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65e |08719931FCH Clovis Moura Penn tse) secre ce re veteran oscar er bt) Brasil e questdes sociais correlatas: ie terattuce zig Bitrate tole Comey te tet coven Euclides da Cunha. Opreconceito de cor na Literatura de Cg Reais Ca aon Opes ceeeacusc NTL TT Crary ‘Asociologia Posta em questo Orman Sete stents Brasil: raises do protestonegro Crist ta aster Cyr escravismo Sociologia do negro brasileiro. pererortrate aioe creios Psrperte 0 Db vare tenets IBN oO Tonic wacl erie) Ge aacettertit tag (yon Conve eset Brasil (Org) Clévis Moura A ERICRORILEAIDA, ae Problemas e dilemas ae AN do negro brasileiro i v 7 = es Ww ed UFAL 8 Maceid, 2003 ., UNIGCAMP. A AN ‘UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS Rotor Prot Rogrio Moura Pintle WieeReitor Prof Manos Clheios Siva Direworda EDUFAL Pret Erldo Sowa Fever, Consetho Eatoial Prof Eraldo Souza Ferra (Presidente) Prof Harold de Siva Perera Trot Edson Mario de Alanors Pro. Crisone Holnéa Sodre ‘Prof, Mara Vrgnia Borges Ameral_ Prot Eduard Pedi de Lemos prof ria des Grages Medevos Tavares Helena Cristina P, do Vale Fonsoea - (ibis) ‘Pro, Angela Mara dos Santos Maia Mctrages: ‘Cap Mlscarepandante mana epresniando ue eabesa (ecamevo- seulo XVII Marfi, 195m Colo parol, Bx, CContr-capa —OxossiCayeder-sem dta-Madeirs, 196% 33x25 Msou de Ate Medes da Baie, uttoragto Eletronen e Capa Earsilson Vassonetos ‘Supervisie Gifien Micio Robeno V. Melo Catalogo na fonte Universidade Feral de Alagoas ‘Biblioteca Cental Divisio de Fratumento Técnico “Aancriada ds orixis:problemase dilemas do negro brasileiro 1 elbvis Moura = Macsi6 = EDUPAL, 2003, 108. clu bibliografa, 1, Bxcravidto ea Igri - Brasil. 2 psa eatin. 3, Problemas racials Tio, cou: 326081) es ISBN 85-7171-144 Dirstes desta edigho reservados & Edu - itor da Universidade Federal de Alagoas campus A.C. Simges, BR 104, Ko, 97,6 Fone: (82) 214.1111 “Fable do Matin - CEP: 57.072-570 Maceié~ Algoxs| E-maiwnesf@edull fa. DEDICATORIA Para Vivaldo da Costa Lima, Waldir Freitas Oliveira ¢ Yeda Pessoa de Castro, amigos velhos ¢ permanentes na minha amizade. APRESENTACAO Clovis Moura é um autor a ser considerado como leftura obrigatéria para que se possa discutir 0 Brasil. Seus trabalhos stio excelentes contribuigées sociolégicas e historiograficas sobre a formacao nacional, onde a questo do negro € posta em evidéncia. Hé uma investigagao e uma escrita nitidamente comprometidas, enfaticamente politicas. Nao hé um objeto formal para sua escrita: hd um didlogo com © tempo, hé uma proposta, ha uma participaco na luta por fazer o pais. Sua escrita no é cémoda; pelo contrario, é desafiante. Este € seu segundo livro langado pela Editora de nossa Universidade. O primeiro foi uma coletinea de textos referentes a0 Quilombo de larga aceitago nacional. Este segundo traz ensaios de sua autoria e que cobrem uma discusso sobre a relago da Igreja Catélica com o escravismo, a Inconfidéncia no contexto escravista, entra na linha do cotidiano da sociedad escravista, discute a aboligaio em Sao Paulo, discute 0 processo da aboli¢ao; retoma Canudos, que & um dos seus temas atuais junto aos sem terra; revisita a revolta de Joao Candido; discute a negritude e a identidade negra Evidentemente, é de se esperar que a maturidade de um autor seja carreada para seus textos. Claro que a relag&o néo é obrigatéria, 1 mas é exatamente o que sucede com Clovis Moura, Ele ampliou o seu othar sobre a histéria brasileira, aprofundou sua tematica e manteve sua radicalidade. E uma honra estar neste seu livro, partilhar de sua amizade e continuar admirando uma figura fundamental para que se possa discutir UNIDADE ~, 1FCH nosso Brasil. Clovis é leitura bisica e, portanto, necessiria, Poucos 1 onaunon 306.0 de chegam a este nivel; felizmente, ele chegou. Luiz Savio de Almeida SUMARIO SENZALAS CONVENTUAIS NO BRASIL LONGA HISTORIA “Vacas parideiras” e escravos eram propriedades de conventos Desobediéncia de escravos da Igreja Senzalas conventuais © PADROADO COMO MECANISMO CONTROLADOR DAIGREJA NO BRASIL sven INCOFIDENCIA MINEIRA: UMA UTOPIA REPUBLICANA NO CONTESTO ESCRAVISTA A INFLUENCIA DAS IDEIAS DA REVOLUCAO FRANCESA NA INCONFIDENCIA BAIANA DE 1798 O RACISTA CASAMENTO A BRASILEIRA DURANTE ACOLONIA A RIQUEZA DA CLASSE SENHORIAL BAIANA ATRAVES DO FLUXO E REFLUXO DE ESCRAVOS 1.101000 TRAJETORIA DA ABOLICAO EM SAO PAULO: DO QUILOMBO RADICAL A CONCILIACAO QUILOMBAGEM E ABOLICIONISMO: DIVERGENCIAS E CONVERGENCIAS 01 08 45 49 37 8 ANTONIO CONSELHEIRO: UM ABOLICIONISTA DA PLEBE JOAO CANDIDO ENTRA NA HISTORIA ....... NEGRO BUSCA SUA VERDADEIRA FACE A NEGRITUDE REINTERPRETADA SERA QUE NEGRO VOTA EM NEGRO? 85 95 99 103 107 SENZALAS CONVENTUAIS NO BRASIL O papel da igreja catélica em relagio 4 escraviddo negra era, até pouco tempo, um tema semi-proibido, No Brasil especialmente, onde 0 modo de produgdo escravista perdurou por quase 400 anos, a suas conexGes de interesses, ligagbes ideolégicas e mesmo a participacdo direta ou indireta para a sua manutengao e/ou desenvolvimento néio eram criteriosamente avaliadas analisadas em fungio da grande forga da igreja tradicional, conservadora e fechada, incapaz de uma postura autocritica, Pelo contrario, estabelecia uma série de mediagdes ideologicas e teolégicas entre a realidad do sistema escravista e a sua posigio diante dessa realidade que terminava por absolvé-la, via estigmatizago de quem a contestasse. Essa posig&io foi se modificando a partir do momento em que a Igreja reconheceu ser impossivel, diante da grande quantidade de fatos empiricamente comprovados, esconder a sua conivéncia, participagao, ‘ou no minimo indiferenga diante da escravidio negra no Brasil e na Afto-América de um modo mais geral. Muitos sacerdotes grupos catdlicos esto iniciando a revisio de todo esse passado de participacdo da Igreja nesse contexto. ‘No particular, entidade como a Cehila - Comissio de Estudos de Historia da Igreja Latina e no Caribe, membros da revista Coneilium € outros setores, entidades e grupos, além de membros da Igreja Catélica, independentes, esto iniciando esse resgate ¢ aproximando 605 figis da verdade em relagaio ao comportamento da Igreja Catdlica e esse grande passado de conivéncia ou convivéncia com a escravidéo no Novo Mundo. [1] ‘A iereja catdlica no Brasil sempre foi omissa institucionalmente em relago a0 movimento abolicionista. Durante a vigéncia do regime escravista, pelo contritio, dele sempre se beneficiou como demonstraram Joaquim Nabuco, Luiz Anselmo da Fonseca, Evaristo de Morais e muitos outros pensadores [2]. LONGA HISTORIA ‘Segundo se sabe, os primeiros escravos negros chegados Europa foram trazidos pelos cruzados de volta da sua prolongada guerra contra 0s “infigis”. O normando Gandri, referendério de Henrique I da Inglaterra « depois bispo de Lion tinha a seu servigo “um destes escravos negros aque 08 guardas votta da primeira cruzada, comegaram a porem moda’ Esta informagio é prestada por Thierry nas Lettres sur I’Histoire de France. Com 0 incremento do trafico a Igreja cria o pretexto da “propagagaio da fé"e passa intervir ativamente no negocio. ‘A bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, assinada por Nicolau V, desmistifica as intengdes da [greja no negécio e da poderes aos navegadores para reduzir “infiéis”, isto é, os negros, a perpétua servidio. Em conseq{iéneia foram sacrificados os negros do cabo Bojador, do cabo Nao e de toda a Guiné. Inicia-se assim o saque & Aftica com o beneplacito papal. Depois disto, a igreja, apesar de hipécritas posturas contra o comércio de came humana, participa ativamente dele, uitas vezes praticado por altos dignatétios e sacerdotes cat6licos. [3] Essa posigtio da igreja catélica na Europa, especialmente emt Portugal, se prolongaré no Brasil desde o inicio da sua colonizagao. A procura de folegos vivos era enorme corn a estruturagéio de uma economia de exportaco baseada exclusivamente no trabalho eseravo. Os jesuitas, no particular, dao 0 exemplo recorrendo sistematicamente a esse tipo de trabalho nas suas fazendas, fato que foi amplamente constatado quando foram expulsos do Brasil pelo marqués de Pombal. No particular éilustrativa uma carta que o padre Nébrega eserevia a Simao Rodrigues: “depois que vieram os escravos da Guiné a esta terra, tomaram os padres fiados por dois anos, trés escravos, dando fiadores a isso, e acaba-se o tempo agora cedo”. Segundo ainda Joao Dormas Filho mesmo aos indios eles escravizam a principio e é dessa mesma carta a confissdo de que fizeram “marcar outros tantos da terra”. E continuava: “Se El-Rey favorecet este (desejo da companhia) e Ihe fizer igreja e casas, e mandar dar os escravos, que digo (me dizem que mandam mais escravos a esta terra, da Guiné); se assim for, podia logo vir proviso, para mais trés ou quatro, além dos que a casa tem, e antes de um ano se sustentariam cem meninos € mais”. Os jesuitas “protegiam” os indios A custa da aprovagio e aproveitamento do trabalho do escravo afticano. [4] Na “Respostas aos capitulos do procurador do Maranhaio”, Vieira assim se expressou ao expor as causas da pobreza e do atraso da Colénia: “A nona e tiltima causa, que em parte vem de ser forgosa, é de ser todo co servigo dos moradores daquele estado com indios naturais da terra, os, quais por sua natural fraqueza e pelo dcio, descaso e liberdade em que se criam, no sto capazes de aturar por muito tempo o trabalho que 0 portugueses os fazem servir, principalmente das canas, engenhos ¢ tabacos, sendo muitos os que por esta causa continuamente esto morrendo; ¢ como na suas vidas consiste toda a riqueza e remédio daqueles moradores, é muito ordinrio virema cair em pouco tempo em grande pobreza os que tinham por mais ricos e afazendados; porque a fazenda no consiste em terras, que so comuns, senfo nos frutos das inddstrias com que cada um fabrica e de que sto tinicos instrumentos os bragos dos indios. Esta mesma quebra e incerteza das fazendas se experimentou ¢ padeceu em todas as partes do Brasil, enquanto nos principios da sua conquista se servem somente de indios até que com esse desengano se resolveram a fabricar suas fazendas com escravos mandados vir de Angola, que é gente por sua natureza servical, dura e capaz de todo 0 trabalho, ¢ que o atura, e vive por muitos anos, se a fome e o mau tratamento os ndo acaba, Nem no Estado do Maranhéo, que é parte do mesmo Brasil, nfo havera remédio permanente de vida, ‘enquanto nao entrarem na maior forga do servigo escravos de Angola”. ‘Além de ser o principal aparelho ideolégico do escravismo a Igreja Catélica seré sua beneficiéria privilegiada, Em raziio desse vineulo estrutural da igreja com o escravismo alguns sacerdotes que se manifestavam contra a escravidao eram repreendidos e/ou punidos. Exemplo disto € o padre italiano Bolonha que chegou ao Brasil no final do século XVII. Convencido da iniqtlidade da escravidao no pais, indignado com 0 que via cotidianamente, manifestou a sua opinitio publicamente as autoridades eclesiisticas. (0 resultado ndo se fez esperar. A igreja revoltov-se contra a sua atitude que contrariava a ideologia e os interesses patrimoniais do clero. Informado da sua atitude, D. José Fernando de Portugal, em 18 de junho de 1794 dirige-se a Martinho de Melo ¢ Castro, no Brasil, afirmando que 0 missionétio italiano “tivera o desacordo e a indiscrigfo de seguir «uma opinido a respeito da escravidao, a qual, se se propagasse inquietaria as consciéncias dos habitantes desta cidade (Bahia) ¢ trazia consigo para.o futuro conseqiiéncias funestas & conservagao e subsisténcia dessa colénia, Depois desse religioso viver em nosso pais perto de quarenta anos com procedimento exemplar, persuadiu-se on persuadiram-no de que a escravidéo era contréria a teligiao”. Em conseqiiéncia dessa idéia herética, o padre Bolonha foi chamado a Portugal e nunca mais se teve noticias suas. E um dos desaparecidos da igreja por crime de opinito. A igreja e 0 seu clero no Brasil sempre foram escravistas, O préprio Joaquim Nabuco, que era catélico e monarquista reconheceu isto afirmando que “a desergao do nosso clero do posto que o Evangelho Ihe marcou foi a mais vergonhosa possivel. Ninguém o viu tomara parte dos escravos, fazer uso da religiéo para suavizar-lhes 0 cativeiro e para dizer a verdade moral aos senhores. “Nenhum padre tentou impedir um leilio de escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas. A Igreja Catdlica, apesar do seu imenso poderio em um pais fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipagao.”[5] O préprio Vieira, na Bahia, em 1633, no dia de Sao Jo%o Evangelista disse: “Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo aos ‘vossos senhores, no s6 aos bons ¢ modestos, sendo também aos maus € injustos... porque nesse estado em que Deus vos pds ¢ vossa vocagiio semelhantes 4 de seu Filho, o qual padeceu por nés, deixando-vos um exemplo que haveis de imitar.” Na Corte de Portugal, ao falar perante a rainha, Vieira expressa-se deste modo, tirando qualquer dtivida que por acaso houvesse da sua posigdo a favor da escravidao: “Nao é minha intengdo que no haja escravos; antes procurei nesta corte, como & notério, e se pode ver na minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta dos maiores letrados sobre esse ponto e se declarassem, como se declararam, por lei que esta registrada, as causas do cativeiro licito,” Essa justificagio teérica da escravidio deixon a Igreja a vontade como proprietaria de eseravos. Como diz Luiz Edmundo “padre que no tivesse escravo era padre de pouca consideragio.6] Ainda segundo ‘© mesmo autor, apoiado em Perdigdo Malheiro a imoralidade chegou a0 ponto de pretender-se favorecer estabelecimentos religiosos dando- Ihes preferéncia para a importagao, no Brasil, de um certo mimero de escravos. Alguns sacerdotes, como Loureto Couto, achavam que Deus agia ‘com miserieérdia” entregando o negro A eseraviddo, uma vez que © senhor do escravo por ser catélico, Ihe dava a luz do Evangelho. Mas, nfio eram apenas os padres que possufam escravos. As instituigdes catdlicas: irmandades, conventos, paréquias e outros grupos religiosos também os tinham. Somente a ordiem de So Bento possuia mais de mil escravos em suas fazendas. E 0 que é mais importante, segundo a antropéloga Manuela Cameiro da Cunha “néo s6 as ordens religiosas tinham seus eseravos, até quase as vésperas da Abolicéo mas algumas se especializaram, e parece ter sido as tinicas empresas do género no Brasil, na reprodugdio de escravos. Os carmelitas tinham, por exemplo, criatérios de escravos na Provincia do Rio de Janeiro e os beneditinos na ilha do Governador.”[7] “Vacas parideiras” e escravos eram propriedades de conventos Em relatério informando a situagaio do mosteiro de Sao Bento, em Sto Paulo, datado de 1797, 0s seus responséveis depois de arrolarem fa renda de foreiros, referem-se aos escravos pertencentes a0 estabelecimento e suas fazendas. Havia, segundo 0 documento, 14 escravos para servirem aqueles religiosos; na fazenda Parati, do mesmo ‘mosteiro, havia um total de 37, entre homens, mulheres, velhos, novos ¢ meninos; na fazenda So Caetano, também pertencente a ele, ha tum total de 39 entre homens, mulheres, velhos, novos ¢ meninos e na fazenda Sao Bernardo 31, perfazendo um total de 121. Em adendo se informava que havia também um escravo velho que era pedreiro da capela de Nossa Senhora do Pilar, num total de 122 escravos de propriedade do mesmo convento.[8] ‘O Hospicio de So Bento na vila de Sorocaba, fandado por Baltazar Fernandes em 1674 arrolava, entre os seus bens iméveis, juntamente com “vacas parideiras”, bois, novilhos ¢ bezerros um escravo para 0 seu servigo. No recolhimento de Santa Tereza, na cidade de Sto Paulo, fandado no ano de 1685, pelo bispo D. José de Barros ¢ Alacio, havia em 1798 naquele estabelecimento os seguintes escravos maiores de servigo: “os homens so nove, que pouco servico se tem deles, por passarem quase todo o ano em consertar ¢ reparar edificios e destru das casas; as mulheres que vem dentro do recolhimento sf oito, fazendo estas e aquelas o ntimero de dezessete; e menores, com criangas de peito sfio treze, fazendo uns e outros o complemento nimero de trinta.”[9] Em 1800 a fazenda Aragariguama que pertencera aos jesuitas possuia 105 escravos, devendo-se destacar que uma estava fugida desde 3 de agosto de 1799. O convento de Nossa Senhora, fundado em 1645, tinha em 1802 como bens de raiz, “além de umas terras cujas bragas ignoro”, bois, casas de romeiros e senzalas, 18 escravos para 0 “servigo do convento” e “quatro fémeas” [10] Desobediéncia de escravos da Igreja > Segundo pesquisa do sociélogo Octavio lanni houve um episédio de protesto escravo no Parand ao serem eles vendidos para terceiro pelos frades carmelitas. Viviam numa fazenda abandonada por esses frades em Castro, cerca de 300 negros e mulatos, que haviam sido escravos daqueles clérigos e passaram depois a uma situagaio de fato de trabalhadores livres autdnomos, vivendo em comunidade, consumindo 0 produto do préprio trabalho do grupo; enfim, organizados socialmente. Segundo se depreende do relato policial que faz parte do Relatério de 1865, de Pédua Fleury, os negros foram arrendados ou vendidos pelos frades a firma Bernardo Gavido Ribeiro & Galvio, de Sto Paulo, para onde deveriam seguir, tornando-se cativos dos cafezais paulistas. Todavia, eles se recusaram a partir “sob o pretexto de que eram livres e, se escravos, somente de Nossa Senhora do Carmo, Camilo Gaviao & Guilherme Witaker, que vieram para levar “os escravos para aquela provincia”, alegaram “estado de insurreigtio” e pediram a colaboragio das forcas policiais da Provincia do Parana, no que foram atendidos. Dizia-se que “nessa desobediéncia poderd talvez haver 0 gérmen de uma futura insurreig0, e cujo desenvolvimento cumpria matar ao nascer”. Porisso, foram presos os lideres do grupo e os outros remetidos a Provincia de Sto Paulo como queria aquela firma. “E dizer-se que esses pobres escravos foram arrancados da fazenda do Capio-Allto, de junto d’aquela que os fazia bons ¢ felizes, e isto, segundo consta, com clamorosa violéncia e crueldade, e por ordem dos antigos proprietarios da fazenda que a haviam vendido”, noticiava a Gazeta Paranaense de 30 de novembro de 1886,[11] Mesmo conventos que por prineipios faziam voto de pobreza, como os franciscanos, eram proprietérios de escravos. Documento de 15 de abril de 1797, assinado por frei Rozendo de Porciiincula comunicando 0 estado de quase pemiria desses estabelecimentos na Paraiba afirma que “o convento de Santo Anténio da Cidade da Paraiba que algum dia conservava até trintareligiosos, hoje tem somente quatro, a saber: trés sacerdotes, dos quais um se acha no peditério no sertdo de Taguaribe chamado Fr. Manuel de S. Anna Firmo; dois ja avangados em idade que excedem os setenta, chamados 0 Pe. Mestre Custédio, Fr. Felis do Rosario e o presidente Fr. Rozando de Porcitincula e 0 outro & Ieigo, o qual anda no peditério de agticar e legumes para sustento dos religiosos, esmolas cotidianas na portaria ¢ 0 culto divino chamado Fr. Manuel da Piedade. Tem também 0 convento treze escravos, a maior parte jé velhos, uum coxo e outro aleijado, para o servigo do convento, ‘sem 0s quais, no Brasil se nfo pode passar; destes andam dois no sertiio com o religioso esmoler.”{12] A historiadora Waldice Mendonga Porto esclarece que era praxe sepultamento e a celebragao de uma missa por alma do negro escravo do convento.”[13] Senzalas conventuais ‘A existéncia, por parte de ordens da Igreja dessa senzalas conventuais levou a que um pesquisador e, ao mesmo tempo sacerdote, procurasse as suas casas @ 0S motivos que poderiam explicé-las. Afirma ‘le que “A falta de irmos suficientes, certo cargos conventuais eram ocupados pelos sacerdotes, como os de porteiro e sacristfio. Mas juustamente no Brasil, a ordem franciscana precisava de muitos serventes porque as comunidades viviam quase exclusivamente de esmolas pedidas de porta em porta. Os peditérios estendiam-se pelo sertéo, tomando semanas oti meses, na arrecadago de vivieres e animais que o religioso esmoler mandava periodicamente ao convento pelos escravos acompanhantes.”[14] Depois de mostrar as atividades desses escravos a servigo da Igreja Fr. Venfncio Willeke F.M, escreve que “a exemplo dos engenhos de agiicar, 08 conventos levantavam senzalas para seus escravos. No fazemos idéias das instalagdes, porque nfo sobreviveu nenhum, senio algumas ruinas em Vila Velha, como também a capela conventual dos negros da Bahia e a enfermaria muito lembrada nos livros de batizados do convento de Santo Anténio do Rio, hoje transformada em oficina. Parece que todas as senzalas dispunham de capela e enfermaria.”[15] O mesmo autor faz. um levantamento estatistico do nimero de escravos existentes nos conventos franciscanos de 1797 a 1798 informando ser de 108. B interessante notar como neste trabalho que estamos acompanhando 0 seu autor preocupa-se com o tratamento que algreja dava.a esses cativos bem como o interesse em dar-Ihe formagao religiosa, isto 6, catdlica, concluindo que “o emprego de escravos nos conventos foi uma conseqiiéncia da situago brasileira do século XVI, & qual também os franciscanos nao escaparam, tomando o exemplo das outras ordens e adotando cativos afticanos para os miltiplos servigos das comunidades. Essa mio-de-obra barata seduziu os filhos de Sao Francisco a levantarem igrejas suntuosas porfiando com os templos mais ricos do Brasil.”[16] Finalmente, como conclusio, devemos dizer que segundo 0 historiador Mario Maestri, baseado no relatério do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Péblicas de 1870, menos de vinte anos, portanto, para o término da escravidao, os beneditinos possufam 41 religiosos, 11 mosteiros, 7 engenhos, mais de 40 fazendas e terrenos, 2 olarias, 250 casas e 1.265 escravos.Os carmelitas com 49 religiosos € 14 conventos, possufam 4 engenhos, mais de 40 fazendas e terrenos, 136 prédios, 2 olarias € 1.050 escravos. Os mercedérios com apenas um religioso, eram proprietarios de 4 fazendas e 200 escravos. Diante desses miimeros os franciscanos eram realmente pobres. Com 25 conventos e 85 religiosos possuiam mais de quatro dezenas de negros. As ordens femininas —clarissa, ursulina, concepcionista, carmelita descalga -, juntas tinham 94 religiosas e 4 centenas de escravos e “servas*[17]. Como podemos ver a Igreja Catélica, no Brasil, explorou esse tipo de trabalho nas suas ordens, conventos e paréquias. O PADROADO COMO. -MECANISMO CONTROLADOR DA IGREJA NO BRASIL Achamios que uma das causas que fizeram a Igreja Catélica no Brasil ficar sempre ao lado do regime escravista (além dos seus interesses patrimoniais, como ja vimos) foi a existéncia do Padroado, o qual consistia na outorga, pela Tgreja, de certo grau de controle sobre uma igreja local ou nacional, a um administrador civil, em aprego ao zelo, dedicacao e esforgos para difundiar a religiéio ¢ como estimulo para faturas “boas obras”, Pode-se ainda definir o Padroado no caso particular do Brasil como “um conjunto de direitos e privilégios concedidos pela Santa S¢ aos reis de Portugal dando-lhe o direito de: nomear bispos, conferir beneficios eclesidsticos, conceder ou recusar 0 “placet” (consentimento de publicidade) aos decretos dos concilios, cartas apostélicas e quaisquer outros documentos eclesiésticos; pereeber os dizimos pertencentes a Ordem de Cristo.” (Segundo Aviz: “Meméria da Igreja no Brasil”) , Para José Manuel Lima Mira, com 0 Padroado “a Igreja torna-se ‘uma corporagio que foi transformada em serva do poder secular, como um departamento do Estado... Previa-se deste o modo a ser empregada aremuneragao dos quadtos eclesiasticos, até 0 controle eficaz.do culto, por parte do funcionério civil o qual deveria acompankar a agfio dos bispos, avisando o governo central de eventuais revoltosos no seio da hierarquia, fornecendo-se & administragio local, nessas condigdes, as regras de cumprimento necessérias.” (...”A passividadle em face do poder temporal, a cumplicidade com as oligarquias valeram-Ihe uma dose de participagdo na riqueza, a tal ponto que os mosteiros estavam, durante a coldnia, entre os maiores proprietétios de terra. Afora essas vantagens materiais, o mais importante dos privilégios catélicos foi 0 monopélio de religiéo do Estado, até o final do Império, com a decorrente proibigao de culto piblico, em pé de igualdade, para outras confissdes cristis.[18] 10 Esta situagdo de privilégio material e espiritual é salientada por Costa Porto ao escrever que “quando o Brasil foi descoberto el-Rei exercia no somente o dominio temporal, mas também a jurisdigao espiritual - 0 Padroado”.[19] O Padroado no Brasil vigorou durante toda a Colénia e Impétio, até 1889. Com a Independéncia, esperava-se que 0 Padroado fosse extinto, mas D. Pedro I preocupou-se com a questo, Mandou a Roma, em missio especial, monsenhor Francisco Correia Vidigal para conseguir com 0 ‘Vaticano a transferéncia para a Coroa Brasileira do Grio-Mestrado da Ordem de Cristo e, conseqiientemente, do Padroado, O Papa, no entanto, mostrou- se receoso de contrariar os interesses das poténcias da Santa Alianga que, em Roma, através dos embaixadores de Portugal, Espanha e Franca empenhavam-se em fazer fracassar a missZo. Diz, Joao Domas Filho que “Nas instrugées que levou, eivadas do velho espirito regalista da época, Vidigal deveria evitar a todo transe ‘quaisquer concordatas que cerceassem o poder imperial, pois o Imperador no abria mao do direito de nomear todos os beneficios curados e, lembrando que a Ciiria Romana desejava sempre conseguir jurisdigao e a maior vantagem de interesses pecuniérios, pediam 0 grio-mestrado da Ordem de Cristo para $.M. 0 Imperador. Nao esqueciam a conveniéncia de se manter para o Estado o regime de percepeao dos dizimos, pois que os bispos e parocos do Brasil 36 recebiam céngruas.” [20] Dois anos passou o enviado de D. Pedro I em Roma até que, finalmente, em 23 de janeiro de 1826 eram a Independéncia e o Império do Brasil reconhecidos pelo Vaticano ¢ transferidas do Reino para 0 Brasil o Padroado das ordens religiosas, mas a comissio eclesidstica da ‘Cémara no aprovou a transferéncia das ordens, Desta forma, a Igreja Catdlica no Brasil, durante a viggncia do escravismo tinha um vinculo de subordinagaio ao Estado. E esse Estado reconhecia e aprovava implicitamente a escravidio. O artigo 179 da Constituigtio do Império no seu inciso 22 afirmava que “é garantido 0 direito de propriedade em todaa sua amplitude”. Esse inciso foi sempre citado todas as vezes que os senhores sentiam-se ameagados nos seus interesses e na sua propriedade de terras e de escravos. n E € esta a causa, por outro lado, pelo menos principal da ambigiiidade da Constituinte brasileira que no se refere a escravidio em 1824, siléncio que foi acompanhado disciplinadamente pela Igreja enquanto perdurou o Padroado. Dai nao ter existido, em contrapartida, ‘um Cédigo Negro que regulasse as relagdes entre senhores ¢ escravos ¢ deixou & vontade a Igreja para omitir-se, j4 que no Brasil, as relagdes entre senhores e escravos no eram figura de direito puiblico, sendo o senhor aquele que estabelecia os padres de conduta do escravo em cada caso, 20 contrario do que acontecia, para dar um exemplo, no Caribe francés onde existiu um Cédigo Negro ea Igreja Catdlica podia interferir no sentido de vé-lo cumprido. No Brasil, ja que nfo havia regras de Direito, os membros da Igreja sentiam-se dispensados de uma ago pastoral (ou politica) nesse sentido, salvo casos de responsabilidade individual de cada sacerdote. A Igreja Catélica, no Brasil, através do mecanismo regulador do Padroado, era o braco religioso do Estado escravista. © seu siléncio acompanha, por isso, o do Estado no particular. (0 Padroado nada mais foi do que um pacto entre a Igreja Catélica 0 Estado escravista brasileiro para manipular o mais possivel os grupos e/ou instituigdes que se opunham ao trabalho escravo, para prolongé-lo ‘o mais possivel, o mesmo acontecendo com outros niveis de interesse e ptivilégio do Estado e da classe senhorial. Segundo pensamos, o Padroado bloqueou o Clero brasileiro da possibilidade de ser uma forca espiritual ¢ politica organizada independentemente do Estado, capaz de influir no processo abolicionista, Pelo contrario, o Clero era pago pelo Estado, através da chamada c6ngrua ¢, em contrapartida, subordinava-se as suas organizagdes ao Estado, 0 qual estatufa aquilo que eram normas de poder as organizagdes da Igreja, Nabuco de Araiijo, ministro da Justiga, em 19 de maio de 1855 expediu circular que mandava cassar as licengas.concedidas para a entrada de novigos em todos 0s conventos do Império até que fosse resolvida a concordata que & Sé iria governo propor. “Como porém nunca se cogitou de propor essa concordata e tio pouco de revogar a circular, os conventos se foram aos poucos despovoando, e extuinguir-se-iam de todo se nfo fosse o decreto de 7 de janeiro de 1890,[21] 2 Nas razSes que Nabuco apresentou afirmava que “Se a Igreja por sua parte deve zelar as vocagées sinceras, o Estado tem interesse em que seus stiditos nao concorram para o claustro somente para eximit-se do énus da vida social, para evadir-se do servigo do Exército.” Nessa época Nabuco de Aratijo queria realizar uma série de reformas que incluiam a extingfo de algumas ordens religiosas € a reorganizagao de outras, com a converstio das suas propriedades em titulos da divida publica. Isto exigia, no entanto, a permisséo da Vaticano, Procurando uma concordata entre o poder temporal e o poder da Igreja, © bartio de Penedo ficou encarregado de entregar em Roma essa proposta, em 1858, quando em missiio especial para ali seguiu, Pela primeira vez hé referéncias a uma possivel interferéneia do govemo na posse dos escravos conventuais, mas tudo nto passou de palavras. Jo%o Domnas Filho escreve sobre o assunto: “Em 14 de janeiro de 1859 escrevia ele (bardo de Penedo) ao nosso governo: ‘Quanto a matéria de supressiio ¢ reforma dos conventos, foi acolhida a idéia em si mesma, mas nfo adotando-se para logo como Tegra para a supresséo dos conventos a exigéncia de certo nimero de religiosos; semelhante supressdo e reforma ficam dependentes da visita de informagdes que, de acordo com o governo Imperial, houvesse de dar o inter-miincio nomeado para o Rio de Janeiro, monsenhor Falcinelli. Quanto a conversdo das propriedades rurais e dos escravos pertencentes as ordens religiosas, em titulos de divida piblica, muito insisti nessa idéia... Sobre a venda de escravos abundaram todos, monsenhor Ferrari, 0 cardeal Antonelli: a respeito da impropriedade de possuirem escravos as ordens religiosas, mostraram muito receosos dos perigos.a que ficam expostos os fundos capitais em que fossem convertidas tais propriedades em momentos de crise financeira, e por qualquer outra eventualidade, Deixou-me, porém, ainda 0 cardeal Antonelli a esperanga de se tomar alguma medida no sentido proposto, depois da informagao do inter-néincio Falcinelli”[21] Essa situagio de dependéncia do clero nacional ao Estado percorre toda a histéria da Igreja no Brasil. H4 momentos em que essa dependéncia entre em conflito conjuntural com o poder, mas, no fundamental o seu 1B comportamento, a sua ago pastoral (quer entre a populagao livre, quer escrava) ¢ a de coadjuvante poderoso,;por controlar 0 monopélio do sagrado institueionalizado. © clero era pago pelo Estado, através da céngrua e, em contrapartida, subordinava as suas organizag6es ao Estado. Essa dependéncia pode ser constatada facilmente ja no segundo Império, quando D. Pedro II exerce o seu poder contra os bispos D. Macedo Costa e D. Vital. Verifica-se em 1872 apds a guerra do Paraguai ¢, significativamente, em conseqiiéneia de discurso proferido por um sacerdote em homenagem ao visconde do Rio Branco pela sua participagao na Lei do Ventre Livre, sob aalegagio de que ele era magom. ‘Veja-se que o incidente, depois transformado em questi nacional, surgiu, de um lado, em conseqiiéncia da comemoraggo de uma lei que atingiria a Igreja nfo apenas no seu sentido teoldgico, mas, também, patrimonial, j4 que, desde 1855 vinha o governo desejando a venda dos escravos dos conventos ¢, de outro, a intransigéncia teolégica ou dogmatica dos seus chefes. Em 1872, apesar de estar a Igreja subordinada ao Estado e os seus sacerdotes considerados simples funcionérios civis, segundo o Ato ‘Adicional, os bispos D. Macedo Costa, do Paré e D. Vital, de Olinda chamados de ultramontanos reagem publicamente contraa “abomindvel seita da magonatia” Para nao nos alongarmos mais sobre um episddio j4 muito conhecido, concluimos que os bispos D. Vital e D. Macedo Costa, por nfio obedecerem as ordens do governo imperial foram julgados, condenados a quatro anos de pristo, presos e posteriormente anistiados pelo governo, Toda a tentativa de independéncia da Igreja foi barrada ppelo pacto de subordinagao ao poder imperial. Uma prova conclusiva dessa dependéncia até em nivel financeiro dos sacerdotes em relagao a0 Estado é.a carta que D. Macedo Costa envia ao bartio de Cotegipe, depois de ter sido anistiado, solicitando que Ihe fossem pagas as cOngruas em atraso: “Bahia, 6 de dezembro de 1875 ~ Exmo. Sr. Barao. Desde que fui posto em liberdade até hoje estou sem receber minhas cdngruas. Pode vossa exceléncia fazer uma idéia dos embaragos vexames em que me tenho visto, pois nao tenho outros recursos. Parece que hé dificuldades para o pagamento das cOngruas durante a pris, pagamento com que eu contava, segundo me afiangaram algumas pessoas ¢ parece de justiga, Enquanto porém, ndo se liquida esse negécio, vou rogar a V. Ex. dé as suas ordens para que me sejam pagas aqui, a0 ‘menos as cOngruas vencidas depois da data da anistia, Tenho tido verdadeiro desgosto com isso, pois contrai alguns empenhos, confiado na promessa que V. Ex. fez.aos meus amigos, e agora ha quem se oponha aisto, se é verdade o que me informaram, de modo que o meu procurador © st. Diogo Andrew, homem respeitivel, ja deliberou nio ir mais a0 Tesouro. Por quem é exmo. Sr. muito digno amigo, tome em consideragao o meu pedido, e se vir que nfo tem cabimento o pagamento das cOngruas durante o meu injusto cativeiro, tenha a bondade de me mandar dizer com toda a franqueza, e a0 mesmo tempo providenciar Para que com urgéncia me sejam pagas aqui as céngruas que me sfio devidas depois da anistia."[22] Pelo exposto, era uma subordinagdio até em nivel de manutengio pessoal dos seus bispos. Diante de tudo isto e das raz6es patrimoniais, conhecidas, a Igreja Catélica no Brasil nfo podia ser uma instituigo que tivesse condigGes de combater a escravidiio: por interesses privados (a posse de escravos) e institucionais: 0 Padroado, 0 Padroado, durante todo o periodo em que funcionou no Brasil, remanescente de um pacto da Igreja com os reis de Portugal e, depois, com o Estado nacional monérquico a partir da Independéncia exerceu um papel mediador na fungaio da Igreja em relagao 20 escravismo. Durante o Brasil-Colénia como aparelho da Metrépole e apés a Independéncia, do Estado Nacional ¢ os blocos de poder dominantes contra as tentativas de mudanga social especialmente no que diz respeito Aesoraviddo. Os sacerdotes eram funcionatios do governo e, desta forma, tinham dever de obediéncia ao seu aparelho de dominag&o. Mesmo nas 15 questbes diretamente ligadas ao assunta,religioso ~ problemas pastorais ~ a Tereja era impedida de exercer plenamente a sua independéncia, porque a parte organizacional das suas pardquias e irmandades estavam da dependéncia e controle do Estado. No epis6dio da chamada questo religiosa de 1872, os bispos que desobedeceram ao governo, mesmo em questdes de doutrina e/ou interpretago de decisées do papado foram presos, julgados, condenados, anistiados e readmitidos em conseqtiéncia dessa anistia dada pelo poder temporal. Do Angulo particular que nos interessa aqui, podemos ver como era problematica a sua situagdo em relago a uma postura anti-escravista. Essa concordata levou-a a uma posigto de conivéncia, de ambigttidade eno maximo de siléncio no particular. Se alguns padres se manifestaram contra a escravidio ~ e nao foram muitos — isto jamais representou a opiniao da Igreja Catélica no Brasil que somente se manifestou oficialmente contra a escravidiio quando ela néo mais existia entre nos, divulgando a carta de Ledo XIII, depois do 13 de maio. NOTAS 1, Ver neste sentido: A.Davies, E.Dussel ¢ V-Elizondo: “A Igreja ¢ 0 racismo”, ed. Vozes, Petropolis (RJ), 1981; CEHILA: “A Escravidéio ‘Negra -p Historia da Igreja na América Latina e Caribe”, Ed. Vozes, Petropolis (RJ), 1987; W.A. Visser’T Hooft: “Lé mouvement ecuménique et la question raciale”, Ed. Unesco, Paris, s/d e, no caso brasileiro 0 polémico “Ouvi o clamor deste povo... NEGRO”, Comisstio dos religiosos, seminaristas e padres negros do Rio de Janeiro, Ed. Vozes, Petrépolis (RJ), 1987. 2, Conferircom “O Abolicionismo” de Joaquim Nabuco, Ed. Cia Editora Nacional, SP, 1938; Luis Anselmo da Fonseca: “A escravidao, o Clero eo Abolicionis”, Imprensa Econémica, Bahia, 1987; e Evaristo de Morais: “A Campanha Abolicionista”, Liv. Ed Leite Ribeiro, RJ, 1924. 16 3. Dornas Filho, JoZo: “A escravidao do Brasil”, Ed. Civilizagao Brasileira, RJ, 1939, pp. 233 sgts. 4, Cit, Por Jodo Dornas Filho. 5. Nabueo, Joaquim, Op. Cit. 6. Edmundo, Luis: “O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-reis”, Ed. Conquista, Rj (3 V.), 1956, p. 186. 7. Cunha, Manuela Carneiro da: “Antropologia do Brasil”, Ed. Brasiliense, SDP, 2" ed., 1987, p. 124 segts. 8. “Documentos avulsos de interesse para a historia e costumes de So Paulo”, Dep, Do Arquivo do Estado de Sao Paulo, vol. III, 1953. 9. Loe. Cit. 10. Loc. Cit. 11, Ianni, Octavio: “As metamorfoses do escravo”, Ed. Difusfio Européia do Livro, SP, 1962, p. 154. 12. Porto, Waldice Mendonga: “A Ordem dos Mendigos de Assis na Paradba — 1585-1985”, In Revista do Instituto Histérico ¢ Geografico Paraibano, Jodo Pessoa, 1986, Vol. 24, pp. 113 sets. 13. Loc. Cit. 14. Fr, Venincio Willeke O.F.M.: “Senzalas de Coventos”, in Revista do Instituto Histérico e Geogrifico de Sio Paulo, vol. 27, pags. 355- 376, SP, 1976. 15, Loe. Cit. 16, Loc. Cit. 17. Maestti, Mario: “A Cruz e a senzala”, in D. O. Leitura, SP, 6 (70) margo, 1988. 18, Mira, José Manuel Lima: “A evangelizagfio do negro no periodo Colonial brasileiro” — Ed. Loyola, SP, 1983, pag. 43. 7 19, Dornas Filho, Joo: “O Padroado.e a Igreja Brasileira”, Cia Editora Nacional, Sao Paulo, s/d, pag. 41. 20. Op. Cit. Pag. 25. 21. Op. Cit. Pag. 27. 22. Op. Cit. Pags. 277/8. INCONFIDENCIA MINEIRA: UMA UTOPIA REPUBLICANA NO CONTEXTO ESCRAVISTA Estamos comemorando, este ano, 0 centendrio da Inconfidéncia mineira. Movimento mais de idéias do que de ago, ele foi tomado como simbolo de protesto dos brasileiros contra 0 colonialismo portugués, embora, para nés, a Inconfidéncia baiana de 1798 tenha sido muito mais significativa, mas isso fica para ser debatido em outra, ocasifio. O movimento mineiro s6 poderd ser compreendido se tomarmos distancia para vermos o panorama onde ele aconteceu. Minas Gerais era, entéo, um mundo fechado, com toda a sua produgo canalizada para Portugal. Para que isto pudesse se verificar, a metrépole estabeleceu todo um sistema de controle e reptessdo violentos, capaz de possibilitar e viabilizar a sujeigo da populagao da Capitania. Era um sistema fechado que impunha um controle total no Ambito econémico, cultural e religioso. Esta sociedade compunha-se de funcionérios da coroa, militares de diversas patentes, juizes, contratadores, comerciantes, clérigos, contrabandistas, e, finalmente, escravos negros e pardos livres. ‘A partir da compreensio de que existem contradigdes e os seus niveis da sociedade mineira da época e que, internamente, a mais relevante era a que existia entre senhores ¢ escravos, mas a contradig&o que havia entre a metr6pole ea coldnia também atuava de forma relevante 19 ¢ dinémica, e, em muitos casos, era a preponderante, podemos nos situar para analisar a Inconfidéncia mineira, ¢ 0 papel e comportamento dos seus personagens. A partir de 1719, aproximadamente, inicia-se o processo de crise da economia colonial. Este inicio de crise era pouco visivel, mas diagnosticdvel por diversos sintomas e nascera da forma como se estabeleceuo fluxo de exportagdies para Portugal. O contetido predatério € monopolistico da grande aventura dos grupos mereantis lusos, 0 comportamento parasitério da corte ¢ do clero de Portugal e a forma como se distribui a produgao colonial, inclusive a aurifera (de Portugal pata os paises nos quais a acumulagdo capitalista se processava a de forma mais acentuada e ritmo mais intenso) determinaram o estancamento do ciclo ascendente da mineragao da col6nia ea formago de camadas ¢ grupos descontentes contra a rigidez dos mecanismos de controle da metrépole. Apesar da injeg&o que recebe a partir de 1730 com a exploragdo do diamante, a sociedade colonial-escravista nos ‘moldes em que se havia estratificado em Minas Gerais ja demonstrava sintomas de crise. Isto se refletia inclusive no problema alimentar. Um género de primeira necessidade como sal pagava para entrar uma taxa exorbitante, fato que iria afetar a conservagiio e o prego de diversos outros produtos, Ferro manufaturado era também gravado da mesma forma. Entre 0 Rio de Janeiro e Minas seu prego subia em 300%. Por isso mesmo “viviam os povos da rica e industriosa capitania no maior descontentamento possivel pela protegtio que se dava a indistria manufatureira da mée-pétria em detrimento da do pais, Para vivificar ¢ animar os estabelecimentos do Reino dar saida facil as suas imperfeitas manufatura era necessério aniquilar as fabricas brasileiras. sopro que era vivificante animador no Reino tornava-se mortifero da colénia. Nao viu o governador D. Anténio de Noronha sem espanto € admiragdo um aumento considerdvel das fabricas mineiras a diversidade dos géneros da suas manufaturas a ponto de se Ihe afigurar que em pouco tempo ficariam os habitantes inteiramente independentes 20 das fébricas do Reino. Proibindo-as foi o seu expediente adotado pelo governo da metrépole, que nfo s6 0 sancionou como que estendeu a proibigdo a todas as capitanias do Brasil.” (1) © préprio desenvolvimento da mineragio possibilitou a diversificago progressiva da sociedade da capitania. Criou-se, concomitantemente, um mercado intemo urbano (iniciara-se um pequeno surto de urbanizago, com a formago de vilas e pequenas cidades no centro da Colénia) que vinha concentrar camadas da populagio antes dispersas. Conseqiientemente aqueles grupos que, em decorréncia do desenvolvimento das forgas produtivas intermas extrapolavam dos planos da economia colonial-escravista,tinham - como no caso dos proprietarios das fabricas - de ser contidos de qualquer maneira. Nas dobras e nos intersticios dessa sociedade rigidamente montada e estratificada com 0 objetivo de satisfazer os interesses de uma economia colonial-escravista, essa camada média que se formavam se via imprensada social, cultural e economicamente pelas estruturas de poder da metrépole. Sera, em face disto, que parte dos membros da Inconfidéncia mineira é recrutada entre seus membros. Conforme afirma Afonso Arinos de Melo Franco “a Inconfidéncia mineira tomada como movimento de classe, no sentido da critica historica, foi um nitidamente um movimento de ideologia burguesa, com tendéncia para a esquerda pequeno- burguesa. Pode-se mesmo observar que a grande burguesia de Minas, altos funciondrios, patentes superiores da tropa, contratadores de impostos, clérigos e estudantes ricos se afastava um pouco, nos planos conspirat6rios, dos mais tipicos representantes da pequena burguesia, como militares de patente baixa, os funcionérios, prepostos e estudantes de poucos recursos” (2). Por isto, os seus mais ativos representantes “stio os alferes da tropa paga José da Silva Xavier e o estudante José Joaquim da Maia, filho de um artesdo da rua Ajuda” que “passam desde Jogo & aco, por mais inconsiderada que ela fosse, mostrando, com isto, um caréter mais verdadeiro de revolucionarios”. (3) José Felicio dos Santos testemunha a situago dessas camadas niio privilegiadas de Minas Gerais escrevendo que a “Historia de Minas au 1nos primeiros tempos, depois do descobrimento das lavas auriferas, quase 86 consiste das variagdes das ordem sobre a maneira de se tributar 0 ouro em beneficio da fazenda real, e na resisténcia que fizeram os mineiros, com mais ou menos sucesso, ao vexame e severidade com que eram executadas.” (4) De fato, o terrorismo tributétio da coroa era asfixiante, Os mineiros pagavam “Diziamos, passagens de rios, direitos de entradas e finalmente 0 quintos sobre 0 ouro em pés”. (5) Por outro lado, na da era aplicado em beneficio dos habitantes da capitania. “Nao havia em Minas uma escola piblica, nem policia, nem estradas, nem pontes, nem correios, nada que de longe a justificasse a rapina lusitana”. (6) Em 1719 é proibida a circulagdo do ouro em pé e se estabelece novamente a quintagao, através de casas de fundigaio. O fato, que era mais uma medida escorchante por parte da coroa, vem agravar sobremaneira a situago dos mineiros e aumenta o descontentamento, uma vez que a partir dai eram obrigados a recolher, sob ameagas de penas severissimas, um quinto do ouro extraido, num momento em que era fundido e transformado em barras, ‘nica forma em que podia circular na capitania Em conseqiiéncia dessa medida, depois de varios motins esporddicos, como o da vila de Pitangui, estoura, em 1720 a revolta de Felipe dos Santos Freire, a sua subseqtiente prisdo e execugaio suméria, Felipe dos Santos demarca a primeira etapa da inquietagdo social em Minas Gerais. ‘A partir dai o problema se agrava progressivamente © as contradigdes latentes se agugam, De um Indo, agugam-se aquelas que refletem a existente entre senhores e escravos, através de uma série de revoltas dos negros e a formagdo de centenas de quilombos, sendo 0 mais famoso e importante o de Campo Grande, o qual chegou a ter mais de 10,000 habitantes, segundo Diogo de Vasconcelos. Aguga-se, a0 mesmo tempo, a contradigo que existia entre a metrépole ea colénia, através de uma série de demonstragdes de descontentamento. A 2 desconfianga, por isso mesmo, das autoridades para com os letrados, militares de baixa patente e elérigos sem pardquia ¢ uma tinica da época, Isto porque eram eles os elementos flutuantes e instaveis socialmente que assimilavam 0 idedrio contestador vindo dos enciclopedistas franceses ¢ de outras correntes liberais européias. Por isto mesmo, surge deste contexto cheio de contradigdes a primeira manifestagio de literatura critica e poesia politica: as “Cartas Chilenas”. Por outro lado, aqueles que iriam compor, posteriormente, o nticleo central da Inconfidéncia mineira liam Adam Smith e outros autores considerados heréticos pelas autoridades. Eram membros da inteligentsia que emergindo de uma classe média epidérmica no bojo de uma situago 1ndo mais de crise, mas de decadéncia e decomposigao social, elaboravam uma consciéncia critica, mas ainda condicionada estruturalmente a0 sistema esoravista, por isto nfo consideravam como forga social importante aquela que existia entre escravos e senhores. A decadéncia da mineragdo atingira, inclusive pessoalmente, alguns membros da Inconfidéncia, como Tiradentes entre outros, que tivera experiéncias malogradas de mineragio, para as quais chegara a adquiir escravos. Tudo, porém, intl. Na situagio em que as coisas estavam era temeridade qualquer tentativa nesse sentido. (7) ‘A decadéncia de Portugal, com o esgotamento do ciclo mercantil € estancamento e declinio da expansio colonizadora, acentuava-se € produzia os seus reflexos negativos da colénia. Além disto, a recente independéncia dos EUA vinha demonstrar a ponderaveis parcelas da populagdo brasileira a possibilidade do Brasil libertar-se de Portugal. O ciclo da mineragio entrava rapidamente em decadéncia, o que nao era compreendido pela corte portuguesa que exigia dos seus prepostos de além-mar cada vez mais ouro, através de leis draconianas que atingiam, no caso de Minas, nfo apenas os seus ricos potentados, muitos deles jé arruinados, mas todos aqueles que viviam da mineragdo ou atividades direta ou indiretamente a ela ligadas. Sfio justamente os membros dessa camada a que jé nos referimos (padres, magistrados, militares de baixa patente e estudantes) que se organizam para discutirem a forma através da qual se libertariam de 2B Portugal. Embora os inconfidentes nfo tenham deixado documentaggio especifica sobre 0 seu idedrio politico, através dos seus depoimentos nos autos da devassa podemos ficar sabendo quais eram os seus objetivos, qual a ideologia preponderante entre os conjurados e qual a forma de governo que pretendiam implantar. Da infra-estrutura do seu pensamento misturavam-se idéias iluministas, os economistas classicos com uma visdo politica liberal- ut6pica pouco definida, poderemos dizer mesmo: confuusa. No contexto escravista, por outro lado, esse liberalismo tinha limitagSes estruturais Se um Tiradentes manifestava-se, segundo depoimento de testemunhas como abolicionista, os demais lideres da Inconfidéncia descartaram a possibilidade dos escravos se incorporarem ao movimento. Isto ficou claro durante as reunides dos conjurados. Alvarenga Peixoto demonstrou © temor de ver os escravos participarem da Inconfidéncia, ele proprio senhor de eseravos, bem como a libertagio dos mesmos na Repiblica que iriam implantar. O certo, porém, é que a aboligfo da escravatura nio figurou como ponto programitico na Inconfidéncia, Apesar desta limitagdo, esses intelectuais tinham uma visio projetiva muito mais avangada do que a maioria dos habitantes da capitania. Tomas Gonzaga jé havia escrito um Tratado de Direito Natural. Cliudio Manoel da Costa lia — nao traduziu, como j4 se escreveu — Adam Smith e o cénego Vieira da Silva convivia com as idéias politicas mais de avangadas do seu tempo. © proprio Tiradentes, querendo atualizar e entiquecer a suas leituras, andava a cata de quem lhe traduzisse livro do francés. Nao foi, portanto, a falta de leituras liberais que levou a que omitissem a aboligdo do seu programa, mas pelas limitagdes que a tealidade escravista e a sua constelagdo de interesses econémicos, sociais e politicos impuseram. Apés a febre de reunides, as atividades politicas de Tiradentes, a delagao de Silvério dos Reis, as prisdes dos acusados, ¢, posteriormente, © seus depoimentos, os fios das idéias politicas dos inconfidentes vao se destacando e as coordenadas do seu projeto utépico se evidenciando, Através da andlise dos autos da devassa pode-se estabelecer, mais ou menos, quais os seus objetivos politicos fundamentais. 4 Afonso Arinos de Melo Franco em um trabalho do qual iremos nos valer daqui por diante, fez. um inventério baseado nos Autos da Devassa dando-nos um painel do que eles pretendiam politica e administrativamente. Tipo de governo: Republicano, © padre Vieira da Silva, no entanto, preferia a solugo monarquica, Afora esta excegiio, todos os demais simpatizavam com a forma republicana de governo. Quanto & Tiradentes, apesar do depoimento de Salvador do Amaral Gurgel de que ele achava necessério um “Testa Coroada” nas Minas Gerais, Vicente Vieira da Mota, ao depor, informa que em Vila Rica o alferes fala tanto em Republica e liberdade que ja era chamado “O Repiblica” é 0 “Liberdade”. Tendéncias sociais: Liberalismo. Seria uma Republica liberal, porém esse liberalismo, como em outros locais onde houve o escravismo, somente seria extensivo aos chamados homens livres, nfo sendo beneficiados os escravos. Idéias administrativas: a) Mudanga da Capital. A capital da Repiiblica seria transferida para Sao Jodo del Rey, na comarca do Rio das Mortes. b) Educago. Diz. um depoimento que em Vila Rica “se haviam de abrir estudos como em Coimbra em que também se aprendessem as leis, c) Industrializagio. Seriam criadas fébricas de tecidos e os “nobres niio haviam de vestir sendo as fazendas proprias do pais e que 0s de inferior qualidade vesteriam as que quisessem e deixava-se-Ihes esta liberdade na esperanga de que estes seguissem 0 exemplo daqueles” e, também segundo ‘0 depoimento de Domingos Viera Barbosa, “o Dr. Claudio, 0 coronel Vieira ¢ 0 desembargador Gonzaga tinham jé feito as leis para se governarem, na qual se ordenava que todo homem plebeu pudesse vestir cetim”. d) Pélvora e ferro. Seria construida uma fébrica de ferro e uma de p6lvora. O encarregado da primeira seria Alvares Maciel que havia estudado na Europa. Ainda segundo Afonso Arinos de Melo Franco “o ‘Tiradentes é quem mais se preocupava com o assunto de obter o ferro ea pélvora em condigées econdmicas”. O padre Rolim chega a indicar 0 local destinado a sede da sider‘irgica da Repiiblica: seria Borda do Campo, 25 perto da atual Barbacena, ¢) Politica Deinogritica e Defesa Nacional. A politica demografica da Reptblica seriaincrementar a natalidade e de protesfio as familias numerosas. O padre Correa de Toledo declarou que “uma das leis que estabeleceria na Repiblica era que toda a mulher que tivesse um certo nimero de filhos havia de ter um prémio, por conta do Estado”. No que diz respeito & Defesa da Reptiblica, Afonso Arinos comenta que ela preconizava o sistema militar obrigatério. “Os inconfidentes ~escreve~ imaginavam jaa formago daquilo que os futuros, tedricos socialistas chamaram de exéreito popular, isto é, o armamento do povo, tomado indistintamente, e 0 apelo ao povo em armas para vir sob as bandeiras defender a Repiiblica ameacada”. (8) Segundo um dos conjurados “nfio havia de haver soldado mas sim estariam alistados a pegarem todos em armas quando fosse necessério e acabada a preciso recolheriam a suas casas para continuarem empregar-se nas ocupagdes ‘em que viviam”. Economia e Finangas, Finalmente na drea de Economia ¢ Finangas haveria combate & escassez do meio circulante pela emisséo de papel-moeda lastreado pelo ouro quendo sairia da Repiiblica e fundagdo de uma Casa da Moeda. ‘A delagdo, porém, ¢ o despotismo colonialista puseram por terra projeto republicano-escravista dos inconfidentes mineiros. A violéncia, a repressiio, a covardia dos delatores e as proprias limitagdes politicas dos seus autores determinaram a iniqitidade das sentengas; ‘Como epilogo de fatos por todos jé conhecidos, Tiradentes marcha para forca, depois de o povo aglomerado ouvir o prego, lido por um mineirinho: “Justiga que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelido ¢ alta traigo de que se constitui chefe e cabega na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana ¢ Suprema autoridade que Deus a guarde”. 26 —_—_ —— NOTAS 1. J. Norberto de Souza Silva ~ “Histéria da Conjurag&io Mineira”, R.Janeiro, 1948, 2 tomos, 1°, p.62. 2, Afonso Arinos de Melo Franco: “As idéias da Inconfidéncia”, em “Terra do Brasil”, R.Janeiro, 1939, p. 77. 3. Idem. Ibidem, 4, Joaquim Felicio dos Santos: “Memérias do Distrito Diamantino”, R. Janeiro, 1925, p. 18. 5. Anténio Torres: “As raz6es da Inconfidéncia”, R. Janeiro, 1925, p. 18, 6, Segundo Xavier da Veiga citado por Anténio Torres, op. cit., p. 19. 7. Desde 1690 jé se cobrava o quinto (uma quinta parte do ouro extraido era destino a Coroa). Postetiormente foi feito um acordo pelo qual as cAmaras arrecadariam inicialmente trinta arrobas de ouro por ano para serem entregues aos prepostos de Portugal. Por ordem da metrépole 0 conde de Assumar volta a estabelecer cobranga do quinto, desta vez com casas de fundigao estabelecidas em Minas, ao invés do que acontecia na primeira fase de cobranga quando elas estavam instaladas fora, Em 1735 a Coroa estabelece a taxa de captagdo, “O imposto de captago ou imposto por cabega, como a etimologia esté definindo era omnis iniquo do mundo. Ele abrangia a todos os moradores das Minas, fossem mineiros ou ndo, fossem escravos ou livres, todas as pessoas que trabalhassem por suas mis, ou tivessem escravos que para elas trabalhassem, com poucas ou determinadas excegdes”. (Antonio Torres: “As razdes da Inconfidéncia”, p. 15. Foi a criagio de casas de fundigdo em Minas das principais razdes da revolta de Felipe dos Santos, como a derrama (cobranga de quintos atrasados) foi a mola dinamizadora do descontentamento daqueles que participaram da Inconfidéncia Mineira 27 8. Clovis Moura: “Achega para uma biografia de Tiradentes”, em “Boletim Bibliogréfico da Biblioteca Mario de Andrade”, n. 27 (Julho- Agosto-Setembro), 1970. 9. Afonso Arinas de Melo Franco: Op. Cit. pag. 106. 28 A INFLUENCIA DAS IDEIAS DA REVOLUCAO FRANCESA NA INCONFIDENCIA BAIANA DE 1798 Durante a época do Brasil colonial, dois fantasmas percorriam as col6nias ¢ apavoravam as autoridades das metrépoles: 0 “perigo de Sio Domingos” e “as idéias da Revoluedo Francesa”, Quem pesquisa a histéria social dessa época encontrara as duas vertentes ideol6gicas como uma constante e as conseqiientes medidas acauteladoras: normas administrativas, vigilncia e repressfio. A repressio podia ser politica ou terrorista. Dependia do grau de profuundidade da influéncia dessas idgias nos segmentos plebeus, especialmente escravos: é a sindrome do medo das autoridades coloniais. Idéias que chegavam as colénias com um significado libertitio e ut6pico, mobilizando, dinamizando e inculcando um pensamento critico radical em relagflo & dominagdo e aos niveis de subaltemizagio a que estavam submetidas essas populagdes. As autoridades ndo davam tréguas ao desenvolvimento € penetragao dessas idéias: “cuidado com as idéias que destruiram a bela Sao Domingos”, cuidado com as “idéias da Franca”, com 0 “francesismo” que podia se espalhar ameagando o Rei, a religitio e a propriedade... A revolugio do Haiti e a francesa eram dois fantasmas que apavoravam as metrépoles colonizadoras. A composiio das col6nias,rigidamente estratificadas em duas classes fundamentais, senhores e escravos, em muitas das quais o niimero de escravos negros ou indios era superior aos brancos colonizadores representava um 29 espago geogrifico e social perigoso, caldo de cultura favorivel Adifustio dessas idéias que falavam de liberdade para osnegros, através da violéncia e de fratemidade para todos os seus habitantes que deixariam de ser escravos ou senhores para se irmanarem na categoria de cidadaos. 2 E nessa moldura ideolégica que podemos situar a Inconfidéncia Baiana de 1798. Ela parece fazer convergir sobre o seu corpo ideol6gico essas duias vertentes, os dois fantasmas do colonialismo. ‘Varnhagen, 0 historiador das classes senhoriais no Brasil, identificoua Inconfidéncia Baiana com essas duas matrizes ideologicas. ‘Afirma, referindo-se ao movimento dos alfaiates que “as chamas incendidrias da revolugdo francesa no deixaram, no entanto, de saltar no Brasil, e chegaram quase a atear, pelas suas labaredas, na Bahia, em agosto de 1798, um incéndio, que foi dias antes percebido. Se a aspiragao de Minas, tao patriéticos nos seus fins, {Zo nobre por seus agentes e to habilmente premeditada, julgamos que foi um bem que se malograsse, ‘com muito mais razio agradecemos a Deus o haver-nos amparado a tempo contra estoutra com tendéncias mais socialistas que politicas, com arremedo que era das cenas de horror que a Franga e, principalmente, a bela ilhta de S40 Domingos, acabavam de presenciar, sendo, alids, embalada ao santo grito de ‘liberdade, igualdade e fraternidade™. E prossegue, apresentando as razées do perigo social que essas idéias representavam para o Brasil “Como se nao fosse de bastante escarmento tudo quando na Franga acabava de sucedet, ao som desse grito, nfo faltaram na Bahia espiritos exaltados que de novo o invocaram; esquecendo-se de que, quando em uma provincia com tanta escravatura, sua generosidade lograsse triunfo, ibertando todos os escravos, como prometiam, depressa, como se viu no Haiti, seriam vvitimas destes, desengreados e em muitissimo maior nimero”. (1) O mesmo historiador assinala, ainda, porque via na Inconfidéncia Baiana a unido desses dois perigos:a sua composicao social ¢ racial. Dizia, definindo-a: “Os conspiradores que se chegaram a descobrir nfo subiam a quarenta; nenhum homem de talento, nem de consideragao; e quase todos 30 libertos ou escravos, pela maior parte pardos. A pouco valia dos revolucionétios se deduz do modo estranho como projetaram levar a execugiio os seus planos”. (2) E por ai, na opiniaio desse historiador, que podemos visualizar a diferenga entre o movimento dos alfaiates, artesos, escravos e ex- escravos e os outros da mesma época: a Inconfidéncia Mineira e a Inconfidéncia Carioca. A primeira foi um movimento de letrados, bem situados na estrutura social de Minas Gerais, Essa composigio social dos inconfidentes ira influir nas suas propostas de governo, especialmente no seu posicionamento em relac&o 4 populac&o escrava. Tinham propostas muito modernas para a época e defendiam uma série de medidas capazes de modernizar a Capitania, como a implantagéo da Repiblica, abrir estudos universitérios como em Coimbra, industrializar ‘Minas Gerais com a criaedo de fibrica de tecidos, fundar uma fabrica de pélvora e ferro, proteger as familias numerosas, criar uma milicia popular e uma casa da moeda, além de outras medidas desse tipo. No entanto, do ponto de vista econdmico e social permaneceria a escravidio. problema da aboligao foi debatido sem conclusio satisfatoria, No particular, escreve Keneth Maxwell que “Maciel considerava a presenga de tio grande percentagem de negros na populagéo como uma ameaga possivel ao novo Estado, caso a promessa de liberdade os induzisse a se ‘oporem aos brancos. Alvarenga, um dos maiores senhores de escravos dentre os inconfidentes, defendia a liberdade dos escravos, que, segundo ele, os transformaria nos mais apaixonados defensores da nova Republica e comprometidos com sua sobrevivéncia, Maciel achava que esta solugio poderia representar a autodestrui¢do, pois os proprietarios ficariam sem contar com quem trabalhasse nas minas. Uma solugio de compromisso foi eventualmente apresentada e, presumivelmente, aceita: a de que s6 08 negros e mulatos nativos fossem libertados, no interesse da defesa do Estado — no houve mengao de compensagdes”. (3) Como vemos, a conclusio do historiador é ambigua no que se refere a aboligdo total da escraviddo. Acha-a presumivel, mas nfo a 31 confirma de forma abrangente. Isto porque os Autos da Devassa também o sto. Este comportamento vacilante dos jnconfidentes mineiros explic: se pela alocagiio dos mesmos no espago econdmico e social da Capitania, 08 seus interesses pessoais ou grupais e, finialmente, pela limitagdo das necessidades dos problemas que exigiam solugao para aquelas camadas que eles representavam ¢ cujos interesses defendiam. O propr Tiradentes, considerado por muitos representativo das camadas plebéias do movimento, era possuidor de escravos. Por outro lado, basta uma Ieitura atenta das “Cartas Chilenas” para se constatar 0 preconceito de ‘Tomés Anténio Gonzaga contra os negros e mulatos. Outro historiador da Inconfidéncia Mineira, também baseado nos Autos da Devassa, escreve da mesma forma que “surgiu a questio da escravidio, mas néio como instituigao incompativel com a nova Repiiblica que pretendiam fundar. Estavam to pouco imbuidos do humanitarismo do século XVIII que a idéia nao thes ocorreu, Os escravos apresentavam-se como um possivel obstaculo aos seus intentos. Sendo muito maior o niimero de pretos, poderiam aproveitar-se da situago matar os brancos. Alvarenga sugeriu ento que se Ihes concedesse a liberdade, objetando Maciel que seria desorganizar o trabalho das minas ea lavoura. Coma sua habitual inconsequéncia, Alvarenga sugeriu entao {que se libertasse apenas os mulatos. Os inconfidentes nao se‘detiveram no exame de tao importante questo que ficou em suspenso”. (4) Talvez 0 seu idedtio estivesse mais decalcado na Revolugao ‘Americana que fez a Independéncia dos Estados Unidos conservando o trabalho escravo. Como sabemos, houve contatos de pelo menos um participante da conjuragao mineira e um personagem que foi autor da independéncia norte-americana. (O segundo moviments —a Inconfidéncia Carioca - de acordo com ‘Artur Cezar Ferreira Reis, “ foi o mais inofensivo do ponto de vista da ameaga ‘a ordem estabelecida” (4) ‘Surgiu em uma associagao cultural, a Academia Cientifiea, que realizou a sua primeira sessfio publica em 18 de fevereiro de 1772. ‘Amparada pelo marqués de Lavradio funcionou regularmente, tendo, contudo, desaparecido em pouico tempo, voltando a reativar-se em 1786, 32 ja sob o governo de Luis de Vasconcelos, com momentos de desativagao e recuperagtio, realizando-se sessdes literdrias que, pouco a pouco, transformaram-se em discuss6es politicas, ou, na linguagem oficial, reunides em “horas noturnas ¢ iluminadas”. Denunciada em 1794, iniciou-se o episédio das prisdes ¢ a devassa, tendo os seus membros sido acusados de serem “mal intencionados que sustentavam em varios lugares publicos e particulares proposigOes opostas aos governos monéarquicos e que se encaminhavam, ou ao menos pareciam encaminhar-se a semear e propagar entre estes povos os mesmos principios que transformavam a monarquia frances: ‘A Devassa durou de dezembro de 1794 a fevereiro de 1796, permanecendo presos os seus participantes. Os acusados de “francesia” ceram apenas dez, além do desembargador Pereira da Fonseca e do poeta Silva Alvarenga. Os outros eram Jacinto José da Silva, médico formado na Europa; José Anténio de Almeida, estudante de retérica; Gervasio Ferreira, cirurgio; Francisco Coelho Solano da Silva, proprietatio; Joao de Sa Conceigio, sapateiro; Jodo da Silva Antunes, marceneiro; Francisco Anténio, entalhador; e Anténio Gongalves dos Santos, ourives. Os livros que influfram nos letrados dessa conspiragaio (foram obviamente apreendidos) eram Voltaire, Rousseau e outros divulgadores dos enciclopedistas. Nao ha referéncia sobre debates em relagiio ao trabalho escravo e a aboligao. ‘As ordens do Reino contra esses conspiradores foram surpreendentemente das mais brandas, contrastando com o costume em tais casos. Em aviso de 1° de fevereiro de 1797 comunicava o futuro conde de Linhares ao vice-rei que fora a rainha servida determinar que, no caso de entender a autoridade do Rio de Janeiro que os réus se no deviam soltar, os remetessem para a Corte com os autos. Achando, porém, que estavam suficientemente castigados com a prisio, os mandasse por em liberdade. (O desembargador Ant6nio Dinis da Cruz e Silva opina pela soltura dos réus, afirmando que “contra nenhum dos presos se diz ou prova que cles entrassem no projeto de conspiracao, sendo toda a culpa que se Ihe imputa e contra alguns se prova, a de sustentarem em conversagées, ou 33 y particulares ou piblicas, que o governp das repiiblicas deve ser preferido aos dos monarcas, que os reis so uns tiranos opressores dos vassalos, ¢ outras sempre detestaveis e perigosas, principalmente na conjura presente”, Todos, portanto, soltos. Nenhum mértir, nenhum her6i. Silva [Alvarenga voltou a advogar e a ensinar retérica € os outros aos seus y {afazeres, sem mais restrigées. eS YF) Como vimos, nas duas inconfidéncias havidas na €poca que lantecedem a revolts dos alfaats,oidedrio de Revolugdio Francesa no ltranscendeu, no plano ideolégico, ao nivel da liberdade, igualdade e |fraternidade entre os cidadaos livres paradoxalmente em uma sociedade (de escravos. Era um discurso liberal-eseravista. As mesmas idéias que 05 alfaiates baianos assimilaram haviam também sido assimiladas pelos componentes das inconfidéncias Mineita e CariocafiO que modificou a fungao dessas idéias foi o sujeito social que del: las se apossou/Nos dois ‘casos anteriores, os componentes de uma caiviada media que estava ligada ao escravismo por uma série de elos diretos ou permeados, jogavam, manipulavam e usavam essas idéias para estabelecerem uma _nodernizagio.sem mudanea social, No caso da Inconfidéncia Baiana, ‘es8as mesmas idéias foram usadas como ferramenta ideolégica para uma mudanga sogial radical que atingiria as proprias bases estruturais da sociedadéfA fungaio das ideologias, como vemos, nao atua abstratamente, Fras em uma estrutura social especifica, desempenhando um papel que poderd corresponder a uma transformagdo radical, uma reforma ou uma defesa de inércia social, dependendo dos interesses dos agentes sociais que se manipula) A trajetdria das ideologias ¢, portanto, um elemento que acompanifa eSses interesses e podem exercer uma fungio de dinamismo na mudanga revolucionatia ou de elemento de estagnagao de determinada estrutura social. Nao se trata de “idgias fora do lugar”, mas de idéias que sao condicionadas pelo ser social que delas se aproveita elaborando uma prixis de acordo com os seus objetivos finais, em coeréncia com as ‘metas que o agente impulsionador dessa dindmica imprimiu, subordinada 34 aos seus interesses de classe ou de grupo. No caso da Inconfidéncia Baiana, o problema se configura de forma bem clara. Num pais escravista, as idéias liberais da Revolugao Francesa foram assimiladas, neste caso, por camadas e grupos étnicos ligados, direta ou indiretamente, aos interesses de mudanga social a partir da classe escrava e, por isto, exerceram um papel muito mais radical do que na propria Franga. O que desejavam os inconfidentes baianos? Qual 2 situagiio dos seus componentes? Qual a estrutura que desejavam modificar? Os inconfidentes baianos apresentavam como proposta politica ‘um programa radical, Isto 6, um programa de ruptura estrutural, propondo como uma das metas programéticas aquela que representava a negagao dos interesses de toda a estrutura de poder dominante e da classe de senhores de escravos que esta estrutura de poder representava a partir da sua base. Era, portanto, uma subversto no sentido mais profundo das relagdes de produgio da economia escravista. E, além desta proposta politica e como sua continuagio corolirio, uma reformulagao dos valores étnicos impostos por este aparelho de dominagao, equiparando negros, pardos e brancos, tendo todos como possibilidade de ascensto social e étnica apenas o seu merecimento. ‘Vemos, portanto, que na Inconfidéncia Baiana cruzam-se e as compéem a luta de classes com a luta de ragas, num sineronismo que somente poderia acontecer pelo coincidéncia do socialmente explorado com 0 etnicamente discriminado. Isto proporcionou uma soma de fatores que determinara a necessidade de um programa revolucionério que pregasse, ao mesmo tempo, a extingZo dos privilégios econdmicos € sociais ¢ as discriminagGes raciais e étnicas. E, portanto, a revolta dos alfaiates a tinica inconfidéncia urbana no Brasil que rompe os marcos inibidores do libertalismo eseravista e se projeta, pelo seu discurso radical, como a mais avangada proposta de governo, até a Aboligfio em 1888, 35 2 A Inconfidéncia Baiana foi organizada, de fato, pela plebe de “pouca valia” e discriminada pela metrépole portuguesa e os grupos de poder e prestigio econémico da Capitania. Inicialmente, a idéia partiu de uma sociedade literdtia, “Cavaleitos da Luz”. Essa sociedade agrupava no seu seio letrados que esgrimiam academicamente as idéias da Revolugéo Francesa, sem, contudo, estenderem esse discurso & ago politica verdadeiramente revolucionaria, isto é, contra o sistema escravista, Esses intelectuais, dentre os quais vale destacar os nomes de Agostinho Gomes, Cipriano Barata, os tenentes José de Oliveira Borges e Hermégenes de Aguiar propagavam, nos quadros daquela sociedade, ou aos seus grupos ligados a cla, idéias liberais. Mas, ndo foi tal organizagao que impulsionou 0 movimento no seu nivel radical’ O pensamento de uma safda revoluciondria para a situagaio surgiu exatamente de outros componentes da conjuracdo: artesaos, soldados, alfaiates, sapateiros, ex-escravos e escravos pardos e negros. A posigao. de Cipriano Barata foi cética e reticente quanto 4 possibilidade de uma solugo violenta. Ao set procurado por Manoel Faustino dos Santos para participar do levante, afirmou que “deixasse de semelhante projeto, porque a maior parte dos habitantes vivia debaixo da disciplina de um cativeiro e nfo tinha capacidade de ago: 0 melhor era esperar que viessem os franceses 05 quais andavam nessa mesma diligéncia na Europa e logo chegavam”. (Devassa*). Também Francisco Moniz Barreto, a quem se atribui a letra do hino da Inconfidéncia, optava pela vinda dos franceses. (Devassa) Nao era outra, também, a posigao de Hermégenes de Aguiar (Devassa). ‘Se verdade que esses intelectuais desejavam acabar com o estatuto colonial, ou supunham fosse possivel atenuar a situagdo em que se encontrava a Capitania, o certo é que recuaram, tergiversaram, vacilaram Amedida que os acontecimentos se precipitaram e tomaram carater radical ea ele aderiram os componentes subalternizados, explorados economicamente, marginalizados socialmente e discriminados 36 etnicamente, Enquanto esses intelectuais teorizavam sobre um possivel papel libertador dos franceses, a ala popular do movimento, sem muito teorizar, apresentava uma posi¢ao programética para ago imediata contra © estatuto colonial e a escravidao. Sera, por isto, que entre as camadas mais empobrecidas da populagao de Salvador o movimento procuraré encontrar base social e iré apoiar-se politicamente. Queriam um regime de igualdade para todos, no qual néo mais houvesse preconceito de classe e de raga e cada um fosse julgado apenas pelo seu merecimento. Manoel Faustino dos Santos ao ser perguntado sobre os objetivos do levante projetado, nfo teve diividas em reafirmar que era “pata reduizir o continente do Brasil a um governo de igualdade, entrando nele branco, pardos ¢ pretos sem distingdo de cores, somente de capacidade de governar, saqueando os cofies piiblicos ¢ reduzindo todos a um s6 para dele se pagar as tropas e assistir as necessérias despesas do Estado”, (Devassa) Os conspiradores nfo ficaram, porém, apenas nos gabinetes, como 0s membros dos outros movimentos. Procuraram levar 0 seu programa a0 povo, escrevendo “papéis sediciosos” que eram afixados em diversos pontos da cidade. Queriam levar A populago da cidade a mensagem do seu discurso politico. Em um dos manuscritos (panfletos) apreendidos pelas autoridades lé-se: “0 povo (ilegivel) sereis livres para gozares (sic) dos bens ¢ efeitos da liberdade; 6 vés Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Inimigo coroado, esse mesmo rei que vés criastes; este mesmo rei tirano é quem se firma no trono para Vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar. “Homens o tempo é chegado. Para a vossa ressurreigo, sim para ressucitareis (sic) do abismo da escravidio, para levantareis (sic) a sagrada bandeira da Liberdade, “A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade ¢ a dogura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns pelos outros, a Liberdade é 0 repouso, a bem- aventuranga do mundo”. (Devassa) A pregagdo revolucionaria prosseguia sua marcha, enquanto os intelectuais, na sua maioria, discutiam teoria politica ou aguardavam que 37 a Franea viesse em socorro da Colénia. Apesar disto, o movimento nao ganhava a amplitude exigida para vencer, pois a intelectualidade que a cle se engajara nfio se sentia encorajadae decidida a se apoiar nas camadas © segmentos sociais mais descontentes e oprimidos, especialmente os escravos, vacilavam em dar base radical a revolta. Em conseqiiéncia dessa posigdo vacilante, a Inconfidéncia Baiana como que estaciona, surgirido, em seguida, as primeiras delagdes acompanhadas de pristes. Diante da moldura conturbada que se segue é que aparecem e comegam a se projetar 60 seus lideres populares. Luis Gonzaga das Vingens é 0 primeiro que se destaca com invulgar mérito, Descontente com a orientagao que se vinha dando a revolta, inicia um amplo movimento de agitaggo ¢ difusdo dos manuscritos que continham o programa dos inconfidentes que era: 1) Independéncia da Capitania; 2) Governo republicano; 3) Liberdade de comércio ¢ abertura de todos os portos “mormente a Franga’; 4) Cada soldado tera soldo de 200 réis por dia; e 5) Libertagao dos escravos. Jéhaviam sido tomadas, porém, logo apés as primeiras delagées, as providéncias necessiirias para que a revolta fosse sufocada e os seus ideres encarcerados. O autor dos manuscritos ~ Luis Gonzaga das Virgens — é cagado pela policia, sendo preso, finalmente, a 24 de agosto. Isto vem precipitar os acontecimentos ¢ obriga os inconfidentes a medidas de emergéncia. Tentam os seus companheiros um ato desesperado a fim de arranca-lo do cércere. Fracassada a tentativa, seguem-se novas delagdes. Afastam-se definitivamente os intelectuais, do movimento. Sua diregfo passa a ser exercida pelos Iideres saidos das camadas mais oprimidas. O governo iniciou, em seguida, brutal represstio contra os implicados na conspirago. Detém iniimeros dos participantes, ou simples suspeitos. Enquanto isso, os inconfidentes esperavam o apoio dos escravos ¢ dos negros em geral. Dirigiam especialmente as suas vistas para eles com muito empenho. Particularmente os batalhdes de pardos e pretos eram constantemente trabalhados pelos insurgentes na fase preparatoria. Lucas Dantas declarou: “temos os regimentos de pardos e pretos a nosso favor” (Devassa). Dizia mais, confirmando a intengao de unirem-se as 38 lutas dos escravos, que essas tropas de pretos se juntariam &“escravatura, dos engenhos de Fernao e Bulcdo”. (Devassa) © contetido francamente abolicionista e de reivindicagao étnica determinou que os implicados, na sua maioria, fossem componentes das camadas subalternizadas ¢ discriminadas etnicamente como forros, escravos, artesio e soldados. A grande participagdio de pardos e escravos depois indiciados marca a sua origem popular, ao contrario das outras inconfidéncias de letrados. Joao Jascimento era pardo; Manuel Faustino dos Santos, pardo livre; Inacio da Silva Pimentel, pardo livre; Luis Gama de Franga Pires, pardo escravo; Vicente Mina, negro escravo; Inécio dos Santos, pardo escravo; Cosme Damitio, pardo escravo; José do Sacramento, pardo alfaiate; José Feliz, pardo escravo; Filipe e Luis, escravos de Manuel Vilela de Carvalho; Joaquim Machado Pessanha, pardo livre; Luis Leal, pardo eseravo; Inacio Pires, Manoel José e Jodo Pires, pardos escravos; José de Freitas Sacoto, pardo livre; José Roberto de Sant’ Ana, pardo livre; Vicente, escravo; Fortunado da Veiga Sampai pardo forro; Domingos Pedro Ribeiro, pardo; 0 preto Gége Vicente, escravo; Gongalo Gongalves de Oliveira, pardo forro; José Francisco de Paulo, pardo livre; Félix Martins dos Santos, pardo, tambor-mor do Regime Auxiliar, além de brancos como Cipriano Barata Recolhidos 4 prisfio na sua quase totalidade, ali permaneceram até que, em 22 de dezembro foi enviada carta a0 governador determinando 0 julgamento dos indiciados. Em novembro de 1799 terminava o julgamento com as seguintes sentengas: Luis Gonzaga das ‘Virgens era condenado a morrer na forea e ter os pés € mélos decepados © expostos em praca publica; Joo de Deus do Nascimento, Lucas Dantas ¢ Manuel Faustino dos Santos Lira também foram sentenciados a forea, ficando os seus corpos igualmente expostos em lugar piiblico. Igual sentenga foi proferida contra Romdo Pinheiro, com a agravante de serem os seus parentes considerados infames (posteriormente a sua pena foi atenuada para degredo). O eseravo Cosme Damio foi banido para a Africa e o pardo escravo Luis da Franga Pires que conseguira fugir foi condenado a morte, dando & Justiga direito de mata-lo a qualquer pessoa que o encontrasse. 39 Terminava, assim, com a brutalidade costumeira da real Justiga escravista-colonialista a mais radical tentativa de mudanga revolucionéria registrada na nossa histéria social. Radical porque visava desestruturar socialmente o sistema eseravista, acabando com a eseravidao, eriando uma sociedade de homens livres e, ao mesmo tempo, desarticularia a ordenaco étnica da colénia rigidamente hierarquizada e que estabelecia uma escala de valores que julgava somente dignos de posigdes de mando ou prestigio social os brancos e nas posigdes subalternas os negros e os nfio-brancos em geral. Essa visdo politica que conjugava os planos social e racial com uma desestruturagdo do sistema escravista acompanhado do rompimento das barreiras étnicas estabelecidas no Brasil somente se verd, durante a fase colonial ou mesmo posteriormente, na Inconfidéncia Baiana. Os negros, escravos e pardos livres ou forros, pela primeira vez se viram incluidos na dupla condigo de explorados e discriminados e compreenderam a necessidade de lutarem nessas duas frentes simultaneamente. A viséo de uma transformagio social simulténea a uma formulagao do julgamento negativo das camadas e segmentos ndio- brancos e dos seus respectivos mecanismos seletivos somente acontecett com a proposta politica no movimento de 1798. slogan Liberdade, igualdade e fraternidade da Revolugao Francesa transformou-se em uma bandeira que nfo igualava apenas os hhomens livres, mas aos escravos também, aos negros, curibocas, mulatos, pardos em geral, finalmente, toda a populago que compunha a maioria esmagadora da Capitania, mas tinhaa sua cidadania total ou parcialmente limitada pela estrutura escravista ¢ racista. Depois da Inconfidéncia Baiana iremos encontrar outros movimentos no século XIX também inspirados no ideério da Revolugio Francesa. Mas, a partir dai, a composigo das forgas sociais que se organizam em favor da Independéncia é outra, A classe senhorial entra pesacamente na composigiio dessas forcas, surgindo dai a ideologia do liberalismo escravista da qual é falamos, que dard cobertura ao discutso desses movimentos. Na revolugdo pernambucana de 1817, a aboligao é jogada para tempo futuro e indeterminado. 40 © conhecido documento do Governo Provisério apés a efémera vitéria de 17 & por todos conhecido. Mas, além disto, durante 0 seu transcorrer, o temor dos senhores de engenhos que dele participaram, em relago ao engajamento dos negros em geral ao movimento é uma constante e produziu, mesmo, areas de atrito e fricgo entre eles. Em trabalho recente, a professora Glacyra Lazzari Leite estudou em profundidade o assunto. (6) Era Independéncia com a continuagio das relagdes escravistas, a modernizagio sem mudangas estrutural nas relagdes de produgio. No movimento pernambucano de 1824, Confederagao do Equador, 0 fenémeno se repete: as idéias liberais da Revolug&o Francesa serviréio de apoio ideolégico a esse liberalismo eseravista que preconizava 0 imobilismo social ea mudanca apenas politica: substituigo da Monarquia pela Repiiblica. Na Revolugdo Praieira, na mesma Provincia, em 1848, como mostra o historiador Amaro Quintas, as idéias liberais estavam visiveis, embora nao nos parega muito convincente a existéncia de uma visio correta dessas idéias pelos seus participantes, porque igualmente projetaram um modelo de governo que conservava a escravidao. Conforme dissemos, somente na fase do eseravismo tardio 0 regime escravista termina, em 1888, de forma compromissada e incompleta, pois o programa da revolugdo baiana, expresso por Manuel Faustino dos Santos “era reduzir o continente do Brasil a um governo de igualdade, entrando nele brancos, pardos e pretos sem distingo de cores, somente de capacidade de governar”, 0 que, infelizmente, ainda & um objetivo a ser alcangado pela sociedade brasileira. 190 anos se passaram desde o dia em que os quatro heréis foram enforcado na praga da Piedade, No ano em que se comemora os duzentos anos da Revolugdo Francesa, registra-se, no Brasil, os cento ¢ noventa anos da Inconfidéncia Baiana. Uma diferenga apenas de dez.anos, o que vem demonstrar como os seus membros assimilaram com uma visio quase instantanea os postulados de igualdade do movimento europeu. Souberam, por outro lado, aplica-los corretamente em uma sociedade escravista ¢ poliétnica, incorporando aos seus principios a extensdo da 4 cidadania aos escravos ¢ a igualdade gtnica aos negros ¢ ndo-brancos em geral, que correspondiam aos segmentos oprimidos-discriminados. De todas as revoltas que aconteceram ou foram projetadas no Brasil durante os séculos XVIII e XIX, a Inconfidéncia Baiana foi aquela que correspondeu mais profundamente as perspectivas de mudanga social radical no seio da sociedade escravista (colonial e imperial), com um contetido repuiblicano, abolicionista e de igualdade étnica e social. Por isto mesmo, é esquecida como acontecimento histérico relevante, nfo estando inserida entre os fatos comemorativos de nossa histéria oficial. A revolugo dos alfaiates, ou Inconfidéncia Baiana, reproduziu to profundamente aqueles anseios de liberdade e justiga social e racial dos brasileiros oprimidos e discriminados que o calendério comemorativo elaborado pelo aparelho de poder procura elimina-lo como feito histérico e épico, reduzindo-o a mero episédio sem relevancia maior, simples ajuntamento de iletrados, anarquistas e desesperados, complexados e desajustados. Cento e noventa anos sto passados ¢ o povo brasileiro ainda vé como bandeira de luta social ¢ racial © programa dos inconfidentes baianos de 1798. (OTAS 1, Varhagen, F.* - “Histéria geral do Brasil”, 5* Ed., SP. Ed Methoramentos, 5 vols, 4°, p. 24. 2. Op. Cit, p. 25. 3. Maxwell, Keneth: “ A Devassa da Devassa”, Ed. Paze Terra, RI, 2" ed., 1978, p. 152. 4, Ferreira Reis, Artur Cezar: “Inquietagdes no Norte”, in “Histéria Geral da Civilizagao Brasileira”, Sérgio Buarque de Holanda (org.), A Epoca Colonial, vol. Il, p. 399. a 5. Idem. Ibdem, p. 406. 6. Leite, Glacyra Lazzari: Pernambuco 1817 ~ estrutura e comportamento sociais. Ed. Massangana, Recife, 1988, passim. (*) Todas as vezes que escrevemos no texto Devassa entre paréntesis (Devassa), estamos nos referindo aos “ Autos de Devassa do Levantamento e Sedigfio Intentados na Bahia em 1798” — Anais do Arquivo Pablico da Bahia, volumes XXXVI e XXXVI, 1961, passim. 43 44 O RACISTA CASAMENTO A BRASILEIRA DURANTE A COLONIA ‘Na produgao histérica atual, to monétona na sua maioria, 0 livro da professora Maria Beatriz Nizza da Silva destaca-se pela riqueza informatica e pela sistematizaedo teérica. No primeiro nivel ela recolhe ‘uma grande massa de informagies, dados e elementos sobre o sistema de Casamento no Brasil Colonial, vale dizer, em uma sociedade escravista, ‘mas cujas leis que regiam este insttuto vinha de fora como um mecanismo de controle social atuante; no segundo nivel, a autora procura dar uma sistematizagio dos elementos fundamentais que historicamente criavam esses mecanismos controladores. Partindo das oposigSes da demogratia hist6rica, a autora usa esse método sem os exageros de certos demégrafos e dentro de uma perspectiva abrangente e dindmica mostra como 0 casamento reproduzia, por extensdo, as diferengas estruturais da sociedade da época. Afirma, por isto mesmo, que “contrair matriménio representava, para amplas camadas da populagio, sobretudo negros e pardos forros, mas também para os brancos pobres, uma despesa e um trabalho tal com papéis que a maioria preferia viver em concubinato estivel, constituindo familia e vivendo como marido e mulher”. (1) Desta forma, a estratificagio da sociedade repressora do Brasil Colénia, da mesma forma que reprimia a mobilidade dos estratos e grupos oprimidos, criava mecanismos capazes de estabelecer dois tipos de casamento e conseqiientemente de familia A autora mostra, também, na esteira deste raciocinio como os ‘mecanismos de barragem das linhagens dominantes procuravam impedir 45 casamentos dos seus membros com negros e mulatos. Embora dividido em capitulos com assuntos estanques, o que é mais relevante metodologicamente neste trabalho é a concatenagiio légica que a autora dé aos diversos assuntos, mostrando-os como partes de um todo social que se caracteriza pela dominagao de poueos sobre muitos. Por outro lado, a autora mostra a luta pelopoder entre o Estado e algreja, centrada na luta pela posse da dominagao familial e seus bens através de varias formas. O problema do dote serve para caracterizar esta diferenga de oportunidades entre ricos e pobres, sendo que neste sentido a Santa Casa de Misericérdia de Sao Paulo ~ para darmos penas um exemplo — concedia dotes is érfts pobres, de preferéncia “filhas de irméios em estado de miséria”. Como vemos, através do estudo do casamento no Brasil Colénia conseguiu-se mostrar toda a estrutura seletiva e discriminatéria da sociedade colonial, especialmente contra os escravos negros, os pardos eas mulheres, No caso particular das mulheres, vemos todo um quadro discriminatério no qual fica nitida a estrutura de dominagao juridica e consuetudindria contra elas, o mesmo se verificando no que diz respeito ao casamento inter-racial. E um livro que renova os estudos histéricos e conduz.o leitora refletir sobre as reminiscéncias desse tipo de casamento no atual comportamento do homem brasileiro, e, também ,no da mulher por ele disctiminada, bem como no daquelas camadas étnicas que, por serem excluidas dos niveis de riqueza e poder, até hoje vivem na franja da sociedade civil a base do concubinato e do casamento néo institucionalizado e muitas vezes de duragdo efémera. ‘Vé-se como uma legislagao repressora do Brasil Coldnia foi estabelecida para controlar, através da instituigdo do casamento a estrutura discriminatéria de uma sociedade escravista. O escravo, o pardo livre, os negros de um modo geral, sao, assim, envolvidos por esta teia que resguarda os privilégios procura manter a sociedade intocada nos seus fundamentos estruturais e ideolSgicos. ‘Um problema que a autora aborda de passagem, mas que merece reflexiio particular & 0 dos casamentos mistos. Dizela: “A historiografia 46 brasileira ainda nfo atentou o suficiente para o seguinte fato: Quando 05 indios passaram da situagao de cativeiro para a de administragdo, os senhores que jé enti possufam escravos da Guiné seguiram uma politica de, por meio de casamentos mistos ~ quer do ponto de vista juridico, quer racial -, prender a populagio indigena a uma eseravaria negra que Aquela altura era rara e dispendiosa” (...) Acrescia, além disto, o sistema de os ter sempre separados do comércio dos brancos, para que nunca poderem ser desabusados, ¢ de os casarem com pretos e pretas escravos, batizando os filhos como servos. (..) “Ora, até hoje nenhum historiador do periodo colonial pensou em examinar mais de perto esta ‘servidio”, um fenémeno extremamente importante na Capitania de Sfio Paulo no inicio do século dezoito”. Como se percebe, além do valor monografico do livro, a autora levanta sugestdes desafiadoras para quem est procurando conhecer verticalmente a nossa Histéria Social. NOTAS 1. Sistema de Casamento do Brasil Colonial ~ Maria Beatriz Nizza da Silva - T.A. Queiroz/Edusp, So Paulo, 1984, 47 48 A RIQUEZA DA CLASSE SENHORIAL BAIANA ATRAVES DO FLUXO E REFLUXO DE ESCRAVOS ‘A tradugio para o portugués do livro de Pierre Verger, veio preencher uma lacuna inexplicavel, pois trata-se de um trabalho indispensdvel a todos aqueles que lidam com etno-historia, sociologia ou antropologia. Surgiu no momento em que as indagacdes dos cientistas sociais académicos repetiam monocordicamente os dados fornecidos por Nina Rodrigues, Bras do Amaral, Manuel Querino outros pesquisadores. Infelizmente as editoras brasileiras que traduzem constantemente livros nem nenhuma utilidade substantiva para os estudiosos do assunto e para o grande piiblico interessado, desprezaram por quase vinte anos esse texto que agora é publicado em portugués. O importante, ao nosso ver, como visao inicial de abordagem, é que esse livro escrito ha tanto tempo, ao invés de envelhecer, adquiriu ‘uma atualidade maior em face do vasto painel de anélise que enfoca ¢ do longo period (do século XVII ao XIX) que o autor expe e interpreta, ‘Além desta parte de atualidade e desafio a certos problemas que ainda so pontos polémicos, o autor faz. com que tenhamos de reanalisar ‘uma série de conceitos j considerados definitivos como, por exemplo, 0 do trifico triangular, sistematizado no seu livro cléssico “Capitalism and Slavery” por Eric Willems. O conceito de fluxo e refluxo, com ‘uma trajet6ria binaria, portanto, vem recolocar em discussiio (sem 0 49 invalidat) o conceito classico de tréfico triangular jaestabelecido como © mecanismo mais relevante através do qual o trifico negreiro era realizado: Metrépole-Aftica, Aftica-col6nias, coldnias-Metrépoles. Esse esquema tedrico de circulagao e dinamismo do sistema colonial no qual © tréfico negreiro era um dos elementos mais importantes explicava como se processava a acumulagdo de capitais nas Metropoles e a desacumulagdo nas éreas coloniais. Com a exposigto de Pierre Verger, repetimos, este conceito, se no é refutado é pelo menos colocado em um nivel de relatividade e niio de exclusividade. Nao podemos negar que em dreas como o Brasil- colénia, Caribe e Estados Unidos o trafico triangular nao tivesse existido ¢ funcionado como um mecanismo substantivo & acumulago de capitais na Europa. Mas, depois desse trabalho de Pierre Verger ele deixa de ser absoluto € nos obriga a considerar ou reconsiderar outras formas alternativas dindmicas do trafico de escravos, pelo menos no Brasil. O fluxo ¢ 0 refluxo do autor exclui a possibilidade do lucro de ponta reverter a metrépole. E com isto cria a possibilidade uma acumulagio de riquezas (no diremos de capitais) na prépria érea colonial, no caso especifico a Bahia, & claro que Pierre Verger nao argumenta e desenvolve em nivel tedrico a sua andlise, contrapondo o tréfico triangular ao fluxo e refluxo, mas a sua argumentago apoiada em documentos da época de forma exaustiva e analitica leva o leitor a refletir sobre © assunto. E por esse tipo de comércio negreiro, sem a intermediacao direta da MetrOpole pode desenvolver-se? O livro demonstra os mecanismos que o determina, em primeiro lugar, a regionalizagtio de um produto, 0 tabaco, na area da Bahia que concentrou a economia da época na sua explorago. Esse fumo tinha trés categorias. Uma, a melhor, destinava- se A exportagao para Portugal, que o revendia para o mercado europe. O de segunda categoria, era para o consumo interno e, finalmente, 0 refiigo chamado soco que era praticamente ndo comercivel. Em segundo lugar a interferéncia da Holanda, através da Companhia das Indias 30 Ocidentais que reservava para si, em nivel de monopélio 0 coméreio de mercadorias, deixando livre somente 0 comércio com o fumo, 20 contrério do que acontecia com os de outras regides que usavam migangas, pentes, armas, tecidos e outros objetos de escambo para 0 negécio negreiro. Isto determinaré um desenvolvimento de produtores baianos nesse sentido. Inicia-se a produgo, para a exportagao para a Africa daquele fimo antes refugado. Os produtores baianos fazem uma verdadeira maquilagem desse fumo, untando-o com mel de cana, medida que 0 deixard com agradavel efeito aromatico. ‘A regionalizagio da produgo do tabaco na Bahia e a preferéncia, dos reis afticanos pelo fumo na troca de afticanos fara com que, de um lado, crie-se uma préspera industria fumageira através da qual os plantadores baianos, ou comerciantes, recebiam, em contrapartida, os escravos necessirios para o desenvolvimento da economia escravista local, A primeira parte ou etapa desse comércio, vai do século XVII até praticamente 1831, quando o trafico € considerado oficialmente ilegal, embora essa lei nunca tivesse sido respeitada, pois fazia parte de um acordo entre a Inglaterra e o recém-independente Império Brasileiro. contrabando, durante todo esse periodo ¢ uma constante permanente nos mecanismos comerciais da época, somente deixando de existir depois de 1850, com a lei Eusébio de Queiroz. A parte que vai do século XVII até a lei Eusébio de Queiroz que determinou a extingaio do trafico é que dard dinamismo e consisténcia econdmica aos traficantes baianos, Tudo isto determinou a formagio e desenvolvimento de uma aristocracia urbana, na Bahia, com chefes, patriarcas, filantropos, de senhores que influiam ativamente na politica e na vida social baiana e nacional, todos direta ow indiretamente envolvidos no trafico de escravos, inicialmente, e no contrabando de escravos a partir de 1831. Os descendentes dessas linhagens de traficantes e contrabandistas, de escravos, ainda exercem consideravel influéncia no seio das elites 31 baianas o que bem demonstra o imobilismo da sociedade brasileira e da baiana em particular, durante esses trezentos anos de estratégia dos traficantes e senhores de escravos que absorviam a populaciio contrabandeada, Forma-se, como dissemos, uma oligarquia comereial-escravista apoiada na produgio do fumo de terceira (s0co), como produto de exportagiio para a Africa e, ao mesmo tempo, controladora dos mecanismos distribuidores dos afticanos que chegavam em nfvel regional. No século XXVII, o Marqués de Pombal tenta racionalizar esse tréfico, procurando criar companhias, como jé as haviam criado franceses eholandeses, mas, como se sabe, ou tiveram duracdio efémera, ou nunca foram realmente organizadas. O certo é que, com o chamado ciclo de ouro, hé um deslocamento do centro de atividades econdmicas para Minas Gerais e, com isto, a necessidade de se trazer para as lavras uma populagdo escrava que pudesse desenvolver a mineragtio no ritmo em que ela se apresentava naquele tempo. Por esta razo — principal mas nao tinica — muda-se a Capital que era Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, deslocando-se ‘ cixo da economia para anova Capital, como centro receptor de escravos e de porto escoador para a Metrépole do produto das lavras. Somente ‘uma estrada unia o Rio de Janeiro e Minas Gerais ¢ era por seu intermédio que 0 ouro ¢ os diamantes extraidos no Brasil seguiam para Portugal. A qualificago da populagao escrava, nesse contexto, é reciclada e Pierre Verger, através de documentagao da época, mostra como os administradores mineiros solicitavam escravos de Angola, ao invés de negros da Costa da Mina, por serem os iiltimos muito altivos insubordinados, criando o risco de rebelides. Em contrapartida, conseqiiéncia da quase exchusividade do estoque sudanés nesse comércio, concentra-sé, na Bahia, especialmente Salvador eRecéncavo baiano, uma populagdo quase que exclusivamente composta de iorubds (nagés), jejes, haugds, tapas, sendo a sua maioria negros islamizados. Essa populagao, relativamente homogénea pelos seus tragos culturais, especialmente a religiao, é que iré detonar a série de rebelides 52 escravas de 1807 a 1835 que Pierre Verger estuda com detalhes abundancia de documentagao. Sobre essas revoltas de escravos na Bahia, o autor traz uma contribuigdo importante para a sua compreensdo, Para quem, como é 0 nosso caso particular, ja trabalhou com os documentos extraidos sob coagiio, isto é documentos de interrogatérios policiais, especialmente aqueles referentes as revoltas de esctavos na Bahia, sabe, muito bem, a necessidade que 0 pesquisador tem de analisa-los criticamente, pois, muitas vezes, 0 seu significado nao esté naquilo que ele declarou, mas é © seu oposto. No caso em questiio, 0 pesquisador precisa de grande sensibilidade heuristica a fim de poder captar o real significado de cada documento, No particular, Pierre Verger, demonstrou possuir essa rara capacidade de interpretar aquilo que se declarou no documento ¢ 0 que ele significou, Possui a sensibilidade necesséria & andlise e interpretago de documentos nos quais ha uma relagio de dominagao e subordinagao entre os dois agentes. ‘Analisa, com seguranga, sempre apoiado em fontes primérias, as revoltas de 1807, 1809, 1810, 1816, 1828, 1830, finalmente, a revolta que ja chamamos de “A. grande insurreigao”, de 1835. Desta iiltima insurreigao o autor nos traga uma trajetéria segura de sua dinamica, 0 comportamento dos implicados, » que a policia apreendeu nos locais devassados. Ao mesmo tempo, segundo ele “o conjunto do inquérito mostrava a importincia do papel representado por um certo nimero de letrados ussas, tapas ¢ nagés que eram os professores dos escravos emancipados, na sua maioria nagés”. Hé como vemos, uma correlagdo entre esse fluxo e refluxo que limitou a area de importagiio de escravos e a possibilidade de uma unidade dos mesmos em Salvador, muitos deles, inclusive, jé livres, pois, no particular Pierre Verger mostra que uma grande parte dos insurretos eram afticanos emancipados, quantificando os acusados em 128 emancipados ¢ 100 escravos. Ainda, segundo ele, dos 286 acusados havia 194 nagés, 25 ussas, 6 tapas, 7 minas, 9 jejes e 18 cujas “nagdes” nao foram identificadas.

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