dos seus fracassos e não só, afinal de contas eles
também saíram do povo e lá tem os seus irmãos, amigos e vizinhos… 25
20 Depois das revoltas de setembro de 2010, apareceram outras interpretações, mais
acadêmicas, as quais também fizeram suas contribuições na compreensão dos
acontecimentos, procurando demonstrar um fio condutor entre uma e outra. Aqui
destaco algumas que, junto com propor uma continuidade entre uma e outra revolta,
pretendem questionar as interpretações ideológicas. Assim, por exemplo, o historiador
e docente da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Carlos Quembo, recorreu à
“teoria da frustração relativa”, a qual consistiria em que:
[…] as pessoas não se revoltam porque são pobres, mas sim porque numa situação
de comparação com outras classes sociais ou dentro da mesma classe, elas se julgam
numa situação ou posição de injustiçados e que merecem mais do que aquilo que
lhes é disponibilizado.26
21 De acordo com o autor, existe hoje uma relação ambivalente entre os indicadores
macroeconômicos e os discursos de luta contra a pobreza absoluta acirrada pela
percepção, na população, de não participar dos benefícios desse propalado crescimento
econômico. Por sua vez, o sociólogo Luca Bussotti (2010), também docente da UEM,
partindo de um enfoque similar ao de Quembo, propõe pensar que uma das causas
dessas revoltas poderia ser “uma débil consciência da gestão de risco” por parte das
instituições públicas. Sobretudo na perspectiva de promover instrumentos de
investigação para se antecipar e prevenir a ocorrência de eventos desse tipo. 27
Finalmente, destaco um debate protagonizado por dois antropólogos portugueses
engajados com Moçambique, os dois partilhando, de alguma maneira, uma visão
contratualista e republicana na interpretação dos eventos, no entanto, cada um
por parte das autoridades. O que contou é juntar esforços apenas contra o inimigo
comum que é o governo.30
28 A participação majoritária da juventude e particularmente das mulheres e crianças
nessas revoltas pode ser compreendida pela própria forma como o contexto social é
produzido. Aparentemente é esta a “camada” social que está suportando as
consequências das decisões políticas elaboradas alhures dos seus bairros, redes e
circuitos de sociabilidade. Em muitos casos, são elas que inventam ou engenham o uso e
distribuição do escasso orçamento familiar, incluindo as crianças na angariação de
recursos para o sustento diário. São elas as obrigadas a se confrontar com uma
realidade cotidianamente adversa. Uma realidade que significa muitas vezes uma
contínua desagregação social e familiar; uma realidade que as colocou, ou melhor, as
obrigou a posicionar-se de maneira a dar voz a um descontentamento generalizado que
já fazia parte do cotidiano imediato.
29 Em uma leitura preliminar, esse comportamento social parece insinuar um
direcionamento bastante racional da revolta, a qual parece se distinguir do propalado
“caos social” publicado pela imprensa e sustentado pelas fontes oficiais, que veriam
nessas manifestações grupos de “vândalos e arruaceiros” destruindo apenas o
patrimônio e bens particulares. Sem dúvida, muitos particulares foram vítimas das
ações violentas (entre apedrejamentos dos seus carros ou saqueio das suas lojas,
embora ninguém resultasse ferido por essas ações), assim como a própria população,
produto da violenta repressão policial.31 Porém, se ponderamos no sentido de
identificar a destruição material dos bens que foram atingidos, podemos distinguir, a
simples vista, que estes comportam também bens simbólicos (carros com emblemas
estatais, lojas das empresas tidas como estatais, lojas de estrangeiros identificados
como poder, etc.). Bens simbólicos que nessa leitura preliminar podemos assumir como
representativos da situação de desigualdade imperante e percebida pela população
revoltada. Nesse sentido, essas revoltas conseguiram visibilizar alguns aspectos
interessantes. De todos, na seguinte seção me concentrarei em refletir aquele que diz
respeito à imagem que o estado assume frente a essa população revoltada, segundo a
qual essa instituição se apresenta como uma concorrente predadora e invasiva.
O estado modernizador moçambicano: uma máquina
produtora de exclusão
30 Inspirado na critica de Veena Das e Deborah Poole (2008, p. 220, tradução minha) que
recusam pensar o estado como “forma administrativa racional de organização política
consolidada”, proponho caracterizar esse estado moçambicano, na atualidade, como
um produto híbrido e autoritário, o qual se manifestaria e reproduziria a partir da
simbiose entre várias formas de dominação/governação. Essa configuração atual,
neoliberal, que eleva o discurso da democracia ao melhor estilo republicano, porém
desde o outro extremo é percebida pela população como despótica, combina de modo
simultâneo e eficiente estatismo, descentralização e clientelismo, contestando de
maneira deliberada qualquer tendência que insista em ver nele uma institucionalidade
“precária”, “frágil” ou “em construção”. Ao contrário, se existe algo que caracteriza
essa instituição, por sobre muitas outras coisas, é sua vitalidade e impressionante
voracidade.
“enriquecimento ilícito”, visto muitas vezes como uma manifestação da própria prática
da feitiçaria.
41 Nesse sentido, a circulação tanto de pessoas como de bens ocupa um lugar significativo
no imaginário dessas articulações econômicas. Efetivamente, na atualidade os espaços,
por excelência, onde confrontamos essas formas e sentidos de reprodução social, são os
circuitos comerciais existentes dentro do espaço principalmente periférico da capital.
Agitados e efervescentes espaços de troca, nos quais essas diversificadas formas
econômicas encontrariam seu solo fértil. Todas essas formas, por sua vez, fazendo valer
de maneira simultânea e negociadora seu direito de acesso ao dinheiro. Basicamente,
dentro da lógica racional aprendida, esse acesso ao dinheiro é mediado por relações de
ordem material “quantificáveis”, instaladas em um sistema formal de troca: o mercado.
Essa formalidade também estaria instalada na noção de trabalho e circulação, parceiros
inseparáveis do processo de produção do valor da mercadoria. No entanto, ao
depararmos com a realidade de Maputo, vemos como essas categorias parecem perder
necessariamente o vínculo com esse tipo de lógica, assumindo um caráter menos
mercantil e talvez mais redistributivo, obedecendo a essa chamada “ordem
tradicional”.
42 Essa circulação, por sua vez, não se constitui à margem do mercado. No entanto
precisamos fazer um esclarecimento nesse sentido. A questão à qual me refiro é o fato
de que, apesar de muitas formas de reprodução social se constituírem e desenvolverem
à margem do estado (por exemplo, xitique, fundo solidário, entre outros), estas não
necessariamente se constituem nas margens do mercado. Este último, por sua vez, ao
ser regido apenas dentro da lógica de produção da mercadoria, também produz
invariavelmente suas margens (atividades “não produtivas” como formas de troca,
trabalho comunitário, redes de apoio mútuo, etc.) A diferença está em como o estado da
ideologia mercantil hoje em dia não só tolera, senão que ademais promove o
desenvolvimento de atividades dentro do mercado mal chamado de “informal” e
permite que formas de reprodução econômica “não produtivas”, isto é, que não
produzem lucro, possam atuar e se desenvolver sem prejuízo de serem interditadas. Daí
minha intenção em defini-las, a priori, como “circuitos comerciais de sobrevivência”,
baseados no intercâmbio. Pois essa definição, apenas classificatória, nos possibilita um
ponto de referência inicial.
43 Esse fato não deixa de ser instigante, pois revela que práticas rotuladas de
“tradicionais” para a resolução de conflitos em contextos “modernizantes”, de alguma
forma, constituem aspectos e formas locais necessárias para a sucessão da vida, para a
domesticação do infortúnio (Granjo, 2008e); para a revitalização e manutenção das
alianças, todas elas atuando de forma simultânea e paralela às políticas de estabilização
e reinserção social apregoadas pelo discurso modernizante do estado, além de redigidas
e fundamentadas nas instituições internacionais. Em todas as partes, nos mercados, na
vizinhança, nos chamados “comentários de rua”, encontramos uma multiplicidade de
expressões que parecem não ser apenas uma queixa aflita de pessoas famintas e
moribundas, senão que representam uma diversidade de formas assumidas pela
população para fazer frente a uma persistente condição de profunda exclusão social e
uma complexa situação de instabilidade econômica, a qual parece caminhar e se
desenvolver de maneira paralela ao discurso modernizador não apenas da elite
governante, mas também de uma intelectualidade distante, assentada na segurança que
a cidade de cimento lhe garante.
redistribuir os poucos recursos com que essa população conta para sua própria
reprodução social, frente ao estado e apesar dele.
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NOTAS
1. “Magermane”, “madgermane”, “madjermane”, “madgermans”, são expressões usadas para
designar os antigos trabalhadores moçambicanos que entre 1979 e 1990 foram enviados para as
fábricas da República Democrática Alemã. Sobre sua história e situação vide Guerra Hernandez
(2011).
2. Frelimo, “Frente de Libertação de Moçambique”, movimento que liderou a luta anticolonial e
que desde 1975 está no poder.
3. Este é um dos gritos que os magermane entoavam durante suas marchas pelas ruas de Maputo.
É esse grito que de alguma forma representa a posição dos magermane frente a essa ideia de
passividade defendida por eles em contraposição ao pacifismo defendido pelo discurso oficial, a
qual, por sua vez, parece substantiva, na medida em que relativiza uma condição assumidamente
“intrínseca” (pacifismo) no etos de uma população atingida de forma continua por processos e
políticas de caráter violento.
4. Joseph Hanlon sentenciou em 1997: “Os dados humanos são ainda mais sombrios. Da população
moçambicana dos meados de 80 estimada entre 13 e 15 milhões, 1 milhão morreu, 1,7 milhões
eram refugiados nos países vizinhos (de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados) e pelo menos 3 milhões eram ‘deslocados’, isto é, tinham fugido para outros locais
dentro de Moçambique, em geral à volta de vilas e cidades onde, regra geral, viviam na pobreza
[…] Muitos dos que permaneceram nas áreas rurais deixaram de ter acesso às aldeias, cantinas e
postos de saúde durante anos. São raras as famílias moçambicanas que, de um modo ou outro,
não foram afectadas pela guerra.” (Hanlon, 1997, p. 14).
5. Base de Dados da Ajuda Oficial para o Desenvolvimento a Moçambique. Para saber quais são as
instituições integrantes da ODAmoz vide: http://www.odamoz.org.mz/donor_info?locale=es.
6. Para entender os princípios do centralismo democrático, vide Lenin (1975). O estatuto do
partido Frelimo de 2002, no capítulo III, em torno dos princípios organizativos, estipula como
método de trabalho nas suas letras c, d, e, o seguinte: “c) Nos órgãos, as decisões são precedidas
de livre discussão, caracterizada pela abertura e tolerância em relação aos pontos de vista ou
opiniões divergentes manifestadas pelos membros; d) As decisões dos órgãos superiores são
obrigatórias para os órgãos inferiores; e) Os órgãos superiores do Partido deverão auscultar os
órgãos inferiores quando as matérias que exigem a tomada de posição ou decisão sejam de
interesse geral.” (Frelimo, 2002, p. 13-14). Embora nestes estatutos a expressão “centralismo
democrático” não apareça de maneira explícita, os três artigos mencionados aqui ilustram a
estrutura e funcionamento orgânico do partido.
7. Arnaldo Mendes, vice-presidente da associação dos magermane com a qual trabalhei durante
minha pesquisa de campo.
8. Devido aos limites do texto esses aspectos não podem ser aprofundados aqui. No entanto são
inúmeros os exemplos coletados que fazem referência a essa penetração do partido nos diversos
níveis enunciados. Durante a minha pesquisa de pós-doutoramento pretendo dedicar um
subtítulo a essa questão, pois constitui uma condição sine qua non para entender o projeto de
dominação/governação implementado por esse partido.
9. Comunicação pessoal. Os depoimentos usados neste trabalho possuem caráter anônimo para
preservar a integridade dos informantes.
10. Para compreender o projeto frelimista vide Machel (1975).
11. Em relação ao conceito de “afetação” deve-se considerar que o mesmo faz parte de todo um
discurso desenvolvido durante o período socialista. Peter Fry (2003, p. 294) o refletia da seguinte
maneira: “O ‘livre arbítrio’ do liberalismo deu lugar à noção da ‘responsabilidade’ para com o
estado. A vocação foi abolida em nome do termo onipresente ‘afetação’. A partir da quarta série,
os moçambicanos eram ‘afetados’ a profissões específicas, consideradas do interesse do Estado.”
12. Devo frisar aqui também que é a partir dessa revolta, entre 2008 e 2010, que começarão a
aparecer outras greves, mais setoriais como o caso dos trabalhadores dos caminhos de ferro, os
trabalhadores da empresa de segurança G4S, os desmobilizados de guerra, etc. Antes dessa
primeira revolta só é possível falar de manifestações reivindicativas públicas a partir das
marchas de quarta-feira protagonizadas pelos magermane.
13. É importante esclarecer que as minhas estadias em Maputo aconteceram, a primeira depois
da revolta de fevereiro (novembro de 2008 a março de 2009), e a segunda antes da de setembro
(maio de 2010). Portanto, a reflexões que desenvolvo neste texto seriam o resultado de uma
análise realizada a posteriori, de maneira diacrônica, tentando expor as percepções e
interpretações dos eventos dentro de um contexto mais abrangente, o qual será discutido na
última parte.
14. A manchete publicada pelo jornal Notícias no mesmo dia da revolta anunciava: “Entram hoje
em vigor, nas cidades de Maputo e Matola, os novos preços dos transportes semicolectivos de
passageiros, vulgo ‘chapa’.” Seguidamente explicitava: “Assim, os passageiros que antes pagavam
cinco meticais para percorrerem uma distância de menos de nove quilómetros passam agora a
desembolsar o valor de sete meticais e meio, enquanto os que pagavam sete meticais e meio para
fazer uma distância superior a nove quilómetros passarão a pagar dez meticais. O agravamento
do custo do ‘chapa’ foi decidido semana passada pelo Governo, sob proposta da Federação
Moçambicana das Associações dos Transportadores Rodoviários (FEMATRO), com sustento na
subida dos preços dos combustíveis, e não só […].” (Entram hoje…, 2008).
15. De acordo com o dicionário online de “Moçambicanismos” (Lindegaard, [s.d.]): “chapa (cem)
n. m. ou f. transporte colectivo, semiformal; por extensão, qualquer automóvel que transporte
pessoas a troco de algum dinheiro (de chapa, ‘preço único’, de cem meticais).”
16. Quem realiza as negociações setoriais para fixação do salário mínimo é a Comissão Consultiva
do Trabalho (CCT) de Moçambique, a qual envolve o governo, os sindicatos e os empregadores.
Em 2008 o salário mínimo era em média 1800 meticais ponderados de 10 categorias diferentes.
Em 2010 era de 3600 meticais, calculado a partir de 12 categorias. O custo da cesta básica de um
trabalhador moçambicano é avaliado formalmente em cerca de 1221 meticais por pessoa ao final
do mês. Essa cesta é constituída pelo consumo básico de um cidadão que inclui arroz, feijão,
farinha de milho, amendoim, peixe, vegetais e legumes, pão, óleo, açúcar, carvão vegetal,
petróleo de iluminação, transporte e sabão (excluindo água, luz, telefone, lazer, etc.). Sendo o
agregado familiar médio constituído por cinco pessoas, o custo da cesta básica é de
1221x5=5.229,00 MT (o equivalente a aproximadamente 200 USD) para uma família (Muhate,
2009). Para revisar a evolução do salário mínimo em Moçambique vide Wage Indicator
Foundation (2011).
17. Sob esta expressão – “desenrascar-se” – reúne-se toda uma “engenharia social de
sobrevivência”, sustentada em toda uma lógica de compreensão da realidade enquanto situação
de vida. Uma engenharia cuja dinâmica incorpora relações, mobilidade e circulação como
elementos imprescindíveis para a reprodução social dos sujeitos em situação de precariedade.
18. Em 2006 Yussuf Adam, historiador moçambicano, fazia referência, entre outras coisas, a essa
situação. Segundo Adam (2006, p. 381-382): “[…] a actual estrutura social deriva das opções de
desenvolvimento que conduziram à emergência e consolidação de um novo tipo de classe social
que tem um suporte económico apoiado em três pilares: cunha (redes políticas e de amigos),
candonga (extorsão comercial sem nenhum respeito por custos, impostos, investimento) e chapa-
cem (transporte). O topo da pirâmide social pós-colonial é ocupado pela burguesia CCCC.”
19. Relacionado a esse ponto, não é preciso ir nos bairros periféricos para perceber que essa ideia
dos governantes serem os “donos” dos serviços e das empresas públicas faz parte substancial da
imagem do poder do partido Frelimo no senso comum maputense. As medidas paliativas tomadas
pelo governo para “apaziguar” o descontentamento popular, nas duas oportunidades, foram na
forma de subsídios que o estado deu aos fornecedores dos respectivos serviços, e assim evitar o
aumento do preço. Essas medidas, no entanto, aparecem no imaginário da população não tanto
como soluções e mais como uma manifestação de como funciona o sistema de prebendas e
favores entre esses “donos”.
20. Ver Macamo (2008).
21. Comunicação pessoal.
22. Cabe destacar que os SMSs chamando à greve eram de conhecimento prévio das autoridades,
portanto deve-se supor que estas devem ter atuado de maneira incrédula, duvidando da
capacidade convocatória que essas mensagens teriam.
23. Cf. Araujo (2008) e Serra (2008b).
24. Essa prática discursiva parece-me um objeto de pesquisa muito interessante, mas não será
abordado neste texto; portanto, me limitarei a indicar as três respostas que considerei mais
relevantes: Paulo Granjo (2008d), Patricio Langa (2008) e, por último, Nelson Livingston (2008).
25. Comunicação pessoal.
26. Esta proposta de análise foi publicada no blog do sociólogo Carlos Serra (2010).
27. Dessa análise destaco o seguinte parágrafo: “[…] Em ausência desses meios de investigação,
torna-se bastante complicado apurar quem é que esteve por detrás das manifestações. Portanto
só vai ser possível fazer algumas, simples ilações. A primeira hipótese é que se trate duma
manifestação verdadeiramente espontânea. Hipótese possível, mas que tem uma lacuna: ou seja
que os que se fizeram à rua, rapazes ou pouco mais, dificilmente têm a capacidade de
protagonizar movimentos populares tão significativos e tão violentos, sobretudo num país como
Moçambique. A segunda é que haja uma mão ‘invisível’, embora, neste caso, tenhamos várias
subordinadas, especialmente duas. Por um lado, pode ter havido uma planificação de entidade
oficialmente organizadas, por exemplo sindicados ou partidos da oposição. Só que, além da
supracitada fraqueza dos uns e dos outros, seria pelo menos estranho que essas forças não
assumissem abertamente a responsabilidade de quanto acontecido, uma vez que o alvo principal
das manifestações foi exactamente o Governo. Por outro lado, temos a hipótese ‘do comploto’,
que foi levantada pela primeira vez pelo Ministro do Interior […]”. (Bussoti, 2010).
28. “Asiáticos”, nesse sentido, se refere aos cidadãos paquistaneses e indianos. Em outro texto
Omar Thomaz (2004) faz referência à desconfiança e sentimentos de suspeita da população
moçambicana em relação a esse grupo social específico.
29. Nas extensas e superpovoadas zonas circundantes à cidade de cimento, a figura do
“nigeriano” é objeto de desconfiança e medo generalizado, tudo isso acirrado por uma serie de
boatos que associa esse grupo ao tráfico de drogas e órgãos humanos. Associação na qual subjaz
um obscuro vínculo com a prática da feitiçaria. Nesse âmbito, recomenda-se a leitura do
ilustrativo relatório elaborado pela Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (2009), em torno ao
tráfico de órgãos humanos: Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. No entanto,
parece presumível pensar que essa associação da feitiçaria com a figura do “nigeriano” tenha
uma origem alhures da própria cidade de Maputo. Muitos dos boatos parecem ter a sua origem na
África do Sul, sendo logo “transportados” para a capital moçambicana através do continuo fluxo
migratório que existe na região.
30. Comunicação pessoal.
31. Em 2008 a Liga de Direitos Humanos de Moçambique fez um balanço das vítimas humanas da
revolta provocadas pela polícia: “Por conta dessa violência, num diagnostico feito pelo Hospital
Central do Maputo, excluindo outros organismos hospitalares que também socorreram as
vítimas, 93 feridos deram entrada no HCM. 58 apresentavam ferimentos provocadas por balas de
fogo no dia 5 de Fevereiro e 26 no dia 6. Houve também 18 vítimas de intoxicação, 17 de agressões
físicas, 15 de queda e 17 não especificados. Em termos de idades, as vítimas tinham entre 5 a 72
anos de idade. Dos casos de baleamentos acontecidos entre dia 5 e 6 de Fevereiro, a Liga dos
Direitos Humanos recebeu 6, sendo que alguns foram devidamente reportados pelo médico
legista do Hospital Central de Maputo.” (Duma, 2008). Em 2010, o balanço foi ainda pior, com o
resultado de dez vítimas mortais e 443 feridos, segundo um balanço divulgado pelo Ministério da
Saúde de Moçambique. Foram ainda detidas pelo menos 142 pessoas (Caos em Maputo, 2010).
32. Definição entendida na perspectiva que Miliband (1969, p. 49) propôs: “What ‘the state’ stands
for is a number of particular institutions, together, constitute its reality, and which interact as
'parts of what may be called the state, system.”
33. Esse aspecto se menciona, levando em consideração também as críticas oriundas dos próprios
doadores internacionais em torno do “mau desempenho” estatal nesse sentido, e que diz respeito
à incapacidade, por parte do próprio estado, de dar cobertura integral às populações das zonas
rurais e isoladas do país. Essa crítica pode ser resumida como segue: “No entanto, parece-nos que
o discurso do governo moçambicano é pouco convincente, uma vez que, se um verdadeiro esforço
descentralizador estivesse sendo posto em práctica, este deveria alterar também a distribuição
das receitas e as competências tributárias, assim como se esforçar na capacitação dos quadros ao
nível local.” (AfriMAP, 2009, p. 17). Contudo, essa critica nos parece contraditória e insuficiente,
pois se concentra apenas em manifestar um descontentamento de parte das organizações
internacionais, as quais, por sua vez, ao mesmo tempo vêm exigindo processo de desregulação
econômica para incentivar a inversão privada.
34. Para uma reflexão pormenorizada sobre esse assunto vide Guerra Hernández (2011,
p. 103-106).
35. Se levássemos em conta apenas o período entre a luta de libertação (começada em 1964) e o
tratado dos acordos de paz em Roma, em 1992, veremos que o período de entreguerras, com
relativa paz, não passou de dois anos (1975-1976). Por outro lado, aspectos de ordem natural
desempenhariam um papel importante nos processos de mobilidade social na região. Dentro da
literatura, são muitas as referências em torno da ecologia da região sul moçambicana, a qual é
caracterizada como relativamente propensa a temporadas de cheias e secas contínuas de longa
duração. Em 2009 foi publicado um documento de trabalho, apresentado no Defencil como
motivo do V Seminário de Defesa Civil, em São Paulo. Nesse documento foi registrado que
Moçambique sofreu dez grandes secas e 20 cheias entre 1956 e 2008 (em 52 anos, a cada 1,7 anos
acontecia alguma catástrofe natural), somando um total de 102 mil mortos e 25,4 milhões de
afetados. (cf. Matusse; Barros; Barros, 2009). Se pensarmos essa situação como histórica e
culturalmente enraizada no imaginário da população, podemos também situar essa dinâmica de
reprodução social como fazendo parte do desenvolvimento cotidiano dos habitantes do sul.
36. A bibliografia em torno desses temas é profícua. Aqui recomendo apenas algumas que
considero significativas pela sua abrangência e perspectiva de análise. Para o período colonial
vide Penvenne (1993), Covane (2001), Negrão (2005). Para o período socialista pós-colonial, vide:
Cabaço (2010), Adam (2006, 2005), Nunes (2000).
37. O produto interno bruto (PIB) – taxa de crescimento real: 7,1% (2010 est.) 6,3% (2009 est.) 6,8%
(2008 est.). Fonte: The World Bank (2013).
38. Neste ponto deve-se destacar que apesar da dívida externa moçambicana ter-se reduzido de
maneira contínua desde 1987, a política de doações econômicas por parte da ODAmoz tem
tornado o país mais dependente das mesmas doações. Para uma análise pormenorizada desses
aspectos vide Grupo Moçambicano da Dívida (2006).
RESUMOS
Nos dias 5 de fevereiro de 2008 e 1 e 2 de setembro de 2010 Maputo foi o cenário de duas revoltas
populares de grandes proporções, cada uma delas motivadas pelo descontentamento
generalizado da população frente a reajustes econômicos, impostos pelo governo, que
aumentariam significativamente o custo da vida dos maputenses. Essa situação mobilizou tanto a
elite política como intelectual a desenvolver apressadamente algumas hipóteses que pudessem
explicar esses eventos. Neste texto pretende-se contrastar essas hipóteses para, em seguida,
propor uma análise que possibilite um entendimento mais abrangente a respeito das causas que
teriam levado à população a sair às ruas. Parte-se da constatação que o estado seria o produto
histórico de violentos conflitos, cujas sequelas podem ser percebidas no receio e desconfiança
que a população teria desenvolvido, e a partir da qual o estado seria percebido menos como um
facilitador e mais como um concorrente invasivo e predatório.
In 2008, at February 5th and in 2010, at September 1st and 2nd, Maputo was the scenery of two
popular uprisings of major proportions, each one was motivated by general discontent against
the economic readjustments, the government tax, that would increase significantly the living
costs of maputenses. This situation mobilized the elite, both political and intellectual, to
hurriedly develop some hypotheses that could explain these events. The intention of this paper is
to contrast these hypotheses, thereafter, to propose an analysis that will enable a more omnibus
understanding about the causes that would had led the people to the streets. Therefore, the
departure point is the assertion that the State would be the historical product of violent
conflicts, whose consequences could be perceived on the fear and distrust that the people
developed, and from which the State would be less like a facilitator than a competitor invasive
and predatory.
ÍNDICE
Keywords: informal sector, Mozambique, postcolonial State, social uprising
Palavras-chave: economia informal, estado pós-colonial, Moçambique, protesto social
AUTOR
HÉCTOR GUERRA HERNÁNDEZ
Universidade Federal do Paraná – Brasil
Combinando heterogeneidades em
espaços globais de mobilização. Os
casos do Fórum Social Mundial e
GlobalSquare
Geraldo Adriano Godoy de Campos, Carminda Mac Lorin e Raphaël Canet
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 20/12/2013
Introdução
1 O atual ciclo de proliferação global das lutas de resistência e de indignação convoca a
uma reflexão acerca das dinâmicas políticas em curso. Os processos de mobilização
política são facilmente contextualizados perante questões particulares de cada país, ao
mesmo tempo em que demonstram vários elementos comuns, do ponto de vista das
agendas, das práticas políticas e da conformação dos atores envolvidos. Isso permite
pensar em um processo mais amplo de resistências e de busca por alternativas.
2 Quais os espaços que esses atores encontram atualmente para trocarem experiências,
gerarem articulações e ações políticas conjuntas?
3 O presente artigo1 tem como objetivo a análise transversal de dois espaços globais de
mobilização política, que não somente refletem as dinâmicas e disputas que
ultrapassam as fronteiras nacionais, mas também ajudam a construir a própria noção
de “global” como campo de ação política: Fórum Social Mundial (FSM) e GlobalSquare
(GS).
20 A fim de sair dessa lógica de confronto que transformou os espaços públicos das cidades
onde ocorriam esses encontros em grandes campos de batalha, as organizações da
sociedade civil mundial decidiram inovar. Inventado no Sul, em berço brasileiro, o
Fórum Social Mundial (FSM) emergiu como uma nova forma de mobilização
sociopolítica (Cassen, 2003; Leite, 2005; Whitaker, 2006), que passou gradualmente de
uma postura reativa a uma propositiva (Vivas, 2008), da antimundialização
21 O ano de 2011 foi marcado por indignação e revolta. Tudo começou na Tunísia, no final
de dezembro de 2010, com a autoimolação de Mohamed Bouazizi. O jovem se tornou o
símbolo de toda uma geração condenada à marginalização social, apesar de sua
formação e diplomas (Badie, 2011). As chamadas “primaveras árabes” nasceram e um
vento de revolta sacudiu as autocracias da região, derrubando alguns ditadores (Ben
Ali, Mubarak, Kadhafi), desestabilizando regimes (Iêmen, Jordânia, Barein, Kuwait) e
forçando vários outros à concessão de reformas (Marrocos, Argélia, Omã, Arábia
Saudita).
22 As imagens dos povos árabes desestabilizando suas oligarquias deram a volta ao mundo.
Em certo ponto, alguns no Norte começaram a ponderar que, se as ditaduras
estabelecidas pela força das armas estavam caindo no mundo árabe, o abismo social
promovido por força dos bancos e dos mercados financeiros poderia ser desafiado. Os
primeiros Indignad@s apareceram na Espanha. Seguidos por uma manifestação de
dezenas de milhares de pessoas organizada em Madri em 15 de maio 2011, decidiram
ocupar o espaço público e se instalaram na praça Puerta Del Sol. Ainda inspirados pelas
ocupações espontâneas dos espaços públicos no mundo árabe, com o peso simbólico da
Praça Tahrir, no Cairo, os Indignad@s pretenderam demonstrar sua determinação em
serem, eles mesmos, os agentes da mudança, rejeitando as elites dirigentes que, a seus
olhos, teriam perdido toda a legitimidade. A iniciativa se multiplicou e as mobilizações
se espalharam pela Europa (Portugal, França, Grécia, Grã-Bretanha, Itália, Bélgica…) e
para outros lugares (como em Israel e na América do Norte). A dimensão planetária
dessa onda de contestação se concretizou em 15 de outubro de 2011, com a jornada
mundial dos Indignad@s, que levou a protestos em mais de 950 cidades em 82 países
(Hopquin, 2011). Na América do Norte, os atores dessas mobilizações inovaram,
principalmente com a iniciativa Occupy Wall Street, que teve início em 17 de setembro
de 2011, em Nova Iorque, para logo em seguida se propagar para mais de 100 cidades
dos Estados Unidos e também no Canadá (Vancouver, Toronto, Ottawa, Montreal).
Turquia e Brasil são dois países que entram um pouco mais tarde nesta onda (em 2013),
com significativas manifestações nas quais várias das características presentes no atual
ciclo global de lutas fizeram-se presentes (Judensnaider et al., 2013; Movimento Passe
Livre São Paulo, 2013; Rolnik, 2013), guardadas, evidentemente, as especificidades de
cada contexto.
23 Com efeito, a receita propagada pelos ativistas desta última onda reverbera elementos
do discurso político presente no momento de surgimento do FSM, ainda sob o impacto
de Seattle: valorização da abertura, a horizontalidade das relações sociais e a
diversidade constitutiva do movimento; inovações e criatividade espontânea de ações
políticas, rejeição das formas tradicionais de enquadramento das mobilizações sociais
(partidos políticos, sindicatos) e das lideranças, acordo sobre a importância do debate
coletivo e da prática de uma democracia participativa no interior do movimento.
24 É essa proximidade relativa à concepção de mudança social que permite insistir nas
ligações entre os movimentos dos Indignad@s e os altermundialistas. Eles
compartilham uma visão da política que nutre toda uma geração de jovens ativistas
(Pleyers, 2004). Tal reapropriação do espaço público como expressão clara de uma
insatisfação a respeito do sistema existente parece nos remeter à primeira onda de
mobilizações contra a mundialização neoliberal. É apenas uma aparência, porque existe
uma diferença fundamental entre as revoltas sociais dos anos 1980 nos países do Sul e
essa que observamos atualmente ao redor do mundo. Enquanto as primeiras aparecem
como eventos localizados, contextualizados, sem ligação (evidente) entre si, as
segundas, ao contrário, possuem claramente uma dimensão mundial. As chamadas
“primaveras árabes” inspiraram os Indignad@s espanhóis, que inspiraram os
protagonistas de Wall Street, que inspiraram o Occupy Montreal e assim por diante.
Problematização teórico-conceitual: uma antropologia
dos espaços políticos
25 No que tange à abordagem teórico-conceitual do presente artigo, a proposta de uma
“antropologia dos espaços políticos globais” convoca a uma reflexão sobre um lugar de
enunciação de um discurso (o “discurso antropológico”) no qual o objeto e o sujeito
encontram-se no mesmo plano epistemológico (Viveiros de Castro; Sztutman, 2008).
Logo, uma antropologia dos espaços de mobilização deve considerar, certamente, as
maneiras pelas quais cada configuração espacial organiza as possibilidades para
manifestação do pensamento e da ação que fazem da alteridade uma fonte de potência
política transformadora.
26 Nas ciências sociais, a noção de espaço esteve atrelada a variadas concepções que
dialogam com autores ligados a distintos campos teóricos e com diferentes horizontes
disciplinares, notadamente a geografia crítica e a sociologia, que se interessaram pela
territorialidade das mobilizações sociais (Auyero, 2005; Sewell Jr., 2001; McAdam;
Tarrow; Tilly, 2001; Routledge, 1993; Soja, 1989).
27 Em uma palestra proferida em 1967 – publicada posteriormente com o título “De outros
espaços” (Foucault, 1986) –, Foucault afirma que se a obsessão do século XIX era a
história (o tempo), a presente época seria, sobretudo, a “época do espaço”. Cientes de
que a espacialidade tem um papel importante no projeto filosófico de Foucault, importa
notar que ele nunca faz referência a uma suposta homogeneidade ou a algo dado, vazio
de significados:
O espaço no qual vivemos, que nos atrai para fora de nós mesmos, no qual a erosão
de nossas vidas, nosso tempo e nossa história ocorre, o espaço que nos rasga e nos
rói é também, em si mesmo, um espaço heterogêneo […] (Foucault, 1986, p. 23, grifo
nosso, tradução nossa).
segundo sinaliza Massey (2005, p. 99, tradução nossa), “a atenção com conceitualizações
implícitas de espaço é crucial também em práticas de resistência e de construção de
alternativas”.
34 Nesse sentido, a oposição entre espaço e movimento está ligada a questões políticas
bem especificas, como a possibilidade de formulação de estratégias conjuntas de ação,
documentos políticos coletivos, entre outras iniciativas que caibam nos princípios do
FSM (segundo os quais, por exemplo, ninguém fala em nome do fórum, somente como
“participante”).
35 Já em 2002, após a realização do segundo Fórum Social Mundial, Chico Whitaker (2002,
p. 238, grifo nosso), um de seus idealizadores, reforçava a distinção entre o FSM
percebido como movimento ou como espaço: “No fundo, o Fórum não é uma instância,
um movimento. Não pretende ser nenhuma Internacional nova, nem ser uma
organização com uma direção. Pretende ser um espaço.”
36 É interessante notar que a perspectiva do fórum como espaço associa-se à ideia de que
ele é um método, em oposição à compreensão que o enxerga como um movimento (que,
por sua vez, não raramente é associada a uma Internacional). A intenção, ao afirmar o
fórum como espaço caracterizado de tal forma, é de renovar a dinâmica das
transformações sociais rompendo com a lógica vertical e hierarquizada mais tradicional
que implica a definição de uma linha de ação comum definida por uma vanguarda
segundo a qual deveriam se alinhar as estratégias de ação de diferentes movimentos
sociais (Canet, 2010).
37 Mas são muitos os autores que consideram fundamental ultrapassar a dicotomia que
caracteriza a definição do FSM, como Teivanen (2004, p. 18, tradução nossa), que
sustenta a necessidade de “superar a rígida dicotomia movimento/espaço se
pretendemos entender o papel do FSM”. Nessa perspectiva, o fórum poderia, e deveria,
conciliar as duas posições para dar voz a ações concretas, sem que, para tanto, se torne
um movimento tradicional, um partido político ou uma nova Internacional.
38 O próprio Whitaker (2013) retoma a pergunta, nos meses que antecedem a realização do
FSM em Túnis, em um texto cujo próprio título ostenta a indagação: “Fórum Social
Mundial: espaço ou movimento?” Nesse texto, percebe-se uma perspectiva que rompe
com a dicotomia apresentada inicialmente, aceitando a ideia de que o FSM pode ser
visto, simultaneamente, como espaço e movimento, em uma “relação de
complementariedade, em que as partes não se misturam nem se dissolvem uma na
outra”.
[…] continuaríamos a criar (e a multiplicar) “espaços”, como instrumentos
importantes na luta pela superação do neoliberalismo, ao mesmo tempo que
disporíamos de um “movimento” que definiria suas próprias estratégias de luta e
suas ações específicas para que essa superação fosse efetiva. (Whitaker, 2013).
39 Há, por outro lado, argumentos fortes que condicionam a definição da dicotomia
espaço/movimento à conjuntura política global, o que faz muito sentido, pois não parte
de uma identidade definida a priori para uma determinada invenção política, mas
permite que ela vá se adequando às necessidades colocadas pelas lutas em curso (como
foi o caso durante a guerra no Iraque e a ocupação da Palestina, ou durante a crise
econômica de 2008).
40 Sem dúvidas, há uma extensa bibliografia e o tema tem sido objeto de acalorado debate
na última década. Mas o propósito de trazer, parcialmente, o debate à tona relaciona-se
com o atual momento político global que aparenta demandar um certo grau de
47 Acompanhando a trajetória do Fórum Social Mundial, é possível notar que ele vem se
reinventando reflexivamente por meio de um esforço profundo de conexão com
temáticas e regiões do planeta identificadas, em cada momento, como centrais para a
luta política e a resistência ao capitalismo. Assim, o fórum apresenta-se como uma das
fontes de legitimidade para determinadas lutas, ao mesmo tempo em que é redefinido
por elas. Não seria diferente com relação às primaveras árabes e os “novos
movimentos”.6
48 Foi assim com a guinada ecoterritorial e as lutas indígenas. A incorporação do enfoque
ecológico, territorial e indígena, como instância discursiva e como campo de ação
política na América Latina, particularmente após o Fórum de Belém, em 2009, que
reuniu mais de 120 mil pessoas, foi decisivo para posicionar o tema do “bem-viver”,
alinhado ao pensamento indígena da cosmovisão andina, que serviu como componente
para uma série de teorizações que problematizam o neodesenvolvimentismo no
continente.
49 Chico Whitaker (2012, tradução nossa), em seu artigo “Novas perspectivas no processo
do Fórum Social Mundial”, explicita algumas aproximações entre o FSM e os chamados
“novos movimentos sociais”, destacando que o desejo de construir uma nova cultura
política, com a correlata necessidade de mudança no interior das práticas, encorajando
horizontalidade, diversidade, cooperação e busca pelo consenso está claramente em
sintonia com os tempos atuais: “[…] são novos tipos de ação mas, de fato, muito
próximas das intuições dos promotores do FSM, como abertura, organização horizontal
e respeito pela diversidade, repúdio das lideranças e aprendizado mútuo”.
50 É possível dizer que há um movimento duplo. De um lado, setores que participam
tradicionalmente do FSM (e que estiveram envolvidos em sua própria concepção), e que
são do Conselho Internacional, buscam uma conexão mais direta com os novos
movimentos. Da mesma forma, há participantes dos novos movimentos que acreditam
que o FSM é um espaço importante e até que pode “ser disputado”.
51 Porém, tal disposição de aproximação não é homogênea e encontra resistências dos
dois lados. Há setores, especialmente ligados aos partidos e movimentos da esquerda
mais tradicional, que criticam a “recusa radical da representação” e a ênfase no papel
das ferramentas tecnológicas no processo de mobilização política. Em uma atividade de
preparação para o Fórum Social Mundial de 2013, realizada em São Paulo, esse debate
59 Por fim, apesar de não termos condições de explorar a questão com o cuidado que ela
merece, é imprescindível dizer que o debate sobre o tema geracional (o conceito de
“geração” como categoria política) voltou a ganhar força no FSM de 2013. Ficou
evidente o desafio nas tentativas de aproximação com indivíduos ligados aos novos
movimentos, que está relacionado à necessidade de uma “ponte geracional”, nos
marcos da complexidade apontada por Berardi (2007, p. 15, tradução nossa):
O problema da transmissão é enormemente delicado, complicado. Não pode ser
reduzido a um problema de transferência de conteúdos da memória política (a
historia da resistência passada, etc.). Não se pode reduzi-lo a um problema de
transferência intergeracional de “valores”, porque isso é inevitavelmente moralista
e os valores não significam nada fora das condições sociais, técnicas,
antropológicas, dentro das quais se modela o comportamento humano.
60 Para o autor, a “transmissão intergeracional” não está baseada na transferência
mecânica de noções, memórias, mas na processo de “ativar autonomia dentro de um
formato cognitivo transformado”.
Lógicas do GlobalSquare
longo dos últimos dois anos (Tunísia, Egito, Senegal, Marrocos, Espanha, Chile, EUA,
Québec…). (GlobalSquare, 2012, tradução nossa).
65 Nos discursos dos diferentes atores do GlobalSquare, fica claro que a abertura de um
espaço no seio de um outro já reconhecido mundialmente representa, em seu ponto de
vista, uma possibilidade de existir publicamente, desejando compartilhar com os
participantes do FSM as experiências adquiridas, na escala local, nas praças ocupadas
(squares) (Holmes, 2013). GS propõe portanto um lugar de reconhecimento mútuo entre
aqueles que aderiram às lógicas renovadas de ocupação dos espaços:
Nesse sentido, GlobalSquare se tornou para o FSM mais do que um grupo, um
espaço […] Uma praça pública real dentro do campus. Ao mesmo tempo, nós
tínhamos um ponto de referência, onde as pessoas que queriam se envolver conosco
saberiam onde nos encontrar. (Rogers, 2013b, tradução nossa).
66 Vale notar que a utilização da ideia de espaço ganha, nesse contexto, outra conotação.
67 Evidentemente, incorrer-se-ia em imenso equívoco caso se ignorasse que a tática de
ocupação de espaços públicos não começou com os movimentos do século XXI, estando
presente, inclusive, nos movimentos indígenas e camponeses da América Latina há
muito tempo.
68 Mas tal ressalva não impede que se chame a atenção para o fato de que a associação
entre as ideias de “espaço” e “território” passa a ser significativa para esses
movimentos, especialmente como forma de resistência às várias formas de privatização
e militarização do espaço público das últimas décadas. Não implica somente a
percepção do espaço, como encontro das diferenças ou plano de articulações. Sublinha-
se, como dito anteriormente, o fato de que os movimentos da última onda possuem uma
relação crucial com a espacialidade, tanto do ponto de vista de sua formulação
discursiva, como de suas táticas de ação política. Os fenômenos Occupy e Indignad@s
aparecem em um momento no qual lugares públicos estão se tornando cada vez mais
raros e controlados, o que faz com que os lugares sejam, portanto, ao mesmo tempo “o
terreno e os desafios das políticas de contestação” (Auyero, 2005, p. 130, tradução
nossa).
Reforçar a cultura política participativa: um desafio metodológico
69 Desde sua criação em 2001, cada edição do FSM inova do ponto de vista da sua
metodologia, a fim de colocar em prática seu ideal de horizontalidade e de estimular a
transformação social pela base. O princípio de autogestão teve como efeito favorecer a
participação mais ativa da parte de diferentes atores presentes que têm,
progressivamente, se apropriado mais do fórum no âmbito da escolha de seus temas, da
gestão de suas oficinas e da expressão de suas conclusões por uma multiplicidade de
propostas. Por mais que um fórum possa propor temáticas “orientadoras” em
determinadas ocasiões, na medida em que as discussões ocorram em atividades auto-
organizadas, o que acaba determinando os assuntos e enfoques é a própria agenda dos
participantes.
70 Contudo, o fato de o próprio processo organizacional do FSM não ser completamente
autogestionado faz com que surjam críticas sobre o caráter democrático e transparente
de sua organização.
71 Os efeitos dessa cultura política participativa podem ser observados em vários aspectos
como, por exemplo, na mudança ocorrida na produção de diagnósticos sobre a situação
global. Nas primeiras edições do fórum, por exemplo, eram esperadas as palestras dos
intelectuais cosmopolitas que condensariam a conjuntura global para os participantes.
A partir da proliferação das atividades auto-organizadas, é importante notar que as
análises de conjuntura, cruciais para sedimentar terrenos comuns aos processos de
resistência, não deixaram de ser feitas. Elas apenas assumiram uma dinâmica de
produção cognitiva mais coletiva e descentralizada.
72 Um outro espaço crítico que se desenvolveu de alguma maneira à margem do FSM, mas
atrelado a ele, desde suas origens, é o Acampamento Intercontinental da Juventude
(AIJ).
73 Com 2 mil pessoas na primeira edição em 2001, o acampamento cresceu rapidamente.
Durante a edição de 2005, em Porto Alegre, o acampamento, situado no coração do
lugar onde se desenrolaria o fórum, acolheu mais de 35 mil pessoas. O AIJ tem sido um
laboratório de experimentações políticas e de prática dos princípios de autogestão em
uma perspectiva de solidariedade global (Dubois; Gerin, 2010).
74 Uma reflexão mais atenta à dinâmica do acampamento como espaço de mobilização é
importante justamente pela relação de autonomia e relativa exterioridade que manteve
ao longo de sua existência. O acampamento coloca em contato dois pontos
teoricamente relevantes para a discussão: em primeiro lugar, ele reposiciona o plano
geracional como categoria política, ao problematizar o conceito de juventude e ao
recuperar a ideia de “nova geração política” e, em segundo lugar, ele faz do conceito de
espaço um elemento definidor de sua identidade como experiência política (Fischer;
Corrêa; Amaral, 2007, p. 14-15).
[…] Além de possibilitar a participação no FSM, o Acampamento cria uma dinâmica
autônoma e inicia a construção de uma identidade própria, muito vinculada ao
conceito de espaço. Nas atividades formativas, coordenadas pelo COA, a categoria
“espaço” passa a ter preferência nos debates e leituras. […] esse enfoque do espaço
foi determinante para as demais ações da gestão, como reciclagem, comercialização,
circulação, segurança etc. Os estudantes de arquitetura trouxeram uma noção de
espaço para além da ocupação, trabalharam com a idéia de espaço como conceito,
trazendo experiências de bioconstrução para as estruturas físicas do Acampamento,
pensando na dinâmica de ocupação dos espaços das barracas e espaços de
atividades, vias de circulação, infra-estrutura para alimentação, banheiros,
reciclagem de lixo, entre outras práticas.
Rumo à horizontalidade reivindicando o ponto de vista do indivíduo
mesma e descobrir-se sujeito, em busca de se constituir como ator livre por meio da luta
por seus direitos:
A organização social […] que chamamos de globalização não pode mais encontrar
em si mesma os meios de sua recuperação. É ‘de baixo’, de um chamado cada vez
mais radical e apaixonado ao indivíduo e não mais à sociedade, que nós
encontraremos a força suscetível de resistir a todas as violências. (Touraine, 2005,
p. 34, tradução nossa).
77 Desse modo, a crítica dirigida ao FSM pelos participantes do GlobalSquare deixa
transparecer uma dicotomização das perspectivas dos atores individuais perante as
instituições (geralmente chamadas “organizações”) e o desafio de coexistência colocado
para ambos, do ponto de vista de sua acomodação no interior dos espaços criados:
Um de nossos primeiros obstáculos era que, para propor atividades no fórum a
pessoa tem que ser parte de um grupo, não somente um indivíduo. Para superar
isso, aqueles envolvidos no Occupy, 15M e movimentos similares decidiram formar
um grupo chamado GlobalSquare. Não é uma organização, simplesmente um nome
para um grupo aberto, criado especificamente para nos permitir participar
plenamente no processo do FSM. (Rogers, 2013a, tradução nossa).
78 Nesse contexto de luta pelo reconhecimento do indivíduo soma-se também a questão da
exigência de horizontalidade (Sitrin, 2006, 2012) e do deslocamento para níveis
decisórios cada vez menores (o já mencionado “principio de subsidiariedade”), ideal
compartilhado pelas duas iniciativas aqui estudadas.
79 A leitura dos relatórios escritos na sequência do FSM 2013 por várias pessoas envolvidas
no GlobalSquare deixa entrever que a horizontalidade ainda representa um desafio, que
está intimamente ligado aos vários espaços de mobilização atuais.
80 Um relato que aparece com frequência nos textos analisados discorre sobre uma
iniciativa que expressa bem os argumentos apresentados. Durante o encontro do
Conselho Internacional (CI) do FSM (que ocorreu logo após o último Fórum em Túnis),
um grupo de pessoas que tinha participado do GlobalSquare realizou um gesto
simbólico eminentemente espacial (vale lembrar que não se trata de um espaço aberto
e participativo, mas apenas reservado aos membros do conselho). O grupo se lançou a
uma ação direta pela redisposição da sala onde ocorria a reunião, apostando na
influência que a organização física dos elementos em um espaço pode ter sobre as
dinâmicas relacionais em questão:
Depois de um primeiro dia de debate hierarquicamente estruturado, no final da
tarde alguns participantes do GlobalSquare […] rearranjaram as cadeiras, de um
formato de seminário, para uma disposição circular. Esse simples ato deu à reunião
do segundo dia um caráter muito mais horizontal. (Rogers, 2013b, tradução nossa).
81 Pode-se dizer que, do ponto de vista analítico, o exemplo diz mais sobre a “percepção
da horizontalidade” por parte dos ativistas do que sobre a horizontalidade em si
mesma. Contudo, esse ato simbólico revelou a presença de uma lógica hierárquica que
muitos membros do CI também abominavam. No entanto, não se pode deixar de dizer
que o desafio da horizontalidade não está resolvido também internamente no
GlobalSquare, com sua busca de consenso para a tomada de decisões (durante a
preparação e no próprio local em Túnis) e na busca por um posicionamento simbólico
comum. Essa dificuldade se traduz nas numerosas horas de encontros dedicados à
discussão sobre o procedimento, como sugere Dani Seco (2013, tradução nossa): “Nas
assembleias e oficinas, havia muita conversa sobre facilitação e questões de linguagem,
não tanto sobre conteúdo real.” Rogers (2013b, tradução nossa) vai na mesma direção:
“De fato, nosso intercâmbio era mais sobre práticas, experiências e concretamente
organização para o FSM, do que a definição conjunta de objetivos e visões para o
futuro.”
82 Assim, se o FSM sofre críticas, o GlobalSquare também não nasceu livre de problemas e
contradições. Uma dessas contradições diz respeito ao papel ocupado pelos
“facilitadores” em um processo que se proclama radicalmente horizontal.
83 Trata-se de uma ambição de realização de política prefigurativa que eventualmente é
assumida em um exercício de autocrítica feito pelos envolvidos no GlobalSquare, que
admitem que o processo é parte integrante da ação realizada: “Nós nos reunimos
baseados nas experiências das quais somos oriundos e não onde pretendíamos chegar.
Mas isso não é uma crítica, é uma observação.” (Rogers, 2013b, tradução nossa).
84 A retórica presente nos documentos produzidos no GlobalSquare, durante e depois do
FSM 2013, deixam transparecer, de um lado, o desejo de criar coletivamente um espaço
(virtual no início, mas físico durante o FSM) aberto à pluralidade das perspectivas e
horizontal. Mas, por outro lado, observam-se práticas que se desviam da idealização
pensada para o espaço, limitado ainda pela utilização de metodologias experimentais e
pelos ambientes nos quais se opta por investir.
Conclusão ou “por uma epistemologia do paradoxo”
85 Um olhar antropológico sobre os processos e espaços políticos de mobilização pode
contribuir enormemente para descortinar múltiplas possibilidades de práticas
prefigurativas e, ao fazê-lo, acompanhar transformações importantes nos modos
contemporâneos de subjetivação política. Além disso, agrega novos elementos
metodológicos para o estudo da esfera global como campo de ação política.
86 No presente artigo, buscou-se identificar traços de duas iniciativas que esboçam
mudanças na forma de perceber a mobilização social.
87 Os desafios que estão colocados para o estágio coevo das articulações internacionais dos
movimentos sociais alimentam a sensação de que seguimos flutuando no que Bensaid
(2013, p. 39) caracterizou (ao falar da retórica altermundialista) como “a
indeterminação do possível”, quando “pressentimos que alguma coisa parece querer
nascer, uma coisa da qual percebemos apenas os contornos e, sobretudo, cujos meios de
atingi-la ignoramos”.
88 Não se trata, portanto, dos movimentos sociais de décadas atrás, que enxergavam os
objetivos com muita clareza e que, a partir disso, definiam seus mecanismos de ação.
Constata-se a presença de fenômenos que se identificam como espaços pela
coexistência da heterogeneidade e pela aprendizagem recíproca. A multiplicação dessas
plataformas pode contribuir para reforçar a articulação entres movimentos e
organizações que lutam contra os efeitos nefastos do capitalismo contemporâneo, na
expectativa da produção de imaginários comuns de resistência à mercantilização
generalizada dos espaços e experiências humanas.
89 A multiplicidade somada à complexidade (Morin, 1994) implica inevitavelmente alguns
paradoxos, que podem se apresentar sob a forma de dicotomias: horizontal/vertical,
heterogeneidade/unidade, espaço/ator, abertura/luta, inclusão/exclusão, que
coexistem no seio do mesmo processo. Quanto mais se aprofunda a observação e análise
dos casos, mais fácil é perceber que se trata de tensões constitutivas do próprio FSM,
que se fazem presentes também no processo e organização do GlobalSquare.
90 Segundo Conway (2005, p. 427, tradução nossa), se o paradoxo é reconhecido, pode ser o
motor de uma utopia criativa e mobilizadora, tanto para os atores como para os
investigadores desse campo: “É este extraordinário paradoxo – que ao abraçar a
diversidade está produzindo uma ação coordenada em escala global sem precedentes –
que é a chave para o poder generativo do Fórum Social e convida a novas políticas
democráticas globais.”
91 Há, portanto, uma dimensão desse debate que não é secundária e que diz respeito aos
dilemas e desafios que se apresentam no plano da articulação internacional das lutas e
resistências. O momento demanda interlocuções e articulações políticas que não
abandonem sentidos estratégicos. Elas estão acontecendo. Mas ainda não são claros os
contornos dos espaços que serão capazes de acolher e fomentar tais articulações, o que
amplia a necessidade de pensar antropologicamente a produção do “global” como plano
de ação política coletiva.
92 Enquanto algumas categorias analíticas tradicionais perdem força, existem elementos
empíricos suficientes que evidenciam as conexões entre os diversos processos das
primaveras árabes, entre Occupy Wall Street e o 15M, entre as diversas lutas nos países
europeus, entre as organizações dos povos indígenas na América Latina, por exemplo.
Essas conexões não ocorrem somente por meio de técnicas de comunicação virtual, mas
também (algo que merece ser estudado com maior profundidade) pela mobilidade
espacial de ativistas e forte intercâmbio presencial de experiências.
93 A mudança paradigmática (sob uma lógica dos espaços) a que aspiram certos
participantes do FSM e do GS (e por extensão vários outros movimentos, como Occupy e
15M/Indignad@s) também destaca um ponto de inflexão na ambição científica:
A multiplicidade de vozes e de atores, e a diversidade de objetivos por vezes
contrastantes têm […] tornado possível uma nova epistemologia do Sul […] que pode
ser definida como um processo e evento que por sua própria pluralidade e abertura
pretende produzir formas de conhecimento que trabalham contra as monoculturas
da mente e se afastam bastante da lógica científica da modernidade ocidental […].
(Milani; Laniado, 2006, p. 20, tradução nossa).
94 Assim, a preocupação com a coerência identitária entre os atores perde força perante a
aposta em novas modalidades de produção cognitiva e afetiva, que não negam o
conflito como componente de definição da ação política. Nesse aspecto, o sentido dado
ao espaço na nova onda de mobilizações afasta-se daquilo que Habermas define como a
esfera pública burguesa e parece muito mais próximo do “espaço oposicional”
apresentado por Oskar Negt (2007, 2009) como um lugar heterogêneo de tomada de
palavra, pela aproximação de experiências singulares, de exigências não reconhecidas e
de desejos. Nos casos analisados, os espaços de mobilização operam pela tentativa de
fazer com que a diversidade e a abertura funcionem como combustível para uma
reformulação consciente e permanente das dinâmicas metodológicas que orientam a
participação dos atores políticos envolvidos.
95 A alternativa hermenêutica proposta pelo FSM sugere que “não há justiça social sem
justiça cognitiva global” (Santos, 2004, p. 13). Como diria Morin (2000, p. 94, tradução
nossa): “É importante ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do
real, saber que há um possível ainda invisível no real.” Apreender sensivelmente tais
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Acesso em: 27 jul. 2013.
NOTAS
1. Este texto foi escrito em um programa online, por três pesquisadores em dois países diferentes:
Brasil e Canadá. Agradecemos o apoio de Matthias Braun e Charles-Antoine Guillemette para
escrever o artigo.
2. A noção de “sociedade civil”, geralmente associada às organizações não governamentais sem
fins lucrativos, encontra-se assim alargada por essas novas iniciativas que se posicionam
explicitamente como não institucionais, como afirmou Cleaver (1999).
3. Destaca-se ainda que o próprio processo de produção do artigo, realizado entre três autores,
oriundos de diferentes contextos (inclusive linguísticos) e que não negam a simultaneidade de
seu papel como pesquisadores e ativistas nesses processos, já reflete alguns dos desafios
colocados para a pesquisa-ação na atualidade.
4. Interessante notar que esta possibilidade de novas formas de elaboração colaborativa de atas
não estava colocada há algum tempo e insinua novas possibilidades para análise documental
desses espaços de mobilização.
5. A distinção Norte-Sul destaca uma dicotomia amplamente aceita (principalmente por
instituições como o Banco Mundial) entre os diferentes países do mundo: o norte global é um
termo que se refere aos países ricos e industrializados, localizados majoritariamente no
hemisfério norte, ao passo que o sul global é um termo usado atualmente em substituição ao
conceito de “Terceiro Mundo”, para designar os países em desenvolvimento localizados
principalmente no hemisfério sul (Kegley, 2009, p. 127). Ainda que seja evidente a permanência
de um profundo desequilíbrio econômico entre os países, cada vez mais os autores concordam em
afirmar que na época da mundialização, as fronteiras entre Sul e Norte tendem a se embaralhar e
que a distinção vai se tornando mais difícil de ser apreendida a partir dessas categorias de análise
(pode-se pensar em ilhas de extrema riqueza nos países do Sul coexistindo com nichos de miséria
e subdesenvolvimento nos países do norte global). Portanto, a utilização dessas expressões no
presente texto é feita com ciência dos problemas teóricos a serem enfrentados.
6. Usamos no presente artigo, em alguns momentos, a expressão “novos movimentos”, para fazer
referência aos movimentos que se expressam com maior relevância na última onda descrita no
artigo, cientes de que a adjetivação está sujeita a grandes debates.
7. Anotações pessoais das reuniões do Projeto Cartografias do Futuro, 2013.
8. No FSM 2013, a ausência de representatividade entre os participantes dos novos movimentos
acabou fortalecendo o foco na troca dos aprendizados práticos (sobre, por exemplo, ocupação dos
espaços públicos, lutas contra policiais e forças armadas, estratégias de comunicação, etc.), que
singularizam a experiência de cada ativista.
9. A propósito do tema, há uma produção sociológica considerável, que passa, por exemplo, pelo
trabalho de Anthony Giddens, Zygmunt Bauman, Richard Sennet, assim como de Christopher
Lasch, entre outros.
RESUMOS
O presente artigo propõe desenhar uma antropologia da espacialidade com um olhar crítico para
compreender a emergência de diferentes espaços globais de mobilização que se inscrevem em
uma perspectiva altermundialista. Para tanto, realiza-se inicialmente, um retrato do contexto
histórico que permitiu o surgimento desses espaços. Em seguida, são apresentadas e analisadas
comparativamente as lógicas inerentes a cada um dos dois casos selecionados, que aparentam ser
particularmente representativos na trajetória dos espaços globais de mobilização (o Fórum Social
Mundial e o GlobalSquare). No final, busca-se trabalhar com a hipótese de uma “epistemologia do
paradoxo”, que seja capaz de reconhecer as contradições básicas próprias aos processos
estudados e que contribua para a compreensão dos processos de mobilização, ampliando seu
alcance e sua força.
ÍNDICE
Keywords: global politics, GlobalSquare, spaces of mobilization, Word Social Forum
Palavras-chave: espaços de mobilização, Fórum Social Mundial, GlobalSquare, política global
AUTORES
GERALDO ADRIANO GODOY DE CAMPOS
Escola Superior de Propaganda e Marketing – Brasil
RAPHAËL CANET
Université d’Ottawa – Canadá
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 27/12/2013
Introdução
Essa coisa do conhecimento tradicional, né? Como é que uma coisa que é… se é
nossa, está tão assim, tão complicada de entender? A moça falou aí, ontem e hoje, de
PG, de CTA1, é a medida provisória, né? É tanta da lei, cada dia inventam uma nova,
enquanto, no fim, as empresas tão, ó… (Liderança extrativista, membro da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais,
em Seminário promovido pelos Ministérios do Meio Ambiente e do
Desenvolvimento Agrário, em Brasília, 2012).
Quem poderia contestar uma sociedade regida por uma democracia e pelo Estado de
Direito? Na verdade, seria contestar o fato de o Direito ser justo, ou de o mercado
ser eficiente […] Neste livro não nos move o desejo de argumentar contra o Estado
de Direito. [… mas] buscaremos identificar sua estreita associação com outra noção,
aquela de “pilhagem”. (Mattei; Nader, 2013, p. 16-17).
1 Neste artigo, analisaremos experiências que emergem de comunidades tradicionais 2 em
face de iniciativas de implementação de um regime global de propriedade intelectual
(Aoki, 1998; Radomsky, 2010; Shiva, 2001; Stiglitz, 2008). Enfocaremos desafios que esses
atores sociais enfrentam, no campo jurídico, na busca de direitos referentes a seus
conhecimentos tradicionais, no atual estado de direito no Brasil. As quebradeiras de
coco babaçu lutam pela “Lei do Babaçu Livre” (Shiraishi Neto, 2006), afirmando que seu
conhecimento tradicional se funda no livre acesso às palmeiras de babaçu e no trabalho
“liberto de patrão”, segundo seu modo de vida em territórios próprios. Por sua vez, os
produtores de queijo serrano lutam pela valorização e livre circulação de seu produto,
11 No caso das quebradeiras de coco babaçu, discutiremos a incorporação dos artigos 8j,
10c e 10d da Convenção da Diversidade Biológica (Brasil, 2000) no ordenamento jurídico
nacional, através da medida provisória nº 2186-16/2001 (Brasil, 2001). Essa convenção
internacional visa, no contexto de uma agenda ambiental, “respeitar, preservar e
manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações
indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização
sustentável da diversidade biológica” (Brasil, 2000, p. 12).
12 No entanto, na prática de formulação do regime jurídico e da execução de políticas
globais e transnacionais relativas a esse conhecimento tradicional, essa agenda
ambiental tem se institucionalizado em forte consonância com as agendas econômico-
financeiras de agências multilaterais, como a OMC, e de atores privados com interesse
em recursos da biodiversidade, como empresas farmacêuticas e de cosméticos. Assim,
no atual estado de direito, que teoricamente deveria proteger os direitos de povos
indígenas e comunidades tradicionais, especialmente aqueles economicamente mais
fragilizados, observarmos que, na medida em que essa proteção se operacionaliza por
meio de contratos, sem tratar-se das fontes de diferenciais de poder, ocorre justamente
o contrário: a legalização do processo de pilhagem.
13 No caso dos produtores de queijo serrano, discutiremos as normas que orientam a
legislação sanitária referente a alimentos tradicionais, em geral, e a queijos produzidos
a partir de leite cru, em particular, e seus efeitos nas dimensões socioculturais da
produção e consumo alimentar. As normas que regulamentam essa produção e
circulação têm sua fundação na lei nº 1.283 de 1950, ainda em vigor, alterada pela lei
nº 7.889 de 1989, e no conjunto de decretos, portarias, resoluções e instruções
normativas que se seguiram.10 A imposição arbitrária de condutas, posturas, obras e
18 Nessa relação com a natureza, desde tempos coloniais, a palmeira babaçu (Attalea
speciosa), como componente de florestas primárias ombrófilas, expandiu-se em florestas
secundárias oligárquicas, que atingiram um segundo clímax, cobrindo mais de 20
milhões de hectares no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil (Anderson; May;
Balick, 1991; MIC, 1982; Peters et al., 1989). Nesse sentido, a palmeira babaçu, designada
localmente como “a mãe do povo”, tornou-se símbolo de uma tradição de lutas por
liberdade e autonomia, consolidada ao longo de gerações (Porro, 2002).
A gente vai tomando conhecimento com as palmeiras assim de pequeno, não sabe?
Eu conheço cada uma aqui, que eu vinha [para o palmeiral] de pequena com a
minha avó. (Iracema de Zezeca, povoado de Pau Santo, município de Lago do Junco,
2001)
19 No entanto, com a expansão da fronteira do capitalismo sobre essas terras
tradicionalmente ocupadas,11 novas ameaças se impuseram, requerendo outros
conhecimentos. Assim, apesar de sua relevância ecológica, econômica e social, a
palmeira babaçu encontrou-se e ainda se encontra ameaçada por um modelo de
desenvolvimento que a toma por obstáculo.
No começo, a terra era liberta, mas aí apareceu um dono, cobrando renda e
humilhando o povo. […] Quando os mandados do patrão começaram a perseguir, a
gente se botou pra brigar. Depois, não foi só pelas palmeiras, a gente brigou pela
terra também, porque o coco só não dá, tem que ter a roça, que ninguém vai viver
sem a roça. (Sebastiana Cibá, povoado de Centrinho do Acrísio, município de Lago
do Junco, 2002).
20 Homens e mulheres contam como a quebra do coco babaçu permitiu a autonomia
necessária para resistir à proibição do plantio de roças, em episódios de conflitos
agrários que tiveram início na década de 1960, seu auge nos anos 1980 e, em alguns
casos, persistem até hoje. A história do povoado de São José dos Mouras, no município
de Lima Campos, ilustra a luta dessas comunidades contra pecuaristas que tentaram
apropriar-se de terras tradicionalmente ocupadas. Os moradores relatam como as
24 Nessa organização dos tempos, ritmados com a chuva que cai e o mato que alteia,
atrelados aos elementos de cada um dos espaços, seja da casa, da roça ou do palmeiral,
forja-se o conhecimento necessário à organização do trabalho, associado a relações
sociais, de gênero e entre gerações, específicas à renovação dessas comunidades
tradicionais. Apesar da coordenação masculina na roça e feminina na quebra do coco
babaçu, a comunidade tradicional expressa seu conhecimento na rejeição à figura do
patrão e atribui à natureza o comando da força de trabalho da unidade familiar de
produção.
25 Assim, o conhecimento tradicional a que nos referimos não é apenas a receita do azeite
de amêndoa ou da farinha de mesocarpo do babaçu, tampouco o conhecimento sobre a
ecologia do babaçu, como representante da biodiversidade amazônica (isolado da
ambientalmente incorreta roça de corte-e-queima). Tratamos aqui de um
conhecimento que combina todos esses elementos num amálgama de lutas por uma
tradição de liberdade, que se expressa em um processo de territorialização específico.
Esse conhecimento é de difícil compreensão por parte das autoridades públicas e das
empresas privadas, na medida em que orientam suas intervenções e ações a partir de
ganhos e perdas decorrentes dos usos da biodiversidade no mercado.
26 No entanto, a dissociação entre o conhecimento tradicional e as maneiras de fazer, criar
e viver dos grupos viola direitos coletivos das quebradeiras de coco, 12 pois para elas não
há separação entre sujeito e objeto, no caso a natureza, representada pela mãe
palmeira. Em contraposição, os operadores das políticas ambientais, condicionadas
pelas convenções e protocolos internacionais, vêm pensando e construindo a natureza
apartada do sujeito e como recurso passível de ser apropriado, através do mercado.
Desse modo, a condição de sua proteção é sua utilidade econômica, enfatizada pelo
bônus ambiental. Devido a essa compreensão, as comunidades são apresentadas ora
como sujeitos de direito (titulares de direitos e, portanto, capazes de dispor de seus
conhecimentos, através de contratos e termos de anuência), ora como objetos,
igualados à natureza e, assim, incapazes de serem sujeitos de suas propostas e ações,
inclusive de pensar as leis referentes a seus próprios conhecimentos.
27 Nesse caso das comunidades tradicionais do Vale do Mearim, essa condição utilitarista
se torna evidente no exemplo emblemático do acesso ao conhecimento tradicional
associado ao patrimônio genético do mesocarpo do babaçu por uma das maiores
empresas de cosméticos do Brasil. Em 2004, a empresa comprou uma amostra de
farinha de mesocarpo de babaçu, produzida pelas quebradeiras de coco babaçu da
Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Município de Esperantinópolis,
Maranhão (Coopaesp). Apesar de ciente das exigências da medida provisória nº 2186-16,
de 2001, somente após resultados satisfatórios em sua bioprospecção, em 2005, a
empresa voltou a contatar a cooperativa. A utilidade, e não o justo direito, é que
determinou a necessidade de regularização, uma vez que o consentimento livre prévio
e fundamentado já havia sido violado, o que, no caso da referida empresa, já se
constituía em vício.
28 Entre 2005 e 2007, a empresa e as comunidades tradicionais – representadas pela
Coopaesp e organizações parceiras, Associação em Áreas de Assentamento no Estado do
Maranhão (Assema) e Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
(MIQCB) – mantiveram negociações, para finalmente assinar um termo de anuência e
um contrato de repartição de benefícios, com o apoio de procuradores do Ministério
Público Federal. Com o valor recebido, as organizações das quebradeiras passaram a
32 A região dos Campos de Cima da Serra, situada no nordeste do Rio Grande do Sul, teve –
do mesmo modo que a Serra Catarinense, onde também é produzido o queijo serrano –
sua formação social associada à pecuária em sistema de campo nativo 13 e a rotas de
tropeiros.
33 Como relata Krone (2009), ainda no século XVIII, percorrendo rotas que forneciam gado
bovino e muar à região das minas, no centro do país, e atraídos pela abundância de
gado solto – resultante de dispersão de rebanhos bovinos, ocorrida com a dissolução,
em 1640, das reduções jesuíticas, situadas no noroeste gaúcho –, tropeiros e
bandeirantes – de origem portuguesa, vindos de regiões que hoje correspondem aos
estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo – estabeleceram nos Campos de Cima da
Serra fazendas e povoados, em processo que dizimou as populações indígenas que ali
habitavam. No final do século XIX, uma nova – e minoritária – corrente migratória
traria imigrantes de origem alemã e italiana à região.
34 Também a partir do final do século XIX, dar-se-ia, em âmbito regional, o “tropeirismo
de mulas arreadas”, com tropas formadas por animais de carga, conduzidos por
tropeiros que não tinham aí sua principal atividade: da serra, tropas de mulas partiam
carregadas com charque, couro, crinas, pinhão e queijo, tendo por destino a região
catarinense conhecida como serra abaixo, de onde eram trazidos mantimentos para o
abastecimento das famílias – especialmente farinhas de mandioca e de milho, feijão,
polvilho, sal, açúcar e cachaça –, além de tecidos, ferramentas e o que mais fosse
necessário (Krone, 2009; Menasche; Krone, 2012).
O que eu tenho de lembrança, das conversas que a gente tinha, do meu pai, minha
mãe, que hoje já são mortos… tanto por parte da minha mãe como do meu pai, eles
sempre fizeram o nosso queijo serrano. Naquela época, era muito mais difícil o
comércio. Porque na nossa região, basicamente ia no lombo de cavalo, da mula. E
naquele tempo eles levavam toda a produção que eles faziam para serra abaixo,
como era conhecido, e nós Campos de Cima da Serra, os serranos. A minha geração
é portuguesa, mas que eu tenho recordação foi dos meus avós, mas com certeza
meus bisavós também fizeram. […] E também pra aproveitar as tropas de mulas que
desciam pra serra abaixo, levavam queijo e traziam de lá a mercadoria. Naquele
tempo não era que nem hoje, fracionado em cinco quilos. Era em sacos de 60 quilos.
Se dizia a “partida de queijo”. Com a partida de queijo se trazia o rancho. (Sérgio,
Bom Jesus, 2006).
A gente sempre levava queijo, charque, pinhão, pra vender na serra abaixo. Trocava
pelas outras coisas que não tinha aqui: arroz, farinha de mandioca, açúcar amarelo,
essas coisas, polvilho, cachaça, essas coisas assim. […] Eu tropeei até [19]62, por ali
assim, foram as últimas viagens que eu fiz lá pra serra abaixo, vendendo coisa,
trazendo coisa. Porque não tinha essas bodegas. Então terminava a comida, a gente
descia serra abaixo pra buscar. […] O principal era o açúcar amarelo, arroz, farinha
de mandioca, polvilho e cachaça, era essas coisas. Uma viagem dessas, levava até 15
dias, pra ir e voltar. (Manoel Gaspar, produtor de queijo serrano e ex-tropeiro, Bom
Jesus, 2006).
35 Historicamente, a economia regional é fundada na pecuária de corte extensiva, daí o
queijo serrano ter se constituído como atividade complementar à produção de carne,
decorrente de práticas de manejo de gado rústico, raças de corte. Nas fazendas, o
queijo, em muitos casos, era (e é) produzido por agregados – comumente, pelas
mulheres das famílias agregadas –, sendo a renda advinda de sua comercialização
componente de sua remuneração. Nas propriedades menores, em que o trabalho é mais
comumente realizado por família proprietária, são também geralmente as mulheres
que fazem o queijo. Como no tempo das tropas, essa renda permanece associada ao
abastecimento alimentar das famílias produtoras.
36 A singularidade do produto é decorrente da combinação, no território, de
características edafoclimáticas, práticas de manejo e conhecimento tradicional
específicos.14 A circulação do queijo, alimento simbolicamente valorizado na região,
presente nas mesas, em pratos e quitutes, nas diferentes refeições, está associada a
formas de sociabilidade locais: o queijo serrano é dádiva, entre vizinhos e parentes. Sua
produção e consumo são parte dos modos de criar, de fazer e de viver, constituintes da
identidade dos produtores.
No levantar, ele [o marido] já sai pra pegar as vacas. Elas estão assim na frente, põe
pra mangueira. Eu fico lá em casa, preparo café. Já no dia antes, eu já deixo
arrumado a vasilha do leite. Antigamente era com barril, hoje em dia já é mais
difícil aquele barril de madeira, então eu uso o tarro de plástico. Tiro o leite, ponho
o pano pra coar o leite. E assim, lá pelas 8h30, a gente terminou a ordenha. Aí ele
fica limpando o galpão, as mangueiras. Em média, a gente tira [leite] de umas
dezoito [vacas]. Mais ou menos de 65 a 70 litros de leite. É muito trabalho. (Regina,
Bom Jesus, 2006).
37 No trecho de depoimento acima reproduzido, há indícios que permitem delinear o
quadro particular em que produto tradicional e modo de vida estão articulados. Com
relação ao montante de leite produzido, temos que a média inferior a quatro litros
diários por vaca é decorrente do emprego de raças rústicas, de gado de corte, não
especializadas na produção leiteira, características da pecuária tradicionalmente
realizada nos Campos de Cima da Serra. O volume de leite produzido na propriedade de
Regina indica que diariamente são fabricados entre seis e sete quilos de queijo, o que
não é pouco se comparado com o que costumam produzir outras famílias visitadas.
38 A fala da interlocutora permite ainda notar que a rotina de produção de queijo é dada a
partir de uma divisão sexual do trabalho que, em linhas gerais, reserva às mulheres as
tarefas mais diretamente relacionadas ao fabrico do queijo e marca o cotidiano dos
homens com aquelas identificadas com a lida campeira, associada a um ethos em nada
compatível com a intensificação dessa produção. Assim é que, como indicou Krone
(2009), nos casos em que, naquele contexto, ocorre a incorporação de raças leiteiras
especializadas, que já não se alimentam quase que exclusivamente de pastagens
nativas, resultando em maiores produção e produtividade e alterando técnicas,
utensílios e procedimentos – vale menção ao fato de o leite daí resultante já não
apresentar o antes característico elevado teor de gordura, sendo por isso classificado
como fraco, e a necessidade de realização de ordenha não mais apenas uma vez ao dia,
mas duas –, os produtores de queijo já não são considerados tradicionais, assim como o
queijo daí resultante já não é tido como verdadeiro queijo serrano.
39 No trecho de depoimento anteriormente reproduzido, há ainda referência à
substituição do barril de madeira por recipiente de plástico, no caso empregado para
colocar o leite a coalhar – vale mencionar que, depois de coado, é acrescido coalho ao
leite, que é então colocado a coalhar, para, na sequência, realizar-se a separação entre
massa e soro e a prensagem da massa, colocada em formas, tudo realizado
manualmente. Nos últimos anos, a substituição de utensílios de madeira por outros
materiais tem se intensificado, seja por restrições à madeira constantes na legislação
sanitária, seja por dificuldade em encontrar novos utensílios em madeira para repor os
antigos ou, ainda, por facilidades encontradas na limpeza de outros materiais. Mas,
como mostrou Meneses (2006, p. 78 apud Santos; Menasche, 2013), em estudo sobre o
Queijo Minas Artesanal, os saberes relativos ao fazer o queijo não se dissociam da
“materialidade da casa, da propriedade, dos insumos da produção, das outras técnicas
rurais, da cozinha e da culinária, dos valores de compadrio, de tolerância, de
vizinhança”.
41 Cabe comentar que, nos últimos anos, a paisagem dos Campos de Cima da Serra tem
sido intensamente modificada. Amplas extensões de terra, antes ocupadas por campos
nativos, têm sido transformadas por, entre outros, plantações de batata e projetos de
florestamento. Tais inversões em aquisição ou arrendamento de terras têm pressionado
os preços no mercado de terras local, provocando sua elevação e, com isso, tensionando
os produtores no sentido da migração para atividades de maior rentabilidade que a
pecuária extensiva, base do fabrico do queijo tradicional. Mas não é essa a única ou
principal dificuldade com que se deparam os produtores de queijo serrano.
42 Costumeiramente, produtores e consumidores locais consideram o bom queijo serrano
pronto para o consumo quando está amarelinho, o que se dá entre 15 e 20 dias de
maturação (Cruz, 2012).
Cada pessoa tem o seu paladar. Tem pessoas que gostam dele bem curado, como se
diz. O bem curado é de 15, 20 dias. Mas já tem pessoas que preferem ele mais
verdinho, mais tenro. Então isso depende de cada gosto. (Sérgio, Bom Jesus, 2006).
43 Como dito por Sérgio, o queijo maturado por 20 dias é considerado bem curado.
Contudo, a legislação brasileira restringe a comercialização de queijos produzidos à
base de leite cru (não pasteurizados) antes de 60 dias de maturação. Esse critério foi
definido na metade do século XX, nos Estados Unidos, e adotado por inúmeros países,
entre os quais o Brasil.15 Mas, como evidenciado por Cruz e Menasche (2011), tal critério
é marcado pela arbitrariedade, uma vez que não encontra fundamentação técnico-
científica suficiente.
44 Desse constrangimento legal – a que se somam regulamentos sanitários sobre-
estimados para a realidade e escala de produção dos queijos artesanais –, resulta que a
comercialização desse produto tradicional é deslocada para a informalidade e seus
produtores ao permanente risco de apreensão de seus queijos.
O negócio do nosso queijo aqui, que o queijo serrano faz muito anos que é lidado… O
pessoal fazia esse queijo, quando eu nasci já lidavam com o queijo. E agora tá tão
proibido esse queijo, que proíbe e coisa e tal… diz que tem bactéria, não sei o que
tem. Mas se tinha bactéria, já tinha morrido, essa gente não se criava. Meu pai
morreu com 84 anos e comendo queijo, velho assim. (Manoel Gaspar, Bom Jesus,
2006).
45 As concepções que orientam as instituições, profissionais e regulamentações vigentes
pertinentes à produção e comercialização de alimentos no Brasil guiam-se pela ideia –
consolidada a partir da realidade e escala de produção de indústrias agroalimentares de
grande porte e absolutamente inadequada à escala artesanal de produção de alimentos
tradicionais – de que a qualidade dos produtos é decorrente de características
higiênico-sanitárias de utensílios, equipamentos e instalações, sendo condicionada
pelas matérias-primas em que são confeccionados e suas dimensões (Santos; Cruz;
Menasche, 2012).
46 Essa visão, imposta pela legislação sanitária e processos de inspeção, mas também
presente, em boa medida, em iniciativas que – a exemplo das indicações geográficas
(IGs)16 – propõem a valorização de produtos artesanais, não apenas age no sentido de
sua padronização – o que por si só afronta a diversidade inerente à artesanalidade –,
mas ainda exige, para sua viabilização financeira, dada a elevação de custos, aumento
da escala de produção.
47 Assim, muitas das mudanças em curso podem ser adotadas não por desejo dos
produtores, mas por processos externos a suas lógicas e vontades. Daí, em algumas
situações, as tradicionais raças rústicas, de corte, passarem a ser misturadas com – ou
mesmo substituídas por – raças especializadas na produção leiteira; no que diz respeito
às instalações, equipamentos e utensílios, a madeira ceder lugar a azulejos, inox e
plástico; e, no que se refere às técnicas, serem também transformadas, a exemplo do
que ocorre com a adesão à ordenhadeira, empregada para processar o maior volume de
leite que passa a ser produzido.
48 Todas essas mudanças não podem ser entendidas como acessórias, se, tal qual nas casas
de farinha em que é produzida, no Acre, a reputada farinha especial de Cruzeiro do Sul,
também nas casas de queijo dos Campos de Cima da Serra for observada a agência dos
objetos.
Os artefatos compreendem seres providos de ação, robustos e eficazes, que
complementam a ação dos corpos humanos […] Os artefatos espelham o referencial
humano, porque são compreendidos, eles também, como entidades sociais que se
organizam nas casas de farinha. (Velthem, 2007, p. 625-626).
49 Mas tampouco os produtores – os de farinha, de Cruzeiro do Sul, ou os de queijo serrano
ou os de tantos outros alimentos tradicionais – mostram-se passivos diante da difusão
das ditas “boas práticas de fabricação”. Suas táticas (Certeau, 2002), associadas ao
conhecimento tradicional, conduzem-nos a apreciar ou adaptar-se a algumas dessas
inovações, transformar outras, de modo a tornarem-se mais funcionais, e simplesmente
ignorar as que consideram desnecessárias ou prejudiciais (Velthem, 2007, p. 617).
50 Nesse contexto é que podemos entender a manifestação do antigo tropeiro, produtor
tradicional de queijo serrano:
O que mais agrada da vida aqui fora é que eu sou livre. Se eu quiser trabalhar mais
cedo, mais tarde, ou se eu não quiser trabalhar, eu sou dono, sou patrão. Aí eu tenho
mais liberdade. Isso faz diferença para não mudar o sistema, em ter o gado de corte,
tirar o leite do gado de corte. Porque vaca de leite, tem que tirar o leite todos dias,
de manhã e de tarde. Aí tem o rodeio, tem a lida campeira, e aí não posso ir.
Trabalhar com o gado de corte me influi mais, porque eu acho que tirar leite duas
vezes por dia é uma prisão. Essa vaca [leiteira]… eu sempre disse, sempre disse e
continuo dizendo, não me serve esse gado para mim, porque se eu quiser sair na
minha festa, ou agora, como eu precisei sair, eu solto os terneiros, não estou
preocupado. (Manoel Gaspar, Bom Jesus, 2006).
51 Assim como afirmam interlocutores do Vale do Mearim, também nos Campos de Cima
da Serra o conhecimento se realiza na tradição da liberdade e autonomia, na aversão ao
cativeiro do patrão e no ideal do “ser dono de si mesmo”. Portanto, esses modos de vida
tradicionais asseguram a indivisibilidade entre o conhecimento tradicional e as
maneiras de fazer, de criar e de viver, já garantidas na Constituição desde 1988.
52 Porém, se a Magna Carta assim já lhes garante, como essas comunidades tradicionais
percebem-se ameaçadas pela arbitrariedade de leis menores? 17
A harmonia coerciva de leis arbitrárias
53 O extermínio de povos indígenas, no Maranhão ou no Rio Grande do Sul, e as violências
sancionadas contra quilombolas em todo Brasil pertencem formalmente a um Estado
pretérito. No entanto, como vimos nas seções anteriores, graves violações materiais e
simbólicas continuam presentes no atual estado de direito. O conceito de harmonia
coerciva, proposto por Nader (1994), auxilia na explicação dessa contradição, uma vez
que as atuais relações com autoridades oficiais e entre pecuaristas e agregados nos
Campos de Cima da Serra, e entre empresários e extrativistas no Vale do Mearim,
aparecem hoje como que apaziguadas pela efetivação da lei, que se apresenta como se
fosse de todos. Os problemas decorrentes dessa universalização sinalizam os interesses
da própria lei.
54 Fora de espaços politizados de debates, entrevistados do Vale do Mearim afirmaram
que “agora tem lei”, para explicar a aparente harmonia que se depreende dessas
situações sociais plenas de antagonismos; ou “agora a gente tem direito”, referindo-se à
manifesta atenção pública que a tradição, o exótico e a afinidade com a natureza têm
despertado. Porém, apesar do reconhecimento da existência dessas leis e direitos
emanados das leis, voltam-se a práticas que se referem a direitos emanados de suas
próprias regras locais, necessárias a seu modo de vida, que, por não se encaixarem nas
leis, são reputadas pelas autoridades como clandestinas. Assim, mesmo nessa harmonia,
faz-se necessário investigar essas práticas locais, que revelam a coerção da efetivação
de leis arbitrárias.
55 Quer seja pelo apelo ambiental que o babaçu possa trazer ao comércio de produtos
associados à biodiversidade, quer seja pela resposta à ansiedade urbana contemporânea
diante da comida que, tal qual o queijo serrano, alimentos artesanais tradicionais
representam, a utilidade justifica a harmonia coerciva da relação com as autoridades no
campo econômico, conjugada à ausência de confrontos por parte das comunidades.
56 De fato, os termos parceria, colaboração e soluções, em que todos aparentemente saem
ganhando (win-win solution), foram frequentemente usados durante o processo de
negociação entre a empresa e as quebradeiras. No acordo proposto, supunha-se que a
comunidade ganharia e a empresa também ganharia. Se, por um lado, a empresa
buscava a harmonia, ciente da violação cometida contra o consentimento livre prévio e
fundamentado, também a comunidade buscava uma relação comercial sem fricções e
interferências. Porém, antes mesmo de se chegar ao impasse, a coerção velada emergia
em eventos de dissenso, alcançando resultados diversos do que ambas as partes
esperavam.
57 Da mesma maneira, no caso dos constrangimentos à livre circulação comercial do
queijo serrano, as capacitações, treinamentos e mesmo instruções normativas
aparentemente favoráveis aos produtores emanam a ideologia do não confronto, da
busca de soluções harmoniosas. Porém, a cada etapa das negociações e em cada novo
instrumento resultante do diálogo, o disciplinamento e o controle externo mantêm a
coerção atualizada.
58 Na pesquisa comparativa de Nader (1991), a ideologia da harmonia emerge como parte
intrínseca de um processo civilizatório, exemplificado com o caso dos zapotecas, do
México, sob o controle hegemônico da colonização política europeia e da evangelização
cristã. Em estudo de caso sobre os Estados Unidos, a autora (Nader, 1989, 1994) mostra
que, nos anos 1960, em termos de mecanismos, os processos judiciais, que dissecavam o
antagonismo entre as partes, buscavam nas cortes o local para a realização da justiça. Já
na década de 1970 e 1980, inclusive como forma de lidar com o protagonismo dos
movimentos sociais (negro, feminista) por direitos civis, registra-se o redirecionamento
a modelos jurídicos que objetivam a minimização dos conflitos entre pleiteantes, com
vistas à negociação e busca de acordo ou consenso, em meio a processos designados
como de colaboração e cooperação. Na década de 1990, Nader (1995) mostra que esse
modelo jurídico, que objetiva a harmonia, foi exportado dos Estados Unidos para a
arena internacional, em conexão com os objetivos do desenvolvimento. Assim, os
tribunais, que eram tidos como símbolos da evolução civilizatória, são substituídos por
espaços de diálogo e negociação ou mesas de conciliação, assessorados por especialistas
em resolução ou “manejo de conflitos”, fornecidos pelo setor privado, com apoio do
poder público.
Nesse modelo, os pleiteantes civis acabam tornando-se “pacientes” que necessitam
de tratamento – um projeto de pacificação. Quando as massas são vistas como
“pacientes” que precisam de ajuda, a política pública é inventada para o bem do
“paciente”. (Nader, 1994, p. 6).
59 E é exatamente neste período que o TRIPS, sob a bandeira de livre comércio, passa a
expandir seu modelo de proteção à propriedade intelectual. No entanto, regras que
alegadamente deveriam encorajar e proteger a expressão criativa e a inovação
científica passam a disciplinar, coagir e submeter os países do Terceiro Mundo a
autorizações (Aoki, 1998, p. 20). O produtor pleiteante tem, assim, seu produto
diagnosticado, isolado, pasteurizado e centralizado. E a política pública busca, através
de formas harmônicas, o tratamento do paciente, anti-higiênico, sem jamais
efetivamente considerar que o conhecimento que tem possa ser valioso, a menos que
validado pelo mercado.
60 Nesse sentido, a retórica da justiça é gradativamente substituída pela da harmonia.
Contudo, como afirma Nader (1994, p. 12), “a harmonia coerciva das três últimas
décadas foi uma forma de controle poderoso, exatamente devido à aceitação geral da
harmonia como benigna”. A autora mostra que, historicamente, a determinação de
formas de resolução de disputas harmoniosas é, sobretudo, resultado de conciliações
compulsórias e coercivas, quando há desequilíbrios de poder entre as partes, como
observamos nos casos por nós estudados.
61 Em negociações entre comunidades tradicionais e empresas, os desequilíbrios não se
referem apenas ao poder econômico, mas também ao poder de tomada de decisão sobre
bens coletivos fundamentais, como o conhecimento tradicional. E, nessa situação, o
agravante da ausência do Estado no assegurar justiça, mas sua excessiva presença no
regramento e inspeção, fragiliza ainda mais o direito das comunidades. Assim, na
implementação da lei, quer seja a medida provisória nº 2186-16/2001, quer seja a
legislação que normatiza a produção e circulação dos queijos elaborados a partir de
leite cru, observa-se insidiosa coerção para que os conhecimentos tradicionais sejam
disponibilizados em um mercado em que os grupos não têm livre circulação e o
controle é exercido por agentes alheios aos contextos em que são gerados.
62 Segundo Nader (1994), a ideologia da harmonia está presente tanto em modelos
jurídicos que servem a intuitos de pacificação dos diferentes, pela autoridade, como
também é adotada pelos próprios grupos subordinados, para evitar maiores intrusões
em seu espaço social. A autora caracteriza tal adoção como iniciativa contra-
hegemônica, rejeitando atribuí-la a algo como uma falsa consciência. Podemos ainda
trazer a reflexão de Certeau (2002) para ilustrar essa perspectiva. Ao comentar como,
ante a lei imposta por colonizadores espanhóis, os indígenas “as subverteram, não
rejeitando-as diretamente ou modificando-as, mas pela sua maneira de usá-las para fins
e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podiam fugir” (Certeau,
2002, p. 39), o autor mostra que, no processo, o resultado certamente não foi o que o
colonizador pretendia com a efetivação da lei. Acrescentamos, porém, que tampouco foi
o que seria sem ela.
63 Portanto, identificar e reconhecer as referências estranhas ao sistema seria passo
fundamental no exame da harmonia coerciva. Com a efetivação da lei, a autoridade
busca uma aparentemente harmoniosa e protetora aproximação ao conhecimento
tradicional. Porém, a coerção de sua arbitrariedade rouba dos grupos a autonomia que
sustenta esse conhecimento como referência estranha ao sistema. A harmonia coerciva
tende a destituir a fala dos sujeitos e, pela ausência do conflito, subtrair as relações
políticas com potencial de constituição de direitos almejados. Assim, como alertam os
autores referidos, tanto quanto o conflito precisa ser alvo de estudo, a harmonia
também deve ser escrutinada, pois, na ausência de conflito, pode-se identificar a
coerção que a sustenta, com relevantes implicações no atual estado de direito.
Considerações finais
68 A principal bandeira de luta das quebradeiras de coco babaçu, desde a década de 1980, é
a Lei do Babaçu Livre, em contraposição ao que designam como situação de “coco
preso”, cercado pelo arame farpado do patrão pecuarista. Hoje, os produtores serranos
veem seu “queijo preso” pela implementação de obsoleta legislação, que circunscreve
arbitrariamente as condições de sua produção e circulação. Em ambos os casos, estão
em marcha processos de pacificação através de harmoniosa coerção, na qual a pilhagem
ocorre sob os auspícios do estado de direito. Em ambos os casos, observamos iniciativas
anti-hegemônicas e de contestação ao disciplinamento por parte das comunidades
tradicionais. São histórias de resistência à legalização das violações aos conhecimentos
tradicionais. Em trajetórias em busca da autonomia em espaços geográficos e sociais
historicamente marginalizados, vemos a consolidação da coesão identitária em torno de
seu conhecimento tradicional imbricados em modos de vida específicos.
69 E é nesse sentido que se demanda a aplicação integral e imediata da Convenção OIT 169
e a efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988, para que se
garantam esses modos de vida de forma integral. Hodiernamente, as reflexões sobre a
necessidade de regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional somente têm
sentido para os grupos uma vez garantidos os modos de vida, e especialmente o acesso e
uso de seus territórios, que, nos casos em estudo, incluem as áreas de ocorrência das
palmeiras de babaçu e as de pastagem nativa dos Campos de Cima da Serra. De outra
maneira, não existiria razão para a implantação da Convenção da Diversidade Biológica
e do Protocolo de Nagoya, já que o direito ao território e ao modo de vida são condições
fundamentais para que o conhecimento tradicional seja produzido e reproduzido
segundo percepções de mundo próprias.
70 Vale ter presente o alerta de Aoki (1998, p. 46, tradução nossa), que aponta que
se nós formos incapazes de reconhecer a existência de diferentes percepções de
mundo e concepções da relação entre seres humanos e o mundo natural em nossas
leis de propriedade intelectual, então, desafortunadamente, poderá ser tarde para a
biodiversidade e a esperança de um mundo genuinamente multicultural.
71 Assim como tantos outros, os modos de vida aqui evidenciados foram historicamente
constituídos, sustentados por conhecimento fundado na tradição de liberdade, a
despeito da economia política de um estado de direito que não contempla suas
especificidades. Nesse quadro, a efetivação de um regime global de propriedade
intelectual, de caráter universalizante, fundado no direito privado definido por
critérios da economia política de mercado, apenas legalizará a pilhagem. E como vimos,
a pilhagem não envolve apenas o acesso à receita da farinha do mesocarpo de babaçu
ou o confinamento do queijo serrano à clandestinidade, mas saqueia a liberdade de
imaginar e viver o mundo de outras formas.
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NOTAS
1. As siglas PG e CTA – que significam, respectivamente, patrimônio genético e conhecimento
tradicional associado – têm sido incorporadas aos discursos de atores sociais envolvidos em
processos de anuência ao acesso a conhecimento tradicional. Simbolicamente, expressam a
distinção entre o “conhecimento” que está na lei e o conhecimento tradicionalmente vivido pelas
comunidades.
2. Assumiremos, neste artigo, povos e comunidades tradicionais como “grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição” (Brasil, 2007, art. 3, inc. I).
3. E muitos outros casos poderiam ser lembrados, a exemplo de recente episódio ocorrido na
Colômbia, em que camponeses foram impedidos, por lei, de cultivar as sementes reproduzidas
tradicionalmente através de gerações e cuja circulação é constitutiva de suas redes de
sociabilidade. No contexto do Tratado de Livre Comércio com os EUA, a lei visa assegurar o
acordo TRIPS e obriga o uso de sementes certificadas, colocando os camponeses em situação de
conflito com o Estado (ver: www.youtube.com/watch?v=kZWAqS-El_g#t=1028).
4. A título de exemplo, ver o caso do povo san e seu conhecimento sobre a suculenta hoodia,
narrado por seu advogado, Roger Chennells (2007).
5. Para uma análise crítica dessas dicotomias em uma perspectiva do desenvolvimento
econômico, ver Ruth L. Gana (1996).
6. A propósito das transformações envolvendo esses países, ver Boventura de Souza Santos
(2010).
7. A medida provisória nº 2186-16, de 23 de agosto de 2001 (Brasil, 2001), regulamentou o acesso
ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. O instrumento utilizado para
viabilizar o acesso é o contrato, uma categoria central do direito privado, pois viabiliza as trocas
mercantis, sem ater-se aos contextos ou às diferenças sociais. O contrato parte das seguintes
premissas: autonomia da vontade e igualdade entre as partes, isto é, cada parte é livre para
dispor do bem ou serviço objeto do contrato e as partes têm igual poder ao contratarem. Essas
premissas não ocorrem efetivamente nos processos de anuência ao acesso a conhecimento
tradicional associado ao patrimônio genético.
8. A noção de conhecimento tradicional é aqui compreendida de forma abrangente, na medida
em que se relaciona com as maneiras de fazer, criar e viver de grupos sociais identificados como
povos e comunidades tradicionais, diferentemente da legislação, que, de forma arbitrária,
distingue e separa patrimônio cultural, patrimônio genético e conhecimento tradicional. A
classificação arbitrária utilizada pelo direito está, pelo visto, relacionada às necessidades do
mercado.
9. No sentido proposto por Certeau (2002, p. 46-47), para quem as táticas são associadas a
performances operacionais que dependem de saberes muito antigos, acionados pelos fracos, que,
ao jogarem com os acontecimentos, buscam tirar partido de forças que lhes são estranhas.
10. Ver Brasil (1950, 1989). Para um panorama da trajetória legislativa no tema, incluindo as
recentes instruções normativas nº 57/2011 e nº 30/2013, ver Ferreira (2013) e Cruz e Santos
(2013).
11. Sobre terras tradicionalmente ocupadas no Brasil, ver Alfredo Wagner Berno de Almeida
(2008b).
12. Para conhecer um pouco mais dos modos de viver e trabalhar das quebradeiras de coco
babaçu, recomendamos o vídeo que pode ser acessado aqui: http://www.slowfoodbrasil.com/
videos/662-video-quebradeiras-de-coco-babacu.
13. São campos de altitude, dada a ocorrência de altitudes superiores a mil metros acima do nível
do mar. Nessa região, os invernos são rigorosos, com temperatura média em torno de 10 ºC, sendo
frequentes temperaturas próximas e abaixo de 0 ºC.
14. Para saber mais a respeito, ver Krone (2009) e Cruz (2012).
15. Ver legislação pertinente no site do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Brasil, 2003). Vale mencionar que, ainda que a instrução normativa nº 57, de 2011, bem como a
instrução normativa nº 30, de 2013, flexibilizem a interdição à comercialização de queijos feitos
de leite cru antes de 60 dias de maturação, são tantas as exigências estabelecidas que, de fato,
essa comercialização é impedida. Para mais detalhes, consultar Cruz e Santos (2013).
16. Instrumento que destaca as qualidades de um produto associadas a um território, atribuindo
singularidade a partir da combinação de características socioculturais e ambientais específicas, as
IGs constituem-se, no Brasil, enquanto modalidade de propriedade industrial (daí seu registro ser
da competência do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – Inpi). Ainda, segundo o artigo
176 da lei nº 9.279/96 (Brasil, 1996), as IGs podem apresentar-se de duas formas: indicação de
procedência (IP) ou denominação de origem (DO).
17. No campo da legalidade, vale lembrar que a adoção de qualquer medida, inclusive jurídica,
que objetive submeter um grupo a condições que impeçam sua reprodução física e cultural se
constitui em crime, previsto na Convenção para a Prevenção e Punição de Crime de Genocídio, de
1948, ratificada pelo Brasil pelo decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952 (Brasil, 1952).
RESUMOS
Este artigo analisa experiências protagonizadas por comunidades cujos modos de vida geram e se
sustentam em conhecimentos tradicionais em face de tentativas de implementação de um regime
global de propriedade intelectual. Estudos de caso sobre quebradeiras de coco babaçu, no estado
do Maranhão, e produtores de queijo serrano, no Estado do Rio Grande do Sul, revelam
significados da tradição implícita no conhecimento que se pretende proteger. Dados empíricos,
analisados jurídica e antropologicamente, evidenciam, apesar de aparente progresso na
legislação, ameaças a múltiplas dimensões de modos de vida fundados em territórios tradicionais.
Argumenta-se que, sem a imediata e integral aplicação da Convenção OIT 169, invertem-se os
efeitos da incorporação de convenções internacionais no ordenamento jurídico nacional, a
exemplo da Convenção da Diversidade Biológica. Conclui-se que as comunidades tradicionais
resistem à ilegal apropriação de seus conhecimentos, enquanto setores privados neles
interessados utilizam-se do estado de direito para legalizar sua pilhagem.
This article is about experiences carried out by communities whose ways of life generate and
sustain traditional knowledge, in contexts of incorporation of international conventions into the
Brazilian juridical system. Case studies on babaçu breaker women, in the State of Maranhão, and
Serrano Cheese producers, in the State of Rio Grande do Sul, reveal the meanings of the tradition
imbued in the knowledge to be protected. Empirical data analyzed under juridical and
anthropological perspectives elicit, in spite of the apparent progress in the legislation, threats to
multiple dimensions of ways of life grounded on traditional territories. Without effective,
immediate and integral application of the ILO Convention 169, current initiatives of
implementation of conventions and laws related to traditional knowledge may have opposite
results. We conclude that traditional communities resist illegal appropriation of their knowledge,
while interested private sectors search for the support of the rule of law to legitimize plundering.
ÍNDICE
Keywords: global regime for intellectual property, ILO Convention 169, rule of law, traditional
communities
Palavras-chave: comunidades tradicionais, Convenção OIT 169, estado de direito, regime global
de propriedade intelectual
AUTORES
NOEMI MIYASAKA PORRO
Universidade Federal do Pará – Brasil
RENATA MENASCHE
Universidade Federal de Pelotas – Brasil
Vanessa Perin
NOTA DO EDITOR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 18/12/2013
Introdução
1 Este artigo baseia-se em uma pesquisa1 mais ampla, que consistiu de modo geral em um
estudo de singularidades do caso brasileiro de acolhida e assistência a grupos
refugiados. Em tal pesquisa procurei etnografar a dinâmica dos atendimentos prestados
a essa população, realizados por um dos programas desenvolvidos pela Cáritas
Arquidiocesana de São Paulo (Casp):2 o Centro de Acolhida para Refugiados (CAR).
2 Nesse sentido, mais do que partir da categoria estanque e fixa de refugiado definida
pela normativa jurídica,3 através da etnografia busquei chegar às múltiplas relações de
poder que iam constituindo esses sujeitos enquanto tais, produzindo-os como um
grupo-alvo de determinados saberes e que deveria, portanto, receber um cuidado e uma
intervenção particular, ou como uma população que precisaria ser gerida 4 por um
aparato institucional.
3 Reconhecido por seus próprios funcionários como um “centro de referência”, o CAR
está organizado enquanto um escritório. Atuando como uma etapa de triagem dos casos
que acessam o aparato institucional responsável por lidar com a população refugiada
que chega ao Brasil, este formado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (Acnur), o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) e por um grande
número de organizações estatais e não governamentais, tal programa de assistência
15 Segundo Jubilut (2005, p. 97), a cooperação entre a Casp e o Acnur para promover
assistência aos refugiados é fruto de uma dupla tradição: “por parte da Igreja Católica a
tradição de se ocupar da questão dos excluídos, entre os quais a população refugiada, e
por parte do Acnur a tradição de buscar organizações locais para serem suas agências
implementadoras”. Os principais objetivos dessa agência seriam os de providenciar a
proteção aos refugiados e promover a implementação do que determina como soluções
duráveis: repatriamento, integração local e reassentamento.
16 Para realizar tais objetivos o Acnur atua diretamente em situações caracterizadas pela
agência como emergenciais, tais como territórios em guerras civis ou regiões em que
ocorreram desastres naturais. Nas situações consideradas como não emergenciais, em
alguns territórios de recepção de refugiados, por exemplo, a atuação é feita por meio de
trabalhos de cooperação com as agências e governos locais, recorrendo principalmente
à cooperação com ONGs que estejam mais próximas da realidade local. Estas se tornam
suas agências implementadoras, que por meio da coordenação e do financiamento do
Acnur vão desenvolver seus três programas: proteção, assistência e integração.
17 No cotidiano dos atendimentos aos refugiados e solicitantes de refúgio no CAR a
atuação do Acnur é pouco perceptível. Onde mais se nota sua “presença” é nos cartazes,
pôsteres e quadros de campanhas da agência que decoram todo o escritório. Sua ação
acaba sendo indireta, através dos financiamentos para os projetos: a assistência
humanitária do Acnur chega aos refugiados e solicitantes através do auxilio para
transporte, para a compra de remédios, das cestas básicas, pela manutenção dos
programas de saúde mental e de proteção. No entanto, aos refugiados e solicitantes em
si só é possível apreender a atuação da Casp, que é quem realiza diretamente o trabalho
de assistência a partir do financiamento externo.
18 No que se refere aos funcionários, porém, o relacionamento com o Acnur é sempre
apontado como muito bom e próximo, constituindo uma dimensão importante para o
trabalho que é realizado no CAR. Segundo as advogadas, por exemplo, o Acnur não só é
a agência que paga seus salários, mas é quem faz todo o seu treinamento para o
atendimento e mantém ainda um estreito contato para o esclarecimento de dúvidas
sobre esse atendimento e na elaboração dos pareceres de cada pedido de refúgio.
19 Apesar de umas das funções definidas do Acnur ser a de coordenar os projetos
desenvolvidos pelas agências implementadoras, a relação dessa agência com os
funcionários do CAR acaba sendo próxima daquela que é estabelecida entre este e as
organizações da sociedade civil também atuantes na causa do refúgio: a de parceria.
Isso se deve, principalmente, a certa consonância entre os valores que guiam o trabalho
no CAR e aqueles estabelecidos pelo Acnur em sua atuação. Ambos estão ligados
principalmente à noção de que o trabalho realizado deve ser humanitário. O caráter de
parceria se estabelece por estarem em um mesmo regime de valores.
20 Em seu pronunciamento em comemoração ao dia mundial do refugiado do ano de 2008,
por exemplo, o então alto comissário das Nações Unidas para o Refúgio afirmava que o
trabalho do Acnur estaria focado na proteção dos direitos e bem-estar dos refugiados e
também em assegurar o acesso à segurança, à assistência humanitária, ao apoio em
longo prazo e em soluções duradouras para que estes sujeitos pudessem reconstruir
suas vidas. Ele encerra seu pronunciamento dizendo que garantir que os refugiados
obtenham a proteção que merecem é uma causa nobre porque os direitos dos
refugiados são direitos humanos – direitos que pertencem a todos nós. É possível notar
em sua fala como o trabalho da agência parte da noção de que o trabalho desta deve
atuar na recuperação dos direitos dos refugiados enquanto seres humanos. Perspectiva
que também informa não só o trabalho da Casp enquanto agência implementadora do
Acnur, mas as organizações da “sociedade civil organizada” pela causa do refúgio de
modo geral, conformando um dos pontos fundamentais no referido regime de valores
dessas instituições.
O aparato estatal: a Polícia Federal e o Conare
bastante diferente da que é estabelecida com o Acnur. Nos regimes de valores que estão
em jogo na relação entre essas agências não está mais marcado o “humanitarismo”, mas
principalmente as noções de “segurança nacional” e de “administração”.
22 Na Casp o relacionamento com a Polícia Federal é sempre apontado como instável,
tendo períodos de maior ou menor cooperação entre as instituições:
Tem fases em que a gente faz reuniões com eles, aproxima muito a relação. Fica
fácil. A gente liga, eles respondem, resolvem. Tem fases que não. E tem muita
Policia Federal também no interior, que não conhece a gente e agora começam a
receber solicitantes de refúgio e refugiados. Não sabem o que fazer, porque é um
fato novo lá. E aí é um pouco difícil esse contato. Quando a gente liga [dizem] “Que
é? Uma ONG querendo me dar ordens?” E depois com o tempo, como a gente acaba
ajudando, aí eles entendem que a gente não está querendo nada mais do que as
funções, as obrigações deles. Acaba melhorando com o tempo. Mas com a Polícia
Federal é um pouco complicado. (Advogada do CAR).
23 Nos meses em que realizei o trabalho de campo no CAR a relação estava conturbada
devido a cancelamentos sem aviso prévio de muitas entrevistas para solicitação de
refúgio já agendadas e de denúncias sobre pessoas que estariam ficando retidas por
semanas nos aeroportos, em uma área restrita e com poucos recursos, denominada
pelos funcionários como “conector”. As tentativas da Casp de intermediar situação não
estariam sendo “bem vistas”:
Porque a gente não pode se meter de uma forma direta. Porque não é a nossa
função. A função da Cáritas é, chegou aqui dentro do escritório, a gente presta o
auxílio. Se a pessoa está presa no aeroporto, a Polícia Federal está fazendo um
serviço de investigação sobre aquela pessoa. Se a gente fica insistindo com a Polícia
Federal de que tem que retirar ele de lá, a gente cria um atrito direto com ela.
(Advogada do CAR).
24 Em casos assim é preciso saber manter a relação “diplomaticamente”, diz a
coordenadora do CAR, para que cada um possa realizar suas respectivas funções.
A Polícia Federal tem o seu eixo na segurança pública. Então todo estrangeiro –
imigrante ou refugiado – é supostamente uma pessoa que pode ferir a segurança
nacional. Então eles tomam muitos cuidados. E esse excessivo cuidado, muitas vezes
deixa alguém, que é solicitante de refúgio, lá na Polícia Federal esperando eles
fazerem uma investigação que pode ser demorada. Eles ficam lá às vezes por um
tempo muito longo, até que eles liberem. A gente tem tido um bom relacionamento.
Só que eles alegam isso: “Olha, é questão de segurança. Eu não posso deixar
qualquer pessoa entrar.” E a gente acha isso ruim, porque a gente gostaria que eles
fossem mais ágeis e aqueles que não estão ferindo a segurança nacional, que eles
liberassem com mais rapidez. […] Eles trabalham da maneira deles, alegando a
segurança nacional. E nós preservamos os direitos humanos dos solicitantes de
refúgio.
25 Já em relação ao Conare, o relacionamento é apontado como “profissional”,
“administrativo” ou “burocrático”.
A nossa relação com eles é basicamente administrativa. O contato que eu tive com o
pessoal do Conare foi superprodutivo. Foi bem administrativo mesmo, mas foi
superpositivo. […] A gente tem aí uma boa comunicação de forma geral. Com o
Ministério da Justiça, que é um órgão a que nós estamos de certa forma
subordinados, é a mesma questão administrativa do Conare. Que é um órgão
específico do Ministério da Justiça. (Advogada do CAR).
No que a gente precisa eles dão apoio. Cada um dentro da sua estrutura […]. Só que
tem um número limite de funcionários. Então às vezes uma coisa que você precisa
de urgência não sai na hora. Mas são coisas burocráticas. (Coordenadora do CAR).
autorização já havia sido enviada, o que gerava muitos conflitos. Elas diziam que não
adiantava vir ao escritório, pois isso atrasava os demais atendimentos, que era melhor
ligarem ou esperarem que as assistentes sociais entrassem em contato. Eles por sua vez
reclamavam da demora e muitas vezes não compreendiam que “o problema é em
Brasília”, que não era a Casp, mas o governo brasileiro quem emitia a declaração
autorizando a expedição do protocolo.
42 Com o protocolo em mãos é agendado para esse solicitante um horário com a assistente
social do setor de integração, que lhe dá um encaminhamento para que possa fazer a
carteira de trabalho e posteriormente um CPF, nos órgãos responsáveis por essa
documentação. Assim como o protocolo, enquanto documentos provisórios, a carteira
de trabalho precisa ser renovada a cada três meses, até que seja deferido ou negado o
pedido de refúgio. Para cada renovação, o mesmo procedimento: agendar um
atendimento, pegar o encaminhamento, ir ao órgão responsável pela emissão do
documento, voltar ao CAR para o próximo procedimento.
43 Em meio a esse percurso de pessoas e de documentos por entre instituições, os
solicitantes de refúgio, a cada nova documentação que obtêm, vão sendo produzidos
como sujeitos específicos perante o Estado brasileiro: sujeitos passíveis de serem
categorizados e reconhecidos dentro do status jurídico de refugiado. E cada organização
pela qual passa acessa uma parte apenas da composição que conforma esse sujeito
refugiado, por isso precisam trabalhar em interdependência. Sem o encaminhamento do
CAR, a Polícia Federal não compreende esse sujeito como um solicitante de refúgio, mas
genericamente como estrangeiro. Sem o termo de declarações, enviado pela Casp, o
Conare não inicia o processo de solicitação de refúgio, pois tal estrangeiro genérico não
se inclui em sua alçada administrativa específica. E, enfim, sem a autorização do Conare
para a emissão do protocolo provisório, em papel timbrado, carimbado e assinado pela
Casp, a Polícia Federal não emitirá o documento para esse solicitante.
Consequentemente, ele não existirá enquanto refugiado perante o Estado brasileiro e
não poderá receber a assistência humanitária da Casp ou do Acnur.
44 Feita essa primeira documentação provisória e as entrevistas na Polícia Federal e na
Casp, os solicitantes aguardam que um advogado representante do Conare venha à Casp
realizar uma das partes do parecer sobre seu caso. Posteriormente, esse advogado
relata seu parecer a um Grupo de Estudos Prévios (GEP), formado por representantes
dos ministérios que compõem o Conare,7 por um representante do Acnur e um
representante da sociedade civil. As partes do GEP elaboram um parecer sobre o caso e
o apresentam na reunião plenária do Conare.
45 Como me disse um refugiado, “a burocracia não acaba nunca”. O atendente da recepção
do CAR tem uma justificativa para isso: “Essa burocracia toda dá muito trabalho para a
gente, mas é uma forma de ter um controle. Se não eles desaparecem.” Uma voluntária
também fez uma observação interessante sobre a presença constante dos solicitantes
no escritório por conta da documentação e da assistência que este oferece que ajuda a
entender o que caracteriza este mecanismo de governo: “É como se fosse mantido um
campo de refugiados, só que sem as cercas. Só através da burocracia.”
46 Tanto a fala do atendente quanto a da voluntária evidenciam um problema para essas
organizações que lidam com os refugiados: como enxergá-los como uma população
específica em meio à população nacional? Como fazer com que esses sujeitos apareçam,
não só para o programa de assistência da Casp, mas também que sejam legíveis para o
olho do Estado? O efeito produzido por essa malha burocrático-administrativa é criar
sujeitos legíveis, que sejam mantidos não em um campo de refugiados com cercas, mas
em um campo de visibilidade determinado. Esse é seu mecanismo de governo.
47 Pensando sobre a forma como o Estado acessa a população que busca governar, Scott
(1998) destaca a produção de um mecanismo de legibilidade como a condição
primordial para qualquer intervenção estatal. Tal mecanismo requer a invenção de
unidades que sejam visíveis e padronizáveis. Um documento de identidade ou uma
ficha de cadastro confere essa existência a um sujeito perante o Estado. A burocracia é
uma forma de tornar os sujeitos legíveis em meio a uma realidade complexa que o
aparato estatal por si só não consegue acessar diretamente. Trata-se de um processo de
simplificação da complexidade dessa população, que, no entanto, torna o fenômeno que
está no centro do campo de visão mais acessível e ainda mais suscetível a uma
mensuração cuidadosa. O procedimento burocrático produz um mapa, uma forma de
escalonar e categorizar uma população não por um processo de redução de sua
complexidade, mas recortando-a, estabilizando-a e fixando-a. Tal procedimento
permite que essa população se torne visível.
48 Se aprovado o pedido de refúgio, o solicitante se registra junto à Polícia Federal para
receber seu Registro Nacional de Estrangeiro e assina um “termo de responsabilidade”
vindo do Conare – ele já é legível como “refugiado”. Se o pedido é indeferido o
solicitante tem um mês, desde sua notificação, para sair do país ou para entrar com um
recurso perante o Ministério da Justiça. Uma das advogadas do CAR explica o que
acontece “na prática”, quando um pedido é indeferido:
Aí, dizem que ele não é refugiado. Ele volta aqui e eu o ajudo a preparar um recurso
para ser enviado ao Ministério da Justiça. A palavra final é do ministro da Justiça. Se
também é pelo indeferimento, aí qual é a situação do refugiado? Ele é comunicado
pela Polícia Federal que tem um prazo para deixar o território brasileiro. […] Eles
recebem esse comunicado, “se você não deixar o país, você vai passar por um
processo legal de deportação”. E o que acontece na prática? Na prática essa pessoa
acaba sumindo no território brasileiro, porque o governo não tem verba para fretar
um avião e deportar todo mundo que está numa situação ilegal […]. Essa pessoa fica
aqui em uma situação de limbo jurídico […]. A possibilidade dela é se casar com
brasileiro, ter filho brasileiro. E aí ela entra em um processo de solicitação dos
documentos por causa disso.
49 Ficar no “limbo jurídico” é não ser visto pelo mecanismo do olho do Estado. “Na prática”
esse sujeito desaparece porque a burocracia acionada por esse aparato de governo,
apesar de constituir um determinado mapa de visibilidade, é um mecanismo que
enxerga mal e parcialmente. Não é todo recorte da “prática” que a burocracia consegue
estabilizar e administrar, mantendo a visibilidade de seus elementos organizados. Há
dimensões do “real” como chama Scott, ou da “prática” como diz a advogada, que lhe
escapam o tempo todo. Seu mapa é sempre parcial e representa apenas a parte do real
que interessa à observação estatal (Scott, 1998). A dimensão burocrático-administrativa
precisa de outros mecanismos que operem juntamente a ela para produzir esse sujeito
plenamente visível e, logo, melhor governável.
A produção do refugiado como um sujeito de direitos
pleno: a esfera assistencial-humanitária
50 Documentos, relatórios, fichas cadastrais jogam luz e permitem acessar apenas uma
parcela da complexidade que conforma a população específica que procuram
eles vêm retirar no escritório. A outra opção é fazer um cartão de alimentação do Sesc-
Carmo, localizado a alguns quarteirões da Casp, que possibilita refeições a baixo custo
no restaurante da instituição. Esse último auxílio só é permitido para aqueles que ainda
não possuem o visto que permite a permanência definitiva no Brasil.
61 Proporcionando-lhes moradia, alimentação e saúde, mais do que simplesmente oferecer
um auxílio, o programa do CAR produz este refugiado com um sujeito de direitos
perante o Estado brasileiro. Um efeito do programa de assistência, portanto, é o de
buscar criar sujeitos que possam se tornar cidadãos plenos. No entanto, se o setor de
proteção confere determinados direitos civis a esses sujeitos e o de assistência busca
prover seus direitos sociais, os direitos políticos que conformariam o cidadão pleno de
fato, almejado pelos gestores da Casp, por militantes da sociedade civil e pelo próprio
aparato estatal, só são alcançados depois de anos e do trabalho constante do setor de
Integração para que esse sujeito de direito não volte a “desaparecer”, se tornando
ilegível para o olho do Estado.
Integração
Por exemplo, teve um que chegou para mim e falou assim “pela primeira vez na
minha vida eu estou trabalhando”, porque tinha um registro na carteira. Eu falei:
“Não, amigo, no seu país você trabalhava. Só que é diferente.” Aqui nós temos uma
legislação e a obrigatoriedade de um trabalho mais formal. Tem muita
informalidade ainda, que é o que a gente quer quebrar. Porque se ele já vem de lá
para cá, sem nenhum comprovante de trabalho e continua se sujeitando a fazer
bico, ou a trabalhar, sabe… ilegalmente, nunca vai ter uma empresa que chegue
para ele e fale “não, esse daqui eu vou pegar”. E a gente cria essa sensibilização para
o trabalho formal para que ele expanda o trabalho aqui. Se ele tiver um primeiro
registro e der continuidade aos estudos, à formação dele, ele tem a tendência a
crescer.
66 Outro motivo para que a instituição incentive o trabalho formal é que não fiquem “na
rua”, encarada como um espaço perigoso de trabalho para os estrangeiros, mesmo
documentados e com sua situação legal no país regularizada.
67 Desde o primeiro momento em que chegam ao Brasil, a procura por trabalho é uma das
principais motivações para que os solicitantes de refúgio e refugiados procurem o CAR.
A busca por uma documentação que permita que tenham sua situação legalizada está
estreitamente vinculada, para muitos, à questão de quererem trabalhar.
68 Como citado acima, a outra frente de atuação do setor está relacionada à educação. Em
relação a essa questão, o trabalho da assistente social nesse setor consiste
principalmente em encaminhar refugiados e solicitantes aos cursos que lhes
interessem, sendo maior a oferta de cursos técnicos e profissionalizantes. As principais
parcerias que oferecem cursos técnicos aos refugiados, e também educação formal, são
aquelas do chamado “sistema S”. Existe ainda o projeto com universidades públicas
federais que reservam vagas em seus vestibulares para refugiados já reconhecidos.
69 Todos os projetos e programas acima são voltados para os refugiados apenas. Mas em
certo momento, conta a assistente social do setor de Integração, sentiu-se a necessidade
de que algo fosse feito também para os solicitantes. Foram então estabelecidas outras
parcerias com ONGs para que cursos técnicos fossem oferecidos a eles. Através da
parceria Casp/Sesc-Carmo também é oferecido um curso de língua portuguesa de nível
básico.
70 A questão da educação para os refugiados e solicitantes de refúgio, assim como a da
documentação, está estreitamente vinculada à problemática do trabalho. De maneira
geral, a integração dos refugiados gira muito em torno desse fator. A psicóloga do CAR
destaca que fora essa via, a Casp não tem uma estrutura que de fato estimule um
processo de integração.
Eles acabam não formando uma rede social. […] Acho que tem uma preocupação,
claro, que é a preocupação primária, de abrigar essas pessoas. De elas terem o que
comer, o que vestir, mas não existem de fato projetos de integração dessas pessoas
na sociedade, a não ser pela via do trabalho. Mas até que isso aconteça, o que acaba
levando alguns meses, as pessoas ficam meio à deriva.
71 Como me colocou a assistente social responsável pelo programa de integração, o
solicitante de refúgio já pode começar o processo de integração quando já está com a
documentação em dia. O refugiado que já pode ser integrado é aquele que enfim já é
compreendido como um sujeito de direitos, que poderá ser um cidadão pleno, e que é
visível, portanto, ao olho do Estado. O processo de integração também vai tratar de
mantê-lo assim, gerindo o que escapa a esse mecanismo de governo, seus pontos cegos 8 –
o “se virar”, o trabalho informal, a rua, a deriva, a ilegalidade – através de mecanismos
BIBLIOGRAFIA
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VARESE, L. Três elos da corrente dos direitos humanos. Caderno de Debates Refúgio, Migrações e
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VIANNA, C. M. Os enleios da tarrafa: etnografia de uma parceria transnacional entre ONGs através
de emaranhados institucionais de combate à pobreza. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
NOTAS
1. Pesquisa financiada pela Fapesp.
2. Organização não governamental (ONG) católica ligada à rede Caritas Internationalis, que
desenvolve e financia projetos de ajuda humanitária e de desenvolvimento social em todo o
mundo. A Casp é atualmente um dos principais organismos responsáveis pelo trabalho de
recepção, assistência e integração dos refugiados e solicitantes de refúgio que chegam ao Brasil.
3. Um refugiado é caracterizado como aquela pessoa que tem de sair de seu país de origem em
razão de um fundado temor por sua vida, segurança ou liberdade, uma vez que tal país não quer
ou não pode mais oferecer-lhe proteção (Moreira, 2006). Conforme a Convenção de 1951 sobre o
Estatuto dos Refugiados da Organização das Nações Unidas (ONU) as causas reconhecidas para a
solicitação de refúgio são baseadas em um fundado temor de perseguição por raça, etnia, religião,
grupo social ou político. A legislação brasileira também reconhece como refugiado aquela pessoa
que devido a contextos de grave e generalizada violação de direitos humanos teve de deixar seu
país de nacionalidade.
4. Partindo de uma perspectiva foucaultiana, compreendo gestão como uma nova forma de
intervenção estatal que vai fazer com que regulamentações necessárias e encaradas como
naturais possam atuar. Gerir consistiria, simultaneamente, em deixar fazer, manipular, facilitar,
suscitar as condutas dos sujeitos no nível da população, modulando os fenômenos desta, para
mantê-los próximos a uma curva de normalidade (Foucault, 2008).
5. O programa possui quatro assistentes sociais, sendo que duas não são funcionárias da Casp,
mas contratadas por um convênio com o Conare e com o Acnur. Possui ainda duas advogadas,
uma psicóloga, uma psiquiatra e uma contadora responsável pelo setor financeiro, além da
coordenadora do programa e de uma secretária.
6. Entendido como um tipo de exercício de poder, uma técnica de direção das condutas, que
incide sobre as populações, possibilitado por um complexo de saberes, instituições, cálculos,
táticas, análises e práticas, ao qual Foucault (2008) define como governamentalidade.
7. O Conare é composto pelos ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, do Trabalho e
Emprego, da Educação e da Saúde. Também participa do comitê o departamento de Polícia
Federal.
8. A noção de ponto cego, no contexto específico deste trabalho, refere-se às dimensões do real
(Scott, 1998) que não são legíveis ao mecanismo de governo descrito, por não poderem ser
mapeadas e estabilizadas por ele. Aproxima-se da noção de “limbo” mobilizada pelos
funcionários do CAR para se referirem às relações que não são apreendidas pelo aparato
burocrático e assistencial que operam, uma vez que não se encaixam nas categorias e normas
particulares que este produz. Nesse caso, portanto, não se trata da mesma mobilização da noção
de ponto cego feita por Vianna (2010, p. 32), que a compreende como a forma pela qual “a relação
oficial entre organizações revela-se, no exame etnográfico, o efeito de alianças firmadas entre
seus fragmentos, que se engancham a emaranhados institucionais de alcance em geral muito
mais longo do que aquela simples relação pode levar a crer”. No contexto desta pesquisa, porém,
a noção de ponto cego descrita por Vianna pode ser percebida no modo como “Brasília” se
apresenta distante e ilegível para os solicitantes de refúgio, que só acessam diretamente
dimensões do trabalho cotidiano realizado no CAR. A organização Conare fica assim eclipsada
pelo CAR, constituindo seu ponto cego nesse trecho do emaranhado institucional de longo alcance
a que se conecta.
RESUMOS
Através do trabalho etnográfico realizado em um dos programas assistenciais da Cáritas
Arquidiocesana de São Paulo, o Centro de Acolhida para Refugiados (CAR), o presente artigo
procura descrever a malha de relações estabelecidas pelo aparato de governo das populações
refugiadas no Brasil. Conectado a organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados, o Comitê Nacional para Refugiados, dentre outras organizações, o trabalho do CAR é
parte de um dispositivo institucional mais amplo, que envolve, além da assistência humanitária,
ações simultâneas de administração e controle que perpassam essa população. Procuro, assim,
compreender como tal aparato coloca em operação um mecanismo de governo – aqui
denominado olho do Estado – e como este produz um sujeito que lhe seja apreensível, a partir da
análise das relações estabelecidas entre os refugiados e as diversas organizações com as quais
entram em contato ao solicitarem refúgio: o “campo de refugiados sem cercas”.
ÍNDICE
Keywords: government apparatus, organizations, refuge, state
Palavras-chave: aparato de governo, Estado, organizações, refúgio
AUTOR
VANESSA PERIN
Fundação Casa de Rui Barbosa – Brasil
Carlos Santos
2 Los efectos más evidentes de estos procesos son el acaparamiento de tierras por un lado
(conocido en inglés como land grabbing), y el avance de las políticas de conservación de
la naturaleza (como el establecimiento formal de áreas protegidas), por otro. Ambos
son exponentes de lo que Philippe Descola ha denominado “naturalismo”, o sea
expresiones de la relación alienada de la naturaleza propias de las sociedades
occidentales. La primera bajo la forma de un naturalismo “depredador” y la otra bajo
un naturalismo “conservacionista”.
3 En este artículo se analizan los impactos que estos dos procesos de escala global
producen en un espacio en particular. A partir de la implementación del Parque
Nacional Esteros de Farrapos e Islas del Río Uruguay 1 y del análisis del proceso de
expansión del agronegocio2 en el departamento de Río Negro (litoral oeste de Uruguay),
se pudo apreciar el proceso de deterioro en las condiciones de vida de los pescadores,
apicultores, cazadores y productores familiares del entorno de esta área protegida.
La preocupación global por la protección de la
naturaleza
4 La expansión de las áreas protegidas en los últimos años puede entenderse como parte
del proceso de globalización; la cuestión ambiental es una de las primeras
preocupaciones necesariamente no locales de la sociedad, los estados y la
institucionalidad internacional lo que ha tenido como contraparte la identificación de
la biodiversidad como uno de los primeros objetos de la preocupación global sobre la
naturaleza.
5 En los últimos cuarenta años a lo largo y ancho de todo el mundo se ha producido una
verdadera explosión de áreas naturales protegidas establecidas formalmente. Mientras
que en la década del sesenta en todo el planeta había poco más de 1.000 áreas
protegidas oficiales, en 2006 el número llegaba a más de 108.000. Esta expansión tuvo su
punto de inflexión en la Convención sobre Biodiversidad de Naciones Unidas (que
formó parte de los acuerdos de la Cumbre de la Tierra). Allí se estableció el acuerdo de
proteger al menos un 10% de la superficie global, habiéndose superado el 12%, más de
30 millones de kilómetros cuadrados (Dowie, 2006).
6 Las áreas protegidas o parques naturales existen en Uruguay desde mediados del siglo
XX, pero su incorporación dentro de un Sistema Nacional de Áreas Protegidas (SNAP),
gestionado desde el Estado central es una novedad de comienzos del siglo XXI.
7 Entendidas como parte de una estrategia de desarrollo sustentable, las áreas naturales
protegidas implican la opción por un determinado modelo de desarrollo. Esta opción es
válida tanto cuando la declaración de área protegida para un territorio determinado es
adoptada por las autoridades ambientales, por las comunidades que viven en el
territorio o en su entorno, o aún en la definición de actores académicos o no
gubernamentales aplicados a la conservación de recursos naturales. Sin embargo tal
opción no siempre es explícita ni manifiesta en el mismo grado para todos los actores
involucrados.
8 Las áreas naturales protegidas tienen implicaciones sociales, entre otras, la aparición
de nociones sobre ambiente y naturaleza, en lugares donde no necesariamente existían
como tales hasta hace muy poco tiempo. Por otra parte, la participación social,
recomendada, reclamada y asumida, muchas veces es vista como un fin en sí misma,
como una etapa necesaria en la implementación de las áreas protegidas, sin cuestionar
sus procesos, criterios u objetivos.
La presión global sobre la tierra
9 El proceso definido como “acaparmiento mundial de tierras” es en términos concretos
el nombre que recibe “la actual explosión de operaciones comerciales (trans)nacionales
de tierras que giran en torno a la producción y venta de alimentos y biocombustibles”
(Borras Jr.; Franco, 2010, p. 2). Este término ha sido acuñado para denunciar los
impactos de este proceso global sobre la vida de los campesinos y agricultores
familiares, quienes sufren en concreto los efectos de esta dinámica global de
concentración.
10 Esta nueva fase de expansión del capital –conducida por el capital financiero a nivel
trasnacional– es una suerte de respuesta o salida a las crisis generadas por la
especulación, a partir de una necesidad de anclar la riqueza en los recursos naturales.
En términos de Borras Jr. y Franco (2010, p. 4) “la confluencia de las diversas crisis ha
desembocado en una revaloración de la tierra, que apunta hacia un incremento
significativo de su valor económico”. Solamente en el período comprendido entre 1990
y 2005, la tierra cultivada de todo el planeta aumentó 2,7 millones de hectáreas al año
(The World Bank, 2010, p. x). El propio Banco Mundial –responsable de las políticas
financieras y de desarrollo que han desencadenado estas dinámicas en las últimas
décadas– ha advertido la disparidad de este aumento en los países del Tercer Mundo:
el deterioro en los países industrializados y de transición (de -0,9 y -2 millones de
hectáreas, respectivamente) fue más que compensado por incrementos de 5,5
millones de hectáreas por año en los países en desarrollo. La expansión de la tierra
cultivable, que habría sido mucho más amplia sin los aumentos en productividad, se
concentró en el África subsahariana, América Latina y el sudeste de Asia. (The
World Bank, 2010, p. x, traducción mía).
11 Los conductores de del acaparamiento de tierras, han sido la producción de aceites
vegetales, la caña de azúcar, el arroz, el maíz y las plantaciones forestales.
Particularmente sobre América Latina, el cultivo de soja desde la década del 90 y más
recientemente los cultivos de árboles han dinamizado una reforma agraria al revés, que
ha conducido a la concentración de la propiedad de la tierra en detrimento de
campesinos y agricultores familiares.
12 El avance sobre las tierras cultivables de los países del Tercer Mundo ha implicado no
solamente una modificación de los rubros de acción del capital financiero, sino un
aprovechamiento diferencial de las capacidades productivas de estos países, en
beneficio de los inversionistas.
13 Es necesario identificar los actores que están detrás de este proceso de acaparamiento
de tierras. Oyhantçabal y Narbondo (2011, p. 113) sostienen que
Los inversores provienen de todas parte del mundo, aunque es cada vez más
relevante el interés de las potencias emergentes asiáticas China e India, que hasta
2009 acumulaba inversiones en Latinoamérica por U$S 22.000 millones en toda su
historia, creció exponencialmente durante 2010 con el anuncio de nueves grandes
operaciones por casi U$S 17.000 millones. Por su parte, de las diecinueve
inversiones chinas en Latinoamerica desde 2005, quince se destinaron a la
producción de materias primas.
14 En el caso de América del Sur, algunas empresas de origen brasileño han reproducido
está dinámica global de acaparamiento sobre los demás países de la región, lo que
obliga a pensar no solamente en la nacionalidad de los ‘apropiadores’ sino en el papel
que juegan en la cadena global de un agrocomplejo de producción de alimentos y
energía.
De lo global a lo local: un área protegida en un enclave
de agronegocio
15 El espacio local donde pretendemos aterrizar estas discusiones (la confluencia de las
políticas de conservación y el acaparamiento de tierras) es el Parque Nacional Esteros
de Farrapos e Islas del Río Uruguay, ubicado en el departamento de Río Negro, en el
litoral oeste de Uruguay. Uno de los principales elementos a tomar en cuenta para la
elección de esta área como objeto de estudio es el hecho de que se trata de una de las
pocas áreas nuevas en el proceso de incorporación al SNAP, ya que la mayoría de las
que se encuentran proyectadas o han ingresado ya contaban con un carácter previo de
conservación o protección (por ejemplo a nivel municipal). Por otra parte, Farrapos es
un área que ingresó al SNAP a fines de 2008 y aún se encuentra en proceso de
implementación. El área se puede caracterizar como un humedal con islas fluviales que
se ubica en ambas márgenes del Río Uruguay. Este humedal se extiende desde la ciudad
de Concepción (en la margen argentina), mientras que a la altura de la localidad de San
Javier el humedal cruza a la margen uruguaya, extendiéndose en ambas márgenes hasta
la altura de la ciudad de Fray Bentos.
16 El área delimitada como protegida abarca una superficie de 6.327 hectáreas, que
actualmente son propiedad del Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y
Medio Ambiente (desde agosto de 2001, mientras que su anterior propietario era el
Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca, a cargo del Instituto Nacional de
Colonización). Como plantea Diegues (2005, p. 39) para el caso de Brasil, el área de
Farrapos fue delimitada estrictamente en base a criterios científicos; “los denominados
‘atributos naturales de los ecosistemas’ definidos por la biología, ecología no humana,
son considerados los únicos criterios ‘científicamente’ válidos para administrar el
espacio y los recursos naturales”.
17 El interés para la conservación de estos esteros es su carácter de representatividad de
los humedales de zonas transicionales entre áreas tropicales y húmedas, su papel en la
regulación hidrológica del río Uruguay y su carácter transfronterizo (con Argentina),
además de una serie de especies particulares de flora y fauna.
La producción (global) de un área protegida (local)
18 Siempre los eventos que se suceden en un determinado espacio están afectados por
dinámicas que le trascienden. Pero este escenario de la ruralidad y la conservación
globalizadas plantea ejemplos particulares de cómo la vida cotidiana de un territorio
específico está limitada por eventos transnacionales. Por ejemplo, ¿qué tienen en
común la ciudad iraní de Ramsar, a orillas del Mar Caspio, con la ciudad suiza de
Montreax a orillas del lago del lago Lemán, con los Esteros de Farrapos, a orillas del río
Uruguay? En principio, claro, las tres están ubicadas sobre importantes cursos de agua.
Pero más allá de esta evidente y rebuscada conexión, algunos de los procesos por los
que ha pasado la zona de Farrapos están directamente vinculados con acontecimientos
que sucedieron en Ramsar y Montreux, como veremos a continuación.
19 En el año 2000, el Ministerio de Vivienda Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente
adquirió un predio de 6.327 hectáreas en el Departamento de Río Negro, que
comprende la zona de los llamados Esteros de Farrapos. Anteriormente el predio
pertenecía al Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca y era gestionado por el
Instituto Nacional de Colonización. El objetivo de este traspaso fue la incorporación de
Farrapos a al Sistema Nacional de Áreas Protegidas que había sido aprobado por ley ese
mismo año.
20 En el año 2004 a iniciativa de la Dirección General de Recursos Naturales Renovables del
Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca (DGRNR), los Esteros de Farrapos y dos
islas del Río Uruguay ubicadas al sur de los Esteros, fueron presentadas como sitio a ser
incluido en la Convención Ramsar, la Convención de Naciones Unidas para la
protección de humedales. Precisamente la DGRNR era en ese entonces el punto focal del
Estado uruguayo para esta Convención.
21 El sitio Ramsar tiene una extensión de 17.496 hectáreas, 6.917 corresponden a islas del
Río Uruguay, 6.972 corresponden al Estero de Farrapos y 3.607 corresponden a la
superficie del espejo de agua del Río Uruguay (DGRNR-MGAP, 2004).
22 Además del propio valor para la conservación que presentan los Esteros de Farrapos,
otra situación incidió en que el Estado uruguayo los postulara para su inclusión en la
Convención Ramsar, y esto tiene que ver con el llamado Registro de Montreax.
23 Este registro es una suerte de lista negra de todos aquellos países que habiendo
ratificado el Convenio e incluido sitios bajo su amparo no han cumplido con las pautas
de conservación establecidas como compromiso.
24 Uruguay ratificó el Convenio de Ramsar en 1971. A fines de la dictadura militar (en
1984) el Estado uruguayo incluyó los Bañados del Este como sitio a ser contemplado
dentro del Convenio. Sin embargo, también como herencia de la dictadura, se permitió
“la existencia de áreas de humedales intervenidas y abocadas a agricultura bajo riego
(arroz)” (DGRNR-MGAP, 2008, p. 29), lo que hizo que en 1990 la Conferencia de las
Partes del Convenio de Ramsar pusiera en marcha este Registro de Montreux y los
Bañados del Este de Uruguay quedaran incluidos en él. La “intervención” que el
gobierno militar permitió sobre los Bañados del Este, afectó a una casi la cuarta parte
del sitio Ramsar (o sea, unas 100.000 hectáreas del sitio total de 400.000). Para salir del
Registro de Montreux, el Estado uruguayo debe incluir sitios por una superficie
equivalente a esas 100.000 hectáreas.
25 La importancia del Registro de Montreaux no tiene que ver solamente con una cuestión
de “imagen” del Estado: quienes están en este registro ven estrictamente limitada su
aspiración a la postulación de fondos internacionales para la conservación de estos
sitios.
26 La “estrategia nacional” para “sacar el Sitio Bañados del Este y Franja Costera del
Registro de Montreux” consiste en “tomar las medidas necesarias para revertir la
situación de la superficie que decidió la ubicación del sitio en el Registro y
paralelamente, compensar esa superficie (aproximadamente 96 mil hectáreas) con la
creación de nuevos sitios” (DGRNR-MGAP, 2008, p. 29).
27 Dentro de esos nuevos sitios, están los Esteros de Farrapos: un sitio “compensatorio” de
la zona de los Bañados del Este, humedales que fueron incluidos en la Convención pero
cuya conservación no fue debidamente atendida por el Estado (que se había
comprometido a ello al ponerlos al amparo de la Convención).
28 En el año 2008, se realizó la audiencia pública y se incorporó Esteros de Farrapos al
SNAP, bajo la categoría de “Parque Nacional”, constituyéndose en la segunda área en
ingresar al sistema (la primera había sido unos meses antes Quebrada de los Cuervos en
el departamento de Treinta y Tres). El área que se declara como área protegida e
ingresa al SNAP corresponde a los Esteros de Farrapos, la región continental del sitio
Ramsar y no incluye –al menos en esta etapa– las islas del río Uruguay, las que
ingresarían en una etapa posterior. En el año 2009 el SNAP designó un encargado del
área y en 2010 se ha conformado un equipo con tres trabajadores de campo para el área
(guardaparques y guarda-islas) al tiempo que comenzó a funcionar la Comisión Asesora
Específica (CAE) de Esteros de Farrapos e Islas del Río Uruguay (Boletín SNAP, 2010). En
2103 aún continúa en proceso de elaboración el Plan de Manejo del área que establecerá
los límites del área de amortiguación así como las actividades permitidas y su
distribución dentro del parque nacional y su entorno.
Sobre intensificación agrícola y desigualdades
sociales
29 Por otro lado, hemos sostenido previamente que la tendencia histórica hacia la
concentración de los medios de producción (particularmente, la tierra) ha afectado las
condiciones de reproducción social de los habitantes del campo. Esto no es una novedad
de los procesos novedosos como el acaparamiento de tierras. Lo novedoso es la
intensidad del fenómeno y el carácter central que ocupa la dimensión ambiental en el
establecimiento de las desigualdades sociales: los excluidos de la tierra son también
ahora perjudicados en las condiciones del entorno al cual fueron marginados para
subsistir.
30 A partir de la intensificación y la transformación de la producción agrícola desde la
década del sesenta ha habido un proceso de concentración de población en los centros
urbanos en detrimento de la zona rural. La población que ha migrado a los centros
urbanos ha transformado sus dinámicas de reproducción social. En muchos casos,
trabajadores rurales provenientes de la ganadería o la agricultura han adaptado sus
dinámicas a la realización de actividades extractivas, como la pesca, la recolección o la
caza, o la especialización en actividades productivas como la apicultura. Las dos
localidades urbanas ubicadas en el entorno del área protegida son San Javier (al norte)
y Nuevo Berlín (al sur) ambas en el departamento de Río Negro. La mayor parte de los
habitantes de estas dos localidades alternan entre sus actividades entre la pesca,
apicultura y caza, de forma complementaria y estacional. La temporada de mayor
concentración de la actividad de pesca se da entre los meses de abril a octubre,
mientras que la apícola se concentra entre los meses de noviembre a marzo. La caza se
realiza a lo largo de todo el año. Sólo en Nuevo Berlín, actualmente unas 300 familias
alternan entre estas actividades, lo que les otorga un carácter fundamental para la
reproducción social.
familiar, algunos propietarios otros arrendatarios) desde el medio rural a las pequeñas
ciudades.
38 En términos de evolución de la población, en el año 1956 el departamento de Río Negro
tenía una población rural de 14.729 personas, mientras que en 1966 ascendía a 10.640.
En ese mismo período se redujo a la mitad el número de trabajadores rurales, pasando
de un promedio de 6 trabajadores por predio en 1956 a 3,2 trabajadores por predio en
1966 (Nuestra Tierra, 1970).
39 De acuerdo al censo de 1963, la población rural representaba el 34,4% de la población
del departamento, mientras que las localidades de Nuevo Berlín y San Javier tenían una
población de 1.912 (Nuevo Berlín) y 1.178 habitantes (San Javier). En 2004 el peso de la
población rural se redujo a 12,5%, el peso relativo de las localidades de Nuevo Berlín y
San Javier se mantuvo, mientras que el peso de la capital departamental (Fray Bentos)
aumentó de 37,4% en 1963 a 42,8%. En términos de migración interdepartamental,
Macadar y Domínguez (2008) ubican a Río Negro como uno de los departamentos
expulsores de población entre 1996 y 2001.3
El protagonismo del agronegocio
40 La zona donde se encuentran los Esteros de Farrapos no ha sido ajena al avance de la
frontera agrícola ni a las recientes transformaciones que ese avance ha implicado, ante
la consolidación del agronegocio como actor fundamental en la producción rural, lo que
Hernández (2009, p. 39) ha denominado “ruralidad globalizada”. El concepto de
agronegocio supone una superación de la visión de la producción agrícola acotada a la
explotación, postulando la integración horizontal y vertical de la producción agrícola e
industrial, para lo cual es necesario superar también la idea de las fronteras nacionales
(Hernández, 2009).
41 Lo que se denomina área de amortiguación (área próxima al área protegida, pero no
incluida dentro de sus límites4) incluye una zona de intensa producción agrícola y
forestal (ya que la ganadería ha ido cediendo paso a estas otras producciones). En este
proceso, la principal transformación ha sido la transnacionalización de la producción
agrícola con la emergencia de empresas que compran tierras (en el caso de la
forestación) o las arriendan (en el caso de la soja) en grandes extensiones, aplicando
paquetes tecnológicos “de diseño”, cuyo ejemplo paradigmático es el de la soja
transgénica rr5 y el glifosato de la mano de la siembra directa, la combinación de una
semilla de laboratorio que es resistente a un herbicida específico, ambos producidos
por la misma empresa transnacional (en este caso la empresa Monsanto, cuya expresión
rioplatense es la empresa Nidera).
42 Trabajando con información relativa a todo el departamento de Río Negro, 6 se puede
ver claramente el aumento de la superficie destinada a la producción forestal
(eucalyptus y pino). Mientras entre 1975 y 1989 la superficie departamental destinada a
esta producción era de 3.494 hectáreas, en 2008 la superficie total forestada llegaba a
104.217 hectáreas.7 En lo que respecta a los actores de este proceso de expansión, dos
empresas concentran la mayor cantidad de superficie: Forestal Oriental (propiedad de
los capitales finlandeses que también son dueños de la Planta de Celulosa de UPM/
Botnia en la ciudad de Fray Bentos, también en el departamento de Río Negro) y
EUFORES (propiedad hasta el año 2009 de la española ENCE, desde entonces ha pasado a
manos de una asociación entre la chilena Arauco y la sueco-finlandesa Stora Enso, bajo
el nombre de Montes del Plata).
43 En lo que respecta a la producción de soja la superficie cultivada en el departamento de
Río Negro prácticamente se ha triplicado desde la zafra 2003/2004 (55.218 hectáreas) a
la zafra 2009/2010 (151.812 hectáreas).8 En este rubro es más difusa la identificación de
los actores detrás de la expansión del cultivo, pero las empresas que ha tenido una
mayor proyección en la producción sojera en el litoral oeste de Uruguay son las
empresas de capitales argentinos El Tejar y Agronegocios Del Plata (Oyhantçabal;
Narbondo, 2011). En este caso, además del aumento de la superficie cultivada ha sido
significativo el cambio en la relación entre cultivos de invierno y cultivos de verano y
una disminución de la rotación agricultura/ganadería, en favor de una secuencia
agricultura/agricultura, lo que tendencialmente permite preveer una especialización
agrícola de la zona:
El destino inmediato posterior a los cultivos de verano son cultivos de invierno y
barbecho para futuros cultivos de verano en la próxima campaña. […] en 2009 se
cuantificó que el destino inmediato posterior a la cosecha de los cultivos de verano,
fue que el 66% de la superficie se destina a cultivos de invierno 2009/2010 y 30,6% se
destina a barbecho para un próximo cultivo de verano. (Paolino; Lanzilotta; Perera,
2009, p. 25).
44 Se ha procesado un cambio en los actores empresariales, con protagonismo directo de
conglomerados empresariales transnacionales, cambios tecnológicos que a su vez
permiten (o provocan) significativos cambios en la escala de producción. Este proceso a
su vez se refleja en la tenencia y de control de la tierra.
45 En la primera década del siglo XXI un equivalente al 52% de la superficie total del
departamento de Río Negro cambió de dueño, mientras que los arrendamientos
acumulados son equivalentes al 42% de la superficie departamental. Como se puede
apreciar, estos no son apenas cambios productivos, sino que afectan la estructura
agraria del país,9 y profundamente la del departamento de Río Negro (Santos, 2011).
Las transformaciones recientes y el impacto
ambiental
46 Empezando por estas últimas situaciones, las transformaciones productivas de la
primera década del siglo XXI han generado un desplazamiento de la mano de obra
tradicionalmente rural (peones de baja calificación) a estas pequeñas localidades,
donde han basado su subsistencia en actividades de caza, pesca y recolección. Esto ha
implicado un claro aumento en la presión sobre los recursos naturales, ya que ha
aumentado la cantidad de personas que subsisten en relación a estas actividades.
47 Al mismo tiempo, como veremos a continuación, esta intensificación de la producción
agrícola ha generado un aumento en el uso de agrotóxicos, lo que ha tenido su
consecuente impacto ambiental, precisamente en relación a las actividades que realizan
estos sectores, básicamente en lo que tiene que ver con la pesca y la apicultura
(incluimos en esta amplia denominación no sólo la producción de miel con destino a la
comercialización, sino a la captura de enjambres, tarea que podría colocarse en el inicio
de la cadena productiva de la apicultura, con la recolección de enjambres silvestres
para destinarlos a la producción).
era hasta la presentación del estudio sobre impactos de los agrotóxicos en la región–
entre estos fenómenos y la intensificación de la producción agrícola.
55 Por ello, seguramente, el conflicto entre actividades como la pesca o la apicultura y el
agronegocio ha tenido hasta ahora mucho de silencioso, y sólo recientemente –con la
presentación del estudio de Vida Silvestre– se ha hecho público.
56 Algunos de los pescadores de Nuevo Berlín coloca el problema de la contaminación de
los peces en clave de una situación de subsistencia de toda la población local y de la de
su propia familia, “ya no sé para dónde disparar” era una frase recurrente, no sólo en
referencia al lugar sino a la búsqueda de fuentes alimenticias seguras.
57 Por su parte en alguno de los discursos de los apicultores entra en juego la existencia
del área protegida, en un carácter instrumental, que reafirma la defensa de su propio
punto de vista:
La verdad es que la situación es desesperante para los apicultores; se dice que en
Uruguay se ha perdido la mitad de las colmenas, y acá tenemos un área protegida se
da una contradicción por la mortandad masiva de abejas que hemos tenido.
Queremos que el gobierno tome carta en el asunto rápidamente, los apicultores
pensamos y analizamos que si el gobierno no realiza una acción rápida, el sector se
termina en cuatro o cinco años en la zona. No pretendemos que el agro se corte ni
que no se siembre más soja, pero sí que haya un control muy estricto. (Muñoz, 2010,
p. 9).
58 Pero, ¿hasta dónde este es un conflicto redistributivo ambiental? ¿Podemos hablar aquí
de demandas de justicia ambiental o estamos ante un conflicto “productivo”? Más allá
de los argumentos en juego, es claro que hay un grupo de actores (básicamente
pescadores y apicultores, con fundamentos a partir de su vínculo con una organización
ambientalista) que colocan este conflicto en términos de redistribución de la
contaminación poniendo en cuestión los impactos de la utilización incontrolada de
agrotóxicos.
Naturaleza, sustentabilidad y conflictos económicos
59 La manera de percibir y representar las relaciones entre la sociedad y la naturaleza es
producto de procesos históricos y sociales y por ello, la manera en que el ser humano se
ha pensado y representado en relación con la naturaleza es diversa a lo largo de la
historia y a través de los diferentes contextos sociales. Cada grupo humano (cada
sociedad, cada cultura) tiene una particular percepción de un entorno inmediato que –
en muchas ocasiones– es definido como “natural” aunque sea producto de
modificaciones antrópicas también históricas y acumulativas. En cierto modo, lo que se
defina por conservación y por producción dependerá del contexto de significación en
que esta idea esté inscripta, o sea, dependerá de cómo se plantee la relación entre
naturaleza y sociedad o entre cultura y ambiente. Es así que debemos enfocarnos en lo
que se define como natural o naturaleza en cada momento histórico y en cada lugar
geográfico para discutir en ese contexto si el hombre está “dentro o fuera” de esa
noción de naturaleza (West; Igoe; Brockington, 2006).
60 La idea de área protegida, heredera de la noción de “parque” implica una posición
externa, una posición de observador, de admirador de una naturaleza que está fuera de
ella. Pero muchas veces esa naturaleza o esos paisajes propios de los parques no son un
producto solamente natural ya que, por ejemplo, la vegetación ha sufrido importantes
fueron despejadas para cultivar; una práctica que adquirió legitimidad con la
filosofía cartesiana, y su expresión plena con la mecanización del mundo, tanto en
lo físico como en el sentido técnico de la expresión; una práctica que se
transformaría en el destino histórico de Europa, bajo el nombre de producción,
cuando la sociedad burguesa se las arregló para autoconcebirse como la
encarnación de un orden natural. (Descola, 2004, p. 97, traducción mía). 13
65 En este sentido, la protección de la naturaleza no es más que la contracara de esta
relación de depredación con el entorno:
en los movimientos conservacionistas contemporáneos, la protección de los no
humanos no está desprovista de autogratificación. Se transfiere el dominio
cartesiano y la propiedad de la naturaleza a otro plano, un pequeño enclave en
donde se alivia la culpa y la dominación paternalista eufemísticamente
transmutado en la preservación protectora y la apreciación estética. (Descola, 2004,
p. 91, traducción mía).14
66 Desde este punto de vista, procesos de depredación ambiental y de conservación de la
vida silvestre responden a una misma lógica: una lógica que ubica a la sociedad por
fuera de la naturaleza. Esto es algo que también a advertido Ingold (2002), en relación a
la utilización de los conceptos de naturaleza y ambiente.
La distinción entre ambiente y naturaleza corresponde a la diferencia de
perspectiva entre vernos a nosotros mismos como seres dentro del mundo y como
seres fuera de él. Por otra parte, tendemos a pensar la naturaleza como externa, no
sólo a la humanidad […] sino también externo a la historia, como si el mundo
natural proveyera un telón de fondo permanente para la realización de los asuntos
humanos. (Ingold, 2002, p. 20, traducción mía).15
El metabolismo sociedad-naturaleza
67 Un concepto que es útil para trabajar la relación sociedad-naturaleza desde la discusión
en torno a la sustentabilidad es el de metabolismo que aparece en Marx (desarrollado
por Foster, 2000). Esta noción de metabolismo está anclada directamente en la idea de
trabajo, que en el pensamiento de Marx (1987, p. 215) es la mediación entre la sociedad
y la naturaleza:
el trabajo es un proceso entre el hombre y la naturaleza, un proceso en que el
hombre media, regula y controla su metabolismo con la naturaleza. El hombre se
enfrenta a la materia natural misma como un poder natural. Pone en movimiento
las fuerzas naturales que pertenecen a su corporeidad, brazos y piernas, cabeza y
manos, a fin de apoderarse de los materiales de la naturaleza bajo una forma útil
para su propia vida. Al operar por medio de ese movimiento sobre la naturaleza
exterior a él y transformarla, transforma a la vez su propia naturaleza.
68 En el caso de Farrapos, es claro que el acceso a la tierra es uno de los factores
determinantes en el proceso de exclusión de los trabajadores rurales, así como de los
pequeños productores familiares (arrendatarios o propietarios, aunque éstos últimos se
vean en parte beneficiados del proceso). Esta es la contracara del proceso de
concentración de la tierra.
69 Pero la discusión instalada a partir de la afectación de los sistemas productivos que
dependen en mucho mayor grado de la calidad ambiental (la pesca, la apicultura) tiene
que ver con las formas de apropiación/expropiación en relación al bien común que
podemos denominar provisoriamente ambiente.
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NOTAS
1. El análisis del proceso de implantación de esta política de conservación surge de la tesis de
maestría del autor (Santos, 2011) en el marco del programa de posgrado en Ciencias Sociales de
UNGS-IDES, Beca “Naturaleza, sociedad y territorio” del Programa Regional de Becas del Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales CLACSO-ASDI 2008 para América Latina y el Caribe).
2. Este análisis tiene como antecedente el trabajo “La expansión del agronegocio agrícola en
Uruguay: impactos, disputas y discursos” en coautoría con Gabriel Oyhantçabal e Ignacio
Narbondo, discutido en el panel “Family farming and agribussines: Territorial disputes and
symbolic struggles” del Latin America Studies Association (LASA) Congress (San Francisco, 2012).
3. Según los autores, el saldo migratorio negativo que presenta el departamento de Río Negro en
ese período (sobre todo en relación con el vecino departamento de Paysandú) se revierte a partir
del año 2003 cuando empieza el proceso de construcción de la actual fábrica de celulosa de UPM/
Botnia en Fray Bentos (que según diferentes estimaciones, ocupó unas 3.000 personas durante el
proceso de construcción de la planta).
4. Hasta ahora sólo se conoce la delimitación del área protegida y no la del área de amortiguación
o área buffer.
5. RR es la denominación de esta semilla, precisamente por su resistencia al glifosato, o sea
RoundUp–nombre comercial de este producto– Ready.
6. Existen importantes dificultades para analizar procesos de transformación como este que ha
sucedido en el medio rural uruguayo, entre otras cosas por la dificultar de desagregar la
información disponible a la escala de un área protegida o aún de su zona de amortiguación. El
último Censo General Agropecuario fue realizado en el año 2000 y precisamente ha sido en el
período posterior al censo donde se han profundizado estas grandes transformaciones en el agro
uruguayo. La información disponible es relativa a encuestas sectoriales realizadas por el
Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca, cuyos datos no pueden ser desagregados más allá
de la escala departamental (que es precisamente la que usaremos aquí para reconstruir en líneas
generales este proceso).
7. Información estadística de la Dirección Forestal del MGAP (www.mgap.gub.uy).
8. Datos de IICA (2009) y Paolino, Lanzilotta y Perera (2009).
9. Según sostienen Oyhantçabal y Narbondo (2011, p. 63) en Uruguay “los “nuevos agricultores”
pasaron de no existir” en 2000 “a representar el 12% de los productores y controlar el 54% de la
superficie de los cultivos agrícolas” en 2007. Su principal rubro es el cultivo de soja, del cual
controlan la mayor parte de la superficie, de modo que al 2007, de los 800 productores de soja,
cerca del 1% (11 empresas) controlaba el 37% de la superficie.
10. El proyecto llevado adelante por Vida Silvestre contó con financiamiento de la UICN (Unión
Internacional para la Conservación de la Naturaleza) e involucró a equipos de investigadores de
las Facultad de Química y Ciencias de la Universidad de la República y del Instituto Nacional de
Investigaciones Agropecuarias (INIA). Los análisis de las muestras fueron realizados en
laboratorios de Alemania, en virtud de la dificultad de encontrar técnicas de medición ajustadas
en laboratorios de la región.
11. En el original: “Typical of western cosmologies since Plato and Aristotle, naturalism creates a
specific ontological domain, a place of order and necessity where nothing happens without a
reason or a cause, whether originating in God [...] or immanent to the fabric of the world (‘the
laws of nature’).”
12. En el original: “Naturalism is simply the belief that nature does exist, that certain things owe
their existence and development to a principle extraneous both to chance and to the effects of
human will.”
13. En el original: “As for predatory naturalism, it is less a value than an old European practice,
born in the Middle Ages when large tracts of forest where cleared for cultivation; a practice
which acquired its legitimacy with Cartesian philosophy, and its full expression with the
mechanisation of the world—in the physical as well as in the technical sense of the expression; a
practice which then transformed into the historical destiny of Europe, under the name of
production, when bourgeois society managed to conceive itself as the embodiment of a natural
order.”
14. En el original: “in contemporary conservationist movements, the protection of non-humans
is not devoid of selfgratification. It transfers the Cartesian mastery and ownership of nature to
another plane, a small enclave where guilt is alleviated and domination euphemistically
transmuted into patronising preservation and aesthetic entertainment.”
15. En el original: “Thus the distinction between environment and nature corresponds to the
difference in perspective between seeing ourselves as beings within a world and as beings
without it. Moreover we tend to think of nature as external not only to humanity, as I have
already observed, but also to history, as though the natural world provided an enduring
backdrop to the conduct of human affairs.”
RESÚMENES
Este artículo analiza la manera en que dos procesos globales (el acaparamiento de tierras y las
políticas de conservación de la naturaleza) intervienen en las dinámicas de reproducción social
de los habitantes del entorno de un parque natural en Uruguay. Ambas escalas permiten poner
en juego los diferentes naturalismos categorizados por Descola. La idea de acumulación por
desposesión, de Harvey da cuenta de esta fase de expansión del capitalismo sobre los “bienes
comunes”, cuya característica central es la degradación y depredación de los recursos naturales.
Por su parte la implementación de políticas públicas de conservación en este contexto consolida
paisajes duales (unos dedicados a la preservación de la naturaleza y otros a su explotación
indiscriminada). El análisis permite discutir la insustentabilidad de las relaciones sociales
dominantes, así como las diferentes dimensiones y escalas de análisis complejizan la
comprensión de los efectos locales y combinados de estos dos fenómenos globales.
This paper examines how two global processes (land grabbing and conservation policies) are
involved in the dynamics of social reproduction of the inhabitants of a national park in Uruguay.
Both scales can be brought into play the different naturalisms categorized by Descola. Harvey’s
idea of accumulation by dispossession, realizes this phase of expansion of capitalism on the
“commons” whose central feature is the degradation and natural resource depletion. Meanwhile
the implementation of conservation policies in this context consolidates dual landscapes (some
dedicated to the preservation of nature and others to indiscriminate exploitation). The analysis
allows us to discuss the unsustainability of the dominant social relations, as well as various sizes
and scales of analysis bring complexity of the understanding of local and combined effects of
these two global phenomena.
ÍNDICE
Keywords: accumulation by dispossession, conservation, environmental anthropology,
sustainability
Palabras claves: acumulación por desposesión, antropología ambiental, conservación,
sustentabilidad
AUTOR
CARLOS SANTOS
Universidad de la República – Uruguay
Espaço Aberto
“Desdisciplinar a antropologia”
diálogo com Eduardo Restrepo
5 Ondina Leal: Nós achamos que seria muito interessante compartilhar um panorama do
que é a antropologia hoje na Colômbia, utilizando as tuas próprias categorias analíticas.
O que seria aquela antropologia mainstream e o que seria aquela antropologia
dissidente? Isso pode permitir que nós entendêssemos melhor essa questão no contexto
colombiano. Também nos interessa conhecer melhor essa antropologia da Colômbia
porque nós temos tido uma demanda enorme de alunos colombianos que vêm fazer
pós-graduação aqui, tanto mestrado quanto doutorado.
6 Eduardo Restrepo: Bom, institucionalmente, a antropologia na Colômbia surge nos
anos 1940 com a fundação do Instituto Etnológico Nacional, onde um antropólogo
francês, Paul Rivet, tem um papel muito importante. Ele foi para a Colômbia depois da
Segunda Guerra Mundial, convidado pelo então presidente do país, um presidente cujo
sobrenome é Santos, o avô do atual presidente. Rivet cria o Instituto Etnológico
Nacional, com o apoio de um antropólogo colombiano que havia estudado com ele na
França, chamado Gregorio Hernández de Alba. Esse instituto existe até hoje e se chama
Instituto Colombiano de Antropologia e História. Temos, então, uma ancoragem
institucional que vai definindo, digamos, a parte mais institucionalizada da
antropologia colombiana. Em finais dos anos 1960 e princípios dos anos 1970 são
criados quatro departamentos de antropologia na Colômbia. Isso irá marcar uma
diferença da antropologia colombiana com relação a outras antropologias, como a
brasileira, porque se tratava cursos de graduação. Então, desde finais dos anos 1960 na
Universidade Nacional (que é uma universidade pública em Bogotá), na Universidade
dos Andes (que é uma universidade privada em Bogotá), na Universidade de Antioquia e
na Universidade do Cauca, em Popayán, são criados esses quatro departamentos. Uma
das características que marca a antropologia na Colômbia é que, por mais de 30 anos,
foram formados antropólogos a partir dos cursos de graduação, não havia nenhuma
pós-graduação. A formação antropológica da graduação era, portanto, muito
importante. Quando eu estudei antropologia no departamento da Universidade de
Antioquia, eram cinco anos de formação que incluíam um ano de trabalho de campo e
uma tese que devia ser defendida publicamente. Dessa forma, toda a aposta da
formação antropológica estava dada nos departamentos de antropologia e em nível de
graduação. Em finais dos anos 1990 e inícios dos anos 2000 há uma série de
transformações a reboque das mudanças ocorridas desde o início dos anos 1990 na
Colômbia. Tais mudanças têm a ver com uma transformação das concepções das
políticas de ciência e tecnologia e com algumas transformações nas concepções da
prática acadêmica e da prática profissional antropológica e das ciências sociais e
humanas. Essas transformações se manifestam, por exemplo, em que, nos anos 2000, é
criada uma série de programas: cerca de seis programas de graduação e os primeiros
mestrados e doutorados. O primeiro mestrado se organiza na Universidade Nacional.
Depois surgem outros na Universidade dos Andes, na Universidade do Cauca e,
finalmente, na Universidade de Antioquia.
7 Ondina Leal: Em que ano isso ocorreu?
8 Eduardo Restrepo: Em 1999 ou 2000 na Universidade Nacional.
9 Ondina Leal: Muito recente isso…
10 Eduardo Restrepo: É recente. O primeiro doutorado foi organizado na Universidade do
Cauca com apoio da Rede de Antropologias do Mundo. Nos últimos cinco anos foram
criados dois doutorados [em antropologia], um na Universidade dos Andes e outro na
Universidade Nacional, há dois anos. Uma das razões pelas quais os estudantes vêm
antropologia como ciência neutra que está capturando um conhecimento que vai se
perder porque os “outros” estão desaparecendo é modificada para dar lugar a uma
antropologia que se preocupa pelas pessoas, em termos de quais são suas condições de
vida concretas. Algumas dessas antropologias articularam políticas que levaram à
constituição de ações de Estado, no marco de uma configuração do indigenismo. Outras,
por sua vez, levaram à avalização ou ao estímulo de processos organizativos que, nos
anos 1960 e 1970, originaram uma das organizações mais importantes da Colômbia, o
CRIC, Conselho Regional Indígena do Cauca. Nos anos 1960 e 1970, quando se
constituem os departamentos de antropologia na Colômbia, há uma forte mobilização
que atravessa a universidade e a sociedade colombiana, é o momento do surgimento das
guerrilhas atuais, mas também é o momento do surgimento de uma série de
elaborações de teoria crítica representadas na sociologia, por exemplo, através da
figura de intelectuais como Orlando Fals Borda e tudo o que significa a pesquisa-ação
participativa. Estamos falando de toda uma discussão sobre o que significa a sociologia
e a ciência na sua relação com as pessoas com as quais está trabalhando. Na
antropologia, nesse momento, deram-se muitas articulações, houve publicações
artesanais (havia uma chamada La Rana [a rã]). Uma série de antropólogos começaram a
trabalhar fora do establishment acadêmico, inclusive abandonando a antropologia e se
articulando a processos concretos. Um dos mais conhecidos é Luís Guillermo Vasco, um
antropólogo que, nessa época, começa a trabalhar com os guambianos 1
problematizando, por exemplo, o porquê da escrita. Por que se escreve em
antropologia? Na Colômbia (e não somente na Colômbia, imagino que no Brasil
também), 20 anos antes de que os estadunidenses perguntassem pelas políticas da
representação etnográfica, Guillermo Vasco e outras pessoas estavam fazendo esse
debate. Por isso é preciso ter algumas ferramentas teóricas e ter algumas perguntas que
permitam visibilizar essas antropologias múltiplas, alternativas, antropologias
dissidentes que não são vistas em decorrência dos cânones estabelecidos. Na Colômbia
alguns indagavam sobre o porquê da escrita, começou-se a falar, inclusive, de uma
antropologia do debate, uma antropologia crítica. Muitas perguntas que hoje estamos
voltando a fazer, indagações sobre até que ponto modelos teóricos como o
funcionalismo são relevantes para compreender certas situações; até que ponto é
necessário repensar os modelos teóricos com os quais estamos trabalhando; até que
ponto o marxismo pode nos ajudar a pensar certas coisas, que tipo de marxismo… Nós
não podemos confundir Stalin com Gramsci, se alguém acredita que o marxismo é
Stalin então, obviamente, irá descartar o marxismo por definição. Por outro lado, se é
Gramsci, isso permite abrir outro tipo de questões muito mais densas, muito mais
elaboradas. Deram-se, portanto, muitas discussões que na história da antropologia
colombiana estão na oralidade.
11 Eu teria mais coisas para dizer, mas, passando diretamente ao momento atual: as
antropologias dissidentes na Colômbia se articulam a propósito de uma discussão a
respeito do establishment antropológico, entendido como produtividade e como
profissionalização. O que isso significa? Significa uma série de práticas que colocam em
questão um discurso a partir do qual se propõe a necessidade de internacionalizar a
ciência. Não se trata de uma internacionalização em qualquer direção, mas sim de uma
internacionalização entendida como diálogo em inglês, com alguns autores e um tipo de
antropologia em particular, com um tipo de práticas concretas como publicações em
revistas indexadas, ou seja, uma série de critérios tendentes a definir o que significa e o
que vale na antropologia colombiana. Este é um assunto que está sendo objeto de
marxista, por exemplo, ou ser crítico ao Estado nos Estados Unidos é algo que tem um
significado específico é, inclusive, algo que pode incrementar o teu capital simbólico.
No entanto, falar de Marx para os teus estudantes em Santa Marta, quando alguns deles
são paramilitares, é uma questão de posição política. Ou seja, o significado de conceber
certos autores e certas problemáticas em lugares onde ser crítico é o mesmo que ser
guerrilheiro e ser guerrilheiro é ser alguém que merece a morte, implica outra leitura
da prática política a partir da academia.
18 Denise Jardim: Eu queria entender melhor uma questão. Falando de produtivismo, de
efeitos de algumas dinâmicas de poder, gostaria de chamar a atenção para a presença
de Jeffrey Lesser aqui entre nós. Ele disse que na lógica da sua instituição americana
seria absurda uma prática muito comum no Brasil de manter um grupo de pesquisa
onde os alunos estudem a mesma coisa que o orientador. Portanto, eu gostaria que tu
falasses um pouco mais dessa divisão de trabalho na Colômbia, dessa primeira geração
associada ao estabelecimento da antropologia com Paul Rivet. Nós temos uma
experiência com a arqueologia aqui no Brasil onde cada arqueólogo é dono de uma
quadrícula, daí podemos tirar uma autocrítica de que o antropólogo não pode ser o
dono do campo em termos de grupos étnicos, etc. Então, eu não consigo entender tanto
o habitus acadêmico da Colômbia para conceber como operam essas forças do
produtivismo já instalado dentro de dinâmicas muito próprias no meio acadêmico, de
como vicejam as relações e quais são as possibilidades de ruptura. Nesse sentido, eu
pergunto como foi a tua ruptura. Ao mesmo tempo tu tens a tua formação dentro da
Colômbia e em 2008 tu fazes teu doutorado fora, com uma equipe de interlocução muito
potente. Acredito que o Peter Wade esteja dentro dessa grande área, falando sobre o
Pacífico… como é o teu trânsito entre uma formação dentro e uma formação fora, que
tipo de repercussão desorganizou a percepção que tu tinhas a respeito da própria
carreira feita na Colômbia? A segunda questão, que não é exatamente uma pergunta,
tem a ver com esse cenário de produtivismo, onde as coisas são categorizadas como
internacionalizadas, online, o que significa isso em termos de hábitos de leitura? Eu te
“conheci” no Journal of Latin American Studies e passando para a outra prateleira da
livraria, onde estava a Revista Colombiana de Antropología, não te encontrei, mas
encontrei o Sahlins e outros. Nós, no Brasil, não temos uma grande circulação de livros,
mas temos, online, muita coisa escrita. Eu vou a Madri especialmente para ler todas as
publicações sul-americanas, que lá estão na prateleira, completas. Então, quando a
gente fala de outros hábitos de leitura online, será que a telinha está aprisionando os
focos de centro e periferia também?
19 Eduardo Restrepo: Eu me formei em uma universidade de periferia, na Universidade
de Antioquia, em finais dos anos 1980, inícios dos anos 1990. Isto te marca na medida
em que ainda existe a universidade pública em algumas coisas, mas tem um momento
onde, precisamente, a universidade pública está se perdendo. Eu cheguei a trabalhar no
Instituto Colombiano de Antropologia antes de me graduar, com uma antropóloga que é
profundamente irreverente, chamada María Victoria Uribe. Com ela e com outro grupo
de amigos, em meados dos anos 1990, introduzimos uma discussão na antropologia
colombiana que se chama “antropologia na modernidade”. Essa discussão tem a ver
com o que está sendo feito e o que se entende por antropologia nas práticas de
formação nas universidades. Então, antropologia da modernidade ou na modernidade é
fundamentalmente uma inflexão rumo à teoria crítica pós-estruturalista, onde se
começa a entender a antropologia como parte da própria modernidade e se começa a
localizar a antropologia dentro das relações de poder. Nessa ruptura é que eu começo a
me articular com uma série de pessoas conhecidas, que foram muito importantes para
discussões posteriores. Nesse contexto eu conheço Arturo Escobar, no início dos anos
1990. Arturo estava interessado no Pacífico e nós fizemos trabalho de campo juntos
algumas vezes. Peter Wade também está aí, assim como Anne-Marie Losonczy, que é
uma antropóloga francesa que foi muito importante na antropologia da Colômbia.
Nesse contexto, onde conflui uma série de pessoas, nós começamos a discutir o assunto
da relevância antropológica das populações negras para a antropologia enfocada nos
temas relativos ao desenvolvimento, à modernidade, etc. Foi aí que eu tive a
oportunidade de entrar em interlocução com esses personagens que estão fora da
Colômbia e de ver a antropologia colombiana a partir dos estabelecimentos
estadunidense, francês e inglês. Com Anne-Marie e com Christian Gros, com Peter Wade
e com Arturo, Joan [Rappaport]… uma série de pessoas nos Estados Unidos. Isso mudou
minha leitura da antropologia na Colômbia. Quando estou nos Estados Unidos e vejo
que se ensina arqueologia mexicana sem citar nenhum mexicano sequer e sem nenhum
texto em castelhano, ou quando se ensina uma antropologia na qual a antropologia que
eu conhecia e os antropólogos que eu conhecia não existiam. A antropologia era lida de
uma forma muito particular. É nesse contexto que começo a conversar com Marisol [de
la Cadena], com Arturo [Escobar], com Gustavo [Lins Ribeiro] e começamos a articular
algo que não é novo, que de alguma maneira são preocupações que vêm de outros
lugares e que têm a ver com a geopolítica do conhecimento. Para mim serviu muito
entrar em diálogo com essas redes para ver de outra forma aquilo que nós estávamos
fazendo, na medida em que víamos o que não aparecia em tais níveis de discussão.
Havia autores que me pareciam maravilhosos, com contribuições impressionantes e
alguns deles sequer eram concebidos. Por exemplo, publicar em espanhol era algo que
não tinha maior significado nessas redes das quais estou falando. Minha percepção
seria muito diferente se eu não tivesse entrado nessas redes de conversação,
precisamente pelas ausências que nelas se percebem e pela naturalização de certas
contingências. Se eu não tivesse saído da Colômbia, teria continuado pensando que a
linguística, a antropologia social e a antropologia física eram, por definição,
antropologia. Bom, e é precisamente por esses diálogos que meus textos começam a
aparecer em outros cenários. Esse texto ao qual te referes, do Journal of Latin American
Studies, é uma edição de Peter Wade, onde todos são colombianos e eu escrevo em
castelhano. A segunda pergunta que fizeste é muito valiosa, sobre esses hábitos de
leitura, como vão nos marcando e como vão definindo as coisas. Eu sinto que a falta de
circulação de ideias entre nós é um dos problemas fundamentais, a ele se dirige a noção
de antropologias do Sul, de Esteban Krotz. Nós nos, entre nós, nos conhecemos muito
pouco e conhecemos muito pouco a nossa própria história. Existe uma espécie de
cegueira devido a essa falta de circulação não somente de livros, mas também de ideias.
Por isso eu acho muito valioso esse exercício de vocês de trazerem professores de
diferentes partes da América Latina e dialogar com eles. Essa é uma iniciativa muito
estranha porque, em geral, nós investimos os recursos em trazer professores da França
ou dos Estados Unidos, o que tampouco está mal. Mas fazer somente isso nos leva a
reforçar esse tipo de ato de leitura que posiciona certas pessoas e deixa de posicionar
outras. Então, digamos que na filigrana, na microfísica de como operam as
antropologias hegemônicas, ou dominantes, ou metropolitanas estão presentes esses
atos de leitura, associados a noções de produtividade. Escrevemos para certas revistas,
em certos idiomas, para certas pessoas. Mas o que fazemos com esse tipo de
antropologia que não leva a um paper e que tem a ver com outro tipo de intervenção, de
elaboração, de discussão?
20 Tomás Guzmán: Eduardo, tu fazes uma distinção entre o que seria fazer antropologia
“de” e antropologia “a partir de”. O que significaria isso, no momento atual, no âmbito
da antropologia colombiana? Fazer uma antropologia “a partir” do Chocó no marco de
um já não tão recente crescimento do interesse antropológico sobre a questão
afrocolombiana.
21 Eduardo Restrepo: Claro… Eu pensava um pouco em termos de antropologias “do”
Caribe e antropologias “a partir” do Caribe. Antropologias “do” Caribe seria quando
este é objeto do trabalho antropológico, do estudo antropológico. Por outro lado, fazer
antropologia “a partir” do Caribe é permitir que o Caribe problematize e atravesse a
prática antropológica, o Caribe como locus de enunciação, como posição política. A
questão, portanto, passa a ser entender esse lugar não apenas como um lugar
geográfico, mas também epistêmico, um lugar político. Uma antropologia “a partir” do
Chocó não poderia ser uma antropologia como se faz em Bogotá. Implicaria um lugar e
implicaria uma série de práticas antropológicas que teriam a ver com essa
especificidade histórica que está associada ao racismo, à marginalização. Isso faz com
que a escrita e a publicação, para voltar ao tema dos atos de leitura, não se deem nos
mesmos termos. Eu não imagino que os egressos do programa de antropologia da
universidade em Quibdó estejam pensando em publicar na Current Anthropology um
paper em inglês sobre a discussão teórica do funcionalismo ou do estruturalismo. Parece
que seus tipos de intervenção, suas formas de fazer antropologia não apontam nesse
sentido. Se alguém o faz, está tudo bem, mas não devemos fazer tudo para que as
pessoas atuem nesse sentido.
22 Tomás Guzmán: Poderíamos entender, também, como foi a trajetória dos estudos afro
na Colômbia? Como tu vês algo que, inclusive antes de eu me graduar na Universidade
Nacional, era sumamente marginal em comparação com os estudos indígenas na
Colômbia? Como se deu essa explosão de interesse?
23 Eduardo Restrepo: Bom, há uma antropóloga colombiana que morreu em 1998
chamada Nina S. de Friedemann. Ela, junto com outro antropólogo que estava na
Universidade Nacional, chamado Jaime Arocha, entenderam, a partir dos anos 1980, que
os estudos feitos sobre populações negras ou grupos negros, como eram chamados
naquele momento, não eram considerados por alguns dos seus colegas como
antropologia. Existem vários artigos de Nina S. de Friedemann onde ela comenta que,
para alguns dos seus colegas, estudar negros não é antropologia. Isso se entende, no
contexto da antropologia colombiana, precisamente pela história que eu narrei para
vocês, onde o outro radical só podia ser encarnado por certa representação de
indianidade, ou seja, não eram todos os índios, mas sim uma noção de indígena hiper-
real. Isso ocorria em finais dos anos 1970 e princípios dos anos 1980. Com as
transformações da antropologia em finais dos anos 1980 e com o surgimento de
“antropologia na modernidade”, essa equação “antropologia igual a ‘outros radicais’”,
ou “antropologia igual a ‘diferença’”, ou “antropologia igual a ‘alteridade’” é
problematizada. Fala-se de uma antropologia da modernidade, ou do desenvolvimento,
ou do Estado. Com isso, problematiza-se essa noção de “antropologia igual ou
equivalente à alteridade radical”. Nesse contexto, o Pacífico colombiano adquire uma
relevância em decorrência de processos históricos que não valeria a pena explicar em
detalhe agora, mas que guardam relações com a questão da biodiversidade e do
sobre o curso de antropologia em Quibdó, o que nós fizemos até agora nesse programa
bastante novo, que ainda não tem egressos, é desfolclorizar e desculturalizar a leitura
oficial que circula sobre a cultura das comunidades negras. Os professores estão
oferecendo ferramenta críticas para que as políticas de representação que constituíram
a subjetividade daquelas pessoas que se imaginam como comunidade negra deem
passagem a outras leituras. Leituras que já não se perguntem pela Festa de San Pacho a
partir de uma perspectiva folclórica, mas sim que comecem a entender que a
antropologia, ou as ciências sociais, têm ferramentas de releitura da história, ou de
rearticulação da tradição oral, ou de redefinição da negritude que passam por
problematizar as leituras estatalizadas, as leituras mais dominantes do
multiculturalismo. Até agora o que nós conseguimos é, fundamentalmente, começar a
interpelar o senso comum a partir do qual o multiculturalismo constituiu os estudos
antropológicos com as populações negras. Neste momento, as pessoas estão fazendo
perguntas a si mesmas, mas teremos que ver os resultados concretos dentro de alguns
anos. Já na Universidade de Magdalena existem resultados, porque se trata de um
programa estabelecido há mais tempo, com vários egressos. Em termos de temáticas,
em termos de enfoque, eles fizeram coisas muito heterogêneas e heterodoxas nas quais
a tradição oral é central, coisas que dificilmente entrariam nesse nicho de antropologia
para uma tese na Universidade do Andes, por exemplo.
30 Josep Segarra: Gostaria de fazer uma pergunta mais pessoal. Tu dizias que as
antropologias dissidentes não são nem melhores nem piores, mas, ao mesmo tempo,
também afirmavas que não gostas de certa antropologia hegemônica, do establishment
antropológico. Qual é, então, tua proposta pessoal? Algumas coisas já foram explicadas,
mas, como antropólogo, quais são tuas apostas?
31 Eduardo Restrepo: Eu me imagino como um personagem e representante da
antropologia hegemônica colombiana. Eu sou parte do establishment e o sou
conscientemente, para não deixar aos outros colegas do establishment, que são mais de
direita, ou mais liberais, um cenário tranquilo. Meu lugar no establishment colombiano é
o de incomodar, de desestabilizar, de irritar, de questionar colegas que estão muito
cômodos com seu lugar no establishment. Ontem, Claudia Fonseca perguntava por que
Arturo Escobar, eu e outros escrevíamos em inglês e utilizando a linguagem
hegemônica. Trata-se de uma intervenção política, porque as disputas e os terrenos das
lutas políticas são múltiplos. Acredito que existem certas pessoas que, por sua trajetória
e por sua história, estão num lugar que não é neutro, nem ingênuo, lugar no qual é
necessário produzir determinadas interrupções, determinadas problematizações. Eu me
imagino dentro do establishment e eu estou no establishment antropológico, razão pela
qual os colegas não podem se dar ao luxo de não me ouvir, eles precisam me ouvir,
apesar de que isso os incomode. Essa é uma intervenção política, porque a antropologia
não deve ser deixada para a direita, nem para os liberais. Eu penso que a antropologia
deve ser levada mais além, em direção a um projeto de intervenção e potencialização de
outras formas, de outras modalidades de socialidade, outras formas e outras
modalidades de politicidade, de subjetividade. Parece-me que a antropologia, em si,
consiste num projeto muito crítico, desnaturalizador e desestabilizador. Devemos ser
coerentes com isso. Não consigo imaginar alguém que desnaturalize uma identidade e,
ato contínuo, naturalize sua própria identidade dentro do establishment para exercer
relações de poder frente a certas conjunturas. Da minha parte, não sou ingênuo, eu
estou no establishment, mas não faço apenas isso, porque as pessoas não fazem apenas
uma coisa. Eu estou aí para incomodar. Perguntem para os meus colegas na Colômbia.
Esse trabalho eu faço com muita efetividade e acho que se trata de um trabalho
necessário. Não penso que todo mundo tenha que fazer isso, tampouco acredito que o
establishment seja o grande cenário da política, mas nós sabemos que os efeitos de
verdade que ele produz são algo que deve ser disputado. Portanto, minha intervenção é,
digamos, um pouco anarquista no establishment. É um oximoro. Eu sou um
anarcoestalinista. Precisamente a questão é não deixar o campo de luta livre para
determinadas pessoas que estão fazendo certas coisas com as quais eu não me identifico
politicamente. Eu não creio que é o único campo de lutas, nem o melhor, mas é um
campo de lutas.
32 Alex Moraes: Eu quero, justamente, retomar um trecho da entrevista que tu deste à
Tinta Crítica3 há alguns meses. Ali tu mencionas a fala de um colega teu, para ele “a
antropologia é sempre comprometida, o que importa é com quem ela está
comprometida”. A questão é: como tu constróis as tuas alianças políticas para ingressar
em uma disputa concreta por esses lugares a partir dos quais é possível produzir efeitos
de verdade no contexto do establishment?
33 Eduardo Restrepo: Minha relação com as redes de conversação mencionadas
anteriormente é uma relação que autoriza bastante. Conversando com certas pessoas,
tendo um doutorado em certo lugar, jogando bem o jogo, posso estabelecer relações
para que esse jogo mude. Esse jogo pode mudar, também, por interpelações que vêm de
fora. São muito importantes as interpelações de fora, mas eu penso que a possibilidade
de interromper o jogo a partir das suas próprias regras é um trabalho político
importante. Minha relação com Marisol de la Cadena, com Arturo Escobar, com
Alejandro Grimson, etc. tem a ver com a constituição de uma possibilidade de falar e de
jogar o jogo para transformar ou, pelo menos, produzir ruídos nesse jogo. Este é,
portanto um dos níveis de ação. Agora, no contexto dessas articulações, os estudos
culturais são uma aliança estratégica, porque consistem em um cenário ainda por ser
definido na Colômbia. É um cenário que está sendo inventado, um cenário que
incomoda. Tudo o que incomoda é algo que tem a possibilidade de desestabilizar, de
dessedimentar. Eu adoro incomodar os meus colegas, me deixa feliz que alguns colegas
se desestabilizem ou não possam seguir operando tão tranquilamente diante de certos
cenários. Daí eu tiro alguma felicidade, mas minha razão política de ser tem a ver com
práticas e relações com o mundo e com projetos políticos que podem ser muito radicais,
que passam, inclusive, por cenários não legais e incluem, também, trabalhos com
processos organizativos de reivindicação de direitos, como o das comunidades negras. A
hermenêutica da felicidade, para mim, passa por desestabilizar práticas que me
parecem autoritárias e também se conecta, como não poderia deixar de ser, com coisas
no mundo, em meu país.
NOTAS
1. Os misak, também conhecidos como guambianos, constituem uma etnia indígena do
departamento do Cauca, localizado no sudoeste colombiano (N. de T.).
2. Os grupos paramilitares são atores armados que atuam junto à instituição militar e ao mesmo
tempo exercem uma ação irregular, desviada das práticas militares. Na Colômbia esses grupos,
que manifestam ideologias de extrema-direita, foram apoiados, de maneira oficiosa, por
sucessivos governos nacionais, instituindo verdadeiras zonas de exceção nas localidades onde
operam (N. de T.).
3. A Tinta Crítica é o informativo bimestral do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (N. de
T.).
Barbara Glowczewski
NOTE DE L’ÉDITEUR
Recebido em: 31/08/2013
Aprovado em: 17/12/2013
NOTE DE L'AUTEUR
Une version courte de ce texte a été présentée au Colloque « Les formes élémentaires de la
vie religieuse de Durkheim. Perspectives pour l’anthropologie », (6-8 juin 2012) célébrant
le centenaire du livre, à la session d'ouverture « Ethnographie et théorie », École
Normale Supérieure (Ulm), organisé par Perig Pitrou et Frédéric Keck, en collaboration
avec le musée du quai Branly et le Collège de France.
The Elementary Forms was created in an effort to
answer Spencer and Gillen, and to glue society and
religion together again. In the process, it often
misrepresented their account, yet without amounting
to a total falsification of their ethnography. It is
instead an imaginative re-construction, which
involved its author in developing a whole new seminal
theory of his own. The work is both a transfiguration of
Spencer and Gillen’s Australia and a transfiguration of
the old Durkheimian Australia.
(Watts Miller, 2012)
1 Durkheim est-il bon à penser pour les Aborigènes d’aujourd’hui? La question est à la
fois théorique, pragmatique et politique. En effet, si les Aborigènes furent « bon à
penser » les sciences sociales depuis leur création, celles-ci furent secouées ces trente
dernières années par l’introduction de l’histoire dans la théorie anthropologique,
particulièrement celle des populations considérées jusque là « sans histoire », alors que
leur histoire est non seulement orale mais aussi constituée d’une multitude d’archives
visuelles et matérielles précoloniales. La question interroge ainsi d’une part le statut de
Durkheim comme un des « mythes » fondateurs des sciences sociales et d’autre part le
statut de la prise de parole des populations étudiées au regard de l’histoire de
l’anthropologie et des observations ethnographiques contemporaines.
2 Les données sur les peuples premiers d’Australie ont contribué aux fondements des
sciences sociales, depuis Durkheim et Mauss à Lévi-Strauss, en passant par Freud
(1975). Or la prise de parole et les activités aborigènes des dernières décennies– telles
les innovations rituelles, les luttes pour la reconnaissance de leurs sites sacrés et les
peintures totémiques sur toile – remettent en question certains des paradigmes fondés
sur les anciennes interprétations du totémisme. Face à la colonisation, les Aborigènes
se sont battus pour acquérir des droits à la citoyenneté australienne, mais, qu’ils vivent
dans des communautés reculées du désert, des rivières et des côtes du nord, ou bien en
ville, la majorité continue de résister aux nouvelles formes d’assimilation forcée, ou de
rejet stigmatisant, en insistant sur leurs particularités culturelles et ontologiques,
même si beaucoup sont métissés depuis des générations. L’histoire particulière de
l’Australie qui, sous prétexte de métissage et de politique de « blanchiment », a séparé
entre 1905 et les années 1970 un enfant sur cinq de leurs parents, pour les éloigner de
leur milieu aborigène, a créé ce paradoxe : la souffrance du déni colonial des origines a
suscité un mouvement de revendication de telles origines et un refus de reconnaissance
du métissage. Nommer les degrés de métissage est considéré comme une démarche
coloniale dénigrante de l’intégrité des personnes qui choisissent de s’identifier comme
Aborigènes et Black, « noires », quelle que soit leur couleur de peau. L’Aboriginalité
concerne tous les descendants : en ce sens elle n’est pas essentialiste mais construite
par diverses expériences d’héritage tant culturel qu’historique, qui impliquent souvent
un partage de souffrance, de rejet, de résistance et de créativité.
3 Nous allons voir que les « éléments » aborigènes qui insistent sur leur spécificité et
persistent dans leurs modes d’existence actuels comme traits de leur singularité ne
semblent pas correspondre aux « formes élémentaires » dégagées par Durkheim. A ce
titre, je ne pense pas que ses interprétations des Aborigènes puissent nous aider à
comprendre leur singularité ou les questions que les religions posent aujourd’hui; je
doute même qu’elles éclairent le système spirituel et la société aborigène de la fin du
XIXe siècle. En revanche, j’ai pour hypothèse que certains agencements qui
caractérisent la spiritualité aborigène contemporaine – y compris la manière dont ils
rejettent ou absorbent la christianisme – nous aident à comprendre quelque chose de
leur perception que j’appelle « réticulaire » et qui, malgré les aléas de la colonisation,
continue à mettre en lien toutes les dimensions de la vie. Des formes transversales à
l’humanité se dégagent de bien des études des peuples autochtones d’Australie mais
aussi d’ailleurs, qui déplacent les questions de Durkheim, en sortant l’humanité de ses
catégories exclusives – culture/nature, individu/société, corps/esprit, imaginaire/réel
– pour appréhender l’humain dans un projet écosophique, où se nouent, au sens de
Félix Guattari, ce qu’il appelait trois écologies : environnementale (à la fois nature et
dire que un peu plus tard – correspondent tout à fait à ce que Foucault appelle des
rapports de force.
8 Deleuze (1986) ajoute qu’il y eu un débat similaire entre Claude Lévi-Strauss et Edmund
Leach, le premier fabriquant une macrosociologie des échanges avec des structures
molaires et le second, lui opposant des pratiques effectives, un réseau latéral,
transversal, en perpétuel instabilité. Le débat qui opposa en 1903 Durkheim à Tarde
témoigne de l’arbitraire classificatoire et du primat du symbolique (représentations
collectives) qui s’est imposé en France dans une certaine filiation dominante des
théories en sciences sociales. En écoutant sur le net leur débat rejoué mot pour mot par
les philosophes Bruno Karsenti et Bruno Latour dans un séminaire aux USA, 1 on peut
s’étonner que les étudiants du début du XX siècle devaient étudier et discuter leurs
arguments opposés à cette époque, alors que l’histoire de nos disciplines a ensuite,
pendant des décennies, préféré enterrer Tarde. Or les travaux de Gilbert Simondon
(1964), Deleuze et Guattari (1980), puis Bruno Latour (2002) ou Maurizio Lazaratto
(1999, 2002) ont montré à quel point la vision en flux de Tarde permet de mieux
appréhender les phénomènes sociaux et économiques de notre temps, en sortant
notamment de l’opposition entre individu et société. Selon Tarde, lors de ce débat qui
l’opposa à Durkheim en 1903, des variétés individuelles, des innovations et des lois de
l’invention se dégage « une résultante collective presque constante qui donne lieu à
l’illusion ontologique de Monsieur Durkheim » du « fait social » qui substitue « milieu
fantôme » aux relations toujours fluctuantes.
9 Bien que Durkheim ait gagné contre Tarde dans l’histoire patrimonialisée de la
sociologie, Tarde revient en force, comme le montre les travaux de Latour (2012, p. 13),
critiquant Durkheim :
Chose surprenante dans un livre qui annonce le passage des formes élémentaires
évoluant, du moins le suppose-t-on, vers des formes plus évoluées, aucune
transformation historique ne vient marquer la position faite à l’individu : les
Aborigènes sont supposés bénéficier exactement du même appareillage
psychologique que le révolutionnaire en bonnet phrygien de 1789 ou le sujet
contemporain. Cette absence d’historicité prouve à quel point l’ouvrage est animé
par un problème que les données ethnographiques ne sauraient aucunement
éclairer.
10 Les données ethnographiques anciennes – tordues par les débats du XIXe siècle et du
XXe- résonnent autrement avec l’ethnographie plus récente et le monde d’aujourd’hui
qui, notamment depuis l’avènement d’internet, se pense en flux et réseaux
dynamiques. Mais il reste que si Tarde mettait en avant l’invention morale et la
sociabilité, sans partager la vision quasi messianique d’une supposée amélioration du
monde par la science – comme recherche de preuves pour éprouver des faits selon
Durkheim –, il était un homme de son époque modelé par la tendance quasi générale
des humanistes à n’avoir guère de recul sur la colonisation qui invoquait la nécessité de
dépasser la supposée « arriération » des peuples colonisés au nom du progrès. Dès 1885,
Clemenceau s’’était lui élevé contre Le discours sur les « droits et devoirs des races
supérieures » à « civiliser les races inférieures » de Jules Ferry. 2
11 Le dernier siècle, et particulièrement le tournant de ce millénaire, a démontré l’échec
partiel de la course en avant du progrès, les limites supposées civilisatrices de
l’Occident, et la redécouverte de certains savoirs et pratiques des cultures anciennes
comme valeurs contemporaines, non seulement à préserver au nom du patrimoine
mondial, mais aussi à exploiter pour résoudre des problèmes contemporains. En
témoigne, par exemple, les savoirs sur les plantes médicinales et certaines techniques
chamaniques popularisées par les thérapeutes contemporains. D’une manière générale,
cette reconnaissance de perspectives non occidentales nous invite à décoloniser la
pensée et nos disciplines (Glowczewski, 2012).3
Terrains et cartographies aborigènes
12 Je suis partie sur le terrain australien en 1979 nourrie d’une approche
poststructuraliste telle qu’enseignée au département d’ethnologie de Robert Jaulin,
avec Michel De Certeau ou Jean-Toussaint Desanti à Paris 7-Jussieu, et par Deleuze, les
cinéastes expérimentaux ou encore les féministes à Paris 8-Vincennes. La participation
quasi quotidienne pendant cinq mois de danses, chants et peintures corporelles – mis
en œuvre dans des rituels souvent séparés pour les femmes et les hommes mais qui
célébraient les mêmes héros totémiques-, me permit de découvrir une manière d’être
collective en constante performativité. Le totémisme n’était pas une simple affaire de
classification mais un processus en devenir dans son actualisation rituelle sans cesse
rejouée à travers un jeu de rôles où chacun était maître (boss) de certains totems/Rêves
et assistant (worker/manager) d’autres : maître (kirda) de totems/Rêves qu’il ou elle
appelait à la fois « père » et « frère/soeur » et assistant (kurdungurlu) de totems/rêves
appelées soit mère soit « conjoint ».
13 Ces rôles rituels étaient déterminés par la parenté dite de « classes » ou à 8 sous-
sections appelées « noms de peau » (skin names) par les Warlpiri et leurs voisins du
désert, tels les Aranda (Arrernte). De multiples équivalences et torsions étaient sans
cesse en jeu afin de permettre aux gens de se situer les uns par rapport aux autres
même s’ils n’étaient pas de la même famille ou alliés : toutes les relations se
traduisaient en règles idéales de parenté que, bien sur, on transgressait souvent mais
dont la logique systémique (porté par un cube ou groupe diédrique) assurait une
certaine codification des rôles au regard des différentes choses nommées dans la nature
et la culture qui couvraient l’ensemble du réseau totémique et du territoire tribal. Ce
système était dynamique et semblait se substituer à l’émergence de chefs. Les « boss »
rituels changeaient selon les totems célébrés. Les maîtres d’un totem donné ne
pouvaient rien faire sans des assistants rituels qui détenaient la loi et certains savoirs.
Cette relation s’inversait selon les totems et terres associés célébrées. Les maîtres d’une
cérémonie devenaient les assistants des maîtres d’autres totems et terres lorsque ceux-
ci célébraient leur rituel.
14 Il en allait de même entre les hommes et les femmes : les secrets et rituels des uns
étaient complémentaires des secrets et rituels des autres. L’exclusion rituelle de chaque
genre travaillait à produire une androgynie symbolique : ce que j’ai appelé des
« hyperfemmes » et des « hyperhommes », le modèle d’identification des femmes aux
diverses femmes-hommes mythiques n’étant pas la même chose que celui des hommes
aux hommes-femmes mythiques (Glowczewski, 1991). Les modèles mythiques étant ici
ces êtres totémiques de « rêve », pistes en devenir rejouées à chaque rituel.
15 Le territoire tribal – dont hommes et femmes avaient le gardiennage rituel – se
déployait comme un réseau de lignes qui s’entrecroisaient en distribuant à tous des
droits et des obligations rituelles spécifiques sur des séries de lieux reliés en fonction
des identifications multiples de chacun –collectives et individuelles, tel l’esprit
totémique de conception ou les totems hérités du groupe paternel, par adoption ou
d’autres occasions. Un Warlpiri disait par exemple qu’il ou elle EST à la fois Opossum,
Prune et Graine d’acacia, et aussi qu’il EST tel ou tel lieu, source ou rocher, où les êtres
Opossum, Prune ou Graine ont laissé soit leur empreinte soit une partie ou une
excrétion métamorphosée de leur corps. Chaque naissance appelait de nouvelles
interprétations des liens anciens alors que les tabous funéraires obligeaient à ne plus
énoncer certaines associations totémiques entre les lieux. Si certains rituels devenaient
tabous le temps du deuil, de nouveaux émergeaient avec la révélation onirique de
chants et peintures corporelles pensés comme des remémorations. Ces rêves
réactualisaient dans les rituels les liens entre les Dreamings/totems et les sites, créant
ainsi une cartographie dynamique : les séquences de récits chantés qui relient en ligne
des centaines de lieux totémiques nommés se sont ainsi renouvelées au cours du temps
au rythme des morts, des naissances et de l’interprétation des rêves.
16 Lorsque Félix Guattari lut ma thèse de 3e cycle soutenue en 1982 après deux séjours de 5
mois en Australie, il remarqua que mes données et l’analyse que j’en proposais lui
évoquaient Tarde plutôt que Durkheim, et il trouva là un exemple d’agencements
collectifs et de production de territoires existentiels, et d’affects a-signifiants
s’articulant dans les cartographies schizoanalytiques qu’il élaborait à l’époque
(Glowczewski, 2011b ; Guattari, 1992 ; Guattari ; Glowczewski, 1987). J’étais partie en
Australie, après une maîtrise sur les cinq sens et des films expérimentaux à la
recherche d’une perception sensorielle qui ne passe pas par la représentation. J’avais lu
que les veuves aborigènes (endeuillées dès le plus jeune âge en raison du mariage des
petites filles à des hommes jusque trente ans plus âgées qu’elles) étaient soumises à un
tabou de silence pendant au moins deux ans en vivant ensemble dans un camp qui leur
était réservé, et j’avais postulé qu’elles devaient avoir développé une forme de
communication et des pratiques propres à leur genre. Je ne fus pas déçue en arrivant à
Lajamanu : les femmes étaient en pleine activité rituelle pour un cycle initiatique sacré
Kajirri décrit vingt ans plus tôt comme réservé aux hommes (Meggitt, 1966) : en fait les
deux sexes travaillaient rituellement de manière séparée mais explicitement
complémentaire en se concertant régulièrement sur les rituels à faire. Dans un autre
rituel intertribal et secret, que j’ai décrit comme « manifestation symbolique d’une
transition économique » ou encore « culte du cargo » ou « culte historique »
(Glowczewski, 2002, 2004), les femmes avaient les mêmes rôles que les hommes : et les
deux sexes étaient initiés ensemble. En 1984, je retrouvais la même effervescence
rituelle des femmes et des hommes. L’apprentissage de la langue warlpiri me permit
d’enregistrer près de 90 heures de récits mythiques et de chants rituels correspondants
et de révélations oniriques, tout en photographiant les peintures et danses associées à
ces mêmes parcours mythiques de site en site totémique. L’analyse des chants et des
peintures me révéla la spécificité de chaque univers totémique et leur logique de liens
dans une cosmologie extrêmement complexe et dynamique faite de singularités
entrecroisées.
17 Pour comprendre ce que j’avais partagé avec les Warlpiri sur le terrain, j’ai d’abord
cherché à modéliser avec une figure topologique – l’hypercube – leur manière de se
situer dans un réseau classificatoire à huit pôles. Les 8 sous-sections des noms dits de
« peau » (skin names) qui sont énoncés comme un modèle de l’organisation sociale et
de la vie rituelle sont démultipliées en une multitude d’agencements, que les Warlpiri
(et leurs voisins du désert) cartographient eux-mêmes dans la géographie physique du
désert et de ses sites sacrés. A cette géographie correspond une géographie spirituelle
des récits mythiques des êtres totémiques et des chants rituels qui relient ces sites
comme des balises. Ces balises à toponymes fonctionnent comme des empreintes,
engrammes d’une mémoire vivante, à la fois passé idéalisé et virtualité en potentiel de
nouveaux événements (naissances, morts, alliances, conflits, phénomènes climatiques,
etc.), notamment par l’interprétation de certains rêves, révélés tant aux femmes qu’aux
hommes, pour continuer à relier les sites par des récits, des chants et des peintures
rituelles correspondantes et localiser les référents totémiques de chaque nouveau-né.
18 Dans cette approche cartographique d’expériences matérielles et immatérielles,
actuelles et virtuelles, les explications aborigènes des rites, des mythes et des rites
étaient indispensables : il s’agissait pour moi de montrer comment les Aborigènes du
désert fabriquent du lien social et spirituel entre les hommes, avec les sites et les héros
totémiques de ce réseau. Leurs explications et la traque systématique dans la littérature
australienne, alors très abondante, des divers tabous rencontrés me permirent de
dresser une sorte de matrice croisée sur les contextes et les domaines de leur
applications : d’une part les tabous étaient langagiers, spatiaux, sexuels ou relatifs aux
biens, notamment alimentaires : d’autre part ils s’appliquaient presque toujours à
l’occasion de quatre types de rituels différents : totémiques, de deuil, d’initiation ou de
règlement de conflit entre alliés.
19 Autrement dit, si quelque chose de normatif – tabous et prescriptions totémiques des
noms de peau – permettait la reproduction du « système », ce que les Aborigènes du
désert appellent la Loi, ce n’était qu’à la condition que tous les hommes et femmes du
groupe linguistique continuent de faire des rituels en les « réinterprétant », c’est-à-dire
en rêvant des révélations qui nourrissent cette reproduction. Ces révélations – perçues
comme des virtualités de l’espace-temps du rêve remémorisées par le rêveur, se
présentaient sous forme d’innovations individuelles transposées dans des formes pour
nous artistiques (peintures, chants, danses) dans lesquelles le groupe se « reconnaît ».
Durkheim aurait peut-être trouvé là une confirmation de sa thèse sur l’idéal collectif et
le statut du groupe mais Tarde aussi sur l’imitation et l’innovation comme ondes de
propagation qui traversent les individus, créant des territoires existentiels dont les
agencements se recomposent sans cesse (Guattari, 1992 ; Guattari ; Glowczewski, 1987).
Deleuze (1993, p. 83 citant en note Glowczewski, 1991) a reconnu ce processus de
gestion collective des rêves ancrés dans les parcours géographiques qui fabriquent des
cartes à la fois imaginaires et réelles :
C’est pourquoi l’imaginaire et le réel doivent être plutôt comme deux parties
juxtaposables ou superposables d’une même trajectoire, deux faces qui ne cessent
de s’échanger, miroir mobile. Ainsi les aborigènes d’Australie joignent des
itinéraires nomades et des voyages en rêve qui composent ensemble un
« entremaillage de parcours » « dans une immense découpe de l’espace et du temps
qu’il faut lire comme une carte ».
Histoire et anthropologie : patrimonialisation vs
réappropriations autochtones
20 En 1991, un nouveau terrain sur la côte nord-ouest de l’Australie, me fit découvrir des
groupes en recomposition constante entre descendants d’Aborigènes reconnus
gardiens des lieux et d’autres exilés de leurs terres d’origine. Il devaient sans cesse
prouver leur légitimité face aux injonctions gouvernementales qui, après des décennies
de déplacements forcés de leurs parents ou grands-parents dans les missions et
réserves, exigeaient pour la reconnaissance de leurs droits qu’ils démontrent une
continuité culturelle comme si ces aléas de l’histoire n’avaient pas existé. Les
Aborigènes semblaient eux ne tenir que par l'alternance d'alliances et de conflits qui
les opposaient dans le cadre même de l’Etat australien. Il n’y avait plus de société
aborigène palpable et pourtant, si ceux qui se disaient aborigènes, métis compris,
vivaient en apparence comme les Blancs, ils valorisaient aussi leurs différences comme
un « système » qui aurait sa place souveraine au sein de la nation australienne alors
même qu’ils étaient rejetés pour d’autres différences interprétées comme un «
système » inconciliable avec les impératifs universalistes énoncés par l’Etat.
21 Depuis la fin des colonisations officielles, la planète ne semble plus autoriser l’existence
de sociétés coupées du reste du monde, mais les cultures issues de ces sociétés
cherchent à se mémorialiser dans des formes créatives de patrimonialisation. Les Etats
occidentaux encouragent ce processus à condition que la culture s’en tienne à la
« représentation » de son passé et d’un espace clos restreint à la famille, au voisinage
(si pas trop communautariste) ou au spectacle. Or pour les acteurs concernés, la culture
n’a de sens que si elle devient le socle même des échanges sociaux et politiques. Les
Aborigènes du désert ont pensé réussir cet « échange » avec leur mouvement de
peintures à l’acrylique sur toile (transposant leurs réseaux territorialisés de mythes et
itinéraires totémiques) qui sont entrés en force sur le marché de l’art contemporain.
Trente ans plus tard, les collections de leurs oeuvres ont acquis une grande valeur en
bourse, mais la souveraineté aborigène sur leurs terres est écrasée au jour le jour et les
résistants aux injustices sociales souvent muselés (Glowczewski, 2012). Partout en
Australie des courants de peinture ont émergé avec quelques artistes qui ont atteint
une renommée mondiale : la plupart de ceux qui proviennent des communautés
appuient leur art sur des références totémiques et territoriales comme une affirmation
existentielle, une ontologie qui relie les humains à tout ce qu’ils ont nommés.
22 Il reste donc qu’en l’absence de « sociétés » aborigènes bien des individus ou collectifs
aborigènes s’attachent à certaines formes autrefois décrites comme du “totémisme”
(esprit-enfant, lien spirituel à une terre, etc.) : s’agit-il de formes élémentaires de la vie
religieuse? Pour beaucoup cette spiritualité se marie avec l’une ou l’autre des églises
chrétiennes, et pour d’autres, elle se conjugue avec leurs convictions laïques ou
musulmanes. En ce sens, ces singularités existentielles aborigènes plutôt que de fonder
des prémisses religieux apparaissent comme des formes élémentaires de ce que
Guattari (1989, 1992) a appelé l’écosophie (nouage de trois écologies : mentale, sociale
et environnementale), un paradigme esthétique qui est à la fois éthique et politique, un
ancrage nomade de survie.
23 Un récent colloque consacré à « 1913. La recomposition de la science de l’homme »
rendait compte d’un projet ANR de patrimonialisation des « savoirs ethnographiques ».
Lors d’une discussion, alors que j’avais questionné la pertinence d’interpréter les
débats anciens sur le totémisme sans prendre en compte la parole des Aborigènes qui
se sont exprimés depuis, l’un des intervenants me répondit que les Aborigènes
d’aujourd’hui n’ont (je cite) « rien à dire sur ce qui se disait d’eux à l’époque car ce ne
sont plus les ‘mêmes’ ». Vieille rengaine de l’authenticité et de la légitimité du lieu
d’énonciation d’un savoir. Je racontais alors qu’en 2001, le musée du Victoria à
Melbourne a intégré aux côtés d’objets d’Australie centrale collectés par Gillen et
présentés dans l’exposition permanente, une installation sur deux écrans intitulée The
dialogue : d’un côté un acteur joue le rôle de l’anthropologue Baldwin Spencer (Spencer;
Gillen, 1899) qui, avec les arguments et préjugés de son époque, dialogue avec un acteur
aborigène qui, sur l’autre écran, interprète Irrapmwe, son principal informateur
arrernte. Mais ce dernier remet en question ou précise un certain nombre
d’affirmations de Spencer en utilisant des arguments éthiques de ces dernières
décennies, fondés sur la prise de parole et les droits autochtones de propriété collective
et inaliénable de leurs terres et de la propriété intellectuelle de leur savoirs
traditionnels (Morton, 2004). Frédérico Rosa (2012) me répondit alors « vraiment ces
Australiens sont trop politiquement corrects! ».
24 Ce court-circuitage d’un siècle utilisé à des fins pédagogiques dans un musée peut
apparaître comme un effet de style facile mais il pointe une question essentielle : le
rapport politique à l’histoire des idées. En effet à l’époque de Durkheim qui utilisa les
écrits quasi contemporains de Spencer et Gillen pour rédiger Les formes élémentaires de la
vie religieuse certains faits ethnographiques qu’ils ont relevés sont restés sans
commentaire car le paradigme occidental d’alors ne permettait pas de les comprendre.
Il a fallu que nous changions de perception et de paradigme pour voir et comprendre
autrement les données : particulièrement, en ce qui concerne le rapport spirituel à la
terre pensé comme un réseau de lieux inter-reliés, en devenirs mouvants dans un
espace-temps qui se rapproche plus des théories de la physique quantique et du
cyberespace que des spéculations religieuses à l’origine de nos disciplines écartelées
dans les oppositions entre individu et société ou nature et culture (Descola, 2005).
25 Certes du point de vue de l’épistémologie des sciences, les savoirs ethnographiques sont
à préserver mais il serait étrange de patrimonialiser l’anthropologie – même française –
sans prendre en compte les savoirs tels qu’exprimés par les populations concernées par
ces études depuis la fondation de la discipline et particulièrement avec l’indépendance
et les revendications territoriales et de souveraineté de ces peuples qui furent colonisés
et abondamment ethnologisés (Langton, 2011; Toussaint, 2006). En l’occurrence le fait
que Durkheim a projeté la notion de moitiés totémiques dans une fausse division de
l’espace territorial en deux est-il encore un « savoir »? Pris dans le dualisme de son
époque, il ne pouvait sans doute visualiser la territorialité aborigène dans un espace
réticulaire.4 Or, les Aborigènes ont élaboré leur totémisme rhizomique à l’image des
rhizomes d’ignames qui parcourent le désert; soit un de leur modèle à penser qui –
comme je l’ai souligné ailleurs – n’est devenu un savoir visible pour l’Occident qu’à
partir du moment où nous nous sommes familiarisés avec des théories de flux et de
rhizomes telles celles développées par Tarde, puis Simondon, Deleuze et Guattari, et qui
ont trouvé écho dans le développement réticulaire de l’internet des années 1990
(Glowczewski, 2007).
26 Penser le totémisme australien comme une cartographie rhizomique ou réticulaire
d’intersubjectivation des humains et de tout ce qui est nommé déplace la discussion
telle que posée dans le texte co-écrit par Durkheim et Mauss (1903) « De quelques
formes primitives de classification ». Ce texte, qui préfigurait Les formes élémentaires de
la vie religieuse, interrogeait l’essence et la hiérarchie entre les différents totems
auxquels une personne dit s’identifier. Or plutôt que de classer et sous-classer, il s’agit
de comprendre les formes de devenir (en warlpiri exprimé par le postfixe jarri) qui lient
les humains (hommes et femmes) aux différents totems dont ils portent le nom, en
interaction avec les responsabilités rituelles et leurs rôles de gardiens fonciers qui
varient selon les contextes. Les formes de devenir totémiques sont ainsi fluctuantes, à
la fois spirituelles dans les rites et tangibles dans les corps, les animaux, les plantes, la
terre, l’eau, le vent, etc. sous forme de traces, d’empreintes, de forces vitales.
Empreintes comme des « gènes » disent certains Aborigènes aujourd’hui (en Warlpiri
« kuruwarri ») sans entendre la transmission des « gènes » au sens d’une filiation
exclusive, endogame ou raciale. Au contraire, quand un Aborigène dit « je suis »
Opossum, Prune et Graine mais aussi tel ou tel site, la qualité commune n’est pas tant
une essence qu’une empreinte, combinable avec d’autres empreintes, et qui porte une
virtualité de devenir commun nouant le possible des humains avec tout le reste. Par
définition, on reproduit un totem en se mariant avec quelqu’un qui incarne une
constellation de totems autres que les siens. L’exogamie totémique pose ainsi l’altérité
comme condition de la filiation qui reproduit un système dynamique d’alliances.
27 J’avais commencé ma communication orale au colloque du centenaire Durkheim en
retraçant au feutre le dessin réalisé dans le sable par Wanta Steven Patrick Jampijinpa,
ancien instituteur warlpiri à Lajamanu, concepteur du festival Milpirri, qui est depuis
2012 chercheur honoraire dans un programme de recherche sur les chants warlpiri à
Canberra. J’invite les lecteurs à voir par eux-mêmes sur YouTube (Jampijinpa, 2006), le
clip de Wanta qui commente son dessin tout en le traçant avec un bâton sur le sable,
puis reprenant dans une classe d’école, en montrant sur une peinture colorée un autre
réseau correspondant au découpage en quatre ensembles totémiques.
28 Le dessin de Wanta est une manière warlpiri de répondre à la divergence entre
Durkheim et Spencer et Gillen tel qu’analysé par William Watts Miller (2012) au
colloque parisien du centenaire des Formes : ces derniers séparaient totémisme et
organisation sociale alors que Durkheim les réassociait mais en séparant sacré et
profane. Wanta, le Warlpiri, ne se situe pas dans le dualisme ou la dualité de telles
catégories. Son cadre de référence est un réseau qui relie entre eux ce qu’il désigne en
anglais comme cinq pillars, « piliers » : 1) ngurra la terre comme camp, site, « chez soi »,
2) kurruwari, le dreaming qui est et fait la Loi de tous les devenirs, 3) jardiwanpa, etc.…
toutes les différentes cérémonies dont les rituels, chants, danses, peintures
réactualisent les liens,; 4) la langue warlpiri; 5) walja, les relations de parenté, qui
associent les gens deux à deux dans un jeu de relations correspondant à un groupe
diédrique (le cube : modèle logique du fameux système dit à « classes » qui a fait couler
tant d’encre chez les anthropologues comme chez les mathématiciens.
29 Les relations de ce cube ont érigé les Aborigènes comme le modèle exemplaire du
structures élémentaires de la parenté, mais les recherches de Fred Myers auprès des
« Pintupi » qui ne pratiquaient pas ce système classificatoire jusqu’aux années 1930, lui
a fait dire que les Pintupi seraient phénoménologiques, là où les Warlpiri seraient
structuralistes. Certes, il y a des aspects fort différents dans l’organisation des modes
d’existence des Warlpiri et des Pintupi, mais aussi diverses formes d’interactions
(l’adoption du système des sous-sections par le Pintupi dans les années 30 et divers
échanges rituels, intermariage, etc.) qui réactualisent leurs singularités respectives au-
delà de l’opposition phénoménologique/structurale. L’avènement des peintures sur
toile sur le marché de l’art contemporain initié par les Pintupi, les opposa dans un
débat d’experts rituels avec les Warlpiri. Le conflit s’est d’une certaine manière résolu
en faisant changer de pratique les uns et les autres : Les Warlpiri s’opposaient à ce que
soient peints pour le publics le motifs totémiques sacrés – dont les Pintupi, Warlpiri et
autres groupes du désert partagent les itinéraires des Dreamings. Pour tous, ces motifs
relèvent d’un processus d’initiation interne (bien que commun et objet d’échange entre
la plupart des groupes du désert et au-delà entre initiés, hommes ou femmes). Les
Pintupi ont accepté de changer la manière dont ils avaient commencé à peindre afin de
rendre les motifs moins explicitement rituels, en systématisant sur les fonds des toiles
des textures de points (qui renvoient par ailleurs aux kuruwarri, et duvet ou coton
sauvage des peintures corporelles masculines) et en supprimant les références
figuratives aux objets sacrés et aux personnes (Myers, 2002). Les Warlpiri, qui avaient
été choqués par l’exposition des premières peinture sur toile pintupi qu’ils avaient vu à
Paris en 1983, se sentirent ainsi encouragés à peindre à leur tour – sans risquer un
sacrilège – (Glowczewski, 2004).
30 Lorsqu’en 2005 YouTube a permis de poster des images sur le WEB gratuitement, les
Aborigènes se sont lancés avec enthousiasme; Wanta a alors aussi conçu un festival,
Milpirri, où les enfants dansent du hip hop à côté des anciens qui chantent et dansent
les voyages mythiques des héros totémiques, les images-forces kuruwarri : c’était sa
réponse au suicide des jeunes.5 Les adultes et les enfants portent des vêtements soient
jaune, soit bleu, soit rouge soit vert, codes de couleur servant à répartir les différents
kuruwarri, les totems avec leurs lieux et rituels associés, selon les quatre paires de
« classes » (sous-sections) que tous les Aborigènes du désert et du nord appellent en
anglais des skin names, « noms de peau ». Le réseau des quatre couleurs et cinq piliers
de Wanta n’est ni structuraliste, ni phénoménologique, il est plutôt une « invention »
au sens tardien, traduisant une micropolitique devenue écosophique (Guattari 1989,
1992) : celle d’un Aborigène qui, de colonisé par naissance, s’est singularisé dans une
ligne de fuite, en fabriquant une innovation collective, en cristallisant les diverses
transformations et difficultés que son peuple a subies depuis la sédentarisation forcée
en réserve dans les années 1950 jusqu’à l’intervention en 2007 de l’Etat qui a
interrompu le principe d’autogestion instauré par les Warlpiri qui avaient gagné en
1978 leur revendication territoriale sur leurs terres spoliées.
31 Les savoirs des sociétés d’Orient à « érudits » dont les paroles ont été fixées par écrit se
sont fait une place dans le champ universel des sciences, mais il encore de bon ton dans
certains milieux de rejeter les savoirs d’autres peuples sous prétexte qu’ayant été
« sans écriture » avant leur colonisation, ils auraient été jusque là « sans histoire » et
seraient condamnés à ne pas changer – ni s’autoriser à interpréter leur histoire et la
cosmologie de leurs sociétés - sauf à perdre non seulement leur authenticité, mais leur
simple droit d’exister comme différent et singulier. Or, les manières actuelles dont des
membres de ces peuples s’expriment et interprètent leurs savoirs sont en train de
défier à la fois le sens de l’anthropologie et la légitimité supposée des savoirs
occidentaux.
Devenirs
32 Durkheim (2013, p. 3) écrivait dans Les formes élémentaires de la vie religieuse :
Les rites les plus barbares ou les plus bizarres, les mythes les plus étranges
traduisent quelque besoin humain, quelque aspect de la vie soit individuelle soit
sociale. Les raisons que le fidèle se donne à lui-même pour les justifier peuvent être,
et sont même le plus souvent, erronées; les raisons vraies ne laissent pas d’exister;
c’est affaire à la science de les découvrir.
33 L’enjeu pour Durkheim étant de trouver des lois qui puissent s’appliquer à toutes les
sociétés au-delà des spécificités locales, mais est-ce à dire que les producteurs de ces
rites et mythes ne peuvent pas aussi contribuer à cette quête supposée réservée à la
science?
BIBLIOGRAPHIE
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histoire de l’art aborigène. Bordeaux: Musée d’Aquitaine et Paris; Editions de la Martinière, 2013.
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transformations within systems of power. Oxford: Berg, 2006. p. 225-238.
WATTS MILLER, W. Durkheim’s re-imagination of Australia: a case study of the relation between
theory and “facts”. L’Année sociologique, v. 62, n. 2, p. 329-349, 2012.
NOTES
1. http://www.bruno-latour.fr/fr/node/435 : d’après des recherches originales d’Eduardo Vlana
Varga et de Louise Salmon, mise en scène de F. Ait-Touati, film de Martin Pavloff; http://anthem-
group.net/tag/bruno-karsenti/.
2. « Je répète qu’il y a pour les races supérieures un droit, parce qu’il y a un devoir pour elles.
Elles ont le devoir de civiliser les races inférieures. » dit Jules Ferry en 1885 : « Je ne comprends
pas que nous n’ayons pas été unanimes ici à nous lever d’un seul bond pour protester violemment
contre vos paroles. Non, il n’y a pas de droit des nations dites supérieures contre les nations
inférieures », lui répondit alors le député Clémenceau.
3. Voir à ce propos un échange filmé avec Eduardo Viveiros de Castro : Glowczewski B. (12 juillet
2011) : « Décoloniser l’anthropologie : agencements et réseaux existentiels des peuples
autochtones. », Décolonisations de la pensée. Anthropologie, philosophie et politique. (2) leçons deleuzo-
guatariennes », Journées Erraphis-Europhilosophie, Université de Toulouse : http://
choplair.com.free.fr/Europhilosophie/FIPS_videos/player.php?
id=2011_12juil_glowczewski&auto=1. Voir aussi, deux autres conférences filmées de Glowczewski
B. (26 avril 2013) : « Décoloniser l'anthropologie : exemples australiens et français » (traduction
en portugais par Claudia Fonseca), Porto Alegre, PPGAS/UFRGS Department seminar : https://
vimeo.com/65924766; (12 août 2013), « Ethics of anthropological archives : academic heritage and
Indigenous priorities », Canberra, AIATSIS : http://vimeo.com/73112943.
4. Dans une note des Formes élémentaires, Durkheim signale que les totems peuvent parfois être
des lieux, sans mesurer le sens des descriptions totémiques de Spencer et Gillen (1899) qui eux-
mêmes n’ont pas mesuré l’importance du fait que chez les peuples du désert et du nord tous les
totems – animaux, plantes, vent, pluie, mais aussi lance, objets, etc. – sont dans un certain
rapport d’identification avec plusieurs lieux reliés par leurs mythes respectifs.
5. http://www.documentaryaustralia.com.au/films/details/1551/milpirri-winds-of-change.
RÉSUMÉS
Les formes élémentaires de la vie religieuse de Durkheim (2013) s’appuient essentiellement sur les
observations et analyses de Spencer et Gillen (1899) des rituels d’Australie centrale. Découlant de
35 ans de recherches en Australie, l’article montre que le paradigme du XXe siècle a empêché
Durkheim de voir l’importance du rapport à la terre dans la cosmologie et les pratiques rituelles
des Aborigènes. Il a aussi ignoré le dynamisme réticulaire de leurs cartographies totémiques que,
depuis la colonisation, ils continuent à réactualiser par l’art et les luttes sociales. La
réappropriation indigène par la parole et d'autres expressions de leurs propres systèmes de
savoir pose la question de la légitimité contemporaine des interprétations anciennes.
Patrimonialisés, Durkheim et d’autres deviennent des mythes fondateurs des sciences sociales
qui s’opposent parfois à la reconnaissance des peuples concernés. L’anthropologie est ainsi
confrontée à un problème à la fois éthique et politique.
The elementary forms of religious life by Durkheim (2013) largely draw on Spencer and Gillen’s
observations and analysis of Central Australian rituals. Stemming from 35 years of research
across Australia, this article shows that the paradigm of the XXe century has prevented
Durkheim to see the importance of the relation to land in the cosmology and ritual practices of
Aboriginal people. This paradigm also ignored the reticular dynamism of their totemic
cartographies that since colonization Indigenous Australians have been reactualizing through art
and social struggles. The Indigenous empowerment through speech and other expressions of
their systems of knowledge questions the contemporary legitimacy of ancient interpretations.
While Durkheim and others are “patrimonialized” into Western heritage, they become
foundation myths of social sciences which are sometimes opposed to the recognition of the
people they studied. Consequently anthropology is confronted to an ethical and political
problem.
INDEX
Mots-clés : Australie, cartographies totémiques, patrimonialisation, réappropriations
autochtones
Keywords : Australia, indigenous empowerment, patrimonialization, totemic cartographies
AUTEUR
BARBARA GLOWCZEWSKI
Laboratoire d’Anthropologie sociale (CNRS/EHESS/Collège de France) – France
Apresentação
1 O seminário “Pistas da etnologia urbana, com Colette Petonnet” (“Les sentiers de
l’ethnologie urbaine, avec Colette Pétonnet”), realizado entre 3 e 4 de outubro de 2013,
no Muséum National d’Histoire Naturelle – Paris, reuniu diversos pesquisadores para
uma homenagem póstuma a esta precursora da etnologia em meio urbano, fundadora,
com Jacques Gutwirth, do Laboratoire d’Anthropologie Urbaine do Centre National de
Recherche Scientifique (LAU/CNRS). Este artigo é uma tradução do paper enviado por
Claudia Fonseca, ex-orientanda da homenageada, apresentado na ocasião em forma de
vídeo, produzido em conjunto com Claudia Turra Magni e Mauro Bruschi, sob o título
Colette Pétonnet au Brésil: les effets pédagogiques d’un exercice ethnographique. Aqui, as
autoras delineiam as marcas e repercussões dos ensinamentos de Colette, a partir de
sua estada no Brasil, na última década do século passado.
2 É com um misto de tristeza e satisfação que escrevemos estas poucas palavras sobre o
impacto da Colette Pétonnet na antropologia brasileira. Tristeza por causa da inevitável
condição humana – a finitude da vida. Satisfação graças ao sentido de filiação
intelectual que sentimos em relação a esta grande dama da antropologia, Colette
Pétonnet. Mais do que um objeto de interesse dos antropólogos, o parentesco e a
genealogia parecem ser uma maneira de estruturar nossas ciências humanas.
3 Em outubro de 1992, Colette e sua amiga psicanalista, Monique Touron, desembarcaram
no Brasil para passar um mês numa capital no sul do país, Porto Alegre. Essa viagem foi
resultado de vários movimentos de uma rede que começou com a recomendação de
Françoise Zonabend para que certa antropóloga brasileira realizasse seu doutorado sob
a orientação de Colette. Essa etnóloga – Claudia Fonseca, atual professora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – estava começando seu trabalho de
campo entre (o que era chamado na época) os “subproletários” de favelas brasileiras e,
ao consultar as obras de Colette, encontrou nelas uma enorme inspiração. Colette, com
seu habitual espírito de aventura, acolheu a aspirante em sua equipe, abrindo a porta
para intercâmbios que não cessariam de se aprofundar nas próximas décadas.
BIBLIOGRAFIA
FOURMAUX, F. (Ed.). Les lieux du cirque. Paris: Editions Le Manuscrit, 2008.
VEIGA, F. B. Favelas em imagens: Babilônia, Chapéu Mangueira, Santa Marta, Manguinhos, Maré
(Rio), Créteil, Orly, Villeneuve-le-Roi (Paris): da pesquisa etnográfica à poesia urbana. In: MELLO,
M. A. da S. et al. (Org.). Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. p. 491-516.
NOTAS
1. Anos mais tarde, Francine Fourmaux (2008) organizou Les lieux du cirque, com artigos
produzidos a partir do Laboratoire d’Anthropologie Urbaine – o que evidencia a aproximação de
interesses temáticos e metodológicos que Colette inspirava em ambos os lados do Atlântico.
RESUMOS
O seminário “Les sentiers de l’ethnologie urbaine, avec Colette Pétonnet” (“Pistas da etnologia
urbana, com Colette Petonnet”), realizado entre 3 e 4 de outubro de 2013, no Muséum National
d’Histoire Naturelle – Paris, reuniu diversos pesquisadores para uma homenagem póstuma a esta
precursora da etnologia em meio urbano, fundadora, com Jacques Gutwirth, do Laboratoire
d’Anthropologie Urbaine do Centre National de Recherche Scientifique (LAU/CNRS). Este artigo é
uma tradução do paper enviado por Claudia Fonseca, ex-orientanda da homenageada,
apresentado, na ocasião, em forma de um vídeo, produzido em conjunto com Claudia Turra
Magni e Mauro Bruschi, sob o título Colette Pétonnet au Brésil: les effets pédagogiques d’un exercice
ethnographique. Aqui, as autoras evocam as marcas e repercussões dos ensinamentos da mestra, a
partir de sua estada no Brasil, na última década do século passado.
The seminar “Les sentiers de l’ethnologie urbaine, avec Colette Pétonnet” (Pathways of urban
ethnology, with Colette Petonnet), held on October 3-4, 2013 at the Muséum National d’Histoire
Naturelle in Paris, brought together diverse researchers in a posthumous homage to this
precursor of ethnology in urban settings and founder – together with Jacques Gutwirth – of the
Laboratoire d’Anthropologie Urbaine do Centre National de Recherche Scientifique (LAU/CNRS).
This article is inspired in the contribution solicited from Claudia Fonseca (one of Colette’s former
students), presented at the seminar in the form of a video produced in co-authorship with
Claudia Turra Magni and Mauro Bruschi, entitled Colette Pétonnet au Brésil: les effets
pédagogiques d’un exercice ethnographique. Here, the authors outline the repercussions of the
teachings of Colette, starting with her sojourn in Porto Alegre during the early 1990s.
ÍNDICE
Keywords: Colette Pétonnet, ethnographic method, history of anthropology, urban ethnology
Palavras-chave: Colette Pétonnet, etnologia urbana, história da antropologia, método
etnográfico
AUTORES
CLAUDIA FONSECA
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Resenhas
REFERÊNCIA
PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil. Porto Alegre: Medianiz,
2011. 208 p.
O Brasil das “confusões intemperantes”
1 As ideias do livro Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil foram refinadas ao longo de
quase 30 anos de dedicação à pesquisa em história, antropologia e sociologia. O livro
tem a vantagem de unir uma série de textos já publicados em um único volume, dando
ao leitor a oportunidade de apreciar o desenvolvimento dos argumentos da autora,
professora Léa Freitas Perez. Seu argumento central é que festa, religião e cidade são
“rochas sobre as quais fo(i) e est(á) erigid(o)” (Mauss, 1974, p. 42) o Brasil. Em outras
palavras, são os pilares sobre os quais a sociedade brasileira se fez e se refaz
continuamente. O prólogo de Roberto Motta anuncia o empreendimento de monta do
livro: interpretar o Brasil. Em direção convergente às pesquisas de uma das referências
primordiais do livro, Roberto DaMatta, a pergunta central é: “O que faz o brasil, Brasil?”
2 Para respondê-la a autora lança mão ao longo do livro do conceito de “double-bind”, o
duplo-vínculo de Gregory Bateson, conceito difundido no Brasil a partir dos textos de
Otávio Velho e que poderia ser entendido como uma “série de experiências insolúveis”, 1
“injunções paradoxais [aporéticas], dupla postulação” (p. 23). No entanto, o conceito de
duplo-vínculo acionado referencia-se sobretudo a Derrida, no sentido de
“indecidibilidade”: “que remete ao senso mesmo da diferença e da inderterminação”
em relação “à solução e ao fechamento de uma questão de pensamento” (p. 23). A festa,
a cidade, o Brasil são “duplo-vinculantes”, isso quer dizer, impossíveis de serem
apreendidos em uma mirada cartesiana baseada na lógica da exclusão “ou isso ou
como faz Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala, que os portugueses eram eles
mesmos “mestiços”, vindos de oito séculos de ocupação moura na Península Ibérica.
10 “Dionísio nos trópicos” destaca o deus Dionísio e sua propensão ao excesso, ao vinho, ao
prazer, a festa, enfim. O barroco é aqui pensando como estilo de vida tropical, que une
elementos a princípio contraditórios, “um operador de ligações entre diferenças
incontornáveis” (p. 102) e uma “expressão do princípio dionisíaco em sua implantação
tropical” (p. 119). O barroco tropical é essencialmente duplo-vinculante.
11 “Breves notas sobre a religiosidade brasileira” é o último capítulo. Nele, Léa Perez
afirma que a religiosidade brasileira é “não moderna” e “[v]ivida teatralmente, pública
e coletivamente” (p. 122). A religião ocupa lugar central na vida coletiva brasileira, que
desde os períodos colonial e imperial desenrolava-se na igreja (p. 143). A despeito dos
esforços modernizantes de uma elite anticlerical e secular a população mostra-se ao
longo da história fervorosamente religiosa e contradiz a ideia moderna e secular da
religião como coisa do foro íntimo. “A religiosidade brasileira, compósita,
essencialmente festiva e carnal, é uma das melhores demonstrações do caráter mestiço
de nossa sociedade e de sua maneira de operar através de hibridação de códigos e de
pessoas.”
12 O livro – que foi organizado e reescrito durante a estadia da autora em Lisboa durante o
ano de 2010, como pesquisadora visitante no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) –,
termina com um posfácio que traça a trajetória das ideias desenvolvidas ao longo dos
capítulos, através dos cursos ministrados na Universidade Federal de Minas Gerias,
projetos de pesquisa coordenados e eventos onde foram debatidas.
13 O leitor deve ficar atento para não cair na armadilha fácil da crítica rápida aos
conceitos de mestiçagem e sincretismo. A autora faz suas ressalvas quanto ao uso dos
mesmos, principalmente em função das acepções ligeiras de que foram objeto e diz-se
mais inclinada hoje em dia a trabalhar com o conceito de “duplo-vínculo” (p. 43-44).
Sincretismo e mestiçagem não implicam uma confusão indistinta de elementos
díspares, mas “um modo de operar que é da ordem da simultaneidade” (p. 43), um
duplo-vínculo.
14 Ao mesmo tempo em que são simples, as ideias propostas no livro são inovadoras e
funcionam como sopro de vida para os ouvidos acostumados a ouvir falar da festa
apenas como reflexo da sociedade. A autora propõe pensar a festa como produtora da
sociedade brasileira, como ato de produção da vida. Nesse sentido a festa não reflete o
social, mas o funda. É preciso entender que a autora não afirma que a festa acontece em
um vazio contextual e histórico, mas que a relação da festa com a sociedade é mais
complexa que o simples reflexo. É uma obviedade socioantropológica afirmar que
sociedades diferentes produzem festas diferentes. Não é essa a questão aqui em jogo.
Muito mais, interessa à autora pensar as festas como “comunhão de sentimentos”,
produção de vínculo social, na esteira da escola sociológica francesa, para responder a
questão: o que nos liga, o que faz a sociedade?3 Por tudo isso mesmo, para entender a
proposta do livro que “não [é] só sociológica, não [é] só antropológica, mas
metassociológica e meta-antropológica”4 (p. 11) é fundamental uma leitura inteligente
e criativa.
15 Liberada por Roger Bastide quando afirmou que para compreender o Brasil é preciso
moldar-se em poeta (p. 47), gostaria de terminar parafraseando Chico Buarque citado
poeticamente pela autora na sua “Nota introdutória”: o livro é bonito, pá, fiquei
contente!
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Janeiro: Topbooks, 2007.
NOTAS
1. Do original “unresolvable sequences of experiences” (Bateson et al., 1956, p. 253).
2. Ideia retomada por Roberto DaMatta na conferência “The world of Jorge Amado” na British
Library, em Londres, durante o mês de junho de 2012.
3. Para um aprofundamento do debate entre “festa-fato” e “festa-questão”, ou a “festa em
perspectiva” e a “festa como perspectiva”, remeto o leitor ao recém-lançado Festa como
perspectiva e em perspectiva (Perez; Amaral; Mesquita, 2012).
4. Roberto Motta, do “Prólogo”.
AUTORES
FLÁVIA FERREIRA PIRES
Universidade Federal da Paraíba – Brasil
REFERÊNCIA
ZIMRING, Carl A. Cash for your trash: scrap recycling in America. New Brunswick:
Rutgers University Press, 2009. 221 p.
1 Cash for your trash foi originalmente escrito como tese de doutorado na área de história
na Carnegie Mellon University (EUA), em 2002. Embora seja um dos primeiros estudos
especializados sobre a reciclagem de sucata nos Estados Unidos, seu alcance abriga
fontes e reflexões que possibilitam rastrear algumas mudanças nas práticas sociais,
desde o século XIX, relacionadas ao desperdício e à reutilização de todo tipo de
materiais descartados. Este último aspecto é sua característica mais relevante.
2 Inicialmente, Zimring propõe um difícil problema: qual é o significado da reciclagem?
Por meio de uma rudimentar escala histórica o autor afirma que essa atividade é
bastante antiga, e encontra registros desde os séculos VIII e VII a.C., quando Isaías e
Miqueias profetizaram que Deus converteria os povos de tal modo que “das suas
espadas forjariam relhas de arados, e das suas lanças, foices” (p. 13, tradução minha).
Sua evidência seguinte aponta para a Europa medieval do século XII e para técnicas de
produção de papel a partir de restos de pano. Desse ponto ele se aproxima rapidamente
dos séculos XVIII e XIX, e identifica a presença de um incipiente mercado para a
compra e venda de trapos e ferro-velho, cujos desdobramentos causaram forte impacto
econômico e social no século XX, tornando-se um lucrativo e monopolizado
empreendimento:
Lidar com o lixo tornou-se um grande negócio na década de 1990. Diversas cidades
privatizaram seus sistemas de recolhimento e processamento de lixo, estabelecendo
contratos com empresas gigantes que passaram a dar um destino para o desperdício
da sociedade. Firmas privadas estabeleceram contratos com cidades durante
décadas, mas onde operavam dez ou vinte mil companhias tornou-se lugar para
apenas quatro corporações nacionais que agora dominam esse mercado. (p. 155,
tradução minha).
3 Para o autor, a sobrevivência humana a partir do lixo surgiu como uma alternativa para
pessoas pobres e sem repertório para alugarem-se no mercado de trabalho. Apoiado no
estudo de Stewart Perry (1998), sua caracterização acerca dessa atividade indicou um
tipo de trabalho “sujo, perigoso e de baixo status”. Tratou-se, no início, de uma
atividade restrita a imigrantes europeus pobres, principalmente italianos sem domínio
da língua inglesa. A desconfiança contra tais imigrantes esteve aliada a uma percepção
negativa sobre lidar com o lixo dos outros, produzindo uma sensibilidade generalizada
de que essa atividade era suja e repulsiva – a razão fundamental da falta de prestígio
que marcou trabalhadores que se ocuparam com esse trabalho. Mesmo quando a sucata
tornou-se mercadoria encarada como um vantajoso negócio, o status daqueles que
viviam desse comércio não mudou.
4 Zimring confirma que desde o século XIX diversos materiais foram recolhidos e
negociados sistematicamente em muitas cidades. Borracha, panos velhos, garrafas,
estanho, ferro, aço e até ossos (transformados em fertilizantes) constituíram a renda de
muitos trabalhadores que, a serviço de negociantes (que atuavam como atacadistas
dessas mercadorias), cruzavam grandes centros urbanos em carroças coletando ou
comprando essas sobras. Contudo, sobre isso, suas reflexões e as fontes pesquisadas não
ultrapassaram a contribuição de Susan Strasser (2000) acerca da realidade das pessoas
que sobreviveram dessa atividade até a primeira metade do século XX.
5 A atenção de Zimring mostrou-se maior relativamente ao comércio de materiais
descartados e à sensibilidade frente ao desperdício. Na segunda metade do século XIX, o
crescimento das transações envolvendo sucata nos Estados Unidos (especialmente
restos de ferro e aço) foi bastante visível. Se em 1884 registrou-se a importação de 733
mil toneladas de ferro e aço, em 1887 o volume importado saltou para quase dois
milhões de toneladas. Tal crescimento foi facilitado pelo Estado, que taxou esse tipo de
importação e arbitrou um sistema de classificação para estipular a qualidade do
material negociado. Entretanto, o aumento do comércio de recicláveis não foi motivado
por qualquer preocupação centrada no desperdício ou na higiene.
6 Para Zimring, a preocupação com a preservação do meio ambiente no início do século
XX esteve associada à estratégia de negócios da National Association of Waste Material
Dealers (NAWMD). A utilização do sentimento preservacionista para legitimar o negócio
de materiais recicláveis tornou-se uma prática publicitária recorrente e um poderoso
argumento político para reconhecer e valorizar a função social dos empresários desse
setor. Zimring identifica como esses empresários começaram a expressar
sistematicamente essa visão desde 1913, ano da criação da NAWMD, quando o
presidente da entidade tentou afirmar a função social de seus pares e associados
dizendo que “os negociantes de resíduos são os verdadeiros preservacionistas. Eles têm
conseguido retirar milhões de dólares do lixo.” (p. 73, tradução minha). Embora a
referência ao sentimento preservacionista fosse clara por parte dos negociantes de
sucata, o mesmo não acontecia com a população e com o Estado. Os programas públicos
que estimularam a reciclagem só apareceram na década de 1940, voltados para fornecer
metal e borracha à indústria num contexto de guerra. O principal slogan do governo
repercutia os efeitos de Pearl Harbor, e não uma preocupação ambientalista: “Recolher
sucata para explodir os japoneses!”
BIBLIOGRAFIA
PERRY, S. E. Collecting garbage: dirty work, clean jobs, proud people. New Brunswick: Transaction
Publishers, 1998.
STRASSER, S. Waste and want: a social history of trash. New York: Metropolitan Books, 2000.
AUTORES
ANTONIO DE PÁDUA BOSI
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Brasil
REFERÊNCIA
BERT, Jean-François. « Les techniques du corps » de Marcel Mauss. Dossier critique. Paris:
Publications de La Sorbonne, 2012. 168 p.
coincide exatamente com aquela mais disseminada atualmente, que o toma como texto
fundador da antropologia do corpo, muitas vezes posicionando-o numa conexão
demasiado linear com Durkheim ou abusivamente próxima do culturalismo. Ainda que
esse tipo de interpretação esteja presente também no hexágono (vide o texto de
Vigarello), desenvolveu-se ali uma apropriação desse escrito pela chave da técnica,
elegendo-o como fundador de uma corrente da antropologia francesa menos difundida
no exterior – que fica representada no livro através dos textos de seus maiores
expoentes, Leroi-Gourhan e Haudricourt. Desse modo, Bert se junta a Nathan Schlanger
(2006), que republicou recentemente As técnicas do corpo juntamente com diversos
outros escritos sobre técnica e tecnologia, no esforço de reacessar essa quadra menos
frequentada do pensamento maussiano, sobretudo fora da Europa continental.
3 Mas restaurar uma compreensão desse texto clássico a partir dos interesses maussianos
acerca da técnica não é tarefa banal, já que, como nota Bert, “nous ne parlons plus la
langue de Mauss” (p. 7). Antes de tudo, os textos ali reunidos submetem o leitor a um
vocabulário e um estilo algo longínquos, como é o interesse fortemente descritivo e
classificatório de alguns autores, a exemplo de Geoffroy. Por outro lado, uma
perspectiva talvez inesperada sobre o papel das vivências pessoais na formulação do
problema envolvido nas técnicas do corpo é trazida por Condominas, a propósito do
impulso de Mauss à pesquisa etnográfica na França. Outro aspecto que pode soar
heterodoxo é o seu caráter francamente interdisciplinar, não apenas com relação aos
psicólogos, que compuseram a plateia de sua palestra em 1934, conforme nos detalham
os fac-símiles de documentos anexados ao volume (correspondência com Meyerson,
além do manuscrito do texto corrigido por Mauss e de notas de curso de alunos).
Também fica demonstrado o diálogo com a geografia, na proposta de uma
tecnomorfologia, ressaltada pelo vínculo entre técnica e solo feita por Leroi-Gourhan.
Cohen, por outro lado, trata a linguagem como técnica de relação; já Koechlin busca
uma associação entre o gestual, a expressividade e o significado por meio de uma
observação fina das ações. O interesse minucioso pelos movimentos, posturas e
propriedades do corpo ressalta também em Pelosse e Garine. Essa ideia de compreender
a técnica numa perspectiva dinâmica e eminentemente humana, através da ênfase nos
gestos enquanto fato social, assume elaboração metodológica mais refinada e
sistemática em Haudricourt. Por fim, o livro deixa claro que, para além da inspiração
temática, a comunicação de Mauss é parte de uma proposição teórica sobre a técnica,
como demonstra a apreciação conceitual de Gurvitch.
4 Ainda que na introdução o editor não avance muito na análise deste ponto, o conjunto
dos textos em si mesmo leva o leitor a concordar com sua opinião, de que a dimensão
antropológica fundamental das técnicas do corpo só pode ser de fato acessada quando
se tem uma noção do cenário em que ocorrera a reflexão de Mauss. Assim, é possível
aceitar que ele teve “l’intuition d’un modèle dynamique des pratiques et des gestes”
(p. 29), que o diferencia de outras tendências dos estudos em cultura material.
5 Ao abordar a situação-limite da “técnica pura”, sem uso de instrumentos, Mauss abre a
possibilidade de considerar a técnica como um conjunto de relações intrínsecas ao
humano, algo que viria a ser amplamente explorado na obra de Leroi-Gourhan. Para
Bert,
l’actualité de la communication de Mauss doit se comprendre aussi par sa manière
de définir les techniques qui, antérieurment, chez les sociologues du moins, ne
désignaient le seul usage d’instruments. En ouvrant la voie à l’etablissement du fons
gestuel dont chaque population est pourvue, Mauss va profondément renouveler les
BIBLIOGRAFIA
BERT, J.-F. L’atelier de Marcel Mauss: un anthropologue paradoxal. Paris: CNRS, 2012.
AUTORES
CARLOS EMANUEL SAUTCHUK
Universidade de Brasília – Brasil
REFERÊNCIA
TORRE, Renée de la (Org.). El don de la ubicuidad: rituales étnicos multisituados.
Guadalajara: CIESAS, 2012. 380 p.
bem como dos próprios universos de interesse empírico das ciências sociais da religião
sugeridas pelo antropólogo italiano.
2 A partir de uma proposta comparativa, em El don de la ubicuidad: rituales étnicos
multisituados, pesquisadores do México, Brasil, Argentina e França dirigem seus esforços
para a análise de rituais que se articulam, se replicam ou se desdobram em distintos
contextos nacionais. Assim, os textos do livro se relacionam a partir de três eixos
centrais, as danças rituais conchero-aztecas, os rituais dedicados à Yémojá/Yemanyá/
Iemanjá nas religiosidades afro-americanas, e os rituais da etnia wixaritari em suas
apropriações nova era. A diversidade de textos reunidos na obra, bem como dos
contextos empíricos de investigação, não tira a organicidade do livro, mas, pelo
contrário, à medida que o leitor avança na leitura dos capítulos sua proposta teórico-
metodológica torna-se mais evidente. Atentos às constantes afirmações sobre a fluidez
dos pertencimentos e as articulações transnacionais de instituições e grupos religiosos,
os autores problematizam os localismos implicados em conceitos como o de campo
religioso. Com isso não deixam de reconhecer a importância dos processos locais na
análise dos fenômenos religiosos, mas buscam evitar a circunscrição de práticas e
signos locais à localidade.
3 Tão eficaz para a composição do argumento mais geral do livro quanto a convergência
da perspectiva analítica de seus 11 autores é sua proposta editorial. Os textos são
sumariamente etnográficos e a cada um deles se soma uma narrativa visual feita a
partir de fotografias. Ao mesmo tempo em que essas duas narrativas – textual e visual –
se articulam, cada uma delas também tem sua própria autonomia. Desse modo, os
capítulos se articulam tanto a partir de textos introdutórios a cada um dos três eixos
citados, como também por meio de uma composição, no início de cada novo capítulo,
que dispõe fotografias relativas aos textos anteriores e aos seguintes, deixando ao leitor
a possibilidade de elaborar suas próprias conexões. Nas palavras da organizadora do
livro:
A fotografia é valorizada neste livro não como uma arte, nem por sua
potencialidade ilustrativa, mas por sua capacidade de captar situações particulares,
fatos únicos, captadas em um mesmo contexto, mas que, conectadas com outros
cenários, nos permitiriam armar um discurso complexo de sequências e contrates
entre distintas imagens e no entrecruzamento das distintas sequências rituais. Uma
espécie de quebra-cabeças que vai armando realidades multilocalizadas. (p. 13,
tradução minha).
4 O primeiro eixo articulador do livro, intitulado Danzantes y tranlocalización, reúne textos
dos antropólogos mexicanos Renée de la Torre, Santiago Bastos, Alejandra Aguilar Ros e
Cristina Gutiérrez Zuñiga. As danças em questão são parte de rituais de longa duração
realizados pelas populações pré-hispânicas que povoavam o território mexicano. No
período colonial, tais rituais experimentaram a acusação de paganismo para,
posteriormente, articularem-se com as festividades católicas devotadas aos santos
padroeiros nacionais. Ao longo da primeira metade do século XX as danças rituais
adquiriram nova visibilidade, tendo sido convertidas em “prática asteca” foi
reconhecida como parte do folclore nacional e da identidade mexicana. A valorização
de tais danças foi central para o surgimento de inúmeros movimentos interessados em
“recuperar a mexicanidade” a partir da retomada de práticas das populações
mesoamericanas antes da colonização espanhola. “Este movimento [pela mexicanidade]
pretende uma reindianização, ainda que astequizada, da cultura nacional, rechaçando
elementos sincréticos, a cultura ocidental e o catolicismo nas danças” (p. 26, tradução
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, L. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo nova era. Petrópolis: Vozes,
2000.
PACE, E. Religião e globalização. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A. (Org.). Globalização e religião. Petrópolis:
Vozes, 1997. p. 25-39.
STEIL, C. A.; TONIOL, R. A crise do conceito de religião e sua incidência sobre a antropologia. In:
GIUMBELLI, E.; BÉLIVEAU; V. G. (Org.). Religión, cultura y política en las sociedades del siglo XXI.
Buenos Aires: Biblos, 2013. p. 137-158.
RUSSO, J. A. O corpo contra a palavra: as terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993.
NOTAS
1. Diferentes pesquisadores têm se dedicado a investigar processos de transnacionalização
religiosa que obedecem ao sentido sul-norte – refiro-me, evidentemente, menos às referências
geográficas e mais às configurações políticas do globo. Entre as diversas publicações mais
recentes sobre o tema, destaca-se o livro En sentido contrario. Transnacionalización de religiones
africanas y latinoamericas (Argyriadis et al., 2012).
2. Para uma discussão aprofundada sobre o tema ver o debate realizado a partir do texto de Torre
e Zuñiga (2012).
3. “Especialista religioso que dirige as cerimônias rituais dos wixaritari.” (p. 373, tradução
minha).
AUTORES
RODRIGO TONIOL
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Doutorando em Antropologia Social
REFERÊNCIA
ROCHA, Ana Luiza Carvalho; ECKERT, Cornelia. Antropologia da e na cidade:
interpretações sobre as formas da vida urbana. Porto Alegre: Marcavisual, 2013. 296 p.
1 Antropologia da e na cidade: interpretações sobre as formas da vida urbana, das autoras Ana
Luiza Rocha e Cornelia Eckert, expressa um percurso de investigação e uma linhagem
que tem como fonte a antropologia urbana em inter-relações com a antropologia da
imagem.
2 O livro é um feixe de oito artigos anteriormente publicados em periódicos científicos,
oriundos de estudos antropológicos e práticas etnográficas em cidades brasileiras, com
foco privilegiado em Porto Alegre. Trata-se de uma obra dedicada in memoriam ao
antropólogo Gilberto Velho, falecido em 2012. A produção reunida neste livro é, nas
palavras das autoras, “relacionada à linha de pesquisa fundada no Brasil pelo professor
Gilberto Velho” (p. 10). De forma análoga, as pesquisadoras declaram filiar-se a uma
“comunidade interpretativa, da qual participam antropólogos brasileiros como Eunice
Durham, Ruth Cardoso e seus orientados, Ruben Oliven e seus orientados, entre tantos
outros” (p. 9).
3 Este livro encerra e expressa vários significados. Como legado inspirado em Gilberto
Velho, aqui perduram suas lições de antropologia urbana, inventam-se outras, pois o
entrelaçamento com a antropologia da imagem representa uma feição inovadora e
atual, característica da identidade e do modo de vida acadêmico e investigativo das
BIBLIOGRAFIA
VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. (Org.). A aventura sociológica: objetividade,
paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 36-47.
VELHO, G. Memória, identidade e projeto In: VELHO, G. Projeto e metamorfose: antropologia das
sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p. 97-113.
AUTORES
TANIA DAUSTER
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Brasil