You are on page 1of 5

Entre os déficits e as necessidades: por uma política habitacional diversa

Caio Santo Amore e Karina Leitão


(excerto de texto publicado pela Fundação Friederich Ebert Stiftung, 2018).

Há um texto clássico para estudiosos da moradia, escrito no final dos anos de 1970 pelo
sociólogo Gabriel Bolaffi (1979) e intitulado "Habitação e urbanismo: o problema e o falso
problema". Ali o autor critica o Plano Nacional de Habitação do extinto BNH (Banco Nacional
de Habitação) e desconstrói a ideia de "déficit" como um problema, deslocando-o para uma
espécie de justificativa que tem grande aceitação social para drenar recursos públicos para a
produção de casas. "Por que o déficit de casas e não outros, como a renda, ou acesso à
educação?", o autor se pergunta. Mesmo se considerarmos que na época em que esse texto
foi escrito, não tínhamos, como temos hoje, critérios objetivos para uma leitura quantitativa
do que é déficit habitacional, o texto interessa pela desconstrução ideológica do conceito.
É curioso que essa ideia de "déficit habitacional" permaneça sendo utilizada pela esquerda e
pela direita, por governos, pelas empresas de construção civil e de incorporação imobiliária,
pelos movimentos de luta por moradia, tanto aqueles que têm a ação direta quanto à
negociação institucional como estratégia principal de luta.
O estudo mais consistente e mais citado em todo o país é elaborado pela Fundação João
Pinheiro desde 1995, com base nos dados do Censo Demográfico e da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD). A definição de “déficit habitacional” é a “noção mais
imediata e intuitiva de necessidade de construção de novas moradias para a solução de
problemas sociais e específicos de habitação, detectados em certo momento". A
quantificação dessa noção imediata e intuitiva faz-se a partir de quatro componentes: (1)
habitação precária, (2) coabitação familiar forçada, (3) adensamento excessivo em domicílios
alugados e (4) ônus excessivo com aluguel.

Gráfico: Totais do déficit habitacional conforme estudos da Fundação João Pinheiro. Fonte: FJP. Elaboração própria.

Os dados mais recentes, tomados PNAD de 2013, 2014 e 2015, mostram uma tendência que
já vinha se manifestando nas pesquisas anteriores. Os números variam pouco e que ficam
em torno de 6 milhões de domicílios. Poderíamos imaginar que se fosse possível construir
tudo isso em um mês e entregar "de graça" para a população que compõe estatisticamente
esse "déficit", o país não resolveria o "problema". E por que isso ocorre?
Embora seja uma metodologia reconhecida, e que importa por se manter ao longo de alguns
anos, permitindo análises em série histórica, é discutível, por exemplo, se "ônus com aluguel"
implica realmente em necessidade de incremento ou reposição de estoque de moradias.
Afinal, trata-se de um descompasso entre a renda da família e custo do aluguel, e não
necessariamente a "noção intuitiva de construção de novas moradias". Esse é o componente
que representa mais da metade do déficit e que fez os números aumentarem, embora tenha
havido queda nos componentes de habitação precária, coabitação e adensamento excessivo
nos domicílios alugados.
2013 2014 2015

Gráfico: Componentes do déficit habitacional total conforme estudos da Fundação João Pinheiro Fonte: FJP. Elaboração própria.

Além disso, assumir de maneira genérica que a somatória desses componentes significa uma
necessidade de se produzir 6 milhões de moradias é uma leitura paupérrima das
possibilidades de solução. Por exemplo, se uma habitação precária puder ser reconstruída
no próprio local, se os materiais que caracterizam o "domicílio rústico" (uma das categorias
da habitação precária) puderem ser substituídos por materiais adequados; se a casa
coabitada ou superadensada puder ser ampliada para acomodar as famílias coabitantes em
um novo domicílio, com banheiro e cozinha ou com número de cômodos adequado à
quantidade de pessoas das famílias, se, enfim, intervenções pontuais puderem ser feitas em
escala, esse tal "déficit" diminui significativamente sem que seja necessário construir casas
novas para incrementar ou repor estoque.
Entretanto, empresas de construção ou de incorporação, governos à esquerda e à direita,
movimentos de luta por moradia, pesquisadores (todos esses "atores sociais"!) sacam
frequentemente esse argumento para justificar a construção de (horríveis) conjuntos
habitacionais, que requerem compra de terra em locais "baratos" (porque mal localizados),
construções padronizadas que não se adequam a necessidades que são particulares,
diversas em função dos ciclos de vida e das condições regionais vividas por cada família.
Ora, essa solução única (construir casas, quaisquer casas!), que vem calçada pela
justificativa de "enfrentar o déficit" pode frequentemente provocar mais déficit habitacional e,
pior, outros déficits de cidade que são mais difíceis de serem mensurados. Vejamos:
1) habitações construídas a toque de caixa, com baixa qualidade construtiva e ambiental
podem se deteriorar em pouco tempo (mesmo que não venham a ser recenseadas como
"precárias");
2) moradias padronizadas podem não se adequar a composição das famílias e se tornarem
domicílios forçosamente coabitados ou excessivamente adensados (mesmo que o déficit seja
restrito aos alugados);
3) um volume grande de crédito para produção e para consumo de habitações, com altos
subsídios, como ocorreu no Programa Minha Casa Minha Vida, provocam elevações de

1
preços imobiliários de terrenos, com impacto em imóveis usados e também no aluguel, que
entra em um circuito que, mesmo em moradias "informais", gera ônus excessivo para as
populações de baixa renda.
Os próprios estudos da Fundação João Pinheiro reconhecem que os números do "déficit" são
insuficientes para dar conta do "problema" habitacional. Para ampliar isso, a fundação
mobiliza os conceitos de inadequação habitacional, baseada em nos componentes de
habitações sem banheiro exclusivo, com cobertura inadequada, com inadequação fundiária,
além dos domicílios próprios superadensados. Esses números não podem ser somados, pois
um mesmo domicílio pode sofrer ao mesmo tempo de todas essas inadequações. No entanto,
se forem considerados aqueles domicílios que têm pelo menos uma inadequação, chegamos
a quase 12 milhões de unidades (veja tabela a seguir).

Ano da PNAD Total Brasil Total SP Total RMSP


2013
Inadequação fundiária 1,97 milhões 0,64 milhões 0,43 milhões
Carência de infraestrutura 11,09 0,44 0,25
Ausência de banheiro exclusivo 0,21 0,02 0,01
Cobertura inadequada 0,94 0,12 0,03
Adensamento excessivo (próprios) 1,02 0,27 0,19
2014
Inadequação fundiária 1,89 milhões 0,57 milhões 0,35 milhões
Carência de infraestrutura 11,28 0,60 0,36
Ausência de banheiro exclusivo 0,24 0,05 0,02
Cobertura inadequada 0,94 0,12 0,05
Adensamento excessivo (próprios) 0,96 0,24 0,17
Tabela: Componentes do déficit habitacional conforme estudos da Fundação João Pinheiro para Brasil, SP e RMSP. Elaboração
própria.

Devemos falar de um modo mais amplo em "necessidades habitacionais", no plural


mesmo, pois as necessidades são específicas, tem tempo e tem lugar nesse nosso país
continental. Não existe, portanto, solução única e a construção habitacional é apenas uma
parte da solução.
Uma política habitacional condizente com a magnitude das necessidades habitacionais
acumuladas, com sua projeção futura, e ainda, com a diversidade da questão, em um país
continental como o nosso, suscita uma ação pública cada vez mais presente, recuperando a
capacidade do estado em planejar, agir e investir em planos, projetos e obras por todo o
território nacional -- uma perspectiva muito diversa do cenário de austeridade que se anuncia.
Tal política demandaria entender melhor a realidade das precariedades nacionais, para além
dos números de assentamentos precários hoje conhecidos, ou mesmo da forma como o
déficit tem sido computado. Dados do censo de 2010 do IBGE indicavam que pelo menos
11.4 milhões de pessoas no país vivem no país em assentamentos subnormais que
demandam ações de qualificação urbana e ambiental, melhoria habitacional e por vezes de
reassentamento. Num cenário sabidamente subestimado por esse instituto1, a demanda que

1 Os dados sobre assentamentos subnormais estimados pelo IBGE têm importância inestimável para
compreensão da realidade brasileira em termos comparativos municipais e estaduais. No entanto, os totais
calculados revelam-se subestimados devido a uma série de fatores, dentre os quais, à metodologia de cálculo
realizada a partir da predominância da normalidade ou sub-normalidade em setores censitários, e ainda, devido à
deficiência dos dados municipais informados ao instituto. Resulta que no cômputo do IBGE, municípios brasileiros

2
se impõe para urbanização de favelas no Brasil assume desafios quantitativos e qualitativos
de grande magnitude, que, estima-se, serão cada vez menores no futuro brasileiro.
As soluções, portanto, não consistem em uma única modalidade de atendimento. Elas
demandam urbanização integrada de assentamentos; serviços públicos de melhoria
habitacional (com assistência técnica); intervenções em cortiços e cômodos; reabilitação de
edifícios; locação social; controle de preços de alugueis, produção habitacional e uma
diversidade de alternativas aderentes às situações regionais ainda pouco conhecidas pelo
governo federal.
Se por um lado a produção de unidades novas é necessária, faz-se urgente revisar os termos
em que ela vem sendo praticada no país. A boa inserção de conjuntos, a localização central,
o acesso a infraestrutura e serviços urbanos, o respeito a padrões mínimos de qualidade e
habitabilidade não são variáveis menos importantes nesse setor. Eles são a condição de
garantia à terra urbana infraestruturada. Em um país de renda familiar reduzida, com índices
de empregabilidade precários2, ter acesso à “cidade” propriamente dita não é condição
subsidiária para garantia de cidadania.
A urbanização de favelas, por sua vez, precisa urgentemente ser retomada como programa
público federal continuado. Seus termos precisam ser revisados, de forma que contratação e
gestão de obras possam ser encarados com a mesma lógica que reformas o são
(PETRAROLLI, 2015), facilitando reprogramações de projeto e a adequação a imprevistos
tão comuns em assentamentos precários onde os levantamentos socioterritoriais são muito
dinâmicos e conhecidos em detalhe quando as intervenções se iniciam.
Isso só para citar mais detalhadamente propostas para duas modalidades de atendimento
habitacional, dentre as diversas alternativas para questão da moradia no Brasil que, como
dito anteriormente, pressuporiam reformas e readequações de imóveis já construídos,
alternativas de locação social, assistência técnica para melhoria habitacional, atendimento à
população em situação de rua, programas de assistência e desenvolvimento social, e por que
não mencionar, de transferência de renda.
A política pública habitacional, aqui tratada a partir da esfera federal, mas aquelas também
das escalas supranacionais de governo, devem subsidiar massivamente o atendimento, seja
em qual for a modalidade, dos setores populares, sobretudo os de mais baixa renda. Nesse
sentido, superar os entraves tradicionais na política habitacional brasileira significa retomar
os rumos que se delinearam nos anos 2003-2016, quando o recorde de investimentos no
setor dava seus primeiros resultados. Recuperar essa tendência, com rumos revisados,
aperfeiçoados, parece ser a saída para a possibilidade de se consolidar uma política pública
de moradia no país que tome a escala e a institucionalidade de um serviço público que
enfrente a diversidade de necessidades ao mesmo tempo, permanentemente.

com tecidos urbanos subnormais muitas vezes não têm identificados seus assentamentos precários. O desafio
colocado para uma estimativa mais precisa do universo quantitativo e qualitativo de assentamentos precários no
país repousa sobre a necessidade de realização de mapeamentos municipais quanto a este tema.
2 Conforme IBGE (2015), cerca de 60% da população brasileira menos de 3 salários (2000 reais à época).

3
Referências bibliográficas
ANPUR. Anais do XV ENANPUR. Recife: 2013. (Disponível em http://anpur.org.br/project/anais-do-xv-ena/, consultado em
10/05/20118).
ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Apresentação intitulada “Globalização e território: uma leitura a partir do Brasil” realizada na Câmara
Municipal de São Paulo, no dia 08/05/2008, como parte das atividades do Espaço de Formação Política (organizado pelo
LABHAB FAUUSP/ Centro Gaspar Garcia/ Central de Movimentos Populares/ Fórum Centro Vivo/ Centro de Educação Popular
do Instituto Sedes Sapientiae e outros).
BARAVELLI, José. Trabalho e tecnologia no PMCMV. São Paulo, FAUUSP, 2014. Tese de doutoramento.
BOLAFFI, Gabriel. Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema. In: MARICATO, Ermínia (Org.). A Produção capitalista
da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979.
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil Arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. Estação
Liberdade, São Paulo; 4ª edição, 2004.
BRANDÃO, Carlos Antônio. A Dimensão Espacial do Subdesenvolvimento: uma agenda para os estudos regionais e urbano.
Campinas: UNICAMP, 2003. Tese de livre-docência apresentada à UNICAMP.
BRASIL. Comitê Gestor do PAC. 11° Balanço do PAC2 – set/dez 2014. (Disponível em:
http://www.pac.gov.br/pub/up/pac/11/PAC11_MinhaCasaMinhaVida.pdf. Acesso em: 10/05/2018).
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências.
BRASIL. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização
fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; e dá outras providências.
BRASIL. Lei nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita
para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005.
CONOF (CD), CONFORF (SF): PMCMV, subsídios para avaliação dos planos e orçamentos da política pública. Estudo técnico
conjunto, Brasília. 1/2017.
DENALDI, R. (2003). Políticas de urbanização de favelas: evolução e impasses. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade
de São Paulo.
DENALDI, Rosana et al. Diagnóstico habitacional regional do grande ABC: informações municipais. Relatório Final. Santo André,
2016a.
DENALDI, Rosana et al. Urbanização de favelas na Região do ABC no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento-
Urbanização de Assentamentos Precários. Cad. Metrop. [online]. 2016b, vol.18, n.35.
HARVEY, D. O. trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas
sociedades capitalistas avançadas. In. Espaço e Debates, n.6, 1982.
INSTITUIÇÃO FISCAL INDEPENTENDE (IFI). Relatório de acompanhamento fiscal, outubro de 2017. Por dentro do gasto de
infraestrutura. Brasília, 2017. (Disponível em
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/532983/RAF_09_2017_pt05.pdf, acessado em 10/05/2018).
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Antrophos, 1974.
LEITÃO, Karina. A dimensão territorial do Programa de Aceleração do Crescimento: um estudo sobre o PAC no Estado do Pará
e o lugar que ele reserva à Amazônia no desenvolvimento do país. São Paulo: USP, 2009. Tese (Doutorado) — Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,
MARICATO, Erminia. Apresentação realizada no Fórum Nacional br_cidades. São Paulo: Hotel Braston, maio de 2018. (ppt
cedido pela autora)
MARICATO, Erminia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.
MARICATO, Erminia. O PAC e seus impactos na política de desenvolvimento urbano e regional. Apresentação realizada na
Mesa Redonda 1 do XII ENANPUR. Belém: 2007 (informação verbal).
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Cadernos MCidades: Política Nacional de Habitação. Cadernos nº 4. Série de Cadernos
MCidades., Brasília: Governo Federal, 2005.
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Caderno 1: Análise de custos referenciais - qualificação da inserção urbana. Brasília, 2017.
(Disponível em http:// https://d.pr/kcCtGz, acessado em 10/05/2018).
MINISTÉRIO DAS CIDADES; SECRETARIA NACIONAL DE HABITAÇÃO; CONSÓRCIO PLANHAB. Plano Nacional de
Habitação. Brasília: Ministério das Cidades, 2008 (versão preliminar disponível em http://www.cidades.gov.br/secretarias-
nacionais/secretaria-de-habitacao/planhab/produtos/produtos, acessado em 10/05/2018).
PETRAROLLI, Juliana. O tempo nas urbanizações de favelas: contratação e execução de obras do PAC no Grande ABC. Santo
André, UFABC, 2015. Dissertação de mestrado.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Programa de aceleração do crescimento 2007-2010. Material divulgado por ocasião do
lançamento do PAC. Brasília: Palácio do Planalto, 22 de janeiro de 2007.
SANTO AMORE, C. Entre o nó e o fato consumado, o lugar dos pobres na cidade: um estudo sobre as ZEIS e os impasses da
Reforma Urbana na atualidade. São Paulo: FAUUSP (tese de doutorado), 2013.
SANTOAMORE, Caio; SHIMBO, Lúcia; RUFINO, Maria Beatriz. Minha casa... e a cidade?: avaliação do programa minha casa
minha vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
SINGER, A. Cutucando onças com varas curtas – o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-
2014). Novos Estudos Cebrap, n.102, 2015, p.43-71
SINGER, André. Brasil, junho de 2013, classes e ideologias cruzadas. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2013, n.97, pp.23-40.

You might also like